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ANTROPOLOGIA SOCIAL Diretor Gilberto Velho História Social da Criança e da Família 2ª ed Philippe Ariès Uma Teoria da Ação Coletiva Howard S Becker Carnavais Malandros e Heróis 3ª ed Roberto Da Matta Cultura e Razão Prática Marshall Sahlins Bruxaria Oráculos e Magia entre os Azande EE EvansPritchard Elementos de Organização Social Raymond Firth A Interpretação das Culturas Clifford Geertz Estigma Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada 3ª ed Erving Goffman O Palácio do Samba Maria Júlia Goldwasser A Sociologia do Brasil Urbano Anthony e Elizabeth Leeds Arte e Sociedade Gilberto Velho Desvio e Divergência 4ª ed Gilberto Velho Individualismo e Cultura Notas para uma Antropologia da Sociedade Contemporânea Gilberto Velho Guerra de Orixá 2ª ed Yvonne MA Velho Philippe Ariès História Social da Criança e da Família Tradução de Dora Flaksman Segunda edição EDITORA GUANABARA HISTORIA SOCIAL DA CRIANÇA E DA FAMÍLIA 2ª edição Philippe Ariès considerase um historiador de fim de semana Durante cerca de 40 anos dedicou suas horas de ócio à pesquisa de atitudes sociais o que os franceses chamam de lhistoire des mentalités Atitudes em face da vida da loucura e mais recentemente da morte em seus livros Essay sur lHistoire de la Mort en Occident du Moyen Age à nos Jours e LHomme Devant la Mort foram objeto de sua investigação Ao demonstrar a lenta evolução da mudança de atitudes ao longo dos séculos ele tem tido um valioso efeito corretivo sobre a nova geração de cientistas sociais A sua ênfase persistente sobre o que poderíamos chamar relatividade histórica exerceu profundo efeito sobre os psicólogos do mundo inteiro Hoje com mais de 60 anos Ariès estabeleceu uma sólida reputação como historiador ao mesmo tempo em que manteve a sua profissão como oficial de informação especializado em agricultura tropical Para quem trabalha em regime de meio tempo isso foi uma verdadeira proeza mas provavelmente a sua pesquisa sobre a criança e a família é que colocou um público muito mais vasto a par de sua contribuição para o pensamento contemporâneo Esta sua História Social da Criança e da Família tocou em muitos nervos sensíveis da sociedade moderna O próprio Ariès foi atraído por aquelas pinturas da Renascença de crianças vestidas como adultos Com o uso meticuloso mas intuitivo de velhos diários testamentos igrejas e túmulos bem como de pinturas ele desenvolveu um quadro em lenta transformação da criança e de sua família O livro teve considerável efeito sobretudo nos Estados Unidos Suas observações sobre o vácuo entre o lar e o local de trabalho na sociedade industrial comparado com o meio interveniente da Idade Mé continua na 2ª aba HISTÓRIA SOCIAL DA CRIANÇA E DA FAMÍLIA História Social da Criança e da Família SEGUNDA EDIÇÃO Philippe Ariès EDITORA GUANABARA CIPBrasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ Ariès Philippe História social da criança e da família Philippe Ariès tradução Dora Flaksman 2ª ed Rio de Janeiro Guanabara 1986 Antropologia social Tradução de LEnfant et la Vie familiale sous lAncien Régime Bibliografia ISBN 8524500360 I Crianças França 2 Família França 3 Antropologia social I Título II Série 860348 CDD 39213 CDU 3923 Título original LEnfant et la Vie familiale sous lAncien Régime Traduzido da terceira edição publicada em 1975 pela Editions du Seuil de Paris França na série Points Histoire dirigida por Michel Winock Copyright 1973 by Editions du Seuil Edição para o Brasil Não pode circular em outros países Primeira edição brasileira 1978 Direitos exclusivos para a língua portuguesa Copyright by EDITORA GUANABARA SA Travessa do Ouvidor 11 Rio de Janeiro RJ CEP 20040 19815 4 3 2 Reservados todos os direitos É proibida a duplicação ou reprodução deste volume ou de partes do mesmo sob quaisquer formas ou por quaisquer meios eletrônico mecânico gravação fotocópia ou outros sem permissão expressa da Editora A meus pais A meus sogros UNI RIO B35919 BN000497339 UNIRIO Centro de Ciências Humanas BIBLIOTECA SETORIAL Reg nº 8293 03 15 189 NOTA A edição brasileira de História Social da Criança e da Família foi traduzida da edição de LEnfant et la vie familiale sous lAncien Régime das Editions du Seuil Collection Points Série Histoire 1973 Esta edição francesa é uma versão abreviada do texto original de Philippe Ariès publicado em 1960 pelas Editions Plons e reeditado integralmente pelas Editions du Seuil na coleção Univers historique em 1973 acrescido de um prefácio em que o autor examinava a historiografia de seu tema Na atual versão portanto as partes I e III foram integralmente reproduzidas Da parte II porém foi conservado apenas o essencial ou seja as conclusões completas de sete capítulos O capítulo intitulado Do Externato ao Internato foi totalmente suprimido Índice Prefácio 9 1 O Sentimento da Infância 1 As Idades da Vida 29 2 A Descoberta da Infância 50 3 O Traje das Crianças 69 4 Pequena Contribuição à História dos Jogos e Brincadeiras 82 5 Do Despudor à Inocência 125 Conclusão Os Dois Sentimentos da Infância 156 2 A Vida Escolástica 1 Jovens e velhos escolares da Idade Média 165 2 Uma Instituição Nova O Colégio 169 3 Origens das Classes Escolares 172 4 As Idades dos Alunos 175 5 Os Progressos da Disciplina 178 6 As Pequenas Escolas 183 7 A Rudeza da Infância Escolar 184 Conclusão A Escola e a Duração da Infância 186 3 A Família 1 As Imagens da Família 195 2 Da Família Medieval à Família Moderna 225 Conclusão Família e Sociabilidade 272 Conclusão 275 Prefácio Costumase dizer que a árvore impede a visão da floresta mas o tempo maravilhoso da pesquisa é sempre aquele em que o historiador mal começa a imaginar a visão de conjunto enquanto a bruma que encobre os horizontes longínquos ainda não se dissipou totalmente enquanto ele ainda não tomou muita distância do detalhe dos documentos brutos e estes ainda conservam todo o seu frescor Seu maior mérito talvez seja menos defender uma tese do que comunicar aos leitores a alegria de sua descoberta tornálos sensíveis como ele próprio o foi às cores e aos odores das coisas desconhecidas Mas ele também tem a ambição de organizar todos esses detalhes concretos numa estrutura abstrata e é sempre difícil para ele felizmente desprenderse do emaranhado das impressões que o solicitaram em sua busca aventurosa é sempre difícil conformálas imediatamente à álgebra no entanto necessária de uma teoria Anos depois no momento da reedição o tempo passou levando consigo a emoção desse primeiro contato mas trazendo por outro lado uma compensação podese ver melhor a floresta Hoje após os debates contemporâneos sobre a criança a família a juventude e após o uso que foi feito de meu livro vejo melhor ou seja de uma forma mais nítida e mais simplificada as teses que me foram inspiradas por um longo diálogo com as coisas Procurarei resumilas aqui reduzindoas a duas A primeira referese inicialmente à nossa velha sociedade tradicional Afirmei que essa sociedade via mal a criança e pior ainda o adolescente A duração da infância era reduzida a seu período mais frágil enquanto o filhote do homem ainda não conseguia bastarse a criança então mal adquire algum desembaraço físico era logo misturada aos adultos e partilhava de seus trabalhos e jogos De criancinha pequena ela se transformava imediatamente em homem jovem sem passar pelas etapas da juventude que talvez fossem praticadas antes da Idade Média e que se tornaram aspectos essenciais das sociedades evoluídas de hoje A transmissão dos valores e dos conhecimentos e de modo mais geral a socialização da criança não eram portanto nem asseguradas nem controladas pela família A criança se afastava logo de seus pais e podese dizer que durante séculos a educação foi garantida pela aprendizagem graças à convivência da criança ou do jovem com os adultos A criança aprendia as coisas que devia saber ajudando os adultos a fazêlas A passagem da criança pela família e pela sociedade era muito breve e muito insignificante para que tivesse tempo ou razão de forçar a memória e tocar a sensibilidade Contudo um sentimento superficial da criança a que chamei papariação era reservado à criancinha em seus primeiros anos de vida enquanto ela ainda era uma coisinha engraçadinha As pessoas se divertiam com a criança pequena como com um animalzinho um macaquinho impudico Se ela morresse então como muitas vezes acontecia alguns podiam ficar desolados mas a regra geral era não fazer muito caso pois uma outra criança logo a substituiria A criança não chegava a sair de uma espécie de anonimato Quando ela conseguia superar os primeiros perigos e sobreviver ao tempo da papariação era comum que passasse a viver em outra casa que não a de sua família Essa família se compunha do casal e das crianças que ficavam em casa não acredito que a família extensa composta de várias gerações ou vários grupos colaterais jamais tenha existido a não ser na imaginação dos moralistas como Alberti na Florença do século XV ou como os sociólogos tradicionalistas franceses do século XIX e exceto em certas épocas de insegurança quando a linhagem devia substituir o poder público enfraquecido e em certas condições econômicojurídicas como por exemplo nas regiões mediterrâneas e talvez nos lugares onde o direito de beneficiar exclusivamente um dos filhos favorecia a coabitação Essa família antiga tinha por missão sentida por todos a conservação dos bens a prática comum de um ofício a ajuda mútua quotidiana num mundo em que um homem e mais ainda uma mulher isolados não podiam sobreviver e ainda nos casos de crise a proteção da honra e das vidas Ela não tinha função afetiva Isso não quer dizer que o amor estivesse sempre ausente ao contrário ele é muitas vezes reconhecível em alguns casos desde o noivado mais geralmente depois do casamento criado e alimentado pela vida em comum como na família do Duque de SaintSimon Mas e é isso o que importa o sentimento entre os cônjuges entre os pais e os filhos não era necessário à existência nem ao equilíbrio da família se ele existisse tanto melhor As trocas afetivas e as comunicações sociais eram realizadas portanto fora da família num meio muito denso e quente composto de vizinhos amigos amos e criados crianças e velhos mulheres e homens em que a inclinação se podia manifestar mais livremente As famílias conjugais se diluíam nesse meio Os historiadores franceses chamariam hoje de sociabilidade essa propensão das comunidades tradicionais aos encontros às visitas às festas É assim que vejo nossas velhas sociedades diferentes ao mesmo tempo das que hoje nos descrevem os etnólogos e das nossas sociedades industriais Minha primeira tese é uma tentativa de interpretação das sociedades tradicionais A segunda pretende mostrar o novo lugar assumido pela criança e a família em nossas sociedades industriais A partir de um certo período o problema obsecante da origem ao qual voltarei mais tarde e em todo o caso de uma forma definitiva e imperativa a partir do fim do século XVII uma mudança considerável alterou o estado de coisas que acabo de analisar Podemos compreendêla a partir de duas abordagens distintas A escola substituiu a aprendizagem como meio de educação Isso quer dizer que a criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente através do contato com eles A despeito das muitas reticências e retardamentos a criança foi separada dos adultos e mantida à distância numa espécie de quarentena antes de ser solta no mundo Essa quarentena foi a escola o colégio Começou então um longo processo de enclausuramento das crianças como dos loucos dos pobres e das prostitutas que se estenderia até nossos dias e ao qual se dá o nome de escolarização Essa separação e essa chamada à razão das crianças deve ser interpretada como uma das faces do grande movimento de moralização dos homens promovido pelos reformadores católicos ou protestantes ligados à Igreja às leis ou ao Estado Mas ela não teria sido realmente possível sem a cumplicidade sentimental das famílias e esta é a segunda abordagem do fenômeno que eu gostaria de sublinhar A família tornouse o lugar de uma afeição necessária entre os cônjuges e entre pais e filhos algo que ela não era antes Essa afeição se exprimiu sobretudo através da importância que se passou a atribuir a educação Não se tra tava mais apenas de estabelecer os filhos em função dos bens e da honra Tratavase de um sentimento inteiramente novo os pais se interessavam pelos estudos de seus filhos e os acompanhavam com uma solicitude habitual nos séculos XIX e XX mas outrora desconhecida Jean Racine escrevia a seu filho Louis a respeito de seus professores como o faria um pai de hoje ou de ontem um ontem muito próximo A família começou então a se organizar em torno da criança e a lhe dar uma tal importância que a criança saiu de seu antigo anonimato que se tornou impossível perdêla ou substituíla sem uma enorme dor que ela não pôde mais ser reproduzida muitas vezes e que se tornou necessário limitar seu número para melhor cuidar dela Portanto não surpreende que essa revolução escolar e sentimental tenha sido seguida com o passar do tempo de um multihusianismo demográfico de uma redução voluntária da natalidade observável no século XVIII Tudo isso está ligado talvez até demais para os olhos desconfiados de um P Veyne A consequência disso tudo que ultrapassa o período estudado neste livro mas que desenvolvi em outro estudo foi a polarização da vida social no século XIX em torno da família e da profissão e o desaparecimento salvo raras exceções como a Provença de M Agulhon e M Vovelle da antiga sociabilidade Um livro tem sua vida própria e rapidamente escapa das mãos de seu autor para pertencer a um público nem sempre conforme ao que o autor previra O que aconteceu foi como se as duas teses que acabo de expor não se dirigissem exatamente ao mesmo público A segunda que parecia voltarse para a explicação imediata do presente foi imediatamente explorada por psicólogos e sociólogos especialmente nos EUA onde as ciências humanas se preocuparam mais cedo do que em qualquer outro lugar com as crises da juventude Essas crises tornavam evidente a dificuldade quando não a repugnância dos jovens em passar para o estado adulto Ora minhas análises sugeriam que essa situação podia ser a consequência do isolamento prolongado dos jovens na família e na escola Elas mostravam também que o sentimento da família e a escolarização intensa da juventude eram um mesmo fenômeno um fenômeno recente relativamente datável e que antes a família se distinguia mal dentro de um espaço social muito mais denso e quente Na época essa acolhida teve para mim um gosto paradoxal pois fora em nome da psicologia moderna que na França me haviam sido feitas algumas críticas negligência das curiosidades da psicologia moderna disse A Besançon concessões excessivas ao fixismo da psicologia tradicional afirmou J L Flandrin1 e é verdade que sempre me foi difícil evitar as velhas palavras equívocas e hoje tão fora de moda a ponto de se tornarem ridículas mas sempre tão vivas dentro da cultura moralista e humanista que foi a minha Essas críticas antigas sobre o bom uso da psicologia merecem uma reflexão e eis o que eu gostaria de dizer hoje Uma pessoa pode tentar elaborar uma história do comportamento ou seja uma história psicológica sem ser ela própria psicóloga ou psicanalista mantendose à distância das teorias do vocabulário e mesmo dos métodos da psicologia moderna e ainda assim interessar esses mesmos psicólogos dentro de sua área Se um sujeito nasce historiador ele se torna psicólogo à sua moda que não é certamente a mesma dos psicólogos modernos mas se junta a ela e a completa Nesse momento o historiador e o psicólogo se encontram nem sempre ao nível dos métodos que podem ser diferentes mas ao nível do assunto da maneira de colocar a questão ou como se diz hoje da problemática A abordagem inversa que vai da psicologia à história também é possível como o prova o êxito de A Besançon Esse itinerário contudo apresenta alguns perigos dos quais M Soriano nem sempre se esquivou apesar de tantas descobertas saborosas e comparações felizes Na crítica que me dirigiu A Besançon deixava claro que a criança não é apenas o traje as brincadeiras a escola nem mesmo o sentimento da infância ou seja modalidades históricas empiricamente perceptíveis ela é uma pessoa um processo uma história que os psicólogos tentam reconstituir ou seja um termo de comparação N Z Davis3 um excelente historiador do século XVI procurou esse termo de comparação no modelo construído por psicossociólogos com base em sua experiência do mundo contemporâneo Sem dúvida a tentação dos psicólogos de fugir para fora de seu mundo a fim de comprovar suas teorias é grande e certamente enriquecedora quer ela os conduza para nossas sociedades tradicionais para o lado de Lutero quer os leve até os últimos selvagens Se o método deu certo no caso dos etnólogos as sociedades tradicionais me parecem mais recalcitrantes Esse tipo de abordagem consegue traduzir para a linguagem moderna com excessi 1 A Besançon Histoire et psychanalyse Annales ESC 19 1964 p 242 n 2 J L Flandrin Enfance et société Annales ESC 19 1964 pp 322329 2 N Z Davis The Reasons of Misrule Youth Groups and Charivaris on Sixteenth Century France Past and Present 50 fevereiro de 1971 pp 4175 va facilidade as relações de Charles Perrault e seu filho como sendo as relações de um pai exagerado e um filho mimado o que nada acrescenta à compreensão de nosso mundo de hoje pois não há dados novos nem ao entendimento do mundo antigo pois há um anacronismo e o anacronismo falseia a comparação Contudo a fobia do anacronismo o defeito dos historiadores não significa nem uma recusa à comparação nem uma indiferença pelo mundo contemporâneo bem sabemos que percebemos no passado primeiro as diferenças e só depois as semelhanças com o tempo em que vivemos Se minha segunda tese encontrou uma acolhida quase unânime a primeira a ausência do sentimento da infância na Idade Média foi recebida com mais reserva pelos historiadores Entretanto hoje podese dizer que suas grandes linhas foram aceitas Os historiadoresdemógrafos reconheceram a indiferença que persistiu até muito tarde com relação às crianças e os historiadores das mentalidades perceberam a raridade das alusões às crianças e às suas mortes nos diários de família como o do catrabucheiro de Lille editado por A Lotin Ficaram impressionados como J Bouchard com a ausência de função socializadora da família3 Os trabalhos de M Agulhon sublinharam a importância da sociabilidade4 nas comunidades rurais e urbanas do Ancien Régime Mas as críticas são mais instrutivas do que as aprovações ou as concordâncias Falarei sobre duas delas uma de J L Flandrin e a outra de N Z Davis J L Flandrin criticou uma preocupação muito grande obsessiva de minha parte com o problema da origem que me leva a denunciar uma inovação absoluta onde haveria antes uma mudança de natureza A crítica é justa Este é um defeito que dificilmente pode ser evitado quando se procede por via regressiva como sempre faço em minhas pesquisas Ele introduz de uma forma demasiado ingênua o sentido da mudança que na realidade não é uma inovação absoluta e sim na maioria dos casos uma recodificação O exemplo dado por J L Flandrin é bom se a arte medieval representava a criança como um homem em escala reduzida isso se prendia diz ele não à existência mas à natureza do sentimento da infância A criança era portanto diferente do homem mas apenas no tamanho e na força enquanto as outras características permaneciam iguais Seria então interessante comparar a criança ao anão que ocupa um lugar importante na tipologia medieval 6 3 J Bouchard Un village immobile 1972 4 J L Flandrin Enfance et société op cit na Grécia homérica ou na Idade Média das canções de gesta Ele tinha razão Não podemos negar nossa tendência a projetar com demasiada exatidão em nossas estruturas tradicionais as estruturas hoje percebidas pelos etnólogos entre os selvagens contemporâneos Mas fechemos o parêntese e aceitemos a hipótese de uma sociedadedeorigem bem no início da Alta Idade Média que apresentaria as características etnográficas ou folclóricas comumente admitidas Uma grande mudança interveio então nessa sociedade talvez não época do feudalismo e do reforço dos antigos domínios Essa mudança afetou a educação ou seja a transmissão do saber e dos valores Daí em diante ou seja a partir da Idade Média a educação passou a ser assegurada pela aprendizagem Ora a prática da aprendizagem é incompatível com o sistema de classes de idade ou pelo menos tende a destruílo ao se generalizar Considero fundamental insistir na importância que se deve atribuir à aprendizagem Ela força as crianças a viverem no meio dos adultos que assim lhes comunicam o savoirfaire e o savoirvivre A mistura de idades decorrente da aprendizagem pareceme ter sido um dos traços dominantes de nossa sociedade de meados da Idade Média até o século XVIII Nessas condições as classificações tradicionais pela idade não podiam deixar de se embaçar e perder sua razão de ser Ora é certo porém que essas classificações persistiram no que se refere à vigilância sexual e à organização das festas e conhecemos a importância das festas na vida quotidiana de nossas antigas sociedades Como conciliar a persistência daquilo que certamente era muito mais do que um vestígio com a exportação precoce das crianças para o meio dos adultos Não nos estaríamos deixando enganar apesar de todos os argumentos contrários de N Z Davis pela ambigüidade da palavra juventude Mesmo o latim ainda tão próximo não facilitava a discriminação Nero tinha 25 anos quando Tácito disse a seu respeito certe finitam Neronis pueritiam et robur juventae adesse Robur juventae era a força do homem jovem e não a adolescência Qual era a idade dos chefes das confrarias de jovens e de seus companheiros A idade de Nero na época da morte de Burro a idade de Condé em Rocroy a idade da guerra ou da simulação a idade da bravata De fato essas sociedades da juventude eram sociedades de solteiros em épocas em que nas classes populares as pessoas geralmente se casavam tarde A oposição portanto era entre o casado e o não casado entre aquele que tinha uma casa própria e aquele que não tinha que morava na casa de outrem entre o menos instável e o menos estável Portanto é preciso sem dúvida admitir a existência de sociedades de jovens mas no sentido de celibatários A juventude dos celibatários do Ancien Régime não implicava nem as características que tanto na Antigüidade como nas sociedades etnográficas distinguia o efebo do homem maduro Aristógiton de Harmódio nem as que hoje opõem os adolescentes aos adultos Se tivesse de escrever este livro hoje eu me precaveria melhor contra a tentação da origem absoluta do ponto zero mas as grandes linhas continuariam as mesmas Levaria em conta apenas os dados novos e insistiria mais na Idade Média e em seu outono tão rico Em primeiro lugar eu chamaria a atenção para um fenômeno muito importante e que começa a ser mais conhecido a persistência até o fim do século XVII do infanticídio tolerado Não se tratava de uma prática aceita como a exposição em Roma O infanticídio era um crime severamente punido No entanto era praticado em segredo correntemente talvez camuflado sob a forma de um acidente as crianças morriam asfixiadas naturalmente na cama dos pais onde dormiam Não se fazia nada para conserválas ou para salválas J L Flandrin analisou essa prática oculta numa conferência da Société du XVIIe siècle ciclo de 19721973 a sair na Revue du XVIIe siècle Ele mostrou como a diminuição da mortalidade infantil observada no século XVIII não pode ser explicada por razões médicas e higiênicas simplesmente as pessoas pararam de deixar morrer ou de ajudar a morrer as crianças que não queriam conservar Na mesma série de conferências da Société du XVIIe siècle o Pe Gy confirmou a interpretação de J L Flandrin citando trechos dos Rituais póstridentinos em que os bispos proibiam com uma veemência que dá o que pensar que as crianças fossem postas para dormir na cama dos pais onde muitas vezes morriam asfixiadas O fato de ajudar a natureza a fazer desaparecer criaturas tão pouco dotadas de um ser suficiente não era confessado mas tampouco era considerado com vergonha Fazia parte das coisas moralmente neutras condenadas pela ética da Igreja e do Estado mas praticadas em segredo numa semiconsciência no limite da vontade do esquecimento e da falta de jeito A vida da criança era então considerada com a mesma ambigüidade com que hoje se considera a do feto com a diferença de que o infanticídio era abafado no silêncio enquanto o aborto é reivindicado em voz alta mas esta é toda a diferença entre uma civilização do segredo e uma civilização da exibição Chegaria um tempo no século XVII em que a sagefemme a parteira essa feiticeira branca recuperada pelos Poderes públicos teria a missão de proteger a criança e em que os pais melhor informados pelos reformadores tornados mais sensíveis à morte se tornariam mais vigilantes e desejariam conservar seus filhos a qualquer preço É exatamente o inverso da evolução em direção à liberdade do aborto que se desenrola sob a nossa vista No século XVII de um infanticídio secretamente admitido passouse a um respeito cada vez mais exigente pela vida da criança Se a vida física da criança contava ainda tão pouco seria de esperar numa sociedade unanimemente cristã um maior cuidado com sua vida futura após a morte Eisnos portanto levados à apaixonante história do batismo da idade do batismo do modo de administração que sinto não ter abordado em meu livro Espero que esse assunto tente algum jovem pesquisador Ele permitiria perceber a atitude diante da vida e da infância em épocas remotas pobres de documentos não para confirmar ou modificar a data do início de um ciclo mas para mostrar como dentro de um polimorfismo contínuo as mentalidades antigas se transformaram aos solavancos através de uma série de pequenas mudanças A história do batismo me parece ser um bom exemplo desse tipo de evolução em espiral Proporei à reflexão dos pesquisadores a seguinte hipótese Numa sociedade unanimemente cristã como as sociedades medievais todo homem e toda mulher deviam ser batizados e de fato o eram mas quando e como Em meados da Idade Média temse a impressão a ser confirmada de que os adultos nem sempre manifestavam muito empenho em batizar logo as crianças e esqueciamse de fazêlo nos casos graves Numa sociedade unanimemente cristã eles se comportavam quase da mesma forma como os indiferentes de nossas sociedades leigas Imagino que as coisas se passassem da seguinte maneira os batismos eram ministrados em datas fixas duas vezes por ano na véspera da Páscoa e na véspera de Pentecostes Não havia ainda registros de catolicidade nem certidões nada forçava os indivíduos além de sua própria consciência a pressão da opinião pública e o medo de uma autoridade longínqua negligente e desarmada Batizavamse então as crianças quando bem se entendia e atrasos de vários anos podiam ser freqüentes Os batistérios dos séculos XI e XII são aliás grandes cubas semelhantes a banheiras onde a criança que não devia mais ser muito pequena ainda era mergulhada cubas profundas em que os pintores de vitrais mergulhavam Clóvis para batizálo ou S João para torturálo pequenas banheiras retangulares em forma de sarcófago Se a criança morresse no intervalo dos batismos coletivos ninguém se comovia além da medida É certo que os pastores medievais se inquietaram com esse estado de espírito e multiplicaram os locais de culto a fim de permitir aos padres chegar mais depressa à cabeceira da mãe que dava à luz Uma pressão cada vez maior sobretudo da parte dos mendicantes se exerceu sobre as famílias para forçálas a ministrar o batismo o mais cedo possível após o nascimento Houve então uma renúncia aos batismos coletivos que impunham uma espera muito longa e a regra seguida pelo uso passou a ser o batismo da criancinha pequena A imersão foi abandonada em favor do rito atual de aspersão Teria havido um rito intermediário que combinava a imersão e a aspersão Enfim as parteiras foram incumbidas de batizar as crianças que não nasciam a termo usque in utero Mais tarde a partir do século XVI os registros de catolicidade permitiram o controle por parte dos visitantes diocesanos por exemplo da administração do batismo controle este que não existia antes Mas nas sensibilidades a partida já devia estar ganha provavelmente desde o século XIV O século XIV me parece ter sido o momento mais forte dessa história Foi então que as crianças se tornaram mais numerosas no novo folclore dos Miracles NotreDame de que me utilizei no capítulo A Descoberta da Infância Nessa área do miraculoso é preciso fazer uma menção especial a um tipo de milagre que creio eu deve ter aparecido então ou um pouco mais tarde a ressurreição das crianças mortas sem batismo pelo tempo exato de receber esse sacramento J Toussaert conta um milagre desse gênero ocorrido em Poperinghe em 11 de março de 1479 Mas tratavase de um milagre original inesperado extraordinário como ainda não se conheciam muitos Nos séculos XVI e XVII esses milagres haviamse tornado banais e existiam santuários especializados nesse gênero de prodígios que não surpreendiam mais ninguém M Bernos analisou esse fenômeno com sutileza a propósito de um milagre ocorrido na igreja da Annonciade de AixenProvence no primeiro domingo da Quaresma de 1558 O milagre não era mais a ressurreição fenômeno comum nessa igreja onde era hábito colocar os pequenos cadáveres sobre o altar e esperar pelos sinais freqüentes de uma reanimação para batizálos O que surpreendia e perturbava era o acendimento sobrenatural de uma vela durante a suspensão da morte este era o fato realmente extraordinário e não a reanimação Em 1479 o fato de as pessoas estarem acostumadas ainda não havia banido o assombro certamente ainda não se estava longe da origem da devoção Portanto foi como se as pessoas tivessem começado a descobrir a alma das crianças antes de seu corpo sob a pressão das tendências reformadoras da Igreja Mas quando a vontade dos litterati foi aceita ela foi imediatamente folclorizada e a criança começou sua carreira popular como heroína de um novo folclore religioso Um outro fato cuja importância não foi suficientemente sublinhada em meu livro ainda nos deterá um pouco mais nesse século XIV Tratase dos túmulos É verdade que eu disse algumas palavras a esse respeito no capítulo A Descoberta da Infância Mas algumas pesquisas recentes sobre a atitude diante da morte permitemme ser hoje mais preciso Entre as inúmeras inscrições funerárias dos quatro primeiros séculos de nossa era que em toda a parte solicitam o visitante de Roma muitas falam de crianças e mesmo de criancinhas de poucos meses de idade fulano e fulana pais consternados erigiram este monumento à memória de seu filho bemamado morto aos poucos meses ou anos de vida tantos anos tantos meses e tantos dias Em Roma na Gália e na Renânia numerosos túmulos esculpidos reuniam no mesmo monumento as imagens do casal e seus filhos Em seguida a partir dos séculos VVI aproximadamente a família e a criança desapareceram das representações e das inscrições funerárias Quando o uso do retrato retornou nos séculos XIXII os túmulos passaram a ser individuais com o marido e a mulher separados e é claro não havia túmulos esculpidos de crianças Em Fontevrault os túmulos dos dois reis Plantagenetas estão bem separados O hábito de reunir os dois e às vezes os três cônjuges o marido e suas duas mulheres sucessivas tornouse mais freqüente no século XIV época em que apareceram também embora ainda raros os túmulos com figuras de criancinhas Essa coincidência não foi fortuita No capítulo A Descoberta da Infância citei as esculturas de 1378 dos pequenos príncipes de Amiens Mas nesse caso tratavase de crianças reais Na igreja de Taverny podemos ver duas lajes murais com figuras e inscrições que são túmulos de crianças da família Montmorency A mais bem conservada é a de Charles de Montmorency falecido em 1369 A criança foi representada enrolada em seus cueiros o que não tural de uma vela durante a suspensão da morte este era o fato realmente extraordinário e não a reanimação Em 1479 o fato de as pessoas estarem acostumadas ainda não havia banido o assombro certamente ainda não se estava longe da origem da devoção Portanto foi como se as pessoas tivessem começado a descobrir a alma das crianças antes de seu corpo sob a pressão das tendências reformadoras da Igreja Mas quando a vontade dos litterati foi aceita ela foi imediatamente folclorizada e a criança começou sua carreira popular como heroína de um novo folclore religioso Um outro fato cuja importância não foi suficientemente sublinhada em meu livro ainda nos deterá um pouco mais nesse século XIV Tratase dos túmulos É verdade que eu disse algumas palavras a esse respeito no capítulo A Descoberta da Infância Mas algumas pesquisas recentes sobre a atitude diante da morte permitemme ser hoje mais preciso Entre as inúmeras inscrições funerárias dos quatro primeiros séculos de nossa era que em toda a parte solicitam o visitante de Roma muitas falam de crianças e mesmo de criancinhas de poucos meses de idade fulano e fulana pais consternados erigiram este monumento à memória de seu filho bemamado morto aos poucos meses ou anos de vida tantos anos tantos meses e tantos dias Em Roma na Gália e na Renânia numerosos túmulos esculpidos reuniam no mesmo monumento as imagens do casal e seus filhos Em seguida a partir dos séculos VVI aproximadamente a família e a criança desapareceram das representações e das inscrições funerárias Quando o uso do retrato retornou nos séculos XIXII os túmulos passaram a ser individuais com o marido e a mulher separados e é claro não havia túmulos esculpidos de crianças Em Fontevrault os túmulos dos dois reis Plantagenetas estão bem separados O hábito de reunir os dois e às vezes os três cônjuges o marido e suas duas mulheres sucessivas tornouse mais freqüente no século XIV época em que apareceram também embora ainda raros os túmulos com figuras de criancinhas Essa coincidência não foi fortuita No capítulo A Descoberta da Infância citei as esculturas de 1378 dos pequenos príncipes de Amiens Mas nesse caso tratavase de crianças reais Na igreja de Taverny podemos ver duas lajes murais com figuras e inscrições que são túmulos de crianças da família Montmorency A mais bem conservada é a de Charles de Montmorency falecido em 1369 A criança foi representada enrolada em seus cueiros o que não era freqüente na época Eis a inscrição bastante pretensiosa Hic Mai net inclusus adolescens et puerulusde Montmorenci Karolus tomba jacet istaanno mille C ter paradisii sensit iterac sexagesimo novem simul addas in illogaudeat in christo tempore perpetuo Charles tinha um meioirmão Jean morto em 1352 Seu túmulo subsiste mas os relevos de alabastro demasiado frágeis desapareceram de modo que não se sabe como a criança foi representada talvez também enrolada em seus cueiros Seu epitáfio em francês é mais simples Aqi jaz Jehan de Montmorency outrora filho do nobre e poderoso Charles senhor de Montmorency morto no ano da graça de mil trezentos e cinqüenta e dois no dia 29 de julho Nos dois casos em que há uma representação esculpida das crianças o epitáfio diz o nome do pai e a data da morte mas não fornece nem o nome da mãe nem a idade da criança e sabemos que no século XIV a idade do defunto geralmente era especificada No século XV os túmulos de crianças e pais reunidos ou de crianças sozinhas tornaramse mais freqüentes e no século XVI passaram a ser comuns como o demonstrarei baseado no repertório de Gaignières Mas esses túmulos esculpidos ou gravados eram reservados a famílias de uma certa importância social embora as lajes planas se tivessem tornado objeto de uma fabricação artesanal em série Mais freqüentes eram os pequenos quadros murais reduzidos a uma inscrição às vezes com uma pequena ilustração religiosa Ora alguns desses epitáfios simples referiamse a crianças e seu estilo se inspirava diretamente na epigrafia latina antiga Retomarase portanto o tema da saudade dos pais da criança que partira muito cedo Eis um desses epitáfios datado de 1471 da igreja de Sta Maria in Campitelli em Roma Petro Albertonio adolescentulocujus annos ingenium excedebat a criança notável por sua precocidade o pequeno prodígio Gregorius et Alteria parentesunico et dulcissimo particularmente chorado porque era filho único e isso em 1471 posuere qui vixit annos iv M IIIobitt MCCCLXXI Voltemos ao tema da criança enrolada em seus cueiros Foi somente no século XVII que os artistas começaram a representar a criança real na nudez do putto Antes ela aparecia enrolada em cueiros ou vestida Sabemos por outro lado que desde a Idade Média a alma era representada sob a forma de uma criança nua Ora existem alguns casos raros e curiosos em que a alma aparece também enrolada em cueiros Em Roma na igreja de Sta Maria in Trastevere uma assunção da Virgem do início do século XV mostra a alma da Virgem sob a forma de uma criança enrolada em cueiros nos braços de Cristo No museu de Luxemburgo há um túmulo de 1590 em que uma criança de cueiros é levada para o céu por dois anjos Não é a imagem de uma criancinha morta A nota explicativa nos informa que o defunto é um homem de 19 anos e portanto a criança de cueiros representa sua alma Esse tipo de representação não é freqüente mas conhecese ao menos um caso mais antigo e pode ser que houvesse uma tradição iconográfica nesse sentido O museu de Viena conserva um marfim bizantino do fim do século X em que a alma da Virgem também foi representada sob a forma de uma criança de cueiros Essa representação da alma bemaventurada sob a forma de uma criança na maioria dos casos idealizada e nua às vezes realista e enrolada em cueiros deve ser comparada ao que foi dito acima sobre o infanticídio e o batismo De fato para os espiritualistas medievais que estão na origem desse tipo de iconografia a alma do eleito possuía a mesma inocência invejável da criança batizada numa época em que entretanto na prática comum a criança era uma coisa divertida mas pouco importante É curioso constatar que a alma deixou de ser representada sob a forma de criança no século XVI quando a criança passou a ser representada por ela mesma e os retratos de crianças vivas e mortas se tornaram mais freqüentes Um curioso monumento funerário conservado no museu arqueológico de Senlis mostra como a situação se inverteu no fim do século XVII ele é consagrado à memória da mulher de Pierre Puget morta em Senlis em 1673 de uma cesariana A mulher aparece levada para o céu no meio de um monte de nuvens na pose da oração que é também a expressão da renúncia enquanto a criança que ela quis salvar aparece nua estendendolhe a palma do martírio com uma das mãos e com a outra agitando uma bandeirola com a inscrição Meruisti A criança aqui saiu do anonimato Haviase tornado muito personalizada para representar um modo de ser do além e por outro lado a alma estava muito ligada às características originais do indivíduo para ser evocada sob os traços impessoais de uma alegoria Daí em diante as relações entre os defuntos e os sobreviventes seriam tais que os últimos desejariam lembrar e conservar os primeiros em casa e não mais apenas na igreja ou no túmulo No museu Magnien de Dijon existe uma pintura atribuída a Hyacinthe Rigaud Ela mostra um menino e uma menina de aspecto vivo e a seu lado o retrato emoldurado por um medalhão de uma mulher madura de luto que parece morta Ora tudo leva a crer que a mulher do medalhão estava bem viva mas se considerava como uma morta cuja 13 lembrança era conservada por um retrato semifunerário por outro lado ela mandara pintar seus filhos estes sim realmente mortos com todas as aparências da vida Foi no fim do século XVII e início do XVIII que situei partindo de fontes principalmente francesas o recolhimento da família longe da rua da praça da vida coletiva e sua retração dentro de uma casa melhor defendida contra os intrusos e melhor preparada para a intimidade Essa nova organização do espaço privado havia sido obtida através da independência dos cômodos que se comunicavam por meio de um corredor em lugar de se abrirem um para o outro e de sua especialização funcional sala de visitas sala de jantar quarto de dormir etc Um artigo muito interessante de R A Goldthwaite mostra que em Florença já no século XV podiase observar uma privatização da vida familiar bastante análoga a despeito de certas diferenças 12 O autor apóia sua argumentação numa análise dos palácios florentinos de sua aparência exterior e do que é possível saber sobre sua organização interna Sua análise referese portanto a famílias patrícias O palácio florentino dos séculos XIIIXIV caracterizavase principalmente pela torre destinada à defesa e pela loggia que dava para a rua no andar térreo onde os parentes amigos e clientes se reuniam para assistir à vida pública do bairro e da cidade e dela participar Não havia então solução de continuidade entre a vida pública e a vida familiar uma prolongava a outra exceto em caso de crise quando o grupo ameaçado se refugia na torre A não ser pela torre e pela loggia o palácio mal se distinguia de sua vizinhança urbana No nível da rua o andar térreo das construções compunhase de arcadas que se prolongavam de uma casa a outra eram as entradas das lojas mas também o acesso dos palácios e de suas escadarias No interior tampouco havia unidade e o espaço não coincidia com o da família as peças atribuídas à família principal prolongavamse pela casa ao lado enquanto por outro lado alguns locatários ocupavam partes centrais No século XV o palácio florentino modificou sua planta seu aspecto e seu sentido Antes de mais nada o palácio tornouse uma unidade monumental um maciço solto da vizinhança As lojas desapareceram assim como os ocupantes estranhos O espaço assim separado foi reservado à família uma família pouco extensa As loggia que davam 14 para a rua foram fechadas ou suprimidas Se o palácio passou a testemunhar melhor do que antes o poderio de uma família ele deixou também de se abrir para o exterior A vida quotidiana passou a concentrarse no interior de um quadrilátero rude a salvo dos barulhos e das indiscrições da rua O palácio escreve R Goldthwaite pertencia a um mundo novo de privacy reservado a um grupo relativamente pequeno De fato o número de cômodos não era elevado no palácio Strozzi apenas um andar era habitado e não havia mais do que uma dúzia de cômodos É verdade que todos esses cômodos eram enfileirados e não havia um corredor ou um espaço central de circulação o que não permitia portanto que os moradores se isolassem e fizessem respeitar uma verdadeira intimidade como a arquitetura do século XVIII tornaria possível Sabemos por outro lado que a família florentina do quattrocento não era numerosa 13 O palácio florentino não abrigava o mundo de servidores e criados comuns nas grandes casas da França e da Inglaterra nos séculos XVXVI e também na Itália barroca do século XVII ele não abrigava mais do que dois ou três servidores que nem sempre eram conservados por muito tempo O modelo florentino é portanto diferente do que apresentei Poderia ser comparado ao do século XVIII francês pelo tamanho da família e a exclusão dos criados se sua privatização não se traduzisse num tipo de espaço ainda pouco compatível com a intimidade A originalidade florentina reside portanto numa mistura de intimidade com vastidão bem analisada por R Goldthwaite esses palácios eram evidentemente concebidos para atribuir a uma família pequena um mundo privado um mundo próprio mas extraordinariamente vasto que se estendia muito além dos poucos cômodos onde as pessoas viviam Na realidade a melhor maneira de sublinhar a novidade desse palácio é descrevêlo como uma expansão do espaço privado a partir do núcleo constituído por um apartamento de dimensões médias É certo que não se conhece a destinação dos cômodos de habitação se é que já tinham Talvez o studiolio ancestral do gabinete francês tenha sido nessa sociedade humanista a primeira forma de especialização do espaço privado E no entanto nessa mesma época começouse a ornamentar com pequenos objetos semelhantes aos bibelôs franceses esses cômodos sem função precisa mas destinados à vida privada Esse hábito nos dá a mesma impressão de gosto pelo bemestar privado que sentimos diante das pinturas representando o nascimento da Virgem quer sejam flamengas francesas alemãs ou italianas e diante de todas as representações de interiores do século XV em que o pintor se compraz em mostrar os objetos preciosos ou familiares É normal que num espaço tão privatizado tenha surgido um sentimento novo entre os membros da família e mais particularmente entre a mãe e a criança o sentimento de família essa cultura diz R Goldthwaite centralizavase nas mulheres e nas crianças com um interesse renovado pela educação das crianças e uma notável elevação do estatuto da mulher Como explicar de outra forma a fascinação a quase obsessão pelas crianças e pela relação mãecriança que talvez seja o único tema realmente essencial do Renascimento com seus putti suas crianças e seus adolescentes suas madonas secularizadas e seus retratos de mulheres Se o palácio do Renascimento era portanto a despeito de suas vastas dimensões reservado à família nuclear recolhida atrás de suas paredes maciças o palácio barroco como observa R Goldthwaite era mais aberto ao movimento da criadagem e da grande clientela e se aproximava mais do modelo da casa grande francesa castelo mansão hotel ou grande casa rural dos séculos XVIXVII antes da divisão em apartamentos independentes do século XVIII O episódio florentino do século XV é importante e sugestivo Eu já havia observado e comentado em meu livro a frequência desde o século XV e durante o XVI dos sinais de um reconhecimento da infância tanto na iconografia como na educação com o colégio Mas R Goldthwaite descobriu no palácio florentino uma relação muito precisa entre o início do sentimento da família e da criança e uma organização particular do espaço Somos levados a estender suas conclusões e a supor uma relação análoga entre a busca da intimidade familiar e pessoal e todas as representações de interiores desde a miniatura do século XIV até as pinturas da escola holandesa O dossiê está longe de ser fechado A história da família está aparecendo e mal começa a despertar o interesse da pesquisa Após um longo silêncio eila que se encaminha em várias direções Seus caminhos foram preparados pela história demográfica e só espero que ela não sofra a mesma inflação Hoje o período mais estudado vai do século XVI ao XVIII A escola de Cambridge com P Laslett e E A Wrigley empenhada em esclarecer de uma vez por todas a composição da família extensa ou conjugal 14 provocou algumas reações na Fran 13 D Herlihy Vieillirà Florence au Quattrocento Annales ESC 24 novembrodezembro de 1969 p 1340 14 Colóquio de 1969 em Cambridge Household and Family in Past Time Completarei a bibliografia com as seguintes obras I Pinchbeck e M Hewitt Children in English Society vol 1 Londres Toronto 1969 K A Lokridge A New England Town 15 ca aprovação no que concerne à França do Norte reservas no que concerne à França do Sul Os jovens historiadores franceses parecem mais preocupados com a formação J M Gouesse ou a dissolução A Lottin do casal Outros ainda como o historiador norteamericano E Shorter se interessam pelos sinais anunciadores no fim do século XVIII de uma maior liberdade de costumes A bibliografia começa a se alongar poderá ser encontrada bem como a situação atual dos problemas em três números dos Annales ESC 15 Esperemos apenas que a história da família não fique abafada sob a abundância de publicações inspiradas por seu sucesso como aconteceu com sua jovem ancestral a história demográfica A multiplicação das pesquisas sobre o período do século XVII ao XVIII facilitada pela existência de uma documentação mais rica do que se imaginava confirmará ou invalidará algumas hipóteses Contudo num futuro que já se anuncia corremos o risco de repetir ad nauseam os mesmos temas com pequenos progressos que justificariam mal a amplitude dos investimentos intelectuais e informáticos Ao contrário é do lado da Idade Média e da Antigüidade que deveriam vir as informações mais decisivas Esperamos com impaciência pelos primeiros resultados das pesquisas de M Manson sobre os brinquedos as bonecas em última análise as crianças durante a Antigüidade Seria preciso também interrogar melhor do que o que fiz as fontes medievais os inesgotáveis séculos XIV e XV tão importantes para o futuro de nossa civilização e antes deles a fronteira capital dos séculos XIXII e mais atrás ainda A história das mentalidades é sempre quer o admita ou não uma história comparativa e regressiva Partimos necessariamente do que sabemos sobre o comportamento do homem de hoje como de um modelo ao qual comparamos os dados do passado com a condição de a seguir considerar o modelo novo construído com o auxilio dos dados do passado como uma segunda origem e descer novamente até o presente modificando a imagem ingênua que tínhamos no início No ponto em que estamos hoje as relações entre os séculos XVIIXVIII e os séculos XIXXX não estão esgotadas mas os progressos reais só serão obtidos com uma obstinação cansativa Por outro lado a decifração dos séculos e dos milênios que precederam o século XVI 16 poderia nos trazer uma nova dimensão É daí que devemos esperar os progressos decisivos 16 MaisonsLaffitte 1973 16 Nestas poucas páginas limiteime aos temas da infância e da família deixando de lado os problemas particulares da educação e da escola Estes últimos a partir de 1960 tornaramse objeto de numerosos trabalhos como por exemplo P Riché Education et Culture dans lOccidenti barbare Paris 1962 G Snyders La Pédagogie en France aux XVII et XVIII siècles Paris 1963 H Derreal Un Missionaire de la ContreReforme Saint Pierre Fourier Paris 1965 Ph Ariès Problèmes de léducation in La France et les Français enc La Pléiade 1972 pp 869961 Um panorama geral foi apresentado no Colóquio de Marselha organizado por R Duchene e publicado sob o título Le XVIIe siècle et léducation na revista Marseille no 88 fartas bibliografias Nova York 1970 J Demos A Little Commonwealth Nova York 1970 artigos dos Annales ESC citados adiante 15 Annales ESC 24 no 6 1969 pp 12751430 27 nos 45 1972 pp 7991233 27 no 6 1972 pp 13511388 A criança é um anão mas um anão seguro de que não permanecerá anão salvo em caso de feitiçaria O anão não seria em compensação uma criança condenada a não crescer e mesmo a se tornar imediatamente um velho encarquilhado A outra crítica é a de N Z Davis num notável estudo intitulado The Reasons of Misrule Youth Groups and Charivaris in Sixteenth Century France Seu argumento é mais ou menos o seguinte como pude eu sustentar que a sociedade tradicional confundia as crianças e os jovens com os adultos ignorando o conceito de juventude se a juventude desempenhava nas comunidades rurais e também urbanas um papel permanente de organização das festas e dos jogos de controle dos casamentos e das relações sexuais sancionados pelos charivaris M Agulhon por sua vez em seu belo livro sobre os penitentes e os francomaçons consagrou um capítulo às sociedades da juventude que interessam cada vez mais aos historiadores de hoje na medida em que estes se sentem atraídos pelas culturas populares O problema colocado por N Z Davis não me escapou No presente livro confesso que preguiçosamente o pus de lado reduzindo à condição de vestígios hábitos folclóricos cuja extensão e importância foram demonstradas por N Z Davis M Agulhon e outros Na verdade eu não devia estar com a consciência tranqüila pois voltei a este problema nas primeiras páginas de uma história da educação na França Reconheci em épocas anteriores à Idade Média nas áreas de civilização rural e oral a existência de uma organização das comunidades em classes de idade com ritos de passagem segundo o modelo dos etnólogos Nessas sociedades cada idade teria sua função e a educação seria então transmitida pela iniciação e no interior da classe de idade pela participação nos serviços por ela assegurados Gostaria que me fosse permitido abrir um parêntese e mencionar a opinião de um jovem amigo arqueólogo Visitávamos as escavações de Malia em Creta e falávamos sem muita seqüência sobre Janroy Homero Duby sobre as estruturas formadas por classes de idade dos etnólogos e seu reaparecimento na Alta Idade Média quando ele me disse mais ou menos o seguinte em nossas antigas civilizações jamais percebemos essas estruturas etnográficas em estado de imobilidade em sua plena maturidade e sim sempre em estado de sobrevivência quer seja o motivo que inspirava essa epigrafia ela parece estar ligada ao sentimento da família e a seu desenvolvimento na época Esses retratos de família datados eram documentos de história familiar como o seriam três ou quatro séculos mais tarde os álbuns de fotografias Frutos desse mesmo espírito eram os diários de família onde eram anotados além das contas os acontecimentos domésticos os nascimentos e as mortes Nesses diários se uniam a preocupação com a precisão cronológica e o sentimento familiar Tratavase menos das coordenadas do indivíduo do que das dos membros da família as pessoas sentiam necessidade de dar à vida familiar uma história datandoa Essa curiosa preocupação em datar não aparecia apenas nos retratos mas também nos objetos e na mobília No século XVII generalizouse o hábito de gravar ou pintar uma data nas camas cofres baús armários colheres ou copos de cerimônia A data correspondia a um momento solene da história familiar geralmente um casamento Em certas regiões na Alsácia na Suíça na Áustria e na Europa central os móveis do século XVII ao XIX especialmente os móveis pintados eram datados trazendo também o nome de seus dois proprietários Observei no museu de Thun entre outras a seguinte inscrição sobre um baú Hans Bischof 1709 Elizabeth Misler As vezes as pessoas se contentavam com suas iniciais de cada lado da data a data do casamento Esse costume seria muito difundido na França e só desapareceria no fim do século XIX um pesquisador do Museu de Artes e Tradições Populares 6 descobriu por exemplo a seguinte inscrição num móvel da região da HauteLoire 1873 LT JV A inscrição das idades ou de uma data num retrato ou num objeto correspondia ao mesmo sentimento que tendia a dar à família maior consistência histórica Esse gosto pela inscrição cronológica embora tenha subsistido até meados do século XIX pelo menos entre as camadas médias desapareceu rapidamente na cidade e na corte onde foi logo considerado ingênuo e provinciano A partir de meados do século XVII as inscrições tenderam a desaparecer dos quadros podiam ser encontradas ainda mas em pintores de província ou provincializantes A bela mobília da época era assinada ou quando datada erao discretamente Apesar dessa importância que a idade adquiriu na epigrafia familiar no século XVI subsistiram nos costumes curiosos resquícios do tempo em que era raro e difícil uma pessoa lembrarse de sua idade Observei acima que nosso Paulinho sabe sua idade desde o mo6 Museu de Artes e Tradições Populares Exposição de 1953 nº 778 mento em que começa a falar Sancho Pança não sabia exatamente a idade de sua filha a quem entretanto amava muito Ela pode ter 15 anos ou dois anos a mais ou a menos Mas é alta como uma lança e fresca como uma manhã de abril Tratavase de um homem do povo No século XVI e mesmo nas categorias escolarizadas em que se observaram mais cedo hábitos de precisão moderna as crianças sem dúvida sabiam sua idade mas um hábito muito curioso de boasmaneiras obrigavaas a não confessála claramente e a responder com certas reservas Quando o humanista e pedagogo Thomas Platter natural do Valais conta a história de sua vida 8 diz com bastante precisão quando e onde nasceu mas se considera obrigado a envolver o fato numa prudente paráfrase E para começar não há nada que eu possa garantir menos do que a época exata de meu nascimento Quando tive a idéia de me informar sobre a data de meu nascimento responderamme que eu tinha vindo ao mundo em 1499 no domingo da Quinquagésima no exato momento em que os sinos chamavam para a missa Curiosa mistura de incerteza e rigor Na verdade não se deve tomar essa reserva ao pé da letra tratase de uma reserva de praxe lembrança de um tempo em que não se sabia jamais uma data exata O surpreendente é que essa reserva se tivesse tornado um hábito de boasmaneiras pois era assim que convinha dizer a própria idade a um interlocutor Nos diálogos de Cordier 9 dois meninos se interrogam na escola durante o recreio Quantos anos você tem Treze anos como ouvi minha mãe dizer Mesmo quando os hábitos de cronologia pessoal eram aceitos pelos costumes eles não chegavam a se impor como um conhecimento positivo e não dissipavam de imediato a antiga obscuridade da idade que substitui ainda algum tempo nos hábitos de civilidade As idades da vida ocupam um lugar importante nos tratados pseudocientíficos da Idade Média Seus autores empregam uma terminologia que nos parece puramente verbal infância e puerilidade juventude e adolescência velhice e senilidade cada uma dessas palavras designando um período diferente da vida Desde então adotamos algumas dessas palavras para designar noções abstratas como puerilidade ou senilidade mas estes sentidos não estavam contidos nas primeiras acepções De fato tratavase originalmente de uma terminologia erudita que com o tempo se tornou familiar As idades idades da vida ou idades do homem correspondiam no espírito 7 Dom Quixote parte II cap 13 8 Vie de Thomas Platter o velho Lausanne ed E Fick 1895 9 Mathurin Cordier Les Colloques Paris 1586 O Sentimento da Infância 1 As Idades da Vida Um homem do século XVI ou XVII ficaria espantado com as exigências de identidade civil a que nós nos submetemos com naturalidade Assim que nossas crianças começam a falar ensinamoslhes seu nome o nome de seus pais e sua idade Ficamos muito orgulhosos quando Paulinho ao ser perguntado sobre sua idade responde corretamente que tem dois anos e meio De fato sentimos que é importante que Paulinho não erre que seria dele se esquecesse sua idade Na savana africana a idade é ainda uma noção bastante obscura algo não tão importante a ponto de não poder ser esquecido Mas em nossas civilizações técnicas como poderíamos esquecer a data exata de nosso nascimento se a cada viagem temos de escrevêla na ficha de polícia do hotel se a cada candidatura a cada requerimento a cada formulário a ser preenchido e Deus sabe quantos há e quantos haverá no futuro é sempre preciso recordála Paulinho dará sua idade na escola e logo se tornará Paulo N da turma x Quando arranjar seu primeiro emprego junto com sua carteira de trabalho receberá um número de inscrição que passará a acompanhar seu nome Ao mesmo tempo e até mesmo mais do que Paulo N ele será um número que começará por seu sexo seu ano e mês de nascimento Um dia chegará em que todos os cidadãos terão seu número de registro esta é a meta dos serviços de identidade Nossa personalidade civil já se exprime com maior precisão através de nossas coordenadas de nascimento do que através de nosso sobrenome Este com o tempo poderia muito bem não desaparecer mas ficar reservado à vida particular enquanto um número de identidade em que a data de nascimento seria um dos elementos o substituiria para o uso civil Na Idade Média o primeiro nome já fora considerado uma designação muito imprecisa e foi necessário completálo por um sobrenome de família muitas vezes um nome de lugar Agora tornouse conveniente acrescentar uma nova precisão de caráter numérico a idade O nome pertence ao mundo da fantasia enquanto o sobrenome pertence ao mundo da tradição A idade quantidade legalmente mensurável com uma precisão quase de horas é produto de um outro mundo o da exatidão e do número Hoje nossos hábitos de identidade civil estão ligados ao mesmo tempo a esses três mundos Entretanto existem documentos que nos comprometem seriamente que nós mesmos redigimos mas cuja redação não exige a indicação da data de nascimento De gêneros bastante diferentes esses documentos podem ser títulos de comércio letras de câmbio ou cheques ou ainda testamentos Todos eles porém foram inventados em épocas muito remotas antes que o rigor da identidade moderna se introduzisse nos costumes A inscrição do nascimento nos registros paroquiais foi imposta aos párocos da França por Francisco I Para que fosse respeitada foi preciso que essa medida já prescrita pela autoridade dos concílios fosse aceita pelos costumes que durante muito tempo se mantiveram avessos ao rigor de uma contabilidade abstrata Acreditase que foi somente no século XVIII que os párocos passaram a manter seus registros com a exatidão ou a consciência de exatidão que um Estado moderno exige de seus funcionários de registro civil A importância pessoal da noção de idade deve terse afirmado à medida que os reformadores religiosos e civis a impuseram nos documentos começando pelas camadas mais instruídas da sociedade ou seja no século XVI aquelas camadas que passavam pelos colégios Nas memórias dos séculos XVI e XVII que consultei para reconstituir alguns exemplos de escolaridade 1 não é raro encontrar no início da narrativa a idade ou a data e o lugar de nascimento do narrador Em certos casos a idade chega a tornarse objeto de uma atenção especial É inscrita nos retratos como um sinal suplementar de individualização de exatidão e de autenticidade Em numerosos retratos do século XVI encontramos inscrições do gênero Aetatis suae 29 o vigésimo nono ano de sua idade com a data da pintura ANDNI 1551º retrato de Jean Fernaguut por Pourbus Bruges 2 Nos retratos de personagens ilustres nos retratos da corte essa referência geral está ausente ela subsiste seja sobre a tela seja sobre a moldura antiga dos retratos de família ligada a um simbolismo familiar Um dos exemplos mais antigos talvez seja o admirável retrato de Margaretha Van Eyck no alto colnljux meuss Johnhannes me com plevit anno 1439º 17 Junii quanta precisão meu marido me pintou em 17 de junho de 1439 e embaixo Aetas mea triginta trium annorum 33 anos Muitas vezes esses retratos do século XVI formam pares um representa a mulher e o outro o marido Os dois trazem a mesma data repetida portanto duas vezes ao lado da idade de cada um dos cônjuges as duas telas de Pourbus representando Jean Fernaguut e sua mulher Adrienne de Buc 3 trazem a mesma indicação Anno domini 1551 no retrato do homem lêse Aetatis suae 29 e no da mulher 19 Há casos também em que os retratos do marido e da mulher se acham reunidos na mesma tela como o retrato dos Van Gindertaelen atribuído a Pourbus em que o casal é representado junto com seus dois filhinhos O marido traz uma das mãos no quadril e apóia a outra no ombro da mulher As duas crianças brincam a seus pés A data é 1559 Do lado do marido aparecem suas armas com a inscrição aetus an 27 e do lado da mulher as armas de sua família e a inscrição Aetatis mec 20 4 Esses dados de identidade civil assumem às vezes o papel de uma verdadeira fórmula epigráfica como no quadro de Martin de Voos datado de 1572 que representa Antoon Anselme um magistrado de Antuérpia sua mulher e seus dois filhos 5 Os dois cônjuges estão sentados dos lados opostos de uma mesa um segurando o menino e o outro a menina Entre suas cabeças no alto e no meio da tela aparece uma bela faixa de pergaminho cuidadosamente ornamentada com a seguinte inscrição concordi ac antonii anselmi et johanne HoofImans felicia propagini Martino de Vos pictore DD natus est ille ann MDXXXVI die IX febr uxor ann MDLV D XVI decembr liberi à Aegidius ann MDLXXV XXI Augusti Johanna ann MDLXVI XXVI septembr Essa inscrição sugere 2 Exposição da Orangerie O Retrato na Arte Flamenga Paris 1952 nº 67 nº 18 3 Op cit nºs 67 e 68 4 Op cit nº 71 5 Op cit nº 93 30 HISTÓRIA SOCIAL DA CRIANÇA E DA FAMÍLIA AS IDADES DA VIDA 31 nhar seu nome Ao mesmo tempo e até mesmo mais do que Paulo N ele será um número que começará por seu sexo seu ano e mês de nascimento Um dia chegará em que todos os cidadãos terão seu número de registro esta é a meta dos serviços de identidade Nossa personalidade civil já se exprime com maior precisão através de nossas coordenadas de nascimento do que através de nosso sobrenome Este com o tempo poderia muito bem não desaparecer mas ficar reservado à vida particular enquanto um número de identidade em que a data de nascimento seria um dos elementos o substituiria para o uso civil Na Idade Média o primeiro nome já fora considerado uma designação muito imprecisa e foi necessário completálo por um sobrenome de família muitas vezes um nome de lugar Agora tornouse conveniente acrescentar