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Filosofia
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O QUE É A FILOSOFIA ANTIGA Tradução Dion Davi Macedo Edições Loyola Título origina 1 Ouestce que la phifosophie antique Editions Gallimard Paris 1995 ISBN 2070327604 Edição Marcos Marcionilo Consultores Mara Faury Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento José Eduardo Marques Baioni Atualização bibliográfica Dion Davi Macedo Preparação Sandra Garcia Diagramação Teima dos Santos Custódio Revisão Renato da Rocha Carlos Mauricio Balthazar Leal Edições Loyola Jesuítas Rua 1822341 lpiranga 04216000 São Paulo SP T 55 11 3385 85008501 2063 4275 editorialloyolacombr vendasloyolacombr wwwloyolacombr Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma eou quaisquer meios eletrônico ou mecânico incluindo fotocópia e gravação ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora ISBN 9788515017850 6 edição 2014 2 reimpressão 2017 EDIÇÕES LOYOLA São Paulo Brasil 1999 Sumário PREFÁCIO Primeira cJarte fi definição platônica do filósofo e seus antecedentes CAPÍTULO 1 A FILOSOFIA ANTES DA FILOSOFIA A historia dos primeiros pensadores da Grécia A paideia Os sofistas do século V CAPÍTULO 2 15 27 27 30 32 O SURGIMENTO DA NOÇÃO DE FILOSOFAR 35 O testemunho de Heródoto 35 A atividade filosófica orgulho de Atenas 37 A noção de sophía 39 CAPÍTULO 3 A FIGURA DE SÓCRATES 47 A figura de Sócrates 4 7 O não saber socrático e a crítica do saber sofístico 50 O apelo do indivíduo ao indivíduo 56 O saber de Sócrates o valor absoluto da intenção moral 60 Cuidado de si cuidado dos outros 65 CAPÍTULO 4 A DEFINIÇÃO DO FILÓSOFO NO BANQUETE DE PLATÃO 69 O Banquete de Platão 69 5 Eros Sócrates e o filósofo 72 Isócrates 83 Segunda Cfarte fi filosofia como modo de vida CAPÍTULO 5 PLATÃO E A ACADEMIA 89 A filosofia como forma de vida na Academia de Platão 89 O projeto educativo 89 Sócrates e Pitágoras 92 A intenção política 93 Formação e investigação na Academia 96 A escolha de vida platónica 101 Exercícios espirituais 103 O discurso filosófico de Platão 11 O CAPÍTULO 6 ARISTÓTELES E SUA ESCOLA 119 A forma de vida teorética 119 Os diferentes níveis da vida teorética 125 Os limites do discurso filosófico 132 CAPÍTULO 7 AS ESCOLAS HELENÍSTICAS 139 Características gerais 139 O período helenístico 139 Influências orientais 145 As escolas filosóficas 148 Identidades e diferenças prioridªde da escolha de um modo de vida 154 Identidades e diferenças o método de ensino 155 O cinismo 162 Pirro 165 O epicurismo 169 Uma experiência e uma escolha 170 A ética 171 A física e a canônica 175 Exercícios 181 O estoicismo 187 A escolha fundamental 187 6 A física 189 A teoria do conhecimento 194 A teoria moral 195 Os exercícios 198 O aristotelismo 204 A academia platônica 205 O ceticismo 209 CAPÍTULO 8 AS ESCOLAS FILOSÓFICAS NA ERA IMPERIAL 213 Características gerais 213 As novas escolas 213 Os métodos de ensino a era do comentário 217 A escolha de vida 222 Plotino e Porfirio 227 A escolha de vida 227 Os níveis do eu e os limites do discurso filosófico 235 O neoplatonismo pósplotiniano e a teurgia 243 O discurso filosófico e a vontade de harmonização entre as tradições 243 O modo de vida 245 CAPÍTULO 9 FILOSOFIA E DISCURSO FILOSÓFICO 249 A filosofia e a ambiguidade do discurso filosófico 249 Os exercícios espirituais 259 Préhistória 259 Exercícios do corpo e exercícios da alma 271 A relação consigo e a concentração do eu 273 A relação com o cosmos e a expansão do eu 290 O sábio 313 Conclusão 328 CAPÍTULO 10 Terceira Parte rfuptura e continuidade fi Idade Média e os tempos modemos O CRISTIANISMO COMO FILOSOFIA REVELADA 333 O cristianismo definindose como filosofia 333 Cristianismo e filosofia antiga 348 7 CAPÍTULO ll DESAPARECIMENTOS E REAPARECIMENTOS DA CONCEPÇÃO ANTIGA DE FILOSOFIA 355 Ainda uma vez cristianismo e filosofia 355 A filosofia como serva da teologia 357 Os artistas da razão 362 A permanência da concepção de filosofia como modo de vida 366 CAPÍTULO 12 QUESTÕES E PERSPECTIVAS 381 BffiUOGRAFIA 397 I Riferências dos textos citados em epígrafe 397 li Citações de textos antigos 398 Abreviações 398 m Seleção de textos concernentes a certos aspectos da filosofia antiga 402 CRONOLOGIA 405 Antes de Cristo 405 Período helenístico 407 Depois de Cristo 410 O Império romano 410 O Império cristão 412 ÍNDICE DE NOMES 415 8 À memória de A f Voelke Tempo virá em que para edificarse moral racionalmente terseá preferencialmente as Memorabilia de Sócrates à Bíblia e em que se há de servir de Montaigne e de Horácio como guias para o caminho que conduz à compreen são do sábio e do mediador o mais simples e imperecível de todos Sócrates Nietzschê Os antigos filósofos gregos como Epicuro Zenão Sócrates etc permanecem muito mais fiéis à verdadeira Ideia do filósofo do que a que se fez nos tempos modernos Quando hás de enfim começar a viver vir tuosamente disse Platão a um ancião que lhe pedia escutasse algumas lições sobre a virtude Não se deve apenas especular mas é necessá rio também de uma vez por todas pensar em praticar Mas hoje se toma por sonhador aquele que vive de acordo com o que ensina Kant L Ver as referências p 397 11 É o desejo que gera o pensamento Plotzno Qual é o lugar do filósofo na cidade É o de um escultor de homem Simplício Os resultados de todas estas escolas e de todas as suas experiências pertencem a nós Nós não aceitamos uma receita estoica com menos agrado porque nós já nos apropriáramos de receitas epicuristas Nietzsche Querer o bem é preferível a conhecer a verdade Petrarca Penso que jamais houve alguém que tivesse prestado pior serviço ao gênero humano do que aquele que ensinou filosofia como um ofício mercenário Sêneca Em geral so Imaginamos Platão e Aris tóteles conrgrandes túnicas de pedantes Eram pessoas honestas e como as outras rindo com seus amigos e quando se divertiram em fazer suas Leis e sua Política fizeramnas brincando Era a parte menos filosófica e menos séria de sua vida A mais filosófica consistia em viver simples e tranquilamente Pascal Se as teorias filosóficas te seduzem sentate e te volta para ti mesmo Mas não te chames 12 jamais de filósofo e só sofras se alguém te der esse nome Epicteto Há em nossos dias professores de filosofia mas não filósofos Thoreau Sem a virtude Deus nao é senao uma palavra Platina Nada fiz hoje Não vivestes então Pois essa é a ocupação mais fundamental e ilustre Montaigne 13 jrefácio Refletese muito raramente sobre o que é em si mes ma a filosofia1 Ela é extremamente difícil de definir Aos estudantes de filosofia fazse sobretudo conhecer as filosofias Os cursos acadêmicos de filosofia propõem regularmente por exemplo Platão Aristóteles Epicuro os estoicos Plotino e depois das trevas da Idade Mé dia demasiadamente ignoradas nos programas oficiais Descartes Malebranche Espinosa Leibniz Kant Hegel Fichte Schelling Bergson e alguns contemporâneos Nos exames é necessário redigir uma dissertação em que se demonstre conhecer bem os problemas postos pelas teorias deste ou daquele autor Outra dissertação demonstrará a capacidade que se tem de refletir sobre um problema 1 Assinalamos a obra de G Deleuze e F Guattari Questce que la philosophie Paris 1991 O que é a filosofia tradução de Bento Prado Jr e Alberto Alonso Muiíoz Rio de Janeiro ed 34 1992 que está muito distante em seu espírito e método da presente obra e o pequeno livro de A Philonenko Questce que la philosophie Kant Fichte Paris 1991 que de uma maneira muito interessante apresenta a propósito das cartas de Fichte e Kant o problema da essência da filosofia Encontrarseá na Historisches Wõrterbuch der Philosophie T 7 PQ Bâle 1989 cols 572927 um considerável conjunto de estudos sobre a definição de filosofia desde a Antiguidade até os nossos dias 15 O que é a filosofia antiga qualificado de filosófico visto que foi em geral tratado por filósofos antigos ou contemporâneos Em si nada há a dizer de novo sobre isso Na verdade é estudando as filosofias que se pode ter uma ideia da filosofia Portanto a história da filosofia não se confunde com a das filosofias caso se entenda por filosofias os discursos teóricos e os sistemas dos filósofos Ao lado da história há lugar para um estudo da vida e dos comportamentos filosóficos A presente obra pretende precisamente descrever em seus traços gerais e comuns o fenômeno histórico e espi ritual que representa a filosofia antiga O leitor me dirá por que se limitar à filosofia antiga tão distante de nós Eu teria várias respostas para lhe dar Em primeiro lugar é um domínio no qual espero ter adquirido certa compe tência Também como disse Aristóteles para compreender as coisas é necessário vêlas enquanto se desenvolvem2 é preciso apreendêlas em seu nascimento Se agora falamos de filosofia é porque os gregos inventaram a palavra philosophia que significa amor pela sabedoria e porque a tradição da philosophia grega foi transmitida à Idade Média e posteriormente aos tempos modernos Tratase de apropriarse do fenômenQm sua origem sempre tendo consciência de que a filosofia é um fenômeno histórico que teve início no tempo e evoluiu até nossos dias Tenho a intenção de mostrar em meu livro a diferença profunda que existe entre a representação que os antigos faziam da philosophia e a representação que se faz habitual mente da filosofia em nossos dias pelo menos na imagem 2 Aristóteles Política I 2 1252 a 24 tradução de Roberto Leal Ferreira São Paulo Martins Fontes 1991 16 Prefácio transmitida aos estudantes por conta das necessidades do ensino universitário Eles têm a impressão de que todos os filósofos estudados esforçaramse sucessivamente para inventar cada um de uma maneira original uma nova construção sistemática e abstrata destinada a explicar de uma maneira ou de outra o universo ou pelo menos caso se trate de filósofos contemporâneos que eles pro curaram elaborar uma nova discussão sobre a linguagem Dessas teorias que se poderia denominar filosofia geral resultarn em quase todos os sistemas doutrinas ou críticas da moral que extraem as consequências para o homem e para a sociedade dos princípios gerais do sistema e convidam a partir disso a fazer uma escolha de vida a adotar uma maneira de comportarse Isso não entra na perspectiva do discurso filosófico Penso que essa representação é um erro caso seja apli cada à filosofia da Antiguidade Evidentemente não se trata de negar a extraordinária capacidade dos filósofos antigos de desenvolver uma reflexão teórica sobre os problemas mais sutis da teoria do conhecimento da lógica ou da física Contudo essa atividade teórica deve ser situada em uma perspectiva diferente da que corresponde à representação corrente que se faz da filosofia Em primeiro lugar ao me nos desde Sócrates a opção por um modo de vida não se situa no fim do processo da atividade filosófica como uma espécie de apêndice acessório mas bem ao contrário na origem em uma complexa interação entre a reação crítica a outras atitudes exisúú1ciais a visãgo1Jª fe cta ll1ª11eira de viver e de ver o mundo e a própria decisão volun tária e essa opção determina até certo ponto a doutrina e 1 o modo de ensino dessa doutrina O discurso filosóficq tem 17 O que é a filosofia antiga sua origem portanto em uma escolha de vida e em uma opção existencial e não o contrário Em segundo lugar essa decisão e essa escolha jamais se fazem na solidão nunca houve filosofia nem filósofos fora de um grupo de uma comunidade em uma palavra de uma escola filosófica e precisamente uma escola filosófica corresponde nesse caso e antes de tudo a uma maneira de viver a uma escolha de vida a uma opção existencial que exige do indivíduo uma mudança total de vida uma conversão de todo o ser e finalmente a um desejo de ser e de viver de certa maneira Essa opção existencial implica por seu turno cer ta visão de mundo e será tarefa do discurso filosófico re velar e justificar racionalmente tanto essa opção existencial como essa representação do mundo O discurso filosófico teórico nasce dessa opção existencial inicial e reconduz à medida do possível ou por sua força lógica e persuasiva à ação que quer exercer sobre o interlocutor ele incita mestres e discípulos a viver realmente em conformidade com sua escolha inicial ou ainda conduz de alguma ma neira à aplicação de um ideal de vida Quero dizer que o discurso filosófico deve ser compreen dido na perspectiva do medo de vida no qua ele é ao mesmo tempo o meio e a expressão e em consequência que a filosofia é antes de tudo uma maneira de viver mas está estreitamente vinculada ao discurso filosófico Um dos temas fundamentais deste livro será a distância que separa a filosofia da sabedoria A filosofia não é senão o exercício preparatório para a sabedoria Não se trata de opor de um lado a filosofia como um discurso filosófico teórico e de outro a sabedoria como um modo de vida silencioso que será praticado a partir do momento em que o discurso 18 Prefácio tiver atingido seu aabamento e sua perfeição segundo o esquema que E WeiP propoe ao escrever O filsofo não é um sábio ele não tem ou não é a sa edna ele fla e mesmo quando seu discuso tem por fim unzco se supnmzr zsso não impede que ele fale até o momento em que tenha concluído e fora dos instantes perfeitos em que tenha concluído Iso uma ituação análoga à do Tractatus logicophi losophzcus de Wittgenstein no qual o discurso filosófico do Tractatus desdobrase finalmente em uma b d 1 s A sa e ona SI encosa filosofia antiga admite muito bem de uma maneira ou de outra e desde o Banquete6 de Plat fil fi ao que o oso o nao e um sábio mas ela não se considera um puro discurso que é suspenso no momento em que a sabedon aparece ela é ao mesmo tempo e indissoluvel mened dicuro gQdemaii1Jspara rsII1Jmais lIgiYa Contudo é verdadeque Iscurso de Platao Aristóteles ou Plotino é suspenso no hmar de certas experiências que se não são a sabedoria sao uma espécie de antegozo 3 É Weil Logique de la philosophie Paris 1950 p 13 4 Tractatus logicophilosophicus 2 ed trad d uçao apresentaçao e ensaio ouo de Lmz Henrique Lopes dos Santos São Paulo Edusp 1994 5 Cf sobre esse ponto Gottfried Gabriel L 1 tur D 1 a ogque comme IIttera e e a stgmficatwn de la forme littéraire chez Wittgenstein in L 1VOUVeau Commfffce 8283 1992 p 84 e d S 6 O Baquete 6 e tradução introdução e notas de José Cavalcante e oza Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1991 O Banquete introdu ão aduçao e notas de Mana Teresa Schiappa de Azevedo LisboaSão p ç I Berbo 173 Um Banquete 3a ed seleção introdução tradução de runa Sao Paulo Cutrix 1952 N do T 19 O que é a filosofia antiga Não se pode mais opor modo de vida disrso orno se eles correspondessem respectivamente a pratica a teo ria 0 discurso pode ter um aspecto prátio à medida ue tende a produzir um efeito sobre o ouvmte o leito Quanto ao modo de vida ele pode ser nao eonco eVI dentemente mas teorético isto é contemplativo Para ser claro devo especificar que entendo palvr discurso no sentido filosófico de pensamento discursvo expresso na linguagem escrita ou oral e não no sentido disseminado em nossos dias de maneira de falar que revela uma atitude discurso racista por exemplo EU contrapartida recusome a confundir inguagem e funçao cognitiva Citarei a esse propósito as hnhas esclarecedoras de J Ruffie De fato podese perfeitamente pensar e conhecer sem lingua gem e talvez para certas interpretaçoe conhecer mehor O pensamento reconhece a própria capaczdade de dejinzr uma conduta racional e a faculdade de representação mentl e de abstração O animal capaz de distinguir a forma trzngu lar ou certas combinações de objetos pensa como a crzança que não fala ou o surdomudo que não oi educao o estudo clínico demonstra que não ha orrlça rttre o desenvolvimento da linguagem e o da zntelzgencza um deficiente intelectual pode falar bem um afásico pode ser t l t E no homem normal as faculdades muzto zn e zgen e de elaboração manifestamse às vezes mazs ou menos esma gadas pelas faculdades de expressão As grandes descoberts parecem spr feitas independentemente da liguagem a partzr dos esquemas patterns elaborados no cerebro 7 J Ruffié De la biologie à la culture Paris 1976 P 357 20 Prefácio Insisto nesse ponto porque reencontraremos no curso deste livro situações nas quais a atividade filosófica conti nua a se exercer ainda que o discurso não possa exprimir essa atividade Não se trata de opor e separar de um lado a filosofia como modo de vida e de outro um discurso filosófico que será de algum modo exterior à filosofia Ao contrário tratase de mostrar que o discurso filosófico participa do modo de vida Mas em contrapartida é necessário reco nhecer que a escolha de vida do filósofo determina seu discurso Isso nos leva a dizer que não se pode considerar os discursos filosóficos realidades existentes em si e por si mesma e estudar a estrutura independentemente do filósofo que as desenvolveu Podese separar o discurso de Sócrates da vida e da morte de Sócrates Uma noção aparecerá frequentémente nas páginas que se seguem a de exercícios espirituais8 Designo por esse termo as práticas que podem ser de ordem fisica como o regime alimentar discursiva como o diálogo a me ditação ou iptttitiva como a contemplação mas que são todas destinadas a operar modificação e transformação no sujeito que as pratica O discurso do professor de filosofia pode ademais tomar a forma de um exercício espiritual à medida que esse discurso se apresente sob uma forma tal que o discípulo do mesmo modo que o ouvinte o leitor ou o interlocutor possa progredir espiritualmente e transformarse interiormente 8 JP Vemant utiliza também esse termo em Mythe et pensée chez les Grecs t I Paris 1971 p 96 Mito e pensamento entre os gregos 2a ed tradução de Haiganuch Sarian Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p ll9 21 O que é a filosofia antiga Nossa demonstração desenvolverseá em três etapas A primeira consistirá em retraçar a história dos primei ros empregos da palavra philosophia e em compreender o sentido da definição filosófica dessa palavra por Platão quando no Banquete ele define a philosophia como o de sejo de sabedoria Em seguida procuraremos reencontrar as características das diferentes filosofias da Antiguidade consideradas em seu aspecto de modo de vida o que nos levará finalmente a estudar os traços comuns que as unem Em um terceiro momento buscaremos expor por qual razão e em que medida a filosofia foi concebidt a partir da Idade Média como uma aÜVíclade puramente teórica Por fim nos perguntaremos se é possível retornar ao ideal antigo de filosofia Para justificar nossas afirmações nos apoiaremos muito sobre os textos dos filósofos antigos Isso representará penso eu um serviço aos estudantes que nem sempre têm fácil acesso às fontes As reflexões que apresento ao leitor são fruto de longos trabalhos consagrados aos filósofos e à filosofia antigos Dois livros influenciaramme muito no curso dessas pesquisas Em primeiro lugar Seelenführung Direção de almas de P Rabbow9 publicado em 1954 que expõe as diferentes formas qutomar essas práticas podem h os epicuristas e nos estoicos e que teve iguahnente o mérito de marcar a continuidade existente entre a espiritualida de antiga e a cristã mas talvez limitandose demasiado exclusivamente aos aspectos retóricos dos exercícios espirituais Em seguida a obra de fuinha mulher que escreveu antes de conhecerme um livro sobre Sêneca e 9 P Rabbow Seelenführung Methodik der Exerzitien in der Antike München 1954 22 Prefácio a trdição da direção da consciência grecoromanaro que oefia oba do filósofo estoico na perspectiva gerl da os o a an tlga Tive o prazer de conhecer dois filósofos q ue tamb estavam d d em ca a um e uma maneira independente da mmhar mtressados nesses problemas o saudoso A J Voelke CUJos estudos sobre a filosofia como terapia d alma foram publicados recentemente e meu colega pol A J D kjl2 ones omas CUJa obra sobre a concepção de filosofia na Idae Media e no Renascimento mostra como a conce ção antiga de filosofia foi ocultada mas apenas parcialen te na Idade Média e como retornou no R enasCimento por eemplo em Petrarca e em Erasmo Por outro lad adito que mu atigo intitulado Exercices spirituels p I osopue antique publicado em 1977 teve influên sobre a Ideia que M F I Cia oucau t tmha de cultura de siI3 Jha afirmei lhures as convergências e as divergências que a entre nos14 É e exprimir de todo o coração meu reconhecimento a nc Igne que me propôs escrever esta obra indicou me o plano e teve comigo uma paciência exemplar Minha 10 Ilsetraut Hadot S d d tung Berlin 1969 ene un ze gnechzschromische Tradition der Seelenlei apresenta a como tese de doutoral em 1965 bl d sem modificaçoes um pouco mais tarde pu rca a Hadous9losophie comme thérapie de lâme Préface de P 12 Domanski La Philosophie théorie ou d de Moyen Âge et du début d l Re mo e vze Les controverses du 1996 e a nazssance Preface de P Hadot FribourgParis 13 M Foucault Le souci de sai Paris 1984 p 57 14 P H d t Rfl v a o e exrons sur la notion de culture de soi M h l lOUcault phzlosohe Re t 1 m zc e 1988 r ncon re nternatzonale Paris 9 261269 10 11 janvier 23 O que é a filosofia antiga cara colega R Hamayon com seus conselhos e escritos esclareceume os problemas muito complexos apresentados pelo xamanismo Que ela encontre aqui a expressão de minha profunda gratidão Meus calorosos agradecimentos a Sylvie Simon Gwenaelle Aubry J eannie Carlier Ilsetraut Hadot que releram esta obra para eliminar dela tanto quanto possível as incorreções e os erros 24 fi do filóso tes Capítulo 1 ji filosofia antes da filosofia A historia dos primeiros pensadores da Grécia A filosofia antes da filosofia Efetivamente as palavras da família philosophia surgiram apenas no século V aC e o termo só foi definido filosoficlJnnte no século IV aC por Platão contudoArisfótêles com ele toda a tradição da história da filosofia consideram filósofos os primeiros filó sofos gregos1 que apareceram no início do século VI na periferia da zona de influência grega nas colônias da Ásia Menor exatamente na cidade de Mileto Tales matemático e físico um dos Sete Sábios célebre por ter predito o eclip se do sol de 28 de maio de 585 depois Anaximandro e Anaxímenes Esse movimento de pensamento estenderseá I Encontrarseão os fragmentos de suas obras em Les Présocratiques Éd JP Dumont citado Dumont nas notas que se seguem Paris Gallimard 1988 Bibliotheque de la Pléiade Os Présocráticos 2 ed seleção de textos e supervisão de José Cavalcante de Souza traduções de José Cavalcante de Souza et al São Paulo Abril Cultural 1978 Os Pensadores Gerd A Bornbeim org Os filósofos présocráticos São Paulo Cultrix 1988 Vejase igualmente do mesmo autor a edição que ele estabeleceu para o público estudantil Les Écoles présocratiques Paris Gallimard Folio Essais 152 27 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes a outras colônias gregas agora para as da Sicília e do Sul da Itália É assim que no século VI Xenófanes de Colofão emigra para Eleia que Pitágoras originário da ilha de Saos não longe de Mileto fixase em Crotona no fim do secu lo VI e depois no Metaponto Pouco a pouco Sul a Itália e a Sicília tornarseão o centro de uma atlVIdade m telectual extremamente viva por exemplo com Parmênides e Empédocles Todos esses pensadores propõem uma explicação racio nal do mundo e isso é uma reviravolta decisiva na história do pensamento Já existiam cosnogonis antes deles no Oriente Médio e também na Greoa arca1ca mas elas eram de tipo mítico isto é descreviam a história do mud com uma luta entre entidades persomficadas Eram geneses no sentido bíblico do livro do GênesiP livro das gerações destinadas a conduzir um povo à memória de seus ancestrais e a unilos às forças cósmicas e às gerações dos deuses Criação do mundo criação do homem criação do povo tal é 0 objeto das cosmogonias Como bem mostru G Naddaf3 embora os primeiros pensadores gregos subsutuam essa narração mítica por uma teoria racional do mundo eles conservam 0 esque1pa tçEQrio que estruturava as cos mogonias míticas Eles propõem uma teoria a rigeiU do mundo do homem e da cidade Essa teona e racwnal porque pra exp1lcar o mundo não por um luta er os elementos mas por uma luta entre as realidades flSl 2 Bíblia tradução ecumênica São Paulo Edições Loyola 1994 há trans criação de Haroldo de Campos do Gênesis Brreshith a cena da orige e outros estudos de poética bíblica transcriações por Haroldo de Campos Sao Paulo Perspectiva 1993 Signos 16 3 G Naddaf Lorigine et lévolution du concept grec de phus1s LeVIston QueenstonLampeter The Edwin Mellen Press 1992 28 A filosofia àntes da filosofia cas e a predominância de uma sobre as outras Essa trans formação radical resumese aliás na palavra grega physis que em sua origem significa ao mesmo tempo o início 0 deenvolvimet e o resultado do processo pelo qual uma cmsa se constltm O objeto de sua caracterizaçãb intelectual caracterização que eles denominam investigação4 historia é a physis universal As teorias racionais em toda a tradição filosófica grega erão influenciadas por esse esquema cosmogôni co ongmal Daremos aqui apenas o exemplo de Platão que na sequência de diálogos intitulados Timev Crítiaf e Hermócrates projetado mas substituído pelas Leis quis por sua vez escrever um grande tratado sobre a physis em toda a sua extensão desde a origem do mundo e do homem até a origem de Atenas Aqui ainda reencontrare mos um livro das gerações que leva os atenienses à lem brança de sua origem e de seus ancestrais para enraizálos na ordem universal e no ato fundador do Deus criador Pltão além do mais não dissimula isso ele propõe no Tzmeu o que denomina um mito verossímil ao introduzir a figura mítica do Demiurgo que produz o mundo con templando o Modelo eterno que são as Ideias7 No livro X das Leis Platão já não se satisfaz em propor uma nar ração mítica ele quer fundar sua cosmogonia sobre uma 4 Heráclito Fragmento 35 Dumont p 154 Platão Fédon 96 a 7 5 Timeu tradução de Carlos Alberto Nunes Belém Editora da Uni versidade Federal do Pará 1986 6 Críttas tradução de Carlos Alberto Nunes Belém Editora da Uni versidade Federal do Pará 1986 7 Cf P Hadot Physique et poésie dans le Timée de Platon in Reaue de Théologie et de Philosophie 115 113133 1983 G Naddaf Lorigine et lévolution pp 341442 29 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes oiada em argumentos aceitáveis demonstraçao ngorosa ap 1 retorna explicitamente t dos Nesse esforço racwna Por o t eza processo oncebida como na ur à noçao de physzs c tndo por sua d es gregos ms1s 1 pelos primeiros pena ordal e orinal desse processo ráter pnmor 1 t Parte no ca 1 1 e 0 movimento 1 s nmord1a e ongma Mas para P atao 0 P automotor isto gera a Sl mesmo que e e processo que se evolucionista é substituído assim é a alma O esquernaonista o universo já não nasce do por um esquema cno as da racionalidade da alma e a automausmo da physzs tudo identifica alma como princípio pnmezro antenor a se à physis A paideia b Podese falar tam em de filosofia antes da filosofia a é utra corrente do pensamento grego pr propoIto de o ráticas e teorias que se reportam socratlco relrm amental da mentalidade grega o a uma exigenoa un d g o cuidado daquilo que os d d formar e de e ucar eseJO e p a ialo Desde os distantes tempos gregos denommavam az e 8 Cf id ibid PP 443939 ral entre os gregos cf L Hadot 9 Sobre o início da educaçao mo Th S ritual Guide in Classical 10 38 e da mesma autora e P1 N Seneca PP G1 k Roman org A H Armstrong ew Mediterranean Spiritualzty Egyptzan ee York Crossroad 1986 PP 436459 fim do seculo V consultese W Atenas ate o 10 Para a Grécia arcaica e p 1964 Paideia A formação L fi n de lhomme grec ans Jaeger Paideza a arma zo M p ra São PauloBrasília Martms tr dução de Artur arret d do homem grego a B ília 1986 Esperase que se tra uza para FontesEditora Umverstdade de rabs tr ta dessa vez de Sócrates e de d tomo dessa o ra que a I M o frances o segun o 1955 Veiase tambem H arrou bli da em Berhm em A Platão e fm pu ca p 1950 História da educaçao na n z Histoire de léducation dans lAntzquzte ans 30 A filosofia antes da filosofia da Grécia homérica a educação dos jovens fora a grande preocupação da classe dos nobres daqueles que possuem a aret isto é a excelênciél necessária pela nobreza de sae 11 que se trDãCmais tarde com os filósofos a virtude isto é a nobreza da alma Podemos fazer uma V ideia dessa educação aristocrática graças aos poemas de Teógnis que são uma compilação de preceitos morais12 Essa educação é dada pelos adultos no próprio grupo social Preparase nele para adquirir as qualidades força fiça çortesgsg de dever eçe honr que convêm aos guerreiros e se encarnam nos grandes ancestrais di vinos que se tomam por modelo A partir do século V com o desenvolvimento da democracia as cidades terão o mesmo cuidado em formar os futuros cidadãos por meio de exercícios corporais ginástica e música e por meio do espírito Mas a vida democrática engendra lutas pelo poder é necessáriosaber persuadir o povo fazêlo tomar essa ou aquela decisão na assembleia É portanto necessário caso se queira tornarse um chefe do povo ir ªbª2gie daJiugyagem E a essa necessidade que há de responder o movimento sofistico guidade trad de Mário Leônidas Casanova São PauloBrasília EPUINL 1975 e o capítulo The Origins of Higher Education at Athens in P Lynch Aristotles School A Study of a Greek Educational Institution University of California Press 1972 pp 3268 11 Cf W Jaeger Paideia pp 29 ss pp 17 ss da tradução brasilei ra que mostra muito bem a diferença entre a educação do aristocrata conforme o ideal de sua casta e a cultura do homem 1af qual ele deveria set segundo a filosofia 12 Cf W Jaeger Paideia pp 236248 N do T pp 160172 Para uma tradução de poemas de Teógnis cf Poesia grega e latina eüçaÓnotas e tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos São Paulo Editora Cultrix 1964 Clássicos Cultrix 31 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes Os sofistas do século V Com o desenvolvimento da democracia ateniense no século V toda a atividade intelectual que se disseminara nas colônias gregas da Jônia da Ásia Menor e do Sul da Itália fixase em Atenas Pensadores professores e sábios afluem para essa cidade introduzindo modos de pensamento ainda pouco conhecidos ali e que são mais ou menos bem aco lhidos Por exemplo o fato de Anaxágoras13 proveniente da Jônia ter sido asJªQQdtpoe precisar exilarse mostra bem que o espírito de investigação que se desenvol vera nas colônias gregas da Ásia Menor era profundamente insólito para os atenienses Os famosos sofistas do século V são muitas vezes estrangeiros Protágoras e Pródico são provenientes da Jônia Górgias do Sul da Itália O mo vimento de pensamento que eles representam mostrase ao mesmo tempo como uma continuidade e como uma ruptura em relação ao que os precede Continuidade à medida que o método de argumentação de Parmênides Zenão de Eleia ou Melisso volta a ser encontrado nos paradoxos sofísticos continuidade tambm à medda que os sofistas visam reunir todo saber oent1fico ou h1stonco acumulado pelos pensadores anteriores a eles Mas tam bém ruptura porque deuJTI lado eles submetem es e saber anterior a uma crítica radical insistindo cada m à sua maneira no conflito que opõe ªtl1LaP1ysis e as çQIUiellÇÕeshuJlªJJes Jnómoi e porque de 16utro lado sua atividade é especialmente dirigida à formação da juventude tendo em vista o êxit na política Seu ensino 13 Sobre os conflitos entre os filósofos e a cidade cf a antiga mas sempre útil obra de P Decharme La critique des traditions religieuses chez les Grecs Paris 1904 32 A filosofia antes da filosofia responde a uma necessidade O desenvolvimento da vida democrática exige que os cidadãos sobretudo os que que rem chegar ao poder possuam uma habilidade perfeita da palavra Até então os jovens eram formados segundo a aretê pela synousía isto é pela frequentação do mundo adulto14 sem distinção Os sofistas ao contrário inventam a educação em ambiente artificial o que se tornará uma das características de nossa civilização15 Eles são os pro fissionais do ensino antes de tudo pedagogos ainda que seja necessário reconhecer a notável originalidade de um Protágoras de um Górgias ou de um Antifonte por exem plo Por um salário eles ensinavam a seus alunos receitas que lhes permitissem persuadir os ouvintes defender com a mesma habilidade o pró e o contra antilogia Platão e Aristóteles acusaramnos de ser comerciantes do saber negociantes no atacado e no varejo16 Eles por outro lado ensinam não só a técnica do discurso que persuade mas também tudo o que pode servir para atingir a dimensão da visão que sempre seduz um auditório isto é a cultura geral pois tratase lá também tanto de ciência geometria ou astronomia como de história sociologia ou teoria do di reito Eles não fundam escolas permanentes mas propõem 14 Sobre a synousía cf Platão Defesa de Sócrates 19 e Defesa de Sócrates 4a edição tradução de Jaime Bruna São Paulo Nova Cultural 1987 Os Pensadores 15 Encontrarseão os fragmentos dos sofistas nos Les Présocratiques citado p 27 n 1 pp 9811178 e emJP Dumont Les sophistes Fragments et témoignages Paris 1969 Sobre os sofistas cf G RomeyerDherbey Les Sophistes Paris 1985 de Romilly Les grands sophistes dans lAthenes de Péri cles Paris 1988 G Naddaf Lorigine et lévolution pp 267338 P Lynch Aristotles School pp 3846 B Cassin LEffet sophistique Paris 1995 16 Platão Sofista 222 a 224 d Sofista 3a edição tradução e notas de Jorge Paleikat e João Cruz Costa São Paulo Nova Cultural 1987 Os Pensadores Aristóteles Refutações Sofisticas 165 a 22 33 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes mediante retribuição séries de cursos e para atrair os ou vintes fazem sua própria publicidade dando conferências públicas por ocasião das quais eles provam seu saber e habilidade Eles são professores ambulantes que beneficiam com sua técnica não só Atenas mas ainda outras cidades Assim a aretê a excelência dessa vez concebída como competência que deve permitir desempenhar um papel na cidade pode tornarse objeto de aprendizado se o sujeito que a aprende tem as atitudes apropriadas e se as exerce satisfatoriamente 34 Capítulo 2 O surgimento da noção de filosofar O testemunho de Heródoto É quase certo que os présocráticos dos séculos Vil e VI aC Xenófanes ou Parmênides por exemplo e mesmo pro vavelmente apesar de certos testemunhos antigos porém muito discutíveis Pitágoras1 e Heráclito2 não conheceram o adjetivo philosophos nem o verbo philosophein filosofar tampouco com mais forte razão a palavra philosophia Essas palavras com efeito segundo toda verossimilhança só apa 1 Há opiniões divergentes sobre esse assunto R Joly Le theme philo sophique des genres de vie dans lAntiquité classique Bruxelles 1956 W Burkert Platon oder Pythagoras Zum Ursprung des Wortes Philosophie in Her mes 88 159177 1960 C J de Vogel Pythagoras and Early Pythagoreanism Assen 1966 pp 15 e 96102 Concordo com W Burkert que o caso relatado por Heráclido do Ponto cf Diógenes Laércio I 12 Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres 2a ed tradução introdução e notas de Mário da Gama Kury Brasília Ed Universidade de Brasília 1997 Cícero Tusculanas V 8 Jâmblico Vida de Pitágoras 58 é uma projeção sobre Pitágoras da noção platônica de philosophia 2 Heráclito B 35 Dumont p 134 e a nota de JP Dumont p 1236 que emite dúvidas sobre a autenticidade da palavra filósofo do mesmo modo DielsKranz Die Vorsokratiker t I DublinZurich 1969 p 159 35 A definição platônicado filósofo e seus antecedentes receram no século V no século de Péricles no qual Atenas brilha ao mesmo tempo por sua preponderância política e por seu esplendor intelectual à época de Sófocles de Eurípides dos sofistas à época também em que por exem plo o historiador Heródoto originário da Ásia Menor no decorrer de suas numerosas viagens passa a viver na céle bre cidade E talvez seja precisamente em sua obra que se encontra a primeira menção a uma atividade filosófica Heródoto narra o encontro lendário de Sólon o legislador de Atenas séculos VIIVI um dos que são denominados os Sete Sábios com Creso o rei da Lídia Este orgulhoso de seu poder e de suas riquezas dirigese a Sólon nestes termos3 Meu caro ateniense a notícia de tua sabedoria sophiês e de tuas viagens chegou até nós Não ignoro absolutamente que por amar a sabedoria philosopheôn percorreste muitos países por causa de teu desejo de conhecer Vislumbrase aqui o que representavam naquele momen to a sabedoria e a filosofia As viagens que Sólon realizou tinham como fim conhecer adquirir vasta experiência da realidade e dos homens descobrir a um só tempo países e costumes diferentes Observese a esse respeito quanto isso se assemelha ao que os présocráticos caracterizam intelectualmente como uma historia isto é uma investi gação4 Essa experiência pode fazer daquele que a possui um bom juiz nas coisas da vida humana Eis por que 3 Heródoto Histórias I 30 tradução de J Brito Broca São PauloRio de JaneiroPorto Alegre W M Jackson sd Clássicos Jackson 4 Cf acima p 29 se Heráclito fala efetivamente de filósofos em seu fragmento 35 cf p 35 nota 2 observese então que ele vincula filosofia e investigação 36 O surgimento da noção de filosofar Creso pergunta a Sólon qual é para ele o homem mais feliz E ele responderá que ninguém pode ser considera do feliz antes de ter visto o fim de sua vida Heródoto revela a existência de uma palavra que talvez já estivesse na moda anteriormente mas que em todo caso tinha um futuro na Atenas do século V a Atenas da de mocracia e dos sofistas De maneira geral desde Homero as palavras compostas em philo serviam para designar a PSi5ãde alque eníseu interesser sllaªyer na âedicação a essa ou àquela atividade philvposia por exemplo é o prazer e o proveito que se tem ao beber philotimia é a propensão para angariar honras philosophia será portanto o interesse pela sophíd A atividade filosófica orgulho de Atenas Os atenienses do século V eram orgulhosos dessa atividade intelectual desse interesse pela ciência e pela cultura que florescia em sua cidade Na Oração fúnebre que Tucídides6 o faz pronunciar em memória dos pri 5 Sobre a palavra philosophia vejase também E A Havelock Preface to Plato Cambridge Mass 1963 pp 280283 Prefácio a Platão tradução de Enid Abreu Dobránzky Campinas Papirus 1996 pp 296299 W Burkert artigo citado p 35 nota 1 P 172 6 Tucídides A Guerra do Peloponeso II 40 1 História da Guerra do Peloponeso 3 ed tradução introdução e notas de Mário da Gama Kury Brasília Editora Universidade de Brasília 1987 A Guerra do Peloponeso Livro I introdução tradução e notas de Anna Lia Amaral de Almeida Prado tese de Doutorado em Letras São Paulo USP 1972 Oração Fúnebre de Péricles in Eloquência grega e latina seleção tradução introdução e notas liminares de Jaime Bruna São Paulo Ediouro sd pp 915 37 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes meiros soldados que tombaram na guerra do Peloponeso Péricles o homem de Estado ateniense faz nestes termos o elogio do modo de vida que se pratica em Atenas Somos amantes da beleza sem extravagâncias e filosofa mos sem indolência Os dois verbos empregados são compostos de philo philokaleil e philosophein Aqui logo notamos é simplesmente proclamado o triunfo da democracia Já não são apenas as personalidades de ex ceção ou os nobres que conseguem alcançar a excelência aretê mas todos os cidadãos podem atingir esse fim na medida em que amam a beleza ou se entregam ao amor da sophía No início do século V o orador Isócrates em seu Panegírico7 retomará o mesmo tema foi Atenas que revelou ao mundo a filosofia Essa atividade engloba tudo o que se refere à cultura intelectual e geral as especulações dos présocráticos as ciências nascentes a teoria da linguagem a técnica retórica a arte de persuadir Às vezes ela se refere mais precisamen te à arte de argumentação e é o que se supõe por uma alusão do sofista Górgias em seu Elogio de Helena Ela diz ele não é responsável por seu ato pois foi induzida a agir assim por causa da vontade dos deuses ou sob pressão de violência ou ainda pela fQrçade persuasão ou enfim por paixão E distingue três formas de persuasão pela lingua gem uma consistindo nos combates dos discursos dos filósofos 9 Tratase sem dúvida de discussões públicas nas quais os sofistas enfrentavamse para mostrar seu talento 7 Isócrates Panegírico 47 8 Elogio de Helena Tradução de Maria Cecília Coelho in Maria Cecília Coelho Górgias verdade e construção discursiva dissertação de mestrado em Filosofia São Paulo USP 1997 pp 8389 9 Ibid 13 38 O surgimento da noção de filosofar opondo seus discursos a propósito temas sem vinculação com um problema particular jurídico ou político mas revelavam sua cultura geral A noção de sophía As palavras philosophos e philosophein supõem outra noção a de sophía mas antes é necessário reconhecer que na época não existia definição filosófica dessa noção Para definir sophía os intérpretes modernos sempre hesitam entre a noção daber e a de sabedori O sophós é aquele que sabe muitas coisas que viu muitas coisas que viajou muito ou o que sabe se conduzir bem na vida e é feliz Será sempre necessário repetir tudo isso no curso desta obra as duas noções estão longe de excluirse Ver dadeiro saber é finalmente um saberfazer e o verdadeirQ saberfazer é um saberfazer o bem Desde Homero as palavras sophía e sophós foram em pregadas nos contextos mais diversos a propósito de con dutas e de inclinações que aparentemente não têm nada a ver com as dos filósofos10 Na Ilíada Homero11 fala do carpinteiro que graças aos preceitos de Palas Atena se mostra sagaz em toda sQézq 1 toçlowéIfr De 10 B Gladigow Sophia und Kosmos Hildesheim 1965 G B Kerferd The Image of the Wise Man in Greece in the Period before Plato in Images of Man Mélanges Verbeke Louvain 1976 pp 1828 11 Ilíada 15 411 tradução de Carlos Alberto Nunes São Paulo Ediouro s d MHNIS A ira de Aquiles Canto I da Ilíada de Homero tra dução de Haroldo de Campos e Trajano Vieira transcrição visual de José Roberto Aguilar São Paulo Nova Alexandria 1994 39 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes maneira análoga o hino homérico A HermeP após ter narrado a invenção da lira acrescenta que o próprio deus modela o instrumento de uma sophía além da arte da lira a saber a siringe Tratase aqui portanto de uma arte de um saberfazer musical A julgar por esses dois exemplos podese perguntar legi timamente se tanto no caso do fabricante de navios como no do músico a palavra sophía não designa de preferência atividades e práticas que são submetidas à medida e à regra13 e supõem um ensino e uma aprendizagem mas por outro lado exigem também o concurso de um deus uma graça divina que revela ao artesão ou ao artista os segredos de fabricação e ajudaos no exercício de sua arte Da mesma maneira sophiê é empregada por Sólon14 no século VII aC para designar a atividade poética que é fruto sempre ao mesmo tempo de um longo exercício e da inspiração das Musas Essa potência da palavra poética inspirada pelas Musas que dão seu sentido aos aconteci mentos da vida humana aparece mais claramente em Hesíodo no início do século VII Se não utiliza literalmen te a palavra sophía ele exprime com muita força o conteú do da sabedoria poética Testemunha bastante interessante pois põe em paralelo a sophía do poeta e a do rei15 São as Musas que inspiram o rei sensato As Musas vertem so 12 Homero A Hermes I 511 13 J Bollack Une histoire de sophie c r de Gladigow verse p 39 nota 10 in Revue des études grecques t 81 1968 p 551 14 Sólon Elegias I 52 15 Hesíodo 1êogonia 80103 N do T Teogonia A origem dos deuses 2a edição estudo e tradução de Jaa Torrano São Paulo Iluminuras 1991 Biblioteca Pólen Valime dessa tradução para todas as citaçôes 40 O surgimento da noção de filosofar bre a língua e sobre os lábios daquele que elas escolheram um orvalho suave um doce mel Todas as gentes o olham decidir as sentenças com reta justiça e ele firme falando na ágora As palavras do poeta também mudam os corações Feliz é quem as Musas Amam doce de sua boca flui a voz Se com angústia no ânimo recémjerido alguém aflito mirra o coração e se o cantor servo das Musas hineia a glória dos antigos e os venturosos Deuses que têm o Olimpo logo esquece os pesares e de nenhuma aflição se lembra já os desviaram os dons das Deusas Já aparece aqui a ideia fundamental na Antiguidade do valo psicagógico do discurso e da importância capital da hab1hdade da palavra16 Palavra que opera em dois registros aparentemente muito diferentes o da discussão juúicopolítica os reis decidem a justiça e põerifi â discórdia e o do encanto poético os poetas com seus cantos mlgiç dos h2mens Mnemosyne mãe das Musas é oblívio de malês e pausa de afliçõesI7 Nesse enllopese descobrir um esboço do que serão mais tarde os exercícios espirituais filosóficos sejam eles da rdem do discurso ou da contemplação Porquanto não e somente pela beleza dos cantos e das histórias que nar ram que as Musas fazem esquecer os males mas porque 16 Cf G RomeyerDherbey Les Sophistes pp 4549 P Lain Entralgo The Therapy of the Word in Classical Antiquity New Haven 1970 c r de F Kudlien in Gnomon 1973 pp 410412 17 Hesíodo Teogonia 55 41 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes fazem os poetas e aquele que escuta ascender a uma visão cósmica Se elas a Zeus pai hineando alegram o grande espírito18 é porque cantam para ele e fazemno ver o que é o que será e o que foi e é precsamente isso que cantará o próprio Hesíodo em sua Teogonia Uma sentença epicurista atribuída a Metrodoro discípulo de Epicuro dirá Lembrate de que nascido mortal e com uma vida limitada subiste graças à ciência da natureza ao infinito do espaço e do tempo e que viste o que é o que será e o que foi19 E antes dos epicuristas Platão já dissera que a alma a quem pertence a elevação de pensamento e a contemplação da totalidade não considera a morte uma coisa a temer20 A sophía pode por outro lado também designar a habilidade com a qual se sabe conduzir com outrem ha bilidade que pode chegar até a astúcia e a dissimulação Por exemplo na compilação de sentenças que codifica a educação aristocrática escrita por Teógnis no século VI aC e dirigida a Cirnos encontrase o conselho21 Cirnos apresenta a cada um dos teus amigos um aspecto diferente de ti mesmo Matizate conforme os sentimentos de cada um Um dia te ligues a um e depois procura a propósito mudar de personagem Porquánto a habilidade sophiê é melhor mesmo do que uma grande excelência are tê 18 ld ibid 37 19 Cf Epicuro Lettres maximes sentences traduit et commenté par JF Balaudé Paris 1994 p 210 sentença 10 20 Platão A República VI 486 a A República 2a ed tradução de Carlos Alberto Nunes e introdução de Benedito Nunes Belém Editora da Universidade Federal do Pará 1988 A República 2a ed tradução de Jacó Guinsburg São Paulo Difel 1973 21 Teógnis Poemas elegíacos 1072 e 213 42 Vêse a riqueza e variedade dos componentes da noção de sophía Eles se reencontram na representação lendária e popular e de resto histórica que se fez da figura dos Sete Sábios22 cujos traços já se encontram em alguns poetas do século VI e depois em Heródoto e em Platão Tales de Mileto fim do século VIIVI possui antes de tudo um saber que poderíamos qualificar de científico prevê o eclip se do sol de 28 de maio de 585 afirma que a Terra repou sa sobre a água mas ele tem igualmente um saber técnico se lhe atribui o desvio do curso de um rio enfim ele de monstra possuir perspicácia política procura salvar os gregos da Jônica propondolhes formar uma federação De Pítacos de Mitilene século VII atestouse apenas uma atividade política Sólon de Atenas século VIIVI é também já vimos um homem político cuja benéfica legislação deixa uma grande lembrança mas é também um poeta que exprime em seus versos seu ideal ético e político Quílon de Esparta Periandro de Corinto Bias de Priene os três do início do século VI são igualmente homens políticos célebres por algumas leis que editaram ou por suas atividades oratória e judiciária As indicações concernentes a Cleóbulo de Lindos são as mais incertas sabemos somente que se lhe atribui certo número de poemas Atribuemse aos Sete Sábios algumas máximas frases breves e memoráveis diz Platão23 pronunciadas por cada um deles no momento em que reunidos em Delfos quiseram oferecer a Apolo em seu templo as primícias de sua sabedoria e dedicaramlhe 22 B Snell Leben und Meinungen der Sieben Weisen München 1952 23 Platão Protágoras 343 ab Protágoras tradução estudo introdutório e notas de Eleazar Magalhães Teixeira Fortaleza Edições Universidade Federal do Ceará 1986 43 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes as inscrições que todo mundo repete Conhecete a ti mesmo Nada em demasia Efetivamente uma lista de máximas que se diz ser obra dos Sete Sábios foi gravada próximo ao templo de Delfos e o costume de inscrevêlas para que fossem lidas por todos os que passassem nas dife rentes cidades gregas foi disseminado É assim que se des cobriu em 1966 em Ai Khanun na fronteira do atual Meganistão nessa época perto de uma escavação feita em uma cidade de um antigo reino grego o Bactriano uma estela mutilada que como mostrou L Robert continha originalmente uma série completa de cento e quarenta máximas délficas Foi Clearco2 discípulo de Aristóteles que as fez gravar no século III aC Vêse aqui a importância que o povo grego atribuía à educação morai25 A partir do século VI outro componente será acrescido à noção de sophía com o desenvolvimento das ciências exa tas a medicina a aritmética a geometria a astronomia Já não há somente especialistas sophoi no domínio das artes ou da política mas também no domínio científico Por outro lado desde Tales de Mileto uma reflexão cada vez mais específica desenvolveuse no domínio do que os gregos denominavam physis isto é o fenômeno de brota ção dos seres vivos do homem mas também do universo reflexão que esteve desde então muitas vezes intimamente misturada a arrazoados éticos como em Heráclito por exemplo ou sobretudo em Demócrito 24 L Robert De Delphes à lOxus Inscriptions grecques nouvelles de la Bactriane in Académie des inscriptions et belleslettres Comptes rendus 1968 pp 416457 25 Cf I Hadot The Spiritual Guide pp 441444 44 O surgimento da noção de filosofar Quanto aos sofistas eles serão atraídos por conta de sua intenção de ensinar aos jovens a sophía Meu ofício diZia o epitáfio de Trasí1Jlaco é a sophía 26 Para os sofistas a palavra sophia significa em primeiro lugar um saberfazer nl política mas implica também tõaõs üsCümponentes queentreVimos notadamente a cultura científica ao menos na medida em que ela faz parte da cultura geral 26 Trasímaco A VIII Dumont p 1072 45 Capítulo 3 fi figura de Sócrates A figura de Sócrates teve influência decisiva sobre a definição do filósofo que Platão propôs em seu diálogo Banquete uma verdadeira tomada de consciência da situa ção paradoxal do filósofo no meio dos homens Por essa razão devemos nos deter longamente não no Sócrates histórico dificilmente cognoscível mas na figura mítica de Sócrates tal qual apresentada pela primeira geração de seus discípulos A figura de Sócrates Comparouse muitas vezes Sócrates a Jesus1 Entre outras analogias é verdade que eles tiveram imensa influência histórica embora tenham exercido sua atividade em um espaço e um tempo limitados em relação à história do mundo uma pequena cidade ou um pequeno país e te nham tido um número muito pequeno de discípulos Os I Th Dennan Socrate etjésus Paris 1944 Sobre Sócrates cf F Wolff Socrate Paris 1985 Sócrates o sorriso da razão 4 ed tradução de Franklin Leopoldo e Silva São Paulo Editora Brasiliense 1987 Encanto Radical E Martens Die Sache des Sokrates Stuttgart 1992 47 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes dois não escreveram nada mas possuímos sobre eles teste munhas oculares sobre Sócrates as Memoráveiil de Xeno fonte os diálogos de Platão sobre Jesus os Evangelhos3 e mesmo assim é muito difícil para nós definir com certeza o que foram o Jesus histórico e o Sócrates histórico Após sua morte seus discípulos4 fundaram escolas para difundir sua mensagem mas as escolas fundadas pelos socráticos parecem muito mais diferentes umas das outras do que os cristianismos primitivos o que nos permite decifrar a com plexidade da atitude socrática Sócrates inspirou ao mesmo tempo1 Antístenes o fundador da escola cínica que preconizava a tensão e a austeridade e deyria influenciar profundamente o estoicismo e Aristipo fundador da escola de Cirene para quem a arte de viver consistia em tirar o melhor partido possível das situações que se apre sentavam concretamente que não desdenhava o repouso e o prazer e deveria também exercer influência consi derável sobre o epicurismo mas ele inspirou igualmen te Euclides fundador da escola de Megara célebre por sua dialética Um único de seus discípulos Platão triun fou na história seja porque soube conferir a seus diálogos um imperecível valor literário seja antes porque a escola que fundou sobreviveu àurante séculos salvando assim seus diálogos e desenvolvendo ou mesmo deformando sua doutrina Em todo caso um ponto parece comum a todas 2 Ditos e feitos memoráveis de Sócrates 4 ed tradução de Líbero Rangel de Andrade São Paulo Nova Cultural 1987 Os Pensadores 3 A Bíblia de Jerusalém São Paulo Ediçôes Paulinas 1991 Bfblia tra dução ecumênica São Paulo Ediçôes Loyola 1994 Bíblia tradução ecumêni ca Versão completa em CDROM São Paulo Loyola Multimídia 1997 4 Leiase em F Wolff Socrate pp 112128 Lalbum de famille que caracteriza excelentemente as diferentes personagens 48 A figura de Sócrates essas escolas com elas aparece o conceito a ideia de filo sofia concebida nós o veremos como um discurso vin culado a um modo de vida e como um modo de vida i vinculado a um discurso Talvez tivéssemos outra ideia de quem foi Sócrates se a oras prduzidas em todas as escolas fundadas por seus Iscipulos tivessem sobrevivido e especialmente se toda a heratura os diálogos socráticos que põem em cena Socrates dialogando om seus interlocutores tivesse sido conservada até nós E necessário lembrar em todo caso que o dado fundamental dos diálogos de Platão a ence nação de diálogos os quais Sócrates desempenha quase sempre o papel de mterrogador não é invenção de Platão mas que seus famosos diálogos pertencem a um gnero diálogo socrático que foi verdadeira moda ent os ais cíulo de Sócrates5 O sucesso dessa forma literária per nute VIslumbrar a mpressão extraordinária que a figura de Socrates produzm sobre seus contemporâneos e sobre tudo sobre seus discípulos e a maneira pela qual conduzia suas cnversa om seus concidadãos No caso dos diálogos socraticos redigdos por Platão a originalidade dessa forma literária consiste menos na utilização de um discurso divi dido em questões e respostas visto que o discurso dialéti co existia bem antes de Sócrates do que no papel de personagem central assinalado a Sócrates Disso resulta uma relação muito particular entre o autor e sua obra de 5 Aristóteles Poética 1447 b 10 Poética 4 ed tradução comenta d 1 nos e m 1ces ana 11lco e onomástico de Eudoro de Souza São Paulo Nova Cul tural 1987 Os Pensadores Poética in A Poética Clássica 5 ed tr d d J B a uçao e arme runa Sao Paulo Cultrix 1995 Cf C W Müller Die Kurzdialo e der Appendzx Platonzca Munich 1975 pp 17 ss 49 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes um lado e entre o autor e Sócrates de outro O autor si mula não intervir em sua obra visto que se contenta apa rentemente em reproduzir um debate que opôs duas teses adversas podese quando muito supor que ele prefere a tese que faz Sócrates defender Ele toma de alguma ma neira a máscara de Sócrates Tal é a situação que se en contra nos diálogos de Platão Jamais o eu de Platão aparece O autor não intervém sequer para dizer que foi ele que compôs o diálogo e não se põe em cena na dis cussão entre os interlocutores Contudo evidentemente não especifica o que remete a Sócrates e o que remete a ele próprio nos temas debatidos Portanto quase sempre é extremamente difícil distinguir em certos diálogos a parte socrática e a parte platônica Sócrates aparece assim pouco tempo após sua morte como uma figura mítica Mas foi precisamente esse mito que marcou com traços indeléveis toda a história da filosofia O não saber socrático e a crítica do saber sofístico Na Defesa de Sócrates na qual Platão reconstitui à sua maneira o discurso que Sócrates pronuncia diante de seus juízes por ocasião do processo em que foi condenado ele narra que um de seus amigos Querefonte6 perguntara ao oráculo de Delfos se existia alguém mais sábio sophós que Sócrates e o oráculo teria respondido que não Sócrates se questiona então sobre o que o oráculo quis dizer lançan dose em uma longa investigação junto às pessoas que se gundo a tradição grega e de quem falamos no capítulo 6 Platão Defesa 2023 50 A figura de Sócrates precedente possuem a sabedoria i mens de Estad sto e o saberfazer ho o poetas artesãos 4 que fosse mais b para descobnr alguém sa IO que ele Percebe entã pessoas que acreditam tud b o que todas as o sa e r na o sabem nad D conclru que é o mais sábio or A a Isso sabe O que I p que nao cre saber o que não o oracu o qrus dizer é ta sábio dos humanos é por nto que o mais d quem compreendeu oue b o na e verdadeirament a t sua a e e esproVIda do mínimo val 7 rr I sera precisamente a d fi A or a diálogo intitulad B e mçao platomca do filósofo no o anquete o filosofo nada b consciente de seu não s b sa e porem é a er A tarefa de Sóc t Ih ra es que e fOI confiad d D pelo oraculo de Delfos isto é I a A IZ a efesa deus Apolo será fazer qu em u tima mstancia pelo A nencia de seu próprio e os outros homens t b ornem cons p nao sa er de sua não b d ara realizar essa missão S sa e ona b ocrates agira como qu d sa e Isto é com ingenuidad É em na a a ignorância dissimulada o er faddosa Iroma socrática I can I o com o qual eemp o ele Investigou para saber se h I pr sabw que ele Como a aVIa a guem mais Iz uma personagem da RepúblicdJ Ezla a habitual ironia de Sócrates t Eu á b a esses jovens que não q 1 sa za e predzssera uererzas responder que s l zgnorância que tud fi zmu arzas o arzas para nao responder às p que te fossem apresentadas erguntas É porque nas discussões Sócrates é s rogador é que ele c empre o mter con1essa nada sabe Aristóteles9 Sócrates d d r como nota eprenan ose a SI mesmo diz 7 Id ibid 23 b Pltã República I 337 a Anstoteles Refutações sofísticas 183 b 8 51 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes Cícero não permite que seus interlocutores digam senão o que ele quer refutar assim pensando em uma coisa e dizendo outra tinha prazer em usar habitualmente essa dissimulação que os gregos denominavam ironia10 Na verdade não se trata de uma atitude artificial de um parti pris de dissimulação mas de uma espécie de humor que recusa levar totalmente a sério tantos os outros como a si mesmo porque precisamente tudo o que é humano e mesmo tudo o que é filosófico é coisa bem pouco assegu rada de que não se pode ter muito orgulho A missão de Sócrates é fazer que os homens tomem consciência de seu não saber Tratase aqui de uma revolução na concepção de saber Sem dúvida Sócrates pode dirigirse a estranhos e o faz com prazer dizendolhes que têm apenas um saber convencional que só agem sob a influência de precon ceitos sem fundamento refletido para mostrarlhes que seu pretenso saber não repousa sobre nada Mas ele se dirige sobretudo aos que estão persuadidos por sua cul tura de possuir o saber Até Sócrates houve dois tipos de personagens desse gênero de um lado os aristocratas do saber isto é os mestres de sabedoria ou de verdade como Parmênides Empédocles ou Heráclito que opu nham suas teorias à ignorância da multidão de outro os democratas do saber que pretendiam poder vender o saber a todo mundo os sofistas Para Sócrates o saber não é um conjunto de proposições e fórmulas feitas que se pode escrever ou vender como mostra o início do Ban 10 Cícero Lúculo 5 15 Sobre a ironia socrática cf R Schaerer Le mécanisme de lironie dans ses rapports avec la dialectique in Revue de métaphysique et de morale 48 181209 1941 V Jankélévitch L1ronie Paris 1964 ver também G W F Hegel Leçons sur lhistoire de la philosophie T II Paris 1971 pp 286 ss 52 A figura de Sócrates queteu Sócrates chega atrasado ois imóvel e em p P permaneceu a meditar e ocupando seu Tão 1 I ogo e e faz sua entrada espinto consigo mesmo 1 A anfitrião na sa a gatao que é o conVIdao a sentarse perto dele a fi d ao teu contato desfrute eu da sáb d m e que em frente de casa S b Ia I eia que te ocorreu ena om A t Sócrates se d ga ao responde essa natureza fosse a sabedoria rnais cheio escorresse ao mais vazio O 1 que do e que o SJJr ãP 11ll CPeto fabric que e e quer zer acabado transmi I d L ªgo um conteudo ssive Iretamente pel não importa qual discurso a escntura ou por Quando Sócrates pretende saber um seJa que nada sabe é a umca coisa ou dicional de saber Su e rusa a cnerço tra transmitir um saber o oso co consistira nao em discípulos mas ao contq exigna responder às questões dos rano em znterrorr di ele mesmo não tem nad d 1 caros SCipulos pois a a 1zer hes nada 1 de conteúdo teórico d b A a ensmar hes e sa er 1ron1a em simular aprender ai socratica consiste leválo a descobrir que gua COihsa de seu interlocutor para nao con ece nada no d d que pretende er sábio omimo o Mas essa crítica do saber dupla significação De um larteente negativa tem verdade como já vislumbramos de poe que o saber e a pelo próprio indivíduo p s vem ser engendrados ue se c or Isso ocrates afirma no Teetetd2 q ontenta na discussão co nhar o papel de parteiro Ele mesoomsabem ddeseme ena aenao 11 Banquete 17 4 d175 d 12 Teeteto tradução dé Cirü Alb sidade Federal do Pará 1988 s erto Nunes Belém Editora Univer 53 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes a nadal3 mas contentase em questionar e são suas ens1n 1 questões suas interrogações que auxiliam seus mtr ocu sua verdade Essa imagem nos permite en tores a panr tender bem que é na alma que se encontra o saber e que ao indivíduo cabe descobrila até que ele descura graças a Sócrates que seu saber era vazi a pesectlva de seu próprio pensamento Platão expnmira mltiarnete essa ideia dizendo que todo conhecimento é remmIscenna de e a alma teve em uma existênCia antenor uma VIsao qu Será necessário aprender a recordarse Para Socraes ao contrário a perspectiva é muito diferente As questoes de Sócrates não conduzem seu interlocutor a saber alguma coisa e a chegar a conclusões que se possam formlar sob a forma de proposições sobre este u aquele objet I diálogo socrático chega ao contrano a uma apona f impossibilidade de concluir e de formular um sbe u antes é porque o interlocutor descobrirá quão Ilusono e seu saber que ele descobrirá ao mesmo tempo sa edae isto é que passando do saber a si mesmo pnnnpiara a pôrse a si mesmo em questão Dito de outro odo no diálogo socrático a verdadeira questão que esta emJogo não é isso de que se fala mas aquele que fala como o diz Pl 14 Nícias personagem de al0 Não sabes que aquele que se aproxima muito perto de Sócrates e entra em diálogo com ele mesmo que tenha começado no início a falar com ele de outra coisa ele nao se constrange em se conduzido em círculo por esse discurso até que sa necessário dar razão de si mesmo tanto quanto da manezra pela qual se vive presentemente e daquela que vzveu sua 13 Ibid 150 d 14 Laques 187 e 6 54 A figura de Sócrates existência passada Quando se chega lá Sócrates não te deixa partir antes de ter bem a fundo e de uma bela ma neira submetido tudo à prova de seu exame É para mim uma alegria frequentálo Eu não vejo nenhtm mal que me faça recordar o bem ou o mal que eu tenha feito ou ainda faça Aquele que faz isso será necessariamente mais prudente no resto de sua vida Sócrates leva seus interlocutores a examinarse a tomar consciência de si mesmos Como um tavão15 fustiga seus interlocutores com questões que os põem em questão que os obrigam a prestar atenção a si mesmos a tomar cuidado consigo mesmos16 Meu caro tu um ateniense da cidade mais importante e mais reputada por sua cultura e poderio não te pejas de cuidares de adquirir o máximo de riquezas fama e honrarias e de não te importares nem cogitares da razão da verdade e de melhorar quanto mais a tua alma Tratase bem menos de questionar o saber aparente que se acredita possuir do que de se questionar a si mesmo e os valores que dirigem nossa própria vida No fim das contas após ter dialogado com Sócrates seu interlocutor já não sabe muito bem por que age Ele toma consciência das contradições de seu discurso e de suas própriás con tradições internas E vem a saber como Sócrates que nada sabe Mas fazendo isso toma distância em relação à si mesmo desdobrase uma parte de si mesmo identificando se de agora em diante com Sócrates no acordo mútuo que este exige de seu interlocutor em cada etapa da discus 55 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes sao Operase nele uma tomada de consciência de si ele se põe a si mesmo em questão O verdadeiro problema não é portanto saber isso ou aquilo mas ser desta ou daquela maneira17 Eu que negligenciando o de que cuida toda gente rique zas negócios postos militares tribunas e funções públicas conchavos e lutas que ocorrem na política coisas em que me considero de Jato por demais pundonoroso para me imiscuir sem me perder Eu que me entreguei à procura de cada um de vós em particular a fim de proporcionarlhes o que declaro o maior dos benefícios tentando persuadir cada um de vós a cuidar menos do que é seu que de si próprio para vir a ser quanto melhor e mais sensato Esse apelo ao ser Sócrates o exerce não somente por suas interrogações sua ironia mas também e sobre tudo por sua maneira de ser seu modo de vida seu ser mesmo O apelo do indivíduo ao indivíduo Filosofar não é mais como queriam os sofistas adquirir um saber ou um saberfazer uma sophía mas é pôrse a si mesmo em questão pois experimentase o sentimento de não ser o que se deveria ser Tal será a definição de filó sofo do homem que deseja a sabedoria no Banquete de Platão E esse sentimento provém do fato de que se encon trou uma personalidade Sócrates que apenas por sua presença obriga aquele que se aproxima dele a pôrse em 17 Ibid 36 c 56 A figura de Sócrates questão É isso que d Ba a a entender Alcibíades no fim do nquete E no elogio a Sócrates pronunciado por Alcib d que surge pela primeira vez arece Ia es sentação do I d d p na histona a repre n IV1 uo caro a Kierkegaa d d I di como personalidade r o n VIduo umca e Inclassificável E I I malmente diz AI b d 18 XIstem nor 1 1 0 Ia es diferentes tipos podem dispor os indivíd nos qua1s se uos por exemplo o d neral nobre e corajoso como A I gran e ge ricos como B d qm es nos tempos homé rasi as o chefe espart porâneos ou ainda o ti o h ano entre os contem e prudente N t p ornem de Estado eloquente nossos dias M esSr no tepo de Homero Péricles em as ocrates e Impossível de I fi se pode comparálo a nenhum outro h c assi car Nao aos silenos e aos sátiros EI ornem quanto mais te absurEo inclassificáel eeqh ato exdtrrraavadgean r mesmo u t 1 s1 sou o ta mente esquisito átopos senao aporia perplexidade 19 e nao cno Essa personalidade única tem ai d ce uma espécie de atraçã S go fascmante exer mordem o o magica eus discursos filosóficos coraçao como uma víb diz Alcibíades um estad d ora e provocam na alma embria ez filos o e possessao um delírio e uma fica Isto e uma subversão totaFo É cessano msistlr amda nesse ponto2I S ne neira irracional sobre aqu I ocrates age de ma e es que o ouvem pel que provoca pelo amor que inspira Em u dt emoça to por um discípulo d S m Ia ogo escn s e ocrates Esquines d E D ocrates diz a propósito de AI b d e s etos wJB o Ia es que se ele Sócrates 184 anquete 221 cd Jg Teeteto 149 a 20 JIqte 215 c e 218 b 21 Cf A M Ioppolo OP p 163 znzone e scienza Napoli Bibliopolis 1976 57 l do filósofo e seus antecedentes A defimçao p atomca al o de útil a Alcibíades o que não não é capaz de ensmar g S t s nada sabe ele crê ao d te dado que ocra e é surpreen en amor que expen menos poder tomálo melhor graas aom ele22 No Teages 1 edida que vwe co menta por e e e a d Platão mas escrito entre 369 diálogo falsamente atnbm 0 a Platão ainda era vivo 345 a C 23 provavelmente enquanto bido e mo sem ter rece discí ulo diz a Sócrates que mes elo alquet ensinamento de Sócrates elare pqo r de c d star no mesmo ug sllllples Jato e e Ban uete lhe diz e o repete os poder tocálo O Alobides do f tq erturbador sobre ele24 encantos de Sócrates tem um e ei o p parecia não ser posszvel vzver De tal modo me sentza q11ehme Pois me fiorça ele a admi d es como as mzn as em con zço d h ciente em muitos pontos tir que embora sendo eu mesmo ep d de mim mesmo me descuzdo azn a Sócrates seja mais eloquente e Isso nao sigmfica que o contrário diz Alcibíades à brilhante que os utros m a os parecem completamente primeira impressao seus Iscurs ridículos25 d a de ferreiros de sapateiros Pois ele fala de bestas e carg mesmas palavras dizer de correeiros e sempre parece com as as mesmas coisas Al b des faz alusão à argumentaçao Parece que aqm Cl Ia emórias sobre Sócrates habitual de Sócrates presente nas m hines von Sphettos und die Frage 22 K Dõring Der Sokrates es rsc 112 1630 1984 Cf também h Sokrates In nermes 1975 nach dem histonsc en A endix Platonica Munchen P C W Müller Die Kurzdwloge der pp 233 nota 1 O d Cf C W Müller op cit P 128 nota 1 23 Teages 13 24 Banquete 215 ce 216 a 25 Ibid 221 e 58 A figura de Sócrates redigidas por Xenofonte26 de que para aprender o ofício de sapateiro de carpinteiro de ferreiro ou de estribeira devase procurar um mestre e mesmo para domar cava los e bois mas que quando se trata da justiça não se deva procurar um mestre No texto de Xenofonte Hípias o sofista recorda a Sócrates que ele sempre repete as mesmas palavras sobre as mesmas coisas E Sócrates ad mite com evidente prazer que é isso que lhe permite fazer seu interlocutor dizer que ele Hípias ao contrário se esforça para sempre dizer algo de novo mesmo que se trate da justiça Sócrates bem que gostaria de saber o que Hípias pode dizer de novo sobre um tema que não deveria mudar nunca mas Hípias recusase a responder antes que Sócrates lhe permitisse conhecer sua opinião sobre a justiça Há muito que zombas dos outros interrogando e refutando sempre sem jamais querer prestar contas a ninguém nem sobre nada expor tua opinião Ao que Sócrates responde Como Hípias não vês que não cesso de mostrar o que penso ser o justo Se não por palavras definoo por atos r8 Ele quer dizer que por fim a existência e a vida do homem justo determinam melhor o que é a justiça É essa individualidade poderosa de Sócrates que pode despertar à consciência a individualidade de seus interlo cutores Mas as reações deles são extremamente diferentes Vimos acima a alegria que Nícias experimentava ao ser questionado por Sócrates Ao contrário Alcibíades por sua 26 Xenofonte Memoráveis N 4 5 59 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes parte procura resistir à sua influência diante dele experi menta tão somente vergonha e para escapar dessa atração algumas vezes chega a desejar sua morte Em outras pala tvras Sócrates só pode convidar seu interlocutor a examinar 1 se a pôrse à prova Para que se instaure um diálogo que 1 conduza o indivíduo como o dizia Nícias a dar razão de si mesmo e de sua vida é necessário que aquele que fala com Sócrates aceite com o próprio Sócrates submeterse às exigências do discurso racional digamos às exigências da razão Em outras palavras o cuidado de si o pôrse a si mesmo em questão nascem justamente numa superação da individualidade que se eleva ao nível da universalidade representada pelo lógos comum aos dois interlocutores O saber de Sócrates o valor absoluto da intenção moral Vislumbramos o que pode ser para além de seu não 1 saber o saber de Sócrates Sócrates diz e repete que nada sabe que nada pode ensinar aos outros que os outros 1 devem pensar por si mesmos descobrir sua verdade por si mesmos Mas podese muito bem perguntar em todo caso se não há um saber que o próprio Sócrates descobriu por si mesmo e em si Uma passagem da Defesa27 na qual saber e não saber são opostos permitenos conjeturar isso Sócrates evoca o que alguns poderiam dizerlhe Não te pejas ó Sócrates de te haveres dedicado a uma ocupação que te põe agora em risco de morrer E ele formula assim o que poderia responderlhe 27 Defesa 28 b 60 A figura de Sócrates Esá enganado homem se pensas que um varão de algum prestzmo deve pesar as possibilidades de vida e morte em vez e considCr apenas este aspecto de seus atos se o que faz é JUsto ou znusto de homem de brio ou de covarde Nsta perspectiva o que aparece como um não saber e a piOr morte28 C efeito sehors temer a morte é o mesmo que se supor sazo qem nao o e porque é supor que sabe o que não sabe Nznguem sabe que é a morte nem se porventura será para o homem o mazor dos bens todos a temem como se soubessem ser ela o maior dos males A ignorância mais condenável não é essa de supor saber o que não se sabe Sócrates por sua parte sabe nada saber sobre a morte mas em contrapartida afirma que sabe alguma coisa sobre outro assunto Sei porém que é mau e vergonhoso praticar o mal desobede cer a u melhor que eu seja deus seja home7npor isso na alternatzva com males que conheço como tais jamais fugirei de medo do que não sei se será um bem É muito interessante constatar que aqui o não saber e d o saber condduzem não a conceitos mas a valores 0 valor 1 a morte e um lado o valor do bem moral e do mal nral e utro Sócrates nada sabe do valor que é neces sano atbmr à morte pois ela não está em seu poder pois a expenenna de sua própria morte lhe escapa por defini çao Mas ele sabe o valor da ação moral e da intenção moral pois elas dependem de sua escolha de sua decisão 28 Ibid 29 ab 61 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes de seu empenho elas têm portanto sua origem ele mesmo Ainda aqui o saber não é uma série de propos1çoes uma teoria abstrata mas a certeza de uma escolha de uma decisão de uma iniciativa o saber não é um saber tout court mas um saberqueénecessáriescolher oranto u isaberviver E esse saber do valor e que o gu1ara nas dls 1 1 29 cussões travadas com seus mter ocutores E se algum de vós redarguir que se importa não me zrez embora deixandoo mas o hei de interrogar examinar e con fundir e se me parecer que afirma ter adquirido a virtude e não a adquiriu hei de repreendêlo por estimar menos o que vale mais e mais o que vale menos Esse saber do valor é extraído da experiência interior de Sócrates da experiência de uma escolha que o compro mete totalmente Ainda não há aqui um saber senão em uma descoberta pessoal que vem do interior Essa interio ridade é em contrapartida reforçada pela representação do daímon dessa voz divina que diz ele nele fala e o im pede de fazer certas coisas Experiência mística ou imagem mítica é algo difícil de dizer mas nela podemos vr e todo caso uma espécie de figura do que se chamara ma1s tarde consciência moral Parece que Sócrates admitiu implicitanente eistir em todos os homens umdesj inltocgpm tambem nesse sentido que se aprese o um simples parteiro cuo papel limitavase a fazer que seus interlocutores descobns sem suas possibilidades interiores Compreendese melhor então a significação do paradoxo socrático ninguém erra 29 Ibid 29 e 62 A figura de Sócrates vluntariamente 30 ou ainda a virtude é saber31 ele quer d1zer que se o homem comete o mal moral é porque crê encontrar o bem e se ele é virtuoso é que sabe com toda a sua alma e todo seu ser onde está o verdadeiro bem 0 papel do filósofo consistirá em permitir a seu interlocutor realizar no sentido mais forte da palavra o verdadeiro bem o verdadeiro valor No fundo do saber socrático há amor do bem32 O conteúdo do saber socrático é no essencial o vlor ablllt da intençãojrrHral e a certeza de que pro cura a escolha desse valor Evidentemente a expressão é moderna Sócrates não a teria empregado Mas ela talvez sja útil para essaltar todo o alcance da mensagem socrá tica Podese d1zer que um valor é absoluto para um homem quando ele está prestes a morrer por esse valor É preci samente a atitude de Sócrates quando se trata do que é o melhor isto é da justiça do dever da pureza moral Ele repete várias vezes na Defesd3 prefere a morte e 0 perigo a renunciar a seu dever e à sua missão No Críton34 Platão imagina que Sócrates faz falar as leis de Atenas que o fazem compreender que se quiser evadirse e esca par à sua condenação prejudicará toda a cidade dando 30 Sócrtes em Aristóteles Ética a Nicômaco VII 2 1145 b 2127 Ética a Mcomaco 4 ed tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim São Paulo Nova Cultural 1987 Os Pensadores 31 Sócrates em Aristóteles Ética a Eudemo I 5 1216 b 68 Xenofon te Memoráveis III 9 5 32 AJ Voelke Lide de voloné dans le stoiCisme Paris 1973 p 194 para o tea do pretenso mtelecrualismo socrático La dialectique socrati que umt md1ssolublement la connaissance du bien et le choix du bien 33 Defesa 28 b ss 34 ríton 50 a Críton 3a ed seleção introdução e tradução de Jaime Bruna Sao Paulo Cultrix 1952 63 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes o exemplo de desobediência a suas leis ele não deve pôr sua própria vida acima do que é justo E como diz Sócrates no Fédon35 Há muito que estes mesmos ossos e músculos estariam lá para as bandas de Megara ou da Beócia levados por certa noção do melhor se eu não estivesse convicto de que era mais justo e mais belo submeterse às leis da cidade qualquer que fosse a pena que me é imposta de preferência a evadirme e fugir Esse valor absoluto da escolha moral aparece também 36 d 1 N h em outra perspectiva quando Socrates ec ara ao a para o homem bom nenhum mal quer na vida quer na morte Isso significa que todas as coisas que parecem males aos olhos dos homens a morte a doença a pobre za não são males para ele A seus olhos há apenas um mal a falta moral há apenas um bem um único valor a vontade de fazer o bem o que supõe que ele não recusa examinar sem cessar e rigorosamente sua maneira de viver a fim de ver se ela é sempre dirigida e inspirada por essa vontade de fazer o bem Podese dizer até certo ponto que o que interessa a Sócrates não é definir o que pode ser o conteúdo teórico e objetivo da moralidade é neces sário saber se se quer realeconcretamente fazer o que se considera justo e bom çQse ltvagiE Na Defesa Sócrates não dá nenhuma razão teónêa para explicar por que se obriga a examinar sua própria vida e a vida dos outros Contentase em dizer por um lado que é a missão que lhe foi confiada pelo deus e por outro que somente tal 35 Fédon 98 e Fédon 3 ed seleção introdução e tradução de Jaime Bruna São Paulo Çultrix 1952 36 Defesa 41 d 64 A figura de Sócrates I lucidez esse rigor para olhar a si mesmo pode dar sentido à vida37 Uma vida sem exame não é vida digna de um ser humano Encontramos aqui talvez ainda confuso e indistinto um esboço da ideia a ser desenvolvida mais tarde em utra problemtica Jor Kant a moralidade constitdise na pu reza de mtençao que dirige a ação pureza que consiste preosamente em conferir um valor absoluto ao bem moral renunciando totalmente ao próprio interesse Tudo leva a pensar por outro lado que esse saber ja mIs poe ser adquirido Não é somente aos outros mas a SI mesmo que Sócrates não cessa de submeter a exame A pureza da intenção moral deve sem cessar ser renovada e estabelecida A transformação de si jamais é definitiva Ex1ge uma eRtl1a Ttconquista Cuidado de si cuidado dos outros Falando da estranheza da filosofia M MerleauPontfs dlZla que ela jamais está totalmente no mundo e jamais entretanto fora do mundo Do mesmo modo com 0 estranho o inclassificável Sócrates Ele não está nem no mundo nem fora De um lado ele propõe aos olhos de seus concida daos uma total reversão dos valores que lhe parecem incompreensíveis39 37 3MeauPonty Eloge de la philosophie et autres essais Paris 1965 p 38 39 Defesa 38 a 65 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes Se vos disser que para o homem nenhum bem supera o discorrer cada dia sobre a virtude e outros temas de que me ouvistes praticar quando examinava a mim mesmo e a outros e que vida sem exame não é vida digna de um ser humano acre ditareis ainda menos em minhas palavras Seus concidadãos não podem perceber seu convite para examinar seus valores sua maneira de agir para tomar cuidado consigo mesmo como também para uma ruptura radical com a vida cotidiana com os hábitos e as convenções da vida corrente com o mundo que lhes é fa miliar Mas de outro lado esse convite para tomar cuidado consigo mesmo não será um apelo para afastarse da cidade vindo de UJJllteem que está de alguma maneira fora do mund átopoJ ou seja ue é esnho iclassificávl absurdo Sócrates não sera o protot1po da Imagem tao disseminada e por outro lado afinal tão falsa do filósofo que foge das dificuldades da vida para refugiarse em sua boa consciência Contudo o retrato de Sócrates tal qual desenhado por Alcibíades no Banquete de Platão e também por Xenofonte revelanos ao contrário um homem que participa plena mente da vida da cidade como ela é um homem quase comum cotidiano commuther e filhos que conversa com todo mundo nas ruas nas oficinas nos ginásios um bon vivant capaz de beber mais que qualquer outro sem embriagarse um soldado corajoso e paciente O cuidado de si não se opõe ao cuidado da cidade De maneira igualmente notável na Defesa de Sócrates e no Criton o que Sócrates proclama como seu dever como aquilo pelo que deve a tudo sacrificar mesmo sua vida é a obediência às leis da cidade as Leis personificadas que no Criton 66 A figura de Sócrates exortam Sócrates a não se deixar levar pela tentação de evadirse da prisão e fugir para longe de Atenas fazendoo compreender que sua salvação egoísta será uma irúustiça ra com Atenas Essa atitude não é de conformismÕ porquanto Xenofonte faça dizer a Sócrates que se pode bem obedecer às leis aspirando que elas mudem como se vai à guerra aspirando a paz MerleauPonty40 ressaltou bem Sócrates tem uma maneira de obedecer que é uma maneira de resistir submetese às leis para provar no interior da cidade a verdade de sua atitude filosófica e o valor absoluto da intenção moral Não é necessário dizer então com Hegel que Sócrates retirase para si mesmo para buscar a justiça e o bem mas com MerleauPonty4 ele pensava que não se pode ser justo sozinho do mesmo modo como o ser sozinho cessa de ser O cuidado de si é portanto indissoluvelmente cuidado da cidade e cuidado dos outros como se vê pelo exemplo do próprio Sócrates cuja razão de viver é ocuparse com os outros Há em Sócrates42 um aspecto ao mesmo tempo missionário e popular que se reencontrará posterior mente em certos filósofos da época helenística Eu estou à disposição tanto do pobre como do rico sem distinção Podeis reconhecer que sou bem um homem dado pelo deus à cidade por esta reflexão não é conforme à natureza do homem que eu tenha negligenciado todos os meus interesses para me ocupar do que diz respeito a vós para persuadir cada um a tornarse melhor S 40 M MerleauPonty op cit p 44 41 Id ibid p 48 42 Defesa 32 b e 31 b 67 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes Assim Sócrates está ao mesmo tempo fora do mundo e no mundo transcendendo os homens e as coisas por sua exigência mral e pelo empenho que ela implica isturado aos homens e às coisas porque somente no cotidiano dele pode compreender a verdadeira filosofia E sem dúvida em toda a Antiguidade Sócrates permanecera o modelo do filósofo ideal cuia obra filosófica é justamente sua J 44 d vida e sua morté3 Como escreveu Plutarco no Imcw o século II dC A maior parte das pessoas imagina que a filosofia consiste em discutir do alto de uma tribuna e dar cursos sobre textos Mas 0 que escapa totalmente a essas pessoas é a filosofia ininterrupta que se vê exercer a cada dia de uma manezra perfeztamente igual a si mesma Sócrates não prepara degraus para os ouvintes não se firma sobre uma tribuna professora ele não tem horário fixo para discutir ou para passear com seus discípulos Mas é algumas vezes gracejando com aqueles ou bebendo ou indo à guerra ou à ágora com esses e finalmente indo para a prisão e bebendo o veneno que ele filosofou Ele Voi 0 primeiro a mostrar que em todos os tempos e em todos os lugares em tudo o que ns cega e em tudo o que Jazemos a vida cotidiana dá a posstbthdade de filosofar 43 CL AJihle Studien zur griechischen Biographie 2 ed Gõttingen 1970 ppJ320 44 Plutarco e a política é ofício dos velhos 26 796 d 68 Capítulo 4 fi definição do filósofo no lBanquete de rJlatão Não sabemos com evidência se Sócrates chegou em suas discussões com seus interlocutores a empregar a pa lavra philosophia É provável em todo caso que caso ela já existisse ele teria utilizado essa palavra dandolhe o senti do corrente da época isto é ele a teria empregado como se fazia então para designar a cultura geral que os sofistas e outros poderiam conceder a seus alunos É esse sentido que encontramos por exemplo nos raros empregos da palavra philosophia que se encontra nas Memoráveis as me mórias de Sócrates reunidas por seu discípulo Xenofonte Mas é certo que é sob a influência da personalidade e do ensinamento de Sócrates que Platão há de conferir no Banquete à palavra filósofo e portanto também à palavra filosofia um novo sentido O Banquete de Platão O Banquete é com a Defesa um monumento literário dedicado à memória de Sócrates um monumento maravilho 69 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes sa e habilmente construído como Platão sabia fazer tão bem entrelaçando com arte temas filosóficos e símbolos míticos Como na Defesa a parte teórica é reduzida ao mínimo encon tramse apenas algwnas páginas extremamente importantes que se referem à visão da Beleza e o essencial é dedicdo a descrever o modo de vida de Sócrates que se revelara pre cisamente como o modelo do filósofo A definição do filósofa proposta no curso do diálogo terá alguns sentidos A figura de Sócrates domina todo o diálogo apresenta do como a narração de certo Aristodemo que relata como Sócrates lhe pede que o acompanhe ao banquete oferecido pelo poeta Agatão em honra de sua vitória no concurs de tragédia Sócrates chega atrasado de algum lugar pms permanecera durante certo tempo plantado na praça medi tando Na série de discursos que os participantes do banquete desenvolverão em honra de Eros a intervenção de Sócrates é tão longa quanto a de todos os outros oradores reunidos Quando no fim do banquete chega Alcibíades embriagado coroado de flores acompanhado de uma flautista este último fará um longo elogio a Sócrates detalhando todos os aspectos de sua personalidade E nas últimas linhas da obra a personagem de Sócrates é a única lúcida e serena no meio de convivas adormeçidos embora tenha bebido mais que os outros Agatão Aristófanes e Sócrates eram os únicos que ainda esta vam despertos e bebiam de uma grande taça que passavam da esquerda para a direita Sócrates conversava com eles 1 ForçaVJOS Sócrates a admitir que é de um mesmo homem o saber Jazer uma comédia e uma tragédia 1 Primeiro ador l Sobre os empregos da palavra philosophia e das palavras correlatas em Platão cf M Dixsaut Le Naturel philosophe Paris 1985 70 A definição do filósofo no Banquete de Platão meceu Aristófanes e quando já se fazia dia Agatão Sócrates 1 levantouse e partiu 1 chegado ao Liceu ele asseouse e como em qualquer outra ocasião passou o dia inteiro depois do que à tarde foi repousar em casa Esse fim do diálogo fez sonhar os poetas Pensase aqui nos versos de Hõlderlin2 sobre o sábio que sabe suportar a intensidade da felicidade que lhe oferece o deus A cada um sua medida Pesada é a força da infelicidade mais pesada ainda a felicidade Houve um sabia contudo que soube permanecer lúcido no banquete do meio até o coração da noite e até as primeiras luzes da alva É com a mesma serenidade nota Nietzsche que ele deixa o banquete e sabe entrar na morteS Ele foi para a morte com a mesma calma com que na descrição de Platão ele o último dos convivas deixa o banquete ao despontar da madrugada para começar um novo dia enquan to atrás dele sobre os bancos ou no chão ficam para trás os adormecidos companheiros de mesa para sonhar com Sócrates o verdadeiro erótico Sócrates morrendo tornouse o novo ideal nunca antes contemplado da nobre juventude grega Como bem mostrou D Babut4 os menores detalhes têm sua importância na construção do diálogo destinado 2 Hõlderlin Le Rhin trad G Bianquis Paris 1943 pp 391393 3 Nietzsche O nascimento da tragédia 13 N do T valime da tradu ção de Rubens Rodrigues Torres Filho O nascimento da tragédia 4a ed São Paulo Nova Cultural 1987 Os Pensadores O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo tradução notas e posfácio de Jacó Guinsburg São Paulo Companhia das Letras 1992 4 D Babut Peinture et dépassement de la réalité dans le Banquet de Platon in Revue des études anciennes 82 529 1980 artigo republicado in Parerga Choix darticles de D Babut Lyon 1994 pp 171196 71 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes ao mesmo tempo a pintar Sócrates e a idealizálo A companhia daqueles que bebem delineia um progrma que determina simultaneamente o modo como se a de beber e o tema dos discursos que cada um dos participan tes há de pronunciar O assunto será o Amor Narrando o banquete ao qual assistia Sócrates o diálogo relatará portanto a maneira pela qual os convivas darão cota de sua tarefa em que ordem os discursos sucederseao e o que dirão os diferentes oradores Segun D But os cinco primeiros discursos de Fedro Pausamas Eruamaco Aristófanes e Agatão por uma progressão dialética pre param o elogio do Amor por Diotima a sacerdotisa de Mantineia de quem Sócrates logo que chega sua vez referirá as palavras De uma extremidade a outra do diálogo mas sobretu do no discurso de Diotima e no de Alcibíades percebese que os traços da figura de Eros e os da figura de Sócrates tendem a confundirse E finalmente se eles se entre meiam tão estreitamente a razão é que Eros e Sócrates personificam um de maneira mítica outro de maneira histórica a figura do filósofo Tal é o sentido profundo do diálogo Eros Sócrates e o filósofo O elogio de Eros por Sócrates é clara e evidentemente composto segundo a maneira propriamente socrática Isso quer dizer que Sócrates não fará como os outros conviVas um discurso no qual afirmará que o Amor tem esta ou aquela qualidade Não falará ele próprio pois nada sabe mas fará falar os outros e em primeiro lugar Agatão aque 72 A definição do filósofo no Banquete de Platão le que fez antes dele o elogio do Amor e notadamente declara que o Amor é belo e gracioso Sócrates principia por interrogar Agatão perguntandolhe se o amor é desej do que se possui ou do que não se possui Se é necessário admitir que o Amor é desejo do que não se possui e se o amor é desejo de beleza não se deve concluir que o amor não pode ele próprio ser belo uma vez que não possui a beleza Depois de ter obrigado Agatão a admitir essa posição Sócrates deverá igualmente expor sua teoria do Amor mas referindose a quem o fez compreender o tema do Amor Diotima a sacerdotisa de Mantineia em uma conversa que teve alhures com ela Uma vez que é relativo a outra coisa e a uma coisa da qual é privado o Amor não pode ser um deus como imaginaram sem razão todos os outros convivas que haviam feito até então o elogio do Amor Eros é propriamente um dímonum ser intermediário entre os deuses e os homens entre os imortais e os mortais5 Não se trata apenas de uma posição mediana entre duas ordens de realidades opostas mas de uma situação de mediador o daímon está em relação com os deuses e os homens desempenha um papel nas iniciações aos mistérios nos encantos que curam os males da alma e do corpo nas comunicações que vêm dos deuses aos homens tanto na vignia como no sono Para melhor fazêlos compreender essa representação de Eros Diotima6 propusera a Sócrates uma narração mítica do nascimento desse daímon No dia do nascimento de Mrodite houve um banquete entre os deuses No fim da refeição Penia a saber Pobreza Privação aproximase para mendigar 5 Banquete 202 e 6 Ibid 203 a e ss 73 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes Poros a saber Recurso Riqueza Expediente esta va ainda adormecido embriagado de néctar no jardim de Zeus Penia estendese a seu lado a fim de remediar sua pobreza tendo um filho dele E assim ela concebe o Amor Segundo Diotima a natureza e o caráter do Amor explicamse por essa origem Nascido no dia do nascimen to de Mrodite é apaixonado pela Beleza Filho de Penia é sempre pobre indigente mendicante Filho de Poros é inventiva e astucioso A descrição mítica de Diotima de uma maneira mui to hábil e plena de humor aplicase ao mesmo tempo a Eros a Sócrates e ao filósofo A Eros em primeiro lugar o laborioso Ele é sempre pobre e longe está de ser delicado e belo como a maioria imagina mas é duro seco descalço e sem lar sempre por terra e sem forro deitandose ao desabrigo às portas e nos caminhos Mas também qual um digno filho de Poros esse Eros amoroso é um caçador terrível Ele é insidioso com o que é belo e bom e corajoso decidido e enérgico caçador terrível serrtpre a tecer maquinarias ávido de sabedoria e cheio de recursos a filosofar por toda a vida terrível mago feiticeiro sofista Mas a descrição aplicase a Sócrates que é também esse amoroso esse caçador miseráveF No fim do diálogo Alcibíades o descreverá participando da expedição militar de Potideia atormentado pelo frio de inverno pés descalços coberto por uma roupagem grosseira que mal o protegia 7 Ibid 174 a e 203 cde 220 b Cf VJankélévitch LIronie pp 122125 74 A definição do filósofo no Banquete de Platão No início do diálogo vimos que para 1r ao banquete Sócrates excepcionalmente banharase e calçarase Os pés descalços e o velho manto de Sócrates eram os temas favoritos dos poetas cômicos8 E o Sócrates descrito pelo cômico Aristófanes em suas Nuvenf é um digno filho de Poros linguarudo ousado resoluto velhaco charlatão raposa Em seu elogio de Sócrates Alcibíades também faz alusão à sua impudência e já antes dele no início do diálogo Agatão fizera a mesma alusão10 Para Alcibíades Sócrates é também um verdadeiro mágico11 que enfeitiça as almas por suas palavras Quanto à robustez de Eros é encontrada no retrato de Sócrates em armas que Alcibíades traça resiste ao frio à fome ao medo tudo sendo capaz de suportar tão bem o vinho quanto as privações12 Ora esse retrato de ErosSócrates é a um só tempo o retrato do filósofo na medida em que filho de Poros e de Penia Eros é pobre e deficiente mas sabe por sua habilidade compensar sua pobreza sua privação e sua de ficiência Para Diotima Eros é filósofo pois está a meio caminho entre a sophía e a ignorância Platão13 não define aqui o que entende por sabedoria Permitenos apenas en tender que se trata de um estado transcldente visto que a seus olhos propriamente flandÔ somente os deuses são 8 Encontrarseão alguns exemplos em Diógenes Laércio Vida dos jilósof II 2728 j 9 1 stófanes As Nuvens 445 ss As Nuvens 4a ed tradução e notas de Gilda Maria Reale Strazynski São Paulo Nova Cultural 1987 Os Pen sadores 10 Banquete 175 e 221 e 11 Ibid 215 c 12 Ibid 220 ad 13 Ibid 203 e ss 75 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes sábios14 Podese admitir que a sabedoria representa a per feição do saber identificado à virtude Mas como já dissemos e como deveremos tornar a dizêlo15 na tradição grega o saber ou sophía é menos um saber puramente teórico que um saberfazer um saberviver e nele se reconhecerão tra ços da maneira de viver não o saber teórico de Sócrates filósofo que Platão evoca precisamente no Banquete Há diz Diotima duas categorias de seres que não filo sofam os deuses e os sábios por serem eles precisamente sábios e os ignorantes por crerem ser sábios Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio sophós pois já é assim como se alguém mais é sábio não filosofa Nem também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios pois é nisso mesmo que está o difícil da ignorância no pensar quem não é um homem distinto e gentil nem inteligente que lhe basta assim Não deseja portanto quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso Mas Sócrates pergunta ainda Quais então Diotima os que filosofam se não são nem os sábios nem os igno rantes ao que responde Diotima São os que estão entre esses dois extremos e um deles seria o Amor Com efeito uma das co1sas mais belas é a sabedoria e o Amor é amor pelo belo de modo que é forçoso o Amor ser filósofo e sendo filósofo estar entre o sábio e o ignorante E a causa dessa sua condição é sua origem pois é filho de um pai sábio sophós e rico e de uma mãe que não é sábia e pobre 14 Cf Fedro 278 d Fedro tradução de Carlos Alberto Nunes Belém Ed Universidade Federal do Pará 1975 Fedro introdução tradução e notas de José Ribeiro Ferreira LisboaSão Paulo Verbo 1973 15 Cf pp 39 e 384 76 A definição do filósofo no Banquete de Platão Ainda aqui reconhecese logo sob os traços de Eros não só o filósofo mas Sócrates que aparentemente nada sabe como os ignorantes mas que ao mesmo tempo é consciente de nada saber ele é diferente dos ignorantes pelo fato de consciente de seu não saber desejar saber mesmo que como vimos16 sua representação do saber seja profundamente diferente da tradicional Sócrates ou o filósofo é Eros privado de sabedoria de beleza do bem deseja ama a sabedoria a beleza o bem Ele é Eros o que significa que ele é o Desejo não um desejo passivo e nostálgico mas um desejo impetuoso digno desse caçador terrível que é Eros Aparentemente não há nada mais simples e mais na tural do que essa posição intermediária do filósofo Ele está a meio caminho entre o saber e tgnrância Podese pensar que lhe bastará pratíêar sua atividade de filósofo para superar definitivamente a ignorância e alcançar a sabedoria Mas as coisas são muito mais complexas Com efeito no segundo plano dessa oposição entre sábios filósofos e ignorantes é possível vislumbrar um es quema lógico de divisão de conceitos que é muito rigoroso e não autoriza uma perspectiva tão otimista Diotima opôs os sábios e os não sábios o que quer dizer que ela fez uma oposição de contradição que não admite nenhum interme diário ou seéé sábÍÕ ou não não há meiotermo Desse ponto de vista não se pode dizer que o filósofo seja um intermediário entre o sábio e o não sábio pois se não se é sábio se é necessária e decididamente não sábio Ele 16 Cf pp 60 ss 77 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes está votado a jamais alcançar a sabedoria Mas nos não sábios Diotima introduziu uma divisão há os que são in fconscientes de sua não sabedoria e estes são propriamente os ignorantes e há os que são conscientes de sua não sabedoria e estes são os filósofos Dessa vez podese con siderar que na categoria dos não sábios os ignorantes inconscientes de sua não sabedoria são o contrário dos sábios e segundo esse ponto de vista isto é conforme essa oposição de contrariedades os filósofos são intermediários entre os sábios e os ignorantes na medida em que são não sábios conscientes de sua não sabedoria eles não são sábios nem ignorantes Essa divisão é paralela a outra que fora muito corrente na escola de Platão a distinção entre o que é bom e o que não é bom Entre os dois não há meiotermo pois se trata de uma oposição de contradição Mas nisso que não é bom podese distinguir entre o que não é bom nem mau e o que é mau Agora a oposição de contrariedade estabelecerseá entre o bom e o mau e haverá um intermediário entre o bom e o mau a saber o que não é nem bom nem mau17 Esses esquemas lógicos tiveram importância muito grande na escola de Platão18 Com efeito eles servem para distinguir as coisas que só se conhecem mais ou menos e as que são suscetíveis de graus de intensidade O sábio ou o qüe é bom são absolutos eles não admitem variações não se pode ser mais ou menos sábio ou mais ou menos bom Mas o que é intermediário o que não é nem bom nem mau ou o filósofo é sus cetível de mais ou menos o filósofo jamais atingirá a sabe doria mas pode progredir em sua direção A filosofia 17 Platão Lísis 218 b 1 18 HJ Krãmer Platonismus und hellenistische Philosophie Berlin 1971 pp 174175 e 229230 78 A definição do filósofo no Banquete de Platão portanto segundo o Banquete não é a sabedoria mas um modo de vida e um discurso determinados pela ideia de sabedoria Com o Banquete a etimologia da palavra philosophia o amor o desejo da sabedoria tornase o programa da filo sofia Podese dizer que com o Sócrates do Banquete a fi losofia toma definitivamente na histria uma tonalidade a um só teiilP irônica e trágica Irônica porque o verdadei ro filósofÓ á sémpre aquele que sabe nada saber que sabe que não é sábio e que não é sábio nem não sábio que não está por sua vez no mundo dos ignorantes nem no mundo dos sábios nem totalmente no mundo dos ho mens nem totalmente no mundo dos deuses inclassificável portanto sem casa ou lugar como Eros e Sócrates Trágico também porque esse ser bizarro é torturado e dilacerado pelo desejo de alcançar essa sabedoria que lhe escapa e que ama Como Kierkegaard19 o cristão que gostaria de ser cristão mas sabe que somente Cristo é cristão o filóso fo sabe que não pode alcançar seu modelo e que jamais será totalmente o que deseja Platão instaura assim uma distância insuperável entre a filosofia e a sabedoria A filo ofià definese por ser aquilo do que é privada isto é por uma norma transcendente que lhe escapa e contudo que possui em si de certa maneira segundo a célebre fórmula pascaliana tão platônica Não me procurarias se já não me houvesses achado20 Dirá Plotino21 O que é totalmen te privado do bem jamais procurará o bem É porque o 19 Kierkegaard LInstant 19 in CEuvres completes t XIX pp 300 301 20 Pascal Pensées 553 Brunschvicg Classiques Hachette 21 Plotino Eneadas III 5 50 9 44 p 142 Hadot 79 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes Sócrates do Banquete apresentase a um só temp como aquele que pretende não ter nenhuma sabedona e co mo um ser de quem se admira a maneira de viver Porque o filósofo não é um intermediário mas um mediador como Eros Ele revela aos homens alguma coisa do mundo dos deuses do mundo da sabedoria Ele é como os moldes de silenos22 que exteriormente parecem grotescos e ridículo mas apenas abertos vêse que têm estátuas de deuses E assim que Sócrates por sua vida e por seu discurso que têm efeito mágico e daimônico obriga Alcibíades a pôrse a si mesmo em questão e a dizerse que sua vida não merece ser vivida caso ele se comporte dessa maneira Notemos rapidamente na esteira de L Robin23 que é também o próprio Banquete isto é a obra literária que Platão escreveu com esse título que é semelhante a Sócrates ele também um sileno esculpido que com ironia e humor dissimula as mais profundas concepções Não é apenas a figura de Eros que é assim desvalo rizada e desmitificada no Banquete passando do posto de deus ao de daímon é também a figura do filósofo que não é mais o homem que recebe dos sofistas um saber acabado mas qualquer um que tenha consciência de sua deficiência e ao mesmo tempo do desejo que existe em si e que o atrai para o belo e para o bem O filósofo que toma consciência de si mesmo no 24 Banquete assim como o Sócrates que descrevemos maiS acnna aparece não sendo totalmente do mundo nem totaben 22 Banquete 215 bc 23 L Robin introdução p CV nota 2 in Platão Le Banquet Paris 1981 1ed1929 24 Cf acima pp 65 ss 80 A definição do filósofo no Banquete de Platão te de fora do mundo Como Alcibíades pôde ver na ex pedição de Potideia Sócrates tem a capacidade de per manecer contente em todas as circunstâncias de poder na expedição militar de Potideia aproveitar a abundância quando há abundância e sobrepujar os outros na arte de beber sem embriagarse e contudo quando há escassez suportar corajosamente a fome e a sede suportar com facilidade quando não há nada para comer e quando há abundância suportar facilmente o frio nada temer mos trando considerável coragem no combate Ele é indife rente a todas as coisas que seduzem os homens beleza riqueza vantagem ou outra coisa qualquer e que lhe pareça sem valor Mas é também alguém que pode absor verse totalmente na meditação retirandose de tudo o que o cerca Duranteãexpedição de Potideia seus com panheiros de armas viramno refletir em pé e imóvel durante uma jornada inteira Também desse modo ele chega ao início do diálogo e é isso que explica seu atra so ao banquete Platão talvez queira com isso dar a entender que Sócrates fora iniciado pela sacerdotisa de Mantineia nos mistérios do amor e que aprendeu a ver a verdadeira beleza aquele que teve essa visão atingirá diz a sacerdotisa de Mantineia a única via que vale a pena ser vivida e obterá dessa maneira a excelência aretê a virtude verdadeira25 A filosofia aparece dessa vez torna remos a repetir isto26 como uma experiência de amor Assim Sócrates revelase como umser qUe mesmo não sendo um deus pois apresentase antes de tudo como um homem comum é superior aos homens é um daímon 25 Banquete 211 d212 a 26 Cf adiante pp 108 ss 81 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes amálgama de divindade e humanidade mas um amálgama não existe por si ele é necessariamente ligado a uma es j tranheza quase a um desequilíbrio a uma dissonância interna Essa definição do filósofo no Banquete terá importância capital em toda a história da filosofia Para os estoicos por exemplo da mesma maneira que para Platão o filósofo é por essência diferente do sábio e na perspectiva dessa oposição de contradição o filósofo não se distingue do comum dos mortais Pouco importa dirão os estoicos que se encontre a um côvado ou a cento e cinquenta braças na água não se estará menos afogado27 Há de alguma maneira uma diferença de essência entre o sábio e o não sábio no sentido em que somente o não sábio é mais ou menos suscetível enquanto o sábio corresponde a uma perfeição absoluta que não admite graus O fato de o filósofo ser não sábio porém não quer dizer que não haja diferenças entre o filósofo e os outros homens O filósofo é consciente de seu estado de não sabedoria pois deseja a sabedoria procura progredirpa direção da sabedoria que para os estoicos é uma espécie de estado transcendente que só pode sex atingido por uma mutação brusca e inesperada E por outro lado o sábio não existe ou existe muito raramente O filósofo pode progredir mas sempre para o interior da não sabedoria Ele tende para a sabedoria mas de maneira assintótica sem jamais poder atingila As outras escolas filosóficas não terão uma doutrina tão precisa sobre a distinção entre filosofia e sabedoria mas 27 Cícero Dos termos extremos do bem e do ma III 14 48 82 Adfi e mçao do filósofo no Banquete de Platão de maneira geral b d a sa e ona sera como um ideal e atrai o filósofo e sobretudo fil fi que gma a oso a sera con d d um exerocio de sab d SI era a e o na pratica de um modo d d Essa Ideia será forte ainda em Kant2s VI a todos os filósofos que defi I esta Imphota em como o amor da sabedo e etJmo ogicmente a filosofia ao menos o modelo donaS que os filosofas retiveram ocrates do B t Ironia e humor ao qu I c anque e em sua a Laz eco o Socrates da d Banquete de Xenofonte29 El nçante o vados disso de es sao tradiCIOnalmente pri percebeuo bemue mais tiveram necessidade Nietzschéo Sobre o Fundador do crzstzanismo a vantacrem de S t e o sorrzr q t o ocra es fi ue a enua sua gravidade e a sabedoria plena de nura que dá ao homem o melhor estado de al ma Isócrates A oposição entre filosofia e sabedori outro lado em u d a reencontrase por m os contemporâne d Pl Isócrates Constatas 1 os e atao o orador e ne e antes de tudo I concepção de filos fi uma evo uçao na o a em relaçao a epoca dos sofistas31 A jisojiad 1 que nos deu uma formação em vista da ação que zntro uzzu a doç l ura nas re açoes mútuas que distin iu as znfilzczdades provocadas pela ion A d gu A o orancza aquelas que p vem da necessidade que nos ensinou a evitar as p ro rzmezras e 28 Cf adiante pp 373380 29 Xnofonte Banquete II 1719 30 Nietzsche Humano dema d h szaoumano 31 Isócrates Panegírico 47 0 vzayante e sua sombra 86 83 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes a suportar as segundas com coragem essa filosofia portanto foi revelada para nossa cidade A filosofia é sempre a glória e o orgulho de Atenas mas seu conteúdo mudou consideravelmente Na descrição de Isócrates já não se trata apenas de cultura geral e cien tífica mas de uma formação para a vida que transforma as relações humanas e nos prepara para a adversidade Contudo Isócrates32 introduz sobretudo uma distinção capital entre a sophía ou epistême e a philosophia Visto que não é da natureza do homem possuir um saber epistême de tal modo que se o possuíssemos saberíamos o que é necessário Jazer e o que é necessário dizer eu consi dero sábios sophói nos limites do que permanece possível aqueles que graças a suas conjeturas podem obter o mais possível a melhor solução E eu considero filósofos philo sophoi aqueles que se entregam aos exercícios graças aos quais obterão o mais rapidamente possível essa capacidade de julgamento Isócrates distingue antes de tudo uma sabedoria ideal a epistême concebida como um saberfazer perfeito na condução da vida que se fundará sobre uma capacidade de julgar totalmente infalível logo uma sabedoria prática sophía que é um saberfazer marcado por uma sólida formação do julgamento que permite poder tomar deci sões razoáveis mas conjeturais nas situações de todo tipo que se apresentam e enfim a formação do próprio jul gamento que é justamente a filosofia Tratase por outro lado de outro tipo de filosofia em comparação com a de 32 Isócrates A Mudança 271 84 A definição do fil c osolo no Banquete de Platão Platão Poderseá falar de hu da palavra I mamsmo no sentido clássico socrates esta mtJm podemos nos tornar melhores amente convencido de que com a condição de tratar de aprendendo a falar bem servem à humanidade e r assuntos elvados belos que A filosofia eferemse ao Interesse geral33 e assim par 1 d bemdizer e de be a e e m Issoluvelmente a arte de m VIver 33 I Hadot Arts libérau 1984 pp 1618 x et phzlosophze dans la pensée antique Paris 85 Segunda Parte A filosofia como modo de vida Capítulo 5 Platão e aficademia O Banquete de Platão imortalizou a figura de Sócrates como filósofo isto é como o homem que procura a um só tempo por seu discurso e por seu modo de vida aproximarse e fazer aproximaremse os outros dessa ma neira de ser desse estado ontológico transcendente que é a sabedoria Assim a filosofia de Platão e posteriormente todas as filosofias da Antiguidade mesmo as mais distan tes do platonismo terão em comum a particularidade de vincular estreitamente nessa perspectiva discurso e modo de vida filosóficos A filosofia como forma de vida na Academia de Platão O projeto educativo Devemos ainda retornar ao estreito vínculo que liga Sócrates e Eros o filósofo e o amor no Banquete de Platão O amor aí aparece não só como o desejo do que é sábio e do que é belo mas como o desejo de fecundidade isto é de imortalizarse produzindo Em outras palavras o amor é criador e fecundo Há duas fecundidades diz 89 Diotimal a do corpo e a da alma Aqueles cuja fecundi dade reside no corpo procuram se imortalizar gerando filhos aqueles cuja fecundidade reie 11a ala prcura imortalizarse em uma obra de intehgenoa sep ela hterana ou técnica A mais alta forma de inteligência porém é o domínio de si e a justiça e ela se exerce na organização das cidades ou de outras instituições Vários historiadores viram aqui nessa menção das instituiçes ur1a alusão à fundação por Platão de sua escola po1s nas lmhas qu seguem Platão dá claramente a entender que a fecundi dade da qual quer falar é a de um educaor que como Eros filho de Poros é cheio de recursos euporez para meditar em discursos sobre a virtude sobre o que deve ser 0 homem bom e o que deve tratar2 No Fedro Platão falará de semear os espíritos de j semear discursos que possuem gérmen donde em índoles diferentes nascem outros discursos capazes I de conceder dentro das limitações humanas o mazs alto grau de felicidade a quem o possui 3 L Robin4 resumiu esses temas platônicos A alma fecunda só pode fecundar e frutificar por seu corrér cio com outra alma na qual serão reconhecidas as qualzda des necessárias e esse comércio pode instituirse pela palavra viva pela conversa diária que supõe uma vida comum organizada em vista de fins espirituais e por um futuro 1 Banquete 208 e 2 Ibid 209 bc 3 Fedro 277a 4 L Robin introdução em Platão Le Banquet Pans 1981 1 a ed 1929 p XCII 90 Platão e a Academia indefinido e rapidamente uma escola filosófica assim como Platão concebera a sua em sua época presente e como conti nuidade da tradição Descobrimos assim outro aspecto capital da nova de finição de filosofia que Platão propôs no Banquete e que marcará de maneira definitiva a vida filosófica da intigui dade A filosofia pode realizarse só pela comunidade de vida e de diálogo entre mestres e discípulos no seio de uma escola Vários séculos mais tarde Sêneca5 exaltará ainda a importância filosófica da vida em comum A palavra viva e a vida em comum te serão mais proveitosas que o discurso escrito É a uma realidade que te seja presen te que precisas ir antes de tudo porque os homens acreditam mais em seus olhos que em seus ouvidos em seguida porque longa é a via dos preceitos curta e infalível a dos exemplos Cleanto o estoico não teria feito reviver seu mestre Zenão em pessoa caso não tivesse se tornado seu ouvinte ele se misturou à sua vida penetrou em seus pensamentos secretos observou de perto se Zenão vivia em conformidade à sua própria regra de vida Platão e Aristóteles e esse grupo de sábios que deve ria enxamear em correntes opostas tiraram mais proveito dos costumes de Sócates que df us eniraJfLnos Se Metrodoro lermârcotPÕlúnooram grades homens isso não foi por causa dos cursos de Epicuro que escutaram mas por causa da comunidade de vida que tiveram com ele É verdade tornaremos a repetir que Platão não foi o único nessa época a fundar uma instituição escolar con sagrada à educação filosófica Outros discípulos de Sócrates Antístenes Euclides de Megara Aristipo de Cirene ou uma 5 Sêneca Cartas a Lucílio 6 6 91 A filosofia como modo de vida personagem como Isócrates o fizeram ao mesmo tempo em que ele mas a Academia de Platão terá notoriedade considerável tanto em sua época como na posteridade pela qualidade de seus membros e perfeição de sua orga nização Em toda a história da filosofia posterior encontrar seão a memória e a imitação dessa instituição e das discussões e debates que ali ocorreram6 Academia porque as atividades da escola realizavamse nas salas de reunião que se encontravam em um ginásio dos arredores de Atenas denominado precisamente Academia e porque Platão havia adquirido próximo do ginásio uma pequena pro priedade na qual os membros da escola podiam reunirse ou mesmo viver em comum7 Sócrates e Pitágoras Os antigos diziam que a originalidade de Platão consis tia no fato de ter realizado de algum modo uma síntese entre Sócrates que conhecera em Atenas e o pitagorismo que teria conhecido em sua primeira viagem à Sicília8 De Sócrates teria recebido o método do diálogo a ironia o interesse voltado aos problemas da condução da vida de Pitágoras teria herdado a ideia de uma formação pelas 6 Cf a importante obra de HJ Krãmer Platonismus und hellenistische Philosophie Berlin 1971 7 Cf MF Billot art Académie in Dictionnaire des philosophes antiques Éd R Goulet T L Paris 1994 pp 693789 8 Por exemplo Dicearco em Plutarco Questões de Convivas VIII 2 719 a Cícero Da República I 1516 Da República 2 ed Tradução de Amador Cisneiros São Paulo Abril Cultural 1980 Os Pensadores Dos termos extremos V 8687 Agostinho A Cidade de Deus VIII 4 A Cidade de Deus 3 ed tradução de Oscar Paes Leme Petrópolis Vozes 1991 Numênio fr 24 éd e trad des Places Prado Comentário sobre o Timeu t I 7 24 Dihel p 32 trad Festugiêre 92 Platão e a Academia matemillas e de uma aplicação possível dessas oencias ao conhecimento da natureza a elevação do pensamento o ideal de uma comunidade de vida entre filósofos É in discutível que Platão conheceu os pitagóricos ele os põe algumas vezes em cena em seus diálogos Mas dàda a incer teza de nossos conhecimentos sobre o pitagorismo antigo não podemos definir exatamente a parte do pitagorismo na formação de Platão Uma coisa é certa em todo caso na República 9 Platão elogia Pitágoras dizendo têlo amado porque propôs aos homens e às gerações futuras uma Ígt regrçl22a pg2rka que distingue dos outros homens aqueles que a praticam e que existia ainda no tempo de Platão As comunidades pitagóricas desempenharam efetivamente importante papel político nas cidades do Sul da Itália e da Sicília Podese legitimamente pensar que a fundação da Academia inspirouse simultanea mente no modelo da forma de vida socrática e no modelo 1 da frma de vida pitagórica mesmo que não possamos j defimr com certeza as características desta última10 A intenção política A intenção inicial de Platão é política ele crê na possi bilidade de mudar a vida política pela educação filosófica dos homens influentes na cidade O testemunho autobio gráfico que Platão dá na Carta VIP 1 merece atenção Ele narra como gostaria em sua juventude de se ocupar com os assuntos da cidade e como descobriu então pela morte 9 República X 600 b 10 P Lynch Aristotles School p 61 11 Cartas tradução de Carlos Alberto Nunes Belém Editora Univer sidade Federal do Pará 1975 93 A filosofia como modo de vida de Sócrates e por seu exame das leis e dos costumes a que ponto é difícil administrar corretamente os assuntos da cidade para reconhecer finalmente que todas as cidades de sua época absolutamente todas tinham um mau regime político É porque diz ele fui irresistivelmente levado a louvar a verdadeira filosofia e a proclamar que somente à sua luz se pode reconhecer em que lugar a justiça está na vida pública e na vida privada Mas não se trata simples imente de discorrer abstratamente Para Platão seu ofício ide filósofo constD güSe ele prõZafsempenhar um papel político em Siracusa é para não passar a seus próprios olhos por um belo palrador incapaz de agir12 Muitos alunos da Academia desempenharam efetivamente um papel político em diferentes cidades seja como con selheiros de soberanos seja como legisladores seja ainda como opositores da tirania13 Os sofistas pretenderam for mar os jovens para a vida política Platão quis fazer isso dotandoos de um saber bem superior àquele que os sofistas poderiam fornecerlhes de um saber que de uma parte será fundado sobre um método racional rigoroso e de outra segundo a concepção socrática será inseparável do amor do bem e da transformação interior do homem Ele não quer somente formar hábeis políticos mas homens Para realizar sua intenção política Platão deve fazer um imenso desvio isto é criar uma comunidade intelectual e espiritual que será encarregada de formar levando o tempo necessário os novos homens Nesse imenso desvio as intenções políticas arriscamse porém a ser esquecidas e talvez não seja indiferente escutar Platão dizer que será TI Carta VIL 328 b329 c trad Brisson 13 J P Lynch op cit p 59 nota 32 bibliografia M Isnasdi Paren te Leredità di Platone nellAccademia antica Milano 1989 pp 63 ss 94 Platão e a Academia necessário forçar os filósofos a ser reis 14 Descrevendo a via a Acdmia de Platão Dicearco15 o discípulo de Anstoteles ms1ste no fato de seus membros viverem como uma comunidade de homens livres e iguais na medida em que aspiravam igualmente à virtude e à investigação em comum Platão não pede honorários a seus alunos U virtue do princípio de que é necessário dar o qu e Ial aquels que são iguais Segundo os princípios pohtHos ptomcos tratase então de uma igualdade geometrKa que da a cada um segundo seus méritos e necessidades Vislumbrase aqui que persuadido de que o homem só pode viver como homem em uma cidade pereita Platão gostaria de fazer para tornar possível sua reahzaçao que seus discípulos vivessem nas condições de uma cidade ideal e gostaria ainda que embora não pudessm governar uma cidade eles pudessem governar seu propno eu segundo as normas dessa cidade ideaP7 E isso o que procurará fazer a maior parte das escolas filosóficas posteriores18 Em vez de entregarse a uma atividade política os mem bros da escola consagraramse a uma vida desinteressada de estudos e de prática espiritual Como os sofistas mas por outras razões Pltão cria um me1Õeouêãtivõreiti mente separado da ndade Socrates por seu turno tinha uma concepção de educação À diferença dos sofistas considerava que a educação deveria realizarse não em u 14 República VII 519 d 15 K Gaiser Philodems Academica Stuttgart 1988 pp 153 ss 16 Leis Vl 756e758 a 17 República IX 592 b 8 Cf B Frischer The Sculpted Word Epicureanism and Philosophical Recruztment tn Anczent Greec University of California Press 1982 p 63 95 A filosofia como modo de vida meio artificial mas como fora o caso da tradição antiga misturandose à vida da cidade Contudo precisamente o que caracteriza a pedagogia de Sócrates é que ela atribuía importância capital ao contato vivo entre os homens e agora Platão partilha dessa convicção Tornase a encon trar em Platão essa concepção socrática de educação pelo contato vivo e pelo amor mas como disse Lynch 19 Platão de alguma maneira institucionalizoua em sua escola A educação será feita no seio de uma comunidade de um grupo de um círculo de amigos no qual reinará uma atmosfera de amor sublime Formação e investigação na Academia Conhecemos pouca coisa sobre o funcionamento insti tucional da Academia20 Como tornaremos a dizer não se deve representar como se fez demasiadas vezes a Academia e as outras escolas filosóficas de Atenas como associações religiosas adoradoras das Musas Sua função corresponde apenas à utilização do direito de associação em vigor em Atenas21 Havia parece duas categorias de membros de um lado os mais velhos investigadores e professores de outro os mais jovens os estudantes Estes últimos por exemplo parecem ter desempenhado com seus votos papel decisivo na eleição de Xenócrates como o segundo sucessor de Platão O primeiro sucessor Espeusipo teria sido escolhido pelo próprio Platão Na Antiguidade era significativo o fato de duas mulheres Axioteia e Lasteneia terem sido alunas de Platão e de Espeusipo Contase que 19 P Lynch op cit p 63 20 Sobre esse tema cf id ibid pp 5463 e p 63 21 Cf adiante pp 149150 96 Platão e a Academia Axioteia22 usava sem vergonha a túnica simples dos filóso fos o que nos permite supor que os membros da Academia como outros filósofos da época tinham esse costume que os distinguia dos outros homens Podese pensar a julgar pelas tradições posteriores da escola que fora das discus sões dos cursos e dos trabalhos científicos algumas refei ções feitas em comum eram previstas pela organização da escola23 Falamos de membros mais velhos associados a Platão na investigação e no ensino Conhecemos deles certo número Espeusipo Xenócrates mas também Eudoxo de Cnide Heráclido do Ponto Aristóteles Este último por exemplo permanece na Academia durante 20 anos como discípulo posteriormente ensinando Tratase de filósofos e de cientistas notadamente astrônomos e ma temáticos de primeiro time como Eudoxo e Teeteto Nossa representação da Academia e do papel que nela desempenhava Platão seria provavelmente muito diferen te se as obras de Espeusipo de Xenócrates e de Eudoxo tivessem sido conservadas A geometria e as outras ciências matemáticas desem penhavam papel de primeiro plano na formação Mas elas representavam apenas uma primeira etapa na formação do futuro filósofo Eram praticadas na escola de Platão de maneira totalmente desinteressada sem qualquer conside ração de utilidade24 mas destinadas a purificar o espírito das representações sensíveis tinham também finalidade 22 K Gaiser Philodems Academica p 154 23 Plutarco Questões de Convivas VIII 1 717 b 24 República VII 522534 97 A filosofia como modo de vida ética25 A geometria não era somente o objeto de um en sino elementar mas de investigações aprofundadas Foi na Academia que as matemáticas conheceram seu verdadeiro nascimento Lá foi descoberta a axiomática matemática que formula as pressuposições de raciocínios princípios axiomas definições postulados e põe em ordem os teo remas e os deduz uns dos outros Todos esses trabalhos conduziram meio século mais tarde à redação por Euclides de seus famosos Elemento526 Segundo a República27 os futuros filósofos só deveriam dedicarse à dialética quando tivessem adquirido certa maturidade e eles o faziam durante cinco anos de trinta a trinta e cinco anos Não sabemos se Platão aplicava essa regra em sua escola Mas necessariamente exercícios dia léticos tiveram lugar no ensino da Academia A dialética era à época de Platão uma técnica de discussão subme tida a regras precisas Uma tese era apresentada isto é uma proposição interrogativa do tipo podese ensinar a virtude Um interlocutor atacava a tese outro a defendia O primeiro atacava interrogando isto é apresentando ao defensor da tese questões habilmente escolhidas para obrigálo a respostas tais que fosse levado a admitir a contraditória da tese que queria defender O próprio in terrogador não tinha uma tese Por isso Sócrates tinha o costume de desempenhar o papel do interrogador como diz Aristóteles Sócrates costuma fazer perguntas e não 25 Ibid VII 526 e Plutarco Questões de Convivas VIII 718 ef cf I Hadot Arts libéraux p 98 26 Cf P Lasserre La naissance des mathématiques à lépoque de Platon FribourgParis 1990 27 República 539 de 98 Platão e a Academia respondêlas confessando sempre nada saber28 A dialética não ensinava só a atacar isto é a conduzir judiciosamente as interrogações mas também a responder frustrando as armadilhas do interrogador A discussão de uma tese será a forma habitual de ensino29 até o século I aC A formação para a dialética era absolutamente necessária na medida em que os discípulos de Platão eram destinados a desempehhar seu papel na cidade Em uma civilização que tinha por centro o discurso político era preciso formar para um perfeito domínio da palavra e do raciocínio Aos olhos de Platão ela era em contrapartida