uma nova precisão de caráter numérico a idade O nome pertence ao mundo da fantasia enquanto o sobrenome pertence ao mundo da tradição A idade quantidade legalmente mensurável com uma precisão quase de horas é produto de um outro mundo o da exatidão e do número Hoje nossos hábitos de identidade civil estão ligados ao mesmo tempo a esses três mundos Entretanto existem documentos que nos comprometem seriamente que nós mesmos redigimos mas cuja redação não exige a indicação da data de nascimento De gêneros bastante diferentes esses documentos podem ser títulos de comércio letras de câmbio ou cheques ou ainda testamentos Todos eles porém foram inventados em épocas muito remotas antes que o rigor da identidade moderna se introduzisse nos costumes A inscrição do nascimento nos registros paroquiais foi imposta aos párocos da França por Francisco I Para que fosse respeitada foi preciso que essa medida já prescrita pela autoridade dos concílios fosse aceita pelos costumes que durante muito tempo se mantiveram avessos ao rigor de uma contabilidade abstrata Acreditase que foi somente no século XVIII que os párocos passaram a manter seus registros com a exatidão ou a consciência de exatidão que um Estado moderno exige de seus funcionários de registro civil A importância pessoal da noção de idade deve terse afirmado à medida que os reformadores religiosos e civis a impuseram nos documentos começando pelas camadas mais instruídas da sociedade ou seja no século XVI aquelas camadas que passavam pelos colégios Nas memórias dos séculos XVI e XVII que consultei para reconstituir alguns exemplos de escolaridade 1 não é raro encontrar no início da narrativa a idade ou a data e o lugar de nascimento do narrador Em certos casos a idade chega a tornarse objeto de uma atenção especial É inscrita nos retratos como um sinal suplementar de individualização de exatidão e de autenticidade Em numerosos retratos do século XVI encontramos inscrições do gênero Aetatis suae 29 o vigésimo nono ano de sua idade com a data da pintura ANDNI 1551º retrato de Jean Fernaguut por Pourbus Bruges 2 Nos retratos de personagens ilustres nos retratos da corte essa referência geral está ausente ela subsiste seja sobre a tela seja sobre a moldura antiga dos retratos de família ligada a um simbolismo familiar Um dos exemplos mais antigos talvez seja o admirável retrato de Margaretha Van Eyck no alto colnljux meuss Johnhannes me com plevit anno 1439º 17 Junii quanta precisão meu marido me pintou em 17 de junho de 1439 e embaixo Aetas mea triginta trium annorum 33 anos Muitas vezes esses retratos do século XVI formam pares um representa a mulher e o outro o marido Os dois trazem a mesma data repetida portanto duas vezes ao lado da idade de cada um dos cônjuges as duas telas de Pourbus representando Jean Fernaguut e sua mulher Adrienne de Buc 3 trazem a mesma indicação Anno domini 1551 no retrato do homem lêse Aetatis suae 29 e no da mulher 19 Há casos também em que os retratos do marido e da mulher se acham reunidos na mesma tela como o retrato dos Van Gindertaelen atribuído a Pourbus em que o casal é representado junto com seus dois filhinhos O marido traz uma das mãos no quadril e apóia a outra no ombro da mulher As duas crianças brincam a seus pés A data é 1559 Do lado do marido aparecem suas armas com a inscrição aetus an 27 e do lado da mulher as armas de sua família e a inscrição Aetatis mec 20 4 Esses dados de identidade civil assumem às vezes o papel de uma verdadeira fórmula epigráfica como no quadro de Martin de Voos datado de 1572 que representa Antoon Anselme um magistrado de Antuérpia sua mulher e seus dois filhos 5 Os dois cônjuges estão sentados dos lados opostos de uma mesa um segurando o menino e o outro a menina Entre suas cabeças no alto e no meio da tela aparece uma bela faixa de pergaminho cuidadosamente ornamentada com a seguinte inscrição concordi ac antonii anselmi et johanne HoofImans felicia propagini Martino de Vos pictore DD natus est ille ann MDXXXVI die IX febr uxor ann MDLV D XVI decembr liberi à Aegidius ann MDLXXV XXI Augusti Johanna ann MDLXVI XXVI septembr Essa inscrição sugere 2 Exposição da Orangerie O Retrato na Arte Flamenga Paris 1952 nº 67 nº 18 3 Op cit nºs 67 e 68 4 Op cit nº 71 5 Op cit nº 93 30 HISTÓRIA SOCIAL DA CRIANÇA E DA FAMÍLIA AS IDADES DA VIDA 31 de nossos ancestrais a noções positivas tão conhecidas tão repetidas e tão usuais que passaram do domínio da ciência ao da experiência comum Hoje em dia não temos mais idéia da importância da noção de idade nas antigas representações do mundo A idade do homem era uma categoria científica da mesma ordem que o peso ou a velocidade o são para nossos contemporâneos Pertencia a um sistema de descrição e de explicação física que remontava aos filósofos jônicos do século VI aC que fora revivido pelos compiladores medievais nos escritos do Império Bizantino e que ainda inspirava os primeiros livros impressos de vulgarização científica no século XVI Não tencionamos determinar aqui sua formulação exata e seu lugar na história das ciências Importanos apenas perceber em que medida essa ciência se havia tornado familiar seus conceitos haviam passado para os hábitos mentais e o que ela representava na vida cotidiana Compreenderemos melhor o problema examinando a edição de 1556 Le Grand Propriétaire de toutes choses Tratavase de uma compilação latina do século XIII que retomava todos os dados dos escritores do Império Bizantino Considerouse oportuno traduzila para o francês e darlhe através da impressão uma maior difusão essa ciência antigomedieval era portanto em meados do século XVI objeto de vulgarização Le Grand Propriétaire de toutes choses é uma enciclopédia de todos os conhecimentos profanos e sacros uma espécie de GrandLarousse mas que teria uma concepção nãoanalítica e traduziria a unidade essencial da natureza e de Deus Uma física uma metafísica uma história natural uma fisiologia e uma anatomia humanas um tratado de medicina e de higiene uma astronomia e ao mesmo tempo uma teologia Vinte livros tratam de Deus dos anjos dos elementos do homem e de seu corpo das doenças do céu do tempo da matéria do ar do fogo dos pássaros etc O último livro é consagrado aos números e às medidas Havia também nesses livros algumas receitas práticas Uma idéia geral emanava da obra idéia erudita que logo se tornou extremamente popular a idéia da unidade fundamental da natureza da solidariedade existente entre todos os fenômenos da natureza que não se separam das manifestações sobrenaturais A idéia de que não havia oposição entre o natural e o sobrenatural pertencia ao mesmo tempo às crenças populares herdadas do paganismo e a uma ciência tanto física quanto teológica Eu diria que essa concepção rigorosa da unidade da natureza deve ser considerada responsável pelo atraso do desenvolvimento científico muito mais do que a autoridade da Tradição dos Antigos ou da Escritura Nós só agimos sobre um elemento da natureza quando admitimos que ele é suficientemente isolável A partir de um certo grau de solidariedade entre os fenômenos tal como postula o Le Grand Propriétaire não é mais possível intervir sem provocar reações em cadeia sem destruir a ordem do mundo nenhuma das categorias do cosmo dispõe de uma autonomia suficiente e nada pode ser feito contra o determinismo universal O conhecimento da natureza limitase então ao estudo das relações que comandam os fenômenos através de uma mesma causalidade um conhecimento que prevê mas que não modifica Não há meio de fugir a essa causalidade exceto através da magia ou do milagre Uma mesma lei rigorosa rege ao mesmo tempo o movimento dos planetas o ciclo vegetativo das estações as relações entre os elementos o corpo humano e seus humores e o destino do homem assim a astrologia permite conhecer as incidências pessoais desse determinismo universal Ainda em meados do século XVII a prática da astrologia era bastante difundida para que Molière esse espírito cético a tomasse por alvo de suas caçoada em Les Amants Magnifiques A correspondência dos números aparecia então como uma das chaves dessa solidariedade profunda o simbolismo dos números era familiar encontravase ao mesmo tempo nas especulações religiosas nas descrições de física de história natural e nas práticas mágicas Por exemplo havia uma correspondência entre o número dos elementos o dos temperamentos do homem e o das estações o número 4 Para nós é difícil imaginar essa concepção formidável de um mundo maciço do qual se perceberiam apenas algumas correspondências A ciência havia permitido formular as correspondências e definir as categorias que elas ligavam Mas essas correspondências com o passar dos séculos tinham deslizado do domínio da ciência para o do mito popular Essas concepções nascidas na Jônia do século VI com o tempo haviam sido adotadas pela mentalidade comum e as pessoas representavam o mundo dessa forma As categorias da ciência antigomedieval se haviam tornado familiares os elementos os temperamentos os planetas e seu sentido astrológico e o simbolismo dos números As idades da vida eram também uma das formas comuns de conceber a biologia humana em relação com as correspondências secretas internaturais Essa noção destinada a se tornar tão popular certamente não remontava às belas épocas da ciência antiga Pertencia às especulações dramáticas do Império Bizantino ao século VI 10 Le Grand Propriétaire de toutes choses très utile et profitabie pour tenir le corps en santé por B de Glanville traduzido para o francês por Jean Corbichon 1556 11 Comparetti Virgile nel m e tomo I 14155 19 Fulgêncio a percebia oculta na Eneida detectava no naufrágio de Enéias o símbolo do nascimento do homem em meio às tempestades da existência Interpretava os cantos II e III como a imagem da infância ávida de narrativas fabulosas e assim por diante Um afresco da Arábia do século VIII já representava as idades da vida Os textos da Idade Média sobre esse tema são abundantes Le Grand Propriétaire de toutes choses trata das idades em seu livro VI Ai as idades correspondem aos planetas em número de 7 A primeira idade é a infância que planta os dentes e essa idade começa quando a criança nasce e dura até os sete anos e nessa idade aquilo que nasce é chamado de enfant criança que quer dizer não falante pois nessa idade a pessoa não pode falar bem nem formar perfeitamente suas palavras pois ainda não tem seus dentes bem ordenados nem firmes como dizem Isidoro e Constantino Após a infância vem a segunda idade chamase puerit ia e é assim chamada porque nessa idade a pessoa é ainda como a menina do olho como diz Isidoro e essa idade dura até os 14 anos Depois seguese a terceira idade que é chamada de adolescência que termina segundo Constantino em seu viático no vigésimo primeiro ano mas segundo Isidoro dura até 28 anos e pode estenderse até 30 ou 35 anos Essa idade é chamada de adolescência porque a pessoa é bastante grande para procriar disse Isidoro Nessa idade os membros são moles e aptos a crescer e a receber força e vigor do calor natural E por isso a pessoa cresce nessa idade toda a grandeza que lhe é devida pela natureza O crescimento no entanto termina antes dos 30 ou 35 anos e até mesmo antes dos 28 Certamente devia ser ainda menos tardio numa época em que o trabalho precoce mobilizava mais cedo as reservas do organismo Depois seguese a juventude que está no meio das idades embora a pessoa aí esteja na plenitude de suas forças e essa idade dura até 45 anos segundo Isidoro ou até 50 segundo os outros Essa idade é chamada de juventude devido à força que está na pessoa para ajudar a si mesma e aos outros disse Aristóteles Depois seguese a senectude segundo Isidoro que está a meio caminho entre a juventude e a velhice e Isidoro a chama de gravidade porque a pessoa nessa idade é grave nos costumes e nas maneiras e nessa idade a pessoa não é velha mas passou a juventude como diz Isidoro Após essa idade seguese a velhice que dura segundo alguns até 70 anos e segundo outros não tem fim até a morte A velhice segundo Isidoro é assim chamada porque as pessoas velhas já não têm os sentidos tão bons como já tiveram e caducam em sua velhice A última parte da velhice é chamada senies em latim mas em francês não possui outro nome além de vieillesse O velho está sempre tossindo escarrando e sujando ainda estamos longe do nobre ancião de Greuze e do Romantismo até voltar a ser a cinza da qual foi tirado Embora hoje em dia possamos achar esse jargão vazio e verbal ele tinha um sentido para seus leitores um sentido próximo do da astrologia ele evocava o laço que unia o destino do homem aos planetas O mesmo gênero de correspondência sideral havia inspirado uma outra periodização ligada aos 12 signos do zodíaco relacionando assim as idades da vida com um dos temas mais populares e mais comoventes da Idade Média sobretudo gótica as cenas do calendário Um poema do século XIV várias vezes reimpresso nos séculos XV e XVI desenvolve esse calendário das idades Les six premiers ans que vit lhomme au moode Nous comparons á janvier droite ment Car en ce moys vertu ne force habonde Ne plus que quant six ans ha ung enfant Ou segundo a versão do século XV Les autres VI ans la font croistre Aussi fait février tous les ans Quenfín se trait sur le printemps Et quand les ans a XVIII Il se change en tel deduit Quil cuide valoir mille mors Et aussi se change li mars En beauté et reprend chalour Du mois qui vient après septembre Quon appelle mois doutembre Quil a LX ans et non plus Lors devient vieillard et chenu Et a donc lui doit souvenir Que le temps le mène mourir 13 Grant Kalendrier et compost des bergiers edição de 1500 apud J Morawski Les douze mois figurez Archivum romanicum 1926 pp 351 a 363 Os seis primeiros anos que o homem vive no mundo a janeiro com razão os comparamos pois nesse mês nem força nem virtude abundam não mais do que quando uma criança tem seis anos N do T Os outros seis anos fazemna crescer Assim também faz fevereiro todos os anos O qual enfim conduz à primavera E quando a pessoa faz 18 anos Ela se modifica de tal forma Que pensa valer mil pedaços Assim também o mês de março Se transforma em beleza e readquire calor No mês que vem depois de setembro E que chamamos de outubro a pessoa tem 60 anos e não mais Então ela se torna velha e encarquilhada E se lembra de que o tempo a leva a morrer N do T 20 Ou ainda este poema do século XIII Veez vei le mois de janvier A deux visages le premier Pour ce quil regarde á deux tems Cest le passé et le venant Ains lenfant quand á vescu Six ans ne peut guère valoir Car il na guère de scavoir Mais lon doit mettre bonne cure Quil prenne bonne nourriture Car qui na bon commencement A tard a bon deffinemet En octobre après venant Doit hom semer le bon froment Duquel doit vivre tout li mons Ainsi doit faire le preudoms Qui est arrivé á LX ans Il doit semer aux jeunes gens Bonnes paroles par exemple Et faire aumône si me semble Da mesma natureza ainda era a correspondência entre as idades da vida e os outros quatro consensus quatuor elementorum quatuor humorum os temperamentos quatuor anni temporum et quatuor vitae aetatum Em torno de 1265 Philippe de Novare já falava nos III temz daage dome ou seja quatro períodos de 20 anos E essas especulações continuaram a se repetir nos textos até o século XVI É preciso ter em mente que toda essa terminologia que hoje nos parece tão oca traduzia noções que na época eram científicas e correspondia também a um sentimento popular e comum da vida Aqui também esbarramos em grandes dificuldades de interpretação pois hoje em dia não possuímos mais esse sentimento da vida consideramos a vida como um fenômeno biológico como uma situação na sociedade sim mas não mais que isso Entretanto dizemos é a vida para exprimir ao mesmo tempo nossa resignação e nossa convicção de que existe fora do biológico e do sociológico alguma coisa que não tem nome mas que nos comove que procuramos nas notícias corriqueiras dos jornais ou sobre a qual podemos dizer isto tem vida A vida se torna então um drama que nos tira do tédio do quotidiano Para o homem de outrora ao contrário a vida era a continuidade inevitável cíclica às vezes humorística ou melancólica das idades uma continuidade inscrita na ordem geral e abstrata das coisas mais do que na experiência real pois poucos homens tinham o privilégio de percorrer todas essas idades naquelas épocas de grande mortalidade A popularidade das idades da vida tornou este tema um dos mais freqüentes da iconografia profana Encontramolas por exemplo em alguns capitéis historiados do século XII no batistério de Parma O escultor quis representar ao mesmo tempo a parábola do mestre da vinha e dos trabalhadores da décima primeira hora e o símbolo das idades da vida Na primeira cena vemos o mestre da vinha com a mão pousada sobre a cabeça de uma criança embaixo uma legenda precisa a alegoria da criança prima aetas saeculi primum humane infância Mais adiante hora tertia puericia seconda aetas o mestre da vinha tem a mão pousada sobre o ombro de um rapaz que segura um animal e uma foice O último trabalhador descansa ao lado de seu enxadão senectus sexta aetas Mas foi sobretudo no século XIV que essa iconografia fixou seus traços essenciais que permaneceram quase inalterados até o século XVIII reconhecemolos tanto nos capitéis do palácio dos Doges como num afresco dos Eremitani de Pádua Primeiro a idade dos brinquedos as crianças brincam com um cavalo de pau uma boneca um pequeno moinho ou pássaros amarrados Depois a idade da escola os meninos aprendem a ler ou seguram um livro e um estojo as meninas aprendem a fiar Em seguida as idades do amor ou dos esportes da corte e da cavalaria festas passeios de rapazes e moças corte de amor as bodas ou a caçada do mês de maio dos calendários Em seguida as idades da guerra e da cavalaria um homem armado Finalmente as idades sedentárias dos homens da lei da ciência ou do estudo o velho sábio barbudo vestido segundo a moda antiga diante de sua escrivaninha perto da lareira As idades da vida não correspondiam apenas a etapas biológicas mas a funções so J Morawski op cit Representado nos calendários sob a forma de Janus bifrons Vedes aqui o mês de janeiro O primeiro de todos que tem duas faces Porque está voltado para dois tempos o passado e o porvir Assim também a criança que viveu apenas Seis anos não vale quase nada Pois quase não possui saber Mas devese cuidar Para que ela se alimente bem Pois quem tem um bom começo No final terá um bom fim No mês de outubro que vem depois O homem deve semear o bom trigo Do qual viverão todos os outros Assim deve fazer o homem valoroso Que chegou aos 60 anos deve semear para os jovens Boas palavras como exemplo E dar esmolas ao menos assim me parece N do T Regimen sanitatis schola salernitania ed por Arnaud de Villeneuve C V Langlois La Vie en France au Moyen Age 1908 p 184 1568 Didron La Vie humaine Annales archéologiques XV p 413 Didron Annales archéologiques XVII pp 69 e 193 A Venturi La Fonte di una compozicione del guariento Arte 1914 XVII p 49 ciais sabermos que havia homens da lei muito jovens mas consoante a imagem popular o estudo era uma ocupação dos velhos Esses atributos da arte do século XIV seriam encontrados quase idênticos em gravuras de natureza mais popular mais familiar que subsistiram do século XVI até o início do XIX com pouquíssimas mudanças Essas gravuras eram chamadas Degraus das idades pois retratavam pessoas que representavam as idades justapostas do nascimento até a morte muitas vezes de pé sobre degraus que subiam à esquerda e desciam à direita No centro dessa escadaria dupla como que sob o arco de uma ponte erguiase o esqueleto da morte armado com sua foice Aí o tema das idades se imbricava com o tema da morte e sem dúvida não era por acaso que esses temas figuravam entre os mais populares as estampas representando os degraus das idades e as danças macabras repetiram até o início do século XIX uma iconografia fixada nos séculos XIV e XV Mas ao contrário das danças macabras em que os trajes não mudaram e permaneceram os mesmos dos séculos XV e XVI mesmo quando a gravura datava do século XIX os degraus das idades vestiam suas personagens segundo a moda da época nas últimas gravuras do século XIX vemos surgir o traje de primeira comunhão A persistência dos atributos por isso mesmo é ainda mais notável lá estão a criança montada em seu cavalo de pau o estudante com seu livro e seu estojo o belo par às vezes o rapaz segura um arbusto de maio evocação das festas da adolescência e da primavera e o homem de armas agora um oficial cingido com a echarpe do comando ou carregando um estandarte na escada descendente as roupas não estão mais na moda ou pertencem a uma moda antiga vemos os homens da lei com suas pastas de processos os cientistas com seus livros ou seus astrolábios e os devotos os mais curiosos com seus rosários 22 A repetição dessas imagens pregadas nas paredes ao lado dos calendários entre os objetos familiares alimentava a idéia de uma vida dividida em etapas bem delimitadas correspondendo a modos de atividade a tipos físicos a funções e a modas no vestir A periodização da vida tinha a mesma fixidez que o ciclo da natureza ou a organização da sociedade Apesar da evocação reiterada do envelhecimento e da morte as idades da vida permaneceram croquis pitorescos e bem comportados silhuetas de caráter um tanto humorístico 22 Este tema não era apenas popular É encontrado sob outras formas na pintura e na escultura como em Ticiano e Van Dyck ou no frontão de Versalhes de Luís XIV Da especulação antigomedieval restara uma abundante terminologia das idades No século XVI quando se decidiu traduzir essa terminologia para o francês ficou patente que esta língua e portanto os costumes franceses não dispunham de tantas palavras como o latim ou ao menos como o latim clássico O tradutor de 1556 do Le Grand Propriétaire de toutes choses reconhece sem rodeios essa dificuldade Há maior dificuldade em francês do que em latim pois em latim existem sete idades nomeadas por sete nomes diversos tantas quanto os planetas dos quais existem apenas três em francês a saber enfance jeunesse e vieillesse Observamos que como juventude significava força da idade idade média não havia lugar para a adolescência Até o século XVIII a adolescência foi confundida com a infância No latim dos colégios empregavase indiferentemente a palavra puer e a palavra adolescens Existem conservados na Bibliothèque Nationale 22 alguns catálogos do colégio dos jesuítas de Caen uma lista dos nomes dos alunos seguidos de apreciações Um rapaz de 15 anos é descrito aí como bonus puer enquanto seu jovem colega de 13 anos é chamado de optimus adolescens Baillet 24 num livro consagrado às criançasprodígio reconheceu também que não existiam termos em francês para distinguir pueri e adolescentes Conheciase apenas a palavra enfant criança No final da Idade Média o sentido desta palavra era particularmente lato Ela designava tanto o putto no século XIV diziase la chambre aux enfants para indicar o quarto dos putti o quarto ornado com afrescos representando criancinhas nuas como o adolescente o menino grande que às vezes era também um menino maleducado A palavra enfant nos Miracles NotreDame 25 era empregada nos séculos XIV e XV como sinônimo de outras palavras tais como valets valetlon garҫon fils beau fils ele era valetón corresponderia ao francês atual ele era um beau gars um belo rapaz mas na época o termo se aplicava tanto a um rapaz um belo valetón como a uma criança ele era um valetón e gostavam muito dele o valez cresceu Uma única palavra conservou até hoje na língua francesa essa antiga ambigüidade a palavra gars menino rapaz ou homem que passou diretamente do francês antigo para a língua popular moderna onde foi conservada Era uma criança estranha esse mau menino tão desleal e tão perverso que não queria aprender um ofício nem se comportar como convinha à infância que de bom grado se acompanhava de glutões e de gentes ociosas que freqüentemente provocavam rixas nas tabernas e nos bordéis e jamais encontravam uma mulher sozinha sem a violar Eis outra criança de 15 anos Embora fosse um menino bom e gracioso recusavase a montar a cavalo e a se dar com meninas Seu pai pensava que era por timidez É o costume das crianças Na realidade o menino estava prometido à Virgem Seu pai quis obrigálo a se casar Então a criança ficou muito zangada e bateulhe com força Tentou fugir mas feriuse mortalmente ao cair da escada Nesse momento a Virgem veio buscálo e disselhe Belo irmão vede aqui vossa amiga Então a criança exalou um suspiro Segundo um calendário das idades do século XVI 26 aos 24 anos é a criança forte e virtuosa e Assim acontece com as crianças quando elas têm 18 anos O mesmo emprego pode ser constatado no século XVII uma pesquisa episcopal de 1667 relata que numa paróquia 27 há un jeune enfans uma jovem criança de cerca de 14 anos de idade que ensina a ler e a escrever às crianças dos dois sexos há cerca de um ano desde que habita no dito lugar por acordo com os habitantes do dito lugar Durante o século XVII houve uma evolução o antigo costume se conservou nas classes sociais mais dependentes enquanto um novo hábito surgiu entre a burguesia onde a palavra infância se restringiu a seu sentido moderno A longa duração da infância tal como aparecia na língua comum provinha da indiferença que se sentia então pelos fenômenos propriamente biológicos ninguém teria a idéia de limitar a infância pela puberdade A idéia de infância estava ligada à idéia de dependência as palavras fils valets e garçons eram também palavras do vocabulário das relações feudais ou senhoriais de dependência Só se saía da infância ao se sair da dependência ou ao menos dos graus mais baixos da dependência Essa é a razão pela qual as palavras ligadas à infância iriam subsistir para designar familiarmente na língua falada os homens de baixa condição cuja submissão aos outros continuava a ser total por exemplo os lacaios os auxiliares e os soldados Um petit graҫon menino pequeno não era necessariamente uma criança e sim um jovem servidor da mesma forma hoje um patrão ou um contramestre dirão de um operário de 20 a 25 anos É um bom menino ou esse menino não vale nada Assim em 1549 o diretor de um colégio de um estabelecimento de educação chamado Baduel escrevia ao pai de um de seus jovens alunos a propósito de seu enxoval e de seu séquito No que concerne ao seu serviço pessoal basta um petit garçon 28 No início do século XVIII o dicionário de Furetière precisou o uso do termo Enfant é também um termo de amizade utilizado para saudar ou agradar alguém ou leválo a fazer alguma coisa Quando se diz a uma pessoa de idade adeus bonne mère boa mãe até logo grandmère avozinha na língua da Paris moderna ela responde adeus mon enfant ou adeus mon gars ou adeus petit Ou então ela dirá a um lacaios mon enfant vá me buscar aquilo Um mestre dirá aos trabalhadores mandandoos trabalhar vamos enfants trabalhem Um capitão dirá a seus soldados coragem enfants agüentem firme Os soldados da primeira fila que estavam mais expostos ao perigo eram chamados de enfants perdus crianças perdidas Na mesma época mas nas famílias nobres em que a dependência não era senão uma conseqüência da invalidez física o vocabulário da infância tendia quase sempre a designar a primeira idade No século XVII seu emprego tornouse mais freqüente a expressão petit enfant criança pequena ou criancinha começou a adquirir o sentido que lhe atribuímos O uso antigo preferia jeune enfant jovem criança e esta expressão não foi completamente abandonada La Fontaine a empregava e em 1714 numa tradução de Erasmo havia uma referência a uma jeune fille jovem menina hoje em dia jeune fille designa uma moça que ainda não tinha cinco anos Tenho uma jeune fille que mal começou a falar 29 A palavra petit pequeno havia adquirido também um sentido especial no fim do século XVI designava todos os alunos das pequenas escolas mesmo àqueles que não eram mais crianças Na Inglaterra a palavra petty tinha o mesmo sentido que em francês e um texto de 1627 mencionava a escola dos lyttle petties ou seja dos menores alunos 30 Foi sobretudo com PortRoyal e com toda a literatura moral e pedagógica que aí se inspirou ou que de modo mais geral exprimiu uma necessidade de ordem moral difundida por toda a parte e da qual PortRoyal era também um testemunho que os termos utiliza dos para designar a infância se tornaram numerosos e sobretudo modernos os alunos de Jacqueline Pascal 31 eram divididos em petits moyens e grands pequenos médios e grandes Quanto às crianças pequenas escreve Jacqueline Pascal é preciso ainda mais que às outras ensinálas e alimentálas se possível como pequenos pombos O regulamento das pequenas escolas de PortRoyal 32 prescrevia Eles não vão à Missa todos os dias somente os pequenos Falavase de uma forma nova em pequenas almas em pequenos anjos 33 Estas expressões anunciavam o sentimento do século XVIII e do romantismo Em seus contos M lle Lhéritier 34 pretendia se dirigir aos jovens espíritos às jovens pessoas Essas imagens seguramente levam os jovens a reflexões que aperfeiçoam sua razão Percebese então que esse século XVII que parecia ter desdenhado à infância ao contrário introduziu o uso de expressões e de locuções que permanecem até hoje na língua francesa Junto à palavra enfant de seu dicionário Furetière citava provérbios que ainda nos são familiares É um enfant gâté criança mimada aquela a quem se deixou viver de um modo libertino sem corrigila Il ny a plus denfant equivale a dizer que alguém começa a ter juízo e malícia cedo Inocente como a criança que acabou de nascer Vocês não achavam que essas expressões não remontavam além do século XIX Contudo em seus esforços para falar das crianças pequenas à língua do século XVII foi prejudicada pela ausência de palavras que as distinguissem das maiores O mesmo aliás acontecia com o inglês em que a palavra baby se aplicava também às crianças grandes A gramática latina em inglês de Lily 35 que foi utilizada do início do século XVI até 1866 dirigiase a all lyttell babes all lyttell chyldren Por outro lado havia em francês expressões que pareciam designar as crianças bem pequeninas Uma delas era a palavra poupart Um dos Miracles NotreDame tinha como personagem um petit fils que queria dar de comer a uma imagem do menino Jesus O bom Jesus vendo a insistência e a boa vontade da criancinha falou com ela e disselhe Poupart não chores mais pois comerás comigo dentro de três dias Mas esse poupart na realidade não era um bebê como diríamos hoje também era chamado de clergeon 36 pequeno clérigo usava sobrepeliz e ajudava à missa Aqui havia crianças de pouca idade que sabiam um pouco as letras e que prefeririam mamar no seio de sua mãe a ter de ajudar à missa Na língua dos séculos XVII e XVIII a palavra poupart não designava mais uma criança e sim sob a forma poupon o que hoje os franceses ainda chamam pelo mesmo nome porém no feminino uma poupée ou seja uma boneca O francês seria portanto levado a tomar emprestadas de outras línguas línguas estrangeiras ou gírias usadas na escola ou nas diferentes profissões palavras que designassem essa criança pequena pela qual começava a surgir um novo interesse foi o caso do italiano bambino que daria origem ao francês bambin Mme de Sévigné empregava também no mesmo sentido o provençal pitchoun que ela certamente aprendera em uma de suas estadas na casa dos Grignans 37 Seu primo De Coulanges que não gostava de crianças mas que falava muito delas 38 desconfiava dos marmousets de três anos uma palavra antiga que evoluiria para marmots na língua popular moleques de queixo engordurado que enfiam o dedo em todos os pratos Empregavamse também termos de gíria dos colégios latinos ou das academias esportivas e militares um pequeno frater um cadet e quando eram numerosos populo 39 ou petit peuple Enfim o uso dos diminutivos tornouse freqüente encontramos fan fan nas cartas de Mme de Sévigné e de Fénelon Com o tempo essas palavras se deslocariam e passariam a designar a criança pequena mas já esperta Restaria sempre uma lacuna para designar a criança durante seus primeiros meses essa insuficiência não seria sanada antes do século XIX quando o francês tomou emprestada do inglês a palavra baby que nos séculos XVI e XVII designava as crianças em idade escolar Foi esta a última etapa dessa história daí em diante com o francês bébé a criança bem pequenina recebeu um nome Embora um vocabulário da primeira infância tivesse surgido e se ampliado subsistia a ambigüidade entre a infância e a adolescência de um lado e aquela categoria a que se dava o nome de juventude do outro Não se possuía a idéia do que hoje chamamos de adolescência e essa idéia demoraria a se formar Já a pressentimos no sé37 Sois injustos comigo ao crer que gosto mais da petite do que do pitchoun Mme de Sévigné Lettres 12 de junho de 1675 ver também 5 de outubro de 1673 38 Coulanges Chansons choisies 1694 39 Claudin BouzonnetStella Jeux de lenfance 1657 culo XVIII com duas personagens uma literária Querubim e a outra social o conscrito Em Querubim prevalecia a ambigüidade da puberdade e a ênfase recaía sobre o lado efeminado de um menino que deixava a infância Isso não era propriamente uma novidade como se entrava muito cedo na vida social os traços cheios e redondos da primeira adolescência em torno da puberdade davam aos meninos uma aparência feminina É isso o que explica a facilidade dos disfarces dos homens em mulheres ou viceversa comuns nos romances barrocos do início do século XVII dois rapazes ou duas moças se tornam amigos mas um deles é uma moça travestida etc Por mais crédulos que sejam os leitores de romances de aventuras de todas as épocas o mínimo de verossimilhança exige que tenha existido alguma semelhança entre o menino ainda imberbe e a menina Contudo essa semelhança não era apresentada então como uma característica da adolescência uma característica da idade Esses homens sem barba de traços suaves não eram adolescentes pois já agiam como homens feitos comandando e combatendo Em Querubim ao contrário o aspecto feminino estava ligado à transição da criança para o adulto traduzia um estado durante um certo tempo o tempo do amor nascente Querubim não teria sucessores Ao contrário seria a força viril que no caso dos meninos exprimiria a adolescência e o adolescente seria prefigurado no século XVIII pelo conscrito Examinemos o texto de um cartaz de recrutamento que data do final do século XVIII 40 O cartaz se dirigia à brilhante juventude Os jovens que quiserem partilhar da reputação que este belo corpo adquiriu poderão dirigirse a M DAmbrun Eles os recrutadores recompensarão aqueles que lhes trouxerem belos homens O primeiro adolescente moderno típico foi o Siegfried de Wagner a música de Siegfried pela primeira vez exprimiu a mistura de pureza provisória de força física de naturismo de espontaneidade e de alegria de viver que faria do adolescente o herói do nosso século XX o século da adolescência Esse fenômeno surgido na Alemanha wagneriana penetraria mais tarde na França em torno dos anos 1900 A juventude que então era a adolescência iria tornarse um tema literário e uma preocupação dos moralistas e dos políticos Começouse a desejar saber seriamente o que pensava a juventude e surgiram pesquisas sobre ela como as de Massis ou de Henriot A juventude apareceu como depositária de valores novos capazes de rea vivar uma sociedade velha e esclerosa da Haviase experimentado um sentimento semelhante no período romântico mas sem uma referência tão precisa a uma classe de idade Sobretudo esse sentimento romântico se limitava à literatura à àqueles que a liam Ao contrário a consciência da juventude tornouse um fenômeno geral e banal após a guerra de 1914 em que os combatentes da frente de batalha se opuseram em massa às velhas gerações da retaguarda A consciência da juventude começou como um sentimento comum dos excombatentes e esse sentimento podia ser encontrado em todos os países beligerantes até mesmo na América de Dos Passos Daí em diante a adolescência se expandiria empurrando a infância para trás e a maturidade para a frente Daí em diante o casamento que não era mais um estabelecimento não mais a interromperia o adolescentecasado é um dos tipos mais específicos de nossa época ele lhe propõe seus valores seus apetites e seus costumes Assim passamos de uma época sem adolescência a uma época em que a adolescência é a idade favorita Desejase chegar a ela cedo e nela permanecer por muito tempo Essa evolução foi acompanhada por uma evolução paralela porém inversa da velhice Sabemos que a velhice começava cedo na sociedade antiga Os exemplos são conhecidos a começar pelos velhos de Molière que aos nossos olhos parecem jovens ainda Nem sempre aliás a iconografia da velhice a representa sob os traços de um indivíduo decrepito a velhice começa com a queda dos cabelos e o uso da barba e um belo ancião aparece às vezes como um homem calvo É o caso do ancião no concerto de Ticiano que é também uma representação das idades da vida Em geral porém antes do século XVIII o ancião era considerado ridículo Uma personagem de Rotrou pretendia impor à sua filha um marido quinquagenário Ele tem apenas 50 anos e além disso não tem nem um dente Il nest dans la nature homme qui ne le iuge Du siècle de Saturne ou du temps du Déluge Des trois pieds dont il marche il en a deux goutteux Qui jusque à chaque pas trébuchent de vieillesse Et quil faut retenir ou relever sans cesse Dez anos mais tarde esse ancião se parecia com este sexagenário de Quinault 41 Rotrou La Soeur Não há na natureza quem não o considere Pertencente ao século de Saturno ou ao tempo do Dilúvio Dos três pés com que ele anda dois sofrem de gota A cada passo camb eiam de velhice E é preciso retêlos e erguêlos todo o tempo N do T 2 A Descoberta da Infância Até por volta do século XII a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representála É difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo Uma miniatura otoniana do século XI 1 nos dá uma idéia impressionante da deformação que o artista impunha então aos corpos das crianças num sentido que nos parece muito distante de nosso sentimento e de nossa visão O tema é a cena do Evangelho em que Jesus pede que se deixe vir a ele as criancinhas sendo o texto latino claro parvuli Ora o miniaturista agrupou em torno de Jesus oito verdadeiros homens sem nenhuma das características da infância eles foram simplesmente reproduzidos numa escala menor Apenas seu tamanho os distingue dos adultos Numa miniatura francesa do fim do século XI 2 as três crianças que São Nicolau ressuscita estão representadas numa escala mais reduzida que os adultos sem nenhuma diferença de expressão ou de traços O pintor não hesitava em dar a nudez das crianças nos raríssimos casos em que era exposta a musculatura do adulto assim no livro de salmos de São Luís de Leyde 3 datado do fim do século XII ou do início do XIII Ismael pouco depois de seu nascimento tem os músculos abdominais e peitorais de um homem Embora exibisse mais sentimento ao retratar a infância 4 o século XIII continuou fiel a esse procedimento Na Bíblia moralizada de São Luís as crianças são representadas com maior freqüência mas nem sempre são caracterizadas por algo além de seu tamanho Num episódio da vida de Jacó Isaque está sentado entre suas duas mulheres cercado por uns 15 homenzinhos que batem na cintura dos adultos são seus filhos 5 Quando Jó é recompensado por sua fé e fica novamente rico o iluminista evoca sua fortuna colocando Jó entre um rebanho à esquerda e um grupo de crianças à direita igualmente numerosas imagem tradicional da fecundidade inseparável da riqueza Numa outra ilustração do livro de Jó as crianças aparecem escalonadas por ordem de tamanho No Evangeliário da SainteChapelle do século XIII 6 no momento da multiplicação dos pães Cristo e um apóstolo ladeiam um homenzinho que bate em sua cintura sem dúvida a criança que trazia os peixes No mundo das fórmulas românicas e até o fim do século XIII não existem crianças caracterizadas por uma expressão particular e sim homens de tamanho reduzido Essa recusa em aceitar na arte a morfologia infantil é encontrada aliás na maioria das civilizações arcaicas1 Um belo bronze sardo do século IX a C 7 representa uma espécie de Pietá uma mãe segurando em seus braços o corpo bastante grande do filho mas talvez se tratasse de uma criança como observa a nota do catálogo A pequena figura masculi na poderia muito bem ser um criança que segundo a fórmula adotada 1 Evangeliário de Oto III Munique 2 Vie et miracle de saint Nicolas Bibliothèque Nationale 3 Livro de salmos de São Luís de Leyde 4 Comparar a cena Deixai vir a mim as criancinhas do Evangeliário de Oto e da Bible moralisée de Saint Louis fº 505 5 Bible moralisée de Saint Louis fº 5 A de Laborde Bibles moralisées illustrées 19111921 4 vols de pranchas 6 Evangeliário da SainteChapelle cena reproduzida em H Martin La Miniature francaise pr VII 7 Exposição de bronzes sardos Bibliothèque Nationale 1954 nº 25 pr XI na época arcaica por outros povos estaria representada como um adulto Tudo indica de fato que a representação realista da criança ou a idealização da infância de sua graça de sua redondeza e formas tenham sido próprias da arte grega Os pequenos Eros proliferavam com exuberância na época helenística A infância desapareceu da iconografia junto com os outros temas helenísticos e o românico retomou essa recusa dos traços específicos da infância que caracterizava as épocas arcaicas anteriores ao helenismo Há aí algo mais do que uma simples coincidência Partimos de um mundo de representação onde a infância é desconhecida os historiadores da literatura Mgr Calvé fizeram a mesma observação a propósito da epopeia em que criançasprodígio se conduziam com a bravura e a força física dos guerreiros adultos Isso sem dúvida significa que os homens dos séculos XXI não se detinham diante da imagem da infância que esta não tinha para eles interesse nem mesmo realidade Isso faz pensar também que no domínio da vida real e não mais apenas no de uma transposição estética a infância era um período de transição logo ultrapassado e cuja lembrança também era logo perdida Tal é nosso ponto de partida Como daí chegamos às criancinhas de Versalhes às fotos de crianças de todas as idades de nossos álbuns de família Por volta do século XIII surgiram alguns tipos de crianças um pouco mais próximos do sentimento moderno Surgiu o anjo representado sob a aparência de um rapaz muito jovem de um jovem adolescente um clergeon como diz P du Colombier Mas qual era a idade do pequeno clérigo Era a idade das crianças mais ou menos grandes que eram educadas para ajudar à missa e que eram destinadas às ordens espécies de seminaristas numa época em que não havia seminários e em que apenas a escola latina se destinava à formação dos clérigos Aqui diz um Miracle de NotreDame havia crianças de pouca idade que sabiam um pouco as letras e que prefeririam mamar no seio de sua mãe mas as crianças desmamavam muito tarde nessa época a Julieta de Shakespeare ainda era alimentada ao seio aos três anos de idade a ter de ajudar à missa O anjo de Reims por exemplo seria um menino já grande mais do que uma criança mas os artistas sublinhariam com afetação os traços redondos e graciosos e um tanto efeminados dos meninos mal saídos da infância Já estamos longe dos adultos em escala reduzida da miniatura otoniana Esse tipo de anjos adolescentes se tornaria muito frequénte no século XIV e persistiria ainda até o fim do quattrocento italiano são exemplos os anjos de Fra Angelico de Botticelli e de Ghirlandoja O segundo tipo de criança seria o modelo e o ancestral de todas as crianças pequenas da história da arte o menino Jesus ou Nossa Senhora menina pois a infância aqui se ligava ao mistério da maternidade da Virgem e ao culto de Maria No início Jesus era como as outras crianças uma redução do adulto um pequeno Deuspadre majestoso apresentado pela Theotókos A evolução em direção a uma representação mais realista e mais sentimental da criança começaria muito cedo na pintura numa miniatura da segunda metade do século XII Jesus em pé veste uma camisa leve quase transparente tem os dois braços em torno do pescoço de sua mãe e se aninha em seu colo com o rosto colado ao dela Com a maternidade da Virgem a terra infância ingressou no mundo das representações No século XIII ela inspirou outras cenas familiares Na Bíblia Moralizada de São Luís encontramos cenas de família em que os pais estão cercados por seus filhos com o mesmo acento de ternura do jube de Chartres por exemplo num retrato da família de Moisés o marido e a mulher dão as mãos enquanto as crianças homenzinhos que os cercam estendem a mão para a mãe Esses casos porém eram raros o sentimento encantador da tenra infância permaneceu limitado ao menino Jesus até o século XIV quando como sabemos a arte italiana contribuiu para desenvolvêlo e expandilo Um terceiro tipo de criança apareceu na fase gótica a criança nua O menino Jesus quase nunca era representado despido Na maioria dos casos aparecia como as outras crianças de sua idade castamente enrolado em cueiros ou vestido com uma camisa ou uma camisola Ele só se desnudaria no final da Idade Média As poucas miniaturas das Bíblias moralizadas que representavam crianças vestiamnas exceto quando se tratava dos Inocentes ou das crianças mortas cujas mães seriam julgadas por Salomão Seria a alegoria da morte e da alma que introduziria no mundo das formas a imagem da nudez infantil Já na iconografia prébizantina do século V em que aparecem traços da futura arte românica reduziamse as dimensões dos corpos dos mortos Os cadáveres eram menores que os corpos dos vivos Na Ilíada da Biblioteca Ambrosiana os mortos das cenas de 8 P du Colombier LEnfant au Moyen Age 1951 9 Miracles NotreDame Westminster ed A F Warner 1885 batalha têm a metade do tamanho dos vivos Na arte medieval francesa a alma era representada por uma criancinha nua e em geral assexuada Os juízos finais conduzem sob essa forma as almas dos justos ao seio de Abraão O moribundo exala uma criança pela boca numa representação simbólica da partida da alma Era assim também que se imaginava a entrada da alma no mundo quer se tratasse de uma concepção miraculoas e sagrada o anjo da Anunciação entrega à Virgem uma criança nua a alma de Jesus quer se tratasse de uma concepção perfeitamente natural um casal repousa no leito aparentemente de forma inocente mas algo deve terse passado pois uma criança nua chega pelos ares e penetra na boca da mulher a criação da alma humana pela natureza Durante o século XIV e sobretudo durante o século XV esses tipos medievais evoluíram mas no sentido já indicado no século XIII Dissemos que o anjoadolescente animaria ainda a pintura religiosa do século XV sem grande alteração Por outro lado o tema da infância sagrada a partir do século XIV não deixaria mais de se ampliar e de se diversificar sua fortuna e sua fecundidade são um testemunho do progresso na consciência coletiva desse sentimento da infância que apenas um observador atento poderia isolar no século XIII e que não existia de todo no século XI No grupo formado por Jesus e sua mãe o artista sublinharia os aspectos graciosos ternos e ingênuos da primeira infância a criança procurando o seio da mãe ou preparandose para beijála ou acariciála a criança brincando com os brinquedos tradicionais da infância com um pássaro amarrado ou uma fruta a criança comendo seu mingau a criança sendo enrolada em seus cueiros Todos os gestos observáveis ao menos para aquele que desejasse prestar atenção neles já eram reproduzidos Esses traços de realismo sentimental tardaram a se estender além das fronteiras da iconografia religiosa mas não nos devemos surpreender com isso sabemos que o mesmo aconteceu com a paisagem e com a cena de gênero A verdade é que o grupo da Virgem com o menino se transformou e se tornou cada vez mais profano a imagem de uma cena da vida quotidiana Timidamente no início e a seguir com maior frequência a infância religiosa deixou de se limitar à infância de Jesus Surgiu em primeiro lugar a infância da Virgem que inspirou ao menos dois temas novos e freqüentes o tema do nascimento da Virgem pessoas no quarto de SantAna atarefadas em torno da recémnascida que é banhada agasalhada e apresentada à mãe e o tema da educação da Virgem da lição de leitura a Virgem acompanhando sua lição num livro que SantAna segura Depois surgiram as outras infâncias santas a de São João o companheiro de jogos do menino Jesus a de São Tiago e a dos filhos das mulheres santas MariaZebedeeu e Maria Salomé Uma iconografia inteiramente nova se formou assim multiplicando cenas de crianças e procurando reunir nos mesmos conjuntos o grupo dessas crianças santas com ou sem suas mães Essa iconografia que de modo geral remontava ao século XIV coincidiu com um florescimento de histórias de crianças nas lendas e contos pios como os dos Miracles NotreDame Ela se manteve até o século XVII e podemos acompanhála na pintura na tapeçaria e na escultura Voltaremos a ela aliás a propósito das devoções da infância Dessa iconografia religiosa da infância iria finalmente destacarse uma iconografia leiga nos séculos XV e XVI Não era ainda a representação da criança sozinha A cena de gênero se desenvolveu nessa época através da transformação de uma iconografia alegórica convencional inspirada na concepção antigomedieval da natureza idades da vida estações sentidos elementos As cenas de gênero e as pinturas anedóticas começaram a substituir as representações estáticas de personagens simbólicas Voltaremos com mais vagar a essa evolução Salientemos aqui apenas o fato de que a criança se tornou uma das personagens mais freqüentes dessas pinturas anedóticas a criança com sua família a criança com seus companheiros de jogos muitas vezes adultos a criança na multidão mas ressaltada no colo de sua mãe ou segura pela mão ou brincando ou ainda urinando a criança no meio do povo assistindo aos milagres ou aos martírios ouvindo prédicas acompanhando os ritos litúrgicos as apresentações ou as circuncisões a criança aprendiz de um ourives de um pintor etc ou a criança na escola um tema freqüente e antigo que remontava ao século XIV e que não mais deixaria de inspirar as cenas de gênero até o século XIX Mais uma vez não nos iludamos essas cenas de gênero em geral não se consagravam à descrição exclusiva da infância mas muitas vezes tinham nas crianças suas protagonistas principais ou secundárias Isso nos sugere duas idéias primeiro a de que na vida quotidiana as crianças estavam misturadas com os adultos e toda reunião para o trabalho o passeio ou o jogo reunia crianças e adultos segundo a idéia de que os pintores gostavam especialmente de representar a 13 Rampilly 14 Ver nota 5 deste capítulo 15 Miroir dhumilité Valenciennes P 18 início do século XV criança por sua graça ou por seu pitoresco o gosto do pitoresco anedótico desenvolveuse nos séculos XV e XVI e coincidiu com o sentimento da infância engraçadinha e se compraziam em sublinhar a presença da criança dentro do grupo ou da multidão Dessas duas idéias uma nos parece arcaica temos hoje assim como no fim do século XIX uma tendência a separar o mundo das crianças do mundo dos adultos A outra idéia ao contrário anuncia o sentimento moderno da infância Enquanto a origem dos temas do anjo das infâncias santas e de suas posteriores evoluções iconográficas remontava ao século XIII no século XV surgiram dois tipos novos de representação da infância o retrato e o putto A criança como vimos não estava ausente da Idade Média ao menos a partir do século XIII mas nunca era o modelo de um retrato de um retrato de uma criança real tal como ela aparecia num determinado momento de sua vida Nas efígies funerárias cuja descrição foi conservada por Gaignières a criança só apareceu muito tarde no século XVI Fato curioso ela apareceu de início não em seu próprio túmulo ou no de seus pais mas no de seus professores Nas sepulturas dos mestres de Bolonha representouse uma cena de aula com o professor no meio de seus alunos Já em 1378 o Cardeal de La Grange Bispo de Amiens mandara representar os dois Príncipes de que havia sido tutor de dez e sete anos numa bela pilastra de sua catedral Ninguém pensava em conservar o retrato de uma criança que tivesse sobrevivido e se tornado adulta ou que tivesse morrido pequena No primeiro caso a infância era apenas uma fase sem importância que não fazia sentido fixar na lembrança no segundo o da criança morta não se considerava que essa coisinha desaparecida tão cedo fosse digna de lembrança havia tantas crianças cuja sobrevivência era tão problemática O sentimento de que se faziam várias crianças para conservar apenas algumas era e durante muito tempo permaneceu muito forte Ainda no século XVII em Le Caquet de laccouchée vemos uma vizinha mulher de um relator tranqüilizar assim uma mulher inquieta mãe de cinco pestes e que acabara de dar à luz Antes que eles te possam causar muitos problemas tu terás perdido a metade e quem sabe todos Estranho consolo As pessoas não se podiam apegar muito a algo que era considerado uma perda eventual Isso explica algumas palavras que chocam nossa sensibilidade moderna como estas de Montaigne Perdi dois ou três filhos pequenos não sem tristeza mas sem desespero ou estas de Molière a respeito da Louison de Le Malade Imaginaire A pequena não conta A opinião comum devia como Montaigne não reconhecer nas crianças nem movimento na alma nem forma reconhecível no corpo Mme de Sévigné relata sem surpresa palavras semelhantes de Mme de Coetquen quando esta desmaiou com a notícia da morte de sua filhinha Ela ficou muito aflita e disse que jamais terá uma outra tão bonita Não se pensava como normalmente acreditamos hoje que a criança já contivesse a personalidade de um homem Elas morriam em grande número As minhas morrem todas pequenas dizia ainda Montaigne Essa indiferença era uma conseqüência direta e inevitável da demografia da época Persistiu até o século XIX no campo na medida em que era compatível com o cristianismo que respeitava na criança batizada a alma imortal Consta que durante muito tempo se conservou no País Basco o hábito de enterrar em casa no jardim a criança morta sem batismo Talvez houvesse aí uma sobrevivência de ritos muito antigos de oferendas sacrificais Ou será que simplesmente as crianças mortas muito cedo eram enterradas em qualquer lugar como hoje se enterra um animal doméstico um gato ou um cachorro A criança era tão insignificante tão mal entrada na vida que não se temia que após a morte ela voltasse para importunar os vivos É interessante notar que na gravura liminar da Tabula Cebetis Merian colocou as criancinhas numa espécie de zona marginal entre a terra de onde elas saíram e a vida em que ainda não penetraram e da qual estão separadas por um pórtico com a inscrição Introitus ad vitam Até hoje nós não falamos em começar a vida no sentido de sair da infância Esse sentimento de indiferença com relação a uma infância demasiado frágil em que a possibilidade de perda é muito grande no fundo não está muito longe da insensibilidade das sociedades romanas ou chinesas que praticavam o abandono das crianças recémnascidas Compreendemos então o abismo que separa a nossa concepção da infância anterior à revolução demográfica ou a seus preâmbulos Não nos devemos surpreender diante dessa insensibili 17 Gaignières Les Tombeaux 18 G Zaccagnini La Vita dei Maestri e degli scolari nella studio di Bologna Genebra 1926 pr IX X 19 Antes as representações de crianças nos túmulos eram excepcionais 20 Le Caquet de laccouchée 1622 21 Montaigne Essais II 8 22 Mme de Sévigné Lettres 19 de agosto de 1671 23 Merian Tabula Cebetis 1655 Cf R Lebègne Le Peintre Varin e Le Tableau de Cebes in Arts 1952 pp 167171 nhécidos e obscuros Nos casos porém em que o doador recorreu a um pintor famoso a questão muda de figura os historiadores da arte sempre realizam as pesquisas necessárias à identificação das personagens de uma tela célebre É o caso da família Meyer que Holbein representou em 1526 ao pé da Virgem Sabemos que das seis personagens da composição três estavam mortas em 1526 a primeira mulher de Jacob Meyer e seus dois filhos um morto aos 10 anos e o outro ainda menor estando este último nu Esse costume de fato tornouse comum do século XVI até meados do XVII O museu de Versalhes conserva um quadro de Norcret que representa as famílias de Luís XIV e de seu irmão a tela é célebre porque o Rei e os Príncipes ao menos os homens aparecem seminus como os deuses do Olimpo Gostaríamos de salientar aqui um detalhe ao pé de Luís XIV no primeiro plano Norcret pintou o retrato emoldurado de duas criancinhas mortas muito novas Inicialmente portanto a criança aparecia ao lado de seus pais nos retratos de família Já no fim do século XVI os registros de Gaignières apontam túmulos com efígies de crianças isoladas um deles data de 1584 e o outro de 1608 A criança é representada com o traje peculiar à sua idade de vestido e touca como a criança da descida da cruz do quadro de Toulouse Quando num período de dois anos entre 1606 e 1607 Jaime I perdeu duas filhas uma com três dias e a outra com dois anos mandouas representar sobre seus túmulos de Westminster com todos os seus adereços e quis que a menor repousasse num berço de alabastro em que todos os acessórios como as rendas da roupa e da touca fossem fielmente reproduzidos para dar a ilusão de realidade Uma inscrição indica bem o sentimento piedoso que dotava essa criança de três dias de uma personalidade definitiva Rosula Regia praepropera Fato decerpta parentibus erepta ut in Christi Rosario reflorescat Afora as efígies funerárias os retratos de crianças isoladas de seus pais continuaram raros até o fim do século XVI lembremos o retrato do Delfim Carlos Orlando pelo Maître des Moulins outro testemunho da piedade sentida pelas crianças desaparecidas cedo Por outro lado no início do século XVII esses retratos se tornaram muito numerosos e sentimos que se havia criado o hábito de conservar através da arte do pintor o aspecto fugaz da infância Nesses retratos a criança se separava da família como um século antes no início do século XVI a família se separara da parte religiosa do quadro do doador A criança agora era representada sozinha e por ela mesma esta foi a grande novidade do século XVII A criança seria um de seus modelos favoritos Os exemplos são abundantes entre os pintores famosos Rubens Van Dyck Franz Hals Le Nain Philippe de Champaigne Alguns desses pintores retrataram pequenos príncipes como os filhos de Carlos I de Van Dyck ou os de Jaime II de Largillière Outros pintaram os filhos de grandes senhores como as três crianças de Van Dyck a mais velha das quais traz uma espada Outros ainda como Le Nain ou Philippe de Champaigne pintaram os filhos de burgueses ricos Algumas vezes uma inscrição fornece o nome e a idade da criança como era o costume antigo para os adultos Ora a criança está sozinha ver a obra de Philippe de Champaigne em Grenoble ora o pintor reúne várias crianças da mesma família Este último é um estilo de retrato banal repetido por muitos pintores anônimos e encontrado com frequência nos museus de província ou nos antiquários Cada família agora queria possuir retratos de seus filhos mesmo na idade em que eles ainda eram crianças Esse costume nasceu no século XVII e nunca mais desapareceu No século XIX a fotografia substituiu a pintura o sentimento não mudou Antes de encerrarmos o assunto retrato é importante mencionar as representações de crianças em exvotos que começam a ser descobertos aqui e acolá existem alguns no museu da catedral de Puy e a Exposição do século XVII de 1958 em Paris revelou uma surpreendente criança doente que também deve ser um exvoto Assim embora as condições demográficas não tenham mudado muito do século XIII ao XVII embora a mortalidade infantil se tenha mantido num nível muito elevado uma nova sensibilidade atribuiu a esses seres frágeis e ameaçados uma particularidade que antes ninguém se importava em reconhecer foi como se a consciência comum só então descobrisse que a alma da criança também era imortal É certo que essa importância dada à personalidade da criança se ligava a uma cristianização mais profunda dos costumes Esse interesse pela criança precedeu em mais de um século a mudança das condições demográficas que podemos datar aproximadamente da descoberta de Jenner Correspondências como a do General de Martange mostram que algumas famílias então fizeram questão de vacinar suas crianças Essa precaução contra a varíola traduzia um estado de espírito que deve ter favorecido também outras práticas de higiene provocando uma redução da mortalidade que em parte foi compensada por um controle da natalidade cada vez mais difundido Uma outra representação da criança desconhecida da Idade Média é o putto a criancinha nua O putto surgiu no fim do século XVI 29 Correspondance inédite du général de Martange ed Breard 1893 e sem a menor dúvida representou uma revivescência do Eros helenístico O tema da criança nua foi logo extremamente bem recebido até mesmo na França onde o italianismo encontrava certas resistências nativas O Duque de Berry 30 de acordo com seus inventários possuía uma chambre aux enfants ou um quarto das crianças ou seja um aposento ornado com tapeçarias decoradas com putti Van Marle se pergunta se algumas vezes os escribas dos inventários não chamavam de enfants aqueles anjinhos semipagãos aqueles putti que tantas vezes adornam a folhagem das tapeçarias da segunda metade do século XV No século XVI como sabemos muito bem os putti invadiram a pintura e se tornaram um motivo decorativo repetido ad nauseam Ticiano em particular usou e abusou dos putti lembremos o Triunfo de Vênus do Prado O século XVII não pareceu cansado do tema quer em Roma em Nápoles ou em Versalhes onde os putti ainda conservavam o antigo nome de marmousets A pintura religiosa tampouco escaparia deles graças à transformação do anjoadolescente medieval em putto Com exceção do anjo da guarda de agora em diante o anjo não seria mais o adolescente que ainda se vê nas telas de Botticelli ele também se transformara num pequeno Eros nu mesmo quando para satisfazer o pudor póstridentino sua nudez era encoberta por nuvens vapores ou véus A nudez do putto conquistou até mesmo o menino Jesus e as outras crianças sagradas Quando a nudez completa repugnava ao artista ela era apenas tornada mais discreta Evitavase vestir o menino Jesus com muitas roupas ou cueiros era mostrado no momento em que sua mãe desenrolava seus cueiros 31 ou então aparecia com os ombros e as pernas despidas Père du Colombier já observou a propósito das pinturas de Lucca della Robbia do Hôpital des Innocents que não era possível representar a infância sem evocarlhe a nudez32 O gosto pela nudez da criança evidentemente estava ligado ao gosto geral pela nudez clássica que começava a conquistar até mesmo o retrato Mas o primeiro durou mais tempo e conquistou toda a arte decorativa lembremonos de Versalhes ou do teto da Villa Borghese em Roma O gosto pelo putto correspondia a algo mais profundo do que o gosto pela nudez clássica a algo que deve ser relacionado com um amplo movimento de interesse em favor da infância 30 Van Marle op cit I p 71 31 Baldovinetti A Virgem e o Menino Louvre 32 P du Colombier op cit Assim como a criança medieval criança sagrada ou alegoria da alma ou ser angélico o putto nunca foi uma criança real histórica nem no século XV nem no XVI Este fato é notável pois o tema do putto nasceu e se desenvolveu ao mesmo tempo que o retrato da criança Mas as crianças dos retratos dos séculos XV e XVI não são nunca ou quase nunca crianças nuas Ou estão enroladas em cueiros mesmo quando representadas de joelhos 33 ou então vestem o traje próprio de sua idade e condição Não se imaginava a criança histórica mesmo muito pequena com a nudez da criança mitológica e ornamental e essa distinção persistiu durante muito tempo O último episódio da iconografia infantil seria a aplicação da nudez decorativa do putto ao retrato da criança Isso aconteceu também no século XVII No século XVI já podemos apontar alguns retratos de crianças nuas Mas eles são raros um dos mais antigos talvez seja o da criança morta muito pequena da família Meyer pintada por Holbein 1521 não podemos nos impedir de pensar na alma medieval Numa sala do palácio de Innsbruck existe também uma tela em que Maria Teresa quis reunir todos os seus filhos ao lado dos vivos uma princesa morta foi representada numa nudez pudicamente encoberta por drapeados Numa tela de Ticiano de 1571 ou 1575 34 Filipe II num gesto de oferenda estende à Vitória seu filho o infante Ferdinando completamente nu o menino lembra o putto usual de Ticiano e parece achar a