perigosa pois arriscavase a fazer que os jovens acreditassem que se poderia defender ou atacar qualquer posição A dialética platônica não é um exercício puramente lógico Ela é antes de tudo um exercício espiritual que exige dos Iiiirtocutores uma ascese uma transformação deles mesmos Não se trata de uma luta entre dois indivíduos na qual o mais hábil imporá seu ponto de vista mas de um esforço realizado em comum por dois interlocutores que querem estar de acordo com as exigências racionais do discurso sensato do lógos Opondo seu método ao dos erísticos contemporâneos que praticavam a controvérsia por si mesma Platão30 escreve Quando dois amigos como tu e eu fazem humor é neces sário usar isso de uma maneira mais doce e mais dialética Entendo por mais dialética não só o Jato de dar respostas verdadeiras mas também fundar sua resposta sobre aquilo que o interlocutor reconhece saber 28 Aristóteles Refutações sofísticas 183 b 7 29 a adiante pp 156157 e vejase P Hadot Philosophie Dialectique Rhétorique dans lAntiquité in Studia Philosophica 39 139166 1980 30 Mênon 75 cd 99 A filosofia como modo de vida Um verdadeiro diálogo não é possível se não se quer realmente dialogar Graças a esse acordo entre interlocu tores renovado a cada etapa da discussão já não é um dos interlocutores que impõe sua verdade ao outro bem ao contrário o diálogo ensinalhes a pôrse no lugar do outro a superar seu próprio ponto de vista Graças a seu esforço sincero os interlocutores descobrem por eles mes mos e neles mesmos uma verdade independente deles na medida em que se submetem a uma autoridade superior o lógos Como em toda a filosofia antiga a filosofia consiste aqui no movimento pelo qual o indivíduo se transcende em alguma coisa que o supera para Platão no lógos no discurso que implica uma Xigência de racionalidade e de universalidade Além disso esse lógos não representa uma espécie de saber absoluto tratase de fato do acordo que se estabelece entre interlocutores que são levados a admitir certas posições em comum acordo no qual eles superam seus pontos de vista particulares31 Essa ética do diálogo não se traduz necessariamente por um perpétuo diálogo Sabemos por exemplo que certos tratados de Aristóteles que se opõem por seu turno à teoria platônica das ideias são apontamentos para as aulas orais que Aristóteles fazia mrAcademia ora eles se apre sentam como um discurso contínuo sob forma didática32 Mas parece que conforme um hábito que se perpetuou em toda a Antiguidade os ouvintes podiam exprimir suas opiniões após a exposição33 Houve certamente algumas 31 Cf E Heitsch Erkenntnis und Lebensführung MainzStuttgart Aka demie der Wissenschaften und der Literatur 1994 fase 9 32 I Düring Aristoteles Heidelberg 1996 p 9 33 Cf adiante p 225 100 Platão e a Academia outras expos1çoes de Espeusipo e de Eudoxo que expri miam pontos de vista muito diferentes Havia investigação em comum mudança de ideias e isso era ainda uma vez uma espécie de diálogo Platão34 concebia ademais o pensamento como um diálogo Pensamento e discurso são a mesma coisa salvo que é o diálogo interior e silencioso da alma consigo mesma que denominamos pensamento A escolha de vida platônica Essa ética do diálogo explica a liberdade de pensamento que podese vislumbrar reinava na Academia Espeusipo Xenócrates Eudoxo ou Aristóteles professavam teorias que não estavam totalmente de acordo com as de Platão nota damente sobre o tema da doutrina das Ideias e mesmo da definição do bem pois sabemos que Eudoxo pensava que o bem supremo fosse o prazer Essas controvérsias intensas entre os membros da escoladeixaram traços não só nos diálogos de Platão ou em Aristóteles mas em toda a filosofia helenística35 senão em toda a história da filoso fia Seja como for podemos concluir que a Academia era um lugar de livre discussão e que não havia ortodoxia na escola nem dogmatismo Se é assim podese perguntar sobre o que poderia se fundar a unidade da comunidade Podese dizer creio que se Platão e os outros professores da Academia tinham desa cordo sobre pontos de doutrina todos eles admitiam apesar de tudo graus diversos de escolha do modo de vida da 34 Sofista 263 e 4 35 Cf a obra de HJ Krãmer citada na p 92 nota 6 101 A filosofia como modo de vida forma de vida proposta por Platão Essa escolha de vida consistia parece antes de tudo em aderir a essa ética do diálogo da qual acabamos de fular Tratase precisamente para retomar a expressão de J Mittelstrass36 de uma forma de vida que é praticada pelos interlocutores pois na me dida em que no ato do diálogo eles se põem como sujeitos mas também se superam a si mesmos fazem a experiência do lógos que os transcende e finalmente do amor do Bem que supõe todo esforço de diálogo Nessa perspectiva o objeto da discussão e o conteúdo doutrinai têm importância secundária O que conta é a prática do diálogo e a trans formação à qual ela conduz Às vezes a função do diálogo será chocarse com a aporia e revelar os limites da linguagem a impossibilidade na qual algumas vezes se encontra de comunicar a experiência moral e existencial Finalmente tratase sobretudo para retomar a expres são de L Brisson37 de aprender a viver de modo filosó fico em uma vontade comum de praticar uma investigação desinteressada em oposição tencionada ao mercantilismo sofístico38 É já uma escolha de vida Viver de modo filo sófico é principalmente voltarse para a vida intelectual e espiritual realizar uma conyersão39 que põe em jogo toda a alma isto é toda a vida moral A ciência ou o saber jamais são para Platão um conhecimento puramente teóri co e abstrato que se poderá introduzir de modo acabado 36 J Mittelstrass Versuch über den sokratischen Dialog in Der Ges prãch Éd K Stierle und R Warning Munich 1984 p 26 37 L Brisson Présupposés et conséquences dune interprétation ésotériste de Platon in Les Études philosophiques 1994 n 4 p 480 38 Aristóteles Metafísica 1004 b 25 39 República VII 518 c 102 Platão e a Academia na alma Quando Sócrates como vimos40 dizia que a vir tude é um saber ele não entendia por saber o puro co nhecimento abstrato do bem mas um conhecimento que escolhia e queri o bem isto é uma disposição interior na qual pensamento vontade e desejo são apenas um Para Platão também se a virtude é ciência a própria ciência é virtude Podese pensar que havia na Academia uma con cepção comum de ciência como formação do homem como lenta e difícil educação do caráter como desenvol vimento41 harmonioso de toda a personalidade humana finalmente como modo de vida destinado a assegurar uma vida boa e portanto a salvação da alma42 Aos olhos de Platão a escolha do modo de vida filo sófico era o essencial É o que atesta a narração de Er na República que apresenta miticamente essa escolha como realizada na vida anterior43 É aí parece que reside para o homem o risco capital eis por que cada um de nós pondo de lado qualquer outro estudo deve preocuparse sobretudo em buscar e cultivar aquele em ver se está em situação de conhecer e descobrir o homem que lhe dará a capacidade e a ciência de discernir as boas e as más condições bem como escolher sempre e em toda parte a melhor na medida do possível Exercícios espirituais Na Carta VII Platão declara que caso não se adote esse modo de vida a vida não vale a pena ser vivida e isso 40 Cf p 63 nota 31 41 I Hadot Arts libéraux p 15 42 L Brisson Presupposés p 480 43 República X 618 b 103 A filosofia como modo de vida porque é necessário decidirse imediatamente a seguir essa via essa via maravilhosa Esse gênero de vida supõe ademais um esforço considerável que é necessário a cada dia renovar É em relação a esse gênero de vida que se distinguem aqueles que filosofam realmente daqueles que não filosofam realmente estes últimos não tendo senão um verniz exterior de opiniões superficiais 44 Platão faz alusão a esse gênero de vida45 quando evoca a figura de seu discípulo Díon de Siracusa Ele consiste em dar mais importância à virtude que ao prazer em renunciar aos prazeres dos sentidos em também observar um regime alimentar em viver cada dia de tal modo que se torna cada dia o mais possível senhor de si Como bem mostrou P Rabbow46 parece bem que certas práticas espirituais cujos traços encontramos em várias passagens dos diálogos estiveram em uso na Academia Nas últimas páginas de seu diálogo Timeu47 Platão afirma que é necessário exercer a parte superior da alma que é justamente o intelecto de tal modo que ela se harmonize com o universo e assimilese à divindade Mas ele não dá detalhes sobre a maneira de praticar esses exercícios É em outros diálogos que se podem encontrar especificações interessantes Poderseia falar de preparação para o sono quando Platão48 evoca as pulsões inconscientes que os sonhos nos 14 Carta VII 340 cd 45 Ibid 327 b 331 d 336 c 46 P Rabbow Paidagogia Die Grundlegung der abendliindischen Erziehun gskunst in der Sokratik Gõttingen 1960 p 102 47 Timeu 89d90a 48 República IX 571572 104 Platão e a Academia revelam por exemplo os desejos terríveis e selvagens de violação e de morte que existem em nós Para não se ter esses sonhos é necessário prepararse à tarde esforçandose para estimular a parte racional da alma com seus discursos interiores e investigações que a orientem para assuntos elevados entregandose à meditação acalmando assim o desejo e a cólera Notese por outro lado que Platão49 recomenda dormir pouco Não se deve dormir muito apenas o que é necessário para a saúde ora isso não será muito uma vez que venha a ser um hábito Outro exercício consiste em saber conservar a calma na infelicidade sem revoltarse50 utilizando para isso máximas capazes de mudar nossas disposições interiores Dirseá as sim que não se sabe o que é bom e o que é mau nesses tipos de acidentes que em nada ajuda indignarse que nenhuma coisa humana merece que se lhe atribua muita importância e que como no jogo de dados é necessário considerar as coisas tais como são e agir em consequência51 A mais célebre prática é o exercício para a morte ao qual Platão faz alusão no Fédon que narra precisamente a morte de Sócrates Sócrates declara que um homem que passou sua vida na filosofia tem necessariamente coragem para morrer pois a filosofia é apenas um exercício para a morte52 E ela é um exercício para a morte pois a morte é a separação entre alma e corpo e a filosofia dedicase a 49 Leis XII 808 bc 50 República X 604 bc 51 Sobre um exercício do mesmo gênero no Críton cf E Martens Die Sache des Sokrates p 127 52 Fédon i a Cf R di Giuseppe La teoria della morte nel Fedone platonico I Mulino 1993 105 A filosofia como modo de vida desligar sua alma de seu corpo O corpo com efeito causanos mil problemas por causa das paixões que engendra das necessidades que nos impõe É necessário que o filó sofo se purifique isto é que se esforce para concentrar e unir a alma para libertála da dispersão e da distração que lhe impõe o corpo Devese pensar aqui nas longas me ditações de Sócrates sobre si mesmo evocadas no Banquete durante as quais permanece imóvel sem beber ou comer Esse exercício é indissoluvelmente ascese do corpo e do pensamento despojamento das paixões para alcançar a pureza da inteligência O diálogo é em certo sentido já um exercício para a morte Pois como disse R Schaerer 53 a individualidade corporal cessa de existir no momento em que se exterioriza no lógos Esse foi um dos temas favoritos do pensamento do saudoso B Parain54 A lin guagem só se desenvolve sobre a morte dos indivíduos Na perspectiva da narração da morte de Sócrates que é o Fédon vêse assim que o eu que deve morrer se trans cende em um eu de agora em diante estrangeiro à morte pois é identificado ao lógos e ao pensamento É o que dá a entender Sócrates no fim do diálogo55 Não há meio meus amigos de convencer Críton de que o verdadeiro Sócrates é este quevos está falando e dispondo suas ideias uma por uma Imaginame já esse cadáver que serei em breve por isso pergunta como deve enterrarme Se no Fédon esse exercício é apresentado como um exer cício para a morte que precisamente liberta a alma do medo 53 R Schaerer La Question platonicienne p 41 54 B Parain Le langage et lexistence na coletânea LExistence Paris 1945 p 173 55 Fédon 115 e 106 Platão e a Academia da morte na Repúblicd6 ele aparece como uma espécie de voo da alma ou de olhar desde o alto sobre a realidade A mesquinhez de espírito é quiçá o que mais repugna a uma alma que deve tender incessantemente a abraçar no seu con junto e na sua totalidade as coisas divinas e as humanas Mas acreditas que um homem dotado de elevação de pensamento e a quem é dado contemplar todos os tempos e todos os seres possa encarar a vida humana como algo de grande Assim não pensará que a morte seja coisa a temer Ainda aqui o exercício que consiste em mudar radical mente de ponto de vista e abraçar a totalidade da realida de em uma visão universal permite vencer o medo da morte A grandeza de alma revelarseá assim como o fru to da universalidade do pensamento A filosofia descrita no TeetetrP tem o mesmo olhar do alto para as coisas aqui embaixo Seu pensamento passeia em toda parte como um voo nos astros e sobre a Terra Eis por que Platão o des creve com humor como um estrangeiro perdido no mun do humano demasiado humano que se arrisca como Tales o sábio a cair em um poço Ele ignora as lutas pelas ma gistraturas os debates políticos as festas embelezadas por torneios de flautas Ele não sabe pleitear no tribunal nem injuriar nem lisonjear As maiores propriedades lhe parecem pouca coisa habituado que é a abraçar com o olhar a Terra inteira Ele zomba da nobreza pretensamente asse gurada pelas longas genealogias Como bem notou P Rabbow58 não há aqui distinção entre a vida contemplativa 56 República VI 486 ab 57 Teeteto 173176 58 P Rabbow Paidagogia p 273 107 A filosofia como modo de vida e a vida ativa mas opos1çao entre dois modos de vida o modo de vida do filósofo que consiste em tomarse justo e bom na claridade da inteligência que é simultaneamente ciência e virtude e o modo de vida dos não filósofos estes são deixados à vontade na cidade pervertida somente por que se comprazem com as fulsas aparências de habilidade e de sabedoria porque só se deixam arrastar pela força bruta59 O Teeteto quer dizer que o filósofo parece um es trangeiro ridículo na cidade só aos olhos do homem comum que a cidade corrompeu e que só reconhece como valor a astúcia a habilidade e a brutalidade Em certa medida a ética do diálogo que é em Platão o exercício espiritual por excelência está ligada a outra marca fundamental a sublimação do amor Segundo o mito da preexistência das almas a alma viu quando ainda não tinha descido para o corpo as Formas as Normas transcendentes Caída no mundo sensível ela as esqueceu nem sequer pode reconhecêlas intuitivamente nas imagens que se encontram no mundo sensível Mas somente a Forma da beleza ainda tem o privilégio de aparecer nessas imagens de si mesma que são os belos corpos A emoção amorosa que a alma sente diante de um belo corpo é provocada pela recordação inconsciente da visão que a alma teve em sua existência anterior60 Quando a alma prova o mais humilde amor ter restre é essa beleza transcendente que a seduz Aqui reen contramos o estado do filósofo do qual fala o Banquete estado de estranheza de desequilibrio interior pois aquele que ama é dilacerado por seu desejo de unirse carnalmente ao objeto amado e seu impulso para a beleza transcendente 59 Teeteto 176 bc 60 Fedro 249 b ss 108 Platão e a Academia que o atrai por meio do objeto amado O filósofo esforçar seá para sublimar seu amor procurando tomar melhor o objeto de seu amor61 Seu amor como diz o Banquet2 dar lheá a fecundidade espiritual que se manifestará na prática do discurso filosófico Podese notar aqui em Platão a pre sença de um elemento irredutível à racionalidade discursiva herdada do socratismo o poder educativo da presença amo rosa63 Só se aprende quando se ama64 Por outro lado sob o efeito da atração inconsciente da Forma da beleza a experiência do amor diz Diotima no Banquet5 elevarseá da beleza que existe nos corpos para a que existe nas almas depois para as ações e para as ciências até a visão repentina de uma beleza maravilhosa e eterna visão análoga à que o iniciado experimenta nos mistérios de Elêusis visão que excede toda enunciação toda discursividade mas gera na alma a virtude A filosofia toma se então a experiência vivida de uma presença Da experiência da presença do ser amado elevase à experiên cia de uma presença transcendente Afirmamos acima que a ciência em Platão jamais é puramente teórica ela é transformação do ser é virtude podemos dizer agora que é também afetividade Poderse ia aplicar a Platão a fórmula de Whitehead66 O conceito 61 Fedro 253 a 62 Banquete 209 bc 63 Cf acima pp 5758 64 Goethe Conversas com Eckermann 12 de maio de 1825 65 Banquete 210212 66 Citada por A Parmentier La philosophie de Whitehead et le probteme de Dieu Paris 1968 p 222 nota 8 O conceito é sempre revestido de emoção isto é de esperança ou de temor ou de repulsão ou de ardente aspiração ou de prazer de análise 109 A filosofia como modo de vida é sempre revestido de emoção A ciência mesmo a geo metria é um conhecimento que envolve toda a alma que é sempre ligada a Eros ao desejo ao impulso e à escolha A noção de conhecimento puro isto é de puro entendi mento diz ainda Whitehead67 é totalmente estranha ao pensamento de Platão A era dos professores ainda não chegou O discurso filosófico de Platão Até agora falamos apenas do diálogo oral tal qual de veria ser praticado na Academia mas do qual só podemos fazer uma ideia por exemplos de diálogos que encontramos na obra escrita de Platão e várias vezes para simplificar nós os citamos empregando a fórmula diz Platão Contudo essa figura é muito inexata pois em sua obra escrita Platão nada diz em seu próprio nome Enquanto antes dele Xenófanes Parmênides Empédocles os sofistas e Xenofonte não deixam de falar na primeira pessoa ele faz falar personagens fictícias em situações fictícias Apenas na Carta VII faz alusão à sua filosofia descrevendoa antes de tudo como um modo de vida e sobretudo declarando que sobre o objeto de suas preocupações nunca redigiu obra escrita e que jamais fará isto pois tratase de um saber que não pode absolutamente ser formulado como os outros saberes mas que brota da alma no momento em que ela teve uma longa familiaridade com a atividade em que consiste e à qual consagrou sua vida68 67 Id ibid p 410 n 131 68 Carta VII 341 c llO Platão e a Academia Podese perguntar por que Platão escreveu diálogos O discurso filosófico falado é com efeito a seus olhos bem superior ao discurso filosófico escrito É que no discurso oral69 há a presença concreta de um ser vivo um verdadeiro diálogo que liga duas almas uma troca na qual 6 discurso como diz Platão pode responder às questões que se lhe põem e defenderse por si mesmo O diálogo é portanto personalizado ele se dirige a essa pessoa e corresponde a suas possibilidades e necessidades Como na agricultu ra é necessário tempo para que a semente germine e se desenvolva é necessário muita conversa para fazer nascer na alma do interlocutor um saber que como dissemos será idêntico à virtude O diálogo não transmite um saber acabado uma informação mas o interlocutor conquista seu saber por seu esforço próprio descobreo por si mesmo pensa por si mesmo Ao contrário o discurso escrito não pode responder às questões é impessoal e pretende dar imediatamente um saber acabado mas que não tem a dimensão ética que representa uma adesão voluntária Só há verdadeiro saber no diálogo vivo pp Se apesar de tudo isso Platão escreveu diálogos tal vez seja antes de mais nada porque quis dirigirse não só aos membros de sua escôla mas aos ausentes e desco nhecidos O discurso escrito rola por todos os lugares70 Os diálogos podem ser considerados obras de propagan da ornadas com todos os prestígios da arte literária mas destinadas a converter à filosofia Platão os lia nas sessões de 69 Fedro 275277 Comparar com Político 294 c 300 c Político tra dução e notas de Jorge Paleikat e João Cruz Costa 4a ed São Paulo Nova Cultural 1987 Os Pensadores sobre os inconvenientes da lei escrita e as vantagens da palavra real 70 Fedro 275 e lll A filosofia como modo de vida leituras públicas que eram na Antiguidade os meios de fazerse conhecer Mas os diálogos eram conhecidos tam bém longe de Atenas É assim que Axioteia mulher de Fliunte tendo lido um dos livros da República vai a Atenas para tornarse aluna de Platão71 e os historiadores antigos afirmaram que ela durante muito tempo escondeu o fato de ser mulher Em uma Vida de Platão72 datada da segunda metade do século IV aC encontramos a seguinte observação Ao compor seus diálogos ele exortou muitas pessoas a filoso far mas por outro lado permitiu que muitos filosofassem de maneira superficial Contudo para converter a esse modo de vida que é a filosofia é necessário dar uma ideia do que é a filosofia Platão escolhe para tanto a forma do diálogo e isso por dois motivos Em primeiro lugar o gênero literário do diálogo socrático isto é que põe em cena como inter locutor principal Sócrates estava muito em voga na época E precisamente o diálogo socrático permite valorizar a ética do diálogo praticada na escola de Platão Podese ademais legitimamente supor que certos diálogos nos dão um eco do que foram a lisussões no interior da Aca demia Observese somente que muito viva nos primeiros diálogos a personagem de Sócrates tende a tornarse cada vez mais abstrata nos diálogos mais tardios para esvanecerse finalmente nas Leis73 71 Cf R Goulet art Axiothea in R Goulet Dictionnaire des philosophes antiques T I Paris 1994 p 691 72 K Gaiser Philodems Academica p 148 73 Cf R Schaerer La Question platonicienne p 171 J Mittelstrass Versuch über den sokratischen Dialog p 26 assinala o perigo ligado a 112 Platão e a Academia Devese reconhecer porém que essa presença irônica e amiúde lúdica de Sócrates torna a leitura dos diálogos bastante embaraçosa para o leitor moderno que gostaria de encontrar neles o sistema teórico de Platão Acrescentemse a isso as numerosas incoerências doutrinais que podem ser notadas quando se passa de um diálogo a outro74 Todos os historiadores além disso são afinal obrigados a admitir por diversas razões que os diálogos só nos revelam muito imperfeitamente o que poderia ser a doutrina de Platão aquém da filosofia platônica75 e que só nos transmite uma imagem particularmente empobrecida e restrita da atividade de Platão na Academia76 y oldschmidt1 7 a quem não se pode imputar querer m1mm1zar o aspecto sistemático das doutrinas propôs a melhor explicação desse fato dizendo que os diálogos não foram escritos para informar mas para formar Tal é desse modo a intenção profunda da filosofia de Platão Sua filosofia não consiste em construir um sistema teórico da realidade e em informar imediatamente seus leitores escrevendo um conjunto de diálogos que expõe metodica mente esse sistema mas consiste em formar isto é em transformar os indivíduos fazendoos experimentar no exemplo do diálogo ao qual o leitor tem a ilusão de assistir as exigências da razão e finalmente a norma do bem esse aagamento a gura e Sórtes dapassageU do diálogo ao monólogo e da forma de VIda filosofica a pesqmsa filosofica profissional 74 R Schaerer op cit p 67 75 Id ibid p 174 estas são como diz Aristóteles Poética 1447 b obras miméticas e poéticas 76 L Brisson Presupposés p 480 7 V Gldschmidt Les Dialogues de Platon Paris 1947 p 3 trad br de Dwn DaVI Macedo São Paulo Loyola no prelo 113 A filosofia como modo de vida Nesta perspectiva de formação o papel do diálogo escrito consiste antes de tudo em ensinar a praticar precisamente os métodos da razão métodos dialéticos e também geométricos que permitirão aprender em todos os domínios a arte da medida e da definição E isso o que nos dá a entender Platão a propósito da longa discussão que introduziu no Político78 Nas classes onde se aprende a ler quando se pergunta a alguém de que letras é formada esta ou aquela palavra Jazemolo com o intuito de leválo a resolver esse problema particular ou com o intuito de tornálo mais apto a resolver todos os problemas gramaticais possíveis Todos os problemas posí veis evidentemente Que diremos então de nossa pesquzsa sobre o político É ela ditada diretamente pelo interesse que nos inspira ou existe para nos tornar melhores dialéticos a propósito de todos os assuntos possíveis Aqui ainda evidentemente para a formação geral 1 E quanto à solução do problema apresentado encontrála de maneira mais fácil e pronta possível deve ser apenas uma preocupação secundária e não uma finalidade primordial se dermos crédito à razão que nos aconselha a preferir e a colocar em primeiro lugar o método Isso não exclui o fato de ue os diálogos tenham tam bém certo conteúdo doutrinaF9 visto que eles apresentam em geral um problema preciso e propõem ou tentam procurar uma solução Cada um forma um todo coerente 78 Político 285 cd 79 Sobre os diálogos de Platão vejase o excelente resumo de L Brisson em seu artigo Platon in M Labmne et L Jaffro Gradus philoso phique Paris 1994 pp 610613 que me inspirou para as páginS que sem Gradus philosophicus a construção da filosofia ocidenta traduçao de Cnstma Murachco São Paulo Mandarim 1996 114 Platão e a Academia mas não são necessariamente coerentes uns com os outros É notável que vários diálogos como o Parmênides ou o Sofista por exemplo tenham por objeto as condições de possibilidade do diálogo eles se esforçam exatamente para explicitar todos os pressupostos implicados n ética do verdadeiro diálogo isto é na escolha do modo de vida platônico Para que se possa compreender isso melhor ainda para que se possa compreender escolhendo o bem é necessário supor com efeito a existência de valores normativos independentes das circunstâncias das con venções e dos indivíduos que fundam a racionalidade e a retitude do discurso80 Imagina que alguém se recusa a determinar para cada objeto de discussão uma Forma umaldeia definida Então não saberá mais para onde voltar seu pensamento pois não pretendeu senão que a Ideia de cada ser seja sempre a mesma Então a possibilidade mesma de discutir fica anulada A afirmação das Formas é inerente a todo diálogo digno desse nome Mas então se apresenta o problema de seu conhecimento elas rlJ1Qdmsçr conhecidas de uma ria eJ1SÍ1rel e opoblema de sua exÍstênci l não podem ser objetossensívejL Platão seráassimlêvaõüa propor suateconadasformas inteligíveis isto é não sen síveis e será por consequência conduzido à discussão de problemas que supõem sua existência e suas relações com as coisas sensíveis O discurso filosófico de Platão fundase numa escolha intencional de dialogar numa experiência concreta e vivida do diálogo falado e vivo Ele conduz essencialmente à existência de objetos imutáveis isto é de 80 Parmênides 135 b 115 A filosofia como modo de vida Formas não senslVeis garantias da retitude do discurso e da ação e também à existência no homem de uma alma que mais do que o corpo assegura a identidade do indi víduo81 Constatase na maior parte dos diálogos por outro lado que as Formas são sobretudo valores morais que fundam nossos juízos sobre as coisas da vida humana tratase antes de tudo de procurar determinar na vida do indivíduo e da cidade graças a um estudo da medida própria a cada coisa esta tríade de valores que aparece de uma ponta a outra dos diálogos o que é o belo o que é o justo e o que é o bem82 O saber platônico como o socrático é antes de tudo um saber dos valores R Schaerer83 escreveu A essência do platonismo é e permanece portanto o supradiscursivo Ele gostaria de dizer por isso que o diálogo platônico não diz tudo não diz o que são as Normas não diz o que são as Formas nem a Razão nem o Bem nem a Beleza tudo isso é inex primível pela linguagem e inacessível a toda definição Isso se experimenta ou se mostra no diálogo mas também no desejo Mas nada se pode dizer a respeito Esse modelo socráticoplatônico de filosofia desempe nhou papel capital Ao longoae toda a história da filosofia antiga vamos encontrar esses dois polos de atividade filosó fica que acabamos de distinguir de uma parte a escolha e 81 Cf L Brisson Platon Gradus philosophique p 611 82 Esta triade aparece no Eutifron no Criton no Teeteto no Político no Fedro no Primeiro Alcibíades Primeiro Alcibíades tradução de Carlos Alberto Nunes Belém Editora Universidade Federal do Pará 1975 Eutifron seleção introdução e tradução de Jaime Bruna São Paulo Cultrix 1952 no Górgias na República no Timeu nas Leis na Carta VIL 83 R Schaerer op cit p 247 116 Platão e a Academia a prática de um modo de vida de outra um discurso filo sófico que a um só tempo é parte integrante desse modo de vida e explícita os pressupostos teóricos implícitos nesse modo de vida um discurso filosófico contudo que apare ce como incapaz de exprimir o essencial para Platão as Formas o Bem isto é isso que se experimenta de uma maneira não discursiva no desejo e no diálogo 117 Capítulo 6 firistóteles e sua escola A forma de vida teorética A representação que se faz habitualmente da filosofia de Aristóteles parece contradizer totalmente a tese fun damental que defendemos nesta obra segundo a qual a filosofia foi concebida pelos antigos como um modo de vida Não se pode negar com efeito que Aristóteles afirme vigorosamente que o saber mais elevado é escolhido por si mesmo aparentemente sem nenhuma relação com o modo de vida daquele que sabe1 Contudo essa afirmação deve ser reposta no quadro geral da representação que Aristóteles se fazia dos modos de vida e que se revela no fim que ele assinala para a es cola que funda Vimos que Aristóteles fora membro da Academia de Platão durante vinte anos o que significa que participou durante muito tempo do modo de vida platôni co É pouco provável que quando em 335 ele funda em Atenas sua própria escola filosófica cuja atividade realizava se nos limites do ginásio denominado Liceu não tenha sido 1 Aristóteles Metafisica I 982 a 15 119 A filosofia como modo de vida influenciado pelo modelo da Academia mesmo que dese jasse propor à sua escola fins diferentes dos fins da escola de Platão Podese notar na origem da escola de Aristóteles como na origem da Academia a mesma vontade de criar uma instituição durável2 A escolha do sucessor de Aristóteles se fazia por eleição e sabemos também que um dos me bros da escola era encarregado da administração matenal da instituição o que supõe uma vida comum 3 Como na Academia há duas espécies de membros os anciãos qe participam do ensino e os jovens e há como na Aaem1a certa igualdade entre os anciãos por exemplo nstotele Teofrasto Aristoxeno e Dicearco O acesso a escola e também inteiramente livre Mas há profunda diferença entre o projeto da escoa de Aristóteles e o projeto platônico A escola de Platao tem essencialmente uma finalidade política mesmo sen do lugar de intensa atividade de investigação matemática e de discussão filosófica Platão considera suficiente ser filósofo para poder dirigir a cidade a seus olhos há unidade entre filosofia e política Ao contrário a escola de Aristóteles como bem mostrou R Bodéüs 4 só forma para a vida filosófica O ensino prático e político dirigirseá a um plÍbllco mais amplo a homens políticos de fora d escola mas que desejam se instruir sobre a melhor mane1 2 P Lynch Aristotles School pp 68105 3 Diógenes Laércio Vida dos filósofos V 4 4 R Bodéüs Le Philosophe et la cité Recherches sur les rapports entr m rale et politique dans la pensée dAristote Paris 1982 17 G B1en D TheoriePraxis Problem und die politische Philosoph1e be1 Plato und Aris toteles in Philosophisches Jahrbuch 76 264314 19681969 120 Aristóteles e sua escola ra de organizar a cidade Aristóteles distingue entre a fe licidade que o homem pode encontrar na vida política na vida ativa é a felicidade que pode conduzir à prática da virtude na cidade e a felicidade filosófica que corres ponde à theoría isto é a um gênero de vida consagrado totalmente à atividade do espírito5 A felicidade política e prática só é felicidade aos olhos de Aristóteles de modo secundário6 Já a filosófica encontrase na vida segundo o espírito7 que se situa na excelência e na virtude mais elevada do homem correspondente à parte mais elevada do homem o espírito e subtraída aos inconvenientes que comporta a vida ativa Ela não é submetida às intermitên cias da ação não produz prostração Conduz a prazeres maravilhosos que não são misturados a dor ou a impure za mas estáveis e sólidos Esses prazeres são por outro lado maiores para aqueles que alcançam a verdade e a realidade do que para aqueles que ainda a buscam Ela assegura a independência em relação ao outro na medida em que especifica Aristóteles em contrapartida se assegu ra a independência em relação às coisas materiais Aquele que se consagra à atividade do espírito depende unicamen te de si mesmo sua atividade será talvez melhor caso tenha colaboradores porém quanto mais se é sábio mais se poderá ser só A vida segundo o espírito não procura outro resultado senão a si mesma é amada por si mesma 5 Aristóteles Política Vll 2 1324 a 30 MCh Bataillard La Structure de la doctrine aristotélicienne des vertus éthiques these Université de Paris IV Sorbonne p 348 que distingue na realidade três graus éticos em Aristóteles o homem médio o homem belo e bom e o contemplativo P Demont La cité grecque archaique et classique et lidéal de tranquillité Parill 1990 p 349 G Rodier Études de philosophie grecque Paris 1926 p 215 6 Aristóteles Ética a Nicômaco X 1178 a 9 7 Id ibid X 1177 a 121178 a 6 121 A filosofia como modo de vida é para si mesma seu próprio fim e poderseia dizer sua própria recompensa A vida segundo o espírito conduz também à ausência de perturbação Praticando as virtds morais envlvese cada vez mais na luta contra as parxoes mas tambem em muitos cuidados materiais para agir na cidade é necessário misturarse às lutas políticas para Yudar os outros é ne cessário ter dinheiro para praticar a coragem é necessário ir à guerra Ao contrário a vida filosófica se de viver no ócio no distanciamento dos cuidados matena1s Essa forma de vida representa a forma mais elevada de felicidade humana mas podese dizer ao mesmo tempo que essa felicidade é sobrehumana8 Não será na medida em que é homem que ele viverá assim mas na medida em que possui em si algo de divino Paradoxo que corresponde à ideia paradoxal e enigmáti ca que Aristóteles tem do intelecto e do espírito o intelecto é o que existe de mais essencial no homem ao mesmo tempo é alguma coisa de divino que se manifesta para o homem de modo que é o que transcende o homem e qe constitui sua verdadeira personalidade como se a essenCia 9 do homem consistisse em ser supenor a SI mesmo O espírito é o próprio homem já que é sua parte dominante e a melhor dentre as que o compõem Como em Platão a escolha filosófica conduz o eu in dividual a ultrapassarse em um eu superior a elevarse a um ponto de vista universal e transcendente 8 Id ibid X 1177 b 27 e Geração dos animais IX 737 a 910 9 Ética a Nicômaco X 1178 a 2 122 Aristóteles e sua escola Em certo sentido o paradoxo inerente à vida do espírito em Aristóteles corresponde ao paradoxo inerente à noção de sabedoria oposta à filosofia no Banquete de Platão A sabedoria ali foi descrita como um estado divino por si inacessível ao homem e entretanto o filósofo aquele que ama a sabedoria a deseja Sem dúvida Alistóteles não afirma que essa vida do espírito seja inacessível e que se deva contentarse em progredir para ela mas ele reco nhece que não a podemos atingir senão na medida do possível 10 isto é tendo em consideração a distância que separa o homem de Deus e diríamos o filósofo do sábio ele reconhece também que só a podemos atingir em raros momentos Quando Aristóteles11 quer fazer compreender o que é o modo de vida do primeiro princípio o Pensa mento pelo qual se sustentam o mundo dos astros e o da natureza sublunar declara que seu modo de vida é comparável àquilo que para nós é o modo de vida melhor visto que não podemos viver senão por pouco tempo pois ele permanece sempre nesse estado quando isso para nós é impossível Para Deus o ato de contemplação é a beatitude so berana Se Deus portanto está perpetuamente em um estado de ale gria comparável àquele a que nós algumas vezes conseguimos chegar isto é admirável e se ele está em um estado de maior alegria ainda isto é ainda mais maravilhoso Assim o cume da felicidade filosófica e da atividade do espírito isto é a contemplação do Intelecto divino só é 10 Ibid X 1177 b 33 11 Metafísica XII 7 1072 b 14 e 25 123 A filosofia como modo de vida acessível ao homem em raros momentos pois é próprio da condição humana não poder ser em ato de maneira contínua12 Isso supõe que no resto do tempo o filósofo deve contentarse com a felicidade inferior que consiste em investigar Há graus diversos na atividade de theoría Parece que para Aristóteles a filosofia consiste em um modo de vida teorético Em relação a isso é importan te não confundir teorético com teórico Teórico é uma palavra que tem precisamente origem grega mas não aparece em Aristóteles e significa em outro regiStro que não o filosófico o que se refere ao que se vê Na linguagem moderna teórico opõese à prático como o que é abstrato especulativo em oposição ao que tem relação com a ação e o concreto Poderseá portanto nessa perspectiva opor um discurso filosófico puramente teórico a uma vida filosófica praticada e vivida Mas o pró prio Aristóteles só emprega a palavra teorético e a utiliza para designar por um lado o modo de conhecimento que tem por fim o saber pelo saber e não um fim exterior a si mesmo e por outro o modo de vida que consiste em consagrar sua vida a esse modo de conhecimento Neste último sentido teorético não se opõe a prático em outras palavras teorético pode aplicarse a uma filosofia prática vivida ativa que leva à felicidade Aristóteles diz explicitamente13 A vida prática não é necessariamente voltada para o outro como o pensam alguns e não são somente os pensamentos que visam resultados produzidos pelo agir que são práticos pois são práticas bem mais ainda as atividades do espírito 12 Ética a Nicômaco X 1175 a 4 e 26 13 Política VII 3 8 1325 b 124 Aristóteles e sua escola theoriai e as reflexões que têm seu fim em si mesmas e se desenvolvem em vista de si mesmas Nas linhas que seguem Aristóteles dá a entender que o modelo dessa ação contemplativa é Deus e o universo que não exercem nenhuma ação voltada para o exterior mas se tomam a si mesmos como objeto dé sua ação Afigurase aqui ainda uma vez que o modelo de um conhecimento que não procura nenhum outro fim senão a si mesmo é o Intelecto divino o Pensamento que se pensa que não tem outro oQjeto nem outro fim além de si mesmo e não está interessado em outra coisa Nesta perspectiva a filosofia teorética é ao mesmo tempo uma ética Assim como a práxis virtuosa consiste em escolher como fim tão somente a virtude14 em que rer ser um homem bom sem procurar outro interesse particular da mesma maneira a práxis teorética é o próprio Aristóteles que nos induz a arriscar essa fórmula aparentemente paradoxal consiste em escolher como fim apenas o conhecimento em querer o conhecimento por ele mesmo sem perseguir outro interesse particular e egoísta estranho ao conhecimento É uma ética do de sinteresse e da objetividade Os diferentes níveis da vida teorética Como conceber essa vida segundo o espírito Devese com I Düring15 definila como uma vida de sábio Caso se 14 Ética a Nicômaco VI 1144 a 18 15 I Düring Aristoteles Heidelberg 1996 p 472 125 A filosofia como modo de vida considerem as atividades realizadas na escola de Aristóteles é bem verdade que se será obrigado a reconhecer que a vida filosófica apresentese nela sob os traços do que se poderia denominar grande empresa científica Aristóteles revelase nesta perspectiva um grande organizador de pesquisa16 A escola de Aristóteles dedicase a uma imensa caça de informações em todos os domínios Reúnemse todas as espécies de dados históricos por exemplo a lista dos vencedores dos Jogos Píticos sociológicos as constituições das diferentes cidades psicológicos ou filo sóficos as opiniões dos antigos pensadores ColetamSe também inumeráveis observações zoológicas ou botânicas Esta tradição continuará sendo valorizada no curso dos anos na escola aristotélica Esses materiais porém não são destinados a satisfazer uma curiosidade vã O investigador aristotélico não é um simples colecionador de fatos 17 Com piladores são para fazer comparações e analogias instaurar uma classificação dos fenômenos fazer que se percebam as causas em estreita colaboração entre a observação e o raciocínio na qual por outro lado diz Aristóteles é neces sário fiarse mais à observação dos fatos que ao raciocínio e ao raciocínio somente à medida que ele concordar com os fatos observados18 Portanto é indiscutível que a vicia do espíti para Aristóteles consiste em grande médid cm obserél irÍ vestigar e refletir sobre essas observações Mas essa ativi 16 Cf W Jaeger Aristotle Oxford University Press 1967 1 a ed 1934 capítulo XIII The Organization ofResearch I Düring Aristoteles pp 524 ss 17 L Bourgey Obseroation et expérience chez Aristote Paris 1955 pp 69 ss 18 Geração dos animais 760 b 30 126 Aristóteles e sua escola dade se faz em certo espírito que se poderia ousar definir como uma paixão quase religiosa pela realidade em todos os seus aspectos sejam eles humildes ou sublimes por quanto em todas essas coisas se encontra um traço do dvio Nada de mais instrutivo sobre isso que as primeiras pagmas do tratado de Aristóteles Das partes dos animais19 no qual ele apresenta simultaneamente os domínios e as mtivações da investigação Depois de ter distinguido nas c01sas naturais as que não geradas e incorruptíveis exis tem por toda a eternidade e as que são submetidas à geração e à destruição Aristóteles opõe os meios que temos para conhecêlas Sobre o que é feito de substâncias eter nas isto é os astros e as esferas celestes nossos conheci mentos são bem escassos apesar do grande desejo que temos de conhecêlos ao passo que sobre as substâncias perecíveis que estão a nosso alcance dispomos de muitos dados E a razão pela qual Aristóteles convida a consagrar se ao estudo desses dois domínios da realidade é o prazer ao qual seu conhecimento20 conduz Os dois estudos têm cada um seu atrativo Para os seres eter nos mesmo que tenhamos pouco contato com eles contudo em razão da excelência desse conhecimento ele nos dá mais alegria do que aquele que podemos extrair das coisas que estão ao nosso alcance do mesmo modo que a visão furtiva e parcial das pessoas amadas nos dá mais alegria do que a obervação precisa de muitas outras coisas por maiores que sryam Contudo de outro lado pela extensão e certeza dos conhecimentos a ciência das coisas terrestres tem vantagem 19 Das partes dos animais 644 b 22 ss 20 Ibid 644 b 31 Vejamse para este texto a tradução e as notas de JMLe blond Aristote philosophe de la vie Paris 1945 pp 116 ss 127 A filosofia como modo de vida Alguns continua Aristóteles dirão talvez que para estudar a natureza viva é necessário ocuparse com reali dades desprezíveis Aristóteles responde a essa inquietação evocando ainda o prazer da contemplação Verdadeiramente certos seres não oferecem um aspecto agra dável contudo a natureza que os fabricou com arte produz prazeres inestimáveis para aqueles que quando os contemplam podem conhecer as causas e que são os filósofos de verdade E por outro lado seria insensato e absurdo encontrarmos prazer ao contemplar as imagens desses seres porque neles nós colhemos ao mesmo tempo a arte por exemplo do escultor ou do pintor que os fabricou mas examinandoos fabrica dos pela natureza nós experimentamos uma alegria maior ainda por essa contemplação ao menos se pudermos colher as causas Não se pode portanto deixar possuir por uma repugnância pueril pelo estudo dos animais menos nobres visto que em todas as obra da natureza há alguma coisa de maravilhoso Assim como se diz que Heráclito quando estrangeiros vieram visitálo e o encontraram aquecendose junto à lareira ordenoulhes que entrassem sem temor pois ali também havia deuses do mesmo modo devese abordar sem aversão o estudo de cada espécie de animal pois em todos se manifesta algo de natural e belo Percebemse neste texto as tendências profundas que animam a vida segundo o espírito o modo de vida teoré tico Se experimentamos alegria ao conhecer tanto os astros como os seres da natureza sublunar é porque nisso encon tramos direta ou indiretamente um signo da realidade que nos atrai de maneira irresistível o primeiro princípio que move todas as coisas diZ Aristóteles21 como o objeto 21 Metafísica XII 1072 b 4 128 Aristóteles e sua escola de seu amor move o amante Os astros e as esferas celestes que são princípios de atração nos dão tanto prazer quan do os observamos quanto a visão furtiva e imprecisa da pessoa amada Quanto ao estudo da natureza ele nos dá prazer na medida em que nele descobrimos uma arte di vina O artista apenas imita a arte da natureza e em certo sentido a arte humana é apenas um caso particular da arte fundamental e original que é a da natureza A gatural é superior a toda beleza artística Mas dir seá existem coisas repulsivas Sim mas elas não se tornam belas para nós quando a arte as imita22 Se temos prazer o ver a reprodução pelo artista de coisas feias e repulsivas e que admiramos a arte com a qual o artista as imitou Noeos ridamente que é precisamente na época he lemstlca miCiaa no tempo de Aristóteles que a arte gre ga tornase realista representando temas vulgares persona gens de classe inferior ou animais de todo gênero2 No entan se nessas obras de arte temos prazer em observar a habilidade do artista por que não admirar na realidade de suas produções a habilidade da natureza tanto mais ue é do interior que ela faz criar os seres vivos que ela e de alguma maneira uma arte imanente Encontraremos prazr em studar todas as obras da natureza se procurarmos sua mtençao a finalidade que ela buscou em sua ação I Sedo Aistóteles pressentimos na natureza uma pre sença d1Vlna E o sentido da palavra de Heráclito que ele evoca Os estrangeiros que visitam o filósofo aguardam para ser recebidos no compartimento principal da casa no qual 22 Poética 1448 b 10 23 J Onias Art and Thought in the Hellenistic Age The Greek World View 35050 BC London 1979 p 29 relação entre a filosofia de Aristóteles e a arte helenística 129 A filosofia como modo de vida se encontra o salão em que arde o fogo em honra de Réstia mas Heráclito convidaos a ir até a lareira da cozi nha2 pois todo fogo é divino Isso significa que o sagrado não é mais delimitado a certos lugares o altar de Réstia por exemplo mas é toda a realidade física o universo in teiro que é sagrado Os seres mais humildes têm sua parte de maravilhoso de divino Afirmamos a propósito de Platão25 que o conhecimento é sempre ligado ao desejo e à afetividade Podemos tornar a dizer isso em relação a Aristóteles O prazer experimentado na contemplação dos seres é o prazer que se experimen ta ao contemplar o ser amado Para o filósofo todo ser é belo pois ele sabe situálo na perspectiva do plano da natureza e do movimento geral e hierarquizado de todo o universo para o princípio que é o desejável supremo Essa estreita ligação entre conhecimento e afetividade exprime se na fórmula da Metafísica26 O desejável supremo e o inteligível supremo se confundem Novamente o modo de vida teorético revela sua dimensão ética Se o filósofo encontra seu prazer no conhecimento dos seres é que ele nada deseja afinal além disso que o conduz ao desejável supremo Podese exprimir a ideia retomando a obser vação de Kant27 Tomar um interesse imediato pela beleza da natureza é sempre sinal de uma boa alma A razão disso é diz Kant que essa alma tem prazer não só com a 24 L Robert Héraclite à son fourneau in id Scripta Minora pp Nlll Cf pp 108110 26 Metafísica XII 1072 a 26 ss 27 Crítica da faculdade do juízo 42 tradução de Valerio Rohden e Antônio Marques Rio de Janeiro Forense Universitária 1993 130 7 i t Aristóteles e sua escola forma do ser natural mas com sua ex1stencia sem que um atrativo sensorial tenha participação nisso ou também ligue isso a qualquer fim O prazer que se tem com a be leza da natureza é de alguma maneira e paradoxalmente um interesse desinteressado Na perspectiva aristotélica esse desinteresse corresponde ao afastamento de si pelo qual o indivíduo se eleva ao nível do espírito do intelec to que é seu verdadeiro eu e toma consciência da atra ção que exerce sobre ele o princípio supremo desejável supremo e inteligível supremo Podese definitivamente definir a vida teorética como uma vida de sábio Em minha opinião a noção de sábio em seu sentido moderno é demasiado limita da para abarcar atividades tão diversas quanto a redação do catálogo dos vencedores nos Jogos Píticos e a reflexão sobre o ser enquanto ser a observação dos animais e a demonstração da existência de um princípio primeiro do movimento do universo É difícil considerar atividade de sábio uma atividade do espírito que segundo Aristóteles é análoga em certos instantes privilegiados à atiYidafe do princípio primeiro que é pensamento do pensamento Já vimos28 como Aristóteles procura fazer compreender o que pode ser a beatitude do pensamento divino comparandoa ao que experimenta em raros momentos o intelecto hu mano Parece que a beatitude do intelecto humano chega a seu ponto mais elevado quando em certos momentos ela pensa em uma intuição indivisível na indivisibilidade da beatitude divina29 Não há nada mais distante da teoria que a teorética isto é a contemplação 28 Cf pp 123124 29 Metafísica Xll 1075 a 5 Comme il en est à certains moments pour lintellect humain au moins lorsquil na pas conjectura muito provável de Diauo em sua edição da Metafísica Bari 1948 pour oJiet des choses composées 131 A filosofia corno modo de vida Antes que de uma vida de sábio é necessário falar da vida dedicandose à sabedoria da vida filosófica na medida em que a sabedoria representa para Aristóteles a perfeição da theoría Para ele o intelecto humano está distante de possuir essa perfeição da qual só se aproxima em certos instantes A vida teorética comporta múltiplos níveis hierarquizados do mais humilde ao mais elevado e por outro lado o próprio Aristóteles como vimos ao falar da felicidade da theoría considera que a felicidade daquele que procura é inferior à daquele que sabe O elo gio que Aristóteles faz da vida segundo o espírito é a um só tempo a descrição de um gênero de vida efetivamente praticado por ele mesmo e pelos membros de sua escola e um programa ideal um projeto um convite a elevarse por meio de degraus para um estado a sabedoria que é mais divino que humano30 Somente Deus pode desfrutar i esse privilégio Os limites do discurso filosófico As obras de Aristóteles são fruto da atividade teorética do filósofo e de sua escola Mas o discurso filosófico des car ce nest pas en telle ou telle partie quil possede le bien mais dans une certaine totalité indivisible quil a le bien le plus haut qui est différent de lui il en est de mêrne pour toute létemité pour la Pensée qui est pensée dellernêrne Vejase também Teofrasto Metafísica 9 b 15 trad J Tricot Ce qui est peutêtre plus vrai cest que la conternplation des Réalités de ce genre se fait au moyen de la raison ellernêrne qui les saisit imrnédiate ment et entre cornrne en contact avec ellesce qui explique quil ne puisse y avoir aucune erreur à leur sujet N do T corno o autor procurou fazer nesta passagem urna comparação entre as traduções de Diano e de Tricot mos por manter as duas citações em francês 30 Metafísica I 982 b 30 132 Aristóteles e sua escola concerta o leitor moderno não só por sua concisão muitas vezes exasperante mas sobretudo pela incerteza de seu pensamento no que concerne aos pontos de vista mais importantes de sua doutrina por exemplo a teoria do intelecto Não se encontra nele uma exposição exaustiva e coerente de teorias que constituiriam as diferentes par tes dos sistema de Aristóteles31 Para explicar esse fenômeno é necessário antes de tudo retornar ao ensinamento do filósofo no interior da escola da qual é inseparável Como Sócrates como Platão o que ele quer antes de tudo formar discípulos Seu ensinamento oral e süâoora escrita dirigemse sempre a um auditório determinado A maior parte de seus tratados salvo talvez os de moral e de política sem dúvida destinados a um público mais amplo são o eco das lições orais que deu em sua escola Entre essas obras muitas não formam unidade por exemplo a Metafísica ou o tratado Do Céu são a reunião artificial de escritos que correspondem a cursos dados em momentos muito diferentes Foram os sucessores de Aristóteles e sobretudo seus comentadores32 que realizaram esse agrupamento e interpretaram sua obra como se ela fosse a exposição teórica de um sistema de explicação de toda a realidade Quando Aristóteles elabora um curso não se trata como bem disse R Bodéüs33 de um curso no sentido moderno do termo curso ao qual assistiram alunos preo cupados em tomar notas do pensamento do mestre em vista de Deus sabe qual estudo posterior Não se trata de in formar de entornar no espírito dos ouvintes um conteúdo 31 I Düring Aristoteles pp 2930 32 R Bodéüs Le Philosophe et la cité p 26 33 Id ibid op cit p 162 133 A filosofia como modo de vida teórico mas de formálos e tratase também de realizar uma investigação comum é essa a vida teorética Aristóteles espera de seus interlocutores uma discussão uma reação um juízo uma crítica34 O ensino permanece sempre e fundamentalmente um diálogo Os textos de Aristóteles tal qual nos chegaram são notas de preparação de cursos aos quais se acrescem correções e modificações do próprio Aristóteles ou de suas discussões com os outros membros da escola E os cursos destinamse antes de tudo a fami liarizar os discípulos com os métodos do pensamento Aos olhos de Platão o exercício do diálogo era mais importan te que os resultados obtidos nesse exercício Do mesmo modo para Aristóteles a iSÇJSSâO dos vrobklllas élQr fim mais formadora qusua solução Nesses cursos ele mostra de modo exemplar por qual marca de pensamento por qual método devemse investigar as causas dos fenô menos em todos os domínios da realidade Agradalhe abordar o mesmo problema sob ângulos diferentes partin do de diferentes pontos de partida Ninguém mais que Aristóteles foi consciente dos limi tes do discurso filosófico como instrumento de conheci mento35 Seus limites lhe chegam antes de tudo da própria realidade Tudo o que é sírnples é inexprimível na lingua gem A discursividade da linguagem só pode exprimir o que é composto o que pode ser dividido sucessivamente em partes Mas a linguagem nada pode dizer dos indivisí veis por exemplo o ponto na ordem da quantidade quando muito o pode de maneira negativa negando i 34 Bodéüs p 162 apoiase para afirmar isso no capítulo inicial da aJlicômaco no qual o ouvinte aparece como um juiz 1094 b 27 ss i 35 R Bodéüs op cit pp 187 e ss Aristóteles e sua escola seu contrário Quando se trata de substâncias simples como o Intelecto primeiro que é o princípio de movimen to de todas as coisas o discurso não pode dizer sua essên cia mas somente descrever seus efeitos ou proceder por comparação com a atividade de nosso próprio intelecto Apenas em raros momentos o intelecto humano pode elevarse à intuição não discursiva e instantânea dessa re alidade à medida que pode imitar de algum modo a indivisibilidade do Intelecto divino36 Os limites do discurso filosófico são provenientes também de sua incapacidade de transmitir por si só a seu ouvinte o saber C01Il mais forte razão a convicção O discurso pÕrSíllãüpod g bre o ouvinte se não há colaboração da parte dele Já na ordem teorética não basta entender um discur so nem mesmo repetilo para saber isto é para chegar à verdade e à realidade É necessário primeiramente para compreender o discurso que o ouvinte já tenha uma experiência dissqAprettala o discurso uma fami liaridade com seu oqeto37 Precisase a seguir de uma lenta assimilação capa de criar na alma uma disposição permanente um habitus Os que apenas começaram a aprender uma ciência podem ali nhavar suas proposições sem todavia conhecêla Para ser real mente conhecida é necessário que elas sejam partes integrantes 36 Cf p 131 nota 29 cf P Aubenque La pensée du simple dans la Métaphysique Z 17 e Q lO in Études sur la Métaphysique dAristote org P Aubenque Paris 1979 pp 6980 Th De Koninck La noêsis et lindivisible selon Aristote in La Naissance de la raison en Grece Actes du Congres de Nice maio 1987 org JF Mattéi Paris 1990 pp 215228 37 Ética a Nicômaco VI 1142 a 12 e ss cf R Bodéüs op cit p 190 135 A filosofia como modo de vida de nossa natureza literalmente que elas cresçam conosco Ora isso é uma coisa que demanda tempo38 Como para Platão39 o verdadeiro saber aos olhos de Aristóteles só nasce por uma longa frequentação os conceitos os métodos mas também os fatos observados E necessário experimentar demoradamente as coisas pàra conhecêlas para familiarizarse tanto com as leis gerais da natureza como com as necessidades racionais ou as exigên cias do intelecto Sem esse esforço pessoal o ouvinte não assimilará os discursos e eles lhe serão inúteis Isso é ainda mais verdadeiro na ordem prática na qual não se trata somente de saber mas de praticar e de exercer a virtude Os discursos filosóficos não bastam para tornar virtuosos40 Há duas categorias de ouvintes Os primeiros já têm predisposições naturais para a virtude ou receberam uma boa educação Para estes os discursos morais podem ser úteis eles os ajudarão a transformar suas virtudes na turais ou adquiridas pelo hábito em virtudes conscientes e acompanhadas de prudência41 Nesse caso podese dízer em certo sentido que só se prega a convertidos Os segundos são escravos de suas paixões e neste caso o discurso moral não terá nenhuma influência sobre eles42 Quem é inclinado a obedecera suas paixões escutará em vão e sem proveito pois o fim não é o conhecimento mas a ação A esse gênero de ouvintes será necessário algo além de discursos para formálos para a virtude 38 Ética a Nicômaco VII 1147 a 2122 39 Carta VII 341 c 40 Ética a Nicômaco X 1179 b 45 41 Cf MCh Battaillard citado acima p 121 nota 5 pp 355356 42 Cf R Bodéüs op cit pp 185186 136 Aristóteles e sua escola É necessário trabalhar muito tempo o hábito da alma do ou vinte de modo que ela exerça bem suas propensões e repulsões do mesmo modo que retorna para a terra quem deve nutrir a sementeira Aristóteles considera que esse trabalho de educação cabe à cidade realizar pela coação de suas leis e pela coer ção Portanto é papel do homem político e do legislador assegurar a virtude de seus concidadãos e também sua felicidade pois ao organizar uma cidade ou os cidadãos eles poderão por um lado efetivamente ser educados de modo a tornarse virtuosos e por outro assegurar no seio da cidade a possibilidade de ócio que permita aos filósofos ascender à vida teorética Eis por que Aristóteles não sonha em fundar uma moral individual sem relação com a cidade4 3 mas na Ética a Nicômaco ele se dirige aos homens políticos e aos legisladores para formar seu juízo descrevendolhes os diferentes aspectos da virtude e da felicidade do homem a fim de que possam legislar de modo a dar aos cidadãos a possibilidade de praticar a vida virtuosa ou para certos privilegiados a vida filosófica Como diz excelentemente R Bodéüs44 a finalidade das Éticas e da Política é uJLQPjt1iJQ partalém do saber não se trata somente de expor em um discurso a verdade sobre certo número de questões particulares mas ainda para além disso de contribuir para a perfeição do devir humano Aristóteles como Platão funda nos homens políticos sua esperança de transformar a cidade e os homens Mas Platão considerava que os filósofos devem ser eles próprios os homens políticos que realizarão essa obra Ele propu 43 Cf id ibid op cit p 225 I Düring Aristoteles p 435 44 R Bodéüs op cit p 16 137 A filosofia como modo de vida nha aos filósofos uma escolha de vida e uma formação que os tornariam ao mesmo tempo contemplativos e ho mens de ação saber e virtude implicandose mutuamente Para Aristóteles ao contrário a atividade do filósofo na cdade deve restringirse a formar o juízo dos políticos sao estes por seu turno que deverão agir pessoalmente legislando para assegurar a virtude moral dos cidadãos O filósofo por sua parte escolherá uma vida consagrada à investigação desinteressada ao estudo e à contemplação e devese reconhecêlo independente da azáfama da vida política A filosofia é para Aristóteles como para Platão a um só tempo um modo de vida e um modo de discurso 138 Capítulo 7 jls escolas helenísticas Características gerais O período helenístico A palavra helenística designa tradicionalmente o período da história grega que se estende de Alexandre Magno o Macedônio até a dominação romana portanto do fim do século IVaC ao fim do sécul IaC Graças à extraordinária epediZãodAlJ tenderá a influência grega desde o Egito até Samarcanda e Tachkent e também até a Índia abrese uma nova época da história Podese dizer que a Grécia começa então a descobrir a imensidade do mundo É o início de trocas comerciais intensas não só com a Ásia central mas também com a China a África e igualmente com o Oriente europeu As tradições as religiões as ideias as culturas se misturam e esse encontro marcará com um cunho indelével a cul tura do Ocidente Com a morte de Alexandre seus gene rais disputam entre si seu imenso império Essas lutas resultam na formação de três grandes reinos reunidos em torno de três capitais Pele na Macedônia que exercia sua autoridade sobre a Macedônia e a Grécia Alexandria 139 A filosofia como modo de vida no Egito e Antioquia na Síria onde a dinastia dos selêu cidas reina não só na Ásia Menor mas também sobre a Babilônia Devese acrescentar a isso o reino de Pérgamo e o reino grego de Bactriano que se estende até a Índia Concordase em demarcar como fim do período helenís tico o suicídio de Cleópatra rainha do Egito no ano 30 aC após a vitória em Actium do futuro imperador Augusto Desde o fim do século III aC os romanos tinham entrado em contato com o mundo grego e tinham desco berto pouco a pouco a filosofia Em nossa exposição deveremos quase sempre fazer alusão a filósofos que vive ram sob o Império romano pouco depois do ano 30 aC porque eles nos permitiram conhecer documentos concer nentes à filosofia helenística Contudo como teremos opor tunidade de repetir1 as características da filosofia na era imperial são muito diferentes das da época helenística Apresentouse muitas vezes o período helenístico da filosofia grega como uma fase de decadência da civilização grega corrompida pelo contato com o Oriente Várias cau sas podem explicar esse juízo severo em primeiro lugar o preconceito clássico que fixa a priori um modelo ideal de cultura e decide que some11e a Grécia dos présocráticos dos trágicos e a rigor de Platão merece ser estudada em segundo lugar a ideia segundo a qual com a passagem do regime democrático ao regime monárquico e o fim da liberdade política a vida pública das cidades gregas terse ia extinguido Os filósofos abandonando o grande esforço especulativo de Platão e de Aristóteles e a esperança de formar homens políticos capazes de transformar a cidade 1 Cf adiante pp 213 ss 140 As escolas helenísticas terseiam resignado então a propor aos homens privados da liberdade política MlLrefííua YiÍllrÜF Essa representação da época helenística que remonta creio ao início do século XX2 continua a falsear a ideia que se faz da filosofia desse período Com efeito é totalmente errôneo representar essa épo ca como um período desJes1Jgg O epigrafista Louis Robert ao estudtamente as inscrições encontradas nas ruínas das cidades gregas da Antiguidade mostrou muito bem em toda sua obra que todas as cidades continua ram a ter tanto sob as monarquias helenísticas como depois no Império romano intensa atividade cultural política religiosa e mesmo atlética Ademais as ciências exatas e as técnicas conheceram então um desenvolvimento extraordi nário Notadamente sob a influência dos Ptolomeus que l reinaram em Alexandria essa cidade tornouse de alguma maneira o centro vivo da civilização helenística3 Organiza do por Demétrio de Falera fiel à tradição aristotélica que privilegiava os estudos científicos o Museu de Alexandria foi um importante lugar de investigação no domínio de todas as ciências da astronomia à medicina e nessa mesma 1 cidade a Biblioteca reunia toda a literatura filosófica e científica Grandes sábios exerceram aí sua atividade o médico Herófilo e o astrônomo Aristarco de Samos por exemplo Basta além disso citar o nome de Arquimedes de Siracusa ao mesmo tempo matemático e mecânico para 2 Notadamente G Murray FourStages ofGreekReligion NewYork 1912 3 ed 1955 pp 119 ss The Failure ofNerve Quase todos os trabalhos de historiadores da filosofia posteriores a G Murray Festugiere e Bréhier por exemplo estão contaminados por esse preconceito 3 Cf a excelente obra de B Gille Les Mécaniciens grecs Paris 1980 notadamente o capítulo sobre a escola de Alexandria pp 54 ss 141 A filosofia como modo de vida perceber a extraordinária atividade científica que se desen volve durante todo esse período A pretensa perda de liberdade das cidades não provocou a diminuição da atividade filosófica E porventura podese dizer que o regime democrático lhe foi mais favorável Não foi a Atenas democrática que instaurou um processo de impiedade contra Anaxágoras e Sócrates Não houve na orientação da própria atividade filosó fica uma transformação tão radical quanto se gostaria de fazer acreditar Dizse e repetese que os filósofos da época helenística diante de sua incapacidade de agir na cidade teriam desenvolvido uma moral do indivíduo e teriam se voltado para a interioridade As coisas são muito mais com plexas De uma parte se é verdade que Platão e Aristóteles têm cada um à sua maneira preocupações políticas não há dúvida de que a vida filosóficJL etylll meio de libertarse da corrupção política A vida segúndo ües pÍrito queeüillõilüde vfdâ ila escola aristotélica escapa aos compromissos da vida na cidade Quanto a Platão de algum modo ele formulou definitivamente para todos os filósofos da Antiguidade a atitude que o filósofo deve ter em uma cidade corrompida4 Bem diminuto ó Adimanto é pois o número restante dos que podem ter dignamente comércio com a filosofia Ora den tre este pequeno número aquele que se tornou filósofo e saboreou a doçura e a felicidade que proporciona a posse da sabedoria que viu bem a loucura da multidão e como não há por assim dizer ninguém que faça algo de sensato no domínio dos neg cios públicos aquele que sabe não possuir aliado com o qual 142 As escolas helenísticas pudesse ir em socorro da justiça sem perderse mas que ao contrário como um homem caído no meio de animais ferozes que se recusa a participar de seus crimes e é além disso inca paz de resistir sozinho a estes seres selvagens pereceria antes de ter servido à pátria e aos amigos inútil a si mesmo e aos outros penetrado por tais reflexões mantémse quieto e ocupa se de seus próprios afazeres semelhante ao viajar que duran te uma témpestade enquanto o vento levanta turbilhões de poeira e chuva se abriga atrás de um pequeno muro ele vê os outros manchados de iniquidades e é feliz se consegue viver a sua vida neste mundo isento de injustiça e atos ímpios e abandonálo sorrindo e tranquilo com uma bela esperança Quando o filósofo se dá conta de que é totalmente impotente para dar ao mundo o menor remédio para a corrupção da cidade que pode ele fazer além de praticar a filosofia É infeliz a situação na qual se encontram quase todos os filósofos da AntiguidadeS em relação ao mundo político e mesmo Marco Aurélio que embora imperador também exprimiu seu sentimento de impotência diante da incompreensão e da inércia dos súditos6 Contudo em contrapartida os filósofos da época hele nística mesmo os epicuristas7 jamais se desinteressaram da política desempenhando sempre o papel de conselhei 5 Cf L Hadot Tradition stoicienne et idées politiques au temps des Gracques in Rcvue des études atines 48 146147 1970 Le probleme du néÇJ platonisme alexandrin Hiéroclis et Simplicius Paris 1978 p 37 6 P Hadot La Citadelle intérieure Introduction aux Pensées de Marc Auri le Paris 1992 pp 308 ss 7 Por exemplo Amínias de Samos e Apolófanes de Pérgamo Vejam se os verbetes de B Puech sobre esses filósofos in R Goulet Dictionnaire des philosophes antiques t 1 A filosofia como modo de vida ros dos príncipes ou embaixadores de uma cidade como testemunham as inscrições muitas vezes gravadas em sua honra Os filósofos estoicos tiveram papel importante na elaboração de reformas políticas e sociais em vários Estados por exemplo o estoico Esfairos exerce forte influência sobre os reis de Esparta Ágis e Cleômeno o estoico Blóssio sobre o reformador romano Tibério Graco8 Algumas vezes eles se opõem corajosamente aos imperadores romanos De maneira geral os filósofos jamais renunciaram à espe rança de transformar a sociedade ao menos pelo exemplo de sua vida A vida filosófica foi extremamente vigorosa na época helenística mas desgraçadamente só a conhecemos de maneira imperfeita teríamos outra representação se todas as obras filosóficas escritas durante esse período tivessem sido conservadas até hoje Os escritos dos filósofos não eram como em nossos dias editados em milhares de exem plares amplamente disseminados Repetidamente copiados o que era um manancial para numerosos erros isso obri ga os especialistas modernos a um enorme trabalho crítico quando querem estudar esses textos eles eram muitas vezes sem dúvida vendidos em livrarias mas as obras mais técnicas eram simplesmenteCOnservadas nas bibliotecas das diferentes escolas filosóficas No decorrer dos séculos mui to desse precioso material se perdeu notadamente em Atenas por ocasião do saque da cidade por Silas em mar ço de 86 aC mas também em Alexandria Milhares de obras desaparecem assim e outros cataclismos que puseram fim ao período helenístico também destruíram tesouros de poesia e de arte cuja existência vislumbramos apenas gra 8 Cf o artigo de I Hadot Tradition stoicienne pp 133161 144 As escolas helenísticas ças às imitações feitas pelos romanos Mas para citar um único exemplo o filósofiJjum dos fundadores do estoicismo teria escrito pelo menos uns setecentos tratados Nenhum eles foi conservado apenas alguns raros frag mentos nqs foram transmitidos nos papiros dscobertos em Hercul 1ano e graças às citações feitas por autores da época romana Nossa visão da história da filosofia está irremediavelmente falseada por essas contingências histó ricas Teríamos dela uma representação totalmente dife rente se as obras de Platão e de Aristóteles tivessem de saparecido e se as dos estoicos Zenão e Crisipo tivessem sido conservadas Seja como for foi graças aos autores que viveram no mundo romano seja no tempo da Repú blica como Cícero Lucrécio e Horácio seja no tempo do Império como Sêneca Plutarco Epiteto e Marco Aurélio que preciosas informações sobre a tradição filo sófica helenística foram preservadas Eis por que seremos levados a citar esses autores embora tenham pertencido a uma época posterior Influências orientais A expedição de Alexandre teve alguma influência sobre a evolução da filosofia grega É certo que ela favo receu o desenvolvimento científico e técnico graças às observações geográficas e etnológicas que permitiu realizar Sabese que a expedição de Alexandre tornou possível encontros entre sábios gregos e sábios hindus Notada mente um filósofo da escola de Abdera Anaxarco e seu alno Pirro de Élis acompanharam o conquistador até a India e contase que Pirro ao retornar viveu retirado do mundo porque teria ouvido um indiano dizer a 145 A filosofia como modo de vida Anaxarco que este era incapaz de ser u mestre pois frequentava os cursos reais9 Nesses contatjs não parece que ele tenha sofrido realmente mudanças de ideias de confrontação de teorias Pelo menos não temos disso nenhum sinal evidente Mas os gregos ficaram impressio nados pelo modo de vida10 daqueles que eles denomina vam os ginosofistas os sábios nus O historiador e filósofo Onesícrito que também participara da expedição ao escrever uma narrativa pouco tempo depois da morte de Alexandre relata muitos detalhes sobre seus costumes e sobre seu suicídio com fogo Os filósofos gregos tiveram a impressão de encontrar entre os ginosofistas a maneira de viver que eles próprios recomendavam a vida sem convenção segundo a pura natureza a indiferença total ao que os homens consideram desejável ou indesejável bom ou mau indiferença que conduzia a uma perfeita paz interior à ausência de perturbação Demócrito o mestre de Anaxarco preconizara essa tranquilidade de alma 11 Os cínicos fingiam desprezar todas as convenções humanas mas descobriram entre os ginosofistas essa atitude levada ao extremo Como dirá o estoico Zenão 12 provavelmente a propósito do suicídio do sábio hindu Calano que entrara erri coritãto com Alexandre 13 Pre firo ver um único indiano queimar a fogo lento a apren 9 Diógenes Laércio Vida dos filósofos IX 6163 10 Cf C Muckensturm Les gymnosophistes étaientils des cyniques modeles in Le cynisme ancien et ses prolongements org M0 GouletCazé et R Goulet Paris 1993 pp 225239 11 Demócrito fr 191 in Les Présocratiques p 894 12 Clemente de Alexandria Stromáteis IT 20 125 l 13 Cf C Muckensturm art Calanus in Dictionnaire des philosophes antiques t li pp 57160 146 As escolas helenísticas der abstratamente todas as demonstrações feitas sobre o sofrimento Contudo sem chegar a essas situações dra máticas o que os antigos nos relatam do modo de vida de Pirro aponta esse grau de indiferença ante todas as coisas que não se pode deixar de pensar que eles se es forçavam para imitar o que viram na Índia Observese por outro lado o extremo subjetivismo de Anaxarco14 que dizia que os seres existentes não eram mais reais que um cenário de teatro e que eles se assemelhavam às imagens que aparecem a quem sonha ou está em estado de loucu ra Poderseia pensar aqui em alguma fonte oriental mas não se deve esquecer que seu mestre Demócrito15 fun dador da escola de Abdera já opunha radicalmente a realidade em si isto é os átomos e as percepções subje tivas dos sentidos A expedição de AleJfandruàLpaLece j tr PE2Y2Scl9 gançlsi ftrocessos rrªtrªJiçiQ fjJosJifica A filosofia helenística corresponde efetivamente a um desenvolvimento natural do movimento intelectual que a precedeu e torna a defrontarse muitas vezes com temas présocráticos porém sobretudo ela é profundamente marcada pelo esErgo soqático Talvez seja a própria ex periência do enconttrêõspovos que lhe tenha per mitido desempenhar certo papel no desenvolvimento da noção de cosmopolitismo16 isto é da ideia do homem como cidadão do mundo 14 Sexto Empírico Contra os lógicos I 8788 cf R Goulet art Anaxar que dAbdere in Dictionnaire des philosophes antiques t L pp 188191 15 Demócrito fr 9 in Les Présocratiques p 485 16 Cf HC Baldry The Idea of the Unity of Mankind in H Schwabl e H Diller Grecs et Barbares Entretiens sur lAntiquité classique T VIII Geneve Fondation Hardt 1962 pp 169204 Moles Le cosmopolitisme cynique in Le cynisme ancien et ses prolongements pp 259280 147 A filosofia como modo de vida As escolas filosóficas Já descrevemos os modos de vida que caracterizam as escolas de Platão e Aristóteles Mas devemos voltar a esse fenômeno muito particular que representam as escolas filo sóficas na Antiguidade e não esquecer que as condições do ensino de filosofia eram então profundamente diferentes das de nossos dias O estudante moderno só estuda filosofia porque é uma disciplina do programa dos últimos anos da escola secundária Ele pode terminar o curso quando muito apenas interessado em um primeiro contato com essa disciplina e desejando passar nos exames dessa matéria De qualquer forma é o acaso que decidirá o fato de ele encontrar um professor que pertença à escola fenome nológica existencialista desconstrucionista estruturalista ou marxista Talvez um dia ele adote intelectualmente um desses ismos Seja como for tratarseá de uma ade são intelectual que não envolverá sua maneira de viver salvo talvez no caso do marxismo Para nós modernos a noção de escola losófica evoca uiamet a ideia de uma tendência doutnnal de uma pos1çao teonca Na Antiguidade isso acontece de outra maneira Nenhu ma obrigação universitária orienta o futuro filósofo para esta ou aquela escola mas é em função do modo de vida que nela se pratica que o futuro filósofo passa a assistir a aulas na instituição escolar skholê de sua escolha17 A menos que o acaso conduzao a uma sala de aula ele não se converte de maneira imprevista a essa filosofia ao escutar um professor É o que se conta de Polêmon que após uma noite de liber 17 Sobre o vocabulário grego técnico que designa a escola como ins tituição e como tendência doutrinal cf J Glucker Antiochus and the Late Academy Gõttingen 1978 pp 159225 148 As escolas helenísticas tinagem de manhã entra por fanfarrice com um bando de pândegas na escola do platônico Xenócrates e seduzido por seu discurso decide tornarse filósofo e tornase mais tarde chefe da escola anedota edificante sem dúvida mas que poderia ser perfeitamente verossímiP8 Por volta do fim do século IV quase toda a atividade filosófica cocentrase em Atenaas quatro escolas funda das por Platao a Academia Anstoteles o Liceu Epicuro o Jardim e Zenão a Stoa Essas instituições continuaram vivas por quase três séculos Com efeito à diferença de grupos transitórios que se formavam ao redor dos sofis tas elas eram instituições permanentes não só enquanto viviam seus fundadores mas muito tempo depois de sua morte Os diferentes chefes das escolas que assim sucedem ao fundador são escolhidos o mais das vezes por um voto dos membros da escola ou designados por seu predeces sor A instituição se sustenta no chefe da escola e pela lei civil a escola não tem personalidade jurídica O fato aparece claramente nesses documentos muito interssantes que são os testamentos dos filósofos temos os de Platão Aristóteles Teofrasto Estratão Lícon e Epicuro20 e pode mos constatar que não se encontra nesses textos nenhum sinal de propriedade da escola Não se deve imaginar como se faz que as escolas filosóficas para ter personalidade jurídica devessem organizarse em confrarias religiosas consagradas às Musas De fato a legislação ateniense sobre o direito de associação não exigia estatuto particular para as instituições de ensino 18 Diógenes Laércio Vida dos filósofos IV 16 19 Cf JP Lynch Aristotles School pp 106134 20 Diógenes Laércio op cit III 41 V 11 51 61 69 X 16 149 A filosofia como modo de vida A atividade dessas escolas realizase em geral nessas complexas e múltiplas instituições que eram os ginásios a Academia o Liceu ou em outros lugares públicos como a Stoa Poikilê o Pórtico nos quais era possível reunirse para ouvir conferências ou discutir A escola tomou preci samente seu nome do lugar de reunião Há quase sempre ao menos até o fim da época hele nística coincidência entre a escola como tendência doutri nai a escola como lugar no qual se ensina e a escola como instituição permanente organizada por um fundador que é precisamente a origem do modo de vida praticado pela escola e da tendência doutrinai à qual está ligada A des truição da maior parte das instituições escolares atenienses em seguida mudará a situação Essas escolas são amplamente abertas ao público A maior parte dos filósofos mas nem todos tem como pon to de honra ensinar sem receber honorários É isso o que os opõe aos sofistas Os recursos pecuniários são pessoais ou provenientes de benfeitores como os de Idomeneu para Epicuro As necessidades da escola eram supridas por uma cotização diária de dois óbolos dois óbolos eram o salário de um escravo que trabalhava diariamente e bastava apenas como dizMenandro para pagar uma tisana21 Entre os que frequentam a escola distinguemse em geral os simples ouvintes e o grupo de verdadeiros 21 C Diano La philosophie du plaisir et la société des amis in id Studi e saggi di filosofia antica Padova 1973 pp 368369 Epicuro Opere G Arrighetti Torino 1973 pp 443 e 471 Sobre a organização da escola epicurista cf N W de Witt Epicurus and his PhilosiJjlhy University of Min nesota Press 1954 2a ed WestportConnecticut 1973 Organization and Procedure in Epicurean Groups in Classical Philology 31 205211 1936 I Hadot Seneca pp 4853 150 As escolas helenísticas discípulos chamados os familiares os amigos ou os companheiros divididos em jovens e velhos Os verda deiros discípulos vivem muitas vezes em comunidade ou próAximos uns dos outros Relatase dos discípulos de Polmon o aluno de Xenócrates do qual falamos que cons trmram cabanas para viver perto dele22 Ademais verifica se na Academia no Liceu e na escola de Epicuro o costume de fazer refeições comuns em intervalos regulares Talvez pela organização dessas reuniões existia na Academia e no Liceu um cargo de responsabilidade que todos os membros da escola deveriam assumir alternadamente du rante vários dias23 Temos menos detalhes sobre a escola estoica fundada pr volta de 30 por Zenão de Citium que ensinava no Port1co denommado Stoa Poikilê Os historiadores antigos relaam que ele tinha muitos alunos e notadamente que o re1 da Macedônia Antígonos Gonatas escutavao quando ele residia em Atenas Como nas outras escolas há na de Zenão uma distinção entre os simples ouvintes os verda deiros discípulos Perseu por exemplo que morava em sua casa e que ele envia à corte de Antígonos Gonatas24 A evolução da atitude da cidade de Atenas com relação à filosofia desde o tempo em que ela condenara Anaxágoras e Sócrates evidenciase claramente no texto do decreto que os atenienses promulgaram em 261 aC em honra de Zenão a bemdizer sob a pressão de Antígonos Gonatas Esse decreto 25 honrava Zenão com uma coroa de ouro e 22 Diógenes Laércio op cit doravante citado D L N 19 23 D L V 4 JP Lynch op cit p 82 24 D L VII 56 e 36 25 Trad Festugiere in La Révélation dHermes Trismégiste T II Paris 1949 pp 269 e 292305 151 A filosofia como modo de vida mandava construir para ele um túmulo a expensas da ci dade O motivo era notável Observouse que Zenão filho de Mnaseas de Ctium qe por muitos anos viveu segundo a filosofia na czdade nao somente mostrou ser um homem bom em toda ocasião mas particularmente por seus incentivos à virtude e à temperança estimulou os jovens que procuravam entrar em sua escola para que tivessem a melhor conduta ofereendo a todos o mdlo de uma vida que sempre se harmonzzava com os pnnczpzos que ensinava Aqui não se louva Zenão por uas teoris mas pela educação que dá à juventude pelo genero de VIda que ea pelo acordo entre sua vida e seus discursos As comedias da época aludem à sua vida austera26 A filosofia desse homem é de Jato original ele ensina a ter fome e consegue discípulos Apenas um pao um figo como sobremesa e água para beber Observase aqui que a palavra gosofi2 convenientllvia de r A instituiço escolar estoica é muito menos monohtiCa que a esco a epicurista As linhas de emine variam nelas e obretudo diferentes tendências doutrinais se manifestam apos a morte de Zenão Aríston de Quíos Cleanto Crisipo professam sobre muitos pontos opiniões diferentes Essas opoções entre tendências continuarão durante toda a duraçao da escola estoica isto é até os séculos II e III dC Temos pouquíssimos detalhes sobre a atmosfera que reinava nas diferentes escolas estoicas 26 D L VII 27 152 As escolas helenísticas Existiram em Atenas entre os séculos N e I quatro escolas de filosofia que assumiram de um modo ou de outro uma forma institucional e tiveram de maneira geral métodos análogos de ensino Isso não quer dizer que não tenha havido escolas de filosofia em outras cidades mas elas não tiveram o pre2lltses É necessário acrescentar duas outrãs correntes que parecem extrema mente diferentes das quatro escolas otllo ou me lhor o Erronisllo porquanto a ideia de ceticismo é um fenômeno relativamente tardio e o cinismo Ambas não têm organização escolar Nenhuma das duas têm dogmas Mas são dois modos de vida o primeiro proposto por Pirro o segundo por Diógenes o Cínico e desse pon to de vista inteiramente duas haíreseis21 dllS éltÜlJds e Rensamento e clxila Como há de e um céil dépõêitãrcii o médico Sexto Empírico28 Caso se diga que uma escola haíresis é uma adesão a nu merosos dogmas que têm coerência uns em relação aos outros 1 diremos que o cético não tem escola Em contrapartida caso se diga que é uma escola haíresis um modo de vida que segue um certo princípio racional de acordo com aquilo que nos aparece 1 dizemos que é uma escola Os céticos desenvolvem por outro lado uma argumen tação para mostrar que é necessário suspender o juízo recusar sua adesão a todo dogma e alcançar assim a tran quilidade da alma Os cínicos por sua vez não argumen 27 Eleição escolha N do T 28 Sexto Empírico Fizpotiposs pirronianas I 1617 trad M0 Goulet Cazé in Le cynisme estil une philosophie in Contré Platon I Le Plato nisme dévoilé Paris Éd M Dixsaut 1993 p 279 153 A filosofia como modo de vida tam e não oferecem nenhum ensino sua própria vida que tem em si mesma seu sentido e Imphca toda uma doutrina Identidades e diferenças prioridade da escolha de um modo de vida Como vimos a propósito de Sócrates de Platão e de Aristóteles e como tornaremos a ver ao tratar das esclas helenísticas cada escola iJlcpgr lJJllwçclha d a seilIal A filosofia é amor e mvesugaçao por UllªQpçªQXl J M do da bedoria e a sabedoria é precisamente u mo de vida A escolha inicial própria a cada escola e a esco lha de um tipo de sabedoria A bemdizer à primeira vista poderseia perguntar se as concepçoes de sabedoria eram tão diferentes assim de uma escola para outra Todas as escolas helemstlcas parecem com efeito definila quase nos mesmos teos e antes de tudo como um estado de perfeita tranqmlidade da am Nessa perspectiva a filosofia aparece oo uma terape ca dos cuidados das angústias e da misena huma mise ria provocada pelas convençs e obrigações sociais para os c icos pela investigação dosfalsos prazeres para s W d t resse egms epicuristas pela perseguiçã gJlL ta segundo ósesfõteõSepelas falsas opmwes segun os ticos QuerreMquem ou não a heranç socrauca todas as filosofias helenísticas admitem com Socaes que os homens estão submersos na miséria na anustla e no mal porquanto estão na ignorância o mal nao sta nas i coisas mas nos juízos de valor que os homens atnbern a elas Tratase de os homens cuidarem de mudar seus JUIZOS 154 As escolas helenísticas de valor todas essas filosofias se querem terapêuticas29 Contudo para mlrseus juígs9g YalorQllDIlellsle razer uã escolha adTcâT mudar toda sua maneira 4J2eieifgaçasa1hãifilsfiq ele atingirá a paz interior a tranquilidade da alma Contudo por trás dessas similitudes aparentes deli neiamse profundas diferenças É necessário distinguir antes de tudo entre as escolas dogmáticas para as quais a terapia consiste emttmsforlJ2ªrosjuilQY2 QS céticos para os quais se trata sowent Q çDdêlos E sobretudo se as escolas dogmáticas concordam em reconhecer que a escolha filosófica fundamental deve corresponder a uma tendência inata no homem devese distinguir entre elas de uma parte o epicurismo para o qual é a investigação p segundo a tradição socrát5h o amor do Bem é o instin to rrifcthano oerrranlof1àr dessa pdxAh p identidade de intenção fundamental essas três escolas se fundam em escolhas existenciais radicalmente diferentes umas das outras Identidades e diferenças o método de ensino Identidades e diferenças reencontramse nos métodos de ensino Nas três escolas que acabamos de dizer se pren dem à tradição socrática o platonismo o aristotelismo e o estoicismo o ensino sempre teve apesar da transformação das condições políticas a dupla finalidade que tivera na 29 AJ Voelke La philosophie comme thérapie de lâme Études de philosophie hellénistique FribourgParis 1993 155 A filosofia como modo de vida época de Platão e Aristóteles formar direta ou indireta mente os cidadãos melhor ainda se possível os dirigentes políticos mas formar também os filósofos A formação para a vida na cidade visa atingir a habilidade da palavra por meio de numerosos exercícios retóricos e sobretudo dialé ticos e extrair no ensino do filósofo os princípios da ciên cia de governar Eis por que muitos alunos se dirigem para Atenas vindos da Grécia do Oriente Próximo da África e da Itália para receber uma formação que lhes permita posteriormente exercer uma atividade política em sua pátria Esse será o caso de muitos homens de Estado romanos l como Cícero por exemplo Ali eles aprendem ademais llnão só a governar mas a governarse a si próprios pois a formação filosófica isto é o exercício da sabedoria é des tinado a realizar plenamente a opção existencial da qual falamos graças à assimilação intelectual e espiritual dos princípios de pensamento e de vida nela implicados Para alcançar isso o diálogo vivo e a discussão entre mestre e discípulos são indispensáveis segundo a tradição socrática e platônica Sob a influência dessa dupla finalidade o ensino tende a tomar sempre uma forma dialógica e dia lética isto é a sempre preservar mesmo nas exposições magistrais o procedimento de um diálogo de uma sucessão de questões e respostas o que supõe uma relação constante ao menos virtual com indivíduos determi nados aos quais o discurso do filósofo se dirige Apresen tar uma questão denominada tese A morte é um mal O prazer é o bem supremo por exemplo e discútlla tal é o esquema fundamental de todo ensino filosófico nessa época Essa particularidade a distingue radical mente do ensino valorizado na época posterior isto é na era imperial a partir do século II dC na qual o ofício do 156 As escolas helenísticas estre era comentar textos Veremos as razões históricas essa mudança Por ora citemos um texto d d essa epoca mais ta Ia dos comentadores escrito no século II a C pelo anstotehco Alexandre de Afrod 3o ISia em seu comen o sobre os Tófncos de Aristóteles e que descreve bem a I erença entre a discussão de teses método d Própri e ensino o a epoca que estudamos e o comentário p da segumte ropno Essa forma e discurso a discussão de teses era habitual entre os ntzgos e é dessa maneira que eles davam suas auas nao cmentando os livros como é o caso agora com efezto nessa epoca não havia livros desse gênero mas send posta uma tese eles argumentavam a favor ou ontr par exerce sua facdade de criar argumentações apoiandse em premzssas admztzdas por todos A argunentação da qual fala Alexandre é exatamente m xerocw puramente dialético no sentido aristoté Ico a palara as a discussão das teses pode tomar uma forma dialetica ou retórica e também d ogmatica ou apretica Na argumentação dialética a discussão da tese Pse az por perguntas e respostas portanto num diálogo or exemplo A 1 fil fi rquesi au que considerava o discurso oso co puramente crítico pedia que seu ouvinte ro puseslse uma tese e ele a refutava apresentando quesfões que evavam pouco a 1 d pouco o mter ocutor a admitir o cora Itono tese que ele propusera3I Mas os estoicos em ora dogmaticos também praticavam em seu ensino o 30 Alexandre de Afr d I A Wall CAG o Sla n rzstotelzs Topica comment P 27 13 Ies m t II 2 Berlin 1891 3L Cf P Hadot Philosophie Dialectique Rhétori ue d m Studza Phzlosophica t 39 1980 pp 147 ss q ans l Anuqmte 157 A filosofia como modo de vida método dialético do jogo de questões e respostas Cícero reprovalhes não dar lugar suficiente aos desenvolvimentos oratórios e retóricos os únicos capazes a seus olhos de demover e persuadir32 Eles vos picam como com dardos com curtas interrogações pontuadas Mas aqueles que lhes respondem sim na argu mentação dialética quem apresentou a tese deve contentarse em responder sim ou não não são transformados em sua alma e se vão como vieram É que se os pensamentos que os estoicos experimentam talvez sejam verdadeiros e sublimes eles não são tratados por eles como deveriam ser mas de um modo um tanto amesquinhado A argumentação pode ser também retonca quando um ouvinte apresenta uma questão fornecendo também a tese isto é o tema da discussão e o mestre responde por um discurso contínuo e desenvolvido seja provando sucessivamente os prós e os contras tratase então de um puro exercício escolar ou de uma vontade de mostrar a impossibilidade de toda afirmação dogmática seja pro vando ou refutando a tese conforme ela corresponda ou não à sua doutrina é então um ensino dogmático que expõe os dogmas da escola À medida que se praticava o exercício da tese portanto um método pedagógico fun dado em um esquema questãoresposta o ensino filosófico poderia consistir em desenvolver por elas mesmas as teorias independentemente das necessidades do auditório pois o discurso era obrigado a desenvolverse no campo limitado de uma questão apresentada por detenninado ouvinte O tra 32 Cícero Dos termos extremos IV 3 7 Carta a Heródoto in Diógenes Laércio op cit pp 291302 158 As escolas helenísticas çado habitual do pensamento consistia em remontar aos princípios gerais lógicos ou metafísicos a partir dos quais essa questão poderia ser resolvida Contudo existia outro traçado dedutivQ e sistewático no pil1risrrw IloestQicismo Na escola eoicurista o exercício teciiTêo da dialética não desempenhava nenhum papel Os discursos filosóficos tinham ali uma forma re solutamente dedutiva isto é partiam de princípios para chegar às consequências desses princípios vêse isso por exemplo na 2 fergtgll esses liçlrsos eram postos a d1spos1çao do d1Sc1pulo sob a forma escrita para que este pudesse aprender de cor Como mostrou I Hadot33 o ensino epicurista começa com efeito pela leitura e memorização de breves resumos da doutrina de Epicuro apresentada sob a forma de sentenças bem cur tas depois o discípulo toma conhecimento de resumos mais desenvolvidos como a Carta a Heródoto e finalmente se o deseja pode abordar a grande obra de Epicuro Da natureza em trinta e sete livros Mas ele sempre deve voltar aos resumos para não se perder nos detalhes e ter sempre presente ao espírito a intuição da totalidade Há um vaivém contínuo entre a extensão dos conhecimentos e a concentração sobre o núcleo essencial Se acabamos de ver os estoicos utilizavam o método àialético em seu ensino não é menos verdade que também se esforçavam para apresentar sua doutrina segndo enca deamento rigorosamente sistemático que por outro lado atraía a admiração dos antigos e que eles igualmente exi 33 Cf I Hadot Épicure et I enseignement philosophique hellénistique et romain in Actes du VIlle Congres de lAssociation Guillaume Budé Paris 1969 pp 347354 159 A filosofia como modo de vida giarn de seus discípulos que tivessem sempre presente ao espírito por um esforço constante da memória o essencial dos dogmas da escola Vêse aqui a significação de que se reveste a noção de sistema Não se trata de urna construção conceitual que seria um fim em si e teria corno por acaso consequências éticas sobre o modo de vida estoico ou epicurista O sistema tem por finalidade reunir sob forma condensada os dogmas fundamentais ligálos juntamente por urna argumentação rigorosa a fim de formar um núcleo sistemático muito concentrado muitas vezes mesmo reunidos em urna curta sentença que terá assim maior força persuasiva melhor eficácia rnnernotécnica Ele tem antes de tudo um valor psicagógico é destinado a produzir um efeito na alma do ouvinte ou do leitor Isso não quer dizer que esse discurso teórico não responda às exigências de coerência lógica bem ao contrário é ela que faz sua força Mas ao exprimir ele próprio urna escolha de vida quer conduzir a urna escolha de vida O leitor moderno se admirará certamente da extraor dinária estabilidade dos princípios metodológicos ou dos dogmas na maior parte dall scolas filosóficas da Antigui dade do século IV aC até os séculos 11 ou III da nossa era Pois precisamente filosofar é escolher um modo de vida e a esse modo de vida correspondern tanto um método crítico por exemplo o dos céticos ou o dos acadêmicos dos quais tornaremos a falar corno dogmas que justificam o próprio modo de vida Para os filósofos dogmáticos corno o epicurismo ou o estoicismo o sistema isto é o conjunto coerente de dogmas fundamentais é intangível porque intimamente ligado ao modo de vida epicurista ou estoico 160 As escolas helenísticas Isso não quer dizer que toda discussão seja abolida nessas escolas a escola estoica notadamente fragmentouse rapi damente em diferentes tendências Mas as divergências e as polêmicas deixam subsistir a opção original e os dogmas que a exprimem Elas conduzem tão somente a pontos se cundários por exemplo as teorias concernentes aos fenô menos celestes ou terrestres ou o modo de demonstração e de sistematização dos dogmas ou ainda os métodos de ensino E esses discursos são reservados aos que progridem aos que assimilaram bem os dogmas essenciais34 Eis por que as filosofias dogmáticas como o epicurismo e o estoicismo têm um caráter popular e missionário as discussões técnicas e teóricas sendo ofício de especialistas podem ser resumidas para os iniciantes e os que progridem em um pequeno número de fórmulas fortemente encadea das que são essencialmente regras para a vida prática Essas filosofias reencontram assim o espírito missionário e popular de Sócrates Enquanto o platonismo e o aris totelismo são reservados a uma elite que tem ócio para estudar investigar e contemplar o epicurismo e o estoicis mo dirigemse a todos os homens ricos ou pobres homens ou mulheres livres ou escravos35 Quem adota o modo de vida epicurista ou estoico quem o põe em prática será considerado um filósofo mesmo que não desenvolva por escrito ou oralmente um discurso filosófico Em certo sentido o cinismo é também uma filosofia popular e missionária Desde Diógenes os cínicos foram ardentes propagandistas dirigindose a todas as classes da sociedade 34 Cf I Hadot op cit pp 351352 35 Cf P Hadot Les modeles de bonheurs proposés par les philoso phies antiques in La Vie spirituelle 147 698 4041 1992 161 A filosofia como modo de vida instruindo por exemplos para denunciar as convenções sociais e propor o retorno à simplicidade da vida confor me a natureza O cinismo Questionase se Antístenes discípulo de Sócrates foi o fundador do movimento cínico Em todo caso concordase em reconhecer em seu discípulo Diógenes a figura mais marcante desse movimento que embora jamais tenha sido revestido de um caráter institucional permaneceu vivo até o fim da Antiguidade O modo de vida cínico36 opõese de maneira espetacular não só ao dos não filósofos mas mesmo ao dos outros filó sofos Estes com efeito apenas se diferenciam de seus con cidadãos em certos limites por exemplo porque consagram sua vida à investigação científica como os aristotélicos ou porque levam uma vida simples e retirada como os epicu ristas A ruptura do cínico com o mundo é radical O que ele rejeita é o que os homens consideram as regras elemen tares as condições indispensáveis da vida em sociedade a propriedade o governo apolílica Ele pratica um impudor deliberado masturbandose ou fazendo amor em público como Diógenes Crates ou Hipárquia37 ele não se ocupa absolutamente com as conveniências sociais e a opinião des 36 Compilação de testemunhos in L Paquet Les Cyniques grecs Fragments et térnoignages prefácio de M0 GouletCazé Paris 1992 Vejase também M0 GouletCazé LAscese cynique Paris 1986 e as Atas do colóquio Le cynisrne ancien et ses prolongernents citado na p 146 nota 10 37 D L VI 46 69 97 162 As escolas helenísticas preza o dinheiro não hesita em mendigar não procura nenhuma posição estável na vida sem cidadé8 sem casa privado de pátria miserável errante vive o dia a dia Seu alforje contém apenas o estritamente necessário para sua sobrevivência Não teme as autoridades e exprimese em todos os lugares com uma provocadora liberdade de expres são39 parrhesia Na perspectiva que nos interessa a natureza exata da filosofia no mundo antigo o cinismo nos fornece um exemplo muito revelador pois representa uma situação limite Um historiador40 na Antiguidade perguntavase se o cinismo poderia ser considerado uma escola filosófica e se ele não era somente um modo de vida É verdade que os cínicos Diógenes Crates Hipárquia não deram nenhum ensino escolar mesmo que se possa perceber eventualmente uma atividade literária notadamente poé tica Eles formam não obstante uma escola na medida em que se pode reconhecer entre os diferentes cínicos uma relação de mestre e discípulo41 E em toda a Anti guidade concordouse em considerar o cinismo uma filo sofia mas na qual o discurso filosófico era reduzido ao mínimo Considerese por exemplo este episódio simbó lico como certa pessoa afirma que o movimento não existe Diógenes contentase em ficar em pé e andar42 A filosofia cínica é unicamente uma escolha de vida a esco lha da liberdade ou da total independência autarkeia 38 D L VI 38 39 ld VI 69 40 Id VI 103 cf o artigo de M0 GouletCazé Le cynisme estil une philosophie citado na p 153 nota 28 41 D L VI 36 7576 8284 42 Id VI 3839 163 A filosofia como modo de vida das necessidades inúteis a recusa do luxo e da vaidade typhos Essa escolha implica de maneira evidente certa concepção de vida mas ela provavelmente definida nas conversas entre mestre e discípulo ou nos discursos públi c os jamais é justificada diretamente nos tratados filosóficos teóricos Há conceitos filosóficos tipicamente cínicos porém não são utilizados em uma argumentação lógica mas servem para designar atitudes concretas correspondentes à escolha de vida a ascese a ataraxia ausência de perturbação a autarquia independência o esforço a adaptação às cir cunstâncias a impassibilidade a simplicidade ou ausência de vaidade atyphia o impudor O cínico escolhe seu gêne ro de vida por considerar que o estado de natureza physis tal qual se pode reconhecer no comportamento do animal ou da criança é superior às convenções da civilização nómos Diógenes joga fora sua tigela e sua taça ao ver crianças que dispensam esses utensílios e se sente assegurado em sua maneira de viver ao ver um rato escondido comer algumas migalhas de pão Essa oposição entre natureza e convenção fora objeto de longas discussões teóricas na época sofística mas para os cínicos não se trata de especulações mas de uma decisão que envolve toda a vida Sua filosofia é total mente exercício áskesis e sforço pois os artifícios as convenções e comodidades da civilização o luxo e a vaidade enfraquecem o corpo e o espírito Eis por que o gênero de vida cínico consistirá em uma preparação quase atlética mas refletida para suportar a fome a sede as intempéries a fim de adquirir a liberdade a independência a força interior a ausência de cuidados a tranquilidade de uma alma que será capaz de se adaptar a todas as circunstâncias43 43 Id VI 22 164 As escolas helenísticas Platão44 teria dito de Diógenes É o Sócrates enlouque cido Autêntica ou não a fórmula pode nos fazer refletir Em certo sentido Sócrates anunciava os cínicos Os poetas cômicos também zombavam do modo de andar de Sócrates de seus pés e de seu velho manto E se como vimos a figura de Sócrates se confunde no Banquete com a de Eros mendigando Diógenes vagando sem eira nem beira com seu próprio alforje não é ele outro Sócrates a figura he roica do filósofo inclassificável e estrangeiro no mundo Outro Sócrates que ele também se considera investido de uma missão ftzer que os hrnens reflitam denunciar por seus atqucs mordazes e por seu modo deViaa õs vícióseÕs erros Seu cuidado de si é indissoluvelmente um cuidado dós outros Mas se o cuidado de si socrático ao fazer chegar à liberdade interior dissolve a ilusão das aparências e das falsas semelhanças ligadas às convenções sociais preserva sempre certa urbanidade sorridente que desaparece em Diógenes e com os cínicos Pirro Pirro45 contemporâneo de Diógenes e de Alexandre qu acompanhou o Macedônio em sua expedição para a India tendo ali se encontrado com sábios orientais bem pode também ser considerado um Sócrates bastante extravagante Ele merece em todo caso nossa atenção pois estamos ainda uma vez na presença de um filósofo que embora não tenha se consagrado ao ensino 44dd VI 54 45 Id IX 6170 Compilação de testemunhos in Pirrone Testimonianze Napoli Éd F Decleva Caizzi 1981 M Conche Pyrrhon ou lapparence Villers surMer 1973 165 A filosofia como modo de vida pode discutir habilmente um filósofo que nada escreveu que se contenta em viver e atrair discípulos que imitem seu modo de vida Seu comportamento é totalmente imprevisível Às vezes se retira para uma completa solidão ou ainda parte em viagem sem avisar ninguém tomando como companheiros de rota e de conversação pessoas que encontra ao acaso Contra toda prudência afronta todos os tipos de riscos e perigos Con tinua a falar mesmo que seus ouvintes tenham partido Vendo um dia seu mestre Anaxarco caído num pântano passa sem o socorrer e Anaxarco o felicita louvando sua indiferença e impassibilidade E contudo à diferença dos cínicos ele parece comportarse de uma maneira completa mente simples e perfeitamente conforme à dos outros ho mens como o dá a entender um historiador antigo46 Pirro viveu piedosamente em companhia de sua irmã uma par teira de acordo com o testemunho de Eratóstenes em sua obra Da Riqueza e da Pobreza em que o autor narra que às vezes Pirro levava conforme a ocasião pequenas aves e leitões para vender no mercado e tirava o pó das coisas da casa com absoluta indiferença Contase ainda que ele dava outra prova de indiferença lavando um porquinho Notemos ra pidamente que esse relatoevoca sem que possa haver rela ção histórica com ela o que Tshuangtsé relata de lietsé filósofo chinês Durante três anos fica enfermo fazendo trabalhos domésticos para sua mulher e servindo os alimen tos servindo aos homens ele se toma indiferente a tudo e elimina todo ornamento para encontrar a simplicidade47 46 D L IX 66 47 Tshuangtsé in Philosophes taoistes textos traduzidos por Liou Ria Hway e B Grynpas Paris 1980 p 141 em Shitao Les propos sur la peinture 166 As escolas helenísticas O comportamento de Pirro corresponde a uma escolha de vida que se resume perfeitamente em uma palavra a indiferença Pirro vive em uma perfeita indiferença a todas as coisas Ele permanece sempre no mesmo estado48 isto é não experimenta nenhuma emoção nenhuma transforma ção de suas disposições sob a influência das coisas exterio res não dá nenhuma importância ao fato de estar presente nesse ou naquele lugar de encontrar essa ou aquela pessoa não faz nenhuma distinção entre o que é considerado ha bitualmente perigoso ou ao contrário inofensivo entre tarefas julgadas superiores ou inferiores entre o que se denomina sofrimento ou prazer a vida ou a morte Pois os juízos que os homens atribuem ao valor dessa ou daquela coisa são fundados apenas em convenções Com efeito é impossível saber se essa coisa é boa ou má E o mal dos homens é proveniente do modo como querem obter o que acreditam ser um bem ou fugir do que acreditam ser um mal Caso se recuse a fazer esse gênero de distinções entre as coisas caso se abstenha de emitir juízos de valor sobre elas e de preferir uma coisa a outra caso se diga Não mais isto que aquilo estará então em paz com tranquilidade interior e não terá mais necessidade de falar sobre essas coisas Pouco importa o que se faça a partir do momento em que se o faça com uma disposição interior de indife rença O fim da filosofia de Pirro consiste em firmarse em um estado de igualdade perfeita consigo mesmo de indi ferença total de independência absoluta de liberdade interior de impassibilidade estado que ele considera divi du moine Citrouilleamere trad e comentário de P Ryckmans Paris 1984 P Ryckmans define com esse exemplo p 12 a suprema simplicidade taoísta que é pura virtualidade e ausência de desejos 48 D L IX 63 167 A filosofia como modo de vida no49 Em outras palavras para ele tudo é indiferente salvo a indiferença que se tem pelas coisas indiferentes e que é finalmente a virtude5 donde seu valor absoluto Ad quirir essa indiferença não é tarefa fácil tratase como diz Pirro51 de desvencilharse inteiramente da debilidade humana isto é libertarse totalmente da perspectiva hu mana Essa fórmula é talvez muito reveladora Será que ela não quer dizer que desvencilhandose do homem o filósofo transforma completamente sua percepção do uni verso ultrapassando a perspectiva limitada do humano demasiado humano para elevarse a uma visão de uma perspectiva superior visão de alguma maneira sobrehuma na que revela a nudez da existência para além das opo sições parciais e de todos os falsos valores que o homem lhe acrescenta para talvez atingir um estado de simplici dade anterior a todas as distinções Caso o homem se ocupe com a prática desse despoja mento total é necessário que ele se exercite nela por meio do discurso interior isto é que rememore o princípio do não mais isto que aquilo e os argumentos que podem justificálo Pirro e seus discípulos também praticavam mé todos de meditação Relatasé2 do próprio Pirro que ele buscava a solidão e qu COllVefsava em VOZ alta COnsigo 49 Cf os versos de seu discípulo Tímon in Sexto Empírico Contra os moralistas 20 A natureza do divino e do bem sempre permanece a partir da qual advém ao homem uma vida sempre igual a si mesma Pirro aparece aqui como um dogmático como bem ressaltou F Decleva Caizzi Pirrone pp 256258 e W Gõrler resenha do livro de F Decleva Caizzi Archiv Jür Geschichte der Philosophie t 67 1985 pp 329 ss 50 Cícero Dos termos extremos II 13 43 e IV 16 43 51 D L IX 66 52 Id IX 6364 168 As escolas helenísticas mesmo como lhe perguntassem por que agia assim res pondeu Eu me exercito para ser um homem bom Seu discípulo Fílon de Atenas53 assim o descrevia Foge dos homens não se preocupa com a vanglória e com as discus sões acirradas Como a de Sócrates como a dos cínicos a filosofia de Pirro é antes de tudo uma filosofia vivida um exercício de transformação do modo de vida O epicurismo Epicuro54 c 342271 funda em 306 em Atenas uma escola que permanecerá viva nessa cidade pelo menos até o século II dC O poema de Lucrécio Da naturezrf5 ou as gigantescas inscrições que o epicurista Diógenes56 mandou gravar na cidade de Oinoanda em data incerta século I aC ou século II dC para permitir que seus concidadãos conhecessem os escritos e a doutrina de Epicuro testemunham o fervor missionário com o qual seus discípulos mesmo distantes esforçavamse para difundir sua mensagem 53 Id IX 69 54 Epicuro Lettres maximes sentences introd trad e com de JF Balaudé Paris 1994 citado Balaudé nas notas seguintes Essa obra é uma excelente introdução ao conhecimento do epicurismo Para o texto grego com tradução italiana vejase Epicuro Opere Torino Ed G Arrighetti 1973 citado Arrighetti nas notas seguintes Antologia de textos 2a ed tradução e notas de Agostinho da Silva São Paulo Abril Cultural 1980 Os Pensadores 55 Da Natureza 2a ed tradução e notas de Agostinho da Silva São Paulo Abril Cultural 1980 Os Pensadores 56 Diógenes de Oinoanda The Epicurean Inscription Napoli Ed M F Smith 1992 169 A filosofia como modo de vida Uma experiência e uma escolha No ponto de partida do epicurismo existe uma experiên cia e uma escolha Uma experiência a da carne A voz da carne diz não se deve sofrer a fome a sede e o frio aquele que é senhor disso e tem a esperança de possuílo no futuro pode lutar até mesmo com Zeus pela felicidade 57 A carne aqui não é uma parte anatômica do corpo mas em um sentido quase fenomenológico e totalmente novo parece em filosofia é o sujeito da dor e do prazer é o indivíduo Como bem mostrou C Diano58 Epicuro deveria falar de sofrimento de prazer e de carne para exprimir sua experiência pois não há outro meio de atingir e de mostrar profundamente o homem na pura e simples historicidade de seu ser no mundo e de descobrir enfim o que denominamos indivíduo esse indivíduo sem o qual não se pode falar de pessoa humana Pois é somente na carne que sofre ou se apazigua que nosso eu nossa alma emerge e revelase a si mesmo e ao outro 1 Eis por que as maiores obra de caridade 1 são as que têm por objeto a carne saciando a fome matando a sede 1 A carne não está então separada da alma se é verdade que não há prazer ou sofrimento sem que se te 57 Epicuro Sentenças vaticanas 33 Balaudé p 213 Retomo a tradu ção de JF Balaudé acrescentandolhe a menção a Zeus sem dúvida uma adição ao texto dos manuscritos mas que me parece justificada pelo kan que precede no texto grego 58 C Diano La philosophie du plaisir et la société des amis p 360 citado na p 150 nota 21 170 As escolas helenísticas nha consCiencia e sem que o estado de consciência se reproduza por sua vez na carne Uma experiência mas também uma escolha o que importa antes de tudo é libertar a carne de seu sofri mento o que lhe permite atingir o prazera Ep1c a escolha socrática e platônica em favor do amordOnem é uma ilusão na realidade ojJ1ªYiiU2 2JÍl2ill21 pela procura pLazer eJltJjrtteresse No entanto 0 ape da filosofia consistirá em saber procurar o prazer de maneira racional isto é em IEEI5 nilPfazerver dadeiro J1ll2 preç1eexistir pois toda a infelicidade td33rea dos homens provém de que eles ignoram o verdadeiro prazer Procurando o prazer são incapazes de atingilo pois não conseguem satisfazerse com o que têm ou porque procuram o que está fora de seu lcace ou porque arruínam o prazer pensando o tempo 1nte1ro que hão de perdêlo Podese dizer em certo sentido que o sofrimento dos homens é proveniente principalmente de suas opiniões vazias portanto de suas almas 59 A missão Ada filosofia a missão de Epicuro será antes de tudo terapeu tica será necessário curar a doença da alma e ensinar o homem a viver o prazer A ética A escolha fundamental será justificada então em um discurso teórico sobre a ética que proporá uma definição do verdadeiro prazer e uma ascese do desejo Nessa teoria 59 Cícero Dos termos extremos I 18 57 19 63 Cf AJ Voelke La philosophie comme thérapie de lâme pp 5972 Opinions vides et troubles de lâme 171 A filosofia como modo de vida epicurista do prazer os historiadores da filosofia descobrem com razão um eco das discussões sobre o prazer que ocor riam na Academia de Platão60 e das quais testemunham o diálogo de Platão intitulado Filebo e o livro X da Ética a Nicômaco de Aristóteles Segundo Epicuro há prazeres em movimento doces e lisonjeiros que se propagam na carne e provocam uma excitação violenta e efêmera É por procurar unicamente esses prazeres que os homens encontram a insatisfação e a dor porquanto esses prazeres são insaciáveis e tendo chegado a certo grau de intensi dade tornam a trazer sofrimentos É necessário distinguir totalmente desses prazeres móveis o prazer estável o prazer em repouso como um estado de equilíbrio É o estado do corpo apaziguado e sem sofrimento que consiste em não ter fome nem sede nem frio 61 A finalidade de todas as nossas ações é nos livrar do sofrimento e do temor e quando atingimos esse objetivo desaparece toda a tempestade da alma porquanto a criatura viva não tem ne cessidade de buscar algo que lhe falta nem de procurar coisas com que possa realizar o bem da alma e do corpo Sentimos necessidade do prazer somente quando sofremos pela ausência do prazer mas quando não srifremos não sentimos mais neces sidade do prazer Nessa perspectiva o prazer como supressão do sofrimento é um bem absoluto isto é que não pode crescer ao qual não se pode acrescentar um novo prazer do mesmo modo que um céu limpo não é suscetível de uma claridade mais 60 HJ Krãmer Platonismus und hellenistische Philosophie pp 164170 188211 216220 61 Epicuro Carta a Meneceu 128 Balaudé p 194 172 As escolas helenísticas 62 O rrV7Pr PctÍxul lC d VlVa ceiDJatwezaereuU arRcttHreza dprazere l2QY Ele se opõe ao indeterminado e ao infi nito como o repouso ao movimento como o que é fora do tempo ao que é temporal63 Talvez seja admirável ver atribuir essa transcendência à simples supressão da fome ou da sede e à satisfação das necessidades vitais Podese porém pensar que esse estado de supressão do sofrimento do corpo esse estado de equilíbrio abre à consciência um sentimento global cenestésico da própria existência tudo se passa então como se suprimindo o estado de insatisfação que o consumia na procura de um objeto particular o homem ficasse livre enfim para poder tomar consciência de alguma coisa extraordinária que já estava presente nele de maneira inconsciente o prazer de sua existência da identidade da pura existência para retomar a expressão de C Diano64 Esse estado tem alguma analogia com a felicidade suficiente perfeita e plena de que fala Rousseau65 em Les Rêveries du promeneur solitaire De que gozar em uma situação semelhante De nada exterior a si de nada senão de si mesmo e de sua própria existência contanto que esse estado dure ou baste para si mesmo como Deus Acrescentemos que esse estado de prazer estável e de equilíbrio corresponde também a um estado de tranquili dade da alma e ausência de perturbação O método para alcançar esse prazer estável consistirá em uma Com efeito se os homens são 62 Sêneca Cartas a Lucílio 66 45 Cf C Diano La philosophie du plaisir et la société des amis p 358 63 HJ Krãmer op cit p 218 64 C Diano La philosophie du plaisir et la société des amis p 364 65 JJ Rousseau Les Rêveries Paris Flammarion 1978 Cinquiême promenade p 102 G F ed br Devaneios do caminhante solitário Brasília UnB sd 173 A filosofia como modo de vida infelizes é porque são torturados por desejos imensos e vazios 66 a riqueza a luxúria a dominação A ascese dos desejos será fundada na distinção entre os desejos naturais e necessários os desejos naturais e desnecessários e enfim os desejos vazios os que não são naturais nem necessários67 distinção que já se esboçava por outro lado na República de Platão68 São naturais e necessários os desejos que levam à satis fação de libertarse de uma dor e correspondem às neces sidades elementares às exigências vitais São naturais mas desnecessários os desejos de comidas suntuosas ou ainda o desejo sexual Não são nem naturais nem necessários mas produzidos por opiniões vazias os desejos sem limites de riqueza de glória ou de imortalidade Uma sentença epicurista resumirá bem essa divisão dos desejos69 Graças sejam rendidas à bemaventurada Natureza que fez com que as coisas necessárias sejam fáceis de alcançar e que as coisas difíceis de alcançar não sejam necessárias ascese dos desejos consistirá em limitálos suprimin do os que não são naturais nem necessários limitando o mais possível os que são naturais mas desnecessários pois eles não suprimem um sofrimento real visam apenas às variações no prazer e podem arrastar a paixões violentas e desmedidas70 Essa ascese dos prazeres determinará um modo de vida que iremos descrever 66 Cícero Dos termos extremos I 18 59 67 Epicuro Carta a Meneceu 127128 Balaudé pp 116 e 194 68 Platão República VIII 558 d 69 Arrighetti p 567 240 70 Epicuro Máximas Principais XXX Balaudé p 204 Porfírio Da abstinência I 49 174 As escolas helenísticas A física e a canônica Mas uma grave ameaça pesa sobre a felicidade do homem Pode o prazer ser perfeito se o medo da morte e das decisões divinas neste mundo e no outro podem turválo Como mostra Ji22ÇSlUlriggr c llQIJt çtleeslá Jlªºfle g l Eões e tornam os homens iniFztc E para curar o homem desses terro res que Epicuro propõe seu discurso teórico sobre a física Não se deve sobretudo representar a física epicurista como uma teoria científica destinada a responder a interrogações objetivas e desinteressadas Os antigos já tinham notado que os epicuristas eram hostis à ideia de uma ciência estudada por ela mesma72 Ao contrário a teoria filosófica aqui é apenas a expressão e a consequência da escolha da vida original um meio de atingir a paz da alma e o prazer puro Epicuro repete com prazer73 Se não nos perturbássemos por causa de nossas angústias ante os fenômenos celestes e a morte temendo que esta última seja algo para nós por causa de nossa ignorância dos limites da dor e dos desejos não teríamos necessidade do estudo da natureza Não pode afastar o temor que importa para aquilo a que damos maior importância quem não saiba qual é a nature za do universo e tenha a preocupação das fábulas míticas Por isso não se podem gozar prazeres puros sem a ciência da natureza 71 Lucrécio Da natureza III 31 e ss 72 Cf AJ Festugiere Épicure et ses dieux Paris 1946 pp 5152 73 Epicuro Máximas Principais XI XII e Carta a Pítocles 85 vejase a tradução de JF Balaudé pp 175 e 201 e de Festugiere Epicure et ses dieux p 53 175 A filosofia como modo de vida Não há outra consequência a ser extraída do conheci mento dos fenômenos celestes que a paz da alma e uma firme segurança como é igualmente o objetivo de todas as outras investigações Como resulta claro na Carta a Pítocles7 há para Epicuro dois domínios bem distintos nas investigações sobre os fenômenos físicos Há de um lado o núcleo sistemático indiscutível que justifica a opção existencial por exemplo a representação de um universo eterno constituído pelos átomos e o vazio no qual os deuses não intervêm de outro as investigações sobre os problemas de importância secun dária por exemplo os fenômenos celestes meteorológicos que não permitem o mesmo rigor mas admitem uma plu ralidade de explicações Nos dois domínios as investigações são conduzidas unicamente para assegurar a paz da alma seja graças aos dogmas fundamentais que eliminarão o medo dos deuses e da morte seja nos problemas secun dários graças a uma ou várias explicações que ao mostrar que esses fenômenos são puramente físicos suprimirão a perturbação do espírito Tratase de suprimir o medo dos deuses e da morte Para tanto Epicuro sobTetudo nas Cartas a Heródoto e a Pítocles mostrará de um lado que os deuses nada têm a ver com a produção do universo que eles não se preocu pam com o que acontece com o mundo e os homens e de outro que a morte nada é para nós Com esse objeti vo Epicuro propõe uma explicação do mundo que deve 74 Epicuro Carta a Pítocles 8687 Carta a Pítocles in Diógenes Laércio Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres pp 302310 vejase Balaudé pp 106111 e 176 176 As escolas helenísticas muito às teorias naturalistas dos présocráticos em espe cial à de Demócrito o Todo não tem necessidade de ser criado por uma potência divina pois é eterno porquanto o ser não pode ser proveniente do nãoser mais que o nãoser não pode ser proveniente do ser Esse univer so eterno é constituído pelos corpos e pelo espaço isto é o vazio no qual se movem Os corpos que vemos os corpos dos seres vivos mas também os corpos da Terra e dos astros são constituídos por corpos indivisíveis e imutáveis em número infinito os átomos que caindo com força igual em linha reta graças a seu peso se unem e geram corpos compostos no momento em que se desviam infimamente de sua trajetória Os corpos e os mundos nascem mas também se desagregam em con sequência do movimento contínuo dos átomos Na infi nitude do vazio e do tempo há uma infinitude de mundos que aparecem e desaparecem Nosso universo é apenas um dentre eles A noção de desvio dos átomos tem dupla finalidade de uma parte explicar a formação dos corpos que não poderiam constituirse se os átomos se contentassem em cair em linha reta com força igual75 de outra ao introduzir o acaso na necessidade dar um fundamento à liberdade humana76 Ainda aqui é claro que a física é pensada em função da escolha de vida epicurista De um lado o homem deve ser senhor de seus desejos para poder atingir o prazer estável é neces sário que ele seja livre mas de outro se sua alma e seu intelecto são formados de átomos materiais movidos por 75 Cícero Dos termos extremos I 6 1820 76 Id Do destino 9 18 10 22 20 46 Da natureza dos deuses I 25 69 Vejase Arrighetti pp 512513 177 A filosofia como modo de vida um movimento sempre previsível como poderia o hom ser livre A solução consistirá precisamente em d1r que é exatamente nos átomos qu se situ um pnnCIl de espontaneidade interna que nao e senao ssa ossibi lidade de desviarse de sua trajetória o que da assim um fundamento à liberdade do querer e a torna possiVel Como diz Lucrécio77 Se a própria mente não tem em tudo o que faz uma Jata lidade interna e não é obrigada como contra a vontde a passividade completa é porque existe um pequeno desvz dos átomos sem ser em tempo determinado e volta para tras Inútil acrescentar que desde a Antiguidade até nssos dias esse desvio sem causa esse abandono do detenmmsmo sempre escandalizou os historiadores da filosofia7s Assim de um lado 0 homem não teme os deuses pois eles não exercem nenhuma ação sobre o mundo e sobre os homens e de outro o homem não deve mais temer a morte porque a alma composta de átomos desagregase como o corpo quando morre e perde toda sensibilidad A morte nada é para nós visto que nos bastams a os mesmos a morte nada éequando a morte é nao existi mos mais79 é dessa maneira que Diano resume as afirma ções da Carta a Meneceu nós não somos mais nós mesmos 77 Lucrécio Da natureza li 289293 h opara 78 Cícero Dos termos extremos I 6 19 Nada e mais vergou os um físio do qe dizer de um fato que ele se produz sem causa D Sedley E icurus Refutation of Determinism in SUZHTHSIS Studz sull epzcurezsmo gro e romano offerti a Marcello Gigante Contributi Napoli 1983 P 51 79 Epicuro Carta a Meneceu 124125 Cart a Meneceu m Dwgenes Laércio op cit pp 311314 Balaudé p 192 Dmno p 362 178 As escolas helenísticas quando a morte sobrevém Por que então temer algo que nada tem a ver conosco Dessa física materialista deduzse a teoria do conhe cimento canônica Todos os objetos materiais emitem fluxos particulares que tocam nossos sentidos e graças à continuidade desse fluxo nos dão a impressão de so lidez da resistência dos corpos A partir de sensações múltiplas provenientes de corpos que se reúnem por exemplo as advindas de diferentes indivíduos produzem se na alma imagens e noções gerais que nos permitem reconhecer as formas e identificálas ainda mais pelo fato de que a essas noções estão ligadas as palavras e a linguagem Com a linguagem manifestase a possibilidade do erro Para reconhecer a verdade de um enunciado será necessário verificar se ele está de acordo com os critérios de verdade que são as sensações e as noções gerais O pensamento poderá assim como dizem os epi curistas projetarse para a frente para intuir o que não está presente por exemplo para afirmar a existência do vazio que por definição é invisível mas cuja existência é necessária para explicar a existência do movimento Essa projeção sempre deverá ser controlada pela experiên cia portanto pela sensação80 O edificio teórico da física não tem por único objetivo libertar o homem do medo dos deuses e da morte Ele abre também o acesso ao prazer da contemplação dos deuses Porque os deuses existem o conhecimento que temos deles é com efeito uma clara evidência que se manifesta na preconcepção geral dos deuses presente em 80 Balaudé p 32 179 A filosofia como modo de vida toda a humanidadé1 O raciocínio exige também e neces sariamente que exista uma natureza superior a tudo e soberanamente perfeita Os deuses existem embora não tenham nenhuma ação sobre o mundo ou melhor porque eles não têm nenhuma ação sobre o mundo esta é a condição de sua perfeição82 O ser bemaventurado e imortal não tem perturbações nem perturba outro ser por isso é imune a movimentos de ira ou de gratidão pois todo movimento desse tipo implica fraqueza Essa é uma das grandes intuições de Epicuro ele não concebe a divindade como um poder de criar de dominar de impor sua vontade aos inferiores mas como a perfei ção de ser supremo felicidade indestrutibilidade beleza prazer tranquilidade A filosofia encontra na representa ção dos deuses a um só tempo o prazer maravilhado que se pode experimentar admirandose a beleza e o recon forto que pode proporcionar a visão do modelo de sabe doria Nessa perspectiva os deuses de Epicuro são a projeção e a encarnação do ideal de vida epicurista A vida dos deuses consiste em gozar de sua própria perfei ção do puro prazer de existir sem necessidade sem perturbação na mais dQçe as sociedades Sua beleza fí sica é a beleza da figura humâna83 Poderseia pensar com alguma razão que os deuses ideais são representações imaginadas pelos homens e que unicamente aos homens devem sua existência Entretanto Epicuro parece concebê los como realidades independentes que se mantêm eter namente no ser pois sabem afastarse do que poderia 81 Epicuro Carta a Meneceu 123 Balaudé p 192 82 Máximas Principais I Balaudé p 199 83 AJ Festugiere Épicure et ses dieux p 95 180 As escolas helenísticas destruílos e do que é perigoso para si Os deuses são os amigos dos sábios e os sábios são os amigos dos deuses Para os sábios o bem maior é contemplar o esplendor dos deuses Eles nada têm a pedirlhes mas apesar de tudo o pedem com uma oração de louvor84 é à perfeição dos deuses que suas homenagens se dirigem Pôdese falar sobre isso de puro amor de um amor que nada exige em troca85 Com essa representação de deuses que realizam 0 modo de vid epicurista a física tornase assim uma exortação a praticar concretamente a opção inicial da qual é a ex pressao la conu com isso à paz da alma e à alegria de estar hgado a VIda de contemplação que os próprios deses lvam O sábio como os deuses mergulha seu olhar na mfimtude dos mundos inumeráveis o universo fechado se abre para o infinito Exercícios Para chegar à cura da alma e a uma vida de acordo com a escolha fundamental não basta ter tomado conhecimento do discurso filosófico epicurista É necessário exercitarse ontinuamente Antes de tudo é necessário meditar isto e compenetrarse intimamente tomar consciência intensa dos dogmas fundamentais86 Media em todos esses ensinos dia e noite em toda parte e tambem com um companheiro semelhante a ti Assim não 84 Id ibid p 98 85 P Decharme La critique des traditions religieuses chez les Grecs Paris 1904 p 257 86 Epicuro Carta a Meneceu 124 e 135 Balaudé pp 192 e 198 181 A filosofia como modo de vida experimentarás perturbaçao nem em son hos nem em vigília mas viverás como um deus entre os homns rte nada e para nos Habituate a pensar que a mo d a reunião em resumos A sistematização dos ogas su los mais per d d preCisamente a torna e sentenças e estma a f eis de ter na memória dmiráveis e mais ac suasiVos mais a lo remédio destina a assegu como o famoso quadrup 1 se resume o essencial do rar a salvação da alma no qua ta87 discurso filosófico epiCuns Os deuses não são feitos para temer a morte não é feita para amedrontar o bem não é fácil de conquistar t 88 nem o mal de supor ar Contudo a leitura dos tratados dgmáticos de Ebicuro d 1 pode ahmentar tam em a de outros mestres a esclo a a intuição fundamental ditação e impregnar a a ma com Sobretudo é necessano praticar a disciplina dos dese e é fácil de b r contentarse com o qu JOS e necessano sa atisfaz as necessidades fundamentais alcançar com o que fluo Fórmula simples do ser e renuncar ado qlu e e sua aleração radical da ão deiXa eeyar a 1 mas que n das sim les roupas simp es vida contentarse com comi p blicos h nras aos cargos pu renunciar às riquezas as o viver retirado 1005 col IV 1014 texto restau 87 Filodemo in Papyrus Herculan N li 1983 2 ed nota 35 a d M Glgante Ricerche Fzlodemee apo ra o por Arrighetti p 548 H tradução de outros poemas d Phl d lpho Menezes a 88 Traduçao e 1 a e lo VII a c a v d C seleçao ffi u Palatma secu s in Poemas da Antologza ega 0 1 p tradução notas e posfácio de Jose Pau o aes São Paulo Companhia das Letras 1995 N do T 182 As escolas helenísticas A meditação e a ascese não podem ser praticadas na solidão Como na escola platônica a amizade é na escola epicurista o meio o caminho privilegiado para obter a transformação de si mesmo Mestres e discípulos devem Yudarse mutuamente para alcançar a cura de suas almas89 Nessa atmosfera de amizade o próprio Epicuro assume o papel de um diretor de consciência e como Sócrates e Platão conhece bem o papel terapêutico da palavra Essa direção espiritual só tem sentido em uma relação de indivíduo para indivíduo90 Essas coisas não é à multidão que as digo mas para ti Cada um de nós é um ouvinte muito vasto para o outro Ele sabe notadamente que a culpa91 tortura a consciên cia moral e que é possível libertarse dela reconhecendo as próprias faltas e aceitando as repreensões mesmo que elas provoquem algumas vezes um estado de contrição O exame de consciência a confissào a correção fraterna são exercícios indispensáveis para obter a cura da alma Possuímos fragmentos de um texto do epicurista Filodemo intitulado Da liberdade da palavra Trata nele da confiança e da abertura que deve reinar entre mestre e discípulos e entre os discípulos Se exprimirse livremente é para o mestre não temer repreender para o discípulo é não hesitar em reconhecer suas faltas ou mesmo não ter receio 89 Aj Festugiere op cit pp 3670 C Diano La philosophie du plaisir et la société des amis pp 365371 90 Sêneca Cartas a Lucz1io 7 11 C Diano p 370 91 Cf S Sudhaus Epikur als Beichtvater in Archiv für Heligionswissens chajt 14 1911 pp 647648 W Schmid Contritio und Ultima linea rerurn in neuen epikureischen Texten in Rheinisches Museum 100 301327 1957 I Hadot Seneca p 67 183 A filosofia como modo de vida de fazer conhecer a seus amigos as próprias faltas Uma das principais atividades da escola consistia em um diálogo corretivo e formador A personalidade de Epicuro nela desempenhava papel de destaque O próprio Epicuro pusera o princípio 92 Faze tudo como se Epicuro te visse e os epicuristas lhe faziam eco93 Nós obedecemos a Epicuro cuja forma de vida escolhemos Talvez por isso os epicuristas dessem tanta importância aos retratos de seu fundador que figuram não só nos quadros mas também nos anéis94 Epicuro aparecia para seus discípulos como um deus entre os homens95 isto é a encarnação da sabedoria o modelo que era necessário imitar Contudo em tudo isso era necessário evitar o esforço e a tensão Ao contrário o exercício fundamental do epi curista consistia na calma na serenidade na arte de gozar os prazeres da alma e os prazeres estáveis do corpo Prazer do conhecimento antes de tudo 96 No exercício da sabedoria a filosofia o prazer é equivalente ao conhecimento Pois não se tem prazer após ter aprendido mas é simultaneamente qae se aprende e que se tem prazer O prazer supremo é contemplar a infinitude do universo e a majestade dos deuses 92 Sêneca Cartas a Lucílio 25 5 93 Philodemi Peri Parrhesias Ed A Olivieri Leipzig 1914 p 22 M Gigante Philodême Sur la liberté de paroU Congrês Budé citado na p 159 nota 33 pp 196217 94 É o tema do livro de B Frischer The Sculpted Word 95 Epicuro Carta a Meneceu 135 Balaudé p 198 96 Id Sentenças vaticanas 27 Balaudé p 212 184 As escolas helenísticas Prazer da discussão como diz a carta enviada a Ido meneu por Epicuro antes de morrer97 A essas dores eu contraponho a alegria da alma que experi menta a lembrança de nossas conversas filosóficas Mas também o prazer da amizade Temos a esse res peito o testemunho de Cícerogs Epicuo diz da amiade que de todas as coisas que a sa bedorza nos proporczona para viver felizes não há nada superzor mais fcundo mais agradável que a amizade E ele ao se lzmztou a declarar isso mas o confirmou em s vzda tanto por seus atos como por seus costumes Na unza casa e Epicuro uma pequena casa aquele grupo de amzgo renzdos por ele unidos sentimentalmente por aquela conspzraçao de amor Praer de uma vida em comum que não menospreza alm disso a participação de escravos e mulheres Verda deira revolução que denta uma transformação completa da atmosfera em relaçao a homossexualidade sublimada da esco de Platão As mulheres então já excepcionalmente admitidas na escola de Platão agora fazem parte da co mumdade e entre elas não só as mulheres casadas por exemplo Temístia a mulher de Leonteus de Lamsaco as também as cortesãs como Leôntion a Leoa que pmtor Teoro representará em meditação99 1 97 Argheti P 427 52 e vejase Marco Aurélio Meditações IX 4 Medztaçoes 2 ed tradução e notas de Jaime Bruna São Paulo Ab i Cultural 1980 Os Pensadores n 98 Cícero Dos termos extremos I 20 65 99 Plínio o Velho História Natural XXXV 144 e 99 N w D Wi E d e Itt rzcurus Cita o na p 150 nota 21 pp 9596 185 A filosofia como modo de vida Prazer enfim de tomar consciência do que existe de maravilhoso na existência Saber antes de tudo governar o próprio pensamento para representarse as coisas agra dáveis ressuscitar a memória dos prazeres do passado e gozar os prazeres do presente reconhecendo quanto esses prazeres são grandes e agradáveis escolher deliberadamente a calma e a serenidade viver em gratidão profunda para com a natureza e a vida que nos oferecem sem cessar caso saibamos encontrálos o prazer e a alegria A meditação sobre a morte serve para despertar na alma imensa gratidão pelo dom maravilhoso da exis tência100 Convencete de que cada novo dia que nasce será para ti o último É então com gratidão que tu receberás cada hora inesperada Recebe cada momento do tempo que se acrescenta reconhe cendo todo seu valor como se acontecesse graças a um acaso incrível E Hoffmann recuperou admiravelmente a essência da escolha de vida epicurista quando escreveu101 A existência deve então ser considerada um puro acaso para poder em seguida ser vivida totalmente como uma maravilha única É necessário agir bem pois a existência inexoravelmente não tem lugar senão para uma vez para em seguida festejar o que ela tem de insubstituível e de único 100 Horácio Cartas I 4 13 Filodemo Da morte livro IY col 38 24 citado in M Gigante Ricerche Filodemee Napoli 1983 pp 181 e 215216 101 E Hoffmann Epikur in M Dessoir Die Geschichte der Philosophie T I Wiesbaden 1925 p 223 186 As escolas helenísticas O estoicismo A escola estoica fundada por Zenão102 no fim do século IV aC ganha novo impulso por volta da metade do sécu lo II sob direção de Crisipo Muito cedo preservando notavel umdade quanto aos dogmas fundamentais ela cindese em tendências opostas que continuarão a dividir s estoics no decorrer dos séculos103 Dispomos de poucas mfornaçoes sobre a história da escola a partir do século I aC E certo que até o século II dC a doutrina estoica era ainda florescente no Império romano basta citar Sêneca Musônio Epíteto e Marco Aurélio A escolha fundamental A propósito do epicurismo falamos de uma experiên cia a da carne e de uma escolha a do prazer e do in teresse individual transfigurado em puro prazer de existir evemos aga falar de experiência e de escolha a propó sito do estOICismo A escolha é fundamentalmente a de Sócrates que na Defesa de Sócrates escrita por Platão1o4 102 Os fragmentos dos estoicos foram reunidos por H von Arnim Stozcorum Veterum Fragmenta IIV Leipzig 19051924 reedição Stuttgart Teubner 1964 J Mansfield prepara uma nova edição dos fragmentos Encontrarsea uma tradução muito útil de certo número de textos estoicos Sêneca Epiteto e Marco Aurélio e testemunhos sobre o estoicismo em Diógenes Laércio Cícero e Plutarco em Les Stoiciens Éd É Bréhier et PM suhl Paris Gallimard 1964 Bibliothêque de la Pléiade citado Les Stozczens nas notas seguintes Sêneca A vida feliz tradução de André Bartholomeu apresentação de Denis Diderot Campinas Pontes 1991 103P Lynch Aristotles School p 143 I Hadot Tradition stocienne et idées politiques au temps des Grecques in Revue des Études Latines 48 161178 1971 104 Defesa 41 d vejamse também 30 b e 28 e 187 A filosofia como modo de vida declara Não há para o homem bom nenhum mal quer na vida quer na morte Pois o homem bom considera que não há mal senão o mal moral e que não há bem senão o bem moral ou seja o bem ou virtude é o valor supremo pelo qual não se deve hesitar em enfrentar a morte A escolha estoica situase assim na linha reta da escolha socrática e é diametralmente oposta à escolha epicurista a felicidade não consiste no prazer ou no inte resse individual mas na exigência do bem ditada pela razão e que transcende o indivíduo A escolha estoica opõese igualmente à escolha platônica na medida em que pretende que a felicidade isto é o bem moral seja aces sível a todos neste mundo A experiência estoica consiste em uma tomada de cons ciência aguda da situação trágica do homem condicionado pelo destino Aparentemente não somos livres para nada pois não depende absolutamente de nós ser belos fortes com boa saúde ricos experimentar o prazer ou escapar ao sofrimento Tudo isso depende de causas exteriores a nós Uma necessidade inexorável indiferente a nosso in teresse individual destrói aspirações e esperanças estamos entregues sem defesa a1 acidentes da vida aos reveses da fortuna à doença à morteTudo em nossa vida nos esca pa Disso resulta que os homens são infelizes porquanto procuram com paixão adquirir os bens que não podem obter e fugir dos males que são contudo inevitáveis Contudo há uma coisa uma única coisa que depende de nós e que nada nos pode tirar a vontade de fazer o bem a vontade de agir de acordo com a razão Haverá então oposição radical entre o que depende de nós e pode ser bom ou mau porque objeto de nossa decisão 188 As escolas helenísticas e o que não depende de nós105 mas de causas exteriores do destino e é indiferente A vontade de fazer o bem é cidadela interior inexpugnável que cada um pode edificar em si mesmo Lá é que se encontrará a liberdade a in dependência a invulnerabilidade e valor eminentemente estoico a coerência consigo mesmo Poderseia dizer tam bém que a escolha de vida estoica consiste na coerência consigo mesmo Sêneca resumiu essa atitude pela fórmula106 Sempre querer a mesma coisa sempre recusar a mesma coisa pois explicava a mesma coisa não pode univer sal e constantemente agradar senão o que é moralmente direito Essa coerência consigo é própria da razão todo iscurso racional só pode ser coerente consigo mesmo VIver segundo a razão é submeterse a essa obrigação de coerência Zenão 107 definia desta maneira a escolha de vida estoica Viver de maneira coerente isto é segundo uma regra de vida una e harmoniosa pois aqueles que vivem na incoerência são infelizes A física O discrso filosófico estoico comporta três partes a flSlca a logtca e a ética O discurso filosófico concernente à física justificará a escolha de vida da qual acabamos de falar e explicitará a maneira de ser no mundo que ela acarreta Como entre os epicuristas a física entre os estoicos não é desenvolvida por si mesma mas tem finalidade ética r os 105 Eiteto Manua 1 Conversações I 1 7 I 4 27 I 22 9 II 5 4 106 Seneca Cartas a Lucílio 20 5 107 Stoicorum Veterum Fragmenta citado SW nas notas que seguem I 179 108 SVF III 68 Les Stoiciens p 97 189 A filosofia como modo de vida A física é ensinada somente para que se possa ensinar a dis tinção que é necessário estabelecer entre os bens e os males Podese dizer antes de tudo que a física estoica é indispensável à ética pois ensina o homem a reconhecer que há coisas que não estão em seu poder mas dependem de causas exteriores a ele que se encadeiam de maneira necessária e racional Ela tem também uma finalidade ética na medida em que a racionalidade da ação humana fundase na racio nalidade da natureza Na perspectiva da física a vontade de coerência consigo fundamento da escolha estoica aparecerá no seio da realidade material como uma Lei fundamental interior a todo ser e ao conjunto dos seres109 De repente desde o primeiro instante de sua existência o ser vivo é conciliado consigo mesmo tende a conservarse a si mesmo e a amar sua própria existência e tudo o que pode conservála Mas o próprio mundo é um único ser vivo também ele conciliado consigo mesmo coerente con sigo mesmo no qual como em uma unidade sistemática e orgânica tudo tem relação com tudo tudo está em tudo tudo tem necessidade de tudo A escolha de vida estQica postula e exige a um só tempo que o universo seja acíonal É possível que sub sista alguma ordem em ti mas desordem no universo110 A razão humana que quer a coerência lógica e dialética consigo mesma e põe a moralidade deve fundarse em uma 109 Cícero Dos termos extremos III 4 1622 75 vejase o comentário notável desse texto por V Goldschmidt Le Systeme stoiâen et lidée de temps Paris 1977 pp 125131 I Hadot Seneca pp 7375 110 Marco Aurélio Meditações IV 27 citado Marco Aurélio nas notas seguintes 190 As escolas helenísticas razão do Todo do qual ela é apenas parte Viver de acordo com a razão será viver de acordo com a natureza de acor d com a Lei universal que move do interior revolu çao do mundo Universo racional mas ao mesmo tempo totalente materil a razo estoica é idêntica ao Fogo erachnano matenal tambem aqui em razão da escolha de VIda estoica como pensaram G Rodier e V Goldschmidtlll qu explicam esse materialismo pelo desejo de tornar fehnade acessível a todos neste mundo mesmo que não se opoe a um mundo superior Justificando racionalmente suas opções radicalmente diferentes estoicos e epicuristas propõem físicas radical mente opostas Para os últimos se os corpos são formados de agregados de átomos eles não formam uma verdadeira umdade e o niverso é apenas uma justaposição de ele mentos que nao se fundem simultaneamente cada ser é uma individualidade de alguma maneira atomizada isola da em relação às outras tudo está fora de tudo tudo acontece por acaso no vazio infinito formase uma infini dade de mundos Para os estoicos ao contrário tudo está em tudo os corpos são todos orgânicos o Mundo é um todo orgânico e tudo acontece por necessidade racional no tempo infinito há um único cosmos que se repete uma in fimdade de vezes Duas físicas contrárias e contudo uma proposição análoga pois as duas escolas tendem a fndar na própria natureza a possibilidade da escolha existencial Os picurists onsideravam que a espontaneidade da parhculas atomiCas poderia desviarse de sua tretória e tornar possível a liberdade humana e a ascese dos desejos 111 Rodier tudes de philosophie grecque Paris 1926 pp 254255 v Goldschmidt Le Systeme stoiCien p 59 nota 7 191 A filosofia como modo de vida Os estoicos fundam a razão humana na natureza concebi da como a Razão universal Mas sua explicação da possi bilidade de liberdade humana é muito mais complexa Para explicar a possibilidade de liberdade não basta simplesmente fundar a razão humana na razão cósmica Isso porque a razão cósmica corresponde a uma necessidade rigorosa ainda mais porque os estoicos a representam sobre 0 modelo heraclitiano de uma força o Fogo112 sopro e calor vital que misturandose totalmente à matéria gera todos os seres como uma semente na qual todas as sementes estão contidas e a partir da qual elas se desenvolvem De acordo consigo mesmo coerente consigo mesmo o cosmos como razão se quer necessariamente como é a ponto de repetirse em um ciclo eternamente idêntico no qual o fogo ao transformarse nos outros elementos volta a ser finalmente ele mesmo Se o cosmos se repete eternamente idêntico é porque é racional é lógico é porque é o único cosmos simultaneamente possível e necessário que a Razão pôde produzir Ela não pode produzir um melhor ou um pior E nesse cosmos tudo se encadeia necessariamente de acordo com o princípio de causalidade 113 Não há movimento sem causa se assim é tudo acontece por causas que dão a impulsã se não é assim tudo acontece pelo destino O menor acontecimento envolve toda a série de causas o encadeamento de todos os acontecimentos anteceden tes e finalmente todo o universo Queira o homem ou não todas as coisas acontecem necessariamente como elas 112 SW li 413421 113 Id li 952 Les Stoiciens p 481 192 As escolas helenísticas acontecem A Razão universal não pode agir de maneira diferente da que age precisamente porque ela é perfei tamente racional Mas então como uma escolha moral é possível O preço a pagar para que a moralidade seja possível será a liberdade de escolha isto é a possibilidade para o homem recusandose a aceitar o destino de revoltarse contra a ordem universal e de agir ou pensar contra a Razão uni versal e a natureza isto é de separarse do universo de tornarse um estrangeiro um exilado da grande cidade do mundo114 Essa recusa por outro lado não mudará em nada a ordem do mundo Segundo a fórmula do estoico Cleanto retomada por Sêneca115 Os destinos guiam quem os aceita arrastam quem a eles resiste A Razão incluise com efeito no plano do mundo e faz que contribuam para seu êxito todas as resistências todas as oposições todos os obstáculos116 Mas ainda uma vez podese perguntar como essa liber dade de escolha é possível É que a forma da razão própria ao homem não é a razão substancial formadora imediata mente imanente às coisas que é a Razão universal mas uma razão discursiva que nos juízos nos discursos que enuncia sobre a realidade tem o poder de dar um sentido aos acon tcimentos que o destino lhe impõe e às ações que ela produz E nesse universo de sentido que se situam tanto as paixões humanas como a moralidade Como disse Epiteto117 114 Marco Aurélio VIII 34 115 Sêneca Cartas a Lucílio 107 11 116 Marco Aurélio VIII 35 117 Epiteto Manual 5 Les Stoiciens p 1113 193 A filosofia como modo de vida Não são as coisas em sua materialidade que nos perturbam mas os juízos que jazemos sobre as coisas isto é o sentido que lhes damos A teoria do conhecimento A teoria estoica do conheciménto tem duplo aspecto De uma parte afirma que os objetos marcam com seu sinal nossa faculdade de sensação e que não podemos absolutamente duvidar de certas representações que levam uma marca de evidência indiscutível são as denominadas representações compreensivas ou objetivas Elas não depen dem absolutamente de nossa vontade Mas nosso discurso interior enuncia e descreve o conteúdo dessas representa ções e damos ou não nosso assentimento a esse enunciado É aí que se situa a possibilidade de erro e a liberdade118 Para fazer compreender esse aspecto subjetivo e voluntá rio da representação Crisipo comparavaa ao cilindro119 Todo o encadeamento de causas e de acontecimentos isto é o destino pode pôr em movimento um cilindro mas um cilindro somente rolará de acordo com sua própria forma de cilindro Da mesma maneira o encadeamento de causas pode provocar em nós essa ou aquela sensação dandonos assim ocasião de enunciar um juízo sobre essa sensação e de dar ou não nosso assentimento a esse juízo mas esse assentimento não terá menos sua forma própria independente e livre Para melhor compreender o que querem dizer os estoi cos podese desenvolver um exemplo proposto por Epíteto 118 SVF li 91 Sexto Empírico Contra os lógicos li 397 traduzido in P Hadot La Citadelle intérieure Paris 1992 p 124 119 Cícero Do destino 19 43 cf P Hadot op cit p 124 194 As escolas helenísticas Se em pleno ar percebo um trovão e os relâmpagos da tempestade nao posso negar que vejo esses estrondos aterrorizantes é a representação compreensiva e objetiva Essa sensação é o resultado de todo o encadeamento de causas portanto do destino Se me contento em constatar interiormente que graças ao destino sou posto frente a frente com uma tempestade isto é se meu discurso interior corresponde exatamente à representação objetiva estou na verdade Mas a percepção desses estrondos pode sem úvi submergir no terror o que é uma paixão Sob 0 illlpeno da emoção eu poderia me dizer interiormente Eisme aqui submerso na desgraça corro o risco de morrer e a morte é um mal Se dou meu assentimento ao discurso interior procado elo terror estarei no erro enquanto um estmco Ja que mmha opção existencial fundamental é precisamente que não há outro mal além do mal moraP2o De maneira geral o erro mas também a liberdade situam se nos juízos de valor que atribuo aos acontecimentos A atitude moral correta consistirá em reconhecer como bom ou mau apenas o que é bom ou mau moralmente e em considerar nem bom nem mau portanto indiferente 0 que não é bom nem mau moralmente A teoria moral Podese definir de outro modo a opos1çao entre 0 domínio da moral e o domínio do indiferente Será mol então isto é bom ou mau o que depende de nós sera md1ferente o que não depende de nós A única coisa dependente nós é com efeito nossa intenção moral 0 120 Aulo Géio Noites áticas XIX 1 1520 traduzido in P Hadot La Citadelle intérieure p 120 195 A filosofia como modo de vida sentido que atribuímos aos acontecimentos O que não depende de nós corresponde ao encadeamento necessário de causas e efeitos isto é ao destino ao curso da natureza às ações dos outros homens São assim indiferentes a vida e a morte a saúde e a doença o prazer e o sofrimento a beleza e a fealdade a força e a fraqueza a riqueza e a po breza a nobreza e o vulgo as carreiras políticas porque tudo isso não depende de nós Tudo isso deve em princí pio nos ser indiferente isto é não devemos introduzir aí diferenças mas aceitar o que acontece corno determinado pelo destino121 Não deseja que o que acontece aconteça como queres mas queiras que o que acontece aconteça como acontece e serás feliz Há aí urna inversão total da maneira de ver as coisas Passase de urna visão humana da realidade visão na qual nossos juízos de valor dependem de convenções sociais ou de nossas paixões a uma visão natural física das coisas que repõe cada acontecimento na perspectiva da natureza e da Razão universaP22 A indiferença estoica é profundamente diferente da indiferença pirroniana Para o pirrônico tudo é indiferente porque não se pode saber se uma coisa é boa ou má Não há aqui nada que não seja indiferente é a própria indiferença Para o estoico há uma única coisa que não é indiferente a intenção moral que se põe como boa ou má e leva o homem a modificarse a si mesmo e à sua atitude com relação ao mundo E a indiferença consiste em não fazer diferença mas em querer amar mesmo de maneira igual tudo o que é determinado pelo destino 121 Epíteto Manual 8 Les Stoiciens p 1114 122 Cf P Hadot op cit pp 122123 e pp 180 e ss 196 As escolas helenísticas Mas podese perguntar corno o estoico orientase na vida se tudo é indiferente exceto a intenção moral Devese casar exercer uma atividade política ou um ofício servir à pátria Aqui aparece uma parte essencial da doutrina estoica a teoria dos deveres não a do dever em geral ou das ações apropriadas 123 Essa teoria vai permitir à vontade boa encontrar matéria de exercício para ser guiada por um código de conduta prática e combinar um valor relativo às coisas indiferentes que são em princípio sem valor Para fundar essa teoria dos deveres os estoicos retor nam à sua intuição fundamental a do acordo instintivo e original do ser vivo consigo mesmo que exprime a vontade profunda da natureza Os seres vivos têm uma propensão original a conservarse e a repelir o que ameaça sua inte gridade Com a aparição da razão no homem o instinto natural tornarseá coisa refletida e raciocinada o amor pela vida por exemplo o amor pelas crianças o amor pe los concidadãos fundado no instinto de sociabilidade Casar se ter uma atividade política servir à pátria todas essas ações serão apropriadas à natureza humana e terão um valor O que caracteriza a ação apropriada é que em parte ela depende de nós pois supõe uma intenção moral e em parte não depende pois seu êxito depende não só de nossa vontade mas dos outros homens ou das circunstâncias dos acontecimentos do destino enfim Essa teoria dos deveres ou ações apropriadas permite ao filósofo orientarse na 123 Empresto essa tradução de I G Kidd Posidonius on Emotions in Problems in Stoicism Ed A A Long London 1971 p 201 Sobre as ações apropriadas cf I Hadot Seneca pp 7278 V Goldschmidt Le Systime stoiiien pp 145168 P Hadot op cit pp 204206 197 A filosofia como modo de vida incerteza da vida cotidiana ao propor escolhas razoáveis que nossa razão pode aprovar sem jamais ter a certeza de fazer bem O que conta com efeito não é o resultado sempre incerto não é a eficácia mas a intenção de fazer bem124 O estoico age sempre sob reserva ao dizer a si mesmo Eu quero fazer isto se o destino o permitir Se o destino não o permite buscará o êxito de outra maneira ou aceitará o destino querendo o que acontece O estoico age sempre sob reserva mas age toma parte na vida social e política Esse também é um ponto muito importante que o separa dos epicuristas que se retiram em princípio de tudo o que pode causar preocupação Ele age não em seu próprio interesse material ou mesmo espiritual mas de maneira desinteressada a serviço da comunidade humana125 Nenhuma escola tem mais bondade e doçura nenhuma tem mais amor pelos homens mais atenção pelo bem comum O fim que ela nos assinala é ser útil ajudar os outros e ter cuidado não somente de si mesmo mas de todos em geral e de cada um em particular Os exercícios Em consequência da perda da maior parte dos escritos dos fundadores da corrente Zenão e Crisipo temos no caso do estoicismo muito menos testemunhos sobre os exercícios espirituais praticados na escola do que no caso do epicurismo Os mais interessantes os de Cícero Fílon de Alexandria Sêneca Epíteto e Marco Aurélio são relati 124 Cf id ibid pp 220224 125 Sêneca Da clemência II 3 3 198 As escolas helenísticas vamente tardios mas nos revelam segundo toda verossi milhança uma tradição anterior da qual se pode ver traços em certos fragmentos de Crisipo e mesmo de Zenão Parece assim que no estoicismo fazem parte da filosofia não só discursos teóricos mas também temas de exercício que devem ser praticados concretamente caso se queira viver como um filósofo É assim que a lógica não se limita a uma teoria abstrata do raciocínio nem mesmo a exercícios escolares silogísticos mas haverá uma prática cotidiana da lógica aplicada aos problemas da vida de todos os dias a lógica aparecerá então como um domínio do discurso interior Isso será tanto mais necessário na medida em que de acordo com o intelectualismo socrático os estoicos consideravam que as paixões humanas correspondem a um mau uso desse discurso interior isto é de erros de juízo e de raciocínio Será preciso vigiar os discursos para verificar se um juízo de valor errado não se introduziu neles acrescentando assim à representação compreensiva algo de estranho Marco Aurélio aconselha que se faça de alguma maneira uma definição física do objeto que se apresenta isto é do acontecimento ou da coisa que provoca nossa paixão126 Para vêla tal qual é na essência nua e por inteiro distinta no seu todo e dizer de si para consigo o nome que a designa Com efeito esse exercício consiste em conside rar a realidade tal qual ela é sem acrescentarlhe juízos de valor inspirados pelas convenções os preconceitos ou as paixõesm 126 Marco Aurélio III 11 cf acima p 196 nota 122 127 Id VI 13 199 A filosofia como modo de vida Essa púrpura imperial é pelo de uma ovelha tinto com o san gue de um molusco A união dos sexos é uma fricção de ventre com ejaculação num espasmo de um líquido gosmento Aqui o exercício lógico ligouse de novo ao domínio da física pois essa definição se situa na perspectiva da natureza sem nenhuma consideração subjetiva e antropomórfica É que a física estoica não mais que a lógica não é só uma teoria abstrata mas um tema de exercício espiritual Para pôr em prática a física um primeiro exercício consistirá em reconhecerse como parte do Todo em elevarse à consciência cósmica em imergir na totalidade do cosmos Deve haver um esforço quando se medita na física estoica para ver todas as coisas segundo o ponto de vista da Razão universal e por isso se praticará o exercício da imaginação que consiste em ver todas as coisas por um olhar de longo alcance por sobre as coisas humanas128 Na mesma perspectiva exercitarseá para ver em cada instante as coisas enquanto se metamorfoseiam129 De que modo se transformam todas as coisas umas nas outras Procura um método de investigálo presta atenção e trata de exercitarte nesse particular nada contribui tanto para a elevação dos sentimentos Detémte sobre cada ser sob teus olhos e reflete que já se está dissolvendo já entrou numa transformação por exemplo em putrefação ou dispersão ou na espécie de morte natural a cada um Essa visão da metamorfose universal conduzirá à medi tação sobre a morte sempre iminente mas que se aceitará 128 Cf adiante pp 297299 129 Marco Aurélio X 11 e 18 200 As escolas helenísticas como uma lei fundamental da ordem universal pois final mente a física como exercício espiritual conduz o filóso fo a aceitar com amor os acontecimentos desejados pela Razão imanente ao cosmos130 Não se pode contudo apenas aceitar os acontecimentos quando eles acontecem mas é necessário prepararse para eles Uma das práticas espirituais estoicas mais famosas con sistia no préexercício praemeditatio dos males digamos no exercício preparatório para as experiências131 Tratase de representarse o avanço das dificuldades os reveses da fortuna os sofrimentos e a morte Fílon de Alexandria132 dizia a esse respeito Não se curvem sob os golpes da sorte mas calculem o avanço dos ataques pois entre as coisas que acontecem sem que se queira mesmo as mais penosas são atenuadas pela previsão quando o pensamento nada mais encontra de inesperado nos acontecimentos mas embota a percepção como se se tratasse de coisas antigas e usadas Esse exercício é tão complexo que essa descrição não permite entendêlo Ao praticálo o filósofo não quer ape nas abrandar o choque da realidade ao penetrar bem nos princípios fundamentais do estoicismo quer restaurar em si mesmo a tranquilidade e a paz da alma Não se pode ter medo de pensar no avanço dos acontecimentos que os outros homens consideram infaustos é necessário sempre pensar neles para convencerse antes de tudo de que os 130 Crisipo in SW t li 912 fala do consentimento que dão os sábios ao destino Marco Aurélio UI 16 3 VIII 7 131 Sobre esse exercício cf I Hadot Seneca pp 6061 P Hadot La Citadelle pp 220224 132 Fílon Das leis especiais li 46 201 A filosofia como modo de vida males futuros nao são males pms nao sao presentes e sobretudo de que os acontecimentos como a doença a pobreza e a morte que os outros homens percebem como males não são males pois não depende de nós e não são da ordem da moralidade O pensamento da morte imi nente transformará de maneira radical a maneira de agir fazendo que se tome consciência do valor infinito de cada instante133 É necessário realizar cada ação da vida como se fosse a última Com o exercício de previsão dos males e da morte passase impassivelmente da física praticada à ética praticada Essa previsão está intimamente ligada à ação assim como o filó sofo estoico a pratica Quando age ele prevê os obstáculos e nada acontece contra sua expectativa Sua intenção moral permanece intacta mesmo que smjam obstáculos134 Acabamos de perceber em uma filosofia pratiçada os limites entre as partes da filosofia se ocultando O exercício da definição é a um só tempo lógico e físico o pensa mento da morte ou o exercício de previsão das dificulda des simultaneamente físico e ético Misturando assim as partes da filosofia os estoicos queriam provavelmente responder a Aríston de Qufos estoico da primeira geração que suprimia as partes física e lógica da filosofia para deixar subsistir apenas a ética135 Para eles Aríston tinha razão em considerar a filosofia uma prática mas as partes lógica e física da filosofia não eram puramente teóricas correspondiam a uma filosofia vivida A filosofia era para 133 Marco Aurélio II 5 2 134 Cf P Hadot La Citadelle pp 216220 135 SW I Aríston 351352 D L VI 103 202 As escolas helenísticas eles um ato único que era necessano praticar a cada instante em uma atenção prosokhé incessantemente re novada atenção a si mesmo e ao momento presente A atitude fundamental do estoico é essa atenção contínua que é uma tensão constante uma consciência uma vigi lância em cada instante Graças a essa atenção o filósofo está sem cessar perfeitamente consciente não só do que faz mas do que pensa é a lógica vivida e do que é isto é de seu lugar no cosmos é a física vivida Essa consciência de si é antes de tudo uma consciência moral ela procura realizar a todo instante uma purificação e uma correção da intenção recusase a cada instante a admitir outro motivo da ação além da vontade de fazer o bem Contudo essa consciência de si não é somente moral também é cósmica e racional o homem atento vive sem cessar na presença da Razão universal imanente ao cosmos vendo todas as coisas na perspectiva dessa Razão e acei tando alegremente sua vontade A essa filosofia praticada a esse exerCicw ao mesmo tempo único e complexo da sabedoria os estoicos opõem o discurso teórico filosófico formado de proposições que compreende como partes distintas a lógica a física e a ética Eles querem dizer com isso que quando se quer ensinar filosofia e convidar à sua prática é necessário antes discor rer isto é expor a teoria física a teoria lógica e a teoria ética num conjunto de proposições Mas quando se trata de exercer a sabedoria isto é de viver filosoficamente tudo o que foi enunciado separadamente no ensino deve agora ser vivido e praticado de maneira inseparáveP36 136 D L VII 39 e 41 Cf P Hadot Les divisions des parties de la philosophie dans lAntiquité in Museum Helveticum 36 201223 1979 203 A filosofia como modo de vida Para eles é a mesma razão que atua na natureza e na física na comunidade humana e na ética e no pensamento individual e na lógica O ato único do filósofo preparando se para a sabedoria coincide com o ato único da Razão universal presente em todas as coisas e harmonizandose consigo mesma O aristotelismo Os aristotélicos137 da época helenística são sobretudo sábios Apenas Teofrasto primeiro sucessor de Aristóteles parece ser como seu mestre ao mesmo tempo um contem plativo e um organizador de investigação notadamente no domínio de história natural Em consequência disso a es cola parece terse especializado na investigação enciclopé dica e sobretudo na erudição histórica e literária biografia etnologia caracterologia em investigações físicas na elabo ração da lógica e em exercícios retóricos uma obra imen sa da qual conservamos apenas uns poucos fragmentos O astrônomo Aristarco de Samos138 século III aC formula Philosophie discours philosophique et divisions de la philosophie chez les sto1ciens in Reuue Internationale dePhilosophie 45 205219 1991 e La philosophie éthique une éthique ou une pratique in Problemes de morale antique Éd P Demont Faculté des Lettres Université de Picardie 1991 pp 737 Vejamse as observações de K Ierodiakonou The Stoic Division of Philosophy in Phronesis 38 5961 1993 que pareceme apenas confirma minha interpretação 137 Os fragmentos foram reunidos por F Wehrli Die Schule der Aristoteles Dez fascículos e dez suplementos Bãle 19441959 19741978 J P Lynch Aristotles Schoo Berkeley 1972 estudo de conjunto J Moreau Aristote et son école Paris 1962 138 Cf R Goulet Aristarque de Sarnas in Dictionnaire des philosophes antiques t 1 p 356 204 As escolas helenísticas a hipótese de que o Sol e as estrelas são imóveis e de que os planetas giram em torno do Sol cada um em torno de seu eixo Encontramse em Estratão de Lampsaco que professava uma física materialista certas tentativas para uma física experimental notadamente a propósito do vazio Temos pouquíssimos testemunhos sobre a ética de modera ção das paixões preconizada pelos aristotélicos dessa época e sobre sua atitude com relação à condução da vida139 A academia platônica Por volta da metade do século III aC quando Arquesilau tornase chefe da escola a Academia platônica realiza uma espécie de retorno à escolha de vida socrá tica140 O discurso filosófico volta a ser essencialmente crítico interrogativo e aporético Eis por que Arquesilau nada escreve Seu método de ensino consiste em refutar por sua argumentação a tese que os ouvintes são convida dos a proporlhe141 Qualquer que seja a tese ele se dedi ca a demonstrar que a tese oposta também pode ser provada o que mostra a impossibilidade de fazr afirmações que atinjam a certeza e a verdade absolutas E necessário portanto suspender todo juízo o que significa coibir toda investigação e toda atividade crítica Retorno ao socratismo portanto pois Sócrates dizia na Defesa que o bem supremo a seus olhos era pôr tudo em exame e que uma vida que não se entregasse a essa investigação não mereceria ser vivi 139 Sobre essa questão cf I Hadot Seneca pp 4045 140 AM Ioppolo Opinione e scienza Napoli 1986 pp 4450 5354 citado Ioppolo nas notas seguintes 141 Cícero Dos termos extremos li 1 14 205 A filosofia como modo de vida da a felicidade consistindo assim nessa busca que jamais findava142 Mas também finalmente retorno à definição platônica de filosofia como consciência de nada saber e de ser privado de sabedoria esta pertencente somente aos deuses143 Aos olhos de Arquesilau Platão compreendeu que os homens não podem chegar ao saber absoluto Co mo Sócrates Arquesilau nada ensina mas também como Sócrates perturba e fascina seus ouvintes ensinandoos a libertarse de seus preconceitos convidandoos como Sócrates a questionarse144 Podese não obstante descobrir uma diferença em relação ao socratismo Sócrates e Arquesilau denunciam o falso saber as falsas certezas Mas Sócrates criticava as opi niões e os preconceitos de filósofos que eram para ele os sofistas e de não filósofos Em Arquesilau a crítica se exerce antes de tudo contra o falso saber e as falsas certe zas dos filósofos dogmáticos A filosofia consiste para ele em mostrar as contradições de um discurso filosófico como o dos estoicos e o dos epicuristas que pretende atingir certezas sobre as coisas divinas e humanas A vida moral não tem necessidade de ser fundada em princípios e jus tificada por um discurso filosfico Como Sócrates e Platão Arquesilau admite que existe no homem um desejo fun damental e original do bem e uma tendência natural para agir de maneira boa145 Ao purificarse de toda opinião ao suspender totalmente seu juízo o filósofo tornará a 142 Platão Defesa 23 b 38 a 41 bc 143 Cf C Lévy La nouvelle Académie atelle été antiplatonicienne in Contre Platon l Le platonisme dévoilé pp 144149 e Ioppolo p 49 144 Id pp 162165 145 Id p 139 citando Plutarco Contra Calotes 1122 ce 206 As escolas helenísticas encontrar a espontaneidade de tendências naturais ante riores a toda especulação caso se sigam essas tendências às quais é racional ceder146 a ação moral será justificada Na Antiguidade concordavase em reconhecer a extraor dinária bondade de Arquesilau a delicadeza com a qual praticava a beneficência147 A Academia com os sucessores de Arquesilau Carneada e Fílon de Larissa evoluiu na direção do probabilismo Admitese que se não se pode alcançar a verdade pode se ao menos atingir o verossímil isto é soluções que se pode racionalmente aceitar tanto no domínio científico como sobretudo no da prática moraP48 Essa tendência filosófica teve grande influência sobre a filosofia moderna graças ao imenso sucesso no Renascimento e nos tempos modernos das obras filosóficas de Cícero Põese em obra essa filosofia acadêmica que dá ao indivíduo a liberdade de escolher em cada caso concreto a atitude que ele julgue a melhor conforme as circunstâncias lllesmo que inspira da pelo estoicismo ou pelo epicurismo ou outra filosofia sem imporlhe a priori uma conduta a seguir ditada por princípios anteriormente fixados Cícero149 elogia seguidas vezes a liberdade do acadêmico que não é vinculada a nenhum sistema Nós outros os acadêmicos vivemos o dia a dia isto é julgamos em função do caso particular Eis por que somos livres Desfrutamos da maior liberdade somos mais independentes nosso poder de julgar não conhece entraves não temos de obedecer a 146 Id pp 135146 14 7 Sêneca Sobre os benfeitores II I O l 148 Ioppolo pp 203209 149 Cícero Tusculanas V 11 33 Lúculo 3 78 207 A filosofia como modo de vida nenhuma prescrição a nenhuma ordem e até diria que nenhu ma obrigação se nos impõe de defender uma causa qualquer 4 A filosofia aparece aqui essencialmente como uma ativi dade de escolha e de decisão pela qual o indivíduo assume toda a responsabilidade150 É ele que escolhe o que convém à sua maneira de viver nos diferentes discursos filosóficos que lhe são propostos As opções morais encontram sua justificação em si mesmas independentemente de hipóteses metafísicas construídas pelos discursos filosóficos do mesmo modo que a vontade humana é também independente de causas exteriores e encontra sua causa em si mesma151 Na Academia de Arquesilau e de Cameada da qual Cícero mas também filósofos ainda mais tardios como Plutarco152 e Favorino século li dC são adeptos a distinção entre o discurso filosófico e a filosofia é particularmente nítida A filosofia é antes de tudo uma arte de viver153 Ou como quer Arquesilau os discursos filosóficos teóricos não podem fundar nem justificar essa arte de viver e apenas um discurso crítico pode nela se introduzir ou como pensam Carneada e Cícero os discursos filosóficos teóricos e dogmáticos são 150 Sobre o ecletismo cf I Hadot Du bom et du mauvais usage du terme écletisme dans lhistoiredela philosophie antique in Herméneu tique et ontologie Hommage à Pierre Aubenque Éd R Brague JF Courtine Paris 1990 pp 147162 Sobre o ecletismo na época das Luzes concebido como atitude que consiste em pensar por si mesmo sem obedecer às autoridades cf H Holzhey Der Philosoph für die Welt Eine Chimàre der deutschen Auflklàrung in Esoterik und Exoterik der Philosophie Ed H Holzhey Bâle 1977 p 132 151 Cícero Do destino ll 2425 152 Cf D Babut Du scepticisme au dépassement de la raison Philo sophie et foi religieuse chez Plutarque in Parerga Choix darticles de D Babut Lyon 1994 pp 549581 153 Plutarco Questões de Convivas I 2 613 b 208 As escolas helenísticas apenas meios fragmentários e passageiros utilizados no dia a dia em função de sua maior ou menor eficácia na prática concreta da vida filosófica O ceticismo Com o ceticismo15 a distinção entre filosofia e discurso filosófico chega a seu extremo pois como mostrou com propriedade AJ Voelke155 e como tomaremos a afirmar o discurso filosófico cético finda por sua própria autossu pressão por não dar lugar a um modo de vida e porque se quer além disso não filosófico A filosofia cética isto é o modo de vida a escolha de vida dos céticos é a da paz da tranquilidade da alma Como todos os outros filósofos da época helenística o cético fornece por amor aos homens156 um diagnóstico sobre as causas da infelicidade dos homens e propõe um remédio para o sofrimento uma terapêutica de cura157 Aquele que acredita que uma coisa é bela ou feia por natureza não deixa de ser inquieto Quando vem a faltarlhe o que ele crê ser um bem ele se imagina padecendo os piores tormentos e se lança à perseguição do que crê ser um bem Quando já o possui enfim eis que submerge em múltiplas inquietações que 154 Principal fonte a obra de Sexto Empírico Encontrarseao os prin cipais textos reunidos in CEuvres choisies de Sextus Empiricus trad J Grenier et G Goron Paris 1948 e JP Dumont Les Sceptiques textes choisis Paris 1966 citado Dumont nas notas seguintes 155 AJ Voelke La philosophie comme thérapie de lâme pp 107126 156 Sexto Empírico Hipotiposes 111 280 Dumont p 212 ÁJ Voelke comparou essa filantropia à dos médicos antigos op cit p 109 157 Sexto Empírico Hipotiposes I 2730 Dumont pp 1314 209 A filosofia como modo de vida excitam nele uma busca sem medida e pelo medo de um rever so da fortuna Jaz de tudo para que não lhe seja arrebatado o que acredita ser um bem Enquanto aquele que não se pro nuncia sobre o que é naturalmente bom nem sobre o que e naturalmente mau não foge de nada e não se consome em vãs perseguições Também conhece ele a quietude Em suma aconteceu ao cético o que se diz aconteceu ao pzntor Apeles Um dia ao pintar um cavalo e querendo representar em seu quadro o suor do animal ele deiste furioso joa sobre sua pintura a esponja com a quallzmpava ses zncezs o que teve por efeito deixar um traço de cor 1ue zmztaa o suor do cavalo Os céticos também esperam atzngzr a quzetu de divididos pelo julgamento da contradição entre o que nos aparece e as concepções do espírito e caso ão alcancem zsso suspendem seu juízo Por felicidade a quzetude acompanha a suspensão do juízo como a sombra o corpo Do mesmo modo que Apeles consegue realizar a perfei ção da arte renunciando à arte o cético consegue realizar a obra de arte filosófica isto é a paz da alma renunnando à filosofia entendida como discurso filosófico Com efeito é necessário um discurso filosófico para eliminar o discurso filosófico Conhecemos o discurso cético graças a Sexto Empírico médico que escrevia no fim do século li dC e nos deu preciosas indicações sobre a história do movimento cético Os céticos consideravam Pirro o modelo do modo de vida cético Mas parece que a argumentação técnica do discurso filosófico cético só foi formulada mais tarde talvez no século I aC Enesídemo 158 enumerava dez tipos de argumento que justificam a sus pensão de todo juízo Eles se fundam na diversidade das 158 Hipotiposes I 3639 Dumont p 49 D L IX 7988 210 As escolas helenísticas contradições das percepções dos sentidos e das crenças diversidade de costume e de práticas religiosas diversidade de reações diante de fenômenos raros ou ao contrário frequentes diversidade de percepções segundo os órgãos de percepção nos animais e nos homens ou conforme as circunstâncias e as disposições interiores dos indivíduos ou ainda conforme se considere as coisas em grande ou pequena escala de perto ou de longe sob esse ou aquele ângulo mistura e relação de todas as coisas com todas as coisas donde a impossibilidade de percebêlas em estado puro ilusões dos sentidos Outro cético Agripa159 posterior a Enesídemo propunha cinco outros argumentos contra os lógicos dogmáticos os filósofos se contradizem para provar alguma coisa é necessário ir ao infinito ou mesmo fazer um círculo vicioso ou postular sem fundamento princípios indemonstráveis enfim tudo é relativo todas as coisas se supõem mutuamente e é impossível tanto conhecêlas em seu counto como em seus detalhes O discurso filosófico conduz à epokhé isto é à suspensão da adesão aos discursos filosóficos dogmáticos e chega até a compreender o próprio discurso cético que como um pur gativo evacuase em seus humores dos quais provocou a evacuação160 AJ Voelke comparou com razão essa atitude com a de Wittgenstein rejeitando como uma escada que se tomou inútil no fim do Tractatus as proposições do Tractatus e opondo a filosofia como patologia à filosofia como cura161 O que resta então depois da eliminação do discurso filosó fico pelo discurso filosófico Um modo de vida que será 159 D L IX 88 160 Sexto Empírico Hipotiposes I 206 II 188 AJ Voelke op cit pp 123 ss 161 Id ibid p 116 211 A filosofia como modo de vida então um modo de vida não filosófico É a vida162 ela mesma isto é a vida de todos os dias a vida que levam todos os homns é essa vida que será a regra de vida do cético utilizar tudo simplesmente como os leigos seus recursos naturais seus sentidos e suas inteligências conformarse aos costums às leis às instituições de seu país seguir suas disposições e tendências naturais comer uado s tm fome beber quando se tem sede Retorno 1genuo a sim plicidade Talvez mas de um filósofo ue e udo menos ingênuo Pois está persuadido de que e 1mpossiVel saber se essa coisa ou esse acontecimento é melhor que outra cmsa ou outro acontecimento graças à suspensão de todo juízo de valor sobre as coisas suspensão que diminuirá caso seja levado a sofrêlas suas dores e seus sofrimentos evino com isso acrescentar à dor ou ao revés da fortuna a 1de1a torturante que se trata de um mal Ele se limitará em todas as coisas a descrever o que experimenta o que lhe apare ce sem nada acrescentar ao que são ou ao que valem as coisas contentase em descrever a representação sensível que é a sua e em enunciar o estado de sua sensibilidade sem a elas acrescentar seu parecer163 Como os epicuristas ou os estoicos o cético utilizará então para renovar a todo C ul d t 164 momento sua escolha de Vldaê curtas orm as eVI en es por exemplo não mais isto dÕ que aquilo talvez tudo é indeterminado tudo escapa à compreensão a todo argumento opõe um argumento igual eu sspendo meu juízo O modo de vida cético exige exerocws do pesa mento e da vontade Podese dizer que é a escolha de VIda filosófica de um modo de vida não filosófico 162 Sexto Empírico Contra os moralistas 141166 Dumont pp 206212 163 Hipotiposes I 15 e 197 Dumont pp 12 e 43 164 Hipotiposes I 188205 Dumont pp 4148 212 Capítulo 8 fis escolas filosóficas na era imperial Características gerais As novas escolas Durante o período helenístico e no início da conquista romana as instituições escolares filosóficas estiveram como vimos concentradas em Atenas Ora todas salvo a dos epicuristas desapareceram no fim da República romana ou no início do Império em consequência de um con junto muito complexo de circunstâncias históricas entre as quais a destruição de Atenas por Silas 87 aC talvez seja a mais importante A partir do século I aC abrem se escolas filosóficas em umerosas cidades do Império romano notadamente na Asia e sobretudo em Alexandria e Roma 1 Isso resulta em uma transformação profunda nos métodos de ensino de filosofia Há sempre quatro grandes escolas tomando desta vez o termo escola no sentido de tendência doutrinai o platonismo o aristotelismo o l Cf JP Lynch Aristotles School pp 154207 Glucker Antiochus and the Late Academy pp 373379 213 A filosofia como modo de vida estmosmo e o epicurismo acompanhadas de dois fen menos mais complexos o ceticismo e o cinismo A partir dos séculos III e IV estoicismo epicurismo e ceticismo vão então pouco a pouco quase desaparecer totalmente para dar lugar ao que se denomina o neoplatonismo que é em certo sentido uma fusão do aristotelismo e do platonismo Essa tendência começara a esboçarse desde o início do século I na Academia platônica com Antíoco de Ascalon2 mas só foi definitivamente admitida a partir do século III dC com Porfírio e em seguida com o neo platonismo pósporfiriand O ensino de doutrinas filosóficas não é mais ministrado nas instituições escolares que mantiveram uma relação de continuidade com seu fundador Em cada cidade impor tante há instituições nas quais se pode aprender o ue é o platonismo o aristotelismo o estoicismo ou o epicu rismo Assistese ao término de um processo que tivera o início de seu esboço no fim da época helenística a funcio nalização do ensino de filosofia4 O movimento começou na Atenas do século li aC quando a instituição oficial da efebia ateniense pôs em seu programa de ensino aulas de filosofia escolhidas provavelmente por representantes de uma ou de outra das quatFograndes correntes 5 Por essa participação em um serviço público a cidade dava possi velmente uma remuneração a seus filósofos Seja como for um ensino filosófico municipal remunerado pelas cidades 2 Cícero Novos livros acadêmicos 4 1512 43 3 Cf I Hadot Le probleme du néoplatonisme alexandrin Hiérocles et Sim plicius Paris 1978 pp 7376 4 Cf id Arts libéraux et philosophie dans la pensee anttque Pans 1984 pp 215261 5 Id ibid pp 217218 214 As escolas filosóficas na era imperial tende cada vez mais a generalizarse na era imperial Esse movimento encontra seu apogeu e sua consagração quando o imperador Marco Aurélio funda em 176 aC quatro cátedras imperiais remuneradas pelo Tesouro imperial nas quais serão ensinadas as quatro doutrinas tradicionais pla tonismo aristotelismo epicurismo e estoicismo As cátedras criadas por Marco Aurélio não tiveram nenhuma relação de continuidade com as antigas instituições atenienses mas são por parte do imperador uma tentativa de fazer com que Atenas seja novamente um centro de cultura filosófica E de fato os estudantes afluíram novamente para a antiga cidade Há certa probabilidade de que a cátedra aristotélica de Atenas tenha tido no fim do século li um titular célebre o grande comentador de Aristóteles Alexandre de Afrodísia6 Ao lado desses funcionários municipais ou imperiais houve sempre professores particulares de fUosofia que abriam uma escola por vezes sem sucessor nessa ou na quela cidade do Império por exemplo Amônia Sacas em Alexandria Plotino em Roma Jâmblico na Síria É necessá rio ter claro que a escola platônica de Atenas a de Plutarco de Atenas de Siriano e de Proclo do século IV ao VI é uma instituição privada sustentada pelos subsídios de ricos pagãos que nada teve a ver com a cátedra imperial de platonismo fundada por Marco Aurélio7 Essa escola platônica de Atenas chega a ressuscitar artificialmente a 6 R Goulet e M Aouad Alexandros dAphrodisias in Dictionnaire des philosophes t I pp 125126 P Thillet Introduction a Alexandre de Mrodísia Traité du Destin Paris 1984 pp XLIXL 7 JP Lynch Aristotles School pp 177189 I Hadot Le probleme du neoplatonzsme pp 910 215 A filosofia como modo de vida organização da antiga Academia e a restabelecer proprie dades análogas às da escola de Platão que os escolarcas transmitem uns aos outros Eles se nomeiam como outro ra os diádocos os sucessores e os membros da escola esforçamse para viver segundo o modo de vida pitagó rico que era pensavam eles o dos antigos acadêmicos Tudo isso é uma recriação não a continuação de uma tradição que era viva e ininterrupta O fenômeno da dispersão de escolas filosóficas teve consequências para o próprio ensino Podese falar sem dúvida em uma espécie de democratização com as vanta gens e os riscos que essa situação pode comportar Onde quer que se encontre no Império não é mais necessário viajar muito longe doravante para iniciarse nessa ou na quela filosofia Mas essas múltiplas escolas já não têm em sua maior parte uma relação viva de continuidade com as grandes ancestrais suas bibliotecas já não contêm os textos das aulas e das discussões dos diferentes chefes de escolas que eram comunicados apenas aos adeptos e já não há uma cadeia ininterrupta de chefes de escola É necessário agora voltar às fontes O ensino vai consistir em explicar os textos das autoridades por exemplo os diálogos de Platão os tratados de Aristóteles as obras de Crisipo e de seus sucessores Enquanto na época precedente a atividade escolar consistia antes de tudo em formar os alunos nos métodos de pensamento e de argumentação e os membros importantes da escola frequentemente tinham opiniões muito diferentes nessa época o ensino de uma ortodoxia tornase essencial A liberdade de discussão que sempre existira é muito mais restrita As razões dessa transformação são múltiplas 216 As escolas filosóficas na era imperial Em primeiro lugar os acadêmicos como Arquesilau ou Cameada e os céticos consagraram a maior parte de seu ensi no a criticar as ideias mas também frequentemente os textos das escolas dogmáticas A discussão de texto tornara se uma parte do ensino Além disso com o avanço dos séculos os textos dos fundadores das escolas tornaramse mais difíceis de ser compreendidos pelos aprendizes de filósofos e sobretudo tornaremos a repetir representavase agora a verdade como fidelidade à tradição recebida das autoridades Nessa atmosfera escolar e professora será muito fre quente a tendência em satisfazerse com o conhecimento dos dogmas das quatro grandes escolas sem se preocupar em adquirir uma verdadeira formação pessoal Os aprendizes de filósofos terão muitas vezes a tendência de interessar se mais pelo aperfeiçoamento de sua cultura geral do que pela escolha de vida existencial que a filosofia supõe Não obstante muitos testemunhos dão a entender que a filosofia continua nessa época a ser concebida como um esforço de progresso espiritual como um meio de trans formação interior Os méwdos de ensino a era do comentário Possuímos numerosos testemunhos que nos revelam essa mudança radical na maneira de ensinar que deve ter principiado a esboçarse no fim do século II aC sabemos por exemplo que Crasso um político romano teria lido em Atenas em 110 aC o Górgias de Platão sob a direção do filósofo acadêmico Carmadas8 É necessário contudo 8 Cícero Do orador I 11 47 217 A filosofia como modo de vida especificar que o gênero literário do comentário filosófico era muito antigo O platônico Crantor teria composto por volta de 300 aC um comentário sobre o Timeu de Platão9 A mudança radical que se opera por volta do sé culo I aC consiste no fato de que doravante é o próprio ensino de filosofia que no essencial toma a forma de um comentário de texto Temos sobre isso um precioso testemunho proveniente de um escritor latino10 do século li dC Ele nos narra que o platônico Tauro que ensinava em Atenas nessa época evocava com nostalgia a disciplina que reinava na comunidade pitagórica primitiva opondoa à atitude dos discípulos modernos que dizia ele queriam decidir eles mesmos a ordem na qual aprenderiam filosofia Um arde para começar pelo Banquete de Platão por causa da orgia de Alcibíades outro pelo F edro por causa do discurso de Lísias Há mesmo quem queira ler Platão não para tornar sua vida melhor mas para apurar sua língua e seu estilo não para tornarse mais temperante mas para adquirir mais charme Portanto ensinar filosofia é para os platônicos ler Platão e acrescentemos para osaristotélicos ler Aristóteles para os estoicos ler Crisipo para os epicuristas ler Epicuro Percebemos igualmente nesse relato que na escola de Tauro quando se lê Platão se o lê em certa ordem que corresponde ao programa de ensino isto é às etapas do progresso espiritual Com efeito graças a essa leitura nos 9 Cf Proclo Comentário sobre o Timeu t I p 76 1 Diehl trad Festu giere t I p 1ll 10 Aulo Célio Noites Áticas I 9 8 218 As escolas filosóficas na era imperial diz Tauro tratase de tornarse melhores e mais temperan tes Essa perspectiva não parece contudo entusiasmar particularmente os ouvintes Muitos outros testemunhos nos confirmam o fato de que o curso de filosofia é doravante consagrado antes de tudo à leitura e à exegese dos textos Por exemplo os alunos de Epíteto o estoico comentam Crisipo11 No curso do neoplatônico Plotino a aula tinha início pela leitura dos comentadores de Aristóteles e de Platão e depois Plotino propunha sua exegese do texto comentado12 No período precedente o ensino situavase quase totalmente na esfera da oralidade mestre e discípulos dialogavam o filósofo falava os discípulos falavam e exercitavamse para falar Podese dizer que de alguma ma neira aprendiase a viver aprendendose a falar Doravante aprendese filosofia pela leitura de textos mas não se trata de uma leitura solitária os cursos de filosofia consistem em exercícios orais de explicação de textos escritos Mas fato muito característico em sua quase totalidade as obras filosóficas sobretudo a partir do século III dC são o re gistro escrito seja pelo mestre seja por um discípulo de um comentário oral de texto ou ao menos como muitos tratados de Plotino dissertações sobre questões levantadas pelo texto de Platão Já não se discutem os próprios problemas já não se fala diretamente das coisas mas do que Platão Aristóteles 11 Epíteto Manual 49 alusões aos comentários de textos durante o curso Conversações I 10 8 I 26 13 12 Porfírio Vida de Plotino 14 lO in Porfírio Vie de Plotin T II trad et comm par L Brisson Paris 1992 p 155 e o estudo de M0 Goulet Cazé t I pp 262264 219 A filosofia como modo de vida ou Crisipo disseram dos problemas e das coisas A questão O mundo é eterno substituíse pela questão exegética Podese admitir que Platão considera o mundo eterno se ele admite um artífice do mundo no Ti meu Tratandose essa questão posta sob forma exegética discutirseá final mente a questão básica fazendo que os textos platônicos aristotélicos ou outros digam o que se quer que digam O essencial é doravante sempre tomar seu ponto de partida em um texto MD Chenu13 definiu excelentemente a escolástica da Idade Média como uma forma racional de pensamento que se elabora consciente e voluntariamente a partir de um texto tido como autoritativo Caso se aceite essa definição podese dizer que o discurso filosófico a partir do século I aC começa a tornarse uma escolástica da qual a escolástica da Idade Média será a herdeira Vi mos que sob certo ponto de vista essa época assiste ao nascimento da era dos professores É também a era dos manuais e dos resumos destinados seja a servir de base a uma exposição escolar oral seja a iniciar os estudantes e talvez o grande público nas doutrinas de um filósofo Possuímos por exemplo um Platão e sua doutrina obra do célebre Iet latino Apuleío uma Lição sobre as doutrinas de Platão composta por Alcínoo um Resumo dos dogmas das diversas escolas de Ária Dídimo Em certo sentido podese dizer que o discurso filosó fico dessa época sobretudo sob a forma da qual se reves te no neoplatonísmo considera finalmente a verdade como 13 MD Chenu Introduction à létude de saint Thomas dAquin Paris Vrin 1954 p 55 220 As escolas filosóficas na era imperial revelada De uma parte como já pensavam os estoicos14 existem em todos os homens noções inatas postas neles pela Natureza ou pela Razão universal essas centelhas do lógos permitem um primeiro conhecimento das verdades fundamentais que o discurso filosófico se esforçará para desenvolver e elevar a um nível científico Mas a essa reve lação natural se acresce aquilo em que os gregos sempre acreditaram as revelações feitas pelos deuses a certos ho mens inspirados de preferência na origem de diferentes povos operantes em legisladores em poetas e finalmente em filósofos como Pitágoras Hesíodo relata em sua Teogo nia o que lhe disseram as Musas Nas origens segundo o Timeu de Platão15 Palas Atena revelou aos primeiros ate nienses as ciências divinas a adivinhação a medicina Procurase sempre remontar às origens da tradição de Platão a Pitágoras de Pitágoras a Orfeu Ao lado dessas revelações devemse ter em conta também os oráculos dos deuses proclamados de diferentes maneiras em diferen tes santuários notadamente os de Delfos sabedoria antiga mas também os oráculos mais recentes como os de Dídimo ou os de Claros16 E buscamse também as revelações feitas pelos bárbaros pelos judeus pelos egípcios pelos assírios ou pelos habitantes da Índia Os Oráculos caldaicos parecem ter sido escritos e apresentados como uma revelação no século li dC Os neoplatônicos consideravamnos uma Escritura sagrada Quanto mais uma doutrina filosófica ou religiosa é antiga mais próxima está do estado primitivo 14 D L VII 5354 15 Timeu 24 c 16 Cf L Robert Trois oracles de la Théosophie et un prophete dApollon in Académie des inscriptions et belleslettres comptes rendus de lannée 1968 pp 568599 Un oracle gravé à Oinoanda ibid année 1971 pp 597619 221 A filosofia como modo de vida da humanidade no qual a Razão ainda se fazia presente em toda a sua pureza e é mais verdadeira e venerável A tradição histórica é a norma da verdade verdade e tradi ção razão e autoridade se identificam Um polemista anticristão Celso intitulará sua obra O Verdadeiro Lógos querendo dizer com isso Norma antiga Verdadeira Tradição A investigação da verdade pode consistir apenas na exegese de um dado preexistente e revelado A esco lástica dessa época há de esforçarse para conciliar todas essas autoridades para extrair disso uma espécie de siste ma geral de filosofia17 A escolha de vida Ensinase a filosofia comentando textos e especifiquemos comentandoos de uma maneira ao mesmo tempo muito técnica e muito alegórica mas e aqui tornamos a en contrar a concepção tradicional de filosofia finalmente como dizia o filósofo Tauro para tomarnos melhores e mais temperantes Ensinar filosofia mesmo lendo e co mentando os textos é simultaneamente ensinar um modo de vida e praticálo Considerado formalmente em si mes mo o exercício do comentário já é assim como o era o exercício da dialética um exercício formador na medida em que é um exercício da razão um convite à modéstia um elemento da vida contemplativa Mas além disso o conteúdo dos textos comentados quer se trate de textos de Platão Aristóteles Crisipo ou Epicuro convida a uma transformação da vida O estoico Epiteto18 repreenderá seus 17 Cf P Hadot Thélogie exégese révélation écriture dans la philo sophie grecque in Les Régles de linterprétation Éd par M Tardieu Paris 1987 pp 1334 18 Conversações III 2123 Manual 49 222 As escolas filosóficas na era impe1ial alunos por explicarem os textos apenas para aparecer di zendolhes Antes de exaltarme quando alguém me pede que comente Crisipo eu me ruborizo se não posso mostrar uma conduta que se assemelhe a seus ensinamentos e a eles se harmonize Segundo Plutarco Platão e Aristóteles faziam culminar a filosofia numa epóptica19 isto é como nos mistérios na revelação suprema da realidade transcendente Parece que desde o início do século II dC e vários testemunhos nolo provam20 a filosofia foi concebida como um itinerá rio espiritual ascendente que corresponde a uma hierarquia das partes da filosofia A ética assegura a purificação inicial da alma a física revela que o mundo tem uma causa trans cendente e induz assim a que se estudem as realidades incorpóreas a metafísica ou teologia denominada também epóptica pois ela é como nos mistérios o termo da iniciação leva finalmente à contemplação de Deus Na perspectiva do exercício do comentárioserá necessário para percorrer esse itinerário espiritual ler em certa ordem os textos a comentar Para quem é partidário de Platão devese principiar pelos diálogos morais sobretudo por Alcibíades que trata do conhecimento de si e pelo Fédon que convida a sepa rarse do corpo continuar pelos diálogos físicos como o Timeu para aprender a separarse do mundo sensível e 19 De epoptéia contemplação dos misté1ios e epoptikós aquilo que concerne ao mais elevado grau de iniciação isto é a contemplação optei por transliterar a palavra grega N do T 20 Plutarco Ísis e Osíris 382 d Cf P Hadot La division des parties de la philosophie dans lAntiquité in Museum Helveticum 36 218221 1979 bibliografia 223 A filosofia como modo de vida elevarse enfim aos diálogos teológicos como o Parmênides ou o Filebo para descobrir o Uno e o Bem Eis por que quando Porfírio aluno de Plotino edita os tratados de seu mestre até então só acessíveis aos discípulos confirma dos ele não os apresenta segundo sua ordem cronológica de aparição mas segundo as etapas do progresso espiri tual a primeira Eneada isto é os nove primeiros tratados reúne os escritos de caráter ético a segunda e terceira Eneadas referemse ao mundo sensível e ao que nele cor responde à parte física a quarta a quinta e a sexta Eneadas têm por objeto as divinas a alma o Intelecto e o Uno e correspondem à epóptica As questões de exegese pla tônica tratadas por Plotino nas diferentes Eneadas corres pondem muito bem à ordem de leitura dos diálogos de Platão proposta nas escolas platônicas Essa noção de pro gresso espiritual significa que os discípulos só podem empreender o estudo de uma obra quando chegam ao nível intelectual e espiritual que lhes permita extrair pro veito dela Certas obras são reservadas aos iniciantes outras aos que progridem Não serão expostas em uma obra destinada aos iniciantes questões complexas reservadas aos que progridem21 Por outro lado cada comentário é considerado um exercício espiritual não só porque a investigação do senti do de um texto exige qualidades morais de modéstia e de amor pela verdade mas também porque a leitura de cada obra filosófica deve produzir uma transformação no ouvin te ou no leitor do comentário como atestam por exemplo 21 L Hadot Le probleme du néoplatonisme pp 160164 da mesma autora Introduction cap III a Simplício Commentaire sur le Manuel dÉpictete Leyde 1995 224 As escolas filosóficas na era imperial as palavras finais que Simplício exegeta neoplatônico de Aristóteles e de Epíteto pôs no fim de alguns de seus comentários e que sempre enunciam o benefício espiritual que se pode extrair da exegese deste ou da quele escrito por exemplo a grandeza de alma lendo o tratado Do céu de Aristóteles ou a retificação da razão lendo o Manual de Epíteto O antigo costume que fazia dialogar mestre e alunos no decorrer da aula presente tanto na escola platônica como na aristotélica parece ter sido mantido nas escolas filosóficas do fim da Antiguidade à margem do exercício principal que era o comentário Por exemplo o texto que denominamos Conversações de Epíteto é composto justa mente das notas tomadas por seu aluno Arriano durante as discussões que se seguiam à aula propriamente dita isto é que aconteciam depois da explicação do texto Aulo Gélio relatanos por exemplo que seu mestre o platôni co Tauro permitia a seus ouvintes depois da aula propor lhe as questões que quisessem O próprio Aulo Gélio tinha perguntado a Tauro se o sábio se encoleriza ao que o filósofo lhe teria respondido longamente22 Plotino tam bém nós o sabemos por seu discípulo Porfírio encoraja va seus ouvintes a propor questões o que ocasionava muita tagarelice acrescenta Porfírio23 Ora vemos pelas Conversações de Epiteto e entrevemos nos escritos de Plotino que as respostas do mestre eram na maior parte do tempo destinadas a incitar o discípulo a mudar de vida ou a progredir espiritualmente 22 Aulo Gélio Noites Áticas I 26 111 Para Epiteto cf J Souilhé Introduction a Epiteto Conversações T I Paris 1948 p XXIX 23 Porfírio Vida de Plotino 3 35 225 A filosofia como modo de vida De maneira geral o professor de filosofia continua como nos séculos precedentes não somente a animar o grupo de discípulos reunidos a seu redor que faziam com ele em certas circunstâncias refeições comuns24 e muitas vezes viviam perto do mestre mas também a cuidar de cada um deles A comunidade de vida é um dos elementos mais importantes da formação O professor não se contenta em ensinar mas desempenha o papel de um verdadeiro diretor de consciência que cuida dos problemas espirituais de seus alunos Nesse contexto é necessário assinalar o renascimento nessa época da tradição pitagórica É verdade que desde a época de Pitágoras sempre houve comunidades que se vinculavam a ele que se distinguiam do comum dos mortais por certo gênero de vida os adeptos não comiam carne e praticavam uma vida asséptica na expectativa de ter uma sorte melhor na vida futura25 Seu costume sua abstinência eram um dos alvos favoritos dos autores cômicos26 Eles são vegetarianos nada bebem além de água Um eterno manto no qual fervílha a vermína E o terror do banho nínguém em nossa época Poderia suportar esse regíme 0 gênero de vida dos pitagóricos parece ter consisti do em praticar a akysmata conjunto de máximas em que se misturavam interditos alimentares tabus conselhos 24 Aulo Gélio Noites Áticas XVII 8 e VII 13 25 W Burkert Lore and Science in Ancient Pythagoreanism Harvard University Press 1972 p 199 26 Aristofonte in O Pitagorista citado in Les Présocratiques Éd JP Dumont p 612 226 As escolas filosóficas na era imperial morais definições teóricas e prescrições rituais27 Próximo da era cristã assistese a uma renovação do pitagorismo análoga à das outras escolas Uma literatura pitagórica apócrifa se desenvolve nessa época são compostos os fa mosos Versos de ourrr8 Nas numerosas Vídas de Pítágoras notadamente as de Porfírio29 e de Jâmblico descrevese a vida filosófica idílica que se levava na escola do mestre e a maneira pela qual era organizada a comunidade pita górica primitiva a escolha de candidatos o noviciado que consistia em um silêncio de vários anos a comunidade de bens entre os membros do grupo sua ascese mas também sua vida contemplativa30 Nas comunidades pita góricas recriamse então as especulações sobre os núme ros que se desenvolvem e o platônicos têm a tendência a considerar em virtude do princípio de continuidade da tradição de verdade que o platonismo é o prolongamen to do pitagorismo Plotino e Porfírio A escolha de vida Acabamos de falar do renascimento do pitagorismo Reencontramos esse fenômeno evocando o tratado inti 27 W Burkert Lore and Science pp 150175 28 P C Van der Horst Les Vers dor pythagoriciens edição comentada Leyde 1932 M Meunier Les Vers dor Hiérocles Commentaire sur les Vers dor Paris 1979 29 Porfírio Vie de Pythagore Éd et trad É des Places Paris 1982 Jãmbico Pythagoras tradução de M von Albrecht Darmstadt 1985 30 Tauro in Aulo Gélio Noites Áticas I 9 cf AJ Festugiere Études de philosophie grecque Paris 1971 pp 437462 Sur le De vita pythagorica de Jamblique 227 A filosofia como modo de vida tulado Da abstinência que Porfírio o discípulo de Plotino escrevera para reconduzir Castrício outro membro da escola à prática do vegetarismo Porfírio31 repreende Castrício por ser infiel às leis ancestrais da filosofia isto é à filosofia de Pitágoras e de Empédocles do qual ele fora adepto Porfírio quer aqui simplesmente designar o platonismo concebido como idêntico à filosofia revelada desde as origens da humanidade Mas precisamente essa filosofia apresentase como um modo de vida que engloba todos os aspectos da existência Porfírio tem perfeitamente consciência do fato de que esse modo de vida distinguese radicalmente daquele do restante dos homens Ele não se dirige afirma32 aos homens que exercem ofícios manuais nem aos atletas nem aos soldados nem aos mari nheiros nem aos oradores nem aos políticos mas a quem refletiu sobre essas questões Quem sou eu De onde venho Para onde vou e a quem se fixou no alimento e em outros domínios em princípios diferentes dos que regem os outros gêneros de vida O modo de vida que Porfírio33 recomenda e que é o da escola de Plotino consiste como era o caso na escola de Aristóteles em viver segundo o espírito isto é segun do a parte mais elevada de nós mesmos que é o intelecto Platonismo e aristotelismo se fundem aqui Ao mesmo tempo a perspectiva de uma ação política dos filósofos que existia na Academia e também no pitagorismo pri mitivo desaparece ou ao menos passa a segundo plano A vida segundo o espírito não se reduz a uma atividade puramente racional e discursiva 31 Porfírio Da abstinência I 2 3 e 3 3 32 ld ibid I 27 1 33 ld ibid I 29 16 228 As escolas filosóficas na era imperial A theoría a contemplação que nos conduz à felicidade não consiste em um acúmulo de raciocínios nem em uma massa de conhecimentos aprendidos como se poderia crer Ela não se edifica com isso pedaço por pedaço A quantidade de raciocínios não a Jaz progredir E Porfírio retoma o tema aristotélico nao basta adquirir conhecimentos mas é necessário que esses conhecimentos se tornem natureza em nós que eles cresçam conosco34 Só há contemplação diz Porfírio quando nossos conhecimentos se tornam em nós vida e natureza Ele reencontra por outro lado essa con cepção no Timeu35 que afirmava que quem contempla deve se tornar seinelhante ao que contempla e fazer assim um retorno a seu estado anterior É por meio des sa assimilação dizia Platão que se atinge o objetivo da vida A contemplação não é conhecimento abstrato mas transformação de sP6 Caso a felicidade srga obtida escrevendo discursos seria possível atingir esse fim sem ter o cuidado de escolher seu alimento ou realizar certos atos Mas porque é necessário mudar nossa vida atual para outra vida purificandonos simultaneamente pelos discursos e pelas ações examinemos quais discursos e quais ações predispõem para essa outra vida Essa transformação de si é por outro lado como o queria Aristóteles37 um retorno ao verdadeiro eu que não é senão o espírito em nós o divino em nós38 34 Cf acima p 136 nota 38 35 Timeu 90 a 36 Porfírio Da abstinência I 29 6 37 Cf acima p 123 38 Da abstinência I 29 4 229 A filosofia como modo de vida O retorno não se Jaz a outra coisa senão a nosso verdadeiro eu e a assimilação literalmente a conaturalidade symphysis nos assimila precisamente a nosso verdadeiro eu Nosso ver dadeiro eu é o espírito e o fim que buscamos é viver SeUndo o espírito Encontramos aqui a passagem de um eu inferior ao eu verdadeiro e transcendente que tornamos a verificar ao longo de toda a história da filosofia antiga Porfírio descreverá o modo de vida próprio ao filóso fo separarse da sensação da imaginação das paixões dar ao corpo apenas o estrito necessário afastarse da agitação da multidão como o fizeram os pitagóricos e os filósofos que Platão39 descreve no Teeteto A vida contemplativa implica uma vida ascética Mas essa vida ascética tem tam bém valor em si mesma ela é enfim boa40 para a saúde como testemunha a história da conversão do discípulo de Plotino Rogaciano membro do Senado romano que renuncia a suas funções a sua casa a seus servidores alimentase apenas a cada dois dias e curase assim da doença da gota41 Essa ascese será destinada sobretudo a impedir que a parte inferior da alma atraia para si a atenção que deve ser orientada para o espírito Pois é pela totalidade de nós mesmos que exercemos nossa atenção42 O modo de vida ascético destinase a permitir uma disciplina da atenção 39 Cf acima pp 107108 40 Plotino Eneadas li 9 33 14 11 41 Id Vida de Platina 7 31 42 Da abstinência I 41 5 230 As escolas filosóficas na era imperial tão estrita em Plotino quanto entre os estoicos Como nota Porfírio43 em sua Vida de Platina Sua atenção a si mesmo jamais relaxa senão durante o sono o que o impede ademais até mesmo de alimentarse pobre mente muitas vezes ele não comia sequer pão e a contínua orientação de seu pensamento para o Espírito Isso não impede que Plotino se ocupe do outro Ele é tutor de numerosas crianças que os membros da aristocracia romana lhe confiam até sua morte e ocupase também de sua educação e de seus bens Parece aqui que a vida contemplativa não abole o cuida do do outro e que esse cuidado pode conciliarse também com a vida segundo o espírito Tudo estando à disposição de todos4 ele jamais relaxa no estado de vigília sua atenção para o Intelecto ele está totalmente presente simultaneamente a si mesmo e aos outros A si mesmo significa ao seu verdadeiro eu isto é ao Intelecto No tratado Da abstinência Porfírio afirmava que o fim procurado pelos filósofos é viver segundo o espírito segundo o intelecto que se pode escrever tanto com minúscula como com maiúscula porque se trata a um só tempo de nossa inteligência e da Inteligência divina da qual nossa inteligência participa Mas em sua Vida de Platina lemos45 que o fim e o início são para Platina ser unido ao Deus supremo e aproximarse dele 43 Vida de Platina 8 20 44 Ibid 9 18 e 8 19 45 Ibid 23 718 231 A filosofia como modo de vida O Deus supremo é superior ao Intelecto porque como afirma Porfírio está estabelecido acima do Intelecto e do inteligível Poderseia então pensar que há dois tipos de vida contemplativa e dois objetivos diferentes para a vida Mas o discurso filosófico plotiniano nos explicará essa diferença de nível no mundo divino e nos fará com preender que os dois objetivos são no fundo idênticos Porfírio especifica que Plotino atingiu esse objetivo da união com o Deus supremo quatro vezes durante os seis anos nos os quais frequentou a escola de Plotino e que ele mesmo o alcançou uma vez em toda sua vida quando tinha 68 anos Ele fala de experiências muito raras que se podem qualificar de místicas ou unitivas Esses ins tantes privilegiados e excepcionais destacamse de alguma maneira contra o fundo de uma atividade continuamente voltada para o Intelecto Se essas experiências são raras nem por isso são menos fundamentais para o modo de vida plotiniano que nos aparece agora como o limite do surgimento imprevisível desses momentos privilegiados que conferem todo seu sentido à vida Plotino faz a descrição dessas experiências em vários lugares de seus escritos Daremos apenas um exemplo46 E quando a alma temaclrance de encontráLo quando Ele vem a ela melhor ainda quando Ele lhe aparece presente quando ela se desvia de toda outra presença estando prepa rada para ser a mais bela possível e tendo chegado assim à semelhança com Ele pois essa preparação essa ordenação são bem conhecidas por quem aspratica O vê aparecer subita mente em si pois nada mais há entre eles e já não são dois 46 Plotino Eneadas VI 7 38 34 937 vejamse as notas e o comen tário in P Hadot Plotino Traité 38 Paris 1988 232 As escolas filosóficas na era imperial mas os dois são um com efeito tu não podes mais distingui los a partir do momento em que Ele está aí a imagem disso são os amantes e os amados neste mundo que querem muito fundirse um no outro quando a alma não tem mais consciên cia de seu corpo nem que se encontra neste corpo e ela não diz mais que é diferente Dele homem ou animal ou ser ou tudo pois olhar as coisas é de alguma maneira Jazer diferenças e por outro lado ela não tem prazer em voltarse para elas nem em desejálas mas depois de têLo buscado quando Ele está presente vai a Seu encontro e é para Ele que ela olha em vez de para si mesma e ela não tem prazer em ver quem é ela que olha porquanto certamente ela não trocaria nenhuma de todas as outras coisas por Ele mesmo se lhe fosse dado o céu inteiro pois sabe que nada há de mais precioso e melhor que Ele pois ela não pode subir mais alto e todas as outras coisas mesmo que estejam no alto são para ela descenso de modo que nesse momento lhe foi dado julgar e conhecer perfeitamente que é Ele que ela desEjava e afirmar que nada há que srja preferível a Ele pois lá engano nenhum épossível encontrar seá onde mais verdadeiramente o verdadeiro E o que ela diz portanto É Ele é mais tarde que o pronuncia agora é eu silêncio que o diz e plena de alegria não se engana precisa mente porque plena de alegria e nada diz não por causa do prazer que lhe acomete o corpo mas porque ela se transformou naquilo que era outrora quando era feliz Se acontecesse que todas as coisas ao seu redor fossem destruídas seria isso mesmo o que ela haveria de querer contanto somente que esti vesse com Ele tão grande é a alegria que ela alcançou Há aqui uma tonalidade e uma atmosfera relativamente novas na história da filosofia antiga Aqui o discurso filo sófico serve apenas para mostrar sem exprimir o que o ul trapassa isto é uma experiência na qual todo discurso se 233 A filosofia como modo de vida anula na qual também não há mais consciência do eu in dividual mas somente um sentimento de alegria e presença Essa experiência inscrevese contudo em uma tradição que remonta pelo menos ao Banquete de Platão47 em que se fala da visão súbita de algo de maravilhosamente belo em sua natureza que é justamente o Belo em si visão que Platão assimila à que aparece aos olhos do iniciado nos mistérios de Elêusis E por outro lado se a experiência mística é denominada mística é por causa dos mistérios isto é das visões secretas de Elêusis que se apresentam também como uma visão inesperada Essa visão diz Platão é o ponto da vida no qual a vida vale a pena ser vivida e se o amor pela beleza humana pode nos levar para além de nós mesmos qual não será a potência do amor provocado por essa Beleza48 Encontramse traços dessa tradição em Fílon de Alexandria49 por exemplo neste texto em que o caráter passageiro da experiência é fortemente marcado Quando o intelecto do homem é possuído pelo amor divino quando ele despende todos os seus esforços para chegar ao santuário mais secreto quando ele age com todo seu empenho e com todo seu zelo atraído por Deus esquecese de tudo esquece se de si mesmo não se lembra senão de Deus e se liga a ele 1 Mas quando o entusiasmo declina e quando o desejo diminui em seu fervoi torna a ser homem distanciandose das coisas divinas reencontrando então as coisas humanas que são como ciladas no vestíbulo do templo Não se deve esquecer contudo que essa tendência não é estranha ao aristotelismo na medida em que é na contem 47 Banquete 210 e 4 48 Ibid 211 de 49 Fílon Dos sonhos II 232 234 As escolas filosóficas na era imperial plação que tem por objeto supremo o Pensamento do Pensamento que reside a felicidade do homem Se não falamos aqui do grande comentador de Aristóteles que foi Alexandre de Mrodísia é porque sabemos pouco sobre o que foram sua vida e seu ensino e nada resta do que se poderia50 classificar de aristotelismo místico a propósito da representação que Alexandre fazia da união de nosso intelecto com o Intelecto divino Com a experiência mística estamos na presença de ou tro aspecto da vida filosófica não mais a decisão a opção por um modo de vida mas para além de todo discurso a experiência indizível que invade o indivíduo e arruína toda consciência do eu por um sentimento de presença in exprimível Os níveis do eu e os limites do discurso filosófico Podemse extrair dos cinquenta e quatro tratados de Plotino uma teoria que explique a gênese da realidade a partir de uma unidade primordial o Uno ou o Bem pela aparição de níveis de realidade mais e mais inferiores e mesclados de multiplicidade o Intelecto depois a alma depois as coisas sensíveis Com efeito como Aristóteles e Platão Plotino não escreve para expor um sistema mas para resolver questões particulares apresentadas por seus ouvintes a propósito de seu ensino51 Isso não significa que Plotino não tenha uma visão unificada da realidade mas suas obras são escritos de circunstância Por uma parte 50 Ph Merlan Monopsychism Mysticism Metaconsciousness Problems ofthe Soul in the Neoristotelian and Neoplatonic Tradition La Haye 1963 pp 35 ss 51 Porfirio Vida de Platina 4 11 e 5 5 235 A filosofia como modo de vida também elas têm por fim exortar o ouvinte ou o leitor a tomar uma atitude a adotar um modo de vida O discurso filosófico de Plotino para todos os níveis da realidade conduz a uma ascese e a uma experiência interiores que são o verdadeiro conhecimento pelo qual o filósofo eleva se para a realidade suprema alcançando progressivamente níveis mais e mais elevados e mais e mais interiores da consciência de si Plotino retoma o velho adágio52 somente o semelhante conhece o semelhante Mas isso significa para ele que é somente se tornando espiritualmente semelhante à realidade que se quer conhecer que se pode colhêla A filosofia de Plotino revela assim por outro lado o espírito do platonismo isto é a indissolúvel unidade do saber e da virtude só há saber em e pela progressão existencial na direção do Bem A primeira etapa da ascensão é a tomada de consciên cia pela alma racional do fato de que ela não se confun de com a alma irracional que encarregada de animar o corpo é perturbada pelos prazeres e pelas penas que re sultam da vida do corpo O discurso filosófico pode expor argumentos sobre a distinção entre alma racional e alma irracional mas o que importa não é chegar à conclusão de que há uma alma raGional mas que o próprio eu viva como uma alma racional O discurso filosófico pode esfor çarse para pensar a alma53 considerandoa no estado puro porque toda adição a uma coisa é um obstáculo ao conhe cimento da coisa Mas somente a ascese permite ao eu conhecerse efetivamente como alma separada do que não 52 Empédocles B 109 Demócrito B 164 Les Présocratiques Dumont pp 417 e 887 53 Eneadas N 7 2 10 27 ss 236 As escolas filosóficas na era imperial é ela isto é tornarse concreta e conscientemente o que ela foi sem o saber54 Restringete e examinate Tira o que é supérfluo não cesses de esculpir tua própria estátua Para tanto é necessário que o próprio eu se se pare do que foi acrescentado à alma racional e se veja tal qual se tornou Mas nem o discurso filosófico nem o itinerário interior podem deter a alma racional O discurso filosófico é cos trangido a admitir como fizera Aristóteles que a alma nao pode raciocinar e pensar se não tem inte de si u eu sarnento substancial que funde a poss1b1hdade de racwcmar e de conhecer Desse pensamento desse Intelecto trans cendente a alma reconhece os traços em si mesma sob a forma de princípios que lhe permitem raciocinar5 5 A vida segundo o Espírito em Plotino como em Aristóteles situa se em dois níveis hierarquizados Começa no nível da alma racional iluminada pelo Intelecto e consiste então na atividade dos raciocínios filosóficos e na prática das virtudes guiada pela razão Mas se a reflexão filosófica a conduz para o Intelecto ela terá ainda aqui duas vias e acesso a essa realidade de uma parte o d1scurso filosofico de outra a experiência interior Ela terá ainda como afirma Plotino duas formas de conhecimento de si de uma parte um conhecimento de si como alma racional dependente do Intelecto mas que permanece no plano da razão e de outra um conhecimento de si como se ela mesma se tor nasse o Intelecto Plotino a descreve da seguinte maneira Então conhecerse a si mesmo é conhecerse não mais como homem mas como tornado totalmente outro como se se tivesse 54 Ibid IV 7 2 10 30 e I 6 1 9 7 55 Ibid V 3 49 4 14 e ss 237 A filosofia como modo de vida arrastado a si mesmo para o alto para exercer apenas o melhor da alma56 O eu descobre então que o que há de mais elevado na alma é Intelecto e Espírito e que ela vive constantemente e de maneira inconsciente a vida do Intelecto E precisa mente como dissera Aristóteles57 e como tornara a dizer Porfírio o objetivo da vida é a vida segundo o Espírito a vida segundo o Intelecto É necessário tomar consciência dessa atividade inconsciente é necessário voltar a atenção para essa transcendência que se abre ao eu58 Isto é como um homem que está à escuta de uma voz que deseja ouvir descartará todos os outros sons voltará os ouvidos para o som por que anseia para saber se ele se aproxima da mesma maneira precisamos deixar de lado os ruídos provenien tes do mundo sensível a não ser em caso de necessidade para olhar a potência da consciência da alma pura e preparada para escutar os sons que vêm do alto Chegamos aqui a um primeiro grau da experiência mística pois há aí um excesso da atividade própria à alma racional um tomarse outro um desenraizamento para o alto O eu depois de ser identificado à alma racional identificase agora ao IntelectJtomase Intelecto Mas como representar o que quer dizer tomarse Intelecto Plotino concebe o Intelecto a partir do modelo do Pensamento aris totélico isto é como um conhecimento de si perfeitamente adequado e transparente Ao mesmo tempo ele considera que o Intelecto contém em si todas as Formas todas as 56 Ibid V 349 4 10 57 Cf acima pp 121123 58 Eneadas V 1 10 12 14 238 As escolas filosóficas na era imperial Ideias isso implica que cada Forma é o Intelecto que o Intelecto é a totalidade das Formas que se pensa a si mesma que cada Forma é à sua maneira enquanto Ideia de Homem ou Ideia de Cavalo a totalidade das Formas no Intelecto tudo é interior a tudo Tornarse Intelecto é pensarse na perspectiva da totalidade é pensarse não mais como indivíduo mas como pensamento da totalida de não particularizando essa totalidade mas ao contrário experimentando a concentração a interioridade o acordo profundo59 É necessário ver o Espírito como nosso pró prio eu diz Plotino60 Tornarse Intelecto é finalmente chegar a um estado do eu no qual se atinja essa interio ridade esse recolhimento em si mesmo essa transparência para si mesmo que caracterizam o Intelecto simbolizados pela ideia de uma luz que se vê a si mesma e por si mes ma61 Tomarse Intelecto é atingir um estado de perfei ta transparência na relação consigo mesmo cerceando precisamente o aspecto individual do eu ligado a uma alma e a um corpo pata deixar subsistir apenas a interio ridade pura do pensamento62 Transformase a si mesmo em Intelecto quando separando de si as outras coisas olhase o Intelecto por esse Intelecto olhase a si mesmo por si mesmo Tomarse um indivíduo determinado é separarse do Todo acrescentando uma diferença que diz Plotino63 é 59 Cf P Hadot Introduction a Plotino Traité 38 Paris 1988 pp 3143 60 Eneadas V 8 31 10 40 61 Ibid V 3 49 8 22 cf É Bréhier La Philosophie de Plotin Paris 1982 p 98 62 Eneadas V 3 49 4 29 63 Ibid VI 5 23 12 20 239 A filosofia como modo de vida uma negação Separandose de todas as diferenças indivi duais e de sua própria individualidade tornase o Todo Tornarse o Intelecto é verse a si mesmo e a todas as coisas na perspectiva totalizante do Espírito divino Chegado a esse ponto o eu não é contudo o termo de sua ascensão Segundo a imagem plotiniana o Intelec b d 64 to no qual estamos su mersos e como uma on a que armandose nos ergue para uma nova visão Ainda aqui o discurso filosófico pode demonstrar que para além da Unitotalidade que representa o Intelecto e que é apenas uma unidade derivada é preciso admitir uma unidade absoluta e primeira65 Mas o discurso filosófico chega também a seu limite pois ele não pode exprimir o que é a Unidade absoluta já que falar é ligar os com plementos ou os atributos aos sujeitos por intermédio dos verbos ora o Uno não pode ter complementos ou atributos sendo absolutamente um Dele não se pode sequer dizer o que não é E se nos afiguramos atribuirlhe predicados positivos dizendo por exemplo O Uno é causa de tudo não dizemos o que é ele mesmo mas o que somos em relação a ele isto é que somos seus efeitos Em outras palavras acreditando falar çlçle não falamos senão de nós66 O relativo que somos é sempre relativo a si mesmo e não alcança o absoluto O único acesso que temos a essa realidade transcen dente é a experiência não discursiva a experiência uniti 64 Ibid VI 7 38 36 19 65 Ibid VI 9 9 14 vejase a tradução in P Hadot Plotino Traité 9 Paris 1994 66 Eneadas VI 9 9 3 3754 240 As escolas filosóficas na era imperial va A experiência do Intelecto correspondia a um estado do eu no qual se chega à interioridade e à transparência perfeita consigo mesmo A experiência do Uno corres ponde a um novo estado do eu no qual aquele que chega poderseia dizer se perde e se reencontra Ele se perde porque experimenta a impressão de não ser mais ele mesmo 67 nem para si mesmo mas ser a possessão de outro Mas ao mesmo tempo esse estado de anulação da identidade pessoal é percebido58 como uma manifes tação de si como uma intensificação de si Separan dose de todas as coisas69 não se encontra mais nesse nível a Totalidade mas a Presença que está no fundo de todas as coisas e de si mesmo anterior a toda determi nação e individuação Essa experiência é indizível e ao descrevêla Plotino nada pode dizer sobre o Uno ele descreve unicamente o estado subjetivo de quem a experimenta Contudo essa experiência é o que conduz realmente ao Uno Plotino distingue muito nitidamente aqui ensino discursivo e experiência não discursiva A teologia que só pode ser discursiva nos proporciona um ensino uma instrução sobre o Bem e o Uno mas o que nos conduz ao Uno é a virtude a purificação da alma o esforço para viver a vida segundo o Espírito O ensino é como um poste indicador que nos diz para qual direção se deve ir mas para chegar ao Uno é necessário andar efetivamente por uma estrada que só se trilha sozinho rumo ao Só70 67 Ibid VI 9 9 10 15 e 11 11 68 Ibid VI 9 9 11 22 69 Ibid v 3 49 17 37 70 Ibid VI 7 38 610 VI 9 9 4 1116 241 A filosofia como modo de vida Não obstante o discurso filosófico pode reaparecer para explicar como essa experiência do Uno é possível Se o eu pode atingir o Uno é precisamente porque vive a vida do Espírito Pois há no Espírito no Intelecto dois níveis de uma parte o nível do Intelecto pensante que corresponde ao estado do Intelecto completamente constituído pensandose a si mesmo como totalidade das Formas e de outra o nível do Intelecto nascente que ainda não é Intelecto ainda não pensa mas emana do Uno como uma irradiação e encontrase desse modo em contato imediato com ele Como consequência de tocar o Uno diznos Plotino o Espírito é inflamado de amor inebriado de néctar ele se regozija no gozo71 Tornarse Intelecto pensante já é para o eu uma experiência mística Mas tornarse Intelecto amante é elevarse a uma experiên cia mística superior é situarse no ponto de origem em que todas as coisas emanam do Bem e que é apenas o Intelecto nascente podese representar imaginativamente um ponto situado sobre um raio que chegaria a coincidir com o ponto no qual o raio emana do centro o ponto de nascimento do raio está infinitamente próximo do centro e contudo infinitamente separado pois não é o centro mas um ponto de emanação Tal é a relação do relativo ao absoluto As relações que existem em Plotino entre o discurso filosófico e a opção existencial estão bem resumidas nesta frase de Plotino dirigida contra os gnósticos73 71 Ibid VI 7 38 35 1933 vejase o comentário in P Hadot Plotino Traité 38 pp 3743 e 343345 72 Cf P Hadot Plotino Traité 9 pp 3744 73 Eneadas 11 9 34 15 3940 242 As escolas filosóficas na era imperial Quando se diz Deus sem praticar realmente a virtude Deus não passa de uma palavra Apenas a experiência moral ou mística pode dar con teudo ao discurso filosófico O neoplatonismo pósplotiniano e a teurgia O discurso filosófico e a vontade de harmonização entre as tradições O neoplatonismo posterior a Plotino representado sobretudo por Jâblio Siriano Proclo e Damásquio podna parecer a pnmeira vista um desenvolvimento do Slstema hierárquico de Plotino Mas com efeito ele se caracenza como dissemos por um gigantesco esfor ço e smtese entre os mais disparatados elementos da tradiçao filosofica e religiosa de toda a Antiguidade De acoro corou uma longa tradição o platonismo identificase o pltagonsmo por outro lado o aristotelismo é reconci hao com o platonismo na medida em que os escritos de Aristoteles desde então interpretados em sentido platônico represntam uma pmeira etapa no curso geral do ensin platomco que consiste na explicação de certo número de trataos de Aristóteles74 e também dos diálogos de Platão7s em VIrtude das etapas do progresso espiritual 7 Sore a harrnonzação entre Platão e Aristóteles cf I Hadot Aristote dans l enseignement philosophique néoplatonicien in Revue de Th l de Philosophie 14 407425 1992 sobre a represetação que os c dores neoplatomcos faziam da obra de Aristóteles cf I Had t s l Co t l C o 1rnp Cio mmen azre sur es ategorzes Fase I Leyde 1990 63107 75 Cf A J F pp estugiere Etudes de phzlosophze grecque pp 535550 L ordre de lecture des dialogiies de Platon aux VeVle siecles 243 A filosofia como modo de vida Mas a harmonização não se detém aí Buscase igual mente fazer concordar entre si a tradição filosófica e as tradições reveladas pelos deuses que são os escritos órficos e os Oráculos caldaicos Tratase assim de sistematizar todo dado revelado o orfismo o pitagorismo o caldaísmo com a tradição filosófica pitagórica e platônica Chegase dessa maneira ao que pode nos parecer charlatanices inverossímeis Os neoplatônicos são capazes de encontrar as diferentes classes de deuses dos Oráculos caldaicos em cada uma das articulações da argumentação dialética que se refere às famosas hipóteses sobre o Uno desenvolvidas no Parmênides de Platão Por outro lado as hierarquias de noções extraídas artificialmente dos diálogos de Platão correspondem termo a termo às hierarquias de entidades órficas e caldaicas Assim as revelações caldaicas e órficas penetram no discurso filosófico neoplatônico Não se deve contudo imaginar por isso que o discurso filosófico neoplatônico seja somente uma miscelânea confusa Com efeito toda escolástica é um esforço racional de exegese e de sistematização Ela obriga o espírito a uma ginástica intelectual que é finalmente formadora e que desenvolve a capacidade de analisar os conceitos e o rigor lógico só se pode admirar a tentativade Proclo quando procura expor more geometrico as etapas da processão dos seres em seus Elementos de teologia Os comentários de Proclo sobre Platão são notáveis monumentos de exegese E para tomar outro exemplo as reflexões de Damásquio sobre as aporias implicadas na noção de Princípio de tudo alcançam gran de profundidade Não é de espantar que o sistea e Proclo tenha tido uma influência capital em toda a h1stona do pensamento ocidental sobretudo no Renascimento e na época do romantismo alemão 244 As escolas filosóficas na era imperial A atividade dos neoplatônicos posteriores a Plotino foi consagrada sobretudo à exegese dos textos de Aristóteles e de Platão Certo número de seus comentários sobre Aristóteles serão traduzidos ao latim e desempenharão considerável papel na interpretação que se proporá desse filósofo na Idade Média O modo de vida Para os neoplatônicos como para Plotino o discurso filosófico está estreitamente ligado a práticas concretas e a um modo de vida Mas para Plotino a vida segundo o Espírito consistia em uma vida filosófica isto é na ascese e na experiência moral e mística Para os neoplatônicos posteriores isso tudo é muito diferente Eles conservam sem dúvida a prática filosófica da ascese e da virtude76 mas consideram igualmente importante ou mesmo apa rentemente no caso de Jâmblico mais importante ainda o que eles denominam prática teúrgica A palavra teurgia aparece apenas no século II dC parece ter sido criada pelo autor ou pelos autores dos Oráculos caldaicos para designar ritos capazes de purificar a alma e seu veículo imediato o corpo astral a fim de permitirlhe contemplar os deuses77 Esses ritos comportavam abluções sacrifícios e invocações que utilizavam palavras rituais frequentemen te incompreensíveis O que diferencia a teurgia da magia é que ela não pretende forçar os deuses mas ao contrário 76 Cf por exemplo R Masullo Il Tema degli Esercizi Spirituali nella Vita Isidori di Damascio in Talariskos Studia Graeca Antonio Garzya sexagenario a discipulis oblata Napoli 1987 pp 225242 77 Cf H Lewy Chaldean Oracles and Theurgy 2a ed Paris 1978 uma 3a d está no prelo HD Saffrey Recherches sur le néoplatonisme apres Plotin Pans 1990 pp 3394 P Hadot Théologie exégese pp 2629 245 A filosofia como modo de vida ela se submete à sua vontade efetuando os ritos que su postamente eles mesmos fixaram Não é a filosofia teórica diz Jâmblico78 mas os ritos que não compreendemos os únicos que podem operar nossa união com os deuses Não é por uma atividade de pensamento que podemos realizá los pois sem isso sua eficácia dependeria de nós São os deuses que têm a iniciativa e escolheram os signos mate riais os sacramentos poderseia dizer que atraem os deuses e permitem o contato com o divino e a visão das formas divinas Estamos aqui diante de uma espécie de doutrina da graça salvífica Nessa concepção a ideia de uma união mística não desaparece mas é compreendida na perspectiva geral da teurgia Como os outros deuses o Deus supremo pode manifestarse também eventualmente à alma na experiência mística79 por intermédio do que Proclo denomina o uno da alma isto é da parte supre ma e transcendente da alma o uno da alma correspon deria então de alguma maneira ao signo que na prática teúrgica ordinária atrai os deuses para a alma Essa invasão da teurgia no platonismo é para nós muito enigmática É difícil compreender por que o neoplatonismo do fim da Antiguidade introduziu as práticas teúrgicas na prática filosófica Como bemressaltou HD Saffreyw pode se explicar essa atitude pela representação que os neopla tônicos posteriores fazem do papel do homem em relação 78 Jâmblico Les Mysteres dÉgypte Éd É des Places Paris 1966 li 11 p 96 79 Cf A Sheppard Proclus Attitude to Theurgy in Classical Qua terly 32 212224 1982 HD Saffrey From Iamblichus to Proclus and Damascius in Classical Mediterranean Spirituality Ed A H Armstrong New York 1986 pp 250265 80 HD Saffrey Recherches sur le néoplatonisme apres Plotin pp 5456 246 As escolas filosóficas na era imperial ao divino Então enquanto Plotino considerava que a alma humana está sempre em contato inconsciente com o Inte lecto e o mundo espiritual os neoplatônicos posteriores consideram que a alma porque caiu no corpo tem neces sidade de passar por ritos materiais e sensíveis pará poder voltar ao divino Há aí em suma um traço análogo ao do cristianismo segundo o qual é necessário ao homem cor rompido pelo pecado original a mediação do Lógos encar nado e dos signos sensíveis os sacramentos para poder entrar em contato com Deus Para os dois movimentos es pirituais que dominam o fim da Antiguidade e se opõem um ao outro o neoplatonismo e o cristianismo o homem não pode salvarse por suas próprias forças ele tem neces sidade da iniciativa divina 247 Capítulo 9 Filosofia e discurso filosófico A filosofia e a ambiguidade do discurso filosófico Os estoicos distinguiam a filosofia isto é a prática vivida das virtudes que era para eles a lógica a física e a ética1 do discurso segundo a filosofia isto é o ensino teórico da filosofia dividido em teoria da física teoria da lógica e teoria da ética Essa distinção que tem um sentido muito preciso no sistema estoico pode ser utilizada de maneira mais geral para descrever o fenômeno da filosofia na Antiguidade Reconhecemos ao longo de nosso estudo de um lado a existência de uma vida filosófica mais precisamente de um modo de vida que se pode caracterizar como filosófico e se opõe radicalmente ao modo de vida dos não filósofos e de outro a existência de um discurso filosófico que justifica motiva e influencia essa escolha de vida Filosofia e discursos filosóficos apresentamse assim simultaneamente como incomensuráveis e inseparáveis 1 Cícero Dos termos extremos III 72 D L VII 39 e 41 cf acima pp 198204 249 A filosofia como modo de vida Incomensuráveis em primeiro lugar porque para os antigos se é filósofo não em função da originalidade ou da abundância do discurso filosófico que se inventou ou de senvolveu mas em função da maneira pela qual se vive Tratase antes de tudo de tornarse melhor E o discurso só é filosófico quando se transforma em modo de vida Isso é verdade para a tradição platônica e aristotélica pr a qual a vida filosófica culmina na vida segundo o espirIto Mas também é verdadeiro para os cínicos para os quais o discurso filosófico reduzse ao mínimo quase que a alguns gestos nem por isso são eles considerados menos filóso fos sendo tomados até como modelos de filosoa Outro exemplo homem de Estado romano Catão2 da Utica que se opunha à ditadura de César e pôs fim a sa vida por um suicídio famoso foi admirado pela postendade como um filósofo e mesmo como um dos raros sábios estoicos que existiram é que em sua atividade política ee pratca com rigor exemplar as virtudes estoicas Iso se da tamem com outros políticos romanos como Rutího Rufo e Qumt Múcio Escávola Pontífice que praticaram à letra o estOI cismo mostrando uma desvinculação exemplar na adminis traçã de províncias ou sendo os únicos a levar a sério as prescrições das leis editadas contra o luxo defendeose diante dos tribunais sem fazer apelo aos recursos retoncos mas num estilo estoico3 Podese também evocar o impera dor Marco Aurélio chamado oficialmente o filósofo por seu modo de viver quando ainda se ignorava contudo que ele escrevera as Meditações e quando não poderia apa 2 Sêneca Da constância do sábio 7 1 Da providência li 9 3 Cf I Hadot Tradition sto1cienne et idées politiques au temps des Grecques in Revue des études atines 48 174178 1970 250 Filosofia e discúrso filosófico recer como teórico4 Filósofo também embora não tenha lecionado o senador Rogaciano5 discípulo de Plotino do qual falamos acima que no dia em que deveria assumir suas funções de pretor renuncia a seus cargos políticos e a suas riquezas Vida filosófica e discurso filosófico são incomensuráveis sobretudo porque de ordem totalmente heterogênea O que faz o essencial da vida filosófica a escolha existencial de um modo de vida a experiência de certos estados de certas disposições interiores escapa totalmente à expressão do dis curso filosófico Isso aparece mais claramente na experiência platônica do amor talvez mesmo na intuição aristotélica das substâncias simples e sobretudo na experiência unitiva plotiniana totalmente indizível em sua especificidade pois quem fala dela assim que a experiência é finda já não se situa no mesmo nível psíquico de quando vivia a experiên cia Mas isso é verdade também para a experiência de vida epicurista estoica ou cínica A experiência vivida do prazer puro ou da coerência consigo mesmo e com a Natureza é de ordem distinta da ordem do discurso que a prescreve ou a descreve do exterior Essas experiências não são da ordem do discurso ou das proposições Incomensuráveis mas também inseparáveis Não há discurso que mereça ser denominado filosófico se está se parado da vida filosófica não há vida filosófica se não está estreitamente vinculada ao discurso filosófico Aí contudo reside o perigo inerente à vida filosófica a ambiguidade do discurso filosófico 4 Cf P Hadot La Citadelle intérieure Paris 1992 pp 1631 5 Porfírio Vida de Platina 732 251 A filosofia como modo de vida Todas as escolas denunciaram o perigo que corre o filósofo se imagina que seu discurso filosófico pode bastar se a si mesmo sem estar de acordo com a vida filosófica São constantemente atacados para retomar os termos do platônico Polêmon6 os que procuram se fazer admirar por sua habilidade na argumentação silogística mas se contradizem na conduta de sua vida ou como afirma uma sentença epicurista7 os que desenvolvem discursos vazios os que como afirma o estoico Epiúto 8 dissertam sobre a arte de viver como homens em vez de viver eles mesmos como homens que fazem segundo a expressão de Sêneca do amor pela sabedoria philosophia um amor pela palavra philologia 9 Tradicionalmente os que desenvolvem um discurso aparentemente filosófico sem procurar pôr sua vida em relação com seu discurso e sem que seu discurso emane de sua experiência e de sua vida são denomina dos sofistas pelos filósofos desde Platão e Aristóteles10 até Plutarco que declara que uma vez que os sofistas se distanciam de suas cátedras e põem de lado seus livros e manuais eles não são melhores que os outros homens nos atos reais da vida 11 Ao contrário a vida filosófica não pode passar sem o discurso filosófico com acondição de que esse discurso seja inspirado e animado por ela Ele é parte integrante dessa vida Podese considerar a relação entre vida filo 6 D L N 18 7 In Porfírio Carta a Marcela 31 S Epiteto Conversações Til 21 46 9 Sêneca Carta a Lucílio 128 23 CfJ Pépin PhilologosPhilosophos in Porfírio Vida de Platina t li pp 477501 citado p 219 12 10 Cf acima pp 3234 11 Plutarco Como escutar 43 f 252 Filosofia e discurso filosófico sófica e discurso filosófico de três maneiras diferentes e por outro lado estreitamente ligadas Em primeiro luga o discurso justifica a escolha de vida e desenvolve todas as suas implicações poderseia dizer que é uma espécie de causalidade recíproca a escolha de vida determina o discurso e o discurso determina a escolha de vida jstificandoa teoricamente Em segundo lugar para poder VIver filosoficamente é necessário exercer uma ação sobre si mesmo e sobre os outros e o discurso filosófico se é realmente a expressão de uma opção existencial é nesta perspectiva um meio indispensável Enfim o discurso fi losófico é mesmo uma das formas de exercício do modo de vida filosófico sob a forma do diálogo com outrem ou consigo mesmo Em primeiro lugar o discurso filosófico justifica teori camente a escolha de vida Constatamos isso de uma ex tremidade a outra da história da filosofia antiga para fundar a racionalidade de sua escolha de vida os filósofos devem recorrer a um discurso que vise tanto quanto pos sível a uma racionalidade rigorosa Quer se trate em Platão da escolha do Bem ou entre os epicuristas da escolha do prazer puro ou entre os estoicos da escolha da intenção moral ou ainda em Aristóteles e Plotino da escolha de vida segundo o Intelecto será necessário ada vez desembaraçar com precisão os pressupostos as impli cações as consequências dessa atitude por exemplo como vimos para o estoicismo ou para o epicurismo investigar na perspectiva da opção existencial o lugar do homem no mundo e elaborar desse modo uma física coroada ou não por uma teologia definir também as relações do homem com seus semelhantes e elaborar assim uma éti ca definir enfim as próprias regras do raciocínio utiliza 253 A filosofia como modo de vida das na física e na ética e elaborar ainda uma lógica e uma teoria do conhecimento Devese utilizar uma lingua gem técnica falar de átomos ou dos incorpóreos ou das Ideias ou do Ser ou do Uno ou das regras lógicas da discussão Mesmo para a escolha de vida cínica na qual o discurso filosófico é muito reduzido podese evidenciar em última instância uma reflexão sobre as relações entre a convenção e a natureza Um esforço de conceituali zação e de sistematização mais ou menos grande é reco nhecível de um extremo a outro da filosofia antiga Em segundo lugar o discurso é um meio privilegia do graças ao qual o filósofo pode agir sobre si mesmo e sobre os outros pois se ele é a expressão de uma opção existencial daquele que o sustenta sempre tem direta ou indiretamente uma função formadora educadora psicagó gica terapêutica É sempre destinado a produzir um efeito a criar na alma um habitus a provocar uma transforma ção do eu É a esse papel criador que Plutarco faz alusão quando escreve12 O discurso filosófico não esculpe estátuas imóveis mas tudo o que toca ele o quer tornar ativo eficaz e vivo ele inspira impulsos motores juízosgerdores de atos úteis escolhas em favor do bem Nesta perspectiva podese definilo como um exercício espiritual isto é como uma prática destinada a operar uma mudança radical do ser Os diferentes tipos de discursos filosóficos esforçarseão para realizar essa transformação do eu de diferentes ma 12 Plutarco A filosofia deve conversar sobretudo com os grandes 776 cd 254 Filosofia e discurso filosófico neiras É assim que o discurso puramente teórico e dogmático reduzido poderseia dizer a si mesmo pode já operar isso de alguma maneira apenas com a força da evidência Por exemplo por sua forma sistemáti ca rigorosa pelos traços atraentes da forma de vida que propõem e pela figura do sábio que desenham as teorias epicuristas induzem de alguma maneira a que se faça a escolha de vida que elas acarretam Mas elas podem ainda ampliar seu vigor persuasivo concentrandose em resumos muito densos como o quá druplo remédio dos epicuristas Eis por que estoicos e epicuristas aconselham seus discípulos a rememorar dia e noite não apenas nentalmente mas por escrito seus dogmas fundamentais E nessa perspectiva que se deve com preender o exercício que constituem as Meditações de Marco Aurélio Nessa obra o imperadorfilósofo formula para si mesmo os dogmas do estoicismo Mas não se trata de um resumo ou de um sumário que bastaria reler não se trata de fórmulas matemáticas recebidas de ua vez por todas e destinadas a ser aplicadas mecanicamente Também não se trata de resolver problemas teóricos e abstratos mas de renderse novamente às regras de tal modo que se sinta obrigado a viver como um estoico Não basta reler as pa lavras mas é necessário sempre de novo formular de maneira notável máximas que instiguem à ação o que conta é o ato de escrever de falarse para si mesmo13 De maneira geral podese dizer que a vantagem da estrutura sistemática das teorias estoica e epicurista é que os refinamentos dou trinais podem ser reservados aos especialistas mas que o essencial da doutrina é acessível a um público mais amplo 13 P Hadot La Citadelle Intérieure pp 6466 255 A filosofia como modo de vida há aí uma analogia com o cristianismo no qual se as dis cussões são reservadas aos teólogos o catecismo basta ao povo cristão Essas filosofias podem portanto como dissemos tornarse populares Elas são missionárias Existe outro tipo de discurso aparentemente tam bém de ordem teórica são os que tomam a forma de interrogação de investigação da própria aporia que não propõem dogmas nem sistema mas obrigam os discípulos a um esforço pessoal a um exercício ativo Esses discur sos tendem também a produzir uma atitude um habitus na alma do interlocutor e a conduzilo a uma escolha de vida determinada No diálogo de tipo socrático no qual o mestre simula nada saber e nada ensinar a seu interlocutor este último é finalmente posto em questão ele deve dar razão de si mesmo e da maneira pela qual vive e pela qual viveu As interrogações socráticas levamno a tomar cuidado consigo mesmo e por consequência a mudar de vida O diálogo platônico por exemplo o Sofista ou o Filebo é um exercício mais intelectual porém temse de reco nhecer é antes de tudo um exercício Como vimos ele não tem por objetivo princÍpal e único resolver o proble ma proposto mas fazer o participante tornarse melhor dialético E precisamente ser melhor dialético não é apenas ser hábil em inventar ou denunciar as sutilezas do raciocínio mas antes de tudo saber dialogar com todas as exigências que isso demanda reconhecer a presença e os direitos do interlocutor fundar sua resposta sobre o que o interlocutor reconhece saber pôrse em acordo com ele em cada etapa da discussão é sobretudo submeterse às 256 Filosofia e discurso filosófico exigências e normas da razão da investigação da verdade e finalmente reconhecer o valor absoluto do Bem É sair de seu ponto de vista individual para elevarse a um ponto de vista universal esforçarse para ver as coisas na perspec tiva do Todo e do Bem e transformar com isso sua visão do mundo e a própria atitude interior O discurso filosófico pode então tomar também a forma de uma exposição contínua de um discurso de exortação ou de consolação no qual todos os recursos da retórica serão utilizados para provocar a transformação da alma Enfim terceiro aspecto das relações entre filosofia e discurso filosófico o discurso filosófico é uma das formas do exercício do modo de vida filosófico Como acabamos de ver o diálogo é parte integrante do modo de vida platônico A vida na Academia implica uma constante mudança intelectual e espiritual no diálogo mas também na investigação científica Essa comunidade de filósofos é também uma comunidade de sábios que praticam as ma temáticas ou a astronomia e a reflexão política Mais ainda que a escola platônica a escola aristotélica é uma comunidade de sábios A escolha de vida aristotéli ca é com efeito viver segundo o Intelecto isto é en contrar o sentido de sua vida e seu prazer na investiga ção é portanto finalmente levar uma vida de sábio e de contemplativo fazer investigações muitas vezes coletivas sobre todos os aspectos da realidade humana e cósmica O discurso filosófico e científico que para Aristóteles não pode ser somente dialógico é então também para ele um elemento essencial da vida segundo o espírito Atividade de 257 A filosofia como modo de vida sábio que pode por outro lado excederse em uma intuição mística quando o intelecto humano entra em contato em um contato não discursivo com o Intelecto divino Tornase a encontrar em outras escolas essa comunida de de investigação de discussão de cuidado de si e dos outros de correção mútua tanto como vimos na amiza de epicurista como na direção de consciência estoica ou neoplatônica Reconhecese também um exercício do modo de vida filosófico no discurso de meditação que é de alguma maneira um diálogo do filósofo sozinho consigo mesmo que já encontramos acima O diálogo consigo mesmo é um uso comum em toda a Antiguidade Sabese por exemplo que Pirro surpreendia seus concidadãos porque falava em voz alta consigo mesmo1 e que o estoico Cleanto se fazia censuras da mesma maneira A meditação silen ciosa pode ser praticada em pé e imóvel à maneira de Sócrates ou passeando como dizem o poeta Horácio15 Tu andas silencioso a passo lento através dos bosques salubres tendo na cabeça todos os pensamentos dignos de um sábio e de um homem bom e o estoico Epiteto16 Passeia sozinho conversa contigo mesmo A meditação faz parte de um conjunto de práticas que nem sempre são da ordem do discurso mas que sempre são o testemunho do envolvimento pessoal do filósofo e para ele um meio de transformarse e influenciarse a si mesmo São esses os exercícios espirituais que iremos agora evocar 14 D L IX 64 e VII 171 15 Horácio Epístolas I 4 45 16 Epíteto Conversações 111 14 l 258 Filosofia e discurso filosófico Os exercícios espirituais Ao longo de nossa investigação encontramos em todas as escolas mesmo nas céticas exercícios áskesis meletê isto é práticas voluntárias e pessoais destinadas a operar uma transformação do eu Elas são inerentes ao modo de vida filosófico Analisarei agora as tendências comuns que podem ser verificadas nas práticas das diferentes escolas Préhistória Jamais houve início absoluto na história do pensamen to Podese supor que existiu uma préhistória dos exercí cios espirituais nos pensadores présocráticos e na Grécia arcaica Infelizmente tudo o que conhecemos dos pré socráticos é extremamente lacunar os testemunhos são muito tardios e os fragmentos conservados bastante difíceis de interpretar porque nem sempre podemos entender com certeza o sentido das palavras empregadas Por exemplo Empédocles17 fala da seguinte maneira de uma personagem fora do comum que talvez seja Pitágoras E vivia entre eles um homem de extremo saber que o maior tesouro adquiriu de entranhados pensamentos prapidôn em toda espécie de obras sábias altamente capaz pois sempre que se retesava em todas as entranhas prapi dessin fácil ele de todos os seres se punha a ver cada um não apenas em dez mas em vinte tempos de vida humana 17 Les Présocratiques Empédocles B CXXIX Dumont p 428 Fragmento 129 da tradução brasileira 259 A filosofia como modo de vida Quisse ver aqui uma alusão aos exercícios de memória praticados por Pitágoras18 o que