situação muito engraçada os putti quase sempre são representados brincando Em 1560 Veronese pintou segundo o costume a família CucinaFiacco reunida diante da Virgem e o Menino três homens sendo um o pai uma mulher a mãe e seis filhos Na extrema direita uma mulher está quase cortada ao meio pelo limite do quadro ela segura no colo uma criança nua da mesma forma como a Virgem segura o Menino Jesus e essa semelhança é acentuada pelo fato de a mulher não estar vestindo o traje real de sua época Ela não é a mãe pois está afastada do centro da cena Seria a ama do filho mais novo 35 Uma pintura do holandês P Aertsen do meado do século XVI representa uma família o pai um menino de aproximadamente cinco anos uma menina de quatro e a mãe sentada com uma criancinha no colo 36 33 Virgem no Trono retrato presumido de Béatrice DEste 1496 34 Glorificação da Vitória de Lepanto Prado 35 Pinacoteca de Dresden 36 Reproduzido em H Gerson De nederlandse Shilderkunst 2 vols 1952 tomo I p 145 Certamente existem outros casos que uma pesquisa mais profunda revelaria não eram porém suficientemente numerosos para criar um gosto comum e geral No século XVII os exemplos tornaramse mais numerosos e característicos lembremos o retrato de Hélène Fourment de Munique segurando no colo o filho nu que se distingue do putto banal não só pela semelhança com a mãe mas também por uma touca com plumas do gênero então usado pelas crianças O último filho de Carlos I pintado por Van Dyck em 1637 aparece ao lado de seus irmãos e irmãs nu e semienvolto no lençol sobre o qual está deitado Ao representar em 1647 o banqueiro e colecionador Jabach em sua casa da Rua SaintMerri escreve Hautecoeur 37 Le Brun mostranos esse homem poderoso vestido simplesmente com as meias mal esticadas comentando com a mulher e o filho sua última aquisição seus outros filhos estão presentes o mais novo nu como o Menino Jesus repousa sobre uma almofada e sua irmã brinca com ele O pequeno Jabach muito mais do que as crianças nuas de Holbein Veronese Ticiano Van Dyck e mesmo Rubens tem exatamente a mesma pose do bebê moderno diante da câmera de um fotógrafo de estúdio A nudez da criança pequena daí em diante se tornaria uma convenção do gênero e todas as criancinhas que sempre haviam sido cerimoniosamente vestidas no tempo de Le Nain e Philippe de Champaigne seriam representadas nuas Essa convenção pode ser observada tanto na obra de Largillière pintor da altaburguesia como na de Mignard o pintor da corte o filho mais novo do grandedelfim do quadro de Mignard conservado no Louvre aparece nu sobre uma almofada ao lado de sua mãe tal como o pequeno Jabach A criança aparece ou completamente nua como no retrato do Conde de Toulouse de Mignard 38 em que a nudez do menino é velada pela alça de uma fita desenrolada com esse fim ou no retrato de uma criança segurando uma foice de Largillière 39 ou bem a criança aparece vestida não com uma roupa verdadeira semelhante ao traje usado na época mas com um négligé que não lhe cobre toda a nudez e a deixa intencionalmente transparente vejamse os retratos de crianças de Belle em que as pernas e os pés aparecem nus ou o Duque de Borgonha de Mignard vestido apenas com uma camisa leve Não é necessário acompanharmos por mais tempo a história desse tema que se tornou convencional Reencontráloemos finalmente nos álbuns de família e nas vitrinas dos fotógrafos de arte de on 37 L Hautecoeur Les Peintres de la vie familiale 1945 p 40 38 Museu de Versalhes 39 Rouches Largillière peintre denfants Revue de lArt ancien et moderne 1923 p 253 A DESCOBERTA DA INFÂNCIA 65 tem bebês mostrando suas pequenas nádegas apenas para a pose pois normalmente eram cuidadosamente cobertas com fraldas e cueiros e menininhos e menininhas vestidos para a fotografia apenas com uma camisa transparente Não havia uma criança cuja imagem não fosse conservada em sua nudez diretamente herdada dos putti do Renascimento singular persistência no gosto coletivo tanto burguês como popular de um tema que originalmente foi decorativo O Eros antigo redescoberto no século XV continuou a servir de modelo para os retratos artísticos dos séculos XIX e XX O leitor destas páginas sem dúvida terá notado a importância do século XVII na evolução dos temas da primeira infância Foi no século XVII que os retratos de crianças sozinhas se tornaram numerosos e comuns Foi também nesse século que os retratos de família muito mais antigos tenderam a se organizar em torno da criança que se tornou o centro da composição Essa concentração em torno da criança é particularmente notável no grupo familiar de Rubens 40 em que a mãe segura a criança pelo ombro e o pai dálhe a mão e nos quadros de Franz Hals Van Dyck e Lebrun em que as crianças se beijam se abraçam e animam o grupo dos adultos sérios com suas brincadeiras e carinhos O pintor barroco apoiouse nas crianças para dar ao retrato de grupo o dinamismo que lhe faltava Também no século XVII a cena de gênero deu à criança um lugar privilegiado com inúmeras cenas de infância de caráter convencional a lição de leitura em que sobrevive sob uma forma leiga o tema da lição da Virgem da iconografia religiosa dos séculos XIV e XV a lição de música ou grupos de meninos e meninas lendo desenhando e brincando Poderíamos continuar enumerando indefinidamente todos esses temas tão comuns na pintura sobretudo da primeira metade do século e a seguir na gravura Enfim como vimos foi na segunda metade do século XVII que a nudez se tornou uma convenção rigorosa nos retratos de crianças A descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII e sua evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e XVI Mas os sinais de seu desenvolvimento tornaramse particularmente numerosos e significativos a partir do fim do século XVI e durante o século XVII Esse fato é confirmado pelo gosto manifestado na mesma época pelos hábitos e pelo jargão das crianças pequenas Já assinalamos no capítulo anterior que as crianças receberam então novos nomes 40 Cerca de 1609 Karlsruhe Rubens ed Verlags p 34 bambins pitchouns e fanfans Os adultos interessaramse também em registrar as expressões das crianças e em empregar seu vocabulário ou seja o vocabulário utilizado pelas amas quando estas lhes falavam É muito raro que a literatura mesmo popular conserve vestígios do jargão das crianças No entanto alguns desses vestígios são encontrados na Divina Comédia41 Que gloria terás tu a mais se deixares uma carne envelhecida do que se tivesses morrido antes de parar de dizer pappo e dindi antes que mil anos se passassem Pappo significa pão A palavra existia no francês da época de Dante papin Encontramola num dos Miracles NotreDame o da criancinha que dá de comer à imagem de Jesus no colo de Nossa Senhora Assim colocoulhe o papin sobre a boca dizendo papez come bela e doce criança por favor Então ele comeu um pedaço de papin come criança disse o menino e que Deus te ajude Vejo que morres de fome Come um pouco do meu bolo ou de minha fogança Mas a palavra papin seria realmente reservada à infância ou pertenceria à língua familiar do diaadia Qualquer que seja a resposta os Miracles NotreDame assim como outros textos do século XIV revelam um gosto indiscutível pela infância real Isto não impede porém que as alusões ao jargão da infância tenham permanecido excepcionais antes do século XVII No século XVII elas tornamse abundantes Vejamos alguns exemplos entre as legendas de uma coletânea de gravuras de Bouzonnet e Stella datada de 165742 Essa coletânea contém uma série de pranchas gravadas que representam putti brincando Os desenhos não têm nenhuma originalidade mas as lendas escritas em versos de péssima qualidade falam o jargão da primeira infância e a gíria da juventude escolar pois na época os limites da primeira infância continuavam bastante imprecisos Alguns putti brincam com cavalos de pau título da prancha Le Dada o cavalinho Putti jouent aux dés lun est hors du jeu Et lautre sen voyant exclu du jeu Avec son toutou se console O papin dos séculos XIVXV deve ter caído em desuso ao menos no francês das crianças burguesas talvez pelo fato de não ser um termo específico da primeira infância Mas outros termos infantis surgiram e continuam vivos até hoje toutou auau e dada cavalinho 41 Purgatório XI pp 103106 42 Cl Bouzonnet Jeux de lenfance 1657 segundo Stella Alguns putti jogam dados um está fora do jogo E o outro vendose excluído do jogo Com seu auau se consola N do T Além do jargão das amas os putti falam também a gíria das escolas ou das academias militares O trenó Ce populo comme un César Se fait traîner dedans son char Populo latim de escola No mesmo sentido infantil Mme de Sévigné diria ao falar dos filhos de Mme de Grignan Ce petit peuple Um pequeno jogador fazse notar por sua astúcia Este cadet parece ter sorte Cadet termo usado nas academias onde no início do século XVII os jovens fidalgos aprendiam as armas a equitação e as artes da guerra No jogo da péla Aynsi nuds legers et dispos Les enfanis dès quils ont campos Vont sescrimer de la raquette Avoir campos expressão das academias termo militar que significa obter licença Era uma expressão comum na língua familiar encontrada também em Mme de Sévigné No banho enquanto alguns nadam La plupart boivent sans manger A la santé des camarades Camarades o termo novo também ou no máximo datando do fim do século XVI devia ser de origem militar viria dos alemães dos mercenários de língua alemã e passou pelas academias Com o tempo porém ficaria reservado à língua familiar burguesa Até hoje não é usado na língua popular que prefere o termo mais antigo copain o compaing medieval Mas voltemos ao jargão da primeira infância Em Le Pédant joué de Cyrano de Bergerac Granger chama seu filho de seu toutou Vem me dar um beijo vem meu toutou A palavra bonbon que suponho deve terse originado no jargão das amas entrou em uso assim como a expressão beau comme un ange belo como um anjo ou pas plus grand que cela deste tamanhinho empregadas por Mme de Sévigné Este populo como um César Fazse puxar em seu carro N do T Despedidas leves e dispostas As crianças assim que ont campos Vão esgrimir com a raquete N do T A maioria bebe sem comer À saúde dos camarades N do T Tentouse registrar até mesmo as onomatopeias da criança que ainda não sabe falar Mme de Sévigné por exemplo procurou anotar os ruídos emitidos por sua netinha para mostrálos a Mme de Grignan que estava então na Provença Ela fala de um modo engraçado e titota tetita y totata43 Já no início do século Heroard o médico de Luís XIII havia cuidadosamente anotado em seu diário as ingenuidades de seu pupilo seus balbucios e sua maneira de dizar vela em vez de voilà aqui está ou équivez em lugar de écrivez escreva Ao descrever sua netinha sua amiguinha Mme de Sévigné pinta cenas de gênero próximas das de Le Nain ou Bosse acrescentando porém a delicadeza dos gravadores do fim do século XVII e dos artistas do século XVIII Nossa menina é uma belezinha É morena e muito bonita Lá vem ela Dáme um beijo lambuzado mas nunca grita Ela me abraça me reconhece ri para mim e me chama só de Maman em vez de Bonne Maman Eu a amo muito Mandei cortar seus cabelos e ela agora usa um penteado solto Esse penteado é feito para ela Sua tez seu pescoço e seu corpinho são admiráveis Ela faz cem pequenas coisinhas faz carinhos bate faz o sinal da cruz pede desculpas faz reverência beija a mão sacode os ombros dança agrada segura o queixo enfim ela é bonita em tudo o que faz Distraiome com ela horas a fio44 Muitas mães e amas já se haviam sentido assim Mas nenhuma admitira que esses sentimentos fossem dignos de ser expressos de uma forma tão ambiciosa Essas cenas de infância literárias correspondem às cenas da pintura e da gravura de gênero da mesma época são descobertas da primeira infância do corpo dos hábitos e da fala da criança pequena 43 Mme de Sévigné Lettres 8 de janeiro de 1672 44 18 de setembro de 1671 22 de dezembro de 1671 20 de maio de 1672 3 O Traje das Crianças A indiferença marcada que existiu até o século XIII a não ser quando se tratava de Nossa Senhora menina pelas características próprias da infância não aparece apenas no mundo das imagens o traje da época comprova o quanto a infância era então pouco particularizada na vida real Assim que a criança deixava os cueiros ou seja a faixa de tecido que era enrolada em torno de seu corpo ela era vestida como os outros homens e mulheres de sua condição Para nós é difícil imaginar essa confusão nós que durante tanto tempo usamos calças curtas hoje sinal vergonhoso de uma infância retardada Na minha geração os meninos deixavam as calças curtas no fim do 2º ano colegial após uma certa pressão sobre pais recalcitrantes meus pais por exemplo pediamme paciência citando o caso de um tio general que entrara para a academia militar de calças curtas Hoje em dia a adolescência se expandiu para trás e para a frente e o traje es cullo XX Em todo o caso se o período 19001920 prolongava ainda até muito tarde no jovem adolescente as particularidades de um traje reservado à infância a Idade Média vestia indiferentemente todas as classes de idade preocupandose apenas em manter visíveis através da roupa os degraus da hierarquia social Nada no traje medieval separava a criança do adulto Não seria possível imaginar atitudes mais diferentes com relação à infância No século XVII entretanto a criança ou ao menos a criança de boa família quer fosse nobre ou burguesa não era mais vestida como os adultos Ela agora tinha um traje reservado à sua idade que a distinguia dos adultos Esse fato essencial aparece logo ao primeiro olhar lançado às numerosas representações de crianças do início do século XVII Consideremos a bela tela de Philippe de Champaigne do museu de Reims que representa os sete filhos da família Harbert O filho mais velho tem dez anos e o mais moço oito meses Essa pintura é preciosa para nosso estudo pois o artista inscreveu a idade precisa incluindo os meses de cada um de seus modelos O mais velho de dez anos já se veste como um homenzinho envolto em sua capa na aparência pertence ao mundo dos adultos Apenas na aparência sem dúvida pois ele deve freqüentar os cursos de um colégio e a vida escolar prolonga a idade da infância Mas o menino certamente não continuará no colégio por muito tem o e o deixará para se misturar aos homens cujo traje já veste e de cuja vida logo partilhará nos campos militares nos tribunais ou no comércio Mas os dois gêmeos que estão afetuosamente de mãos dadas e ombros colados têm apenas quatro anos e nove meses eles não estão mais vestidos como adultos Usam um vestido comprido diferente daqueles das mulheres pois é aberto na frente e fechado ora com botões ora com agulhetas mais parece uma sotaina eclesiástica Esse mesmo vestido é encontrado no quadro da Vida Humana de Cebes 1 Aí a primeira idade ainda mal saída do nãoser está nua as duas idades seguintes estão enroladas em cueiros A terceira que deve ter por volta de dois anos e ainda não fica pé sozinha já usa um vestido e sabemos que se trata de um menino A quarta idade montada em seu cavalo de pau usa o mesmo vestido comprido aberto e abotoado na frente como uma sotaina dos gêmeos Harbert de Philippe de Champaigne Esse vestido foi usado pelos meninos pequenos durante todo o século XVII EncontramoIo em Luís XIII menino em inúmeros retratos de crianças francesas inglesas e holandesas e até no início do século XVIII 1 Tabula Cebetis gravura de Merian Cf Lebègue op cit como por exemplo no jovem de Bethisy 2 pintado por Belle por volta de 1710 Neste último quadro o vestido do menino não é mais abotoado na frente mas continua diferente do das meninas e não comporta acessórios de fazenda branca Esse vestido pode ser muito simples como o da criança montada a cavalo do quadro da Vida Humana Mas pode também ser suntuoso e terminar por uma cauda como o do jovem Duque de Anjou da gravura de Arnoult 3 Esse vestido em forma de sotaina não era a primeira roupa da criança depois que ela deixava os cueiros Voltemos ao retrato das crianças Habert de Philippe de Champaigne François que tem um ano e 11 meses e o caçula de oito meses vestemse ambos exatamente como sua irmã ou seja como duas mulherzinhas saia vestido e avental Este era o traje dos meninos menores Tornarase hábito no século XVI vestilos como meninas e estas por sua vez continuavam a se vestir como as mulheres adultas A separação entre crianças e adultos ainda não existia no caso das mulheres Erasmo em Le Mariage chrétien 4 nos dá uma descrição desse traje que o seu editor francês de 1714 traduziu sem dificuldade como coisa que persistia em sua época Colocase nas crianças uma camisola curta meias bem quentes uma anágua grossa e o vestido de cima que tolhe os ombros e os quadris com uma grande quantidade de tecido e pregas e dizse a essa toda essa tralha lhes dá um ar maravilhoso Erasmo denunciava essa moda nova em sua época e preconizava maior liberdade para os jovens corpos sua opinião porém não prevaleceu contra os costumes e foi preciso esperar o fim do século XVIII para que o traje da criança se tornasse mais leve mais folgado e a deixasse mais à vontade Um desenho de Rubens 5 mostranos um traje de um menino pequeno ainda parecido com o de Erasmo o vestido aberto sob o qual aparece a saia A criança está começando a andar e é segura por tiras que pendem em suas costas No diário de Heroard que nos permite acompanhar dia a dia a infância de Luís XIII lemos sob a data de 28 de junho de 1602 Luís XIII tinha então nove meses 6 Foram colocadas tiras à guisa de guias em seu vestido para lhe ensinar a andar O mesmo Luís XIII não gostava que sua 2 Museu de Versalhes Catherine de Bethisy e seu Irmão 3 Arnoult Le duc dAnjou enfant gravura Cabinet des Estampes infolio Ed 101 vol I fº 51 4 Erasmo Le Mariage chrétien tradução francesa de 1714 5 Desenho do Louvre reproduzido em A Michel Histoire de lArt VI p 301 fig 194 6 Journal dHeroard publicado por E Soulié e E de Barthelemy 2 vols 1868 irmã usasse um vestido parecido com o seu Madame chegou com um vestido igual ao dele e ele a mandou embora com ciúmes Enquanto os meninos usavam esse traje feminíno diziase que eles estavam à la bavette ou seja eram crianças de babador Isto durava até por volta de quatrocinco anos Jean Rou que nasceu em 1638 7 conta em suas memórias que teve uma infância precoce e que foi enviado ao colégio de Harcourt acompanhado de uma criada Quando eu ainda estava à la bavette ou seja quando ainda não usava o vestido comprido com gola que precedia as calças justas pelos joelhos eu era o único ridiculamente vestido da maneira como acabo de descrever ou seja vestido de menina de sorte que era como uma espécie de novo fenômeno naquele lugar que nunca havia ocorrido antes A gola do vestido era uma gola de homem Os costumes dessa época em diante ditaram regras de vestir para as crianças de acordo com sua idade primeiro o vestido das meninas e depois o vestido comprido com gola que também era chamado de jaquette O regulamento de uma pequena escola ou escola paroquial de 1654 8 determinava que aos domingos as crianças fossem levadas à igreja para assistir à missa após a instrução religiosa e que não se misturassem os pequenos e os grandes ou seja os vestidos curtos e os vestidos compridos Os pequenos de jaquette deverão ser colocados todos juntos O diário da infância de Luís XIII que Heroard mantinha mostra a seriedade com que então se começou a tratar o traje da criança a roupa tornava visíveis as etapas do crescimento que transformava a criança em homem Essas etapas outrora despercebidas haviamse tornado espécies de ritos que era preciso respeitar e que Heroard registrava cuidadosamente como questões importantes Em 17 de julho de 1602 foram colocadas tiras à guisa de guias no vestido do Delfim Ele as usaria durante mais de dois anos aos três anos e dois meses ele recebeu o primeiro vestido sem guias O menino ficou encantado e disse ao capitão da guarda Capitão não tenho mais guias vou andar sozinho Alguns meses antes ele abandonara o berço e passara a dormir numa cama era uma etapa No seu aniversário de quatro anos usou calças justas pelos joelhos por baixo do vestido e um ano mais tarde em 7 de agosto de 1606 foilhe retirada a touca de criança e ele recebeu o chapéu dos homens Esta também foi uma data importante Agora que deixais vossa touca não sereis mais uma criança começais a vos tornar homem 7 de agosto de 1606 Mas seis dias depois a Rainha mandou que lhe pusessem novamente a touca 8 de janeiro de 1607 Ele pergunta quando começará a usar as calças justas pelos joelhos em lugar do vestido Mᵐᵉ de Montglas lhe diz que será quando tiver oito anos A 6 de junho de 1608 quando Luís tinha sete anos e oito meses Heroard registrou com certa solenidade Hoje ele foi vestido com um gibão e calças pelos joelhos deixou o traje da infância ou seja o vestido e recebeu a capa e a espada como o mais velho dos pequenos Habert de Philippe de Champaigne Algumas vezes entretanto colocavamlhe novamente o vestido como já haviam feito com a touca mas ele detestava isso quando vestia o gibão e as calças pelos joelhos ficava extremamente contente e alegre e não queria pôr o vestido Os hábitos de vestir portanto não são apenas uma frivolidade A relação entre o traje e a compreensão daquilo que ele representa está aqui bem marcada Nos colégios os semiinternos usavam o vestido por cima das calças justas até os joelhos Os diálogos de Cordier 9 do fim do século XVI descrevemnos o despertar de um aluno interno Depois de acordar levanteime da cama vesti meu gibão e minha capa curta senteime num banco peguei minhas calças até os joelhos e minha meia vestias peguei meus sapatos prendi minhas calças em meu gibão com agulhetas prendi minha meia com ligas abaixo dos joelhos peguei o cinto penteei os cabelos peguei o gorro e o coloquei com cuidado vesti meu vestido e depois sai do quarto Em Paris no início do século XVII 10 Imaginem portanto Francion entrando na classe com as ceroulas saindo por baixo de suas calças até os joelhos e descendo até os sapatos o vestido colocado torto e a pasta embaixo do braço tentando dar uma frusta podre a um e um piparote no nariz de outro No século XVIII o regulamento do internato de La Flèche dizia que o enxoval dos alunos devia incluir um vestido de interno que devia durar dois anos 11 Essa diferenciação de trajes não era observada nas meninas Estas como os meninos de outrora do momento em que deixavam os cueiros eram logo vestidas como mulherzinhas Contudo se olharmos de perto as representações de crianças do século XVII notaremos que o traje feminino tanto dos meninos pequenos como das me 7 Mémoires de Jean Rou 16381711 publicadas por F Waddington 1857 8 Ecole paroissiale ou la manière de bien instruire les enfants dans les petites écoles par um prestre dune paroisse de Paris 1654 9 Mathurin Cordier Colloques 1586 10 No colégio de Lisieux G Sorel Histoire comique de Francion publicada por E Roy 1926 11 C de Rochémonteix Le Collège Henri IV de La Flêche 1889 ninas pequenas comportava um ornamento singular que não era encontrado no traje das mulheres duas fitas largas presas ao vestido atrás dos dois ombros pendentes nas costas Vemos essas fitas de perfil na terceira criança Habert a partir da esquerda na quarta idade da Tabula Cebetis a criança de vestido brincando com o cavalo de pau e na menina de dez anos da escala das idades do início do século XVIII miséria humana ou as paixões da alma em todas as suas idades para limitar nossos exemplos às imagens já comentadas aqui Observamolas com frequência em numerosos retratos de crianças até Lancret e Boucher Elas desaparecem no fim do século XVIII época em que o traje da criança se transforma Um dos últimos retratos de criança com as fitas nas costas talvez seja o que Mᵐᵉ Gabrielle Guiard pintou para Mesdames Adelaide e Victoire em 1788 12 O retrato representa a irmã destas a Infanta que havia morrido cerca de 30 anos atrás A Infanta tinha vivido 32 anos Mᵐᵉ Gabrielle Guiard a representou contudo como uma criança ao lado de sua ama e essa preocupação em conservar a lembrança de uma mulher de trinta anos levandoa de volta ao tempo de sua infância revela um sentimento inteiramente novo A Infanta criança tem bem visíveis as fitas das costas que ainda se usavam por volta de 1730 mas que haviam passado de moda no momento em que o quadro foi pintado Portanto no século XVII e início do XVIII essas fitas nas costas haviamse tornado signos da infância tanto para os meninos como para as meninas Os estudiosos modernos sem dúvida ficaram intrigados com esse apêndice do vestuário reservado à infância Eles foram confundidos com as guias as tiras das costas das roupas das crianças pequenas que ainda não andavam com firmeza 13 No pequeno museu da abadia de Westminster foram expostas algumas efígies mortuárias de cera que representavam o morto e que eram colocadas sobre o ataúde durante as cerimônias fúnebres uma prática medieval que se manteve na Inglaterra até cerca de 1740 Uma dessas efígies representa o pequeno marquês de Normamby morto aos três anos de idade ele está vestido com uma saia de seda amarela recoberta por um vestido de veludo o traje das crianças pequenas e usa essas fitas chatas da infância que o catálogo descreve como guias Na realidade as guias eram cordinhas que não se pareciam com essas fitas Uma gravura de Guérard ilustrando a idade viril mostranos uma criança menina ou menino usando um vestido penteada à la Fontange e vista de costas entre as duas fitas que pendem dos ombros vêse claramente a cordinha que servia para ajudar a criança a andar 14 Essa análise nos permitiu descobrir alguns hábitos de vestuário próprios da infância que eram adotados comumente no final do século XVI e que foram conservados até o fim do século XVIII Esses hábitos que distinguiam o traje das crianças do traje dos adultos revelam uma nova preocupação desconhecida da Idade Média de isolar as crianças de separálas através de uma espécie de uniforme Mas qual é a origem desse uniforme da infância O vestido das crianças nada mais é do que o traje longo da Idade Média dos séculos XII e XIII antes da revolução que o substituiu no caso dos homens pelo traje curto com calças aparentes ancestrais do nosso traje masculino atual Até o século XIV todo o mundo usava um vestido ou túnica mas a túnica dos homens não era a mesma das mulheres Geralmente era mais curta ou então aberta na frente Nos camponeses dos calendários do século XIII ela parava nos joelhos enquanto nas grandes personagens veneráveis descia até os pés Houve em suma um longo período em que os homens usaram um traje justo e longo que se opunha ao traje drapeado tradicional dos gregos ou dos romanos o traje longo continuava os hábitos dos bárbaros gauleses ou orientais que se haviam introduzido na moda romana nos primeiros séculos de nossa era Ele foi uniformemente adotado tanto no Ocidente como no Oriente o traje turco também teve origem na túnica longa A partir do século XIV os homens abandonaram a túnica longa pelo traje curto e até mesmo colante para o desespero dos moralistas e dos pregadores que denunciavam a indecência dessas modas sinais da imoralidade dos tempos De fato as pessoas respeitáveis continuaram a usar a túnica longa respeitáveis por sua idade até o início do século XVII os anciãos são representados vestindo a túnica longa ou por sua condição magistrados estadistas eclesiásticos Alguns nunca deixaram de usar o traje longo e o usam até hoje ao menos em certas ocasiões os advogados os magistrados os professores os eclesiásticos Os eclesiásticos aliás quase o abandonaram pois quando o traje curto se impôs definitivamente e quando no século XVII já se havia completamente esquecido o escândalo de sua origem a sotaina do eclesiástico tornouse muito ligada à função eclesiástica para ser um traje de bomtom Os padres tiravam a bati 12 Gabrielle Guiard Portrait de Madame Infante pour Mesdames 1788 museo de Versalhes 13 Louis XV en 1715 tenu en lisière par M me de Ventadour gravura Cabinet des Estampes pet fol E e 3e 14 Lâge viril gravura de Guérard cerca de 1700 na para se apresentar em sociedade ou mesmo diante de seu Bispo da mesma forma como os oficiais tiravam o traje militar para aparecer na corte 15 As crianças também conservaram o traje longo ao menos as de boa condição Uma miniatura dos Miracles NotreDame 16 do século XV representa uma família reunida em torno do leito da mãe que acaba de dar à luz o pai veste um traje curto com calças justas e gibão mas as três crianças usam um vestido comprido Na mesma série a criança que dá de comer ao menino Jesus usa um vestido aberto do lado Na Itália ao contrário a maioria das crianças dos artistas do quattrocento usa as calças colantes dos adultos Na França e na Alemanha parece que essa moda não foi bem aceita e que se manteve o traje longo para as crianças No início do século XVI esse hábito foi consagrado e tornouse regra geral as crianças sempre usavam o vestido comprido Algumas tapeçarias alemãs dessa época mostram crianças de quatro anos de vestido longo aberto na frente 17 Algumas gravuras francesas de Jean Leclerc 18 que têm como tema os jogos infantis mostram crianças usando por cima das calças justas o vestido abotoado na frente que se tornou assim o uniforme de sua idade As fitas chatas nas costas que no século XVII também distinguiam as crianças fossem meninos ou meninas têm a mesma origem do vestido comprido As capas e túnicas do século XVI muitas vezes tinham mangas que se podiam vestir ou deixar pendentes Na gravura de Leclerc que representa crianças jogando víspera podemos ver algumas dessas mangas presas apenas por alguns pontos As pessoas elegantes e sobretudo as mulheres elegantes gostaram do efeito dessas mangas pendentes Como não eram mais vestidas essas mangas tornaramse ornamentos sem utilidade e se atrofiaram como órgãos que deixam de funcionar perderam a cavidade interna por onde passava o braço e achatadas lembraram duas fitas largas presas atrás dos ombros As fitas das crianças dos séculos XVII e XVIII são os últimos restos das falsas mangas do século XVI Essas mangas atrofiadas também são encontradas aliás em outros trajes tanto populares como cerimoniais na túnica camponesa que os irmãos Ignorantinhos adotaram como traje religioso no início do século XVIII nos primeiros trajes propriamente militares como os dos mosqueteiros 15 Mme de Sévigné 19 de abril de 1672 16 Miracles NotreDame Westminster ed G F Warner 1885 vol I p 58 17 H Gobel Wandteppiche 1923 vol I prancha CLXXXII 18 Jean Leclerc Les TrenteSix Figures contenant tous les jeux 1587 O TRAJE DAS CRIANÇAS 77 na libré dos lacaios e finalmente no traje de pajem ou seja no traje de cerimônia das crianças e dos meninos de boa família que eram confiados a outras famílias para as quais prestavam certos serviços domésticos Esses pajens do tempo de Luís XIII usavam calças bufantes no estilo só século XVI e falsas mangas pendentes Esse traje de pajem tendia a se tornar o traje de cerimônia usado em sinal de honra e de respeito numa gravura de Lepautre 19 vêemse meninos vestidos com o traje arcaizante de pajem ajudando a missa Mas esses trajes de cerimônia eram mais raros enquanto a fita chata era encontrada nos ombros de todas as crianças meninos e meninas nas boas famílias quer fossem nobres ou burgueses Assim para distinguir a criança que antes se vestia como os adultos foram conservados para seu uso exclusivo traços dos trajes antigos que os adultos haviam abandonado algumas vezes há longo tempo Esse foi o caso do vestido ou túnica longa e das mangas falsas Foi o caso também da touca usada pelas criancinhas de cueiros no século XIII a touca ainda era o gorro masculino normal que prendia os cabelos dos homens durante o trabalho como podemos ver nos calendários de NotreDame dAmiens e outros O primeiro traje das crianças foi o traje usado por todos cerca de um século antes e que num determinado momento elas passaram a ser as únicas a envergar Evidentemente não se podia inventar do nada uma roupa para as crianças Mas sentiase a necessidade de separálas de uma forma visível através do traje Escolheuse então para elas um traje cuja tradição fora conservada em certas classes mas que ninguém mais usava A adoção de um traje peculiar à infância que se tornou geral nas classes altas a partir do fim do século XVI marca uma data muito importante na formação do sentimento da infância esse sentimento que constitui as crianças numa sociedade separada da dos adultos de um modo muito diferente dos costumes iniciatórios Não devemos esquecer a importância que o traje tinha na França antiga Muitas vezes ele representava um capital elevado Gastavase muito com roupas e quando alguém morria tinhase o trabalho de fazer o inventário dos guardaroupas como hoje o faríamos apenas com relação a casacos de peles As roupas custavam muito caro e havia tentativas de frear através de leis suntuárias o luxo do vestuário que arruinava alguns e permitia a outros dissimular seu estado social e seu nascimento Mais que em nossas sociedades contemporâneas onde isso ainda se aplica às mulheres cuja roupa é o sinal aparente e necessário da prosperidade da família da importância de uma posição social o traje representava com rigor o lugar daquele 19 Lepautre gravura Cabinet des Estampes Ed 43 fol p 11 que o vestia numa hierarquia complexa e indiscutida Cada um usava o traje de sua condição social os manuais de civilidade insistiam muito na indecência que haveria se as pessoas se vestissem de maneira diferente de como deveriam de acordo com sua idade ou seu nascimento Cada nuance social era traduzida por um signo especial no vestuário No fim do século XVI o costume decidiu que a criança agora reconhecida como uma entidade separada tivesse também seu traje particular Observamos que na origem do traje infantil havia um arcaísmo a sobrevivência da túnica longa Essa tendência ao arcaísmo subsistiu no fim do século XVIII na época de Luís XVI os meninos pequenos eram vestidos com golas no estilo Luís XIII ou Renascimento As crianças pintadas por Lancret e Boucher freqüentemente são representadas vestidas segundo a moda do século anterior Mas a partir do século XVII duas outras tendências iriam orientar a evolução do traje infantil A primeira acentuou o aspecto efeminado do menino pequeno Vimos acima que o menino à la bavette antes do vestido com gola usava o vestido e a saia das meninas Essa efeminação do menino pequeno observado já em meados do século XVI de início foi uma coisa nova apenas indicada por alguns poucos traços Por exemplo no começo a parte de cima da roupa do menino conservava as características do traje masculino Mas logo o menino pequeno recebeu a gola de rendas das meninas que era exatamente igual à das senhoras Tornouse impossível distinguir um menino de uma menina antes dos quatro ou cinco anos e esse hábito se fixou de maneira definitiva durante cerca de dois séculos Por volta de 1770 os meninos deixaram de usar o vestido com gola aos quatrocinco anos Antes dessa idade porém eles eram vestidos como meninas e isso continuaria até o fim do século XIX o hábito de efeminar os meninos só desapareceria após a Primeira Guerra Mundial e seu abandono deve ser relacionado com o abandono do espartilho das mulheres uma revolução do traje que traduz a mudança dos costumes É curioso notar também que a preocupação em distinguir a criança se tenha limitado principalmente aos meninos as meninas só foram distinguidas pelas mangas falsas abandonadas no século XVIII como se a infância separasse menos as meninas dos adultos do que os meninos A indicação fornecida pelo traje confirma os outros testemunhos da história dos costumes os meninos foram as primeiras crianças especializadas Eles começaram a freqüentar em massa os colégios já no fim do século XVI e início do XVII O ensino das meninas começou apenas na época de Fénelon e de Mme de Maintenon e só se desenvolveu tarde e lentamente Sem uma escolaridade própria as meninas eram muito cedo confundidas com as mulheres como outrora os meninos eram confundidos com os homens e ninguém pensava em tornar visível através do traje uma distinção que começava a existir concretamente para os meninos mas que ainda continuava inútil no caso das meninas Por que a fim de distinguir o menino dos homens se assimilava o primeiro às meninas que não eram distinguidas das mulheres Por que esse costume tão novo e tão surpreendente numa sociedade em que se entrava cedo na vida durou quase até nossos dias ou ao menos até o início deste século apesar das transformações dos costumes e do prolongamento do período da infância Tocamos aqui no campo ainda inexplorado da consciência que uma sociedade toma de seu comportamento com relação à idade e ao sexo até hoje só se estudou sua consciência de classe Uma outra tendência que assim como o arcaísmo e a efeminação certamente também nasceu do gosto pelo disfarce levou as crianças de família burguesa a adotar traços do traje das classes populares ou do uniforme de trabalho Aqui a criança precederia a moda masculina e usaria calças compridas já durante o reinado de Luís XVI antes da época dos sansculottes O traje da criança bem vestida da época de Luís XVI era ao mesmo tempo arcaizante gola Renascimento popular calças compridas e militar túnica e botões do uniforme militar No século XVII não existia um traje propriamente popular e tampouco havia a fortiori trajes regionais Os pobres usavam as roupas que lhes davam 20 ou que compravam em belchiors A roupa do povo era uma roupa de segundamão a comparação entre a roupa de ontem e o automóvel de hoje não é tão retórica como parece o carro herdou parte do sentido social que a roupa tinha e praticamente perdeu Logo o homem do povo se vestia segundo a moda do homem de sociedade de algumas décadas atrás nas ruas da Paris de Luís XIII ele usava o gorro de plumas do século XVI enquanto as mulheres usavam a touca que estivera na moda na mesma época Esse atraso variava de uma região para outra segundo a presteza com que a boa sociedade local seguia a moda do dia No início do século XVIII as mulheres de certas regiões como as margens do Reno por exemplo ainda usavam toucas do século XV Durante o século XVIII essa evolução se interrompeu e fixouse em conseqüência de um afastamento moral mais acentuado entre os ricos e os pobres e de uma separação física que sucedeu a uma promiscuidade milenar O TRAJE DAS CRIANÇAS 79 Nome dado aos revolucionários republicanos da Revolução Francesa N do T 20 Jeam de Bray 1663 Une distribution de vêtements H Gerson I n 50 traje regional originouse ao mesmo tempo de um gosto novo pelo regionalismo era a época das grandes histórias regionais da Bretanha da Provença etc e de um ressurgimento do interesse pelas línguas regionais que se haviam transformado em dialetos em virtude do progresso do francês e das diferenças reais dos trajes provocadas pela variação de prazos com que as modas da cidade e da corte alcançavam cada população e cada região Nos grandes subúrbios populares no fim do século XVIII os homens começaram a usar um traje mais específico as calças compridas que equivaliam então ao avental do operário do século XIX e ao macacão de hoje signos de uma condição social e de uma função É interessante notar que no século XVIII o traje do povo das grandes cidades deixou de ser a roupa indigente do século XVII o andrajo informe e anacrônico ou a roupa usada do belchior Devemos ver aí a expressão espontânea de uma particularidade coletiva algo próximo de uma tomada de consciência de classe Surge portanto um modo de vestir próprio do artesão as calças compridas As calças compridas há muito tempo eram o traje dos homens do mar Quando apareciam na comédia italiana geralmente eram usadas pelos marinheiros e pelos habitantes do litoral flamengos renanos dinamarqueses e escandinavos Estes últimos ainda as usavam no século XVII a julgar pelas coleções de trajes dessa época Os ingleses as haviam abandonado mas já as conheciam no século XII 21 As calças compridas se tornaram o uniforme das marinhas de guerra quando os Estados mais organizados definiram a vestimenta de suas tropas e de suas tripulações Daí ao que parece elas passaram ao povo dos subúrbios populares a quem já repugnava usar os andrajos dos mendigos e aos meninos pequenos de boa condição social O uniforme recémcriado foi rapidamente adotado pelas crianças burguesas primeiro nos internatos particulares que se haviam tornado mais numerosos após a expulsão dos jesuítas e que muitas vezes preparavam meninos para as academias e as carreiras militares A silhueta agradou e os adultos passaram a vestir seus meninos com um traje inspirado no uniforme militar ou naval assim se criou o tipo do pequeno marinheiro que persistiu do fim do século XVIII até nossos dias A adoção das calças compridas para as crianças foi em parte uma conseqüência desse novo gosto pelo uniforme que iria conquistar os adultos no século XIX época em que o uniforme se tornou um traje de gala e de cerimônia algo que jamais havia sido antes da Revolução Foi inspirada também sem dúvida pela necessidade de liberar a criança do incômodo que lhe impunha seu traje tradicional de lhe dar uma roupa mais desalinhada E esse desalinho daí em diante seria exibido pelo povo dos subúrbios com uma espécie de orgulho Graças às calças compridas do povo e dos marinheiros os meninos se libertaram tanto do vestido comprido fora de moda e demasiado infantil como das calças justas até os joelhos demasiado cerimoniosas Aliás sempre se havia achado divertido dar às crianças de boa família algumas características do traje popular como o barrete dos trabalhadores dos camponeses e mais tarde dos forçados que os revolucionários com seu gosto clássico batizaram de barrete frigio uma gravura de Bonnard mostranos uma criança com esse barrete 22 Em nossos dias assistimos a uma transferência de traje que apresenta algumas semelhanças com a adoção das calças compridas para os meninos no tempo de Luís XVI o macacão do trabalhador e as calças de lona azul tornaramse os blue jeans que os jovens usam com orgulho como o signo visível de sua adolescência Assim partindo do século XIV em que a criança se vestia como os adultos chegamos ao traje especializado da infância que hoje nos é familiar Já observamos que essa mudança afetou sobretudo os meninos O sentimento da infância beneficiou primeiro meninos enquanto as meninas persistiram mais tempo no modo de vida tradicional que as confundia com os adultos seremos levados a observar mais de uma vez esse atraso das mulheres em adotar as formas visíveis da civilização moderna essencialmente masculina Se nos limitarmos ao testemunho fornecido pelo traje concluiremos que a particularização da infância durante muito tempo se restringiu aos meninos O que é certo é que isso aconteceu apenas nas famílias burguesas ou nobres As crianças do povo os filhos dos camponeses e dos artesãos as crianças que brincavam nas praças das aldeias nas ruas das cidades ou nas cozinhas das casas continuaram a usar o mesmo traje dos adultos jamais são representadas usando vestido comprido ou mangas falsas Elas conservaram o antigo modo de vida que não separava as crianças dos adultos nem através do traje nem através do trabalho nem através dos jogos e brincadeiras 21 Evangeliário de Santo Edmundo Millar La Miniature Anglaise 1926 prancha XXXV 22 Cabinet des Estampes 0 a 50 pet fol 137 4 Pequena Contribuição à História dos Jogos e das Brincadeiras Graças ao diário do médico Heroard podemos imaginar como era a vida de uma criança no início do século XVII como eram suas brincadeiras e a que etapas de seu desenvolvimento físico e mental cada uma delas correspondia Embora essa criança fosse um Delfim de França o futuro Luís XIII seu caso permanece típico pois na corte de Henrique IV as crianças reais legítimas ou bastardas recebiam o mesmo tratamento que todas as outras crianças nobres não existindo ainda uma diferença absoluta entre os palácios reais e os castelos fidalgos A não ser pelo fato de nunca ter ido ao colégio freqüentado já por uma parte da nobreza o jovem Luís XIII foi educado como seus companheiros Recebeu aulas de manejo de armas e de equitação do mesmo M de Pluvinel que em sua academia formava a juventude nobre nas artes da guerra As ilustrações do manual de equitação de M de Pluvinel as belas gravuras de C de Pos mostram o jovem Luís XIII exercitandose a cavalo Na segunda metade do século XVII isso já não acontecia mais o culto monárquico separava mais cedo na realidade desde a primeira infância o pequeno príncipe dos outros mortais mesmo os de berço nobre Luís XIII nasceu a 27 de setembro de 1601 Seu médico Heroard deixounos um registro minucioso de todos os seus feitos e gestos 1 Com um ano e cinco meses Heroard registra que o menino toca violino e canta ao mesmo tempo Antes ele se contentava com os brinquedos habituais dos pequeninos como o cavalo de pau o catavento ou o pião Com um ano e meio porém já lhe colocam um violino nas mãos o violino ainda não era um instrumento nobre era a rebeca que acompanhava as danças nas bodas e nas festas das aldeias De toda forma percebese a importância do canto e da música nessa época Ainda com a mesma idade o menino joga malha Num jogo de malha o Delfim errou o lance e feriu M de Longueville Isso equivaleria a vermos hoje um inglesinho começando a jogar críquete ou golfe com um ano e meio de idade Com um ano e dez meses somos informados de que o Delfim continua a tocar seu pequeno tambor com todos os tipos de toques cada companhia tinha seu tambor e sua marcha própria Começam a lhe ensinar a falar Fazemno pronunciar as sílabas separadamente antes de dizer as palavras Nesse mesmo mês de agosto de 1603 ao ir jantar a Rainha manda buscálo e colocálo na ponta de sua mesa As gravuras e as pinturas dos séculos XVI e XVII muitas vezes representam uma criança na mesa encarapitada e bem presa numa cadeirinha alta deve ter sido de uma dessas cadeiras altas que o Delfim assistiu à refeição de sua mãe como tantas outras crianças em tantas outras famílias O menino tem apenas dois anos e eis que levado ao gabinete do Rei dança ao som do violino todos os tipos de danças Mais uma vez observamos a precocidade da música e da dança na educação dos meninos dessa época isso explica a freqüência entre as famílias de profissionais daquilo que hoje chamaríamos de criançasprodígio como o pequeno Mozart esses casos se tornariam mais raros e ao mesmo tempo pareceriam mais prodigiosos à medida que a familiaridade com a música mesmo em suas formas elementares ou bastardas se atenuou ou desapareceu O Delfim começa a falar Contar papai em lugar de Vou contar a papai Equivez em vez de écrivez Muitas vezes também ele é surrado Como se comportasse mal recusavase a co 1 Heroard Journal sur lenfance et la jeunesse de Louis XIII editado por E Soulié e E Barthélémy 2 vols 1868 mer levou uma surra depois de acalmado pediu sua comida e comeu Foi para seu quarto gritando e levou uma surra Embora se misture aos adultos se divirta dance e cante com eles o Delfim ainda brinca com brinquedos de criança Tem dois anos e sete meses quando Sully lhe dá de presente uma pequena carruagem cheia de bonecas Uma linda boneca de theutheu diz ele em seu jargão Ele gosta da companhia dos soldados Os soldados sempre se alegram em vêlo Ele conduz pequenas ações militares com seus soldados M de Marsan colocoulhe a gola alta a primeira que jamais usara e ele ficou encantado Ele brinca de ações militares com seus pequenos senhores Sabemos também que ele freqüenta o jogo da péla assim como o de malha no entanto ele ainda dorme num berço Em 19 de julho de 1604 aos dois anos e nove meses ele viu sua cama sendo feita com uma enorme alegria e foi colocado no leito pela primeira vez Ele já conhece os rudimentos de sua religião na missa no momento da elevação mostramlhe a hóstia e ele diz que é le bon Dieu o bom Deus Examinemos de passagem esta expressão le bon Dieu que hoje está sempre presente na língua dos padres e dos devotos mas que nunca é encontrada na literatura religiosa anterior ao século XIX Como podemos ver aqui no início do século XVII essa expressão certamente recente pertencia à língua das crianças ou à língua que os pais e as amas utilizavam ao falar com as crianças A expressão contaminou a língua dos adultos no século XIX e com a efeminação da religião o Deus de Jacó tornouse o bon Dieu das criancinhas O Delfim agora já sabe falar direito e vez por outra tem saídas insolentes que divertem os adultos O Rei mostrandolhe uma vara de marmelo perguntoulhe Meu filho para quem é isso Ele respondeu zangado Para vós O Rei não pôde deixar de rir Na noite de Natal de 1604 aos três anos o Delfim participa da festa e das comemorações tradicionais Antes da ceia ele viu a acha de Natal ser acesa e dançou e cantou pela chegada do Natal Ganha alguns presentes uma bola e algumas quinquilharias italianas entre as quais uma pomba mecânica brinquedos destinados tanto à Rainha quanto a ele Durante as noites de inverno quando todos ficavam dentro de casa numa época de vida ao ar livre ele brincava de cortar papel com uma tesoura A música e a dança continuam a ocupar um lugar importante em sua vida Heroard registra com uma ponta de admiração O Delfim dança todas as danças ele guarda na lembrança todos os balés que viu e nos quais não demoraria a tomar parte se é que já não havia começado a fazêlo Lembrandose de um balé dançado um ano atrás quando tinha dois anos o Delfim perguntou Por que é que o Carneirinho estava nu Ele representara o Cupido nu Ele dança a galharda a sarabanda e a velha bourrée dança popular de Auvergne Ele gosta de cantar e de tocar a mandora de Boileau canta a canção de Robin Robin vai a Tours Comprar veludo Para fazer um gorrinho Mamãe eu quero Robin Ele gosta de cantar a canção com a qual o ninavam Quem quer ouvir a canção A filha do Rei Luís Bourbon a amou tanto que no fim a engravidou Canção curiosa para ninar criancinhas pequenas Ele ia fazer quatro anos dentro de poucos dias e já sabia ao menos o nome das cordas do alaúde que era um instrumento nobre Ele toca com a ponta dos dedos nos lábios dizendo esta é a baixa Mas sua familiaridade precoce com o alaúde não o impedia de ouvir os violinos mais populares como os que animaram a dança nas bodas de um dos cozinheiros do Rei ou um tocador de gaita de foles um dos pedreiros que consertavam sua lareira Ele passava um bom tempo a ouvilo Nessa época o Delfim começa a aprender a ler Aos três anos e cinco meses ele gosta de um livro com as figuras da Bíblia sua ama lhe nomeia as letras e ele as conhece todas Ensinamlhe a seguir as quadras de Pibrac regras de etiqueta e de moralidade que as crianças tinham de aprender de cor A partir dos quatro anos começa a aprender a escrever seu mestre é um clérigo da capela do castelo chamado Dumont Ele mandou trazer sua escrivaninha para a sala de jantar para escrever sob a orientação de Dumont e disse Estou escrevendo meu exemplo e estou indo para a escola o exemplo era o modelo manuscrito que ele devia copiar Ele escreveu seu exemplo seguindo a impressão feita sobre o papel e a seguiu muito bem com grande prazer Começa a aprender palavras latinas Aos seis anos um escrevente profissional substitui o clérigo da capela Ele escreveu seu exemplo Beaugrand o escrevente do Rei mostroulhe como escrever Ele ainda brinca com bonecas Brinca com alguns brinquedinhos e com um pequeno gabinete alemão miniaturas de madeira fabricadas pelos artesãos de Nurembergue M de Loménie deulhe um pequeno fidalgo muito bem vestido com uma gola perfumada Ele o penteou e disse Vou casálo com a boneca de Madame sua irmã Ele ainda gosta de recortar papel Contamlhe histórias também Ele mandou que sua ama lhe contasse as histórias da comadre Raposa e do Mau Rico e Lázaro Deitado na cama contavamlhe as histórias de Melusina Eu lhe disse que eram fábulas e não histórias reais A observação revela uma nova preocupação com a educação já moderna As crianças não eram as únicas a ouvir essas histórias elas também eram contadas nas reuniões noturnas dos adultos Ao mesmo tempo em que brincava com bonecas esse menino de quatro a cinco anos praticava o arco jogava cartas xadrez aos seis anos e participava de jogos de adultos como o jogo de raquetes e inúmeros jogos de salão Aos três anos o menino já participava de um jogo de rimas que era comum às crianças e aos jovens Com os pajens dos aposentos do Rei mais velhos do que ele brincava de a companhia vos agrada Algumas vezes era o mestre o líder da brincadeira e quando não sabia o que devia dizer perguntava participava dessas brincadeiras como a de acender uma vela com os olhos vendados como se tivesse 15 anos Quando ele não está brincando com os pajens está brincando com os soldados Ele brincava com os soldados de diversas brincadeiras como de bater palmas e de esconder Aos seis anos joga o jogo dos ofícios e brinca de mímica jogos de salão que consistiam em adivinhar as profissões e as histórias que eram representadas por mímica Essas brincadeiras também eram brincadeiras de adolescentes e de adultos Cada vez mais o Delfim se mistura com os adultos e assiste a seus espetáculos Ele tem cinco anos Foi levado ao pátio atrás do canil em Fontainebleau para assistir a uma luta entre os bretões que trabalhavam nas obras do Rei Foi levado até o Rei no salão de baile para ver os cães lutando com os ursos e o touro Foi ao pátio coberto do jogo da péla para assistir a uma corrida de texugos E acima de tudo ele participa dos balés Aos quatro anos e meio ele vestiu uma máscara foi aos aposentos do Rei para dançar um balé e recusouse a tirar a máscara não querendo ser reconhecido Muitas vezes ele se fantasia de camareira da Picardia de pastora ou de menina ainda usava a túnica dos meninos Após a ceia assistiu à dança ao som das canções de um certo Laforest um soldadocoréografo também autor de farsas Aos cinco anos assistiu sem entusiasmo à encenação de uma farsa em que Laforest fazia o papel do marido cômico o Barão de Montglat o da mulher infiel e Indret o do namorado que a seduzia aos seis anos dançou um balé muito bem vestido de homem com um gibão e calças até os joelhos por cima de sua túnica Assistiu ao balé dos feiticeiros e diabos dançado pelos soldados de M de Marsan e criado pelo piemontês JeanBaptiste um outro soldadocoréografo Ele não dança apenas os balés ou as danças da corte que aprende com um professor assim como aprende a leitura e a escrita Participa também do que hoje chamaríamos de danças populares Aos cinco anos participa de uma que me lembra uma dança tirolesa que vi certa vez em meninos com calças de couro dançarem num café de Innsbruck os pajens do Rei dançaram uma branle dando pontapés nos traseiros uns dos outros ele também dançou e fez como os outros Noutra ocasião ele estava fantasiado de menina para uma representação Terminada a farsa tirou o vestido e dançou chutando o traseiro de seus vizinhos Ele apreciava essa dança Finalmente unese aos adultos nas festas tradicionais do Natal de Reis de São João é ele quem acende a fogueira de São João no pátio do castelo de SaintGermain Na noite de Reis ele foi rei pela primeira vez Todos gritavam o rei bebe A parte de Deus era posta de lado aquele que a comesse teria de pagar uma prenda Foi levado aos aposentos da Rainha de onde viu o mastro de maio ser erguido As coisas mudam quando ele se aproxima de seu sétimo aniversário abandona o traje da infância e sua educação é entregue então aos cuidados dos homens ele deixa Mamangas Mme de Montglas e passa à responsabilidade de M de Soubise Tentase então fazêlo abandonar os brinquedos da primeira infância essencialmente as brincadeiras de bonecas Não deveis mais brincar com esses brinquedinhos os brinquedos alemães nem brincar de carreteiro agora sois um menino grande não sois mais criança Ele começa a aprender a montar a cavalo a atirar e a caçar Joga jogos de azar Ele participou de uma rifa e ganhou uma turqueza Tudo indica que a idade de sete anos marcava uma etapa de certa importância era a idade geralmente fixada pela literatura moralista e pedagógica do século XVII para a criança entrar na escola ou começar a trabalhar2 Mas não devemos exagerar sua importância Pois embora não brinque mais ou não deva mais brincar com bonecas o Delfim continua a levar a mesma vida de antes Ainda é surrado e seus divertimentos quase não se alteram Ele vai cada vez mais ao teatro chegando em pouco tempo a ir quase todos os dias uma prova da importância da comédia da farsa e do balé nos freqüentes espetáculos de interior ou ao ar livre de nossos ancestrais Ele foi à grande galeria para ver o Rei num torneio de argolinhas Gosta de ouvir os maus contos de La Clavette e de outros Jogou cara ou coroa em seu gabinete com pequenos fidalgos como o Rei com três dados Brincou de esconder com um tenente da cavalaria ligeira Foi assistir a um jogo da péla e de lá foi à grande galeria assistir a um torneio de argolinhas Fantasiouse e dançou o Pantalon Ele agora tem mais de nove anos Após a ceia foi aos aposentos da Rainha brincou de cabracega e fez com que a Rainha as princesas e as damas brincassem também Com um pouco mais de 13 anos ainda brinca de esconder Um pouco mais de bonecas e de brinquedos alemães antes dos sete anos um pouco mais de caça cavalos armas e talvez teatro após 2 Cf infra III parte cap 4 essa idade a mudança se faz insensivelmente nessa longa sequência de divertimentos que a criança toma emprestada dos adultos ou divide com eles Aos dois anos Luís XIII começa a jogar malha e péla aos quatro atira com o arco eram jogos de exercício que todos praticavam Mme de Sévigné por exemplo felicitarria seu genro por sua habilidade na malha O romancista e historiador Sorel escreveria um tratado sobre os jogos de salão destinado aos adultos Mas aos três anos Luís XIII participava de um jogo de rimas e aos seis jogava o jogo dos ofícios e brincava de mímica brincadeiras estas que ocupavam um lugar importante na Maison des Jeux de Sorel Aos cinco anos ele joga cartas Aos oito ganha um prêmio numa rifá jogo de azar em que as fortunas costumavam trocar de mãos O mesmo se dá com os espetáculos musicais ou dramáticos aos três anos Luís XIII dança a galharda a sarabanda a velha bourrée e desempenha papéis nos balés da corte Aos cinco anos assiste às farsas e aos sete às comédias Canta toca violino e alaúde Está na primeira fila dos espectadores que assistem a uma luta a um torneio de argolinhas a uma briga de ursos ou de touros ou a um acrobata na corda bamba Enfim participa das grandes festividades coletivas que eram as festas religiosas e sazonais o Natal a festa de maio São João Parece portanto que no início do século XVII não existia uma separação tão rigorosa como hoje entre as brincadeiras e os jogos reservados às crianças e as brincadeiras e os jogos dos adultos Os mesmos jogos eram comuns a ambos No início do século XVII essa polivalência não se estendia mais às crianças muito pequeninas Conhecemos bem suas brincadeiras pois a partir do século XV quando os putti surgiram na iconografia os artistas multiplicaram as representações de criancinhas brincando Reconhecemos nessas pinturas o cavalo de pau o catavento o pássaro preso por um cordão e às vezes embora mais raramente bonecas É um tanto ou quanto evidente que esses brinquedos eram reservados aos pequenininhos No entanto podemos nos perguntar se tinha sempre sido assim e se esses brinquedos não haviam pertencido antes ao mundo dos adultos Alguns deles nasceram do espírito de emulação das crianças que as leva a imitar as atitudes dos adultos reduzindoas à sua escala foi o caso do cavalo de pau numa época em que o cavalo era o principal meio de transporte e de tração Da mesma forma as pás que giravam na ponta de uma vareta só podiam ser a imitação feita pelas crianças de uma técnica que contrariamente a do cavalo não era antiga a técnica dos moinhos de vento introduzida na Idade Média O mesmo reflexo anima nossas crianças de hoje quando elas imitam um caminhão ou um carro Mas enquanto os moinhos de vento há muito desapareceram de nossos campos os cataventos continuam a ser vendidos nas lojas de brinquedos nos quiosques dos jardins públicos ou nas feiras As crianças constituem as sociedades humanas mais conservadoras Outras brincadeiras parecem ter tido uma outra origem que não o desejo de imitar os adultos Assim muitas vezes a criança é representada brincando com um pássaro Luís XIII possuía uma pega da qual gostava muito O próprio leitor talvez se lembre de suas tentativas de domesticar um pássaro ferido na infância Nessas cenas de jogos o pássaro em geral está amarrado a uma correntinha que a criança segura Às vezes ele é uma imitação de madeira Em todo o caso a julgar pela iconografia o pássaro amarrado parece ter sido um dos brinquedos mais comuns O historiador da religião grega Nilsson informanos que na Grécia antiga como aliás na Grécia moderna era costume nos primeiros dias de março os meninos fazerem uma andorinha de madeira enfeitada com flores que girava em torno de um eixo Eles a levavam de casa em casa e recebiam presentes o pássaro ou sua reprodução não eram um brinquedo individual e sim um elemento de uma festa coletiva e sazonal da qual a juventude participava desempenhando o papel que sua classe de idade lhe atribuía Reencontraremos mais adiante esse tipo de festa Aquilo que mais tarde se tornaria um brinquedo individual sem relação com a comunidade ou com o calendário destituído de qualquer conteúdo social parece ter sido ligado no princípio a cerimônias tradicionais que misturavam as crianças e os jovens aliás mal distinguidos com os adultos O mesmo Nilsson mostra como o balanço tão frequente na iconografia dos jogos e brincadeiras ainda no século XVIII figurava entre os ritos de uma das festas previstas pelo calendário as Aiora a festa da juventude Os meninos pulavam sobre odres cheios de vinho e as meninas eram empurradas em balanços Esta última cena pode ser vista em vasos pintados e Nilsson a interpreta como um rito da fecundidade Existia uma relação estreita entre a cerimônia religiosa comunitária e a brincadeira que compunha seu rito essencial Com o tempo a brincadeira se libertou de seu simbolismo religioso e perdeu seu caráter comunitário tornandose ao mesmo tempo profana e individual Nesse processo ela foi cada vez mais reservada às crianças cujo repertório de brincadeiras surge então como o repositório de manifestações coletivas abandonadas pela sociedade dos adultos e dessacralizadas O problema da boneca e dos brinquedosminiaturas levanos a hipóteses semelhantes Os historiadores dos brinquedos e os colecio3 Nilsson La Religion populaire dans La Grèce antique nadores de bonecas e de brinquedosminiaturas sempre tiveram muita dificuldade em distinguir a boneca brinquedo de criança de todas as outras imagens e estatuetas que as escavações nos restituiem em quantidades semiindustriais e que quase sempre tinham uma significação religiosa objetos de culto doméstico ou funerário exvotos dos devotos de uma peregrinação etc Quantas vezes nos apresentam como brinquedos as reduções de objetos familiares depositados nos túmulos Não pretendo concluir que as crianças pequenas de outrora não brincavam com bonecas ou com réplicas dos objetos dos adultos Mas elas não eram as únicas a se servir dessas réplicas Aquilo que na idade moderna se tornaria seu monopólio ainda era partilhado na Antigüidade ao menos com os mortos Essa ambigüidade da boneca e da réplica persistiria durante a Idade Média por mais tempo ainda no campo a boneca era também o perigoso instrumento do feiticeiro e do bruxo Esse gosto em representar de forma reduzida as coisas e as pessoas da vida quotidiana hoje reservado às criancinhas resultou numa arte e num artesanato populares destinados tanto à satisfação dos adultos como à distração das crianças Os famosos presépios napolitanos são uma das manifestações dessa arte da ilusão Os museus sobretudo alemães e suíços possuem conjuntos complicados de casas interiores e mobiliários que reproduzem em escala reduzida todos os detalhes dos objetos familiares Seriam realmente casas de bonecas essas pequenas obrasprimas de engenho e complicação É verdade que essa arte popular dos adultos também era apreciada pelas crianças eram muito procurados na França os brinquedos alemães ou as quinquilharias italianas Enquanto os objetos em miniatura se tornavam o monopólio das crianças uma mesma palavra designava na França essa indústria quer seus produtos se destinassem às crianças ou aos adultos bimbeloterie O bibelô antigo era também um brinquedo A evolução da linguagem afastouo de seu sentido infantil e popular enquanto a evolução do sentimento ao contrário restringia às crianças o uso dos pequenos objetos das réplicas No século XIX o bibelô tornouse um objeto de salão de vitrina mas continuou a ser a redução de um objeto familiar uma cadeirinha um movelzinho ou uma louça minúscula que jamais se destinaram às brincadeiras de crianças Nesse gosto pelo bibelô devemos reconhecer uma sobrevivência burguesa da arte popular dos presépios italianos ou das casas alemãs A sociedade do Ancien Régime durante muito tempo permaneceu fiel a esses brinquedinhos que hoje qualificaríamos de bobagens de crianças sem dúvida porque caíram definitivamente no domínio da infância Ainda em 1747 Barbier escreve Inventaramse em Paris uns brinquedos chamados fantoches Esses bonequinhos representam Arlequim Scaramouche a comédia italiana ou então padeiros os ofícios pastores e pastoras o gosto pelos disfarces rústicos Essas bobagens divertiram e dominaram Paris inteira de tal forma que não se pode ir a nenhuma casa sem encontrar alguns pendurados nas lareiras São dados de presente a todas as mulheres e meninas e a loucura chegou a tal ponto que no início deste ano todas as lojas se encheram deles para vendêlos como presentes A duquesa de Chartres pagou 1500 libras por um boneco pintado por Boucher O excelente bibliófilo Jacob que cita o trecho acima reconhece que em sua época ninguém teria sonhado com tais infantilidades As pessoas de sociedade muito ocupadas o que diria ele hoje não se divertem mais como naquele bom tempo de ócio que viu florescer a moda dos bilboquês e dos fantoches hoje deixamos os brinquedos para as crianças O teatro de marionetes parece ter sido uma outra manifestação da mesma arte popular da ilusão em miniatura que produziu as quinquilharias alemãs e os presépios napolitanos Ele teve aliás a mesma evolução o Guignol lionês do início do século XIX era uma personagem do teatro popular porém adulto Hoje Guignol tornouse o nome do teatro de marionetes reservado às crianças Sem dúvida essa ambigüidade persistente das brincadeiras infantis explica também por que do século XVI até o início do XIX a boneca serviu às mulheres elegantes como manequim de moda Em 1571 a duquesa de Lorraine querendo dar um presente a uma amiga que havia dado à luz encomenda bonecas não muito grandes e em número de até quatro ou seis e das mais bem vestidas que possais encontrar para enviálas à filha da Duquesa de Bavière que acabou de nascer O presente se destinava à mãe mas em nome da criança A maioria das bonecas de coleções não são brinquedos de crianças objetos geralmente grosseiros e mal tratados e sim bonecas de moda As bonecas de moda desapareceriam e seriam substituídas pela gravura de moda graças especialmente à litografia Existe portanto em torno dos brinquedos da primeira infância e de suas origens uma certa margem de ambigüidade Essa ambiguidade começava a se dissipar na época em que me coloquei no início deste capítulo ou seja em torno dos anos 1600 a especialização infantil dos brinquedos já estava então consumada com algumas diferenças de detalhe com relação ao nosso uso atual assim como observamos a propósito de Luís XIII a boneca não se destinava apenas às meninas Os meninos também brincavam com elas Dentro dos limi tes da primeira infância a discriminação moderna entre meninas e meninos era menos nítida ambos os sexos usavam o mesmo traje o mesmo vestido É possível que exista uma relação entre a especialização infantil dos brinquedos e a importância da primeira infância no sentimento revelado pela iconografia e pelo traje a partir do fim da Idade Média A infância tornavase o repositório dos costumes abandonados pelos adultos Por volta de 1600 a especialização das brincadeiras atingia apenas a primeira infância depois dos três ou quatro anos ela se atenuava e desaparecia A partir dessa idade a criança jogava os mesmos jogos e participava das mesmas brincadeiras dos adultos quer entre crianças quer misturada aos adultos Sabemos disso graças principalmente ao testemunho de uma abundante iconografia pois da Idade Média até o século XVIII tornouse comum representar cenas de jogos um índice do lugar ocupado pelo divertimento na vida social do Ancien Régime Já vimos que Luís XIII desde seus primeiros anos ao mesmo tempo que brincava com bonecas jogava péla e malha jogos que hoje nos parecem ser muito mais jogos de adolescentes e de adultos Numa gravura de Arnoult do século XVII vemos crianças jogando boliche São crianças bem nascidas a julgar pelas mangas falsas da menina Não se sentia nenhuma repugnácia em deixar as crianças jogar assim que se tornavam capazes jogos de cartas e de azar e a dinheiro Uma das gravuras de Stella dedicada aos jogos dos putti descreve com simpatia a infelicidade de um deles que havia perdido tudo Os pintores caravagescos do século XVII muitas vezes retrataram grupos de soldados jogando excitadamente em tavernas mal afamadas ao lado de velhos soldados vêemse meninos muito jovens de 12 anos talvez e que não parecem ser os menos animados Uma tela de S Bourdon representa um grupo de mendigos em torno de duas crianças observandoas jogar dados O tema das crianças jogando a dinheiro jogos de azar ainda não chocava a opinião pública pois é encontrado também em cenas que mostram não mais velhos soldados ou mendigos mas personagens sérias como as de Le Nain Inversamente os adultos participavam de jogos e brincadeiras que hoje reservamos às crianças Um marfim do século XIV represent a uma brincadeira de adultos um rapaz sentado no chão tenta pegar os homens e as mulheres que o empurram O livro de horas de Adelaide de Savoie do fim do século XV contém um calendário que é ilustrado principalmente com cenas de jogos e de jogos que não eram de cavalaria No início os calendários representavam cenas de ofícios exceto no mês de maio reservado a uma corte de amor Os jogos foram introduzidos e passaram a ocupar um lugar cada vez maior Em geral eram jogos de cavalaria como a caça mas havia também jogos populares Uma dessas ilustrações mostra a seguinte brincadeira uma pessoa faz o papel da vela no meio de um círculo de casais em que cada dama fica atrás de seu cavaleiro e o segura pela cintura Numa outra passagem do mesmo calendário a população da aldeia faz uma guerra de bolas de neve homens e mulheres grandes e pequenos Numa tapeçaria do início do século XVI alguns camponeses e fidalgos estes últimos mais ou menos vestidos de pastores brincam de uma espécie de cabracega não aparecem crianças Vários quadros holandeses da segunda metade do século XVII representam também pessoas brincando dessa espécie de cabracega Num deles aparecem algumas crianças mas elas estão misturadas com os adultos de todas as idades uma mulher com a cabeça escondida no avental estende a mão aberta nas costas Luís XIII e sua mãe brincavam de escondeesconde Brincavase de cabracega na casa da Grande Mademoiselle no Hôtel de Rambouillet Uma gravura de Lepeautre mostra que os camponeses adultos também gostavam dessa brincadeira Logo podemos compreender o comentário que o estudo da iconografia dos jogos inspirou ao historiador contemporâneo Van Marle Quanto aos divertimentos dos adultos não se pode dizer realmente que fossem menos infantis do que as diversões das crianças É claro que não pois se eram os mesmos As crianças também participavam no lugar que lhes cabia entre os outros grupos de idade das festas sazonais que reuniam regularmente toda a coletividade Para nós é difícil imaginar a importância dos jogos e das festas na sociedade antiga hoje tanto para o homem da cidade como para o do campo existe apenas uma margem muito 10 Chantilly 11 Victoria and Albert Museum Londres 12 Berndt nº 509 Cornelis de Man nº 544 Molinar 13 Fournier op cit 14 Lepeautre gravura Cabinet des Estampes Ed 73 infº p 104 15 Van Marle op cit vol I p 71 estreita entre uma atividade profissional laboriosa e hipertrofiada e uma vocação familiar imperiosa e exclusiva Toda a literatura política e social reflexo da opinião contemporânea trata das condições de vida e de trabalho Um sindicalismo que protege os salários reais e seguros que reduzem o risco da doença e do desemprego eis as principais conquistas populares ao menos as mais aparentes na opinião pública na literatura e no debate político Mesmo as aposentadorias tornamse cada vez menos possibilidades de repouso são antes privilégios que permitem uma renda mais gorda O divertimento tornado quase vergonhoso não é mais admitido a não ser em raros intervalos quase clandestinos só se impõe como dado dos costumes uma vez por ano durante o imenso êxodo do mês de agosto 16 que leva às praias e às montanhas à beira dágua ao ar livre e ao sol uma massa cada vez mais numerosa mais popular e ao mesmo tempo mais motorizada Na sociedade antiga o trabalho não ocupava tanto tempo do dia nem tinha tanta importância na opinião comum não tinha o valor existencial que lhe atribuímos há pouco mais de um século Mal podemos dizer que tivesse o mesmo sentido Por outro lado os jogos e os divertimentos estendiamse muito além dos momentos furtivos que lhes dedicamos formavam um dos principais meios de que dispunha uma sociedade para estreitar seus laços coletivos para se sentir unida Isso se aplicava a quase todos os jogos mas esse papel social aparecia melhor nas grandes festas sazonais e tradicionais Elas se realizavam em datas fixas do calendário e seus programas seguiam em geral regras tradicionais Essas festas só foram estudadas por especialistas em folclore ou em tradições populares que as situam num meio quase que exclusivamente rural Mas ao contrário elas envolviam toda a sociedade de cuja vitalidade eram a manifestação periódica Ora as crianças as crianças e os jovens participavam delas em pé de igualdade com todos os outros membros da sociedade e quase sempre desempenhavam um papel que lhes era reservado pela tradição Não pretendo escrever aqui é claro uma história dessas festas um assunto vasto e certamente de grande interesse para a história social mas alguns exemplos bastarão para mostrar o lugar que nelas ocupavam as crianças A documentação aliás é rica mesmo se recorrermos pouco às descrições predominantemente rurais da literatura folclórica uma abundante iconografia inúmeras pinturas burguesas e urbanas são suficientes para comprovar a importância dessas festas na memória e na sensibilidade coletivas Os 16 O mês de férias coletivas na Europa N do T artistas tiveram o cuidado de pintálas e de conservar sua lembrança por mais tempo do que o breve momento de sua duração Uma das cenas favoritas dos artistas e de sua clientela era a festa de Reis provavelmente a maior festa do ano Na Espanha ela conservou esse primado que perdeu na França para o Natal Quando Mme de Sévigné que estava então em seu castelo de Les Rochers soube do nascimento de um neto quis partilhar sua alegria com a criadagem e para mostrar a Mme de Grignan que havia feito tudo como devia escreveulhe Dei de beber e de comer à criadagem como numa noite de Reis 17 Uma miniatura do livro de horas de Adelaide de Savoie 18 representa o primeiro episódio da festa A cena data do fim do século XV mas esses ritos permaneceram inalterados por longo tempo Homens e mulheres parentes e amigos estão reunidos em volta de uma mesa Um dos convivas segura o bolo de Reis verticalmente Uma criança de cinco a sete anos está escondida debaixo da mesa O artista colocoulhe na mão uma faixa de pergaminho com uma inscrição que começa por um Ph Desse modo foi fixado o momento em que segundo a tradição era uma criança quem distribuía o bolo de Reis Isso se passava segundo um cerimonial determinado a criança escondiase sob a mesa um dos convivas cortava um pedaço do bolo e chamava a criança Phaebe Domine donde as letras Ph da miniatura e a criança respondia dizendo o nome do conviva que devia ser servido e assim por diante Um dos pedaços era reservado para os pobres ou seja para Deus e aquele que o comesse deveria dar uma esmola Quando a festa de Reis se laicizou essa esmola se tornou na obrigação do Rei de pagar uma prenda ou de dar um outro bolo não mais aos pobres mas aos outros convivas Mas isso não importa aqui Observemos apenas o papel que a tradição confiava a uma criança pequena no ritual da festa de Reis O procedimento adotado no sorteio das loterias oficiais do século XVII sem dúvida se inspirou nesse costume o frontispício de um livro 19 intitulado Critique sur la loterie mostra uma criança tirando a sorte tradição que se conservou até nossos dias Sorteiase a loteria como se sorteava o bolo de Reis Esse papel desempenhado pela criança implicava sua presença no meio dos adultos durante as longas horas da noite de Reis O segundo episódio da festa aliás seu ponto culminante era o brinde erguido por todos os convivas àquele que havia encontrado 17 Mme de Sévigné Lettres 1671 18 Cf nota no 10 deste capítulo 19 Reproduzido por H D Allemagne Récréations et passetemps 1906 p 107 uma fava em seu pedaço de bolo e que assim se tornava rei sendo devidamente coroado O rei bebe As pinturas flamengas e holandesas retrataram particularmente esse tema Conhecemos a famosa tela do Louvre de Jordaens mas o mesmo assunto é encontrado em numerosos outros pintores setentrionais Por exemplo no quadro de Metsu 20 de um realismo menos burlesco e mais verdadeiro Ele nos dá bem a idéia dessa reunião em torno do Rei de pessoas de todas as idades e certamente de todas as condições os criados misturandose aos senhores As pessoas estão em torno de uma mesa O Rei um velho bebe Uma criança o saúda tirando o chapéu sem dúvida fora ela quem há poucos momentos sorteara os pedaços de bolo segundo a tradição Uma outra criança ainda muito pequena para desempenhar esse papel está sentada numa dessas cadeiras altas fechadas que continuavam a ser muito usadas Ela ainda não sabe ficar de pé sozinha mas é preciso que também participe da festa Um dos convivas está fantasiado de bufão No século XVII adoravamse as fantasias e as mais grotescas eram comuns nessa ocasião mas o traje de bufão aparece em outras representações dessa cena tão familiar e parece óbvio que fazia parte do cerimonial o bufão era o bobo do Rei Podia acontecer também que uma das crianças encontrasse a fava Assim Heroard registrava a 5 de janeiro de 1607 a festa era celebrada na noite da Epifania que o futuro Luís XIII então com seis anos foi rei pela primeira vez Uma tela de Steen de 1668 21 celebra a coroação do filho mais moço do pintor O menino usando uma coroa de papel está sentado num banco como se fosse um trono e uma velha lhe dá ternamente de beber um copo de vinho A festa não parava aí Começava então o terceiro episódio que devia durar até de manhã Alguns convivas usavam fantasias alguns traziam também sobre o chapéu um cartaz que especificava seu papel na comédia O bobo encabeçava uma pequena expedição composta de alguns mascarados um músico em geral violinista e mais uma vez uma criança O costume impunha a essa criança uma função bem definida ela devia levar a vela dos reis Na Holanda parece que a vela era preta Na França tinha várias cores Mme de Sévigné dizia a respeito de uma mulher que ela estava vestida com tantas cores como a vela dos reis Sob a chefia do bufão o grupo dos cantores da estrela assim eram chamados na França se espalhava pela vizinhança pedindo combustível e comida ou desafiando as pessoas para um jogo de dados Uma gravura de Mazot de 1641 22 mostra o cortejo dos cantores da estrela dois homens uma mulher tocando guitarra e uma criança levando a vela dos reis Graças a um leque pintado a guache do início do século XVIII 23 podemos acompanhar esse cortejo bufão até o momento de sua acolhida numa casa vizinha A sala da casa é cortada verticalmente à maneira dos cenários de mistérios ou das pinturas do século XV a fim de deixar ver ao mesmo tempo o interior da sala e a rua atrás da porta Na sala as pessoas bebem à saúde do Rei e coroam a Rainha Na rua um grupo mascarado bate à porta que lhes será aberta Constatamos pois ao longo de toda a festa a participação ativa das crianças nas cerimônias tradicionais Essa participação também é comprovada na noite de Natal Heroard nos diz que Luís XIII aos três anos viu a acha de Natal ser acesa e dançou e cantou pela chegada do Natal Talvez tenha sido ele o encarregado de lançar o sal e o vinho sobre a acha segundo o ritual que nos é descrito no final do século XVI pelo suíçoalemão Thomas Platter quando fazia seus estudos de medicina em Montpellier A cena se passa em Uzès 24 Uma grande acha é colocada sobre os cães da lareira Quando o fogo pega as pessoas se aproximam A criança mais moça segura com a mão direita um copo de vinho migalhas de pão e uma pitada de sal e com a esquerda uma vela acesa As pessoas tiram os chapéus e a criança começa a invocar o sinal da cruz Em nome do Pai e joga uma pitada de sal numa extremidade da lareira Em nome do Filho na outra extremidade e assim por diante Os carvões que segundo se acreditava possuíam propriedades benéficas eram conservados A criança desempenhava aqui mais uma vez um dos papéis essenciais previstos pela tradição no meio da coletividade reunida Esse papel aliás também existia em ocasiões menos excepcionais mas que tinham então o mesmo caráter social as refeições de família O costume rezava que as graças fossem ditas por uma das crianças mais novas e que o serviço da mesa fosse feito pela totalidade das crianças presentes elas serviam a bebida trocavam os pratos cortavam a carne Teremos oportunidade de examinar mais de perto o sentido desses costumes quando estudarmos a estrutura familiar 25 Observem 20 Metsu A Festa de Reis reproduzida em Berndt nº 515 21 Steen Kassel reproduzido em F SchmidtDegener e Van Gelder Jan Steen 1928 p 82 22 Gravura de F Mazot La Nuit 23 Exposição de leques pintados Galerie Charpentier Paris 1954 nº 70 proveniente da Coleção Duchesne 24 Thomas Platter à Montpellier 15951599 p 346 25 Cf infra III parte cap 2 aqui apenas como era comum do século XIV ao XVII o hábito de confiar às crianças uma função especial no cerimonial que acompanhava as reuniões familiares e sociais tanto ordinárias como extraordinárias Outras festas embora despertassem o interesse de toda a coletividade reservavam à juventude o monopólio dos papéis ativos enquanto os outros grupos de idade assistiam como espectadores Essas festas já tinham a aparência de festas da infância ou da juventude já vimos que a fronteira entre esses dois estados hoje tão distintos era incerta e mal percebida Na Idade Média 26 no dia dos SantosInocentes as crianças ocupavam a igreja uma delas era eleita bispo pelos companheiros e presidia à cerimônia que terminava por uma procissão uma coleta e um banquete A tradição ainda viva no século XVI rezava que na manhã desse dia os jovens surpreendessem seus amigos na cama para surrálos ou como se dizia para lhes dar os inocentes A terçafeira gorda aparentemente era a festa dos meninos de escola e da juventude Fitz Stephen descreve uma terçafeira gorda do século XII em Londres a propósito da juventude de seu herói Thomas Becket 27 então aluno da escola da catedral de São Paulo Todas as crianças da escola traziam seus galos de briga para seu mestre As brigas de galo ainda hoje populares nos locais em que subsistem como em Flandres ou na América Latina mais destinadas aos adultos durante a Idade Média estavam ligadas à juventude e até mesmo à escola Um texto do século XV de Dieppe que enumera os pagamentos devidos a um balseiro o confirma O mestre que mantêm a escola de Dieppe deverá pagar um galo quando as lutas tiverem lugar na escola ou na cidade e todos os outros meninos da escola de Dieppe serão transportados por esse preço 28 Em Londres segundo Fitz Stephen a terçafeira gorda começava com brigas de galo que duravam toda a manhã À tarde todos os jovens da cidade saíam para os arredores para jogar o famoso jogo de bola Os adultos os parentes e as autoridades vinham a cavalo assistir aos jogos dos jovens e voltavam a ser jovens como eles O jogo de bola reunia várias comunidades numa ação coletiva opondo ora duas paróquias ora dois grupos de idade O jogo de bola é um jogo que se costuma realizar no dia de Natal entre os companheiros da localidade de Cairac em Auvergne e em outros lugares também é claro Este jogo se diversifica e se divide de tal maneira que os homens casados ficam de um lado e os não casados do outro eles levam a dita bola de um lugar para outro e disputamna uns aos outros a fim de ganhar o prêmio e quem joga melhor recebe o prêmio do dito dia 29 Ainda no século XVI em Avignon o carnaval era organizado e animado pelo abade da jurisdição presidente da confraria dos notários e dos procuradores 30 esses líderes da juventude eram em geral ao menos no Sul da França chefes de prazer segundo a expressão de um erudito moderno e usavam os títulos de príncipe de amor rei da jurisdição abade ou capitão da juventude abade dos companheiros ou das crianças da cidade Em Avignon 31 no dia de carnaval os estudantes tinham o direito de surrar os judeus e as prostitutas a menos que estes pagassem um resgate A história da universidade de Avignon nos diz que a 20 de janeiro de 1660 o vicelegado fixou esse resgate em um escudo por prostituta As grandes festas da juventude eram as de maio e novembro Sabemos por Heroard que em criança Luís XIII ia ao balcão da Rainha para ver erguer o mastro de maio A festa de maio vem logo após a festa de Reis no fervor dos artistas que gostavam de evocála como uma das mais populares Ela inspirou inúmeras pinturas gravuras e tapeçarias A Varagnac 32 reconheceu o tema na Primavera de Boticelli da Galeria dos Ofícios Em outras obras as cerimônias tradicionais são representadas com uma precisão mais realista Uma tapeçaria de 1642 33 nos permite imaginar o aspecto de uma aldeia ou de um burgo num 1º de maio do século XVII A cena se passa numa rua Um casal já maduro e um velho saíram de uma das casas e esperam na soleira da porta Preparamse para receber um grupo de mocas que vem em sua direção A moça da frente traz uma cesta cheia de frutas e de doces Esse grupo de jovens vai assim de porta em porta e todos lhes dão alguma comida em troca de seus bons votos a coleta a domicílio é um dos elementos essenciais dessas festas da juventude No primeiro plano alguns meninos pequenos ainda vestidos com túnicas como as meninas usam coroas de flores e folhas que suas mães lhes prepararam Em outras pinturas a procissão dos jovens coletores se organiza em torno de um menino que carrega a árvore de maio 29 J J Jusserand Les Sports et Jeux dexercice dans lancienne France 1901 30 Paul Achard Les Chefs des Plaisirs in Annuaire administratif du département du Vaucluse 1869 31 Laval Droit de barbe et batacule Université dAvignon pp 445 32 A Varagnac Civilisations traditionnelles 1948 33 As Estações Florença H Göbbel Wandteppiche 1923 vol II p 409 26 T L Jarman Landmarks in the History of Education 1951 27 Ibid 28 Charles de Robillard de Beaurepaire Recherches sur linstruction publique dans le diocèse de Rouen avant 1789 1872 3 vols vol II p 284 é o caso de uma pintura holandesa de 1700 34 O bando de crianças percorre a aldeia atrás da árvore de maio e as crianças menores usam coroas de flores Os adultos estão nas soleiras das portas prontos para receber o cortejo das crianças A árvore de maio algumas vezes é representada simbolicamente por uma vara coroada de folhas e de flores 35 Mas a árvore de maio não nos interessa aqui Ressaltemos apenas a coleta feita pelo grupo de jovens junto aos adultos e o costume de coroar as crianças com flores que deve ser associado à idéia de renascimento da vegetação simbolizado também pela árvore que era levada pelas ruas e depois plantada 36 Essas coroas de flores talvez se tenham tornado uma brincadeira comum das crianças de toda forma é certo que se tornaram o atributo de sua idade nas representações dos artistas Nos retratos da época individuais ou familiares as crianças usam ou trançam coroas de flores ou de folhas como as duas meninas de Nicolas Maes do museu de Toulouse 37 a primeira coloca uma coroa de folhas com uma das mãos e com a outra pega flores numa cesta que sua irmã lhe estende Não podemos deixar de relacionar as cerimônias de maio com essa convenção que associava a infância à vegetação Um outro grupo de festas da infância e da juventude se situava no início de novembro Nos dias 4 e 8 de novembro escreve o estudante Platter no fim do século XVI 38 realizouse a mascarada dos querubins Eu também me mascariei e fui à casa do Dr Sapota onde havia um baile Tratavase de uma mascarada de jovens e não apenas de crianças Essa festa desapareceu completamente de nossos costumes banida pela proximidade do dia de Finados A opinião comum não admitiu mais a proximidade de uma festa alegre da infância fantasiada com um dia tão solene No entanto essa festa sobreviveu na América anglosaxônia com o nome de Halloween Um pouco mais tarde a festa de São Martim era a ocasião de demonstrações restritas aos jovens e mais precisamente talvez aos escolares Amanhã é o dia de São Martim lemos num diálogo escolar do início do século XVI que descrevia a vida das escolas em Leipzig 39 Nós os escolares fazemos uma coleta farta nesse dia é costume os alunos pobres irem de porta em porta pedir dinheiro Reencontramos 34 Brokenburgh 16501702 reproduzido em Berndt n 131 35 Tapeçaria de Tournai H Göbbel op cit vol II p 24 36 Ver também I Mariette Cabinet des Estampes Ed 82 inf e Mérian Cabinet des Estampes Ec 11 inf p 58 37 Musée des Augustins Toulouse 38 Félix et Thomas Platter O Jovem à Montpellier 1892 p 142 39 L Massebieau Les Colloques scolaires 1878 aqui as coletas a domicílio que observamos por ocasião da festa de maio prática específica das festas da juventude ora gesto de acolhida e boasvindas ora mendicância real Estes parecem ser os últimos vestígios de uma estrutura muito antiga em que a sociedade era dividida em classes de idade dessa estrutura restou apenas o costume de reservar à juventude um papel essencial em algumas grandes celebrações coletivas É de notar além disso que o cerimonial dessas celebrações distinguia mal as crianças dos jovens essa sobrevivência de um tempo em que eles eram confundidos não correspondia mais inteiramente à realidade dos costumes como o faz crer o hábito criado no século XVII de enfeitar apenas as criancinhas pequenas os meninos que ainda usavam túnicas com as flores e as folhas que nos calendários da Idade Média adornavam os adolescentes que haviam chegado à idade do amor Qualquer que fosse o papel atribuído à infância e à juventude primordial na festa de maio ocasional na festa de Reis ele obedecia sempre a um protocolo tradicional e correspondia às regras de um jogo coletivo que mobilizava todo o grupo social e todas as classes de idade Outras circunstâncias provocavam também a mesma participação dos diferentes grupos de idades numa celebração comum Assim do século XV ao XVIII e na Alemanha até o início do século XIX cenas de gênero pintadas gravadas ou tecidas representavam a reunião familiar em que as crianças e os pais formavam uma pequena orquestra de câmara acompanhando um cantor Quase sempre a cena se passava por ocasião de uma refeição Em alguns casos a mesa havia sido tirada Em outros o interlúdio musical realizavase durante a refeição como na tela holandesa de Lamen pintada por volta de 1640 40 as pessoas estão sentadas à mesa mas o serviço foi interrompido o menino encarregado do serviço que traz um prato e uma jarra de vinho está parado um dos convivas de pé e encostado na lareira com um copo na mão canta sem dúvida uma canção sobre a bebida enquanto um outro pega seu alaúde para acompanhálo Hoje em dia não temos mais ideia do lugar que a música e a dança ocupavam na vida quotidiana O autor de uma Introduction to Practical Music editada em 1597 41 conta como as circunstâncias fizeram dele um músico Ele jantava com um grupo de pessoas 40 Lamen 16061652 O Interlúdio Musical reproduzido em Berndt n 472 41 Thomas Morley citado em F Watson The English Grammar Schools to 1660 1907 p 216 Quando a ceia terminou e segundo o costume foram trazidas as partituras para a mesa a dona da casa me designou uma parte e pediume muito seriamente para cantar Eu tive de me desculpar muito e confessar que não sabia todos pareceram então surpresos e alguns chegaram a cochichar no ouvido dos outros perguntandose onde eu havia sido educado Embora a prática familiar e popular de um instrumento ou do canto talvez fosse mais comum na Inglaterra elisabetana do que no resto da Europa ela também era difundida na França na Itália na Espanha e na Alemanha de acordo com um velho hábito medieval que apesar das transformações do gosto e dos aperfeiçoamentos técnicos subsistiu até os séculos XVIII e XIX um pouco mais ou um pouco menos conforme a região Hoje esse hábito só existe na Alemanha na Europa central e na Rússia Naquela época porém ele era comum nos meios nobres e burgueses em que os grupos gostavam de se fazer retratar realizando um concerto de câmara Era comum também nos meios mais populares entre os camponeses ou até mesmo mendigos cujos instrumentos eram a gaita de foles o realejo e a rebeca que ainda não havia sido elevada à dignidade do violino atual As crianças praticavam a música muito cedo Desde pequenino Luís XIII cantava canções populares ou satíricas que não se pareciam em nada com as cantigas de roda infantis de nossos últimos dois séculos ele também sabia o nome das cordas do alaúde um instrumento nobre As crianças tomavam parte em todos esses concertos de câmara que a antiga iconografia multiplicou Tocavam também entre elas e uma forma habitual de pintálas era representálas com um instrumento na mão são exemplos os dois meninos de Franz Hals 42 um dos quais acompanha no alaúde o irmão ou o amigo que canta e são exemplos as numerosas crianças tocando flauta de Franz Hals e de Le Nain 43 Num quadro de Brouwer vêemse na rua moleques do povo mais ou menos esfarrapados ouvindo com avidez o realejo de um cego saído de um pátio dos milagres tema de mendicância muito comum no século XVII 44 Uma tela holandesa de Vinckelbaons 45 merece ser especialmente examinada em razão de um detalhe significativo que ilustra o novo sentimento da infância como em outras pinturas semelhantes um tocador de realejo toca para uma platéia de crianças e a cena é representada como um instantâneo no momento em que os meninos acorrem ao som do instrumento Um dos meninos é muito pequeno e não consegue acompanhar os outros Seu pai então o segura no colo e corre atrás do bando para que seu filho não perca nada da festa a criança alegre estende os braços para o realejo A mesma precocidade é observada na prática da dança Vimos que Luís XIII aos três anos dançava a galharda a sarabanda e a velha bourrée Comparemos uma tela de Le Nain 46 e uma gravura de Guérard 47 elas têm cerca de meio século de distância mas os costumes não mudaram muito nesse intervalo e além disso a arte da gravura tende a ser conservadora Em Le Nain vemos uma roda de meninas e meninos um deles ainda usa a túnica com gola Duas meninas fazem uma ponte com as mãos dadas no alto e a roda passa por baixo A gravura de Guérard também representa uma roda mas são os adultos que a conduzem uma das moças está saltando como uma menina que pula corda Quase não há diferença entre a dança das crianças e a dos adultos Mais tarde porém a dança dos adultos se transformaria e com a valsa se limitaria definitivamente ao par individual Abandonadas pela cidade e pela corte pela burguesia e pela nobreza as antigas danças coletivas ainda subsistiriam no campo onde os folcloristas modernos as descobriam e nas rodas infantis do século XIX ambas as formas aliás estão atualmente em via de desaparecimento É impossível separar a dança dos jogos dramáticos A dança era então mais coletiva e se distinguia menos do balé do que nossas danças modernas de pares Observamos no diário de Heroard o gosto dos contemporâneos de Luís XIII pela dança o balé e a comédia gêneros ainda bastante próximos faziase um papel num balé como se dançava num baile a ligação entre as duas palavras em francês bal e ballet é significativa a mesma palavra a seguir se desdobrou ficando o baile reservado aos amadores e o balé aos profissionais Havia balés nas comédias até mesmo no teatro escolar dos colégios jesuítas Na corte de Luís XIII os autores e os atores eram recrutados internamente entre os fidalgos mas também entre os criados e os soldados as crianças tanto atuavam como assistiam às representações Seria uma prática da corte Não era uma prática comum Um texto de Sorel 48 provanos que nas aldeias nunca se havia deixado de 42 Franz Hals Meninos músicos Kassel Gerson vol I p 167 43 Franz Hals Berlim Le Nain Detroit La charette do Louvre 44 Brouwer Tocador de realejo cercado de crianças Harlem reproduzido em W von Bode p 29 Ateliê de Georges de la Tour Exposição da Orangerie de Paris 1958 n 75 45 Vinckelbaons 15761629 reproduzido em Berndt n 942 encenar peças mais ou menos comparáveis aos antigos mistérios ou às Paixões atuais da Europa central Penso que ele Ariste a quem os comediantes profissionais aborreciam teria ficado muito satisfeito se tivesse visto como eu todos os meninos de uma aldeia as meninas não representar a tragédia do Mau Rico num palco mais alto do que o teto das casas no qual todas as personagens davam sete ou oito voltas duas a duas para se mostrar antes de começar a representação como as figuras de um relógio Fiquei muito feliz de ver mais uma vez a encenação da História do Filho Pródigo e a de Nabucodonosor e depois os amores de Médor e Angélique e a descida de Radamonte aos infernos por comediantes de tal envergadura O portavoz de Sorel ironiza pois ele não aprecia esses espetáculos populares Em quase toda a parte os textos e a encenação eram regulados pela tradição oral No País Basco essa tradição foi fixada antes do desaparecimento dos jogos dramáticos No fim do século XVIII e início do XIX foram escritos e publicados dramas pastorais bascos cujos temas provinham ao mesmo tempo dos romances de cavalar ia e dos pastorais do Renascimento 49 Assim como a música e a dança as representações dramáticas reuniam toda a coletividade e misturavam as idades tanto dos atores como dos espectadores Tentaremos ver agora qual era a atitude moral tradicional com relação a esses jogos brincadeiras e divertimentos que ocupavam um lugar tão importante nas sociedades antigas Essa atitude nos aparece sob dois aspectos contraditórios De um lado os jogos eram todos admitidos sem reservas nem discriminação pela grande maioria de moralistas rigorosos os condenava quase todos de forma igualmente absoluta e denunciava sua imoralidade sem admitir praticamente nenhuma exceção A indiferença moral da maioria e a intolerância de uma elite educadora coexistiram durante muito tempo Ao longo dos séculos XVII e XVIII porém estabeleceuse um compromisso que anunciava a atitude moderna com relação aos jogos fundamentalmente diferente da atitude antiga Esse compromisso nos interessa aqui porque é também um testemunho de um novo sentimento da infância uma preocupação antes desconhecida de preservar sua moralidade e também de educála proibindolhe os jogos então classificados como maus e recomendandolhe os jogos então reconhecidos como bons 49 Larché de Languis autor de Pastorales basques circa 1769 Mas o jogo segundo Caillière apresenta outras vantagens além do lucro financeiro Sempre considerei que o amor ao jogo era um benefício da Natureza cuja utilidade reconheci Parto do princípio de que o amamos naturalmente Eos jogos esportivos que hoje seríamos mais tentados a recomendar são belos de se ver mas mal apropriados para se ganhar dinheiro E especifica Estou falando das cartas e dos dados Ouvi um experiente jogador que havia ganho no jogo uma fortuna considerável dizer que para transformar o jogo em arte não tinha utilizado outro segredo além de dominar sua paixão e de se propor esse exercício como uma profissão com o fito de ganhar dinheiro Que o jogador não se inquiette pois a má sorte não o pegará desprevenido um jogador sempre conseguirá empréstimos mais facilmente do que o faria um bom comerciante Além disso esse exercício dá aos particuliers acesso aos melhores círculos e um homem hábil pode extrair deles notáveis vantagens quando sabe manejálos Conheço alguns que têm como renda apenas um baralho e três dados e que subsistem no mundo com maior luxo e magnificiência do que senhores de província com suas grandes propriedades mas sem dinheiro líquido E o excelente Marechal conclui com esta opinião que surpreende nossa moral de hoje Aconselho a um homem que saiba e que ame o jogo a arriscar nele seu dinheiro como ele tem pouco a perder arrisca pouco e pode ganhar muito Para o biógrafo do Padre Ange o jogo é não apenas um divertimento mas uma profissão um meio de fazer fortuna e de manter relações um meio perfeitamente honesto Caillière não é o único a defender esta opinião O Chevalier de Méré que era considerado em sua época como o típico homem de sociedade bem educado exprime a mesma idéia em sua Suite du commerce du monde 51 Diria também que o jogo produz bons efeitos quando o jogador se comporta como um homem hábil e de boa vontade é através dele que um homem pode ter acesso a toda parte onde se joga e os príncipes muitas vezes se entediariam se não pudessem jogar Cita exemplos augustos Luís XIII que ainda criança ganhou uma turquesa numa rifa Richelieu que se relaxava jogando Mazarino Luís XIV e a Rainhamãe que não fazia mais nada além de jogar e rezar Qualquer que seja o mérito que se possa ter seria difícil conquistar uma boa reputação sem ingressar na alta sociedade e o jogo é uma forma fácil de abrir suas portas É mesmo um meio garantido de se estar freqüentemente em boa companhia sem dizer nada sobretudo quando se joga como um homem galante ou seja evitando a esquisitice o capricho e a superstição É preciso jogar como um homem bem educado e saber perder como ganhar sem que nem uma nem outra dessas situações se dê a conhecer no rosto nem no modo de agir Mas cuidado para não arruinar os próprios amigos por mais que ponderemos sempre resta algo em nosso coração contra aqueles que nos arruinaram Se os jogos de azar não provocavam nenhuma reprovação moral não havia razão para proibilos às crianças daí as inúmeras cenas de crianças jogando cartas dados gamão etc que a arte conservou até nossos dias Os diálogos escolares que serviam aos estudantes ao mesmo tempo como manuais de civilidade e vocabulários latinos em certos casos admitem os jogos de azar se não com entusiasmo ao menos como uma prática muito difundida O espanhol Vivès 52 contentase em fornecer certas regras para evitar os excessos diz quando se deve jogar com quem evitar os brigões que jogos a que cacife o cacife não deve ser nulo pois isso seria tolice e não valeria o jogo mas também não deve ser tão alto a ponto de perturbar o espírito diante do jogo de que maneira ou seja como um bom jogador e durante quanto tempo Mesmo nos colégios centros da moralização mais eficaz os jogos a dinheiro persistiram por muito tempo apesar da repugnância que por eles sentiam os educadores No início do século XVIII o regulamento do colégio dos Oratorianos de Troyes precisa Não se poderá jogar a dinheiro a menos que seja muito pouco e com permissão especial O professor universitário moderno que citou esse texto em 1880 acrescenta um tanto chocado diante de hábitos tão distantes dos princípios educacionais de sua época Era praticamente autorizar o jogo a dinheiro Ao menos era se conformar com ele 53 Em torno de 1830 ainda se jogava abertamente e se apostava alto nas public schools inglesas O autor de Tom Browns School Days descreve a febre de apostas e de jogos que o Derby provocava então entre os alunos de Rugby A reforma do Dr Arnold eliminaria mais tarde da escola inglesa essas práticas com vários séculos de existência que outrora eram admitidas com indiferença e que foram então consideradas imorais e viciosas 54 A estima em que eram tidos ainda no século XVII os jogos de azar nos permite avaliar a extensão da antiga atitude de indiferença moral Hoje consideramos os jogos de azar como suspeitos e perigosos e o dinheiro ganho no jogo como a menos moral e a menos confessaável das rendas Continuamos a jogar esses jogos de azar mas com a consciência pesada Ainda não era assim no século XVII a consciência pesada moderna resultou do processo de moralização em profundidade que fez da sociedade do século XIX uma sociedade de conservadores La Fortune des gens de qualité et des gentilhommes particuliers 50 é um livro de conselhos aos jovens fidalgos que desejam fazer carreira Seu autor o Marechal de Caillière não tinha nada de um aventureiro Era autor também de uma bibliografia edificante das obras do Padre Ange de Joyeuse o santo monge da Liga Era um homem religioso até mesmo devoto e sem nenhuma originalidade ou talento Suas opiniões refletem portanto a opinião comum das pessoas do bem em 1661 data da edição de seu livro Uma de suas preocupações constantes é prevenir os jovens contra a devassidão se a devassidão é a inimiga da virtude também o é da fortuna pois não se pode possuir uma sem a outra O jovem devasso vê as ocasiões de agradar a seu senhor escaparem pelas janelas do bordel e da taverna O leitor do século XX que percorre com um olhar um tanto cansado esses lugarescomuns por isso mesmo ficará surpreso quando esse moralista minucioso desenvolver suas idéias sobre a utilidade social dos jogos de azar Um dos capítulos se intitula Se um particulier abreviação de gentilhomme particulier por oposição a gens de qualité ou seja um pequeno fidalgo mais ou menos empobrecido deve jogar jogos de azar e como Não se trata de uma questão decidida o Marechal reconhece que os moralistas profissionais e o clero condenam formalmente o jogo Isso poderia embaraçar nosso autor e de fato o obriga a se explicar longamente Ele permanece fiel à antiga opinião dos leigos e tenta justificála moralmente Não será impossível provar que o jogo pode ser mais útil do que prejudicial se for acompanhado das circunstâncias que lhe são necessárias Digo que o jogo é tão perigoso para um homme de qualité ou seja um fidalgo rico quanto útil a um particulier ou seja um fidalgo empobrecido O primeiro arrisca muito porque é muito rico e o outro não arrisca nada porque não o é e no entanto um particulier pode esperar tanto da fortuna do jogo quanto um grande senhor Um tem tudo a perder e o outro tudo a ganhar estranha distinção moral 50 Marechal de Caillière La Fortune des gens de qualité et des gentilhommes particuliers 1661 Do século XVII até nossos dias a atitude moral com relação aos jogos de azar evoluiu de maneira bastante complexa à medida que se difundia o sentimento de que o jogo de azar era uma paixão perigosa um vício grave a prática tendeu a modificar alguns desses jogos reduzinho o papel do azar que no entanto ainda subsiste em benefício do cálculo e do esforço intelectual do jogador dessa forma certos jogos de cartas ou de xadrez tornaramse cada vez menos sujeitos à condenação que atingia o princípio do jogo de azar Um outro divertimento sofreu uma evolução diferente a dança Vimos que a dança comum às crianças e aos adultos ocupava um lugar importante na vida quotidiana Nosso senso moral de hoje deveria ficar menos chocado com isso do que com a prática generalizada dos jogos de azar Sabemos que os próprios religiosos dançavam ocasionalmente sem que a opinião pública se escandalizasse ao menos antes do movimento de reforma das comunidades no século XVII Sabemos como era a vida na abadia de Maubuisson quando Madre Angélique Arnaud aí chegou no início do século XVII para reformála Não era uma vida especialmente edificante mas também não era necessariamente escandalosa era sobretudo muito mundana Nos dias de verão diznos M Cognet citando Madre Angélique de SaintJean jóiaografa de sua irmã 55 quando o tempo era bonito depois das vésperas a priora conduzia a comunidade para um passeio longe da abadia nas margens das lagoas que ficavam no caminho de Paris muitas vezes os monges de SaintMartin de Pontoise que habitavam perto vinham dançar com as religiosas e isso era feito com a mesma liberdade que ocorreria no mundo leigo onde nada de mau se poderia dizer sobre tal fato Essas danças de rodas de monges e monjas indignaram Madre Angélique e temos de convir que não correspondiam ao espírito da vida monástica mas na época elas não produziam na opinião pública o efeito chocante que hoje produziriam pares de religiosos e religiosas dançando enlacados como o exigem as danças modernas É certo que os religiosos de outrora não tinham a consciência tão pesada Havia costumes tradicionais que previam danças de clérigos em certas ocasiões Em Auxère 56 por exemplo todo novo cônego para festejar o feliz acontecimento doava aos paroquianos uma bola que era então utilizada num grande jogo coletivo Esse jogo era sempre jogado em dois campos que opunham solteiros contra casados ou paróquia contra paróquia A festa de Auxère começava com o canto Victimae laudes Paschali e terminava com uma roda em que dançavam todos os cônegos Os historiadores informamnos que esse costume que remontaria ao século XIV ainda era atestado no século XVIII É provável que os partidários da reforma tridentina vissem essa dança de roda tão desaprovadoramente como Madre Angélique de SaintJean vira a dança das freiras de Maubuisson e dos padres de Pontoise cada novo tempo possui uma nova concepção do profano As danças familiares não tinham no século XVII o caráter sexual que acusariam muito mais tarde nos séculos XIX e XX Existiam até mesmo danças profissionais em Biscaye havia danças de amas em que estas carregavam seus bebês no colo 57 O exercício amplo da dança não tem o mesmo valor que a prática dos jogos de azar para ilustrar a indiferença da sociedade antiga com relação à moralidade dos divertimentos Por outro lado porém ele permite avaliar melhor o rigor da intolerância das elites reformadoras Na sociedade do Ancien Régime o jogo sob todas as suas formas o esporte o jogo de salão o jogo de azar ocupava um lugar importantíssimo que se perdeu em nossas sociedades técnicas mas que ainda hoje encontramos nas sociedades primitivas ou arcaicas 58 Ora a essa paixão que agitava todas as idades e todas as condições a Igreja opôs uma reprovação absoluta Ao lado da Igreja colocaramse também alguns leigos apaixonados pelo rigor e pela ordem que se esforçavam para domar uma massa ainda selvagem e para civilizar costumes ainda primitivos A Igreja medieval também condenava o jogo sob todas as suas formas sem exceção nem reservas e particularmente nas comunidades de clérigos bolsistas que deram origem aos colégios e às universidades do Ancien Régime Os estatutos dessas comunidades nos dão uma idéia dessa intransigência Ao lêlos o historiador inglês das universidades medievais J Rashdall 59 ficou impressionado com a proscrição geral de todas as atividades de lazer com a recusa em admitir que pudessem existir divertimentos inocentes em escolas cujos alunos entretanto tinham basicamente entre 10 e 15 anos Reprovavase a imoralidade dos jogos de azar a indecência dos jogos de salião da comédia ou da dança e a brutalidade dos jogos esportivos que de fato muitas vezes degeneravam em rixas Os estatutos dos colégios foram redigidos para limitar tanto os pretextos de divertimento quanto os riscos de delito A fortiori a proibição era categórica e rigorosa para os religiosos a quem um edito do Concílio de Sens de 1485 proibia o jogo da péla sobretudo em manga de camisa e em público é verdade que no século XV um homem sem gibão ou sem túnica e com as calças desabotoadas ficava com quase tudo de fora Temse a impressão de que a Igreja ainda incapaz de controlar os leigos adeptos de jogos tumultuados decidiu preservar seus clérigos proibindolhes todo e qualquer tipo de jogo formidável contraste de estilos de vida se a proibição tivesse sido realmente respeitada Eis por exemplo como o regulamento interno do colégio de Narbonne 60 encarava os jogos de seus bolsistas em sua redação de 1379 Ningüem nesta casa deverá jogar péla ou hóquei ou outros jogos perigosos insultuosos sob pena de uma multa de seis dinares ninguém deverá jogar dados ou quaisquer outros jogos a dinheiro nem deverá entregarse a divertimentos na mesa comesationes comezainas sob pena de uma multa de 10 vinténs O jogo e a comilança são colocados no mesmo plano Não havia então jamais um momento de diversão Os alunos poderão apenas participar algumas vezes e a raros intervalos quantas precauções Certamente logo esquecidas porém pois essas mesmas palavras eram a porta entreaberta a todos os excessos de jogos honestos ou recreativos mas é difícil saber quais já que até a péla era proibida talvez jogos de salião apostando uma pequena jarra de vinho ou então uma fruta e contando que o jogo se faça sem barulho e de maneira não habitual sine mora No colégio de Seez em 1477 61 encontramos Ordenamos que ninguém pratique o jogo de dados nem outros jogos desonestos ou proibidos e nem mesmo os jogos admitidos como a péla sobretudo nos lugares comuns ou seja o claustro a sala comum que servia de refeitório e se alguém os praticar em outros lugares que seja com pouca freqüência non nimis continue Na bula do Cardeal de Amboise que fundava o colégio de Montaigu em 1501 havia um capítulo intitulado De exercitio corporali 62 O que quer dizer isso O texto começa com uma apreciação geral um tanto ambígua O exercício físico parece ser de pouca utilidade quando se mistura aos estudos espirituais e aos exercícios religiosos ao contrário provoca um grande desenvolvimento da saúde quando é conduzido alternadamente com os estudos teóricos e científicos Na realidade o que o redator entende por exercícios físicos não são tanto os jogos e sim todos os trabalhos manuais por oposição aos trabalhos intelectuais E ele dá primazia às tarefas domésticas nas quais reconhece também uma função de relaxação as tarefas de cozinha de limpeza o serviço da mesa Em todos os exercícios acima ou seja nas tarefas domésticas nunca se deverá esquecer que se deve ser tão rápido e vigoroso quanto possível Os jogos só vêm depois das tarefas e mesmo assim sob reservas Quando o padre o chefe da comunidade estimar que os espíritos fatigados pelo trabalho e pelo estudo devam ser relaxados por meio de recreações ele as tolerará indulgebit Alguns jogos são permitidos nos lugares comuns os jogos honestos nem fatigantes nem perigosos Em Montaigu havia dois grupos de estudantes os bolsistas que como em outras fundações eram chamados de pauperes e os internos que pagavam uma pensão Esses dois grupos viam separados O regulamento estipulava que os bolsistas deveriam jogar por menos tempo e com menos freqüência do que seus colegas internos sem dúvida porque tinham a obrigação de ser melhores alunos e portanto deviam ser menos distraídos A reforma da Universidade de Paris em 1452 63 ditada por um espírito de disciplina já moderno mantém o rigor tradicional Os mestres dos colégios não permitirão que seus alunos nas festas das profissões ou em outras participem de danças imorais e desonestas ou usem trajes indecentes e leigos trajes curtos Deverão permitir porém que joguem de maneira honesta e agradável para o alívio do trabalho e o justo repouso Não permitirão nessas festas que os alunos bebam na cidade nem batam de porta em porta O reformador visa aí às saudações de porta em porta acompanhadas de coletas que a tradição permitia à juventude por ocasião das festas sazonais Num de seus diálogos escolares Vivès resume a situação em Paris no século XVI 64 nos seguintes termos Entre os estudantes nenhum outro jogo além da péla pode ser jogado com a permissão dos mestres mas algumas vezes os alunos jogam em segredo cartas e xadrez as crianças pequenas jogam garignons e os mais indisciplinados jogam dados De fato os estudantes assim como os outros meninos não tinham o menor problema em freqüentar as tavernas e os bordéis em jogar dados e dançar O rigor das proibições nunca foi abalado por sua ineficácia tenacidade espantosa a nossos olhos de homens modernos mais preocupados com a eficácia do que com princípios Os oficiais de justiça e de polícia juristas adeptos da ordem e da boa administração da disciplina e da autoridade apoiavam a ação dos mestresescola e dos eclesiásticos Durante séculos os decretos que fechavam aos estudantes o acesso às salas de jogo se sucederam ininterruptamente Esses decretos ainda são citados no século XVIII um exemplo é o decreto do tenentegeneral da polícia de Moulins de 27 de março de 1752 cuja cópia destinada à afixação pública foi conservada no Museu de Artes e Tradições Populares É proibido aos donos das quadras de péla e das salas de bilhar abri r o jogo aos estudantes e aos criados durante as horas de aula e aos donos das pistas de boliche ou outros jogos abrir o jogo aos mesmos em qualquer tempo O leitor já terá observado essa assimilação dos empregados domésticos aos estudantes eles muitas vezes tinham a mesma idade e eram igualmente temidos por sua turbulência e sua falta de autocontrole O boliche hoje um divertimento pacífico provocava tais brigas que nos séculos XVI e XVII os magistrados de polícia em certas ocasiões o proibiram inteiramente tentando estender a toda a sociedade as restrições que os eclesiásticos queriam impor aos clérigos e aos estudantes Assim esses defensores da ordem moral praticamente classificavam os jogos entre as atividades semicriminosas como a embriaguez e a prostituição que quando muito podiam ser toleradas mas que convinha proibir ao menor sinal de excesso Essa atitude de reprovação absoluta modificouse contudo ao longo do século XVII e principalmente sob a influência dos jesuítas Os humanistas do Renascimento em sua reação antiescolástica já haviam percebido as possibilidades educativas dos jogos Mas foram os colégios jesuítas que impuseram pouco a pouco às pessoas de bem e amantes da ordem uma opinião menos radical com relação aos jogos Os padres compreenderam desde o início que não era nem possível nem desejável suprimílos ou mesmo fazêlos depender de permissões precárias e vergonhosas Ao contrário propuseramse a assimilálos e a introduzilos oficialmente em seus programas e regulamentos com a condição de que pudessem escolhêlos regulamentálos e controlálos Assim disciplinados os divertimentos reconhecidos como bons foram admitidos e recomendados e considerados a partir de então como meios de educação tão estimáveis quanto os estudos Não apenas se parou de denunciar a imoralidade da dança como se passou a ensinar a dançar nos colégios pois a dança ao harmonizar os movimentos do corpo evitava a falta de graça e dava ao rapaz elegância e postura Da mesma forma a comédia que os moralistas do século XVII condenavam foi introduzida nos colégios Os jesuítas começaram com diálogos em latim sobre temas sacros e mais tarde passaram a peças francesas sobre temas profanos Até mesmo os balés foram tolerados apesar da oposição das autoridades da companhia O gosto pela dança escreveu o Padre de Dainville 65 tão vivo nos contemporâneos do Rei Sol que em 1669 fundou a Academia de Dança prevaleceu sobre os editos dos padres gerais Após 1650 quase não houve tragédias que não fossem entrecortadas pelas entradas de um balé Um álbum de gravuras de Crispin de Pos datado de 1602 representa cenas da vida escolar num colégio batavo Reconhecemos as salas de aula a biblioteca mas também a aula de dança e o jogo da péla e de bola 66 Um sentimento novo portanto apareceu a educação adotou os jogos que até então havia proscrito ou tolerado como um mal menor Os jesuítas editaram em latim tratados de ginástica que forneciam as regras dos jogos recomendados Admitiuse cada vez mais a necessidade dos exercícios físicos Fénelon escreve Os jogos de que elas as crianças gostam mais são aqueles em que o corpo está em movimento elas ficam contentes quando podem movimentarse Os médicos do século XVIII 67 inspirados nos velhos jogos de exercícios na ginástica latina dos jesuítas conceberam uma nova técnica de higiene corporal a cultura física No Traité de léducation des enfants de 1722 escrito por Crousez um professor de filosofia e matemática de Lausanne podemos ler É necessário que o corpo humano se agite muito enquanto cresce Considero que os jogos que incluem exercícios devem ser preferidos a todos os outros La Gymnastique médicale et chirurgicale de Tissot recomenda os jogos físicos como os melhores exercícios Exercitamse ao mesmo tempo todas as partes do corpo sem contar que a ação dos pulmões é constantemente estimulada pelos chamados e os gritos dos jogadores No fim do século XVIII os jogos de exercícios receberam uma outra justificativa desta vez patriótica eles preparavam os rapazes para a guerra Compreenderamse então os benefícios que a educação física podia trazer à instrução militar Nessa época que assistiu ao nascimento dos nacionalismos modernos o treinamento do soldado tornouse uma técnica quase científica Estabeleceuse um parentesco entre os jogos educativos dos jesuítas a ginástica dos médicos o treinamento do soldado e as necessidades do patriotismo Durante o Consulado foi publicada a Gymnastique de la jeunesse ou Traité élémentaire des jeux dexercices considérés sous le rapport de leur utilité physique et morale Seus autores Duvivier e Jauffret afirmavam cla 65 P de Dainville Entre Nous 1958 2 66 Academia sive speculum vitae scolasticae 1602 67 JJ Jusserand op cit ramente que o exercício militar havia constituído desde sempre a base da ginástica e era particularmente adequado à época o ano XI e ao país em que viviam Votadas por princípios à defesa comum pela natureza e o espírito de nossa constituição nossas crianças já são soldados antes de nascerem Tudo o que é militar transpira algo de grande e de nobre que eleva o homem acima dele mesmo Assim sob as influências sucessivas dos pedagogos humanistas dos médicos do Iluminismo e dos primeiros nacionalistas passamos dos jogos violentos e suspeitos da tradição antiga à ginástica e ao treinamento militar das pancadarias populares aos clubes de ginástica Essa evolução foi comandada pela preocupação com a moral a saúde e o bem comum Uma evolução paralela especializou segundo a idade ou a condição os jogos que originariamente eram comuns a toda a sociedade Daniel Mornet em sua História da Literatura Clássica 68 escreve a respeito dos jogos de salão Quando os jovens da burguesia de minha geração Mornet nasceu em 1878 jogavam jogos de salão nas matinées dansantes de suas famílias eles em geral não sabiam que esses jogos mais numerosos e mais complexos do que em sua época haviam sido há 250 anos o regalo da alta sociedade Na realidade há muito mais de 250 anos No livro de horas da Duquesa de Bourgogne 69 assistimos já no século XV a um jogo de papeizinhos uma dama aparece sentada com uma cesta no colo onde os jovens depositam papeizinhos No fim da Idade Média os jogos de desafio estavam em grande moda Uma dama dizia a um fidalgo ou um fidalgo dizia a uma dama o nome de uma flor ou de um objeto qualquer e a pessoa interpelada devia responder prontamente e sem hesitação por um cumprimento ou um epigrama rimado Essa descrição das regras do jogo nos é dada pelo editor moderno dos poemas de Christine de Pisan que compôs 70 epigramas para esse tipo de jogo 70 Por exemplo Je vous vens la passerose Belle dire ne vous ose Comment Amour vers vous me tire Si lapercevez tant sans dire 68 D Mornet Histoire de la littérature classique 1940 p 120 69 Cf nota 10 deste capítulo 70 Christine de Pisan Oeuvres poétiques editadas por M Roy 1886 pp 34 188 196 Eu te vendo a malvarosa Bela chamarte não ouso Como pode o Amor me tm romance dos tempos antigos o que mostra como outrora as pessoas se divertiam com uma representação ingênua do que havia ocorrido a cavaleiros ou damas de alta dignidade Sorel observa finalmente que esses jogos infantis são os mesmos dos adultos das classes populares e essa observação é para nós muito importante Como estes jogos são infantis eles também servem para as pessoas rústicas cujo espírito não é mais elevado do que o das crianças nesses assuntos Contudo no início do século XVII Sorel tem de convir que algumas vezes pessoas de condição elevada podiam praticar esses jogos como recreação sem que a opinião pública visse aí algo de errado esses jogos mistos ou seja comuns a todas as idades e condições tornamse recomendáveis devido ao bom emprego que sempre tiveram Há certos tipos de jogos em que o espírito não trabalha muito de forma que mesmo os muito jovens podem jogálos embora as pessoas mais velhas e sérias também os pratiquem ocasionalmente Esse antigo estado de coisas porém não era mais admitido por todos Na Maison des jeux por exemplo Ariste considera esses divertimentos de crianças e de plebeus indignos de um homem de bem O portavoz de Sorel não deseja contudo proscrevêlos completamente Mesmo os que parecem ser baixos podem ser soerguidos recebendo uma outra aplicação diferente da primeira a qual só relatei para servir de modelo Ele tenta então elevar o nível intelectual dos jogos de salão praticados dentro de casa Mas na verdade após a descrição de Sorel do jogo da mourre em que o líder levanta um dois ou três dedos e os participantes devem repetir o mesmo gesto imediatamente é difícil para o leitor moderno compreender sob que aspecto a mourre é mais elevada e mais espiritual do que o jogo de rimas que Sorel abandonava sem apelação às crianças o leitor atual tem a mesma opinião de Ariste cujo ponto de vista já é moderno Mas ele fica ainda mais surpreendido com o fato de um romancista e historiador como Sorel ter consagrado uma obra monumental à descrição e à revisão desses divertimentos Este é mais um testemunho do lugar que os jogos ocupavam nas preocupações da antiga sociedade Portanto no século XVII havia uma distinção entre os jogos dos adultos e dos fidalgos e os jogos das crianças e dos vilões A distinção era antiga e remontava à Idade Média Mas na Idade Média a partir do século XII ela se aplicava apenas a certos jogos pouco numerosos e muito particulares os jogos de cavalaria Antes disso antes da constituição definitiva da idéia de nobreza os jogos eram comuns a todos independentemente da condição social Alguns jogos conservaram esse caráter durante muito tempo Francisco I e Henrique II não menosprezavam a luta e Henrique II jogava bola isso não seria mais admitido no século seguinte Richelieu praticava o salto em sua galeria como Tristão na corte do Rei Marcos e Luís XIV jogava péla Mas esses jogos tradicionais seriam por sua vez abandonados no século XVIII pelas pessoas de alta condição A partir do século XII certos jogos já eram reservados aos cavaleiros 73 e mais precisamente aos adultos Assim enquanto a luta era uma brincadeira comum o torneio e a argolinha eram jogos de cavalaria O acesso aos torneios era proibido aos plebeus e as crianças mesmo nobres não tinham o direito de participar pela primeira vez talvez um costume proibia às crianças e ao mesmo tempo aos plebeus participar de jogos coletivos As crianças logo começaram a imitar os torneios proibidos o calendário do breviário de Grimani mostranos torneios grotescos de crianças entre as quais alguns pensaram reconhecer o futuro Carlos V as crianças cavalgam barris em vez de cavalos Surgiu então a idéia de que os nobres deviam evitar misturarse com os plebeus e distrairse entre eles uma opinião que não conseguiu imporse totalmente ao menos até que a nobreza desaparecesse enquanto função social e fosse substituída pela burguesia no século XVIII No século XVI e no início do século XVII numerosos documentos iconográficos comprovam a mistura das classes sociais durante as festas sazonais Num dos diálogos de Le Courtisan de Balthazar Castiglione um clássico do século XVI que foi traduzido para todas as línguas esse assunto é discutido e não se chega a um acordo 74 Em nosso país da Lombardia diz o senhor Pallavicino não temos essa opinião de que o cortesão só deve jogar com outros fidalgos e há muitos fidalgos que nas festas dançam o dia inteiro sob o sol com os camponeses e participam com eles de jogos como o arremesso da barra de lutas corridas e competições de saltos e penso que não há mal nisso Alguns ouvintes protestam admitem que a rigor o fidalgo possa jogar com camponeses mas contanto que vença sem esforço aparente ele deve estar praticamente certo de vencer É algo muito feio e indigno ver um fidalgo vencido por um camponês e principalmente na luta O espírito esportivo inexistia nessa época a não ser nos jogos de cavalaria e sob uma outra forma inspirada na honra feudal No fim do século XVI a prática dos torneios foi abandonada Outros jogos os substituíram nas assembléias de jovens nobres na corte e nas aulas de preparação militar das Academias onde durante a primeira metade do século XVII os fidalgos aprendiam o manejo 73 S de Vriès e Marpugo Le Brévlaire Grimani 19041910 12 vols 74 B Castiglione Le Courtisan