tornaremos a ver mas para o momento podemos considerar que essa rememoração se faz por entranhados pensamentos A palavra prapides empregada duas vezes nesse texto significava originalmen te o diafragma na tensão para segurar a respiração e de maneira figurada a reflexão o pensamento Como a pala vra coração que tem a um só tempo uma significação fisiológica e psicológica JP Vernant19 em continuidade a L Gernet20 considera que o texto de Empédocles faz alusão a um exercício espiritual de rememoração que consiste em técnicas de controle do sopro respiratório pelo diafragma que devem permitir à alma concentrarse para libertarse do corpo e viajar para longe Mas podese admitir que a palavra prapides quando se trata do esforço de rememoração tenha um sentido fisiológico se duas linhas antes ao designar as reflexões e os pensamentos atribui a eles um sentido psicológico Em outro texto de Empédocles21 Feliz o que de entranhas divinas prapidôn adquiriu tesouro e mísero o que sobre deuses obscura opinião mantém encontrase o mesmo sentidopsicológico de prapides con firmado por outro lado pela oposição desse termo a um termo significando opinião A afirmação nesse contexto 18 JP Vemant Mythe et pensée chez les Grecs Paris 1971 t I p 114 p 138 da tradução brasileira 19 Id ibid p 114 e 9596 pp 138 e 119120 da tradução brasileira respectivamente 20 L Gemet Anthropologie de la Grece antique Paris 1982 p 252 21 B CXXXII Dumont p 429 Fragmento 132 da tradução brasi leira 260 Filosofia e discurso filosófico da existência de técnicas de controle respiratório apoiase unicamente na ambiguidade da palavra prapides ora nada prova que a palavra designe o diafragma nessa frase de Empédocles Não quero dizer aqui que não tenham existido técnicas de controle respiratório na tradição filosófica grega A con cepção de alma como um sopro22 bastaria para fazer supor isso Suporseia que o exercício platônico que consiste em concentrar a alma comumente dispersa ein todas as partes do corpo23 deva ser compreendido nessa perspectiva É espantoso também constatar que nas narrativas referentes às mortes de filósofos por exemplo a de dois cínicos Diógenes e Métroclo24 mencionamse frequentemente personagens que teriam posto fim a seus dias prendendo a respiração o que permite supor que práticas desse gênero eram evo cadas nas tradições biográficas Mas quero somente dar aqui um exemplo entre outros das incertezas e dificuldades que pesam sobre todas as reconstruções ehipóteses que se extraem dos présocráticos e da Grécia arcaica JP Vernant25 acrescenta que as técnicas de controle da respiração serão reconstituídas na tradição xamanista O xamanismo26 é um fenômeno social fundamentalmente 22 JP Vemant op cit t li p 111 23 Cf acima pp 107108 24 D L VI 76 e 95 25 JP Vemant op cit t I p 96 e t li p 111 N do T p 362 da tradução brasileira 26 R N Hamayon La chasse à lârne Esquisse dune théorie du charnanis me sibérien Paris Société dEthnologie 1990 Nas linhas que se seguem sirvome da exposição sobre o xamanismo apresentada por R N Hamayon Le chamanisme sibérien réflexion sur un médium in La Recherche 275 416422 abril 1995 261 A filosofia como modo de vida vinculado às civilizações da caça ele permaneceu um fenômeno central na sociedade apenas na Sibéria e na América do Sul mas adaptouse e misturouse a outras culturas e religiões em datas mais ou menos remotas tendo o substrato permanecido mais visível na Escandi návia ou na Indonésia Ele é centrado na figura do xamã personagem que sabe graças a uma ação ritual entrar em contato com o mundo dos espíritos de animais ou de homens vivos ou mortos para permitir a caça a criação de animais ou a cura das almas dos vivos ou dos mortos Desde K Meuli27 e E R Dodds28 quisse ver no xamanismo a origem das representações dos fi lósofos gregos sobre a alma sobre a separação entre alma e corpo também sobre a origem das técnicas de concentração espiritual das representações de viagens da alma fora do corpo desde M Eliade29 a origem igualmente das técnicas de êxtase Serei extremamente reticente sobre esse gênero de explicação por duas razões principais Em primeiro lugar mesmo que se admita essa pré histórica xamanista não é menos verdade que os exercícios espirituais que nos interessam nada têm a ver com os rituais xamanistas mas respondemao contrário a uma rigorosa necessidade de controle racional a qual aparece para nós com os primeiros pensadores da Grécia e com os sofistas e Sócrates Uma comparação muito estreita arriscase a falsear a representação que se faz da filosofia grega 27 K Meuli Scythica in Hermes t 70 1935 pp 137 ss 28 E R Dodds Les Grecs et lirrationnel Paris Aubier 1965 pp 135174 29 M Eliade Le chamanisme et les techniques archaiques de lextase Paris 1968 OU ed 1951 262 Filosofia e discurso filosófico Em segundo lugar pareceme que os historiadores da filosofia fazem do xamanismo uma representação fortemen te idealizada e espiritualizada o que permite ver exemplos dele por toda parte Podese por exemplo falar realmente de Sócrates dizendo com H Joly30 Que Sócrates tenha sido o último xamã e o primeiro filósofo Jaz parte doravante das verdades antropologicamente admitidas O que são verdades antropologicamente admitidas Podese dizer realmente que ele foi o primeiro filósofo E o que quer dizer aqui a palavra xamã Significaria que de acordo com o que é a essência do xamanismo isto é na perspectiva da caça e da pesca a aliança entre as almas humanas e os espíritos animais concebidos a partir do modelo matrimonial Sócrates tem uma esposa ritual que seria um espírito feminino do mundo nutriz filha de espírito doador de caça é denominada espírito da floresta filha de espírito aquático doador de peixe O tempo do ritual é animalizado por sua relação e seu comportamento E o macho dá saltos e gritos repele seus rivais e acasalase com sua fêmea Faço alusão aqui a uma descrição da ati vidade do xamã dada recentemente por meu colega R N Hamayon31 Ele também pareceme iluminou admiravel mente a ambiguidade inerente ao uso do termo transe que é bastante próximo de êxtase para reagrupar o con junto das condutas corporais xamanistas32 Ele se contenta em dizer que o xamã está em transe sem descrever porme norizadamente seus gestos Mas o que importa é precisa 30 H Joly Le Renversement platonicien Paris Vrin 1974 pp 6769 31 R N Hamayon Le chamanisme sibérien pp 418419 32 Id De la portée des concepts de transe extase dans létude du chamanisme in Études mongoles et sibériennes T 25 1994 263 A filosofia como modo de vida mente o detalhe dos gestos corporais tremer ou dar saltos não exprimem o mesmo tipo de relação e dirigemse a tipos de espíritos diferentes33 O simbolismo da aliança com espíritos animais pelo Jato de que implica a animalização ritual do xamã é suficiente para dar conta da estranheza de seu comportamento Ele permite descrever sua natureza normal ou patológica e o caráter ar tificial ou espontâneo de sua conduta Nenhuma necessidade de apelar a um psiquismo particular nem a um condicio namento físico O xamã comunicase pelos movimentos de seu corpo com os espíritos animais como o Jazem entre si espécies diferentes sem linguagem comum Dando saltos ou estendendose inerte não fica fora de si não desmaia nem fica histérico ou cataléptico ele desempenha seu papel Não se trata para ele de atingir um estado ou de viver uma experiência como o querem certas interpretações ocidentais mas de realizar a ação esperada pelos seus Não há lugar para Jazer apelo ao vocabulário do transe do êxtase ou de estados alterados de consciência vocabulário ambíguo que implica entre estado físico estado psíquico e ato simbólico um lugar que nada experimenta Para poder falar de Sócrates como um xamã é neces sário pareceme eliminarâãnoção de xamã tudo o que lhe confere sua especificidade Para H Joly3 o fato de Sócrates ficar à parte e permanecer imóvel para meditar o fato de que ele ocupava seu espírito consigo mesmo35 prova que ele recorria a técnicas bem conhecidas de con trole da respiração Bem conhecidas pareceme exage 33 R N Hamayon Le chamanisme sibérien p 419 34 H Joly op cit p 69 35 Banquete 174 d 264 Filosofia e discurso filosófico rado supostas ou possíveis seria mais exato como mos Pens por minha parte que caso se queira me ditar tranqmlamente devese permanecer imóvel e silencio so e que essa conduta nada tem a ver com o retrato do xamã Dodds fala em relação a isso de um retrato religioso período de arrebatamento rigoroso na solidão e no jejum e que pode incluir uma mudança psicológica de sexo Depois desse período a alma do xamã pode deixar seu corpo viajar para longe para o mundo dos espíritos Mas as realidades são muito mais complexas estando sempre ligadas a certa relação ritual com os es píritos animais ou as almas dos mortos Eliade e Dodds representam o xamanismo como o poder que um indiví duo tem de modificar como quer as relações de sua alma e de seu corpo ao passo que se trata antes da arte de praticar uma conduta simbólica em relação com certas situações concretas E pelo que é o retrato do xamã cito aqui ainda R N Hamayon36 A aliança com um espírito animal funda o aspecto selvagem e espontâneo da conduta ritual do xamã Funda também as condutas informais que envolvem sua carreira fugas recusa de comida sonolência etc Manifestadas à puberdade essas condutas levam a exprimir a entrada em contato com os es píritos animais e a constituir uma prova de virilidade Quase não se vê em tudo isso uma relação com o com portamento de Sócrates Dodds quis ver também traços de xamanimo nas histórias que se relatam sobre personagens como Abaris Arísteas de Proconeso Hermotimo de Clazômenas ou Epimênides que teriam vicyado fora de seu 36 R N Hamayon Le chamanisme sibérien p 419 265 A filosofia como modo de vida corpo A descrição que oferece um escritor tardio da se gunda metade do século II dC portanto nove séculos depois de Arísteas da aventura deste último poderia por outro lado parecer confirmar a representação idealizada que se fazia habitualmente do xamanismo37 jazendo sobre o solo respirando penosamente sua alma aban doando seu corpo vagueia como um pássaro e vê tudo o que esta sob ela a terra o mar os rios as cidades os costumes e as paixões dos homens as naturezas de todo gênero Depois disso tornando a entrar em seu corpo e Jazendoo levantarse servindose novamente dele como um instrumento ela narra o que viu e percebeu J D P Bolton38 mostrou graças a um estudo minucio so u foi sob a influência de um discípulo de Platão Herachdo do Ponto interessado nesse gênero de fenô menos que a história de Arísteas fora interpretada dessa mneira Mas segundo Bolton tudo leva a pensar que Ar1steas que VIVeu no século VII aC teria feito realmente uma viagem de exploração para o Sul da atual Rússia e para as estepes da Ásia e que ao retornar teria escrito um poema intitulado Arimaspea relatando sua aventura Parece que no caso deAristeas ele não fez nenhuma viagem psíquica mas uma autêntica viagem terrestre Ausente durante seis anos foi considerado morto Pensou se então ter sido sua alma que fizera essa viagem em um estado de morte aparente Vêse aqui ainda a incerteza que pesa sobre esse gênero de interpretações xamanistas 37 Máxülo de Tiro Discursos XVI 2 p 60 Dübner in Theophrasti Characteres Ed F Dübner Paris Didot 1877 38 D P Bolton Aristeas of Proconnesus Oxford 1962 266 Filosofia e discurso filosófico Talvez se possam descobrir traços de xamanismo em certos aspectos religiosos e rituais da Grécia arcaica mas é necessário sem dúvida observar a mais extrema prudência quando se trata de interpretar pelo xamanismo as figuras e as práticas desses sábios de Arísteas a Pitágoras que teriam possuído o domínio de sua alma graças a uma disciplina de vida ascética arece que nesse domínio é igualmente legítimo hesitar E o que faz JP Vernant quando escreve a propósito de personagens como Ábaris ou Arísteas39 De nossa parte mais do que com os Jatos de xamanismo estaríamos tentados a estabelecer uma aproximação com as técnicas de tipo ioga Podemos agora voltar ao texto de Empédocles do qual extraímos algumas partes Ele nos deixa vislumbrar dois fatos bem conhecidos em primeiro lugar que Pitágoras acreditava nas reencarnações em seguida que tinha o poder de rememorar suas existências anteriores Diziase que ele tinha a lembrança de ter sido Euforbo40 filho de Pantoos que Menelau ocultou durante a guerra de Troia Os Antigos diziam também que os pitagóricos praticavam pela manhã ou pela tarde exercícios de rememoração pelos quais se duplicavam todos os acontecimentos do dia ou da vigília41 Pensouse que esses exercícios tinham como finalidade última permitir reenviar para a memória as vidas anteriores42 Essa interpretação pode apoiarse sobre um 39 JP Vernant Mythe et pensée chez les Grecs t I pp 114 t II p 110 nota 44 p 362 nota 44 da tradução brasileira 40 Porfírio Vida de Pitágoras 45 W Burkert Lore and Science pp 139141 41 Jâmblico Vida de Pitágoras 164165 42 JP Vernant Mythe et pensée t I p 111 267 A filosofia como modo de vida umco testemunho muito tardio o de Hiérocles escritor do século V aC comentador de um apócrifo neopitagórico os Versos dourados no qual se encontram entre outras coisas conselhos concernentes à prática do exame de consciência Hiérocles depois de ter mostrado a impor tância moral dessa prática acrescenta43 Essa lembrança da vida cotidiana tornase um exercício apropriado para que rememoremos o que fizemos em nossas vidas anteriores e para que possamos nos dar o sentimento de nossa imortalidade Notarseá contudo que duas testemunhas anteriores Diodoro da Sicília44 e Cícero quando evocam a prática pitagórica de rememoração dos acontecimentos da jor nada precedente e dos dias anteriores falam unicamente de exercícios destinados a intensificar as capacidades da memória Para Porfírio45 tratase antes de um exame de consciência pois é necessário se dar conta a si mesmo dos acontecimentos passados e também prever como se agirá no futuro Possuímos muitas descrições da vida na escola de Pitágoras Infelizmente elas são muitas vezes uma projeção do ideal de vida filosófica próprio às escolas bem posterio res ao pitagorismo Não se pode fiar nelas para reconstruir o modelo de vida pitagórico Sabemos que Platão46 elogia va esse modo de vida na República mas não nos dá detalhes sobre seu conteúdo Tudo o que podemos dizer com cer 43 M Meunier Pythagrm Les Vers dor Hiérocles Comentário sobre os Versos dourados versos XLXLIV p 226 44 Diodoro da Sicília Biblioteca histórica X 5 1 Cícero Da velhice 11 38 45 Porfírio Vida de Pitágoras 40 46 Platão República X 600 ab 268 Filosofia e discurso filosófico teza é em primeiro lugar que os pitagóricos do tempo de Pitágoras e depois dele exerceram influência política sobre várias cidades do Sul da Itália fornecendo com isso um modelo à ideia platônica de uma cidade orga nizada e governada por filósofos47 Também podemos dizer que após o revés dessa atividade política existiram tanto no Sul da Itália como no restante da Grécia co munidades pitagóricas que levavam uma vida ascética da qual falamos acima48 Sabemos muito pouco sobre as práticas espirituais que poderiam estar em uso em outros présocráticos Podese somente notar que para tratar de um de seus temas favo ritos a tranquilidade da alma filósofos como Sêneca e Plutarco49 aludiram a uma obra de Demócrito consagrada à euthymia isto é a boa disposição da alma que equivale à alegria Segundo Sêneca ele a procurava em um estado de equilíbrio da alma Podese chegar a esse estado pro curando adaptar a própria ação ao que se é capaz de fazer Tratase de ocuparse de seus negócios Úma ação sobre si mesmo é possível portanto É igualmente notável que uma abundante compilação de sentenças morais tenha sido posta sob o nome de Demócrito50 Por outro lado ele teria escrito também uma obra intitulada Tritogeneia que é um dos epítetos da deusa Palas Atena identificada por ele à sabedoria ou prudência definindo essa sabedo 47 Cf W Burkert Lore and Science pp 109120 e 192208 48 Cf acima pp 226227 49 Sêneca Da tranquilidade da alma 2 3 Plutarco Da tranquilidade da alma 465 c Diógenes Laércio IX 45 cf I Hadot Seneca pp 135 ss P Demont La cité grecque archaique et classique et l idéal de tranquillité Paris 1990 p 271 50 Demócrito B XXXV ss Les Présocratiques Dumont pp 862873 269 A filosofia como modo de vida ria como a arte de bem raciocinar de bem falar e de fazer o que é necessário fazer51 Entre os sofistas Antifonte52 apresenta o interesse bem particular de ter proposto uma terapêutica que consistia em cuidar das mágoas e das penas pela palavra Não sabemos como fazia isso mas podemos encontrar nos fragmentos conservados de suas obras preciosas indicações sobre seu conhecimento da psicologia humana Assinalaremos aqui apenas alguns exemplos Ele sabia por exemplo que não é possível tornarse sábio sem que a própria pessoa tenha experimentado o que é vergonhoso ou mau isto é sem que tenha obtido uma vitória sobre si mesma Também sabe que quem querendo fazer o mal a seu próximo não o faz imediatamente por medo de não se sair bem ou de ver surgir consequências desagradáveis termina frequen temente por renunciar a seu projeto53 Isso significa que a prudência consiste em refletir em tomar certa distância da ação Vislumbrase com isso o papel que desempenha a reflexão na conduta da vida Por outro lado Antifonte tinha a reputação de ser um admirável intérprete dos sonhos Observese esta advertência sobre a unicidade e a gravidade da vida54 Há pessoas que não vivem a vida presente é tudo como se elas se preparassem consagranàolhe todo o seu ardor para viver 51 Demócrito B II Les Présocratiques Dumont p 386 52 Antifonte o Sofista A VIVII Les Présocratiques Dumont pp 1094 1095 Cf G RomeyerDherbey Les Sophistes Paris 1985 pp 110115 M Narcy Antiphon le Sophiste in Dictionnaire des philosophes antiques t I pp 225244 W D Furley Antiphon der Sophist Ein Sophist als Psychotera peut in Rheinisches Museum 135 198216 1992 P Demont La cité grecque archaique pp 253255 53 Antifonte B LVIIILIX Dumont p 1114 54 Antifonte B LIII e LII Dumont p 1112 270 Filosofia e discurso filosófico não se sabe qual outra vida mas não esta e enquanto fazem isso o tempo é perdido Não se pode pôr em jogo a vida como um dado que se torna a jogar Imaginase já ouvir Epicuro ou Sêneca dizer Enquanto se espera viver a vida passa Conjeturase assim graças a alguns exemplos ter exis tido toda uma préhistória da vida filosófica e das práticas a ela vinculadas55 Mas diante da pobreza de fragmentos conservados e da dificuldade de interpretálos descrever com precisão essas práticas demandaria acabamos de vêlo um estudo muito longo Exercícios do corpo e exercícios da alma Embora muitos textos façam alusão a ele não exis te nenhum tratado sistemático codificando de maneira exaustiva uma teoria e uma técnica do exercício áskesis filosófico Podese supor que as práticas faziam antes de tudo parte de um ensino oral e eram vinculadas ao uso da direção espiritual Notarseá somente que existiram tratados Sobre o exercício agora perdidos Sob esse título possuímos apenas um pequeno tratado do estoico Musônio Rufo56 Depois de ter afirmado que os que principiam a filosofar têm necessidade de exercitarse distingue exercícios próprios à alma e exercícios comuns à alma e ao corpo Os primeiros consistirão de um lado em sempre ter à sua disposição portanto em meditar as 55 Sobre essa préhistória cf I Hadot The Spiritual Cuide in Classical Mediterranean Spirituality New York 1986 pp 436444 da mesma autora Seneca pp 10 ss 56 In AJ Festugiere Deux prédicateurs de lAntiquité Téles et Musonius Paris Vrin 1978 pp 6971 271 A filosofia como modo de vida demonstrações que estabelecem os dogmas fundamentais que regem a ação e igualmente em representarse as coisas em outra perspectiva e de outro em querer e procurar apenas os bens verdadeiros entendamos a pu reza da intenção moral Praticaremos exercícios comuns à alma e ao corpo caso nos acostumemos ao frio ao calor à sede à fome à frugalidade da alimentação à du reza da cama à abstinência das coisas agradáveis a suportar as coisas penosas O corpo tornarseá assim impassível à dor e disposto para a ação mas a própria alma graças a seus exercícios se fortificará tornandose corajosa e moderada Essas observações de Musônio são preciosas porque nos permitem entrever que a representação de um exercício filosófico enraízase no ideal do atletismo e da prática habitual da cultura física nos ginásios Do mesmo modo que graças aos exercícios corporais repetidos o atleta dá a seu corpo uma força e uma forma novas graças aos exercícios filosóficos o filósofo desenvolve sua força de alma e transformase a si mesmo A analogia pode ficar ainda mais evidente caso se considere que era precisa mente no gymnasion isto é no lugar onde se praticavam os exercícios físicos quese davam muitas vezes também as aulas de filosofia57 Exercício do corpo e exercício da alma concorrem para esculpir o homem verdadeiro livre forte e independente Demos numerosos exemplos dessas práticas a propó sito de diferentes escolas Mostraremos agora o profundo parentesco que se pode evidenciar entre esses exercícios 57 J Delorme Gymnasion Paris 1960 pp 316 ss e p 466 272 Filosofia e discurso filosófico e reconhecer que eles reconduzem finalmente a dois movimentos de tomada de consciência de si opostos e complementares concentração e dilatação do eu O que unifica essas práticas é o desígnio do mesmo ideal a figura do sábio que apesar das aparentes diferenças as diversas escolas representavam com muitos traços comuns A relação consigo e a concentração do eu A ascese Quase todas as escolas propõem exercícios de ascese a palavra grega áskesis significa precisamente exercício e de domínio de si há a ascese platônica que consiste em renunciar aos prazeres dos sentidos e em praticar um regime alimentar em certas circunstâncias chegando sob a influência do neopitagorismo até a abstinência da car ne de animais ascese destinada a enfraquecer o corpo pelos jejuns e pelas vigílias para melhor viver a vida do espírito há a ascese cínica praticada também por alguns estoicos que faz suportar a fome o frio as injúrias su primir todo luxo todo conforto todos os artifícios da civilização para adquirir resistência e conquistar indepen dência há a ascese pirrônica que se aplica a considerar todas as coisas indiferentes pois não se pode dizer se são boas ou más há a dos epicuristas que limitam seus desejos para chegar ao prazer puro há a dos estoicos retificando seus juízos sobre os objetos e reconhecendo que não se deve prenderse às coisas indiferentes Todas elas supõem um desdobramento pelo qual o eu recusa confundirse com seus desejos e apetites distanciase dos objetos de sua cobiça e toma consciência de seu poder de desli garse deles Ele se eleva com isso de um ponto de vista 273 A filosofia como modo de vida injusto e parcial58 a uma perspectiva universal seja ela da natureza ou do espírito O eu o presente e a morte Os exercícios espirituais correspondem quase sempre ao movimento pelo qual o eu se concentra em si mesmo descobrindo que não é o que acreditava ser que não se confunde com os objetos aos quais se prendia O pensamento da morte desempenha aqui um papel decisivo Vimos que Platão definia a filosofia como um exercício para a morte na medida em que sendo a morte uma separação da alma e do corpo o filósofo separavase espiritualmente do corpo Na perspectiva platônica somos assim reconduzidos à ascese que consiste em descobrir o eu puro e em superar o eu egoísta fechado em sua indi vidualidade separandoo de tudo o que a ele se prendia e ao qual estava preso e que o impede de tomar consciência de si mesmo como o deus marinho Glauco coberto de conchas algas e seixos do qual fala Platão59 A tomada de consciência é um ato de ascese e de desligamento como é patente também em Plotino que aconselha ao eu que se separe do que lhe é estranho60 Se tu não vês ainda tua própria beleza faze como o escultor de uma estátua que deve ser bela tira isto raspa aquilo dei xa tal lugar liso limpa tal outro até fazer aparecer uma bela 58 O autor faz um jogo de palavras que não é possível reproduzir em português partial e partiel Partial remete ao ato de cometer uma injustiça quando se toma partido de alguém ou de uma causa partiel aplicase ao que é uma parte de um todo àquilo que constitui uma parte N do T 59 República X 611 d 60 Plotino Eneadas I 6 1 9 7 ss 274 Filosofia e discurso filosófico aparência na estátua Da mesma maneira tu também tira tudo oque é supérfluo corrige o que é torto purificando tudo o que tenebroso para tornálo mais brilhante e não cesses de esculpzr tua própria estátua até que brilhe em ti a luz divina da virtude O exercício do qual acabamos de falar encontrase também nos estoicos por exemplo em Marco Aurélio61 Ele se exorta a separarse de si mesmo isto é diz ele d e seu pensamento do que os outros fazem ou dizem do qe ele próprio fez ou disse no passado a separa ame de seu eu todas as coisas futuras que podem mqmetalo seu corpo e mesmo a alma que anima seu corpo os acontecimentos provenientes do encadeamento das causas universais isto é do destino as coisas que se prenderam a ele visto que ele se prendeu a elas e ele promete a si mesmo cm isso caso se separe do tempo passado e o futuro e VIVa no presente atingir um estado de tranquihdade e serenidade Nesse exercício o eu é totalmente circunscrito no presnte ele se prepara para viver somente 0 que vive Isto e o presente ele se separa do que fez e disse no passado e do que viverá no futuro Cada um vive apenas o presente momento infinitamente breve O mais da vida diz Marco Aurélio62 ou já se viveu ou está na in crteza O passado não me diz mais respeito o futuro ama nao me diz respeito63 Encontramos aqui a oposição estmca entre o que depende e o que não depende de nós 61 Marco Aurélio Meditações XII 3 1 ss Cf P Hadot La Citadelle Inteneure pp 130 ss e pp 148154 62 Meditações III 10 1 63 Sêneca Cartas a Lucílio 78 14 275 A filosofia como modo de vida O que depende de nós é o presente lugar da ação da decisão da liberdade o que não depende de nós são o passado e o futuro ante os quais nada podemos O pas sado e o futuro podem representar para nós penas ou prazeres imaginários64 Devese compreender bem esse exerooo de concen tração no presente e não imaginar que o estoico não se lembre de nada e jamais pense no futuro O que ele recusa não é o pensamento do futuro e do passado mas as paixões que ele pode ocasionar as vãs esperanças as penas vãs O estoico se quer como homem de ação e para viver para agir é necessário fazer projetos e considerar o passado para prever suas ações Mas precisamente porque só há ação no presente é apenas em função da ação na medida em que o pensamento pode ter qualquer utilidade para a ação que se deve pensar no passado e no futuro É portanto a escolha a decisão a própria ação que de limita a densidade do presente Os estoicos distinguiam duas maneiras de definir o presente A primeira consistia em compreendêlo como o limite entre o passado e o futuro Desse ponto de vista jamais há tempo presente visto que o tempo é divisível ao infinito Mas tratase aí de uma divisão abstrata de ordem matemática o presente reduzindose então a um instante infinitesimal A segunda maneira de conceber o presente consistia em definilo em relação à consciência humana ele representaria uma densidade uma duração que corresponderia à atenção da consciência vivida65 É desse presente vivido que se trata quando se fala de concentração no presente 64 Marco Aurélio Meditações VIII 36 e XII 1 65 Cf P Hadot La Citadelle intérieure p 152 276 Filosofia e discurso filosófico A consciência de si não passa da consciência de um eu que age e vive no momento presente Marco Aurélio por exemplo não cessa de repetir é necessário que e concentre minha atenção no que penso neste momento no que faço neste momento no que me acontecé nest momento de modo que eu veja as coisas como elas se aresentam a mim neste momento de modo que eu d1recwne mmha intenção para a ação que estou em vias de fazer querendo fazer apenas o que serve à comunida de humana de modo que eu aceite como determinado pelo destino o que me acontece neste momento e não depende de mim 66 O exercício da consciência de si remete assim a um eercício de atenção67 a si mesmo prosokhé e de gilân na que supoe que se renova a cada instante a escolha de vida isto é a pureza da intenção a confoidade da vontade do indivíduo com a vontade da Natureza univer sal e que se teham presentes ao esrírito os princípios e s regra de VIda ue o exprimem E necessário que o filosofo seJa a cada mstante perfeitamente consciente do que é e do que faz Essa concetraão no momento presente supõe também como a consoenoa de si platônica um exercício para a morte O pensamento da possibilidade da morte confere seu valor e sua gravidade em todo momento e em toda ação da vida68 66 Marco Aurélio Meditações VII 54 67 Cf Epíteto Conversações N 12 68 Marco Aurélio Meditações II 11 11 5 2 VIl 69 Epíteto Manual 21 Seneca Cartas 93 6 101 7 277 A filosofia como modo de vida Em todos os teus atos ditos e pensamentos procede como se houvesses de deixar a vida dentro de pouco Desempenha cada ação de tua vida como se fosse a ultzma isenta de toda leviandade É da perfeição moral passar cada dia amo se fosse o ultzmo sem comoções nem torpores nem jingzmento Que a morte esteja diante de teus olhos a cad dza e amazs terás algum pensamento baixo ou algum deseJO excesszvo Nessa perspectiva quem dedica toda sua atenção e consciência ao presente considerará que tem tudo no momento presente porquanto tem neste momento e ao mesmo tempo o valor absoluto da existência e o valor al absoluto da intenção moral Nada tem a desejar em d T da a duração de uma vida e toda a etermdade ISSO o d d 69 S 1 ém não poderiam trazerlhe mais fehc a e e a gu tem a sabedoria por um instante nao a abandnaraem favor daquele que a possui desde toda a etermdae A felicidade é inteiramente felicidade como um orculo continua sendo um círculo quer seja pequeno quer seja imenso7o À diferença do espetáculo de danç ou da pea de teatro inacabados caso sejam interrompidos a açao moral é inteiramente perfeita a cada momento71 Esse mo mento presente equivale a toda uma vida odese dizer 1 ha Vlda tive tudo o que podena esperar da rea Izei min vida Posso morrer72 69 Crisipo in Plutarco Das noções comuns contra os estoicos 1062 a in Les Stoiciens éd É Bréhier P 140 1990 7 S C rt 74 27 cf J Kristeva Les Samourazs Pans P O eneca a as d feliz porque e 380 O círculo perfeito quer seja pequeno ou gran e e justo 71 Marco Aurélio Medztaçoes XI 1 l 72 Sêneca Cartas 12 9 101 10 278 Filosofia e discurso filosófico No momento de ir dormir falamos da alegria e do regozijo Eu vivi cumpri a carreira que me assinalou a fortuna Se um deus nós dá o dia seguinte a mais recebemolo com regozijo É plenamente feliz tem a tranquila possessão de si mesmp quem espera o dia seguinte sem inquietude Todo aquele que se diz Eu vivi vive cada dia como um benefício inesperado Apressate para viver e considera cada dia uma vida acabada Aquele para o qual cada dia a sua vida foi completa possui a paz da alma Vêse assim como esse exerooo conduz a olhar o tempo e a vida de maneira totalmente diferente e che ga a uma verdadeira transformação do presente Isso é tanto mais interessante de constatar quanto nessa marca espiritual epicurismo e estoicismo se encontram em mais de um ponto No epicurismo73 há também uma concentração em si e uma tomada de consciência de si ligadas a uma ascese que consiste em limitar os próprios desejos àqueles naturais e necessários que assegurem à carne isto é ao indivíduo um prazer estável Aristóteles74 teria dito Sentir que se vive é um prazer Mas viver é precisamente sentir É necessário dizer Sentir que se sente é um prazer Há para Epicuro uma espécie de tomada de consciência por si mesmo do ser senciente que é precisamente o prazer filosófico o puro prazer de existir Mas para atingir essa consciência de SI e necessano ainda uma vez separar o eu do que lhe é estranho isto é 73 Sobre o presente no estoicismo e no epicurismo cf P Hadot Le présent seul est notre bonheur in Diogime 133 5881 janmar 1986 74 Ética a Nicômaco IX 1170 b L 279 A filosofia como modo de vida não as pmxoes provocadas pelo corpo mas as paixões provocadas pelos desejos vãos da alma E tornamos en contrar aqui ainda a concentração no presente pms se nos deixarmos arrastar e perturbar pela expectativa e pela esperança do futuro é que a alma pensa no pssado e o futuro 75 porque ela não é cerceada pelos deseJOS que nao são nem naturais nem necessários por exemplo a perse guição de riquezas e de honras que só pode ser satisfeita por um longo esforço tão penoso quanto incerto 76 Os insensatos vivem à espera de bens futuros Sabendo que são incertos são consumidos pela ansiedade e pelo medo E mais tarde é o pior de seus tormentos apercebemse de que foi inutilmente que se apaixonaram pelo dinheiro pelo poder ou pela glória Pois eles não retiraram nenhum prazer de todas essas coisas cuja esperança que os tinha inflamado e pela conquista das quais trabalharam tão penosamente A vida do insensato é ingrata e inquieta Ela se rói comple tamente pelo futuro Os epicuristas admitem que se pode proporcionar um prazer estável mas apenas na medida em que o que é do passado o reatualiza77 É assim que Epicuro78 escreve que suas dores físicas são atenuadas pela lembrança dos raciocínios filosóficos discutidos com seus discípulos o que pode significar por outro lado não somente que a lembrança do prazer passado lhe proporciona um prazer presente mas que os raciocínios filosóficos que rememora lhe permitem também superar seu sofrimento 75 D L X 137 cf JF Balaudé ÉpicuTe p 135 76 Cícero Dos tmnos extmmos I 18 60 Sêneca CaTtas 15 9 77 Cf JF Balaudé Épicure p 135 78 D L X 22 cf Balaudé p 128 280 Filosofia e discurso filosófico Como para os estoicos o exerooo espiritual funda mental consiste para os epicuristas em concentrarse no presente isto é na consciência do eu no presente e em evitar projetar seus desejos sobre o futuro O presente basta para a felicidade pois permite satisfazer os desejos mais simples e mais necessários aqueles que proporcionam um prazer estável É esse um dos temas favoritos do poeta Horácio79 Que a alma feliz no presente recuse inquietarse com o que virá em seguida O presente sonho para bem dispor de um espírito sereno Todo o restante levado como um rio Como para os estoicos esse exercício está por outro lado estreitamente ligado ao pensamento da morte É ele que dá seu valor a cada instante e a cada dia da vida Eis por que é necessário viver cada momento como se fosse o último80 Enquanto falamos o zeloso tempo fugiu colhe então d dia sem te fiar no amanhã Convencete de que cada novo dia que se leva será para ti o último Então é com gratidão que hás de receber cada hora inesperada Com gratidão porque cada instante se manifesta na perspectiva da morte como um dom maravilhoso como uma graça inesperada em sua unicidade81 79 Horácio Odes II 16 35 e III 29 33 80 Id ibid I 11 7 Epístolas I 4 13 81 Filodemo Da morte 37 20 in M Gigante Ricerche Filodemee Napo li 1983 pp 181 e 215216 281 A filosofia como modo de vida Receber reconhecendo todo o seu valor cada momento do empo que se acresce como se chegasse por uma chance maravzlhosa e incrível Devese tomar consciência do esplendor da existências2 a maior parte dos homens são inconscientes e consomemse em desejos vãos que ocultam sua própia vida Sêneca estoicos3 dissera Enquanto se espera VIver a VIda passa 84 Ele parece assim fazer eco a esta sentença epKunsta Só se vive uma vez duas vezes não é permitido Portanto é necessário que não durmamos por toda a eternidade mas tu que não és senhor do amanhã tu ainda mandas a ale gria para 0 dia seguinte A vida contudo se consoe e vão nessas esperas e cada um de nós morre sem ter 1amazs usufruído a paz Como 0 estoico 0 epicurista encontra a perfeição o momento presente Para ele o prazer desse moment ao tem necessidade de durar para ser perfeito Um mco instante de prazer é tão perfeito quanto ma eter1dade de prazerBs Epicuro é aqui o herdeiro da teona anstotelica do prazers6 Para Aristóteles da mesma maneia ue o ato de ver é completo e acabado em sua espenfi1dae em cada momento de sua duraçao0 prazer tambem e em ad momento especificamente acabado O prazer nao e 82 Sobre a paz fundada na identidade do ser do seHe da ipseidade e do sentitse existir cf a bela página de M Hulin La Mystzque sauvage p 237 83 Sêneca Cartas I 13 10 84 Sentenças vaticanas 14 m JF Balaude Epzcure P 2 85 Máximas capitais XIX Balaudé p 202 Cícero Dos termos extremos I 19 63 li 27 87 T Kr 86 Aristóteles Ética a Nicômaco X 3 1174 a 17 ss Cf HJ amer Platonismus und hellenistische Philosophie Berlin 1971 PP 188 ss 282 Filosofia e discurso filosófico um movimento que se desenrola no tempo não depende da duração É uma realidade em si que não se situa na categoria do tempo Do prazer epicurista como da virtude estoica podese dizer que sua quantidade e sua duração em nada mudam sua essência um círculo é um círculo quer seja imenso ou minúsculo Eis por que esperar do futuro um aumento do prazer é ignorar a própria nature za do prazer Só há verdadeiro prazer estável e pacificador para quem sabe limitarse ao que pode alcançar no mo mento presente sem deixarse arrastar pela volúpia des medida dos desejos Virtude estoica e prazer epicurista são assim perfeitos e acabados em cada momento Como o estoico o epicurista pode dizer com Horácio87 Senhor de si e feliz é quem pode dizer a cada dia Eu vivi Eu vivi porque eu conheci a atemporalidade do prazer a perfeição e o valor absoluto do prazer estável eu vivi também porque tomei consciência da atemporalidade do ser Nada poderá impedir com efeito que eu esteja no ser que eu tenha chegado ao prazer de me sentir existir88 A meditação epicurista da morte é destinada simultanea mente a fazer tomar consciência do valor absoluto da existência e do nada da morte a proporcionar o amor da vida e a suprimir o medo da morteB9 É uma e a mesma coisa o exercício do bem viver e o exercício de bem mor rer Bem morrer é compreender que a morte enquanto nãoser nada é para nós mas é também regozijarse a cada instante por ter chegado a ser e saber que a morte não pode diminuir em nada a plenitude do prazer de ser Como 87 Horácio Odes III 29 42 88 C Diano La philosophie du plaisir et la société des amis in id Studi e saggi di filosofia antica Padova 1973 p 364 89 Epicuro Carta a Meneceu 126 Balaudé p 193 283 A filosofia como modo de vida bem notou C Diano por trás da ideia segundo a qual a morte nada é para mim há uma intuição ontológica pro funda o ser não é o nãoser não há passagem do ser ao nada Wittgenstein90 pensa em Epicuro quando escreve A morte não é um evento da vida A morte não se vive Se por eternidade não se entende a duração temporal infinita mas a atemporalidade então vive eternamente quem vive no presente Percebese aqui que Espinosa91 não tinha razão em cer to sentido ao opor a meditação da morte à meditação da vida Elas são com efeito inseparáveis uma da outra são no fundo idênticas e condição indispensável da tomada de consciência de si Desse ponto de vista também não se terá razão em opor radicalmente o exercício da morte em Platão por um lado e entre estoicos e epicuristas por outro Pois de um lado e de outro tratase sempre graças ao pensamento da morte de uma tomada de consciên cia de si visto que de uma maneira ou de outra o que pensa sua morte se pensa na atemporalidade do espírito ou na atemporalidade do ser Podese dizer que em certo sentido um dos exercícios filosóficos mais fundamentais é o exercício da morte Concentração em si e exame de consciência Na perspectiva da filosofia vivida que acabamos de ex por tomar consciência de si é um ato essencialmente ético graças ao qual se transforma a maneira de ser de viver e 90 Wittgenstein Tractatus logicophilosophicus 64311 N do T valime da tradução brasileira 91 Espinosa Ética IV proposição 67 284 Filosofia e discurso filosófico de ver as coisas Ter consciência de si é ter consnencia do estado moral no qual se encontra É o que a tradição da espiritualidade cristã denomina exame de consciên cia prática muito disseminada nas escolas filosóficas da An d d 92 E t1gu1 a e ssa prática enraízase em primeiro lugar no simples fato de que o início da filosofia em todas as escolas é a tomada de consciência do estado de alienação de dispersão de infelicidade no qual alguém se encontra antes de converterse à filosofia Ao princípio epicurista93 O conhecimento do erro é o início da salvação responde 0 princípio estoico94 O ponto de partida da filosofia é a consciência de sua própria fragilidade Mas não se trata somente de pensar nas próprias faltas tratase também de constatar os progressos realizados Em relação aos estoicos sabemos que o fundador da escola Zenão recomendava ao filósofo que examinasse seus sonhos para se dar conta dos progressos da alma o que permite supor uma prática de exame de consciência95 Ele pensava que cada um poderia graças a seus sonhos tomar consciência dos progressos que fazia Esses progressos serão reais caso não se veja mais em sonho vencido por alguma paixão vergonhosa ou ainda consentindo com uma coisa má ou injusta ou mesmo cometendoa mas as faculdades de re presentação e de afetividade da alma suavizadas pela razão 92 Cf H Jaeger Lexamen de conscience dans les religions non chré tJennes et avant e christianisme in Numen 6 175233 1959 e Dictionnaire de spiritualité IV 2 1961 cols 17921794 I Hadot Seneca pp 6671 93 Sêneca Cartas 28 9 citando um texto epicurista 94 Epiteto Conversações II 11 1 95 Plutarco Como perceber que se progride na virtude 82 f 285 A filosofia como modo de vida resplandecem como num oceano diáfano de serenidade que nenhuma vaga vem perturbar Platão96 como vimos já constatara que os sonhos per mitem desvelar o estado da alma O tema reaparecerá na espiritualidade cristã97 Embora não seja atestado explicitamente nos textos podese legitimamente supor que o exame de consciên cia tenha sido praticado na escola epicurista pois ele é quase inseparável da confissão e da correção fraternal nela valorizadas Encontrase um traço disso no século II aC na Carta a ArísteaSJ8 que afirma ser um dever do bom rei divulgar todos os seus feitos e gestos do dia para corrigir o que porventura tenha feito de mal No início da era cristã o neopitagorismo retoma em sentido moral os exercícios de memória que praticavam os antigos pitagóricos como se vê nos Versos douradoSJ9 Não deixa o sono cair sobre teus olhos lassos Antes de ter pesado todos os atos do dia Em que falhei Que fiz qual dever omiti Começa por aí e prossegue oexame após o que Condena o malfeito alegrate pelo bem 96 República IX 571 d 97 Evágrio o Pôntico Tratado prático do monge 5456 cf F Refoulé Revês et vie spirituelle daprês Évrage le Pontique in Supplément de la Vie Spirituelle 59 470516 1961 98 Carta a Aristeas 298 cf I Hadot Seneca pp 6869 Tratase de um texto de origem judaica do século ll aC influenciado pela filosofia grega 99 Porfírio Vida de Pitágoras 40 Epíteto Conversações III 10 3 tradução Souilhé 286 Filosofia e discurso filosófico Essa psagem dos Versos dourados será depois frequen temente Citada ou evocada em apoio da prática do exame de consciência pelos estoicos como Epíteto por um filó sf independente como Galeno e sobretudo pelos neopla tomcos como Porfírio e Jâmblico que descrevem a vida das comunidades pitagóricas como o modelo ideal da vida filosófica O médico Galeno100 independente de toda esco la filosófica preocupdo em cuidar não só dos corpos mas tambem das almas VIncula o exame de consciência à dire ção espiritual Aconselhava que se deveria deixar advertir por suas faltas por um homem mais velho e experimentado e também examinarse a si mesmo pela manhã e à tarde SA 10 fi eneca a rma que ele mesmo pratica esse exercício e qu nis segue o exemplo de um filósofo de inspiração neop1tagonca Sexuo que vivia no tempo de Augusto É necessrio pedir a cada dia à alma a apresentação das contas E o que fazia Sextio após a jornada uma vez tendo se retirado a seu quarto interrogava sua alma De qual mal te curaste hoje Qual vício combateste Em que melhoraste Existe algo mais belo do que escrutar toda uma jornada Qal sono se segue a esse exame que é tranquilo profundo e lzvre quando o espírito é elogiado ou advertido quando ele se faz o observador e o juiz secreto de seus pró prws costumes Uso esse poder e a cada dia defendo minha causa diante de mim mesmo Quando se levantou a luz e minha mulher já habituada à minha maneira de agir se 100 Galeno Do iqgnóstico e do tratamnto das paixões próprias da alma de cada um m Galeno LAme et ses passions Ed et trad V Barras T Birchler AF Morand Paris 1995 p 23 101 Séneca Da cólera III 36 13 P Rabbow Seelenführung citado p 24 nota 9 pp 180181 287 A filosofia como modo de vida matou examino toda a minha jornada e meço meus atos e ditos não escondo nada não perco nada Sêneca desenvolve alhures esta comparação com o pro cedimento judiciário102 Faze a função de acusador de ti mesmo depois de juiz em último lugar de advogado Vêse aparecer aqui a noção de tribunal interior da consciência que se encontrará entre outros em Hiérocles103 ao comentar os Versos dourados pitagóricos o tribunal interior de que falará Kantl04 ao observar a esse propósito que nessa si tuação de juiz de si mesmo o eu se desdobra em um eu inteligível que se dá a si mesmo a sua própria lei pono se em um ponto de vista universal e em um eu sensiVel e individual Reencontramos aqui ainda o desdobramento implicado na ascese e na tomada de consciência de si O eu identificase aqui com a Razão imparcial e objetiva Podese supor que o exame algumas vezes era praticado por escrito quando se vê Epiteto105 aconselhar a que se observe exatamente a frequência dos erros se se encolenza todos os dias ou a cada dois três ou quatro dias106 Mas o exame de consciência não se perde habitual mente nessas minúcias Ao contrário é muito menos um balanço positivo ou negativo do estado da alma do que um meio de restabelecer a consciência de si a atenção a si 102 Sêneca Cartas 28 10 103 Hiérocles In Aureum Carmen Commentarius XIX 4044 Ed F Kõhler Stuttgart 1974 pp 80 20 Commentarius sur les Vers dor p 222 trad M Meunier 104 Kant Métaphysique des mreurs II Premiers Príncipes métaphysiques de la doctrine de la vertu I 1 13 trad A Renaut Paris 1994 t II p 295 105 Epiteto Conversações II 18 12 106 I Hadot Seneca p 70 P Rabbow Seelenführung p 182 288 Filosofia e discurso filosófico o poder da razão Constatase por exemplo em Marco Aurélio 107 que se exorta a si mesmo a prepararse para as dificuldades que encontrará com os outros hqmens e recordase das regras de vida fundamentais que regem as relações com o outro Da mesma maneira Galeno108 recomenda no momento de levantarse e antes de exe cutar as atividades do dia que se pergunte se é melhor viver na escravidão das paixões ou ao contrário utilizar o raciocínio em todas as coisas Epiteto109 também acon selha a que se examine pela manhã para recordarse não só do progresso que se deve fazer mas dos princípios que devem guiar a ação Pela manhã tão logo te levantes perguntate O que me resta fazer para conquistar a impassibilidade e a ausência de perturbação O que eu sou Um corpo Uma fortuna Uma reputação Nada disso Mas o quê Sou um ser racio nal Então o que se exige de tal ser Repassa no espírito tuas ações O que negligenciei em relação ao que conduz à felicidade O que fiz de contrário à amizade às obrigações da sociedade às qualidades do coração Que dever omiti nesses assuntos Entreveemse mesmo perspectivas ainda maiores quan do Epiteto110 exortando o filósofo a saber viver apenas consigo mesmo lhe dá o exemplo de Zeus que quando estava só após a conflagração periódica do universo e antes do início de uni novo período cósmico descansa em si mesmo reflete sobre a natureza de seu próprio 107 Marco Aurélio Meditações II 1 108 Galeno Do diagnóstico p 19 109 Epiteto Conversações N 6 34 llO Id ibid III 13 6 289 A filosofia como modo de vida governo e entretémse com pensamentos dignos dele Assim continua Epiteto Também nós devemos conversar com nós mesmos saber passar sem os outros não nos enredar pela maneira de ocupar nossa vida devemos refletir sobre o governo divino sobre nossas re lações com o restante do mundo considerar qual foi até hOje nossa atitude em face dos acontecimentos qual é ela agora quais são as coisas que nos afligem como também podemos remediar isso como se pode extirpálas Aqui o exame de consciência aparece como parte de um exercício muito mais vasto que o da meditação O movimento de concentração em si e de atenção a si está estreitamente ligado a um movimento inverso o de dilata ção e expansão pelo qual seu eu se repõe na perspectiva do Todo de sua relação com o restante do mundo e com o destino que se manifesta nos acontecimentos A relação com o cosmos e a expansão do eu A expansão do eu no cosmos Vimos como um dos exercícios espirituais recomendados por Platão consistia em uma espécie de dilatação do eu na totalidade do real A almadeve tender incessantemente a abraçar em seu conjunto e em sua totalidade as coisas divinas e as humanas contemplar todos os tempos e todos os seresm Desse modo a alma se estende de alguma maneira para a imensidão caminha pelo espaço e gover 111 República VI 486 a Sobre esse tema cf P Hadot La terre vue den haut et le voyage cosmique inJ Schneider et Monique LégerOrine Frontieres et conquête spatiale La philosophie à lépreuve Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1988 pp 3140 290 Filosofia e discurso filosófico na todo o Universo112 enquanto o corpo continua apenas a habitar a cidade O pensamento considerando inane e sem valor todas as coisas merecedoras apenas de desdém paira acima de tudo sonlando os abismos da terra e medindo sua superfície contemplando os astros para além do céu a perscrutar a natureza em universal e cada ser em sua totalidade sem jamais descer a ocuparse com o que se passa a seu lado 113 A contemplação aristotélica da natureza indo do olhar amoroso voltado para a natureza ao prazer maravilhoso que proporcionam as obras da Natureza provoca a mesma elevação de pensamento Há igualmente uma expansão do eu no cosmos entre os epicuristas ela proporciona a volúpia de mergulhar no infinito O mundo que vemos é para o epicurista apenas um dos mundos inumeráveis que se estendem no espaço infinito e no tempo infinito114 É nos espaços inumeráveis infinitos que o espírito alça seu voa e abrese para percorrêlos em todas as direções de modo que jamais veja termo algum nenhum limite no qual possa deterse Visto que o espaço se estende ao infinito para além das muralhas deste mundo o espírito procura saber o que se encontra nesta imensidão na qual pode mergulhar seu olhar tão longe quanto possa e na qual possa voar com um voa livre e espontâneo As muralhas do mundo se desvanecem Vejo no imenso vazio nascer as coisas A terra não me impede de distinguir 112 Fedro 246 bc 113 Teeteto 173 e 114 Cícero Da natureza dos deuses I 21 54 Lucrécio Da natureza II 10441047 e III 16 e 30 291 A filosofia como modo de vida tudo o que sob os meus pés realiza no vazio Ante esse espe táculo sintome tomado por um frêmito de prazer divino Notemos de passagem que como pensam alguns histo riadores não será necessário esperar Copérnico para que as muralhas do mundo se desvaneçam e para que se passe do mundo fechado ao universo infinito115 Como a consciência da existência a contemplação epicurista da natureza é uma elevação à atemporalidade como diz uma sentença epicurista116 Lembrate de que tu nascido mortal e tendo recebido uma vida limitada tu contudo te elevaste graças à ciência da natureza até a eternidade e que viste infinitas coisas as que serão e as que são Entre os estoicos há também um exercício de expan são do eu e essa expansão se faz igualmente no infinito porém não mais no infinito dos universos inumeráveis pois para eles o mundo é finito e único mas na infinitude do tempo no seio do qual se repete eternamente o mesmo desenrolar de acontecimentos que constitui o mundo O eu mergulha na totalidade do mundo da qual experimenta com alegria já que é parte integrante117 Diznos antes quão natual é ao homem estender seu pensa mento no infinito Ele nãoadmite limites senão aqueles que são comuns com o próprio Deus 1 Sua pátria é a que encer ra por seu movimento circular o céu e o mundo 1 115 Para retomar o título do livro de A Koyré Du monde elos à lunivers infini Paris 1973 Do mundo fechado ao universo infinito tradução de Donaldson M Garschagen São PauloRio de Janeiro EduspForense Universitária 1979 116 Sentenças vaticanas 10 Balaudé p 210 117 Sêneca Cartas 102 21 Questões naturais I Prólogo 12 Marco Aurélio Meditações XI 1 3 VII 47 1 X 17 292 Filosofia e discurso filosófico A alma atinge a plenitude e o acabamento da felicidade que pode atingir a condição humana quando ganha as alturas e chega ao interior do seio da natureza 1 ela se apraz em planar no meio dos astros 1 Tendo chegado ao alto ela se alimenta e avulta dele liberta de seus entraves regressa à sua origem A alma percorre o mundo inteiro e o vazio que o rodeia e sua forma e estendese na infinitude do tempo infinito e abraça e concebe o renascimento periódico do tempo Abraçar pelo olhar os cursos dos astros como se eles te do minassem com suas revoluções e constantemente pensar as transformações dos elementos uns nos outros Tais representações purificam as manchas da vida terrestre ConstantertJente imaginar a totalidade do mundo e a totali dade da realidade Na tradição platônica na qual domina a memória da República do Fedro e do Teeteto o voo da alma nos espaços cósmicos é um tema muito frequente118 Aspirando a uma vida de paz e de serenidade eles comple mentam a natureza e tudo o que se encontra nela 1 eles acompanham pelo pensamento a lua o sol as evoluções dos outros astros errantes ou fixos seus corpos permanecem sem dúvida sobre a terra mas eles dão asas às suas almas por quanto elevandose no éter elas observam as potências que aí se encontram como convém a homens que se tornaram cidadãos do mundo O astrônomo Ptolomeu no qual se encontram ecos das doutrinas platônica estoica e aristotélica exprime também em um epigrama que lhe é atribuído com alguma verossimi 118 Fílon de Alexandria De specialibus legibus 11 45 293 A filosofia como modo de vida lhança a impressão que experimenta ao unirse à vida di vina quando voa pelo pensamento nos espaços celestes119 Eu o sei sou mortal e não duro senão um dia Mas quando acompanho em seu curso circular as filas rápidas dos astros meus pés não tocam mais a terra vou à presença do próprio Zeus me fartar de ambrosia como os deuses Em todas as escolas que o praticam esse exercício de pensamento e de imaginação consiste finalmente para o filósofo em tomar consciência de seu ser no Todo como ponto minúsculo e de frágil duração mas capaz de dilatarse no campo imenso do espaço infinito e de colher em uma única intuição a totalidade da realidade O eu há de experimentar assim um duplo sentimento o da pequenez ao ver sua individualidade corporal perdida no infinito do espaço e do tempo e o de sua grandeza ao experimentar seu poder de abraçar a totalidade das coisas120 Podese dizer que se trata aí de um exercício de desligamento de distanciamento destinado a nos ensinar a ver as coisas com imparcialidade e objetividade É o que os modernos denominarão o ponto de vista de Sírio Renan121 escreverá em 1880 Quando se põe no pontode vista do sistema solar nossas revoluções mal têm a amplitude de movimentos do átomo Do ponto de vista de Sírio ainda menos Inútil dizer que essa visão racional e universal nada tem a ver com o pretenso transe do xamã 119 Tradução Aj Festugiere La Rioélation dHermes Trismégiste T I Paris 1944 p 317 Antologia palatina IX 577 120 Cf P Hadot La Citadelle intérieure pp 195198 121 E Renan illuvres completes T II Paris 1948 p 1037 294 Filosofia e discurso filosôfico O olhar do alto Das alturas às quais se eleva pelo pensamento do alto o filósofo lança um olhar à terra e aos homens e os julga por seu justo valor Como diz um texto de filosofia chinesa122 Ele vê as coisas à luz do Céu A visão da totalidade do ser e do tempo da qual fala a República de Platão conduz a que se despreze a morte E no Teeteto para o filósofo que percorre toda a vastidão do real todos os negócios humanos são mesquinharias e nada e ele considera bem pequenas as posses dos homens ele que está habituado123 a abraçar com o olhar a terra inteira Esse tema é reencontrado no famoso Sonho de Cipião no qual Cícero narra como Cipião Emiliano viu aparecer em sonho seu avô Cipião o Africano Transportado então para a Via Láctea donde contempla todo o universo ele vê do alto a terra que lhe parece como um ponto de modo que tem vergonha das pequenas dimensões do Império romano Seu avô o faz observar a existência de vastas ex tensões desérticas para fazêlo sentir como é minúsculo o espaço no qual pode estenderse o renome ao qual se atribui tanto valor124 Sob a influência de uma fonte neopitagórica Ovídio125 no fim das Metamorfoses põe estas palavras na boca de Pitágoras 122 Fong YeouLan Précis de philosophie chinoise Paris 1952 p 128 123 Teeteto 174 e 124 Cícero República VI 9 9 Vejase Aj Festugiere La Rioélation dHermes Trismégiste T II Paris 1944 pp 441459 125 Ovídio Metamorfoses XV 147 ss Metamorfoses in Maria da Glória Novak org Poesia lírica latina 2a ed São Paulo Martins Fontes 1992 295 A filosofia como modo de vida Quero encontrar meu caminho entre os astros supremos quero abandonar a terra moradia inerte quero me Jazer levar pelas nuvens do alto eu veria os homens errando ao acaso e tremendo por falta de razão ante a ideia da morte Os epicuristas e os estoicos recomendam também essa atitude Do alto das regiões serenas Lucrécio126 volta seu olhar para os homens e os vê errar por um lado e outro e procurar ao acaso o caminho da vida Para Sêneca127 a alma do filósofo transportada para o meio dos astros lança do alto do céu um olhar à Terra que lhe parece um ponto As guerras por fronteiras que os homens fazem entre si parecem ridículas e as tropas que invadem os territórios são apenas formigas que combatem num espaço estreito É isso o que pensa o cínico Menipo na brilhante nar ração de Luciano intitulada Icaromenipo quando tendo chegado à lua vê os homens brigar estupidamente pelos limites de um país e os ricos orgulharse de suas terras que diz ele não são maiores que um átomo de Epicuro Ele também ao ver do alto os homens comparaos a for migas Em outra obra intitulada Garante o barqueiro dos mortos Caronte olha de uma altura vertiginosa a vida dos homens sobre a Terra e a loucura de suas ações e as examina pensando que iogaos liomens morrerão Precisamente não é indiferente que esse observador seja o barqueiro dos mortos Olhar do alto é olhar as coisas na perspectiva da morte Nos dois casos olhamse as coi sas com afastamento distância recuo objetividade tais quais são em si mesmas repondoas na imensidão do 126 Lucrécio Da natureza 11 8 127 Sêneca Questões naturais I Prólogo 710 296 Filosofia e discurso filosófico universo na totalidade da natureza sem lhes acrescentar os falsos valores que emprestam a elas nossas paixões e as convenções humanas O olhar a partir do alto muda nossos juízos de valor sobre as coisas O luxo o poder a guerra as fronteiras os cuidados da vida cotidiana tornam se ridículos Vêse a tomada de consoencia de si quer seja no movimento de concentração em si ou no movimento de expansão para o Todo requer sempre o exercício da morte que é de alguma maneira desde Platão a essência da filosofia A física como exercício espiritual Já falamos do exercício espiritual da física128 A ex pressão soa estranha a nossos ouvidos modernos mas corresponde exatamente à representação que se fez tra dicionalmente da física na filosofia antiga ao menos a partir de Platão De maneira geral a física antiga não pretende propor um sistema de natureza totalmente rigoroso em todos os detalhes Há indiscutivelmente alguns princípios gerais de explicação por exemplo a oposição entre a escolha do melhor e a necessidade no Timeu ou o vazio e os átomos em Epicuro há também uma visão global do universo Mas para a explicação de fenômenos particulares o filósofo antigo não pretende alcançar a certeza ele se contenta em propor várias ou uma única explicação veros símil ou razoável que lhe satisfazem o espírito ou lhe 128 Cf acima p 200 297 A filosofia como modo de vida proporcionam prazer A propósito dos metais Platão faz esta observação129 Não é nada difícil explicar as outras substâncias desse tipo de metais sempre de acordo com o mito verossímil esse ti po de narração dá a todo homem que se entrega a um prazer sem remorso à guisa de recreação pondo de lado os discur sos relativos às realidades que sempre são e considerando a verossimilhança das coisas sujeitas ao devir a possibilidade de pôr em sua vida um momento de recreação moderada e razoável Aqui como sempre é necessário ter em conta a ironia platônica que simula não levar a sério o que lhe está no coração mas não resta dúvida que Platão considera que as coisas naturais produzidas pelos deuses por fim escapam a nosso conhecimento De maneira geral podese dizer que os escritos da Antiguidade que se reportam à física não são tratados nos quais de uma vez por todas seria exposta uma teoria definitiva e sistemática dos fenômenos físicos examinados por si mesmos Sua finalidade é outra Ensinase a tratar os fenômenos de maneira metódica caso de Aristóteles ou a consagrarse ao que Epicuro denomina o exercício energêma contí11uo da ciência da natureza physiologia exercício diz ele130 que conduz ao ponto mais alto a serenidade nesta vida ou ainda a elevar o espírito pela contemplação da natureza Esse exercício tem finalidade moral cuja tônica é dife rente sem dúvida nas diversas escolas mas que é sempre 129 Timeu 59 cd Cf J Mittelstrass Die Rettung der Phiinomene Berlin 1962 p llO 130 Epicuro Carta a Heródoto 36 Balaudé p 152 298 Filosofia e discurso filosófico reconhecida Isso já é verdadeiro no Timeu Platão131 convida a alma humana a imitar no movimento de seus pensamen tos a alma do mundo e a atingir assim o objetivo da vida humana Para Aristóteles a prática da investigação leva a alegria à alma e fála atingir assim a felicidade suprema da vida muitas vezes o filósofo atingirá apenas o verossímil o eulogon o que não satisfaz o espírito mas lhe proporciona uma alegria132 Para Epicuro o exercício da ciência da na tureza liberta do medo dos deuses e do temor da morte É em um texto de Cícero inspirado pela filosofia da Nova Academia que se encontrará talvez a melhor descrição da ffsica concebida como exercício espiritual Como bom discí pulo de Arquesilau e de Cameada ele começa por retomar as reflexões platônicas sobre as incertezas ligadas ao conhe cimento da natureza e notadamente sobre as dificuldades da observação e da experimentação Mas as investigações físicas não têm menos uma finalidade moraP33 Não penso que seja necessário renunciar às questões dos fí sicos A observação e a contemplação da natureza são uma espécie de alimento natural para as almas e os espíritos Nós nos corrigimos ampliamos leio lati ores olhamos do alto as coisas humanas e contemplando as coisas superiores e celestes desprezamos nossas coisas humanas como mesquinhas e estrei tas A investigação das coisas que são as maiores e ao mesmo tempo as mais obscuras nos dá prazer se nessa investigação alguma coisa de verossímil se nos apresenta nosso espírito é tomado por um nobre prazer humano 131 Timeu 90 a 132 JM Le Blond Aristote philosophe de la vie Paris 1944 p 71 133 Cícero Lucullus 41 127 299 A filosofia como modo de vida No início de suas Questões naturais Sêneca134 também vê na elevação da alma a principal justificação da física Contemplar essas coisas estudálas consagrarse a elas absorver se nelas não é exceder a condição mortal e ter acesso a uma condição superior Qual proveito tu me dizes poderás tirar de teus estudos Se não por outra coisa certamente por isso saberei que tu és pequeno quando eu tomar a medida de Deus Além disso acompanhada ou não de um esforço de explicação racional a contemplação da natureza tem uma significação existencial É a maior felicidade na Terra segundo o poeta Menandro135 talvez influenciado por Epicuro A maior felicidade a meus olhos 1 antes de retornar bem rápido de onde vimos é ter contemplado sem perturbação seres augustos o Sol que brilha sobre todos os astros a água as nuvens o Jogo Vivase cem ou alguns anos sempre o mesmo espetáculo se oferece a nós e jamais se verá outro que seja mais digno de homenagem Tratase aqui de uma tradição constante na filosofia antiga o que confere sentido e valor à vida humana é a contemplação da Natureza e é graças a essa contemplação que cada dia é uma festa pira o homem bom136 É no estoicismo que o exercício da física ganha todo seu valor Mais que de qualquer outra coisa o estoico tem consciência de estar a cada instante em contato com o 134 Sêneca Questões naturais I Prol 17 135 Tradução de AJ Festugiêre La Révélation dHerrnes Trismégiste t II pp 165 e 169 136 Plutarco Da tranquilidade da alma 477 ce 300 Filosofia e discurso filosófico universo inteiro É que em cada acontecimento presente o universo inteiro está implicado137 O que quer que te aconteça estava para ti preparado desde a eternidade e a urdidura das causas desde o tempo infinito havia entretecido tua substância com sua ocorrência Deves conformarte com o que te acontece por duas razões primeira porque foi Jeito para ti prescrito para ti e de certo modo se relacionava contigo desde o alto na urdidura das causas mais veneráveis Tudo o que te acontece estava desde o início determinado e urdido para ti desde o Todo Assim a concentração do eu no presente e a dilatação do eu no cosmos realizamse em um único instante Como o diz Sêneca138 Ele gozava do presente sem depender do que ainda não existe 1 Ele é sem esperança e sem desejo não se lança para um objetivo problemático pois se satisfaz com o que possui Ele não se satisfaz com pouca coisa pois o que possui é o universo 1 Como Deus ele diz Tudo é para mim Em todo momento ao encontrarme ante cada aconte cimento estou em relação com todo o desenrolar passado e futuro do universo E a escolha de vida estoica consiste precisamente em dizer sim ao Universo em sua totalida de em querer que o que acontece aconteça como aconte ce Marco Aurélio139 diz ao Universo Temos o mesmo amor Ora é a física que faz compreender que tudo está 137 Marco Aurélio Meditações X 5 V 8 12 IY 26 138 Sêneca Dos benefícios VII 2 e 3 3 139 Marco Aurélio Meditações X 21 301 A filosofia como modo de vida em tudo e que como diz Crisipo140 uma única gota de vinho pode misturarse a todo o mar e estenderse ao mundo inteiro O consentimento ao destino e ao Universo renova do por ocasião de cada acontecimento é a física praticada e vivida Esse exercício consiste em pôr a razão individual em acordo com a Natureza que é a Razão universal isto é em igualarse ao Todo a mergulliar no Todo141 em não ser mais homem mas Natureza Essa tendência ao despo jamento do homem é constante nas mais diversas escolas desde Pirro que como vimos dizia que era difícil despojar o homem até Aristóteles para quem a vida segundo o espírito é sobrehumana e até Plotino142 para quem na experiência mística não se é mais homem A relação com o outro Ao longo de toda nossa apresentação das diferentes escolas filosóficas encontramos o problema das relações do filósofo com os outros homens seu papel na cidade sua vida com os outros membros da escola Reconhecese antes de tudo a importância capital da direção espiri tuaP43 Isso comporta dois aspectos de uma parte a ação de educação moral em geral de outra a relação que liga individualmente um mestre a um discípulo Sob esses dois aspectos a filosofia antiga édireção espiritual Como dirá Simplício144 no fim da história do pensamento antigo 140 Plutarco Das noções comuns 37 1078 e in Les Stoiâens Éd E Bréhier p 169 141 Sêneca Cartas 66 6 142 Plotino Eneadas V 3 49 4 10 e VI 7 38 34 1617 143 I Hadot The Spiritual Guide in Classical Mediterranean Spirituality Egyptian Greek Roman New York Ed A H Armstrong 1986 pp 436459 144 Simplício Commentaire sur le Manuel dÉpictete XXXII ligne 154 Éd I Hadot Leyde Brill 1995 302 Filosofia e discurso filosófico Que lugar terá o filósofo na cidade Será o de um escultor de homens e de um artesão que fabrica cidadãos leais e dignos Ele não terá outro ofício além de purificarse a si mesmo e purificar os outros para viver a vida conforme a natureza que convém ao homem será o pai comum e o pedagogo de todos os cidadãos seu reformador seu conselheiro e seu protetor oferecendose a todos para cooperar na realização de todo o bem regozijandose com os que têm felicidade compadecendose dos que são afligidos e consolandoos No que concerne à educação moral geral como Ja entrevimos a filosofia tomou o partido da cidade A cida de grega como bem mostrou L Hadot145 preocupavase especialmente com a formação ética dos cidadãos como atesta entre outros o uso de erigir nas cidades estelas nas quais fossem gravadas as máximas da sabedoria délfica Cada escola filosófica quis retomar à sua maneira essa missão educativa seja como entre os platônicos e os aristotélicos agindo sobre os legisladores e os governantes considerados os educadores da cidade seja como entre os estoicos os epicuristas ou os cínicos procurando converter os indivíduos por uma propaganda missionária que se dirigia a todos os homens sem distinção de sexo ou de condição social A direção espiritual apresentase como um método de educação individual Ela tem duplo fim Tratase antes de tudo de permitir ao discípulo tomar consciência de si isto é de seus defeitos e progressos Esse era segundo Marco Aurélio o papel que teria desempenhado em sua vida o estoico Júnio Rústico146 A compreensão de que devia 145 I Hadot The Spiritual Guide pp 441444 146 Marco Aurélio Meditações I 7 1 303 A filosofia como modo de vida corrigir e cultivar meu caráter Tratase depois disso de ajudar o discípulo a fazer as escolhas particulares razoáveis na vida de todos os dias Razoáveis isto é quanto possível boas pois a maior parte das escolas concordam em reco nhecer que quando se trata de decidir pelas ações que não dependem inteiramente de nós navegar travar guer ra casarse ter filhos não podemos esperar ter a certeza para que possamos agir mas devemos fazer nossas escolhas conforme as probabilidades Um conselheiro é então frequentemente indispensável P Rabbow e I Hadot147 analisaram muito bem os méto dos e as formas da direção espiritual individual cuja prática é atestada em quase todas as escolas filosóficas Tal qual se nos revela nos Diálogos de Platão ou nas Memoráveis de Xenofonte Sócrates pode ser considerado o modelo do diretor espiritual que por seus discursos e sua maneira de ser provoca um golpe ou um choque na alma daquele a quem se dirige e obrigao assim a pôr em questão a pró pria vida Podese também qualificar com o mesmo termo a influência que Platão exerce sobre Díon de Siracusa e os conselhos morais e políticos que lhe concede A tradição menciona além disso que Platão era atento ao caráter particular de cada um de seus discípulos Ele teria dito a propósito de Aristóteles148 Ele tem necessidade de rédea e a propósito de Xenócrates Tem necessidade de espora Ele repetia constantemente a Xenócrates que era sempre severo e grave Sacrifica às Graças 147 P Rabbow Seelenjührung pp 260279 I Hadot The Spiritual Guide pp 444459 148 D L IV 6 304 Filosofia e discurso filosófico O próprio Platão apresenta na Carta VII os princípios que devem reger tanto a direção espiritual como a ação política149 Quando se dão conselhos a um homem doente que segue uma má dieta a primeira coisa a fazer para restituirlhe a saúde é mudar seu modo de vida É necessária uma mudança de vida para poder ser tratado A quem aceita essa mudança de vida podemse dar alguns conselhos Com semelhantes sentimentos sempre que alguém me consulta acerca de alguma questão vital ou seja sobre a posse de riqueza ou os cuidados que devemos dar ao corpo e à alma se seu modo de vida me parecer aceitável e que ele acolherá bem meus conselhos na matéria consultada com a melhor boa vontade lhe direi o que penso sem cingirme a uma resposta superficial por mero desencargo de consciência Reencontrase aqui o princípio da êtica do diálogo só se pode dialogar com alguém que queira sinceramente dialogar Não se deve constranger quem se recusa a mudar de modo de vida Não se deve irritálo nem lisoeálo nem fazerlhe vãs reprimendas nem ajudálo na satisfa ção de desejos que se desaprovam E isso também vale para a cidade que se recusa a mudar de modo de vida O filósofo poderá dizer que desaprova a depravação da cidade se nisso houver alguma utilidade Mas que não use de violência Quando não é possível assegurar a realização de um regime político melhor sem banir e sem matar homens é melhor 149 Carta VII 330 c331 a trad Brisson pp 176177 305 A filosofia como modo de vida manterse tranquilo e formular votos pelo seu bem pessoal e pelo da cidade Em relação aos nmcos conhecemos alguns casos em que o mestre desaprova esse ou aquele discípulo humilhan doo ou repreendendoo150 Da escola de Epicuro temos preciosos testemunhos sobre a prática da dição espitul notadamente sob a forma epistolar A pratrca da d1reçao espiritual chegava a ser nessa escola o objeto de um ensi 151 s b z namento como atesta o tratado de Filodemo o re a z berdade de palavra extraído das aulas dadas sobre o tema pelo epicurista Zenão152 A franqueza de linguagem o mestre aparece aí como uma arte defimda como aleatona estocástica na medida em que ele deve ter em conta os mo mentos e as circunstâncias O mestre deverá esperar os reve ses procurar e tornar a procurar corrigir a conduta do discípulo compadecendose de suas dificuldades Mas para tanto é necessário que o discípulo não hesite em reconhe cer suas dificuldades e seus erros e que fale com liberdade absoluta Como se vê a tradição epicurista reconhece o valor terapêutico da palavra Como conrapartida o nese deve escutar com simpatia sem zombana ou malevolenna Em resposta à confissão do discípulo o mestre deverá também falar livremente para admoestar o discípulo fa zendoo compreender a verdadeira finalidade de suas re primendas Epicuro nota Filodemo não hesitu em fazer repreensões bastante vivas em uma carta d1ng1da a seu 150 Cf a atitude de Crates com relação a seu discípulo Zenão in L Paquet Les Cyniques grecs Paris 1992 p 16 151 Sobre esse tratado d M G1gante Philodeme Sur la lzberte de pa rai in Actes du VIJie Congris 1969 Paris Association Guillaume Budé 1970 pp 196220 e Ricerche Filodemee 2 edizione Napoli 1983 pp 55113 152 P Rabbow Seelenführung pp 269270 306 Filosofia e discurso filosófico discípulo Apolonides É necessário que a admoestação seja serena sem faltar à benevolência Notese que Filodemo também acrescenta que o filósofo não deve temer dirigir repreensões aos homens políticos Na escola de Epicuro temos um exemplo de direção espiritual na carta que um de seus discípulos Metrodor0 I53 escreve ao jovem Pítocles Tu me dizes que o aguilhão da carne te leva a abusar dos prazeres do amor Se não infringes as leis e não perturbas de nenhum modo os bons costumes estabelecidos se não incomodas nenhum de teus vizinhos se não esgotas tuas forças e não dis sipas tua fortuna entregate sem escrúpulos à tua inclinação Entretanto é impossível não ser preso por ao menos uma dessas barreiras os prazeres do amor não oferecem nenhum proveito para ninguém já é muito quando não prejudicam Pouco sabemos sobre a direção de consciência no antigo estoicismo Podemos em todo caso supor que os tratados estoicos de casuística escritos por Antipater de Tarso e Diógenes da Babilônia cujos vestígios reencon tramos no tratado Dos deveres de Cícero resumem uma longa experiência de direção de consciência Seja como for a história do estoicismo apresentanos várias figuras de diretores de alma Sêneca em suas Cartas a Lucílio Musônio Rufo em seus escritos Epiteto nas Conversações referidas por Arriano A direção espiritual de Sêneca é muito lite rária De uma extremidade a outra de suas cartas as fór mulas notáveis as imagens as próprias sonoridades são escolhidas intencionalmente Mas as observações psicoló 153 Trad Festugiere in Épicure et ses dieux p 40 Sentenças vaticanas LI Balaudé p 216 307 A filosofia como modo de vida gicas e a descrição dos exercícios estoicos também são nelas muito preciosas Tudo leva a pensar que o mestre estoico de Marco Aurélio Júnio Rústico foi para ele um diretor de consciência com o qual o futuro imperador se irrita muitas vezes sem dúvida por causa da franqueza de linguagem desse filósofo Na Vida de Platina escrita por Porfírio e nas outras Vidas de filósofos do fim da Antiguidade muitos rela tos deixam entrever práticas de direção espiritual Por exemplo nelas se encontra a célebre história de Plotino aconselhando a viajar154 um Porfírio tomado por pen samentos suicidas Também conhecemos um pormenor interessante sobre a maneira pela qual Edésio filósofo que lecionava em Pérgamo no século IV corrigia a arro gância de seus alunos155 Edésio tinha uma maneira de ser afável e próxima do povo Após as justas dialéticas saía para passear em Pérgamo com seus discípulos mais notáveis Ele queria que seus discípulos tivessem na alma um sentimento de harmonia e de responsa bilidade em relação ao gênero humano quando via que eles se tornavam injuriosos e altivos por causa do orgulho que tinham de suas opiniões fqja cair suas asas não no mar mas na terra e no seio da vida numana Caso encontrasse uma vendedora de legumes tinha prazer nisso detinhase para conversar com ela sobre os preços sobre o dinheiro que ganhava sobre a produção de legumes Ele agia do mesmo modo com um tecelão um ferreiro um carpinteiro 154 Porfírio Vida de Platina 11 13 155 Eunapo Vida de filósofos e de sofistas p 57 1018 Giangrande veja se R Goulet Aidésius de Cappadoce in id Dictionnaire des philosophes antiques t I p 74 308 Filosofia e discurso filosófico Um texto de Plutarco156 resumirá oportunamente tudo 0 que acanos de entrever sobre o fenômeno da direção de cnsoenoa nas escolas filosóficas e a liberdade de ex pressao nelas valorizada No caso diz ele em que quem vai scutar m filósofo é perturbado por algumà coisa particular Seja ua paixão inflamada que tem necessida de e ser renmida seja um sofrimento que precisa ser apaziguado e necessano então mostrála aos olhos de todo o mundo e dela cuidar Se um golpe de cólera um acesso de superstição um desa cordo agudo com o que nos rodeia ou um desejo apaixo nado prduzzo pelo amor fazendo vibrar fibras de nosso coraçao amazs vibradas turva nossos pensamentos não se deve procurar falar de outra coisa com 0 mestre para evitar ser censuao mas é precisamente os discursos que tratam dessas pazxoes que é necessário escutar durante as aulas e terminada a aula é necessário ir encontrar em particular 0 mstres apresentandolhes questões suplementares É necessário evztar faze o inverso à imagem da maior parte das pessoas elas apreczam os filosofas e os admiram quando eles falam de outros assuntos mas se os filósofos deixando os outros temas de lado lhes falam em particular com franqueza sobre as cozsas que são importantes para elas e as recordam disso elas mal os suportam e os consideram indiscretos A maior parte das pessoas continua Plutarco vê os filó sofos apenas como sofistas que uma vez fora das tribunas e longe de seus livros e manuais de iniciação são inferiores aos outros homens nos atos reais da VIda e VIvem outro modo de VIda que o dos verdadeiros filósofos 156 Plutarco Como escutar 43 d 309 A filosofia como modo de vida Os filósofos antigos desenvolveram todos os tipos de prática de terapia da alma exercitandose por meio e di ferentes formas de discurso quer se trate da exortaçao da reprimenda da consolação ou da instrução Sbese qu na Grécia desde Homero e Hesíodo era possiVel modi ficar as decisões e as disposições interiores dos homens escolhendo habilmente as palavras capazes de persuadir157 É nessa tradição que na época dos sofistas se constituirão as regras da arte retórica A direção espiritual filosófica e também os exercícios espirituais pelos quais o indivíduo esforçase para influenciarse e modificarse a si mesmo utilizarão muitos procedimentos retóricos para provocar a conversão e operar a convicção Sobretudo o uso da direção espiritual e a terapia das almas conduzirão as filosofias antigas a um grande conhe cimento do coração humano de suas motivações cons cientes ou inconscientes de suas intenções profundas puras ou impuras O Fedro de Platão permitiu que se vislumbrasse mas sem entrar em detalhes a possibilidade de uma retó rica que saberia adaptar seus gêneros de discurso aos dife rentes tipos de alma Há nele além disso um programa de direção de consciência O livro II da Retórica158 de Aristóteles realiza em parte esse prújefoao descrever tudo o que é necessário conhecer das disposições do ouvinte por exem plo as influências que exercem sobre ele as paixões o es tado social ou a idade Muito importantes também so as descrições das virtudes e dos vícios nas diferentes Eticas 157 Cf J de Romilly Patience mon cmur LEssor de la psychologie dans la littérature grecque classique Paris 1984 158 Arte Retórica tradução de Antonio Pinto de Carvalho Sao Paulo Difusão Europeia do Livro 1959 310 Filosofia e discurso filosófico de Aristóteles nas quais elas se destinam a esclarecer o legislador sobre a maneira de governar os homens Vimos que o tratado epicurista Sobre a liberdade de palavra estudava comrecisão os senmentos que nascem no indivíduo por ocas1ao das exortaçoes da confissão e da culpabilidade Encontrase no epicurista Lucrécio e no estoico Sêneca uma notável descrição de torturas que a alma humana sabe se infligir Cada um procura fugir a si próprio mas fica preso à força a esse eu que odeia159 por esse aborrecimen to que vai até a náusea e faz dizer Até quando as mesmas coisas 160 ou ainda da hesitação em converterse à filosofia que Sêneca descreve no prólogo de seu tratado Sobre a tranquilidade da alma ao fazer falar seu amigo Sereno confessandose de certa forma a Sêneca161 Observando atentamente descobri em mim certos defeitos muito afarentes os quais poderia tocar com o dedo outros que se dzsszmulam nas regiões profundas outros enjim que não são contínuos mas reaparecem somente em intervalos A disposição que me surpreende ser a mais frequente porquanto não me abriria a ti mesmo como a um médico é a de não ter francamente me libertado de meus medos e de minhas repugnâncias de outrora nem mesmo sob seu império Sereno analisa longamente todos os aspectos de sua irresolução suas hesitações entre a vida simples e a vida de luxo entre a vida ativa a serviço dos homens e o lazer que leva à tranquilidade entre o desejo de imortalizarse em uma obra literária e a vontade de escrever apenas por utilidade moral 159 Lucrécio Da natureza III 1068 160 Sêneca Cartas 24 26 161 Sêneca Da tranquilidade da alma I 1 311 A filosofia como modo de vida Encontramse também observações muito fecundas no longo comentário que o neoplatônico Simplício consagrou ao Manual de Epiteto Essa prática tradicional da direção de consciência levou a compreender melhor tudo o que a pureza da ação moral exige Tomaremos como exemplo as Meditações de Marco Aurélio nas quais se encontra uma descrição ideal da ma neira pela qual é necessário praticar a ação sobre o outro Só se pode admirar por exemplo a extrema delicadeza com a qual Marco Aurélio define a atitude que se deve ter para agir sobre a consciência de outrem a benevolência de que se deve dar demonstração a quem cometeu uma falta como se deve dirigir a ele162 não insultando nem dando demonstração de minha constância mas com nobreza e sinceridade com simpatia sem ironia sem humilhar mas com afeição com um coração isento de amargura nem em tom de mestreescola nem para se Jazer admirar por alguém que tenha assistido à conversa e sim para ele só embora estefam algumas outras pessoas presentes Marco Aurélio vislumbra aqui que a simpatia é coisa tão delicada que mesmo querer ser simpático já seria dei xar de ser simpático porque todo artifício e toda afetação destroem a simpatia Por outro lado agese eficazmente sobre os outros quando se procura agir sobre eles quando se evita toda violência mesmo espiritual que pudesse ser feita ou a si mesmo ou aos outros É essa simpatia pura é essa delicadeza que tem o poder de fazer mudar de opi nião de converter de transformar os outros E do mesmo 162 Marco Aurélio Meditações XI 13 2 e XI 18 18 cf P Hadot La Citadelle intérieure p 241 312 Filosofia e discurso filosófico modo quando se quer fazer bem ao outro a intenção de beU fazer penas será verdadeiramente pura caso seja esponnea e mconsciente s benfeitor perfeito é aquele que nao sabe que o fazl63 E necessário ser como aqueles que fazem o bem inconscientemente Chegase qui ao suprmo paradoxo um querer de tal modo forte que se supnme cmo querer um hábito que se torna natureza e espontaeidade Ao mesmo tempo parece que a perfeição da relaçao com o outro culmina no respeito e no amor pelos outros Para todas as escolas o que motiva profundamente sua escolha de yida assim como seu discurso é o amor pelos homens E esse amor que inspira tanto o Sócrates da Defsa ou do utífronl64 de Platão como a propaganda epicunsta ou estmca e mesmo 0 discurso céticoi65 O sábio A figura do sábio e a escolha de vida A sabedoria é considerada em toda a Antiguidade um mo o de ser um estado no qual o homem é de maneira radclmdente diferente dos outros homens no qual é uma espene superhomem Se a filosofia é a atividade pela qual o fiosofo preparase para a sabedoria esse exercício consistira necessariamente não só em falar e e d d m Iscorrer e certa maneira mas em ser agir e ver o mundo de cer ta maneira Se a filosofia não é somente um discurso Ih d mas na eso a e VIda uma opção existencial e um exercício VIVIdo e porque ela é desejo de sabedoria É verdade que 163 Marco Aurélio Meditações v 6 3 164 Platão Eutífmn 3 d 6 165 Sexto Empírico Hip tp p Sceptiques p 212 o z ases zrronzanas III 280 Dumont Les 313 A filosofia como modo de vida na noção de sabedoria está inclusa a ideia de um saber perfeito Não obstante como vimos a propósito de Platão e de Aristóteles esse saber não consiste na posse de infor mações sobre a realidade mas é também um modo de vida que corresponde à atividade mais elevada que o homem pode exercer e está estreitamente ligada à excelência à virtude da alma Em cada escola a figura do sábio é a norma transcen dente que determina o modo de vida do filósofo E deve se constatar que na descrição dessa norma há para além das diferenças que aparecem nas diversas escolas acordos profundos tendências comuns que se pode descobrir Reencontramos aqui o mesmo fenômeno que descrevemos a propósito dos exercícios espirituais Em primeiro lugar o sábio permanece idêntico a si mesmo em uma perfeita igualdade de alma isto é feliz quaisquer que sejam as circunstâncias Assim Sócrates no Banquete de Platão mantém as mesmas disposições quer seja obrigado a suportar a fome e o frio quer ao contrário se encontre na abundância Ele sabe com o mesmo desem baraço absterse e usufruir as coisas Diziase de Aristipo166 um dos discípulos de Sócratesque ele se adaptava a todas as situações sabendo usufruir os bens que se lhe apresen tavam e não sofrer pela ausência dos que lhe faltavam Quanto a Pirro sempre permanecia no mesmo estado in terior o que quer dizer que se as circunstâncias exteriores mudavam ele não modificava em nada suas resoluções e disposições A coerência consigo e a permanência de iden tidade também caracterizam o sábio estoico pois a sabe 166 D L II 66 314 Filosofia e discurso filosófico daria consiste em sempre querer e em se a mesma coisa mpre nao querer É que precisamente o sábio encontra sua felicidad em SI me e A so e e portanto mdependente autarkês das nrcunstannas e das coisas exteriores como Sócrates que sgundo as Memoráveis de Xenofonte vivia por bastarse I mesmo sem embaraçarse com coisas supérfluas Essa e uma das características do sábio segundo Pl t 167 f S a ao que az ocrates afirmar Mas podemos tamb d 1 em Izer que pnn Ipa mente esse homem se basta para ser feliz e necessita e outrem mmto menos que os outros E d Ari I 16s segun o stote es o sabw lea a vida contemplativa porque não tem necessidade de cmsas exteriores para se exercitar e porque encontra com isso em si a felicidade e a perfeita mdepedência s depende de si bastase a si mesmo e eduZir ao naximo suas necessidades é especialmente o Ideal dos filosofas cmicos Os epicuristas por sua vez cega a iso limitando e dominando seu desejos ele nao sao mais dependentes da necessidade Quanto aos estmcos preferU dizer que é a virtude que basta a si só para obter a fehndade b Se sábio permanece sempre idêntico a si e se ele se asta e poque ao menos para Pirro para os cmicos e para os estmcos as coisas exteriores não podem perturbá lo porque considera que as coisas não são boas nem e po mas rqu por razoes diversas se recusa a enunciar sobre elas um JUizo de valor e as declara indiferentes Para Pirro por exemplo tudo é indiferente porquanto somos incapa 167 República UI 387 d 12 168 Aristóteles Ética a Nicômaco X 1177 a 27 315 A filosofia como modo de vida zes de saber se as coisas são boas ou más não podemos fazer diferença entre elas Para os estoicos todas as coisas que não dependem de nós são indiferentes há uma única coisa que depende de nós e não é indiferente é o bem moral isto é a intenção de fazer o bem porque é o bem Por si mesmas todas as outras coisas não são boas nem más mas depende de nós servirnos de maneira boa ou má por exemplo das riquezas ou da pobreza da saúde ou da doença Seu valor depende do uso soberano que delas faz o sábio A indiferença do sábio não é um desin teresse por tudo mas uma conversão do interesse e da atenção para algo diverso do que domina a atenção e o cuidado dos outros homens Do sábio estoico por exem plo podese dizer que a partir do momento em que ele descobriu que as coisas indiferentes não dependem de sua vontade mas da vontade da Natureza universal elas ganham para ele um interesse infinito ele as aceita com amor mas todas com um amor igual consideraas belas mas todas com a mesma admiração Ele diz sim ao uni verso inteiro e a cada uma de suas partes a cada um de seus acontecimentos mesmo que essa parte ou esse acon tecimento pareçam molestos ou repugnantes Reencontra se aqui a atitude de AristóeJs com relação à Natureza não se deve ter uma aversão pueril por essa ou aquela realidade produzida pela Natureza pois como dizia Heráclito mesmo na cozinha há deuses Essa indiferença do sábio corresponde a uma transformação total da rela ção com o mundo Igualdade de alma ausência de necessidade indiferen ça às coisas indiferentes as qualidades do sábio fundam sua tranquilidade de alma e sua ausência de perturbação A origem das perturbações da alma pode por outro lado 316 Filosofia e discurso filosófico ser muito diversa Aos olhos de Platão é o corpo por seus desejos e paixões que introduz a desordem e a in quietude na alma Mas há também os cuidados da vida privada e sobretudo da vida política Xenócrates169 teria dito que a filosofia foi inventada para fazer cessar a per turbação que produzem os cuidados A vida contempla tiva aristotélica distanciada dos negócios da política e das incertezas da ação introduzirá a serenidade Segundo Epicuro são os terrores vãos da morte e dos deuses que inquietam os homens mas também os desejos desordena dos e o comprometimento com os negócios da cidade Para o sábio que saiba limitar seus desejos e sua ação que saiba suprimir suas dores a serenidade da alma assim adquirida permitirá viver na Terra como um deus entre os homens Pirro encontrava a paz recusandose a decidir se as coisas são boas ou más E para os céticos a tranqui lidade interior seguia como uma sombra a suspensão do juízo isto é a recusa a atribuir juízos de valor às coi sas Segundo os estoicos enfim o sábio sabe conciliar a eficácia na ação e a serenidade interior porque na incer teza do êxito sempre age aceitando o destino e velando para obter uma intenção pura A figura do sábio aparece como uma espécie de núcleo de liberdade indomável e inexpugnável que o famoso texto de Horácio bem descreve170 O homem justo e firme em sua resolução nem a fúria dos cidadãos ordenando o mal nem a face de um tirano que 169 Xenócrates fr 4 Heinze R Heinze Xenocrates Darstellung der Lehre und Sammlung der Fragmente Leipzig 1892 170 Horácio Odes III 3 18 317 A filosofia como modo de vida ameaça abalar e consumir seu espírito não mais que Austero chefe turbulento do tempestuoso Adriático não mais que a grande mão de Júpiter fulminante que o mundo se rompa e desabe seus restos hão de maravilhar sem aterrorizar Reencontramos na figura do sábio o duplo movimento que evidenciamos a propósito dos exercícios de sabedoria O sábio toma consciência de si mesmo como de um eu que pode por seu poder sobre seus próprios juízos dirigindo os ou suspendendoos assegurar sua perfeita liberdade interior e sua independência de todas as coisas Mas essa liberdade interior não é uma liberdade arbitrária ela não é inexpugnável e inatacável senão quando se situa ou se põe assim na perspectiva da natureza ou do espírito ou ao menos no caso dos céticos da razão crítica O discurso filosófico sobre o sábio A figura do sábio desempenha papel decisivo na esco lha de vida filosófica Mas ela se oferece ao filósofo como um ideal descrito pelo discurso filosófico antes que co mo um modelo encarnado em uma personagem viva Os estoicos diziam que o sábio é extremamente raro há poucos deles talvez um talveznenhum Aqui quase todas as outras escolas estão bem próximas da mesma opinião salvo os epicuristas que não hesitam em venerar Epicuro como o sábio por excelência O único sábio universalmente reconhecido pelas outras escolas é Sócrates este sábio per turbador que não sabe que é sábio Mas evidentemente esse ou aquele filósofo se apraz em ver como sábio perfeito um de seus mestres ou alguma figura famosa do passado Caso de Sêneca quando fala por exemplo de Sextio ou 318 Filosofia e discurso filosófico Catão Caso também de outros autores de vidas de filósofos como Porfírio ao falar de Plotino Os historiadores da filosofia não ressaltaram muito talvez o lugar considerável que tinha na filosofia antig o discurso que consistia em descrever o sábio Tratavase menos de delinear os traços de figuras concretas de sábios ou de filósofos particularmente notáveis papel das vidas de filósofos do que de definir o comportamento ideal do sábio O que faria o sábio nessa ou naquela circunstân cia Esse é contudo muitas vezes o meio nas diferentes escolas de descrever sob forma ideal as particularidades do modo de vida que lhes é próprio Os estoicos davam grande importância em seu ensino à discussão de teses sobre os paradoxos do sábio Não só demonstravam que o sábio é o único ser infalível correto impassível feliz livre belo e rico mas que ele é também o único a ser real e excelentemente estadista legislador general poeta e rei Isso quer dizer que o sábio é pelo exercício perfeito da razão o único capaz de exercer todas essas funções 171 Deuse muita importância a esses paradoxos consideran doos tipicamente estoicos mas parece que eles correspondiam a eas d xercícios puramente escolares que talvez já eXIstissem a epoca dos sofistas mas que parecem em todo caso haver sido praticados na Academia de Platão Esses temas durante os cursos eram discutidos sob a forma de tese isto é de questões sobre as quais se pode argumentar Foi sim X 172 d que enocrates eu uma vez um curso sobre a tese Ape 171 É Bréhier Chrysippe pp 216218 172 Xenócrates in Plutarco Apotegmas lacônicos 220 d 319 A filosofia como modo de vida nas o sábio é um bom general Eudamidas rei de Esparta fora esse dia à Academia escutar Xenócrates O espartano com muito bomsenso diz após a aula O discurso é admi rável mas o discursador pouco crivei pois jamais ouviu o som das trombetas denunciando assim o perigo desses dis cursos nos quais se discutem abstratamente teorias sobre a sabedoria sem praticála efetivamente Podese supor também uma alusão a esse gênero de exercício na oração final do Fedro de Platão no qual Sócrates sustenta estar conven cido de que o sábio é rico Ao longo de toda a história da filosofia antiga encontrase esse gênero de questões sobre o sábio o sábio pode ser amado Pode ele misturarse aos ne gócios políticos Encolerizase Há contudo um paradoxo estoico muito mais signi ficativo ninguém se torna sábio pouco a pouco mas por uma transformação instantânea173 A sabedoria como vimos não é suscetível de ser maior ou menor Eis por que a passagem da não sabedoria à sabedoria não se pode fazer por um progresso mas por uma mutação brusca Esse paradoxo nos põe na via de outro paradoxo que se encontra em todas as escolas se o sábio representa um modo de ser diferente do modo de ser do comum dos mortais não se pode dizer que a figura do sábio174 tende a aproximarse da de Deus ou dos deuses Podese observar esse movimento mais claramente no epicurismo De uma parte aos olhos de Epicuro175 o sábio vive como um deus 173 SW lll 221 e 539542 Plutarco Conw perceber que se progride 75 c 174 Cf P Hadot La figure du sage dans lAntiquité grécolatine in G Gadoffre Les Sagesses du monde Paris 1991 pp 926 175 Epicuro Carta a Meneceu 135 Balaudé p 198 320 Filosofia e discurso filosófico entre os homens E de outra os deuses de Epicuro isto é os deuses da tradição os deuses do Olimpo mas reinter pretados por Epicuro vivem como os sábios Dotados de forma humana vivem no que os epicuristas denominam os intermundos nos espaços vazios entre os mundos es capando assim à corrupção inerente ao movimento dos átomos Como o sábio eles estão mergulhados em uma perfeita serenidade não estando misturados de nenhuma maneira à criação e à administração do mundo176 A natureza divina goza necessariamente de uma duração eterna com paz suprema e está afastada e distante de tudo o que se passa conosco Sem dor nenhuma e sem nenhum perigo apoiada em seus próprios recursos nada precisando de nós não a impressionam os benefícios nem a atinge a cólera Essa concepção de divindade foi destinada como vimos a suprimir no homem o temor dos deuses É na escolha de vida epicurista que se funda a necessidade de conferir no discurso filosófico uma explicação materialista da gênese do universo a fim de persuadir a alma de que os deuses não se ocupam do mundo Mas nos parece agora que essa representação também tinha por fim propor o divino como ideal de sabedoria na medida em que a essência do divino consiste para ela na serenidade na ausência de preocupação no prazer e na alegria De alguma maneira os deuses são sábios imortais e os sábios deuses mortais Para os sábios os deuses são amigos e iguais O sábio en contra sua alegria na presença dos deuses177 176 Lucrécio Da natureza Il 646 vejase também Balaudé p 114 177 Trad Festugiere in Épicure et ses dieux p 98 texto de Filodemo De dis Ill p 16 14 Diels 321 A filosofia como mqdo de vida Ele admira a natureza e a condição dos deuses ele se esforça por aproximarse dela aspira por assim dizer a tocála a viver com ela e nomeia os sábios amigos dos deuses e os deuses amigos dos sábios Os deuses não se ocupam das coisas humanas o sábio não invocará os deuses para obter algum benefício mas encontrará sua felicidade ao contemplar sua serenidade sua perfeição e ao associarse à sua alegria O sábio segundo Aristóteles consagrase ao exerc1c10 do pensamento e à vida do espírito Aqui ainda o divino é o modelo do sábio Pois como nota Aristóteles a condição humana torna frágil e intermitente essa atividade do espí rito dispersa no tempo e exposta ao erro e ao esquecimen to Mas podese representar indo ao limite um espírito cujo pensamento se exercerá perfeita e continuamente em um eterno presente Seu pensamento se pensará assim a si mesmo em um ato eterno Ele conhecerá eternamente a felicidade e o prazer que o espírito humano conhece apenas em raros momentos Essa é precisamente a descrição que Aristóteles dá de Deus como primeiro motor causa final do universo O sábio vive assim de maneira intermi tente o que Deus vive de modo contínuo Ao fazêlo ele vive uma vida que excedea condição humana e que não obstante corresponde ao que há de mais essencial no ho mem a vida do espírito As relações entre a ideia de Deus e a de sábio são me nos claras em Platão provavelmente porque a ideia do di vino em Platão apresentase sob uma forma extremamente complexa e hierarquizada O divino é uma realidade di fusa que compreende as entidades situadas em níveis diversos como o Bem as Ideias o Intelecto divino a figura 322 Filosofia e discurso filosófico mítica do Artesão do Demiurgo do mundo e enfim a alma do mundo Mas da perspectiva que nos ocupa Platão enunciou em todo caso um pnncípio fundamental Ir na direção oposta ao mal ir na direção da sabedoria é assi milarse a Deus na medida do possível ora assimilase a ele tornandose justo e bom na clareza do espírito178 A divin dade aparece aqui como o modelo da perfeição moral e intelectual do homem Por outro lado de maneira geral Platão apresenta Deus ou os deuses dotados de qualidades morais que poderiam ser as de um sábio Ele é verídico sábio e bom não tem nenhuma inveja e quer sempre pro duzir o que há de melhor A relação entre o sábio e Deus situase em Plotino em dois níveis Em primeiro lugar o Intelecto divino em sua relação de pensamento de identidade e de atividade consigo mesmo possui confundidas com sua essência as quatro virtudes o pensamento ou prudência a justiça a força e a temperança que neste estado são os modelos transcendentes da sabedoria e ele vive uma vida179 so beranamente sábia isenta de falta e de erro Mas visto que a alma segundo Plotino às vezes se eleva em raros momentos na experiência mística a um nível superior ao Intelecto encontramse também na descrição do Uno ou Bem os traços do sábio a independência a ausência de necessidade a identidade consigo mesmo Há nele muito claramente uma projeção da figura do sábio sobre a re presentação do divino É provavelmente porque a figura do sábio e a figura de Deus nelas são identificadas que as filosofias de Platão 178 Teeteto 176 b 179 Eneadas V 3 49 17 l 323 A filosofia como modo de vida de Plotino de Aristóteles e de Epicuro representam Deus antes como força de atração que como força criadora Deus é o modelo que os seres procuram imitar e o Valor que orienta sua escolha Como observa B Frischer o sábio e os deuses epicuristas são os motores imóveis como o Deus de Aristóteles eles atraem os outros transmitindo lhes suas imagens180 O sábio dos estoicos conhece a mesma felicidade que a Razão universal personificada alegoricamente por Zeus porque deuses e homens têm a mesma razão perfeita nos deuses perfectível nos homens18 e porque precisamente o sábio atingiu a perfeição da razão fazendo coincidir sua razão com a Razão divina sua vontade com a vontade divina As virtudes de Deus não são superiores às do sábio A teologia dos filósofos gregos é podese dizer uma teologia do sábio contra a qual protestou Nietzsche182 Afastemos a suprema bondade do conceito de Deus ela é indigna de um deus Afastemos do mesmo modo a suprema sabedoria foi a vaidade dos filósofos que se tornou culpável por essa extravagância de um deus monstro da sabedoria ele deveria lhe parecer tanto quanto possível Não Deus o poder supremo isso basta Disso emanatudo disso emana o mundo Onipotência ou bondade Não discutiremos esse pro blema mas devemos afirmar vigorosamente que contraria mente ao que Nietzsche parece entender o ideal do sábio nada tem a ver com uma moral ética clássica ou burgue 180 B Frischer The Sculpted Word p 83 181 Sêneca Cartas 92 27 SVF III 245252 182 Nietzsche Fragments posthumes Automne 1887 10 90 in CEuvres philosophiques complêtes T XIII Paris 1976 p 151 324 Filosofia e discurso filosófico sa mas corresponde antes para retomar a expressão de Nietzsche a uma reversão total dos valores183 recebidos e convencionais apresentandose sob as formas mais diversas como pudemos observar a propósito de diferentes escolas filosóficas Basta para dar um novo exemplo evocar a descrição do estado natural isto é não corrompido da sociedade que Zenão o estoico dava em sua República Ela possuía algo de escandaloso precisamente porque a apresentava como a vida de uma comunidade de sábios Havia uma única pátria o próprio mundo não havia leis pois a ra zão do sábio basta para prescreverlhe o que deve fazer não havia tribunais pois ele não comete faltas não havia templos pois os deuses não têm necessidade disso e por que é um contrassenso ter por sagradas obras feitas por mãos humanas não havia dinheiro não havia leis sobre o casamento mas a liberdade de unirse com quem se queira mesmo de maneira incestuosa não havia leis sobre a sepultura dos mortos A contemplação do mundo e do sábio B Grrethuysen 184 insistiu sobre um aspecto muito particu lar da figura do sábio antigo sua relação com o cosmos A consciência que ele tem do mundo é algo de particular ao sábio Unicamente o sábio não deixa de ter o todo constante mente presente ao espírito jamais se esquece do mundo pensa e age em relação ao cosmos O sábio Jaz parte do mundo 183 Cf Oswaldo Giacóia Júnior Labirintos da alma Nietzsche e a autossu pressão da moral Campinas Ed da Unicamp 1997 184 B Grcethuysen Anthropologie philosophique Paris 1952 p 80 325 A filosofia como modo de vida ele é cósmico Ele não se deixa desviar do mundo afastar do con junto cósmico O tipo do sábio e a representação do mun do formam de alguma maneira um conjunto indissolúvel Como vimos a consciência de si é inseparável de uma expansão no todo e de um movimento pelo qual o eu se repõe em uma totalidade que o engloba mas que longe de aprisionálo há de permitirlhe estenderse em um espaço e em um tempo infinitos185 Tu podes abrir a ti mesmo largo espaço para abarcar com o pensamento o universo inteiro Aí ainda a figura do sábio convida a uma transformação total da percepção do mundo Existe um texto notável de Sêneca no qual são as sociadas a contemplação do mundo e a contemplação do sábio186 Por minha parte tenho o hábito de tomar muito tempo a contemplar a sabedoria eu a olho com a mesma estupefação com a qual em outros momentos olho o mundo esse mundo que me acontece muitas vezes de olhar como se o visse pela primeira vez Reencontramos aqui dois exercícios espirituais um que conhecemos bem a contemplação do mundo outro que acabamos agora de entrever acontemplação da figura do sábio A julgar pelo contexto a figura que Sêneca contem pla é a de Sextio Ao te revelar os segredos da vida feliz ele não te tirará a esperança de atingila Notação abso lutamente capital para contemplar a sabedoria como para contemplar o mundo é necessário fazerse um novo olhar 185 Marco Aurélio Meditações IX 32 186 Sêneca Cartas 64 6 Cf P Hadot Le Sage et e monde in Le Temps de la réjlexion X 175188 1989 326 Filosofia e discurso filosófico Um novo aspecto da relação do filósofo com o tempo aparecenos aqui Não se trata somente de perceber e de viver cada momento do tempo como se fosse o último é necessário também percebêlo como se fosse o primeiro em toda estranheza estupefaciente de seu surgimento Como diz o epicurista Lucrécio187 Se tudo isto aparecesse agora pela primeira vez aos mortais se de improviso se apresentasse diante deles que se poderia di zer de mais admirável que tudo isso ou que menos ousariam os homens ter acreditado Tudo leva aqui a pensar que Sêneca preparavase para encontrar a ingenuidade do olhar ao contemplar o mundo a menos que isso seja aqui apenas a expressão fugaz de uma espécie de experiência espontânea de mística selvagem d M H 1 188 para retomar a expressao e u m O que explica essa íntima ligação entre a contempla ção do mundo e a contemplação do sábio é ainda uma vez a ideia do caráter sagrado isto é sobrehumano quase inumano da sabedoria Como diz alhures Sêneca na profundidade de um bosque antigo na solidão selva gem no manancial dos grandes rios diante da insondável profundidade de lagos de águas sombrias a alma vivencia o sentimento da presença do sagrado Mas ele também experimenta isso admirando o sábio189 E se tu vês um homem que o perigo não assusta em nada que as paixões não tocaram que feliz na adversidade plácido no meio de tempestades vê do alto os homens e vê os deuses no mes 187 Lucrécio Da natureza II 1031 ss 188 M Hulin La Mystique sauvage Paris 1993 189 Sêneca Cartas 41 34 Cf L Hadot Seneca p 94 327 A filosofia como modo de vida mo nível por acaso não serás possuído de veneração Em cada homem bom um deus habita Qual é ele Nenhuma certeza mas é um deus Contemplar o mundo e contemplar a sabedoria é final ene filosofar é com efeito operar uma transformação mtenor uma mutação da visão que me permite reconhecer ao msmo tempo duas coisas às quais raramente se presta atençao o esplendor do mundo e o esplendor da norma b 19o O que e o sa 10 ceu estrelado acima de mim e a lei moral em mim Conclusão É fácil ironizar esse ideal do sábio quase inacessível e que o filósofo não chega a atingir Os modernos não se privara e não deixaram de falar do irrealismo nostálgico e cnsnente de sua quimera191 os antigos como 0 satírico Lunn0 192 zombaram do infeliz que tendo passado toda sua Vlda esforçandose e em vigi1ia nem sempre alcançou a sabedoria Assim fala o senso comum que não com preendeu todo o alcance da definição de filósofo como não sábio no Banquete de Platão definição que não obstante permitirá a Kant 193 compreender o verdadeiro estatuto d filósofo E fácil zombar disso Terseia o direito de 0 fazer e os filósofos se tivessem contentado em tagarelar sobre 0 Ideal do sábio Mas se eles tomaram a decisão prenhe de 190 Kant Critique de la raison pratique trad Gibelin Paris 1983 175 191 p v In p rne troduction in Sêneca Entretiens Lettres à Lucilius p ex 192 Luciano Hermotimo cap 77 193 Cf abaixo pp 373380 328 Filosofia e discurso filosófico gravidade e de consequências de prepararse efetivamente para a sabedoria merecem nosso respeito mesmo que seus progressos tenham sido mínimos Tratase de saber para retomar a fórmula da qual J Bouveresse194 se serve pa ra exprimir uma ideia de Wittgenstein qual preço pssoal eles tiveram de pagar para ter o direito de falar de seu esforço para a sabedoria Apesar de minhas reticências contra a utilização do comparatismo em filosofia gostaria de tenninar este capítulo ressaltando até que ponto a descrição inspirada pelo budis mo que M Hulin deu das raízes existenciais da experiência mística pareceme próxima das características do ideal do sábio antigo de tal modo as semelhanças entre as duas indagações espirituais pareceramme evidentes Mas qual não foi minha surpresa ao reler o Crysippe de É Bréhier195 e encontrar um delineamento análogo ao que eu gostaria de fazer Após ter escrito Essa concepção de um sábio superior à humanidade isento de faltas e de infelicidades não é particular aos estoicos nessa época e chega mesmo a ser desde os cínicos teria sido possível para ele por outro lado dizer desde Sócrates e Platão uma concepção comum a todas as escolas ele cita em nota esta descrição budista do sábio Vitorioso conhecendo e compreendendo tudo livre do peso do acontecimento e da existência sem nenhuma necessidade tal é aquele que se pode glorificar como sábio 1 O viajante 194 Bouveresse Wittgenstein la rime et la raison Paris 1973 p 74 cf abaixo p 368 195 Crysippe p 219 nota l Bréhier cita Sutta Nipata Trad Oldenberg Deutsche Rundschau Januar 1910 329 A filosofia como modo de vida solitário não se inquieta nem com o louvor nem com o vitu pério condutor dos outros e não conduzido pelos outros tal é aquele que se pode celebrar como sábio Ora foi precisamente esta ideia do depósito do fardo que atraiu minha atenção para a descrição de M Hulin e pareceume apresentar uma analogia com a experiên cia espiritual que inspira a figura ideal do sábio antigo M Hulin196 mostra que na primeira das quatro nobre verdades do budismo Tudo é sofrimento a palavra sofrimento significa menos o sofrimento que a alternân cia das penas e das alegrias sua inextricável mistura seu contraste seu condicionamento mútuo O fardo é essa oposição que a afirmação da individualidade enclausurada em si instaura entre o agradável e o desagradável entre o bomparamim e o mauparamim e que obriga o homem a sempre ocuparse de seus interesses Por trás dessa oposição percebese a permanência de uma surda insatisfação sempre renascente que é poderseia dizer uma angústia existencial E precisamente para libertarse dessa insatisfação é necessário ousar depor o fardo Assim voltados e ocupados na perseguição de nossos interesses mundanos temos ao menos a ideia da imensa consolação que representará depositar o fardo isto é a renúncia a nos afirmar a todo custo contra a ordem do mundo e a expensas do outro 196 M Hulin La Mystique sauvage pp 243 e 238242 330 Capítulo 10 O cristianismo como filosofia revelada O cristianismo definindose como filosofia Em suas origens o cristianismo tal qual se apresenta nas palavras de Jesus anuncia a iminência do fim do mundo e o advento do reino de Deus uma mensagem totalmente estranha à mentalidade grega e às perspectivas da filosofia pois ele se inscreve no universo de pensamen to do judaísmo que sem dúvida subverte dele conser vando certas noções fundamentais Nada aparentemente poderia deixar prever que um século após a morte de Cristo alguns cristãos apresentariam o cristianismo não somente como uma filosofia isto é um fenômeno da cultura grega mas mesmo como a filosofia a filosofia eterna Contudo não se deve esquecer que existiam havia muito tempo relações entre o judaísmo e a filosofia grega sendo o exemplo mais famoso Fílon de Alexandria filósofo judeu contemporâneo da era cristã Nessa tradição a noção de um intermediário entre Deus e o Mundo denominado Sophía ou Lógos desempenhava papel cen tral O Lógos era para ela a Palavra criadora Deus diz 333 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos Que a luz seja mas também reveladora de Deus É nessa perspectiva que é necessário compreender o famo so prólogo do Evangelho de Joãol No início ou No Princípio isto é em Deus como 0 compreendem certos exegetas era o Verbo e o Verbo estava voltado para Deus e o Verbo era Deus Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada se fez do que foi Jeito Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens j E o Lógos se fez carne e habitou entre nós e nós vimos sua glória glória essa que Filho único cheio de graça e de verdade ele tem da parte do Pai Por causa da ambiguidade da palavra Lógos é que uma filsofia cristã foi possível Desde Heráclito a noção de Lógos fm um conceito central da filosofia grega na medida em que poderia significar igualmente palavra discurso e razo Muito specialmente os estoicos imaginavam que o Lagos concebido como força racional era imanente ao mundo à ntureza humana e a cada indivíduo Eis por que ao Identificar Jesus o Lógos eterno e o Filho de Deus o Pólgo do Evangelho de João permite apresentar cnstiamsmo como uma filosofia A Palavra substancial de Deus poderia ser concebida como Razão que cria o mundo 1 Tdas as citações bíblicas foram extraídas da Bíblia tradução ecumênica das Ed1ços Loyola Cf também a tradução oitocentista em decassílabos do hro de o por José Elói Ottoni O Livro de Jó estudo introdutório e fixa ço do texto por Haroldo de Campos São Paulo Edições LoyolaEditora Gwrdano 1993 Memória Brasileira 15 334 O cristianismo como filosofia revelada e guia o pensamento humano O neoplatônico Amélio2 discípulo de Plotino considerava por outro lado esse prólogo um texto filosófico quando escrevia E portanto está aí o Lógos graças ao qual todas as coisas geradas foram produzidas que é então sempre ele meso como disse Heráclitrr e também o Bárbaro o evangeltsta João diz que ele é voltado para Deus e que ele é Deus estabelecido no lugar e na dignidade do princípio que tudo foi Jeito por meio dele que ele estava no mundo e por ele o mundo foi Jeito que ele cai no corpo e revestzndo a carne toma a aparência de homem mas de tal modo que ao mesmo tempo mostra sua grandeza e que libertado de novo é divinizado é Deus tal qual era antes de cair no mundo dos corpos e de descer na carne e no homem Para Amélio4 o evangelista João que ele denomina o Bárbaro descreveu em seu prólogo a Alma do Mundo que é divina mas misturada de alguma maneira ao corpo Pouco importa contudo a interpretação proposta por élio o que nos interessa aqui é o parentesco reconhecido pelo filósofo neoplatônico entre o vocabulário do evangelista e o vocabulário próprio à filosofia Desde o século II dC os escritores cristãos denomina dos apologistas porque se esforçaram para apresentar o cristianismo sob uma forma compreensível ao mundo greco romano utilizaram a noção de Lógos para definir o cristia 2 Amélio in Eusébio Preparação evangélica XI 19 3 Heráclito B 1 Les Présocratiques trad Dumont p 1 5 4 Cf L Brisson Amélius Sa vie son ceuvre sa doctnne son sty1e in Aufstieg und Niedergang der romischen Welt Ed W Haase und H Tempo rini II vol 36 2 pp 840843 335 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos nismo como a filosofia Os filósofos gregos dizem eles até aqui possuíram apenas frações do Lógof isto é elementos do Discurso verdadeiro e da Razão perfeita mas os cristãos estão na posse do Lógos isto é do Discurso verdadeiro e da Razão perfeita encarnada em Jesus Cristo Se filosofar é viver conforme a Razão os cristãos são filósofos já que vivem conforme o Lógos divino6 Essa transformação do cristianis mo em filosofia há de acentuarse ainda em Alexandria no século III com Clemente de Alexandria7 para quem o cristianismo revelação completa do Lógos é a verdadeira filosofia aquela que nos ensina a conduzirnos de modo a nos assemelhar a Deus e a aceitar o plano divino como princípio diretor de toda nossa educação Assim como a grega a filosofia cristã há de apresentar se a um só tempo como discurso e como modo de vida Na época do nascimento do cristianismo nos séculos I e II o discurso filosófico de maneira preponderante toma ra nas várias escolas como vimos a forma de uma exege se dos textos dos fundadores O discurso da filosofia cristã será também e muito naturalmente exegética e as escolas de exegese do Antigo e do Novo Testamento como as que o mestre de Clemente de Alexandria ou ainda o próprio Orígenes tinham a5eilo em Alexandria oferece 5Justino Apologia II 8 1 e 13 3 cf A Wartelle Saintustin Apologies lntr texte trad e comm Paris 1987 6 Id ibid I 46 34 7 Clemente Stromáteis I 11 52 3 trad Mondésert Cerf collection Sources chrétiennes abreviado SC nas notas seguintes Vejase também o interessante texto de Gregório Taumaturgo Agradecimento a Orígenes que descreve a escola de Orígenes como uma escola filosófica tradicional com o amor entre mestre e discípulo os exercícios dialéticos mas também a submissão da filosofia à teologia cristã 336 O cristianismo como filosofia revelada rão um tipo de ensinamento igualmente análogo ao das escolas filosóficas contemporâneas Do mesmo modo que os platônicos propunham um curso de leitura dos diálo gos de Platão que correspondia às etapas do progresso espiritual os cristãos como Orígenes farão seus disCípulos lerem na ordem o livro bíblico de Provérbios o Eclesiastes8 e depois o Cântico dos Cânticos que correspondem res pectivamente segundo Orígenes à ética que proporciona uma purificação prévia à física que ensina a desvencilhar se das coisas sensíveis e à epóptica ou teologia que leva à união com Deus9 Vislumbrase aqui que a leitura de textos é como entre os filósofos dessa época uma leitu ra espiritual em estreita relação com o progresso da alma A noção filosófica de progresso constitui o arcabou ço da formação e do ensinamento cristãos Como o dis curso filosófico antigo para o modo de vida filosófico o discurso filosófico cristão é um meio de realizar o modo de vida cristão Poderseia dizer talvez e com razão que há mesmo uma diferença pois a exegese cristã é uma exegese de textos sagrados e a filosofia cristã fundase numa revelação o Lógos é precisamente a revelação e a manifestação de Deus A teologia cristã constituise pouco a pouco nas controvérsias dogmáticas sempre fundadas na exegese do Antigo e do Novo Testamento Mas existia completamente na filosofia grega uma tradição de teologia sistemática inaugurada pelo 8 Qohélet0quesabe Eclesiastes poema sapiencial transcriação de Haroldo de Campos São Paulo Perspectiva 1991 Signos 13 9 Orígenes Commentaire sur le Cantique des Cantiques Prologue 3 123 Éd et trad L Brézard H Crouzet et M Borret Paris SC 1991 t I pp 128143 cf L Hadot Introduction a Simplício Commentaire sur les Catégo ries Fase L Leyde 1990 pp 3644 337 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos Timeu e pelo livro X das Leis de Platão e desenvolvida no livro XII da Metafísica de Aristóteles tradição que distin guia as diferentes fontes de revelação os modos de ação e os diferentes graus da realidade divina e que integrará todos os tipos de revelação na época do neoplatonismo posterior A filosofia grega podia mesmo desse ponto de vista servir de modelo para a filosofia cristã10 Mas se certos cristãos podem apresentar o cristianismo como uma filosofia como a filosofia isso não é totalmente porque o cristianismo propõe uma exegese e uma teologia análogas à exegese e à teologia pagãs mas porque ele é um estilo de vida e um modo de ser e porque a filosofia antiga fora um estilo de vida e um modo de ser Como bem notou Dom Jean Leclerq11 Na Idade Média mo nástica tanto quanto na Antiguidade philosophia designa não uma teoria ou uma maneira de conhecer mas uma sabedoria vivida uma maneira de viver segundo a razão isto é segundo o Lógos A filosofia cristã consiste precisa mente em viver segundo o Lógos isto é segundo a razão a tal ponto que segundo Justino12 aqueles que antes de Cristo levaram uma vida acompanhada de razão lógos são cristãos tendo passado por ateus tais como Sócrates Heráclito e seus semelhantei Com essa assimilação do cristianismo a uma filosofia veemse aparecer no cristianismo práticas exercícios espiri 10 Cf P Hadot Théologie exégese révélation écriture dans la philosophie grecque in Les Regles de linterprétation Éd par M Tardieu Paris 1987 pp 1334 11 Leclerq Pour lhistoire de lexpression philosophie chrétienne in Mélanges de scíence religieuse 9 221226 1952 12 Justino Apologia I 46 3 Wartelle 338 O cristianismo como filosofia revelada tuais que eram próprios à filosofia profana Por exemplo Clemente de Alexandria13 poderia escrever isto É necessário que a lei divina inspire o temor a fim de que o filósofo adquira e conserve a tranquilidade da alma amerim nia graças à prudência eulabeia e à atenção prosokhê consigo mesmo Nesta frase entrevêse todo o universo de pensamento da filosofia antiga A lei divina é a um só tempo o Lógos dos filósofos e o Lógos cristão ela inspira a circunspecção na ação a prudência a atenção consigo mesmo isto é a atitude fundamental do estoico que proporciona a tranquili dade da alma disposição interior que todas as escolas procuram Ou ainda em Orígenes1 encontrase o exer cício muito filosófico do exame da consciência quando comentando o Cântico dos Cânticos Se não o sabes tu a mais bela das mulheres 15 ele o interpreta como um convite para a alma examinarse atentamente A alma deve dirigir seu exame para seus sentimentos e ações Propõe se ela o bem Procura as diferentes virtudes Está ela em progresso Reprimiu totalmente por exemplo as paixões da cólera da tristeza do medo ou do amor à glória Qual é sua maneira de dar e receber de julgar pela verdade Entre os Padres da Igreja do século IV os que se situam na tradição de Clemente de Alexandria e de Orígenes por exemplo Basílio de Cesareia Gregório Nazianzeno Gregório de Nissa Evágrio Pôntico em certo sentido 13 Clemente de Alexandria Stromáteis II 20 1 Mondésert SC 14 Orígenes Comentário sobre o Cântico dos Cânticos II 5 7 t I p 359 Brézard Crouzel et Borret 15 Cântico dos Cânticos 18 339 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos Atanásio de Alexandria e monges mais tardios como Doroteu de Gaza que escreve no século VI não deixaram de interpretar no sentido da filosofia cristã o fenômeno do monaquismo que se desenvolve a partir do início do século IV no Egito e na Síria É então que alguns cristãos começam a querer atingir a perfeição cristã por uma prá tica heroica de conselhos evangélicos e imitação da vida de Cristo retirandose para os desertos e levando uma vida consagrada totalmente a uma ascese rigorosa e à meditação Não se tratava de pessoas cultas e eles não pensavam absolutamente em qualquer relação com a filo sofia Encontraram seus modelos no Antigo e no Novo Testamento talvez também isso não deve ser excluído a priori nos exemplos do ascetismo budista ou mani queu16 É necessário também recordar que já na época de Fílon e de Jesus existiam comunidades de ascetas contem plativos como os Terapeutas que Fílon de Alexandria17 descreve em seu tratado Da vida contemplativa e nomeia filósofos ou ainda como a corrente judaica de Qumrân Mas para os defensores da filosofia cristã que vão aliás praticar o monaquismo é o movimento que L Bouyer18 denomina o monaquismo sábio a filo sofia há de designar doravante precisamente o modo de vida monástico como perfeição da vida cristã mas essa filosofia continuará a estar estreitamente ligada a algu mas categorias profanas como a paz da alma a ausência 16 Gribomont Monasticism and Asceticism in Christian Spirituality Ed M McGinn Meyendorff and Leclerq New York Clossroad 1986 p 91 17 Cf a introdução de F Daumas a Fílon de Alexandria De vita con templativa Paris SC 1963 notadamente p 31 18 L Bouyer La Spiritualité du Nouveau Testament et des Peres Paris 1960 pp 400472 340 O cristianismo como filosofia revelada de paixões19 a vida conforme a natureza e a razão20 Como a filosofia profana a vida monástica apresentarseá então como a prática de exercícios espirituais21 dos quais alguns serão especificamente cristãos mas cuja maioria será herdada da filosofia profana Tornarseá a encontrar assim a atenção consigo mesmo que era a atitude fundamental dos estoicos e por outro lado dos neoplatônicos22 Essa é para Atanásio de Alexandria23 a própria definição da atitude monástica Narrando em sua Vida de Antão como Antão se converteu à vida monástica ele se contenta em dizer que se pôs a dar atenção a si mesmo e fará referência a estas palavras de Antão dirigidas no dia de sua morte a seus discípulos Vivei como se devêsseis morrer cada dia dando atenção a vós mesmos e vos recordando de minhas exortações Gregório Nazianzeno24 falará muito mais de concen tração em si mesmo Atenção a si concentração no pre sente pensamento da morte serão constantemente vincu lados na tradição monástica como na filosofia profana 19 Numerosos exemplos em Gregório Nazianzeno Lettres T Ill Éd P Gallay Paris Belles Lettres 19641967 t I pp 39 60 71 74 114 t II pp 14 85 Cf H Hunger Die Hochsprachliche profane Literatur der Byzantiner T I Munich 1978 pp 410 bibliografia abundante AM Malingrey Philosophia Paris 1961 20 Atanásio Vie dAntoine 14 4 Éd G M Bartelink Paris SC 1994 p 175 e 20 56 pp 189191 Evagro Traité pratique du moine Éd A et Cl Guillaumont Paris SC 1971 86 p 677 21 Rufino Historia Monachorum 7 e 29 Patrologia latina 21 410 e 453 d Cf Leclerq Exercices spirituels in Dictionnaire de spiritualité Paris t N cols 19021908 22 Cf acima pp 202 e 230231 23 Atanásio Vida de Antão 3 1 p 137 e 91 3 p 369 24 Gregório Nazianzeno Cartas t II p 45 Carta 153 341 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos Antão aconselha por exemplo que seus discípulos desper tem pensando no que talvez não tenham alcançado no dia anterior e que durmam pensando que não despertarão e Doroteu de Gaza adverte os seus dizendo25 Demos atenção a nós mesmos irmãos sejamos vigilantes pois temos muito tempo Desde o início de nossa conversa dispensamos duas ou três horas e nos aproximamos da morte mas notemos sem terror que perdemos tempo É bastante evidente que essa atenção a si mesmo é com efeito uma conversão uma orientação para a parte superior de si Isso aparecerá muito claramente em um sermão de Basílio de Cesareia que toma por tema um texto bíblico26 Guardate de ter em teu coração um pensamento vil No comentário de Basílio encontrarseão todos os temas do estoicismo e do platonismo Guardarse a si mesmo é animar em nós os princípios racionais de pensamento e de ação que Deus pôs em nossa alma é velar por nós mesmos isto é por nosso espírito e nossa alma e não pelo que é nosso isto é nosso corpo e nossos bens é velar também pela beleza de nossa alma examinando nossa consciência e conhecendonos a nós mesmos Corrigiremos assim os juízos que lançamos sobre nós mgsmos reconhecendo ao mesmo tempo nossa verdadeira pobreza e nossa verdadeira riqueza os esplendores que nos oferece o cosmos nosso corpo a Terra o céu os astros e sobretudo o destino da alma27 25 Atanásio Vida de Antão 19 3 p 187 Doroteu de Gaza Obras espirituais 114 115 SC 26 Deuteronômio 159 27 Basílio de Cesareia In illud attende tibi ipsi Patrologia graeca 31 cols 197217 edição crítica de S Y Rudberg Acta Universitatis Stockholmensis Studia Graeca Stockholmensia T 2 Stockholm 1962 342 O cristianismo como filosofia revelada A atenção a si mesmo supõe a prática do exame de consciência que o célebre Antão aconselhava que seus discípulos praticassem por escrito28 Que cada um anote por escrito as ações e os movimentos de sua alma como se os devesse fazer conhecer aos outros Preciosa notação psicológica o valor terapêutico do exame de consciência será maior se for exteriorizado graças à escritura Assim como teríamos vergonha de cometer faltas em público a escritura dános a impressão de estar em público Que a escritura assuma o lugar do ouvido do outro Seja como for o exercício do exame de consciência deve ser muito frequente e muito regular Doroteu de Gaza29 recomendava que todos se examinassem às seis horas mas também que fizessem um balanço do estado da alma a cada semana a cada mês a cada ano A atenção a si mesmo e a vigilância supõem também como vimos exercícios de pensamento tratase de meditar de rememorar de ter constantemente à mão os princípios da ação resumidos tanto quanto possível em curtas sen tenças É a essa necessidade que respondem na literatura monástica os Apojtegmas e o que se denomina Kephalaia Os Apoftegmail0 foram como os dos filósofos profanos reunidos por Diógenes Laércio pronunciados por mestres espirituais em uma circunstância determinada Os Kephalaia 28 Atanásio Vida de Antão 55 9 p 285 Cf M Foucault LÉcriture de soi in Corps écrit 5 pp 323 e minhas observações sobre esse texto de Foucault in Michel Foucault philosophe Paris 1989 pp 262266 29 Doroteu de Gaza CEuvres spirituels Éd L Regnault etJ de Préville Paris SC 1963 111 13 e 117 7 pp 353 e 365 30 Cf Les Apopthegmes des Peres Collection Systématique chap IIX Introd texte trad et notes par JC Guy Paris SC 1993 343 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos pontos capitais são coleções de sentenças relativamente curtas agrupadas quase sempre em centenas A meditação dos exemplos e das sentenças deverá como na filosofia profana ser constante Epicuro e Epíteto recomendavam que se cresça nisso dia e noite Doroteu de Gaza31 tam bém aconselha meditar sem cessar a fim de ter à mão os princípios da ação no momento oportuno e que se possa aproveitar todos os acontecimentos isto é reconhecer o que se deve fazer diante de cada acontecimento A atenção a si mesmo traduzse por um domínio um controle de si que só se pode obter pelo hábito e pela perseverança nas práticas ascéticas destinadas a realizar o triunfo da razão sobre as paixões atacadas até sua erra dicação radical Tratase de aplicar aqui uma terapêutica das paixões O caminho que leva a essa libertação total apatheia passa pelo desvinculamento dos objetos apros patheia isto é a supressão progressiva dos desejos que têm por objeto as coisas indiferentes Como o estoico Epíteto mas também como o platônico Plutarco que es crevera tratados aconselhando exercícios de domínio da curiosidade e da tagarelice Doroteu de Gaza recomenda começar por habituarse a Stiprimir pequenas coisas uma vã curiosidade uma palavra inútil para prepararse pouco a pouco para grandes sacrifícios32 Para Doroteu de Gaza graças a essas práticas é a vontade egoísta a vontade própria a vontade que busca seu prazer nos objetos que será pouco a pouco suprimida33 31 Doroteu de Gaza 60 2730 32 Id 20 133 e Epiteto Conversações I 18 18 e Manual 12 2 33 Doroteu de Gaza 20 28 e 187 1416 344 O cristianismo como filosofia revelada Por sorte chega enfim a não ter mais vontade própria mas seja o que for que lhe aconteça isso o contenta como isso lhe viesse dele mesmo Aquele que não tem vontade própria Jaz sempre o que quer tudo o que acontece o satisfaz e ele se acha a Jazer constantemente sua vontade a ele mesmo pois não quer que as coisas sejam como ele qu mas quer que as coisas sejam tais quais são Reconhecese aí o eco da célebre oitava sentença do Manual de Epíteto Não deseja que o que acontece aconteça como tu queres mas quezras que o que acontece aconteça como acontece e serás feliz Como o estoico o monge quer cada momento presente tal qual é Segundo outro conselho da filosofia tradicionaP os principiantes esforçarseão para combater uma paixão por exemplo a luxúria com uma paixão a ela oposta por exemplo a busca da boa reputação antes de poder combater diretamente essa paixão praticando a virtude que lhe é oposta35 São antes as concepções platônicas e neoplatônicas que exercem sua influência em Evágrio Pôntico36 que fora discípulo de Gregório Nazianzeno por exemplo quando ele utiliza a tripartição platônica da alma para definir o estado de virtude 34 Cícero Tusculanas IV 75 35 Evágrio Tratado prático 58 SC 36 Id ibid 86 345 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos A alma racional age segundo a natureza quando sua parte desejante epithymêtikon deseja a virtude quando sua parte guerreira thymikon combate pela virtude e quan do sua parte racional logistikon chega à contemplação dos seres A ascese é frequentemente concebida também de maneira platônica como uma separação do corpo e da alma que é a condição preliminar para a visão de Deus O tema aparece já em Clemente de Alexandria37 para quem a real piedade para com Deus consiste em separarse sem retorno do corpo e de suas paixões Eis por que talvez a filosofia tenha sido denominada a justo título exercício para a morte por Sócrates É necessário renunciar a utilizar os sentidos para poder reconhecer as verdadeiras realidades Gregório Nazianzeno repreende um amigo doente por lamentarse de seu sofrimento como se fora algo irremediável e o exorta38 É necessário ao contrário que tu filosofes isto é que tu te exercites para viver como um filósofo em teu sofrimento é ao mais alto grau o momento de purificar teu pensamento de revelarte superior aos laços que te prendem isto é ao corpo de ver em tua doença uma fieaagogia que te conduz ao que é útil para ti isto é a desprezar o corpo e as coisas corpóreas e tudo o que se vende e que é fonte de perturbação e de pe recimento a fim de que possas pertencer inteiramente à parte que está no alto fazendo desta vida aqui embaixo é o que diz Platão um exercício para a morte libertando 37 Clemente de Alexandria Stromáteis V 11 67 1 Éd A Le Boulluec Paris SC 1981 p 137 38 Gregório Nazianzeno Cartas XXXI t I p 39 346 O cristianismo como filosofia revelada assim tua alma tanto quanto possas seja do corpo sôma seja do túmulo sêma para falar como Platão Se tu filosofas dessa maneira 1 aprenderás muito a filosofar em teu sofrimento Quanto ao discípulo de Gregório Evágrio Pôntico é nestes termos claramente neoplatônicos que retoma o mesmo tema39 Separar o corpo da alma pertence apenas Àquele que os uniu mas separar a alma do corpo pertence precisamente àquele que tende à virtude Pois nossos Padres denominam anacorese a vida monástica o exercício para a morte e fuga do corpo Porfírio escrevera40 O que a natureza ligou ela o desligou mas o que a alma ligou é a alma que o desliga A natureza ligou o corpo na alma a alma ligouse a si mesma no corpo portanto a natureza desliga o corpo da alma mas a alma desligase a si mesma do corpo Ele opunha assim o laço natural do corpo com a alma que o faz viver ao laço afetivo que vincula a alma ao corpo laço que pode ser tão estreito que a alma se identifique ao corpo e cuide apenas de satisfazêlo Segundo Evágrio a morte para a qual se prepara o filósofo que é monge é a total erradicação das paixões que ligam a alma ao corpo para alcançar a perfeita separação do corpo que proporciona a apatheia a ausência de paixões 39 Evágrio Tratado prático 52 vejase in SC o comentário de A e C Guillaumont 40 Porfírio Sententiae cc 8 e 9 347 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos Cristianismo e filosofia antiga Se os cristãos puderam retomar a palavra grega philo sophia para designar essa perfeição da vida cristã que é o monaquismo é que essa palavra designava bem um modo de vida de maneira que retomandoa os filósofos cris tãos foram levados a introduzir no cristianismo práticas e atitudes herdadas da filosofia profana Isso não deve causar espanto vida filosófica profana e vida monástica teriam finalmente muitas analogias Sem dúvida o filósofo anti go não se retira para o deserto nem para o claustro ao contrário vive no mundo no qual exerce algumas vezes uma atividade política Mas se é realmente um filósofo ele teve de se converter fazer profissão de filósofo fez uma escolha de vida que o obriga a transformar toda sua vida no mundo e em certo sentido ele se separa do mundo Entra em uma comunidade sob a direção de um mestre espiritual na qual será levado a venerar o fundador da escola a participar muitas vezes das refeições comuns com os membros da escola ele vai examinar sua consciência talvez mesmo confessar suas faltas como era costume na escola epicurista levar uma vida ascética renunciar a todo conforto e toda riqueza se é um cínico seguir um regime vegetariano se pertence a uma escola pitagórica e se é neoplatônico consagrarse à contemplação procurar a união mística O cristianismo é indiscutivelmente um modo de vida Que seja apresentado como uma filosofia não implica por tanto nenhum problema Mas ao fazêlo ele adota certos valores e certas práticas próprias à filosofia antiga Isso era legítimo Essa evolução correspondia ao espírito original 348 O cristianismo como filosofia revelada do cristianismo A essa questão complexa não podemos oferecer uma resposta certa e exaustiva pois seria necessá rio antes de tudo definir de maneira rigorosa o que fora o cristianismo primitivo e isso ultrapassa nossa competência e o objetivo deste livro Gostaríamos somente de observar alguns pontos que nos parecem essenciais Em primeiro lugar e é isso o mais importante não se deve esquecer que se a espiritualidade cristã tomou em prestados da filosofia antiga certos exercícios espirituais eles passam a encontrar seu lugar em um mais vasto con junto de práticas especificamente cristãs A vida monástica supõe sempre o auxílio da graça de Deus e também uma disposição fundamental de humildade que se manifesta muitas vezes nas atitudes corporais que marcam a submis são e a culpabilidade como a prostração diante dos outros monges A renúncia à vontade própria realizase por uma obediência absoluta às ordens do superior O exercício para a morte está ligado à memória da morte de Cristo a ascese é compreendida como uma participação em sua Paixão Do mesmo modo é Cristo que o monge vê em cada homem41 Tu não tens vergonha de te encolerizar e de falar mal de teu irmão Não sabes que ele é Cristo e que é a Cristo que fazes desonra A prática das virtudes ganha então outro sentido Por outro lado os filósofos cristãos procuraram cris tianizar o emprego que faziam de temas filosóficos profa nos procurando dar a impressão de que os exercícios que aconselhavam já tinham sido recomendados pelo Antigo 41 Doroteu de Gaza Vida de Dositeu 6 349 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos ou pelo Novo Testamento Por exemplo se o Deuteronômio emprega a expressão Guardate Basílio conclui disso que o livro bíblico aconselha o exercício filosófico da atenção a si mesmo Essa atenção a si mesmo será de nominada também Guarda teu coração por causa de um texto de Provérbios42 Guarda teu coração com toda a vigilância Como se encontra na Segunda Epístola aos Coríntios43 a exortação Fazei vós mesmos vossa autocrí tica verseá aí um chamado ao exame de consciência e na Primeira Epístola aos Coríntios nas palavras44 Todos os dias eu morro o modelo do exercício para a morte Contudo é evidente que essas alusões aos textos escritu rísticos não podem impedir que os filósofos cristãos descrevam como vimos os exercícios espirituais de que falam utilizando o vocabulário e os conceitos da filosofia profana As alusões aos textos bíblicos se fundam muitas vezes apenas em uma interpretação alegórica que consis te finalmente em atribuir aos textos o sentido que se lhes deseja atribuir sem levar em conta a intenção do autor Muitos filósofos modernos utilizam esse modo de inter pretação para explicar os textos da Antiguidade Seja como for é por esse procedimento que os Padres da Igreja puderam por exemplo interpFetar expressões evangélicas tais como reino dos céus ou reino de Deus como se designassem partes da filosofia É o que se encontra nas primeiras linhas do Tratado prático de Evágrio Pôntico que começa por escrever45 42 Provérbios 4 23 Atanásio Vida de Antão 21 2 p 192 43 2Cor 13 5 Atanásio Vida de Antão 55 6 p 283 44 1Cor 15 31 Atanásio Vida de Antão 19 2 p 187 45 Evágrio Tratado prático 1 350 O cristianismo como filosofia revelada O cristianismo é a doutrina de Cristo nosso Salvador ela se compõe da prática da física e da teologia Reconhecemos aí enumeradas segundo sua ordem as três partes da filosofia valorizadas na escola platônic ao menos desde Plutarco46 que correspondiam às três etapas do progresso espiritual É bastante admirável apren der que Cristo propôs uma prática uma física e uma eologi Evidentemente poderseia admitir a rigor que e poss1vel reconhecer essas três partes da filosofia nos conselhos morais e nos ensinamentos sobre o fim do mundo e sobre Deus Mas é ainda mais admirável quando Evágrio define mais precisamente as três partes da filosofia Parece que para ele a fisica é o reino dos céus e a teologia o reino de Deus47 Temos então a surpresa de tornar a encontrar aqui a no ção evangélica de reino de Deus que era designada por suas expressões sinônimas o reino dos céus e o reino de Deus Essa noção provinha do judaísmo no qual correspondia à perspectiva futura de um reino de Deus e de sua Lei sobre todos os povos da Terra Na mensagem de Jesus o reino é a um só tempo presente e iminente pois começa a realizar se segundo o espírito e não segundo a letra pela conversão pela penitência pelo amor ao próximo pelo cumprimento da vontade de Deus Identificar a noção de reino de Deus ou de reino dos céus a partes da filosofia da física e da teologia é realmente atribuir a essas noções um sentido totalmente inesperado Sob a influência de Orígenes por outro lado as noções evangélicas de reino dos céus e de 46 Cf acima p 223 e 337 47 Evágrio op cit 23 351 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos reino de Deus tornamse dois estados da alma ou duas etapas do progresso espiritual Após a prática purificação preliminar graças à qual começase a adquirir a impassibi lidade apatheia diante das paixões o iniciante pode abor dar a física a contemplação das naturezas physeis isto é dos seres criados por Deus visíveis e invisíveis É enquanto criados que o iniciante os contempla isto é em sua rela ção com Deus Com essa contemplação consolidase a impassibilidade É o que Evágrio denomina o reino dos céus Indo além disso o iniciante atingirá então o reino de Deus isto é a contemplação do mistério de Deus em sua Trindade Essa será a etapa da teologia Essa interpretação dos termos reino dos céus e reino de Deus não é con tudo própria de Evágrio Já esboçada desde Clemente de Alexandria e Orígenes é abundantemente atestada nos escritores posteriores48 Nos anos que se seguirão à sua conversão Agostinho de Hipona confrontou em seu livro Sobre a verdadeira religião platonismo e cristianismo A seus olhos o essencial das doutrinas platônicas e o essencial das doutrinas cristãs se sobrepõem A lógica platônica ensina a reconhecer que as imagens sensíveis enchem nossa alma de erros e de opiniões falsas e que é necessário curála dessa doença para que ela possa descobrir a realidade divina A física nos ensina que todas as coisas nascem morrem e desaparecem tendo existência apenas graças ao ser verdadeiro de Deus que as formou Separandose das coisas sensíveis a alma poderá fixar seu olhar na Forma imutável que dá forma a todas as coisas e na Beleza sempre igual e em tudo semelhante 48 Orígenes De oratione 25 vejase a nota de A e C Guillaumont in Evágrio Tratado prático t II pp 499503 SC 352 O cristianismo como filosofia revelada a si mesma que o espaço não divide e o tempo não trans forma A ética fará descobrir que unicamente a alma racional e intelectual é capaz de usufruir a contemplação da eternidade de Deus e de nele encontrar a vida eterna49 Tal é para Agostinho a essência do platonismo e também a do cristianismo como ele afirma citando certo número de passagens do Novo Testamento opondo o mundo vi sível e o mundo invisível a carne e o espírito Mas dirseá qual é então a diferença entre o cristianismo e a filosofia platônica Para Agostinho ela consiste no fato de que o platonismo não pôde converter as massas e desprendêlas das coisas terrestres para orientálas para as coisas espiri tuais por essa razão desde o nascimento de Cristo homens de toda condição adotaram esse modo de vida e assistiram a uma verdadeira transformação da humanidade Se Platão voltasse à Terra diria Eis o que não ousei anunciar às massas Se as almas cegas pelas máculas corporais pu deram sem o auxílio das discussões filosóficas entrar em si mesmas e olhar para sua pátria é que Deus na Encarnação desceu até o corpo humano a autoridade da Razão divina50 Nessa perspectiva agostinista o cristianismo tem o mesmo conteúdo que o platonismo tratase de se pararse do mundo sensível para poder contemplar Deus e a realidade espiritual mas unicamente o cristianismo pôde fazer adotar esse modo de vida pelas massas popu lares Nietzsche51 teria podido apoiarse em Agostinho 49 Agostinho De vera religione III 3 Bibliotheque Augustinienne CEuvres de saint Augustin 8 1re série Opuscules VIII La Foi chrétienne Éd et trad Pegon Paris 1951 50 Agostinho Devera religione IV 7 51 Nietzsche Para além de bem e mal prefácio 4a ed tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho São Paulo Nova Cultural 1987 Os Pensadores 353 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos para justificar sua fórmula O cristianismo é um patonis mo para o povo É necessário reconhecer que sob a influência da filo sofia antiga certos valores que eram apenas secundários se não inexistentes vieram a ocupar o primeiro plano no cristianismo À ideia evangélica da irrupção do reino de Deus substituise o ideal filosófico de uma união com Deus de uma deificação alcançada pela ascese e pela contempla ção Algumas vezes a vida cristã tornase menos a vida de um homem que a de uma alma tornase uma vida segundo a razão análoga à dos filósofos profanos e mesmo mais especialmente ainda uma vida segundo o Espírito análoga à dos platônicos tratarseá agora de fugir do corpo para voltarse para uma realidade inteligível e transcendente e se possível atingila em uma experiência mística Em todo caso a atenção a si a busca da impassibilidade da paz da alma da ausência de cuidado e muito especialmente a fuga do corpo tornaramse os objetivos primordiais da vida espiritual Doroteu de Gaza52 não hesitará em afirmar que a paz da alma é tão importante que se deve caso isso seja necessário renunciar ao que se persegue para não perdêla Foi essa espiritualidade marcada fortemente pelo modo de vida das escolas filosófiGasantigas que o modo de vida cristão da Idade Média e dos tempos modernos herdou 52 Doroteu de Gaza 5860 354 Capítulo 11 cfJesaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia Se a filosofia antiga vinculava tão estreitamente discurso filosófico e forma de vida como se deveria hoje no ensino habitual de história da filosofia apresentar a filosofia antes de tudo como um discurso quer se trate de um discurso teórico e sistemático ou de um discurso crítico sem relação direta com a maneira de viver do filósofo Ainda uma vez cristianismo e filosofia A razão dessa transformação é antes de tudo de ordem histórica Ela se deve ao progresso do cristianismo O cristianismo acabamos de ver apresentouse muito cedo como uma filosofia no sentido antigo da palavra isto é como uin modo e uma escolha de vida implican do certo discurso a escolha de vida segundo Cristo Nesse modo de vida cristão e também no discurso cristão muitos elementos da filosofia tradicional grecoromana foram absorvidos e integrados Mas pouco a pouco por razões que ainda iremos expor efetuouse no seio do cristianismo 355 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos especialmente na Idade Média um divórcio entre o modo de vida e o discurso filosófico Certos modos de vida fi losóficos próprios às diferentes escolas da Antiguidade desapareceram totalmente por exemplo o epicurismo os outros como o estoicismo ou o platonismo foram absor vidos pelo modo de vida cristão Se é verdade que até certo ponto o modo de vida monástico foi denominado filosofia na Idade Média não é menos verdade que esse modo de vida embora integrasse exercícios espiri tuais próprios às filosofias antigas viuse separado do discurso filosófico ao qual se ligara anteriormente Por tanto subsistiram unicamente os discursos filosóficos de certas escolas antigas sobretudo os do platonismo e do aristotelismo mas separados dos modos de vida que os inspiraram foram reduzidos ao plano de um simples material conceitual utilizável nas controvérsias teológicas A filosofia posta a serviço da teologia é doravante apenas um discurso teórico e quando a filosofia moder na conquistar sua autonomia no século XVII e sobretu do no século XVIII terá sempre tendência a limitarse a esse ponto de vista Disse bem ela terá tendência pois como teremos oportunidade de repetir a concepção original e autêntica da filosofia grecoromana jamais será totalmente esquecida Graças aos trabalhos de J Domanski2 pude corrigir a apresentação demasiadamente breve e inexata que propu sera desse processo de teorização da filosofia em estudos 1 Cf acima p 340 2 J Domanski La philosophie théorie ou maniere de vivre Fribourg Paris 1996 356 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia anteriores3 Continuo sem dúvida a pensar que esse fe nômeno está intimamente ligado às relações entre filosofia e cristianismo notadamente como definidas nas universi dades medievais Mas por outro lado devo reconhecer que a redescoberta da filosofia como modo de vida não é tão tardia quanto eu afirmara sendo necessário admitir que começou a esboçarse também nas universidades me dievais Em contrapartida é necessário aduzir nuances e especificações na descrição dessa redescoberta da filosofia como modo de vida A filosofia como serva da teologia Escrevendo nos últimos anos do século XVI suas Dis putationes Metaphysicae obra que exercerá considerável influência sobre muitos filósofos desde o século XVII até o século XIX o autor escolástico F Suárez4 declara Nesta obra ponhome no papel de um filósofo tendo bem presente ao espírito que nossa filosofia deve ser uma filosofia cristã e serva da divina teologia Para Suárez uma filosofia cristã é a que não contradiz os dogmas do cristianismo e pode ser utilizada na eluci dação de problemas teológicos Isso não quer dizer que essa filosofia seja especificamente cristã nas doutrinas que 3 P Hadot Exercices spirituels et philosophie antique 3 ed Pa1is pp 5657 e 222225 4 Fr Suárez Disputationes Metaphysicae in Opera omnia Vives 1861 t XXV Ràtio et discursus totius operis citado por É Gilson LEsprit de la philo sophie médiévale Paris 1944 p 414 no qual se encontrará uma compilação de textos sobre a noção de filosofia cristã 357 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos professa Ao contrário tratase essencialmente da filosofia aristotélica tal qual assimilada e adaptada ao cristianismo pela escolástica do século XIII Essa representação da filosofia serva escrava de uma teologia ou sabedoria superior fez uma longa história5 Desde o início de nossa era encontrarseá em Fílon de Alexandria que propusera um esquema geral da formação e do progresso espiritual A primeira etapa era segundo o programa da República de Platão o estudo do ciclo das ciências como a geometria a música mas também a gramática e a retórica Comentando o livro do Gênesis Fílon identifica essas ciências a Hagar a escrava egípcia à qual Abraão deve unirse antes de se unir a Sara sua es posa6 O ciclo das ciências deve ser concebido como es cravo da filosofia Mas a filosofia deve por seu turno ser considerada escrava da sabedoria ou verdadeira filosofia que é para Fílon a Palavra de Deus revelada por Moisés7 Os Padres da Igreja como Clemente de Alexandria e sobretudo Orígenes retomarão essa relação de proporção estabelecida por Fílon entre o ciclo das ciências e a filo sofia grega de uma parte e a filosofia grega e a filosofia 5 Encontrarseá uma história da noçao in B Baudoux Philosophia Ancilla Theologiae in Antonianum 12 293326 1937 É Gilson La servante de la théologie in Études de philosophie médiévale Strasbourg 1921 pp 3050 Vejamse também as observações de A Cantin em sua introdução a P Damião Lettre sur la ToutePuissance divine Paris SC 1972 p 251 nota 3 N do T cf Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento A serva da teologia e a dama dos salões in Humanidades Brasília 83 281287 1992 6 Fílon de Alexandria De congressu ll cf I Hadot p 282 7 Fílon de Alexandria op cit 7980 cf I Hadot p 284 M Alexandre pp 7172 358 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia mosaica de outra substituindo evidentemente a filosofia de Moisés pela de Cristo8 Mas é necessário considerar que a filosofia grega pos ta aqui em questão é aquela que se reduz ao discurso fi losófico O cristianismo apresentouse a si mesmo confor me vimos como um modo de vida o único modo de vida válido Mas em face desse modo de vida cristão por vezes tingido por nuances emprestadas à filosofia profana per sistem os discursos filosóficos das diferentes escolas ou mais exatamente o discurso filosófico do neoplatonismo pois a partir do século III dC o neoplatonismo é como síntese do aristotelismo e do platonismo a única escola filosófica que subsiste É esse discurso filosófico neopla tônico que os Padres da Igreja depois de Clemente de Alexandria e de Orígenes hão de utilizar para desenvolver sua teologia Desse ponto de vista a filosofia será desde a Antiguidade cristã a serva da teologia uma serva que aduzirá seu saberfazer mas que deverá também adaptarse às exigências de sua senhora Haverá assim uma conta minação Na Trindade o Pai revestirseá bastante dos traços do primeiro Deus neoplatônico o Filho será con cebido sobre o modelo do segundo Deus de Numênio ou do Intelecto plotiniano Mas a evolução das controvérsias teológicas conduzirá à representação de uma Trindade consubstanciai A lógica e a ontologia aristotélicas que o neoplatonismo integrara fornecerão os conceitos indispen sáveis para formular os dogmas da Trindade e da Encarna ção permitindo distinguir natureza essência substância hipóstase E como recompensa por efeito do refinamento 8 Vejamse os textos de Clemente e de Orígenes in M Alexandre pp 8397 e I Hadot pp 287289 359 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modemos das discussões teológicas a ontologia aristotélica tomarseá mais aperfeiçoada e precisa Segundo Fílon e Orígenes as artes liberais eram uma propedêutica à filosofia grega e a filosofia grega uma pro pedêutica à filosofia revelada Mas pouco a pouco as etapas preparatórias tiveram tendência de fundirse entre si Por exemplo quando Agostinho de Hipona em seu De doctrina christiana enumera os conhecimentos profanos necessários ao exegeta cristão praticamente põe no mesmo plano de um lado as artes liberais como as matemáticas a dialética e de outro a filosofia9 Reencontrase esse nivelamento no início da Idade Média por exemplo na época carolíngia em Alcuíno10 Do século IX ao XII a filosofia grega graças a certas obras de Platão de Aristóteles de Porfírio conhecidas por intermédio de traduções e comentários realizados no fim da Antiguidade por Boécio Macróbio Marciano Capela há de continuar como no tempo dos Padres da Igreja a ser utilizada nas discussões teológicas mas servirá também para elaborar uma representação do mundo O platonismo da escola de Chartres é um fenômeno bem conhecido11 Durante esse período as artes liberais farão parte do ciclo de estudos nas escolas monásticas e catedrais12 9 Agostinho De doctrina christiana 40 60 Bibliotheque Augustinienne CEuvres de saint Augustin 11 1 série Opuscules XI Le Magistere chrétien Éd et trad Combes et Farges Paris 1949 p 331 10 Alcuíno Epistulae 280 in Monumenta Germaniae Historica Epistulae vol IV p 437 2731 Dümmler cf J Domanski La philosophie théorie ou maniere de vivre chap li 11 Cf É Jeauneau Lectio Philosophorum in Recherches sur lécole de Chartres Amsterdam 1972 12 Cf Ph Delhaye Enseignement et morale au XIIe siecle FribourgParis 1988 pp 158 360 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia A partir do século XIII dois novos fatos terão grande influência sobre a evolução do pensamento da Idade Média Tratase de uma parte da aparição das universi dades e de outra da ampla disseminação das traduções de Aristóteles O fenômeno da constituição das universi dades corresponde ao progresso das cidades e a um declínio das escolas monásticas que como diz MD Chenu13 preparavam sem ambiÇão o jovem monge à leitura da Bíblia e ao serviço divino A universidade que é ao mesmo tempo no seio da cidade a corporação intelectual de estudantes e de professores e na Igreja um corpo dependente da autoridade eclesiástica orga niza um curso escolar um ano letivo aulas exercícios de discussão de exames O ensino é reunido em duas faculdades a Faculdade de Artes na qual se ensinam em princípio as artes liberais e a Faculdade de Teologia É igualmente no século XIII que se descobre grande parte da obra de Aristóteles e de seus comentadores gregos e árabes graças às traduções latinas de textos árabes e gregos A filosofia de Aristóteles e entendamos por isso o discurso filosófico de Aristóteles há de desem penhar papel capital nas duas Faculdades Os teólogos utilizarão a dialética de Aristóteles mas também sua teo ria do conhecimento e sua física que opõe forma e ma téria para responder aos problemas que põem à razão os dogmas cristãos Na Faculdade de Artes o ensino da filosofia de Aristótele isto é o comentário das obras dialéticas físicas e éticas daquele que se nomeou o Filósofo há de substituirse em três grandes partes ao 13 MD Chenu Introduction à létude de saint Thomas dAquin Paris 1954 p 16 361 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos ensino das artes liberais14 A filosofia será identificada assim com o aristotelismo e a atividade o ofício do professor de filosofia consistirá em comentar as obras de Aristóteles em resolver os problemas de interpretação que elas apresentam Denominouse essa filosofia e tam bém essa teologia de escolástica Em si como vimos15 a escolástica é apenas a herdeira do método filosófico valorizado no fim da Antiguidade do mesmo modo que os exercícios escolares da lectio e da disputatio apenas prolongam os métodos de ensino e de exercício valori zados nas escolas da Antiguidade16 Os artistas da razão Empresto a expressão artista da razão de Kantl7 que designa por essa fórmula os filósofos que se interessam apenas pela especulação pura Essa representação de uma filosofia reduzida a seu conteúdo conceitual sobreviveu até nossos dias pode ser encontrada cotidianamente tanto nos cursos universitários como nos livros didáticos de qualquer 14 Cf J Domanski La philosophie théorie ou maniere de vivre chap II com a bibliografia detalhada na notal 7 desse capítulo II 15 Cf acima p 220 16 Cf P Hadot La Préhistoire des genres littéraires philosophiques médiévaux dans lAntiquité in Les Genres littéraires dans les sources théologiques et philosophiques médiévales Actes du Colloque International de Louvainla Neuve 1981 LouvainlaNeuve 1982 pp 19 17 Kant Critique de la raison pure trad Tremesaygues et Pacaud Paris 1944 nouv éd 1986 p 562 Lógica Trad Guillermit Paris 1966 nouv éd 1989 p 24 Critica da razão pura 3a ed tradução de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger São Paulo Nova Cultural 1987 867 A arquitetônica da razão pura Os Pensadores Lógica tradução de Fausto Castilho Campinas IFCHUnicamp 1991 Primeira Versão 35 362 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia nível Poderseia dizer que é a representação clássica es colar universitária de filosofia Inconsciente ou conscien temente nossas universidades são sempre as herdeiras da Escola isto é da tradição escolástica A Escola aliás continua viva até em nosso século XX na medida em que o tomismo foi tradicionalmente prote gido nas universidades católicas pelos papas dos séculos XIX e XX E precisamente podese constatar que os de fensores da filosofia neoescolástica ou tomista continuaram como na Idade Média a considerar a filosofia uma postura puramente teórica Eis por que por exemplo no debate consagrado ao problema da possibilidade e da significação de uma filosofia cristã que se estabeleceu por volta de 1930 jamais foi apresentado que eu saiba o problema da filo sofia como modo de vida Um filósofo neoescolástico como É Gilson formulava em termos puramente teóricos o cristianismo introduziu ou não na tradição filosófica novos conceitos e uma nova problemática18 Com a clare za de espírito que o caracterizava via o essencial do pro blema quando escrevia A posição filosófica mais favorável não é a do filósofo mas a do cristão a grande superiori dade do cristianismo consistindo em não ser um simples conhecimento abstrato da verdade mas um método eficaz de salvação Sem dúvida reconhece ele a filosofia fora a um só tempo ciência e vida na Antiguidade Mas aos olhos do cristianismo mensagem de salvação a filosofia antiga representa apenas pura especulação ao passo que o cristianismo é uma doutrina que oferece ao mesmo tempo todos os meios para pôrse em prática a si mesmo19 18 É Gilson LEsprit de la philosophie médiévale pp 138 19 Id ibid op cit p 25 363 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos não se pode afirmar mais claramente que a filosofia mo derna veio a constituirse como uma ciência teórica já que a dimensão existencial da filosofia não tinha mais sentido na perspectiva do cristianismo que era simultaneamente doutrina e vida Mas não há somente a Escola isto é a tradição da teologia escolástica há também as escolas não as comuni dades filosóficas da Antiguidade mas as universidades que apesar da diversidade de suas fundações e de seus funciona mentos nem por isso são menos herdeiras da universidade medieval E do mesmo modo que na Antiguidade houve estreita interação entre a estrutura social das instituições filosóficas e a concepção que elas faziam da filosofia do mesmo modo houve desde a Idade Média uma espécie de causalidade recíproca entre a estrutura das instituições universitárias e as representações que elas fizeram da na tureza da filosofia É o que permite vislumbrar um texto de Hegel citado por M Abensour e PJ Labarriere20 em sua excelente in trodução ao panfleto de Schopenhauer intitulado Contra a filosofia universitária Nesse texto Hegel lembra que a filosofia não é mais como entre os gregos exercida como uma arte particular mas tem uma existência oficial que concerne ao público ela está principal ou exclusivamente a serviço do Estado É necessário reconhecer que há uma oposição radical entre a escola filosófica antiga que se dirige a cada indiví 20 M Abensour e PJ Labarriere prefácio a Schopenhauer Contre la philosophie universitaire Paris 1994 p 9 Todo esse prefácio é importante na perspectiva das ideias que aqui desenvolvemos 364 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia duo para transformálo na totalidade de sua personalidade e a universidade que tem por missão conceder diplomas correspondendo a certo nível de saber objetivável Evi dentemente a perspectiva hegeliana de uma universidade a serviço do Estado não pode ser generalizada Mas é necessário reconhecer ainda que só há universidade por iniciativa de uma autoridade superior quer seja o Estado ou as diversas comunidades religiosas católicas luteranas calvinistas ou anglicanas A filosofia universitária encontra se sempre na situação em que se encontrava na Idade Média isto é é sempre serva por vezes da teologia nas universidades nas quais acontece de a Faculdade de Filo sofia não passar de uma Faculdade inferior à Faculdade de Teologia por vezes da ciência sempre em todo caso dos imperativos da organização geral do ensino ou na era contemporânea da investigação científica A escolha de professores matérias exames é sempre submetida a critérios objetivos políticos ou financeiros com muita frequência infelizmente alheios à filosofia A isso é necessário acrescentar que a instituição uni versitária leva a fazer do professor um funcionário cujo ofício consiste em grande parte em formar outros funcio nários já não se trata como na Antiguidade de formar no ofício de homem mas formar no ofício de clérigo ou de professor isto é de especialista de teórico deten tor de certo saber mais ou menos esotérico21 Mas esse saber não põe mais em jogo toda a vida como gostaria a filosofia antiga 21 Cf as páginas que J Bouveresse em seu livro Wittgenstein la rime et la raison Paris 1973 pp 7375 consagra ao ofício de professor de filosofia 365 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos 1 Bouveress 22 analisu admiravelmente a propósito das 1de1as de yYIttgenstem sobre a carreira de professor de filosofia o nsco de perdição intelectual e moral que espreita o professor Não há em certo sentido servidão mais intolerante do que a que constrange um homem a ter por profissão uma opinião no caso erz que ele não possui forçosamente a menor qualidade para zsso E o que está em questão aqui do ponto de vista de Wittgestein nã o saber do filósofo isto é o estoque de conheczmentos teorzcos de que dispõe mas o preço pessoal que teve de pagar pelo que acredita poder pensar e dizer Uma filosfia não pode ser afinal de contas outra coisa que a expressao de uma experiência humana exemplar Por outro lado o domínio do idealismo sobre toda a filosofia universitária desde Hegel até o advento do existen cialismo e em seguida a voga do estruturalismo contribuí rm aUplamene para disseminar a ideia segundo a qual nao ha verdadeira filosofia senão teórica e sistemática Tais são pareceme as razões históricas que levaram a conceber a filosofia como pura teoria A permanência da concepção de filosofia como modo de vida Apesar de tudo essa transformação não é tão radical quanto possa parecer Podese constatar na história da fi losofia ocidental certa permanência certa sobrevida da concepção antiga Por vezes no próprio seio da instituição 22 J Bouveresse Wittgenstein la rime et la raison p 74 366 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia universitária mais frequentemente em reação a ela e em meios que lhe são estranhos como certas comunidades religiosas ou profanas algumas vezes também de maneira solitária certos filósofos desde a Idade Média até nossos dias permaneceram fiéis à dimensão existencial e vital da filosofia antiga Dissemos acima que os mestres da Faculdade de Artes puderam graças às traduções de Aristóteles feitas a partir do grego ou do árabe ler a obra quase completa de um filósofo da Antiguidade E é igualmente significativo que eles tenham redescoberto graças a esses textos que a fi losofia não é somente um discurso mas um modo de vida23 O fato é ainda mais interessante porque se trata precisa mente de Aristóteles o filósofo considerado comumente um puro teórico Mas os comentadores de Aristóteles viram com muita perspicácia que para o Filósofo o essencial da filosofia é precisamente consagrarse à vida de investi gação à vida de contemplação e sobretudo ao esforço de assimilação ao Intelecto divino É assim que retomando as famosas afirmações de Aristóteles no fim do livro X da Ética a Nicômaco Boécio da Dácia24 considera que o fim do homem e sua felicidade consistem em viver segundo a parte mais elevada de seu ser isto é segundo a inteligência destinada a contemplar a verdade Essa vida é conforme à ordem da natureza que subordinou as potências inferiores às potências superiores Unicamente o filósofo que con sagra sua vida à especulação da verdade vive segundo a 23 Cf J Domanski La philosophie théorie ou maniere de vivre chap 11 et III 24 Boécio da Dácia De summo bano tradução in Philosophes médiévaux Anthologie de textes philosophiques XIIeXIVe siecle S d R Imbach et MH Méléard Paris 1986 pp 158166 367 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos natureza e leva uma vida muito deleitável A esse texto faz eco a declaração de Aubry de Reims25 Quand se sabe que se chefiOU ao termo devese apenas saborear e expenmentar o prazer E isso o que se denomina sabedoria ese sbor que se soube provar talvez sa amado por si mesm ezs az a filosofia é aí que se deve demorar Encontraremos atitudes análogas em Dante e em Eckhart26 Essa corrente de pensamento vai conceder como escreve J Domanski27 à filosofia uma autonomi completa sem considerála uma simples propedêutica à doutrina cristã o século XN Petrarca28 rejeitará a ideia de uma ética teonca e descritiva constatando que o fato de ler e de co mentar os tratados de Aristóteles sobre esse assunto não tomou ninguém melhor Por essa razão ele se recusa a de nominar filósofos os professores sentados numa cátedra e reserva esse nome somente àqueles que confirmam por seus atos o que ensinam29 Sobretudo essa fórmula tem im portância capital na perspectiva que nos ocupa3o É mais p 25 Aubry de Reims citado por A de Libera Penser au Moyen Âge ans 1991 p 147 26 Cf id ibid pp 317347 sobretudo pp 344347 27 a J Domanski a fhilosophie théorie ou maniere de vivre chap m 28 Petrarca De suz ipszus et multorum ignorantia in id Prose Ed G Martellottr Milano 1955 p 744 Para tudo 0 que se segue cfJ Doma ki chap N ns 29 Petrarca De vita solitaria II 7 Pnosa pp 524526 C b J D orno o serva oman capitulo rv nota 5 a expressão os professores sentados num catedra e proveniente de Sêneca Da brevidade da vida X 1 30 Petrarca De sui ipsius et multorum ignorantia in Prosa pp 746748 Satms est autem bonum velle quam verum nosce N do T 1 1 Q em atrm no ongma uerer o bem é preferível a conhecer a verdade 368 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia importante querer o bem que conhecer a verdade Encon trase a mesma atitude em Erasmo quando afirma muitas vezes que só é filósofo quem vive de maneira filosófica como o fizeram Sócrates Diógenes o Cínico Epiteto mas também João Batista Cristo e os apóstolos31 É necessário por outro lado especificar que quando Petrarca ou Erasmo falam de vida filosófica eles pensam como certos Padres da Igreja e certos monges em uma vida filosófica cristã admitindo contudo como acabamos de ver que os filósofos pagãos também puderam realizar o ideal do filósofo No Renascimento assistirseá a uma renovação não somente das tendências doutrinais mas das atitudes con cretas da filosofia antiga o epicurismo o estoicismo o platonismo o ceticismo Nos Ensaios de Montaigne por exemplo vêse o filósofo procurar praticar os diferentes modos de vida propostos pela filosofia antiga 32 Meu ofício minha arte é viver Seu itinerário espiritual vai assim leválo do estoicismo de Sêneca aoprobabilismo de Plutarco33 passando pelo ceticismo para terminar final e definitivamente no epicurismo 34 Nada fiz hoje Não vivestes então Pois essa é a ocupação mais fundamental e ilustre Nossa grande e gloriosa 31 Erasmo Adagia 2201 3 31 in Opera omnia Amsterdam 1969 II 5 pp 162 25 166 18 Cf J Domanski capítulo N nota 44 32 Montaigne Essais II 6 Éd Thibaudet Paris Gallimard 1962 p 359 Bibliothêque de la Pléiade p 179 da edição brasileira citada 33 Cf D Babut Du scepticisme au dépassement de la raison Philo sophie et foi religieuse chez Plutarque in Parerga Choix darticles de D Babut Lyon 1994 pp 549581 34 Ensaios III 13 pp 1088 e 1096 N do T pp 220 e 224 Cf H Friedrich Montaigne Paris 1949 p 337 369 1 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos obraprima é viver por motivo Saber lealmente gozar do pró prio ser eis a perfeição absoluta e divina M Foucault35 queria fazer começar com Descartes e não na Idade Média a teorização da filosofia Como já disse alhures se estou de acordo com ele quando diz Antes de Descartes uma pessoa não poderia ter acesso à verdade a menos que realizasse em si antes de tudo um trabalho que o tornasse suscetível de conhecer a verdade basta recordar o que eu disse acima36 a propósito de Aristóteles e de Porfírio distanciome dele quando acrescenta que segundo Descartes para chegar à verda de basta que eu seja não importa em qual condição capaz de ver o que é evidente a evidência substituiu a ascese Penso que quando Descartes escolhe dar a uma de suas obras o título de Meditaçõe 7 ele sabe muito bem que a palavra na tradição da espiritualidade antiga e cris tã designa um exercício da alma Cada Meditação é efeti vamente um trabalho de si sobre si que é necessário ter acabado para passar à etapa seguinte Como mostrou fi namente o romancista e filósofo M Buto 8 esses exercí cios são além disso apresentados com muita habilidade literária Se Descartes fala na primeira pessoa se ele evo ca o fogo diante do qual estã sentado o robe de chambre com o qual está vestido o papel que está diante dele e se 35 H Dreyfus et P Rabinow Michel Foucault Un parcours philosophique Paris 1984 pp 345346 36 Cf p 136 e p 228 37 Meditações sobre filosofia primeira tradução de Fausto Castilho Cam pinas IFCHUnicamp fevereiro 1994 a novembro de 1995 Textos Didáti cos 7 9 11 14 15 e 17 38 M Butor Lusage des pronoms personnels dans le roman in Problemes de la personne Éd I Meyerson ParisLa Haye 1973 pp 288290 370 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia descreve seus sentimentos ele quer de fato que seu lei tor percorra as etapas da evolução interior por el ds critas em outras palavras o eu empregado nas Medztaçoes d t que se dirige ao leitor Reencontramos e e Lato um u aí 0 movimento tão frequente na Antigmdade pelo qual se passa do eu individual a um eu elevdo ao plano da universalidade Cada Meditação trata umcament de u tema por exemplo a dúvida metódica na primeira Medz tação a descoberta do eu como realidade pensante a segunda Por isso o leitor pode asiilar bm o eyocw praticado em cada Meditação Aristoteles dissera E pre ciso tempo para que 0 que aprendemos se orne nsa natureza Descartes por sua parte sabe que e necessra uma longa meditação para fazer pentrar na meona a nova consciência de si assim conqmstada Ele diz a propósito da dúvida metódica 39 Não pude me dispensar de lhe dar uma Meditação completa gostaria que os leitores não empregassem somente o pouco de tempo que é necessário para lêla mas alfUns meses o ao menos algumas semanas a analisar as cozsas das quazs ela trata antes de passar a outra E tomando consciência do eu como realidade pensante É necessário examinála frequentemente e analisála durante muito tempo 0 que me parece uma causa bastane jta para tratar 0 ponto de outra matéria na segunda Medztaçao A terceira Meditação também se apresenta e suas meiras linhas como um exercício espiritual mmto platom 39 Descartes Réonses aux Secondes Objections contre les Méditations r in Ch Adam et P Tannery Descartes Euvres t IX PP 103104 371 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos co pois se trata de separarse radicalmente do conheci mento sensível Agoa fecharei meus olhos o ouvido tapado distraídos todos os sentzos apagarei tamhém do pensamento as imagens de todas s cozsas corporais 1 entretendome só comigo mesmo e me znspeczonando ais a fudo esforçarmeei para me tornar pau latznamente mazs conheczdo e mais familiar a mim mesm04o D manera mais geral não me parece que a evidência cartes1aa seJ acessível a qualquer sujeito É impossível com eelto nao reconhecer a definição estoica de repre sentaao 4 dequada e compreensiva nas linhas do Discurso do metodo que evocam o preceito da evidência O Pmeiro era o de jamais acolher alguma coisa como ver adezra que e não conhecesse evidentemente como tal isto e de evztr cuzdadosamente a precipitação e a prevenção e de nada nclz em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tao dzstzntamente a meu espírito que eu não tivesse nenhuma ocasião de pôlo em dúvida É exatamente a disciplina estoica do assentimento42 e como no estoicismo ela não é acessível indiferentement 40 1 p 7 Valime da traduçãobrasileira N do T 1 escartes Dzscours de la Méthode Seconda partie texte et comm par E Gilson Pans 1939 p 18 15 Gilson Discurso do Método 4a ed tra duçao de Jacó Guinsburg e Bento Prado Júnior São Paulo Nva Cu 1 1987 Os Pensadores ra 42 Cf SVF li 130131 Diógenes Laércio VII 4648 trad d L St d uzi o In es ozczens e réhier pp 3132 A ausência de precipitação no uizo é uma YJrtude estmc Dscartes provavelmente não encontrou isso e santo Tomas como quena Gilson Discours de la Méthode p 198 d mas antes entre os estmcos mo ernos o próprio Gilson p 481 cita Guillaume du Vair La Phzfosphze morale des Stoiques ed de 1603 p 55 ou antigos e n Laercio por exemplo m wgenes 372 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia a qualquer espírito pois exige também uma ascese e um esforço que consiste em evitar a precipitação aproptô sia propeteia Não se compreende suficientemente até que ponto a concepção antiga de filosofia está sempre presente em Descartes por exemplo nas Cartas à princesa Elisabeth que são por outro lado até certo ponto cartas de direção espiritual Para Kant a antiga definição de filosofia como philo sophia desejo amor exercício da sabedoria é sempre válida A filosofia diz ele é a doutrina e o exercício da stbedoria não simples ciência 43 e ele conhece a distância que separa a filosofia da sabedoria O homem não tem a posse da sabedoria Ele somente tende a ela e somente pode ter amor por ela e isso já é bastante meritório A filosofia é para o homem esforço para a sabedoria que sempre permanece descumprido44 Todo o edifício técnico da filosofia crítica kantiana só tem sentido na perspectiva da sabedoria ou antes do sábio pois Kant sempre tem a tendência de representar a sabedoria sob a figura do sábio norma ideal que jamais se encarnou num homem mas segundo a qual o filósofo procura viver Kant45 denomina igualmente esse modelo do sábio de filósofo Um filósofo que corresponda a esse modelo não existe não mais que um verdadeiro cristão não existe realmente Os dois são modelos 1 O modelo deve servir como norma 1 O filósofo é apenas uma ideia Talvez possamos lançar um 43 Kant Opus postumum trad F Marty Paris 1986 pp 245 e 246 44 Id ibid p 262 45 Id Vorlesungen über die philosophísche Encyclopiidie in Kants gesammelte Schriften XXX Berlin Akademie 1980 p 8 373 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos olar para ele imitálo em alguns pontos mas jamais o atzngzremos totalmente qui Kant situase na tradição do Sócrates do Banquete ao d1zer que a única coisa que ele sabe é que não é sábio que ainda não atingiu o modelo ideal do sábio E esse socrtismo já anuncia o de Kierkegaard quando diz que é cnstao apenas na medida em que sabe que não é cristão A Ideia de sabedoria deve ser o fundamento da filosofia como a Ideia de santidade deve ser o fundamento do cristianism046 Kant utiliza além disso tanto a expressão Ideia de sabedoria como a expressão Ideia da filosofia ou do filósofo uma vez que de fato o ideal que é a sabedoria é precisamente o ideal perseguido pelo filósofo47 Alguns antigos filósofos aproximaramse do modelo do ver dadeiro filósofo Rousseau igualmente somente não o atin giram alvez muitos tenham acreditado que já possuímos a doutrzna da sabedoria e que não deveríamos considerála uma simples ideia pois possuímos tantos livros cheios de prescões que os dizem como devemos agir Somente que elas sao na mazor parte proposições tautológicas e exigências que não se pode suportar entender pois não mostram nenhum meio de alcançálas E Kant continua a evocar a filosofia antiga4s Uma Ideia equivocada da filosofia há muito tempo está presente entre os homens Mas parece que ou eles não a compreen deram ou a consideraram uma contribuição à erudição Se 46 Kant Vorlesungen p 8 47 Id ibid p 8 48 Id ibid p 9 374 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia tomarmos os antigos filósofos gregos como Epicuro Zenão Sócrates etc descobriremos que o objeto principal de sua ciência foi o destino do homem e os meios de atingir isso Eles permaneceram muito mais fiéis à verdadeira Ideia do filósofo do que a que se faz nos tempos modernos nos quais se encontra o filósofo apenas como artista da razão E após ter descrito o ensinamento e sobretudo a vida de Sócrates de Epicuro de Diógenes Kant especifica que os antigos exigiam de seus filósofos que vivessem como ensinavam49 Quando hás de enfim começar a viver virtuosamente disse Platão a um ancião que lhe pedia escutasse algumas lições sobre a virtude Não se deve apenas especular mas é ne cessário também de uma vez por todas pensar em praticar Mas hoje tomase por sonhador aquele que vive de acordo com o que ensina Tanto que sobre esta Terra o sábio perfeito em seu modo de vida e em seu conhecimento não se tornará real e não haverá filosofia É somente a este o mestre no ideal que devemos denominar o filósofo mas ele não é encontrado em parte alguma50 A filosofia no sentido próprio do termo não existe ainda e talvez jamais venha a existir Só é possível o filosofar isto é um exercício da razão guiado pela ideia que se faz do mestre no ideal51 49 Id ibid p 12 50 Id Critique de la raison puTe trad Tremesaygues et Pacaud p 562 Critica da razão pura 867 A arquitetônica da razão pura 51 Id ibid pp 561562 Critica da mzão pum 867 A atquitetônj ca da razão pura cf Critique de la raison pratique Trad J Gibelin et E Gilson Paris 1983 p 123 375 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos Há duas representações possíveis de filosofia uma que Kant52 denomina o conceito de filosofia escolar outra que ele nomeia com o conceito de filosofia do mundo Em seu conceito escolar ou escolástico a filosofia é ape nas pura especulação visa apenas a ser sistemática à perfeição lógica do conhecimento Quem tem a concep ção escolástica de filosofia é diznos Kant53 um artista da razão isto é um filodoxo o amigo da opinião do qual fala Platão54 aquele que se interessa pela multidão de coisas belas mas sem ver a beleza em si pela multidão de coisas justas mas sem ver a justiça em si Isso leva a dizer que ele não é afinal perfeitamente sistemático porquanto não vê a unidade do interesse universalmente humano que anima o conjunto do esforço filosófico55 Para Kant a concepção escolar de filosofia permanece no nível da pura teoria e somente a concepção de filo sofia do mundo se situa na perspectiva do sentido últi mo da filosofia e pode realmente unificar a filosofia Concepção de filosofia do mundo Kant56 fala tam bém de concepção cósmica o cosmopolita A expres são é para nós embaraçosa E necessário remetêla ao contexto do século XVIII o Século das Luzes A palavra cósmica aqui não se relaciona ao mundo físico mas ao mundo humano isto é ao homem que vive no mundo dos 52 Id ibid p 562 Crítica da razão pura 867 A arquitetônica da razão pura 53 Id ibid p 562 Crítica da razão pura 867 A arquitetônica da razão pura Logique Trad Guillermit Paris 1966 nova edição 1989 p 24 54 República V 480 a 6 55 É Weil Probtemes kantiens Paris 1990 p 37 nota 17 56 Logique p 25 Sobre o conceito cósmico de filosofia d J Ralph Lindgren Kants Conceptus Cosmicus in Dialogue l 280300 19631964 376 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia homens A oposição entre filosofia de escola e filosofia do mundo57 já existia antes de Kant por exemplo em G Sulzer 1759 para quem a filosofia do mundo consiste na experiência dos homens e na sabedoria que dela resulta Essa distinção correspondia à tendência geral do Século das Luzes de fazer sair a filosofia do círculo fechado e conge lado da escola para tornála acessível e útil a todos os homens Devemos insistir nessa característica da filosofia do século XVIII que tende a reunir de novo como na Antiguidade discurso filosófico e maneira de viver Mas a noção kantiana de filosofia cósmica é mais profunda que a filosofia do mundo ou popular ao modo do século XVIII porquanto a filosofia cósmica tem como referência final a sabedoria encarnada no sábio ideal O que sempre fundou a noção de filosofia isto é de investigação da sabedoria é diz Kant58 a ideia de uma filosofia cósmica de uma filosofia do mundo e não a ideia de uma filosofia escolástica principalmente quando por assim dizer se personificou e se representou como um arquétipo do ideal do filósofo isso leva a dizer de quem se reconhece na figura do sábio Neste significado seria bastante vanglorioso chamarse a si mesmo de filósofo e arrogarse uma identidade com o arquétipo existente unicamente na ideia O filósofo ideal o sábio seria o legislador da razão isto é aquele que se dá a si mesmo sua própria lei que é a lei da razão Se o Sábio ideal não pode ser encontrado em parte alguma ao menos deparamos com a ideia de sua legislação em 57 Cf H Holzhey Der Philosoph für die Welt eine Chimãre der deutschen Aufklãrung in H Holzhey und W C Zimmerli Esoterik und Exoterik der Philosophie BâleStuttgart 1977 pp 117138 especialmente p 133 58 Kant Critique de la raison pure p 562 N do T Crítica da razão pura 867 A arquitetônica da razão pura 377 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos cada razão humana o que permite entender que é à luz da Ideia do sábio ideal que nossa razão formula os impe rativos que dirigem a ação humana59 No imperativo cate górico60 age unicamente de acordo com a máxima que faz com que possas querer ao mesmo tempo que ela se tome uma lei universal o eu se realiza e se supera universali zandose O imperativo deve ser incondicionado isto é não se fundar em nenhum interesse particular mas ao contrá rio determinar o indivíduo a agir apenas na perspectiva do universal Tornamos a encontrar um dos temas funda mentais do modo de vida próprio à filosofia antiga O leitor continuará sem dúvida a perguntarse por que Kant denominou precisamente conceito de filosofia cósmica o programa filosófico dominado pela ideia de sabe doria Mas talvez compreenda melhor a razão dessa deno minação lendo esta definição kantiana da ideia de filosofia cósmica61 Conceito cósmico significa aqui um conceito con cernente ao que interessa necessariamente a qualquer um isto é visto que o mundo cosmos em questão é o mun do humano ele interessa a todo o mundo O que inte ressa a todo o mundo ou antes o que deveria interessar a todo o mundo é precisamente tão só a sabedoria o estado normal natural cotidiano dos homens deveria ser a sabedoria mas eles não chegam a atingila Eis aí uma das ideias fundamentais da filosofia antiga Isso leva a dizer que o que interessa a cada homem não é somente a questão da crítica kantiana Que posso saber mas são so 59 É Weil Problemes kantiens p 34 60 Kant Fondements de la métaphysique des mreurs Trad V Delbos et A Philonenko Paris 1987 p 94 61 Kant Critique de la raison pure p 562 nota Crítica da razão pura 868 A arquitetônica da razão pura nota 378 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia bretudo as questões Que devo fiazer2 Q p t ue me e permztzdo es erar Que e o homem questões fundamentais da filo sofia62 Essa ideia do interesse de interesse da razão é t Importa t mm o n e pOis st ligada à ideia de um primado da razão pratica em relaçao a razão teórica pois diz Kant63 1 todo interesse é finalmente prático e 1 d mesmoo a raa especulativa é apenas condicionado e completo no uso pratzco A filosfia kantiana dirigese com efeito apenas àqueles que ecpenmentam esse interesse prático pelo bem moral que sao dotados de um sentimento moral que optam p um fim or supremo por um bem soberano É admi I que c rave na rztzca da faculdade do juízo o interesse pelo bem moral e o sentimento moral apareçam como a condição bprel hmmar do interesse que se pode experimentar pela e eza da natureza64 Este interesse imediato pelo belo da natureza não é efetivamente mun nas somente próp1io daqueles cuja maneira de pensar a foz reznada para o bem ou é eminentemente receptiva a esse treznamento O discurso teórico de Kant é a um só tempo de sua parte e da parte daqueles aos quais se dirige ligado a uma 62 Kant Logique p 25 c r d l d l d n zque e a razson pure p 543 883 D I ea o bem supremo com f d 0 d o um un amento determinante do fim últi a razao pura mo 63 Id ibid Paris 1983 p 136 64 Critique de la faculté de 42 T p 133 yuger rad A Phlonenko Paris 1968 379 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos decisão que é um ato de fé que conduz à escolha de um modo de vida inspirado em última análise pelo modelo do sábio Podese reconhecer além disso na ética ascéti ca que ele propõe no final de sua Aftafísica dos costume uma exposição das regras do exerncw a lrtude que e esforça para reconciliar a serenidade ep1cunsta e a tensao do dever estoico Para descrever em toda sua amplitude a história da recepção da filosofia antiga na filosofia desde Idade Média até a era contemporânea seria necessana uma obra de considerável volume Contenteime em pôr algu mas balizas Montaigne Descartes Kant Haveria muitos outros nomes a evocar pensadores tão diversos quanto Rousseau Shaftesburf6 Schopenhauer Emerson Thoreu Kierkegaard Marx Nietzsche W James Bergson W1tt genstein MerleauPonty e ainda outros que todos de uma maneira ou de outra influenciados pelo modelo da filosofia antiga conceberam a filosofia como ua atividade concreta e prática e como uma transformaçao da maneira de viver ou de perceber o mundo 65 Métaphysique des mceurs li Doctrine de la vertu li 53 Trad A Renaut Paris 1994 pp 363365 66 Cf Shaftesbury Exercices trad et prés par L Jaffro ns 1993 tratase de exercícios espirituais segundo Epiteto e Marco Aureho 380 Capítulo 12 Qyestões e perspectivas Ao chegar ao fim desta obra o autor entrevê tudo o que não disse e as questões que o leitor gostaria de lhe propor Se por exemplo apresentamos a teorização da filosofia como resultado do encontro entre o cristianismo e a filosofia não seria desejável fazer um estudo de con junto sobre as relações entre filosofia e religião tanto na Antiguidade como no mundo moderno Na Antiguidade o filósofo encontra a religião na vida social com o culto oficial e na vida cultural com as obras de arte e a litera tura Mas ele a vive filosoficamente transformaa em filo sofia Se Epicuro recomenda a participação nas festas da cidade e mesmo na oração é para permitir ao filósofo epicurista contemplar os deuses como a teoria epicurista da natureza os concebe Mesmo os neoplatônicos tardios que praticam a teurgia integramna num progresso espiri tual essencialmente filosófico para elevarse finalmente a um Deus transcendente e incognoscível totalmente estranho à religião tradicional Se eles constroem uma teologia ra cional que faz corresponder aos deuses da religião tra dicional as entidades filosóficas essa teologia já não tem muita relação com as crenças antigas que querem defender contra o cristianismo O modo de vida filosófico na Antigui 381 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos dade não entra em concorrência com a religião porque a religião não é nesse momento un nodo de VIda ue englobe toda a existência e toda a VIda mtenor como e o caso no cristianismo É antes o discurso filosófico como no caso de Anaxágoras e de Sócrates que pode chocarse com as ideias sobre os deuses recebidas na cidade As relações entre filosofia e cristianism são mlio mais complexas do que vislumbramos e sna necessano um longo estudo para definilas Pdse dizer que quse todas as filosofias desde a Idade Media sofreram mflen cia do cristianismo Por um lado seu discurs loofico desenvolvese em relação estreita com o cnstiamsno seja para justificar direta ou indiretamente a doutnna cristã seja para combatêla Sobre esse ponto so se pode aprovar as observações de E Gilson1 que motran cmo a filosofia de Descartes de Malebranche de Leibmz situase finalmente na problemática cristã Ele tera podido acres centar também a de Kant2 mas é necessano reconhecer que ao assimilar a fé cristã à fé moral Kant transforma ants 0 cristianismo em filosofia E por outro lado o modo de vida filosófico desde a Idade Méia assano por Petrarca e Erasmo ou s estoicos e epicunsas cs tãos até 0 existencialismo cnstao de G Mareei ha mmto temo identificouse ao modode vida cristã a Pto de d se po er descobrir mesmo nas atitudes existenCiais dos 3 filósofos contemporâneos vestigws do cnstlamsmo o que 1 É Gilson LEsprit de la philosophie médiévale pp 111 G Bugault ll p 1994 pp 2526 M MerleauPonty Eloge de la phz LInde pensete e ans losophie et autres essais p 201 h 2 s Zac Kant les stociens et le christianisme m Revue de Metap y sique et de Morale 1972 pp 137165 3 R R hlitz Esthétique de existence m Mzchel Foucault phzlosophe oc d P 290 fala de uma herança cristã e humanista seculanza a 382 Questões e perspectivas não é de admirar em virtude da força dessa tradição que impregnou toda a mentalidade ocidental Seria necessário uma longa reflexão para definir mais profundamente as relações entre filosofia e religião Penso que será útil especificar brevemente a represen tação que fiz da filosofia Admito perfeitamente que tanto na Antiguidade como em nossos dias a filosofia seja uma atividade teórica e conceitualizante Mas penso também que na Antiguidade é a escolha que o filósofo faz de um modo de vida que condiciona e determina as tendências fundamentais de seu discurso filosófico e acredito final mente que isso é verdadeiro para toda filosofia Não que ro dizer evidentemente que a filosofia seja determinada por uma escolha cega e arbitrária mas antes que há um primado da razão prática sobre a razão teórica a reflexão filosófica é motivada e dirigida pelo que interessa à razão como dizia Kant isto é pela escolha de um modo de vida Diria com Plotino 4 É o desejo que gera o pensamento Mas há uma espécie de interação ou de causalidade recí proca entre vontade e inteligência entre o que o filósofo quer profundamente o que lhe interessa no sentido mais forte do termo isto é a resposta à questão como viver e o que ele procura elucidar e esclarecer pela reflexão Vontade e reflexão são inseparáveis Nas filosofias moder nas ou contemporâneas essa interação existe em alguns casos e podemse explicar até certo ponto os discursos filosóficos pelas escolhas existenciais que os motivam Por exemplo como se sabe por uma carta5 de Wittgenstein o 4 Plotino Eneadas V 6 24 5 9 5 G Gabriel La logique comme littérature De la signification de la forme littéraire chez Wittgenstein in Le Nouveau Commerce cahier 8283 383 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos Tractatus logicophilosophicus que se apresenta aparentemen te como uma teoria da proposição e o é efetivamente nem por isso é menos fundamentalmente um livro de ética no qual o que pertence à ética não é dito mas mostrado A teoria da proposição é elaborada para justi ficar o silêncio concernente à ética previsto e intenciona do desde o início do livro O que motiva o Tractatus é com efeito a vontade de conduzir o leitor a um modo de vida a certa atitude completamente análoga às opções existenciais da filosofia antiga6 Viver no presente sem nada lastimar temer ou esperar7 Como já dissemos mui tos filósofos modernos e contemporâneos permaneceram para retomar a expressão de Kant fiéis à Ideia de filoso fia8 E finalmente foi antes o ensino escolar de filosofia e sobretudo de história da filosofia que sempre teve a tendência de insistir no aspecto teórico abstrato e con ceitual da filosofia Eis por que é necessário insistir sobre certos imperati vos metodológicos Para compreender as obras filosóficas da Antiguidade será necessário dar conta das condições particulares da vida filosófica naquela época revelar aí a intenção profunda do filósofo que é não desenvolver um discurso que teria seu fim em si mesmo mas agir sobre as almas De fato toda asserção deverá ser compreendida na perspectiva do efeito que ela visa produzir na alma do ouvinte ou do leitor Tratase por vezes de converter con printemps 1992 p 77 o nome do autor foi impresso equivocamente Gabriel Gottfried no lugar de Gottfried Gabriel 6 Tractatus 6 4311 7 Cf as excelentes explicações de J Bouveresse Wittgenstein la rime et la raison Paris 1973 p 89 e pp 2181 8 Cf acima pp 373 ss 384 Questões e perspectivas solar curar ou exortar mas tratase sempre e principal mente não de comunicar um saber acabado mas de formar isto é de ensinar um saberfazer de desenvolver um habi tus uma capacidade nova de julgar e de criticar e de transformar isto é de mudar a maneira de viver e de ver o mundo Não causará espanto então encontrar em Platão em Aristóteles ou em Plotino aporias nas quais o pensa mento pareça encerrarse retomadas e repetições incoe rências aparentes caso se recorde que são destinadas não a comunicar um saber mas a formar e a exercitar A relação entre a obra e seu destinatário terá impor tância capital O conteúdo escrito é parcialmente determi nado pela necessidade de adaptarse às capacidades espirituais dos destinatários Por outro lado jamais se deve esquecer de situar as obras dos filósofos antigos na pers pectiva da vida da escola à qual pertenciam Elas estão quase sempre em relação direta ou indireta com o ensino Por exemplo os tratados de Aristóteles são em grande parte apontamentos para o ensino oral os tratados de Plotino ecos das dificuldades surgidas durante os cursos Enfim a maior parte das obras filosóficas ou não da Antiguidade estava em estreita relação com a oralidade pois eram destinadas a ser lidas em voz alta muitas vezes em reuniões de leitura pública Essa estreita ligação do escrito e da palavra pode explicar certas particularidades embaraçosas dos escritos filosóficos Sem dúvida o leitor gostaria também de perguntarme se penso que a concepção antiga pode estar viva ainda hoje Creio já ter respondido em parte a essa questão deixando entrever como muitos filósofos da época moder na de Montaigne até nossos dias não consideraram a 385 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos filosofia um simples discurso teórico mas uma práica uma ascese e uma transformação de si9 Essa concepçao e sempre atual e sempre poe ser reatuizada 1 0 Eu apre sentaria a questão de outro modo Nao sena urgete descobrir a noção antiga de filósofo o fiósofo que VIV e escolhe sem 0 que a noção de filosofia nao tera sentido Não se poderia definir o filósofo não como um professor ou um escritor que desenvolve um discurso filosofico mas d d segundo a representação constante a Ant11 a e como um homem que leva uma VIda filosofica No sea neces sário rever 0 uso habitual da palavra filosofo ue se aplica habitualmente apenas ao teórico para atnbmla também a quem pratica a filosofia do mesmo mdo que 0 cristão pode praticar o cristianism sm ser teoreuco ou teólogo Será necessário que a propa pessoa tenha d construir um sistema filosófico para VIVer filosoficamente Isso não quer dizer que não se deva refletir sbre sua própria experiência e sobre a dos filósofos antenores ou contemporâneos Mas 0 que é viver como filósofo O que é a prática da filosofia Na presente obra quis mstrar ente outras coisas que a prática filosófica era relativamente mdepen 9 Cf acima pp 366380 10 Cf por exemplo numerosos trabalhos pbhcados ou no preo de Arnold I Davidson notadamente Ethics as Ascetlcs Foucault the H1story f Eth nd Ancient Thought in Foucault and the Wrztmg of Hzstory Ed O lCS a Phl h Goldstein Oxford 1994 pp 6380 vejase também H Hutter 1 oso Y s SelfTransformation in Historical Rejlections 1623 171198 1989 R Imbach La philosophie comme exercice spirituel m Crztzque 454 PP 275283 L Solere Philosophie et amour de la sagesse entre les Ane1ens et nous lI de 1n lnde Euroe Postmodernité Colloque de Ceret 1991 sous n r Ge d la direction de Poulain Paris 1993 pp 149198 Schlanger stes e philosophes Paris 1994 386 Questões e perspectivas dente do discurso filosófico O mesmo exercício espiritual pode ser justificado por discursos filosóficos extremamente diferentes que chegam demasiado tarde para descrever e justificar experiências cuja densidade existencial escapa afinal a todo esforço de teorização e de sistematização Por exemplo os estoicos e os epicuristas convidaram seus discípulos por razões diversas e quase opostas a viver na consciência da iminência da morte e a concentrar sua atenção no momento presente libertandose da inquietude do futuro e do peso do passado Mas quem pratica esse exercício de concentração vê o universo com novos olhos como se o visse pela primeira e última vez ele descobre na fruição do presente o mistério e o esplendor da existên cia atinge a serenidade experimentando a que ponto são relativas as coisas que provocam perturbação e inquietude Da mesma maneira e igualmente estoicos epicuristas e platônicos convidam por razões diferentes seus discípu los a elevarse a uma perspectiva cósmica a mergulhar na imensidão do espaço e do tempo e a transformar assim sua visão de mundo Vista dessa maneira a prática da filosofia ultrapassa as oposições das filosofias particulares Ela é essencialmente um esforço para tomar consciência de nós mesmos de nosso sernomundo de nosso sercomooutro um esforço também para reaprender a ver o mundo como dizia MerleauPonty11 para alcançar assim uma visão universal graças à qual poderemos nos colocar no lugar do outro e exceder nossa própria parcialidade 11 M MerleauPonty Phénoménologie de la perception Paris 1945 p XVI Fenomenologia da percepção tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura São Paulo Martins Fontes 1994 p 19 387 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos Existe um texto de G Friedmann 12 que tenho frequen temente citado em outras obras porque me parece capital na medida em que mostra como um homem contempo râneo engajado na luta política reconhece que pode e deve viver como filósofo Levantar seu voo cada dia Ao menos um momento por breve que seja persiga o que lhe seja intenso Cada dia um exercício espiritual sozinho ou em companhia de um homem que queira também melhorar Exercícios espirituais Sair da duração Esforçarse para despojarse de suas próprias paixões as vaidades a sensação de ruído em torno de seu nome que de um tempo a outro o atinja como um mal crônico Fugir da maledicência Despojar a piedade e o ódio Amar todos os homens livres Eternizarse superandose Esse esforço sobre sz e necessarzo essa ambição justa Numerosos são aqueles que se deixam inteiramente absorver pela política militante pela preparação da Revolução social Raros muito raros aqueles que para preparar a Revolução querem se tornar dignos Mas o filósofo da Antiguidade para praticar a filosofia vivia em relações mais ou mens estreitas com um grupo de filósofos ou pelo menos recebia de uma tradição filosófica suas regras de vida Sua tarefa era facilitada mesmo que viver efetivamente segundo essas regras de vida exigisse um duro esforço Agora não há mais escolas não há mais dogmas O filósofo está só Como encontrará seu caminho Ele o encontrará como muitos outros o encontraram antes dele como Montaigne ou Goethe ou Nietzsche que 12 G Friedmann La Puissance et la Sagesse Paris 1970 p 359 388 Questões e perspectivas também estavam sós e escolheram como modelos segun do as circunstâncias ou suas necessidades profundas os modos de vida da filosofia antiga Nietzsche por exemplo escrevia13 No que concerne à práxis vejo as diferentes escolas morais como laboratórios experimentais nos quais um número consi derável de receitas da arte de viver foram praticadas a fundo e pensadas até seu termo Os resultados de todas essas escolas e de todas as suas experiências pertencem a nós Nós não aceitamos uma receita estoica com menos agrado porque já nos apropriáramos de receitas epicuristas Uma longa experiência vivida durante séculos e as longas discussões em torno dessas experiências é que dão valor aos modelos antigos Utilizar sucessiva ou alternadamente o modelo estoico e o modelo epicurista será por exemplo em Nietzsche mas também em Montaigne em Goethe1 em Kant 15 em Wittgenstein16 emJaspers17 um meio de atingir certo equilíbrio na vida Mas outros modelos poderão ainda inspirar e guiar tão bem quanto elas a prática filosófica Sermeá perguntado assim como se pode explicar que apesar dos séculos e da evolução do mundo os modelos antigos podem sempre ser reatualizados Antes de tudo como dizia Nietzsche porque as escolas antigas são espé 13 Nietzsche Fragments posthumes automne 1881 15 59 in Nietzsche CEuvres philosophies T V Paris Gallimard 1982 p 530 14 Goethe Entretien avec Falk in F von Biedermann Goethes Ges priiche Leipzig 1910 t N p 469 15 Cf acima p 379380 16 Tractatus 6 4311 no qual se encontra uma alusão à representa ção epicurista da morte e à concepção estoica do presente 17 K Jaspers Epikur in Weltbewohner und Weimarianer Festschrift E Beutler 1960 pp 132133 389 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos cies de laboratórios de experimentação graças aos quais podemos comparar as consequências dos diferentes tipos de experiência espiritual que propõem Desse ponto de vista a pluralidade de escolas antigas é preciosa Os modelos que elas nos propõem só podem contudo ser reatualizados caso sejam reconduzidos à sua essência à sua significação profunda destacandoos de seus elementos caducos cosmológicos ou míticos e recuperando as posi ções fundamentais que as próprias escolas consideravam essenciais Podese ir mais longe Penso que esses modelos correspondem como já disse alhures18 a atitudes perma nentes e fundamentais que se impõem a todo ser humano que procura a sabedoria Evoquei nesse contexto a exis tência de uma espécie de estoicismo universal que não se encontra somente no Ocidente mas igualmente na China por exemplo como mostrou J Gernet19 Como já disse fui por muito tempo avesso à filosofia comparada porque pensava que poderia criar confusões e aproximações arbi trárias Mas me parece agora ao ler os trabalhos de meus colegas G Bugault20 RP Droit2 M Hulin22 JL Solere23 que há realmente analogias perturbadoras entre as atitu des filosóficas da Antiguidade e as do Oriente analogias que não podem ser explicadas por influências históricas mas em todo caso permitem taJvez melhor compreender tudo o que pode estar implicado nas atitudes filosóficas 18 P Hadot La Citadelle intérieure pp 330333 19 J Gernet Chine et christianisme 2 ed Paris 1991 p 191 La sagesse chez WangFoutche philosophe chinois du XVIIe siecle in Les Sagesses du monde Colloque s d G Gadoffre Paris 1991 pp 103104 20 G Bugault LInde pensetelle Paris 1994 21 RP Droit LOubli de lInde Paris 1989 22 M Hulin La Mystique sauvage Paris 1993 23 JL Solerecitado na p 386 nota 10 390 Questões e perspectivas que se eslarecem assim umas às outras Os meios que nos permitem chegar à paz interior e à comunhão com os outros homens ou com o universo não são ilimitados Talvez devamos dizer que a escolha de vida que descreve mos as de Sócrates de Pirro de Epicuro dos estoicos dos cínicos dos céticos correspondam a algumas espécies de modelos constantes e universais que se reencontram sob formas próprias a cada civilização nas diferentes regiões culturais da humanidade Por essa razão evoquei acima24 um texto budista e também uma análise de M Hulin ins pirada pelo budismo porque pensava que poderiam ajudar os a melhor formular a essência do sábo grego É muito mteressante constatar que na Grécia na India e na China uma das vias que levam à sabedoria consiste na indiferen ça isto é na recusa a atribuir às coisas diferenças de valor que expriiam o ponto de vista do indivíduo egoísta paroal e hm1tado o ponto de vista da rã no fundo do poço ou da mosca atraída pelo vinagre no fundo de um vaso de que fala Tshuangtsé25 Só conheço do Tao o que pode conhecer do universo uma mosca atraída pelo vinagre caído num vaso Se o mestre não tivesse levantado minha tampa eu sempre teria ignorado o universo em sua integralidade grandiosa Esse desinteresse e essa indiferença reconduzem assim a um estado original a quietude a paz que no fundo de nós existe anteriormente à afirmação de nossa individuali dade contra o mundo e contra o outro anteriormente por 24 Cf acima pp 329330 2 Tshangtsé XVII La crue dautomne e XXI Tien TseuFang traduc twn Lru KiaHway in Philosophes taofstes Paris Gallimard 1980 pp 202 e 244 Brbhotheque de la Pléiade 391 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos tanto ao egoísmo e ao egocentrismo que nos separam do universo e nos arrastam inexoravelmente na perseguição inquieta de prazeres e no temor do perpétuo castigo Os exercícios espirituais como viver no presente ou ver as coisas do alto encontramse assim em Goethe26 em Nietzsche27 ou em Wittgenstein28 São igualmente acessíveis ao filósofo no sentido em que o entendemos Espero voltar a esse tema em obras posteriores De maneira mais geral pareceme ter ficado claro que como diz JL Solere29 os antigos eram talvez mais próximos do Oriente que nós o que também quer dizer um autor chinês moderno30 quando escreve Os filósofos chineses eram todos Sócrates em graus diversos Na pessoa do filósofo saber e virtude eram inseparáveis Sua filosofia reclamava ser vivida por ele sendo ele próprio o veículo Viver de acordo com suas convicções filosóficas fazia parte de sua filosofia O filósofo o amante da sabedoria no sentido em que o entendemos poderá procurar também modelos de vida nas filosofias orientais e estas não são tão distantes assim dos modelos antigos 26 Cf P Hadot Le présent seul est notre banhem La valeur de linstant présent chez Goethe et âaiisla philosophie antique in Diogene 133 5881 1986 e do mesmo autor La terre vue den haut et le voyage cosmique Le point de vue du poete du philosophe et de lhistorien in Frontiires et conquête spatiales DordrechtLondres 1988 pp 3139 27 Tudo o que é necessário visto do alto e na ótica de uma economia de conjunto é igualmente útil em si Não se deve somente suportálo devese amálo Nietzsche Nietzsche contre Wagner Epilogue I Paris Gallimard Euvres philosophiques completes t VIII p 275 28 Tractatus 6 4311 e 6 45 29 JL Solere op cit p 198 30 Kin YueLin in Fong YeouLan Précis dhistoire de la philosophie chinoise p 31 392 Questões e perspectivas Esse filósofo estará contudo exposto a muitos riscos O primeiro será satisfazerse com o discurso filosófico Há um abismo entre as belas sentenças e a decisão real de mudar de vida entre as palavras e a tomada de consciência efetiva ou a transformação real de si mesmo Parece por outro lado que a razão mais profunda da teorização da filosofia seja essa tendência de certo modo conatural ao filósofo e que o induz a satisfazerse com o discurso com a arquitetura conceitual que constrói reconstrói ou admi ra Encontramse sempre de uma extremidade a outra da história da filosofia antiga em quase todas as escolas as mesmas advertências ante o perigo que corre o filósofo caso ele pense que seu discurso filosófico possa bastarse a si mesmo sem estar ligado a uma vida filosófica Perigo perpétuo que Platão já experimentava quando escreVIa para justificar sua decisão de ir a Siracusa31 Envergonhome diante de mim mesmo à só ideia de passar por charlatão incapaz de realizar algo concreto Outro perigo o pior de todos seria acreditar que é possível passar sem a reflexão filosófica É necessário que o modo de vida filosófico justifiquese num discurso filo sófico racional e motivado Esse discurso é inseparável do modo de vida Notadamente será necessária uma reflexão crítica sobre os discursos filosóficos antigos modernos ou orientais que justifiquem este ou aquele modo de vida Será necessário esforçarse para explicitar as razões pelas quais se age desta ou daquela maneira e refletir sobre a própria experiência e a dos outros Sem essa reflexão a vida filosófica arriscase a cair na banalidade ou na insipi 31 Platão Carta VII 328 c trad L Brisson p 173 393 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos dez ou nos bons sentimentos ou na aberração Sem dú vida não se pode esperar ter escrito a Crítica da razão pura para viver como filósofo Mas não é menos verdade que viver como filósofo é precisamente também refletir racioci nar conceitualizar de maneira rigorosa e técnica pensar por si mesmo como disse Kant A vida filosófica é uma busca que jamais termina32 Enfim não se deve esquecer apesar dos clichês tena zes que se reproduzem sempre nos manuais que a vida filosófica antiga sempre foi intimamente ligada ao cuidado do outro e que essa exigência é inerente à vida filosófica especialmente quando vivida no mundo contemporâneo Como diz G Friedmann33 Um sábio moderno caso exista não se desviará hoje como o fizeram tantos estetas com desgosto da cloaca dos homens Mas dizendo isso ele reencontra e nós com ele os problemas quase insolúveis das relações do filósofo antigo com a cidade Pois o filósofo engcgado arriscase sempre a deixarse levar pelo ódio e pelas paixões políticas Eis por que aos olhos de G Friedmann tratavase para buscar melhorar a sorte dos homens de concentrar seus esforços sobre grupos restritos e mesmo sobre indivíduos e sobre o esforço espiritual a mutação de alguns que acabará pensava ele por disseminarse e irradiar O filósofo expe rimenta cruelmente sua solidão e sua impotência em um mundo despedaçado entre duas inconsciências a que pro voca a idolatria pelo dinheiro e a que resulta da miséria 32 Cf RP Droit Philosophie de printemps in Le Monde des livres 21 avril 1995 p IX 33 G Friedmann La Puissance p 360 394 Questões e perspectivas e do sofrimento de milhares de seres humanos Nessas condições o filósofo decididamente jamais poderá atingir a serenidade absoluta do sábio Filosofar será sofrer por esse isolamento e por essa impotência Mas a filosofia an tiga nos ensina também a agir racionalmente e a nos es forçar para viver segundo a norma que é a Ideia de sabe doria o que quer que aconteça e mesmo que nossa ação pareçanos bem limitada Como dizia Marco Aurélio34 Não esperes a República de Platão satisfazte com um pro gresso ainda que mínimo considera que não é pouca coisa o resultado desse progresso 34 Marco Aurélio Meditações IX 29 cf P Hadot La Citadelle intérieure pp 321325 395 CJibliografia I Referências dos textos citados em epígrafe EPITETO Conversações III 21 23 KANT Vorlesungen über die philosophische Encyclopiidie in Kants gesammelte Schriften XXIX Berlin Akademie 1980 pp 8 12 MONTAIGNE Essais III 13 Paris GallimardPléiade 1962 p 1088 N do T valime da tradução brasileira Ensaios 4a ed Tradução de Sérgio Milliet São Paulo Abril Cultural 1988 p 220 Os Pensadores NlETZSCHE Fragments posthumes Autonne 1881 15 59 in CEuvres philosophiques completes T V p 530 N do T Fragmen tos póstumos de Friedrich Nietzsche Tradução e introdução de Oswaldo Giacóia Júnior In Transformação São Paulo 13 139145 1990 Fragmentos póstumos Tradução de Oswaldo Gia cóia Júnior Campinas lFCHUnicamp abril de 1996 Textos Didáticos 22 NlETZSCHE Humain trop humain Le voyageur et son ombre 86 in id CEuvres philosophiques completes T III 2 Paris Galimard p 200 N do T Humano demasiado humano 3a ed Tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho São Paulo Abril Cultural 1983 Os Pensadores PASCAL Pensées 331 Brunschvicg Classiques Hachette N do T valime da tradução brasileira Pensamentos 4a ed Tradução de Sérgio Milliet São Paulo Nova Cultural 1988 Os Pensadores 397 O que é a filosofia antiga PETRARCA De sui ipsius et multorum ignorantia in Prose A cura di G Martellotti Milano 1955 pp 746748 PLOTINO Eneadas V 6 24 5 9 SÊNECA Cartas a Lucílio 108 36 SIMPLÍCIO Commentaire sur le Manuel dÉpictete lntroduction texte grec et apparat critique par I Hadot Leyde Brill 1995 XXIII linha 163 THOREAU Walden Éd et trad G LandréAugier Paris 1967 p 89 11 Citações de textos antigos As referências exatas das citações de textos antigos são em geral dadas nas notas Todavia para os autores muito clássicos como Aristóteles ou Platão não dei referências de edições ou traduções específicas contentandome em reproduzir as referências usuais que figuram na margem de todas as edições por exemplo para Platão Banquete 208 e ou ainda as divisões por livros capítulos e parágrafos utilizadas habitualmente para citar autores como Cícero e Epíteto Para completar estas sucintas indicações dadas em nota as especificações que se seguem são destinadas a auxiliar o leitor que quiser verificar os textos fomecendolhe indicações sobre as coleções de textos antigos das quais me servi Abreviações BL Collection des Universités de France Paris Les Belles Lettres CAG Commentaria in Aristotelem Graeca Berlin GF Collection Gamier Glammarion Paris Flammarion Pléiade Bibliotheque de la Pléiade Paris Gallimard LCL Loeb Classical Library Cambridge MassLondon SC Sources Chrétiennes Paris Éditions du Cerf SVF Stoicorum Veterum Fragmenta Ed H von Arnim IIV Leipzig 19051924 reed Stuttgart Teubner 1964 398 Bibliografia AGOSTINHO La Cité de Dieu Livres IXXII Trad Combes in Bibliotheque augustinienne CEuvres de saint Augustin nn 3337 Turnhout Brepols 19591960 ARISTEU vejase LEITRE DARISTÉE ARISTÓFANES Les Nuées in Aristófanes t I texte de V Coulon trad par H Van Daele 1960 ARISTÓTELES as traduções citadas são extraídas e por vezes mo dificadas seja da tradução completa de Tricot na Bibliotheque des Textes Philosophiques Paris Vrin 19511970 seja nas traduções que se encontram na BL ou na GF AULO GÉLIO Nuits attiques Livres IXV Éd et trad R Marache BL 19671989 CÍCERO as traduções citadas são extraídas e por vezes modificadas da tradução quase completa in BL notadamente Des termes extrêmes des biens et des maux Alguns tratados estão traduzidos na coleção GF notadamente os Nouveaux livres académiques e o Lucullus no volume Cícero De la divination etc Trad Ch Appuhn GF 1937 reedições CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromates 111 trad C Mondésert V trad ALe Boulluec SC 19541981 Le Pédagogue 1III trad M Harl Cl Mondésert Ch Matray introd et notes dH1 Marrou SC 19601970 DIODORO DA SICÍLIA Biblioteca histórica texto grego e tradução inglesa por diferentes autores sob o título Diodorus Siculus tt IXII in LCL 19331967 edição e tradução em curso livros I III XII XV XVIIXIX in BL 19721993 DIÓGENES LAÉRCIO citado D L Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres em geral as traduções por mim dadas são originais Existe uma tradução completa mas pouco satisfatória in GF uma nova edição e uma nova tradução estão em preparação tradução inglesa com texto grego por R D Hicks in LCL nn 184185 1925 reedições EPITETO Entretiens Livres IIV Texte établi et traduit par Souilhé BL 19481965 vejase também a tradução de V Goldschmidt in É Bréhier et PM Schuhl Les StoiCiens Pléiade 1964 Manuel Trad Pépin in Les StoiCiens Pléiade 1964 399 O que é a filosofia antiga EUSÉBIO DE CESAREIA Préparation evangélique Livre XI Éd des Places trad G Favrelle Paris SC 1982 EVÁGRIO PÔNTICO Traité pratique du Moine Texte grec et trad par A et Cl Guillaumont SC 1971 Le gnostique Texte grec et trad par A et Cl Guillaumont SC 1989 FÍLON DE ALEXANDRIA as traduções citadas são extraídas e por vezes modificadas da tradução completa acompanhada do tex to grego realizada por diferentes autores in R Arnaldez Cl Mondésert et J Pouilloux CEuvres de Philon dAlexandrie Paris Éditions du Cerf 19621992 HERÓDOTO Histoires Livre I Texte et trad Ph E Legrand BL 1970 HESÍODO Thégonie Les Travaux les Jours Éd et trad par P Mazon BL 1928 reedições HOMERO Iliade Chants IXXIV t IIV Éd et trad P Mazon BL 1937 reedições Odyssée Chants IXXIV tt IIII Éd et trad V Bérar BL 1924 reedições N do T Odisseia 2a ed Tradução de Manuel Odorico Mendes edição de Antônio Medina Rodrigues introdução de Haroldo de Campos São Paulo Edusp 1996 Odisseia Tradução de Carlos Alberto Nunes São Paulo Ediouro sem data Odisseia Tradução de Antônio Pinto de Carvalho São Paulo Abril Cultural 1979 Hinos homéricos Homero Hymnes Éd et trad par J Humbert BL 1936 reedições HORÁCIO as traduções citadas são extraídas e por vezes modificadas da tradução completa das abras do poeta estabelecida por F Villeneuve in BL 19291934 reedições JÂMBLICO Vida de Pitágoras tradução alemã Iamblichos Pythagoras Herausg übersetzt und eingeleitet von M von Albrecht Darmstadt 1985 SÓCRATES Discours TT IN Éd et trad par G Matthieu et É Brémond BL 1962 LETTRE DARISTÉE Éd et trad A Pelletier SC 89 1962 LUCRÉCIO De la nature Texte établi et traduit par A Ernout t III BL 1924 reedições vejase também Lucrécio De rerum natura Commentaire exégétique et critique par Alfred Ernout 400 Bibliografia et Léon Robin BL 19251926 Lucrécio De la nature Traduit du latin par J KanyTurpin Paris Aubier 1993 MARCO AURÉLIO dei minha própria tradução das Meditações da qual se encontrará o texto grego in BL éd Trannoy 1924 reedi ções e sobretudo na edição de Dalfen Leipzig Teubner 1972 2a ed 1987 NUMÊNIO Fragments Éd et trad par É des Places BL 1973 OVÍDIO Métamorphoses Éd et trad par G Lagaye BL 19281930 reedições PLATÃO as traduções citadas são extraídas e por vezes modificadas tanto da tradução completa da BL e da Pléiade como das novas traduções publicadas in GF PLÍNIO O VELHO Histoire naturelle XXXV Éd et trad M Croisille BL 1985 PLOTINO Ennéades Éd et trad par É Bréhier BL 19241938 para Ennéades III 5 VI 7 VI 9 respectivamente os tratados 50 38 e 9 extraí minhas citações dos três volumes que aparecem na coleção Les Écrits de Plotin sous la direction de P Hadot Paris Cerf 19881994 PLUTARCO as traduções citadas foram extraídas tanto da tradução bastante superada das Vies e das CEuvres morales que se encontra na BL como das traduções dos tratados antiestoicos compiladas com textos de outros autores na Bibliotheque de la Pléiade sob o título Les Stoiciens Vejase também para os tratados antiestoicos a tradução inglesa de H Cherniss in IBL nn 470 1976 PORFÍRIO De labstinence Livres IIV Éd et trad Bouffartigue M Patillon et A Segonds BL 19791995 Vie de Pythagore Lettre à Marcella Éd et trad É des Places BL 1982 Sententiae Éd du texte grec par E Lambertz Leipzig Teubner 1975 uma tradução francesa deve aparecer proximamente PROCLO Commentaire sur le Timée Trad Festugiere tt IV Paris Vrin 19661968 SÊNECA as traduções citadas são extraídas e por vezes modificadas da tradução completa in BL 19291961 reedições vejase também Sêneca Entretiens Lettres à Lucilius Paris L Laffont Bouquins 1993 révisé par P Veyne 401 O que é a filosofia antiga SEXTO EMPÍRICO não existe em francês tradução completa do counto da obra Extraí certas traduções de JP Dumont Les Sceptiques grecs Textes choisis Paris PUF 1966 vejase também Euvres choisies de Sextus Empiricus Trad J Grenier et G Gorou Paris Aubier 1948 tradução inglesa por R G Bury in IBL nn 273 291 e 311 19351936 reedições SOLON Elegia às Musas Texto grego in E Diehl Anthologia Lyrica Cjraeca Leipzig Teubner 1953 p 20 TU CID IDES La guerre du Péloponnese Livres IVII Éd e trad J de Romilly BL 19681970 XENOFONTE Banquet Éd et trad par F Ollier BL 1961 reedi ções Mémorables in Xenofonte Euvres completes t 111 GF 1967 reedições In Seleção de textos concernentes a certos aspectos da filosofia antiga Em versas obas citadas nas notas do livro poderseia consul tar a semte seleçao voluntariamente muito restrita de trabalhos suscetíveis de contribuir com complementos de informação sobre temas tratados neste livro Archiv für Begriffsgeschichte T 11 1982 pp 166230 Homena gem a Jacob Lanz artigos emJíngna alemã consagrados à noção de filosofia BABUT D La religion des philosophes grécs de Thates aux Stofciens Paris 1974 BOYANCÉ P Lucrece et lépicurisme Paris 1963 BROCHARD V Les sceptiques grecs Paris 2e éd 1932 réimpression 1959 DAVIDSON A Introduction a Pierre Hadot Philosophy as a Way of Life OxfordCambridge Mass 1995 pp 145 DETIENNE M Les maítres de vérité dans la Grece archafque Paris 1967 N do T Os mestres de verdade na Grécia arcaica Rio de Janeiro 402 Bibliografia Jorge Zahar Editor 1988 aspectos religiosos e intelectuais do pensamento présocrático DUMONT JP Éléments dhistoire de la pkilosophie antique Paris 1993 FRIEDLÃNDER P Plato I An Introduction Princeton 1973 HADOT P Exercices spirituels et philosophie antique Paris 3e éd 1993 Philosophy as a Way of Life vejase em A Davidson La philosophie hellénistique in J Russ ed Histoire de la pkilosophe Les pensées Jondatrices Paris 1993 Il y a de nos jours des professeurs de philosophie mais pas de philosophes in LHeme Henry D Thoreau Paris 1994 pp 188193 Émerveillements in La Bibliotheque imaginaire du College de France Éd par F Gaussen Paris 1990 pp 121128 HERSCH J Létonnement pkilosophie pkilosophique Une histoire de la philosophie Paris 1981 2e éd 1993 HUMMANS JR BL ASKHSIS Notes on Epictetus Educational System Assen 1959 INGENKAMP HG Plutarchs Schriften über die Heilung der Seele Gõttingen 1971 JORDAN W Ancient Concepts of Philosophy LondonNew York 1990 KIMMICH D Epikureische Aufkliirung Philosophische und poetische Konzepte der Selbstorge Darmstadt 1993 LAKMANN ML Der Platoniker Tauros in der Darstellung des Aulus Gellius Leyde 1995 NUSSBAUM M C The Therapy of Desire Theory and Practice in Hel lenistic Ethics Princeton 1994 PERRET J Le bonheur du sage in Hommages à Henry Bardon Collection Latomus t 187 Bruxelles 1985 pp 291298 PHILIP J A Pythagoras and Early Pythagoreanism Phoenix suppl vol Vil University of Toronto Press 1966 pp 159162 crítica da interpretação xamanística PIGEAUD J La maladie de lâme Étude sur la relation de lâme et du corps dans la tradition médicophilosophique antique Paris 1981 Platos Apology of Socrates A Literary and Philosophical Study with a Running Commentary Edited and completed from the papers of the late E de Strycker Leyde 1994 RICHARD MD Lenseigment oral de Platon Une nouvelle interprétation du platonisme Préface de P Hadot Paris 1986 tradução de 403 O que é a filosofia antiga textos e bibliografia sobre as teorias concementes ao ensino oral de Platão THOM C The Pythagorean Golden Verses with Introduction and Com mentary Leyde 1995 texto tradução comentário dos Versos dourados pitagóricos VAN GEYTENBEECK A C Musonius Rufus and Greel Diatribes Assen 1963 WIELAND W Platon und die Formen des Wissens Gõttingen 1982 Platão não ensina um saber mas um saberfazer 404 Cronologia O signo indica que a data proposta é aproximativa ela é muito frequente no caso do período de atividade e de ensino dos filósofos escolhi no geral datas que correspondem ao que se denominava na Antiguidade a akmé isto é o momento no qual a personagem em questão atinge a maturidade ou cimo de sua atividade e de seu renome Encontrarseão preciosos detalhes biobibliográficos sobre os diferentes filósofos in R Goulet Dictionnaire des philosophes antiques I Abammon à Axiothea 11 Babélyca à Dyscolius Paris 1994 Antes de Cristo 850750 Composição dos poemas homéricos 700 Hesíodo 650 640 600550 600 Viagem de Aristeu do Proconeso para a Ásia central e composição de seu poema Arimaspea Epimênides faz um sacrifício expiatório em Atenas Nas primeiras colônias gregas da Ásia Menor aparição dos primeiros pensadores Tales de Mileto que prediz o eclipse do Sol de 28 de maio de 585 Anaximandro Axímenes Figuras ao mesmo tempo históricas e lendárias dos Sete Sábios Sólon Pítacos de Mitilene Qm1on de Esparta Bias de Priene Periandro de Corinto Cleóbulo de Lindos 405 O que é a filosofia antiga 594 Sólon político e poeta ateniense considerado posterior mente um dos Sete Sábios 560 Abaris personagem posta em relação com Pitágoras pelas 540 540 532 tradições pitagórica e platônica enófanes de Colofão emigra de Colofão colônia grega da Asia Menor e chega a Eleia colônia grega do Sul da Itália Teógnis poeta elegíaco moral aristocrática Pitágoras Originário da ilha de Samos emigra para as co lônias gregas do Sul da Itália Crotona depois Metaponto Diziase de Pitágoras que ele era uma reencarnação do filósofo lendário Hermotimo de Clazômenas 504 Heráclito de Éfeso colônia grega da Ásia Menor 500 Ensinamentos de Buda e de Confúcio 490429 Datas do nascimento e da morte do político ateniense Péricles 4 70 Anaxágoras de Clazômenas 460 Empédocles de Agrigento 450ss Parmênides de Eleia Zenão de Eleia Melisso de Samos 450ss 450 440 435 432 Desenvolvimento do movimento sofístico Protágoras Górgias Pródicos Hípias Trasímaco Antifonte Crítias Heródoto historiador Demócrito de Abdera Ensino de Sócrates em Atenas Processo de impiedade em Atenas contra Anaxágoras que deve exilarse 432431 Batalha de Potideia na qual Sócrates participa 431416 Alcibíades político ateniense discípulo de Sócrates 430 Redação da obra históricade Tucídides 423 Representação da peça de Aristófanes As Nuvens que ridiculariza o ensino de Sócrates 399 Processo de impiedade em Atenas contra Sócrates que é condenado à morte 399 Antístenes Aristipo de Cirene Euclides de Megara discí 390 pulos de Sócrates fundam suas próprias escolas Isócrates abre uma escola em Atenas na qual ensina a filosofia como cultura geral 389388 Primeira viagem de Platão ao Sul da Itália e à Sicília Encontro com Díon de Siracusa 406 Cronologia 388387 Platão funda sua escola em Atenas no ginásio denominado Academia Principais membros da Academia Eudoxo He ráclido Xenócrates Espeusipo Aristóteles Teeteto duas mulheres Axioteia Lasteneia 370301 Tshuangtsé filósofo chinês que apresenta Lietsé como 367365 361360 360ss 360 seu mestre Eudoxo de Cinide substitui Platão à frente da Academia durante sua segunda viagem à Sicília para a corte de Dionísio II de Siracusa Heráclido do Ponto substitui Platão à frente da Academia durante sua terceira viagem à Sicília Diógenes o Cínico que fora discíplo de Antísteres Ésquines Aisquines de Esfetos disCipulo de Sorates ensina em Atenas e compõe diálogos que poem Socrates em cena 350 Xenofonte discípulo de Sócrates escreve suas memórias Memoráveis sobre Sócrates 349348 Morte de Platão Espeusipo lhe sucede à frente da escola 339338 Eleição de Xenócrates como escolarca da Academia sucessor de Espeusipo Período helenístico 336 337 334 328ss 326323 Chegada de Alexandre o Grande rei da Macedônia Aristóteles funda em Atenas sua própria escola Membros Importantes de sua escola Teofrasto Aristoxeno Dicearco Clearco encontramse documentos epigráficos que atstam a existência de uma viagem deste último a uma Cidade grega que existia nas proximidades da atual Ai Rhanoum o Afeganistão Expedição de Alexandre à Pérsia e à India ea toam parte Anarco de Abdera discípulo de Democnto P1rro Onesícrito Primeira geração de discípulos de Diógenes o Cínco Mônimo Onesícrito Crates Hipárquia Métrocles Mempo Menedemo O sábio indiano Calano encontra os gregos por ocasião da estadia de Alexandre em Taxila e suicidase pouco tempo antes da morte de Alexandre 407 O que é a filosofia antiga 323 Morte de Alexandre na Babilônia Seguese um período de perturbações que acompanha a formação de diferentes monarquias helenísticas 322 Morte de Aristóteles Teofrasto o sucede 321 Menandro poeta cômico talvez influenciado por Epicuro 320 Atividade filosófica de Pirro de Élis Ele tem por discípulos Fílon de Atenas e Tímon de Atenas 312 Morte de Xenócrates Polêmon o sucede à frente da Aca demia 313 Epicuro funda sua escola em Atenas Primeiros discípu los Heródoto Pítocles Hermarco Metrodoro Polieno Leonteus de Lampsaco Temístia Leôntion Colotes Apolonides Amigo Idomeneu 301 Zenão de Citium funda a escola estoica em Atenas Primei ros discípulos Perseu Aríston de Quíos Cleanto de Assos 300 Elementos de Euclides de Alexandria 300 295 Crantor escolarca da Academia Fundação em Alexandria por Ptolomeu I de um centro de estudos científicos denominado Museu ao qual está associado Demétrio de Falera um aristotélico e onde ensinam por exemplo no fim do século 111 o astrônomo Aristarco de Samos e o médico Herófilo 287286 Estratão de Lampsaco sucede Teofrasto como escolarca da escola peripatética 283239 Antígonos Gonatas rei da Macedônia favorece os filósofos notadamente estoicos Cleanto 276241 Arquesilau escolarca da Academia confere à escola uma 268 262 235 230 212 orientação crítica Lícon sucede Estratão de Lampsaco como escolarca da escola peripatética Cleanto chefe da escola estoica na morte de Zenão O estoico Esfairos discípulo de Zenão e de Cleanto con selheiro do rei de Esparta Cleômeno 111 e provavelmente de seu predecessor Ágis IV sugerelhe reformas sociais Crisipo chefe da escola estoica na morte de Cleanto Arquimedes de Siracusa astrônomo matemático e en genheiro é morto por soldados romanos por ocasião da ocupação de Siracusa 408 164 155 150 149146 144 133 110 99 9755 9546 87 79 60 50 50 49 44 43 Cronologia Cameada escolarca da Academia Embaixada enviada a Roma pelos atenienses para con seguir que a cidade de Atenas fosse isenta de uma forte multa Ela inclui três filósofos o acadêmico Cameada o aristotélico Critolau o estoico Diógenes da Babilônia Antipater ou Antipratos de Tarso chefe da escola estoica Submissão a Roma da Macedônia e da Grécia O estoico Panécio admitido no círculo dos Cipião Ele sucede em 129 Antipater à frente da escola estoica Blóssio estoico discípulo de Antipater sugere em Roma as reformas sociais de Tibério Graco e talvez também em Pérgamo a revolta de Aristonico que quer a libertação de todos os escravos e a igualdade de todos os cidadãos Fílon de Larissa e Carmadas ensinam na Academia Quinto Múcio Escávola Pontífice Rutílio Rufo políticos romanos estoicos Lucrécio epicurista autor do poema De rerum natura Catão da Útica político romano e filósofo estoico Atenas tomada pelos romanos Pilhagem da cidade pelas tropas de Silas Antíoco de Ascalão abre sua própria escola em Atenas ele se opõe à atitude crítica que a Academia tinha adotado desde Arquesilau até Fílon de Larissa Diversas manifestações de uma renovação do pitagorismo Apolófanes de Pérgamo filósofo epicurista Filodemo de Gadara filósofo epicurista amigo de Calpúmio Pisou que era o sogro de Júlio César Diodoro da Sicília historiador Assassinato de Júlio César Júnio Bruto político romano assassino de César assiste em Atenas às aulas do platônico Teomnesto último filósofo ensinando em Atenas a ser denominado acadêmico isto é crítico As instituições escolares fundadas por Platão Aristóteles e Zenão desaparecem nos últimos anos da Re pública romana Somente sobrevive a instituição fundada por Epicuro Novas escolas retomando a herança doutrinai de Platão Aristóteles e Zenão abremse em outras cidades e na própria Atenas 409 O que é a filosofia antiga 35 Eudoro de Alexandria filósofo platônico 30 Batalha de Actium morte de Cleópatra última rainha do Egito Fim da época helenística 30 Inscrição epicurista gravada por Diógenes de Oinoanda em sua cidade natal datada também por certos especialista no século II dC 27 Otávio recebe do Senado o imperium e o título de Augusto Fim da República Romana e início do Império Nessa época florescimento da literatura latina Horácio Ovídio Ário Dídimo conselheiro de Augusto e autor de um manual doxográfico sobre os dogmas das diferentes escolas filo sóficas Sextio pai e filho filósofos romanos influenciados pelo estoicismo e pelo pitagorismo que exercerão grande influência sobre o pensamento de Sêneca 7 Amínias de Samos filósofo epicurista Depois de Cristo O Império Romano 2930 Crucificação de Jesus de Nazaré em Jerusalém 40 Fílon de Alexandria platônico um dos escritores mais im portantes do judaísmo helenístico Exercerá forte influência sobre a filosofia cristã 4865 Sêneca filósofo estoicopreceptor e depois conselheiro do imperador Nero Após 62 consagrase unicamente à ativida de filosófica Em 65 forçado ao suicídio pelo imperador 60 Amônio platônico ensina em Atenas Plutarco de Que roneia é seu ouvinte 9394 Expulsão de Roma de todos os filósofos pelo imperador Domiciano Expulso de Roma o estoico Epíteto aluno de Musônio Rufo funda uma escola em Nicópolis na costa grega do Adriático 96 Advento do imperador Nerva 100ss Plutarco de Queroneia platônico de tendência crítica 410 Cronologia 120 129200 Início da atividade literária dos Apologistas cristãos no tadamente Justino Atenágoras Teófilo de Antioquia que apresentam o cristianismo como uma filosofia Vida de Galena de Pérgamo médico e filósofo 133 140 140 146 147 150 150 150 150 155 160 161180 176 176 177 177 180ss 190 Basílidas primeiro gnóstico historicamente determinado ensina em Alexandria Valentino o gnóstico ensina em Roma durante 0 reino de Antonino o Piedoso Favorino de Árles platônico de tendência crítica Calvísio Tauro platônico ensina em Atenas Aulo Célio é seu aluno Cláudo Ptolomeu astrônomo matemático geógrafo Apulew de Madaura platônico Numênio e Crônio platônicos Alcínoo platônico autor de um resumo do platonismo Didaskalikos Albio pltônico autor de uma Introdução aos diálogos de Platao ensma em Esmirna Máximo de Tiro retor e filósofo platônico Luciano autor satírico influenciado pelo cinismo Reinado do imperador Marco Aurélio estoico muito in fluenciado por Epíteto Marco Aurélio funda em Atenas cátedras de filosofia para as quatros principais correntes platônica aristotélica estoica epicurista mantidas pelos fundos imperiais Atico filósofo platônico Ensina em Atenas na cátedra fundada por Marco Aurélio Composição das Noites áticas de Aulo Célio Celso filósofo platônico polemista anticristão Alexandria e Cesareia da Palestina tornamse grandes centros de ensino da filosofia cristã Pantene Clemente de Alexandria Orígenes Gregório o Taumaturgo Eusébio de Cesareia Sexto Empírico médico filósofo cético graças a quem co nhecemos os argumentos dos céticos anteriores Enesídemo metade do século I aC e Agripa difícil de datar 411 O que é a filosofia antiga 198 Alexandre de Afrodísia ensina a filosofia aristotélica em Atenas e publica numerosos comentários sobre as obras de Aristóteles 200 Diógenes Laércio autor de uma obra intitulada Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres 244270 Plotino aluno de Amônio Sacas funda em Roma uma escola platônica neoplatônica Ele tem por discípulos Porfírio Amélio Castrício Rogaciano Em alguns de seus escritos encontramse discussões com os gnósticos 300 Início do monaquismo cristão Antônio retirase para o de serto Atanásio de Alexandria escreverá sua vida em 356 O Império cristão 312313 Conversão ao cristianismo do imperador Constantino que promulga o Edito de Milão assegurando a tolerância do exercício do culto cristão 313 Iâmblico funda uma escola platônica neoplatônica na Síria provavelmente em Apameia Ele influenciou fortemente o platonismo posterior pela importância que confere à tradição pitagórica e às práticas teúrgicas Escreve numerosos comentários sobre Platão e Aristóteles Teve por discípulos entre outros Aidésio da Capadócia e Teodoro de Asino 361363 O reinado do imperador Juliano filósofo neoplatônico aluno de Máximo de Éfeso na tradição de Iâmblico dá lugar a uma reação eontra o cristianismo inspirada pelo neoplatonismo 360 Desenvolvimento do monaquismo sábio Basílio de Cesareia Gregório Nazianzeno Gregório de Nissa Evágrio Pôntico 375 Plutarco de Atenas nascimento da escola platônica neoplatônica de Atenas 386430 Atividade literária de Agostinho 400ss Desenvolvimento do ensino platônico em Atenas e em Alexandria escolas privadas Siriano Proclo Damásquio Hiérocles Hérmias Amônio Simplício Olimpiodoro Não 412 529 529 540 Cronologia se pode observar diferenças doutrinais importantes entre os neoplatônicos que ensinam nos séculos V e VI em Atenas e os que como Hiérocles Hérmias Amônio Olimpiodoro ensinam em Alexandria Numerosos comentários sobre Platão e Aristóteles redigidos entre outros por Siriano Proclo Hérmias Amônio Olimpiodoro Filoponos Simplício O neoplatonismo é um foco de resistência ao cristianismo O imperador Justiniano proíbe os pagãos de ensinar Os filósofos neoplatônicos Damásquio Simplício e Prisciano deixam Atenas para refugiarse na Pérsia Após o tratado de paz concluído entre Corroés e Justiniano eles se instalam em Carrae em território bizantino mas sob influência persa e ali continuam seu ensino O neoplatônico João Filoponos convertese ao cristianismo de fato por causa das medidas de interdição do ensino impostas aos pagãos por Justiniano Doroteu de Gaza escritor monástico 413 Indice de nomes A Abaris 406 Abensour 364 Mrodite 73 74 Agostinho 92 169 352354 360 412 Agripa 411 Albino 411 Alcínoo 220 411 Alexandre de Mrodísia 157 215 235 407 412 Alexandre o Grande 407 Amélio 335 412 Amínias de Samos 143 Amônio 215 410 412 413 Anaxágoras 142 151 382 406 Anaxarco 145 146 166 Anaximandro 27 405 Anaxímenes 27 Antifonte 33 270 406 Antígonos Gonatas 151 408 Antíoco de Ascalão 409 Antipater de Tarso 307 Antístenes 48 91 162 406 407 Antoninó o Piedoso 411 Antão 341343 350 400 412 Aouad 215 Apeles 210 212 Apolo 43 51 Apolófanes de Pérgamo 143 409 Apolonides 307 408 Apuleio 220 411 Ária Dídimo 220 410 Aristarco de Sarnas 141 204 408 Aristeu do Proconeso 405 Aristipo de Cirene 91 406 Aristófanes 7072 75 399 406 Aristofonte 226 Aríston de Quíos 152 202 408 Aristonico 409 Aristóteles 2 6 12 15 16 19 27 33 44 49 51 63 91 95 97 102 113 119134 136138 140 142145148149154156157 172204215216218219222 223225228235237243245 253 257 282 298 299 302 310311314316322324338 360362 367 368 370 371 385 398 407409 412 413 Aristoxeno 120 407 Arquesilau 157 205208 217 299 408 409 415 O que é a filosofia antiga Arriano 225 307 Arrighetti 150 169 174 177 182 185 Atanásio de Alexandria 339 341 412 Atena 39 221 269 Atenágoras 411 Ático 411 Aubenque 135 208 Aubry de Reims 368 Augusto 140 287 410 Aulo Célio 195 218 225 227 411 Axioteia 96 112 407 B Babut 71 72 208 369 Balaudé 42 169 170 172 174 176 178181 184 280 282 283 292 298 307 320 321 Baldry 147 Basílidas 411 Basílio de Cesareia 339 342 412 Bataillard 121 Baudoux 358 Bergson 15 380 Bien 120 Billot 92 Blóssio 144 409 Bodéüs 120 133137 Boécio da Dácia 360 367 Bollack 40 Bolton 266 Bourgey 126 Bouveresse 329 365 366 384 Bouyer 340 Bréhier 141 187 239 278 302 319 329 372 399 401 Brisson 94 102 103 113 114 116 219 305 335 393 Bruto 409 Buda 406 Bugault 382 390 Burkert 35 37 226 227 267 269 Butor 370 c Calano 146 407 Cantin 358 Carmadas 409 Carneada 207 208 217 299 409 Caronte 296 Cassin 2 33 Castrício 228 412 Catão da Útica 409 Celso 222 411 Chenu 220 361 Cícero 35 52 82 92 145 156 158 168 171 174 177 178 185 187 190 194 198 205 207 208 214 217 249 268 280 282 291 295 299 307 345 398 399 Cipião Emiliano 295 Cipião o Mricano 295 Cimos 42 Cleanto 91 152 193 258 408 Clemente de Alexandria 146 336 339 346 352 358 359 411 Cleóbulo de Lindos 43 405 Cleômeno 144 408 Cleópatra 140 410 Colotes 206 408 Confúcio 406 Constantino 412 416 Índice de nomes Copérnico 292 Crantor 218 408 Crasso 217 Crates 162 163 306 407 Creso 36 Crisipo 145 152 187 194 198 199 201 216 218 220 222 223 278 408 Critias 29 406 Critolau 409 Crônio 411 D Damásquio 243 244 412 413 Dante 368 Daumas 340 Davidson 386 403 Decharme 32 181 Decleva Caizzi 165 168 Deleuze 15 Delorme 272 Demétrio de Falera 408 Demócrito 44 146147177236 269 270 406 407 Demont 121 204 269 270 Descartes 15 370373 380 382 di Giuseppe 105 Diano 131 132 150 170 173 178 183 283 284 Dicearco 92 120 407 Dihle 68 Diodoro da Sicília 268 399 409 Diógenes da Babilônia 307 409 Diógenes Laércio 35 75 120 146 149 151 158 176 178 187 249 269 314 343 372 412 Diógenes o Cínico 153 369 407 417 Díon de Siracusa 104 304 406 Dionísio li de Siracusa 407 Diotima 7278 109 Dixsaut 70 153 Dodds 262 265 Domanski 23 356 360 362 367369 Domiciano 410 Dõring 58 Doroteu de Gaza 340 342344 349 354 413 Dreyfus 370 Dumont 27 29 33 35 45 209 210 212 226 236 259 260 269 270 313 335 402 Düring 100 125 126 133 137 E Eckhart 368 Edésio 308 412 Eliade 262 265 Elisabeth 373 Emerson 380 Empédocles 28 52 110 228 236 259 260 261 267 406 Enesídemo 211 411 Epicuro 11 15 42 91 149151 159 169 170172 174178 180185 218 222 271 279 282284 296300 306 307 317 318 320 321 324 344 375 381 391 408 409 Epimênides 265 405 Epíteto 13 145 187 189 193 194 196 199 219 225 252 258 277 285290 307 312 344 345 369 380 410 411 O que é a filosofia antiga Erasmo 23 369 382 Eros 6 70 7275 77 79 80 89 90 llO 165 Escávola 250 409 Esfairos 144 408 Espeusipo 96 97 101 407 Espinosa 15 284 Ésquines de Esfetos 57 Estratão de Lampsaco 205 408 Euclides de Megara 91 406 Eudamidas 320 Eudoro de Alexandria 410 Eudoxo de Cnide 97 Eunapo 308 Eusébio de Cesareia 411 Evágrio Pôntico 286 339 347 350 Evangelista o João 335 F Favorino de Árles 4ll Festugiere 92 141 151 175 180 181 183 218 227 243 271 294 295 300 307 321 401 Fichte 15 Filodemo 182 183 186 281 306 307 321 409 Fílon de Alexandria 198 293 333 340 358 410 Fílon de Atenas 408 Fílon de Larissa 207 409 Filoponos 413 Fong 295 392 Foucault 2 23 343 370 382 386 Friedmann 388 394 Friedrich 369 397 Frischer 95 184 324 Furley 270 G Gabriel 19 383 384 Gaiser 95 97 ll2 Galena 287 289 411 Gemet J 390 Gemet L 260 Gigante 178 182 184 186 281 306 Gille 141 Gilson 357 358 363 372 375 379 382 Gladigow 39 40 Glauco 274 Glucker 148 213 Goethe 109 388 389 392 Goldschmidt ll3 190 191 197 399 Górgias 32 33 38 ll6 217 406 Gõrler 168 Goron 209 402 Goulet R 92 ll2 143 146 147 204 215 308 405 GouletCazé 146 162 163 Graco 409 Gregório Nazianzeno 339 341 345 346 412 418 Gregório Taumaturgo 336 Grenier 209 402 Gribomont 340 Grcethuysen 325 Guattari 15 H Hadot I 30 44 85 98 103 143 144 150 159 161 183 187 Índice de nomes 190 197 201 208 214 215 224 243 250 269 271 285 286 288 302304 327 337 358 359 397 Hadot P 23 29 99 143 157 161 194198 201203 222 223 232 239 240 242 245 251 255 275 276 279 290 294 312 320 326 338 357 362 390 392 395 401 403 Hamayon 24 261 263265 Havelock 37 Hegel 15 52 67 364 366 Heitsch 100 Heráclido do Ponto 35 97 266 407 Heráclito 29 35 36 44 52 128 130 316 334 335 338 406 Hermarco 91 408 Hérmias 412 413 Hermotimo de Clazômenas 265 406 Heródoto historiador 5 3537 43 158 159 176 298 406 Herófilo 141 408 Hesíodo 4042 221 310 405 Hiérocles 227 268 288 412 413 Hipárquia 163 407 Hípias 59 406 Hoffmann 186 Hõlderlin 71 Holzhey 208 377 Homero 37 39 40 57 310 400 Horácio 11 145 186 258 281 283 317 410 Hulin 282 327 329 330 390 391 Hunger 341 Hutter 386 I Idomeneu 150 185 408 Ierodiakonou 204 Imbach 367 386 Ioppolo 57 205207 Isnasdi Parente 94 Isócrates 6 38 83 85 92 406 J Onias 129 Jaeger H 285 J Jaeger W 30 31 126 Jâmblico 35 215 227 243 245 246 267 287 412 James 380 Jankélévitch 52 74 Jaspers 389 Jesus Cristo 8 336 405 410 João Batista 369 Jo1y H 263 264 Joly R 35 Juliano 412 Júlio César 409 Justiniano 413 Justino 336 338 4ll K Kant 11 1565 130288328362 373380 382384 394 Kerferd 39 Kidd 197 Kierkegaard 57 79 374 380 Kin 392 Koyré 292 Krâmer 78 92 101 172 173 282 419 O que é a filosofia antiga Kristeva 278 Kudlien 41 Labarriere 364 L Lain Entralgo 41 Lasserre 98 Lasteneia 96 407 Le Blond 299 Leclerq 338 340 341 Leibniz 15 382 Leonteus de Lampsaco 185 408 Leôntion 185 408 Lévy 206 Lewy 245 Libera 368 Lícon 149 408 Lietsé 166 407 Lindgren 376 Luciano 296 328 411 Lucrécio 145169175178291296 311 321 327 400 401 409 Lynch 3133939496 120149 151 187 204 213 215 M Macróbio 360 Malebranche 15 382 Malingrey 341 Mansfield 187 Marcel 382 Marciano Capela 360 Marco Aurélio 143 145 185 187 190 193 199 200202 215 250 255 275278 289 292 301 303 308 312 313 326 380 395 411 Marrou 30 399 Martens 47 105 Marx 380 Masullo 245 Máximo de Éfeso 412 Máximo de Tiro 266 411 Melisso 32 406 Menandro 150 408 Menedemo 407 Menipo 296 407 Merlan 235 MerleauPonty 65 67 380 382 387 Métroclo 261 Metrodoro 42 91 408 Meuli 262 Meunier 227 268 288 Mittelstrass 102 112 298 Mnemosyne 41 Moles 147 Mônimo 407 Montaigne 11 13 369 380 385 388 389 Moreau 204 Múcio 250 409 Muckensturm 146 Müller 49 58 Murray 141 Musas 40 41 96 149 221 402 Musônio Rufo 307 410 420 N Naddaf 28 29 30 33 Narcy 270 Nero 410 Nerva 410 Nietzsche 12 71 83 324 325 353 380 388 389 392 397 Índice de nomes Numênio 92 359 411 o Olimpiodoro 412 413 Onesícrito 146 407 Orfeu 221 Orígenes 336 337 339 351 352 358360 411 Ovídio 295 410 p Panécio 409 Paquet 162 306 Parain 106 Parmênides 28 32 35 52 110 115 224 244 406 Parmentier 109 Pascal 12 79 Penia 7375 Pépin 252 399 Periandro de Corinto 43 405 Péricles 31 3638 57 406 Perseu 151 408 Petrarca 12 23 368 369 382 Philonenko 15 378 379 Pirro de Élis 145 408 Pison 409 Pitágoras 6 28 35 92 93 221 226228 259 267269 286 295 400 406 Platão 5 6 11 12 15 19 22 27 29 30 33 37 42 43 4751 54 56 58 63 66 69 70 71 76 788489 90105 107115 117 119 120 122 123 133 134 137 138 140 142 145 148 149 154 156 172 174 183 421 185206216224229234235 24245252253266268274 284 290 295 297 298 304 305 310 313 314 317 319 320 322 323 328 329 Plínio o velho 401 Plotino 7 12 13 15 19 79 215 219 224 225 227 228 230 231 232 235243 245 247 251 253 274 302 308 319 323 324 335 383 385 412 Plutarco de Atenas 215 412 Plutarco de Queroneia 410 Polêmon 148 151 408 Polieno 91 408 Pontífice 250 409 Porfírio 7 174 214 219 224 225 227232 235 238 251 252 267 268 286 287 308 319 347 360 370 412 Poros 74 75 90 Prisciano 413 Proclo 92 215 218 243 244 246 412 413 Pródicos 32 406 Protágoras 32 33 43 406 Ptolomeu Cláudio 293 411 Ptolomeu I 408 Q Quílon de Esparta 43 405 R Rabbow 22 104 107 287 288 304 306 Rabinow 370 Refoulé 286 O que é a filosofia antiga Renan 294 Robert 44 130 141 221 Robin 80 90 401 Rochlitz 382 Rodier 121 191 Rogaciano 230 412 RomeyerDherbey 33 41 270 Romilly 33 310 402 Rousseau 173 374 380 Ruffié 20 Rufino 341 Rústico 308 Ryckrnans 167 s Saffrey 245 246 Schaerer 52 106 112 113 116 Schelling 15 Schlanger 386 Schmid 183 Schopenhauer 364 380 Schuhl 187 399 Sedley 178 Sêneca 12 22 91 145 173 183 184 187 189 193 198 199 207 250 252 269 271 275 277 278 280 282 285 287 288 292 296 300302 307 311 318 324 326328 368 369 401 410 Sereno 311 Sextio 287 318 326 410 Sexto Empúico 147 153 168 194 209 210212 313 411 Shaftesbury 380 Sheppard 246 Shitao 166 Silas 144 213 409 Simplício 12 224 225 243 302 312 337 412 413 Siriano 215 243 412 413 Smith 169 Snell 43 Sócrates 5 6 11 17 21 30 33 4777 7981 83 89 91 92 94 99 103105 10 112 11 133 142 151 154 161 162 165 169 183 187 205 206 258 262265 304 313315 318 320 329 338 346 369 374 375 382 391 392 406 407 Solêre 386 390 392 Sólon 36 37 40 43 Souilhé 225 286 399 Suárez 357 Sudhaus 183 Sulzer 377 T Tales de Mileto 43 44 405 Tauro 218 222 225 227 411 Teeteto 53 54 57 97 107 108 116 230 291 293 295 323 407 Temístia 185 408 leófilo de Antioquia 411 Teofrasto 120 132 149 204 407 408 Teógnis 31 42 406 Teomnesto 409 Teoro 185 Thillet 215 Thoreau 13 380 403 Tímon de Atenas 408 Trasímaco 45 406 Tshuangtsé 166 391 407 Tucídides 37 406 422 Índice de nomes Vair 372 Valentino 411 v Van der Horst 227 Vemant 21 260 261 267 Veyne 328 401 Voelke 9 23 63 155 171 209 211 Voge1 35 w Wartelle 336 338 Wehrli 204 Weil 19 376 378 Whitehead 109 Wittgenstein 19 211 284 329 365 366 380 383 384 Wolff 47 48 X Xenócrates 96 97 101 149 151 304 317 319 320 407 408 Xenófanes 28 35 110 406 Xenofonte 48 59 63 66 67 69 83 110 304 315 402 407 z Zac 382 Zenão de Citium 151 408 Zenão de Eleia 32 406 423 Caio Prado Jr O QUE É FILOSOFIA editora brasiliense ddLivros Livros Baixe Livros de forma Rápida e Gratuita Converted by convertEPub O que é filosofia Caio Prado Jr Copyright by Caio Prado Jr 2008 Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada armazenada em sistemas eletrônicos fotocopiada reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor Primeira edição 1981 41ª reimpressão 