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ANTROPOLOGIA SOCIAL Diretor Gilberto Velho História Social da Criança e da Família 2ª ed Philippe Ariès Uma Teoria da Ação Coletiva Howard S Becker Carnavais Malandros e Heróis 3ª ed Roberto Da Matta Cultura e Razão Prática Marshall Sahlins Bruxaria Oráculos e Magia entre os Azande EE EvansPritchard Elementos de Organização Social Raymond Firth A Interpretação das Culturas Clifford Geertz Estigma Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada 3ª ed Erving Goffman O Palácio do Samba Maria Júlia Goldwasser A Sociologia do Brasil Urbano Anthony e Elizabeth Leeds Arte e Sociedade Gilberto Velho Desvio e Divergência 4ª ed Gilberto Velho Individualismo e Cultura Notas para uma Antropologia da Sociedade Contemporânea Gilberto Velho Guerra de Orixá 2ª ed Yvonne MA Velho Philippe Ariès História Social da Criança e da Família Tradução de Dora Flaksman Segunda edição EDITORA GUANABARA HISTORIA SOCIAL DA CRIANÇA E DA FAMÍLIA 2ª edição Philippe Ariès considerase um historiador de fim de semana Durante cerca de 40 anos dedicou suas horas de ócio à pesquisa de atitudes sociais o que os franceses chamam de lhistoire des mentalités Atitudes em face da vida da loucura e mais recentemente da morte em seus livros Essay sur lHistoire de la Mort en Occident du Moyen Age à nos Jours e LHomme Devant la Mort foram objeto de sua investigação Ao demonstrar a lenta evolução da mudança de atitudes ao longo dos séculos ele tem tido um valioso efeito corretivo sobre a nova geração de cientistas sociais A sua ênfase persistente sobre o que poderíamos chamar relatividade histórica exerceu profundo efeito sobre os psicólogos do mundo inteiro Hoje com mais de 60 anos Ariès estabeleceu uma sólida reputação como historiador ao mesmo tempo em que manteve a sua profissão como oficial de informação especializado em agricultura tropical Para quem trabalha em regime de meio tempo isso foi uma verdadeira proeza mas provavelmente a sua pesquisa sobre a criança e a família é que colocou um público muito mais vasto a par de sua contribuição para o pensamento contemporâneo Esta sua História Social da Criança e da Família tocou em muitos nervos sensíveis da sociedade moderna O próprio Ariès foi atraído por aquelas pinturas da Renascença de crianças vestidas como adultos Com o uso meticuloso mas intuitivo de velhos diários testamentos igrejas e túmulos bem como de pinturas ele desenvolveu um quadro em lenta transformação da criança e de sua família O livro teve considerável efeito sobretudo nos Estados Unidos Suas observações sobre o vácuo entre o lar e o local de trabalho na sociedade industrial comparado com o meio interveniente da Idade Mé continua na 2ª aba HISTÓRIA SOCIAL DA CRIANÇA E DA FAMÍLIA História Social da Criança e da Família SEGUNDA EDIÇÃO Philippe Ariès EDITORA GUANABARA CIPBrasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ Ariès Philippe História social da criança e da família Philippe Ariès tradução Dora Flaksman 2ª ed Rio de Janeiro Guanabara 1986 Antropologia social Tradução de LEnfant et la Vie familiale sous lAncien Régime Bibliografia ISBN 8524500360 I Crianças França 2 Família França 3 Antropologia social I Título II Série 860348 CDD 39213 CDU 3923 Título original LEnfant et la Vie familiale sous lAncien Régime Traduzido da terceira edição publicada em 1975 pela Editions du Seuil de Paris França na série Points Histoire dirigida por Michel Winock Copyright 1973 by Editions du Seuil Edição para o Brasil Não pode circular em outros países Primeira edição brasileira 1978 Direitos exclusivos para a língua portuguesa Copyright by EDITORA GUANABARA SA Travessa do Ouvidor 11 Rio de Janeiro RJ CEP 20040 19815 4 3 2 Reservados todos os direitos É proibida a duplicação ou reprodução deste volume ou de partes do mesmo sob quaisquer formas ou por quaisquer meios eletrônico mecânico gravação fotocópia ou outros sem permissão expressa da Editora A meus pais A meus sogros UNI RIO B35919 BN000497339 UNIRIO Centro de Ciências Humanas BIBLIOTECA SETORIAL Reg nº 8293 03 15 189 NOTA A edição brasileira de História Social da Criança e da Família foi traduzida da edição de LEnfant et la vie familiale sous lAncien Régime das Editions du Seuil Collection Points Série Histoire 1973 Esta edição francesa é uma versão abreviada do texto original de Philippe Ariès publicado em 1960 pelas Editions Plons e reeditado integralmente pelas Editions du Seuil na coleção Univers historique em 1973 acrescido de um prefácio em que o autor examinava a historiografia de seu tema Na atual versão portanto as partes I e III foram integralmente reproduzidas Da parte II porém foi conservado apenas o essencial ou seja as conclusões completas de sete capítulos O capítulo intitulado Do Externato ao Internato foi totalmente suprimido Índice Prefácio 9 1 O Sentimento da Infância 1 As Idades da Vida 29 2 A Descoberta da Infância 50 3 O Traje das Crianças 69 4 Pequena Contribuição à História dos Jogos e Brincadeiras 82 5 Do Despudor à Inocência 125 Conclusão Os Dois Sentimentos da Infância 156 2 A Vida Escolástica 1 Jovens e velhos escolares da Idade Média 165 2 Uma Instituição Nova O Colégio 169 3 Origens das Classes Escolares 172 4 As Idades dos Alunos 175 5 Os Progressos da Disciplina 178 6 As Pequenas Escolas 183 7 A Rudeza da Infância Escolar 184 Conclusão A Escola e a Duração da Infância 186 3 A Família 1 As Imagens da Família 195 2 Da Família Medieval à Família Moderna 225 Conclusão Família e Sociabilidade 272 Conclusão 275 Prefácio Costumase dizer que a árvore impede a visão da floresta mas o tempo maravilhoso da pesquisa é sempre aquele em que o historiador mal começa a imaginar a visão de conjunto enquanto a bruma que encobre os horizontes longínquos ainda não se dissipou totalmente enquanto ele ainda não tomou muita distância do detalhe dos documentos brutos e estes ainda conservam todo o seu frescor Seu maior mérito talvez seja menos defender uma tese do que comunicar aos leitores a alegria de sua descoberta tornálos sensíveis como ele próprio o foi às cores e aos odores das coisas desconhecidas Mas ele também tem a ambição de organizar todos esses detalhes concretos numa estrutura abstrata e é sempre difícil para ele felizmente desprenderse do emaranhado das impressões que o solicitaram em sua busca aventurosa é sempre difícil conformálas imediatamente à álgebra no entanto necessária de uma teoria Anos depois no momento da reedição o tempo passou levando consigo a emoção desse primeiro contato mas trazendo por outro lado uma compensação podese ver melhor a floresta Hoje após os debates contemporâneos sobre a criança a família a juventude e após o uso que foi feito de meu livro vejo melhor ou seja de uma forma mais nítida e mais simplificada as teses que me foram inspiradas por um longo diálogo com as coisas Procurarei resumilas aqui reduzindoas a duas A primeira referese inicialmente à nossa velha sociedade tradicional Afirmei que essa sociedade via mal a criança e pior ainda o adolescente A duração da infância era reduzida a seu período mais frágil enquanto o filhote do homem ainda não conseguia bastarse a criança então mal adquire algum desembaraço físico era logo misturada aos adultos e partilhava de seus trabalhos e jogos De criancinha pequena ela se transformava imediatamente em homem jovem sem passar pelas etapas da juventude que talvez fossem praticadas antes da Idade Média e que se tornaram aspectos essenciais das sociedades evoluídas de hoje A transmissão dos valores e dos conhecimentos e de modo mais geral a socialização da criança não eram portanto nem asseguradas nem controladas pela família A criança se afastava logo de seus pais e podese dizer que durante séculos a educação foi garantida pela aprendizagem graças à convivência da criança ou do jovem com os adultos A criança aprendia as coisas que devia saber ajudando os adultos a fazêlas A passagem da criança pela família e pela sociedade era muito breve e muito insignificante para que tivesse tempo ou razão de forçar a memória e tocar a sensibilidade Contudo um sentimento superficial da criança a que chamei papariação era reservado à criancinha em seus primeiros anos de vida enquanto ela ainda era uma coisinha engraçadinha As pessoas se divertiam com a criança pequena como com um animalzinho um macaquinho impudico Se ela morresse então como muitas vezes acontecia alguns podiam ficar desolados mas a regra geral era não fazer muito caso pois uma outra criança logo a substituiria A criança não chegava a sair de uma espécie de anonimato Quando ela conseguia superar os primeiros perigos e sobreviver ao tempo da papariação era comum que passasse a viver em outra casa que não a de sua família Essa família se compunha do casal e das crianças que ficavam em casa não acredito que a família extensa composta de várias gerações ou vários grupos colaterais jamais tenha existido a não ser na imaginação dos moralistas como Alberti na Florença do século XV ou como os sociólogos tradicionalistas franceses do século XIX e exceto em certas épocas de insegurança quando a linhagem devia substituir o poder público enfraquecido e em certas condições econômicojurídicas como por exemplo nas regiões mediterrâneas e talvez nos lugares onde o direito de beneficiar exclusivamente um dos filhos favorecia a coabitação Essa família antiga tinha por missão sentida por todos a conservação dos bens a prática comum de um ofício a ajuda mútua quotidiana num mundo em que um homem e mais ainda uma mulher isolados não podiam sobreviver e ainda nos casos de crise a proteção da honra e das vidas Ela não tinha função afetiva Isso não quer dizer que o amor estivesse sempre ausente ao contrário ele é muitas vezes reconhecível em alguns casos desde o noivado mais geralmente depois do casamento criado e alimentado pela vida em comum como na família do Duque de SaintSimon Mas e é isso o que importa o sentimento entre os cônjuges entre os pais e os filhos não era necessário à existência nem ao equilíbrio da família se ele existisse tanto melhor As trocas afetivas e as comunicações sociais eram realizadas portanto fora da família num meio muito denso e quente composto de vizinhos amigos amos e criados crianças e velhos mulheres e homens em que a inclinação se podia manifestar mais livremente As famílias conjugais se diluíam nesse meio Os historiadores franceses chamariam hoje de sociabilidade essa propensão das comunidades tradicionais aos encontros às visitas às festas É assim que vejo nossas velhas sociedades diferentes ao mesmo tempo das que hoje nos descrevem os etnólogos e das nossas sociedades industriais Minha primeira tese é uma tentativa de interpretação das sociedades tradicionais A segunda pretende mostrar o novo lugar assumido pela criança e a família em nossas sociedades industriais A partir de um certo período o problema obsecante da origem ao qual voltarei mais tarde e em todo o caso de uma forma definitiva e imperativa a partir do fim do século XVII uma mudança considerável alterou o estado de coisas que acabo de analisar Podemos compreendêla a partir de duas abordagens distintas A escola substituiu a aprendizagem como meio de educação Isso quer dizer que a criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente através do contato com eles A despeito das muitas reticências e retardamentos a criança foi separada dos adultos e mantida à distância numa espécie de quarentena antes de ser solta no mundo Essa quarentena foi a escola o colégio Começou então um longo processo de enclausuramento das crianças como dos loucos dos pobres e das prostitutas que se estenderia até nossos dias e ao qual se dá o nome de escolarização Essa separação e essa chamada à razão das crianças deve ser interpretada como uma das faces do grande movimento de moralização dos homens promovido pelos reformadores católicos ou protestantes ligados à Igreja às leis ou ao Estado Mas ela não teria sido realmente possível sem a cumplicidade sentimental das famílias e esta é a segunda abordagem do fenômeno que eu gostaria de sublinhar A família tornouse o lugar de uma afeição necessária entre os cônjuges e entre pais e filhos algo que ela não era antes Essa afeição se exprimiu sobretudo através da importância que se passou a atribuir a educação Não se tra tava mais apenas de estabelecer os filhos em função dos bens e da honra Tratavase de um sentimento inteiramente novo os pais se interessavam pelos estudos de seus filhos e os acompanhavam com uma solicitude habitual nos séculos XIX e XX mas outrora desconhecida Jean Racine escrevia a seu filho Louis a respeito de seus professores como o faria um pai de hoje ou de ontem um ontem muito próximo A família começou então a se organizar em torno da criança e a lhe dar uma tal importância que a criança saiu de seu antigo anonimato que se tornou impossível perdêla ou substituíla sem uma enorme dor que ela não pôde mais ser reproduzida muitas vezes e que se tornou necessário limitar seu número para melhor cuidar dela Portanto não surpreende que essa revolução escolar e sentimental tenha sido seguida com o passar do tempo de um multihusianismo demográfico de uma redução voluntária da natalidade observável no século XVIII Tudo isso está ligado talvez até demais para os olhos desconfiados de um P Veyne A consequência disso tudo que ultrapassa o período estudado neste livro mas que desenvolvi em outro estudo foi a polarização da vida social no século XIX em torno da família e da profissão e o desaparecimento salvo raras exceções como a Provença de M Agulhon e M Vovelle da antiga sociabilidade Um livro tem sua vida própria e rapidamente escapa das mãos de seu autor para pertencer a um público nem sempre conforme ao que o autor previra O que aconteceu foi como se as duas teses que acabo de expor não se dirigissem exatamente ao mesmo público A segunda que parecia voltarse para a explicação imediata do presente foi imediatamente explorada por psicólogos e sociólogos especialmente nos EUA onde as ciências humanas se preocuparam mais cedo do que em qualquer outro lugar com as crises da juventude Essas crises tornavam evidente a dificuldade quando não a repugnância dos jovens em passar para o estado adulto Ora minhas análises sugeriam que essa situação podia ser a consequência do isolamento prolongado dos jovens na família e na escola Elas mostravam também que o sentimento da família e a escolarização intensa da juventude eram um mesmo fenômeno um fenômeno recente relativamente datável e que antes a família se distinguia mal dentro de um espaço social muito mais denso e quente Na época essa acolhida teve para mim um gosto paradoxal pois fora em nome da psicologia moderna que na França me haviam sido feitas algumas críticas negligência das curiosidades da psicologia moderna disse A Besançon concessões excessivas ao fixismo da psicologia tradicional afirmou J L Flandrin1 e é verdade que sempre me foi difícil evitar as velhas palavras equívocas e hoje tão fora de moda a ponto de se tornarem ridículas mas sempre tão vivas dentro da cultura moralista e humanista que foi a minha Essas críticas antigas sobre o bom uso da psicologia merecem uma reflexão e eis o que eu gostaria de dizer hoje Uma pessoa pode tentar elaborar uma história do comportamento ou seja uma história psicológica sem ser ela própria psicóloga ou psicanalista mantendose à distância das teorias do vocabulário e mesmo dos métodos da psicologia moderna e ainda assim interessar esses mesmos psicólogos dentro de sua área Se um sujeito nasce historiador ele se torna psicólogo à sua moda que não é certamente a mesma dos psicólogos modernos mas se junta a ela e a completa Nesse momento o historiador e o psicólogo se encontram nem sempre ao nível dos métodos que podem ser diferentes mas ao nível do assunto da maneira de colocar a questão ou como se diz hoje da problemática A abordagem inversa que vai da psicologia à história também é possível como o prova o êxito de A Besançon Esse itinerário contudo apresenta alguns perigos dos quais M Soriano nem sempre se esquivou apesar de tantas descobertas saborosas e comparações felizes Na crítica que me dirigiu A Besançon deixava claro que a criança não é apenas o traje as brincadeiras a escola nem mesmo o sentimento da infância ou seja modalidades históricas empiricamente perceptíveis ela é uma pessoa um processo uma história que os psicólogos tentam reconstituir ou seja um termo de comparação N Z Davis3 um excelente historiador do século XVI procurou esse termo de comparação no modelo construído por psicossociólogos com base em sua experiência do mundo contemporâneo Sem dúvida a tentação dos psicólogos de fugir para fora de seu mundo a fim de comprovar suas teorias é grande e certamente enriquecedora quer ela os conduza para nossas sociedades tradicionais para o lado de Lutero quer os leve até os últimos selvagens Se o método deu certo no caso dos etnólogos as sociedades tradicionais me parecem mais recalcitrantes Esse tipo de abordagem consegue traduzir para a linguagem moderna com excessi 1 A Besançon Histoire et psychanalyse Annales ESC 19 1964 p 242 n 2 J L Flandrin Enfance et société Annales ESC 19 1964 pp 322329 2 N Z Davis The Reasons of Misrule Youth Groups and Charivaris on Sixteenth Century France Past and Present 50 fevereiro de 1971 pp 4175 va facilidade as relações de Charles Perrault e seu filho como sendo as relações de um pai exagerado e um filho mimado o que nada acrescenta à compreensão de nosso mundo de hoje pois não há dados novos nem ao entendimento do mundo antigo pois há um anacronismo e o anacronismo falseia a comparação Contudo a fobia do anacronismo o defeito dos historiadores não significa nem uma recusa à comparação nem uma indiferença pelo mundo contemporâneo bem sabemos que percebemos no passado primeiro as diferenças e só depois as semelhanças com o tempo em que vivemos Se minha segunda tese encontrou uma acolhida quase unânime a primeira a ausência do sentimento da infância na Idade Média foi recebida com mais reserva pelos historiadores Entretanto hoje podese dizer que suas grandes linhas foram aceitas Os historiadoresdemógrafos reconheceram a indiferença que persistiu até muito tarde com relação às crianças e os historiadores das mentalidades perceberam a raridade das alusões às crianças e às suas mortes nos diários de família como o do catrabucheiro de Lille editado por A Lotin Ficaram impressionados como J Bouchard com a ausência de função socializadora da família3 Os trabalhos de M Agulhon sublinharam a importância da sociabilidade4 nas comunidades rurais e urbanas do Ancien Régime Mas as críticas são mais instrutivas do que as aprovações ou as concordâncias Falarei sobre duas delas uma de J L Flandrin e a outra de N Z Davis J L Flandrin criticou uma preocupação muito grande obsessiva de minha parte com o problema da origem que me leva a denunciar uma inovação absoluta onde haveria antes uma mudança de natureza A crítica é justa Este é um defeito que dificilmente pode ser evitado quando se procede por via regressiva como sempre faço em minhas pesquisas Ele introduz de uma forma demasiado ingênua o sentido da mudança que na realidade não é uma inovação absoluta e sim na maioria dos casos uma recodificação O exemplo dado por J L Flandrin é bom se a arte medieval representava a criança como um homem em escala reduzida isso se prendia diz ele não à existência mas à natureza do sentimento da infância A criança era portanto diferente do homem mas apenas no tamanho e na força enquanto as outras características permaneciam iguais Seria então interessante comparar a criança ao anão que ocupa um lugar importante na tipologia medieval 6 3 J Bouchard Un village immobile 1972 4 J L Flandrin Enfance et société op cit na Grécia homérica ou na Idade Média das canções de gesta Ele tinha razão Não podemos negar nossa tendência a projetar com demasiada exatidão em nossas estruturas tradicionais as estruturas hoje percebidas pelos etnólogos entre os selvagens contemporâneos Mas fechemos o parêntese e aceitemos a hipótese de uma sociedadedeorigem bem no início da Alta Idade Média que apresentaria as características etnográficas ou folclóricas comumente admitidas Uma grande mudança interveio então nessa sociedade talvez não época do feudalismo e do reforço dos antigos domínios Essa mudança afetou a educação ou seja a transmissão do saber e dos valores Daí em diante ou seja a partir da Idade Média a educação passou a ser assegurada pela aprendizagem Ora a prática da aprendizagem é incompatível com o sistema de classes de idade ou pelo menos tende a destruílo ao se generalizar Considero fundamental insistir na importância que se deve atribuir à aprendizagem Ela força as crianças a viverem no meio dos adultos que assim lhes comunicam o savoirfaire e o savoirvivre A mistura de idades decorrente da aprendizagem pareceme ter sido um dos traços dominantes de nossa sociedade de meados da Idade Média até o século XVIII Nessas condições as classificações tradicionais pela idade não podiam deixar de se embaçar e perder sua razão de ser Ora é certo porém que essas classificações persistiram no que se refere à vigilância sexual e à organização das festas e conhecemos a importância das festas na vida quotidiana de nossas antigas sociedades Como conciliar a persistência daquilo que certamente era muito mais do que um vestígio com a exportação precoce das crianças para o meio dos adultos Não nos estaríamos deixando enganar apesar de todos os argumentos contrários de N Z Davis pela ambigüidade da palavra juventude Mesmo o latim ainda tão próximo não facilitava a discriminação Nero tinha 25 anos quando Tácito disse a seu respeito certe finitam Neronis pueritiam et robur juventae adesse Robur juventae era a força do homem jovem e não a adolescência Qual era a idade dos chefes das confrarias de jovens e de seus companheiros A idade de Nero na época da morte de Burro a idade de Condé em Rocroy a idade da guerra ou da simulação a idade da bravata De fato essas sociedades da juventude eram sociedades de solteiros em épocas em que nas classes populares as pessoas geralmente se casavam tarde A oposição portanto era entre o casado e o não casado entre aquele que tinha uma casa própria e aquele que não tinha que morava na casa de outrem entre o menos instável e o menos estável Portanto é preciso sem dúvida admitir a existência de sociedades de jovens mas no sentido de celibatários A juventude dos celibatários do Ancien Régime não implicava nem as características que tanto na Antigüidade como nas sociedades etnográficas distinguia o efebo do homem maduro Aristógiton de Harmódio nem as que hoje opõem os adolescentes aos adultos Se tivesse de escrever este livro hoje eu me precaveria melhor contra a tentação da origem absoluta do ponto zero mas as grandes linhas continuariam as mesmas Levaria em conta apenas os dados novos e insistiria mais na Idade Média e em seu outono tão rico Em primeiro lugar eu chamaria a atenção para um fenômeno muito importante e que começa a ser mais conhecido a persistência até o fim do século XVII do infanticídio tolerado Não se tratava de uma prática aceita como a exposição em Roma O infanticídio era um crime severamente punido No entanto era praticado em segredo correntemente talvez camuflado sob a forma de um acidente as crianças morriam asfixiadas naturalmente na cama dos pais onde dormiam Não se fazia nada para conserválas ou para salválas J L Flandrin analisou essa prática oculta numa conferência da Société du XVIIe siècle ciclo de 19721973 a sair na Revue du XVIIe siècle Ele mostrou como a diminuição da mortalidade infantil observada no século XVIII não pode ser explicada por razões médicas e higiênicas simplesmente as pessoas pararam de deixar morrer ou de ajudar a morrer as crianças que não queriam conservar Na mesma série de conferências da Société du XVIIe siècle o Pe Gy confirmou a interpretação de J L Flandrin citando trechos dos Rituais póstridentinos em que os bispos proibiam com uma veemência que dá o que pensar que as crianças fossem postas para dormir na cama dos pais onde muitas vezes morriam asfixiadas O fato de ajudar a natureza a fazer desaparecer criaturas tão pouco dotadas de um ser suficiente não era confessado mas tampouco era considerado com vergonha Fazia parte das coisas moralmente neutras condenadas pela ética da Igreja e do Estado mas praticadas em segredo numa semiconsciência no limite da vontade do esquecimento e da falta de jeito A vida da criança era então considerada com a mesma ambigüidade com que hoje se considera a do feto com a diferença de que o infanticídio era abafado no silêncio enquanto o aborto é reivindicado em voz alta mas esta é toda a diferença entre uma civilização do segredo e uma civilização da exibição Chegaria um tempo no século XVII em que a sagefemme a parteira essa feiticeira branca recuperada pelos Poderes públicos teria a missão de proteger a criança e em que os pais melhor informados pelos reformadores tornados mais sensíveis à morte se tornariam mais vigilantes e desejariam conservar seus filhos a qualquer preço É exatamente o inverso da evolução em direção à liberdade do aborto que se desenrola sob a nossa vista No século XVII de um infanticídio secretamente admitido passouse a um respeito cada vez mais exigente pela vida da criança Se a vida física da criança contava ainda tão pouco seria de esperar numa sociedade unanimemente cristã um maior cuidado com sua vida futura após a morte Eisnos portanto levados à apaixonante história do batismo da idade do batismo do modo de administração que sinto não ter abordado em meu livro Espero que esse assunto tente algum jovem pesquisador Ele permitiria perceber a atitude diante da vida e da infância em épocas remotas pobres de documentos não para confirmar ou modificar a data do início de um ciclo mas para mostrar como dentro de um polimorfismo contínuo as mentalidades antigas se transformaram aos solavancos através de uma série de pequenas mudanças A história do batismo me parece ser um bom exemplo desse tipo de evolução em espiral Proporei à reflexão dos pesquisadores a seguinte hipótese Numa sociedade unanimemente cristã como as sociedades medievais todo homem e toda mulher deviam ser batizados e de fato o eram mas quando e como Em meados da Idade Média temse a impressão a ser confirmada de que os adultos nem sempre manifestavam muito empenho em batizar logo as crianças e esqueciamse de fazêlo nos casos graves Numa sociedade unanimemente cristã eles se comportavam quase da mesma forma como os indiferentes de nossas sociedades leigas Imagino que as coisas se passassem da seguinte maneira os batismos eram ministrados em datas fixas duas vezes por ano na véspera da Páscoa e na véspera de Pentecostes Não havia ainda registros de catolicidade nem certidões nada forçava os indivíduos além de sua própria consciência a pressão da opinião pública e o medo de uma autoridade longínqua negligente e desarmada Batizavamse então as crianças quando bem se entendia e atrasos de vários anos podiam ser freqüentes Os batistérios dos séculos XI e XII são aliás grandes cubas semelhantes a banheiras onde a criança que não devia mais ser muito pequena ainda era mergulhada cubas profundas em que os pintores de vitrais mergulhavam Clóvis para batizálo ou S João para torturálo pequenas banheiras retangulares em forma de sarcófago Se a criança morresse no intervalo dos batismos coletivos ninguém se comovia além da medida É certo que os pastores medievais se inquietaram com esse estado de espírito e multiplicaram os locais de culto a fim de permitir aos padres chegar mais depressa à cabeceira da mãe que dava à luz Uma pressão cada vez maior sobretudo da parte dos mendicantes se exerceu sobre as famílias para forçálas a ministrar o batismo o mais cedo possível após o nascimento Houve então uma renúncia aos batismos coletivos que impunham uma espera muito longa e a regra seguida pelo uso passou a ser o batismo da criancinha pequena A imersão foi abandonada em favor do rito atual de aspersão Teria havido um rito intermediário que combinava a imersão e a aspersão Enfim as parteiras foram incumbidas de batizar as crianças que não nasciam a termo usque in utero Mais tarde a partir do século XVI os registros de catolicidade permitiram o controle por parte dos visitantes diocesanos por exemplo da administração do batismo controle este que não existia antes Mas nas sensibilidades a partida já devia estar ganha provavelmente desde o século XIV O século XIV me parece ter sido o momento mais forte dessa história Foi então que as crianças se tornaram mais numerosas no novo folclore dos Miracles NotreDame de que me utilizei no capítulo A Descoberta da Infância Nessa área do miraculoso é preciso fazer uma menção especial a um tipo de milagre que creio eu deve ter aparecido então ou um pouco mais tarde a ressurreição das crianças mortas sem batismo pelo tempo exato de receber esse sacramento J Toussaert conta um milagre desse gênero ocorrido em Poperinghe em 11 de março de 1479 Mas tratavase de um milagre original inesperado extraordinário como ainda não se conheciam muitos Nos séculos XVI e XVII esses milagres haviamse tornado banais e existiam santuários especializados nesse gênero de prodígios que não surpreendiam mais ninguém M Bernos analisou esse fenômeno com sutileza a propósito de um milagre ocorrido na igreja da Annonciade de AixenProvence no primeiro domingo da Quaresma de 1558 O milagre não era mais a ressurreição fenômeno comum nessa igreja onde era hábito colocar os pequenos cadáveres sobre o altar e esperar pelos sinais freqüentes de uma reanimação para batizálos O que surpreendia e perturbava era o acendimento sobrenatural de uma vela durante a suspensão da morte este era o fato realmente extraordinário e não a reanimação Em 1479 o fato de as pessoas estarem acostumadas ainda não havia banido o assombro certamente ainda não se estava longe da origem da devoção Portanto foi como se as pessoas tivessem começado a descobrir a alma das crianças antes de seu corpo sob a pressão das tendências reformadoras da Igreja Mas quando a vontade dos litterati foi aceita ela foi imediatamente folclorizada e a criança começou sua carreira popular como heroína de um novo folclore religioso Um outro fato cuja importância não foi suficientemente sublinhada em meu livro ainda nos deterá um pouco mais nesse século XIV Tratase dos túmulos É verdade que eu disse algumas palavras a esse respeito no capítulo A Descoberta da Infância Mas algumas pesquisas recentes sobre a atitude diante da morte permitemme ser hoje mais preciso Entre as inúmeras inscrições funerárias dos quatro primeiros séculos de nossa era que em toda a parte solicitam o visitante de Roma muitas falam de crianças e mesmo de criancinhas de poucos meses de idade fulano e fulana pais consternados erigiram este monumento à memória de seu filho bemamado morto aos poucos meses ou anos de vida tantos anos tantos meses e tantos dias Em Roma na Gália e na Renânia numerosos túmulos esculpidos reuniam no mesmo monumento as imagens do casal e seus filhos Em seguida a partir dos séculos VVI aproximadamente a família e a criança desapareceram das representações e das inscrições funerárias Quando o uso do retrato retornou nos séculos XIXII os túmulos passaram a ser individuais com o marido e a mulher separados e é claro não havia túmulos esculpidos de crianças Em Fontevrault os túmulos dos dois reis Plantagenetas estão bem separados O hábito de reunir os dois e às vezes os três cônjuges o marido e suas duas mulheres sucessivas tornouse mais freqüente no século XIV época em que apareceram também embora ainda raros os túmulos com figuras de criancinhas Essa coincidência não foi fortuita No capítulo A Descoberta da Infância citei as esculturas de 1378 dos pequenos príncipes de Amiens Mas nesse caso tratavase de crianças reais Na igreja de Taverny podemos ver duas lajes murais com figuras e inscrições que são túmulos de crianças da família Montmorency A mais bem conservada é a de Charles de Montmorency falecido em 1369 A criança foi representada enrolada em seus cueiros o que não tural de uma vela durante a suspensão da morte este era o fato realmente extraordinário e não a reanimação Em 1479 o fato de as pessoas estarem acostumadas ainda não havia banido o assombro certamente ainda não se estava longe da origem da devoção Portanto foi como se as pessoas tivessem começado a descobrir a alma das crianças antes de seu corpo sob a pressão das tendências reformadoras da Igreja Mas quando a vontade dos litterati foi aceita ela foi imediatamente folclorizada e a criança começou sua carreira popular como heroína de um novo folclore religioso Um outro fato cuja importância não foi suficientemente sublinhada em meu livro ainda nos deterá um pouco mais nesse século XIV Tratase dos túmulos É verdade que eu disse algumas palavras a esse respeito no capítulo A Descoberta da Infância Mas algumas pesquisas recentes sobre a atitude diante da morte permitemme ser hoje mais preciso Entre as inúmeras inscrições funerárias dos quatro primeiros séculos de nossa era que em toda a parte solicitam o visitante de Roma muitas falam de crianças e mesmo de criancinhas de poucos meses de idade fulano e fulana pais consternados erigiram este monumento à memória de seu filho bemamado morto aos poucos meses ou anos de vida tantos anos tantos meses e tantos dias Em Roma na Gália e na Renânia numerosos túmulos esculpidos reuniam no mesmo monumento as imagens do casal e seus filhos Em seguida a partir dos séculos VVI aproximadamente a família e a criança desapareceram das representações e das inscrições funerárias Quando o uso do retrato retornou nos séculos XIXII os túmulos passaram a ser individuais com o marido e a mulher separados e é claro não havia túmulos esculpidos de crianças Em Fontevrault os túmulos dos dois reis Plantagenetas estão bem separados O hábito de reunir os dois e às vezes os três cônjuges o marido e suas duas mulheres sucessivas tornouse mais freqüente no século XIV época em que apareceram também embora ainda raros os túmulos com figuras de criancinhas Essa coincidência não foi fortuita No capítulo A Descoberta da Infância citei as esculturas de 1378 dos pequenos príncipes de Amiens Mas nesse caso tratavase de crianças reais Na igreja de Taverny podemos ver duas lajes murais com figuras e inscrições que são túmulos de crianças da família Montmorency A mais bem conservada é a de Charles de Montmorency falecido em 1369 A criança foi representada enrolada em seus cueiros o que não era freqüente na época Eis a inscrição bastante pretensiosa Hic Mai net inclusus adolescens et puerulusde Montmorenci Karolus tomba jacet istaanno mille C ter paradisii sensit iterac sexagesimo novem simul addas in illogaudeat in christo tempore perpetuo Charles tinha um meioirmão Jean morto em 1352 Seu túmulo subsiste mas os relevos de alabastro demasiado frágeis desapareceram de modo que não se sabe como a criança foi representada talvez também enrolada em seus cueiros Seu epitáfio em francês é mais simples Aqi jaz Jehan de Montmorency outrora filho do nobre e poderoso Charles senhor de Montmorency morto no ano da graça de mil trezentos e cinqüenta e dois no dia 29 de julho Nos dois casos em que há uma representação esculpida das crianças o epitáfio diz o nome do pai e a data da morte mas não fornece nem o nome da mãe nem a idade da criança e sabemos que no século XIV a idade do defunto geralmente era especificada No século XV os túmulos de crianças e pais reunidos ou de crianças sozinhas tornaramse mais freqüentes e no século XVI passaram a ser comuns como o demonstrarei baseado no repertório de Gaignières Mas esses túmulos esculpidos ou gravados eram reservados a famílias de uma certa importância social embora as lajes planas se tivessem tornado objeto de uma fabricação artesanal em série Mais freqüentes eram os pequenos quadros murais reduzidos a uma inscrição às vezes com uma pequena ilustração religiosa Ora alguns desses epitáfios simples referiamse a crianças e seu estilo se inspirava diretamente na epigrafia latina antiga Retomarase portanto o tema da saudade dos pais da criança que partira muito cedo Eis um desses epitáfios datado de 1471 da igreja de Sta Maria in Campitelli em Roma Petro Albertonio adolescentulocujus annos ingenium excedebat a criança notável por sua precocidade o pequeno prodígio Gregorius et Alteria parentesunico et dulcissimo particularmente chorado porque era filho único e isso em 1471 posuere qui vixit annos iv M IIIobitt MCCCLXXI Voltemos ao tema da criança enrolada em seus cueiros Foi somente no século XVII que os artistas começaram a representar a criança real na nudez do putto Antes ela aparecia enrolada em cueiros ou vestida Sabemos por outro lado que desde a Idade Média a alma era representada sob a forma de uma criança nua Ora existem alguns casos raros e curiosos em que a alma aparece também enrolada em cueiros Em Roma na igreja de Sta Maria in Trastevere uma assunção da Virgem do início do século XV mostra a alma da Virgem sob a forma de uma criança enrolada em cueiros nos braços de Cristo No museu de Luxemburgo há um túmulo de 1590 em que uma criança de cueiros é levada para o céu por dois anjos Não é a imagem de uma criancinha morta A nota explicativa nos informa que o defunto é um homem de 19 anos e portanto a criança de cueiros representa sua alma Esse tipo de representação não é freqüente mas conhecese ao menos um caso mais antigo e pode ser que houvesse uma tradição iconográfica nesse sentido O museu de Viena conserva um marfim bizantino do fim do século X em que a alma da Virgem também foi representada sob a forma de uma criança de cueiros Essa representação da alma bemaventurada sob a forma de uma criança na maioria dos casos idealizada e nua às vezes realista e enrolada em cueiros deve ser comparada ao que foi dito acima sobre o infanticídio e o batismo De fato para os espiritualistas medievais que estão na origem desse tipo de iconografia a alma do eleito possuía a mesma inocência invejável da criança batizada numa época em que entretanto na prática comum a criança era uma coisa divertida mas pouco importante É curioso constatar que a alma deixou de ser representada sob a forma de criança no século XVI quando a criança passou a ser representada por ela mesma e os retratos de crianças vivas e mortas se tornaram mais freqüentes Um curioso monumento funerário conservado no museu arqueológico de Senlis mostra como a situação se inverteu no fim do século XVII ele é consagrado à memória da mulher de Pierre Puget morta em Senlis em 1673 de uma cesariana A mulher aparece levada para o céu no meio de um monte de nuvens na pose da oração que é também a expressão da renúncia enquanto a criança que ela quis salvar aparece nua estendendolhe a palma do martírio com uma das mãos e com a outra agitando uma bandeirola com a inscrição Meruisti A criança aqui saiu do anonimato Haviase tornado muito personalizada para representar um modo de ser do além e por outro lado a alma estava muito ligada às características originais do indivíduo para ser evocada sob os traços impessoais de uma alegoria Daí em diante as relações entre os defuntos e os sobreviventes seriam tais que os últimos desejariam lembrar e conservar os primeiros em casa e não mais apenas na igreja ou no túmulo No museu Magnien de Dijon existe uma pintura atribuída a Hyacinthe Rigaud Ela mostra um menino e uma menina de aspecto vivo e a seu lado o retrato emoldurado por um medalhão de uma mulher madura de luto que parece morta Ora tudo leva a crer que a mulher do medalhão estava bem viva mas se considerava como uma morta cuja 13 lembrança era conservada por um retrato semifunerário por outro lado ela mandara pintar seus filhos estes sim realmente mortos com todas as aparências da vida Foi no fim do século XVII e início do XVIII que situei partindo de fontes principalmente francesas o recolhimento da família longe da rua da praça da vida coletiva e sua retração dentro de uma casa melhor defendida contra os intrusos e melhor preparada para a intimidade Essa nova organização do espaço privado havia sido obtida através da independência dos cômodos que se comunicavam por meio de um corredor em lugar de se abrirem um para o outro e de sua especialização funcional sala de visitas sala de jantar quarto de dormir etc Um artigo muito interessante de R A Goldthwaite mostra que em Florença já no século XV podiase observar uma privatização da vida familiar bastante análoga a despeito de certas diferenças 12 O autor apóia sua argumentação numa análise dos palácios florentinos de sua aparência exterior e do que é possível saber sobre sua organização interna Sua análise referese portanto a famílias patrícias O palácio florentino dos séculos XIIIXIV caracterizavase principalmente pela torre destinada à defesa e pela loggia que dava para a rua no andar térreo onde os parentes amigos e clientes se reuniam para assistir à vida pública do bairro e da cidade e dela participar Não havia então solução de continuidade entre a vida pública e a vida familiar uma prolongava a outra exceto em caso de crise quando o grupo ameaçado se refugia na torre A não ser pela torre e pela loggia o palácio mal se distinguia de sua vizinhança urbana No nível da rua o andar térreo das construções compunhase de arcadas que se prolongavam de uma casa a outra eram as entradas das lojas mas também o acesso dos palácios e de suas escadarias No interior tampouco havia unidade e o espaço não coincidia com o da família as peças atribuídas à família principal prolongavamse pela casa ao lado enquanto por outro lado alguns locatários ocupavam partes centrais No século XV o palácio florentino modificou sua planta seu aspecto e seu sentido Antes de mais nada o palácio tornouse uma unidade monumental um maciço solto da vizinhança As lojas desapareceram assim como os ocupantes estranhos O espaço assim separado foi reservado à família uma família pouco extensa As loggia que davam 14 para a rua foram fechadas ou suprimidas Se o palácio passou a testemunhar melhor do que antes o poderio de uma família ele deixou também de se abrir para o exterior A vida quotidiana passou a concentrarse no interior de um quadrilátero rude a salvo dos barulhos e das indiscrições da rua O palácio escreve R Goldthwaite pertencia a um mundo novo de privacy reservado a um grupo relativamente pequeno De fato o número de cômodos não era elevado no palácio Strozzi apenas um andar era habitado e não havia mais do que uma dúzia de cômodos É verdade que todos esses cômodos eram enfileirados e não havia um corredor ou um espaço central de circulação o que não permitia portanto que os moradores se isolassem e fizessem respeitar uma verdadeira intimidade como a arquitetura do século XVIII tornaria possível Sabemos por outro lado que a família florentina do quattrocento não era numerosa 13 O palácio florentino não abrigava o mundo de servidores e criados comuns nas grandes casas da França e da Inglaterra nos séculos XVXVI e também na Itália barroca do século XVII ele não abrigava mais do que dois ou três servidores que nem sempre eram conservados por muito tempo O modelo florentino é portanto diferente do que apresentei Poderia ser comparado ao do século XVIII francês pelo tamanho da família e a exclusão dos criados se sua privatização não se traduzisse num tipo de espaço ainda pouco compatível com a intimidade A originalidade florentina reside portanto numa mistura de intimidade com vastidão bem analisada por R Goldthwaite esses palácios eram evidentemente concebidos para atribuir a uma família pequena um mundo privado um mundo próprio mas extraordinariamente vasto que se estendia muito além dos poucos cômodos onde as pessoas viviam Na realidade a melhor maneira de sublinhar a novidade desse palácio é descrevêlo como uma expansão do espaço privado a partir do núcleo constituído por um apartamento de dimensões médias É certo que não se conhece a destinação dos cômodos de habitação se é que já tinham Talvez o studiolio ancestral do gabinete francês tenha sido nessa sociedade humanista a primeira forma de especialização do espaço privado E no entanto nessa mesma época começouse a ornamentar com pequenos objetos semelhantes aos bibelôs franceses esses cômodos sem função precisa mas destinados à vida privada Esse hábito nos dá a mesma impressão de gosto pelo bemestar privado que sentimos diante das pinturas representando o nascimento da Virgem quer sejam flamengas francesas alemãs ou italianas e diante de todas as representações de interiores do século XV em que o pintor se compraz em mostrar os objetos preciosos ou familiares É normal que num espaço tão privatizado tenha surgido um sentimento novo entre os membros da família e mais particularmente entre a mãe e a criança o sentimento de família essa cultura diz R Goldthwaite centralizavase nas mulheres e nas crianças com um interesse renovado pela educação das crianças e uma notável elevação do estatuto da mulher Como explicar de outra forma a fascinação a quase obsessão pelas crianças e pela relação mãecriança que talvez seja o único tema realmente essencial do Renascimento com seus putti suas crianças e seus adolescentes suas madonas secularizadas e seus retratos de mulheres Se o palácio do Renascimento era portanto a despeito de suas vastas dimensões reservado à família nuclear recolhida atrás de suas paredes maciças o palácio barroco como observa R Goldthwaite era mais aberto ao movimento da criadagem e da grande clientela e se aproximava mais do modelo da casa grande francesa castelo mansão hotel ou grande casa rural dos séculos XVIXVII antes da divisão em apartamentos independentes do século XVIII O episódio florentino do século XV é importante e sugestivo Eu já havia observado e comentado em meu livro a frequência desde o século XV e durante o XVI dos sinais de um reconhecimento da infância tanto na iconografia como na educação com o colégio Mas R Goldthwaite descobriu no palácio florentino uma relação muito precisa entre o início do sentimento da família e da criança e uma organização particular do espaço Somos levados a estender suas conclusões e a supor uma relação análoga entre a busca da intimidade familiar e pessoal e todas as representações de interiores desde a miniatura do século XIV até as pinturas da escola holandesa O dossiê está longe de ser fechado A história da família está aparecendo e mal começa a despertar o interesse da pesquisa Após um longo silêncio eila que se encaminha em várias direções Seus caminhos foram preparados pela história demográfica e só espero que ela não sofra a mesma inflação Hoje o período mais estudado vai do século XVI ao XVIII A escola de Cambridge com P Laslett e E A Wrigley empenhada em esclarecer de uma vez por todas a composição da família extensa ou conjugal 14 provocou algumas reações na Fran 13 D Herlihy Vieillirà Florence au Quattrocento Annales ESC 24 novembrodezembro de 1969 p 1340 14 Colóquio de 1969 em Cambridge Household and Family in Past Time Completarei a bibliografia com as seguintes obras I Pinchbeck e M Hewitt Children in English Society vol 1 Londres Toronto 1969 K A Lokridge A New England Town 15 ca aprovação no que concerne à França do Norte reservas no que concerne à França do Sul Os jovens historiadores franceses parecem mais preocupados com a formação J M Gouesse ou a dissolução A Lottin do casal Outros ainda como o historiador norteamericano E Shorter se interessam pelos sinais anunciadores no fim do século XVIII de uma maior liberdade de costumes A bibliografia começa a se alongar poderá ser encontrada bem como a situação atual dos problemas em três números dos Annales ESC 15 Esperemos apenas que a história da família não fique abafada sob a abundância de publicações inspiradas por seu sucesso como aconteceu com sua jovem ancestral a história demográfica A multiplicação das pesquisas sobre o período do século XVII ao XVIII facilitada pela existência de uma documentação mais rica do que se imaginava confirmará ou invalidará algumas hipóteses Contudo num futuro que já se anuncia corremos o risco de repetir ad nauseam os mesmos temas com pequenos progressos que justificariam mal a amplitude dos investimentos intelectuais e informáticos Ao contrário é do lado da Idade Média e da Antigüidade que deveriam vir as informações mais decisivas Esperamos com impaciência pelos primeiros resultados das pesquisas de M Manson sobre os brinquedos as bonecas em última análise as crianças durante a Antigüidade Seria preciso também interrogar melhor do que o que fiz as fontes medievais os inesgotáveis séculos XIV e XV tão importantes para o futuro de nossa civilização e antes deles a fronteira capital dos séculos XIXII e mais atrás ainda A história das mentalidades é sempre quer o admita ou não uma história comparativa e regressiva Partimos necessariamente do que sabemos sobre o comportamento do homem de hoje como de um modelo ao qual comparamos os dados do passado com a condição de a seguir considerar o modelo novo construído com o auxilio dos dados do passado como uma segunda origem e descer novamente até o presente modificando a imagem ingênua que tínhamos no início No ponto em que estamos hoje as relações entre os séculos XVIIXVIII e os séculos XIXXX não estão esgotadas mas os progressos reais só serão obtidos com uma obstinação cansativa Por outro lado a decifração dos séculos e dos milênios que precederam o século XVI 16 poderia nos trazer uma nova dimensão É daí que devemos esperar os progressos decisivos 16 MaisonsLaffitte 1973 16 Nestas poucas páginas limiteime aos temas da infância e da família deixando de lado os problemas particulares da educação e da escola Estes últimos a partir de 1960 tornaramse objeto de numerosos trabalhos como por exemplo P Riché Education et Culture dans lOccidenti barbare Paris 1962 G Snyders La Pédagogie en France aux XVII et XVIII siècles Paris 1963 H Derreal Un Missionaire de la ContreReforme Saint Pierre Fourier Paris 1965 Ph Ariès Problèmes de léducation in La France et les Français enc La Pléiade 1972 pp 869961 Um panorama geral foi apresentado no Colóquio de Marselha organizado por R Duchene e publicado sob o título Le XVIIe siècle et léducation na revista Marseille no 88 fartas bibliografias Nova York 1970 J Demos A Little Commonwealth Nova York 1970 artigos dos Annales ESC citados adiante 15 Annales ESC 24 no 6 1969 pp 12751430 27 nos 45 1972 pp 7991233 27 no 6 1972 pp 13511388 A criança é um anão mas um anão seguro de que não permanecerá anão salvo em caso de feitiçaria O anão não seria em compensação uma criança condenada a não crescer e mesmo a se tornar imediatamente um velho encarquilhado A outra crítica é a de N Z Davis num notável estudo intitulado The Reasons of Misrule Youth Groups and Charivaris in Sixteenth Century France Seu argumento é mais ou menos o seguinte como pude eu sustentar que a sociedade tradicional confundia as crianças e os jovens com os adultos ignorando o conceito de juventude se a juventude desempenhava nas comunidades rurais e também urbanas um papel permanente de organização das festas e dos jogos de controle dos casamentos e das relações sexuais sancionados pelos charivaris M Agulhon por sua vez em seu belo livro sobre os penitentes e os francomaçons consagrou um capítulo às sociedades da juventude que interessam cada vez mais aos historiadores de hoje na medida em que estes se sentem atraídos pelas culturas populares O problema colocado por N Z Davis não me escapou No presente livro confesso que preguiçosamente o pus de lado reduzindo à condição de vestígios hábitos folclóricos cuja extensão e importância foram demonstradas por N Z Davis M Agulhon e outros Na verdade eu não devia estar com a consciência tranqüila pois voltei a este problema nas primeiras páginas de uma história da educação na França Reconheci em épocas anteriores à Idade Média nas áreas de civilização rural e oral a existência de uma organização das comunidades em classes de idade com ritos de passagem segundo o modelo dos etnólogos Nessas sociedades cada idade teria sua função e a educação seria então transmitida pela iniciação e no interior da classe de idade pela participação nos serviços por ela assegurados Gostaria que me fosse permitido abrir um parêntese e mencionar a opinião de um jovem amigo arqueólogo Visitávamos as escavações de Malia em Creta e falávamos sem muita seqüência sobre Janroy Homero Duby sobre as estruturas formadas por classes de idade dos etnólogos e seu reaparecimento na Alta Idade Média quando ele me disse mais ou menos o seguinte em nossas antigas civilizações jamais percebemos essas estruturas etnográficas em estado de imobilidade em sua plena maturidade e sim sempre em estado de sobrevivência quer seja o motivo que inspirava essa epigrafia ela parece estar ligada ao sentimento da família e a seu desenvolvimento na época Esses retratos de família datados eram documentos de história familiar como o seriam três ou quatro séculos mais tarde os álbuns de fotografias Frutos desse mesmo espírito eram os diários de família onde eram anotados além das contas os acontecimentos domésticos os nascimentos e as mortes Nesses diários se uniam a preocupação com a precisão cronológica e o sentimento familiar Tratavase menos das coordenadas do indivíduo do que das dos membros da família as pessoas sentiam necessidade de dar à vida familiar uma história datandoa Essa curiosa preocupação em datar não aparecia apenas nos retratos mas também nos objetos e na mobília No século XVII generalizouse o hábito de gravar ou pintar uma data nas camas cofres baús armários colheres ou copos de cerimônia A data correspondia a um momento solene da história familiar geralmente um casamento Em certas regiões na Alsácia na Suíça na Áustria e na Europa central os móveis do século XVII ao XIX especialmente os móveis pintados eram datados trazendo também o nome de seus dois proprietários Observei no museu de Thun entre outras a seguinte inscrição sobre um baú Hans Bischof 1709 Elizabeth Misler As vezes as pessoas se contentavam com suas iniciais de cada lado da data a data do casamento Esse costume seria muito difundido na França e só desapareceria no fim do século XIX um pesquisador do Museu de Artes e Tradições Populares 6 descobriu por exemplo a seguinte inscrição num móvel da região da HauteLoire 1873 LT JV A inscrição das idades ou de uma data num retrato ou num objeto correspondia ao mesmo sentimento que tendia a dar à família maior consistência histórica Esse gosto pela inscrição cronológica embora tenha subsistido até meados do século XIX pelo menos entre as camadas médias desapareceu rapidamente na cidade e na corte onde foi logo considerado ingênuo e provinciano A partir de meados do século XVII as inscrições tenderam a desaparecer dos quadros podiam ser encontradas ainda mas em pintores de província ou provincializantes A bela mobília da época era assinada ou quando datada erao discretamente Apesar dessa importância que a idade adquiriu na epigrafia familiar no século XVI subsistiram nos costumes curiosos resquícios do tempo em que era raro e difícil uma pessoa lembrarse de sua idade Observei acima que nosso Paulinho sabe sua idade desde o mo6 Museu de Artes e Tradições Populares Exposição de 1953 nº 778 mento em que começa a falar Sancho Pança não sabia exatamente a idade de sua filha a quem entretanto amava muito Ela pode ter 15 anos ou dois anos a mais ou a menos Mas é alta como uma lança e fresca como uma manhã de abril Tratavase de um homem do povo No século XVI e mesmo nas categorias escolarizadas em que se observaram mais cedo hábitos de precisão moderna as crianças sem dúvida sabiam sua idade mas um hábito muito curioso de boasmaneiras obrigavaas a não confessála claramente e a responder com certas reservas Quando o humanista e pedagogo Thomas Platter natural do Valais conta a história de sua vida 8 diz com bastante precisão quando e onde nasceu mas se considera obrigado a envolver o fato numa prudente paráfrase E para começar não há nada que eu possa garantir menos do que a época exata de meu nascimento Quando tive a idéia de me informar sobre a data de meu nascimento responderamme que eu tinha vindo ao mundo em 1499 no domingo da Quinquagésima no exato momento em que os sinos chamavam para a missa Curiosa mistura de incerteza e rigor Na verdade não se deve tomar essa reserva ao pé da letra tratase de uma reserva de praxe lembrança de um tempo em que não se sabia jamais uma data exata O surpreendente é que essa reserva se tivesse tornado um hábito de boasmaneiras pois era assim que convinha dizer a própria idade a um interlocutor Nos diálogos de Cordier 9 dois meninos se interrogam na escola durante o recreio Quantos anos você tem Treze anos como ouvi minha mãe dizer Mesmo quando os hábitos de cronologia pessoal eram aceitos pelos costumes eles não chegavam a se impor como um conhecimento positivo e não dissipavam de imediato a antiga obscuridade da idade que substitui ainda algum tempo nos hábitos de civilidade As idades da vida ocupam um lugar importante nos tratados pseudocientíficos da Idade Média Seus autores empregam uma terminologia que nos parece puramente verbal infância e puerilidade juventude e adolescência velhice e senilidade cada uma dessas palavras designando um período diferente da vida Desde então adotamos algumas dessas palavras para designar noções abstratas como puerilidade ou senilidade mas estes sentidos não estavam contidos nas primeiras acepções De fato tratavase originalmente de uma terminologia erudita que com o tempo se tornou familiar As idades idades da vida ou idades do homem correspondiam no espírito 7 Dom Quixote parte II cap 13 8 Vie de Thomas Platter o velho Lausanne ed E Fick 1895 9 Mathurin Cordier Les Colloques Paris 1586 O Sentimento da Infância 1 As Idades da Vida Um homem do século XVI ou XVII ficaria espantado com as exigências de identidade civil a que nós nos submetemos com naturalidade Assim que nossas crianças começam a falar ensinamoslhes seu nome o nome de seus pais e sua idade Ficamos muito orgulhosos quando Paulinho ao ser perguntado sobre sua idade responde corretamente que tem dois anos e meio De fato sentimos que é importante que Paulinho não erre que seria dele se esquecesse sua idade Na savana africana a idade é ainda uma noção bastante obscura algo não tão importante a ponto de não poder ser esquecido Mas em nossas civilizações técnicas como poderíamos esquecer a data exata de nosso nascimento se a cada viagem temos de escrevêla na ficha de polícia do hotel se a cada candidatura a cada requerimento a cada formulário a ser preenchido e Deus sabe quantos há e quantos haverá no futuro é sempre preciso recordála Paulinho dará sua idade na escola e logo se tornará Paulo N da turma x Quando arranjar seu primeiro emprego junto com sua carteira de trabalho receberá um número de inscrição que passará a acompanhar seu nome Ao mesmo tempo e até mesmo mais do que Paulo N ele será um número que começará por seu sexo seu ano e mês de nascimento Um dia chegará em que todos os cidadãos terão seu número de registro esta é a meta dos serviços de identidade Nossa personalidade civil já se exprime com maior precisão através de nossas coordenadas de nascimento do que através de nosso sobrenome Este com o tempo poderia muito bem não desaparecer mas ficar reservado à vida particular enquanto um número de identidade em que a data de nascimento seria um dos elementos o substituiria para o uso civil Na Idade Média o primeiro nome já fora considerado uma designação muito imprecisa e foi necessário completálo por um sobrenome de família muitas vezes um nome de lugar Agora tornouse conveniente acrescentar uma nova precisão de caráter numérico a idade O nome pertence ao mundo da fantasia enquanto o sobrenome pertence ao mundo da tradição A idade quantidade legalmente mensurável com uma precisão quase de horas é produto de um outro mundo o da exatidão e do número Hoje nossos hábitos de identidade civil estão ligados ao mesmo tempo a esses três mundos Entretanto existem documentos que nos comprometem seriamente que nós mesmos redigimos mas cuja redação não exige a indicação da data de nascimento De gêneros bastante diferentes esses documentos podem ser títulos de comércio letras de câmbio ou cheques ou ainda testamentos Todos eles porém foram inventados em épocas muito remotas antes que o rigor da identidade moderna se introduzisse nos costumes A inscrição do nascimento nos registros paroquiais foi imposta aos párocos da França por Francisco I Para que fosse respeitada foi preciso que essa medida já prescrita pela autoridade dos concílios fosse aceita pelos costumes que durante muito tempo se mantiveram avessos ao rigor de uma contabilidade abstrata Acreditase que foi somente no século XVIII que os párocos passaram a manter seus registros com a exatidão ou a consciência de exatidão que um Estado moderno exige de seus funcionários de registro civil A importância pessoal da noção de idade deve terse afirmado à medida que os reformadores religiosos e civis a impuseram nos documentos começando pelas camadas mais instruídas da sociedade ou seja no século XVI aquelas camadas que passavam pelos colégios Nas memórias dos séculos XVI e XVII que consultei para reconstituir alguns exemplos de escolaridade 1 não é raro encontrar no início da narrativa a idade ou a data e o lugar de nascimento do narrador Em certos casos a idade chega a tornarse objeto de uma atenção especial É inscrita nos retratos como um sinal suplementar de individualização de exatidão e de autenticidade Em numerosos retratos do século XVI encontramos inscrições do gênero Aetatis suae 29 o vigésimo nono ano de sua idade com a data da pintura ANDNI 1551º retrato de Jean Fernaguut por Pourbus Bruges 2 Nos retratos de personagens ilustres nos retratos da corte essa referência geral está ausente ela subsiste seja sobre a tela seja sobre a moldura antiga dos retratos de família ligada a um simbolismo familiar Um dos exemplos mais antigos talvez seja o admirável retrato de Margaretha Van Eyck no alto colnljux meuss Johnhannes me com plevit anno 1439º 17 Junii quanta precisão meu marido me pintou em 17 de junho de 1439 e embaixo Aetas mea triginta trium annorum 33 anos Muitas vezes esses retratos do século XVI formam pares um representa a mulher e o outro o marido Os dois trazem a mesma data repetida portanto duas vezes ao lado da idade de cada um dos cônjuges as duas telas de Pourbus representando Jean Fernaguut e sua mulher Adrienne de Buc 3 trazem a mesma indicação Anno domini 1551 no retrato do homem lêse Aetatis suae 29 e no da mulher 19 Há casos também em que os retratos do marido e da mulher se acham reunidos na mesma tela como o retrato dos Van Gindertaelen atribuído a Pourbus em que o casal é representado junto com seus dois filhinhos O marido traz uma das mãos no quadril e apóia a outra no ombro da mulher As duas crianças brincam a seus pés A data é 1559 Do lado do marido aparecem suas armas com a inscrição aetus an 27 e do lado da mulher as armas de sua família e a inscrição Aetatis mec 20 4 Esses dados de identidade civil assumem às vezes o papel de uma verdadeira fórmula epigráfica como no quadro de Martin de Voos datado de 1572 que representa Antoon Anselme um magistrado de Antuérpia sua mulher e seus dois filhos 5 Os dois cônjuges estão sentados dos lados opostos de uma mesa um segurando o menino e o outro a menina Entre suas cabeças no alto e no meio da tela aparece uma bela faixa de pergaminho cuidadosamente ornamentada com a seguinte inscrição concordi ac antonii anselmi et johanne HoofImans felicia propagini Martino de Vos pictore DD natus est ille ann MDXXXVI die IX febr uxor ann MDLV D XVI decembr liberi à Aegidius ann MDLXXV XXI Augusti Johanna ann MDLXVI XXVI septembr Essa inscrição sugere 2 Exposição da Orangerie O Retrato na Arte Flamenga Paris 1952 nº 67 nº 18 3 Op cit nºs 67 e 68 4 Op cit nº 71 5 Op cit nº 93 30 HISTÓRIA SOCIAL DA CRIANÇA E DA FAMÍLIA AS IDADES DA VIDA 31 nhar seu nome Ao mesmo tempo e até mesmo mais do que Paulo N ele será um número que começará por seu sexo seu ano e mês de nascimento Um dia chegará em que todos os cidadãos terão seu número de registro esta é a meta dos serviços de identidade Nossa personalidade civil já se exprime com maior precisão através de nossas coordenadas de nascimento do que através de nosso sobrenome Este com o tempo poderia muito bem não desaparecer mas ficar reservado à vida particular enquanto um número de identidade em que a data de nascimento seria um dos elementos o substituiria para o uso civil Na Idade Média o primeiro nome já fora considerado uma designação muito imprecisa e foi necessário completálo por um sobrenome de família muitas vezes um nome de lugar Agora tornouse conveniente acrescentar