2012 Diretora Editorial Maria Teresa B de Lima Editor Max Welcman Produção Gráfica Adriana FB Zerbinati Produção Editorial Ione Franco Caricaturas Emilio Damiani Capa e ilustração 123 antigo 27 Artistas Gráficos Atualização da Nova Ortografia Natália Chagas Máximo eBook Ana Clara Cornelio Bruna Cecília Bueno João Pedro Oliveira Rocha e José Eduardo S Góes Produção Editora Hedra Ltda editora e livraria brasiliense R Antônio de Barros 1839 Tatuapé São Paulo SP 03401001 wwweditorabrasiliensecombr Sumário Sumário O que é filosofia Sobre o autor O que é filosofia Não precisamos buscar na infinidade de conceitos de filosofia talvez um para cada autor de certa expressão e que à vagueza das formulações acrescentam às vezes até posições contraditórias não precisamos procurar aí a incerteza e imprecisão que reinam e sobretudo em nossos dias no que concerne o objeto da especulação filosófica Muito mais ilustrativa é a consulta aos textos filosóficos ou qualquer exposição ou análise do desenvolvimento histórico do assunto De tudo se trata podese dizer ou se tem tratado na filosofia e até os mesmos assuntos ou aparentemente os mesmos são considerados em perspectivas de tal modo apartadas uma das outras que não se combinam e entrosam entre si tornandose impossível contrastálas Para alguns essa situação é não apenas normal mas plenamente justificável A filosofia seria isso mesmo uma especulação infinita e desregrada em torno de qualquer assunto ou questão ao sabor de cada autor de suas preferências e mesmo de seus humores Há até quem afirme não caber à filosofia resolver e sim sugerir questões e propor problemas fazer perguntas cujas respostas não têm maior interesse e com o fim único de estimular a reflexão aguçar a curiosidade E já se afirmou até que a filosofia não passava de uma ginástica do pensamento entendendo por isso o simples exercício e adestramento de uma função no caso o pensamento em vez dos músculos sem outra finalidade que essa Texto originalmente publicado em Almanaque nº 4 Ed Brasiliense 1977 Apesar contudo de boa parte da especulação filosófica particularmente em nossos dias parecer confirmar tal ponto de vista ele certamente não é verdadeiro Há sem dúvida um terreno comum no qual a filosofia ou aquilo que se tem entendido como tal se confunde com a literatura no bom sentido entendase bem e não objetiva realmente conclusão alguma destinandose tão somente como toda literatura a par do entretimento que proporciona levar aos leitores ou ouvintes a partir desses centros condensadores da consciência coletiva que são os profissionais do pensamento levarlhes impressões e estados de espírito emoções e estímulos dúvidas e indagações Mas esse terreno que a filosofia ou pelo menos aquilo que se tem entendido por filosofia compartilha com a literatura não é toda filosofia nem mesmo de certo modo a sua mais importante e principal parte E nem ao menos a meu ver com todo interesse que possa representar constitui propriamente filosofia e deveria antes se confundir na classificação e às vezes até mesmo na designação com a mesma literatura com que já apresenta tantas afinidades Mas conserve embora a filosofia literária sua qualificação e status é necessário que a par dela e com ela se desenvolva também uma filosofia de outro teor que dê resposta e na medida do possível precisa às questões que efetivamente nela se propõem A filosofia pode a rigor ser tratada literariamente como pode sêlo a ciência e o conhecimento em geral Mas que isso seja forma e não fundo Esse fundo é outra coisa que apesar de tudo se percebe em todo verdadeiro filósofo por mais que se disfarce num pensamento confuso disperso sem objetivo desde logo aparente e seguro Que se percebe sobretudo na filosofia em conjunto como maneira específica de tratar dos assuntos de que se ocupa por mais variados e díspares que sejam Com toda sua heterogeneidade confusão e hermetismo de tantos de seus textos vazados em linguagem acessível unicamente a iniciados ou antes por eles julgados acessíveis mais do que acessíveis de fato com tudo isso a filosofia encontra ressonância tal que se não fosse outro o motivo já por si bastaria para comprovar que nela se abrigam questões que dizem muito de perto com interesses e aspirações humanas que devem por isso ser atendidos e não frustrados pela ausência ou desconhecimento de objetivo e rumo seguros da parte daqueles que se ocupam do assunto Mas onde encontrar esse objeto último e profundo da especulação filosófica para o qual converge e onde se concentra a variegada problemática de que a filosofia vem através dos séculos e em todos os lugares se ocupando e de que trata É muito importante determinálo porque isso pouparia esforços que tão frequentemente se perdem em indagações inúteis ou mal propostas e que concentrados na direção de um alvo legítimo e claramente definido reuniriam um máximo de probabilidades de atingirem esse alvo ou pelo menos de o aproximarem Existirá contudo esse objeto central e legítimo de toda a especulação filosófica um denominador comum que embora disfarçado e mal explícito orienta mais ou menos inconscientemente aquela especulação Acredito que sim e a sua determinação constitui tarefa necessária e preliminar da indagação filosófica e certamente mesmo que não chegue logo a uma precisão rigorosa se é que ela é possível será por certo de resultados altamente fecundos O ponto de partida dessa determinação deve ser para nada perder em objetividade a consideração e o exame do próprio conteúdo e desenvolvimento daquilo que se tem por pesquisa filosófica e do conhecimento em geral Mais comumente a filosofia é ti da como uma complementação da ciência e da elaboração cognitiva em geral como seu coroamento e síntese Esse conceito da filosofia se encontra aliás mais ou menos expressamente formulado em boa parte das definições e explicações que dela se dão e partidas dos mais afastados e mesmo antagônicos quadrantes Até mesmo o século XVIII e talvez o seguinte filosofia ainda se confundia com ciência e das filosofias particulares como a filosofia química que não é senão a nossa química simplesmente passavase imperceptivelmente para assuntos gerais que se enquadrariam melhor naquilo que hoje entenderíamos mais especificamente como filosofia Que a filosofia é conhecimento e que de certa forma se ocupa dos mesmos objetos que as ciências em geral não há dúvida Mas tudo está nessa restrição de certa forma Isso porque a filosofia não é e não pode ser logo veremos por que simplesmente prolongamento da ciência uma super ciência que a ela se sobrepõe e que a completa Não há lugar para esse simples prolongamento Ou melhor qualquer legítimo prolongamento da ciência é e sempre será tudo indica ciência e não outra coisa Isso se pode concluir do fato que o desenvolvimento da ciência quando se excluem indevidas extrapolações se faz sempre num sentido único que é o da crescente generalização E não há nenhum ponto fixado no passado ou previsível no futuro nem mesmo fronteira difusa naquele processo além do qual não caberia mais falar em ciência propriamente A história da ciência nos mostra que sua marcha e seu progresso vão uniformemente no sentido da elaboração de conceitos ou melhor conceituação cada vez mais abstrata e geral Isto é de sistemas conceptuais mais inclusivos que por isso mesmo cobrem e representam conjuntos mais amplos da realidade universal não no sentido de mais extensos simplesmente quantitativamente maiores e sim mais complexos e abrangentes de feições mais diferenciadas Comparemse a esse propósito os dois setores do conhecimento que se encontram contemporaneamente nos extremos da linha ascendente do progresso científico de um lado as ciências sociais de outro as físicas No primeiro desses setores encontramo nos em face de um conhecimento empírico ainda solidário diretamente com dados imediatos da observação e experimentação A conceituação representativa desses dados que refletem os fatos sociais é de insignificante generalidade os conceitos que a constituem se entrosam mal e frouxadamente entre si e não se englobam em sistemas amplos capazes de formar por sua vez outros tantos conceitos de mais elevado nível de abstração e generalidade Confrontese essa situação com a das ciências físicas e de seus imponentes sistemas conceptuais que cobrem e compreendem representandoos conceptualmente extensos e amplamente diversificados aspectos e feições da realidade universal Considerese em particular o progresso recente dessas ciências no sentido de uma precipitada generalização que já hoje compreende embora ainda falte um bom caminho para a complementação e integração sistemática total do assunto o conjunto das ciências físicoquímicas que há algumas décadas ainda se confinavam em esferas estanques e impenetráveis umas às outras Observandose esses fatos da marcha progressiva do conhecimento e da ciência o que se verifica é a homogeneidade desse progresso E daí se pode concluir a respeito da homogeneidade também do conhecimento científico de sua natureza caráter e estrutura que são sempre uniformes e do mesmo padrão Onde pois o hiato ou transformação qualitativa suficientemente acentuado para justificar nesse processo de desenvolvimento e aprofundamento do conhecimento a eventualidade da fixação de limites além dos quais já não se trataria mais de ciência e sim de outra disciplina Outra ordem de conhecimento que caberia à filosofia Essa indagação sem resposta plausível leva à conclusão de que a filosofia não é e não pode ser simples prolongamento do conhecimento científico nada mais que um ponto de vista mais geral e amplo mas essencialmente de igual natureza dos mesmos objetos de que se ocupa a ciência É simplesmente ciência e não há por que incluíla em outra ordem de conhecimentos além da ciência A filosofia será outra coisa ou então não tem razão de existir Aquilo de que se ocuparia um simples prolongamento ou generalização do conhecimento científico não merece outro nome que ciência simplesmente Em outras palavras e mais sumariamente é pelo objeto pela matéria ou assunto de que se ocupa que a filosofia para ter existência própria e se legitimar se há de distinguir Não seria simplesmente pela maneira pelo método específico de tratar do mesmo objeto das ciências que se justificaria uma ordem distinta de conhecimentos que caberiam então à filosofia Se o objeto da filosofia é identicamente o mesmo que o das ciências a saber os fatos e as feições do Universo em geral não haveria mister dela e a própria ciência daria conta da tarefa Isso porque a elaboração do conhecimento não segue caminhos diversos ou não deveria seguilos um que seria o ordinário da ciência outro distinto deste que se observa correntemente na elaboração científica e que por ser assim distinto caberia à filosofia É certo que a elaboração científica se realiza por meio de procedimentos vários que a rigor se poderiam considerar métodos diferentes Os tratados usuais da lógica elementar costumam considerar e enumerar esses métodos se é que merecem a designação Mas essas diferenças não são essenciais Tratase antes de técnicas digamos assim de investigação e exame dos fatos considerados Táticas ou estratégias por assim dizer de abordagem desses fatos pela inquirição científica O essencial do processo de elaboração científica digna desse nome e legítima é fundamentalmente o mesmo em qualquer terreno O que se procura e o que se obtém com essa elaboração não somente não apresenta disparidade essencial alguma como não se percebe ou concebe onde e de que modo essa disparidade se poderia insinuar Não é com ela pois que se logrará discernir e determinar uma ordem de conhecimentos distintos dos da ciência e necessitando por isso de outra disciplina que seria a filosofia É assim pelo seu objeto e somente por ele que a filosofia se há de distinguir da ciência e com isso se legitimar como disciplina à parte Mas se à ciência cabe como objeto a realidade universal isto é o Universo e seu conjunto de ocorrências feições circunstâncias que envolvem e também compreendem o homem o que ficará de fora para eventualmente constituir objeto próprio da filosofia Notese que estamos aqui empregando a expressão ciência onde deveríamos com mais propriedade dizer conhecimento Isso porque ciência não é senão conhecimento sistematizado e advertida e intencionalmente elaborado não se distinguindo senão por essa sistematização em nível elevado e elaboração intencional do conhecimento comum ou vulgar aquele de que todo ser humano é titular por mais rudimentar que seja seu nível de cultura O conhecimento é essencialmente de uma só natureza e por mais elementar e grosseiro que seja tem fundamentalmente o mesmo caráter do mais complexo e refinado conhecimento científico Não há aliás nenhuma fronteira marcada ou possível de marcar nessa complexidade nem mesmo separação possível pois o conhecimento científico de hoje será o vulgar de amanhã Assim sendo as nossas considerações acima se aplicam não especialmente ao conhecimento científico e sim ao conhecimento em geral ocupe ele o plano hierárquico e o nível de importância que ocupar E reformulando nessa base a nossa questão diríamos qual o possível objeto do conhecimento que não seja objeto do conhecimento Pergunta aparentemente sem sentido dentro dos cânones lógicolinguísticos ordinários mas que se resolve simplesmente e veremos que historicamente também no fato de que além do conhecimento dos objetos ordinários do conhecimento as feições e ocorrências do Universo em que existimos e de que participamos pode haver e efetivamente há ainda reflexivamente um conhecimento do próprio conhecimento Realmente é o que se verifica no desenvolvimento histórico do pensamento humano logo que o progresso do conhecimento atinge certo nível Isto é um retorno reflexivo da elaboração cognitiva sobre si mesma passando o próprio conhecimento a se fazer objeto do conhecer Fato esse suficientemente marcado para dar lugar a uma ordem de cogitações bem caracterizadas e distintas do conhecimento ordinário E se bem que pensadores e elaboradores do conhecimento não se tenham desde logo dado plenamente conta da diferenciação e partição interior dos objetos de que se ocupavam do que aliás resultariam malentendidos e confusões de largas consequências a sua obra não deixará de refletir a duplicidade do assunto tratado e o novo rumo que tomava o pensamento e a elaboração do conhecimento isto é a par do conhecimento a do conhecimento do conhecimento O que cronologicamente coincide no Mundo Antigo e não terá sido por certo uma simples coincidência com a eclosão daquilo que seria havido como filosofia Veremos isso com suficiente clareza para uma primeira abordagem do assunto assim penso numa sumária recapitulação a largos traços das linhas mestras e momentos culminantes e decisivos do pensamento e da elaboração do conhecimento nas sociedades que mais contribuíram até os nossos dias para a evolução em conjunto e conformação da cultura moderna e que vem a ser aquela que brotada no seio das civilizações do Mediterrâneo oriental se difundiria pela Europa ocidental e daí para o mundo todo Mas em que consiste ou pode consistir esse conhecimento do conhecimento cuja gênese e vicissitudes sofridas no curso de sua evolução se trata para nós aqui de examinar Ou em outras palavras que vem a ser conhecimento como objeto do conhecimento Em primeiro lugar está claro a natureza do conhecimento seu processamento Dito de outro modo o que vem a ser o fato ou ato de conhecer e como se realiza esse fato qual a sua sequencia sua gênese seu desenvolvimento e seu desenlace em que vai dar Isto é como se apresenta e configura na sua conclusão como corpo de conhecimentos para o qual o processo afinal se dirige e em que se torna São essas as questões que se agrupam na disciplina ordinariamente conhecida por teoria do conhecimento epistemologia ou mais genericamente gnosiologia Disciplinas essas que constituem segundo consenso generalizado capítulos da filosofia Até aí portanto não haverá divergências apreciáveis que começam daí por diante Há os que restringem a filosofia a isso mesmo e até menos como os logicalistas que fazem da própria teoria do conhecimento e pois da filosofia que a ele se reduziria uma simples análise lógicocrítica da linguagem ou simbolismo em que o conhecimento e a ciência em particular se exprimem Essa concepção contudo é restrita a reduzidos círculos Em regra pelo contrário a teoria do conhecimento em si ocupa oficialmente um lugar secundário e diríamos quase marginal da filosofia que a julgar pelos assuntos nela tratados ou pelo menos sob sua responsabilidade tem voz em qualquer terreno duplicando de certa forma com isso o papel da ciência cujo objeto não se distinguiria essencialmente do seu filosofia e ciência distintas embora quanto à perspectiva em que respectivamente se colocam e ao método ou antes estilo que adotam se ocupariam uma e outra da mesma realidade universal Já lembramos essa universalidade da filosofia bem como a confusão reinante no seu ponto de partida entre os objetos respectivos do conhecimento que seria em particular a ciência e o conhecimento do conhecimento ou filosofia Confusão essa que se prolongará sob muitos aspectos embora progressivamente se atenuando até os dias de hoje Notamos também que em princípio e em frente aos fatos do desenvolvimento histórico da ciência essa pretensão da filosofia de se ocupar com assuntos da alçada da ciência não se justifica Nesse ponto os logicalistas que partem dessa questão para seu programa de limitação do campo da filosofia têm plena razão Quando a filosofia se ocupa dos objetos da ciência a saber das feições e dos fatos do Universo suas conclusões são sempre desmentidas em prazo mais ou menos dilatado mas sempre fatal Como se depreende claramente da história da ciência e sobretudo da física moderna a filosofia ou antes os filósofos no que se refere à sua atuação no campo científico não têm feito mais que consagrar velhas e ultrapassadas concepções disfarçandoas em princípios absolutos com pretensões à validade eterna É sob esse disfarce que as rudimentares e grosseiras noções físicas de Aristóteles atravessaram os séculos e mais tarde a mecânica newtoniana foi erigida em verdade final e absoluta Assim tem sido porque tratando de objetos que não são seus e portanto sem condições para fazêlo a filosofia não podia dar como não deu em outra coisa que vestir hipóteses científicas de trajes filosóficos fazendo deles princípios dentro dos quais aquelas hipóteses se petrificam na sugestiva expressão de P Franck1 A filosofia embora ultrapassando largamente aquilo que de ordinário se trata na teoria do conhecimento conservase dentro e no âmbito do conhecimento como objeto Isto é enquanto a ciência e o conhecimento em geral em que a ciência constitui o setor organizado e sistematizado têm por objeto as feições e ocorrências do Universo que envolvem o homem e de que ele também participa o objeto da filosofia é precisamente esse conhecimento de tais feições e ocorrências É assim conhecimento desse conhecimento E isso não apenas por ser essa para a filosofia a perspectiva própria para a consideração e exame das questões que nela legitimamente se propõe Mas ainda e sobretudo porque esse tem sido o seu campo de ação mesmo quando por uma falsa perspectiva e involuntária confusão aparenta dela se afastar A filosofia sempre se ocupou de fato do conhecimento em si e todas suas implicações embora frequentemente julgue ou melhor julgam os filósofos seus autores estarem tratando de outro objeto É aliás dessa confusão que resultam e sempre têm resultado os malentendidos que viciam a especulação filosófica e a tornam em tão grande parte e alto grau imprecisa e ambígua infestada de debates estéreis e questões inúteis e insolúveis O que além do mais faz perder de vista ou propõe de forma defeituosa algumas das questões essenciais da filosofia Bem como perturba a elaboração científica como tão frequentemente tem acontecido como teremos ocasião de referir e já foi lembrado no caso da filosofia de Aristóteles e da mecânica de Newton Vejamos como isso ocorre Procurarei aqui clarear e explicar a confusão básica que vicia a generalidade da especulação filosófica para em seguida mostrar como ela efetivamente se vem verificando no curso do desenvolvimento histórico da filosofia O conhecimento como objeto do conhecimento se propõe em sequencia ao conhecimento da realidade universal exterior ao pensamento elaborador2 Esse conhecimento da realidade se apresenta na conceituação que elaborada na base da experiência do indivíduo pensante reflete ou melhor representa na esfera mental desse indivíduo pensante as feições e ocorrências da realidade Desse primeiro momento ou nível da atividade cognitiva isto é a elaboração da conceituação representativa da realidade o instrumento dessa atividade que é o pensamento elaborador do conhecimento se volta sobre si próprio e toma reflexivamente por objeto aquele mesmo conteúdo conceptual ou conhecimento por ele elaborado Tratase de uma posição como que crítica que objetiva de um lado e entre outros aferir de um modo geral a segurança e ponderar o valor e alcance do conhecimento adquirido e por adquirir e de outro visa e se propõe dar ao conhecimento expressão conveniente em especial e fundamentalmente pela linguagem discursiva e ordenar e sistematizar a conceituação que compõe o conhecimento Isso tudo para no contexto geral do processo cognitivo alcançar o seu fim primordial que é o do conhecer como função e constituinte essencial da natureza humana fim primordial de determinar e orientar devidamente o comportamento do homem Não entraremos aqui no pormenor desses pontos a fim de não particularizar a exposição e com isso perder de vista o conjunto e o essencial do assunto que diretamente aqui nos interessa e que vem a ser a duplicidade dos níveis em que opera o pensamento elaborador do conhecimento e o que essa duplicidade significa Repetindo temos de um lado como ponto de partida o nível do conhecimento direto e imediato das feições e ocorrências da realidade que se trata de conhecer isto é aquilo que ordinariamente entendemos simplesmente por conhecimento e ciência em particular Temos de outro e em seguida um segundo nível sobreposto ao primeiro e no qual o pensamento se ocupa já não diretamente com as feições e ocorrências da realidade mas com o conhecimento acerca dessas feições e ocorrências No primeiro nível o pensamento estará se aplicando à esfera objetiva e exterior ao ato pensante3 no outro se aplicará a si próprio ou antes ao seu conteúdo e notese bem propriamente como seu conteúdo já desligado da realidade que representa conteúdo de conhecimento ou conceituação representativa da esfera objetiva e elaborada no curso de sua atividade no primeiro nível Mas aplicandose embora ao seu conteúdo de conhecimento e conceituação ou seja à esfera subjetiva o pensamento irá por força se referir ainda que indiretamente aos objetos daquele conhecimento que são repetimos as feições e ocorrências da realidade que lhe são exteriores Isso é óbvio pois pensamento ou conhecimento não existem em estado puro e vazio de representação conceptual das feições e ocorrências do Universo Não existem mesmo tais quais faculdades potenciais do indivíduo pensante e conhecedor à parte dessa representação que lhes concede a substância de que se constituem Essa situação é por sua própria natureza fonte de confusão entre as duas esferas a subjetiva e a objetiva E deriva daí a impressão e ilusão que tão fortemente se ancoraria na filosofia e que consiste em tratar de um objeto julgando tratarse de outro Ou melhor simplesmente ignorar a distinção e oscilar dubiamente entre um e outro ocuparse do conhecimento e da conceituação que o compõe como se tratasse das feições e ocorrências da realidade exterior ao pensamento representado conceptualmente por aquele conhecimento Caso flagrante disso que refiro a título de ilustração bem esclarecedora dessa confusão é o conceito matéria que vem constituindo através dos séculos um dos principais divisores do pensamento filosófico e a respeito do qual as partes que contendem incessantemente não conseguem sequer fixar com clareza o que está sendo debatido O que torna o debate no mais das vezes em infindáveis monólogos que se desenrolam paralelamente uns aos outros e sem correspondência no mais das vezes entre si Cada qual trata respectivamente de assuntos que não coincidem embora essa coincidência esteja sendo presumida O desentendimento nesse caso tem suas raízes na consideração de matéria de ângulos distintos em que se mesclam em proporções várias conforme os filósofos de um lado a perspectiva de algo exterior e que a expressão matéria designaria substância corpórea ou sensível componente primário e original do Universo subtratum de todas as coisas de outro lado o conceito propriamente de matéria como se dá quando se trata de contrastar o conceito matéria com outros conceitos como seja espírito ideia forma ou então quando com o conceito de matéria se integra um sistema conceptual como se dá com a noção aristotélica de potencialidade para receber forma Notese bem que não se trata aí unicamente nem mesmo essencialmente de diferença de sentido de acepção da palavra matéria pois se fosse apenas isso o acordo ainda seria possível pelo menos no que se refere às premissas da discussão seu ponto de partida A divergência é muito mais profunda pois diz respeito à localização digamos assim daquilo que se designa por matéria Localização essa que nos casos extremos mais puros será alternativamente ou entre objetos ou feições naturais exteriores ao pensamento ou no caso contrário entre elementos conceptuais Na maioria dos textos filosóficos em que ocorre o conceito matéria um exame atento e devidamente alertado revela essa indistinção entre o conceito propriamente e em si de um lado e de outro o objeto da realidade exterior que ele representa ou que deveria ou poderia referir e representar Naturalmente os filósofos julgam sempre ou parecem julgar ao se referirem à matéria estar tratando de objetos exteriores ao pensamento e incluídos na realidade e nas feições do Universo Mas o que efetivamente estão fazendo no caso da matéria como no de outro conceito qualquer da mesma natureza ambígua é projetar seu pensamento e conceituação no mundo exterior e tratar assim como incluído nesse mundo exterior o que realmente constitui um fato de seu pensamento um conceito4 A confusão entre esfera subjetiva e objetiva vai dar assim na projeção da primeira na segunda a projeção da conceituação no mundo exterior ao pensamento Fato esse que tem papel essencial em todo desenvolvimento histórico do pensamento humano Podese mesmo dizer que o comum das concepções gerais acerca da realidade isso tanto no nível da filosofia e da ciência como no das concepções vulgares se acha fortemente influenciado por essa verdadeira inversão idealista pela qual se recria no exterior do pensamento um mundo feito à imagem desse pensamento Isto é modelado e configurado segundo padrões conceptuais Engels o primeiro que eu saiba a assinalar essa inversão idealista assim a descreve Primeiro fabricase tirandoo do objeto o conceito desse objeto depois invertese tudo e medese o objeto pela sua cópia o conceito5 Daqueles padrões conceptuais pelos quais se modela a realidade o mais importante é naturalmente o da linguagem discursiva na qual e por meio da qual a conceituação no mais das vezes se formaliza e exprime6 Essa a razão principal por que encontramos a nossa concepção corrente e ordinária do Universo fundamentalmente conformada por estruturas verbais É pelas formas verbais que o realismo ingênuo que espontaneamente e na base de nossa educação e formação ordinária é de todos nós enxerga o Universo e o interpreta e é na base delas que se dispõem as feições e ocorrências da realidade universal É daí que deriva entre outras a noção de um mundo constituído de coisas e entidades bem discriminadas e separadas entre si coisas e entidades essas de cujas qualidades e comportamento resultam os fatos as feições e as circunstâncias em geral do Universo Mal se disfarça nessa concepção ingênua e integrada tanto no pensamento filosófico profissional como no ordinário e vulgar mal se disfarça aí o modelo que o inspira a saber a estrutura gramatical do sujeito e predicado e seus elementos constituintes essenciais substantivo adjetivo verbo Temos aí os materiais com que se constitui e concebe ordinariamente o Universo com as circunstâncias que nele se verificam e ocorrem Os substantivos se farão nas coisas e entidades em que o Universo é discriminado e dividido os adjetivos serão as qualidades com que se revestem aquelas coisas e entidades e os verbos finalmente designarão e a rigor serão mesmo a ação das mesmas coisas e entidades ação essa com que se descreverá o comportamento do Universo Essa maneira de proceder isto é de inverter a ordem do processo do conhecimento que originandose na realidade exterior ao pensamento elaborador retorna e se projeta afinal sobre essa mesma realidade e a modela segundo seus padrões esse procedimento tem na filosofia raízes tão fortes que a encontramos mesmo naqueles setores que mais diligentemente procuraram se libertar dos preconceitos e distorções da filosofia clássica que vem a ser aliás a metafísica aristotélica que consagrou filosoficamente e projetou pelos séculos afora e até nossos dias como aliás veremos adiante a confusão das esferas subjetiva e objetiva do pensamento e conhecimento Assim os logicalistas que fundamentalmente visavam desfazer aquelas distorções por meio do correto emprego da linguagem simbólica perfeitamente construída e são essa correção e perfeição que sobretudo visam em seus trabalhos acabam concebendo e construindo com todas as peças esse mundo idealmente modelado para ser adequadamente descrito por aquela linguagem perfeita por eles pretendida A abertura do Tractatus lógicophilosophicus o evangelho podese dizer do logicalismo de Wittgenstein nos dá conta desse mundo ideal num encadeamento de proposições tal qual normas de um texto legal segundo o estilo tão característico do autor cuja inspiração em modelos c padrões puramente gramaticais é patente e inconfundível Numa consideração bem alertada e atenta interpretação do desenvolvimento histórico da filosofia vamos encontrar a comprovação não somente de que o verdadeiro objeto dela é o conhecimento em si e não dos objetos desse conhecimento que são os fatos as feições ou as circunstâncias em geral da realidade exterior ao pensamento elaborador embora frequentemente e mesmo no mais das vezes isso tenha passado despercebido veremos não somente isso mas ainda que foi e ainda é precisamente essa incompreensão ou falta de rigorosa discriminação entre as esferas objetiva e subjetiva que se encontra na base dos malentendidos e das confusões que permeiam e viciam o pensamento filosófico tornando tão precária a realização da tarefa que lhe incumbe Como foi notado e procuraremos comproválo agora com os fatos históricos a filosofia tem suas origens e ponto de partida quando o pensamento investigador do homem se volta reflexivamente sobre si próprio e seu conteúdo de conhecimentos já elaborados e conceituados ou em via de elaboração a fim de aferilos compreender o processo de sua elaboração concederlhe segurança e orientação adequada para a utilização prática a que se destinam E para realizar isso organizálos e concatená los devidamente na sua expressão verbal Transferese então o pensamento investigador para outro nível Isso é da consideração das feições e dos fatos da realidade exterior bem como da atividade elaboradora do conhecimento dessa realidade passase para a consideração desse mesmo conhecimento em si e processo de sua elaboração Isso contudo não se perceberá plenamente desde logo dando lugar à confusão das esferas subjetiva objeto da filosofia e objetiva objeto da ciência E com isso se baralham os distintos níveis de elaboração do conhecimento Observemos essa sequencia de fatos históricos e as primeiras manifestações do malentendido e da confusão que viciariam daí por diante o pensamento filosófico já no desabrochar da filosofia grega Nesse prelúdio do que seria a matriz principal de todo pensamento ocidental através dos séculos verificase muito bem aquela transição da elaboração cognitiva para novo nível que será o da filosofia que então se inaugura Esse momento se situa nos chamados físicos de Mileto e vaise sobretudo revelar na natureza do problema central proposto por esses precursores da filosofia grega e que seria o seu ponto de partida A saber o problema da substância universal que daria origem a todas as coisas e as teria constituído Tales dirá como se sabe que é a água Anaxímenes o ar Anaximandro uma substância indefinida apeiron Como se explica a proposição desse problema da existência de uma substância universal originária de todas as coisas É o que não tem preocupado devidamente os historiadores da filosofia como se a questão se apresentasse espontaneamente e fatalmente sem necessidade de maior explicação Entretanto as circunstâncias em que ela se propõe tanto seus antecedentes como seu desenvolvimento futuro nos dizem muita coisa a respeito e mostram que o pensamento grego se engajara aí em nova direção que embora preparada e condicionada pelo que a precedera assumia outro sentido bem diverso do anterior Os milésios trouxeram grande contribuição como se sabe para a ciência e o conhecimento dos fatos da natureza Mas o tema que os ocupa centralmente e que diz respeito à substância constituinte do Universo representa sem dúvida alguma coisa bem diferente e um novo caminho imprimido a seu pensamento Constitui erro assim penso e imperdoável anacronismo considerar como frequentemente se tem feito ou pelo menos insinuado que os pensadores gregos estivessem preocupados com a substância ou o elemento constituinte do Universo com o mesmo espírito com que os físicos da atualidade e de um século para cá investigam as partículas ou outras ocorrências de cujas estruturas disposição e comportamento no plano microscópico resultam os fatos observados no plano macroscópico que é o nosso usual de todos os dias Estruturas e comportamento esses com que se torna possível explicar tais fatos ou antes representálos conceptualmente mentalmente e formalizar e exprimir essa representação que os descreve por meio do simbolismo matemático Evidentemente preocupações dessa natureza eram completamente estranhas como não podia deixar de ser aos pensadores gregos Nem possuíam eles lastro suficiente de conhecimentos para cogitar delas tampouco a maneira de propor o assunto e em seguida desenvolvêlo apresentam a mais remota analogia com o que ocorre nos procedimentos da ciência de nossos dias De fato o que os pensadores que se ocupam do assunto têm em mira é essencialmente uma questão gnosiológica que constituirá o pano de fundo de todo debate e tema central da filosofia grega em geral Já em outra oportunidade procurei desenvolver esse assunto7 que consiste resumidamente no seguinte Tratase em suma e esquematicamente de explicar como neste mundo tão variado e em permanente fluxo e transformação onde as feições naturais se apresentam aos sentidos não somente sob tal multiplicidade de aspectos a ponto de nunca se assemelharem perfeitamente entre si como também porque se modificam sem cessar tratase assim de explicar como é possível neste mundo tão variado e variável multiforme e em fluxo e transformação permanentes como é possível um verdadeiro e legítimo conhecimento que implica uniformidade e permanência condições essas indispensáveis para a caracterização e identificação dos objetos daquele conhecimento Todo conhecimento começa necessariamente por essa caracterização e identificação dos objetos que se trata de conhecer o que somente é concebível na uniformidade e estabilidade deles Os milésios responderão a essa questão que é como se vê fundamentalmente gnosiológica trata se no essencial de estabelecer e fixar as condições do conhecimento8 com a sua substância material ou assemelhada que preencherá para eles a função de representar o substrato permanente e estável do Universo que faz possível o conhecimento Com isso os milésios davam bem mostra da ingenuidade de suas concepções ainda presas inteiramente a um nível rudimentar e grosseiro de conhecimento não liberto do empirismo de seus começos e confundido por isso com os dados diretos e imediatos dos sentidos com que o homem entra em primeiro e original contato com a realidade exterior Uma nova geração de pensadores mais maduros que segue esses precursores e se inaugura na segunda metade do VI século aC procurará dar à questão uma resposta mais profunda embora a mesclem ainda em grandes proporções com as grosseiras concepções derivadas dos milésios concepções essas que somente desaparecerão na obra de Platão A multiplicidade e instabilidade das feições naturais serão por eles atribuídas à ilusão enganadora dos sentidos Por trás dessa ilusão dirão eles se abriga a verdadeira realidade onde se encontram a uniformidade e permanência que se trata de apreender e que proporcionarão o legítimo conhecimento A identidade desse princípio ideal ou pelo menos semiideal como é o caso dos mais antigos pensadores dessa fase princípio unificador da natureza variará segundo os filósofos serão os números para Pitágoras o SER para Parmênides o Lagos para Heráclito o Nous para Anaxágoras Mas seja qual for a natureza atribuída ao princípio unificador ele mal disfarça e em última instância se confunde sempre com o pensamento E a solução do problema da uniformidade na multiplicidade e da permanência no fluxo das coisas e feições do Universo se transferirá para o plano do pensamento do homem exibindose com isso a natureza do que seria a filosofia e seu objeto que não consistia como poderia às vezes parecer à primeira vista e nas concepções grosseiras dos milésios podia mesmo iludir não consistia nas feições da natureza O objeto de que se ocupam os pensadores que mereceram e com acerto a qualificação de filósofos pois de outra forma seriam como realmente os houve simplesmente homens de ciência esse objeto eram o pensamento e o produto da elaboração desse pensamento que vem a ser o conhecimento Isso é patente sobretudo e por isso o destacamos aqui naquela concepção que mais se projetaria no futuro desenvolvimento da filosofia e durante séculos constituiria podemos dizer seu tema central Refirome ao SER de Parmênides que é afinal e sem embargo da tempestade verborrágica que a metafísica desencadearia em torno do assunto9 não é senão expressão geral e formal da operação mental com que se qualificam e identificam as feições da natureza e com isso se caracterizam determinam e fixam O SER é originariamente a cópula verbo com que formalmente se exprime a qualificação e se designa a identificação a árvore é um vegetal o homem é racional isto com que escrevo é uma esferográfica Não pode haver dúvida que Parmênides pressentiu com sua concepção confusamente embora mas com mais clareza que qualquer de seus contemporâneos que a questão central proposta pelos milésios se situava efetivamente no plano conceptual Que se tratava para empregarmos uma linguagem no caso anacrônica de um problema da teoria do conhecimento O pressentimento de Parmênides que aliás ficará nisso degenerando em sua esdrúxula e grosseira imagem de uma esfera imóvel sem princípio e sem fim encontrará seu intérprete em seguimento aos sofistas e sobretudo Sócrates em Platão Não vamos aqui entrar no exame da filosofia platônica Ela se resume no essencial podese dizer na observação de Raphael Demos A filosofia de Platão se sumariza na vida da razão10 Não importa que Platão tenha hipostasiado a razão fazendo dela um mundo suprassensível à parte o mundo das ideias que faz contrapeso e contrasta com o mundo sensível que constitui o protótipo de que esse mundo sensível não é senão imperfeita reprodução Esse mundo das ideias não é senão o pensamento a função pensante e a atividade racional do homem E é desse pensamento disfarçado sublimado e substancializado que o filósofo se ocupa E se ocupa num exame que desbastado do floreio em que este poeta que foi Platão o envolve revela efetivamente e com precisão e segurança alguns dos aspectos essenciais da atividade do pensamento na estruturação do conhecimento Em particular o processo mental da identificação e qualificação fundamento e ponto de partida de toda atividade racional na elaboração e expressão do conhecimento encontra em Platão um analista seguro E foi a compreensão desse processo que permitiu a Platão abrir as perspectivas para a formulação da lógica formal que já delineada e potencialmente contida na obra do filósofo será desenvolvida por seu discípulo e sucessor Aristóteles que lhe dará forma final e acabada Se alguma dúvida houvesse nos filósofos que antecederam Platão e lhe prepararam o caminho acerca da natureza e do objeto da filosofia nesta sua fase preliminar e ponto de partida do que seria o pensamento grego essa dúvida se desfaz inteiramente na consideração e no exame da obra platônica que consistiu em continuar e prolongar a linha de desenvolvimento daquele pensamento procurando e com grande sucesso dar resposta às perguntas nele propostas Aquilo de que Platão se ocupa em continuação aos pensadores que o precederam e que constitui o objeto essencial e fundamental de sua obra contribuição máxima para a cultura são o pensamento e o conhecimento tal como nós hoje o conceituamos O seu ponto de partida e questão primeira que a ele se propõe é a mesma de toda a filosofia grega desde seu nascedouro com os milésios e centralizada como vimos no problema da unidade e permanência na diversidade e fluxo em que a natureza se apresenta aos sentidos unidade e permanência essa que já se fixara no consenso geral ou pelo menos decisivamente dominante no SER de Parmênides que não vem a ser senão isso também se consagrara o universal idêntico e permanente em contraste com o particular dado na percepção sensível e diverso e em transformação constante Universal que se revela e representa na ideia no conceito É daí que Platão parte O que traduzido para nossa linguagem ordinária e corrente vai dar em que as ideias do platonismo não são outra coisa mais que aquilo que entendemos por conhecimento Platão exterioriza suas ideias e lhes concede uma existência extrahumana Mas vistas mais de perto e no quadro de nossas concepções atuais que têm atrás de si a alimentálas e a lhes darem base não o esqueçamos a longa experiência aprendizagem e progresso cultural e científico milenares de que somos herdeiros tais ideias são apenas e simplesmente as nossas ideias vulgares conceitos cujo conjunto constitui o conhecimento A análise que Platão faz das ideias procurando determinar a sua natureza e estruturação a disposição relativa em que elas em conjunto se articulam e entrosam entre si sua derivação e filiação umas das outras e aí Platão apresenta um dos capítulos mais fecundos de sua obra quando entre outros no sofista considera a classificação isto é a operação mental de classificar tudo isso significa na realidade análise do conhecimento e da sistemática conceptual em que os conhecimentos se apresentam É desse conhecimento portanto que Platão e mais que ele a própria filosofia para cujo embasamento e constituição o platonismo tanto contribuiu é disso que se trata A filosofia como conhecimento do conhecimento se revela aí claramente Podese mesmo dizer que Platão embora envolvendo suas concepções num manto de misticismo e fantasia literária que lamentavelmente as ofusca e muitas vezes lhes torce o sentido profundo bem como disfarça o que deveria ser sua contribuição mais fecunda para a devida proposição das verdadeiras questões da filosofia podese dizer que Platão teve a intuição e marcou com um máximo de clareza para um precursor a distinção entre conhecimento e conhecimento do conhecimento entre ciência e filosofia Desenvolvendo uma noção já em germe nos filósofos seus antecessores e particularmente em Parmênides que separava o conhecimento da simples opinião Platão que emprega aliás as mesmas designações acentua o objeto daquelas duas esferas A primeira objetivaria as imagens dados sensíveis a outra as ideias constituindo esta outra a cumeeira do saber11 Não é difícil para nós hoje em dia identificar atrás dessa distinção aquela que efetivamente ocorre entre o que designamos por ciência e filosofia a primeira ocupandose com os dados experimentais colhidos na consideração direta das feições e ocorrências da Realidade e a filosofia com as ideias diríamos melhor conceitos ou representações mentais daquela realidade exterior carreada pela experiência Só que Platão inverte a nossa ordem de precedência processamento e estrutura do conhecimento para ele as imagens ou os dados da experiência são reflexos ou cópias aproximadas e imperfeitas das ideias enquanto para nós isto é à luz das concepções científicas de nossos dias se bem que ainda sobrem idealistas que pensam diferentemente e embora nem sempre com muita consciência disso aproximamse mais de Platão são as ideias que constituem reprodução ou melhor representação da Realidade A distinção entre conhecimento e conhecimento do conhecimento aí está E tivessem os sucessores de Platão insistido nesse ponto logrando ao mesmo tempo despir o platonismo do véu místico que o envolve sem desprezar aquela distinção e outra teria sido talvez a marcha da filosofia Mas as coisas não estavam maduras para isso que viria gradualmente muito mais tarde na base do progresso científico como veremos adiante E pelo contrário quem desembaraçará o platonismo nisso com todo acerto de suas complicações místicas e envolvimento poético será ao mesmo tempo quem mais contribuirá para borrar a distinção nele feita entre ciência e filosofia Ou antes entre os objetos respectivamente de uma e outra esfera do saber Será esse Aristóteles que introduzirá ou pelo menos cuja obra servirá para fundamentar a grande confusão e malentendido que viciarão daí por diante e através dos séculos o pensamento filosófico E científico também E que ainda hoje encontram forte ressonância e reflexos poderosos Aristóteles elimina a distinção estabelecida por Platão entre os objetos da ciência e da filosofia empreguemos para cortar confusões a nossa terminologia moderna em substituição à de Platão para quem só a filosofia ou dialética a dele Platão constituía conhecimento E trazendo as ideias platônicas da esfera suprassensível em que se encontravam para as coisas do mundo sensível confunde assim o objeto do conhecimento com o conhecimento como objeto De fato Platão separara as ideias das coisas sensíveis que não seriam mais que cópias deformadas da verdadeira realidade daquelas coisas Tal como os círculos que traçamos ou que encontramos na realidade sensível como por exemplo os círculos concêntricos produzidos numa superfície dágua tranquila pelo impacto de uma pedra nela caída círculos esses que seriam uma reprodução aproximada mas imperfeita do círculo real que concebe a matemática Aristóteles integra aquelas ideias nas próprias coisas da realidade sensível Para ele o que Platão designa por ideias não são mais que diferentes maneiras com que concebemos as coisas e com isso Aristóteles descarta com grande acerto o misticismo platônico Mas essas maneiras de conceber as coisas ou seja as categorias do entendimento substância qualidade quantidade relação lugar tempo situação maneira de ser ação sofrida constituem para Aristóteles maneiras de ser das próprias coisas Isto é elas são tudo isso substância qualidade quantidade etc E não apenas se concebem e denominam como tal12 Em suma e exprimindonos em linguagem mais atualizada os conceitos e a conceituação com que representamos mentalmente a realidade exterior ao pensamento é incluída por Aristóteles nessa própria realidade É o que denominamos acima de inversão idealista que consiste em projetar as operações e fatos mentais na realidade extramental e exterior ao pensamento e nela integrandoos As representações mentais ideias ou conceitos se elaboram pelo pensamento a partir da realidade exterior que são as feições e ocorrências da natureza com que o indivíduo pensante se defronta A inversão idealista consiste em levar essas ideias ou conceitos que evidentemente não são aquelas feições e ocorrências e sim a sua representação no pensamento leválas de retorno às mesmas feições e ocorrências considerandoas nelas incluídas Lembramos como exemplificação da inversão idealista que ainda hoje é fator de não pouca confusão o caso do conceito matéria que de conceito se faz ou antes é feito em constituinte das coisas que compõem o Universo E ainda voltaremos ao assunto mais adiante É isso que Aristóteles faz e é o que viciará profundamente não só a filosofia subsequente mas ainda os hábitos ordinários de pensar e maneira de ver e de interpretar as coisas generalizadamente arraigadas em toda a cultura ocidental para cuja conformação Aristóteles direta ou indiretamente tanto contribuiu Embaraçará também a marcha da elaboração científica que somente ganhará impulso quando modernamente se libera da filosofia ou antes da metafísica em que a filosofia se envolvera Vejamos como Aristóteles desenvolve seu pensamento as conclusões a que chega e as consequências a que por elas é levado Platão seu mestre concentrara a uniformidade e permanência condição para os gregos como referimos do conhecimento no mundo das ideias fixas e estáveis e por isso distinto e separado do variegado mundo da percepção sensível mundo instável e em permanente fluxo e transformação E Platão assim procedera no depoimento do próprio Aristóteles num texto que já referimos antes porque se existe a ciência e o conhecimento de algo devem existir outras realidades além das naturezas sensíveis realidades estáveis pois não há ciência daquilo que está em perpétuo fluxo Tais outras realidades estáveis além do mundo sensível seriam as ideias Mas para Aristóteles que tem os pés mais firmes na terra que o sonhador e poeta que é seu mestre embora reconhecendo a necessidade para o conhecimento de uma base estável em que se apoiar e fundar para Aristóteles são precisamente outras realidades mas ao alcance da percepção sensível que se trata de desvendar conhecer e compreender É esse mundo dos sentidos variegado e aparentemente tão instável que cerca o homem e onde ele vive a natureza sensível como Aristóteles a denomina e que as ideias platônicas marginalizam é isso que importa E para o conhecimento da natureza sensível as ideias não são de nenhum auxílio13 Não será isolando a fonte do conhecimento da natureza sensível e isolandoa num mundo à parte de ideias como fez Platão não é assim que se alcançará aquela natureza sensível que é o que interessa segundo Aristóteles e que ele objetiva conhecer É graças aos princípios e com os princípios afirma Aristóteles que se conhece o resto14 E no esquema platônico os princípios ficariam naturalmente restritos ao mundo apartado e estanque de realidades estáveis as ideias que eles encarnam e exprimem É preciso assim substituir o esquema platônico e abrir caminho para comunicar o setor estável da realidade onde se situam o conhecimento e os princípios e que Platão apartara e isolara é preciso comunicálo com a natureza sensível que se trata de conhecer É o que fará Aristóteles estabelecendo a comunicação pela dedução do particular que é o dado na percepção sensível a partir do universal que substitui de certa forma a ideia platônica e que é o verdadeiro SER e seu conhecimento Dedução essa cujo processamento e método que será a sua grande realização Aristóteles vai buscar no exame do discurso a linguagem discursiva informandose para isso em especial nos modelos dialéticos debates orais de seus antecessores na matéria os sofistas e sobretudo nos diálogos de seu mestre Platão É num tal exame que Aristóteles logrará destacar e revelar os elementos ou formas essenciais da estrutura básica da linguagem discursiva Ou seja a maneira ou forma como se dispõe e interliga nos seus termos a expressão verbal capaz de pela sua coerência demonstrar com segurança e sem contestação possível opiniões ou teses defendidas e convencer com isso o interlocutor Circunstâncias essas que se admitiam a priori como prova incontestável do acerto a verdade das conclusões É com isso reduzido a normas precisas que Aristóteles constituirá a sua lógica que tem como núcleo central como se sabe o silogismo Precisamente o instrumento que Aristóteles necessitava para realizar sua almejada dedução do particular a partir do universal Isto é o entrosamento e a sequencia verbal coerente não contraditório de uma para outra das expressões verbais daqueles dois termos da operação dedutiva respectivamente o universal e o particular É na base e com a manipulação dessa sua lógica que Aristóteles procurará a sistematização dos conhecimentos do seu tempo e entrosamento dedutivo da expressão verbal deles Tarefa que muito pouco tem de científico propriamente no sentido de que hoje se dá à ciência e sua elaboração afora a coleção dos parcos dados empíricos existentes na época e ao alcance de Aristóteles no que aliás ele se mostra muito bem informado E constitui de fato tentativa e ensaio o que era aliás o que Aristóteles pretendia embora sem muito discernimento do que realizava ensaio de modelo de entrosamento dedutivo daqueles dados empíricos dentro da sistemática conceptual e sua expressão verbal implícitas nos conhecimentos do seu tempo e que ele soube em suas linhas gerais revelar O método que Aristóteles emprega para o estudo dos fenômenos fatos físicos observa um dos mais modernos tradutores e autorizados comentaristas dos textos aristotélicos é antes de tudo dedutivo e sistemático Nas Meteorológicas como em toda sua obra Aristóteles julga que uma explicação verdadeira não pode ser senão racional15 Isto é apresentado de maneira formalmente coerente que vem a ser aquilo que ordinariamente chamaríamos de lógico E poderíamos acrescentar o inverso que a explicação racional é necessariamente verdadeira Em suma o que Aristóteles de fato realiza é a organização e a integração na medida do possível bem entendido e que não podia ser como não foi muito ampla e rigorosa da conceituação de seu tempo relativa aos objetos tratados no que hoje seriam a física a astronomia a biologia etc em sistemas lógicoformais Isto é expressos em forma verbal coerente de modo a se poderem deduzir logicamente dentro dos cânones lógicos os dados empíricos disponíveis Notese de início e isso é importante para o que nos interessa aqui centralmente que assim procedendo Aristóteles estará de fato e essencialmente ocupandose não com os fatos propriamente e os dados empíricos que a percepção sensível proporciona e sim com a maneira de filiar esses dados seria a sua dedução a uma conceituação preexistente ou pelo menos presumida ou melhor dada a priori E dentro dela enquadrálos A maneira de justificálos logicamente por meio de um enquadramento e integração numa sistemática conceptual préformada Racionalização diríamos hoje A atenção de Aristóteles numa tal tarefa estará assim primordialmente voltada como logo se vê para aquela sistemática conceptual e sua estrutura procurando alcançála pela aplicação do seu método Tanto é assim que seu resultado principal não será propriamente uma contribuição científica na acepção corrente de nossos dias o que a obra de Aristóteles como já foi notado não oferece e sim um exemplo de modelo de aplicação da lógica na consideração dos dados sensíveis da observação empírica visando como que uma interpretação lógica do comportamento da natureza tal como ela se apresenta naqueles dados Em conclusão o interesse de Aristóteles e a contribuição que oferece afinal se fixam essencialmente não nos fatos que refere e sim no conhecimento deles no conhecimento em si O objeto é assunto de que Aristóteles se ocupa em seus tratados relativos aos fatos da natureza físicos geológicos astronômicos biológicos etc não são direta e essencialmente tais fatos e sim a maneira como esses fatos são concebidos ou devem ser concebidos os conceitos em que se enquadram e como esses conceitos se hão de entrosar uns com os outros logicamente se estruturarem e formalmente ex primirem no discurso Aristóteles estará não elaborando co nhecimentos ou expondo seus procedimentos no processo de elaboração o que consistiria em compor nova conceituação ou remodelar a existente na base de dados originais ou antes não considerados devidamente e que se trataria de determinar e incluir na conceituação existente dandose assim conta deles Não é isso a obra de Aristóteles que estará antes e como que oferecendo e ilustrando um modelo lógico Ocupandose pois não do conhecimento propriamente mas do conhecimento do conhecimento E façase de Aristóteles o juízo que for e já sem falar na sua lógica o significativo da obra que deixou e que tamanho papel desempenharia na evolução do pensamento humano bem como aquilo que se pode considerar nessa obra a sua filosofia isso não será elaboração científica nem outra coisa senão um tal conhecimento do conhecimento É isso a obra de Aristóteles Obra que constituiu a complementação e encerramento de um ciclo decisivo do pensamento humano e que vem a ser a tarefa empreendida pelos pensadores que precederam Aristóteles no mesmo rumo desde os pioneiros da filosofia grega até os sofistas Sócrates e Platão que foram sucessiva e progressivamente contribuindo para a ascensão do pensamento e conhecimento do empirismo rudimentar e grosseiro que constitui a primeira e mais primitiva etapa da evolução mental do indivíduo pensante e conhecedor que é o homem para o racionalismo propriamente que faz então sua entrada decisiva na cultura humana Do conhecimento limitado à simples constatação empírica e registro de fatos diretamente acessíveis à percepção sensível e de sua representação imaginativa segundo modelos sensíveis de fácil e imediata identificação como os arcos de uma roda com que Anaximandro ainda explicava os fogos celestes ou a própria substância do Universo modelada com materiais comuns16 passam os pensadores gregos a um plano abstrato e vão ocuparse reflexivamente do próprio pensamento em si e da sistematização do conhecimento procurando realizar no conjunto dele o que a lógica designaria mais tarde por coerência A saber o entrosamento disciplinado e não contraditório da conceituação e sua expressão verbal Ou seja a adequada estruturação conceptual e de suas formas expressivas em contraste com o simples registro empírico e disperso de representações sensíveis imediatas que caracteriza a fase anterior A obra de Aristóteles oferecerá assim a par de sua lógica e método de pensamento que implica o primeiro esboço e modelo grosseiro embora para uma tal racionalização geral do conhecimento A sua logificação podemos assim denominar o processo Em suma o conhecimento se torna em sistema geral abstrato e de conjunto e por isso mesmo de mais fácil acesso evocação comunicação eficiente e utilização na ação o que constitui afinal o objetivo da função humana do conhecimento Notese que não seria isso certamente nem poderia ser o que Aristóteles deliberadamente objetivava Aquilo de que julgava cuidar e de que pretendeu ocuparse em seus tratados naturais era o conhecimento da realidade da percepção desses seres sensíveis que por sua diversidade e instabilidade e nada mais que imperfeitas cópias dos verdadeiros seres que seriam as ideias seu mestre Platão deixara de lado e reputara impossíveis de legítimo conhecimento e objetos unicamente da opinião Aristóteles em oposição a seu mestre acreditava chegar a esse conhecimento como vimos pela dedução de que revelou o método a sua lógica e precisamente para aquele fim Mas para justificar a legitimidade de sua dedução havia que ligar o ser o conceito dado no universal e que Platão isolara nas suas ideias ligálo com a realidade sensível expressa no particular Como realizálo É o que Aristóteles desenvolve no que seria a sua metafísica a sua concepção geral e fundamental da realidade que se faria padrão do pensamento filosófico pelos tempos afora E que embora retocado continuamente através dos séculos torcido e retorcido pelas sucessivas gerações de pensadores e escolas filosóficas na tentativa de muito poucos resultados de ajustála às novas feições que o conhecimento foi tomando e harmonizála com o progresso desses conhecimentos embora tudo isso a metafísica aristotélica ainda conserva até hoje seus quadros fundamentais que impregnam o pensamento moderno e lhe trazem toda sorte de dificuldades e deformações Vejamos esquematicamente os pontos essenciais e linhas mestras dessa metafísica e em especial as circunstâncias que a inspiram em seu nascedouro e que foram como se notou a necessidade de fundamentar o método dedutivo com que Aristóteles julgava alcançar o conhecimento da realidade sensível A atenta consideração de tais circunstâncias esclarece muita coisa dos rumos que tomaria o pensamento filosófico e contribui em particular para a compreensão dos principais problemas e questões que a perspectiva metafísica subjacente naquele pensamento iria suscitar mesmo depois de formalmente e oficialmente posta de lado pelos principais setores do pensamento moderno O que não impediu que se conservasse latente em muito dele e em questões pendentes até os dias de hoje O interesse do assunto continua assim a ser da maior atualidade Na metafísica Aristóteles transfere a sua lógica e com ela o método dedutivo que implica lógica e método que de fato não são senão sistemas derivados de formas linguísticas17 transfere sua lógica para os fatos da realidade concreta para o mundo das coisas sensíveis designação com que o próprio Aristóteles por vezes se refere às realidades da percepção que trata de conhecer pela aplicação do método Simples transferência de fato porque a nada mais que isso corresponde essa concepção aristotélica centro nevrálgico da metafísica que vem a ser a da geração das coisas sensíveis que afinal não são senão o particular em contraste com o universal pela realização da forma aquilo que faz a coisa ser o que é na matéria substância indeterminada das coisas sensíveis mas que reúnem em cada caso as condições específicas necessárias para que a forma determinada possa nela se concretizar ou gerar que tenha a potencialidade para isso que seja a coisa em potência na terminologia aristotélica Para usar uma ilustração entre outras do próprio Aristóteles tal como se dá com o lenho relativamente ao cofre que é com ele confeccionado o lenho seria a matéria em potência na qual a forma cofre se realiza é gerada18 Ora a forma que é essência ou aquilo que faz a coisa ser o que é se reduz na terminologia aristotélica à ideia ao universal19 E assim tal como na lógica aristotélica o particular se deduz do universal assim também a coisa sensível que é o particular se gera pela realização da forma potencial contida na matéria forma essa que vem a ser o universal Os dois casos se emparelham de um lado a operação lógica pela qual se alcança o conhecimento das coisas sensíveis o que as coisas são de outro o fato concreto em que se geram as coisas Ambos se confundem vêm no final a dar no mesmo E consumase com isso a inversão idealista aristotélica a confusão das esferas subjetiva e objetiva que se projetará pelos séculos afora e ainda impregna até hoje o pensamento filosófico e com ele a maneira ordinária de pensar e em muitos casos até mesmo a científica ou que se pretende ou presume científica A confusão das coisas que é a designação tradicional e consagrada da metafísica e aliás corrente em todos os setores para indicar as feições do Universo e assim fragmentálo numa outra instância da inversão idealista à imagem da expressão verbal a confusão das coisas com a maneira como se conhecem E a confusão consequentes do conhecido com o conhecimento da esfera exterior ao pensar e objeto dele com esse próprio pensar O que praticamente vem a consistir na tarefa de interpretação da realidade e elaboração do conhecimento e da construção da ciência na confusão do conhecimento com o conhecimento do conhecimento com o embaralhamento de seus respectivos objetos O pesquisador mais precisamente o filósofo de formação aristotélica e muitas vezes o cientista também pretende ocuparse de ocorrências e circunstâncias da natureza e frequentemente julga fazêlo quando de fato se encontra na perspectiva do conhecimento do conhecimento e vai tratar não daquelas ocorrências e sim do conhecimento que se tem delas de sua representação mental ou conceito e de sua expressão verbal que assim inadvertidamente se projeta na realidade considerada Já nos referimos acima a essa confusão e projeção idealista ao lembrarmos o caso tão flagrante do conceito matéria Outra instância característica no assunto fartamente conhecida debatida e de considerável papel na história e evolução do pensamento filosófico bem como do científico também é a dos conceitos espaço e tempo Em virtude daquela deformada perspectiva e inversão o espaço de simples relação de situação ou posição de uns objetos com respeito a outros e o tempo de relação de sucessão de situações20 isto é de simples conceitos mentalmente representativos de circunstâncias particulares da realidade se farão uma vez transpostos para essa realidade e nela confundidos e substancializados se farão num espaço e tempo absolutos e de realidade e existência extramental concreta e em si independentemente de quaisquer objetos eventualmente neles presentes e incluídos Algo como para o espaço um continente extenso e infinito predisposto para conter e abrigar no seu interior as coisas de um Universo nele eventualmente introduzido mas que dele inteiramente independe podendo ser concebido como sem esse conteúdo E no que diz respeito ao tempo seria como o desenrolar no vácuo dessa outra entidade ad hoc inventada e que seria a Eternidade a presenciar ou o vazio ou o perpassar incidente de coisas e ocorrências eventualmente presentes no correr de uma existência sem começo nem fim A literatura filosófica com extensões traiçoeiras inclusive para o campo da ciência aí está para exibir o infindável debate sem perspectivas e os paradoxos sem conta nem saída a que levaram e levam ainda hoje baralhamentos como esses das esferas subjetiva e objetiva A confusão da realidade concreta com o pensamento dessa realidade o que dá na confusão do conhecimento com o conhecimento do conhecimento Nesse sentido e de certo modo poderíamos dizer possivelmente com alguma dose de anacronismo que a obra de Aristóteles constituiu um passo atrás nas realizações de seus antecessores Estes embora sem muita clareza e precisão muito pelo contrário é força reconhecer e de forma grosseira no tratar o assunto tinham ao menos vislumbrado a distinção entre as esferas mental e extramental Parmênides por exemplo como foi lembrado ocupase em separado daquilo que respectivamente designa por verdade que diria respeito à esfera mental e por opinião que constituiria o que hoje designaríamos por conhecimento propriamente em contraste com o conhecimento do conhecimento ou ciência empírica isto é dirigida direta e imediatamente para a realidade exterior ao pensamento Em Platão essa separação se faz ainda mais radical e de tal modo extremada que as ideias platônicas se substancializam num mundo supersensível bem destacado do sensível que constituiria a realidade de nossa experiência concreta ordinária Com toda sua fantasia poética e deformação mística a concepção platônica tinha pelo menos o mérito de distinguir as duas esferas respectivamente mental e extramental Obviavase com isso a confusão em que incorreria Aristóteles e de tão danosas consequências que até nossos dias ainda vicia o pensamento filosófico fazendoo tão frequentemente perder de vista suas verdadeiras e legítimas metas com a proposição de questões sem conteúdo real algum e incapazes de levar a outra coisa senão a um infindável e estéril debate em torno do significado de conceitos ou pseudoconceitos reduzidos a simples formulações verbais que já há muito perderam qualquer ligação com a realidade em que vivemos e que condiciona a existência humana se é que jamais tiveram aquela ligação Isso a par dos empecilhos que tantas vezes opôs e ainda opõe a uma correta e adequada elaboração científica Considerese para exemplificar a famosa questão dos universais que agitou e dada a posição central que ocupa esterilizou em boa parte durante séculos o melhor do pensamento filosófico E ainda hoje embora com alguns disfarces tem os seus apreciadores Os danosos efeitos da confusão das duas esferas têm aí flagrante confirmação pois o que se discute no assunto em última instância é precisamente o grau de participação digamos assim dos conceitos numa ou noutra esfera A simples delimitação delas elimina a questão Em vez disso e enquanto os filósofos se afogam em sutilezas que não passam no mais das vezes de puro jogo de palavras a questão que se pode dizer básica da filosofia que é a da caracterização e processamento da conceituação premissa essencial da teoria do conhecimento e portanto de toda problemática da filosofia em geral se obscurece e perde inteiramente num cipoal sem saída e debate sem solução nos termos em que a questão é proposta A confusão das esferas subjetiva e objetiva do conhecimento que deriva da metafísica aristotélica não vicia somente a filosofia mas ainda e até nossos dias atinge importantes setores da elaboração científica e até mesmo concepções correntes e hábitos usuais de pensamento Efetivamente o fato de sobrepor o pensamento e seus sistemas e formas à realidade que lhe é exterior e incluir nessa realidade os quadros conceptuais em que pensamento e conhecimento se organizam e estruturam e é nisso que vai dar a confusão aristotélica e derivando por conseguinte a elaboração do conhecimento daqueles quadros tais circunstâncias resultam forçosamente na tendência que acima referimos ao enrijecimento e imobilização do conhecimento Isso porque por força delas passase a lidar com conceitos e as formas lógicas de sua expressão verbal julgando tratar de fatos da realidade exterior ao pensamento como aliás se vê tão claramente nas instâncias acima lembradas dos conceitos espaço e tempo que representando embora relações se fazem porque expressos verbalmente por substantivos em coisas ou entidades de existência substancial incluída na realidade exterior ao pensamento Erigemse assim por força de confusão análoga simples operações mentais que vêm a ser a dedução aristotélica em fiel reprodução de ocorrências da realidade O logicamente coerente e pois corretamente deduzido e ajustável com isso ao sistema ou sistemas conceptuais estabelecidos e consagrados se reputa desde logo como reprodução ou representação acertada da realidade Não é por simples acaso ou analogia que a expressão vulgar e corrente tão em voga que vem a ser é lógico tem o sentido de acerto e segurança da afirmação formulada e assim qualificada Tampouco constitui coincidência o emprego na terminologia consagrada da lógica do mesmo vocábulo para designar a verdade formal e a verdade empírica com o que se equipara em valor significativo a articulação coerente da expressão verbal ou simbólica fato puramente mental com a verificação empírica a verdade do puro pensamento e a verdade real Pensamento e realidade se confundem É a transposição do pensamento para a realidade ou inversamente se preferirem a interiorização da realidade no pensamento Em ambos esses casos exemplificativos citados fazse sentir a presença da velha concepção aristotélica e confusão que nela se faz entre as duas esferas do conhecimento entre o mental e o extramental Bem como do complicado dispositivo metafísico que antes procurei esquematizar e que resulta dessa confusão e pretende justificála Dispositivo esse com que Aristóteles introduziu as ideias platônicas nas coisas sensíveis tornandoas componentes delas a forma realizandose na matéria e dando com isso a coisa Forma essa que vem a ser afinal o conceito que se trata de alcançar pelo conhecimento a ser obtido na concepção aristotélica endossada em seguida pelos séculos afora com a descoberta daquele conceito no amálgama de potência e ato em que a coisa sensível se realiza É assim na manipulação conceptual por meio de operações lógicas que se alcança o conhecimento21 Quanto aos fatos reais às feições e circunstâncias que compõem a realidade concreta exterior ao pensamento conhecedor e elaborador do conhecimento isso que constitui na perspectiva moderna pósmetafísica o legítimo objeto do conhecimento se subestima se não se desconsidera por completo ou então se manipula convenientemente a fim de acomodálo aos esquemas conceptuais consagrados É com esse rumo que a metafísica de inspiração aristotélica intervirá na tarefa de elaboração científica com os resultados que se podem avaliar e que a história fartamente ilustra Uma instância flagrante desse procedimento tanto mais esclarecedora como exemplo que já data dos tempos modernos e por isso além de largamente documentada e de fácil acesso e exame melhor se destaca no contraste com o novo pensamento antimetafísico que começava na época a dominar essa instância será a famosa questão da essência das espécies que tamanho papel e papel altamente negativo representou no desenvolvimento das ciências naturais Ocupeime do assunto em outra oportunidade22 e lembrarei aqui apenas a observação de Darwin a respeito do assunto lamentando os naturalistas do seu tempo incessantemente perseguidos pelas dúvidas insolúveis sobre a essência específica desta ou daquela forma Em suma a elaboração científica se tornava essencialmente na base do modelo metafísico um processo especulativo onde operações lógico dedutivas faziam as vezes da observação empírica e conceptualização da experiência É na forma lógica que se haveria de desvendar a VERDADE Não é preciso insistir que é isso o observado no mundo ocidental acentuandose com a escolástica e a consagração da metafísica aristotélica que iria daí por diante soberanamente inspirar e orientar o pensamento da época Assistiremos aí a par de um intenso trabalho de elaboração lógica ou antes de refinamento e bizantinização da lógica aristotélica a uma desenfreada especulação abstrata orientada por aquela lógica e que no terreno da elaboração científica deixa a consideração dos fatos reais num segundo e muito apagado plano A ciência por isso marcará passo e somente ganhará impulso quando nos tempos modernos começa a gradualmente se desligar da filosofia ou antes da metafísica e dos esquemas lógicos estereotipados e especulações sem fim a que ela se reduzirá23 E a elaboração do conhecimento em alguns de seus setores pelo menos se orientará diretamente para seu verdadeiro objeto os fatos naturais exteriores ao pensamento elaborador24 e não os fatos mentais que não fazem senão representar conceptualmente aqueles fatos naturais E abremse com isso as perspectivas para a separação das duas esferas do pensamento confundidas pela metafísica de um lado o processo mental pelo qual se elabora o conhecimento propriamente a saber a representação mental das feições da realidade exterior ao pensamento elaborador De outro a consideração dessa mesma representação mental elaborada pelo pensamento e nele presente como conceituação constituinte do conhecimento da ciência em particular Para essa discriminação dos objetos da atividade pensante discriminação essa que delimitará as esferas objetiva e subjetiva isto é que separará os campos respectivos do conhecimento de um lado de outro do conhecimento do conhecimento que constitui ou deve constituir o próprio da filosofia para essa discriminação é importante notálo contribui sobretudo a experimentação Realmente na experimentação as duas esferas se propõem desde logo separadamente e bem discriminadas uma da outra Diferentemente da simples observação passiva e contemplativa o pensador e elaborador do conhecimento na experimentação intervém ativamente para dispor de maneira conveniente e em perspectiva adequada o objeto de sua consideração e exame para fazer com que se reproduza nesse objeto o fato que se trata de compreender e representar mentalmente Intervir nele e como que participar dele com sua ação Ação pensada e no outro extremo da ação reflexa com o pensamento alertado não somente visando o objetivo imediato de dirigir a ação e sim também o de se integrar no conhecimento preexistente tornase ele próprio conhecimento novo Ação pensada em função do objeto considerado no curso da qual se desenrola o processo de elaboração cognitiva e em que essa elaboração se realiza na base do duplo e conjugado impulso do pensamento conduzindo a ação para amoldá la ao objeto e reproduzila e da ação inspirando e estimulando o pensamento e o ajustando ao objeto É esse o processo cognitivo processo natural e espontâneo mas que se vai tornando cada vez mais consciente e deliberado no curso da experimentação científica e adestramento que proporciona é isso que se revelará sempre mais acentuadamente nos procedimentos da elaboração científica moderna Procedimentos esses que pela sua própria natureza e dinâmica em contraste com a especulação abstrata e a simples observação passiva põem em confronto direto e ao longo de todas as suas operações o sujeito e o objeto bem discriminados um do outro Isso tanto mais acentuadamente quanto por força de circunstâncias históricas gerais notórias que não precisam ser aqui repisadas propõese crescentemente no conhecer não apenas como objetivo o simples deleite intelectual ou valor intrínseco e em si da atividade intelectual e do saber como se dava com os filósofos gregos ou como nos séculos que os separam do mundo moderno o objetivo fixado no sobrenatural e no conhecimento da Divindade e de seu comportamento com relação à humanidade E sim propõese o conhecer na expressão famosa de Descartes como aquisição de uma prática pela qual conhecendo a força e as ações do fogo da água dos astros dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam tão distintamente como conhecemos os diferentes misteres de nossos artesãos pudéssemos aplicálos pela mesma forma a todos os usos para os quais são próprios e tornandonos assim como senhores e possuidores do Universo25 Esse domínio do homem sobre a realidade que Descartes preconizava e de fato se estava realizando em ritmo acelerado com o progresso da ciência moderna esse gerar das coisas sensíveis sem ser pela forma potencialmente preexistente e incluída nelas nos termos da metafísica e sim forjadas no conhecimento construtor pelo próprio homem dirigindo a sua ação e não desvendado pela dedução isso permite desde logo discriminar os objetos do conhecimento e abrir claras perspectivas para o conhecimento do conhecimento para o objeto da filosofia disfarçado na confusão metafísica do ser e do conhecer Assim será efetivamente e o objeto próprio da filosofia começa a se definir É que o problema do conhecimento o como conhecer premissa da filosofia se propõe de forma patente com o progresso da ciência e as perspectivas que esse progresso abria Tratavase de uma transformação radical dos métodos de elaboração cognitiva Galileu e seus sucessores atirando objetos de alturas para o solo e fazendo rolar esferas sobre planos inclinados contrastavam nitidamente seus métodos com a anterior e habitual especulação inspirada na metafísica aristotélica Achavamse pois abertamente em jogo os procedimentos adequados para a elaboração do conhecimento E era preciso não somente determinar esses procedimentos mas trazer a sua justificação e reeducarse na condução dos novos métodos Tanto mais que tais métodos iam chocarse em última instância com preconceitos profundamente implantados em concepções tradicionais que traziam o poderoso selo de convicções religiosas As necessidades do momento levavam assim os homens de pensamento a se deterem atentamente nos problemas do conhecimento O que afora as estéreis manipulações verbais a que se reduzira a lógica formal clássica praticamente já não detinha a atenção de ninguém Abriase com isso uma nova fase para a filosofia forçandoa a se voltar para seus objetos próprios e neles se concentrar Afirmamse tais objetos que se farão patentes Toda a filosofia moderna nos traz o testemunho disso de Bacon e Descartes até o criticismo kantiano Aquilo que ocupará desde o século XVI notese a precisa coincidência com o grande surto da ciência moderna o centro das atenções filosóficas serão expressamente as questões relativas ao conhecimento e sua elaboração26 A filosofia encontrava seu caminho como conhecimento do conhecimento A indagação central e nevrálgica que se propõe será essencialmente determinar a relação entre a mente humana pensamento Razão e o mundo exterior da experiência sensível e que Conhecimento da Realidade tal relação pode proporcionar O que vai dar no como e em que medida contribuem respectivamente para o Conhecimento e como para isso se combinam e associam entre si os dois fatores cuja participação se podia observar na prática da elaboração científica moderna Numa palavra tratavase de determinar como se repartia e como se combinava a participação respectiva de um lado da experiência sensível de outro do pensamento propriamente e independentemente de qualquer outra contribuição É nesses termos que fundamentalmente se propõe o problema do Conhecimento dando origem às duas tendências para as quais se inclinam respectivamente as soluções propostas no sentido seja da valorização e destaque da atividade pensante e racional com a relativa desconsideração e até mesmo nos casos extremos eliminação da realidade sensível e dos dados que fornece seja em sentido oposto a subestimação da atividade pensante relegada a papel subsidiário e insignificante da simples sensação Os dois polos da filosofia moderna o idealismo e o materialismo embora muitas vezes reciprocamente se interpenetrando sobrepondose um a outro e inextricavelmente se confundindo têm suas raízes nessa oposição mais ou menos marcada e radicalizada conforme os autores em que se situa o problema do conhecimento E será em última instância sob a inspiração e na base das respectivas posições em face de tal problema que se vão constituir os sistemas filosóficos e concepções ontológicas Tudo isso naturalmente temperado e ajustado convenientemente em função de concepções fideístas ditadas pelo hábito muito mais que por outra coisa já fora ficando para trás a verdadeira fé religiosa que o mundo medieval conhecera preconceitos ideológicos respeito à tradição e conveniências políticas O que não deixa muitas vezes de complicar inextricavelmente os textos filosóficos da época tão marcados ainda pelos remanescentes da herança metafísica e o característico estilo da especulação escolástica27 Apesar disso contudo destacamse linhas discriminatórias suficientemente marcadas Os materialistas ou antes os mais voltados para a substância material como componente do Universo em contraste com a substância ideal dos idealistas esses simplesmente equiparam o conhecimento elaborado ou por elaborar ou mais precisamente a conceituação e a forma verbal em que tal conceituação se exprime e apresenta equiparamna em correspondência biunívoca à realidade sensível Cada coisa entidade qualidade ação que compõe o Universo e que os sentidos percebem terá sua ideia e expressão verbal própria a registrála no pensamento Reduzse assim ao mínimo se não se elimina de todo o papel ativo do pensamento na elaboração do conhecimento e da formação dos conceitos ou ideias que se tornam com o conhecimento que compõem em simples reflexo mental mais ou menos passivo da realidade exterior Locke que destacamos aqui apenas como pioneiro que foi do materialismo moderno e aproximadamente na mesma esteira a generalidade dos materialistas28 Locke deriva as ideias de que se constitui o conhecimento diretamente das sensações que se marcariam na mente como impressões na cera não cabendo assim ao pensamento nada mais com aquele registro das sensações tornadas em ideias que combinar comparar e analisar essas mesmas ideias Desse modo o materialismo se de um lado empresta o devido valor à experiência sensível como fator primário da elaboração cognitiva de outro tende a fechar as perspectivas para uma apreciação adequada da função pensante e da natureza real do conhecimento Os idealistas vão em sentido contrário Em vez de exteriorizarem o conhecimento segundo o modelo do materialismo fazendo dele algo a ser simplesmente copiado pelos sentidos como que desvendado descoberto na realidade onde já estaria préformado29 os idealistas trazem o Universo para dentro da esfera subjetiva e aí irá buscálo o conhecimento Em alguns idealistas particularmente nos grandes precursores de Kant e no próprio Kant isso se disfarça ainda sob a aparência de uma realidade exterior que embora incognoscível assim mesmo existe e representa o papel discreto de estimulante do pensamento é a coisa em si o noúmeno kantiano Mas como bem dirá Fichte em seguimento a Kant se esta pseudoexistência é incognoscível é que verdadeiramente não existe E assim o idealismo tende necessariamente para a eliminação da realidade exterior ao pensamento e à subestimação senão desprezo total da experiência sensível na formação do conhecimento Seja contudo qual for o tipo ou matiz do idealismo em todo ele o que realmente ocorre aquilo de que os filósofos idealistas se ocupam e é o que centralmente nos interessa aqui é do pensamento e seu produto que é o conhecimento E assim revestindo embora seu exame e suas conclusões de linguagem ambígua que nem sempre deixa muito claro o objeto a que se refere o idealismo devidamente filtrado vai oferecer algumas das principais premissas para a devida proposição do problema do conhecimento e a caracterização e definição do conhecimento do conhecimento Isto é do papel da filosofia É essa em particular a contribuição de Kant e Hegel O criticismo kantiano coloca em plena luz o papel ativo e participante do pensamento a razão na elaboração do conhecimento E desfaz com isso a falsa perspectiva dos materialistas e de sua concepção de um conhecimento simples reflexo passivo através dos sentidos da Realidade exterior e cuja elaboração consiste unicamente na descoberta de verdades já de antemão incluídas na Realidade Quanto a Hegel a sua dialética romperá pela primeira vez a tradição metafísica de conceitos fixos e invariáveis tradição essa também incorporada pelo materialismo vulgar como aliás não podia deixar de ser dentro das posições básicas desse materialismo e seu postulado implícito de uma correspondência biunívoca entre a conceituação os conceitos ou antes a expressão verbal desses conceitos e as feições e circunstâncias da realidade A dialética hegeliana apresentará em contraste com aquela velha e tradicional concepção metafísica a verdadeira natureza da conceituação a mútua ligação e entrosamento dos conceitos em sistemas de conjunto através dos quais e somente assim adquirem conteúdo e sentido Em outras palavras os conceitos nada significam ou representam por si e isoladamente Essa significação e representação se realizam pelas ligações e no entrosamento deles entre si Isto é no sistema que formam em conjunto30 Revelou Hegel com isso na sua intimidade a constituição e estruturação da conceituação de que o conhecimento se compõe E abriu com isso larga perspectiva para a interpretação das operações do pensamento e processo de elaboração do conhecimento e formação dos conceitos Hegel traz com isso a maior contribuição de todos os tempos para a elucidação do problema do conhecimento Não vamos aqui debater o fundo do pensamento hegeliano de tão difícil penetração pelo complexo e imaginativo estilo em que se envolve a obra de Hegel Mas o certo é que o descrito nessa obra consiste em suma e no essencial para o que nos interessa aqui na gênese e no desenvolvimento da racionalidade do homem através do progresso do conhecimento A descrição que Hegel faz desse progresso é fantasiosa mais ou menos arbitrária no que diz respeito à realidade dos fatos e acompanhando muito maio verdadeiro processo histórico tal como ele efetivamente se realizou Além disso como idealista que é Hegel encarna o progresso do conhecimento e da razão na marcha do espírito desde sua gênese na Certeza sensível até sua plena eclosão no Saber absoluto A concepção histórica de Hegel escreverá Marx supõe um espírito abstrato ou absoluto que se desenvolve de tal maneira que a humanidade não é senão uma massa dele impregnada mais ou menos conscientemente No quadro da história empírica exotérica Hegel faz pois operar uma história especulativa esotérica A história da humanidade se torna a história do espírito abstrato da humanidade estranho por conseguinte ao homem real31 Se contudo a descrição histórica de Hegel é arbitrária e fantástica e a forma que lhe concede essencialmente especulativa a análise que faz do pensamento e conhecimento e que se inclui naquela descrição isso nos dá o enquadramento e a estrutura do processo racional no ato de apreensão e representação mental da realidade exterior ato no qual o processo é gerado e se constitui em razão conhecedora conhecimento E é isso que Marx irá buscar no seu mestre a saber na observação de Engels o núcleo que encerra as verdadeiras descobertas de Hegel o método dialético na sua forma simples em que é a única forma justa do desenvolvimento do pensamento32 Não nos deteremos naturalmente aqui por estar fora de nosso assunto no tratamento específico que Marx com o método dialético que foi buscar em Hegel deu aos fatos econômicos sociais e políticos que resultaram na transformação histórica do mundo moderno na eclosão e estruturação do capitalismo industrial e no delineamento das premissas do socialismo O que imediatamente nos interessa agora e é o que se observará com toda clareza na obra de Marx consiste no fato de que historicamente é afinal na consideração do conhecimento do homem aquilo que seriam as nossas ciências humanas de hoje e naturalmente o tema marxista por excelência é aí bem como no método de elaboração desse conhecimento que se revelaria com precisão o conjunto e a generalidade do problema filosófico isto é a determinação em sua totalidade e a caracterização do conhecimento que vem a ser o conteúdo e objeto central e geral da filosofia e onde ela encontra em toda sua plenitude o terreno que lhe é próprio e específico no complexo geral do conhecimento Tal como desde suas origens nos primeiros passos do pensamento grego e embora tão confusamente como foi observado se propôs à reflexão Os fatos sociais que são os que se situam ou devem ser situados no centro do objeto real do conhecimento do homem têm isto de singular em confronto com outros fatos físicos biológicos que neles o homem é simultaneamente agente e paciente determinante e determinado e o que é mais característico e específico é que na perspectiva do conhecimento o homem é ao mesmo tempo que o conhecido também o conhecedor E conhecido como conhecedor tanto como viceversa conhecedor como conhecido Considerese a situação O indivíduo humano determina seus atos e dirige seu comportamento e é desse comportamento que resultam afinal os fatos sociais O comportamento é mesmo o constituinte de tais fatos O homem é assim autor deles seu motor e fator determinante Mas doutro lado também resulta deles são esses mesmos fatos sociais que determinam o homem no sentido que ele é antes de tudo um produto da sociedade e se comporta em função do meio social de que participa em que vive e que lhe modela a personalidade Essas relações sociais contudo as instituições tudo enfim que rodeia o homem e o retém numa densa e estreita malha de normas e modos de ser de agir e mesmo de pensar e até de sentir tudo aquilo que constitui o enquadramento dentro do qual o homem desenrola sua existência e desenvolve suas atividades e que o condicionam tudo é obra dele do próprio homem Mas é obra que ele realiza impulsionado e orientado pelo seu pensamento e conhecimento que afinal constituem sua razão formados naquele mesmo enquadramento de relações e instituições sociais em que ele se educa e forma no qual e pelo qual se modela a sua própria maneira de ser E em que ele faz propriamente o indivíduo humano que é com suas características próprias tendência impulsos aspirações motivações em geral Como se verifica o processo é nos dois sentidos ou melhor gira em circuito fechado sobre si próprio confundindose permanentemente o ponto de partida com a chegada Ao homem determinante se sobrepõe o homem determinado que parte em seguida para nova determinação de si próprio Os dois momentos da ação e comportamento humanos a saber de um lado a maneira de agir do indivíduo humano de outro o fator determinante dessa maneira de agir ou para empregar expressões usuais efeito e causa do comportamento humano se confundem no mesmo homem simultaneamente agente e paciente E agente como paciente e paciente como agente É assim de forma tão específica e original no conjunto dos fatos em geral que se propõe a questão relativamente aos fatos humanos Perguntase então como enquadrar situação como essa de aparência tão aberrante do ordinário dentro dos moldes correntes do pensamento científico Como conceituála devidamente e dar conta teórica dos fatos sociais e humanos pela mesma forma que se vinha praticando com os fatos físicos desde os primórdios da ciência moderna no século XVI E realizálo notese bem não apenas com o objetivo de mais uma realização erudita no estilo prémoderno e sim condição para o sucesso tal como se dera com os fatos físicos para alcançar também no conhecimento do homem o ideal cartesiano já anteriormente lembrado de uma prática que tornasse os homens em senhores e possuidores do Universo Faziase para isso necessário contornar a dificuldade ausente nos demais setores do conhecimento onde ao contrário do que se passa com os fatos humanos o elaborador do conhecimento que é o homem não se situa fora dos acontecimentos que se trata de conhecer e de fora deles os observa e interpreta sem que com isso eles modifiquem o seu curso No conhecimento do homem na observação e interpretação dos fatos humanos sociais todo conhecimento elaborado se integra nesses mesmos fatos se torna deles e vai configurar uma nova realidade social e humana distinta da anterior Isso porque insistimos os fatos sociais não se desenrolam está visto independentemente da ação humana porque se constituem dessa ação que tão pouco se realiza independentemente do pensamento do homem agente e do seu conhecimento Inspirase nesse conhecimento e por ele se orienta e dirige O conhecimento dos fatos sociais é assim ele próprio participante e parte integrante e essencial dos mesmos fatos Nessa maneira de propor o assunto e de se situar em frente a ele na prática da elaboração do conhecimento e é assim como veremos que se situa Marx donde o alcance que assinalamos de sua obra nessa maneira já se encontra implícita a solução da questão Bem como a resposta ao mesmo tempo do problema filosófico essencial que tem sua principal origem como se viu na maior ou menor confusão das duas esferas do homem pensante e conhecedor e que vêm a ser as esferas subjetiva e objetiva O pensar e o conhecer de um lado o pensado e o conhecido de outro Tal confusão das esferas subjetiva e objetiva não consiste simplesmente na superposição ou indistinção de ambas Dessa indistinção deriva também a exclusão de uma ou outra Quando não se as distingue e discrimina devidamente entre si determinandose suas relações recíprocas dáse a desconsideração de uma delas com a consequente fixação na outra É o que sempre fizeram e continuam muitas vezes a fazer em campos opostos idealistas e materialistas vulgares isto é não dialéticos acentuando cada qual e respectivamente ou a esfera subjetiva ou a objetiva com a desconsideração da outra Isso se verificará mais uma vez e de maneira flagrante mas agora se abrirá a perspectiva para desfazer afinal em definitivo a confusão se verificará no debate do problema do homem e da sua liberdade equacionado pela ciência moderna Será o conflito entre a liberdade de escolha pelo indivíduo o livrearbítrio de uma parte e doutra a premissa essencial da ciência a saber a sujeição do Universo e de todas suas ocorrências inclusive no relativo ao homem a leis isto é à necessidade Considerada unicamente a esfera subjetiva e não há senão afirmar a liberdade do homem na determinação de seus atos e comportamento e portanto dos fatos sociais que em última instância resultam desses atos e comportamento A decisão o impulso o motor estão no homem não há como negálo É a subjetividade pois que configura o comportamento humano O interior do homem impenetrável e indeterminado Ou antes a sua razão a sua racionalidade O homem determinado privado de sua capacidade de escolha é precisamente aquele em que se aboliu a razão aquela racionalidade que faz dele o verdadeiro homem sinônimo de ser racional O homem privado de liberdade e livre escolha deixa de ser verdadeiro homem É sobre essa base e à luz dessa concepção o que mostra sua profundidade e universalidade de seu reconhecimento que se construíram todos os sistemas normativos da conduta humana das simples regras de civilidade até a ética e o direito A saber sobre a noção de responsabilidade que implica está visto a liberdade Detendose aí não há como introduzir o determinismo que a ciência implica Se nos fixamos e imobilizamos na subjetividade não há não pode haver verdadeira ciência do homem no sentido moderno da palavra Isso porque considerada a razão humana em si irredutível e dada como um todo desde logo completo e acabado sem antecedente ou préformação e é assim que se propõe a razão para quem se fixa na subjetividade e parte daí para a ação e comportamento humano sem considerar o inverso da ação e comportamento para a razão sem considerar a origem as raízes a gênese e constituição dela tomada assim a razão ela permanece fora do determinismo e não há como legitimamente nele incluí la Determinismo no sentido de premissa da ciência o determinismo da necessidade É por isso que a generalidade dos filósofos quando procuram como de fato se dá propor o problema do homem em termos científicos isto é integrálo na ciência moderna tendem a saltar para fora da subjetividade para seu oposto e consideram unicamente o homemobjeto da ciência o homem determinado e não determinante Determinado apenas extrahumanamente como outro objeto físico qualquer Consideram apenas a esfera objetiva Há posições intermédias em que entram em linha de conta uma e outra esfera Mas sempre com saltos de uma para outra e escamoteação mais ou menos disfarçada e com maior ou menor habilidade e sutileza ora de uma ora de outra daquelas esferas São tentativas de conciliação de situações incompatíveis nos termos em que a questão é proposta A saber de um lado a livre escolha e deliberação do ser racional cuja razão paira acima das contingências extrarracionais e delas independe não sendo pois por elas determinado em sua vontade De outro lado essas mesmas contingências necessariamente incluídas no postulado determinista e que seriam pois determinantes Marx segue outro caminho e inspirandose na dialética hegeliana faz dela o seu método que vai aplicar à consideração e interpretação da história e em particular dos fatos que presencia e de que participa e que como homem de ação e revolucionário pretende orientar necessitando para isso não somente fixarlhes o determinismo mas com isso também as circunstâncias que modelam esse determinismo e que a ação política e revolucionária seja capaz de orientar É o que lhe permitirá situar diferentemente a questão em foco de maneira a articular num conjunto e totalidade em outras palavras ligar dialeticamente os termos do dilema Isto é Marx não começa por isolar como fazem seus predecessores o ser racional com a sua razão o homem pensante e conhecedor não o isola das circunstâncias extrarracionais em meio às quais e em função de que o homem é agente Noutras palavras não absorve e com isso anula o homem agente no homem pensante e conhecedor deixando em consequência de lado as circunstâncias exteriores em meio às quais o homem é agente como fazem os idealistas e filósofos da liberdade humana do livrearbítrio Tampouco e inversamente confunde o homem pensante e conhecedor no homem agente fazendo daquele pensamento e conhecimento simples epifenômeno de uma ação e comportamento exteriormente determinados Marx fixa sua atenção será o seu método não separadamente num ou noutro desses termos alternadamente ou no pensamento razão ou na ação concreta E sim consideraos em conjunto melhor no processo em que ambos se conjugam unificam e que constitui precisamente o essencial da história o seu movimento Processo e movimento da história esses que serão a passagem a transição de um para outro momento do mesmo processo consistindo na permanente transformação nos dois sentidos de um no outro O pensamento fazendose ação tanto como a ação se fazendo pensamento E conhecimento Em outras palavras é pelo pensamento e conhecimento que o constitui e inspira pois não há pensamento puro e vazio de conhecimento pensamento e conhecimento no final se confundem é assim que o ser racional que é o homem livremente se determina e delibera sua ação Mas esse pensamento e conhecimento determinantes se forjam nas circunstâncias da vida e do meio físico e humano em que o homem social por excelência age desenrola sua ação e se torna com isso o ser racional que é A ação dele se faz pensamento e conhecimento porque estes se estimulam e informam nessa ação tal como pensamento e conhecimento se fizeram ação porque são eles que a promovem e impulsionam E o processo continua assim ininterrupto entrosandose nele homem pensante e conhecedor e homem agente O homem pensante e conhecedor transformandose em homem agente e inversamente este naquele E tratase aí notese bem não de uma alternância monótona e que se repete sempre igual Longe disso e muito pelo contrário o processo que é tanto da história do indivíduo o desenrolar de sua existência individual como da coletividade em que os indivíduos se comunicam e da espécie em que eles se sucedem e continuam uns aos outros o processo dizemos se renova permanentemente em cada ciclo que é sempre diverso do anterior mais rico de ação de experiência realizada de pensamento desenvolvido de conhecimento acrescido graças à acumulação de sucessivas aquisições Acumulação essa cuja possibilidade constitui no Universo privilégio do homem e o fator que precisamente faz dele o ser racional que é É graças a essa faculdade de se valer do seu passado a fim de utilizálo no presente e projetálo no futuro com o acréscimo das novas aquisições do presente é graças a esse privilégio que o homem ocupa a posição ímpar que é a sua no Universo Que logra marchar para a frente progredir e se transformar e renovar em ritmo quantitativo e qualitativo sem paralelo em outras feições da natureza Essa é a perspectiva dialética do homem que permite considerálo no ângulo adequado e devidamente conceituar em termos científicos este aspecto ou feição do Universo que é a humanidade o fato humano ou a razão que vem a dar no mesmo e para empregar a terminologia consagrada da filosofia E elaborar com isso o conhecimento do homem Nisso consistiu a obra filosófica de Marx lançar as premissas desse conhecimento com o método adequado para elaborálo E Marx realizou isso não apenas teoricamente nem teria sido possível realizálo assim e é importante notálo para modelo e ensinamento porque outro fosse o caso e Marx com todo seu gênio e erudição teria fracassado ou avançado muito pouco tal como se deu e dá ainda com tantos que procuraram e outros que continuam procurando sem dar com ele o caminho acertado Marx não foi unicamente o cientista puro ou filósofo do velho estilo e quantos sobram ainda que de longe e sobranceiramente contempla os fatos que pretende interpretar e conhecer Marx envolveuse nesses fatos participou ativamente deles e é por isso que logrou compreendêlos e os tornar em teoria Abordou a questão simultaneamente como homem de pensamento e homem de ação Como filósofo e homem de ciência e como revolucionário Homem pensante e conhecedor e homem agente E o fez em plena consciência da obra que realiza e do papel que desempenha Ele o registra expressamente quando na XI e última das Teses sobre Feuerbach escreve Os filósofos não fizeram até hoje senão interpretar o mundo de diferentes maneiras Tratase agora de transformálo E foi o que fez filósofo propôsse a tarefa de impulsionar a transformação socialista do mundo capitalista que era a direção para a qual apontavam os fatos que vivia Fatos que soube progressivamente entender e interpretar com acerto graças a um pensamento e conhecimento cuja acuidade e nível trouxera em parte de sua formação num meio do mais alto teor Mas que no essencial e decisivo soube forjar no correr da própria realização da tarefa a que se dedicara de cabeça e coração o que lhe permitiu nesse amálgama de teoria e prática prática e teoria elaborar a teoria do processo histórico em que se engajara traçarlhe as primeiras e fundamentais linhas da prática que levaria à sua complementação E dar com sua ação os passos preliminares de tal prática Espelhase assim em miniatura na vida de Marx na qual pensamento e ação ação e pensamento se ligam num processo e conjunto indissolúvel e autoestimulante espelhase aí a premissa básica e ponto de partida do conhecimento do homem o homem ao mesmo tempo autor e ator da história seu ativista e como tal autor e determinante dela mas simultaneamente também sua criatura nada mais fruto legítimo do mundo capitalista do século XIX em seus primeiros passos revolucionários para o socialismo e seu derivado que Marx e sua obra E assim a par de determinante determinado também Marx realiza com isso um modelo em relevo e grande destaque da posição do homem ao mesmo tempo autor e ator da história Será assim Ou não será Marx senão um caso todo particular específico inconfundível e incomparável com o da massa de seus contemporâneos É certo que o plano em que se situam os indivíduos humanos e o grau de participação de cada qual pelo seu pensamento e ação na marcha da história não são os mesmos e muito pelo contrário divergem consideravelmente A generalidade se conserva no modesto plano de uma vida privada que se encerra em estreitos horizontes familiares e ocupacionais modestos e de relações sociais e atividades de ordem pública relativamente restritas Os indivíduos nessa situação terão naturalmente cada qual por si papel muito reduzido na marcha da história Mas nem por isso deixam de trazer a sua contribuição porque é da totalidade dessas contribuições individuais em conjunto que a história se faz Sem ela a história não existiria com a feição que foi a sua Todos os indivíduos embora em proporções largamente distintas trazem a sua parte de pensamento e ação que esse pensamento determina para a resultante final que será a história da coletividade que serão os fatos sociais de que participam e no conjunto compõem Marx terá sido apenas um indivíduo entre muitos milhares que agindo embora cada qual por conta própria e por linhas distintas contribuíram todos eles com alguma coisa para aquela resultante final A própria projeção de Marx e sua obra é função da mesma resultante Em Marx naturalmente se atinge elevada e excepcional culminância Nele se reúnem e conjugam o filósofo de larga visão e imensa erudição um pensamento e conhecimento pois de alto teor e o político revolucionário que pôs aquele pensamento e conhecimento a serviço de intensa atividade desenrolada no cenário dos mais amplos e decisivos fatos de sua época no coração da história de seu tempo que é o embate das classes fundamentais geradas pelo capitalismo burguesia e proletariado em torno de cuja luta se configura o essencial da história do século XIX É essa excepcional e quase singular conjugação de um pensamento poderoso e ação de raio imenso que alcança o principal da vida social de seu tempo é isso que permitirá a Marx no seu papel de ator e autor da história que desempenhará com plena consciência dele o que também não é dado à generalidade dos indivíduos é isso que permitirá a Marx situarse na posição de verdadeiro experimentador social reproduzindo no terreno dos fatos sociais algo análogo mutatis mutandis dos processos experimentais em que se elaboraram as ciências físicas modernas Efetivamente Marx na base de sua observação e experiência colhidas no mais vivo do desenrolar dos fatos históricos de seu tempo e de que intensamente participa Marx logra elaborar a teoria desses fatos isto é determinar suas ligações mútuas e sistema de relações no qual em conjunto eles se dispõem desvendando com isso a dinâmica essencial que os anima e impulsiona a saber a luta do proletariado em suas diferentes formas da simples desinteligência entre empregados e empregadores à greve e à insurreição E apreende as motivações dessa luta as reivindicações dos trabalhadores assalariados como contrapartida da acumulação de capital gerada pela maisvalia subtraída pelos detentores do capital no jogo das transações de compra e venda da força de trabalho Apreende mais o progressivo despertar no trabalhador de uma consciência de classe adquirida na luta em que se engaja consciência essa que vai dar em sua expressão mais alta quando nela se configura o fim último a que a luta se dirige e que vem a ser a transformação da ordem capitalista Marx tem com isso os elementos necessários para o fim de como dirigente político estimular a luta organizála e a orientar determinar as suas formas preliminares e etapas sucessivas e concederlhe o conteúdo ideológico necessário para que se dirija certeiramente a seus fins próprios Nessa ação prática e em face dos efeitos que produz e resultados nela alcançados positivos ou negativos Marx vai enriquecendo sua experiência e na base desse enriquecimento vai retificando reajustando e precisando suas conclusões teóricas e determinando suas posições práticas Isso porque em Marx como homem de pensamento que é a ação tem não somente sentido praticista isto é os efeitos revolucionários imediatos que se almejam mas inclui também conscientemente o conteúdo de experiência que traz para o embasamento elaboração e desenvolvimento da teoria Reproduzemse assim na obra políticosocial de Marx e no que se refere aos fatos humanos e à realidade históricosocial circunstâncias que se podem comparar e emparelhar às verificadas na experimentação física A saber a intervenção deliberada e planejada do observador e elaborador do conhecimento no desenrolar dos fatos considerados a fim de os dispor ou disporse em relação a eles da maneira mais favorável à observação e exame Marx tanto como o físico experimentador e como ele orientado por seus conhecimentos anteriores age sobre os fatos ele Marx como político e homem de ação que é procurando dispôlos em perspectiva conveniente e atuar sobre eles reajustando com isso suas observações ampliando o conhecimento dos mesmos fatos e aprimorando sua ação de político Comportase com isso como experimentador unindo a teoria à prática e a prática à teoria e iluminandoas ambas e reciprocamente cada qual pela outra E leva com isso para o terreno dos fatos sociais procedimentos metodológicos que se assimilam àqueles empregados na elaboração moderna das ciências físicas que já tinham dado e continuavam dando comprovação de seu alcance Logra assim assentar as bases para a elaboração científica do conhecimento do homem Ao mesmo tempo abremse com isso as perspectivas para a proposição do problema filosófico a começar pela liminar que é a determinação precisa do objeto da filosofia Situado o homem na sua história no evoluir de sua existência nela simultaneamente autor e ator agente e paciente tornase possível situálo no conjunto do Universo Também aí autor e ator Determinado por esse Universo e totalidade de que participa mas também determinante Isto é atuando sobre ele modificandoo e o transformando à feição de suas necessidades e aspirações dele homem Parte integrante da natureza e suas feições ele próprio com sua especificidade racional constituindo uma dessas feições e determinado embora por aquele conjunto de que é parte o homem não é a ocorrência passiva que se submete e docilmente adapta às contingências em meio às quais se encontra e que o afetam e assim determinam como se dá com a generalidade das feições e circunstâncias que com ele compõem a natureza Ou antes deixa progressivamente no desenrolar de sua evolução de ser aquela ocorrência passiva E deixa de sêlo na medida pm que graças a suas peculiaridades anatomofisiológicas e consequentemente psíquicas a saber o grande desenvolvimento adquirido por seu sistema nervoso superior ele homem se racionaliza isto é logra transformar as experiências que colhe no curso de suas atividades e prática no contato com o meio natural em que vive e também e sobretudo o humano das relações sociais logra transformar tal experiência em conhecimento consciente que vai acumulando e acrescendo para si próprio e seus semelhantes e que se transmite de geração em geração E conhecimento esse que deliberadamente se faz e sistematiza em normas de ação e condução daquela prática Nisso precisamente consiste a especificidade e singularidade do homem a sua potencialidade racional que da indistinção e confusão originárias no seio do Universo o faz emergir e progressivamente destacar como ser racional em que se torna não somente conhecedor mas sobretudo plenamente consciente de seu conhecimento o que lhe permite utilizálo intencionalmente e não apenas como simples reflexo nervoso e isso em nível e extensão cada vez mais elevados e amplos E na mesma medida e progressão o faz imprimir sua marca na natureza inclusive a humana sua última conquista em plena eclosão nos dias de hoje em moldes científicos modernos transformando a e se fazendo com isso senhor dela e de seu destino próprio Senhor e possuidor do Universo na predição de Descartes É nesse devenir racional que consiste a dialética do homem e de sua história E é na consideração dessa dialética que se esclarece o problema filosófico Nela se configura o verdadeiro homem o seu ser real e integral que não é o homem situado com uma razão absoluta à parte do Universo que como de fora e sobranceiro ele contempla interpreta e assim domina à feição do racionalismo clássico Não é tampouco o homem confundido no conjunto da natureza e com ela nivelado dominado por contingências a que passivamente se submete sem mesmo a consciência disso arrastado por rígido determinismo geral e igual para todas as coisas Do que se trata é do homem simultaneamente nessas duas situações ou antes passando permanentemente de uma para outra tornandose uma e outra em eterno devenir Ao mesmo tempo parte e parcela do todo universal mas também nele progressivamente se discriminando e destacando fazendose pelo pensamento e conhecimento no ser racional que consciente e intencionalmente modifica e transforma com a sua ação e para seus fins o meio físico e o humano das relações sociais de que participa e consequentemente se transformando também ele próprio com as transformações que determina e que passam a determinálo Esse o tema central da filosofia a saber o desenvolvimento dessa dialética do ser humano que a partir de sua indiferenciação no seio da natureza em que se emparelha com as demais feições e ocorrências com as quais nela coabita como simples parcela envolvida no conjunto universal em pé de igualdade e nele arrastado passivamente na mesma determinação geral que é do todo e transcende as suas partes a partir daí vai o ser humano progressivamente e de forma cada vez mais acentuada e generalizada fazendose ele próprio em si e por si poderoso fator determinante e consciente dessa sua determinação do todo universal de que participa Fator determinante em particular naquele setor que mais proximamente o atinge e envolve e que vem a ser o da convivência humana das relações sociais Setor esse em que ensaia apenas em nossos dias seus primeiros ainda tímidos hesitantes e incertos passos É essa dialética que cabe essencialmente à filosofia considerar e compreender pois é dessa compreensão que resultará o coroamento da tarefa de verdadeiro conhecimento integral do ser humano em suas possibilidades e limitações E terseá o que afinal mais importa para a projeção futura do processo dialético em que o homem se acha engajado Essa matéria não é nem pode ser objeto do conhecimento ordinário da ciência propriamente uma vez que esta tem por objetivo específico a simples representação mental da realidade o como essa realidade com suas feições e ocorrências se há de representar no pensamento e se tornar com isso conhecida pelo indivíduo pensante Isso inclusive no que respeita o terreno do conhecimento do homem Esse o objetivo do conhecimento ordinário do conhecimento em seu primeiro nível e não a participação daquela própria representação mental ou conhecimento elaborado em seu conjunto e generalidade na conformação do homem e determinação de sua dialética nas circunstâncias acima consideradas Isto é o entrosamento e relacionamento dialético do conhecimento e do comportamento do homem situado no todo universal de que participa Essa é matéria que vai além daquela que cabe à ciência propriamente Nem é acessível simplesmente aos procedimentos ordinários da elaboração científica Pertence assim necessariamente à outra ordem de conhecimentos que a respeitar nomenclatura consagrada não pode ser senão aquilo que se tem entendido por filosofia sob cuja designação se reúne de ordinário embora de maneira no geral informe e dispersa particularizada e confusa boa parte das questões que precisamente direta ou indiretamente dizem respeito à matéria que estamos considerando Mas esse último ponto é de segunda importância Mais uma questão de nomenclatura O que importa é a delimitação com um mínimo de precisão e a sistematização naquilo que é aproveitável desse variegado material que se tem entendido por filosofia e que de fato corresponde nos seus traços gerais embora no mais das vezes vagamente apenas com a fundamental dialética humana Uma tal sistematização se fará assim penso sobre a base e em torno da consideração metódica do processo em que se centraliza a atividade racional do homem e que vem a ser o fato do conhecimento como circunstância específica da dialética humana É no conhecimento e por ele que se gera a potencialidade humana como motor da dialética do homem O objeto da filosofia seria assim o fato do conhecimento considerado em toda sua amplitude a partir do processo da elaboração cognitiva que é propriamente o pensamento e a comunicação dessa atividade pensante Em especial pela sua expressão verbal a linguagem discursiva que torna o pensamento plenamente consciente e o faz amplamente comunicável e registrável e pois socializa o processo de elaboração cognitiva e concede permanência ao conhecimento elaborado E temos aí o que ordinariamente se entende por teoria do conhecimento Daí a consideração e exame do fato do conhecimento se estenderia para a função dele seu objetivo e papel que desempenha na existência humana e que vem a ser a sua utilização ou seja a determinação e orientação da ação Determinação e orientação essas que se realizam pela mediação do conhecimento reduzido a diretivas da ação normas de comportamento hábitos costumes normas de civilidade princípios éticos instituições jurídicas técnicas O conjunto enfim de diretivas que regulam a ação e conduta humanas Ação e comportamento que relacionam o homem com o meio que o envolve e com isso o situam no Universo de que participa Esse exame do conhecimento do fato cognitivo em sua generalidade se reduz como se vê à consideração sistemática do essencial dos sucessivos fatos ou momentos em que se compõe e desdobra a dialética humana da prática ao conhecimento e desse conhecimento de retorno à prática O que representaria esquematicamente a linha de desenvolvimento teórico do que haveria de ser a filosofia 1 Philipp Franck Modern Science and its Philosophy Cambridge Harvard University Press 1950 p 214 2 Essa restrição do pensamento elaborador é necessária pois o pensamento em si abstração feita do ato da elaboração do conhecimento participa das ocorrências do Universo como as demais E será objeto legítimo da ciência da psicologia em particular 3 Lembramos aqui novamente a observação já feita em nota anterior que o pensamento em si pode ser e é de fato objeto da ciência da psicologia em particular Mas nesse caso ele será considerado em abstrato e fora do ato pensante efetivo isto é na perspectiva de uma feição ocorrência do Universo tal como o restante da objetividade de que se ocupa a atividade cognitiva 4 Particularmente ilustrativo dos termos confusos em que se situa o debate acerca de matéria é a longamente disputada distinção entre os próprios escolásticos que Tomás de Aquino faz entre matériaprima que tem mais ares de puro conceito e matéria signata que é matéria com extensão e que portanto já lembra mais algo de material no sentido vulgar e mais corrente da palavra 5 Engels M E Duhring bouleverse la science anti Duhring trad francesa Paris 1931 I 139 6 Na acepção aqui adotada reservase a designação de conceito ou conceituação à representação mental das ocorrências ou circunstâncias em geral do Universo Aquilo em suma que ordinariamente se entende por ideia A linguagem discursiva tal como outras verbais gráficas e demais como em particular 7 Dialética do conhecimento 5ª ed 1969 I 177 8 Mais tarde mas sempre na mesma linha de pensamento Platão usará como fundamento básico de sua doutrina das ideias sobre o que voltaremos adiante o argumento referido por Aristóteles que procura refutálo Se há ciência e conhecimento de alguma coisa devem existir algumas outras naturezas além das naturezas sensíveis realidades estáveis pois não há ciência do que está em permanente fluxo Aristóteles Metafísica trad francesa de J Tricot 1733 9 Heidegger chega a considerar o problema do SER o centro da filosofia e entende que se a palavra SER não existisse não existiria o homem como tal 10 The Dialogues of Plato translated into english by B Jowett M A Introdução X Weber dirá Para Platão o mundo sensível todo inteiro não é senão um símbolo uma figura uma alegoria É a coisa significada a ideia expressa pelas coisas que somente interessa ao filósofo Alfred Weber Histoire de la philosophie europeéne Paris 1925 p 62 11 Estamos naturalmente esquematizando para fins de simples exposição sumária o pensamento de Platão na realidade mais complexo Vejase a respeito em particular a parte final do Livro IV de República 12 Alfred Weber op cit 77 Como bem demonstrou Zeller as categorias aristotélicas têm um caráter metafísico e ontológico tanto quanto lógico são formas do atributo predicados do ser e não como em Kant formas subjetivas do pensamento Cito J Tricot La métaphysique I 270 n 2 13 Aristóteles La métaphisique trad cit M 5 II 14 Id A 2 I 15 15 J Tricot L météorologiques Introdução VIII Paris 1941 16 Notese que Aristóteles também lançava mão desses modelos sensíveis como entre outros os quatro elementos do mundo sublunar engendrados pelos princípios o quente o frio o úmido o seco Os geração e Corrupção II 2 e 3 ou as exalações destinadas a dar conta dos fenômenos os mais estranhos uns a outros Mas aí o pensamento central já é outro como observa Tricot tratase de reduzir essa variedade a uma unidade fundamental da razão LBS météorologiques Intr VIII 17 Já tem sido observada a coincidência das estruturas e categorias lógicas e gramaticais Abordam o assunto dois trabalhos incluídos no nº de 1958 de Les études philosophiques Paris Pensée et grammaire de Jean Fourquet e Catégories de pensée et catégories de langue de Émile Benveniste Não se procurou todavia ainda que eu saiba concluir daí o que me parece evidente e se confirma historicamente como aliás já foi notado acima que a lógica formal clássica se elaborou na base da linguagem discursiva Nada tem a ver com leis do pensamento ou estruturas a priori préformadas não se sabe onde 18 Metafísica IX 7 19 E Zeller Outlines of the History of Greek Philosophy trad ingl de L R Palmer London 173 20 Leibniz dirá do espaço e tempo que são ambos uma ordem geral das coisas O espaço é a ordem das coexistências e o tempo a ordem das existências sucessivas São coisas verdadeiras mas ideias como os números Opera ed Dutens III 445 21 Não é aqui o lugar próprio para desenvolver a teoria dessa excrescência da metafísica que é a indução aristotélica cuja verdadeira natureza sempre se discutiu e discute ainda sem maior esclarecimento do assunto O certo contudo é que com a indução aristotélica não consideramos sua variante da indução completa que é puro truísmo verbal e nada tem de significativo não se trata propriamente de elaborar construir o conceito e representação mental das feições da realidade que é no que efetivamente consiste o conhecimento E tratase sim de atinar com a essência das coisas que vem a ser o conceito que preexiste à operação de conhecer e que se trata de desvendar 22 Dialética do conhecimento 5ª Ed São Paulo 1969 11 361 23 Há um beneficio contudo que talvez tenha sobrado dessa desenfreada especulação a que levou a metafísica São muitas gerações sucessivas que se terão exercitado na condução disciplinada das operações racionais a que levou aquela especulação o que possivelmente teria contribuído apesar de sua esterilidade em matéria de elaboração do conhecimento como ginástica mental adestradora do pensamento e educadora dele nos hábitos de rigor e precisão em que a cultura ocidental tão marcadamente se destaca O que teria possivelmente preparado o terreno para o surto da ciência moderna em que o pioneirismo dessa cultura é manifesto 24 É preciso atenção para essa restrição pensamento elaborador pois o próprio pensamento ou antes a atividade pensante pode constituir e eventualmente constitui de fato objeto do conhecimento como feição da realidade que também é Assim na psicologia que numa certa perspectiva se ocupa do pensamento como objeto Do que se trata no texto é do pensamento como integrante do sujeito do conhecimento em confronto com o objeto do mesmo conhecimento 25 Discursos do método Sexta Parte 26 Na filosofia moderna a partir de Descartes há uma inversão da pergunta clássica Que são as coisas para convertêla na pergunta Que é o conhecimento das coisas e como se pode alcançálo José Ferrater Mora Diccionario de filosofia Buenos Aires 1958 p 647 Só que o autor como em geral os historiadores da Filosofia não se dá muito ao trabalho de pesquisar a fundo e interpretar essa inversão no conjunto do processo evolutivo do pensamento filosófico ligando o anterior ao posterior da inversão Com algumas exceções bem entendido mas raras A história da filosofia se apresenta em geral como o desfilar num mesmo plano das opiniões de sucessivos filósofos e suas escolas 27 Não posso deixar aqui de chamar a atenção para Descartes certamente a grande figura daqueles séculos Ninguém como ele terá exibido melhor o modelo ilustrativo dessa confusão discursiva característica da época E para sentilo bem nada melhor que a comparação entre outros textos cartesianos da clareza rigor e precisão das Regras para a condução do espírito e a divagação o convencionalismo e o repetido ajustamento formal do texto para tais objetivos presentes na linha dominante do consagrado Discurso do método 28 Notese bem que estamos aqui nos referindo ao chamado materialismo vulgar que Marx e Engels viriam mais tarde reformular no materialismo dialético 29 Como vimos pelo nosso esquema os conceitos ou ideias se apresentariam aos materialistas como que presentes nas coisas etc do Universo uma vez que não há no caso senão percebêlas pelos sentidos e registrálas sob forma de ideias O que se assemelha mais a uma simples descoberta e não elaboração como efetivamente se dá com os conceitos e será obra da dialética marxista 30 Procurei desenvolver essa questão em Notas introdutórias à lógica dialética 31 Karl Marx La Sainte Famille Oeuvres philosophiques trad J Molitor Paris 1927 11 151 32 F Engels La Contribution à la critique de léconomie politique de Karl Marx in ÉtuLdes philosophiques Paris Éditions Sociales 1951 p 84 Sobre o autor Caio Prado Júnior 19071990 nascido em São Paulo fez seus estudos secundários no Colégio São Luís bem como em Eastbourne Inglaterra Formado em 1928 pela Faculdade de Direito hoje incorporada à Universidade de São Paulo obteve nela em 1956 a livredocência com a sua tese Diretrizes para uma política econômica brasileira Deputado estadual em 1947 teve seu mandato cassado em consequência do cancelamento do registro do Partido Comunista do Brasil pelo qual se elegera Recebeu o título de Intelectual do Ano pela publicação do livro A revolução brasileira sendo agraciado com o prêmio Juca Pato Faleceu em 1990 Marília Bernardes Marques O QUE É CÉLULATRONCO editora brasiliense O que é célulatronco Marques Marília Bernardes 9788511350579 105 páginas Compre agora e leia Este livro é uma condição oportuna e indispensável ao enriquecimento de um dos temas contemporâneos mais desafiadores envolvendo a ciência o uso das células tronco embrionárias A autora aborda o tema com um enfoque abrangente e integrador descrevendo e analisando a forma histórica e social assumida até o presente pelo dilema que fervilha a cada dia nas páginas dos jornais do mundo todo Analisa uma a uma as justificações presentes nas numerosas visões em confronto prudentemente tentando manter a devida distância dos indisfarçáveis interesses em jogo Compre agora e leia Álvaro L M Valls O QUE É ÉTICA editora brasiliense O que é ética Valls Álvaro L M 9788511351200 61 páginas Compre agora e leia Não existe povo ou lugar que não tenha noções de bem e mal de certo e errado Da Grécia antiga aos nossos dias a ética é um conceito que sempre esteve presente em todas as sociedades Mas apesar disso as dúvidas são muitas Seria a ética apenas um princípio supremo que atravessa toda a história da humanidade E numa sociedade capitalista qual a relação entre ética e lucro Compre agora e leia Maria Amélia de Almeida Teles O QUE SÃO DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES editora brasiliense O que são direitos humanos das mulheres de Teles Maria Amélia Almeida 9788511350302 130 páginas Compre agora e leia Sempre houve preconceito contra a discussão das questõs específicas das mulheres Não se concebia que mulheres violentadas por seus maridoscompanheiros espancadas e assassinadas sob a alegação de defesa da honra tinham seus direitos humanos violados Considera se normal que mulheres tenham salários mais baixos que homens que mulheres sejam alvo das ações masculinas de assédio sexual de estupro e demais tipos de violência de gênero É como se os direitos do homem incluíssem os da mulher ou como se estes fossem secundários A exclusão da cidadania das mulheres está arraigada em nossa cultura É preciso tratar o tema recuperando os conceitos históricos e as lutas políticas já travadas para conquistar a igualdade Consolidar os direitos humanos das mulheres é prioridade para uma sociedade justa e digna Compre agora e leia Carlos Rodrigues Brandão O QUE É EDUCAÇÃO POPULAR editora brasiliense O que é educação popular Brandão Carlos Rodrigues 9788511350562 95 páginas Compre agora e leia Normalmente a educação é pensada em domínios restritos como a Universidade a alfabetização o Ensino Médio e a supervisão escolar Na maioria das vezes ela não é analisada em seu cotidiano a cultura A educação propriamente dita é um domínio de ideias e práticas regidas pelas diferenças entre as diversas realidades sociais Mais do que pensar em domínios restritos é necessário pensar no modo de ser da educação popular e nas várias formas e situações que ela possui hoje em dia a educação na comunidade primitiva no ensino público nas classes populares e na sociedade igualitária A educação pode ser tanto uma forma de opressão quanto uma forma de libertação Isto depende apenas de como ela é pensada e praticada Compre agora e leia coleção primeiros passos 62 Roberto Lyra Filho O QUE É DIREITO editora brasiliense O que é direito Filho Roberto Lyra 9788511010626 100 páginas Compre agora e leia Quais as relações entre Direito e Justiça Direito e ideologia Direito e conflito social Em linguagem clara e precisa o professor Roberto Lyra discute as várias dimensões do direito apresentandoo não como conjunto imutável de regras mas como atividade em permanente transformação A maior dificuldade numa apresentação do direito não será mostrar o que ele é mas dissolver as imagens falsas ou distorcidas que muita gente aceita como retrato fiel Compre agora e leia Resumo Indicativo O que é Filosofia Antiga de Pierre Hadot Pierre Hadot em sua obra O que é filosofia antiga fornece um exame abrangente da essência e da progressão da filosofia durante a antiguidade Ele afirma que ao contrário das percepções contemporâneas a filosofia antiga era principalmente um modo de vida Hadot postula que nas eras antigas a filosofia transcendeu a mera contemplação teórica abrangendo aplicações práticas da vida e empreendimentos espirituais destinados a transformar profundamente os indivíduos Sua afirmação fundamental é que a filosofia antiga deve ser interpretada como uma disciplina espiritual voltada para remodelar o estilo de vida dos filósofos Ele afirma que luminares da filosofia antiga como Sócrates Platão Aristóteles e os estóicos perceberam a filosofia como uma jornada para adquirir sabedoria virtude e contentamento por meio de práticas como meditação autorreflexão e discurso filosófico Hadot ressalta a inseparabilidade da filosofia da existência diária dos filósofos e de suas comunidades Ele postula que a filosofia antiga funcionava como um regime espiritual voltado para a metamorfose pessoal e o aprimoramento moral contrastandoa com a inclinação contemporânea da filosofia para a teorização abstrata divorciada das realidades práticas Hadot afirma que os filósofos antigos praticavam exercícios espirituais para preparar as pessoas para os desafios da vida e a mortalidade promovendo um estilo de vida alinhado com a ordem natural e a harmonia cósmica Um pilar essencial da argumentação de Hadot é seu escrutínio meticuloso das diversas escolas filosóficas da antiguidade e suas práticas de vida correspondentes Ele investiga como os estoicos por exemplo se engajaram em reflexões diárias sobre a mortalidade e a impermanência das coisas mundanas como um método de cultivar a equanimidade e a resiliência em face da adversidade Hadot disseca o método socrático de diálogo que buscava despertar a percepção da própria ignorância nos parceiros de conversação estimulandoos à busca da verdade Ele fornece uma visão geral abrangente dos diversos exercícios filosóficos enfatizando o papel fundamental das práticas espirituais nas antigas tradições filosóficas Hadot elucida como os filósofos adotaram práticas como atenção plena prosoche e preparação para a morte melete thanatou para fortalecer a alma e guiar os indivíduos em direção à tranquilidade interior Esses exercícios foram considerados indispensáveis para o progresso moral e espiritual dos filósofos Além disso Hadot ressalta a importância das comunidades filosóficas onde o ensino e a promulgação da filosofia ocorreram coletivamente promovendo fortes laços entre mentores e discípulos Ele afirma que na antiguidade a educação filosófica era profundamente comunitária com os discípulos ativamente engajados na vida e nos rituais da escola filosófica Hadot investiga a distinção entre filosofia antiga e moderna enfatizando que a filosofia antiga tinha uma orientação prática e transformadora ao contrário de sua contraparte moderna Ele postula que os antigos empreendimentos filosóficos se estendiam além de uma mera busca por conhecimento teórico concentrandose em uma disciplina voltada para a metamorfose da vida cotidiana Compreender essa faceta é crucial para compreender a importância da filosofia antiga na formação do caráter e na busca da virtude moral Por meio de sua análise de várias escolas filosóficas como estoicismo epicurismo e platonismo Hadot revela como cada escola criou práticas específicas para promover a virtude e a sabedoria entre seus adeptos Ele elucida como essas escolas adaptaram suas filosofias para atender às necessidades de seus seguidores oferecendo um caminho pragmático para a realização pessoal Além disso Hadot investiga o papel crítico e transformador da filosofia alegando que ela funcionou como uma ferramenta para o autoaperfeiçoamento e como um meio de desafiar as crenças estabelecidas Ele ressalta a importância dos diálogos filosóficos socráticos para questionar e refinar os próprios pensamentos e convicções Além disso Hadot explora a interseção da filosofia antiga com campos como medicina e política apresentando uma visão holística da vida que engloba o bemestar físico mental e espiritual Ele afirma que a filosofia forneceu uma base ética e racional para as esferas pública e privada contribuindo para o avanço de uma sociedade mais justa e equitativa O processo de reflexão filosófica foi visto como uma jornada contínua de crescimento pessoal envolvendo introspecção autoavaliação moral e o cultivo diário de comportamentos virtuosos Hadot enfatiza que para os antigos a filosofia serviu como uma preparação tanto para os desafios da vida quanto para a inevitabilidade da morte incutindo um senso de propósito e orientação ética Ele propõe que o envolvimento em exercícios filosóficos diários ajudou as pessoas a enfrentar as adversidades da vida com equanimidade e firmeza Hadot destaca que a filosofia antiga prescrevia uma série de práticas espirituais cruciais para o cultivo da virtude e da sabedoria Essas práticas incluíam exercícios como contemplar a mortalidade refletir sobre suas ações e praticar a atenção plena todos os quais foram fundamentais para promover a tranquilidade interior e o alinhamento com a ordem natural Ele afirma que esses exercícios desempenharam um papel fundamental na formação do caráter e na busca da excelência moral Concluindo Pierre Hadot nos convida a reavaliar a importância da filosofia antiga como um modo de vida enfatizando a natureza crucial de incorporar práticas espirituais e exercícios filosóficos em nossas rotinas diárias Ele afirma que ao adotar essa abordagem podemos descobrir camadas mais profundas de significado em nossa existência e enfrentar dilemas existenciais com maior tranquilidade e sagacidade Hadot afirma que ao longo da história o aspecto pragmático da filosofia gradualmente cedeu terreno a uma postura mais teórica e abstrata particularmente evidente desde a era da Idade Média e o surgimento da filosofia escolar No entanto ele afirma que ainda existe a possibilidade de salvar a filosofia como um canal para a metamorfose pessoal e espiritual implementando os princípios defendidos pelos antigos pensadores em nossas experiências pessoais Este trabalho acadêmico não apenas oferece um exame meticuloso da filosofia antiga a partir de uma perspectiva histórica mas também avança na contemplação de como podemos colocar essas doutrinas em prática em nossas próprias vidas revivendo assim a filosofia como um meio de evolução pessoal e espiritual Resumo Indicativo O que é Filosofia de Caio Prado Júnior Caio Prado Júnior em sua obra O que é filosofia conduz um exame minucioso da essência objetivos e metodologias da filosofia sublinhando sua diferenciação fundamental da ciência e da literatura Ele postula que a filosofia não deve ser mal interpretada como uma especulação aleatória ou mera contemplação literária em vez disso deve ser percebida como uma investigação profunda e meticulosa sobre os aspectos mais essenciais e universais da realidade Prado Júnior afirma que a filosofia é validada por seu assunto distintivo a compreensão do conhecimento Enquanto a ciência se preocupa com realidades empíricas e fatos observáveis a filosofia investiga as condições processos e limites do ato cognitivo Essa diferenciação é fundamental para compreender o propósito e o significado da filosofia que supera as metodologias científicas ao abordar questões que transcendem o reino das investigações empíricas A filosofia se esforça para compreender não apenas o que sabemos mas também como adquirimos conhecimento e o que limita nossa compreensão O discurso acadêmico de Prado Júnior investiga a progressão histórica da filosofia ilustrando como diversas escolas de pensamento e ambientes culturais influenciaram a disciplina ao longo da história Ele ressalta a necessidade de contextualizar a filosofia dentro de seu contexto histórico reconhecendo as inúmeras definições e abordagens que refletem uma herança intelectual vibrante e ocasionalmente conflitante A filosofia conforme elucidada por Prado Júnior não é um campo estático mas um empreendimento dinâmico que evolui e se ajusta às mudanças culturais e intelectuais Um ponto central levantado por Prado Júnior é o papel fundamental da filosofia na análise crítica Ele afirma que a filosofia assume uma função crucial ao examinar e contemplar os fundamentos e as repercussões do conhecimento estabelecido Ao desafiar suposições a filosofia promove uma compreensão mais profunda da realidade servindo como uma busca crítica e introspectiva Essa função crítica é a pedra angular do avanço intelectual e cultural promovendo um escrutínio meticuloso e a reavaliação contínua das noções e teorias predominantes Além de seu papel crítico a filosofia complementa a investigação científica ao abordar dilemas profundos e universais que a ciência limitada por seus limites metodológicos não pode resolver Prado Júnior defende a noção de que filosofia e ciência compartilham uma base comum para explorar a realidade mas divergem em seus objetivos e amplitude Enquanto a ciência se concentra em facetas específicas e delineadas da existência empírica a filosofia lida com questões mais amplas e abstratas oferecendo uma perspectiva holística das experiências e conhecimentos humanos Essa relação complementar enriquece a compreensão humana oferecendo uma síntese que mescla diversas formas de conhecimento Prado Júnior também investiga a essência do conhecimento filosófico propondo que ele se baseie na contemplação profunda e criteriosa dos processos cognitivos e suas implicações A filosofia se esforça para desvendar os mecanismos e requisitos que facilitam o conhecimento investigando as estruturas subjacentes e os limites da compreensão humana A especulação filosófica conforme discutida por Prado Júnior ocupa uma posição central no reino da filosofia Ele reconhece as várias abordagens que existem na filosofia mas afirma que todas elas estão unidas por um fio condutor a busca incansável de respostas para investigações profundas sobre existência realidade e conhecimento Essa forma de especulação é a pedra angular da filosofia diferenciando a de outros campos do conhecimento A filosofia se diferencia ao evitar soluções superficiais ou imediatas dedicandose à exploração completa e meticulosa das questões mais intrincadas e misteriosas que deixam a humanidade perplexa Prado Júnior ressalta a importância contemporânea da filosofia afirmando que em um mundo que está em um estado de fluxo perpétuo a filosofia fornece uma base crítica e contemplativa para compreender e enfrentar novos desafios A filosofia mantém sua relevância ao se envolver com questões persistentes que continuam a confundir a humanidade oferecendo uma perspectiva crítica e contemplativa sobre o conhecimento e a realidade Seu papel vai além da mera observação de mudanças culturais e intelectuais contribui ativamente para moldálas fornecendo instrumentos conceituais e metodológicos para examinar e interpretar realidades emergentes Em sua análise final Caio Prado Júnior afirma que a filosofia se destaca como uma disciplina indispensável e distinta cuja legitimidade se baseia na profundidade e amplitude dos tópicos em que se aprofunda Ao abordar questões fundamentais e universais que estão além do alcance da ciência devido às suas restrições metodológicas a filosofia complementa a investigação científica Consequentemente a filosofia fornece uma visão holística e abrangente da realidade enriquecendo nossa compreensão das experiências e conhecimentos humanos
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O QUE É A FILOSOFIA ANTIGA Tradução Dion Davi Macedo Edições Loyola Título origina 1 Ouestce que la phifosophie antique Editions Gallimard Paris 1995 ISBN 2070327604 Edição Marcos Marcionilo Consultores Mara Faury Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento José Eduardo Marques Baioni Atualização bibliográfica Dion Davi Macedo Preparação Sandra Garcia Diagramação Teima dos Santos Custódio Revisão Renato da Rocha Carlos Mauricio Balthazar Leal Edições Loyola Jesuítas Rua 1822341 lpiranga 04216000 São Paulo SP T 55 11 3385 85008501 2063 4275 editorialloyolacombr vendasloyolacombr wwwloyolacombr Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma eou quaisquer meios eletrônico ou mecânico incluindo fotocópia e gravação ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora ISBN 9788515017850 6 edição 2014 2 reimpressão 2017 EDIÇÕES LOYOLA São Paulo Brasil 1999 Sumário PREFÁCIO Primeira cJarte fi definição platônica do filósofo e seus antecedentes CAPÍTULO 1 A FILOSOFIA ANTES DA FILOSOFIA A historia dos primeiros pensadores da Grécia A paideia Os sofistas do século V CAPÍTULO 2 15 27 27 30 32 O SURGIMENTO DA NOÇÃO DE FILOSOFAR 35 O testemunho de Heródoto 35 A atividade filosófica orgulho de Atenas 37 A noção de sophía 39 CAPÍTULO 3 A FIGURA DE SÓCRATES 47 A figura de Sócrates 4 7 O não saber socrático e a crítica do saber sofístico 50 O apelo do indivíduo ao indivíduo 56 O saber de Sócrates o valor absoluto da intenção moral 60 Cuidado de si cuidado dos outros 65 CAPÍTULO 4 A DEFINIÇÃO DO FILÓSOFO NO BANQUETE DE PLATÃO 69 O Banquete de Platão 69 5 Eros Sócrates e o filósofo 72 Isócrates 83 Segunda Cfarte fi filosofia como modo de vida CAPÍTULO 5 PLATÃO E A ACADEMIA 89 A filosofia como forma de vida na Academia de Platão 89 O projeto educativo 89 Sócrates e Pitágoras 92 A intenção política 93 Formação e investigação na Academia 96 A escolha de vida platónica 101 Exercícios espirituais 103 O discurso filosófico de Platão 11 O CAPÍTULO 6 ARISTÓTELES E SUA ESCOLA 119 A forma de vida teorética 119 Os diferentes níveis da vida teorética 125 Os limites do discurso filosófico 132 CAPÍTULO 7 AS ESCOLAS HELENÍSTICAS 139 Características gerais 139 O período helenístico 139 Influências orientais 145 As escolas filosóficas 148 Identidades e diferenças prioridªde da escolha de um modo de vida 154 Identidades e diferenças o método de ensino 155 O cinismo 162 Pirro 165 O epicurismo 169 Uma experiência e uma escolha 170 A ética 171 A física e a canônica 175 Exercícios 181 O estoicismo 187 A escolha fundamental 187 6 A física 189 A teoria do conhecimento 194 A teoria moral 195 Os exercícios 198 O aristotelismo 204 A academia platônica 205 O ceticismo 209 CAPÍTULO 8 AS ESCOLAS FILOSÓFICAS NA ERA IMPERIAL 213 Características gerais 213 As novas escolas 213 Os métodos de ensino a era do comentário 217 A escolha de vida 222 Plotino e Porfirio 227 A escolha de vida 227 Os níveis do eu e os limites do discurso filosófico 235 O neoplatonismo pósplotiniano e a teurgia 243 O discurso filosófico e a vontade de harmonização entre as tradições 243 O modo de vida 245 CAPÍTULO 9 FILOSOFIA E DISCURSO FILOSÓFICO 249 A filosofia e a ambiguidade do discurso filosófico 249 Os exercícios espirituais 259 Préhistória 259 Exercícios do corpo e exercícios da alma 271 A relação consigo e a concentração do eu 273 A relação com o cosmos e a expansão do eu 290 O sábio 313 Conclusão 328 CAPÍTULO 10 Terceira Parte rfuptura e continuidade fi Idade Média e os tempos modemos O CRISTIANISMO COMO FILOSOFIA REVELADA 333 O cristianismo definindose como filosofia 333 Cristianismo e filosofia antiga 348 7 CAPÍTULO ll DESAPARECIMENTOS E REAPARECIMENTOS DA CONCEPÇÃO ANTIGA DE FILOSOFIA 355 Ainda uma vez cristianismo e filosofia 355 A filosofia como serva da teologia 357 Os artistas da razão 362 A permanência da concepção de filosofia como modo de vida 366 CAPÍTULO 12 QUESTÕES E PERSPECTIVAS 381 BffiUOGRAFIA 397 I Riferências dos textos citados em epígrafe 397 li Citações de textos antigos 398 Abreviações 398 m Seleção de textos concernentes a certos aspectos da filosofia antiga 402 CRONOLOGIA 405 Antes de Cristo 405 Período helenístico 407 Depois de Cristo 410 O Império romano 410 O Império cristão 412 ÍNDICE DE NOMES 415 8 À memória de A f Voelke Tempo virá em que para edificarse moral racionalmente terseá preferencialmente as Memorabilia de Sócrates à Bíblia e em que se há de servir de Montaigne e de Horácio como guias para o caminho que conduz à compreen são do sábio e do mediador o mais simples e imperecível de todos Sócrates Nietzschê Os antigos filósofos gregos como Epicuro Zenão Sócrates etc permanecem muito mais fiéis à verdadeira Ideia do filósofo do que a que se fez nos tempos modernos Quando hás de enfim começar a viver vir tuosamente disse Platão a um ancião que lhe pedia escutasse algumas lições sobre a virtude Não se deve apenas especular mas é necessá rio também de uma vez por todas pensar em praticar Mas hoje se toma por sonhador aquele que vive de acordo com o que ensina Kant L Ver as referências p 397 11 É o desejo que gera o pensamento Plotzno Qual é o lugar do filósofo na cidade É o de um escultor de homem Simplício Os resultados de todas estas escolas e de todas as suas experiências pertencem a nós Nós não aceitamos uma receita estoica com menos agrado porque nós já nos apropriáramos de receitas epicuristas Nietzsche Querer o bem é preferível a conhecer a verdade Petrarca Penso que jamais houve alguém que tivesse prestado pior serviço ao gênero humano do que aquele que ensinou filosofia como um ofício mercenário Sêneca Em geral so Imaginamos Platão e Aris tóteles conrgrandes túnicas de pedantes Eram pessoas honestas e como as outras rindo com seus amigos e quando se divertiram em fazer suas Leis e sua Política fizeramnas brincando Era a parte menos filosófica e menos séria de sua vida A mais filosófica consistia em viver simples e tranquilamente Pascal Se as teorias filosóficas te seduzem sentate e te volta para ti mesmo Mas não te chames 12 jamais de filósofo e só sofras se alguém te der esse nome Epicteto Há em nossos dias professores de filosofia mas não filósofos Thoreau Sem a virtude Deus nao é senao uma palavra Platina Nada fiz hoje Não vivestes então Pois essa é a ocupação mais fundamental e ilustre Montaigne 13 jrefácio Refletese muito raramente sobre o que é em si mes ma a filosofia1 Ela é extremamente difícil de definir Aos estudantes de filosofia fazse sobretudo conhecer as filosofias Os cursos acadêmicos de filosofia propõem regularmente por exemplo Platão Aristóteles Epicuro os estoicos Plotino e depois das trevas da Idade Mé dia demasiadamente ignoradas nos programas oficiais Descartes Malebranche Espinosa Leibniz Kant Hegel Fichte Schelling Bergson e alguns contemporâneos Nos exames é necessário redigir uma dissertação em que se demonstre conhecer bem os problemas postos pelas teorias deste ou daquele autor Outra dissertação demonstrará a capacidade que se tem de refletir sobre um problema 1 Assinalamos a obra de G Deleuze e F Guattari Questce que la philosophie Paris 1991 O que é a filosofia tradução de Bento Prado Jr e Alberto Alonso Muiíoz Rio de Janeiro ed 34 1992 que está muito distante em seu espírito e método da presente obra e o pequeno livro de A Philonenko Questce que la philosophie Kant Fichte Paris 1991 que de uma maneira muito interessante apresenta a propósito das cartas de Fichte e Kant o problema da essência da filosofia Encontrarseá na Historisches Wõrterbuch der Philosophie T 7 PQ Bâle 1989 cols 572927 um considerável conjunto de estudos sobre a definição de filosofia desde a Antiguidade até os nossos dias 15 O que é a filosofia antiga qualificado de filosófico visto que foi em geral tratado por filósofos antigos ou contemporâneos Em si nada há a dizer de novo sobre isso Na verdade é estudando as filosofias que se pode ter uma ideia da filosofia Portanto a história da filosofia não se confunde com a das filosofias caso se entenda por filosofias os discursos teóricos e os sistemas dos filósofos Ao lado da história há lugar para um estudo da vida e dos comportamentos filosóficos A presente obra pretende precisamente descrever em seus traços gerais e comuns o fenômeno histórico e espi ritual que representa a filosofia antiga O leitor me dirá por que se limitar à filosofia antiga tão distante de nós Eu teria várias respostas para lhe dar Em primeiro lugar é um domínio no qual espero ter adquirido certa compe tência Também como disse Aristóteles para compreender as coisas é necessário vêlas enquanto se desenvolvem2 é preciso apreendêlas em seu nascimento Se agora falamos de filosofia é porque os gregos inventaram a palavra philosophia que significa amor pela sabedoria e porque a tradição da philosophia grega foi transmitida à Idade Média e posteriormente aos tempos modernos Tratase de apropriarse do fenômenQm sua origem sempre tendo consciência de que a filosofia é um fenômeno histórico que teve início no tempo e evoluiu até nossos dias Tenho a intenção de mostrar em meu livro a diferença profunda que existe entre a representação que os antigos faziam da philosophia e a representação que se faz habitual mente da filosofia em nossos dias pelo menos na imagem 2 Aristóteles Política I 2 1252 a 24 tradução de Roberto Leal Ferreira São Paulo Martins Fontes 1991 16 Prefácio transmitida aos estudantes por conta das necessidades do ensino universitário Eles têm a impressão de que todos os filósofos estudados esforçaramse sucessivamente para inventar cada um de uma maneira original uma nova construção sistemática e abstrata destinada a explicar de uma maneira ou de outra o universo ou pelo menos caso se trate de filósofos contemporâneos que eles pro curaram elaborar uma nova discussão sobre a linguagem Dessas teorias que se poderia denominar filosofia geral resultarn em quase todos os sistemas doutrinas ou críticas da moral que extraem as consequências para o homem e para a sociedade dos princípios gerais do sistema e convidam a partir disso a fazer uma escolha de vida a adotar uma maneira de comportarse Isso não entra na perspectiva do discurso filosófico Penso que essa representação é um erro caso seja apli cada à filosofia da Antiguidade Evidentemente não se trata de negar a extraordinária capacidade dos filósofos antigos de desenvolver uma reflexão teórica sobre os problemas mais sutis da teoria do conhecimento da lógica ou da física Contudo essa atividade teórica deve ser situada em uma perspectiva diferente da que corresponde à representação corrente que se faz da filosofia Em primeiro lugar ao me nos desde Sócrates a opção por um modo de vida não se situa no fim do processo da atividade filosófica como uma espécie de apêndice acessório mas bem ao contrário na origem em uma complexa interação entre a reação crítica a outras atitudes exisúú1ciais a visãgo1Jª fe cta ll1ª11eira de viver e de ver o mundo e a própria decisão volun tária e essa opção determina até certo ponto a doutrina e 1 o modo de ensino dessa doutrina O discurso filosóficq tem 17 O que é a filosofia antiga sua origem portanto em uma escolha de vida e em uma opção existencial e não o contrário Em segundo lugar essa decisão e essa escolha jamais se fazem na solidão nunca houve filosofia nem filósofos fora de um grupo de uma comunidade em uma palavra de uma escola filosófica e precisamente uma escola filosófica corresponde nesse caso e antes de tudo a uma maneira de viver a uma escolha de vida a uma opção existencial que exige do indivíduo uma mudança total de vida uma conversão de todo o ser e finalmente a um desejo de ser e de viver de certa maneira Essa opção existencial implica por seu turno cer ta visão de mundo e será tarefa do discurso filosófico re velar e justificar racionalmente tanto essa opção existencial como essa representação do mundo O discurso filosófico teórico nasce dessa opção existencial inicial e reconduz à medida do possível ou por sua força lógica e persuasiva à ação que quer exercer sobre o interlocutor ele incita mestres e discípulos a viver realmente em conformidade com sua escolha inicial ou ainda conduz de alguma ma neira à aplicação de um ideal de vida Quero dizer que o discurso filosófico deve ser compreen dido na perspectiva do medo de vida no qua ele é ao mesmo tempo o meio e a expressão e em consequência que a filosofia é antes de tudo uma maneira de viver mas está estreitamente vinculada ao discurso filosófico Um dos temas fundamentais deste livro será a distância que separa a filosofia da sabedoria A filosofia não é senão o exercício preparatório para a sabedoria Não se trata de opor de um lado a filosofia como um discurso filosófico teórico e de outro a sabedoria como um modo de vida silencioso que será praticado a partir do momento em que o discurso 18 Prefácio tiver atingido seu aabamento e sua perfeição segundo o esquema que E WeiP propoe ao escrever O filsofo não é um sábio ele não tem ou não é a sa edna ele fla e mesmo quando seu discuso tem por fim unzco se supnmzr zsso não impede que ele fale até o momento em que tenha concluído e fora dos instantes perfeitos em que tenha concluído Iso uma ituação análoga à do Tractatus logicophi losophzcus de Wittgenstein no qual o discurso filosófico do Tractatus desdobrase finalmente em uma b d 1 s A sa e ona SI encosa filosofia antiga admite muito bem de uma maneira ou de outra e desde o Banquete6 de Plat fil fi ao que o oso o nao e um sábio mas ela não se considera um puro discurso que é suspenso no momento em que a sabedon aparece ela é ao mesmo tempo e indissoluvel mened dicuro gQdemaii1Jspara rsII1Jmais lIgiYa Contudo é verdadeque Iscurso de Platao Aristóteles ou Plotino é suspenso no hmar de certas experiências que se não são a sabedoria sao uma espécie de antegozo 3 É Weil Logique de la philosophie Paris 1950 p 13 4 Tractatus logicophilosophicus 2 ed trad d uçao apresentaçao e ensaio ouo de Lmz Henrique Lopes dos Santos São Paulo Edusp 1994 5 Cf sobre esse ponto Gottfried Gabriel L 1 tur D 1 a ogque comme IIttera e e a stgmficatwn de la forme littéraire chez Wittgenstein in L 1VOUVeau Commfffce 8283 1992 p 84 e d S 6 O Baquete 6 e tradução introdução e notas de José Cavalcante e oza Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1991 O Banquete introdu ão aduçao e notas de Mana Teresa Schiappa de Azevedo LisboaSão p ç I Berbo 173 Um Banquete 3a ed seleção introdução tradução de runa Sao Paulo Cutrix 1952 N do T 19 O que é a filosofia antiga Não se pode mais opor modo de vida disrso orno se eles correspondessem respectivamente a pratica a teo ria 0 discurso pode ter um aspecto prátio à medida ue tende a produzir um efeito sobre o ouvmte o leito Quanto ao modo de vida ele pode ser nao eonco eVI dentemente mas teorético isto é contemplativo Para ser claro devo especificar que entendo palvr discurso no sentido filosófico de pensamento discursvo expresso na linguagem escrita ou oral e não no sentido disseminado em nossos dias de maneira de falar que revela uma atitude discurso racista por exemplo EU contrapartida recusome a confundir inguagem e funçao cognitiva Citarei a esse propósito as hnhas esclarecedoras de J Ruffie De fato podese perfeitamente pensar e conhecer sem lingua gem e talvez para certas interpretaçoe conhecer mehor O pensamento reconhece a própria capaczdade de dejinzr uma conduta racional e a faculdade de representação mentl e de abstração O animal capaz de distinguir a forma trzngu lar ou certas combinações de objetos pensa como a crzança que não fala ou o surdomudo que não oi educao o estudo clínico demonstra que não ha orrlça rttre o desenvolvimento da linguagem e o da zntelzgencza um deficiente intelectual pode falar bem um afásico pode ser t l t E no homem normal as faculdades muzto zn e zgen e de elaboração manifestamse às vezes mazs ou menos esma gadas pelas faculdades de expressão As grandes descoberts parecem spr feitas independentemente da liguagem a partzr dos esquemas patterns elaborados no cerebro 7 J Ruffié De la biologie à la culture Paris 1976 P 357 20 Prefácio Insisto nesse ponto porque reencontraremos no curso deste livro situações nas quais a atividade filosófica conti nua a se exercer ainda que o discurso não possa exprimir essa atividade Não se trata de opor e separar de um lado a filosofia como modo de vida e de outro um discurso filosófico que será de algum modo exterior à filosofia Ao contrário tratase de mostrar que o discurso filosófico participa do modo de vida Mas em contrapartida é necessário reco nhecer que a escolha de vida do filósofo determina seu discurso Isso nos leva a dizer que não se pode considerar os discursos filosóficos realidades existentes em si e por si mesma e estudar a estrutura independentemente do filósofo que as desenvolveu Podese separar o discurso de Sócrates da vida e da morte de Sócrates Uma noção aparecerá frequentémente nas páginas que se seguem a de exercícios espirituais8 Designo por esse termo as práticas que podem ser de ordem fisica como o regime alimentar discursiva como o diálogo a me ditação ou iptttitiva como a contemplação mas que são todas destinadas a operar modificação e transformação no sujeito que as pratica O discurso do professor de filosofia pode ademais tomar a forma de um exercício espiritual à medida que esse discurso se apresente sob uma forma tal que o discípulo do mesmo modo que o ouvinte o leitor ou o interlocutor possa progredir espiritualmente e transformarse interiormente 8 JP Vemant utiliza também esse termo em Mythe et pensée chez les Grecs t I Paris 1971 p 96 Mito e pensamento entre os gregos 2a ed tradução de Haiganuch Sarian Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p ll9 21 O que é a filosofia antiga Nossa demonstração desenvolverseá em três etapas A primeira consistirá em retraçar a história dos primei ros empregos da palavra philosophia e em compreender o sentido da definição filosófica dessa palavra por Platão quando no Banquete ele define a philosophia como o de sejo de sabedoria Em seguida procuraremos reencontrar as características das diferentes filosofias da Antiguidade consideradas em seu aspecto de modo de vida o que nos levará finalmente a estudar os traços comuns que as unem Em um terceiro momento buscaremos expor por qual razão e em que medida a filosofia foi concebidt a partir da Idade Média como uma aÜVíclade puramente teórica Por fim nos perguntaremos se é possível retornar ao ideal antigo de filosofia Para justificar nossas afirmações nos apoiaremos muito sobre os textos dos filósofos antigos Isso representará penso eu um serviço aos estudantes que nem sempre têm fácil acesso às fontes As reflexões que apresento ao leitor são fruto de longos trabalhos consagrados aos filósofos e à filosofia antigos Dois livros influenciaramme muito no curso dessas pesquisas Em primeiro lugar Seelenführung Direção de almas de P Rabbow9 publicado em 1954 que expõe as diferentes formas qutomar essas práticas podem h os epicuristas e nos estoicos e que teve iguahnente o mérito de marcar a continuidade existente entre a espiritualida de antiga e a cristã mas talvez limitandose demasiado exclusivamente aos aspectos retóricos dos exercícios espirituais Em seguida a obra de fuinha mulher que escreveu antes de conhecerme um livro sobre Sêneca e 9 P Rabbow Seelenführung Methodik der Exerzitien in der Antike München 1954 22 Prefácio a trdição da direção da consciência grecoromanaro que oefia oba do filósofo estoico na perspectiva gerl da os o a an tlga Tive o prazer de conhecer dois filósofos q ue tamb estavam d d em ca a um e uma maneira independente da mmhar mtressados nesses problemas o saudoso A J Voelke CUJos estudos sobre a filosofia como terapia d alma foram publicados recentemente e meu colega pol A J D kjl2 ones omas CUJa obra sobre a concepção de filosofia na Idae Media e no Renascimento mostra como a conce ção antiga de filosofia foi ocultada mas apenas parcialen te na Idade Média e como retornou no R enasCimento por eemplo em Petrarca e em Erasmo Por outro lad adito que mu atigo intitulado Exercices spirituels p I osopue antique publicado em 1977 teve influên sobre a Ideia que M F I Cia oucau t tmha de cultura de siI3 Jha afirmei lhures as convergências e as divergências que a entre nos14 É e exprimir de todo o coração meu reconhecimento a nc Igne que me propôs escrever esta obra indicou me o plano e teve comigo uma paciência exemplar Minha 10 Ilsetraut Hadot S d d tung Berlin 1969 ene un ze gnechzschromische Tradition der Seelenlei apresenta a como tese de doutoral em 1965 bl d sem modificaçoes um pouco mais tarde pu rca a Hadous9losophie comme thérapie de lâme Préface de P 12 Domanski La Philosophie théorie ou d de Moyen Âge et du début d l Re mo e vze Les controverses du 1996 e a nazssance Preface de P Hadot FribourgParis 13 M Foucault Le souci de sai Paris 1984 p 57 14 P H d t Rfl v a o e exrons sur la notion de culture de soi M h l lOUcault phzlosohe Re t 1 m zc e 1988 r ncon re nternatzonale Paris 9 261269 10 11 janvier 23 O que é a filosofia antiga cara colega R Hamayon com seus conselhos e escritos esclareceume os problemas muito complexos apresentados pelo xamanismo Que ela encontre aqui a expressão de minha profunda gratidão Meus calorosos agradecimentos a Sylvie Simon Gwenaelle Aubry J eannie Carlier Ilsetraut Hadot que releram esta obra para eliminar dela tanto quanto possível as incorreções e os erros 24 fi do filóso tes Capítulo 1 ji filosofia antes da filosofia A historia dos primeiros pensadores da Grécia A filosofia antes da filosofia Efetivamente as palavras da família philosophia surgiram apenas no século V aC e o termo só foi definido filosoficlJnnte no século IV aC por Platão contudoArisfótêles com ele toda a tradição da história da filosofia consideram filósofos os primeiros filó sofos gregos1 que apareceram no início do século VI na periferia da zona de influência grega nas colônias da Ásia Menor exatamente na cidade de Mileto Tales matemático e físico um dos Sete Sábios célebre por ter predito o eclip se do sol de 28 de maio de 585 depois Anaximandro e Anaxímenes Esse movimento de pensamento estenderseá I Encontrarseão os fragmentos de suas obras em Les Présocratiques Éd JP Dumont citado Dumont nas notas que se seguem Paris Gallimard 1988 Bibliotheque de la Pléiade Os Présocráticos 2 ed seleção de textos e supervisão de José Cavalcante de Souza traduções de José Cavalcante de Souza et al São Paulo Abril Cultural 1978 Os Pensadores Gerd A Bornbeim org Os filósofos présocráticos São Paulo Cultrix 1988 Vejase igualmente do mesmo autor a edição que ele estabeleceu para o público estudantil Les Écoles présocratiques Paris Gallimard Folio Essais 152 27 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes a outras colônias gregas agora para as da Sicília e do Sul da Itália É assim que no século VI Xenófanes de Colofão emigra para Eleia que Pitágoras originário da ilha de Saos não longe de Mileto fixase em Crotona no fim do secu lo VI e depois no Metaponto Pouco a pouco Sul a Itália e a Sicília tornarseão o centro de uma atlVIdade m telectual extremamente viva por exemplo com Parmênides e Empédocles Todos esses pensadores propõem uma explicação racio nal do mundo e isso é uma reviravolta decisiva na história do pensamento Já existiam cosnogonis antes deles no Oriente Médio e também na Greoa arca1ca mas elas eram de tipo mítico isto é descreviam a história do mud com uma luta entre entidades persomficadas Eram geneses no sentido bíblico do livro do GênesiP livro das gerações destinadas a conduzir um povo à memória de seus ancestrais e a unilos às forças cósmicas e às gerações dos deuses Criação do mundo criação do homem criação do povo tal é 0 objeto das cosmogonias Como bem mostru G Naddaf3 embora os primeiros pensadores gregos subsutuam essa narração mítica por uma teoria racional do mundo eles conservam 0 esque1pa tçEQrio que estruturava as cos mogonias míticas Eles propõem uma teoria a rigeiU do mundo do homem e da cidade Essa teona e racwnal porque pra exp1lcar o mundo não por um luta er os elementos mas por uma luta entre as realidades flSl 2 Bíblia tradução ecumênica São Paulo Edições Loyola 1994 há trans criação de Haroldo de Campos do Gênesis Brreshith a cena da orige e outros estudos de poética bíblica transcriações por Haroldo de Campos Sao Paulo Perspectiva 1993 Signos 16 3 G Naddaf Lorigine et lévolution du concept grec de phus1s LeVIston QueenstonLampeter The Edwin Mellen Press 1992 28 A filosofia àntes da filosofia cas e a predominância de uma sobre as outras Essa trans formação radical resumese aliás na palavra grega physis que em sua origem significa ao mesmo tempo o início 0 deenvolvimet e o resultado do processo pelo qual uma cmsa se constltm O objeto de sua caracterizaçãb intelectual caracterização que eles denominam investigação4 historia é a physis universal As teorias racionais em toda a tradição filosófica grega erão influenciadas por esse esquema cosmogôni co ongmal Daremos aqui apenas o exemplo de Platão que na sequência de diálogos intitulados Timev Crítiaf e Hermócrates projetado mas substituído pelas Leis quis por sua vez escrever um grande tratado sobre a physis em toda a sua extensão desde a origem do mundo e do homem até a origem de Atenas Aqui ainda reencontrare mos um livro das gerações que leva os atenienses à lem brança de sua origem e de seus ancestrais para enraizálos na ordem universal e no ato fundador do Deus criador Pltão além do mais não dissimula isso ele propõe no Tzmeu o que denomina um mito verossímil ao introduzir a figura mítica do Demiurgo que produz o mundo con templando o Modelo eterno que são as Ideias7 No livro X das Leis Platão já não se satisfaz em propor uma nar ração mítica ele quer fundar sua cosmogonia sobre uma 4 Heráclito Fragmento 35 Dumont p 154 Platão Fédon 96 a 7 5 Timeu tradução de Carlos Alberto Nunes Belém Editora da Uni versidade Federal do Pará 1986 6 Críttas tradução de Carlos Alberto Nunes Belém Editora da Uni versidade Federal do Pará 1986 7 Cf P Hadot Physique et poésie dans le Timée de Platon in Reaue de Théologie et de Philosophie 115 113133 1983 G Naddaf Lorigine et lévolution pp 341442 29 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes oiada em argumentos aceitáveis demonstraçao ngorosa ap 1 retorna explicitamente t dos Nesse esforço racwna Por o t eza processo oncebida como na ur à noçao de physzs c tndo por sua d es gregos ms1s 1 pelos primeiros pena ordal e orinal desse processo ráter pnmor 1 t Parte no ca 1 1 e 0 movimento 1 s nmord1a e ongma Mas para P atao 0 P automotor isto gera a Sl mesmo que e e processo que se evolucionista é substituído assim é a alma O esquernaonista o universo já não nasce do por um esquema cno as da racionalidade da alma e a automausmo da physzs tudo identifica alma como princípio pnmezro antenor a se à physis A paideia b Podese falar tam em de filosofia antes da filosofia a é utra corrente do pensamento grego pr propoIto de o ráticas e teorias que se reportam socratlco relrm amental da mentalidade grega o a uma exigenoa un d g o cuidado daquilo que os d d formar e de e ucar eseJO e p a ialo Desde os distantes tempos gregos denommavam az e 8 Cf id ibid PP 443939 ral entre os gregos cf L Hadot 9 Sobre o início da educaçao mo Th S ritual Guide in Classical 10 38 e da mesma autora e P1 N Seneca PP G1 k Roman org A H Armstrong ew Mediterranean Spiritualzty Egyptzan ee York Crossroad 1986 PP 436459 fim do seculo V consultese W Atenas ate o 10 Para a Grécia arcaica e p 1964 Paideia A formação L fi n de lhomme grec ans Jaeger Paideza a arma zo M p ra São PauloBrasília Martms tr dução de Artur arret d do homem grego a B ília 1986 Esperase que se tra uza para FontesEditora Umverstdade de rabs tr ta dessa vez de Sócrates e de d tomo dessa o ra que a I M o frances o segun o 1955 Veiase tambem H arrou bli da em Berhm em A Platão e fm pu ca p 1950 História da educaçao na n z Histoire de léducation dans lAntzquzte ans 30 A filosofia antes da filosofia da Grécia homérica a educação dos jovens fora a grande preocupação da classe dos nobres daqueles que possuem a aret isto é a excelênciél necessária pela nobreza de sae 11 que se trDãCmais tarde com os filósofos a virtude isto é a nobreza da alma Podemos fazer uma V ideia dessa educação aristocrática graças aos poemas de Teógnis que são uma compilação de preceitos morais12 Essa educação é dada pelos adultos no próprio grupo social Preparase nele para adquirir as qualidades força fiça çortesgsg de dever eçe honr que convêm aos guerreiros e se encarnam nos grandes ancestrais di vinos que se tomam por modelo A partir do século V com o desenvolvimento da democracia as cidades terão o mesmo cuidado em formar os futuros cidadãos por meio de exercícios corporais ginástica e música e por meio do espírito Mas a vida democrática engendra lutas pelo poder é necessáriosaber persuadir o povo fazêlo tomar essa ou aquela decisão na assembleia É portanto necessário caso se queira tornarse um chefe do povo ir ªbª2gie daJiugyagem E a essa necessidade que há de responder o movimento sofistico guidade trad de Mário Leônidas Casanova São PauloBrasília EPUINL 1975 e o capítulo The Origins of Higher Education at Athens in P Lynch Aristotles School A Study of a Greek Educational Institution University of California Press 1972 pp 3268 11 Cf W Jaeger Paideia pp 29 ss pp 17 ss da tradução brasilei ra que mostra muito bem a diferença entre a educação do aristocrata conforme o ideal de sua casta e a cultura do homem 1af qual ele deveria set segundo a filosofia 12 Cf W Jaeger Paideia pp 236248 N do T pp 160172 Para uma tradução de poemas de Teógnis cf Poesia grega e latina eüçaÓnotas e tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos São Paulo Editora Cultrix 1964 Clássicos Cultrix 31 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes Os sofistas do século V Com o desenvolvimento da democracia ateniense no século V toda a atividade intelectual que se disseminara nas colônias gregas da Jônia da Ásia Menor e do Sul da Itália fixase em Atenas Pensadores professores e sábios afluem para essa cidade introduzindo modos de pensamento ainda pouco conhecidos ali e que são mais ou menos bem aco lhidos Por exemplo o fato de Anaxágoras13 proveniente da Jônia ter sido asJªQQdtpoe precisar exilarse mostra bem que o espírito de investigação que se desenvol vera nas colônias gregas da Ásia Menor era profundamente insólito para os atenienses Os famosos sofistas do século V são muitas vezes estrangeiros Protágoras e Pródico são provenientes da Jônia Górgias do Sul da Itália O mo vimento de pensamento que eles representam mostrase ao mesmo tempo como uma continuidade e como uma ruptura em relação ao que os precede Continuidade à medida que o método de argumentação de Parmênides Zenão de Eleia ou Melisso volta a ser encontrado nos paradoxos sofísticos continuidade tambm à medda que os sofistas visam reunir todo saber oent1fico ou h1stonco acumulado pelos pensadores anteriores a eles Mas tam bém ruptura porque deuJTI lado eles submetem es e saber anterior a uma crítica radical insistindo cada m à sua maneira no conflito que opõe ªtl1LaP1ysis e as çQIUiellÇÕeshuJlªJJes Jnómoi e porque de 16utro lado sua atividade é especialmente dirigida à formação da juventude tendo em vista o êxit na política Seu ensino 13 Sobre os conflitos entre os filósofos e a cidade cf a antiga mas sempre útil obra de P Decharme La critique des traditions religieuses chez les Grecs Paris 1904 32 A filosofia antes da filosofia responde a uma necessidade O desenvolvimento da vida democrática exige que os cidadãos sobretudo os que que rem chegar ao poder possuam uma habilidade perfeita da palavra Até então os jovens eram formados segundo a aretê pela synousía isto é pela frequentação do mundo adulto14 sem distinção Os sofistas ao contrário inventam a educação em ambiente artificial o que se tornará uma das características de nossa civilização15 Eles são os pro fissionais do ensino antes de tudo pedagogos ainda que seja necessário reconhecer a notável originalidade de um Protágoras de um Górgias ou de um Antifonte por exem plo Por um salário eles ensinavam a seus alunos receitas que lhes permitissem persuadir os ouvintes defender com a mesma habilidade o pró e o contra antilogia Platão e Aristóteles acusaramnos de ser comerciantes do saber negociantes no atacado e no varejo16 Eles por outro lado ensinam não só a técnica do discurso que persuade mas também tudo o que pode servir para atingir a dimensão da visão que sempre seduz um auditório isto é a cultura geral pois tratase lá também tanto de ciência geometria ou astronomia como de história sociologia ou teoria do di reito Eles não fundam escolas permanentes mas propõem 14 Sobre a synousía cf Platão Defesa de Sócrates 19 e Defesa de Sócrates 4a edição tradução de Jaime Bruna São Paulo Nova Cultural 1987 Os Pensadores 15 Encontrarseão os fragmentos dos sofistas nos Les Présocratiques citado p 27 n 1 pp 9811178 e emJP Dumont Les sophistes Fragments et témoignages Paris 1969 Sobre os sofistas cf G RomeyerDherbey Les Sophistes Paris 1985 de Romilly Les grands sophistes dans lAthenes de Péri cles Paris 1988 G Naddaf Lorigine et lévolution pp 267338 P Lynch Aristotles School pp 3846 B Cassin LEffet sophistique Paris 1995 16 Platão Sofista 222 a 224 d Sofista 3a edição tradução e notas de Jorge Paleikat e João Cruz Costa São Paulo Nova Cultural 1987 Os Pensadores Aristóteles Refutações Sofisticas 165 a 22 33 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes mediante retribuição séries de cursos e para atrair os ou vintes fazem sua própria publicidade dando conferências públicas por ocasião das quais eles provam seu saber e habilidade Eles são professores ambulantes que beneficiam com sua técnica não só Atenas mas ainda outras cidades Assim a aretê a excelência dessa vez concebída como competência que deve permitir desempenhar um papel na cidade pode tornarse objeto de aprendizado se o sujeito que a aprende tem as atitudes apropriadas e se as exerce satisfatoriamente 34 Capítulo 2 O surgimento da noção de filosofar O testemunho de Heródoto É quase certo que os présocráticos dos séculos Vil e VI aC Xenófanes ou Parmênides por exemplo e mesmo pro vavelmente apesar de certos testemunhos antigos porém muito discutíveis Pitágoras1 e Heráclito2 não conheceram o adjetivo philosophos nem o verbo philosophein filosofar tampouco com mais forte razão a palavra philosophia Essas palavras com efeito segundo toda verossimilhança só apa 1 Há opiniões divergentes sobre esse assunto R Joly Le theme philo sophique des genres de vie dans lAntiquité classique Bruxelles 1956 W Burkert Platon oder Pythagoras Zum Ursprung des Wortes Philosophie in Her mes 88 159177 1960 C J de Vogel Pythagoras and Early Pythagoreanism Assen 1966 pp 15 e 96102 Concordo com W Burkert que o caso relatado por Heráclido do Ponto cf Diógenes Laércio I 12 Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres 2a ed tradução introdução e notas de Mário da Gama Kury Brasília Ed Universidade de Brasília 1997 Cícero Tusculanas V 8 Jâmblico Vida de Pitágoras 58 é uma projeção sobre Pitágoras da noção platônica de philosophia 2 Heráclito B 35 Dumont p 134 e a nota de JP Dumont p 1236 que emite dúvidas sobre a autenticidade da palavra filósofo do mesmo modo DielsKranz Die Vorsokratiker t I DublinZurich 1969 p 159 35 A definição platônicado filósofo e seus antecedentes receram no século V no século de Péricles no qual Atenas brilha ao mesmo tempo por sua preponderância política e por seu esplendor intelectual à época de Sófocles de Eurípides dos sofistas à época também em que por exem plo o historiador Heródoto originário da Ásia Menor no decorrer de suas numerosas viagens passa a viver na céle bre cidade E talvez seja precisamente em sua obra que se encontra a primeira menção a uma atividade filosófica Heródoto narra o encontro lendário de Sólon o legislador de Atenas séculos VIIVI um dos que são denominados os Sete Sábios com Creso o rei da Lídia Este orgulhoso de seu poder e de suas riquezas dirigese a Sólon nestes termos3 Meu caro ateniense a notícia de tua sabedoria sophiês e de tuas viagens chegou até nós Não ignoro absolutamente que por amar a sabedoria philosopheôn percorreste muitos países por causa de teu desejo de conhecer Vislumbrase aqui o que representavam naquele momen to a sabedoria e a filosofia As viagens que Sólon realizou tinham como fim conhecer adquirir vasta experiência da realidade e dos homens descobrir a um só tempo países e costumes diferentes Observese a esse respeito quanto isso se assemelha ao que os présocráticos caracterizam intelectualmente como uma historia isto é uma investi gação4 Essa experiência pode fazer daquele que a possui um bom juiz nas coisas da vida humana Eis por que 3 Heródoto Histórias I 30 tradução de J Brito Broca São PauloRio de JaneiroPorto Alegre W M Jackson sd Clássicos Jackson 4 Cf acima p 29 se Heráclito fala efetivamente de filósofos em seu fragmento 35 cf p 35 nota 2 observese então que ele vincula filosofia e investigação 36 O surgimento da noção de filosofar Creso pergunta a Sólon qual é para ele o homem mais feliz E ele responderá que ninguém pode ser considera do feliz antes de ter visto o fim de sua vida Heródoto revela a existência de uma palavra que talvez já estivesse na moda anteriormente mas que em todo caso tinha um futuro na Atenas do século V a Atenas da de mocracia e dos sofistas De maneira geral desde Homero as palavras compostas em philo serviam para designar a PSi5ãde alque eníseu interesser sllaªyer na âedicação a essa ou àquela atividade philvposia por exemplo é o prazer e o proveito que se tem ao beber philotimia é a propensão para angariar honras philosophia será portanto o interesse pela sophíd A atividade filosófica orgulho de Atenas Os atenienses do século V eram orgulhosos dessa atividade intelectual desse interesse pela ciência e pela cultura que florescia em sua cidade Na Oração fúnebre que Tucídides6 o faz pronunciar em memória dos pri 5 Sobre a palavra philosophia vejase também E A Havelock Preface to Plato Cambridge Mass 1963 pp 280283 Prefácio a Platão tradução de Enid Abreu Dobránzky Campinas Papirus 1996 pp 296299 W Burkert artigo citado p 35 nota 1 P 172 6 Tucídides A Guerra do Peloponeso II 40 1 História da Guerra do Peloponeso 3 ed tradução introdução e notas de Mário da Gama Kury Brasília Editora Universidade de Brasília 1987 A Guerra do Peloponeso Livro I introdução tradução e notas de Anna Lia Amaral de Almeida Prado tese de Doutorado em Letras São Paulo USP 1972 Oração Fúnebre de Péricles in Eloquência grega e latina seleção tradução introdução e notas liminares de Jaime Bruna São Paulo Ediouro sd pp 915 37 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes meiros soldados que tombaram na guerra do Peloponeso Péricles o homem de Estado ateniense faz nestes termos o elogio do modo de vida que se pratica em Atenas Somos amantes da beleza sem extravagâncias e filosofa mos sem indolência Os dois verbos empregados são compostos de philo philokaleil e philosophein Aqui logo notamos é simplesmente proclamado o triunfo da democracia Já não são apenas as personalidades de ex ceção ou os nobres que conseguem alcançar a excelência aretê mas todos os cidadãos podem atingir esse fim na medida em que amam a beleza ou se entregam ao amor da sophía No início do século V o orador Isócrates em seu Panegírico7 retomará o mesmo tema foi Atenas que revelou ao mundo a filosofia Essa atividade engloba tudo o que se refere à cultura intelectual e geral as especulações dos présocráticos as ciências nascentes a teoria da linguagem a técnica retórica a arte de persuadir Às vezes ela se refere mais precisamen te à arte de argumentação e é o que se supõe por uma alusão do sofista Górgias em seu Elogio de Helena Ela diz ele não é responsável por seu ato pois foi induzida a agir assim por causa da vontade dos deuses ou sob pressão de violência ou ainda pela fQrçade persuasão ou enfim por paixão E distingue três formas de persuasão pela lingua gem uma consistindo nos combates dos discursos dos filósofos 9 Tratase sem dúvida de discussões públicas nas quais os sofistas enfrentavamse para mostrar seu talento 7 Isócrates Panegírico 47 8 Elogio de Helena Tradução de Maria Cecília Coelho in Maria Cecília Coelho Górgias verdade e construção discursiva dissertação de mestrado em Filosofia São Paulo USP 1997 pp 8389 9 Ibid 13 38 O surgimento da noção de filosofar opondo seus discursos a propósito temas sem vinculação com um problema particular jurídico ou político mas revelavam sua cultura geral A noção de sophía As palavras philosophos e philosophein supõem outra noção a de sophía mas antes é necessário reconhecer que na época não existia definição filosófica dessa noção Para definir sophía os intérpretes modernos sempre hesitam entre a noção daber e a de sabedori O sophós é aquele que sabe muitas coisas que viu muitas coisas que viajou muito ou o que sabe se conduzir bem na vida e é feliz Será sempre necessário repetir tudo isso no curso desta obra as duas noções estão longe de excluirse Ver dadeiro saber é finalmente um saberfazer e o verdadeirQ saberfazer é um saberfazer o bem Desde Homero as palavras sophía e sophós foram em pregadas nos contextos mais diversos a propósito de con dutas e de inclinações que aparentemente não têm nada a ver com as dos filósofos10 Na Ilíada Homero11 fala do carpinteiro que graças aos preceitos de Palas Atena se mostra sagaz em toda sQézq 1 toçlowéIfr De 10 B Gladigow Sophia und Kosmos Hildesheim 1965 G B Kerferd The Image of the Wise Man in Greece in the Period before Plato in Images of Man Mélanges Verbeke Louvain 1976 pp 1828 11 Ilíada 15 411 tradução de Carlos Alberto Nunes São Paulo Ediouro s d MHNIS A ira de Aquiles Canto I da Ilíada de Homero tra dução de Haroldo de Campos e Trajano Vieira transcrição visual de José Roberto Aguilar São Paulo Nova Alexandria 1994 39 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes maneira análoga o hino homérico A HermeP após ter narrado a invenção da lira acrescenta que o próprio deus modela o instrumento de uma sophía além da arte da lira a saber a siringe Tratase aqui portanto de uma arte de um saberfazer musical A julgar por esses dois exemplos podese perguntar legi timamente se tanto no caso do fabricante de navios como no do músico a palavra sophía não designa de preferência atividades e práticas que são submetidas à medida e à regra13 e supõem um ensino e uma aprendizagem mas por outro lado exigem também o concurso de um deus uma graça divina que revela ao artesão ou ao artista os segredos de fabricação e ajudaos no exercício de sua arte Da mesma maneira sophiê é empregada por Sólon14 no século VII aC para designar a atividade poética que é fruto sempre ao mesmo tempo de um longo exercício e da inspiração das Musas Essa potência da palavra poética inspirada pelas Musas que dão seu sentido aos aconteci mentos da vida humana aparece mais claramente em Hesíodo no início do século VII Se não utiliza literalmen te a palavra sophía ele exprime com muita força o conteú do da sabedoria poética Testemunha bastante interessante pois põe em paralelo a sophía do poeta e a do rei15 São as Musas que inspiram o rei sensato As Musas vertem so 12 Homero A Hermes I 511 13 J Bollack Une histoire de sophie c r de Gladigow verse p 39 nota 10 in Revue des études grecques t 81 1968 p 551 14 Sólon Elegias I 52 15 Hesíodo 1êogonia 80103 N do T Teogonia A origem dos deuses 2a edição estudo e tradução de Jaa Torrano São Paulo Iluminuras 1991 Biblioteca Pólen Valime dessa tradução para todas as citaçôes 40 O surgimento da noção de filosofar bre a língua e sobre os lábios daquele que elas escolheram um orvalho suave um doce mel Todas as gentes o olham decidir as sentenças com reta justiça e ele firme falando na ágora As palavras do poeta também mudam os corações Feliz é quem as Musas Amam doce de sua boca flui a voz Se com angústia no ânimo recémjerido alguém aflito mirra o coração e se o cantor servo das Musas hineia a glória dos antigos e os venturosos Deuses que têm o Olimpo logo esquece os pesares e de nenhuma aflição se lembra já os desviaram os dons das Deusas Já aparece aqui a ideia fundamental na Antiguidade do valo psicagógico do discurso e da importância capital da hab1hdade da palavra16 Palavra que opera em dois registros aparentemente muito diferentes o da discussão juúicopolítica os reis decidem a justiça e põerifi â discórdia e o do encanto poético os poetas com seus cantos mlgiç dos h2mens Mnemosyne mãe das Musas é oblívio de malês e pausa de afliçõesI7 Nesse enllopese descobrir um esboço do que serão mais tarde os exercícios espirituais filosóficos sejam eles da rdem do discurso ou da contemplação Porquanto não e somente pela beleza dos cantos e das histórias que nar ram que as Musas fazem esquecer os males mas porque 16 Cf G RomeyerDherbey Les Sophistes pp 4549 P Lain Entralgo The Therapy of the Word in Classical Antiquity New Haven 1970 c r de F Kudlien in Gnomon 1973 pp 410412 17 Hesíodo Teogonia 55 41 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes fazem os poetas e aquele que escuta ascender a uma visão cósmica Se elas a Zeus pai hineando alegram o grande espírito18 é porque cantam para ele e fazemno ver o que é o que será e o que foi e é precsamente isso que cantará o próprio Hesíodo em sua Teogonia Uma sentença epicurista atribuída a Metrodoro discípulo de Epicuro dirá Lembrate de que nascido mortal e com uma vida limitada subiste graças à ciência da natureza ao infinito do espaço e do tempo e que viste o que é o que será e o que foi19 E antes dos epicuristas Platão já dissera que a alma a quem pertence a elevação de pensamento e a contemplação da totalidade não considera a morte uma coisa a temer20 A sophía pode por outro lado também designar a habilidade com a qual se sabe conduzir com outrem ha bilidade que pode chegar até a astúcia e a dissimulação Por exemplo na compilação de sentenças que codifica a educação aristocrática escrita por Teógnis no século VI aC e dirigida a Cirnos encontrase o conselho21 Cirnos apresenta a cada um dos teus amigos um aspecto diferente de ti mesmo Matizate conforme os sentimentos de cada um Um dia te ligues a um e depois procura a propósito mudar de personagem Porquánto a habilidade sophiê é melhor mesmo do que uma grande excelência are tê 18 ld ibid 37 19 Cf Epicuro Lettres maximes sentences traduit et commenté par JF Balaudé Paris 1994 p 210 sentença 10 20 Platão A República VI 486 a A República 2a ed tradução de Carlos Alberto Nunes e introdução de Benedito Nunes Belém Editora da Universidade Federal do Pará 1988 A República 2a ed tradução de Jacó Guinsburg São Paulo Difel 1973 21 Teógnis Poemas elegíacos 1072 e 213 42 Vêse a riqueza e variedade dos componentes da noção de sophía Eles se reencontram na representação lendária e popular e de resto histórica que se fez da figura dos Sete Sábios22 cujos traços já se encontram em alguns poetas do século VI e depois em Heródoto e em Platão Tales de Mileto fim do século VIIVI possui antes de tudo um saber que poderíamos qualificar de científico prevê o eclip se do sol de 28 de maio de 585 afirma que a Terra repou sa sobre a água mas ele tem igualmente um saber técnico se lhe atribui o desvio do curso de um rio enfim ele de monstra possuir perspicácia política procura salvar os gregos da Jônica propondolhes formar uma federação De Pítacos de Mitilene século VII atestouse apenas uma atividade política Sólon de Atenas século VIIVI é também já vimos um homem político cuja benéfica legislação deixa uma grande lembrança mas é também um poeta que exprime em seus versos seu ideal ético e político Quílon de Esparta Periandro de Corinto Bias de Priene os três do início do século VI são igualmente homens políticos célebres por algumas leis que editaram ou por suas atividades oratória e judiciária As indicações concernentes a Cleóbulo de Lindos são as mais incertas sabemos somente que se lhe atribui certo número de poemas Atribuemse aos Sete Sábios algumas máximas frases breves e memoráveis diz Platão23 pronunciadas por cada um deles no momento em que reunidos em Delfos quiseram oferecer a Apolo em seu templo as primícias de sua sabedoria e dedicaramlhe 22 B Snell Leben und Meinungen der Sieben Weisen München 1952 23 Platão Protágoras 343 ab Protágoras tradução estudo introdutório e notas de Eleazar Magalhães Teixeira Fortaleza Edições Universidade Federal do Ceará 1986 43 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes as inscrições que todo mundo repete Conhecete a ti mesmo Nada em demasia Efetivamente uma lista de máximas que se diz ser obra dos Sete Sábios foi gravada próximo ao templo de Delfos e o costume de inscrevêlas para que fossem lidas por todos os que passassem nas dife rentes cidades gregas foi disseminado É assim que se des cobriu em 1966 em Ai Khanun na fronteira do atual Meganistão nessa época perto de uma escavação feita em uma cidade de um antigo reino grego o Bactriano uma estela mutilada que como mostrou L Robert continha originalmente uma série completa de cento e quarenta máximas délficas Foi Clearco2 discípulo de Aristóteles que as fez gravar no século III aC Vêse aqui a importância que o povo grego atribuía à educação morai25 A partir do século VI outro componente será acrescido à noção de sophía com o desenvolvimento das ciências exa tas a medicina a aritmética a geometria a astronomia Já não há somente especialistas sophoi no domínio das artes ou da política mas também no domínio científico Por outro lado desde Tales de Mileto uma reflexão cada vez mais específica desenvolveuse no domínio do que os gregos denominavam physis isto é o fenômeno de brota ção dos seres vivos do homem mas também do universo reflexão que esteve desde então muitas vezes intimamente misturada a arrazoados éticos como em Heráclito por exemplo ou sobretudo em Demócrito 24 L Robert De Delphes à lOxus Inscriptions grecques nouvelles de la Bactriane in Académie des inscriptions et belleslettres Comptes rendus 1968 pp 416457 25 Cf I Hadot The Spiritual Guide pp 441444 44 O surgimento da noção de filosofar Quanto aos sofistas eles serão atraídos por conta de sua intenção de ensinar aos jovens a sophía Meu ofício diZia o epitáfio de Trasí1Jlaco é a sophía 26 Para os sofistas a palavra sophia significa em primeiro lugar um saberfazer nl política mas implica também tõaõs üsCümponentes queentreVimos notadamente a cultura científica ao menos na medida em que ela faz parte da cultura geral 26 Trasímaco A VIII Dumont p 1072 45 Capítulo 3 fi figura de Sócrates A figura de Sócrates teve influência decisiva sobre a definição do filósofo que Platão propôs em seu diálogo Banquete uma verdadeira tomada de consciência da situa ção paradoxal do filósofo no meio dos homens Por essa razão devemos nos deter longamente não no Sócrates histórico dificilmente cognoscível mas na figura mítica de Sócrates tal qual apresentada pela primeira geração de seus discípulos A figura de Sócrates Comparouse muitas vezes Sócrates a Jesus1 Entre outras analogias é verdade que eles tiveram imensa influência histórica embora tenham exercido sua atividade em um espaço e um tempo limitados em relação à história do mundo uma pequena cidade ou um pequeno país e te nham tido um número muito pequeno de discípulos Os I Th Dennan Socrate etjésus Paris 1944 Sobre Sócrates cf F Wolff Socrate Paris 1985 Sócrates o sorriso da razão 4 ed tradução de Franklin Leopoldo e Silva São Paulo Editora Brasiliense 1987 Encanto Radical E Martens Die Sache des Sokrates Stuttgart 1992 47 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes dois não escreveram nada mas possuímos sobre eles teste munhas oculares sobre Sócrates as Memoráveiil de Xeno fonte os diálogos de Platão sobre Jesus os Evangelhos3 e mesmo assim é muito difícil para nós definir com certeza o que foram o Jesus histórico e o Sócrates histórico Após sua morte seus discípulos4 fundaram escolas para difundir sua mensagem mas as escolas fundadas pelos socráticos parecem muito mais diferentes umas das outras do que os cristianismos primitivos o que nos permite decifrar a com plexidade da atitude socrática Sócrates inspirou ao mesmo tempo1 Antístenes o fundador da escola cínica que preconizava a tensão e a austeridade e deyria influenciar profundamente o estoicismo e Aristipo fundador da escola de Cirene para quem a arte de viver consistia em tirar o melhor partido possível das situações que se apre sentavam concretamente que não desdenhava o repouso e o prazer e deveria também exercer influência consi derável sobre o epicurismo mas ele inspirou igualmen te Euclides fundador da escola de Megara célebre por sua dialética Um único de seus discípulos Platão triun fou na história seja porque soube conferir a seus diálogos um imperecível valor literário seja antes porque a escola que fundou sobreviveu àurante séculos salvando assim seus diálogos e desenvolvendo ou mesmo deformando sua doutrina Em todo caso um ponto parece comum a todas 2 Ditos e feitos memoráveis de Sócrates 4 ed tradução de Líbero Rangel de Andrade São Paulo Nova Cultural 1987 Os Pensadores 3 A Bíblia de Jerusalém São Paulo Ediçôes Paulinas 1991 Bfblia tra dução ecumênica São Paulo Ediçôes Loyola 1994 Bíblia tradução ecumêni ca Versão completa em CDROM São Paulo Loyola Multimídia 1997 4 Leiase em F Wolff Socrate pp 112128 Lalbum de famille que caracteriza excelentemente as diferentes personagens 48 A figura de Sócrates essas escolas com elas aparece o conceito a ideia de filo sofia concebida nós o veremos como um discurso vin culado a um modo de vida e como um modo de vida i vinculado a um discurso Talvez tivéssemos outra ideia de quem foi Sócrates se a oras prduzidas em todas as escolas fundadas por seus Iscipulos tivessem sobrevivido e especialmente se toda a heratura os diálogos socráticos que põem em cena Socrates dialogando om seus interlocutores tivesse sido conservada até nós E necessário lembrar em todo caso que o dado fundamental dos diálogos de Platão a ence nação de diálogos os quais Sócrates desempenha quase sempre o papel de mterrogador não é invenção de Platão mas que seus famosos diálogos pertencem a um gnero diálogo socrático que foi verdadeira moda ent os ais cíulo de Sócrates5 O sucesso dessa forma literária per nute VIslumbrar a mpressão extraordinária que a figura de Socrates produzm sobre seus contemporâneos e sobre tudo sobre seus discípulos e a maneira pela qual conduzia suas cnversa om seus concidadãos No caso dos diálogos socraticos redigdos por Platão a originalidade dessa forma literária consiste menos na utilização de um discurso divi dido em questões e respostas visto que o discurso dialéti co existia bem antes de Sócrates do que no papel de personagem central assinalado a Sócrates Disso resulta uma relação muito particular entre o autor e sua obra de 5 Aristóteles Poética 1447 b 10 Poética 4 ed tradução comenta d 1 nos e m 1ces ana 11lco e onomástico de Eudoro de Souza São Paulo Nova Cul tural 1987 Os Pensadores Poética in A Poética Clássica 5 ed tr d d J B a uçao e arme runa Sao Paulo Cultrix 1995 Cf C W Müller Die Kurzdialo e der Appendzx Platonzca Munich 1975 pp 17 ss 49 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes um lado e entre o autor e Sócrates de outro O autor si mula não intervir em sua obra visto que se contenta apa rentemente em reproduzir um debate que opôs duas teses adversas podese quando muito supor que ele prefere a tese que faz Sócrates defender Ele toma de alguma ma neira a máscara de Sócrates Tal é a situação que se en contra nos diálogos de Platão Jamais o eu de Platão aparece O autor não intervém sequer para dizer que foi ele que compôs o diálogo e não se põe em cena na dis cussão entre os interlocutores Contudo evidentemente não especifica o que remete a Sócrates e o que remete a ele próprio nos temas debatidos Portanto quase sempre é extremamente difícil distinguir em certos diálogos a parte socrática e a parte platônica Sócrates aparece assim pouco tempo após sua morte como uma figura mítica Mas foi precisamente esse mito que marcou com traços indeléveis toda a história da filosofia O não saber socrático e a crítica do saber sofístico Na Defesa de Sócrates na qual Platão reconstitui à sua maneira o discurso que Sócrates pronuncia diante de seus juízes por ocasião do processo em que foi condenado ele narra que um de seus amigos Querefonte6 perguntara ao oráculo de Delfos se existia alguém mais sábio sophós que Sócrates e o oráculo teria respondido que não Sócrates se questiona então sobre o que o oráculo quis dizer lançan dose em uma longa investigação junto às pessoas que se gundo a tradição grega e de quem falamos no capítulo 6 Platão Defesa 2023 50 A figura de Sócrates precedente possuem a sabedoria i mens de Estad sto e o saberfazer ho o poetas artesãos 4 que fosse mais b para descobnr alguém sa IO que ele Percebe entã pessoas que acreditam tud b o que todas as o sa e r na o sabem nad D conclru que é o mais sábio or A a Isso sabe O que I p que nao cre saber o que não o oracu o qrus dizer é ta sábio dos humanos é por nto que o mais d quem compreendeu oue b o na e verdadeirament a t sua a e e esproVIda do mínimo val 7 rr I sera precisamente a d fi A or a diálogo intitulad B e mçao platomca do filósofo no o anquete o filosofo nada b consciente de seu não s b sa e porem é a er A tarefa de Sóc t Ih ra es que e fOI confiad d D pelo oraculo de Delfos isto é I a A IZ a efesa deus Apolo será fazer qu em u tima mstancia pelo A nencia de seu próprio e os outros homens t b ornem cons p nao sa er de sua não b d ara realizar essa missão S sa e ona b ocrates agira como qu d sa e Isto é com ingenuidad É em na a a ignorância dissimulada o er faddosa Iroma socrática I can I o com o qual eemp o ele Investigou para saber se h I pr sabw que ele Como a aVIa a guem mais Iz uma personagem da RepúblicdJ Ezla a habitual ironia de Sócrates t Eu á b a esses jovens que não q 1 sa za e predzssera uererzas responder que s l zgnorância que tud fi zmu arzas o arzas para nao responder às p que te fossem apresentadas erguntas É porque nas discussões Sócrates é s rogador é que ele c empre o mter con1essa nada sabe Aristóteles9 Sócrates d d r como nota eprenan ose a SI mesmo diz 7 Id ibid 23 b Pltã República I 337 a Anstoteles Refutações sofísticas 183 b 8 51 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes Cícero não permite que seus interlocutores digam senão o que ele quer refutar assim pensando em uma coisa e dizendo outra tinha prazer em usar habitualmente essa dissimulação que os gregos denominavam ironia10 Na verdade não se trata de uma atitude artificial de um parti pris de dissimulação mas de uma espécie de humor que recusa levar totalmente a sério tantos os outros como a si mesmo porque precisamente tudo o que é humano e mesmo tudo o que é filosófico é coisa bem pouco assegu rada de que não se pode ter muito orgulho A missão de Sócrates é fazer que os homens tomem consciência de seu não saber Tratase aqui de uma revolução na concepção de saber Sem dúvida Sócrates pode dirigirse a estranhos e o faz com prazer dizendolhes que têm apenas um saber convencional que só agem sob a influência de precon ceitos sem fundamento refletido para mostrarlhes que seu pretenso saber não repousa sobre nada Mas ele se dirige sobretudo aos que estão persuadidos por sua cul tura de possuir o saber Até Sócrates houve dois tipos de personagens desse gênero de um lado os aristocratas do saber isto é os mestres de sabedoria ou de verdade como Parmênides Empédocles ou Heráclito que opu nham suas teorias à ignorância da multidão de outro os democratas do saber que pretendiam poder vender o saber a todo mundo os sofistas Para Sócrates o saber não é um conjunto de proposições e fórmulas feitas que se pode escrever ou vender como mostra o início do Ban 10 Cícero Lúculo 5 15 Sobre a ironia socrática cf R Schaerer Le mécanisme de lironie dans ses rapports avec la dialectique in Revue de métaphysique et de morale 48 181209 1941 V Jankélévitch L1ronie Paris 1964 ver também G W F Hegel Leçons sur lhistoire de la philosophie T II Paris 1971 pp 286 ss 52 A figura de Sócrates queteu Sócrates chega atrasado ois imóvel e em p P permaneceu a meditar e ocupando seu Tão 1 I ogo e e faz sua entrada espinto consigo mesmo 1 A anfitrião na sa a gatao que é o conVIdao a sentarse perto dele a fi d ao teu contato desfrute eu da sáb d m e que em frente de casa S b Ia I eia que te ocorreu ena om A t Sócrates se d ga ao responde essa natureza fosse a sabedoria rnais cheio escorresse ao mais vazio O 1 que do e que o SJJr ãP 11ll CPeto fabric que e e quer zer acabado transmi I d L ªgo um conteudo ssive Iretamente pel não importa qual discurso a escntura ou por Quando Sócrates pretende saber um seJa que nada sabe é a umca coisa ou dicional de saber Su e rusa a cnerço tra transmitir um saber o oso co consistira nao em discípulos mas ao contq exigna responder às questões dos rano em znterrorr di ele mesmo não tem nad d 1 caros SCipulos pois a a 1zer hes nada 1 de conteúdo teórico d b A a ensmar hes e sa er 1ron1a em simular aprender ai socratica consiste leválo a descobrir que gua COihsa de seu interlocutor para nao con ece nada no d d que pretende er sábio omimo o Mas essa crítica do saber dupla significação De um larteente negativa tem verdade como já vislumbramos de poe que o saber e a pelo próprio indivíduo p s vem ser engendrados ue se c or Isso ocrates afirma no Teetetd2 q ontenta na discussão co nhar o papel de parteiro Ele mesoomsabem ddeseme ena aenao 11 Banquete 17 4 d175 d 12 Teeteto tradução dé Cirü Alb sidade Federal do Pará 1988 s erto Nunes Belém Editora Univer 53 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes a nadal3 mas contentase em questionar e são suas ens1n 1 questões suas interrogações que auxiliam seus mtr ocu sua verdade Essa imagem nos permite en tores a panr tender bem que é na alma que se encontra o saber e que ao indivíduo cabe descobrila até que ele descura graças a Sócrates que seu saber era vazi a pesectlva de seu próprio pensamento Platão expnmira mltiarnete essa ideia dizendo que todo conhecimento é remmIscenna de e a alma teve em uma existênCia antenor uma VIsao qu Será necessário aprender a recordarse Para Socraes ao contrário a perspectiva é muito diferente As questoes de Sócrates não conduzem seu interlocutor a saber alguma coisa e a chegar a conclusões que se possam formlar sob a forma de proposições sobre este u aquele objet I diálogo socrático chega ao contrano a uma apona f impossibilidade de concluir e de formular um sbe u antes é porque o interlocutor descobrirá quão Ilusono e seu saber que ele descobrirá ao mesmo tempo sa edae isto é que passando do saber a si mesmo pnnnpiara a pôrse a si mesmo em questão Dito de outro odo no diálogo socrático a verdadeira questão que esta emJogo não é isso de que se fala mas aquele que fala como o diz Pl 14 Nícias personagem de al0 Não sabes que aquele que se aproxima muito perto de Sócrates e entra em diálogo com ele mesmo que tenha começado no início a falar com ele de outra coisa ele nao se constrange em se conduzido em círculo por esse discurso até que sa necessário dar razão de si mesmo tanto quanto da manezra pela qual se vive presentemente e daquela que vzveu sua 13 Ibid 150 d 14 Laques 187 e 6 54 A figura de Sócrates existência passada Quando se chega lá Sócrates não te deixa partir antes de ter bem a fundo e de uma bela ma neira submetido tudo à prova de seu exame É para mim uma alegria frequentálo Eu não vejo nenhtm mal que me faça recordar o bem ou o mal que eu tenha feito ou ainda faça Aquele que faz isso será necessariamente mais prudente no resto de sua vida Sócrates leva seus interlocutores a examinarse a tomar consciência de si mesmos Como um tavão15 fustiga seus interlocutores com questões que os põem em questão que os obrigam a prestar atenção a si mesmos a tomar cuidado consigo mesmos16 Meu caro tu um ateniense da cidade mais importante e mais reputada por sua cultura e poderio não te pejas de cuidares de adquirir o máximo de riquezas fama e honrarias e de não te importares nem cogitares da razão da verdade e de melhorar quanto mais a tua alma Tratase bem menos de questionar o saber aparente que se acredita possuir do que de se questionar a si mesmo e os valores que dirigem nossa própria vida No fim das contas após ter dialogado com Sócrates seu interlocutor já não sabe muito bem por que age Ele toma consciência das contradições de seu discurso e de suas própriás con tradições internas E vem a saber como Sócrates que nada sabe Mas fazendo isso toma distância em relação à si mesmo desdobrase uma parte de si mesmo identificando se de agora em diante com Sócrates no acordo mútuo que este exige de seu interlocutor em cada etapa da discus 55 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes sao Operase nele uma tomada de consciência de si ele se põe a si mesmo em questão O verdadeiro problema não é portanto saber isso ou aquilo mas ser desta ou daquela maneira17 Eu que negligenciando o de que cuida toda gente rique zas negócios postos militares tribunas e funções públicas conchavos e lutas que ocorrem na política coisas em que me considero de Jato por demais pundonoroso para me imiscuir sem me perder Eu que me entreguei à procura de cada um de vós em particular a fim de proporcionarlhes o que declaro o maior dos benefícios tentando persuadir cada um de vós a cuidar menos do que é seu que de si próprio para vir a ser quanto melhor e mais sensato Esse apelo ao ser Sócrates o exerce não somente por suas interrogações sua ironia mas também e sobre tudo por sua maneira de ser seu modo de vida seu ser mesmo O apelo do indivíduo ao indivíduo Filosofar não é mais como queriam os sofistas adquirir um saber ou um saberfazer uma sophía mas é pôrse a si mesmo em questão pois experimentase o sentimento de não ser o que se deveria ser Tal será a definição de filó sofo do homem que deseja a sabedoria no Banquete de Platão E esse sentimento provém do fato de que se encon trou uma personalidade Sócrates que apenas por sua presença obriga aquele que se aproxima dele a pôrse em 17 Ibid 36 c 56 A figura de Sócrates questão É isso que d Ba a a entender Alcibíades no fim do nquete E no elogio a Sócrates pronunciado por Alcib d que surge pela primeira vez arece Ia es sentação do I d d p na histona a repre n IV1 uo caro a Kierkegaa d d I di como personalidade r o n VIduo umca e Inclassificável E I I malmente diz AI b d 18 XIstem nor 1 1 0 Ia es diferentes tipos podem dispor os indivíd nos qua1s se uos por exemplo o d neral nobre e corajoso como A I gran e ge ricos como B d qm es nos tempos homé rasi as o chefe espart porâneos ou ainda o ti o h ano entre os contem e prudente N t p ornem de Estado eloquente nossos dias M esSr no tepo de Homero Péricles em as ocrates e Impossível de I fi se pode comparálo a nenhum outro h c assi car Nao aos silenos e aos sátiros EI ornem quanto mais te absurEo inclassificáel eeqh ato exdtrrraavadgean r mesmo u t 1 s1 sou o ta mente esquisito átopos senao aporia perplexidade 19 e nao cno Essa personalidade única tem ai d ce uma espécie de atraçã S go fascmante exer mordem o o magica eus discursos filosóficos coraçao como uma víb diz Alcibíades um estad d ora e provocam na alma embria ez filos o e possessao um delírio e uma fica Isto e uma subversão totaFo É cessano msistlr amda nesse ponto2I S ne neira irracional sobre aqu I ocrates age de ma e es que o ouvem pel que provoca pelo amor que inspira Em u dt emoça to por um discípulo d S m Ia ogo escn s e ocrates Esquines d E D ocrates diz a propósito de AI b d e s etos wJB o Ia es que se ele Sócrates 184 anquete 221 cd Jg Teeteto 149 a 20 JIqte 215 c e 218 b 21 Cf A M Ioppolo OP p 163 znzone e scienza Napoli Bibliopolis 1976 57 l do filósofo e seus antecedentes A defimçao p atomca al o de útil a Alcibíades o que não não é capaz de ensmar g S t s nada sabe ele crê ao d te dado que ocra e é surpreen en amor que expen menos poder tomálo melhor graas aom ele22 No Teages 1 edida que vwe co menta por e e e a d Platão mas escrito entre 369 diálogo falsamente atnbm 0 a Platão ainda era vivo 345 a C 23 provavelmente enquanto bido e mo sem ter rece discí ulo diz a Sócrates que mes elo alquet ensinamento de Sócrates elare pqo r de c d star no mesmo ug sllllples Jato e e Ban uete lhe diz e o repete os poder tocálo O Alobides do f tq erturbador sobre ele24 encantos de Sócrates tem um e ei o p parecia não ser posszvel vzver De tal modo me sentza q11ehme Pois me fiorça ele a admi d es como as mzn as em con zço d h ciente em muitos pontos tir que embora sendo eu mesmo ep d de mim mesmo me descuzdo azn a Sócrates seja mais eloquente e Isso nao sigmfica que o contrário diz Alcibíades à brilhante que os utros m a os parecem completamente primeira impressao seus Iscurs ridículos25 d a de ferreiros de sapateiros Pois ele fala de bestas e carg mesmas palavras dizer de correeiros e sempre parece com as as mesmas coisas Al b des faz alusão à argumentaçao Parece que aqm Cl Ia emórias sobre Sócrates habitual de Sócrates presente nas m hines von Sphettos und die Frage 22 K Dõring Der Sokrates es rsc 112 1630 1984 Cf também h Sokrates In nermes 1975 nach dem histonsc en A endix Platonica Munchen P C W Müller Die Kurzdwloge der pp 233 nota 1 O d Cf C W Müller op cit P 128 nota 1 23 Teages 13 24 Banquete 215 ce 216 a 25 Ibid 221 e 58 A figura de Sócrates redigidas por Xenofonte26 de que para aprender o ofício de sapateiro de carpinteiro de ferreiro ou de estribeira devase procurar um mestre e mesmo para domar cava los e bois mas que quando se trata da justiça não se deva procurar um mestre No texto de Xenofonte Hípias o sofista recorda a Sócrates que ele sempre repete as mesmas palavras sobre as mesmas coisas E Sócrates ad mite com evidente prazer que é isso que lhe permite fazer seu interlocutor dizer que ele Hípias ao contrário se esforça para sempre dizer algo de novo mesmo que se trate da justiça Sócrates bem que gostaria de saber o que Hípias pode dizer de novo sobre um tema que não deveria mudar nunca mas Hípias recusase a responder antes que Sócrates lhe permitisse conhecer sua opinião sobre a justiça Há muito que zombas dos outros interrogando e refutando sempre sem jamais querer prestar contas a ninguém nem sobre nada expor tua opinião Ao que Sócrates responde Como Hípias não vês que não cesso de mostrar o que penso ser o justo Se não por palavras definoo por atos r8 Ele quer dizer que por fim a existência e a vida do homem justo determinam melhor o que é a justiça É essa individualidade poderosa de Sócrates que pode despertar à consciência a individualidade de seus interlo cutores Mas as reações deles são extremamente diferentes Vimos acima a alegria que Nícias experimentava ao ser questionado por Sócrates Ao contrário Alcibíades por sua 26 Xenofonte Memoráveis N 4 5 59 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes parte procura resistir à sua influência diante dele experi menta tão somente vergonha e para escapar dessa atração algumas vezes chega a desejar sua morte Em outras pala tvras Sócrates só pode convidar seu interlocutor a examinar 1 se a pôrse à prova Para que se instaure um diálogo que 1 conduza o indivíduo como o dizia Nícias a dar razão de si mesmo e de sua vida é necessário que aquele que fala com Sócrates aceite com o próprio Sócrates submeterse às exigências do discurso racional digamos às exigências da razão Em outras palavras o cuidado de si o pôrse a si mesmo em questão nascem justamente numa superação da individualidade que se eleva ao nível da universalidade representada pelo lógos comum aos dois interlocutores O saber de Sócrates o valor absoluto da intenção moral Vislumbramos o que pode ser para além de seu não 1 saber o saber de Sócrates Sócrates diz e repete que nada sabe que nada pode ensinar aos outros que os outros 1 devem pensar por si mesmos descobrir sua verdade por si mesmos Mas podese muito bem perguntar em todo caso se não há um saber que o próprio Sócrates descobriu por si mesmo e em si Uma passagem da Defesa27 na qual saber e não saber são opostos permitenos conjeturar isso Sócrates evoca o que alguns poderiam dizerlhe Não te pejas ó Sócrates de te haveres dedicado a uma ocupação que te põe agora em risco de morrer E ele formula assim o que poderia responderlhe 27 Defesa 28 b 60 A figura de Sócrates Esá enganado homem se pensas que um varão de algum prestzmo deve pesar as possibilidades de vida e morte em vez e considCr apenas este aspecto de seus atos se o que faz é JUsto ou znusto de homem de brio ou de covarde Nsta perspectiva o que aparece como um não saber e a piOr morte28 C efeito sehors temer a morte é o mesmo que se supor sazo qem nao o e porque é supor que sabe o que não sabe Nznguem sabe que é a morte nem se porventura será para o homem o mazor dos bens todos a temem como se soubessem ser ela o maior dos males A ignorância mais condenável não é essa de supor saber o que não se sabe Sócrates por sua parte sabe nada saber sobre a morte mas em contrapartida afirma que sabe alguma coisa sobre outro assunto Sei porém que é mau e vergonhoso praticar o mal desobede cer a u melhor que eu seja deus seja home7npor isso na alternatzva com males que conheço como tais jamais fugirei de medo do que não sei se será um bem É muito interessante constatar que aqui o não saber e d o saber condduzem não a conceitos mas a valores 0 valor 1 a morte e um lado o valor do bem moral e do mal nral e utro Sócrates nada sabe do valor que é neces sano atbmr à morte pois ela não está em seu poder pois a expenenna de sua própria morte lhe escapa por defini çao Mas ele sabe o valor da ação moral e da intenção moral pois elas dependem de sua escolha de sua decisão 28 Ibid 29 ab 61 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes de seu empenho elas têm portanto sua origem ele mesmo Ainda aqui o saber não é uma série de propos1çoes uma teoria abstrata mas a certeza de uma escolha de uma decisão de uma iniciativa o saber não é um saber tout court mas um saberqueénecessáriescolher oranto u isaberviver E esse saber do valor e que o gu1ara nas dls 1 1 29 cussões travadas com seus mter ocutores E se algum de vós redarguir que se importa não me zrez embora deixandoo mas o hei de interrogar examinar e con fundir e se me parecer que afirma ter adquirido a virtude e não a adquiriu hei de repreendêlo por estimar menos o que vale mais e mais o que vale menos Esse saber do valor é extraído da experiência interior de Sócrates da experiência de uma escolha que o compro mete totalmente Ainda não há aqui um saber senão em uma descoberta pessoal que vem do interior Essa interio ridade é em contrapartida reforçada pela representação do daímon dessa voz divina que diz ele nele fala e o im pede de fazer certas coisas Experiência mística ou imagem mítica é algo difícil de dizer mas nela podemos vr e todo caso uma espécie de figura do que se chamara ma1s tarde consciência moral Parece que Sócrates admitiu implicitanente eistir em todos os homens umdesj inltocgpm tambem nesse sentido que se aprese o um simples parteiro cuo papel limitavase a fazer que seus interlocutores descobns sem suas possibilidades interiores Compreendese melhor então a significação do paradoxo socrático ninguém erra 29 Ibid 29 e 62 A figura de Sócrates vluntariamente 30 ou ainda a virtude é saber31 ele quer d1zer que se o homem comete o mal moral é porque crê encontrar o bem e se ele é virtuoso é que sabe com toda a sua alma e todo seu ser onde está o verdadeiro bem 0 papel do filósofo consistirá em permitir a seu interlocutor realizar no sentido mais forte da palavra o verdadeiro bem o verdadeiro valor No fundo do saber socrático há amor do bem32 O conteúdo do saber socrático é no essencial o vlor ablllt da intençãojrrHral e a certeza de que pro cura a escolha desse valor Evidentemente a expressão é moderna Sócrates não a teria empregado Mas ela talvez sja útil para essaltar todo o alcance da mensagem socrá tica Podese d1zer que um valor é absoluto para um homem quando ele está prestes a morrer por esse valor É preci samente a atitude de Sócrates quando se trata do que é o melhor isto é da justiça do dever da pureza moral Ele repete várias vezes na Defesd3 prefere a morte e 0 perigo a renunciar a seu dever e à sua missão No Críton34 Platão imagina que Sócrates faz falar as leis de Atenas que o fazem compreender que se quiser evadirse e esca par à sua condenação prejudicará toda a cidade dando 30 Sócrtes em Aristóteles Ética a Nicômaco VII 2 1145 b 2127 Ética a Mcomaco 4 ed tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim São Paulo Nova Cultural 1987 Os Pensadores 31 Sócrates em Aristóteles Ética a Eudemo I 5 1216 b 68 Xenofon te Memoráveis III 9 5 32 AJ Voelke Lide de voloné dans le stoiCisme Paris 1973 p 194 para o tea do pretenso mtelecrualismo socrático La dialectique socrati que umt md1ssolublement la connaissance du bien et le choix du bien 33 Defesa 28 b ss 34 ríton 50 a Críton 3a ed seleção introdução e tradução de Jaime Bruna Sao Paulo Cultrix 1952 63 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes o exemplo de desobediência a suas leis ele não deve pôr sua própria vida acima do que é justo E como diz Sócrates no Fédon35 Há muito que estes mesmos ossos e músculos estariam lá para as bandas de Megara ou da Beócia levados por certa noção do melhor se eu não estivesse convicto de que era mais justo e mais belo submeterse às leis da cidade qualquer que fosse a pena que me é imposta de preferência a evadirme e fugir Esse valor absoluto da escolha moral aparece também 36 d 1 N h em outra perspectiva quando Socrates ec ara ao a para o homem bom nenhum mal quer na vida quer na morte Isso significa que todas as coisas que parecem males aos olhos dos homens a morte a doença a pobre za não são males para ele A seus olhos há apenas um mal a falta moral há apenas um bem um único valor a vontade de fazer o bem o que supõe que ele não recusa examinar sem cessar e rigorosamente sua maneira de viver a fim de ver se ela é sempre dirigida e inspirada por essa vontade de fazer o bem Podese dizer até certo ponto que o que interessa a Sócrates não é definir o que pode ser o conteúdo teórico e objetivo da moralidade é neces sário saber se se quer realeconcretamente fazer o que se considera justo e bom çQse ltvagiE Na Defesa Sócrates não dá nenhuma razão teónêa para explicar por que se obriga a examinar sua própria vida e a vida dos outros Contentase em dizer por um lado que é a missão que lhe foi confiada pelo deus e por outro que somente tal 35 Fédon 98 e Fédon 3 ed seleção introdução e tradução de Jaime Bruna São Paulo Çultrix 1952 36 Defesa 41 d 64 A figura de Sócrates I lucidez esse rigor para olhar a si mesmo pode dar sentido à vida37 Uma vida sem exame não é vida digna de um ser humano Encontramos aqui talvez ainda confuso e indistinto um esboço da ideia a ser desenvolvida mais tarde em utra problemtica Jor Kant a moralidade constitdise na pu reza de mtençao que dirige a ação pureza que consiste preosamente em conferir um valor absoluto ao bem moral renunciando totalmente ao próprio interesse Tudo leva a pensar por outro lado que esse saber ja mIs poe ser adquirido Não é somente aos outros mas a SI mesmo que Sócrates não cessa de submeter a exame A pureza da intenção moral deve sem cessar ser renovada e estabelecida A transformação de si jamais é definitiva Ex1ge uma eRtl1a Ttconquista Cuidado de si cuidado dos outros Falando da estranheza da filosofia M MerleauPontfs dlZla que ela jamais está totalmente no mundo e jamais entretanto fora do mundo Do mesmo modo com 0 estranho o inclassificável Sócrates Ele não está nem no mundo nem fora De um lado ele propõe aos olhos de seus concida daos uma total reversão dos valores que lhe parecem incompreensíveis39 37 3MeauPonty Eloge de la philosophie et autres essais Paris 1965 p 38 39 Defesa 38 a 65 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes Se vos disser que para o homem nenhum bem supera o discorrer cada dia sobre a virtude e outros temas de que me ouvistes praticar quando examinava a mim mesmo e a outros e que vida sem exame não é vida digna de um ser humano acre ditareis ainda menos em minhas palavras Seus concidadãos não podem perceber seu convite para examinar seus valores sua maneira de agir para tomar cuidado consigo mesmo como também para uma ruptura radical com a vida cotidiana com os hábitos e as convenções da vida corrente com o mundo que lhes é fa miliar Mas de outro lado esse convite para tomar cuidado consigo mesmo não será um apelo para afastarse da cidade vindo de UJJllteem que está de alguma maneira fora do mund átopoJ ou seja ue é esnho iclassificávl absurdo Sócrates não sera o protot1po da Imagem tao disseminada e por outro lado afinal tão falsa do filósofo que foge das dificuldades da vida para refugiarse em sua boa consciência Contudo o retrato de Sócrates tal qual desenhado por Alcibíades no Banquete de Platão e também por Xenofonte revelanos ao contrário um homem que participa plena mente da vida da cidade como ela é um homem quase comum cotidiano commuther e filhos que conversa com todo mundo nas ruas nas oficinas nos ginásios um bon vivant capaz de beber mais que qualquer outro sem embriagarse um soldado corajoso e paciente O cuidado de si não se opõe ao cuidado da cidade De maneira igualmente notável na Defesa de Sócrates e no Criton o que Sócrates proclama como seu dever como aquilo pelo que deve a tudo sacrificar mesmo sua vida é a obediência às leis da cidade as Leis personificadas que no Criton 66 A figura de Sócrates exortam Sócrates a não se deixar levar pela tentação de evadirse da prisão e fugir para longe de Atenas fazendoo compreender que sua salvação egoísta será uma irúustiça ra com Atenas Essa atitude não é de conformismÕ porquanto Xenofonte faça dizer a Sócrates que se pode bem obedecer às leis aspirando que elas mudem como se vai à guerra aspirando a paz MerleauPonty40 ressaltou bem Sócrates tem uma maneira de obedecer que é uma maneira de resistir submetese às leis para provar no interior da cidade a verdade de sua atitude filosófica e o valor absoluto da intenção moral Não é necessário dizer então com Hegel que Sócrates retirase para si mesmo para buscar a justiça e o bem mas com MerleauPonty4 ele pensava que não se pode ser justo sozinho do mesmo modo como o ser sozinho cessa de ser O cuidado de si é portanto indissoluvelmente cuidado da cidade e cuidado dos outros como se vê pelo exemplo do próprio Sócrates cuja razão de viver é ocuparse com os outros Há em Sócrates42 um aspecto ao mesmo tempo missionário e popular que se reencontrará posterior mente em certos filósofos da época helenística Eu estou à disposição tanto do pobre como do rico sem distinção Podeis reconhecer que sou bem um homem dado pelo deus à cidade por esta reflexão não é conforme à natureza do homem que eu tenha negligenciado todos os meus interesses para me ocupar do que diz respeito a vós para persuadir cada um a tornarse melhor S 40 M MerleauPonty op cit p 44 41 Id ibid p 48 42 Defesa 32 b e 31 b 67 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes Assim Sócrates está ao mesmo tempo fora do mundo e no mundo transcendendo os homens e as coisas por sua exigência mral e pelo empenho que ela implica isturado aos homens e às coisas porque somente no cotidiano dele pode compreender a verdadeira filosofia E sem dúvida em toda a Antiguidade Sócrates permanecera o modelo do filósofo ideal cuia obra filosófica é justamente sua J 44 d vida e sua morté3 Como escreveu Plutarco no Imcw o século II dC A maior parte das pessoas imagina que a filosofia consiste em discutir do alto de uma tribuna e dar cursos sobre textos Mas 0 que escapa totalmente a essas pessoas é a filosofia ininterrupta que se vê exercer a cada dia de uma manezra perfeztamente igual a si mesma Sócrates não prepara degraus para os ouvintes não se firma sobre uma tribuna professora ele não tem horário fixo para discutir ou para passear com seus discípulos Mas é algumas vezes gracejando com aqueles ou bebendo ou indo à guerra ou à ágora com esses e finalmente indo para a prisão e bebendo o veneno que ele filosofou Ele Voi 0 primeiro a mostrar que em todos os tempos e em todos os lugares em tudo o que ns cega e em tudo o que Jazemos a vida cotidiana dá a posstbthdade de filosofar 43 CL AJihle Studien zur griechischen Biographie 2 ed Gõttingen 1970 ppJ320 44 Plutarco e a política é ofício dos velhos 26 796 d 68 Capítulo 4 fi definição do filósofo no lBanquete de rJlatão Não sabemos com evidência se Sócrates chegou em suas discussões com seus interlocutores a empregar a pa lavra philosophia É provável em todo caso que caso ela já existisse ele teria utilizado essa palavra dandolhe o senti do corrente da época isto é ele a teria empregado como se fazia então para designar a cultura geral que os sofistas e outros poderiam conceder a seus alunos É esse sentido que encontramos por exemplo nos raros empregos da palavra philosophia que se encontra nas Memoráveis as me mórias de Sócrates reunidas por seu discípulo Xenofonte Mas é certo que é sob a influência da personalidade e do ensinamento de Sócrates que Platão há de conferir no Banquete à palavra filósofo e portanto também à palavra filosofia um novo sentido O Banquete de Platão O Banquete é com a Defesa um monumento literário dedicado à memória de Sócrates um monumento maravilho 69 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes sa e habilmente construído como Platão sabia fazer tão bem entrelaçando com arte temas filosóficos e símbolos míticos Como na Defesa a parte teórica é reduzida ao mínimo encon tramse apenas algwnas páginas extremamente importantes que se referem à visão da Beleza e o essencial é dedicdo a descrever o modo de vida de Sócrates que se revelara pre cisamente como o modelo do filósofo A definição do filósofa proposta no curso do diálogo terá alguns sentidos A figura de Sócrates domina todo o diálogo apresenta do como a narração de certo Aristodemo que relata como Sócrates lhe pede que o acompanhe ao banquete oferecido pelo poeta Agatão em honra de sua vitória no concurs de tragédia Sócrates chega atrasado de algum lugar pms permanecera durante certo tempo plantado na praça medi tando Na série de discursos que os participantes do banquete desenvolverão em honra de Eros a intervenção de Sócrates é tão longa quanto a de todos os outros oradores reunidos Quando no fim do banquete chega Alcibíades embriagado coroado de flores acompanhado de uma flautista este último fará um longo elogio a Sócrates detalhando todos os aspectos de sua personalidade E nas últimas linhas da obra a personagem de Sócrates é a única lúcida e serena no meio de convivas adormeçidos embora tenha bebido mais que os outros Agatão Aristófanes e Sócrates eram os únicos que ainda esta vam despertos e bebiam de uma grande taça que passavam da esquerda para a direita Sócrates conversava com eles 1 ForçaVJOS Sócrates a admitir que é de um mesmo homem o saber Jazer uma comédia e uma tragédia 1 Primeiro ador l Sobre os empregos da palavra philosophia e das palavras correlatas em Platão cf M Dixsaut Le Naturel philosophe Paris 1985 70 A definição do filósofo no Banquete de Platão meceu Aristófanes e quando já se fazia dia Agatão Sócrates 1 levantouse e partiu 1 chegado ao Liceu ele asseouse e como em qualquer outra ocasião passou o dia inteiro depois do que à tarde foi repousar em casa Esse fim do diálogo fez sonhar os poetas Pensase aqui nos versos de Hõlderlin2 sobre o sábio que sabe suportar a intensidade da felicidade que lhe oferece o deus A cada um sua medida Pesada é a força da infelicidade mais pesada ainda a felicidade Houve um sabia contudo que soube permanecer lúcido no banquete do meio até o coração da noite e até as primeiras luzes da alva É com a mesma serenidade nota Nietzsche que ele deixa o banquete e sabe entrar na morteS Ele foi para a morte com a mesma calma com que na descrição de Platão ele o último dos convivas deixa o banquete ao despontar da madrugada para começar um novo dia enquan to atrás dele sobre os bancos ou no chão ficam para trás os adormecidos companheiros de mesa para sonhar com Sócrates o verdadeiro erótico Sócrates morrendo tornouse o novo ideal nunca antes contemplado da nobre juventude grega Como bem mostrou D Babut4 os menores detalhes têm sua importância na construção do diálogo destinado 2 Hõlderlin Le Rhin trad G Bianquis Paris 1943 pp 391393 3 Nietzsche O nascimento da tragédia 13 N do T valime da tradu ção de Rubens Rodrigues Torres Filho O nascimento da tragédia 4a ed São Paulo Nova Cultural 1987 Os Pensadores O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo tradução notas e posfácio de Jacó Guinsburg São Paulo Companhia das Letras 1992 4 D Babut Peinture et dépassement de la réalité dans le Banquet de Platon in Revue des études anciennes 82 529 1980 artigo republicado in Parerga Choix darticles de D Babut Lyon 1994 pp 171196 71 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes ao mesmo tempo a pintar Sócrates e a idealizálo A companhia daqueles que bebem delineia um progrma que determina simultaneamente o modo como se a de beber e o tema dos discursos que cada um dos participan tes há de pronunciar O assunto será o Amor Narrando o banquete ao qual assistia Sócrates o diálogo relatará portanto a maneira pela qual os convivas darão cota de sua tarefa em que ordem os discursos sucederseao e o que dirão os diferentes oradores Segun D But os cinco primeiros discursos de Fedro Pausamas Eruamaco Aristófanes e Agatão por uma progressão dialética pre param o elogio do Amor por Diotima a sacerdotisa de Mantineia de quem Sócrates logo que chega sua vez referirá as palavras De uma extremidade a outra do diálogo mas sobretu do no discurso de Diotima e no de Alcibíades percebese que os traços da figura de Eros e os da figura de Sócrates tendem a confundirse E finalmente se eles se entre meiam tão estreitamente a razão é que Eros e Sócrates personificam um de maneira mítica outro de maneira histórica a figura do filósofo Tal é o sentido profundo do diálogo Eros Sócrates e o filósofo O elogio de Eros por Sócrates é clara e evidentemente composto segundo a maneira propriamente socrática Isso quer dizer que Sócrates não fará como os outros conviVas um discurso no qual afirmará que o Amor tem esta ou aquela qualidade Não falará ele próprio pois nada sabe mas fará falar os outros e em primeiro lugar Agatão aque 72 A definição do filósofo no Banquete de Platão le que fez antes dele o elogio do Amor e notadamente declara que o Amor é belo e gracioso Sócrates principia por interrogar Agatão perguntandolhe se o amor é desej do que se possui ou do que não se possui Se é necessário admitir que o Amor é desejo do que não se possui e se o amor é desejo de beleza não se deve concluir que o amor não pode ele próprio ser belo uma vez que não possui a beleza Depois de ter obrigado Agatão a admitir essa posição Sócrates deverá igualmente expor sua teoria do Amor mas referindose a quem o fez compreender o tema do Amor Diotima a sacerdotisa de Mantineia em uma conversa que teve alhures com ela Uma vez que é relativo a outra coisa e a uma coisa da qual é privado o Amor não pode ser um deus como imaginaram sem razão todos os outros convivas que haviam feito até então o elogio do Amor Eros é propriamente um dímonum ser intermediário entre os deuses e os homens entre os imortais e os mortais5 Não se trata apenas de uma posição mediana entre duas ordens de realidades opostas mas de uma situação de mediador o daímon está em relação com os deuses e os homens desempenha um papel nas iniciações aos mistérios nos encantos que curam os males da alma e do corpo nas comunicações que vêm dos deuses aos homens tanto na vignia como no sono Para melhor fazêlos compreender essa representação de Eros Diotima6 propusera a Sócrates uma narração mítica do nascimento desse daímon No dia do nascimento de Mrodite houve um banquete entre os deuses No fim da refeição Penia a saber Pobreza Privação aproximase para mendigar 5 Banquete 202 e 6 Ibid 203 a e ss 73 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes Poros a saber Recurso Riqueza Expediente esta va ainda adormecido embriagado de néctar no jardim de Zeus Penia estendese a seu lado a fim de remediar sua pobreza tendo um filho dele E assim ela concebe o Amor Segundo Diotima a natureza e o caráter do Amor explicamse por essa origem Nascido no dia do nascimen to de Mrodite é apaixonado pela Beleza Filho de Penia é sempre pobre indigente mendicante Filho de Poros é inventiva e astucioso A descrição mítica de Diotima de uma maneira mui to hábil e plena de humor aplicase ao mesmo tempo a Eros a Sócrates e ao filósofo A Eros em primeiro lugar o laborioso Ele é sempre pobre e longe está de ser delicado e belo como a maioria imagina mas é duro seco descalço e sem lar sempre por terra e sem forro deitandose ao desabrigo às portas e nos caminhos Mas também qual um digno filho de Poros esse Eros amoroso é um caçador terrível Ele é insidioso com o que é belo e bom e corajoso decidido e enérgico caçador terrível serrtpre a tecer maquinarias ávido de sabedoria e cheio de recursos a filosofar por toda a vida terrível mago feiticeiro sofista Mas a descrição aplicase a Sócrates que é também esse amoroso esse caçador miseráveF No fim do diálogo Alcibíades o descreverá participando da expedição militar de Potideia atormentado pelo frio de inverno pés descalços coberto por uma roupagem grosseira que mal o protegia 7 Ibid 174 a e 203 cde 220 b Cf VJankélévitch LIronie pp 122125 74 A definição do filósofo no Banquete de Platão No início do diálogo vimos que para 1r ao banquete Sócrates excepcionalmente banharase e calçarase Os pés descalços e o velho manto de Sócrates eram os temas favoritos dos poetas cômicos8 E o Sócrates descrito pelo cômico Aristófanes em suas Nuvenf é um digno filho de Poros linguarudo ousado resoluto velhaco charlatão raposa Em seu elogio de Sócrates Alcibíades também faz alusão à sua impudência e já antes dele no início do diálogo Agatão fizera a mesma alusão10 Para Alcibíades Sócrates é também um verdadeiro mágico11 que enfeitiça as almas por suas palavras Quanto à robustez de Eros é encontrada no retrato de Sócrates em armas que Alcibíades traça resiste ao frio à fome ao medo tudo sendo capaz de suportar tão bem o vinho quanto as privações12 Ora esse retrato de ErosSócrates é a um só tempo o retrato do filósofo na medida em que filho de Poros e de Penia Eros é pobre e deficiente mas sabe por sua habilidade compensar sua pobreza sua privação e sua de ficiência Para Diotima Eros é filósofo pois está a meio caminho entre a sophía e a ignorância Platão13 não define aqui o que entende por sabedoria Permitenos apenas en tender que se trata de um estado transcldente visto que a seus olhos propriamente flandÔ somente os deuses são 8 Encontrarseão alguns exemplos em Diógenes Laércio Vida dos jilósof II 2728 j 9 1 stófanes As Nuvens 445 ss As Nuvens 4a ed tradução e notas de Gilda Maria Reale Strazynski São Paulo Nova Cultural 1987 Os Pen sadores 10 Banquete 175 e 221 e 11 Ibid 215 c 12 Ibid 220 ad 13 Ibid 203 e ss 75 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes sábios14 Podese admitir que a sabedoria representa a per feição do saber identificado à virtude Mas como já dissemos e como deveremos tornar a dizêlo15 na tradição grega o saber ou sophía é menos um saber puramente teórico que um saberfazer um saberviver e nele se reconhecerão tra ços da maneira de viver não o saber teórico de Sócrates filósofo que Platão evoca precisamente no Banquete Há diz Diotima duas categorias de seres que não filo sofam os deuses e os sábios por serem eles precisamente sábios e os ignorantes por crerem ser sábios Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio sophós pois já é assim como se alguém mais é sábio não filosofa Nem também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios pois é nisso mesmo que está o difícil da ignorância no pensar quem não é um homem distinto e gentil nem inteligente que lhe basta assim Não deseja portanto quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso Mas Sócrates pergunta ainda Quais então Diotima os que filosofam se não são nem os sábios nem os igno rantes ao que responde Diotima São os que estão entre esses dois extremos e um deles seria o Amor Com efeito uma das co1sas mais belas é a sabedoria e o Amor é amor pelo belo de modo que é forçoso o Amor ser filósofo e sendo filósofo estar entre o sábio e o ignorante E a causa dessa sua condição é sua origem pois é filho de um pai sábio sophós e rico e de uma mãe que não é sábia e pobre 14 Cf Fedro 278 d Fedro tradução de Carlos Alberto Nunes Belém Ed Universidade Federal do Pará 1975 Fedro introdução tradução e notas de José Ribeiro Ferreira LisboaSão Paulo Verbo 1973 15 Cf pp 39 e 384 76 A definição do filósofo no Banquete de Platão Ainda aqui reconhecese logo sob os traços de Eros não só o filósofo mas Sócrates que aparentemente nada sabe como os ignorantes mas que ao mesmo tempo é consciente de nada saber ele é diferente dos ignorantes pelo fato de consciente de seu não saber desejar saber mesmo que como vimos16 sua representação do saber seja profundamente diferente da tradicional Sócrates ou o filósofo é Eros privado de sabedoria de beleza do bem deseja ama a sabedoria a beleza o bem Ele é Eros o que significa que ele é o Desejo não um desejo passivo e nostálgico mas um desejo impetuoso digno desse caçador terrível que é Eros Aparentemente não há nada mais simples e mais na tural do que essa posição intermediária do filósofo Ele está a meio caminho entre o saber e tgnrância Podese pensar que lhe bastará pratíêar sua atividade de filósofo para superar definitivamente a ignorância e alcançar a sabedoria Mas as coisas são muito mais complexas Com efeito no segundo plano dessa oposição entre sábios filósofos e ignorantes é possível vislumbrar um es quema lógico de divisão de conceitos que é muito rigoroso e não autoriza uma perspectiva tão otimista Diotima opôs os sábios e os não sábios o que quer dizer que ela fez uma oposição de contradição que não admite nenhum interme diário ou seéé sábÍÕ ou não não há meiotermo Desse ponto de vista não se pode dizer que o filósofo seja um intermediário entre o sábio e o não sábio pois se não se é sábio se é necessária e decididamente não sábio Ele 16 Cf pp 60 ss 77 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes está votado a jamais alcançar a sabedoria Mas nos não sábios Diotima introduziu uma divisão há os que são in fconscientes de sua não sabedoria e estes são propriamente os ignorantes e há os que são conscientes de sua não sabedoria e estes são os filósofos Dessa vez podese con siderar que na categoria dos não sábios os ignorantes inconscientes de sua não sabedoria são o contrário dos sábios e segundo esse ponto de vista isto é conforme essa oposição de contrariedades os filósofos são intermediários entre os sábios e os ignorantes na medida em que são não sábios conscientes de sua não sabedoria eles não são sábios nem ignorantes Essa divisão é paralela a outra que fora muito corrente na escola de Platão a distinção entre o que é bom e o que não é bom Entre os dois não há meiotermo pois se trata de uma oposição de contradição Mas nisso que não é bom podese distinguir entre o que não é bom nem mau e o que é mau Agora a oposição de contrariedade estabelecerseá entre o bom e o mau e haverá um intermediário entre o bom e o mau a saber o que não é nem bom nem mau17 Esses esquemas lógicos tiveram importância muito grande na escola de Platão18 Com efeito eles servem para distinguir as coisas que só se conhecem mais ou menos e as que são suscetíveis de graus de intensidade O sábio ou o qüe é bom são absolutos eles não admitem variações não se pode ser mais ou menos sábio ou mais ou menos bom Mas o que é intermediário o que não é nem bom nem mau ou o filósofo é sus cetível de mais ou menos o filósofo jamais atingirá a sabe doria mas pode progredir em sua direção A filosofia 17 Platão Lísis 218 b 1 18 HJ Krãmer Platonismus und hellenistische Philosophie Berlin 1971 pp 174175 e 229230 78 A definição do filósofo no Banquete de Platão portanto segundo o Banquete não é a sabedoria mas um modo de vida e um discurso determinados pela ideia de sabedoria Com o Banquete a etimologia da palavra philosophia o amor o desejo da sabedoria tornase o programa da filo sofia Podese dizer que com o Sócrates do Banquete a fi losofia toma definitivamente na histria uma tonalidade a um só teiilP irônica e trágica Irônica porque o verdadei ro filósofÓ á sémpre aquele que sabe nada saber que sabe que não é sábio e que não é sábio nem não sábio que não está por sua vez no mundo dos ignorantes nem no mundo dos sábios nem totalmente no mundo dos ho mens nem totalmente no mundo dos deuses inclassificável portanto sem casa ou lugar como Eros e Sócrates Trágico também porque esse ser bizarro é torturado e dilacerado pelo desejo de alcançar essa sabedoria que lhe escapa e que ama Como Kierkegaard19 o cristão que gostaria de ser cristão mas sabe que somente Cristo é cristão o filóso fo sabe que não pode alcançar seu modelo e que jamais será totalmente o que deseja Platão instaura assim uma distância insuperável entre a filosofia e a sabedoria A filo ofià definese por ser aquilo do que é privada isto é por uma norma transcendente que lhe escapa e contudo que possui em si de certa maneira segundo a célebre fórmula pascaliana tão platônica Não me procurarias se já não me houvesses achado20 Dirá Plotino21 O que é totalmen te privado do bem jamais procurará o bem É porque o 19 Kierkegaard LInstant 19 in CEuvres completes t XIX pp 300 301 20 Pascal Pensées 553 Brunschvicg Classiques Hachette 21 Plotino Eneadas III 5 50 9 44 p 142 Hadot 79 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes Sócrates do Banquete apresentase a um só temp como aquele que pretende não ter nenhuma sabedona e co mo um ser de quem se admira a maneira de viver Porque o filósofo não é um intermediário mas um mediador como Eros Ele revela aos homens alguma coisa do mundo dos deuses do mundo da sabedoria Ele é como os moldes de silenos22 que exteriormente parecem grotescos e ridículo mas apenas abertos vêse que têm estátuas de deuses E assim que Sócrates por sua vida e por seu discurso que têm efeito mágico e daimônico obriga Alcibíades a pôrse a si mesmo em questão e a dizerse que sua vida não merece ser vivida caso ele se comporte dessa maneira Notemos rapidamente na esteira de L Robin23 que é também o próprio Banquete isto é a obra literária que Platão escreveu com esse título que é semelhante a Sócrates ele também um sileno esculpido que com ironia e humor dissimula as mais profundas concepções Não é apenas a figura de Eros que é assim desvalo rizada e desmitificada no Banquete passando do posto de deus ao de daímon é também a figura do filósofo que não é mais o homem que recebe dos sofistas um saber acabado mas qualquer um que tenha consciência de sua deficiência e ao mesmo tempo do desejo que existe em si e que o atrai para o belo e para o bem O filósofo que toma consciência de si mesmo no 24 Banquete assim como o Sócrates que descrevemos maiS acnna aparece não sendo totalmente do mundo nem totaben 22 Banquete 215 bc 23 L Robin introdução p CV nota 2 in Platão Le Banquet Paris 1981 1ed1929 24 Cf acima pp 65 ss 80 A definição do filósofo no Banquete de Platão te de fora do mundo Como Alcibíades pôde ver na ex pedição de Potideia Sócrates tem a capacidade de per manecer contente em todas as circunstâncias de poder na expedição militar de Potideia aproveitar a abundância quando há abundância e sobrepujar os outros na arte de beber sem embriagarse e contudo quando há escassez suportar corajosamente a fome e a sede suportar com facilidade quando não há nada para comer e quando há abundância suportar facilmente o frio nada temer mos trando considerável coragem no combate Ele é indife rente a todas as coisas que seduzem os homens beleza riqueza vantagem ou outra coisa qualquer e que lhe pareça sem valor Mas é também alguém que pode absor verse totalmente na meditação retirandose de tudo o que o cerca Duranteãexpedição de Potideia seus com panheiros de armas viramno refletir em pé e imóvel durante uma jornada inteira Também desse modo ele chega ao início do diálogo e é isso que explica seu atra so ao banquete Platão talvez queira com isso dar a entender que Sócrates fora iniciado pela sacerdotisa de Mantineia nos mistérios do amor e que aprendeu a ver a verdadeira beleza aquele que teve essa visão atingirá diz a sacerdotisa de Mantineia a única via que vale a pena ser vivida e obterá dessa maneira a excelência aretê a virtude verdadeira25 A filosofia aparece dessa vez torna remos a repetir isto26 como uma experiência de amor Assim Sócrates revelase como umser qUe mesmo não sendo um deus pois apresentase antes de tudo como um homem comum é superior aos homens é um daímon 25 Banquete 211 d212 a 26 Cf adiante pp 108 ss 81 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes amálgama de divindade e humanidade mas um amálgama não existe por si ele é necessariamente ligado a uma es j tranheza quase a um desequilíbrio a uma dissonância interna Essa definição do filósofo no Banquete terá importância capital em toda a história da filosofia Para os estoicos por exemplo da mesma maneira que para Platão o filósofo é por essência diferente do sábio e na perspectiva dessa oposição de contradição o filósofo não se distingue do comum dos mortais Pouco importa dirão os estoicos que se encontre a um côvado ou a cento e cinquenta braças na água não se estará menos afogado27 Há de alguma maneira uma diferença de essência entre o sábio e o não sábio no sentido em que somente o não sábio é mais ou menos suscetível enquanto o sábio corresponde a uma perfeição absoluta que não admite graus O fato de o filósofo ser não sábio porém não quer dizer que não haja diferenças entre o filósofo e os outros homens O filósofo é consciente de seu estado de não sabedoria pois deseja a sabedoria procura progredirpa direção da sabedoria que para os estoicos é uma espécie de estado transcendente que só pode sex atingido por uma mutação brusca e inesperada E por outro lado o sábio não existe ou existe muito raramente O filósofo pode progredir mas sempre para o interior da não sabedoria Ele tende para a sabedoria mas de maneira assintótica sem jamais poder atingila As outras escolas filosóficas não terão uma doutrina tão precisa sobre a distinção entre filosofia e sabedoria mas 27 Cícero Dos termos extremos do bem e do ma III 14 48 82 Adfi e mçao do filósofo no Banquete de Platão de maneira geral b d a sa e ona sera como um ideal e atrai o filósofo e sobretudo fil fi que gma a oso a sera con d d um exerocio de sab d SI era a e o na pratica de um modo d d Essa Ideia será forte ainda em Kant2s VI a todos os filósofos que defi I esta Imphota em como o amor da sabedo e etJmo ogicmente a filosofia ao menos o modelo donaS que os filosofas retiveram ocrates do B t Ironia e humor ao qu I c anque e em sua a Laz eco o Socrates da d Banquete de Xenofonte29 El nçante o vados disso de es sao tradiCIOnalmente pri percebeuo bemue mais tiveram necessidade Nietzschéo Sobre o Fundador do crzstzanismo a vantacrem de S t e o sorrzr q t o ocra es fi ue a enua sua gravidade e a sabedoria plena de nura que dá ao homem o melhor estado de al ma Isócrates A oposição entre filosofia e sabedori outro lado em u d a reencontrase por m os contemporâne d Pl Isócrates Constatas 1 os e atao o orador e ne e antes de tudo I concepção de filos fi uma evo uçao na o a em relaçao a epoca dos sofistas31 A jisojiad 1 que nos deu uma formação em vista da ação que zntro uzzu a doç l ura nas re açoes mútuas que distin iu as znfilzczdades provocadas pela ion A d gu A o orancza aquelas que p vem da necessidade que nos ensinou a evitar as p ro rzmezras e 28 Cf adiante pp 373380 29 Xnofonte Banquete II 1719 30 Nietzsche Humano dema d h szaoumano 31 Isócrates Panegírico 47 0 vzayante e sua sombra 86 83 A definição platônica do filósofo e seus antecedentes a