uma nova precisão de caráter numérico a idade O nome pertence ao mundo da fantasia enquanto o sobrenome pertence ao mundo da tradição A idade quantidade legalmente mensurável com uma precisão quase de horas é produto de um outro mundo o da exatidão e do número Hoje nossos hábitos de identidade civil estão ligados ao mesmo tempo a esses três mundos Entretanto existem documentos que nos comprometem seriamente que nós mesmos redigimos mas cuja redação não exige a indicação da data de nascimento De gêneros bastante diferentes esses documentos podem ser títulos de comércio letras de câmbio ou cheques ou ainda testamentos Todos eles porém foram inventados em épocas muito remotas antes que o rigor da identidade moderna se introduzisse nos costumes A inscrição do nascimento nos registros paroquiais foi imposta aos párocos da França por Francisco I Para que fosse respeitada foi preciso que essa medida já prescrita pela autoridade dos concílios fosse aceita pelos costumes que durante muito tempo se mantiveram avessos ao rigor de uma contabilidade abstrata Acreditase que foi somente no século XVIII que os párocos passaram a manter seus registros com a exatidão ou a consciência de exatidão que um Estado moderno exige de seus funcionários de registro civil A importância pessoal da noção de idade deve terse afirmado à medida que os reformadores religiosos e civis a impuseram nos documentos começando pelas camadas mais instruídas da sociedade ou seja no século XVI aquelas camadas que passavam pelos colégios Nas memórias dos séculos XVI e XVII que consultei para reconstituir alguns exemplos de escolaridade 1 não é raro encontrar no início da narrativa a idade ou a data e o lugar de nascimento do narrador Em certos casos a idade chega a tornarse objeto de uma atenção especial É inscrita nos retratos como um sinal suplementar de individualização de exatidão e de autenticidade Em numerosos retratos do século XVI encontramos inscrições do gênero Aetatis suae 29 o vigésimo nono ano de sua idade com a data da pintura ANDNI 1551º retrato de Jean Fernaguut por Pourbus Bruges 2 Nos retratos de personagens ilustres nos retratos da corte essa referência geral está ausente ela subsiste seja sobre a tela seja sobre a moldura antiga dos retratos de família ligada a um simbolismo familiar Um dos exemplos mais antigos talvez seja o admirável retrato de Margaretha Van Eyck no alto colnljux meuss Johnhannes me com plevit anno 1439º 17 Junii quanta precisão meu marido me pintou em 17 de junho de 1439 e embaixo Aetas mea triginta trium annorum 33 anos Muitas vezes esses retratos do século XVI formam pares um representa a mulher e o outro o marido Os dois trazem a mesma data repetida portanto duas vezes ao lado da idade de cada um dos cônjuges as duas telas de Pourbus representando Jean Fernaguut e sua mulher Adrienne de Buc 3 trazem a mesma indicação Anno domini 1551 no retrato do homem lêse Aetatis suae 29 e no da mulher 19 Há casos também em que os retratos do marido e da mulher se acham reunidos na mesma tela como o retrato dos Van Gindertaelen atribuído a Pourbus em que o casal é representado junto com seus dois filhinhos O marido traz uma das mãos no quadril e apóia a outra no ombro da mulher As duas crianças brincam a seus pés A data é 1559 Do lado do marido aparecem suas armas com a inscrição aetus an 27 e do lado da mulher as armas de sua família e a inscrição Aetatis mec 20 4 Esses dados de identidade civil assumem às vezes o papel de uma verdadeira fórmula epigráfica como no quadro de Martin de Voos datado de 1572 que representa Antoon Anselme um magistrado de Antuérpia sua mulher e seus dois filhos 5 Os dois cônjuges estão sentados dos lados opostos de uma mesa um segurando o menino e o outro a menina Entre suas cabeças no alto e no meio da tela aparece uma bela faixa de pergaminho cuidadosamente ornamentada com a seguinte inscrição concordi ac antonii anselmi et johanne HoofImans felicia propagini Martino de Vos pictore DD natus est ille ann MDXXXVI die IX febr uxor ann MDLV D XVI decembr liberi à Aegidius ann MDLXXV XXI Augusti Johanna ann MDLXVI XXVI septembr Essa inscrição sugere 2 Exposição da Orangerie O Retrato na Arte Flamenga Paris 1952 nº 67 nº 18 3 Op cit nºs 67 e 68 4 Op cit nº 71 5 Op cit nº 93 30 HISTÓRIA SOCIAL DA CRIANÇA E DA FAMÍLIA AS IDADES DA VIDA 31 de nossos ancestrais a noções positivas tão conhecidas tão repetidas e tão usuais que passaram do domínio da ciência ao da experiência comum Hoje em dia não temos mais idéia da importância da noção de idade nas antigas representações do mundo A idade do homem era uma categoria científica da mesma ordem que o peso ou a velocidade o são para nossos contemporâneos Pertencia a um sistema de descrição e de explicação física que remontava aos filósofos jônicos do século VI aC que fora revivido pelos compiladores medievais nos escritos do Império Bizantino e que ainda inspirava os primeiros livros impressos de vulgarização científica no século XVI Não tencionamos determinar aqui sua formulação exata e seu lugar na história das ciências Importanos apenas perceber em que medida essa ciência se havia tornado familiar seus conceitos haviam passado para os hábitos mentais e o que ela representava na vida cotidiana Compreenderemos melhor o problema examinando a edição de 1556 Le Grand Propriétaire de toutes choses Tratavase de uma compilação latina do século XIII que retomava todos os dados dos escritores do Império Bizantino Considerouse oportuno traduzila para o francês e darlhe através da impressão uma maior difusão essa ciência antigomedieval era portanto em meados do século XVI objeto de vulgarização Le Grand Propriétaire de toutes choses é uma enciclopédia de todos os conhecimentos profanos e sacros uma espécie de GrandLarousse mas que teria uma concepção nãoanalítica e traduziria a unidade essencial da natureza e de Deus Uma física uma metafísica uma história natural uma fisiologia e uma anatomia humanas um tratado de medicina e de higiene uma astronomia e ao mesmo tempo uma teologia Vinte livros tratam de Deus dos anjos dos elementos do homem e de seu corpo das doenças do céu do tempo da matéria do ar do fogo dos pássaros etc O último livro é consagrado aos números e às medidas Havia também nesses livros algumas receitas práticas Uma idéia geral emanava da obra idéia erudita que logo se tornou extremamente popular a idéia da unidade fundamental da natureza da solidariedade existente entre todos os fenômenos da natureza que não se separam das manifestações sobrenaturais A idéia de que não havia oposição entre o natural e o sobrenatural pertencia ao mesmo tempo às crenças populares herdadas do paganismo e a uma ciência tanto física quanto teológica Eu diria que essa concepção rigorosa da unidade da natureza deve ser considerada responsável pelo atraso do desenvolvimento científico muito mais do que a autoridade da Tradição dos Antigos ou da Escritura Nós só agimos sobre um elemento da natureza quando admitimos que ele é suficientemente isolável A partir de um certo grau de solidariedade entre os fenômenos tal como postula o Le Grand Propriétaire não é mais possível intervir sem provocar reações em cadeia sem destruir a ordem do mundo nenhuma das categorias do cosmo dispõe de uma autonomia suficiente e nada pode ser feito contra o determinismo universal O conhecimento da natureza limitase então ao estudo das relações que comandam os fenômenos através de uma mesma causalidade um conhecimento que prevê mas que não modifica Não há meio de fugir a essa causalidade exceto através da magia ou do milagre Uma mesma lei rigorosa rege ao mesmo tempo o movimento dos planetas o ciclo vegetativo das estações as relações entre os elementos o corpo humano e seus humores e o destino do homem assim a astrologia permite conhecer as incidências pessoais desse determinismo universal Ainda em meados do século XVII a prática da astrologia era bastante difundida para que Molière esse espírito cético a tomasse por alvo de suas caçoada em Les Amants Magnifiques A correspondência dos números aparecia então como uma das chaves dessa solidariedade profunda o simbolismo dos números era familiar encontravase ao mesmo tempo nas especulações religiosas nas descrições de física de história natural e nas práticas mágicas Por exemplo havia uma correspondência entre o número dos elementos o dos temperamentos do homem e o das estações o número 4 Para nós é difícil imaginar essa concepção formidável de um mundo maciço do qual se perceberiam apenas algumas correspondências A ciência havia permitido formular as correspondências e definir as categorias que elas ligavam Mas essas correspondências com o passar dos séculos tinham deslizado do domínio da ciência para o do mito popular Essas concepções nascidas na Jônia do século VI com o tempo haviam sido adotadas pela mentalidade comum e as pessoas representavam o mundo dessa forma As categorias da ciência antigomedieval se haviam tornado familiares os elementos os temperamentos os planetas e seu sentido astrológico e o simbolismo dos números As idades da vida eram também uma das formas comuns de conceber a biologia humana em relação com as correspondências secretas internaturais Essa noção destinada a se tornar tão popular certamente não remontava às belas épocas da ciência antiga Pertencia às especulações dramáticas do Império Bizantino ao século VI 10 Le Grand Propriétaire de toutes choses très utile et profitabie pour tenir le corps en santé por B de Glanville traduzido para o francês por Jean Corbichon 1556 11 Comparetti Virgile nel m e tomo I 14155 19 Fulgêncio a percebia oculta na Eneida detectava no naufrágio de Enéias o símbolo do nascimento do homem em meio às tempestades da existência Interpretava os cantos II e III como a imagem da infância ávida de narrativas fabulosas e assim por diante Um afresco da Arábia do século VIII já representava as idades da vida Os textos da Idade Média sobre esse tema são abundantes Le Grand Propriétaire de toutes choses trata das idades em seu livro VI Ai as idades correspondem aos planetas em número de 7 A primeira idade é a infância que planta os dentes e essa idade começa quando a criança nasce e dura até os sete anos e nessa idade aquilo que nasce é chamado de enfant criança que quer dizer não falante pois nessa idade a pessoa não pode falar bem nem formar perfeitamente suas palavras pois ainda não tem seus dentes bem ordenados nem firmes como dizem Isidoro e Constantino Após a infância vem a segunda idade chamase puerit ia e é assim chamada porque nessa idade a pessoa é ainda como a menina do olho como diz Isidoro e essa idade dura até os 14 anos Depois seguese a terceira idade que é chamada de adolescência que termina segundo Constantino em seu viático no vigésimo primeiro ano mas segundo Isidoro dura até 28 anos e pode estenderse até 30 ou 35 anos Essa idade é chamada de adolescência porque a pessoa é bastante grande para procriar disse Isidoro Nessa idade os membros são moles e aptos a crescer e a receber força e vigor do calor natural E por isso a pessoa cresce nessa idade toda a grandeza que lhe é devida pela natureza O crescimento no entanto termina antes dos 30 ou 35 anos e até mesmo antes dos 28 Certamente devia ser ainda menos tardio numa época em que o trabalho precoce mobilizava mais cedo as reservas do organismo Depois seguese a juventude que está no meio das idades embora a pessoa aí esteja na plenitude de suas forças e essa idade dura até 45 anos segundo Isidoro ou até 50 segundo os outros Essa idade é chamada de juventude devido à força que está na pessoa para ajudar a si mesma e aos outros disse Aristóteles Depois seguese a senectude segundo Isidoro que está a meio caminho entre a juventude e a velhice e Isidoro a chama de gravidade porque a pessoa nessa idade é grave nos costumes e nas maneiras e nessa idade a pessoa não é velha mas passou a juventude como diz Isidoro Após essa idade seguese a velhice que dura segundo alguns até 70 anos e segundo outros não tem fim até a morte A velhice segundo Isidoro é assim chamada porque as pessoas velhas já não têm os sentidos tão bons como já tiveram e caducam em sua velhice A última parte da velhice é chamada senies em latim mas em francês não possui outro nome além de vieillesse O velho está sempre tossindo escarrando e sujando ainda estamos longe do nobre ancião de Greuze e do Romantismo até voltar a ser a cinza da qual foi tirado Embora hoje em dia possamos achar esse jargão vazio e verbal ele tinha um sentido para seus leitores um sentido próximo do da astrologia ele evocava o laço que unia o destino do homem aos planetas O mesmo gênero de correspondência sideral havia inspirado uma outra periodização ligada aos 12 signos do zodíaco relacionando assim as idades da vida com um dos temas mais populares e mais comoventes da Idade Média sobretudo gótica as cenas do calendário Um poema do século XIV várias vezes reimpresso nos séculos XV e XVI desenvolve esse calendário das idades Les six premiers ans que vit lhomme au moode Nous comparons á janvier droite ment Car en ce moys vertu ne force habonde Ne plus que quant six ans ha ung enfant Ou segundo a versão do século XV Les autres VI ans la font croistre Aussi fait février tous les ans Quenfín se trait sur le printemps Et quand les ans a XVIII Il se change en tel deduit Quil cuide valoir mille mors Et aussi se change li mars En beauté et reprend chalour Du mois qui vient après septembre Quon appelle mois doutembre Quil a LX ans et non plus Lors devient vieillard et chenu Et a donc lui doit souvenir Que le temps le mène mourir 13 Grant Kalendrier et compost des bergiers edição de 1500 apud J Morawski Les douze mois figurez Archivum romanicum 1926 pp 351 a 363 Os seis primeiros anos que o homem vive no mundo a janeiro com razão os comparamos pois nesse mês nem força nem virtude abundam não mais do que quando uma criança tem seis anos N do T Os outros seis anos fazemna crescer Assim também faz fevereiro todos os anos O qual enfim conduz à primavera E quando a pessoa faz 18 anos Ela se modifica de tal forma Que pensa valer mil pedaços Assim também o mês de março Se transforma em beleza e readquire calor No mês que vem depois de setembro E que chamamos de outubro a pessoa tem 60 anos e não mais Então ela se torna velha e encarquilhada E se lembra de que o tempo a leva a morrer N do T 20 Ou ainda este poema do século XIII Veez vei le mois de janvier A deux visages le premier Pour ce quil regarde á deux tems Cest le passé et le venant Ains lenfant quand á vescu Six ans ne peut guère valoir Car il na guère de scavoir Mais lon doit mettre bonne cure Quil prenne bonne nourriture Car qui na bon commencement A tard a bon deffinemet En octobre après venant Doit hom semer le bon froment Duquel doit vivre tout li mons Ainsi doit faire le preudoms Qui est arrivé á LX ans Il doit semer aux jeunes gens Bonnes paroles par exemple Et faire aumône si me semble Da mesma natureza ainda era a correspondência entre as idades da vida e os outros quatro consensus quatuor elementorum quatuor humorum os temperamentos quatuor anni temporum et quatuor vitae aetatum Em torno de 1265 Philippe de Novare já falava nos III temz daage dome ou seja quatro períodos de 20 anos E essas especulações continuaram a se repetir nos textos até o século XVI É preciso ter em mente que toda essa terminologia que hoje nos parece tão oca traduzia noções que na época eram científicas e correspondia também a um sentimento popular e comum da vida Aqui também esbarramos em grandes dificuldades de interpretação pois hoje em dia não possuímos mais esse sentimento da vida consideramos a vida como um fenômeno biológico como uma situação na sociedade sim mas não mais que isso Entretanto dizemos é a vida para exprimir ao mesmo tempo nossa resignação e nossa convicção de que existe fora do biológico e do sociológico alguma coisa que não tem nome mas que nos comove que procuramos nas notícias corriqueiras dos jornais ou sobre a qual podemos dizer isto tem vida A vida se torna então um drama que nos tira do tédio do quotidiano Para o homem de outrora ao contrário a vida era a continuidade inevitável cíclica às vezes humorística ou melancólica das idades uma continuidade inscrita na ordem geral e abstrata das coisas mais do que na experiência real pois poucos homens tinham o privilégio de percorrer todas essas idades naquelas épocas de grande mortalidade A popularidade das idades da vida tornou este tema um dos mais freqüentes da iconografia profana Encontramolas por exemplo em alguns capitéis historiados do século XII no batistério de Parma O escultor quis representar ao mesmo tempo a parábola do mestre da vinha e dos trabalhadores da décima primeira hora e o símbolo das idades da vida Na primeira cena vemos o mestre da vinha com a mão pousada sobre a cabeça de uma criança embaixo uma legenda precisa a alegoria da criança prima aetas saeculi primum humane infância Mais adiante hora tertia puericia seconda aetas o mestre da vinha tem a mão pousada sobre o ombro de um rapaz que segura um animal e uma foice O último trabalhador descansa ao lado de seu enxadão senectus sexta aetas Mas foi sobretudo no século XIV que essa iconografia fixou seus traços essenciais que permaneceram quase inalterados até o século XVIII reconhecemolos tanto nos capitéis do palácio dos Doges como num afresco dos Eremitani de Pádua Primeiro a idade dos brinquedos as crianças brincam com um cavalo de pau uma boneca um pequeno moinho ou pássaros amarrados Depois a idade da escola os meninos aprendem a ler ou seguram um livro e um estojo as meninas aprendem a fiar Em seguida as idades do amor ou dos esportes da corte e da cavalaria festas passeios de rapazes e moças corte de amor as bodas ou a caçada do mês de maio dos calendários Em seguida as idades da guerra e da cavalaria um homem armado Finalmente as idades sedentárias dos homens da lei da ciência ou do estudo o velho sábio barbudo vestido segundo a moda antiga diante de sua escrivaninha perto da lareira As idades da vida não correspondiam apenas a etapas biológicas mas a funções so J Morawski op cit Representado nos calendários sob a forma de Janus bifrons Vedes aqui o mês de janeiro O primeiro de todos que tem duas faces Porque está voltado para dois tempos o passado e o porvir Assim também a criança que viveu apenas Seis anos não vale quase nada Pois quase não possui saber Mas devese cuidar Para que ela se alimente bem Pois quem tem um bom começo No final terá um bom fim No mês de outubro que vem depois O homem deve semear o bom trigo Do qual viverão todos os outros Assim deve fazer o homem valoroso Que chegou aos 60 anos deve semear para os jovens Boas palavras como exemplo E dar esmolas ao menos assim me parece N do T Regimen sanitatis schola salernitania ed por Arnaud de Villeneuve C V Langlois La Vie en France au Moyen Age 1908 p 184 1568 Didron La Vie humaine Annales archéologiques XV p 413 Didron Annales archéologiques XVII pp 69 e 193 A Venturi La Fonte di una compozicione del guariento Arte 1914 XVII p 49 ciais sabermos que havia homens da lei muito jovens mas consoante a imagem popular o estudo era uma ocupação dos velhos Esses atributos da arte do século XIV seriam encontrados quase idênticos em gravuras de natureza mais popular mais familiar que subsistiram do século XVI até o início do XIX com pouquíssimas mudanças Essas gravuras eram chamadas Degraus das idades pois retratavam pessoas que representavam as idades justapostas do nascimento até a morte muitas vezes de pé sobre degraus que subiam à esquerda e desciam à direita No centro dessa escadaria dupla como que sob o arco de uma ponte erguiase o esqueleto da morte armado com sua foice Aí o tema das idades se imbricava com o tema da morte e sem dúvida não era por acaso que esses temas figuravam entre os mais populares as estampas representando os degraus das idades e as danças macabras repetiram até o início do século XIX uma iconografia fixada nos séculos XIV e XV Mas ao contrário das danças macabras em que os trajes não mudaram e permaneceram os mesmos dos séculos XV e XVI mesmo quando a gravura datava do século XIX os degraus das idades vestiam suas personagens segundo a moda da época nas últimas gravuras do século XIX vemos surgir o traje de primeira comunhão A persistência dos atributos por isso mesmo é ainda mais notável lá estão a criança montada em seu cavalo de pau o estudante com seu livro e seu estojo o belo par às vezes o rapaz segura um arbusto de maio evocação das festas da adolescência e da primavera e o homem de armas agora um oficial cingido com a echarpe do comando ou carregando um estandarte na escada descendente as roupas não estão mais na moda ou pertencem a uma moda antiga vemos os homens da lei com suas pastas de processos os cientistas com seus livros ou seus astrolábios e os devotos os mais curiosos com seus rosários 22 A repetição dessas imagens pregadas nas paredes ao lado dos calendários entre os objetos familiares alimentava a idéia de uma vida dividida em etapas bem delimitadas correspondendo a modos de atividade a tipos físicos a funções e a modas no vestir A periodização da vida tinha a mesma fixidez que o ciclo da natureza ou a organização da sociedade Apesar da evocação reiterada do envelhecimento e da morte as idades da vida permaneceram croquis pitorescos e bem comportados silhuetas de caráter um tanto humorístico 22 Este tema não era apenas popular É encontrado sob outras formas na pintura e na escultura como em Ticiano e Van Dyck ou no frontão de Versalhes de Luís XIV Da especulação antigomedieval restara uma abundante terminologia das idades No século XVI quando se decidiu traduzir essa terminologia para o francês ficou patente que esta língua e portanto os costumes franceses não dispunham de tantas palavras como o latim ou ao menos como o latim clássico O tradutor de 1556 do Le Grand Propriétaire de toutes choses reconhece sem rodeios essa dificuldade Há maior dificuldade em francês do que em latim pois em latim existem sete idades nomeadas por sete nomes diversos tantas quanto os planetas dos quais existem apenas três em francês a saber enfance jeunesse e vieillesse Observamos que como juventude significava força da idade idade média não havia lugar para a adolescência Até o século XVIII a adolescência foi confundida com a infância No latim dos colégios empregavase indiferentemente a palavra puer e a palavra adolescens Existem conservados na Bibliothèque Nationale 22 alguns catálogos do colégio dos jesuítas de Caen uma lista dos nomes dos alunos seguidos de apreciações Um rapaz de 15 anos é descrito aí como bonus puer enquanto seu jovem colega de 13 anos é chamado de optimus adolescens Baillet 24 num livro consagrado às criançasprodígio reconheceu também que não existiam termos em francês para distinguir pueri e adolescentes Conheciase apenas a palavra enfant criança No final da Idade Média o sentido desta palavra era particularmente lato Ela designava tanto o putto no século XIV diziase la chambre aux enfants para indicar o quarto dos putti o quarto ornado com afrescos representando criancinhas nuas como o adolescente o menino grande que às vezes era também um menino maleducado A palavra enfant nos Miracles NotreDame 25 era empregada nos séculos XIV e XV como sinônimo de outras palavras tais como valets valetlon garҫon fils beau fils ele era valetón corresponderia ao francês atual ele era um beau gars um belo rapaz mas na época o termo se aplicava tanto a um rapaz um belo valetón como a uma criança ele era um valetón e gostavam muito dele o valez cresceu Uma única palavra conservou até hoje na língua francesa essa antiga ambigüidade a palavra gars menino rapaz ou homem que passou diretamente do francês antigo para a língua popular moderna onde foi conservada Era uma criança estranha esse mau menino tão desleal e tão perverso que não queria aprender um ofício nem se comportar como convinha à infância que de bom grado se acompanhava de glutões e de gentes ociosas que freqüentemente provocavam rixas nas tabernas e nos bordéis e jamais encontravam uma mulher sozinha sem a violar Eis outra criança de 15 anos Embora fosse um menino bom e gracioso recusavase a montar a cavalo e a se dar com meninas Seu pai pensava que era por timidez É o costume das crianças Na realidade o menino estava prometido à Virgem Seu pai quis obrigálo a se casar Então a criança ficou muito zangada e bateulhe com força Tentou fugir mas feriuse mortalmente ao cair da escada Nesse momento a Virgem veio buscálo e disselhe Belo irmão vede aqui vossa amiga Então a criança exalou um suspiro Segundo um calendário das idades do século XVI 26 aos 24 anos é a criança forte e virtuosa e Assim acontece com as crianças quando elas têm 18 anos O mesmo emprego pode ser constatado no século XVII uma pesquisa episcopal de 1667 relata que numa paróquia 27 há un jeune enfans uma jovem criança de cerca de 14 anos de idade que ensina a ler e a escrever às crianças dos dois sexos há cerca de um ano desde que habita no dito lugar por acordo com os habitantes do dito lugar Durante o século XVII houve uma evolução o antigo costume se conservou nas classes sociais mais dependentes enquanto um novo hábito surgiu entre a burguesia onde a palavra infância se restringiu a seu sentido moderno A longa duração da infância tal como aparecia na língua comum provinha da indiferença que se sentia então pelos fenômenos propriamente biológicos ninguém teria a idéia de limitar a infância pela puberdade A idéia de infância estava ligada à idéia de dependência as palavras fils valets e garçons eram também palavras do vocabulário das relações feudais ou senhoriais de dependência Só se saía da infância ao se sair da dependência ou ao menos dos graus mais baixos da dependência Essa é a razão pela qual as palavras ligadas à infância iriam subsistir para designar familiarmente na língua falada os homens de baixa condição cuja submissão aos outros continuava a ser total por exemplo os lacaios os auxiliares e os soldados Um petit graҫon menino pequeno não era necessariamente uma criança e sim um jovem servidor da mesma forma hoje um patrão ou um contramestre dirão de um operário de 20 a 25 anos É um bom menino ou esse menino não vale nada Assim em 1549 o diretor de um colégio de um estabelecimento de educação chamado Baduel escrevia ao pai de um de seus jovens alunos a propósito de seu enxoval e de seu séquito No que concerne ao seu serviço pessoal basta um petit garçon 28 No início do século XVIII o dicionário de Furetière precisou o uso do termo Enfant é também um termo de amizade utilizado para saudar ou agradar alguém ou leválo a fazer alguma coisa Quando se diz a uma pessoa de idade adeus bonne mère boa mãe até logo grandmère avozinha na língua da Paris moderna ela responde adeus mon enfant ou adeus mon gars ou adeus petit Ou então ela dirá a um lacaios mon enfant vá me buscar aquilo Um mestre dirá aos trabalhadores mandandoos trabalhar vamos enfants trabalhem Um capitão dirá a seus soldados coragem enfants agüentem firme Os soldados da primeira fila que estavam mais expostos ao perigo eram chamados de enfants perdus crianças perdidas Na mesma época mas nas famílias nobres em que a dependência não era senão uma conseqüência da invalidez física o vocabulário da infância tendia quase sempre a designar a primeira idade No século XVII seu emprego tornouse mais freqüente a expressão petit enfant criança pequena ou criancinha começou a adquirir o sentido que lhe atribuímos O uso antigo preferia jeune enfant jovem criança e esta expressão não foi completamente abandonada La Fontaine a empregava e em 1714 numa tradução de Erasmo havia uma referência a uma jeune fille jovem menina hoje em dia jeune fille designa uma moça que ainda não tinha cinco anos Tenho uma jeune fille que mal começou a falar 29 A palavra petit pequeno havia adquirido também um sentido especial no fim do século XVI designava todos os alunos das pequenas escolas mesmo àqueles que não eram mais crianças Na Inglaterra a palavra petty tinha o mesmo sentido que em francês e um texto de 1627 mencionava a escola dos lyttle petties ou seja dos menores alunos 30 Foi sobretudo com PortRoyal e com toda a literatura moral e pedagógica que aí se inspirou ou que de modo mais geral exprimiu uma necessidade de ordem moral difundida por toda a parte e da qual PortRoyal era também um testemunho que os termos utiliza dos para designar a infância se tornaram numerosos e sobretudo modernos os alunos de Jacqueline Pascal 31 eram divididos em petits moyens e grands pequenos médios e grandes Quanto às crianças pequenas escreve Jacqueline Pascal é preciso ainda mais que às outras ensinálas e alimentálas se possível como pequenos pombos O regulamento das pequenas escolas de PortRoyal 32 prescrevia Eles não vão à Missa todos os dias somente os pequenos Falavase de uma forma nova em pequenas almas em pequenos anjos 33 Estas expressões anunciavam o sentimento do século XVIII e do romantismo Em seus contos M lle Lhéritier 34 pretendia se dirigir aos jovens espíritos às jovens pessoas Essas imagens seguramente levam os jovens a reflexões que aperfeiçoam sua razão Percebese então que esse século XVII que parecia ter desdenhado à infância ao contrário introduziu o uso de expressões e de locuções que permanecem até hoje na língua francesa Junto à palavra enfant de seu dicionário Furetière citava provérbios que ainda nos são familiares É um enfant gâté criança mimada aquela a quem se deixou viver de um modo libertino sem corrigila Il ny a plus denfant equivale a dizer que alguém começa a ter juízo e malícia cedo Inocente como a criança que acabou de nascer Vocês não achavam que essas expressões não remontavam além do século XIX Contudo em seus esforços para falar das crianças pequenas à língua do século XVII foi prejudicada pela ausência de palavras que as distinguissem das maiores O mesmo aliás acontecia com o inglês em que a palavra baby se aplicava também às crianças grandes A gramática latina em inglês de Lily 35 que foi utilizada do início do século XVI até 1866 dirigiase a all lyttell babes all lyttell chyldren Por outro lado havia em francês expressões que pareciam designar as crianças bem pequeninas Uma delas era a palavra poupart Um dos Miracles NotreDame tinha como personagem um petit fils que queria dar de comer a uma imagem do menino Jesus O bom Jesus vendo a insistência e a boa vontade da criancinha falou com ela e disselhe Poupart não chores mais pois comerás comigo dentro de três dias Mas esse poupart na realidade não era um bebê como diríamos hoje também era chamado de clergeon 36 pequeno clérigo usava sobrepeliz e ajudava à missa Aqui havia crianças de pouca idade que sabiam um pouco as letras e que prefeririam mamar no seio de sua mãe a ter de ajudar à missa Na língua dos séculos XVII e XVIII a palavra poupart não designava mais uma criança e sim sob a forma poupon o que hoje os franceses ainda chamam pelo mesmo nome porém no feminino uma poupée ou seja uma boneca O francês seria portanto levado a tomar emprestadas de outras línguas línguas estrangeiras ou gírias usadas na escola ou nas diferentes profissões palavras que designassem essa criança pequena pela qual começava a surgir um novo interesse foi o caso do italiano bambino que daria origem ao francês bambin Mme de Sévigné empregava também no mesmo sentido o provençal pitchoun que ela certamente aprendera em uma de suas estadas na casa dos Grignans 37 Seu primo De Coulanges que não gostava de crianças mas que falava muito delas 38 desconfiava dos marmousets de três anos uma palavra antiga que evoluiria para marmots na língua popular moleques de queixo engordurado que enfiam o dedo em todos os pratos Empregavamse também termos de gíria dos colégios latinos ou das academias esportivas e militares um pequeno frater um cadet e quando eram numerosos populo 39 ou petit peuple Enfim o uso dos diminutivos tornouse freqüente encontramos fan fan nas cartas de Mme de Sévigné e de Fénelon Com o tempo essas palavras se deslocariam e passariam a designar a criança pequena mas já esperta Restaria sempre uma lacuna para designar a criança durante seus primeiros meses essa insuficiência não seria sanada antes do século XIX quando o francês tomou emprestada do inglês a palavra baby que nos séculos XVI e XVII designava as crianças em idade escolar Foi esta a última etapa dessa história daí em diante com o francês bébé a criança bem pequenina recebeu um nome Embora um vocabulário da primeira infância tivesse surgido e se ampliado subsistia a ambigüidade entre a infância e a adolescência de um lado e aquela categoria a que se dava o nome de juventude do outro Não se possuía a idéia do que hoje chamamos de adolescência e essa idéia demoraria a se formar Já a pressentimos no sé37 Sois injustos comigo ao crer que gosto mais da petite do que do pitchoun Mme de Sévigné Lettres 12 de junho de 1675 ver também 5 de outubro de 1673 38 Coulanges Chansons choisies 1694 39 Claudin BouzonnetStella Jeux de lenfance 1657 culo XVIII com duas personagens uma literária Querubim e a outra social o conscrito Em Querubim prevalecia a ambigüidade da puberdade e a ênfase recaía sobre o lado efeminado de um menino que deixava a infância Isso não era propriamente uma novidade como se entrava muito cedo na vida social os traços cheios e redondos da primeira adolescência em torno da puberdade davam aos meninos uma aparência feminina É isso o que explica a facilidade dos disfarces dos homens em mulheres ou viceversa comuns nos romances barrocos do início do século XVII dois rapazes ou duas moças se tornam amigos mas um deles é uma moça travestida etc Por mais crédulos que sejam os leitores de romances de aventuras de todas as épocas o mínimo de verossimilhança exige que tenha existido alguma semelhança entre o menino ainda imberbe e a menina Contudo essa semelhança não era apresentada então como uma característica da adolescência uma característica da idade Esses homens sem barba de traços suaves não eram adolescentes pois já agiam como homens feitos comandando e combatendo Em Querubim ao contrário o aspecto feminino estava ligado à transição da criança para o adulto traduzia um estado durante um certo tempo o tempo do amor nascente Querubim não teria sucessores Ao contrário seria a força viril que no caso dos meninos exprimiria a adolescência e o adolescente seria prefigurado no século XVIII pelo conscrito Examinemos o texto de um cartaz de recrutamento que data do final do século XVIII 40 O cartaz se dirigia à brilhante juventude Os jovens que quiserem partilhar da reputação que este belo corpo adquiriu poderão dirigirse a M DAmbrun Eles os recrutadores recompensarão aqueles que lhes trouxerem belos homens O primeiro adolescente moderno típico foi o Siegfried de Wagner a música de Siegfried pela primeira vez exprimiu a mistura de pureza provisória de força física de naturismo de espontaneidade e de alegria de viver que faria do adolescente o herói do nosso século XX o século da adolescência Esse fenômeno surgido na Alemanha wagneriana penetraria mais tarde na França em torno dos anos 1900 A juventude que então era a adolescência iria tornarse um tema literário e uma preocupação dos moralistas e dos políticos Começouse a desejar saber seriamente o que pensava a juventude e surgiram pesquisas sobre ela como as de Massis ou de Henriot A juventude apareceu como depositária de valores novos capazes de rea vivar uma sociedade velha e esclerosa da Haviase experimentado um sentimento semelhante no período romântico mas sem uma referência tão precisa a uma classe de idade Sobretudo esse sentimento romântico se limitava à literatura à àqueles que a liam Ao contrário a consciência da juventude tornouse um fenômeno geral e banal após a guerra de 1914 em que os combatentes da frente de batalha se opuseram em massa às velhas gerações da retaguarda A consciência da juventude começou como um sentimento comum dos excombatentes e esse sentimento podia ser encontrado em todos os países beligerantes até mesmo na América de Dos Passos Daí em diante a adolescência se expandiria empurrando a infância para trás e a maturidade para a frente Daí em diante o casamento que não era mais um estabelecimento não mais a interromperia o adolescentecasado é um dos tipos mais específicos de nossa época ele lhe propõe seus valores seus apetites e seus costumes Assim passamos de uma época sem adolescência a uma época em que a adolescência é a idade favorita Desejase chegar a ela cedo e nela permanecer por muito tempo Essa evolução foi acompanhada por uma evolução paralela porém inversa da velhice Sabemos que a velhice começava cedo na sociedade antiga Os exemplos são conhecidos a começar pelos velhos de Molière que aos nossos olhos parecem jovens ainda Nem sempre aliás a iconografia da velhice a representa sob os traços de um indivíduo decrepito a velhice começa com a queda dos cabelos e o uso da barba e um belo ancião aparece às vezes como um homem calvo É o caso do ancião no concerto de Ticiano que é também uma representação das idades da vida Em geral porém antes do século XVIII o ancião era considerado ridículo Uma personagem de Rotrou pretendia impor à sua filha um marido quinquagenário Ele tem apenas 50 anos e além disso não tem nem um dente Il nest dans la nature homme qui ne le iuge Du siècle de Saturne ou du temps du Déluge Des trois pieds dont il marche il en a deux goutteux Qui jusque à chaque pas trébuchent de vieillesse Et quil faut retenir ou relever sans cesse Dez anos mais tarde esse ancião se parecia com este sexagenário de Quinault 41 Rotrou La Soeur Não há na natureza quem não o considere Pertencente ao século de Saturno ou ao tempo do Dilúvio Dos três pés com que ele anda dois sofrem de gota A cada passo camb eiam de velhice E é preciso retêlos e erguêlos todo o tempo N do T 2 A Descoberta da Infância Até por volta do século XII a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representála É difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo Uma miniatura otoniana do século XI 1 nos dá uma idéia impressionante da deformação que o artista impunha então aos corpos das crianças num sentido que nos parece muito distante de nosso sentimento e de nossa visão O tema é a cena do Evangelho em que Jesus pede que se deixe vir a ele as criancinhas sendo o texto latino claro parvuli Ora o miniaturista agrupou em torno de Jesus oito verdadeiros homens sem nenhuma das características da infância eles foram simplesmente reproduzidos numa escala menor Apenas seu tamanho os distingue dos adultos Numa miniatura francesa do fim do século XI 2 as três crianças que São Nicolau ressuscita estão representadas numa escala mais reduzida que os adultos sem nenhuma diferença de expressão ou de traços O pintor não hesitava em dar a nudez das crianças nos raríssimos casos em que era exposta a musculatura do adulto assim no livro de salmos de São Luís de Leyde 3 datado do fim do século XII ou do início do XIII Ismael pouco depois de seu nascimento tem os músculos abdominais e peitorais de um homem Embora exibisse mais sentimento ao retratar a infância 4 o século XIII continuou fiel a esse procedimento Na Bíblia moralizada de São Luís as crianças são representadas com maior freqüência mas nem sempre são caracterizadas por algo além de seu tamanho Num episódio da vida de Jacó Isaque está sentado entre suas duas mulheres cercado por uns 15 homenzinhos que batem na cintura dos adultos são seus filhos 5 Quando Jó é recompensado por sua fé e fica novamente rico o iluminista evoca sua fortuna colocando Jó entre um rebanho à esquerda e um grupo de crianças à direita igualmente numerosas imagem tradicional da fecundidade inseparável da riqueza Numa outra ilustração do livro de Jó as crianças aparecem escalonadas por ordem de tamanho No Evangeliário da SainteChapelle do século XIII 6 no momento da multiplicação dos pães Cristo e um apóstolo ladeiam um homenzinho que bate em sua cintura sem dúvida a criança que trazia os peixes No mundo das fórmulas românicas e até o fim do século XIII não existem crianças caracterizadas por uma expressão particular e sim homens de tamanho reduzido Essa recusa em aceitar na arte a morfologia infantil é encontrada aliás na maioria das civilizações arcaicas1 Um belo bronze sardo do século IX a C 7 representa uma espécie de Pietá uma mãe segurando em seus braços o corpo bastante grande do filho mas talvez se tratasse de uma criança como observa a nota do catálogo A pequena figura masculi na poderia muito bem ser um criança que segundo a fórmula adotada 1 Evangeliário de Oto III Munique 2 Vie et miracle de saint Nicolas Bibliothèque Nationale 3 Livro de salmos de São Luís de Leyde 4 Comparar a cena Deixai vir a mim as criancinhas do Evangeliário de Oto e da Bible moralisée de Saint Louis fº 505 5 Bible moralisée de Saint Louis fº 5 A de Laborde Bibles moralisées illustrées 19111921 4 vols de pranchas 6 Evangeliário da SainteChapelle cena reproduzida em H Martin La Miniature francaise pr VII 7 Exposição de bronzes sardos Bibliothèque Nationale 1954 nº 25 pr XI na época arcaica por outros povos estaria representada como um adulto Tudo indica de fato que a representação realista da criança ou a idealização da infância de sua graça de sua redondeza e formas tenham sido próprias da arte grega Os pequenos Eros proliferavam com exuberância na época helenística A infância desapareceu da iconografia junto com os outros temas helenísticos e o românico retomou essa recusa dos traços específicos da infância que caracterizava as épocas arcaicas anteriores ao helenismo Há aí algo mais do que uma simples coincidência Partimos de um mundo de representação onde a infância é desconhecida os historiadores da literatura Mgr Calvé fizeram a mesma observação a propósito da epopeia em que criançasprodígio se conduziam com a bravura e a força física dos guerreiros adultos Isso sem dúvida significa que os homens dos séculos XXI não se detinham diante da imagem da infância que esta não tinha para eles interesse nem mesmo realidade Isso faz pensar também que no domínio da vida real e não mais apenas no de uma transposição estética a infância era um período de transição logo ultrapassado e cuja lembrança também era logo perdida Tal é nosso ponto de partida Como daí chegamos às criancinhas de Versalhes às fotos de crianças de todas as idades de nossos álbuns de família Por volta do século XIII surgiram alguns tipos de crianças um pouco mais próximos do sentimento moderno Surgiu o anjo representado sob a aparência de um rapaz muito jovem de um jovem adolescente um clergeon como diz P du Colombier Mas qual era a idade do pequeno clérigo Era a idade das crianças mais ou menos grandes que eram educadas para ajudar à missa e que eram destinadas às ordens espécies de seminaristas numa época em que não havia seminários e em que apenas a escola latina se destinava à formação dos clérigos Aqui diz um Miracle de NotreDame havia crianças de pouca idade que sabiam um pouco as letras e que prefeririam mamar no seio de sua mãe mas as crianças desmamavam muito tarde nessa época a Julieta de Shakespeare ainda era alimentada ao seio aos três anos de idade a ter de ajudar à missa O anjo de Reims por exemplo seria um menino já grande mais do que uma criança mas os artistas sublinhariam com afetação os traços redondos e graciosos e um tanto efeminados dos meninos mal saídos da infância Já estamos longe dos adultos em escala reduzida da miniatura otoniana Esse tipo de anjos adolescentes se tornaria muito frequénte no século XIV e persistiria ainda até o fim do quattrocento italiano são exemplos os anjos de Fra Angelico de Botticelli e de Ghirlandoja O segundo tipo de criança seria o modelo e o ancestral de todas as crianças pequenas da história da arte o menino Jesus ou Nossa Senhora menina pois a infância aqui se ligava ao mistério da maternidade da Virgem e ao culto de Maria No início Jesus era como as outras crianças uma redução do adulto um pequeno Deuspadre majestoso apresentado pela Theotókos A evolução em direção a uma representação mais realista e mais sentimental da criança começaria muito cedo na pintura numa miniatura da segunda metade do século XII Jesus em pé veste uma camisa leve quase transparente tem os dois braços em torno do pescoço de sua mãe e se aninha em seu colo com o rosto colado ao dela Com a maternidade da Virgem a terra infância ingressou no mundo das representações No século XIII ela inspirou outras cenas familiares Na Bíblia Moralizada de São Luís encontramos cenas de família em que os pais estão cercados por seus filhos com o mesmo acento de ternura do jube de Chartres por exemplo num retrato da família de Moisés o marido e a mulher dão as mãos enquanto as crianças homenzinhos que os cercam estendem a mão para a mãe Esses casos porém eram raros o sentimento encantador da tenra infância permaneceu limitado ao menino Jesus até o século XIV quando como sabemos a arte italiana contribuiu para desenvolvêlo e expandilo Um terceiro tipo de criança apareceu na fase gótica a criança nua O menino Jesus quase nunca era representado despido Na maioria dos casos aparecia como as outras crianças de sua idade castamente enrolado em cueiros ou vestido com uma camisa ou uma camisola Ele só se desnudaria no final da Idade Média As poucas miniaturas das Bíblias moralizadas que representavam crianças vestiamnas exceto quando se tratava dos Inocentes ou das crianças mortas cujas mães seriam julgadas por Salomão Seria a alegoria da morte e da alma que introduziria no mundo das formas a imagem da nudez infantil Já na iconografia prébizantina do século V em que aparecem traços da futura arte românica reduziamse as dimensões dos corpos dos mortos Os cadáveres eram menores que os corpos dos vivos Na Ilíada da Biblioteca Ambrosiana os mortos das cenas de 8 P du Colombier LEnfant au Moyen Age 1951 9 Miracles NotreDame Westminster ed A F Warner 1885 batalha têm a metade do tamanho dos vivos Na arte medieval francesa a alma era representada por uma criancinha nua e em geral assexuada Os juízos finais conduzem sob essa forma as almas dos justos ao seio de Abraão O moribundo exala uma criança pela boca numa representação simbólica da partida da alma Era assim também que se imaginava a entrada da alma no mundo quer se tratasse de uma concepção miraculoas e sagrada o anjo da Anunciação entrega à Virgem uma criança nua a alma de Jesus quer se tratasse de uma concepção perfeitamente natural um casal repousa no leito aparentemente de forma inocente mas algo deve terse passado pois uma criança nua chega pelos ares e penetra na boca da mulher a criação da alma humana pela natureza Durante o século XIV e sobretudo durante o século XV esses tipos medievais evoluíram mas no sentido já indicado no século XIII Dissemos que o anjoadolescente animaria ainda a pintura religiosa do século XV sem grande alteração Por outro lado o tema da infância sagrada a partir do século XIV não deixaria mais de se ampliar e de se diversificar sua fortuna e sua fecundidade são um testemunho do progresso na consciência coletiva desse sentimento da infância que apenas um observador atento poderia isolar no século XIII e que não existia de todo no século XI No grupo formado por Jesus e sua mãe o artista sublinharia os aspectos graciosos ternos e ingênuos da primeira infância a criança procurando o seio da mãe ou preparandose para beijála ou acariciála a criança brincando com os brinquedos tradicionais da infância com um pássaro amarrado ou uma fruta a criança comendo seu mingau a criança sendo enrolada em seus cueiros Todos os gestos observáveis ao menos para aquele que desejasse prestar atenção neles já eram reproduzidos Esses traços de realismo sentimental tardaram a se estender além das fronteiras da iconografia religiosa mas não nos devemos surpreender com isso sabemos que o mesmo aconteceu com a paisagem e com a cena de gênero A verdade é que o grupo da Virgem com o menino se transformou e se tornou cada vez mais profano a imagem de uma cena da vida quotidiana Timidamente no início e a seguir com maior frequência a infância religiosa deixou de se limitar à infância de Jesus Surgiu em primeiro lugar a infância da Virgem que inspirou ao menos dois temas novos e freqüentes o tema do nascimento da Virgem pessoas no quarto de SantAna atarefadas em torno da recémnascida que é banhada agasalhada e apresentada à mãe e o tema da educação da Virgem da lição de leitura a Virgem acompanhando sua lição num livro que SantAna segura Depois surgiram as outras infâncias santas a de São João o companheiro de jogos do menino Jesus a de São Tiago e a dos filhos das mulheres santas MariaZebedeeu e Maria Salomé Uma iconografia inteiramente nova se formou assim multiplicando cenas de crianças e procurando reunir nos mesmos conjuntos o grupo dessas crianças santas com ou sem suas mães Essa iconografia que de modo geral remontava ao século XIV coincidiu com um florescimento de histórias de crianças nas lendas e contos pios como os dos Miracles NotreDame Ela se manteve até o século XVII e podemos acompanhála na pintura na tapeçaria e na escultura Voltaremos a ela aliás a propósito das devoções da infância Dessa iconografia religiosa da infância iria finalmente destacarse uma iconografia leiga nos séculos XV e XVI Não era ainda a representação da criança sozinha A cena de gênero se desenvolveu nessa época através da transformação de uma iconografia alegórica convencional inspirada na concepção antigomedieval da natureza idades da vida estações sentidos elementos As cenas de gênero e as pinturas anedóticas começaram a substituir as representações estáticas de personagens simbólicas Voltaremos com mais vagar a essa evolução Salientemos aqui apenas o fato de que a criança se tornou uma das personagens mais freqüentes dessas pinturas anedóticas a criança com sua família a criança com seus companheiros de jogos muitas vezes adultos a criança na multidão mas ressaltada no colo de sua mãe ou segura pela mão ou brincando ou ainda urinando a criança no meio do povo assistindo aos milagres ou aos martírios ouvindo prédicas acompanhando os ritos litúrgicos as apresentações ou as circuncisões a criança aprendiz de um ourives de um pintor etc ou a criança na escola um tema freqüente e antigo que remontava ao século XIV e que não mais deixaria de inspirar as cenas de gênero até o século XIX Mais uma vez não nos iludamos essas cenas de gênero em geral não se consagravam à descrição exclusiva da infância mas muitas vezes tinham nas crianças suas protagonistas principais ou secundárias Isso nos sugere duas idéias primeiro a de que na vida quotidiana as crianças estavam misturadas com os adultos e toda reunião para o trabalho o passeio ou o jogo reunia crianças e adultos segundo a idéia de que os pintores gostavam especialmente de representar a 13 Rampilly 14 Ver nota 5 deste capítulo 15 Miroir dhumilité Valenciennes P 18 início do século XV criança por sua graça ou por seu pitoresco o gosto do pitoresco anedótico desenvolveuse nos séculos XV e XVI e coincidiu com o sentimento da infância engraçadinha e se compraziam em sublinhar a presença da criança dentro do grupo ou da multidão Dessas duas idéias uma nos parece arcaica temos hoje assim como no fim do século XIX uma tendência a separar o mundo das crianças do mundo dos adultos A outra idéia ao contrário anuncia o sentimento moderno da infância Enquanto a origem dos temas do anjo das infâncias santas e de suas posteriores evoluções iconográficas remontava ao século XIII no século XV surgiram dois tipos novos de representação da infância o retrato e o putto A criança como vimos não estava ausente da Idade Média ao menos a partir do século XIII mas nunca era o modelo de um retrato de um retrato de uma criança real tal como ela aparecia num determinado momento de sua vida Nas efígies funerárias cuja descrição foi conservada por Gaignières a criança só apareceu muito tarde no século XVI Fato curioso ela apareceu de início não em seu próprio túmulo ou no de seus pais mas no de seus professores Nas sepulturas dos mestres de Bolonha representouse uma cena de aula com o professor no meio de seus alunos Já em 1378 o Cardeal de La Grange Bispo de Amiens mandara representar os dois Príncipes de que havia sido tutor de dez e sete anos numa bela pilastra de sua catedral Ninguém pensava em conservar o retrato de uma criança que tivesse sobrevivido e se tornado adulta ou que tivesse morrido pequena No primeiro caso a infância era apenas uma fase sem importância que não fazia sentido fixar na lembrança no segundo o da criança morta não se considerava que essa coisinha desaparecida tão cedo fosse digna de lembrança havia tantas crianças cuja sobrevivência era tão problemática O sentimento de que se faziam várias crianças para conservar apenas algumas era e durante muito tempo permaneceu muito forte Ainda no século XVII em Le Caquet de laccouchée vemos uma vizinha mulher de um relator tranqüilizar assim uma mulher inquieta mãe de cinco pestes e que acabara de dar à luz Antes que eles te possam causar muitos problemas tu terás perdido a metade e quem sabe todos Estranho consolo As pessoas não se podiam apegar muito a algo que era considerado uma perda eventual Isso explica algumas palavras que chocam nossa sensibilidade moderna como estas de Montaigne Perdi dois ou três filhos pequenos não sem tristeza mas sem desespero ou estas de Molière a respeito da Louison de Le Malade Imaginaire A pequena não conta A opinião comum devia como Montaigne não reconhecer nas crianças nem movimento na alma nem forma reconhecível no corpo Mme de Sévigné relata sem surpresa palavras semelhantes de Mme de Coetquen quando esta desmaiou com a notícia da morte de sua filhinha Ela ficou muito aflita e disse que jamais terá uma outra tão bonita Não se pensava como normalmente acreditamos hoje que a criança já contivesse a personalidade de um homem Elas morriam em grande número As minhas morrem todas pequenas dizia ainda Montaigne Essa indiferença era uma conseqüência direta e inevitável da demografia da época Persistiu até o século XIX no campo na medida em que era compatível com o cristianismo que respeitava na criança batizada a alma imortal Consta que durante muito tempo se conservou no País Basco o hábito de enterrar em casa no jardim a criança morta sem batismo Talvez houvesse aí uma sobrevivência de ritos muito antigos de oferendas sacrificais Ou será que simplesmente as crianças mortas muito cedo eram enterradas em qualquer lugar como hoje se enterra um animal doméstico um gato ou um cachorro A criança era tão insignificante tão mal entrada na vida que não se temia que após a morte ela voltasse para importunar os vivos É interessante notar que na gravura liminar da Tabula Cebetis Merian colocou as criancinhas numa espécie de zona marginal entre a terra de onde elas saíram e a vida em que ainda não penetraram e da qual estão separadas por um pórtico com a inscrição Introitus ad vitam Até hoje nós não falamos em começar a vida no sentido de sair da infância Esse sentimento de indiferença com relação a uma infância demasiado frágil em que a possibilidade de perda é muito grande no fundo não está muito longe da insensibilidade das sociedades romanas ou chinesas que praticavam o abandono das crianças recémnascidas Compreendemos então o abismo que separa a nossa concepção da infância anterior à revolução demográfica ou a seus preâmbulos Não nos devemos surpreender diante dessa insensibili 17 Gaignières Les Tombeaux 18 G Zaccagnini La Vita dei Maestri e degli scolari nella studio di Bologna Genebra 1926 pr IX X 19 Antes as representações de crianças nos túmulos eram excepcionais 20 Le Caquet de laccouchée 1622 21 Montaigne Essais II 8 22 Mme de Sévigné Lettres 19 de agosto de 1671 23 Merian Tabula Cebetis 1655 Cf R Lebègne Le Peintre Varin e Le Tableau de Cebes in Arts 1952 pp 167171 nhécidos e obscuros Nos casos porém em que o doador recorreu a um pintor famoso a questão muda de figura os historiadores da arte sempre realizam as pesquisas necessárias à identificação das personagens de uma tela célebre É o caso da família Meyer que Holbein representou em 1526 ao pé da Virgem Sabemos que das seis personagens da composição três estavam mortas em 1526 a primeira mulher de Jacob Meyer e seus dois filhos um morto aos 10 anos e o outro ainda menor estando este último nu Esse costume de fato tornouse comum do século XVI até meados do XVII O museu de Versalhes conserva um quadro de Norcret que representa as famílias de Luís XIV e de seu irmão a tela é célebre porque o Rei e os Príncipes ao menos os homens aparecem seminus como os deuses do Olimpo Gostaríamos de salientar aqui um detalhe ao pé de Luís XIV no primeiro plano Norcret pintou o retrato emoldurado de duas criancinhas mortas muito novas Inicialmente portanto a criança aparecia ao lado de seus pais nos retratos de família Já no fim do século XVI os registros de Gaignières apontam túmulos com efígies de crianças isoladas um deles data de 1584 e o outro de 1608 A criança é representada com o traje peculiar à sua idade de vestido e touca como a criança da descida da cruz do quadro de Toulouse Quando num período de dois anos entre 1606 e 1607 Jaime I perdeu duas filhas uma com três dias e a outra com dois anos mandouas representar sobre seus túmulos de Westminster com todos os seus adereços e quis que a menor repousasse num berço de alabastro em que todos os acessórios como as rendas da roupa e da touca fossem fielmente reproduzidos para dar a ilusão de realidade Uma inscrição indica bem o sentimento piedoso que dotava essa criança de três dias de uma personalidade definitiva Rosula Regia praepropera Fato decerpta parentibus erepta ut in Christi Rosario reflorescat Afora as efígies funerárias os retratos de crianças isoladas de seus pais continuaram raros até o fim do século XVI lembremos o retrato do Delfim Carlos Orlando pelo Maître des Moulins outro testemunho da piedade sentida pelas crianças desaparecidas cedo Por outro lado no início do século XVII esses retratos se tornaram muito numerosos e sentimos que se havia criado o hábito de conservar através da arte do pintor o aspecto fugaz da infância Nesses retratos a criança se separava da família como um século antes no início do século XVI a família se separara da parte religiosa do quadro do doador A criança agora era representada sozinha e por ela mesma esta foi a grande novidade do século XVII A criança seria um de seus modelos favoritos Os exemplos são abundantes entre os pintores famosos Rubens Van Dyck Franz Hals Le Nain Philippe de Champaigne Alguns desses pintores retrataram pequenos príncipes como os filhos de Carlos I de Van Dyck ou os de Jaime II de Largillière Outros pintaram os filhos de grandes senhores como as três crianças de Van Dyck a mais velha das quais traz uma espada Outros ainda como Le Nain ou Philippe de Champaigne pintaram os filhos de burgueses ricos Algumas vezes uma inscrição fornece o nome e a idade da criança como era o costume antigo para os adultos Ora a criança está sozinha ver a obra de Philippe de Champaigne em Grenoble ora o pintor reúne várias crianças da mesma família Este último é um estilo de retrato banal repetido por muitos pintores anônimos e encontrado com frequência nos museus de província ou nos antiquários Cada família agora queria possuir retratos de seus filhos mesmo na idade em que eles ainda eram crianças Esse costume nasceu no século XVII e nunca mais desapareceu No século XIX a fotografia substituiu a pintura o sentimento não mudou Antes de encerrarmos o assunto retrato é importante mencionar as representações de crianças em exvotos que começam a ser descobertos aqui e acolá existem alguns no museu da catedral de Puy e a Exposição do século XVII de 1958 em Paris revelou uma surpreendente criança doente que também deve ser um exvoto Assim embora as condições demográficas não tenham mudado muito do século XIII ao XVII embora a mortalidade infantil se tenha mantido num nível muito elevado uma nova sensibilidade atribuiu a esses seres frágeis e ameaçados uma particularidade que antes ninguém se importava em reconhecer foi como se a consciência comum só então descobrisse que a alma da criança também era imortal É certo que essa importância dada à personalidade da criança se ligava a uma cristianização mais profunda dos costumes Esse interesse pela criança precedeu em mais de um século a mudança das condições demográficas que podemos datar aproximadamente da descoberta de Jenner Correspondências como a do General de Martange mostram que algumas famílias então fizeram questão de vacinar suas crianças Essa precaução contra a varíola traduzia um estado de espírito que deve ter favorecido também outras práticas de higiene provocando uma redução da mortalidade que em parte foi compensada por um controle da natalidade cada vez mais difundido Uma outra representação da criança desconhecida da Idade Média é o putto a criancinha nua O putto surgiu no fim do século XVI 29 Correspondance inédite du général de Martange ed Breard 1893 e sem a menor dúvida representou uma revivescência do Eros helenístico O tema da criança nua foi logo extremamente bem recebido até mesmo na França onde o italianismo encontrava certas resistências nativas O Duque de Berry 30 de acordo com seus inventários possuía uma chambre aux enfants ou um quarto das crianças ou seja um aposento ornado com tapeçarias decoradas com putti Van Marle se pergunta se algumas vezes os escribas dos inventários não chamavam de enfants aqueles anjinhos semipagãos aqueles putti que tantas vezes adornam a folhagem das tapeçarias da segunda metade do século XV No século XVI como sabemos muito bem os putti invadiram a pintura e se tornaram um motivo decorativo repetido ad nauseam Ticiano em particular usou e abusou dos putti lembremos o Triunfo de Vênus do Prado O século XVII não pareceu cansado do tema quer em Roma em Nápoles ou em Versalhes onde os putti ainda conservavam o antigo nome de marmousets A pintura religiosa tampouco escaparia deles graças à transformação do anjoadolescente medieval em putto Com exceção do anjo da guarda de agora em diante o anjo não seria mais o adolescente que ainda se vê nas telas de Botticelli ele também se transformara num pequeno Eros nu mesmo quando para satisfazer o pudor póstridentino sua nudez era encoberta por nuvens vapores ou véus A nudez do putto conquistou até mesmo o menino Jesus e as outras crianças sagradas Quando a nudez completa repugnava ao artista ela era apenas tornada mais discreta Evitavase vestir o menino Jesus com muitas roupas ou cueiros era mostrado no momento em que sua mãe desenrolava seus cueiros 31 ou então aparecia com os ombros e as pernas despidas Père du Colombier já observou a propósito das pinturas de Lucca della Robbia do Hôpital des Innocents que não era possível representar a infância sem evocarlhe a nudez32 O gosto pela nudez da criança evidentemente estava ligado ao gosto geral pela nudez clássica que começava a conquistar até mesmo o retrato Mas o primeiro durou mais tempo e conquistou toda a arte decorativa lembremonos de Versalhes ou do teto da Villa Borghese em Roma O gosto pelo putto correspondia a algo mais profundo do que o gosto pela nudez clássica a algo que deve ser relacionado com um amplo movimento de interesse em favor da infância 30 Van Marle op cit I p 71 31 Baldovinetti A Virgem e o Menino Louvre 32 P du Colombier op cit Assim como a criança medieval criança sagrada ou alegoria da alma ou ser angélico o putto nunca foi uma criança real histórica nem no século XV nem no XVI Este fato é notável pois o tema do putto nasceu e se desenvolveu ao mesmo tempo que o retrato da criança Mas as crianças dos retratos dos séculos XV e XVI não são nunca ou quase nunca crianças nuas Ou estão enroladas em cueiros mesmo quando representadas de joelhos 33 ou então vestem o traje próprio de sua idade e condição Não se imaginava a criança histórica mesmo muito pequena com a nudez da criança mitológica e ornamental e essa distinção persistiu durante muito tempo O último episódio da iconografia infantil seria a aplicação da nudez decorativa do putto ao retrato da criança Isso aconteceu também no século XVII No século XVI já podemos apontar alguns retratos de crianças nuas Mas eles são raros um dos mais antigos talvez seja o da criança morta muito pequena da família Meyer pintada por Holbein 1521 não podemos nos impedir de pensar na alma medieval Numa sala do palácio de Innsbruck existe também uma tela em que Maria Teresa quis reunir todos os seus filhos ao lado dos vivos uma princesa morta foi representada numa nudez pudicamente encoberta por drapeados Numa tela de Ticiano de 1571 ou 1575 34 Filipe II num gesto de oferenda estende à Vitória seu filho o infante Ferdinando completamente nu o menino lembra o putto usual de Ticiano e parece achar a situação muito engraçada os putti quase sempre são representados brincando Em 1560 Veronese pintou segundo o costume a família CucinaFiacco reunida diante da Virgem e o Menino três homens sendo um o pai uma mulher a mãe e seis filhos Na extrema direita uma mulher está quase cortada ao meio pelo limite do quadro ela segura no colo uma criança nua da mesma forma como a Virgem segura o Menino Jesus e essa semelhança é acentuada pelo fato de a mulher não estar vestindo o traje real de sua época Ela não é a mãe pois está afastada do centro da cena Seria a ama do filho mais novo 35 Uma pintura do holandês P Aertsen do meado do século XVI representa uma família o pai um menino de aproximadamente cinco anos uma menina de quatro e a mãe sentada com uma criancinha no colo 36 33 Virgem no Trono retrato presumido de Béatrice DEste 1496 34 Glorificação da Vitória de Lepanto Prado 35 Pinacoteca de Dresden 36 Reproduzido em H Gerson De nederlandse Shilderkunst 2 vols 1952 tomo I p 145 Certamente existem outros casos que uma pesquisa mais profunda revelaria não eram porém suficientemente numerosos para criar um gosto comum e geral No século XVII os exemplos tornaramse mais numerosos e característicos lembremos o retrato de Hélène Fourment de Munique segurando no colo o filho nu que se distingue do putto banal não só pela semelhança com a mãe mas também por uma touca com plumas do gênero então usado pelas crianças O último filho de Carlos I pintado por Van Dyck em 1637 aparece ao lado de seus irmãos e irmãs nu e semienvolto no lençol sobre o qual está deitado Ao representar em 1647 o banqueiro e colecionador Jabach em sua casa da Rua SaintMerri escreve Hautecoeur 37 Le Brun mostranos esse homem poderoso vestido simplesmente com as meias mal esticadas comentando com a mulher e o filho sua última aquisição seus outros filhos estão presentes o mais novo nu como o Menino Jesus repousa sobre uma almofada e sua irmã brinca com ele O pequeno Jabach muito mais do que as crianças nuas de Holbein Veronese Ticiano Van Dyck e mesmo Rubens tem exatamente a mesma pose do bebê moderno diante da câmera de um fotógrafo de estúdio A nudez da criança pequena daí em diante se tornaria uma convenção do gênero e todas as criancinhas que sempre haviam sido cerimoniosamente vestidas no tempo de Le Nain e Philippe de Champaigne seriam representadas nuas Essa convenção pode ser observada tanto na obra de Largillière pintor da altaburguesia como na de Mignard o pintor da corte o filho mais novo do grandedelfim do quadro de Mignard conservado no Louvre aparece nu sobre uma almofada ao lado de sua mãe tal como o pequeno Jabach A criança aparece ou completamente nua como no retrato do Conde de Toulouse de Mignard 38 em que a nudez do menino é velada pela alça de uma fita desenrolada com esse fim ou no retrato de uma criança segurando uma foice de Largillière 39 ou bem a criança aparece vestida não com uma roupa verdadeira semelhante ao traje usado na época mas com um négligé que não lhe cobre toda a nudez e a deixa intencionalmente transparente vejamse os retratos de crianças de Belle em que as pernas e os pés aparecem nus ou o Duque de Borgonha de Mignard vestido apenas com uma camisa leve Não é necessário acompanharmos por mais tempo a história desse tema que se tornou convencional Reencontráloemos finalmente nos álbuns de família e nas vitrinas dos fotógrafos de arte de on 37 L Hautecoeur Les Peintres de la vie familiale 1945 p 40 38 Museu de Versalhes 39 Rouches Largillière peintre denfants Revue de lArt ancien et moderne 1923 p 253 A DESCOBERTA DA INFÂNCIA 65 tem bebês mostrando suas pequenas nádegas apenas para a pose pois normalmente eram cuidadosamente cobertas com fraldas e cueiros e menininhos e menininhas vestidos para a fotografia apenas com uma camisa transparente Não havia uma criança cuja imagem não fosse conservada em sua nudez diretamente herdada dos putti do Renascimento singular persistência no gosto coletivo tanto burguês como popular de um tema que originalmente foi decorativo O Eros antigo redescoberto no século XV continuou a servir de modelo para os retratos artísticos dos séculos XIX e XX O leitor destas páginas sem dúvida terá notado a importância do século XVII na evolução dos temas da primeira infância Foi no século XVII que os retratos de crianças sozinhas se tornaram numerosos e comuns Foi também nesse século que os retratos de família muito mais antigos tenderam a se organizar em torno da criança que se tornou o centro da composição Essa concentração em torno da criança é particularmente notável no grupo familiar de Rubens 40 em que a mãe segura a criança pelo ombro e o pai dálhe a mão e nos quadros de Franz Hals Van Dyck e Lebrun em que as crianças se beijam se abraçam e animam o grupo dos adultos sérios com suas brincadeiras e carinhos O pintor barroco apoiouse nas crianças para dar ao retrato de grupo o dinamismo que lhe faltava Também no século XVII a cena de gênero deu à criança um lugar privilegiado com inúmeras cenas de infância de caráter convencional a lição de leitura em que sobrevive sob uma forma leiga o tema da lição da Virgem da iconografia religiosa dos séculos XIV e XV a lição de música ou grupos de meninos e meninas lendo desenhando e brincando Poderíamos continuar enumerando indefinidamente todos esses temas tão comuns na pintura sobretudo da primeira metade do século e a seguir na gravura Enfim como vimos foi na segunda metade do século XVII que a nudez se tornou uma convenção rigorosa nos retratos de crianças A descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII e sua evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e XVI Mas os sinais de seu desenvolvimento tornaramse particularmente numerosos e significativos a partir do fim do século XVI e durante o século XVII Esse fato é confirmado pelo gosto manifestado na mesma época pelos hábitos e pelo jargão das crianças pequenas Já assinalamos no capítulo anterior que as crianças receberam então novos nomes 40 Cerca de 1609 Karlsruhe Rubens ed Verlags p 34 bambins pitchouns e fanfans Os adultos interessaramse também em registrar as expressões das crianças e em empregar seu vocabulário ou seja o vocabulário utilizado pelas amas quando estas lhes falavam É muito raro que a literatura mesmo popular conserve vestígios do jargão das crianças No entanto alguns desses vestígios são encontrados na Divina Comédia41 Que gloria terás tu a mais se deixares uma carne envelhecida do que se tivesses morrido antes de parar de dizer pappo e dindi antes que mil anos se passassem Pappo significa pão A palavra existia no francês da época de Dante papin Encontramola num dos Miracles NotreDame o da criancinha que dá de comer à imagem de Jesus no colo de Nossa Senhora Assim colocoulhe o papin sobre a boca dizendo papez come bela e doce criança por favor Então ele comeu um pedaço de papin come criança disse o menino e que Deus te ajude Vejo que morres de fome Come um pouco do meu bolo ou de minha fogança Mas a palavra papin seria realmente reservada à infância ou pertenceria à língua familiar do diaadia Qualquer que seja a resposta os Miracles NotreDame assim como outros textos do século XIV revelam um gosto indiscutível pela infância real Isto não impede porém que as alusões ao jargão da infância tenham permanecido excepcionais antes do século XVII No século XVII elas tornamse abundantes Vejamos alguns exemplos entre as legendas de uma coletânea de gravuras de Bouzonnet e Stella datada de 165742 Essa coletânea contém uma série de pranchas gravadas que representam putti brincando Os desenhos não têm nenhuma originalidade mas as lendas escritas em versos de péssima qualidade falam o jargão da primeira infância e a gíria da juventude escolar pois na época os limites da primeira infância continuavam bastante imprecisos Alguns putti brincam com cavalos de pau título da prancha Le Dada o cavalinho Putti jouent aux dés lun est hors du jeu Et lautre sen voyant exclu du jeu Avec son toutou se console O papin dos séculos XIVXV deve ter caído em desuso ao menos no francês das crianças burguesas talvez pelo fato de não ser um termo específico da primeira infância Mas outros termos infantis surgiram e continuam vivos até hoje toutou auau e dada cavalinho 41 Purgatório XI pp 103106 42 Cl Bouzonnet Jeux de lenfance 1657 segundo Stella Alguns putti jogam dados um está fora do jogo E o outro vendose excluído do jogo Com seu auau se consola N do T Além do jargão das amas os putti falam também a gíria das escolas ou das academias militares O trenó Ce populo comme un César Se fait traîner dedans son char Populo latim de escola No mesmo sentido infantil Mme de Sévigné diria ao falar dos filhos de Mme de Grignan Ce petit peuple Um pequeno jogador fazse notar por sua astúcia Este cadet parece ter sorte Cadet termo usado nas academias onde no início do século XVII os jovens fidalgos aprendiam as armas a equitação e as artes da guerra No jogo da péla Aynsi nuds legers et dispos Les enfanis dès quils ont campos Vont sescrimer de la raquette Avoir campos expressão das academias termo militar que significa obter licença Era uma expressão comum na língua familiar encontrada também em Mme de Sévigné No banho enquanto alguns nadam La plupart boivent sans manger A la santé des camarades Camarades o termo novo também ou no máximo datando do fim do século XVI devia ser de origem militar viria dos alemães dos mercenários de língua alemã e passou pelas academias Com o tempo porém ficaria reservado à língua familiar burguesa Até hoje não é usado na língua popular que prefere o termo mais antigo copain o compaing medieval Mas voltemos ao jargão da primeira infância Em Le Pédant joué de Cyrano de Bergerac Granger chama seu filho de seu toutou Vem me dar um beijo vem meu toutou A palavra bonbon que suponho deve terse originado no jargão das amas entrou em uso assim como a expressão beau comme un ange belo como um anjo ou pas plus grand que cela deste tamanhinho empregadas por Mme de Sévigné Este populo como um César Fazse puxar em seu carro N do T Despedidas leves e dispostas As crianças assim que ont campos Vão esgrimir com a raquete N do T A maioria bebe sem comer À saúde dos camarades N do T Tentouse registrar até mesmo as onomatopeias da criança que ainda não sabe falar Mme de Sévigné por exemplo procurou anotar os ruídos emitidos por sua netinha para mostrálos a Mme de Grignan que estava então na Provença Ela fala de um modo engraçado e titota tetita y totata43 Já no início do século Heroard o médico de Luís XIII havia cuidadosamente anotado em seu diário as ingenuidades de seu pupilo seus balbucios e sua maneira de dizar vela em vez de voilà aqui está ou équivez em lugar de écrivez escreva Ao descrever sua netinha sua amiguinha Mme de Sévigné pinta cenas de gênero próximas das de Le Nain ou Bosse acrescentando porém a delicadeza dos gravadores do fim do século XVII e dos artistas do século XVIII Nossa menina é uma belezinha É morena e muito bonita Lá vem ela Dáme um beijo lambuzado mas nunca grita Ela me abraça me reconhece ri para mim e me chama só de Maman em vez de Bonne Maman Eu a amo muito Mandei cortar seus cabelos e ela agora usa um penteado solto Esse penteado é feito para ela Sua tez seu pescoço e seu corpinho são admiráveis Ela faz cem pequenas coisinhas faz carinhos bate faz o sinal da cruz pede desculpas faz reverência beija a mão sacode os ombros dança agrada segura o queixo enfim ela é bonita em tudo o que faz Distraiome com ela horas a fio44 Muitas mães e amas já se haviam sentido assim Mas nenhuma admitira que esses sentimentos fossem dignos de ser expressos de uma forma tão ambiciosa Essas cenas de infância literárias correspondem às cenas da pintura e da gravura de gênero da mesma época são descobertas da primeira infância do corpo dos hábitos e da fala da criança pequena 43 Mme de Sévigné Lettres 8 de janeiro de 1672 44 18 de setembro de 1671 22 de dezembro de 1671 20 de maio de 1672 3 O Traje das Crianças A indiferença marcada que existiu até o século XIII a não ser quando se tratava de Nossa Senhora menina pelas características próprias da infância não aparece apenas no mundo das imagens o traje da época comprova o quanto a infância era então pouco particularizada na vida real Assim que a criança deixava os cueiros ou seja a faixa de tecido que era enrolada em torno de seu corpo ela era vestida como os outros homens e mulheres de sua condição Para nós é difícil imaginar essa confusão nós que durante tanto tempo usamos calças curtas hoje sinal vergonhoso de uma infância retardada Na minha geração os meninos deixavam as calças curtas no fim do 2º ano colegial após uma certa pressão sobre pais recalcitrantes meus pais por exemplo pediamme paciência citando o caso de um tio general que entrara para a academia militar de calças curtas Hoje em dia a adolescência se expandiu para trás e para a frente e o traje es cullo XX Em todo o caso se o período 19001920 prolongava ainda até muito tarde no jovem adolescente as particularidades de um traje reservado à infância a Idade Média vestia indiferentemente todas as classes de idade preocupandose apenas em manter visíveis através da roupa os degraus da hierarquia social Nada no traje medieval separava a criança do adulto Não seria possível imaginar atitudes mais diferentes com relação à infância No século XVII entretanto a criança ou ao menos a criança de boa família quer fosse nobre ou burguesa não era mais vestida como os adultos Ela agora tinha um traje reservado à sua idade que a distinguia dos adultos Esse fato essencial aparece logo ao primeiro olhar lançado às numerosas representações de crianças do início do século XVII Consideremos a bela tela de Philippe de Champaigne do museu de Reims que representa os sete filhos da família Harbert O filho mais velho tem dez anos e o mais moço oito meses Essa pintura é preciosa para nosso estudo pois o artista inscreveu a idade precisa incluindo os meses de cada um de seus modelos O mais velho de dez anos já se veste como um homenzinho envolto em sua capa na aparência pertence ao mundo dos adultos Apenas na aparência sem dúvida pois ele deve freqüentar os cursos de um colégio e a vida escolar prolonga a idade da infância Mas o menino certamente não continuará no colégio por muito tem o e o deixará para se misturar aos homens cujo traje já veste e de cuja vida logo partilhará nos campos militares nos tribunais ou no comércio Mas os dois gêmeos que estão afetuosamente de mãos dadas e ombros colados têm apenas quatro anos e nove meses eles não estão mais vestidos como adultos Usam um vestido comprido diferente daqueles das mulheres pois é aberto na frente e fechado ora com botões ora com agulhetas mais parece uma sotaina eclesiástica Esse mesmo vestido é encontrado no quadro da Vida Humana de Cebes 1 Aí a primeira idade ainda mal saída do nãoser está nua as duas idades seguintes estão enroladas em cueiros A terceira que deve ter por volta de dois anos e ainda não fica pé sozinha já usa um vestido e sabemos que se trata de um menino A quarta idade montada em seu cavalo de pau usa o mesmo vestido comprido aberto e abotoado na frente como uma sotaina dos gêmeos Harbert de Philippe de Champaigne Esse vestido foi usado pelos meninos pequenos durante todo o século XVII EncontramoIo em Luís XIII menino em inúmeros retratos de crianças francesas inglesas e holandesas e até no início do século XVIII 1 Tabula Cebetis gravura de Merian Cf Lebègue op cit como por exemplo no jovem de Bethisy 2 pintado por Belle por volta de 1710 Neste último quadro o vestido do menino não é mais abotoado na frente mas continua diferente do das meninas e não comporta acessórios de fazenda branca Esse vestido pode ser muito simples como o da criança montada a cavalo do quadro da Vida Humana Mas pode também ser suntuoso e terminar por uma cauda como o do jovem Duque de Anjou da gravura de Arnoult 3 Esse vestido em forma de sotaina não era a primeira roupa da criança depois que ela deixava os cueiros Voltemos ao retrato das crianças Habert de Philippe de Champaigne François que tem um ano e 11 meses e o caçula de oito meses vestemse ambos exatamente como sua irmã ou seja como duas mulherzinhas saia vestido e avental Este era o traje dos meninos menores Tornarase hábito no século XVI vestilos como meninas e estas por sua vez continuavam a se vestir como as mulheres adultas A separação entre crianças e adultos ainda não existia no caso das mulheres Erasmo em Le Mariage chrétien 4 nos dá uma descrição desse traje que o seu editor francês de 1714 traduziu sem dificuldade como coisa que persistia em sua época Colocase nas crianças uma camisola curta meias bem quentes uma anágua grossa e o vestido de cima que tolhe os ombros e os quadris com uma grande quantidade de tecido e pregas e dizse a essa toda essa tralha lhes dá um ar maravilhoso Erasmo denunciava essa moda nova em sua época e preconizava maior liberdade para os jovens corpos sua opinião porém não prevaleceu contra os costumes e foi preciso esperar o fim do século XVIII para que o traje da criança se tornasse mais leve mais folgado e a deixasse mais à vontade Um desenho de Rubens 5 mostranos um traje de um menino pequeno ainda parecido com o de Erasmo o vestido aberto sob o qual aparece a saia A criança está começando a andar e é segura por tiras que pendem em suas costas No diário de Heroard que nos permite acompanhar dia a dia a infância de Luís XIII lemos sob a data de 28 de junho de 1602 Luís XIII tinha então nove meses 6 Foram colocadas tiras à guisa de guias em seu vestido para lhe ensinar a andar O mesmo Luís XIII não gostava que sua 2 Museu de Versalhes Catherine de Bethisy e seu Irmão 3 Arnoult Le duc dAnjou enfant gravura Cabinet des Estampes infolio Ed 101 vol I fº 51 4 Erasmo Le Mariage chrétien tradução francesa de 1714 5 Desenho do Louvre reproduzido em A Michel Histoire de lArt VI p 301 fig 194 6 Journal dHeroard publicado por E Soulié e E de Barthelemy 2 vols 1868 irmã usasse um vestido parecido com o seu Madame chegou com um vestido igual ao dele e ele a mandou embora com ciúmes Enquanto os meninos usavam esse traje feminíno diziase que eles estavam à la bavette ou seja eram crianças de babador Isto durava até por volta de quatrocinco anos Jean Rou que nasceu em 1638 7 conta em suas memórias que teve uma infância precoce e que foi enviado ao colégio de Harcourt acompanhado de uma criada Quando eu ainda estava à la bavette ou seja quando ainda não usava o vestido comprido com gola que precedia as calças justas pelos joelhos eu era o único ridiculamente vestido da maneira como acabo de descrever ou seja vestido de menina de sorte que era como uma espécie de novo fenômeno naquele lugar que nunca havia ocorrido antes A gola do vestido era uma gola de homem Os costumes dessa época em diante ditaram regras de vestir para as crianças de acordo com sua idade primeiro o vestido das meninas e depois o vestido comprido com gola que também era chamado de jaquette O regulamento de uma pequena escola ou escola paroquial de 1654 8 determinava que aos domingos as crianças fossem levadas à igreja para assistir à missa após a instrução religiosa e que não se misturassem os pequenos e os grandes ou seja os vestidos curtos e os vestidos compridos Os pequenos de jaquette deverão ser colocados todos juntos O diário da infância de Luís XIII que Heroard mantinha mostra a seriedade com que então se começou a tratar o traje da criança a roupa tornava visíveis as etapas do crescimento que transformava a criança em homem Essas etapas outrora despercebidas haviamse tornado espécies de ritos que era preciso respeitar e que Heroard registrava cuidadosamente como questões importantes Em 17 de julho de 1602 foram colocadas tiras à guisa de guias no vestido do Delfim Ele as usaria durante mais de dois anos aos três anos e dois meses ele recebeu o primeiro vestido sem guias O menino ficou encantado e disse ao capitão da guarda Capitão não tenho mais guias vou andar sozinho Alguns meses antes ele abandonara o berço e passara a dormir numa cama era uma etapa No seu aniversário de quatro anos usou calças justas pelos joelhos por baixo do vestido e um ano mais tarde em 7 de agosto de 1606 foilhe retirada a touca de criança e ele recebeu o chapéu dos homens Esta também foi uma data importante Agora que deixais vossa touca não sereis mais uma criança começais a vos tornar homem 7 de agosto de 1606 Mas seis dias depois a Rainha mandou que lhe pusessem novamente a touca 8 de janeiro de 1607 Ele pergunta quando começará a usar as calças justas pelos joelhos em lugar do vestido Mᵐᵉ de Montglas lhe diz que será quando tiver oito anos A 6 de junho de 1608 quando Luís tinha sete anos e oito meses Heroard registrou com certa solenidade Hoje ele foi vestido com um gibão e calças pelos joelhos deixou o traje da infância ou seja o vestido e recebeu a capa e a espada como o mais velho dos pequenos Habert de Philippe de Champaigne Algumas vezes entretanto colocavamlhe novamente o vestido como já haviam feito com a touca mas ele detestava isso quando vestia o gibão e as calças pelos joelhos ficava extremamente contente e alegre e não queria pôr o vestido Os hábitos de vestir portanto não são apenas uma frivolidade A relação entre o traje e a compreensão daquilo que ele representa está aqui bem marcada Nos colégios os semiinternos usavam o vestido por cima das calças justas até os joelhos Os diálogos de Cordier 9 do fim do século XVI descrevemnos o despertar de um aluno interno Depois de acordar levanteime da cama vesti meu gibão e minha capa curta senteime num banco peguei minhas calças até os joelhos e minha meia vestias peguei meus sapatos prendi minhas calças em meu gibão com agulhetas prendi minha meia com ligas abaixo dos joelhos peguei o cinto penteei os cabelos peguei o gorro e o coloquei com cuidado vesti meu vestido e depois sai do quarto Em Paris no início do século XVII 10 Imaginem portanto Francion entrando na classe com as ceroulas saindo por baixo de suas calças até os joelhos e descendo até os sapatos o vestido colocado torto e a pasta embaixo do braço tentando dar uma frusta podre a um e um piparote no nariz de outro No século XVIII o regulamento do internato de La Flèche dizia que o enxoval dos alunos devia incluir um vestido de interno que devia durar dois anos 11 Essa diferenciação de trajes não era observada nas meninas Estas como os meninos de outrora do momento em que deixavam os cueiros eram logo vestidas como mulherzinhas Contudo se olharmos de perto as representações de crianças do século XVII notaremos que o traje feminino tanto dos meninos pequenos como das me 7 Mémoires de Jean Rou 16381711 publicadas por F Waddington 1857 8 Ecole paroissiale ou la manière de bien instruire les enfants dans les petites écoles par um prestre dune paroisse de Paris 1654 9 Mathurin Cordier Colloques 1586 10 No colégio de Lisieux G Sorel Histoire comique de Francion publicada por E Roy 1926 11 C de Rochémonteix Le Collège Henri IV de La Flêche 1889 ninas pequenas comportava um ornamento singular que não era encontrado no traje das mulheres duas fitas largas presas ao vestido atrás dos dois ombros pendentes nas costas Vemos essas fitas de perfil na terceira criança Habert a partir da esquerda na quarta idade da Tabula Cebetis a criança de vestido brincando com o cavalo de pau e na menina de dez anos da escala das idades do início do século XVIII miséria humana ou as paixões da alma em todas as suas idades para limitar nossos exemplos às imagens já comentadas aqui Observamolas com frequência em numerosos retratos de crianças até Lancret e Boucher Elas desaparecem no fim do século XVIII época em que o traje da criança se transforma Um dos últimos retratos de criança com as fitas nas costas talvez seja o que Mᵐᵉ Gabrielle Guiard pintou para Mesdames Adelaide e Victoire em 1788 12 O retrato representa a irmã destas a Infanta que havia morrido cerca de 30 anos atrás A Infanta tinha vivido 32 anos Mᵐᵉ Gabrielle Guiard a representou contudo como uma criança ao lado de sua ama e essa preocupação em conservar a lembrança de uma mulher de trinta anos levandoa de volta ao tempo de sua infância revela um sentimento inteiramente novo A Infanta criança tem bem visíveis as fitas das costas que ainda se usavam por volta de 1730 mas que haviam passado de moda no momento em que o quadro foi pintado Portanto no século XVII e início do XVIII essas fitas nas costas haviamse tornado signos da infância tanto para os meninos como para as meninas Os estudiosos modernos sem dúvida ficaram intrigados com esse apêndice do vestuário reservado à infância Eles foram confundidos com as guias as tiras das costas das roupas das crianças pequenas que ainda não andavam com firmeza 13 No pequeno museu da abadia de Westminster foram expostas algumas efígies mortuárias de cera que representavam o morto e que eram colocadas sobre o ataúde durante as cerimônias fúnebres uma prática medieval que se manteve na Inglaterra até cerca de 1740 Uma dessas efígies representa o pequeno marquês de Normamby morto aos três anos de idade ele está vestido com uma saia de seda amarela recoberta por um vestido de veludo o traje das crianças pequenas e usa essas fitas chatas da infância que o catálogo descreve como guias Na realidade as guias eram cordinhas que não se pareciam com essas fitas Uma gravura de Guérard ilustrando a idade viril mostranos uma criança menina ou menino usando um vestido penteada à la Fontange e vista de costas entre as duas fitas que pendem dos ombros vêse claramente a cordinha que servia para ajudar a criança a andar 14 Essa análise nos permitiu descobrir alguns hábitos de vestuário próprios da infância que eram adotados comumente no final do século XVI e que foram conservados até o fim do século XVIII Esses hábitos que distinguiam o traje das crianças do traje dos adultos revelam uma nova preocupação desconhecida da Idade Média de isolar as crianças de separálas através de uma espécie de uniforme Mas qual é a origem desse uniforme da infância O vestido das crianças nada mais é do que o traje longo da Idade Média dos séculos XII e XIII antes da revolução que o substituiu no caso dos homens pelo traje curto com calças aparentes ancestrais do nosso traje masculino atual Até o século XIV todo o mundo usava um vestido ou túnica mas a túnica dos homens não era a mesma das mulheres Geralmente era mais curta ou então aberta na frente Nos camponeses dos calendários do século XIII ela parava nos joelhos enquanto nas grandes personagens veneráveis descia até os pés Houve em suma um longo período em que os homens usaram um traje justo e longo que se opunha ao traje drapeado tradicional dos gregos ou dos romanos o traje longo continuava os hábitos dos bárbaros gauleses ou orientais que se haviam introduzido na moda romana nos primeiros séculos de nossa era Ele foi uniformemente adotado tanto no Ocidente como no Oriente o traje turco também teve origem na túnica longa A partir do século XIV os homens abandonaram a túnica longa pelo traje curto e até mesmo colante para o desespero dos moralistas e dos pregadores que denunciavam a indecência dessas modas sinais da imoralidade dos tempos De fato as pessoas respeitáveis continuaram a usar a túnica longa respeitáveis por sua idade até o início do século XVII os anciãos são representados vestindo a túnica longa ou por sua condição magistrados estadistas eclesiásticos Alguns nunca deixaram de usar o traje longo e o usam até hoje ao menos em certas ocasiões os advogados os magistrados os professores os eclesiásticos Os eclesiásticos aliás quase o abandonaram pois quando o traje curto se impôs definitivamente e quando no século XVII já se havia completamente esquecido o escândalo de sua origem a sotaina do eclesiástico tornouse muito ligada à função eclesiástica para ser um traje de bomtom Os padres tiravam a bati 12 Gabrielle Guiard Portrait de Madame Infante pour Mesdames 1788 museo de Versalhes 13 Louis XV en 1715 tenu en lisière par M me de Ventadour gravura Cabinet des Estampes pet fol E e 3e 14 Lâge viril gravura de Guérard cerca de 1700 na para se apresentar em sociedade ou mesmo diante de seu Bispo da mesma forma como os oficiais tiravam o traje militar para aparecer na corte 15 As crianças também conservaram o traje longo ao menos as de boa condição Uma miniatura dos Miracles NotreDame 16 do século XV representa uma família reunida em torno do leito da mãe que acaba de dar à luz o pai veste um traje curto com calças justas e gibão mas as três crianças usam um vestido comprido Na mesma série a criança que dá de comer ao menino Jesus usa um vestido aberto do lado Na Itália ao contrário a maioria das crianças dos artistas do quattrocento usa as calças colantes dos adultos Na França e na Alemanha parece que essa moda não foi bem aceita e que se manteve o traje longo para as crianças No início do século XVI esse hábito foi consagrado e tornouse regra geral as crianças sempre usavam o vestido comprido Algumas tapeçarias alemãs dessa época mostram crianças de quatro anos de vestido longo aberto na frente 17 Algumas gravuras francesas de Jean Leclerc 18 que têm como tema os jogos infantis mostram crianças usando por cima das calças justas o vestido abotoado na frente que se tornou assim o uniforme de sua idade As fitas chatas nas costas que no século XVII também distinguiam as crianças fossem meninos ou meninas têm a mesma origem do vestido comprido As capas e túnicas do século XVI muitas vezes tinham mangas que se podiam vestir ou deixar pendentes Na gravura de Leclerc que representa crianças jogando víspera podemos ver algumas dessas mangas presas apenas por alguns pontos As pessoas elegantes e sobretudo as mulheres elegantes gostaram do efeito dessas mangas pendentes Como não eram mais vestidas essas mangas tornaramse ornamentos sem utilidade e se atrofiaram como órgãos que deixam de funcionar perderam a cavidade interna por onde passava o braço e achatadas lembraram duas fitas largas presas atrás dos ombros As fitas das crianças dos séculos XVII e XVIII são os últimos restos das falsas mangas do século XVI Essas mangas atrofiadas também são encontradas aliás em outros trajes tanto populares como cerimoniais na túnica camponesa que os irmãos Ignorantinhos adotaram como traje religioso no início do século XVIII nos primeiros trajes propriamente militares como os dos mosqueteiros 15 Mme de Sévigné 19 de abril de 1672 16 Miracles NotreDame Westminster ed G F Warner 1885 vol I p 58 17 H Gobel Wandteppiche 1923 vol I prancha CLXXXII 18 Jean Leclerc Les TrenteSix Figures contenant tous les jeux 1587 O TRAJE DAS CRIANÇAS 77 na libré dos lacaios e finalmente no traje de pajem ou seja no traje de cerimônia das crianças e dos meninos de boa família que eram confiados a outras famílias para as quais prestavam certos serviços domésticos Esses pajens do tempo de Luís XIII usavam calças bufantes no estilo só século XVI e falsas mangas pendentes Esse traje de pajem tendia a se tornar o traje de cerimônia usado em sinal de honra e de respeito numa gravura de Lepautre 19 vêemse meninos vestidos com o traje arcaizante de pajem ajudando a missa Mas esses trajes de cerimônia eram mais raros enquanto a fita chata era encontrada nos ombros de todas as crianças meninos e meninas nas boas famílias quer fossem nobres ou burgueses Assim para distinguir a criança que antes se vestia como os adultos foram conservados para seu uso exclusivo traços dos trajes antigos que os adultos haviam abandonado algumas vezes há longo tempo Esse foi o caso do vestido ou túnica longa e das mangas falsas Foi o caso também da touca usada pelas criancinhas de cueiros no século XIII a touca ainda era o gorro masculino normal que prendia os cabelos dos homens durante o trabalho como podemos ver nos calendários de NotreDame dAmiens e outros O primeiro traje das crianças foi o traje usado por todos cerca de um século antes e que num determinado momento elas passaram a ser as únicas a envergar Evidentemente não se podia inventar do nada uma roupa para as crianças Mas sentiase a necessidade de separálas de uma forma visível através do traje Escolheuse então para elas um traje cuja tradição fora conservada em certas classes mas que ninguém mais usava A adoção de um traje peculiar à infância que se tornou geral nas classes altas a partir do fim do século XVI marca uma data muito importante na formação do sentimento da infância esse sentimento que constitui as crianças numa sociedade separada da dos adultos de um modo muito diferente dos costumes iniciatórios Não devemos esquecer a importância que o traje tinha na França antiga Muitas vezes ele representava um capital elevado Gastavase muito com roupas e quando alguém morria tinhase o trabalho de fazer o inventário dos guardaroupas como hoje o faríamos apenas com relação a casacos de peles As roupas custavam muito caro e havia tentativas de frear através de leis suntuárias o luxo do vestuário que arruinava alguns e permitia a outros dissimular seu estado social e seu nascimento Mais que em nossas sociedades contemporâneas onde isso ainda se aplica às mulheres cuja roupa é o sinal aparente e necessário da prosperidade da família da importância de uma posição social o traje representava com rigor o lugar daquele 19 Lepautre gravura Cabinet des Estampes Ed 43 fol p 11 que o vestia numa hierarquia complexa e indiscutida Cada um usava o traje de sua condição social os manuais de civilidade insistiam muito na indecência que haveria se as pessoas se vestissem de maneira diferente de como deveriam de acordo com sua idade ou seu nascimento Cada nuance social era traduzida por um signo especial no vestuário No fim do século XVI o costume decidiu que a criança agora reconhecida como uma entidade separada tivesse também seu traje particular Observamos que na origem do traje infantil havia um arcaísmo a sobrevivência da túnica longa Essa tendência ao arcaísmo subsistiu no fim do século XVIII na época de Luís XVI os meninos pequenos eram vestidos com golas no estilo Luís XIII ou Renascimento As crianças pintadas por Lancret e Boucher freqüentemente são representadas vestidas segundo a moda do século anterior Mas a partir do século XVII duas outras tendências iriam orientar a evolução do traje infantil A primeira acentuou o aspecto efeminado do menino pequeno Vimos acima que o menino à la bavette antes do vestido com gola usava o vestido e a saia das meninas Essa efeminação do menino pequeno observado já em meados do século XVI de início foi uma coisa nova apenas indicada por alguns poucos traços Por exemplo no começo a parte de cima da roupa do menino conservava as características do traje masculino Mas logo o menino pequeno recebeu a gola de rendas das meninas que era exatamente igual à das senhoras Tornouse impossível distinguir um menino de uma menina antes dos quatro ou cinco anos e esse hábito se fixou de maneira definitiva durante cerca de dois séculos Por volta de 1770 os meninos deixaram de usar o vestido com gola aos quatrocinco anos Antes dessa idade porém eles eram vestidos como meninas e isso continuaria até o fim do século XIX o hábito de efeminar os meninos só desapareceria após a Primeira Guerra Mundial e seu abandono deve ser relacionado com o abandono do espartilho das mulheres uma revolução do traje que traduz a mudança dos costumes É curioso notar também que a preocupação em distinguir a criança se tenha limitado principalmente aos meninos as meninas só foram distinguidas pelas mangas falsas abandonadas no século XVIII como se a infância separasse menos as meninas dos adultos do que os meninos A indicação fornecida pelo traje confirma os outros testemunhos da história dos costumes os meninos foram as primeiras crianças especializadas Eles começaram a freqüentar em massa os colégios já no fim do século XVI e início do XVII O ensino das meninas começou apenas na época de Fénelon e de Mme de Maintenon e só se desenvolveu tarde e lentamente Sem uma escolaridade própria as meninas eram muito cedo confundidas com as mulheres como outrora os meninos eram confundidos com os homens e ninguém pensava em tornar visível através do traje uma distinção que começava a existir concretamente para os meninos mas que ainda continuava inútil no caso das meninas Por que a fim de distinguir o menino dos homens se assimilava o primeiro às meninas que não eram distinguidas das mulheres Por que esse costume tão novo e tão surpreendente numa sociedade em que se entrava cedo na vida durou quase até nossos dias ou ao menos até o início deste século apesar das transformações dos costumes e do prolongamento do período da infância Tocamos aqui no campo ainda inexplorado da consciência que uma sociedade toma de seu comportamento com relação à idade e ao sexo até hoje só se estudou sua consciência de classe Uma outra tendência que assim como o arcaísmo e a efeminação certamente também nasceu do gosto pelo disfarce levou as crianças de família burguesa a adotar traços do traje das classes populares ou do uniforme de trabalho Aqui a criança precederia a moda masculina e usaria calças compridas já durante o reinado de Luís XVI antes da época dos sansculottes O traje da criança bem vestida da época de Luís XVI era ao mesmo tempo arcaizante gola Renascimento popular calças compridas e militar túnica e botões do uniforme militar No século XVII não existia um traje propriamente popular e tampouco havia a fortiori trajes regionais Os pobres usavam as roupas que lhes davam 20 ou que compravam em belchiors A roupa do povo era uma roupa de segundamão a comparação entre a roupa de ontem e o automóvel de hoje não é tão retórica como parece o carro herdou parte do sentido social que a roupa tinha e praticamente perdeu Logo o homem do povo se vestia segundo a moda do homem de sociedade de algumas décadas atrás nas ruas da Paris de Luís XIII ele usava o gorro de plumas do século XVI enquanto as mulheres usavam a touca que estivera na moda na mesma época Esse atraso variava de uma região para outra segundo a presteza com que a boa sociedade local seguia a moda do dia No início do século XVIII as mulheres de certas regiões como as margens do Reno por exemplo ainda usavam toucas do século XV Durante o século XVIII essa evolução se interrompeu e fixouse em conseqüência de um afastamento moral mais acentuado entre os ricos e os pobres e de uma separação física que sucedeu a uma promiscuidade milenar O TRAJE DAS CRIANÇAS 79 Nome dado aos revolucionários republicanos da Revolução Francesa N do T 20 Jeam de Bray 1663 Une distribution de vêtements H Gerson I n 50 traje regional originouse ao mesmo tempo de um gosto novo pelo regionalismo era a época das grandes histórias regionais da Bretanha da Provença etc e de um ressurgimento do interesse pelas línguas regionais que se haviam transformado em dialetos em virtude do progresso do francês e das diferenças reais dos trajes provocadas pela variação de prazos com que as modas da cidade e da corte alcançavam cada população e cada região Nos grandes subúrbios populares no fim do século XVIII os homens começaram a usar um traje mais específico as calças compridas que equivaliam então ao avental do operário do século XIX e ao macacão de hoje signos de uma condição social e de uma função É interessante notar que no século XVIII o traje do povo das grandes cidades deixou de ser a roupa indigente do século XVII o andrajo informe e anacrônico ou a roupa usada do belchior Devemos ver aí a expressão espontânea de uma particularidade coletiva algo próximo de uma tomada de consciência de classe Surge portanto um modo de vestir próprio do artesão as calças compridas As calças compridas há muito tempo eram o traje dos homens do mar Quando apareciam na comédia italiana geralmente eram usadas pelos marinheiros e pelos habitantes do litoral flamengos renanos dinamarqueses e escandinavos Estes últimos ainda as usavam no século XVII a julgar pelas coleções de trajes dessa época Os ingleses as haviam abandonado mas já as conheciam no século XII 21 As calças compridas se tornaram o uniforme das marinhas de guerra quando os Estados mais organizados definiram a vestimenta de suas tropas e de suas tripulações Daí ao que parece elas passaram ao povo dos subúrbios populares a quem já repugnava usar os andrajos dos mendigos e aos meninos pequenos de boa condição social O uniforme recémcriado foi rapidamente adotado pelas crianças burguesas primeiro nos internatos particulares que se haviam tornado mais numerosos após a expulsão dos jesuítas e que muitas vezes preparavam meninos para as academias e as carreiras militares A silhueta agradou e os adultos passaram a vestir seus meninos com um traje inspirado no uniforme militar ou naval assim se criou o tipo do pequeno marinheiro que persistiu do fim do século XVIII até nossos dias A adoção das calças compridas para as crianças foi em parte uma conseqüência desse novo gosto pelo uniforme que iria conquistar os adultos no século XIX época em que o uniforme se tornou um traje de gala e de cerimônia algo que jamais havia sido antes da Revolução Foi inspirada também sem dúvida pela necessidade de liberar a criança do incômodo que lhe impunha seu traje tradicional de lhe dar uma roupa mais desalinhada E esse desalinho daí em diante seria exibido pelo povo dos subúrbios com uma espécie de orgulho Graças às calças compridas do povo e dos marinheiros os meninos se libertaram tanto do vestido comprido fora de moda e demasiado infantil como das calças justas até os joelhos demasiado cerimoniosas Aliás sempre se havia achado divertido dar às crianças de boa família algumas características do traje popular como o barrete dos trabalhadores dos camponeses e mais tarde dos forçados que os revolucionários com seu gosto clássico batizaram de barrete frigio uma gravura de Bonnard mostranos uma criança com esse barrete 22 Em nossos dias assistimos a uma transferência de traje que apresenta algumas semelhanças com a adoção das calças compridas para os meninos no tempo de Luís XVI o macacão do trabalhador e as calças de lona azul tornaramse os blue jeans que os jovens usam com orgulho como o signo visível de sua adolescência Assim partindo do século XIV em que a criança se vestia como os adultos chegamos ao traje especializado da infância que hoje nos é familiar Já observamos que essa mudança afetou sobretudo os meninos O sentimento da infância beneficiou primeiro meninos enquanto as meninas persistiram mais tempo no modo de vida tradicional que as confundia com os adultos seremos levados a observar mais de uma vez esse atraso das mulheres em adotar as formas visíveis da civilização moderna essencialmente masculina Se nos limitarmos ao testemunho fornecido pelo traje concluiremos que a particularização da infância durante muito tempo se restringiu aos meninos O que é certo é que isso aconteceu apenas nas famílias burguesas ou nobres As crianças do povo os filhos dos camponeses e dos artesãos as crianças que brincavam nas praças das aldeias nas ruas das cidades ou nas cozinhas das casas continuaram a usar o mesmo traje dos adultos jamais são representadas usando vestido comprido ou mangas falsas Elas conservaram o antigo modo de vida que não separava as crianças dos adultos nem através do traje nem através do trabalho nem através dos jogos e brincadeiras 21 Evangeliário de Santo Edmundo Millar La Miniature Anglaise 1926 prancha XXXV 22 Cabinet des Estampes 0 a 50 pet fol 137 4 Pequena Contribuição à História dos Jogos e das Brincadeiras Graças ao diário do médico Heroard podemos imaginar como era a vida de uma criança no início do século XVII como eram suas brincadeiras e a que etapas de seu desenvolvimento físico e mental cada uma delas correspondia Embora essa criança fosse um Delfim de França o futuro Luís XIII seu caso permanece típico pois na corte de Henrique IV as crianças reais legítimas ou bastardas recebiam o mesmo tratamento que todas as outras crianças nobres não existindo ainda uma diferença absoluta entre os palácios reais e os castelos fidalgos A não ser pelo fato de nunca ter ido ao colégio freqüentado já por uma parte da nobreza o jovem Luís XIII foi educado como seus companheiros Recebeu aulas de manejo de armas e de equitação do mesmo M de Pluvinel que em sua academia formava a juventude nobre nas artes da guerra As ilustrações do manual de equitação de M de Pluvinel as belas gravuras de C de Pos mostram o jovem Luís XIII exercitandose a cavalo Na segunda metade do século XVII isso já não acontecia mais o culto monárquico separava mais cedo na realidade desde a primeira infância o pequeno príncipe dos outros mortais mesmo os de berço nobre Luís XIII nasceu a 27 de setembro de 1601 Seu médico Heroard deixounos um registro minucioso de todos os seus feitos e gestos 1 Com um ano e cinco meses Heroard registra que o menino toca violino e canta ao mesmo tempo Antes ele se contentava com os brinquedos habituais dos pequeninos como o cavalo de pau o catavento ou o pião Com um ano e meio porém já lhe colocam um violino nas mãos o violino ainda não era um instrumento nobre era a rebeca que acompanhava as danças nas bodas e nas festas das aldeias De toda forma percebese a importância do canto e da música nessa época Ainda com a mesma idade o menino joga malha Num jogo de malha o Delfim errou o lance e feriu M de Longueville Isso equivaleria a vermos hoje um inglesinho começando a jogar críquete ou golfe com um ano e meio de idade Com um ano e dez meses somos informados de que o Delfim continua a tocar seu pequeno tambor com todos os tipos de toques cada companhia tinha seu tambor e sua marcha própria Começam a lhe ensinar a falar Fazemno pronunciar as sílabas separadamente antes de dizer as palavras Nesse mesmo mês de agosto de 1603 ao ir jantar a Rainha manda buscálo e colocálo na ponta de sua mesa As gravuras e as pinturas dos séculos XVI e XVII muitas vezes representam uma criança na mesa encarapitada e bem presa numa cadeirinha alta deve ter sido de uma dessas cadeiras altas que o Delfim assistiu à refeição de sua mãe como tantas outras crianças em tantas outras famílias O menino tem apenas dois anos e eis que levado ao gabinete do Rei dança ao som do violino todos os tipos de danças Mais uma vez observamos a precocidade da música e da dança na educação dos meninos dessa época isso explica a freqüência entre as famílias de profissionais daquilo que hoje chamaríamos de criançasprodígio como o pequeno Mozart esses casos se tornariam mais raros e ao mesmo tempo pareceriam mais prodigiosos à medida que a familiaridade com a música mesmo em suas formas elementares ou bastardas se atenuou ou desapareceu O Delfim começa a falar Contar papai em lugar de Vou contar a papai Equivez em vez de écrivez Muitas vezes também ele é surrado Como se comportasse mal recusavase a co 1 Heroard Journal sur lenfance et la jeunesse de Louis XIII editado por E Soulié e E Barthélémy 2 vols 1868 mer levou uma surra depois de acalmado pediu sua comida e comeu Foi para seu quarto gritando e levou uma surra Embora se misture aos adultos se divirta dance e cante com eles o Delfim ainda brinca com brinquedos de criança Tem dois anos e sete meses quando Sully lhe dá de presente uma pequena carruagem cheia de bonecas Uma linda boneca de theutheu diz ele em seu jargão Ele gosta da companhia dos soldados Os soldados sempre se alegram em vêlo Ele conduz pequenas ações militares com seus soldados M de Marsan colocoulhe a gola alta a primeira que jamais usara e ele ficou encantado Ele brinca de ações militares com seus pequenos senhores Sabemos também que ele freqüenta o jogo da péla assim como o de malha no entanto ele ainda dorme num berço Em 19 de julho de 1604 aos dois anos e nove meses ele viu sua cama sendo feita com uma enorme alegria e foi colocado no leito pela primeira vez Ele já conhece os rudimentos de sua religião na missa no momento da elevação mostramlhe a hóstia e ele diz que é le bon Dieu o bom Deus Examinemos de passagem esta expressão le bon Dieu que hoje está sempre presente na língua dos padres e dos devotos mas que nunca é encontrada na literatura religiosa anterior ao século XIX Como podemos ver aqui no início do século XVII essa expressão certamente recente pertencia à língua das crianças ou à língua que os pais e as amas utilizavam ao falar com as crianças A expressão contaminou a língua dos adultos no século XIX e com a efeminação da religião o Deus de Jacó tornouse o bon Dieu das criancinhas O Delfim agora já sabe falar direito e vez por outra tem saídas insolentes que divertem os adultos O Rei mostrandolhe uma vara de marmelo perguntoulhe Meu filho para quem é isso Ele respondeu zangado Para vós O Rei não pôde deixar de rir Na noite de Natal de 1604 aos três anos o Delfim participa da festa e das comemorações tradicionais Antes da ceia ele viu a acha de Natal ser acesa e dançou e cantou pela chegada do Natal Ganha alguns presentes uma bola e algumas quinquilharias italianas entre as quais uma pomba mecânica brinquedos destinados tanto à Rainha quanto a ele Durante as noites de inverno quando todos ficavam dentro de casa numa época de vida ao ar livre ele brincava de cortar papel com uma tesoura A música e a dança continuam a ocupar um lugar importante em sua vida Heroard registra com uma ponta de admiração O Delfim dança todas as danças ele guarda na lembrança todos os balés que viu e nos quais não demoraria a tomar parte se é que já não havia começado a fazêlo Lembrandose de um balé dançado um ano atrás quando tinha dois anos o Delfim perguntou Por que é que o Carneirinho estava nu Ele representara o Cupido nu Ele dança a galharda a sarabanda e a velha bourrée dança popular de Auvergne Ele gosta de cantar e de tocar a mandora de Boileau canta a canção de Robin Robin vai a Tours Comprar veludo Para fazer um gorrinho Mamãe eu quero Robin Ele gosta de cantar a canção com a qual o ninavam Quem quer ouvir a canção A filha do Rei Luís Bourbon a amou tanto que no fim a engravidou Canção curiosa para ninar criancinhas pequenas Ele ia fazer quatro anos dentro de poucos dias e já sabia ao menos o nome das cordas do alaúde que era um instrumento nobre Ele toca com a ponta dos dedos nos lábios dizendo esta é a baixa Mas sua familiaridade precoce com o alaúde não o impedia de ouvir os violinos mais populares como os que animaram a dança nas bodas de um dos cozinheiros do Rei ou um tocador de gaita de foles um dos pedreiros que consertavam sua lareira Ele passava um bom tempo a ouvilo Nessa época o Delfim começa a aprender a ler Aos três anos e cinco meses ele gosta de um livro com as figuras da Bíblia sua ama lhe nomeia as letras e ele as conhece todas Ensinamlhe a seguir as quadras de Pibrac regras de etiqueta e de moralidade que as crianças tinham de aprender de cor A partir dos quatro anos começa a aprender a escrever seu mestre é um clérigo da capela do castelo chamado Dumont Ele mandou trazer sua escrivaninha para a sala de jantar para escrever sob a orientação de Dumont e disse Estou escrevendo meu exemplo e estou indo para a escola o exemplo era o modelo manuscrito que ele devia copiar Ele escreveu seu exemplo seguindo a impressão feita sobre o papel e a seguiu muito bem com grande prazer Começa a aprender palavras latinas Aos seis anos um escrevente profissional substitui o clérigo da capela Ele escreveu seu exemplo Beaugrand o escrevente do Rei mostroulhe como escrever Ele ainda brinca com bonecas Brinca com alguns brinquedinhos e com um pequeno gabinete alemão miniaturas de madeira fabricadas pelos artesãos de Nurembergue M de Loménie deulhe um pequeno fidalgo muito bem vestido com uma gola perfumada Ele o penteou e disse Vou casálo com a boneca de Madame sua irmã Ele ainda gosta de recortar papel Contamlhe histórias também Ele mandou que sua ama lhe contasse as histórias da comadre Raposa e do Mau Rico e Lázaro Deitado na cama contavamlhe as histórias de Melusina Eu lhe disse que eram fábulas e não histórias reais A observação revela uma nova preocupação com a educação já moderna As crianças não eram as únicas a ouvir essas histórias elas também eram contadas nas reuniões noturnas dos adultos Ao mesmo tempo em que brincava com bonecas esse menino de quatro a cinco anos praticava o arco jogava cartas xadrez aos seis anos e participava de jogos de adultos como o jogo de raquetes e inúmeros jogos de salão Aos três anos o menino já participava de um jogo de rimas que era comum às crianças e aos jovens Com os pajens dos aposentos do Rei mais velhos do que ele brincava de a companhia vos agrada Algumas vezes era o mestre o líder da brincadeira e quando não sabia o que devia dizer perguntava participava dessas brincadeiras como a de acender uma vela com os olhos vendados como se tivesse 15 anos Quando ele não está brincando com os pajens está brincando com os soldados Ele brincava com os soldados de diversas brincadeiras como de bater palmas e de esconder Aos seis anos joga o jogo dos ofícios e brinca de mímica jogos de salão que consistiam em adivinhar as profissões e as histórias que eram representadas por mímica Essas brincadeiras também eram brincadeiras de adolescentes e de adultos Cada vez mais o Delfim se mistura com os adultos e assiste a seus espetáculos Ele tem cinco anos Foi levado ao pátio atrás do canil em Fontainebleau para assistir a uma luta entre os bretões que trabalhavam nas obras do Rei Foi levado até o Rei no salão de baile para ver os cães lutando com os ursos e o touro Foi ao pátio coberto do jogo da péla para assistir a uma corrida de texugos E acima de tudo ele participa dos balés Aos quatro anos e meio ele vestiu uma máscara foi aos aposentos do Rei para dançar um balé e recusouse a tirar a máscara não querendo ser reconhecido Muitas vezes ele se fantasia de camareira da Picardia de pastora ou de menina ainda usava a túnica dos meninos Após a ceia assistiu à dança ao som das canções de um certo Laforest um soldadocoréografo também autor de farsas Aos cinco anos assistiu sem entusiasmo à encenação de uma farsa em que Laforest fazia o papel do marido cômico o Barão de Montglat o da mulher infiel e Indret o do namorado que a seduzia aos seis anos dançou um balé muito bem vestido de homem com um gibão e calças até os joelhos por cima de sua túnica Assistiu ao balé dos feiticeiros e diabos dançado pelos soldados de M de Marsan e criado pelo piemontês JeanBaptiste um outro soldadocoréografo Ele não dança apenas os balés ou as danças da corte que aprende com um professor assim como aprende a leitura e a escrita Participa também do que hoje chamaríamos de danças populares Aos cinco anos participa de uma que me lembra uma dança tirolesa que vi certa vez em meninos com calças de couro dançarem num café de Innsbruck os pajens do Rei dançaram uma branle dando pontapés nos traseiros uns dos outros ele também dançou e fez como os outros Noutra ocasião ele estava fantasiado de menina para uma representação Terminada a farsa tirou o vestido e dançou chutando o traseiro de seus vizinhos Ele apreciava essa dança Finalmente unese aos adultos nas festas tradicionais do Natal de Reis de São João é ele quem acende a fogueira de São João no pátio do castelo de SaintGermain Na noite de Reis ele foi rei pela primeira vez Todos gritavam o rei bebe A parte de Deus era posta de lado aquele que a comesse teria de pagar uma prenda Foi levado aos aposentos da Rainha de onde viu o mastro de maio ser erguido As coisas mudam quando ele se aproxima de seu sétimo aniversário abandona o traje da infância e sua educação é entregue então aos cuidados dos homens ele deixa Mamangas Mme de Montglas e passa à responsabilidade de M de Soubise Tentase então fazêlo abandonar os brinquedos da primeira infância essencialmente as brincadeiras de bonecas Não deveis mais brincar com esses brinquedinhos os brinquedos alemães nem brincar de carreteiro agora sois um menino grande não sois mais criança Ele começa a aprender a montar a cavalo a atirar e a caçar Joga jogos de azar Ele participou de uma rifa e ganhou uma turqueza Tudo indica que a idade de sete anos marcava uma etapa de certa importância era a idade geralmente fixada pela literatura moralista e pedagógica do século XVII para a criança entrar na escola ou começar a trabalhar2 Mas não devemos exagerar sua importância Pois embora não brinque mais ou não deva mais brincar com bonecas o Delfim continua a levar a mesma vida de antes Ainda é surrado e seus divertimentos quase não se alteram Ele vai cada vez mais ao teatro chegando em pouco tempo a ir quase todos os dias uma prova da importância da comédia da farsa e do balé nos freqüentes espetáculos de interior ou ao ar livre de nossos ancestrais Ele foi à grande galeria para ver o Rei num torneio de argolinhas Gosta de ouvir os maus contos de La Clavette e de outros Jogou cara ou coroa em seu gabinete com pequenos fidalgos como o Rei com três dados Brincou de esconder com um tenente da cavalaria ligeira Foi assistir a um jogo da péla e de lá foi à grande galeria assistir a um torneio de argolinhas Fantasiouse e dançou o Pantalon Ele agora tem mais de nove anos Após a ceia foi aos aposentos da Rainha brincou de cabracega e fez com que a Rainha as princesas e as damas brincassem também Com um pouco mais de 13 anos ainda brinca de esconder Um pouco mais de bonecas e de brinquedos alemães antes dos sete anos um pouco mais de caça cavalos armas e talvez teatro após 2 Cf infra III parte cap 4 essa idade a mudança se faz insensivelmente nessa longa sequência de divertimentos que a criança toma emprestada dos adultos ou divide com eles Aos dois anos Luís XIII começa a jogar malha e péla aos quatro atira com o arco eram jogos de exercício que todos praticavam Mme de Sévigné por exemplo felicitarria seu genro por sua habilidade na malha O romancista e historiador Sorel escreveria um tratado sobre os jogos de salão destinado aos adultos Mas aos três anos Luís XIII participava de um jogo de rimas e aos seis jogava o jogo dos ofícios e brincava de mímica brincadeiras estas que ocupavam um lugar importante na Maison des Jeux de Sorel Aos cinco anos ele joga cartas Aos oito ganha um prêmio numa rifá jogo de azar em que as fortunas costumavam trocar de mãos O mesmo se dá com os espetáculos musicais ou dramáticos aos três anos Luís XIII dança a galharda a sarabanda a velha bourrée e desempenha papéis nos balés da corte Aos cinco anos assiste às farsas e aos sete às comédias Canta toca violino e alaúde Está na primeira fila dos espectadores que assistem a uma luta a um torneio de argolinhas a uma briga de ursos ou de touros ou a um acrobata na corda bamba Enfim participa das grandes festividades coletivas que eram as festas religiosas e sazonais o Natal a festa de maio São João Parece portanto que no início do século XVII não existia uma separação tão rigorosa como hoje entre as brincadeiras e os jogos reservados às crianças e as brincadeiras e os jogos dos adultos Os mesmos jogos eram comuns a ambos No início do século XVII essa polivalência não se estendia mais às crianças muito pequeninas Conhecemos bem suas brincadeiras pois a partir do século XV quando os putti surgiram na iconografia os artistas multiplicaram as representações de criancinhas brincando Reconhecemos nessas pinturas o cavalo de pau o catavento o pássaro preso por um cordão e às vezes embora mais raramente bonecas É um tanto ou quanto evidente que esses brinquedos eram reservados aos pequenininhos No entanto podemos nos perguntar se tinha sempre sido assim e se esses brinquedos não haviam pertencido antes ao mundo dos adultos Alguns deles nasceram do espírito de emulação das crianças que as leva a imitar as atitudes dos adultos reduzindoas à sua escala foi o caso do cavalo de pau numa época em que o cavalo era o principal meio de transporte e de tração Da mesma forma as pás que giravam na ponta de uma vareta só podiam ser a imitação feita pelas crianças de uma técnica que contrariamente a do cavalo não era antiga a técnica dos moinhos de vento introduzida na Idade Média O mesmo reflexo anima nossas crianças de hoje quando elas imitam um caminhão ou um carro Mas enquanto os moinhos de vento há muito desapareceram de nossos campos os cataventos continuam a ser vendidos nas lojas de brinquedos nos quiosques dos jardins públicos ou nas feiras As crianças constituem as sociedades humanas mais conservadoras Outras brincadeiras parecem ter tido uma outra origem que não o desejo de imitar os adultos Assim muitas vezes a criança é representada brincando com um pássaro Luís XIII possuía uma pega da qual gostava muito O próprio leitor talvez se lembre de suas tentativas de domesticar um pássaro ferido na infância Nessas cenas de jogos o pássaro em geral está amarrado a uma correntinha que a criança segura Às vezes ele é uma imitação de madeira Em todo o caso a julgar pela iconografia o pássaro amarrado parece ter sido um dos brinquedos mais comuns O historiador da religião grega Nilsson informanos que na Grécia antiga como aliás na Grécia moderna era costume nos primeiros dias de março os meninos fazerem uma andorinha de madeira enfeitada com flores que girava em torno de um eixo Eles a levavam de casa em casa e recebiam presentes o pássaro ou sua reprodução não eram um brinquedo individual e sim um elemento de uma festa coletiva e sazonal da qual a juventude participava desempenhando o papel que sua classe de idade lhe atribuía Reencontraremos mais adiante esse tipo de festa Aquilo que mais tarde se tornaria um brinquedo individual sem relação com a comunidade ou com o calendário destituído de qualquer conteúdo social parece ter sido ligado no princípio a cerimônias tradicionais que misturavam as crianças e os jovens aliás mal distinguidos com os adultos O mesmo Nilsson mostra como o balanço tão frequente na iconografia dos jogos e brincadeiras ainda no século XVIII figurava entre os ritos de uma das festas previstas pelo calendário as Aiora a festa da juventude Os meninos pulavam sobre odres cheios de vinho e as meninas eram empurradas em balanços Esta última cena pode ser vista em vasos pintados e Nilsson a interpreta como um rito da fecundidade Existia uma relação estreita entre a cerimônia religiosa comunitária e a brincadeira que compunha seu rito essencial Com o tempo a brincadeira se libertou de seu simbolismo religioso e perdeu seu caráter comunitário tornandose ao mesmo tempo profana e individual Nesse processo ela foi cada vez mais reservada às crianças cujo repertório de brincadeiras surge então como o repositório de manifestações coletivas abandonadas pela sociedade dos adultos e dessacralizadas O problema da boneca e dos brinquedosminiaturas levanos a hipóteses semelhantes Os historiadores dos brinquedos e os colecio3 Nilsson La Religion populaire dans La Grèce antique nadores de bonecas e de brinquedosminiaturas sempre tiveram muita dificuldade em distinguir a boneca brinquedo de criança de todas as outras imagens e estatuetas que as escavações nos restituiem em quantidades semiindustriais e que quase sempre tinham uma significação religiosa objetos de culto doméstico ou funerário exvotos dos devotos de uma peregrinação etc Quantas vezes nos apresentam como brinquedos as reduções de objetos familiares depositados nos túmulos Não pretendo concluir que as crianças pequenas de outrora não brincavam com bonecas ou com réplicas dos objetos dos adultos Mas elas não eram as únicas a se servir dessas réplicas Aquilo que na idade moderna se tornaria seu monopólio ainda era partilhado na Antigüidade ao menos com os mortos Essa ambigüidade da boneca e da réplica persistiria durante a Idade Média por mais tempo ainda no campo a boneca era também o perigoso instrumento do feiticeiro e do bruxo Esse gosto em representar de forma reduzida as coisas e as pessoas da vida quotidiana hoje reservado às criancinhas resultou numa arte e num artesanato populares destinados tanto à satisfação dos adultos como à distração das crianças Os famosos presépios napolitanos são uma das manifestações dessa arte da ilusão Os museus sobretudo alemães e suíços possuem conjuntos complicados de casas interiores e mobiliários que reproduzem em escala reduzida todos os detalhes dos objetos familiares Seriam realmente casas de bonecas essas pequenas obrasprimas de engenho e complicação É verdade que essa arte popular dos adultos também era apreciada pelas crianças eram muito procurados na França os brinquedos alemães ou as quinquilharias italianas Enquanto os objetos em miniatura se tornavam o monopólio das crianças uma mesma palavra designava na França essa indústria quer seus produtos se destinassem às crianças ou aos adultos bimbeloterie O bibelô antigo era também um brinquedo A evolução da linguagem afastouo de seu sentido infantil e popular enquanto a evolução do sentimento ao contrário restringia às crianças o uso dos pequenos objetos das réplicas No século XIX o bibelô tornouse um objeto de salão de vitrina mas continuou a ser a redução de um objeto familiar uma cadeirinha um movelzinho ou uma louça minúscula que jamais se destinaram às brincadeiras de crianças Nesse gosto pelo bibelô devemos reconhecer uma sobrevivência burguesa da arte popular dos presépios italianos ou das casas alemãs A sociedade do Ancien Régime durante muito tempo permaneceu fiel a esses brinquedinhos que hoje qualificaríamos de bobagens de crianças sem dúvida porque caíram definitivamente no domínio da infância Ainda em 1747 Barbier escreve Inventaramse em Paris uns brinquedos chamados fantoches Esses bonequinhos representam Arlequim Scaramouche a comédia italiana ou então padeiros os ofícios pastores e pastoras o gosto pelos disfarces rústicos Essas bobagens divertiram e dominaram Paris inteira de tal forma que não se pode ir a nenhuma casa sem encontrar alguns pendurados nas lareiras São dados de presente a todas as mulheres e meninas e a loucura chegou a tal ponto que no início deste ano todas as lojas se encheram deles para vendêlos como presentes A duquesa de Chartres pagou 1500 libras por um boneco pintado por Boucher O excelente bibliófilo Jacob que cita o trecho acima reconhece que em sua época ninguém teria sonhado com tais infantilidades As pessoas de sociedade muito ocupadas o que diria ele hoje não se divertem mais como naquele bom tempo de ócio que viu florescer a moda dos bilboquês e dos fantoches hoje deixamos os brinquedos para as crianças O teatro de marionetes parece ter sido uma outra manifestação da mesma arte popular da ilusão em miniatura que produziu as quinquilharias alemãs e os presépios napolitanos Ele teve aliás a mesma evolução o Guignol lionês do início do século XIX era uma personagem do teatro popular porém adulto Hoje Guignol tornouse o nome do teatro de marionetes reservado às crianças Sem dúvida essa ambigüidade persistente das brincadeiras infantis explica também por que do século XVI até o início do XIX a boneca serviu às mulheres elegantes como manequim de moda Em 1571 a duquesa de Lorraine querendo dar um presente a uma amiga que havia dado à luz encomenda bonecas não muito grandes e em número de até quatro ou seis e das mais bem vestidas que possais encontrar para enviálas à filha da Duquesa de Bavière que acabou de nascer O presente se destinava à mãe mas em nome da criança A maioria das bonecas de coleções não são brinquedos de crianças objetos geralmente grosseiros e mal tratados e sim bonecas de moda As bonecas de moda desapareceriam e seriam substituídas pela gravura de moda graças especialmente à litografia Existe portanto em torno dos brinquedos da primeira infância e de suas origens uma certa margem de ambigüidade Essa ambiguidade começava a se dissipar na época em que me coloquei no início deste capítulo ou seja em torno dos anos 1600 a especialização infantil dos brinquedos já estava então consumada com algumas diferenças de detalhe com relação ao nosso uso atual assim como observamos a propósito de Luís XIII a boneca não se destinava apenas às meninas Os meninos também brincavam com elas Dentro dos limi tes da primeira infância a discriminação moderna entre meninas e meninos era menos nítida ambos os sexos usavam o mesmo traje o mesmo vestido É possível que exista uma relação entre a especialização infantil dos brinquedos e a importância da primeira infância no sentimento revelado pela iconografia e pelo traje a partir do fim da Idade Média A infância tornavase o repositório dos costumes abandonados pelos adultos Por volta de 1600 a especialização das brincadeiras atingia apenas a primeira infância depois dos três ou quatro anos ela se atenuava e desaparecia A partir dessa idade a criança jogava os mesmos jogos e participava das mesmas brincadeiras dos adultos quer entre crianças quer misturada aos adultos Sabemos disso graças principalmente ao testemunho de uma abundante iconografia pois da Idade Média até o século XVIII tornouse comum representar cenas de jogos um índice do lugar ocupado pelo divertimento na vida social do Ancien Régime Já vimos que Luís XIII desde seus primeiros anos ao mesmo tempo que brincava com bonecas jogava péla e malha jogos que hoje nos parecem ser muito mais jogos de adolescentes e de adultos Numa gravura de Arnoult do século XVII vemos crianças jogando boliche São crianças bem nascidas a julgar pelas mangas falsas da menina Não se sentia nenhuma repugnácia em deixar as crianças jogar assim que se tornavam capazes jogos de cartas e de azar e a dinheiro Uma das gravuras de Stella dedicada aos jogos dos putti descreve com simpatia a infelicidade de um deles que havia perdido tudo Os pintores caravagescos do século XVII muitas vezes retrataram grupos de soldados jogando excitadamente em tavernas mal afamadas ao lado de velhos soldados vêemse meninos muito jovens de 12 anos talvez e que não parecem ser os menos animados Uma tela de S Bourdon representa um grupo de mendigos em torno de duas crianças observandoas jogar dados O tema das crianças jogando a dinheiro jogos de azar ainda não chocava a opinião pública pois é encontrado também em cenas que mostram não mais velhos soldados ou mendigos mas personagens sérias como as de Le Nain Inversamente os adultos participavam de jogos e brincadeiras que hoje reservamos às crianças Um marfim do século XIV represent a uma brincadeira de adultos um rapaz sentado no chão tenta pegar os homens e as mulheres que o empurram O livro de horas de Adelaide de Savoie do fim do século XV contém um calendário que é ilustrado principalmente com cenas de jogos e de jogos que não eram de cavalaria No início os calendários representavam cenas de ofícios exceto no mês de maio reservado a uma corte de amor Os jogos foram introduzidos e passaram a ocupar um lugar cada vez maior Em geral eram jogos de cavalaria como a caça mas havia também jogos populares Uma dessas ilustrações mostra a seguinte brincadeira uma pessoa faz o papel da vela no meio de um círculo de casais em que cada dama fica atrás de seu cavaleiro e o segura pela cintura Numa outra passagem do mesmo calendário a população da aldeia faz uma guerra de bolas de neve homens e mulheres grandes e pequenos Numa tapeçaria do início do século XVI alguns camponeses e fidalgos estes últimos mais ou menos vestidos de pastores brincam de uma espécie de cabracega não aparecem crianças Vários quadros holandeses da segunda metade do século XVII representam também pessoas brincando dessa espécie de cabracega Num deles aparecem algumas crianças mas elas estão misturadas com os adultos de todas as idades uma mulher com a cabeça escondida no avental estende a mão aberta nas costas Luís XIII e sua mãe brincavam de escondeesconde Brincavase de cabracega na casa da Grande Mademoiselle no Hôtel de Rambouillet Uma gravura de Lepeautre mostra que os camponeses adultos também gostavam dessa brincadeira Logo podemos compreender o comentário que o estudo da iconografia dos jogos inspirou ao historiador contemporâneo Van Marle Quanto aos divertimentos dos adultos não se pode dizer realmente que fossem menos infantis do que as diversões das crianças É claro que não pois se eram os mesmos As crianças também participavam no lugar que lhes cabia entre os outros grupos de idade das festas sazonais que reuniam regularmente toda a coletividade Para nós é difícil imaginar a importância dos jogos e das festas na sociedade antiga hoje tanto para o homem da cidade como para o do campo existe apenas uma margem muito 10 Chantilly 11 Victoria and Albert Museum Londres 12 Berndt nº 509 Cornelis de Man nº 544 Molinar 13 Fournier op cit 14 Lepeautre gravura Cabinet des Estampes Ed 73 infº p 104 15 Van Marle op cit vol I p 71 estreita entre uma atividade profissional laboriosa e hipertrofiada e uma vocação familiar imperiosa e exclusiva Toda a literatura política e social reflexo da opinião contemporânea trata das condições de vida e de trabalho Um sindicalismo que protege os salários reais e seguros que reduzem o risco da doença e do desemprego eis as principais conquistas populares ao menos as mais aparentes na opinião pública na literatura e no debate político Mesmo as aposentadorias tornamse cada vez menos possibilidades de repouso são antes privilégios que permitem uma renda mais gorda O divertimento tornado quase vergonhoso não é mais admitido a não ser em raros intervalos quase clandestinos só se impõe como dado dos costumes uma vez por ano durante o imenso êxodo do mês de agosto 16 que leva às praias e às montanhas à beira dágua ao ar livre e ao sol uma massa cada vez mais numerosa mais popular e ao mesmo tempo mais motorizada Na sociedade antiga o trabalho não ocupava tanto tempo do dia nem tinha tanta importância na opinião comum não tinha o valor existencial que lhe atribuímos há pouco mais de um século Mal podemos dizer que tivesse o mesmo sentido Por outro lado os jogos e os divertimentos estendiamse muito além dos momentos furtivos que lhes dedicamos formavam um dos principais meios de que dispunha uma sociedade para estreitar seus laços coletivos para se sentir unida Isso se aplicava a quase todos os jogos mas esse papel social aparecia melhor nas grandes festas sazonais e tradicionais Elas se realizavam em datas fixas do calendário e seus programas seguiam em geral regras tradicionais Essas festas só foram estudadas por especialistas em folclore ou em tradições populares que as situam num meio quase que exclusivamente rural Mas ao contrário elas envolviam toda a sociedade de cuja vitalidade eram a manifestação periódica Ora as crianças as crianças e os jovens participavam delas em pé de igualdade com todos os outros membros da sociedade e quase sempre desempenhavam um papel que lhes era reservado pela tradição Não pretendo escrever aqui é claro uma história dessas festas um assunto vasto e certamente de grande interesse para a história social mas alguns exemplos bastarão para mostrar o lugar que nelas ocupavam as crianças A documentação aliás é rica mesmo se recorrermos pouco às descrições predominantemente rurais da literatura folclórica uma abundante iconografia inúmeras pinturas burguesas e urbanas são suficientes para comprovar a importância dessas festas na memória e na sensibilidade coletivas Os 16 O mês de férias coletivas na Europa N do T artistas tiveram o cuidado de pintálas e de conservar sua lembrança por mais tempo do que o breve momento de sua duração Uma das cenas favoritas dos artistas e de sua clientela era a festa de Reis provavelmente a maior festa do ano Na Espanha ela conservou esse primado que perdeu na França para o Natal Quando Mme de Sévigné que estava então em seu castelo de Les Rochers soube do nascimento de um neto quis partilhar sua alegria com a criadagem e para mostrar a Mme de Grignan que havia feito tudo como devia escreveulhe Dei de beber e de comer à criadagem como numa noite de Reis 17 Uma miniatura do livro de horas de Adelaide de Savoie 18 representa o primeiro episódio da festa A cena data do fim do século XV mas esses ritos permaneceram inalterados por longo tempo Homens e mulheres parentes e amigos estão reunidos em volta de uma mesa Um dos convivas segura o bolo de Reis verticalmente Uma criança de cinco a sete anos está escondida debaixo da mesa O artista colocoulhe na mão uma faixa de pergaminho com uma inscrição que começa por um Ph Desse modo foi fixado o momento em que segundo a tradição era uma criança quem distribuía o bolo de Reis Isso se passava segundo um cerimonial determinado a criança escondiase sob a mesa um dos convivas cortava um pedaço do bolo e chamava a criança Phaebe Domine donde as letras Ph da miniatura e a criança respondia dizendo o nome do conviva que devia ser servido e assim por diante Um dos pedaços era reservado para os pobres ou seja para Deus e aquele que o comesse deveria dar uma esmola Quando a festa de Reis se laicizou essa esmola se tornou na obrigação do Rei de pagar uma prenda ou de dar um outro bolo não mais aos pobres mas aos outros convivas Mas isso não importa aqui Observemos apenas o papel que a tradição confiava a uma criança pequena no ritual da festa de Reis O procedimento adotado no sorteio das loterias oficiais do século XVII sem dúvida se inspirou nesse costume o frontispício de um livro 19 intitulado Critique sur la loterie mostra uma criança tirando a sorte tradição que se conservou até nossos dias Sorteiase a loteria como se sorteava o bolo de Reis Esse papel desempenhado pela criança implicava sua presença no meio dos adultos durante as longas horas da noite de Reis O segundo episódio da festa aliás seu ponto culminante era o brinde erguido por todos os convivas àquele que havia encontrado 17 Mme de Sévigné Lettres 1671 18 Cf nota no 10 deste capítulo 19 Reproduzido por H D Allemagne Récréations et passetemps 1906 p 107 uma fava em seu pedaço de bolo e que assim se tornava rei sendo devidamente coroado O rei bebe As pinturas flamengas e holandesas retrataram particularmente esse tema Conhecemos a famosa tela do Louvre de Jordaens mas o mesmo assunto é encontrado em numerosos outros pintores setentrionais Por exemplo no quadro de Metsu 20 de um realismo menos burlesco e mais verdadeiro Ele nos dá bem a idéia dessa reunião em torno do Rei de pessoas de todas as idades e certamente de todas as condições os criados misturandose aos senhores As pessoas estão em torno de uma mesa O Rei um velho bebe Uma criança o saúda tirando o chapéu sem dúvida fora ela quem há poucos momentos sorteara os pedaços de bolo segundo a tradição Uma outra criança ainda muito pequena para desempenhar esse papel está sentada numa dessas cadeiras altas fechadas que continuavam a ser muito usadas Ela ainda não sabe ficar de pé sozinha mas é preciso que também participe da festa Um dos convivas está fantasiado de bufão No século XVII adoravamse as fantasias e as mais grotescas eram comuns nessa ocasião mas o traje de bufão aparece em outras representações dessa cena tão familiar e parece óbvio que fazia parte do cerimonial o bufão era o bobo do Rei Podia acontecer também que uma das crianças encontrasse a fava Assim Heroard registrava a 5 de janeiro de 1607 a festa era celebrada na noite da Epifania que o futuro Luís XIII então com seis anos foi rei pela primeira vez Uma tela de Steen de 1668 21 celebra a coroação do filho mais moço do pintor O menino usando uma coroa de papel está sentado num banco como se fosse um trono e uma velha lhe dá ternamente de beber um copo de vinho A festa não parava aí Começava então o terceiro episódio que devia durar até de manhã Alguns convivas usavam fantasias alguns traziam também sobre o chapéu um cartaz que especificava seu papel na comédia O bobo encabeçava uma pequena expedição composta de alguns mascarados um músico em geral violinista e mais uma vez uma criança O costume impunha a essa criança uma função bem definida ela devia levar a vela dos reis Na Holanda parece que a vela era preta Na França tinha várias cores Mme de Sévigné dizia a respeito de uma mulher que ela estava vestida com tantas cores como a vela dos reis Sob a chefia do bufão o grupo dos cantores da estrela assim eram chamados na França se espalhava pela vizinhança pedindo combustível e comida ou desafiando as pessoas para um jogo de dados Uma gravura de Mazot de 1641 22 mostra o cortejo dos cantores da estrela dois homens uma mulher tocando guitarra e uma criança levando a vela dos reis Graças a um leque pintado a guache do início do século XVIII 23 podemos acompanhar esse cortejo bufão até o momento de sua acolhida numa casa vizinha A sala da casa é cortada verticalmente à maneira dos cenários de mistérios ou das pinturas do século XV a fim de deixar ver ao mesmo tempo o interior da sala e a rua atrás da porta Na sala as pessoas bebem à saúde do Rei e coroam a Rainha Na rua um grupo mascarado bate à porta que lhes será aberta Constatamos pois ao longo de toda a festa a participação ativa das crianças nas cerimônias tradicionais Essa participação também é comprovada na noite de Natal Heroard nos diz que Luís XIII aos três anos viu a acha de Natal ser acesa e dançou e cantou pela chegada do Natal Talvez tenha sido ele o encarregado de lançar o sal e o vinho sobre a acha segundo o ritual que nos é descrito no final do século XVI pelo suíçoalemão Thomas Platter quando fazia seus estudos de medicina em Montpellier A cena se passa em Uzès 24 Uma grande acha é colocada sobre os cães da lareira Quando o fogo pega as pessoas se aproximam A criança mais moça segura com a mão direita um copo de vinho migalhas de pão e uma pitada de sal e com a esquerda uma vela acesa As pessoas tiram os chapéus e a criança começa a invocar o sinal da cruz Em nome do Pai e joga uma pitada de sal numa extremidade da lareira Em nome do Filho na outra extremidade e assim por diante Os carvões que segundo se acreditava possuíam propriedades benéficas eram conservados A criança desempenhava aqui mais uma vez um dos papéis essenciais previstos pela tradição no meio da coletividade reunida Esse papel aliás também existia em ocasiões menos excepcionais mas que tinham então o mesmo caráter social as refeições de família O costume rezava que as graças fossem ditas por uma das crianças mais novas e que o serviço da mesa fosse feito pela totalidade das crianças presentes elas serviam a bebida trocavam os pratos cortavam a carne Teremos oportunidade de examinar mais de perto o sentido desses costumes quando estudarmos a estrutura familiar 25 Observem 20 Metsu A Festa de Reis reproduzida em Berndt nº 515 21 Steen Kassel reproduzido em F SchmidtDegener e Van Gelder Jan Steen 1928 p 82 22 Gravura de F Mazot La Nuit 23 Exposição de leques pintados Galerie Charpentier Paris 1954 nº 70 proveniente da Coleção Duchesne 24 Thomas Platter à Montpellier 15951599 p 346 25 Cf infra III parte cap 2 aqui apenas como era comum do século XIV ao XVII o hábito de confiar às crianças uma função especial no cerimonial que acompanhava as reuniões familiares e sociais tanto ordinárias como extraordinárias Outras festas embora despertassem o interesse de toda a coletividade reservavam à juventude o monopólio dos papéis ativos enquanto os outros grupos de idade assistiam como espectadores Essas festas já tinham a aparência de festas da infância ou da juventude já vimos que a fronteira entre esses dois estados hoje tão distintos era incerta e mal percebida Na Idade Média 26 no dia dos SantosInocentes as crianças ocupavam a igreja uma delas era eleita bispo pelos companheiros e presidia à cerimônia que terminava por uma procissão uma coleta e um banquete A tradição ainda viva no século XVI rezava que na manhã desse dia os jovens surpreendessem seus amigos na cama para surrálos ou como se dizia para lhes dar os inocentes A terçafeira gorda aparentemente era a festa dos meninos de escola e da juventude Fitz Stephen descreve uma terçafeira gorda do século XII em Londres a propósito da juventude de seu herói Thomas Becket 27 então aluno da escola da catedral de São Paulo Todas as crianças da escola traziam seus galos de briga para seu mestre As brigas de galo ainda hoje populares nos locais em que subsistem como em Flandres ou na América Latina mais destinadas aos adultos durante a Idade Média estavam ligadas à juventude e até mesmo à escola Um texto do século XV de Dieppe que enumera os pagamentos devidos a um balseiro o confirma O mestre que mantêm a escola de Dieppe deverá pagar um galo quando as lutas tiverem lugar na escola ou na cidade e todos os outros meninos da escola de Dieppe serão transportados por esse preço 28 Em Londres segundo Fitz Stephen a terçafeira gorda começava com brigas de galo que duravam toda a manhã À tarde todos os jovens da cidade saíam para os arredores para jogar o famoso jogo de bola Os adultos os parentes e as autoridades vinham a cavalo assistir aos jogos dos jovens e voltavam a ser jovens como eles O jogo de bola reunia várias comunidades numa ação coletiva opondo ora duas paróquias ora dois grupos de idade O jogo de bola é um jogo que se costuma realizar no dia de Natal entre os companheiros da localidade de Cairac em Auvergne e em outros lugares também é claro Este jogo se diversifica e se divide de tal maneira que os homens casados ficam de um lado e os não casados do outro eles levam a dita bola de um lugar para outro e disputamna uns aos outros a fim de ganhar o prêmio e quem joga melhor recebe o prêmio do dito dia 29 Ainda no século XVI em Avignon o carnaval era organizado e animado pelo abade da jurisdição presidente da confraria dos notários e dos procuradores 30 esses líderes da juventude eram em geral ao menos no Sul da França chefes de prazer segundo a expressão de um erudito moderno e usavam os títulos de príncipe de amor rei da jurisdição abade ou capitão da juventude abade dos companheiros ou das crianças da cidade Em Avignon 31 no dia de carnaval os estudantes tinham o direito de surrar os judeus e as prostitutas a menos que estes pagassem um resgate A história da universidade de Avignon nos diz que a 20 de janeiro de 1660 o vicelegado fixou esse resgate em um escudo por prostituta As grandes festas da juventude eram as de maio e novembro Sabemos por Heroard que em criança Luís XIII ia ao balcão da Rainha para ver erguer o mastro de maio A festa de maio vem logo após a festa de Reis no fervor dos artistas que gostavam de evocála como uma das mais populares Ela inspirou inúmeras pinturas gravuras e tapeçarias A Varagnac 32 reconheceu o tema na Primavera de Boticelli da Galeria dos Ofícios Em outras obras as cerimônias tradicionais são representadas com uma precisão mais realista Uma tapeçaria de 1642 33 nos permite imaginar o aspecto de uma aldeia ou de um burgo num 1º de maio do século XVII A cena se passa numa rua Um casal já maduro e um velho saíram de uma das casas e esperam na soleira da porta Preparamse para receber um grupo de mocas que vem em sua direção A moça da frente traz uma cesta cheia de frutas e de doces Esse grupo de jovens vai assim de porta em porta e todos lhes dão alguma comida em troca de seus bons votos a coleta a domicílio é um dos elementos essenciais dessas festas da juventude No primeiro plano alguns meninos pequenos ainda vestidos com túnicas como as meninas usam coroas de flores e folhas que suas mães lhes prepararam Em outras pinturas a procissão dos jovens coletores se organiza em torno de um menino que carrega a árvore de maio 29 J J Jusserand Les Sports et Jeux dexercice dans lancienne France 1901 30 Paul Achard Les Chefs des Plaisirs in Annuaire administratif du département du Vaucluse 1869 31 Laval Droit de barbe et batacule Université dAvignon pp 445 32 A Varagnac Civilisations traditionnelles 1948 33 As Estações Florença H Göbbel Wandteppiche 1923 vol II p 409 26 T L Jarman Landmarks in the History of Education 1951 27 Ibid 28 Charles de Robillard de Beaurepaire Recherches sur linstruction publique dans le diocèse de Rouen avant 1789 1872 3 vols vol II p 284 é o caso de uma pintura holandesa de 1700 34 O bando de crianças percorre a aldeia atrás da árvore de maio e as crianças menores usam coroas de flores Os adultos estão nas soleiras das portas prontos para receber o cortejo das crianças A árvore de maio algumas vezes é representada simbolicamente por uma vara coroada de folhas e de flores 35 Mas a árvore de maio não nos interessa aqui Ressaltemos apenas a coleta feita pelo grupo de jovens junto aos adultos e o costume de coroar as crianças com flores que deve ser associado à idéia de renascimento da vegetação simbolizado também pela árvore que era levada pelas ruas e depois plantada 36 Essas coroas de flores talvez se tenham tornado uma brincadeira comum das crianças de toda forma é certo que se tornaram o atributo de sua idade nas representações dos artistas Nos retratos da época individuais ou familiares as crianças usam ou trançam coroas de flores ou de folhas como as duas meninas de Nicolas Maes do museu de Toulouse 37 a primeira coloca uma coroa de folhas com uma das mãos e com a outra pega flores numa cesta que sua irmã lhe estende Não podemos deixar de relacionar as cerimônias de maio com essa convenção que associava a infância à vegetação Um outro grupo de festas da infância e da juventude se situava no início de novembro Nos dias 4 e 8 de novembro escreve o estudante Platter no fim do século XVI 38 realizouse a mascarada dos querubins Eu também me mascariei e fui à casa do Dr Sapota onde havia um baile Tratavase de uma mascarada de jovens e não apenas de crianças Essa festa desapareceu completamente de nossos costumes banida pela proximidade do dia de Finados A opinião comum não admitiu mais a proximidade de uma festa alegre da infância fantasiada com um dia tão solene No entanto essa festa sobreviveu na América anglosaxônia com o nome de Halloween Um pouco mais tarde a festa de São Martim era a ocasião de demonstrações restritas aos jovens e mais precisamente talvez aos escolares Amanhã é o dia de São Martim lemos num diálogo escolar do início do século XVI que descrevia a vida das escolas em Leipzig 39 Nós os escolares fazemos uma coleta farta nesse dia é costume os alunos pobres irem de porta em porta pedir dinheiro Reencontramos 34 Brokenburgh 16501702 reproduzido em Berndt n 131 35 Tapeçaria de Tournai H Göbbel op cit vol II p 24 36 Ver também I Mariette Cabinet des Estampes Ed 82 inf e Mérian Cabinet des Estampes Ec 11 inf p 58 37 Musée des Augustins Toulouse 38 Félix et Thomas Platter O Jovem à Montpellier 1892 p 142 39 L Massebieau Les Colloques scolaires 1878 aqui as coletas a domicílio que observamos por ocasião da festa de maio prática específica das festas da juventude ora gesto de acolhida e boasvindas ora mendicância real Estes parecem ser os últimos vestígios de uma estrutura muito antiga em que a sociedade era dividida em classes de idade dessa estrutura restou apenas o costume de reservar à juventude um papel essencial em algumas grandes celebrações coletivas É de notar além disso que o cerimonial dessas celebrações distinguia mal as crianças dos jovens essa sobrevivência de um tempo em que eles eram confundidos não correspondia mais inteiramente à realidade dos costumes como o faz crer o hábito criado no século XVII de enfeitar apenas as criancinhas pequenas os meninos que ainda usavam túnicas com as flores e as folhas que nos calendários da Idade Média adornavam os adolescentes que haviam chegado à idade do amor Qualquer que fosse o papel atribuído à infância e à juventude primordial na festa de maio ocasional na festa de Reis ele obedecia sempre a um protocolo tradicional e correspondia às regras de um jogo coletivo que mobilizava todo o grupo social e todas as classes de idade Outras circunstâncias provocavam também a mesma participação dos diferentes grupos de idades numa celebração comum Assim do século XV ao XVIII e na Alemanha até o início do século XIX cenas de gênero pintadas gravadas ou tecidas representavam a reunião familiar em que as crianças e os pais formavam uma pequena orquestra de câmara acompanhando um cantor Quase sempre a cena se passava por ocasião de uma refeição Em alguns casos a mesa havia sido tirada Em outros o interlúdio musical realizavase durante a refeição como na tela holandesa de Lamen pintada por volta de 1640 40 as pessoas estão sentadas à mesa mas o serviço foi interrompido o menino encarregado do serviço que traz um prato e uma jarra de vinho está parado um dos convivas de pé e encostado na lareira com um copo na mão canta sem dúvida uma canção sobre a bebida enquanto um outro pega seu alaúde para acompanhálo Hoje em dia não temos mais ideia do lugar que a música e a dança ocupavam na vida quotidiana O autor de uma Introduction to Practical Music editada em 1597 41 conta como as circunstâncias fizeram dele um músico Ele jantava com um grupo de pessoas 40 Lamen 16061652 O Interlúdio Musical reproduzido em Berndt n 472 41 Thomas Morley citado em F Watson The English Grammar Schools to 1660 1907 p 216 Quando a ceia terminou e segundo o costume foram trazidas as partituras para a mesa a dona da casa me designou uma parte e pediume muito seriamente para cantar Eu tive de me desculpar muito e confessar que não sabia todos pareceram então surpresos e alguns chegaram a cochichar no ouvido dos outros perguntandose onde eu havia sido educado Embora a prática familiar e popular de um instrumento ou do canto talvez fosse mais comum na Inglaterra elisabetana do que no resto da Europa ela também era difundida na França na Itália na Espanha e na Alemanha de acordo com um velho hábito medieval que apesar das transformações do gosto e dos aperfeiçoamentos técnicos subsistiu até os séculos XVIII e XIX um pouco mais ou um pouco menos conforme a região Hoje esse hábito só existe na Alemanha na Europa central e na Rússia Naquela época porém ele era comum nos meios nobres e burgueses em que os grupos gostavam de se fazer retratar realizando um concerto de câmara Era comum também nos meios mais populares entre os camponeses ou até mesmo mendigos cujos instrumentos eram a gaita de foles o realejo e a rebeca que ainda não havia sido elevada à dignidade do violino atual As crianças praticavam a música muito cedo Desde pequenino Luís XIII cantava canções populares ou satíricas que não se pareciam em nada com as cantigas de roda infantis de nossos últimos dois séculos ele também sabia o nome das cordas do alaúde um instrumento nobre As crianças tomavam parte em todos esses concertos de câmara que a antiga iconografia multiplicou Tocavam também entre elas e uma forma habitual de pintálas era representálas com um instrumento na mão são exemplos os dois meninos de Franz Hals 42 um dos quais acompanha no alaúde o irmão ou o amigo que canta e são exemplos as numerosas crianças tocando flauta de Franz Hals e de Le Nain 43 Num quadro de Brouwer vêemse na rua moleques do povo mais ou menos esfarrapados ouvindo com avidez o realejo de um cego saído de um pátio dos milagres tema de mendicância muito comum no século XVII 44 Uma tela holandesa de Vinckelbaons 45 merece ser especialmente examinada em razão de um detalhe significativo que ilustra o novo sentimento da infância como em outras pinturas semelhantes um tocador de realejo toca para uma platéia de crianças e a cena é representada como um instantâneo no momento em que os meninos acorrem ao som do instrumento Um dos meninos é muito pequeno e não consegue acompanhar os outros Seu pai então o segura no colo e corre atrás do bando para que seu filho não perca nada da festa a criança alegre estende os braços para o realejo A mesma precocidade é observada na prática da dança Vimos que Luís XIII aos três anos dançava a galharda a sarabanda e a velha bourrée Comparemos uma tela de Le Nain 46 e uma gravura de Guérard 47 elas têm cerca de meio século de distância mas os costumes não mudaram muito nesse intervalo e além disso a arte da gravura tende a ser conservadora Em Le Nain vemos uma roda de meninas e meninos um deles ainda usa a túnica com gola Duas meninas fazem uma ponte com as mãos dadas no alto e a roda passa por baixo A gravura de Guérard também representa uma roda mas são os adultos que a conduzem uma das moças está saltando como uma menina que pula corda Quase não há diferença entre a dança das crianças e a dos adultos Mais tarde porém a dança dos adultos se transformaria e com a valsa se limitaria definitivamente ao par individual Abandonadas pela cidade e pela corte pela burguesia e pela nobreza as antigas danças coletivas ainda subsistiriam no campo onde os folcloristas modernos as descobriam e nas rodas infantis do século XIX ambas as formas aliás estão atualmente em via de desaparecimento É impossível separar a dança dos jogos dramáticos A dança era então mais coletiva e se distinguia menos do balé do que nossas danças modernas de pares Observamos no diário de Heroard o gosto dos contemporâneos de Luís XIII pela dança o balé e a comédia gêneros ainda bastante próximos faziase um papel num balé como se dançava num baile a ligação entre as duas palavras em francês bal e ballet é significativa a mesma palavra a seguir se desdobrou ficando o baile reservado aos amadores e o balé aos profissionais Havia balés nas comédias até mesmo no teatro escolar dos colégios jesuítas Na corte de Luís XIII os autores e os atores eram recrutados internamente entre os fidalgos mas também entre os criados e os soldados as crianças tanto atuavam como assistiam às representações Seria uma prática da corte Não era uma prática comum Um texto de Sorel 48 provanos que nas aldeias nunca se havia deixado de 42 Franz Hals Meninos músicos Kassel Gerson vol I p 167 43 Franz Hals Berlim Le Nain Detroit La charette do Louvre 44 Brouwer Tocador de realejo cercado de crianças Harlem reproduzido em W von Bode p 29 Ateliê de Georges de la Tour Exposição da Orangerie de Paris 1958 n 75 45 Vinckelbaons 15761629 reproduzido em Berndt n 942 encenar peças mais ou menos comparáveis aos antigos mistérios ou às Paixões atuais da Europa central Penso que ele Ariste a quem os comediantes profissionais aborreciam teria ficado muito satisfeito se tivesse visto como eu todos os meninos de uma aldeia as meninas não representar a tragédia do Mau Rico num palco mais alto do que o teto das casas no qual todas as personagens davam sete ou oito voltas duas a duas para se mostrar antes de começar a representação como as figuras de um relógio Fiquei muito feliz de ver mais uma vez a encenação da História do Filho Pródigo e a de Nabucodonosor e depois os amores de Médor e Angélique e a descida de Radamonte aos infernos por comediantes de tal envergadura O portavoz de Sorel ironiza pois ele não aprecia esses espetáculos populares Em quase toda a parte os textos e a encenação eram regulados pela tradição oral No País Basco essa tradição foi fixada antes do desaparecimento dos jogos dramáticos No fim do século XVIII e início do XIX foram escritos e publicados dramas pastorais bascos cujos temas provinham ao mesmo tempo dos romances de cavalar ia e dos pastorais do Renascimento 49 Assim como a música e a dança as representações dramáticas reuniam toda a coletividade e misturavam as idades tanto dos atores como dos espectadores Tentaremos ver agora qual era a atitude moral tradicional com relação a esses jogos brincadeiras e divertimentos que ocupavam um lugar tão importante nas sociedades antigas Essa atitude nos aparece sob dois aspectos contraditórios De um lado os jogos eram todos admitidos sem reservas nem discriminação pela grande maioria de moralistas rigorosos os condenava quase todos de forma igualmente absoluta e denunciava sua imoralidade sem admitir praticamente nenhuma exceção A indiferença moral da maioria e a intolerância de uma elite educadora coexistiram durante muito tempo Ao longo dos séculos XVII e XVIII porém estabeleceuse um compromisso que anunciava a atitude moderna com relação aos jogos fundamentalmente diferente da atitude antiga Esse compromisso nos interessa aqui porque é também um testemunho de um novo sentimento da infância uma preocupação antes desconhecida de preservar sua moralidade e também de educála proibindolhe os jogos então classificados como maus e recomendandolhe os jogos então reconhecidos como bons 49 Larché de Languis autor de Pastorales basques circa 1769 Mas o jogo segundo Caillière apresenta outras vantagens além do lucro financeiro Sempre considerei que o amor ao jogo era um benefício da Natureza cuja utilidade reconheci Parto do princípio de que o amamos naturalmente Eos jogos esportivos que hoje seríamos mais tentados a recomendar são belos de se ver mas mal apropriados para se ganhar dinheiro E especifica Estou falando das cartas e dos dados Ouvi um experiente jogador que havia ganho no jogo uma fortuna considerável dizer que para transformar o jogo em arte não tinha utilizado outro segredo além de dominar sua paixão e de se propor esse exercício como uma profissão com o fito de ganhar dinheiro Que o jogador não se inquiette pois a má sorte não o pegará desprevenido um jogador sempre conseguirá empréstimos mais facilmente do que o faria um bom comerciante Além disso esse exercício dá aos particuliers acesso aos melhores círculos e um homem hábil pode extrair deles notáveis vantagens quando sabe manejálos Conheço alguns que têm como renda apenas um baralho e três dados e que subsistem no mundo com maior luxo e magnificiência do que senhores de província com suas grandes propriedades mas sem dinheiro líquido E o excelente Marechal conclui com esta opinião que surpreende nossa moral de hoje Aconselho a um homem que saiba e que ame o jogo a arriscar nele seu dinheiro como ele tem pouco a perder arrisca pouco e pode ganhar muito Para o biógrafo do Padre Ange o jogo é não apenas um divertimento mas uma profissão um meio de fazer fortuna e de manter relações um meio perfeitamente honesto Caillière não é o único a defender esta opinião O Chevalier de Méré que era considerado em sua época como o típico homem de sociedade bem educado exprime a mesma idéia em sua Suite du commerce du monde 51 Diria também que o jogo produz bons efeitos quando o jogador se comporta como um homem hábil e de boa vontade é através dele que um homem pode ter acesso a toda parte onde se joga e os príncipes muitas vezes se entediariam se não pudessem jogar Cita exemplos augustos Luís XIII que ainda criança ganhou uma turquesa numa rifa Richelieu que se relaxava jogando Mazarino Luís XIV e a Rainhamãe que não fazia mais nada além de jogar e rezar Qualquer que seja o mérito que se possa ter seria difícil conquistar uma boa reputação sem ingressar na alta sociedade e o jogo é uma forma fácil de abrir suas portas É mesmo um meio garantido de se estar freqüentemente em boa companhia sem dizer nada sobretudo quando se joga como um homem galante ou seja evitando a esquisitice o capricho e a superstição É preciso jogar como um homem bem educado e saber perder como ganhar sem que nem uma nem outra dessas situações se dê a conhecer no rosto nem no modo de agir Mas cuidado para não arruinar os próprios amigos por mais que ponderemos sempre resta algo em nosso coração contra aqueles que nos arruinaram Se os jogos de azar não provocavam nenhuma reprovação moral não havia razão para proibilos às crianças daí as inúmeras cenas de crianças jogando cartas dados gamão etc que a arte conservou até nossos dias Os diálogos escolares que serviam aos estudantes ao mesmo tempo como manuais de civilidade e vocabulários latinos em certos casos admitem os jogos de azar se não com entusiasmo ao menos como uma prática muito difundida O espanhol Vivès 52 contentase em fornecer certas regras para evitar os excessos diz quando se deve jogar com quem evitar os brigões que jogos a que cacife o cacife não deve ser nulo pois isso seria tolice e não valeria o jogo mas também não deve ser tão alto a ponto de perturbar o espírito diante do jogo de que maneira ou seja como um bom jogador e durante quanto tempo Mesmo nos colégios centros da moralização mais eficaz os jogos a dinheiro persistiram por muito tempo apesar da repugnância que por eles sentiam os educadores No início do século XVIII o regulamento do colégio dos Oratorianos de Troyes precisa Não se poderá jogar a dinheiro a menos que seja muito pouco e com permissão especial O professor universitário moderno que citou esse texto em 1880 acrescenta um tanto chocado diante de hábitos tão distantes dos princípios educacionais de sua época Era praticamente autorizar o jogo a dinheiro Ao menos era se conformar com ele 53 Em torno de 1830 ainda se jogava abertamente e se apostava alto nas public schools inglesas O autor de Tom Browns School Days descreve a febre de apostas e de jogos que o Derby provocava então entre os alunos de Rugby A reforma do Dr Arnold eliminaria mais tarde da escola inglesa essas práticas com vários séculos de existência que outrora eram admitidas com indiferença e que foram então consideradas imorais e viciosas 54 A estima em que eram tidos ainda no século XVII os jogos de azar nos permite avaliar a extensão da antiga atitude de indiferença moral Hoje consideramos os jogos de azar como suspeitos e perigosos e o dinheiro ganho no jogo como a menos moral e a menos confessaável das rendas Continuamos a jogar esses jogos de azar mas com a consciência pesada Ainda não era assim no século XVII a consciência pesada moderna resultou do processo de moralização em profundidade que fez da sociedade do século XIX uma sociedade de conservadores La Fortune des gens de qualité et des gentilhommes particuliers 50 é um livro de conselhos aos jovens fidalgos que desejam fazer carreira Seu autor o Marechal de Caillière não tinha nada de um aventureiro Era autor também de uma bibliografia edificante das obras do Padre Ange de Joyeuse o santo monge da Liga Era um homem religioso até mesmo devoto e sem nenhuma originalidade ou talento Suas opiniões refletem portanto a opinião comum das pessoas do bem em 1661 data da edição de seu livro Uma de suas preocupações constantes é prevenir os jovens contra a devassidão se a devassidão é a inimiga da virtude também o é da fortuna pois não se pode possuir uma sem a outra O jovem devasso vê as ocasiões de agradar a seu senhor escaparem pelas janelas do bordel e da taverna O leitor do século XX que percorre com um olhar um tanto cansado esses lugarescomuns por isso mesmo ficará surpreso quando esse moralista minucioso desenvolver suas idéias sobre a utilidade social dos jogos de azar Um dos capítulos se intitula Se um particulier abreviação de gentilhomme particulier por oposição a gens de qualité ou seja um pequeno fidalgo mais ou menos empobrecido deve jogar jogos de azar e como Não se trata de uma questão decidida o Marechal reconhece que os moralistas profissionais e o clero condenam formalmente o jogo Isso poderia embaraçar nosso autor e de fato o obriga a se explicar longamente Ele permanece fiel à antiga opinião dos leigos e tenta justificála moralmente Não será impossível provar que o jogo pode ser mais útil do que prejudicial se for acompanhado das circunstâncias que lhe são necessárias Digo que o jogo é tão perigoso para um homme de qualité ou seja um fidalgo rico quanto útil a um particulier ou seja um fidalgo empobrecido O primeiro arrisca muito porque é muito rico e o outro não arrisca nada porque não o é e no entanto um particulier pode esperar tanto da fortuna do jogo quanto um grande senhor Um tem tudo a perder e o outro tudo a ganhar estranha distinção moral 50 Marechal de Caillière La Fortune des gens de qualité et des gentilhommes particuliers 1661 Do século XVII até nossos dias a atitude moral com relação aos jogos de azar evoluiu de maneira bastante complexa à medida que se difundia o sentimento de que o jogo de azar era uma paixão perigosa um vício grave a prática tendeu a modificar alguns desses jogos reduzinho o papel do azar que no entanto ainda subsiste em benefício do cálculo e do esforço intelectual do jogador dessa forma certos jogos de cartas ou de xadrez tornaramse cada vez menos sujeitos à condenação que atingia o princípio do jogo de azar Um outro divertimento sofreu uma evolução diferente a dança Vimos que a dança comum às crianças e aos adultos ocupava um lugar importante na vida quotidiana Nosso senso moral de hoje deveria ficar menos chocado com isso do que com a prática generalizada dos jogos de azar Sabemos que os próprios religiosos dançavam ocasionalmente sem que a opinião pública se escandalizasse ao menos antes do movimento de reforma das comunidades no século XVII Sabemos como era a vida na abadia de Maubuisson quando Madre Angélique Arnaud aí chegou no início do século XVII para reformála Não era uma vida especialmente edificante mas também não era necessariamente escandalosa era sobretudo muito mundana Nos dias de verão diznos M Cognet citando Madre Angélique de SaintJean jóiaografa de sua irmã 55 quando o tempo era bonito depois das vésperas a priora conduzia a comunidade para um passeio longe da abadia nas margens das lagoas que ficavam no caminho de Paris muitas vezes os monges de SaintMartin de Pontoise que habitavam perto vinham dançar com as religiosas e isso era feito com a mesma liberdade que ocorreria no mundo leigo onde nada de mau se poderia dizer sobre tal fato Essas danças de rodas de monges e monjas indignaram Madre Angélique e temos de convir que não correspondiam ao espírito da vida monástica mas na época elas não produziam na opinião pública o efeito chocante que hoje produziriam pares de religiosos e religiosas dançando enlacados como o exigem as danças modernas É certo que os religiosos de outrora não tinham a consciência tão pesada Havia costumes tradicionais que previam danças de clérigos em certas ocasiões Em Auxère 56 por exemplo todo novo cônego para festejar o feliz acontecimento doava aos paroquianos uma bola que era então utilizada num grande jogo coletivo Esse jogo era sempre jogado em dois campos que opunham solteiros contra casados ou paróquia contra paróquia A festa de Auxère começava com o canto Victimae laudes Paschali e terminava com uma roda em que dançavam todos os cônegos Os historiadores informamnos que esse costume que remontaria ao século XIV ainda era atestado no século XVIII É provável que os partidários da reforma tridentina vissem essa dança de roda tão desaprovadoramente como Madre Angélique de SaintJean vira a dança das freiras de Maubuisson e dos padres de Pontoise cada novo tempo possui uma nova concepção do profano As danças familiares não tinham no século XVII o caráter sexual que acusariam muito mais tarde nos séculos XIX e XX Existiam até mesmo danças profissionais em Biscaye havia danças de amas em que estas carregavam seus bebês no colo 57 O exercício amplo da dança não tem o mesmo valor que a prática dos jogos de azar para ilustrar a indiferença da sociedade antiga com relação à moralidade dos divertimentos Por outro lado porém ele permite avaliar melhor o rigor da intolerância das elites reformadoras Na sociedade do Ancien Régime o jogo sob todas as suas formas o esporte o jogo de salão o jogo de azar ocupava um lugar importantíssimo que se perdeu em nossas sociedades técnicas mas que ainda hoje encontramos nas sociedades primitivas ou arcaicas 58 Ora a essa paixão que agitava todas as idades e todas as condições a Igreja opôs uma reprovação absoluta Ao lado da Igreja colocaramse também alguns leigos apaixonados pelo rigor e pela ordem que se esforçavam para domar uma massa ainda selvagem e para civilizar costumes ainda primitivos A Igreja medieval também condenava o jogo sob todas as suas formas sem exceção nem reservas e particularmente nas comunidades de clérigos bolsistas que deram origem aos colégios e às universidades do Ancien Régime Os estatutos dessas comunidades nos dão uma idéia dessa intransigência Ao lêlos o historiador inglês das universidades medievais J Rashdall 59 ficou impressionado com a proscrição geral de todas as atividades de lazer com a recusa em admitir que pudessem existir divertimentos inocentes em escolas cujos alunos entretanto tinham basicamente entre 10 e 15 anos Reprovavase a imoralidade dos jogos de azar a indecência dos jogos de salião da comédia ou da dança e a brutalidade dos jogos esportivos que de fato muitas vezes degeneravam em rixas Os estatutos dos colégios foram redigidos para limitar tanto os pretextos de divertimento quanto os riscos de delito A fortiori a proibição era categórica e rigorosa para os religiosos a quem um edito do Concílio de Sens de 1485 proibia o jogo da péla sobretudo em manga de camisa e em público é verdade que no século XV um homem sem gibão ou sem túnica e com as calças desabotoadas ficava com quase tudo de fora Temse a impressão de que a Igreja ainda incapaz de controlar os leigos adeptos de jogos tumultuados decidiu preservar seus clérigos proibindolhes todo e qualquer tipo de jogo formidável contraste de estilos de vida se a proibição tivesse sido realmente respeitada Eis por exemplo como o regulamento interno do colégio de Narbonne 60 encarava os jogos de seus bolsistas em sua redação de 1379 Ningüem nesta casa deverá jogar péla ou hóquei ou outros jogos perigosos insultuosos sob pena de uma multa de seis dinares ninguém deverá jogar dados ou quaisquer outros jogos a dinheiro nem deverá entregarse a divertimentos na mesa comesationes comezainas sob pena de uma multa de 10 vinténs O jogo e a comilança são colocados no mesmo plano Não havia então jamais um momento de diversão Os alunos poderão apenas participar algumas vezes e a raros intervalos quantas precauções Certamente logo esquecidas porém pois essas mesmas palavras eram a porta entreaberta a todos os excessos de jogos honestos ou recreativos mas é difícil saber quais já que até a péla era proibida talvez jogos de salião apostando uma pequena jarra de vinho ou então uma fruta e contando que o jogo se faça sem barulho e de maneira não habitual sine mora No colégio de Seez em 1477 61 encontramos Ordenamos que ninguém pratique o jogo de dados nem outros jogos desonestos ou proibidos e nem mesmo os jogos admitidos como a péla sobretudo nos lugares comuns ou seja o claustro a sala comum que servia de refeitório e se alguém os praticar em outros lugares que seja com pouca freqüência non nimis continue Na bula do Cardeal de Amboise que fundava o colégio de Montaigu em 1501 havia um capítulo intitulado De exercitio corporali 62 O que quer dizer isso O texto começa com uma apreciação geral um tanto ambígua O exercício físico parece ser de pouca utilidade quando se mistura aos estudos espirituais e aos exercícios religiosos ao contrário provoca um grande desenvolvimento da saúde quando é conduzido alternadamente com os estudos teóricos e científicos Na realidade o que o redator entende por exercícios físicos não são tanto os jogos e sim todos os trabalhos manuais por oposição aos trabalhos intelectuais E ele dá primazia às tarefas domésticas nas quais reconhece também uma função de relaxação as tarefas de cozinha de limpeza o serviço da mesa Em todos os exercícios acima ou seja nas tarefas domésticas nunca se deverá esquecer que se deve ser tão rápido e vigoroso quanto possível Os jogos só vêm depois das tarefas e mesmo assim sob reservas Quando o padre o chefe da comunidade estimar que os espíritos fatigados pelo trabalho e pelo estudo devam ser relaxados por meio de recreações ele as tolerará indulgebit Alguns jogos são permitidos nos lugares comuns os jogos honestos nem fatigantes nem perigosos Em Montaigu havia dois grupos de estudantes os bolsistas que como em outras fundações eram chamados de pauperes e os internos que pagavam uma pensão Esses dois grupos viam separados O regulamento estipulava que os bolsistas deveriam jogar por menos tempo e com menos freqüência do que seus colegas internos sem dúvida porque tinham a obrigação de ser melhores alunos e portanto deviam ser menos distraídos A reforma da Universidade de Paris em 1452 63 ditada por um espírito de disciplina já moderno mantém o rigor tradicional Os mestres dos colégios não permitirão que seus alunos nas festas das profissões ou em outras participem de danças imorais e desonestas ou usem trajes indecentes e leigos trajes curtos Deverão permitir porém que joguem de maneira honesta e agradável para o alívio do trabalho e o justo repouso Não permitirão nessas festas que os alunos bebam na cidade nem batam de porta em porta O reformador visa aí às saudações de porta em porta acompanhadas de coletas que a tradição permitia à juventude por ocasião das festas sazonais Num de seus diálogos escolares Vivès resume a situação em Paris no século XVI 64 nos seguintes termos Entre os estudantes nenhum outro jogo além da péla pode ser jogado com a permissão dos mestres mas algumas vezes os alunos jogam em segredo cartas e xadrez as crianças pequenas jogam garignons e os mais indisciplinados jogam dados De fato os estudantes assim como os outros meninos não tinham o menor problema em freqüentar as tavernas e os bordéis em jogar dados e dançar O rigor das proibições nunca foi abalado por sua ineficácia tenacidade espantosa a nossos olhos de homens modernos mais preocupados com a eficácia do que com princípios Os oficiais de justiça e de polícia juristas adeptos da ordem e da boa administração da disciplina e da autoridade apoiavam a ação dos mestresescola e dos eclesiásticos Durante séculos os decretos que fechavam aos estudantes o acesso às salas de jogo se sucederam ininterruptamente Esses decretos ainda são citados no século XVIII um exemplo é o decreto do tenentegeneral da polícia de Moulins de 27 de março de 1752 cuja cópia destinada à afixação pública foi conservada no Museu de Artes e Tradições Populares É proibido aos donos das quadras de péla e das salas de bilhar abri r o jogo aos estudantes e aos criados durante as horas de aula e aos donos das pistas de boliche ou outros jogos abrir o jogo aos mesmos em qualquer tempo O leitor já terá observado essa assimilação dos empregados domésticos aos estudantes eles muitas vezes tinham a mesma idade e eram igualmente temidos por sua turbulência e sua falta de autocontrole O boliche hoje um divertimento pacífico provocava tais brigas que nos séculos XVI e XVII os magistrados de polícia em certas ocasiões o proibiram inteiramente tentando estender a toda a sociedade as restrições que os eclesiásticos queriam impor aos clérigos e aos estudantes Assim esses defensores da ordem moral praticamente classificavam os jogos entre as atividades semicriminosas como a embriaguez e a prostituição que quando muito podiam ser toleradas mas que convinha proibir ao menor sinal de excesso Essa atitude de reprovação absoluta modificouse contudo ao longo do século XVII e principalmente sob a influência dos jesuítas Os humanistas do Renascimento em sua reação antiescolástica já haviam percebido as possibilidades educativas dos jogos Mas foram os colégios jesuítas que impuseram pouco a pouco às pessoas de bem e amantes da ordem uma opinião menos radical com relação aos jogos Os padres compreenderam desde o início que não era nem possível nem desejável suprimílos ou mesmo fazêlos depender de permissões precárias e vergonhosas Ao contrário propuseramse a assimilálos e a introduzilos oficialmente em seus programas e regulamentos com a condição de que pudessem escolhêlos regulamentálos e controlálos Assim disciplinados os divertimentos reconhecidos como bons foram admitidos e recomendados e considerados a partir de então como meios de educação tão estimáveis quanto os estudos Não apenas se parou de denunciar a imoralidade da dança como se passou a ensinar a dançar nos colégios pois a dança ao harmonizar os movimentos do corpo evitava a falta de graça e dava ao rapaz elegância e postura Da mesma forma a comédia que os moralistas do século XVII condenavam foi introduzida nos colégios Os jesuítas começaram com diálogos em latim sobre temas sacros e mais tarde passaram a peças francesas sobre temas profanos Até mesmo os balés foram tolerados apesar da oposição das autoridades da companhia O gosto pela dança escreveu o Padre de Dainville 65 tão vivo nos contemporâneos do Rei Sol que em 1669 fundou a Academia de Dança prevaleceu sobre os editos dos padres gerais Após 1650 quase não houve tragédias que não fossem entrecortadas pelas entradas de um balé Um álbum de gravuras de Crispin de Pos datado de 1602 representa cenas da vida escolar num colégio batavo Reconhecemos as salas de aula a biblioteca mas também a aula de dança e o jogo da péla e de bola 66 Um sentimento novo portanto apareceu a educação adotou os jogos que até então havia proscrito ou tolerado como um mal menor Os jesuítas editaram em latim tratados de ginástica que forneciam as regras dos jogos recomendados Admitiuse cada vez mais a necessidade dos exercícios físicos Fénelon escreve Os jogos de que elas as crianças gostam mais são aqueles em que o corpo está em movimento elas ficam contentes quando podem movimentarse Os médicos do século XVIII 67 inspirados nos velhos jogos de exercícios na ginástica latina dos jesuítas conceberam uma nova técnica de higiene corporal a cultura física No Traité de léducation des enfants de 1722 escrito por Crousez um professor de filosofia e matemática de Lausanne podemos ler É necessário que o corpo humano se agite muito enquanto cresce Considero que os jogos que incluem exercícios devem ser preferidos a todos os outros La Gymnastique médicale et chirurgicale de Tissot recomenda os jogos físicos como os melhores exercícios Exercitamse ao mesmo tempo todas as partes do corpo sem contar que a ação dos pulmões é constantemente estimulada pelos chamados e os gritos dos jogadores No fim do século XVIII os jogos de exercícios receberam uma outra justificativa desta vez patriótica eles preparavam os rapazes para a guerra Compreenderamse então os benefícios que a educação física podia trazer à instrução militar Nessa época que assistiu ao nascimento dos nacionalismos modernos o treinamento do soldado tornouse uma técnica quase científica Estabeleceuse um parentesco entre os jogos educativos dos jesuítas a ginástica dos médicos o treinamento do soldado e as necessidades do patriotismo Durante o Consulado foi publicada a Gymnastique de la jeunesse ou Traité élémentaire des jeux dexercices considérés sous le rapport de leur utilité physique et morale Seus autores Duvivier e Jauffret afirmavam cla 65 P de Dainville Entre Nous 1958 2 66 Academia sive speculum vitae scolasticae 1602 67 JJ Jusserand op cit ramente que o exercício militar havia constituído desde sempre a base da ginástica e era particularmente adequado à época o ano XI e ao país em que viviam Votadas por princípios à defesa comum pela natureza e o espírito de nossa constituição nossas crianças já são soldados antes de nascerem Tudo o que é militar transpira algo de grande e de nobre que eleva o homem acima dele mesmo Assim sob as influências sucessivas dos pedagogos humanistas dos médicos do Iluminismo e dos primeiros nacionalistas passamos dos jogos violentos e suspeitos da tradição antiga à ginástica e ao treinamento militar das pancadarias populares aos clubes de ginástica Essa evolução foi comandada pela preocupação com a moral a saúde e o bem comum Uma evolução paralela especializou segundo a idade ou a condição os jogos que originariamente eram comuns a toda a sociedade Daniel Mornet em sua História da Literatura Clássica 68 escreve a respeito dos jogos de salão Quando os jovens da burguesia de minha geração Mornet nasceu em 1878 jogavam jogos de salão nas matinées dansantes de suas famílias eles em geral não sabiam que esses jogos mais numerosos e mais complexos do que em sua época haviam sido há 250 anos o regalo da alta sociedade Na realidade há muito mais de 250 anos No livro de horas da Duquesa de Bourgogne 69 assistimos já no século XV a um jogo de papeizinhos uma dama aparece sentada com uma cesta no colo onde os jovens depositam papeizinhos No fim da Idade Média os jogos de desafio estavam em grande moda Uma dama dizia a um fidalgo ou um fidalgo dizia a uma dama o nome de uma flor ou de um objeto qualquer e a pessoa interpelada devia responder prontamente e sem hesitação por um cumprimento ou um epigrama rimado Essa descrição das regras do jogo nos é dada pelo editor moderno dos poemas de Christine de Pisan que compôs 70 epigramas para esse tipo de jogo 70 Por exemplo Je vous vens la passerose Belle dire ne vous ose Comment Amour vers vous me tire Si lapercevez tant sans dire 68 D Mornet Histoire de la littérature classique 1940 p 120 69 Cf nota 10 deste capítulo 70 Christine de Pisan Oeuvres poétiques editadas por M Roy 1886 pp 34 188 196 Eu te vendo a malvarosa Bela chamarte não ouso Como pode o Amor me tm romance dos tempos antigos o que mostra como outrora as pessoas se divertiam com uma representação ingênua do que havia ocorrido a cavaleiros ou damas de alta dignidade Sorel observa finalmente que esses jogos infantis são os mesmos dos adultos das classes populares e essa observação é para nós muito importante Como estes jogos são infantis eles também servem para as pessoas rústicas cujo espírito não é mais elevado do que o das crianças nesses assuntos Contudo no início do século XVII Sorel tem de convir que algumas vezes pessoas de condição elevada podiam praticar esses jogos como recreação sem que a opinião pública visse aí algo de errado esses jogos mistos ou seja comuns a todas as idades e condições tornamse recomendáveis devido ao bom emprego que sempre tiveram Há certos tipos de jogos em que o espírito não trabalha muito de forma que mesmo os muito jovens podem jogálos embora as pessoas mais velhas e sérias também os pratiquem ocasionalmente Esse antigo estado de coisas porém não era mais admitido por todos Na Maison des jeux por exemplo Ariste considera esses divertimentos de crianças e de plebeus indignos de um homem de bem O portavoz de Sorel não deseja contudo proscrevêlos completamente Mesmo os que parecem ser baixos podem ser soerguidos recebendo uma outra aplicação diferente da primeira a qual só relatei para servir de modelo Ele tenta então elevar o nível intelectual dos jogos de salão praticados dentro de casa Mas na verdade após a descrição de Sorel do jogo da mourre em que o líder levanta um dois ou três dedos e os participantes devem repetir o mesmo gesto imediatamente é difícil para o leitor moderno compreender sob que aspecto a mourre é mais elevada e mais espiritual do que o jogo de rimas que Sorel abandonava sem apelação às crianças o leitor atual tem a mesma opinião de Ariste cujo ponto de vista já é moderno Mas ele fica ainda mais surpreendido com o fato de um romancista e historiador como Sorel ter consagrado uma obra monumental à descrição e à revisão desses divertimentos Este é mais um testemunho do lugar que os jogos ocupavam nas preocupações da antiga sociedade Portanto no século XVII havia uma distinção entre os jogos dos adultos e dos fidalgos e os jogos das crianças e dos vilões A distinção era antiga e remontava à Idade Média Mas na Idade Média a partir do século XII ela se aplicava apenas a certos jogos pouco numerosos e muito particulares os jogos de cavalaria Antes disso antes da constituição definitiva da idéia de nobreza os jogos eram comuns a todos independentemente da condição social Alguns jogos conservaram esse caráter durante muito tempo Francisco I e Henrique II não menosprezavam a luta e Henrique II jogava bola isso não seria mais admitido no século seguinte Richelieu praticava o salto em sua galeria como Tristão na corte do Rei Marcos e Luís XIV jogava péla Mas esses jogos tradicionais seriam por sua vez abandonados no século XVIII pelas pessoas de alta condição A partir do século XII certos jogos já eram reservados aos cavaleiros 73 e mais precisamente aos adultos Assim enquanto a luta era uma brincadeira comum o torneio e a argolinha eram jogos de cavalaria O acesso aos torneios era proibido aos plebeus e as crianças mesmo nobres não tinham o direito de participar pela primeira vez talvez um costume proibia às crianças e ao mesmo tempo aos plebeus participar de jogos coletivos As crianças logo começaram a imitar os torneios proibidos o calendário do breviário de Grimani mostranos torneios grotescos de crianças entre as quais alguns pensaram reconhecer o futuro Carlos V as crianças cavalgam barris em vez de cavalos Surgiu então a idéia de que os nobres deviam evitar misturarse com os plebeus e distrairse entre eles uma opinião que não conseguiu imporse totalmente ao menos até que a nobreza desaparecesse enquanto função social e fosse substituída pela burguesia no século XVIII No século XVI e no início do século XVII numerosos documentos iconográficos comprovam a mistura das classes sociais durante as festas sazonais Num dos diálogos de Le Courtisan de Balthazar Castiglione um clássico do século XVI que foi traduzido para todas as línguas esse assunto é discutido e não se chega a um acordo 74 Em nosso país da Lombardia diz o senhor Pallavicino não temos essa opinião de que o cortesão só deve jogar com outros fidalgos e há muitos fidalgos que nas festas dançam o dia inteiro sob o sol com os camponeses e participam com eles de jogos como o arremesso da barra de lutas corridas e competições de saltos e penso que não há mal nisso Alguns ouvintes protestam admitem que a rigor o fidalgo possa jogar com camponeses mas contanto que vença sem esforço aparente ele deve estar praticamente certo de vencer É algo muito feio e indigno ver um fidalgo vencido por um camponês e principalmente na luta O espírito esportivo inexistia nessa época a não ser nos jogos de cavalaria e sob uma outra forma inspirada na honra feudal No fim do século XVI a prática dos torneios foi abandonada Outros jogos os substituíram nas assembléias de jovens nobres na corte e nas aulas de preparação militar das Academias onde durante a primeira metade do século XVII os fidalgos aprendiam o manejo 73 S de Vriès e Marpugo Le Brévlaire Grimani 19041910 12 vols 74 B Castiglione Le Courtisan