suportar as segundas com coragem essa filosofia portanto foi revelada para nossa cidade A filosofia é sempre a glória e o orgulho de Atenas mas seu conteúdo mudou consideravelmente Na descrição de Isócrates já não se trata apenas de cultura geral e cien tífica mas de uma formação para a vida que transforma as relações humanas e nos prepara para a adversidade Contudo Isócrates32 introduz sobretudo uma distinção capital entre a sophía ou epistême e a philosophia Visto que não é da natureza do homem possuir um saber epistême de tal modo que se o possuíssemos saberíamos o que é necessário Jazer e o que é necessário dizer eu consi dero sábios sophói nos limites do que permanece possível aqueles que graças a suas conjeturas podem obter o mais possível a melhor solução E eu considero filósofos philo sophoi aqueles que se entregam aos exercícios graças aos quais obterão o mais rapidamente possível essa capacidade de julgamento Isócrates distingue antes de tudo uma sabedoria ideal a epistême concebida como um saberfazer perfeito na condução da vida que se fundará sobre uma capacidade de julgar totalmente infalível logo uma sabedoria prática sophía que é um saberfazer marcado por uma sólida formação do julgamento que permite poder tomar deci sões razoáveis mas conjeturais nas situações de todo tipo que se apresentam e enfim a formação do próprio jul gamento que é justamente a filosofia Tratase por outro lado de outro tipo de filosofia em comparação com a de 32 Isócrates A Mudança 271 84 A definição do fil c osolo no Banquete de Platão Platão Poderseá falar de hu da palavra I mamsmo no sentido clássico socrates esta mtJm podemos nos tornar melhores amente convencido de que com a condição de tratar de aprendendo a falar bem servem à humanidade e r assuntos elvados belos que A filosofia eferemse ao Interesse geral33 e assim par 1 d bemdizer e de be a e e m Issoluvelmente a arte de m VIver 33 I Hadot Arts libérau 1984 pp 1618 x et phzlosophze dans la pensée antique Paris 85 Segunda Parte A filosofia como modo de vida Capítulo 5 Platão e aficademia O Banquete de Platão imortalizou a figura de Sócrates como filósofo isto é como o homem que procura a um só tempo por seu discurso e por seu modo de vida aproximarse e fazer aproximaremse os outros dessa ma neira de ser desse estado ontológico transcendente que é a sabedoria Assim a filosofia de Platão e posteriormente todas as filosofias da Antiguidade mesmo as mais distan tes do platonismo terão em comum a particularidade de vincular estreitamente nessa perspectiva discurso e modo de vida filosóficos A filosofia como forma de vida na Academia de Platão O projeto educativo Devemos ainda retornar ao estreito vínculo que liga Sócrates e Eros o filósofo e o amor no Banquete de Platão O amor aí aparece não só como o desejo do que é sábio e do que é belo mas como o desejo de fecundidade isto é de imortalizarse produzindo Em outras palavras o amor é criador e fecundo Há duas fecundidades diz 89 Diotimal a do corpo e a da alma Aqueles cuja fecundi dade reside no corpo procuram se imortalizar gerando filhos aqueles cuja fecundidade reie 11a ala prcura imortalizarse em uma obra de intehgenoa sep ela hterana ou técnica A mais alta forma de inteligência porém é o domínio de si e a justiça e ela se exerce na organização das cidades ou de outras instituições Vários historiadores viram aqui nessa menção das instituiçes ur1a alusão à fundação por Platão de sua escola po1s nas lmhas qu seguem Platão dá claramente a entender que a fecundi dade da qual quer falar é a de um educaor que como Eros filho de Poros é cheio de recursos euporez para meditar em discursos sobre a virtude sobre o que deve ser 0 homem bom e o que deve tratar2 No Fedro Platão falará de semear os espíritos de j semear discursos que possuem gérmen donde em índoles diferentes nascem outros discursos capazes I de conceder dentro das limitações humanas o mazs alto grau de felicidade a quem o possui 3 L Robin4 resumiu esses temas platônicos A alma fecunda só pode fecundar e frutificar por seu corrér cio com outra alma na qual serão reconhecidas as qualzda des necessárias e esse comércio pode instituirse pela palavra viva pela conversa diária que supõe uma vida comum organizada em vista de fins espirituais e por um futuro 1 Banquete 208 e 2 Ibid 209 bc 3 Fedro 277a 4 L Robin introdução em Platão Le Banquet Pans 1981 1 a ed 1929 p XCII 90 Platão e a Academia indefinido e rapidamente uma escola filosófica assim como Platão concebera a sua em sua época presente e como conti nuidade da tradição Descobrimos assim outro aspecto capital da nova de finição de filosofia que Platão propôs no Banquete e que marcará de maneira definitiva a vida filosófica da intigui dade A filosofia pode realizarse só pela comunidade de vida e de diálogo entre mestres e discípulos no seio de uma escola Vários séculos mais tarde Sêneca5 exaltará ainda a importância filosófica da vida em comum A palavra viva e a vida em comum te serão mais proveitosas que o discurso escrito É a uma realidade que te seja presen te que precisas ir antes de tudo porque os homens acreditam mais em seus olhos que em seus ouvidos em seguida porque longa é a via dos preceitos curta e infalível a dos exemplos Cleanto o estoico não teria feito reviver seu mestre Zenão em pessoa caso não tivesse se tornado seu ouvinte ele se misturou à sua vida penetrou em seus pensamentos secretos observou de perto se Zenão vivia em conformidade à sua própria regra de vida Platão e Aristóteles e esse grupo de sábios que deve ria enxamear em correntes opostas tiraram mais proveito dos costumes de Sócates que df us eniraJfLnos Se Metrodoro lermârcotPÕlúnooram grades homens isso não foi por causa dos cursos de Epicuro que escutaram mas por causa da comunidade de vida que tiveram com ele É verdade tornaremos a repetir que Platão não foi o único nessa época a fundar uma instituição escolar con sagrada à educação filosófica Outros discípulos de Sócrates Antístenes Euclides de Megara Aristipo de Cirene ou uma 5 Sêneca Cartas a Lucílio 6 6 91 A filosofia como modo de vida personagem como Isócrates o fizeram ao mesmo tempo em que ele mas a Academia de Platão terá notoriedade considerável tanto em sua época como na posteridade pela qualidade de seus membros e perfeição de sua orga nização Em toda a história da filosofia posterior encontrar seão a memória e a imitação dessa instituição e das discussões e debates que ali ocorreram6 Academia porque as atividades da escola realizavamse nas salas de reunião que se encontravam em um ginásio dos arredores de Atenas denominado precisamente Academia e porque Platão havia adquirido próximo do ginásio uma pequena pro priedade na qual os membros da escola podiam reunirse ou mesmo viver em comum7 Sócrates e Pitágoras Os antigos diziam que a originalidade de Platão consis tia no fato de ter realizado de algum modo uma síntese entre Sócrates que conhecera em Atenas e o pitagorismo que teria conhecido em sua primeira viagem à Sicília8 De Sócrates teria recebido o método do diálogo a ironia o interesse voltado aos problemas da condução da vida de Pitágoras teria herdado a ideia de uma formação pelas 6 Cf a importante obra de HJ Krãmer Platonismus und hellenistische Philosophie Berlin 1971 7 Cf MF Billot art Académie in Dictionnaire des philosophes antiques Éd R Goulet T L Paris 1994 pp 693789 8 Por exemplo Dicearco em Plutarco Questões de Convivas VIII 2 719 a Cícero Da República I 1516 Da República 2 ed Tradução de Amador Cisneiros São Paulo Abril Cultural 1980 Os Pensadores Dos termos extremos V 8687 Agostinho A Cidade de Deus VIII 4 A Cidade de Deus 3 ed tradução de Oscar Paes Leme Petrópolis Vozes 1991 Numênio fr 24 éd e trad des Places Prado Comentário sobre o Timeu t I 7 24 Dihel p 32 trad Festugiêre 92 Platão e a Academia matemillas e de uma aplicação possível dessas oencias ao conhecimento da natureza a elevação do pensamento o ideal de uma comunidade de vida entre filósofos É in discutível que Platão conheceu os pitagóricos ele os põe algumas vezes em cena em seus diálogos Mas dàda a incer teza de nossos conhecimentos sobre o pitagorismo antigo não podemos definir exatamente a parte do pitagorismo na formação de Platão Uma coisa é certa em todo caso na República 9 Platão elogia Pitágoras dizendo têlo amado porque propôs aos homens e às gerações futuras uma Ígt regrçl22a pg2rka que distingue dos outros homens aqueles que a praticam e que existia ainda no tempo de Platão As comunidades pitagóricas desempenharam efetivamente importante papel político nas cidades do Sul da Itália e da Sicília Podese legitimamente pensar que a fundação da Academia inspirouse simultanea mente no modelo da forma de vida socrática e no modelo 1 da frma de vida pitagórica mesmo que não possamos j defimr com certeza as características desta última10 A intenção política A intenção inicial de Platão é política ele crê na possi bilidade de mudar a vida política pela educação filosófica dos homens influentes na cidade O testemunho autobio gráfico que Platão dá na Carta VIP 1 merece atenção Ele narra como gostaria em sua juventude de se ocupar com os assuntos da cidade e como descobriu então pela morte 9 República X 600 b 10 P Lynch Aristotles School p 61 11 Cartas tradução de Carlos Alberto Nunes Belém Editora Univer sidade Federal do Pará 1975 93 A filosofia como modo de vida de Sócrates e por seu exame das leis e dos costumes a que ponto é difícil administrar corretamente os assuntos da cidade para reconhecer finalmente que todas as cidades de sua época absolutamente todas tinham um mau regime político É porque diz ele fui irresistivelmente levado a louvar a verdadeira filosofia e a proclamar que somente à sua luz se pode reconhecer em que lugar a justiça está na vida pública e na vida privada Mas não se trata simples imente de discorrer abstratamente Para Platão seu ofício ide filósofo constD güSe ele prõZafsempenhar um papel político em Siracusa é para não passar a seus próprios olhos por um belo palrador incapaz de agir12 Muitos alunos da Academia desempenharam efetivamente um papel político em diferentes cidades seja como con selheiros de soberanos seja como legisladores seja ainda como opositores da tirania13 Os sofistas pretenderam for mar os jovens para a vida política Platão quis fazer isso dotandoos de um saber bem superior àquele que os sofistas poderiam fornecerlhes de um saber que de uma parte será fundado sobre um método racional rigoroso e de outra segundo a concepção socrática será inseparável do amor do bem e da transformação interior do homem Ele não quer somente formar hábeis políticos mas homens Para realizar sua intenção política Platão deve fazer um imenso desvio isto é criar uma comunidade intelectual e espiritual que será encarregada de formar levando o tempo necessário os novos homens Nesse imenso desvio as intenções políticas arriscamse porém a ser esquecidas e talvez não seja indiferente escutar Platão dizer que será TI Carta VIL 328 b329 c trad Brisson 13 J P Lynch op cit p 59 nota 32 bibliografia M Isnasdi Paren te Leredità di Platone nellAccademia antica Milano 1989 pp 63 ss 94 Platão e a Academia necessário forçar os filósofos a ser reis 14 Descrevendo a via a Acdmia de Platão Dicearco15 o discípulo de Anstoteles ms1ste no fato de seus membros viverem como uma comunidade de homens livres e iguais na medida em que aspiravam igualmente à virtude e à investigação em comum Platão não pede honorários a seus alunos U virtue do princípio de que é necessário dar o qu e Ial aquels que são iguais Segundo os princípios pohtHos ptomcos tratase então de uma igualdade geometrKa que da a cada um segundo seus méritos e necessidades Vislumbrase aqui que persuadido de que o homem só pode viver como homem em uma cidade pereita Platão gostaria de fazer para tornar possível sua reahzaçao que seus discípulos vivessem nas condições de uma cidade ideal e gostaria ainda que embora não pudessm governar uma cidade eles pudessem governar seu propno eu segundo as normas dessa cidade ideaP7 E isso o que procurará fazer a maior parte das escolas filosóficas posteriores18 Em vez de entregarse a uma atividade política os mem bros da escola consagraramse a uma vida desinteressada de estudos e de prática espiritual Como os sofistas mas por outras razões Pltão cria um me1Õeouêãtivõreiti mente separado da ndade Socrates por seu turno tinha uma concepção de educação À diferença dos sofistas considerava que a educação deveria realizarse não em u 14 República VII 519 d 15 K Gaiser Philodems Academica Stuttgart 1988 pp 153 ss 16 Leis Vl 756e758 a 17 República IX 592 b 8 Cf B Frischer The Sculpted Word Epicureanism and Philosophical Recruztment tn Anczent Greec University of California Press 1982 p 63 95 A filosofia como modo de vida meio artificial mas como fora o caso da tradição antiga misturandose à vida da cidade Contudo precisamente o que caracteriza a pedagogia de Sócrates é que ela atribuía importância capital ao contato vivo entre os homens e agora Platão partilha dessa convicção Tornase a encon trar em Platão essa concepção socrática de educação pelo contato vivo e pelo amor mas como disse Lynch 19 Platão de alguma maneira institucionalizoua em sua escola A educação será feita no seio de uma comunidade de um grupo de um círculo de amigos no qual reinará uma atmosfera de amor sublime Formação e investigação na Academia Conhecemos pouca coisa sobre o funcionamento insti tucional da Academia20 Como tornaremos a dizer não se deve representar como se fez demasiadas vezes a Academia e as outras escolas filosóficas de Atenas como associações religiosas adoradoras das Musas Sua função corresponde apenas à utilização do direito de associação em vigor em Atenas21 Havia parece duas categorias de membros de um lado os mais velhos investigadores e professores de outro os mais jovens os estudantes Estes últimos por exemplo parecem ter desempenhado com seus votos papel decisivo na eleição de Xenócrates como o segundo sucessor de Platão O primeiro sucessor Espeusipo teria sido escolhido pelo próprio Platão Na Antiguidade era significativo o fato de duas mulheres Axioteia e Lasteneia terem sido alunas de Platão e de Espeusipo Contase que 19 P Lynch op cit p 63 20 Sobre esse tema cf id ibid pp 5463 e p 63 21 Cf adiante pp 149150 96 Platão e a Academia Axioteia22 usava sem vergonha a túnica simples dos filóso fos o que nos permite supor que os membros da Academia como outros filósofos da época tinham esse costume que os distinguia dos outros homens Podese pensar a julgar pelas tradições posteriores da escola que fora das discus sões dos cursos e dos trabalhos científicos algumas refei ções feitas em comum eram previstas pela organização da escola23 Falamos de membros mais velhos associados a Platão na investigação e no ensino Conhecemos deles certo número Espeusipo Xenócrates mas também Eudoxo de Cnide Heráclido do Ponto Aristóteles Este último por exemplo permanece na Academia durante 20 anos como discípulo posteriormente ensinando Tratase de filósofos e de cientistas notadamente astrônomos e ma temáticos de primeiro time como Eudoxo e Teeteto Nossa representação da Academia e do papel que nela desempenhava Platão seria provavelmente muito diferen te se as obras de Espeusipo de Xenócrates e de Eudoxo tivessem sido conservadas A geometria e as outras ciências matemáticas desem penhavam papel de primeiro plano na formação Mas elas representavam apenas uma primeira etapa na formação do futuro filósofo Eram praticadas na escola de Platão de maneira totalmente desinteressada sem qualquer conside ração de utilidade24 mas destinadas a purificar o espírito das representações sensíveis tinham também finalidade 22 K Gaiser Philodems Academica p 154 23 Plutarco Questões de Convivas VIII 1 717 b 24 República VII 522534 97 A filosofia como modo de vida ética25 A geometria não era somente o objeto de um en sino elementar mas de investigações aprofundadas Foi na Academia que as matemáticas conheceram seu verdadeiro nascimento Lá foi descoberta a axiomática matemática que formula as pressuposições de raciocínios princípios axiomas definições postulados e põe em ordem os teo remas e os deduz uns dos outros Todos esses trabalhos conduziram meio século mais tarde à redação por Euclides de seus famosos Elemento526 Segundo a República27 os futuros filósofos só deveriam dedicarse à dialética quando tivessem adquirido certa maturidade e eles o faziam durante cinco anos de trinta a trinta e cinco anos Não sabemos se Platão aplicava essa regra em sua escola Mas necessariamente exercícios dia léticos tiveram lugar no ensino da Academia A dialética era à época de Platão uma técnica de discussão subme tida a regras precisas Uma tese era apresentada isto é uma proposição interrogativa do tipo podese ensinar a virtude Um interlocutor atacava a tese outro a defendia O primeiro atacava interrogando isto é apresentando ao defensor da tese questões habilmente escolhidas para obrigálo a respostas tais que fosse levado a admitir a contraditória da tese que queria defender O próprio in terrogador não tinha uma tese Por isso Sócrates tinha o costume de desempenhar o papel do interrogador como diz Aristóteles Sócrates costuma fazer perguntas e não 25 Ibid VII 526 e Plutarco Questões de Convivas VIII 718 ef cf I Hadot Arts libéraux p 98 26 Cf P Lasserre La naissance des mathématiques à lépoque de Platon FribourgParis 1990 27 República 539 de 98 Platão e a Academia respondêlas confessando sempre nada saber28 A dialética não ensinava só a atacar isto é a conduzir judiciosamente as interrogações mas também a responder frustrando as armadilhas do interrogador A discussão de uma tese será a forma habitual de ensino29 até o século I aC A formação para a dialética era absolutamente necessária na medida em que os discípulos de Platão eram destinados a desempehhar seu papel na cidade Em uma civilização que tinha por centro o discurso político era preciso formar para um perfeito domínio da palavra e do raciocínio Aos olhos de Platão ela era em contrapartida perigosa pois arriscavase a fazer que os jovens acreditassem que se poderia defender ou atacar qualquer posição A dialética platônica não é um exercício puramente lógico Ela é antes de tudo um exercício espiritual que exige dos Iiiirtocutores uma ascese uma transformação deles mesmos Não se trata de uma luta entre dois indivíduos na qual o mais hábil imporá seu ponto de vista mas de um esforço realizado em comum por dois interlocutores que querem estar de acordo com as exigências racionais do discurso sensato do lógos Opondo seu método ao dos erísticos contemporâneos que praticavam a controvérsia por si mesma Platão30 escreve Quando dois amigos como tu e eu fazem humor é neces sário usar isso de uma maneira mais doce e mais dialética Entendo por mais dialética não só o Jato de dar respostas verdadeiras mas também fundar sua resposta sobre aquilo que o interlocutor reconhece saber 28 Aristóteles Refutações sofísticas 183 b 7 29 a adiante pp 156157 e vejase P Hadot Philosophie Dialectique Rhétorique dans lAntiquité in Studia Philosophica 39 139166 1980 30 Mênon 75 cd 99 A filosofia como modo de vida Um verdadeiro diálogo não é possível se não se quer realmente dialogar Graças a esse acordo entre interlocu tores renovado a cada etapa da discussão já não é um dos interlocutores que impõe sua verdade ao outro bem ao contrário o diálogo ensinalhes a pôrse no lugar do outro a superar seu próprio ponto de vista Graças a seu esforço sincero os interlocutores descobrem por eles mes mos e neles mesmos uma verdade independente deles na medida em que se submetem a uma autoridade superior o lógos Como em toda a filosofia antiga a filosofia consiste aqui no movimento pelo qual o indivíduo se transcende em alguma coisa que o supera para Platão no lógos no discurso que implica uma Xigência de racionalidade e de universalidade Além disso esse lógos não representa uma espécie de saber absoluto tratase de fato do acordo que se estabelece entre interlocutores que são levados a admitir certas posições em comum acordo no qual eles superam seus pontos de vista particulares31 Essa ética do diálogo não se traduz necessariamente por um perpétuo diálogo Sabemos por exemplo que certos tratados de Aristóteles que se opõem por seu turno à teoria platônica das ideias são apontamentos para as aulas orais que Aristóteles fazia mrAcademia ora eles se apre sentam como um discurso contínuo sob forma didática32 Mas parece que conforme um hábito que se perpetuou em toda a Antiguidade os ouvintes podiam exprimir suas opiniões após a exposição33 Houve certamente algumas 31 Cf E Heitsch Erkenntnis und Lebensführung MainzStuttgart Aka demie der Wissenschaften und der Literatur 1994 fase 9 32 I Düring Aristoteles Heidelberg 1996 p 9 33 Cf adiante p 225 100 Platão e a Academia outras expos1çoes de Espeusipo e de Eudoxo que expri miam pontos de vista muito diferentes Havia investigação em comum mudança de ideias e isso era ainda uma vez uma espécie de diálogo Platão34 concebia ademais o pensamento como um diálogo Pensamento e discurso são a mesma coisa salvo que é o diálogo interior e silencioso da alma consigo mesma que denominamos pensamento A escolha de vida platônica Essa ética do diálogo explica a liberdade de pensamento que podese vislumbrar reinava na Academia Espeusipo Xenócrates Eudoxo ou Aristóteles professavam teorias que não estavam totalmente de acordo com as de Platão nota damente sobre o tema da doutrina das Ideias e mesmo da definição do bem pois sabemos que Eudoxo pensava que o bem supremo fosse o prazer Essas controvérsias intensas entre os membros da escoladeixaram traços não só nos diálogos de Platão ou em Aristóteles mas em toda a filosofia helenística35 senão em toda a história da filoso fia Seja como for podemos concluir que a Academia era um lugar de livre discussão e que não havia ortodoxia na escola nem dogmatismo Se é assim podese perguntar sobre o que poderia se fundar a unidade da comunidade Podese dizer creio que se Platão e os outros professores da Academia tinham desa cordo sobre pontos de doutrina todos eles admitiam apesar de tudo graus diversos de escolha do modo de vida da 34 Sofista 263 e 4 35 Cf a obra de HJ Krãmer citada na p 92 nota 6 101 A filosofia como modo de vida forma de vida proposta por Platão Essa escolha de vida consistia parece antes de tudo em aderir a essa ética do diálogo da qual acabamos de fular Tratase precisamente para retomar a expressão de J Mittelstrass36 de uma forma de vida que é praticada pelos interlocutores pois na me dida em que no ato do diálogo eles se põem como sujeitos mas também se superam a si mesmos fazem a experiência do lógos que os transcende e finalmente do amor do Bem que supõe todo esforço de diálogo Nessa perspectiva o objeto da discussão e o conteúdo doutrinai têm importância secundária O que conta é a prática do diálogo e a trans formação à qual ela conduz Às vezes a função do diálogo será chocarse com a aporia e revelar os limites da linguagem a impossibilidade na qual algumas vezes se encontra de comunicar a experiência moral e existencial Finalmente tratase sobretudo para retomar a expres são de L Brisson37 de aprender a viver de modo filosó fico em uma vontade comum de praticar uma investigação desinteressada em oposição tencionada ao mercantilismo sofístico38 É já uma escolha de vida Viver de modo filo sófico é principalmente voltarse para a vida intelectual e espiritual realizar uma conyersão39 que põe em jogo toda a alma isto é toda a vida moral A ciência ou o saber jamais são para Platão um conhecimento puramente teóri co e abstrato que se poderá introduzir de modo acabado 36 J Mittelstrass Versuch über den sokratischen Dialog in Der Ges prãch Éd K Stierle und R Warning Munich 1984 p 26 37 L Brisson Présupposés et conséquences dune interprétation ésotériste de Platon in Les Études philosophiques 1994 n 4 p 480 38 Aristóteles Metafísica 1004 b 25 39 República VII 518 c 102 Platão e a Academia na alma Quando Sócrates como vimos40 dizia que a vir tude é um saber ele não entendia por saber o puro co nhecimento abstrato do bem mas um conhecimento que escolhia e queri o bem isto é uma disposição interior na qual pensamento vontade e desejo são apenas um Para Platão também se a virtude é ciência a própria ciência é virtude Podese pensar que havia na Academia uma con cepção comum de ciência como formação do homem como lenta e difícil educação do caráter como desenvol vimento41 harmonioso de toda a personalidade humana finalmente como modo de vida destinado a assegurar uma vida boa e portanto a salvação da alma42 Aos olhos de Platão a escolha do modo de vida filo sófico era o essencial É o que atesta a narração de Er na República que apresenta miticamente essa escolha como realizada na vida anterior43 É aí parece que reside para o homem o risco capital eis por que cada um de nós pondo de lado qualquer outro estudo deve preocuparse sobretudo em buscar e cultivar aquele em ver se está em situação de conhecer e descobrir o homem que lhe dará a capacidade e a ciência de discernir as boas e as más condições bem como escolher sempre e em toda parte a melhor na medida do possível Exercícios espirituais Na Carta VII Platão declara que caso não se adote esse modo de vida a vida não vale a pena ser vivida e isso 40 Cf p 63 nota 31 41 I Hadot Arts libéraux p 15 42 L Brisson Presupposés p 480 43 República X 618 b 103 A filosofia como modo de vida porque é necessário decidirse imediatamente a seguir essa via essa via maravilhosa Esse gênero de vida supõe ademais um esforço considerável que é necessário a cada dia renovar É em relação a esse gênero de vida que se distinguem aqueles que filosofam realmente daqueles que não filosofam realmente estes últimos não tendo senão um verniz exterior de opiniões superficiais 44 Platão faz alusão a esse gênero de vida45 quando evoca a figura de seu discípulo Díon de Siracusa Ele consiste em dar mais importância à virtude que ao prazer em renunciar aos prazeres dos sentidos em também observar um regime alimentar em viver cada dia de tal modo que se torna cada dia o mais possível senhor de si Como bem mostrou P Rabbow46 parece bem que certas práticas espirituais cujos traços encontramos em várias passagens dos diálogos estiveram em uso na Academia Nas últimas páginas de seu diálogo Timeu47 Platão afirma que é necessário exercer a parte superior da alma que é justamente o intelecto de tal modo que ela se harmonize com o universo e assimilese à divindade Mas ele não dá detalhes sobre a maneira de praticar esses exercícios É em outros diálogos que se podem encontrar especificações interessantes Poderseia falar de preparação para o sono quando Platão48 evoca as pulsões inconscientes que os sonhos nos 14 Carta VII 340 cd 45 Ibid 327 b 331 d 336 c 46 P Rabbow Paidagogia Die Grundlegung der abendliindischen Erziehun gskunst in der Sokratik Gõttingen 1960 p 102 47 Timeu 89d90a 48 República IX 571572 104 Platão e a Academia revelam por exemplo os desejos terríveis e selvagens de violação e de morte que existem em nós Para não se ter esses sonhos é necessário prepararse à tarde esforçandose para estimular a parte racional da alma com seus discursos interiores e investigações que a orientem para assuntos elevados entregandose à meditação acalmando assim o desejo e a cólera Notese por outro lado que Platão49 recomenda dormir pouco Não se deve dormir muito apenas o que é necessário para a saúde ora isso não será muito uma vez que venha a ser um hábito Outro exercício consiste em saber conservar a calma na infelicidade sem revoltarse50 utilizando para isso máximas capazes de mudar nossas disposições interiores Dirseá as sim que não se sabe o que é bom e o que é mau nesses tipos de acidentes que em nada ajuda indignarse que nenhuma coisa humana merece que se lhe atribua muita importância e que como no jogo de dados é necessário considerar as coisas tais como são e agir em consequência51 A mais célebre prática é o exercício para a morte ao qual Platão faz alusão no Fédon que narra precisamente a morte de Sócrates Sócrates declara que um homem que passou sua vida na filosofia tem necessariamente coragem para morrer pois a filosofia é apenas um exercício para a morte52 E ela é um exercício para a morte pois a morte é a separação entre alma e corpo e a filosofia dedicase a 49 Leis XII 808 bc 50 República X 604 bc 51 Sobre um exercício do mesmo gênero no Críton cf E Martens Die Sache des Sokrates p 127 52 Fédon i a Cf R di Giuseppe La teoria della morte nel Fedone platonico I Mulino 1993 105 A filosofia como modo de vida desligar sua alma de seu corpo O corpo com efeito causanos mil problemas por causa das paixões que engendra das necessidades que nos impõe É necessário que o filó sofo se purifique isto é que se esforce para concentrar e unir a alma para libertála da dispersão e da distração que lhe impõe o corpo Devese pensar aqui nas longas me ditações de Sócrates sobre si mesmo evocadas no Banquete durante as quais permanece imóvel sem beber ou comer Esse exercício é indissoluvelmente ascese do corpo e do pensamento despojamento das paixões para alcançar a pureza da inteligência O diálogo é em certo sentido já um exercício para a morte Pois como disse R Schaerer 53 a individualidade corporal cessa de existir no momento em que se exterioriza no lógos Esse foi um dos temas favoritos do pensamento do saudoso B Parain54 A lin guagem só se desenvolve sobre a morte dos indivíduos Na perspectiva da narração da morte de Sócrates que é o Fédon vêse assim que o eu que deve morrer se trans cende em um eu de agora em diante estrangeiro à morte pois é identificado ao lógos e ao pensamento É o que dá a entender Sócrates no fim do diálogo55 Não há meio meus amigos de convencer Críton de que o verdadeiro Sócrates é este quevos está falando e dispondo suas ideias uma por uma Imaginame já esse cadáver que serei em breve por isso pergunta como deve enterrarme Se no Fédon esse exercício é apresentado como um exer cício para a morte que precisamente liberta a alma do medo 53 R Schaerer La Question platonicienne p 41 54 B Parain Le langage et lexistence na coletânea LExistence Paris 1945 p 173 55 Fédon 115 e 106 Platão e a Academia da morte na Repúblicd6 ele aparece como uma espécie de voo da alma ou de olhar desde o alto sobre a realidade A mesquinhez de espírito é quiçá o que mais repugna a uma alma que deve tender incessantemente a abraçar no seu con junto e na sua totalidade as coisas divinas e as humanas Mas acreditas que um homem dotado de elevação de pensamento e a quem é dado contemplar todos os tempos e todos os seres possa encarar a vida humana como algo de grande Assim não pensará que a morte seja coisa a temer Ainda aqui o exercício que consiste em mudar radical mente de ponto de vista e abraçar a totalidade da realida de em uma visão universal permite vencer o medo da morte A grandeza de alma revelarseá assim como o fru to da universalidade do pensamento A filosofia descrita no TeetetrP tem o mesmo olhar do alto para as coisas aqui embaixo Seu pensamento passeia em toda parte como um voo nos astros e sobre a Terra Eis por que Platão o des creve com humor como um estrangeiro perdido no mun do humano demasiado humano que se arrisca como Tales o sábio a cair em um poço Ele ignora as lutas pelas ma gistraturas os debates políticos as festas embelezadas por torneios de flautas Ele não sabe pleitear no tribunal nem injuriar nem lisonjear As maiores propriedades lhe parecem pouca coisa habituado que é a abraçar com o olhar a Terra inteira Ele zomba da nobreza pretensamente asse gurada pelas longas genealogias Como bem notou P Rabbow58 não há aqui distinção entre a vida contemplativa 56 República VI 486 ab 57 Teeteto 173176 58 P Rabbow Paidagogia p 273 107 A filosofia como modo de vida e a vida ativa mas opos1çao entre dois modos de vida o modo de vida do filósofo que consiste em tomarse justo e bom na claridade da inteligência que é simultaneamente ciência e virtude e o modo de vida dos não filósofos estes são deixados à vontade na cidade pervertida somente por que se comprazem com as fulsas aparências de habilidade e de sabedoria porque só se deixam arrastar pela força bruta59 O Teeteto quer dizer que o filósofo parece um es trangeiro ridículo na cidade só aos olhos do homem comum que a cidade corrompeu e que só reconhece como valor a astúcia a habilidade e a brutalidade Em certa medida a ética do diálogo que é em Platão o exercício espiritual por excelência está ligada a outra marca fundamental a sublimação do amor Segundo o mito da preexistência das almas a alma viu quando ainda não tinha descido para o corpo as Formas as Normas transcendentes Caída no mundo sensível ela as esqueceu nem sequer pode reconhecêlas intuitivamente nas imagens que se encontram no mundo sensível Mas somente a Forma da beleza ainda tem o privilégio de aparecer nessas imagens de si mesma que são os belos corpos A emoção amorosa que a alma sente diante de um belo corpo é provocada pela recordação inconsciente da visão que a alma teve em sua existência anterior60 Quando a alma prova o mais humilde amor ter restre é essa beleza transcendente que a seduz Aqui reen contramos o estado do filósofo do qual fala o Banquete estado de estranheza de desequilibrio interior pois aquele que ama é dilacerado por seu desejo de unirse carnalmente ao objeto amado e seu impulso para a beleza transcendente 59 Teeteto 176 bc 60 Fedro 249 b ss 108 Platão e a Academia que o atrai por meio do objeto amado O filósofo esforçar seá para sublimar seu amor procurando tomar melhor o objeto de seu amor61 Seu amor como diz o Banquet2 dar lheá a fecundidade espiritual que se manifestará na prática do discurso filosófico Podese notar aqui em Platão a pre sença de um elemento irredutível à racionalidade discursiva herdada do socratismo o poder educativo da presença amo rosa63 Só se aprende quando se ama64 Por outro lado sob o efeito da atração inconsciente da Forma da beleza a experiência do amor diz Diotima no Banquet5 elevarseá da beleza que existe nos corpos para a que existe nas almas depois para as ações e para as ciências até a visão repentina de uma beleza maravilhosa e eterna visão análoga à que o iniciado experimenta nos mistérios de Elêusis visão que excede toda enunciação toda discursividade mas gera na alma a virtude A filosofia toma se então a experiência vivida de uma presença Da experiência da presença do ser amado elevase à experiên cia de uma presença transcendente Afirmamos acima que a ciência em Platão jamais é puramente teórica ela é transformação do ser é virtude podemos dizer agora que é também afetividade Poderse ia aplicar a Platão a fórmula de Whitehead66 O conceito 61 Fedro 253 a 62 Banquete 209 bc 63 Cf acima pp 5758 64 Goethe Conversas com Eckermann 12 de maio de 1825 65 Banquete 210212 66 Citada por A Parmentier La philosophie de Whitehead et le probteme de Dieu Paris 1968 p 222 nota 8 O conceito é sempre revestido de emoção isto é de esperança ou de temor ou de repulsão ou de ardente aspiração ou de prazer de análise 109 A filosofia como modo de vida é sempre revestido de emoção A ciência mesmo a geo metria é um conhecimento que envolve toda a alma que é sempre ligada a Eros ao desejo ao impulso e à escolha A noção de conhecimento puro isto é de puro entendi mento diz ainda Whitehead67 é totalmente estranha ao pensamento de Platão A era dos professores ainda não chegou O discurso filosófico de Platão Até agora falamos apenas do diálogo oral tal qual de veria ser praticado na Academia mas do qual só podemos fazer uma ideia por exemplos de diálogos que encontramos na obra escrita de Platão e várias vezes para simplificar nós os citamos empregando a fórmula diz Platão Contudo essa figura é muito inexata pois em sua obra escrita Platão nada diz em seu próprio nome Enquanto antes dele Xenófanes Parmênides Empédocles os sofistas e Xenofonte não deixam de falar na primeira pessoa ele faz falar personagens fictícias em situações fictícias Apenas na Carta VII faz alusão à sua filosofia descrevendoa antes de tudo como um modo de vida e sobretudo declarando que sobre o objeto de suas preocupações nunca redigiu obra escrita e que jamais fará isto pois tratase de um saber que não pode absolutamente ser formulado como os outros saberes mas que brota da alma no momento em que ela teve uma longa familiaridade com a atividade em que consiste e à qual consagrou sua vida68 67 Id ibid p 410 n 131 68 Carta VII 341 c llO Platão e a Academia Podese perguntar por que Platão escreveu diálogos O discurso filosófico falado é com efeito a seus olhos bem superior ao discurso filosófico escrito É que no discurso oral69 há a presença concreta de um ser vivo um verdadeiro diálogo que liga duas almas uma troca na qual 6 discurso como diz Platão pode responder às questões que se lhe põem e defenderse por si mesmo O diálogo é portanto personalizado ele se dirige a essa pessoa e corresponde a suas possibilidades e necessidades Como na agricultu ra é necessário tempo para que a semente germine e se desenvolva é necessário muita conversa para fazer nascer na alma do interlocutor um saber que como dissemos será idêntico à virtude O diálogo não transmite um saber acabado uma informação mas o interlocutor conquista seu saber por seu esforço próprio descobreo por si mesmo pensa por si mesmo Ao contrário o discurso escrito não pode responder às questões é impessoal e pretende dar imediatamente um saber acabado mas que não tem a dimensão ética que representa uma adesão voluntária Só há verdadeiro saber no diálogo vivo pp Se apesar de tudo isso Platão escreveu diálogos tal vez seja antes de mais nada porque quis dirigirse não só aos membros de sua escôla mas aos ausentes e desco nhecidos O discurso escrito rola por todos os lugares70 Os diálogos podem ser considerados obras de propagan da ornadas com todos os prestígios da arte literária mas destinadas a converter à filosofia Platão os lia nas sessões de 69 Fedro 275277 Comparar com Político 294 c 300 c Político tra dução e notas de Jorge Paleikat e João Cruz Costa 4a ed São Paulo Nova Cultural 1987 Os Pensadores sobre os inconvenientes da lei escrita e as vantagens da palavra real 70 Fedro 275 e lll A filosofia como modo de vida leituras públicas que eram na Antiguidade os meios de fazerse conhecer Mas os diálogos eram conhecidos tam bém longe de Atenas É assim que Axioteia mulher de Fliunte tendo lido um dos livros da República vai a Atenas para tornarse aluna de Platão71 e os historiadores antigos afirmaram que ela durante muito tempo escondeu o fato de ser mulher Em uma Vida de Platão72 datada da segunda metade do século IV aC encontramos a seguinte observação Ao compor seus diálogos ele exortou muitas pessoas a filoso far mas por outro lado permitiu que muitos filosofassem de maneira superficial Contudo para converter a esse modo de vida que é a filosofia é necessário dar uma ideia do que é a filosofia Platão escolhe para tanto a forma do diálogo e isso por dois motivos Em primeiro lugar o gênero literário do diálogo socrático isto é que põe em cena como inter locutor principal Sócrates estava muito em voga na época E precisamente o diálogo socrático permite valorizar a ética do diálogo praticada na escola de Platão Podese ademais legitimamente supor que certos diálogos nos dão um eco do que foram a lisussões no interior da Aca demia Observese somente que muito viva nos primeiros diálogos a personagem de Sócrates tende a tornarse cada vez mais abstrata nos diálogos mais tardios para esvanecerse finalmente nas Leis73 71 Cf R Goulet art Axiothea in R Goulet Dictionnaire des philosophes antiques T I Paris 1994 p 691 72 K Gaiser Philodems Academica p 148 73 Cf R Schaerer La Question platonicienne p 171 J Mittelstrass Versuch über den sokratischen Dialog p 26 assinala o perigo ligado a 112 Platão e a Academia Devese reconhecer porém que essa presença irônica e amiúde lúdica de Sócrates torna a leitura dos diálogos bastante embaraçosa para o leitor moderno que gostaria de encontrar neles o sistema teórico de Platão Acrescentemse a isso as numerosas incoerências doutrinais que podem ser notadas quando se passa de um diálogo a outro74 Todos os historiadores além disso são afinal obrigados a admitir por diversas razões que os diálogos só nos revelam muito imperfeitamente o que poderia ser a doutrina de Platão aquém da filosofia platônica75 e que só nos transmite uma imagem particularmente empobrecida e restrita da atividade de Platão na Academia76 y oldschmidt1 7 a quem não se pode imputar querer m1mm1zar o aspecto sistemático das doutrinas propôs a melhor explicação desse fato dizendo que os diálogos não foram escritos para informar mas para formar Tal é desse modo a intenção profunda da filosofia de Platão Sua filosofia não consiste em construir um sistema teórico da realidade e em informar imediatamente seus leitores escrevendo um conjunto de diálogos que expõe metodica mente esse sistema mas consiste em formar isto é em transformar os indivíduos fazendoos experimentar no exemplo do diálogo ao qual o leitor tem a ilusão de assistir as exigências da razão e finalmente a norma do bem esse aagamento a gura e Sórtes dapassageU do diálogo ao monólogo e da forma de VIda filosofica a pesqmsa filosofica profissional 74 R Schaerer op cit p 67 75 Id ibid p 174 estas são como diz Aristóteles Poética 1447 b obras miméticas e poéticas 76 L Brisson Presupposés p 480 7 V Gldschmidt Les Dialogues de Platon Paris 1947 p 3 trad br de Dwn DaVI Macedo São Paulo Loyola no prelo 113 A filosofia como modo de vida Nesta perspectiva de formação o papel do diálogo escrito consiste antes de tudo em ensinar a praticar precisamente os métodos da razão métodos dialéticos e também geométricos que permitirão aprender em todos os domínios a arte da medida e da definição E isso o que nos dá a entender Platão a propósito da longa discussão que introduziu no Político78 Nas classes onde se aprende a ler quando se pergunta a alguém de que letras é formada esta ou aquela palavra Jazemolo com o intuito de leválo a resolver esse problema particular ou com o intuito de tornálo mais apto a resolver todos os problemas gramaticais possíveis Todos os problemas posí veis evidentemente Que diremos então de nossa pesquzsa sobre o político É ela ditada diretamente pelo interesse que nos inspira ou existe para nos tornar melhores dialéticos a propósito de todos os assuntos possíveis Aqui ainda evidentemente para a formação geral 1 E quanto à solução do problema apresentado encontrála de maneira mais fácil e pronta possível deve ser apenas uma preocupação secundária e não uma finalidade primordial se dermos crédito à razão que nos aconselha a preferir e a colocar em primeiro lugar o método Isso não exclui o fato de ue os diálogos tenham tam bém certo conteúdo doutrinaF9 visto que eles apresentam em geral um problema preciso e propõem ou tentam procurar uma solução Cada um forma um todo coerente 78 Político 285 cd 79 Sobre os diálogos de Platão vejase o excelente resumo de L Brisson em seu artigo Platon in M Labmne et L Jaffro Gradus philoso phique Paris 1994 pp 610613 que me inspirou para as páginS que sem Gradus philosophicus a construção da filosofia ocidenta traduçao de Cnstma Murachco São Paulo Mandarim 1996 114 Platão e a Academia mas não são necessariamente coerentes uns com os outros É notável que vários diálogos como o Parmênides ou o Sofista por exemplo tenham por objeto as condições de possibilidade do diálogo eles se esforçam exatamente para explicitar todos os pressupostos implicados n ética do verdadeiro diálogo isto é na escolha do modo de vida platônico Para que se possa compreender isso melhor ainda para que se possa compreender escolhendo o bem é necessário supor com efeito a existência de valores normativos independentes das circunstâncias das con venções e dos indivíduos que fundam a racionalidade e a retitude do discurso80 Imagina que alguém se recusa a determinar para cada objeto de discussão uma Forma umaldeia definida Então não saberá mais para onde voltar seu pensamento pois não pretendeu senão que a Ideia de cada ser seja sempre a mesma Então a possibilidade mesma de discutir fica anulada A afirmação das Formas é inerente a todo diálogo digno desse nome Mas então se apresenta o problema de seu conhecimento elas rlJ1Qdmsçr conhecidas de uma ria eJ1SÍ1rel e opoblema de sua exÍstênci l não podem ser objetossensívejL Platão seráassimlêvaõüa propor suateconadasformas inteligíveis isto é não sen síveis e será por consequência conduzido à discussão de problemas que supõem sua existência e suas relações com as coisas sensíveis O discurso filosófico de Platão fundase numa escolha intencional de dialogar numa experiência concreta e vivida do diálogo falado e vivo Ele conduz essencialmente à existência de objetos imutáveis isto é de 80 Parmênides 135 b 115 A filosofia como modo de vida Formas não senslVeis garantias da retitude do discurso e da ação e também à existência no homem de uma alma que mais do que o corpo assegura a identidade do indi víduo81 Constatase na maior parte dos diálogos por outro lado que as Formas são sobretudo valores morais que fundam nossos juízos sobre as coisas da vida humana tratase antes de tudo de procurar determinar na vida do indivíduo e da cidade graças a um estudo da medida própria a cada coisa esta tríade de valores que aparece de uma ponta a outra dos diálogos o que é o belo o que é o justo e o que é o bem82 O saber platônico como o socrático é antes de tudo um saber dos valores R Schaerer83 escreveu A essência do platonismo é e permanece portanto o supradiscursivo Ele gostaria de dizer por isso que o diálogo platônico não diz tudo não diz o que são as Normas não diz o que são as Formas nem a Razão nem o Bem nem a Beleza tudo isso é inex primível pela linguagem e inacessível a toda definição Isso se experimenta ou se mostra no diálogo mas também no desejo Mas nada se pode dizer a respeito Esse modelo socráticoplatônico de filosofia desempe nhou papel capital Ao longoae toda a história da filosofia antiga vamos encontrar esses dois polos de atividade filosó fica que acabamos de distinguir de uma parte a escolha e 81 Cf L Brisson Platon Gradus philosophique p 611 82 Esta triade aparece no Eutifron no Criton no Teeteto no Político no Fedro no Primeiro Alcibíades Primeiro Alcibíades tradução de Carlos Alberto Nunes Belém Editora Universidade Federal do Pará 1975 Eutifron seleção introdução e tradução de Jaime Bruna São Paulo Cultrix 1952 no Górgias na República no Timeu nas Leis na Carta VIL 83 R Schaerer op cit p 247 116 Platão e a Academia a prática de um modo de vida de outra um discurso filo sófico que a um só tempo é parte integrante desse modo de vida e explícita os pressupostos teóricos implícitos nesse modo de vida um discurso filosófico contudo que apare ce como incapaz de exprimir o essencial para Platão as Formas o Bem isto é isso que se experimenta de uma maneira não discursiva no desejo e no diálogo 117 Capítulo 6 firistóteles e sua escola A forma de vida teorética A representação que se faz habitualmente da filosofia de Aristóteles parece contradizer totalmente a tese fun damental que defendemos nesta obra segundo a qual a filosofia foi concebida pelos antigos como um modo de vida Não se pode negar com efeito que Aristóteles afirme vigorosamente que o saber mais elevado é escolhido por si mesmo aparentemente sem nenhuma relação com o modo de vida daquele que sabe1 Contudo essa afirmação deve ser reposta no quadro geral da representação que Aristóteles se fazia dos modos de vida e que se revela no fim que ele assinala para a es cola que funda Vimos que Aristóteles fora membro da Academia de Platão durante vinte anos o que significa que participou durante muito tempo do modo de vida platôni co É pouco provável que quando em 335 ele funda em Atenas sua própria escola filosófica cuja atividade realizava se nos limites do ginásio denominado Liceu não tenha sido 1 Aristóteles Metafisica I 982 a 15 119 A filosofia como modo de vida influenciado pelo modelo da Academia mesmo que dese jasse propor à sua escola fins diferentes dos fins da escola de Platão Podese notar na origem da escola de Aristóteles como na origem da Academia a mesma vontade de criar uma instituição durável2 A escolha do sucessor de Aristóteles se fazia por eleição e sabemos também que um dos me bros da escola era encarregado da administração matenal da instituição o que supõe uma vida comum 3 Como na Academia há duas espécies de membros os anciãos qe participam do ensino e os jovens e há como na Aaem1a certa igualdade entre os anciãos por exemplo nstotele Teofrasto Aristoxeno e Dicearco O acesso a escola e também inteiramente livre Mas há profunda diferença entre o projeto da escoa de Aristóteles e o projeto platônico A escola de Platao tem essencialmente uma finalidade política mesmo sen do lugar de intensa atividade de investigação matemática e de discussão filosófica Platão considera suficiente ser filósofo para poder dirigir a cidade a seus olhos há unidade entre filosofia e política Ao contrário a escola de Aristóteles como bem mostrou R Bodéüs 4 só forma para a vida filosófica O ensino prático e político dirigirseá a um plÍbllco mais amplo a homens políticos de fora d escola mas que desejam se instruir sobre a melhor mane1 2 P Lynch Aristotles School pp 68105 3 Diógenes Laércio Vida dos filósofos V 4 4 R Bodéüs Le Philosophe et la cité Recherches sur les rapports entr m rale et politique dans la pensée dAristote Paris 1982 17 G B1en D TheoriePraxis Problem und die politische Philosoph1e be1 Plato und Aris toteles in Philosophisches Jahrbuch 76 264314 19681969 120 Aristóteles e sua escola ra de organizar a cidade Aristóteles distingue entre a fe licidade que o homem pode encontrar na vida política na vida ativa é a felicidade que pode conduzir à prática da virtude na cidade e a felicidade filosófica que corres ponde à theoría isto é a um gênero de vida consagrado totalmente à atividade do espírito5 A felicidade política e prática só é felicidade aos olhos de Aristóteles de modo secundário6 Já a filosófica encontrase na vida segundo o espírito7 que se situa na excelência e na virtude mais elevada do homem correspondente à parte mais elevada do homem o espírito e subtraída aos inconvenientes que comporta a vida ativa Ela não é submetida às intermitên cias da ação não produz prostração Conduz a prazeres maravilhosos que não são misturados a dor ou a impure za mas estáveis e sólidos Esses prazeres são por outro lado maiores para aqueles que alcançam a verdade e a realidade do que para aqueles que ainda a buscam Ela assegura a independência em relação ao outro na medida em que especifica Aristóteles em contrapartida se assegu ra a independência em relação às coisas materiais Aquele que se consagra à atividade do espírito depende unicamen te de si mesmo sua atividade será talvez melhor caso tenha colaboradores porém quanto mais se é sábio mais se poderá ser só A vida segundo o espírito não procura outro resultado senão a si mesma é amada por si mesma 5 Aristóteles Política Vll 2 1324 a 30 MCh Bataillard La Structure de la doctrine aristotélicienne des vertus éthiques these Université de Paris IV Sorbonne p 348 que distingue na realidade três graus éticos em Aristóteles o homem médio o homem belo e bom e o contemplativo P Demont La cité grecque archaique et classique et lidéal de tranquillité Parill 1990 p 349 G Rodier Études de philosophie grecque Paris 1926 p 215 6 Aristóteles Ética a Nicômaco X 1178 a 9 7 Id ibid X 1177 a 121178 a 6 121 A filosofia como modo de vida é para si mesma seu próprio fim e poderseia dizer sua própria recompensa A vida segundo o espírito conduz também à ausência de perturbação Praticando as virtds morais envlvese cada vez mais na luta contra as parxoes mas tambem em muitos cuidados materiais para agir na cidade é necessário misturarse às lutas políticas para Yudar os outros é ne cessário ter dinheiro para praticar a coragem é necessário ir à guerra Ao contrário a vida filosófica se de viver no ócio no distanciamento dos cuidados matena1s Essa forma de vida representa a forma mais elevada de felicidade humana mas podese dizer ao mesmo tempo que essa felicidade é sobrehumana8 Não será na medida em que é homem que ele viverá assim mas na medida em que possui em si algo de divino Paradoxo que corresponde à ideia paradoxal e enigmáti ca que Aristóteles tem do intelecto e do espírito o intelecto é o que existe de mais essencial no homem ao mesmo tempo é alguma coisa de divino que se manifesta para o homem de modo que é o que transcende o homem e qe constitui sua verdadeira personalidade como se a essenCia 9 do homem consistisse em ser supenor a SI mesmo O espírito é o próprio homem já que é sua parte dominante e a melhor dentre as que o compõem Como em Platão a escolha filosófica conduz o eu in dividual a ultrapassarse em um eu superior a elevarse a um ponto de vista universal e transcendente 8 Id ibid X 1177 b 27 e Geração dos animais IX 737 a 910 9 Ética a Nicômaco X 1178 a 2 122 Aristóteles e sua escola Em certo sentido o paradoxo inerente à vida do espírito em Aristóteles corresponde ao paradoxo inerente à noção de sabedoria oposta à filosofia no Banquete de Platão A sabedoria ali foi descrita como um estado divino por si inacessível ao homem e entretanto o filósofo aquele que ama a sabedoria a deseja Sem dúvida Alistóteles não afirma que essa vida do espírito seja inacessível e que se deva contentarse em progredir para ela mas ele reco nhece que não a podemos atingir senão na medida do possível 10 isto é tendo em consideração a distância que separa o homem de Deus e diríamos o filósofo do sábio ele reconhece também que só a podemos atingir em raros momentos Quando Aristóteles11 quer fazer compreender o que é o modo de vida do primeiro princípio o Pensa mento pelo qual se sustentam o mundo dos astros e o da natureza sublunar declara que seu modo de vida é comparável àquilo que para nós é o modo de vida melhor visto que não podemos viver senão por pouco tempo pois ele permanece sempre nesse estado quando isso para nós é impossível Para Deus o ato de contemplação é a beatitude so berana Se Deus portanto está perpetuamente em um estado de ale gria comparável àquele a que nós algumas vezes conseguimos chegar isto é admirável e se ele está em um estado de maior alegria ainda isto é ainda mais maravilhoso Assim o cume da felicidade filosófica e da atividade do espírito isto é a contemplação do Intelecto divino só é 10 Ibid X 1177 b 33 11 Metafísica XII 7 1072 b 14 e 25 123 A filosofia como modo de vida acessível ao homem em raros momentos pois é próprio da condição humana não poder ser em ato de maneira contínua12 Isso supõe que no resto do tempo o filósofo deve contentarse com a felicidade inferior que consiste em investigar Há graus diversos na atividade de theoría Parece que para Aristóteles a filosofia consiste em um modo de vida teorético Em relação a isso é importan te não confundir teorético com teórico Teórico é uma palavra que tem precisamente origem grega mas não aparece em Aristóteles e significa em outro regiStro que não o filosófico o que se refere ao que se vê Na linguagem moderna teórico opõese à prático como o que é abstrato especulativo em oposição ao que tem relação com a ação e o concreto Poderseá portanto nessa perspectiva opor um discurso filosófico puramente teórico a uma vida filosófica praticada e vivida Mas o pró prio Aristóteles só emprega a palavra teorético e a utiliza para designar por um lado o modo de conhecimento que tem por fim o saber pelo saber e não um fim exterior a si mesmo e por outro o modo de vida que consiste em consagrar sua vida a esse modo de conhecimento Neste último sentido teorético não se opõe a prático em outras palavras teorético pode aplicarse a uma filosofia prática vivida ativa que leva à felicidade Aristóteles diz explicitamente13 A vida prática não é necessariamente voltada para o outro como o pensam alguns e não são somente os pensamentos que visam resultados produzidos pelo agir que são práticos pois são práticas bem mais ainda as atividades do espírito 12 Ética a Nicômaco X 1175 a 4 e 26 13 Política VII 3 8 1325 b 124 Aristóteles e sua escola theoriai e as reflexões que têm seu fim em si mesmas e se desenvolvem em vista de si mesmas Nas linhas que seguem Aristóteles dá a entender que o modelo dessa ação contemplativa é Deus e o universo que não exercem nenhuma ação voltada para o exterior mas se tomam a si mesmos como objeto dé sua ação Afigurase aqui ainda uma vez que o modelo de um conhecimento que não procura nenhum outro fim senão a si mesmo é o Intelecto divino o Pensamento que se pensa que não tem outro oQjeto nem outro fim além de si mesmo e não está interessado em outra coisa Nesta perspectiva a filosofia teorética é ao mesmo tempo uma ética Assim como a práxis virtuosa consiste em escolher como fim tão somente a virtude14 em que rer ser um homem bom sem procurar outro interesse particular da mesma maneira a práxis teorética é o próprio Aristóteles que nos induz a arriscar essa fórmula aparentemente paradoxal consiste em escolher como fim apenas o conhecimento em querer o conhecimento por ele mesmo sem perseguir outro interesse particular e egoísta estranho ao conhecimento É uma ética do de sinteresse e da objetividade Os diferentes níveis da vida teorética Como conceber essa vida segundo o espírito Devese com I Düring15 definila como uma vida de sábio Caso se 14 Ética a Nicômaco VI 1144 a 18 15 I Düring Aristoteles Heidelberg 1996 p 472 125 A filosofia como modo de vida considerem as atividades realizadas na escola de Aristóteles é bem verdade que se será obrigado a reconhecer que a vida filosófica apresentese nela sob os traços do que se poderia denominar grande empresa científica Aristóteles revelase nesta perspectiva um grande organizador de pesquisa16 A escola de Aristóteles dedicase a uma imensa caça de informações em todos os domínios Reúnemse todas as espécies de dados históricos por exemplo a lista dos vencedores dos Jogos Píticos sociológicos as constituições das diferentes cidades psicológicos ou filo sóficos as opiniões dos antigos pensadores ColetamSe também inumeráveis observações zoológicas ou botânicas Esta tradição continuará sendo valorizada no curso dos anos na escola aristotélica Esses materiais porém não são destinados a satisfazer uma curiosidade vã O investigador aristotélico não é um simples colecionador de fatos 17 Com piladores são para fazer comparações e analogias instaurar uma classificação dos fenômenos fazer que se percebam as causas em estreita colaboração entre a observação e o raciocínio na qual por outro lado diz Aristóteles é neces sário fiarse mais à observação dos fatos que ao raciocínio e ao raciocínio somente à medida que ele concordar com os fatos observados18 Portanto é indiscutível que a vicia do espíti para Aristóteles consiste em grande médid cm obserél irÍ vestigar e refletir sobre essas observações Mas essa ativi 16 Cf W Jaeger Aristotle Oxford University Press 1967 1 a ed 1934 capítulo XIII The Organization ofResearch I Düring Aristoteles pp 524 ss 17 L Bourgey Obseroation et expérience chez Aristote Paris 1955 pp 69 ss 18 Geração dos animais 760 b 30 126 Aristóteles e sua escola dade se faz em certo espírito que se poderia ousar definir como uma paixão quase religiosa pela realidade em todos os seus aspectos sejam eles humildes ou sublimes por quanto em todas essas coisas se encontra um traço do dvio Nada de mais instrutivo sobre isso que as primeiras pagmas do tratado de Aristóteles Das partes dos animais19 no qual ele apresenta simultaneamente os domínios e as mtivações da investigação Depois de ter distinguido nas c01sas naturais as que não geradas e incorruptíveis exis tem por toda a eternidade e as que são submetidas à geração e à destruição Aristóteles opõe os meios que temos para conhecêlas Sobre o que é feito de substâncias eter nas isto é os astros e as esferas celestes nossos conheci mentos são bem escassos apesar do grande desejo que temos de conhecêlos ao passo que sobre as substâncias perecíveis que estão a nosso alcance dispomos de muitos dados E a razão pela qual Aristóteles convida a consagrar se ao estudo desses dois domínios da realidade é o prazer ao qual seu conhecimento20 conduz Os dois estudos têm cada um seu atrativo Para os seres eter nos mesmo que tenhamos pouco contato com eles contudo em razão da excelência desse conhecimento ele nos dá mais alegria do que aquele que podemos extrair das coisas que estão ao nosso alcance do mesmo modo que a visão furtiva e parcial das pessoas amadas nos dá mais alegria do que a obervação precisa de muitas outras coisas por maiores que sryam Contudo de outro lado pela extensão e certeza dos conhecimentos a ciência das coisas terrestres tem vantagem 19 Das partes dos animais 644 b 22 ss 20 Ibid 644 b 31 Vejamse para este texto a tradução e as notas de JMLe blond Aristote philosophe de la vie Paris 1945 pp 116 ss 127 A filosofia como modo de vida Alguns continua Aristóteles dirão talvez que para estudar a natureza viva é necessário ocuparse com reali dades desprezíveis Aristóteles responde a essa inquietação evocando ainda o prazer da contemplação Verdadeiramente certos seres não oferecem um aspecto agra dável contudo a natureza que os fabricou com arte produz prazeres inestimáveis para aqueles que quando os contemplam podem conhecer as causas e que são os filósofos de verdade E por outro lado seria insensato e absurdo encontrarmos prazer ao contemplar as imagens desses seres porque neles nós colhemos ao mesmo tempo a arte por exemplo do escultor ou do pintor que os fabricou mas examinandoos fabrica dos pela natureza nós experimentamos uma alegria maior ainda por essa contemplação ao menos se pudermos colher as causas Não se pode portanto deixar possuir por uma repugnância pueril pelo estudo dos animais menos nobres visto que em todas as obra da natureza há alguma coisa de maravilhoso Assim como se diz que Heráclito quando estrangeiros vieram visitálo e o encontraram aquecendose junto à lareira ordenoulhes que entrassem sem temor pois ali também havia deuses do mesmo modo devese abordar sem aversão o estudo de cada espécie de animal pois em todos se manifesta algo de natural e belo Percebemse neste texto as tendências profundas que animam a vida segundo o espírito o modo de vida teoré tico Se experimentamos alegria ao conhecer tanto os astros como os seres da natureza sublunar é porque nisso encon tramos direta ou indiretamente um signo da realidade que nos atrai de maneira irresistível o primeiro princípio que move todas as coisas diZ Aristóteles21 como o objeto 21 Metafísica XII 1072 b 4 128 Aristóteles e sua escola de seu amor move o amante Os astros e as esferas celestes que são princípios de atração nos dão tanto prazer quan do os observamos quanto a visão furtiva e imprecisa da pessoa amada Quanto ao estudo da natureza ele nos dá prazer na medida em que nele descobrimos uma arte di vina O artista apenas imita a arte da natureza e em certo sentido a arte humana é apenas um caso particular da arte fundamental e original que é a da natureza A gatural é superior a toda beleza artística Mas dir seá existem coisas repulsivas Sim mas elas não se tornam belas para nós quando a arte as imita22 Se temos prazer o ver a reprodução pelo artista de coisas feias e repulsivas e que admiramos a arte com a qual o artista as imitou Noeos ridamente que é precisamente na época he lemstlca miCiaa no tempo de Aristóteles que a arte gre ga tornase realista representando temas vulgares persona gens de classe inferior ou animais de todo gênero2 No entan se nessas obras de arte temos prazer em observar a habilidade do artista por que não admirar na realidade de suas produções a habilidade da natureza tanto mais ue é do interior que ela faz criar os seres vivos que ela e de alguma maneira uma arte imanente Encontraremos prazr em studar todas as obras da natureza se procurarmos sua mtençao a finalidade que ela buscou em sua ação I Sedo Aistóteles pressentimos na natureza uma pre sença d1Vlna E o sentido da palavra de Heráclito que ele evoca Os estrangeiros que visitam o filósofo aguardam para ser recebidos no compartimento principal da casa no qual 22 Poética 1448 b 10 23 J Onias Art and Thought in the Hellenistic Age The Greek World View 35050 BC London 1979 p 29 relação entre a filosofia de Aristóteles e a arte helenística 129 A filosofia como modo de vida se encontra o salão em que arde o fogo em honra de Réstia mas Heráclito convidaos a ir até a lareira da cozi nha2 pois todo fogo é divino Isso significa que o sagrado não é mais delimitado a certos lugares o altar de Réstia por exemplo mas é toda a realidade física o universo in teiro que é sagrado Os seres mais humildes têm sua parte de maravilhoso de divino Afirmamos a propósito de Platão25 que o conhecimento é sempre ligado ao desejo e à afetividade Podemos tornar a dizer isso em relação a Aristóteles O prazer experimentado na contemplação dos seres é o prazer que se experimen ta ao contemplar o ser amado Para o filósofo todo ser é belo pois ele sabe situálo na perspectiva do plano da natureza e do movimento geral e hierarquizado de todo o universo para o princípio que é o desejável supremo Essa estreita ligação entre conhecimento e afetividade exprime se na fórmula da Metafísica26 O desejável supremo e o inteligível supremo se confundem Novamente o modo de vida teorético revela sua dimensão ética Se o filósofo encontra seu prazer no conhecimento dos seres é que ele nada deseja afinal além disso que o conduz ao desejável supremo Podese exprimir a ideia retomando a obser vação de Kant27 Tomar um interesse imediato pela beleza da natureza é sempre sinal de uma boa alma A razão disso é diz Kant que essa alma tem prazer não só com a 24 L Robert Héraclite à son fourneau in id Scripta Minora pp Nlll Cf pp 108110 26 Metafísica XII 1072 a 26 ss 27 Crítica da faculdade do juízo 42 tradução de Valerio Rohden e Antônio Marques Rio de Janeiro Forense Universitária 1993 130 7 i t Aristóteles e sua escola forma do ser natural mas com sua ex1stencia sem que um atrativo sensorial tenha participação nisso ou também ligue isso a qualquer fim O prazer que se tem com a be leza da natureza é de alguma maneira e paradoxalmente um interesse desinteressado Na perspectiva aristotélica esse desinteresse corresponde ao afastamento de si pelo qual o indivíduo se eleva ao nível do espírito do intelec to que é seu verdadeiro eu e toma consciência da atra ção que exerce sobre ele o princípio supremo desejável supremo e inteligível supremo Podese definitivamente definir a vida teorética como uma vida de sábio Em minha opinião a noção de sábio em seu sentido moderno é demasiado limita da para abarcar atividades tão diversas quanto a redação do catálogo dos vencedores nos Jogos Píticos e a reflexão sobre o ser enquanto ser a observação dos animais e a demonstração da existência de um princípio primeiro do movimento do universo É difícil considerar atividade de sábio uma atividade do espírito que segundo Aristóteles é análoga em certos instantes privilegiados à atiYidafe do princípio primeiro que é pensamento do pensamento Já vimos28 como Aristóteles procura fazer compreender o que pode ser a beatitude do pensamento divino comparandoa ao que experimenta em raros momentos o intelecto hu mano Parece que a beatitude do intelecto humano chega a seu ponto mais elevado quando em certos momentos ela pensa em uma intuição indivisível na indivisibilidade da beatitude divina29 Não há nada mais distante da teoria que a teorética isto é a contemplação 28 Cf pp 123124 29 Metafísica Xll 1075 a 5 Comme il en est à certains moments pour lintellect humain au moins lorsquil na pas conjectura muito provável de Diauo em sua edição da Metafísica Bari 1948 pour oJiet des choses composées 131 A filosofia corno modo de vida Antes que de uma vida de sábio é necessário falar da vida dedicandose à sabedoria da vida filosófica na medida em que a sabedoria representa para Aristóteles a perfeição da theoría Para ele o intelecto humano está distante de possuir essa perfeição da qual só se aproxima em certos instantes A vida teorética comporta múltiplos níveis hierarquizados do mais humilde ao mais elevado e por outro lado o próprio Aristóteles como vimos ao falar da felicidade da theoría considera que a felicidade daquele que procura é inferior à daquele que sabe O elo gio que Aristóteles faz da vida segundo o espírito é a um só tempo a descrição de um gênero de vida efetivamente praticado por ele mesmo e pelos membros de sua escola e um programa ideal um projeto um convite a elevarse por meio de degraus para um estado a sabedoria que é mais divino que humano30 Somente Deus pode desfrutar i esse privilégio Os limites do discurso filosófico As obras de Aristóteles são fruto da atividade teorética do filósofo e de sua escola Mas o discurso filosófico des car ce nest pas en telle ou telle partie quil possede le bien mais dans une certaine totalité indivisible quil a le bien le plus haut qui est différent de lui il en est de mêrne pour toute létemité pour la Pensée qui est pensée dellernêrne Vejase também Teofrasto Metafísica 9 b 15 trad J Tricot Ce qui est peutêtre plus vrai cest que la conternplation des Réalités de ce genre se fait au moyen de la raison ellernêrne qui les saisit imrnédiate ment et entre cornrne en contact avec ellesce qui explique quil ne puisse y avoir aucune erreur à leur sujet N do T corno o autor procurou fazer nesta passagem urna comparação entre as traduções de Diano e de Tricot mos por manter as duas citações em francês 30 Metafísica I 982 b 30 132 Aristóteles e sua escola concerta o leitor moderno não só por sua concisão muitas vezes exasperante mas sobretudo pela incerteza de seu pensamento no que concerne aos pontos de vista mais importantes de sua doutrina por exemplo a teoria do intelecto Não se encontra nele uma exposição exaustiva e coerente de teorias que constituiriam as diferentes par tes dos sistema de Aristóteles31 Para explicar esse fenômeno é necessário antes de tudo retornar ao ensinamento do filósofo no interior da escola da qual é inseparável Como Sócrates como Platão o que ele quer antes de tudo formar discípulos Seu ensinamento oral e süâoora escrita dirigemse sempre a um auditório determinado A maior parte de seus tratados salvo talvez os de moral e de política sem dúvida destinados a um público mais amplo são o eco das lições orais que deu em sua escola Entre essas obras muitas não formam unidade por exemplo a Metafísica ou o tratado Do Céu são a reunião artificial de escritos que correspondem a cursos dados em momentos muito diferentes Foram os sucessores de Aristóteles e sobretudo seus comentadores32 que realizaram esse agrupamento e interpretaram sua obra como se ela fosse a exposição teórica de um sistema de explicação de toda a realidade Quando Aristóteles elabora um curso não se trata como bem disse R Bodéüs33 de um curso no sentido moderno do termo curso ao qual assistiram alunos preo cupados em tomar notas do pensamento do mestre em vista de Deus sabe qual estudo posterior Não se trata de in formar de entornar no espírito dos ouvintes um conteúdo 31 I Düring Aristoteles pp 2930 32 R Bodéüs Le Philosophe et la cité p 26 33 Id ibid op cit p 162 133 A filosofia como modo de vida teórico mas de formálos e tratase também de realizar uma investigação comum é essa a vida teorética Aristóteles espera de seus interlocutores uma discussão uma reação um juízo uma crítica34 O ensino permanece sempre e fundamentalmente um diálogo Os textos de Aristóteles tal qual nos chegaram são notas de preparação de cursos aos quais se acrescem correções e modificações do próprio Aristóteles ou de suas discussões com os outros membros da escola E os cursos destinamse antes de tudo a fami liarizar os discípulos com os métodos do pensamento Aos olhos de Platão o exercício do diálogo era mais importan te que os resultados obtidos nesse exercício Do mesmo modo para Aristóteles a iSÇJSSâO dos vrobklllas élQr fim mais formadora qusua solução Nesses cursos ele mostra de modo exemplar por qual marca de pensamento por qual método devemse investigar as causas dos fenô menos em todos os domínios da realidade Agradalhe abordar o mesmo problema sob ângulos diferentes partin do de diferentes pontos de partida Ninguém mais que Aristóteles foi consciente dos limi tes do discurso filosófico como instrumento de conheci mento35 Seus limites lhe chegam antes de tudo da própria realidade Tudo o que é sírnples é inexprimível na lingua gem A discursividade da linguagem só pode exprimir o que é composto o que pode ser dividido sucessivamente em partes Mas a linguagem nada pode dizer dos indivisí veis por exemplo o ponto na ordem da quantidade quando muito o pode de maneira negativa negando i 34 Bodéüs p 162 apoiase para afirmar isso no capítulo inicial da aJlicômaco no qual o ouvinte aparece como um juiz 1094 b 27 ss i 35 R Bodéüs op cit pp 187 e ss Aristóteles e sua escola seu contrário Quando se trata de substâncias simples como o Intelecto primeiro que é o princípio de movimen to de todas as coisas o discurso não pode dizer sua essên cia mas somente descrever seus efeitos ou proceder por comparação com a atividade de nosso próprio intelecto Apenas em raros momentos o intelecto humano pode elevarse à intuição não discursiva e instantânea dessa re alidade à medida que pode imitar de algum modo a indivisibilidade do Intelecto divino36 Os limites do discurso filosófico são provenientes também de sua incapacidade de transmitir por si só a seu ouvinte o saber C01Il mais forte razão a convicção O discurso pÕrSíllãüpod g bre o ouvinte se não há colaboração da parte dele Já na ordem teorética não basta entender um discur so nem mesmo repetilo para saber isto é para chegar à verdade e à realidade É necessário primeiramente para compreender o discurso que o ouvinte já tenha uma experiência dissqAprettala o discurso uma fami liaridade com seu oqeto37 Precisase a seguir de uma lenta assimilação capa de criar na alma uma disposição permanente um habitus Os que apenas começaram a aprender uma ciência podem ali nhavar suas proposições sem todavia conhecêla Para ser real mente conhecida é necessário que elas sejam partes integrantes 36 Cf p 131 nota 29 cf P Aubenque La pensée du simple dans la Métaphysique Z 17 e Q lO in Études sur la Métaphysique dAristote org P Aubenque Paris 1979 pp 6980 Th De Koninck La noêsis et lindivisible selon Aristote in La Naissance de la raison en Grece Actes du Congres de Nice maio 1987 org JF Mattéi Paris 1990 pp 215228 37 Ética a Nicômaco VI 1142 a 12 e ss cf R Bodéüs op cit p 190 135 A filosofia como modo de vida de nossa natureza literalmente que elas cresçam conosco Ora isso é uma coisa que demanda tempo38 Como para Platão39 o verdadeiro saber aos olhos de Aristóteles só nasce por uma longa frequentação os conceitos os métodos mas também os fatos observados E necessário experimentar demoradamente as coisas pàra conhecêlas para familiarizarse tanto com as leis gerais da natureza como com as necessidades racionais ou as exigên cias do intelecto Sem esse esforço pessoal o ouvinte não assimilará os discursos e eles lhe serão inúteis Isso é ainda mais verdadeiro na ordem prática na qual não se trata somente de saber mas de praticar e de exercer a virtude Os discursos filosóficos não bastam para tornar virtuosos40 Há duas categorias de ouvintes Os primeiros já têm predisposições naturais para a virtude ou receberam uma boa educação Para estes os discursos morais podem ser úteis eles os ajudarão a transformar suas virtudes na turais ou adquiridas pelo hábito em virtudes conscientes e acompanhadas de prudência41 Nesse caso podese dízer em certo sentido que só se prega a convertidos Os segundos são escravos de suas paixões e neste caso o discurso moral não terá nenhuma influência sobre eles42 Quem é inclinado a obedecera suas paixões escutará em vão e sem proveito pois o fim não é o conhecimento mas a ação A esse gênero de ouvintes será necessário algo além de discursos para formálos para a virtude 38 Ética a Nicômaco VII 1147 a 2122 39 Carta VII 341 c 40 Ética a Nicômaco X 1179 b 45 41 Cf MCh Battaillard citado acima p 121 nota 5 pp 355356 42 Cf R Bodéüs op cit pp 185186 136 Aristóteles e sua escola É necessário trabalhar muito tempo o hábito da alma do ou vinte de modo que ela exerça bem suas propensões e repulsões do mesmo modo que retorna para a terra quem deve nutrir a sementeira Aristóteles considera que esse trabalho de educação cabe à cidade realizar pela coação de suas leis e pela coer ção Portanto é papel do homem político e do legislador assegurar a virtude de seus concidadãos e também sua felicidade pois ao organizar uma cidade ou os cidadãos eles poderão por um lado efetivamente ser educados de modo a tornarse virtuosos e por outro assegurar no seio da cidade a possibilidade de ócio que permita aos filósofos ascender à vida teorética Eis por que Aristóteles não sonha em fundar uma moral individual sem relação com a cidade4 3 mas na Ética a Nicômaco ele se dirige aos homens políticos e aos legisladores para formar seu juízo descrevendolhes os diferentes aspectos da virtude e da felicidade do homem a fim de que possam legislar de modo a dar aos cidadãos a possibilidade de praticar a vida virtuosa ou para certos privilegiados a vida filosófica Como diz excelentemente R Bodéüs44 a finalidade das Éticas e da Política é uJLQPjt1iJQ partalém do saber não se trata somente de expor em um discurso a verdade sobre certo número de questões particulares mas ainda para além disso de contribuir para a perfeição do devir humano Aristóteles como Platão funda nos homens políticos sua esperança de transformar a cidade e os homens Mas Platão considerava que os filósofos devem ser eles próprios os homens políticos que realizarão essa obra Ele propu 43 Cf id ibid op cit p 225 I Düring Aristoteles p 435 44 R Bodéüs op cit p 16 137 A filosofia como modo de vida nha aos filósofos uma escolha de vida e uma formação que os tornariam ao mesmo tempo contemplativos e ho mens de ação saber e virtude implicandose mutuamente Para Aristóteles ao contrário a atividade do filósofo na cdade deve restringirse a formar o juízo dos políticos sao estes por seu turno que deverão agir pessoalmente legislando para assegurar a virtude moral dos cidadãos O filósofo por sua parte escolherá uma vida consagrada à investigação desinteressada ao estudo e à contemplação e devese reconhecêlo independente da azáfama da vida política A filosofia é para Aristóteles como para Platão a um só tempo um modo de vida e um modo de discurso 138 Capítulo 7 jls escolas helenísticas Características gerais O período helenístico A palavra helenística designa tradicionalmente o período da história grega que se estende de Alexandre Magno o Macedônio até a dominação romana portanto do fim do século IVaC ao fim do sécul IaC Graças à extraordinária epediZãodAlJ tenderá a influência grega desde o Egito até Samarcanda e Tachkent e também até a Índia abrese uma nova época da história Podese dizer que a Grécia começa então a descobrir a imensidade do mundo É o início de trocas comerciais intensas não só com a Ásia central mas também com a China a África e igualmente com o Oriente europeu As tradições as religiões as ideias as culturas se misturam e esse encontro marcará com um cunho indelével a cul tura do Ocidente Com a morte de Alexandre seus gene rais disputam entre si seu imenso império Essas lutas resultam na formação de três grandes reinos reunidos em torno de três capitais Pele na Macedônia que exercia sua autoridade sobre a Macedônia e a Grécia Alexandria 139 A filosofia como modo de vida no Egito e Antioquia na Síria onde a dinastia dos selêu cidas reina não só na Ásia Menor mas também sobre a Babilônia Devese acrescentar a isso o reino de Pérgamo e o reino grego de Bactriano que se estende até a Índia Concordase em demarcar como fim do período helenís tico o suicídio de Cleópatra rainha do Egito no ano 30 aC após a vitória em Actium do futuro imperador Augusto Desde o fim do século III aC os romanos tinham entrado em contato com o mundo grego e tinham desco berto pouco a pouco a filosofia Em nossa exposição deveremos quase sempre fazer alusão a filósofos que vive ram sob o Império romano pouco depois do ano 30 aC porque eles nos permitiram conhecer documentos concer nentes à filosofia helenística Contudo como teremos opor tunidade de repetir1 as características da filosofia na era imperial são muito diferentes das da época helenística Apresentouse muitas vezes o período helenístico da filosofia grega como uma fase de decadência da civilização grega corrompida pelo contato com o Oriente Várias cau sas podem explicar esse juízo severo em primeiro lugar o preconceito clássico que fixa a priori um modelo ideal de cultura e decide que some11e a Grécia dos présocráticos dos trágicos e a rigor de Platão merece ser estudada em segundo lugar a ideia segundo a qual com a passagem do regime democrático ao regime monárquico e o fim da liberdade política a vida pública das cidades gregas terse ia extinguido Os filósofos abandonando o grande esforço especulativo de Platão e de Aristóteles e a esperança de formar homens políticos capazes de transformar a cidade 1 Cf adiante pp 213 ss 140 As escolas helenísticas terseiam resignado então a propor aos homens privados da liberdade política MlLrefííua YiÍllrÜF Essa representação da época helenística que remonta creio ao início do século XX2 continua a falsear a ideia que se faz da filosofia desse período Com efeito é totalmente errôneo representar essa épo ca como um período desJes1Jgg O epigrafista Louis Robert ao estudtamente as inscrições encontradas nas ruínas das cidades gregas da Antiguidade mostrou muito bem em toda sua obra que todas as cidades continua ram a ter tanto sob as monarquias helenísticas como depois no Império romano intensa atividade cultural política religiosa e mesmo atlética Ademais as ciências exatas e as técnicas conheceram então um desenvolvimento extraordi nário Notadamente sob a influência dos Ptolomeus que l reinaram em Alexandria essa cidade tornouse de alguma maneira o centro vivo da civilização helenística3 Organiza do por Demétrio de Falera fiel à tradição aristotélica que privilegiava os estudos científicos o Museu de Alexandria foi um importante lugar de investigação no domínio de todas as ciências da astronomia à medicina e nessa mesma 1 cidade a Biblioteca reunia toda a literatura filosófica e científica Grandes sábios exerceram aí sua atividade o médico Herófilo e o astrônomo Aristarco de Samos por exemplo Basta além disso citar o nome de Arquimedes de Siracusa ao mesmo tempo matemático e mecânico para 2 Notadamente G Murray FourStages ofGreekReligion NewYork 1912 3 ed 1955 pp 119 ss The Failure ofNerve Quase todos os trabalhos de historiadores da filosofia posteriores a G Murray Festugiere e Bréhier por exemplo estão contaminados por esse preconceito 3 Cf a excelente obra de B Gille Les Mécaniciens grecs Paris 1980 notadamente o capítulo sobre a escola de Alexandria pp 54 ss 141 A filosofia como modo de vida perceber a extraordinária atividade científica que se desen volve durante todo esse período A pretensa perda de liberdade das cidades não provocou a diminuição da atividade filosófica E porventura podese dizer que o regime democrático lhe foi mais favorável Não foi a Atenas democrática que instaurou um processo de impiedade contra Anaxágoras e Sócrates Não houve na orientação da própria atividade filosó fica uma transformação tão radical quanto se gostaria de fazer acreditar Dizse e repetese que os filósofos da época helenística diante de sua incapacidade de agir na cidade teriam desenvolvido uma moral do indivíduo e teriam se voltado para a interioridade As coisas são muito mais com plexas De uma parte se é verdade que Platão e Aristóteles têm cada um à sua maneira preocupações políticas não há dúvida de que a vida filosóficJL etylll meio de libertarse da corrupção política A vida segúndo ües pÍrito queeüillõilüde vfdâ ila escola aristotélica escapa aos compromissos da vida na cidade Quanto a Platão de algum modo ele formulou definitivamente para todos os filósofos da Antiguidade a atitude que o filósofo deve ter em uma cidade corrompida4 Bem diminuto ó Adimanto é pois o número restante dos que podem ter dignamente comércio com a filosofia Ora den tre este pequeno número aquele que se tornou filósofo e saboreou a doçura e a felicidade que proporciona a posse da sabedoria que viu bem a loucura da multidão e como não há por assim dizer ninguém que faça algo de sensato no domínio dos neg cios públicos aquele que sabe não possuir aliado com o qual 142 As escolas helenísticas pudesse ir em socorro da justiça sem perderse mas que ao contrário como um homem caído no meio de animais ferozes que se recusa a participar de seus crimes e é além disso inca paz de resistir sozinho a estes seres selvagens pereceria antes de ter servido à pátria e aos amigos inútil a si mesmo e aos outros penetrado por tais reflexões mantémse quieto e ocupa se de seus próprios afazeres semelhante ao viajar que duran te uma témpestade enquanto o vento levanta turbilhões de poeira e chuva se abriga atrás de um pequeno muro ele vê os outros manchados de iniquidades e é feliz se consegue viver a sua vida neste mundo isento de injustiça e atos ímpios e abandonálo sorrindo e tranquilo com uma bela esperança Quando o filósofo se dá conta de que é totalmente impotente para dar ao mundo o menor remédio para a corrupção da cidade que pode ele fazer além de praticar a filosofia É infeliz a situação na qual se encontram quase todos os filósofos da AntiguidadeS em relação ao mundo político e mesmo Marco Aurélio que embora imperador também exprimiu seu sentimento de impotência diante da incompreensão e da inércia dos súditos6 Contudo em contrapartida os filósofos da época hele nística mesmo os epicuristas7 jamais se desinteressaram da política desempenhando sempre o papel de conselhei 5 Cf L Hadot Tradition stoicienne et idées politiques au temps des Gracques in Rcvue des études atines 48 146147 1970 Le probleme du néÇJ platonisme alexandrin Hiéroclis et Simplicius Paris 1978 p 37 6 P Hadot La Citadelle intérieure Introduction aux Pensées de Marc Auri le Paris 1992 pp 308 ss 7 Por exemplo Amínias de Samos e Apolófanes de Pérgamo Vejam se os verbetes de B Puech sobre esses filósofos in R Goulet Dictionnaire des philosophes antiques t 1 A filosofia como modo de vida ros dos príncipes ou embaixadores de uma cidade como testemunham as inscrições muitas vezes gravadas em sua honra Os filósofos estoicos tiveram papel importante na elaboração de reformas políticas e sociais em vários Estados por exemplo o estoico Esfairos exerce forte influência sobre os reis de Esparta Ágis e Cleômeno o estoico Blóssio sobre o reformador romano Tibério Graco8 Algumas vezes eles se opõem corajosamente aos imperadores romanos De maneira geral os filósofos jamais renunciaram à espe rança de transformar a sociedade ao menos pelo exemplo de sua vida A vida filosófica foi extremamente vigorosa na época helenística mas desgraçadamente só a conhecemos de maneira imperfeita teríamos outra representação se todas as obras filosóficas escritas durante esse período tivessem sido conservadas até hoje Os escritos dos filósofos não eram como em nossos dias editados em milhares de exem plares amplamente disseminados Repetidamente copiados o que era um manancial para numerosos erros isso obri ga os especialistas modernos a um enorme trabalho crítico quando querem estudar esses textos eles eram muitas vezes sem dúvida vendidos em livrarias mas as obras mais técnicas eram simplesmenteCOnservadas nas bibliotecas das diferentes escolas filosóficas No decorrer dos séculos mui to desse precioso material se perdeu notadamente em Atenas por ocasião do saque da cidade por Silas em mar ço de 86 aC mas também em Alexandria Milhares de obras desaparecem assim e outros cataclismos que puseram fim ao período helenístico também destruíram tesouros de poesia e de arte cuja existência vislumbramos apenas gra 8 Cf o artigo de I Hadot Tradition stoicienne pp 133161 144 As escolas helenísticas ças às imitações feitas pelos romanos Mas para citar um único exemplo o filósofiJjum dos fundadores do estoicismo teria escrito pelo menos uns setecentos tratados Nenhum eles foi conservado apenas alguns raros frag mentos nqs foram transmitidos nos papiros dscobertos em Hercul 1ano e graças às citações feitas por autores da época romana Nossa visão da história da filosofia está irremediavelmente falseada por essas contingências histó ricas Teríamos dela uma representação totalmente dife rente se as obras de Platão e de Aristóteles tivessem de saparecido e se as dos estoicos Zenão e Crisipo tivessem sido conservadas Seja como for foi graças aos autores que viveram no mundo romano seja no tempo da Repú blica como Cícero Lucrécio e Horácio seja no tempo do Império como Sêneca Plutarco Epiteto e Marco Aurélio que preciosas informações sobre a tradição filo sófica helenística foram preservadas Eis por que seremos levados a citar esses autores embora tenham pertencido a uma época posterior Influências orientais A expedição de Alexandre teve alguma influência sobre a evolução da filosofia grega É certo que ela favo receu o desenvolvimento científico e técnico graças às observações geográficas e etnológicas que permitiu realizar Sabese que a expedição de Alexandre tornou possível encontros entre sábios gregos e sábios hindus Notada mente um filósofo da escola de Abdera Anaxarco e seu alno Pirro de Élis acompanharam o conquistador até a India e contase que Pirro ao retornar viveu retirado do mundo porque teria ouvido um indiano dizer a 145 A filosofia como modo de vida Anaxarco que este era incapaz de ser u mestre pois frequentava os cursos reais9 Nesses contatjs não parece que ele tenha sofrido realmente mudanças de ideias de confrontação de teorias Pelo menos não temos disso nenhum sinal evidente Mas os gregos ficaram impressio nados pelo modo de vida10 daqueles que eles denomina vam os ginosofistas os sábios nus O historiador e filósofo Onesícrito que também participara da expedição ao escrever uma narrativa pouco tempo depois da morte de Alexandre relata muitos detalhes sobre seus costumes e sobre seu suicídio com fogo Os filósofos gregos tiveram a impressão de encontrar entre os ginosofistas a maneira de viver que eles próprios recomendavam a vida sem convenção segundo a pura natureza a indiferença total ao que os homens consideram desejável ou indesejável bom ou mau indiferença que conduzia a uma perfeita paz interior à ausência de perturbação Demócrito o mestre de Anaxarco preconizara essa tranquilidade de alma 11 Os cínicos fingiam desprezar todas as convenções humanas mas descobriram entre os ginosofistas essa atitude levada ao extremo Como dirá o estoico Zenão 12 provavelmente a propósito do suicídio do sábio hindu Calano que entrara erri coritãto com Alexandre 13 Pre firo ver um único indiano queimar a fogo lento a apren 9 Diógenes Laércio Vida dos filósofos IX 6163 10 Cf C Muckensturm Les gymnosophistes étaientils des cyniques modeles in Le cynisme ancien et ses prolongements org M0 GouletCazé et R Goulet Paris 1993 pp 225239 11 Demócrito fr 191 in Les Présocratiques p 894 12 Clemente de Alexandria Stromáteis IT 20 125 l 13 Cf C Muckensturm art Calanus in Dictionnaire des philosophes antiques t li pp 57160 146 As escolas helenísticas der abstratamente todas as demonstrações feitas sobre o sofrimento Contudo sem chegar a essas situações dra máticas o que os antigos nos relatam do modo de vida de Pirro aponta esse grau de indiferença ante todas as coisas que não se pode deixar de pensar que eles se es forçavam para imitar o que viram na Índia Observese por outro lado o extremo subjetivismo de Anaxarco14 que dizia que os seres existentes não eram mais reais que um cenário de teatro e que eles se assemelhavam às imagens que aparecem a quem sonha ou está em estado de loucu ra Poderseia pensar aqui em alguma fonte oriental mas não se deve esquecer que seu mestre Demócrito15 fun dador da escola de Abdera já opunha radicalmente a realidade em si isto é os átomos e as percepções subje tivas dos sentidos A expedição de AleJfandruàLpaLece j tr PE2Y2Scl9 gançlsi ftrocessos rrªtrªJiçiQ fjJosJifica A filosofia helenística corresponde efetivamente a um desenvolvimento natural do movimento intelectual que a precedeu e torna a defrontarse muitas vezes com temas présocráticos porém sobretudo ela é profundamente marcada pelo esErgo soqático Talvez seja a própria ex periência do enconttrêõspovos que lhe tenha per mitido desempenhar certo papel no desenvolvimento da noção de cosmopolitismo16 isto é da ideia do homem como cidadão do mundo 14 Sexto Empírico Contra os lógicos I 8788 cf R Goulet art Anaxar que dAbdere in Dictionnaire des philosophes antiques t L pp 188191 15 Demócrito fr 9 in Les Présocratiques p 485 16 Cf HC Baldry The Idea of the Unity of Mankind in H Schwabl e H Diller Grecs et Barbares Entretiens sur lAntiquité classique T VIII Geneve Fondation Hardt 1962 pp 169204 Moles Le cosmopolitisme cynique in Le cynisme ancien et ses prolongements pp 259280 147 A filosofia como modo de vida As escolas filosóficas Já descrevemos os modos de vida que caracterizam as escolas de Platão e Aristóteles Mas devemos voltar a esse fenômeno muito particular que representam as escolas filo sóficas na Antiguidade e não esquecer que as condições do ensino de filosofia eram então profundamente diferentes das de nossos dias O estudante moderno só estuda filosofia porque é uma disciplina do programa dos últimos anos da escola secundária Ele pode terminar o curso quando muito apenas interessado em um primeiro contato com essa disciplina e desejando passar nos exames dessa matéria De qualquer forma é o acaso que decidirá o fato de ele encontrar um professor que pertença à escola fenome nológica existencialista desconstrucionista estruturalista ou marxista Talvez um dia ele adote intelectualmente um desses ismos Seja como for tratarseá de uma ade são intelectual que não envolverá sua maneira de viver salvo talvez no caso do marxismo Para nós modernos a noção de escola losófica evoca uiamet a ideia de uma tendência doutnnal de uma pos1çao teonca Na Antiguidade isso acontece de outra maneira Nenhu ma obrigação universitária orienta o futuro filósofo para esta ou aquela escola mas é em função do modo de vida que nela se pratica que o futuro filósofo passa a assistir a aulas na instituição escolar skholê de sua escolha17 A menos que o acaso conduzao a uma sala de aula ele não se converte de maneira imprevista a essa filosofia ao escutar um professor É o que se conta de Polêmon que após uma noite de liber 17 Sobre o vocabulário grego técnico que designa a escola como ins tituição e como tendência doutrinal cf J Glucker Antiochus and the Late Academy Gõttingen 1978 pp 159225 148 As escolas helenísticas tinagem de manhã entra por fanfarrice com um bando de pândegas na escola do platônico Xenócrates e seduzido por seu discurso decide tornarse filósofo e tornase mais tarde chefe da escola anedota edificante sem dúvida mas que poderia ser perfeitamente verossímiP8 Por volta do fim do século IV quase toda a atividade filosófica cocentrase em Atenaas quatro escolas funda das por Platao a Academia Anstoteles o Liceu Epicuro o Jardim e Zenão a Stoa Essas instituições continuaram vivas por quase três séculos Com efeito à diferença de grupos transitórios que se formavam ao redor dos sofis tas elas eram instituições permanentes não só enquanto viviam seus fundadores mas muito tempo depois de sua morte Os diferentes chefes das escolas que assim sucedem ao fundador são escolhidos o mais das vezes por um voto dos membros da escola ou designados por seu predeces sor A instituição se sustenta no chefe da escola e pela lei civil a escola não tem personalidade jurídica O fato aparece claramente nesses documentos muito interssantes que são os testamentos dos filósofos temos os de Platão Aristóteles Teofrasto Estratão Lícon e Epicuro20 e pode mos constatar que não se encontra nesses textos nenhum sinal de propriedade da escola Não se deve imaginar como se faz que as escolas filosóficas para ter personalidade jurídica devessem organizarse em confrarias religiosas consagradas às Musas De fato a legislação ateniense sobre o direito de associação não exigia estatuto particular para as instituições de ensino 18 Diógenes Laércio Vida dos filósofos IV 16 19 Cf JP Lynch Aristotles School pp 106134 20 Diógenes Laércio op cit III 41 V 11 51 61 69 X 16 149 A filosofia como modo de vida A atividade dessas escolas realizase em geral nessas complexas e múltiplas instituições que eram os ginásios a Academia o Liceu ou em outros lugares públicos como a Stoa Poikilê o Pórtico nos quais era possível reunirse para ouvir conferências ou discutir A escola tomou preci samente seu nome do lugar de reunião Há quase sempre ao menos até o fim da época hele nística coincidência entre a escola como tendência doutri nai a escola como lugar no qual se ensina e a escola como instituição permanente organizada por um fundador que é precisamente a origem do modo de vida praticado pela escola e da tendência doutrinai à qual está ligada A des truição da maior parte das instituições escolares atenienses em seguida mudará a situação Essas escolas são amplamente abertas ao público A maior parte dos filósofos mas nem todos tem como pon to de honra ensinar sem receber honorários É isso o que os opõe aos sofistas Os recursos pecuniários são pessoais ou provenientes de benfeitores como os de Idomeneu para Epicuro As necessidades da escola eram supridas por uma cotização diária de dois óbolos dois óbolos eram o salário de um escravo que trabalhava diariamente e bastava apenas como dizMenandro para pagar uma tisana21 Entre os que frequentam a escola distinguemse em geral os simples ouvintes e o grupo de verdadeiros 21 C Diano La philosophie du plaisir et la société des amis in id Studi e saggi di filosofia antica Padova 1973 pp 368369 Epicuro Opere G Arrighetti Torino 1973 pp 443 e 471 Sobre a organização da escola epicurista cf N W de Witt Epicurus and his PhilosiJjlhy University of Min nesota Press 1954 2a ed WestportConnecticut 1973 Organization and Procedure in Epicurean Groups in Classical Philology 31 205211 1936 I Hadot Seneca pp 4853 150 As escolas helenísticas discípulos chamados os familiares os amigos ou os companheiros divididos em jovens e velhos Os verda deiros discípulos vivem muitas vezes em comunidade ou próAximos uns dos outros Relatase dos discípulos de Polmon o aluno de Xenócrates do qual falamos que cons trmram cabanas para viver perto dele22 Ademais verifica se na Academia no Liceu e na escola de Epicuro o costume de fazer refeições comuns em intervalos regulares Talvez pela organização dessas reuniões existia na Academia e no Liceu um cargo de responsabilidade que todos os membros da escola deveriam assumir alternadamente du rante vários dias23 Temos menos detalhes sobre a escola estoica fundada pr volta de 30 por Zenão de Citium que ensinava no Port1co denommado Stoa Poikilê Os historiadores antigos relaam que ele tinha muitos alunos e notadamente que o re1 da Macedônia Antígonos Gonatas escutavao quando ele residia em Atenas Como nas outras escolas há na de Zenão uma distinção entre os simples ouvintes os verda deiros discípulos Perseu por exemplo que morava em sua casa e que ele envia à corte de Antígonos Gonatas24 A evolução da atitude da cidade de Atenas com relação à filosofia desde o tempo em que ela condenara Anaxágoras e Sócrates evidenciase claramente no texto do decreto que os atenienses promulgaram em 261 aC em honra de Zenão a bemdizer sob a pressão de Antígonos Gonatas Esse decreto 25 honrava Zenão com uma coroa de ouro e 22 Diógenes Laércio op cit doravante citado D L N 19 23 D L V 4 JP Lynch op cit p 82 24 D L VII 56 e 36 25 Trad Festugiere in La Révélation dHermes Trismégiste T II Paris 1949 pp 269 e 292305 151 A filosofia como modo de vida mandava construir para ele um túmulo a expensas da ci dade O motivo era notável Observouse que Zenão filho de Mnaseas de Ctium qe por muitos anos viveu segundo a filosofia na czdade nao somente mostrou ser um homem bom em toda ocasião mas particularmente por seus incentivos à virtude e à temperança estimulou os jovens que procuravam entrar em sua escola para que tivessem a melhor conduta ofereendo a todos o mdlo de uma vida que sempre se harmonzzava com os pnnczpzos que ensinava Aqui não se louva Zenão por uas teoris mas pela educação que dá à juventude pelo genero de VIda que ea pelo acordo entre sua vida e seus discursos As comedias da época aludem à sua vida austera26 A filosofia desse homem é de Jato original ele ensina a ter fome e consegue discípulos Apenas um pao um figo como sobremesa e água para beber Observase aqui que a palavra gosofi2 convenientllvia de r A instituiço escolar estoica é muito menos monohtiCa que a esco a epicurista As linhas de emine variam nelas e obretudo diferentes tendências doutrinais se manifestam apos a morte de Zenão Aríston de Quíos Cleanto Crisipo professam sobre muitos pontos opiniões diferentes Essas opoções entre tendências continuarão durante toda a duraçao da escola estoica isto é até os séculos II e III dC Temos pouquíssimos detalhes sobre a atmosfera que reinava nas diferentes escolas estoicas 26 D L VII 27 152 As escolas helenísticas Existiram em Atenas entre os séculos N e I quatro escolas de filosofia que assumiram de um modo ou de outro uma forma institucional e tiveram de maneira geral métodos análogos de ensino Isso não quer dizer que não tenha havido escolas de filosofia em outras cidades mas elas não tiveram o pre2lltses É necessário acrescentar duas outrãs correntes que parecem extrema mente diferentes das quatro escolas otllo ou me lhor o Erronisllo porquanto a ideia de ceticismo é um fenômeno relativamente tardio e o cinismo Ambas não têm organização escolar Nenhuma das duas têm dogmas Mas são dois modos de vida o primeiro proposto por Pirro o segundo por Diógenes o Cínico e desse pon to de vista inteiramente duas haíreseis21 dllS éltÜlJds e Rensamento e clxila Como há de e um céil dépõêitãrcii o médico Sexto Empírico28 Caso se diga que uma escola haíresis é uma adesão a nu merosos dogmas que têm coerência uns em relação aos outros 1 diremos que o cético não tem escola Em contrapartida caso se diga que é uma escola haíresis um modo de vida que segue um certo princípio racional de acordo com aquilo que nos aparece 1 dizemos que é uma escola Os céticos desenvolvem por outro lado uma argumen tação para mostrar que é necessário suspender o juízo recusar sua adesão a todo dogma e alcançar assim a tran quilidade da alma Os cínicos por sua vez não argumen 27 Eleição escolha N do T 28 Sexto Empírico Fizpotiposs pirronianas I 1617 trad M0 Goulet Cazé in Le cynisme estil une philosophie in Contré Platon I Le Plato nisme dévoilé Paris Éd M Dixsaut 1993 p 279 153 A filosofia como modo de vida tam e não oferecem nenhum ensino sua própria vida que tem em si mesma seu sentido e Imphca toda uma doutrina Identidades e diferenças prioridade da escolha de um modo de vida Como vimos a propósito de Sócrates de Platão e de Aristóteles e como tornaremos a ver ao tratar das esclas helenísticas cada escola iJlcpgr lJJllwçclha d a seilIal A filosofia é amor e mvesugaçao por UllªQpçªQXl J M do da bedoria e a sabedoria é precisamente u mo de vida A escolha inicial própria a cada escola e a esco lha de um tipo de sabedoria A bemdizer à primeira vista poderseia perguntar se as concepçoes de sabedoria eram tão diferentes assim de uma escola para outra Todas as escolas helemstlcas parecem com efeito definila quase nos mesmos teos e antes de tudo como um estado de perfeita tranqmlidade da am Nessa perspectiva a filosofia aparece oo uma terape ca dos cuidados das angústias e da misena huma mise ria provocada pelas convençs e obrigações sociais para os c icos pela investigação dosfalsos prazeres para s W d t resse egms epicuristas pela perseguiçã gJlL ta segundo ósesfõteõSepelas falsas opmwes segun os ticos QuerreMquem ou não a heranç socrauca todas as filosofias helenísticas admitem com Socaes que os homens estão submersos na miséria na anustla e no mal porquanto estão na ignorância o mal nao sta nas i coisas mas nos juízos de valor que os homens atnbern a elas Tratase de os homens cuidarem de mudar seus JUIZOS 154 As escolas helenísticas de valor todas essas filosofias se querem terapêuticas29 Contudo para mlrseus juígs9g YalorQllDIlellsle razer uã escolha adTcâT mudar toda sua maneira 4J2eieifgaçasa1hãifilsfiq ele atingirá a paz interior a tranquilidade da alma Contudo por trás dessas similitudes aparentes deli neiamse profundas diferenças É necessário distinguir antes de tudo entre as escolas dogmáticas para as quais a terapia consiste emttmsforlJ2ªrosjuilQY2 QS céticos para os quais se trata sowent Q çDdêlos E sobretudo se as escolas dogmáticas concordam em reconhecer que a escolha filosófica fundamental deve corresponder a uma tendência inata no homem devese distinguir entre elas de uma parte o epicurismo para o qual é a investigação p segundo a tradição socrát5h o amor do Bem é o instin to rrifcthano oerrranlof1àr dessa pdxAh p identidade de intenção fundamental essas três escolas se fundam em escolhas existenciais radicalmente diferentes umas das outras Identidades e diferenças o método de ensino Identidades e diferenças reencontramse nos métodos de ensino Nas três escolas que acabamos de dizer se pren dem à tradição socrática o platonismo o aristotelismo e o estoicismo o ensino sempre teve apesar da transformação das condições políticas a dupla finalidade que tivera na 29 AJ Voelke La philosophie comme thérapie de lâme Études de philosophie hellénistique FribourgParis 1993 155 A filosofia como modo de vida época de Platão e Aristóteles formar direta ou indireta mente os cidadãos melhor ainda se possível os dirigentes políticos mas formar também os filósofos A formação para a vida na cidade visa atingir a habilidade da palavra por meio de numerosos exercícios retóricos e sobretudo dialé ticos e extrair no ensino do filósofo os princípios da ciên cia de governar Eis por que muitos alunos se dirigem para Atenas vindos da Grécia do Oriente Próximo da África e da Itália para receber uma formação que lhes permita posteriormente exercer uma atividade política em sua pátria Esse será o caso de muitos homens de Estado romanos l como Cícero por exemplo Ali eles aprendem ademais llnão só a governar mas a governarse a si próprios pois a formação filosófica isto é o exercício da sabedoria é des tinado a realizar plenamente a opção existencial da qual falamos graças à assimilação intelectual e espiritual dos princípios de pensamento e de vida nela implicados Para alcançar isso o diálogo vivo e a discussão entre mestre e discípulos são indispensáveis segundo a tradição socrática e platônica Sob a influência dessa dupla finalidade o ensino tende a tomar sempre uma forma dialógica e dia lética isto é a sempre preservar mesmo nas exposições magistrais o procedimento de um diálogo de uma sucessão de questões e respostas o que supõe uma relação constante ao menos virtual com indivíduos determi nados aos quais o discurso do filósofo se dirige Apresen tar uma questão denominada tese A morte é um mal O prazer é o bem supremo por exemplo e discútlla tal é o esquema fundamental de todo ensino filosófico nessa época Essa particularidade a distingue radical mente do ensino valorizado na época posterior isto é na era imperial a partir do século II dC na qual o ofício do 156 As escolas helenísticas estre era comentar textos Veremos as razões históricas essa mudança Por ora citemos um texto d d essa epoca mais ta Ia dos comentadores escrito no século II a C pelo anstotehco Alexandre de Afrod 3o ISia em seu comen o sobre os Tófncos de Aristóteles e que descreve bem a I erença entre a discussão de teses método d Própri e ensino o a epoca que estudamos e o comentário p da segumte ropno Essa forma e discurso a discussão de teses era habitual entre os ntzgos e é dessa maneira que eles davam suas auas nao cmentando os livros como é o caso agora com efezto nessa epoca não havia livros desse gênero mas send posta uma tese eles argumentavam a favor ou ontr par exerce sua facdade de criar argumentações apoiandse em premzssas admztzdas por todos A argunentação da qual fala Alexandre é exatamente m xerocw puramente dialético no sentido aristoté Ico a palara as a discussão das teses pode tomar uma forma dialetica ou retórica e também d ogmatica ou apretica Na argumentação dialética a discussão da tese Pse az por perguntas e respostas portanto num diálogo or exemplo A 1 fil fi rquesi au que considerava o discurso oso co puramente crítico pedia que seu ouvinte ro puseslse uma tese e ele a refutava apresentando quesfões que evavam pouco a 1 d pouco o mter ocutor a admitir o cora Itono tese que ele propusera3I Mas os estoicos em ora dogmaticos também praticavam em seu ensino o 30 Alexandre de Afr d I A Wall CAG o Sla n rzstotelzs Topica comment P 27 13 Ies m t II 2 Berlin 1891 3L Cf P Hadot Philosophie Dialectique Rhétori ue d m Studza Phzlosophica t 39 1980 pp 147 ss q ans l Anuqmte 157 A filosofia como modo de vida método dialético do jogo de questões e respostas Cícero reprovalhes não dar lugar suficiente aos desenvolvimentos oratórios e retóricos os únicos capazes a seus olhos de demover e persuadir32 Eles vos picam como com dardos com curtas interrogações pontuadas Mas aqueles que lhes respondem sim na argu mentação dialética quem apresentou a tese deve contentarse em responder sim ou não não são transformados em sua alma e se vão como vieram É que se os pensamentos que os estoicos experimentam talvez sejam verdadeiros e sublimes eles não são tratados por eles como deveriam ser mas de um modo um tanto amesquinhado A argumentação pode ser também retonca quando um ouvinte apresenta uma questão fornecendo também a tese isto é o tema da discussão e o mestre responde por um discurso contínuo e desenvolvido seja provando sucessivamente os prós e os contras tratase então de um puro exercício escolar ou de uma vontade de mostrar a impossibilidade de toda afirmação dogmática seja pro vando ou refutando a tese conforme ela corresponda ou não à sua doutrina é então um ensino dogmático que expõe os dogmas da escola À medida que se praticava o exercício da tese portanto um método pedagógico fun dado em um esquema questãoresposta o ensino filosófico poderia consistir em desenvolver por elas mesmas as teorias independentemente das necessidades do auditório pois o discurso era obrigado a desenvolverse no campo limitado de uma questão apresentada por detenninado ouvinte O tra 32 Cícero Dos termos extremos IV 3 7 Carta a Heródoto in Diógenes Laércio op cit pp 291302 158 As escolas helenísticas çado habitual do pensamento consistia em remontar aos princípios gerais lógicos ou metafísicos a partir dos quais essa questão poderia ser resolvida Contudo existia outro traçado dedutivQ e sistewático no pil1risrrw IloestQicismo Na escola eoicurista o exercício teciiTêo da dialética não desempenhava nenhum papel Os discursos filosóficos tinham ali uma forma re solutamente dedutiva isto é partiam de princípios para chegar às consequências desses princípios vêse isso por exemplo na 2 fergtgll esses liçlrsos eram postos a d1spos1çao do d1Sc1pulo sob a forma escrita para que este pudesse aprender de cor Como mostrou I Hadot33 o ensino epicurista começa com efeito pela leitura e memorização de breves resumos da doutrina de Epicuro apresentada sob a forma de sentenças bem cur tas depois o discípulo toma conhecimento de resumos mais desenvolvidos como a Carta a Heródoto e finalmente se o deseja pode abordar a grande obra de Epicuro Da natureza em trinta e sete livros Mas ele sempre deve voltar aos resumos para não se perder nos detalhes e ter sempre presente ao espírito a intuição da totalidade Há um vaivém contínuo entre a extensão dos conhecimentos e a concentração sobre o núcleo essencial Se acabamos de ver os estoicos utilizavam o método àialético em seu ensino não é menos verdade que também se esforçavam para apresentar sua doutrina segndo enca deamento rigorosamente sistemático que por outro lado atraía a admiração dos antigos e que eles igualmente exi 33 Cf I Hadot Épicure et I enseignement philosophique hellénistique et romain in Actes du VIlle Congres de lAssociation Guillaume Budé Paris 1969 pp 347354 159 A filosofia como modo de vida giarn de seus discípulos que tivessem sempre presente ao espírito por um esforço constante da memória o essencial dos dogmas da escola Vêse aqui a significação de que se reveste a noção de sistema Não se trata de urna construção conceitual que seria um fim em si e teria corno por acaso consequências éticas sobre o modo de vida estoico ou epicurista O sistema tem por finalidade reunir sob forma condensada os dogmas fundamentais ligálos juntamente por urna argumentação rigorosa a fim de formar um núcleo sistemático muito concentrado muitas vezes mesmo reunidos em urna curta sentença que terá assim maior força persuasiva melhor eficácia rnnernotécnica Ele tem antes de tudo um valor psicagógico é destinado a produzir um efeito na alma do ouvinte ou do leitor Isso não quer dizer que esse discurso teórico não responda às exigências de coerência lógica bem ao contrário é ela que faz sua força Mas ao exprimir ele próprio urna escolha de vida quer conduzir a urna escolha de vida O leitor moderno se admirará certamente da extraor dinária estabilidade dos princípios metodológicos ou dos dogmas na maior parte dall scolas filosóficas da Antigui dade do século IV aC até os séculos 11 ou III da nossa era Pois precisamente filosofar é escolher um modo de vida e a esse modo de vida correspondern tanto um método crítico por exemplo o dos céticos ou o dos acadêmicos dos quais tornaremos a falar corno dogmas que justificam o próprio modo de vida Para os filósofos dogmáticos corno o epicurismo ou o estoicismo o sistema isto é o conjunto coerente de dogmas fundamentais é intangível porque intimamente ligado ao modo de vida epicurista ou estoico 160 As escolas helenísticas Isso não quer dizer que toda discussão seja abolida nessas escolas a escola estoica notadamente fragmentouse rapi damente em diferentes tendências Mas as divergências e as polêmicas deixam subsistir a opção original e os dogmas que a exprimem Elas conduzem tão somente a pontos se cundários por exemplo as teorias concernentes aos fenô menos celestes ou terrestres ou o modo de demonstração e de sistematização dos dogmas ou ainda os métodos de ensino E esses discursos são reservados aos que progridem aos que assimilaram bem os dogmas essenciais34 Eis por que as filosofias dogmáticas como o epicurismo e o estoicismo têm um caráter popular e missionário as discussões técnicas e teóricas sendo ofício de especialistas podem ser resumidas para os iniciantes e os que progridem em um pequeno número de fórmulas fortemente encadea das que são essencialmente regras para a vida prática Essas filosofias reencontram assim o espírito missionário e popular de Sócrates Enquanto o platonismo e o aris totelismo são reservados a uma elite que tem ócio para estudar investigar e contemplar o epicurismo e o estoicis mo dirigemse a todos os homens ricos ou pobres homens ou mulheres livres ou escravos35 Quem adota o modo de vida epicurista ou estoico quem o põe em prática será considerado um filósofo mesmo que não desenvolva por escrito ou oralmente um discurso filosófico Em certo sentido o cinismo é também uma filosofia popular e missionária Desde Diógenes os cínicos foram ardentes propagandistas dirigindose a todas as classes da sociedade 34 Cf I Hadot op cit pp 351352 35 Cf P Hadot Les modeles de bonheurs proposés par les philoso phies antiques in La Vie spirituelle 147 698 4041 1992 161 A filosofia como modo de vida instruindo por exemplos para denunciar as convenções sociais e propor o retorno à simplicidade da vida confor me a natureza O cinismo Questionase se Antístenes discípulo de Sócrates foi o fundador do movimento cínico Em todo caso concordase em reconhecer em seu discípulo Diógenes a figura mais marcante desse movimento que embora jamais tenha sido revestido de um caráter institucional permaneceu vivo até o fim da Antiguidade O modo de vida cínico36 opõese de maneira espetacular não só ao dos não filósofos mas mesmo ao dos outros filó sofos Estes com efeito apenas se diferenciam de seus con cidadãos em certos limites por exemplo porque consagram sua vida à investigação científica como os aristotélicos ou porque levam uma vida simples e retirada como os epicu ristas A ruptura do cínico com o mundo é radical O que ele rejeita é o que os homens consideram as regras elemen tares as condições indispensáveis da vida em sociedade a propriedade o governo apolílica Ele pratica um impudor deliberado masturbandose ou fazendo amor em público como Diógenes Crates ou Hipárquia37 ele não se ocupa absolutamente com as conveniências sociais e a opinião des 36 Compilação de testemunhos in L Paquet Les Cyniques grecs Fragments et térnoignages prefácio de M0 GouletCazé Paris 1992 Vejase também M0 GouletCazé LAscese cynique Paris 1986 e as Atas do colóquio Le cynisrne ancien et ses prolongernents citado na p 146 nota 10 37 D L VI 46 69 97 162 As escolas helenísticas preza o dinheiro não hesita em mendigar não procura nenhuma posição estável na vida sem cidadé8 sem casa privado de pátria miserável errante vive o dia a dia Seu alforje contém apenas o estritamente necessário para sua sobrevivência Não teme as autoridades e exprimese em todos os lugares com uma provocadora liberdade de expres são39 parrhesia Na perspectiva que nos interessa a natureza exata da filosofia no mundo antigo o cinismo nos fornece um exemplo muito revelador pois representa uma situação limite Um historiador40 na Antiguidade perguntavase se o cinismo poderia ser considerado uma escola filosófica e se ele não era somente um modo de vida É verdade que os cínicos Diógenes Crates Hipárquia não deram nenhum ensino escolar mesmo que se possa perceber eventualmente uma atividade literária notadamente poé tica Eles formam não obstante uma escola na medida em que se pode reconhecer entre os diferentes cínicos uma relação de mestre e discípulo41 E em toda a Anti guidade concordouse em considerar o cinismo uma filo sofia mas na qual o discurso filosófico era reduzido ao mínimo Considerese por exemplo este episódio simbó lico como certa pessoa afirma que o movimento não existe Diógenes contentase em ficar em pé e andar42 A filosofia cínica é unicamente uma escolha de vida a esco lha da liberdade ou da total independência autarkeia 38 D L VI 38 39 ld VI 69 40 Id VI 103 cf o artigo de M0 GouletCazé Le cynisme estil une philosophie citado na p 153 nota 28 41 D L VI 36 7576 8284 42 Id VI 3839 163 A filosofia como modo de vida das necessidades inúteis a recusa do luxo e da vaidade typhos Essa escolha implica de maneira evidente certa concepção de vida mas ela provavelmente definida nas conversas entre mestre e discípulo ou nos discursos públi c os jamais é justificada diretamente nos tratados filosóficos teóricos Há conceitos filosóficos tipicamente cínicos porém não são utilizados em uma argumentação lógica mas servem para designar atitudes concretas correspondentes à escolha de vida a ascese a ataraxia ausência de perturbação a autarquia independência o esforço a adaptação às cir cunstâncias a impassibilidade a simplicidade ou ausência de vaidade atyphia o impudor O cínico escolhe seu gêne ro de vida por considerar que o estado de natureza physis tal qual se pode reconhecer no comportamento do animal ou da criança é superior às convenções da civilização nómos Diógenes joga fora sua tigela e sua taça ao ver crianças que dispensam esses utensílios e se sente assegurado em sua maneira de viver ao ver um rato escondido comer algumas migalhas de pão Essa oposição entre natureza e convenção fora objeto de longas discussões teóricas na época sofística mas para os cínicos não se trata de especulações mas de uma decisão que envolve toda a vida Sua filosofia é total mente exercício áskesis e sforço pois os artifícios as convenções e comodidades da civilização o luxo e a vaidade enfraquecem o corpo e o espírito Eis por que o gênero de vida cínico consistirá em uma preparação quase atlética mas refletida para suportar a fome a sede as intempéries a fim de adquirir a liberdade a independência a força interior a ausência de cuidados a tranquilidade de uma alma que será capaz de se adaptar a todas as circunstâncias43 43 Id VI 22 164 As escolas helenísticas Platão44 teria dito de Diógenes É o Sócrates enlouque cido Autêntica ou não a fórmula pode nos fazer refletir Em certo sentido Sócrates anunciava os cínicos Os poetas cômicos também zombavam do modo de andar de Sócrates de seus pés e de seu velho manto E se como vimos a figura de Sócrates se confunde no Banquete com a de Eros mendigando Diógenes vagando sem eira nem beira com seu próprio alforje não é ele outro Sócrates a figura he roica do filósofo inclassificável e estrangeiro no mundo Outro Sócrates que ele também se considera investido de uma missão ftzer que os hrnens reflitam denunciar por seus atqucs mordazes e por seu modo deViaa õs vícióseÕs erros Seu cuidado de si é indissoluvelmente um cuidado dós outros Mas se o cuidado de si socrático ao fazer chegar à liberdade interior dissolve a ilusão das aparências e das falsas semelhanças ligadas às convenções sociais preserva sempre certa urbanidade sorridente que desaparece em Diógenes e com os cínicos Pirro Pirro45 contemporâneo de Diógenes e de Alexandre qu acompanhou o Macedônio em sua expedição para a India tendo ali se encontrado com sábios orientais bem pode também ser considerado um Sócrates bastante extravagante Ele merece em todo caso nossa atenção pois estamos ainda uma vez na presença de um filósofo que embora não tenha se consagrado ao ensino 44dd VI 54 45 Id IX 6170 Compilação de testemunhos in Pirrone Testimonianze Napoli Éd F Decleva Caizzi 1981 M Conche Pyrrhon ou lapparence Villers surMer 1973 165 A filosofia como modo de vida pode discutir habilmente um filósofo que nada escreveu que se contenta em viver e atrair discípulos que imitem seu modo de vida Seu comportamento é totalmente imprevisível Às vezes se retira para uma completa solidão ou ainda parte em viagem sem avisar ninguém tomando como companheiros de rota e de conversação pessoas que encontra ao acaso Contra toda prudência afronta todos os tipos de riscos e perigos Con tinua a falar mesmo que seus ouvintes tenham partido Vendo um dia seu mestre Anaxarco caído num pântano passa sem o socorrer e Anaxarco o felicita louvando sua indiferença e impassibilidade E contudo à diferença dos cínicos ele parece comportarse de uma maneira completa mente simples e perfeitamente conforme à dos outros ho mens como o dá a entender um historiador antigo46 Pirro viveu piedosamente em companhia de sua irmã uma par teira de acordo com o testemunho de Eratóstenes em sua obra Da Riqueza e da Pobreza em que o autor narra que às vezes Pirro levava conforme a ocasião pequenas aves e leitões para vender no mercado e tirava o pó das coisas da casa com absoluta indiferença Contase ainda que ele dava outra prova de indiferença lavando um porquinho Notemos ra pidamente que esse relatoevoca sem que possa haver rela ção histórica com ela o que Tshuangtsé relata de lietsé filósofo chinês Durante três anos fica enfermo fazendo trabalhos domésticos para sua mulher e servindo os alimen tos servindo aos homens ele se toma indiferente a tudo e elimina todo ornamento para encontrar a simplicidade47 46 D L IX 66 47 Tshuangtsé in Philosophes taoistes textos traduzidos por Liou Ria Hway e B Grynpas Paris 1980 p 141 em Shitao Les propos sur la peinture 166 As escolas helenísticas O comportamento de Pirro corresponde a uma escolha de vida que se resume perfeitamente em uma palavra a indiferença Pirro vive em uma perfeita indiferença a todas as coisas Ele permanece sempre no mesmo estado48 isto é não experimenta nenhuma emoção nenhuma transforma ção de suas disposições sob a influência das coisas exterio res não dá nenhuma importância ao fato de estar presente nesse ou naquele lugar de encontrar essa ou aquela pessoa não faz nenhuma distinção entre o que é considerado ha bitualmente perigoso ou ao contrário inofensivo entre tarefas julgadas superiores ou inferiores entre o que se denomina sofrimento ou prazer a vida ou a morte Pois os juízos que os homens atribuem ao valor dessa ou daquela coisa são fundados apenas em convenções Com efeito é impossível saber se essa coisa é boa ou má E o mal dos homens é proveniente do modo como querem obter o que acreditam ser um bem ou fugir do que acreditam ser um mal Caso se recuse a fazer esse gênero de distinções entre as coisas caso se abstenha de emitir juízos de valor sobre elas e de preferir uma coisa a outra caso se diga Não mais isto que aquilo estará então em paz com tranquilidade interior e não terá mais necessidade de falar sobre essas coisas Pouco importa o que se faça a partir do momento em que se o faça com uma disposição interior de indife rença O fim da filosofia de Pirro consiste em firmarse em um estado de igualdade perfeita consigo mesmo de indi ferença total de independência absoluta de liberdade interior de impassibilidade estado que ele considera divi du moine Citrouilleamere trad e comentário de P Ryckmans Paris 1984 P Ryckmans define com esse exemplo p 12 a suprema simplicidade taoísta que é pura virtualidade e ausência de desejos 48 D L IX 63 167 A filosofia como modo de vida no49 Em outras palavras para ele tudo é indiferente salvo a indiferença que se tem pelas coisas indiferentes e que é finalmente a virtude5 donde seu valor absoluto Ad quirir essa indiferença não é tarefa fácil tratase como diz Pirro51 de desvencilharse inteiramente da debilidade humana isto é libertarse totalmente da perspectiva hu mana Essa fórmula é talvez muito reveladora Será que ela não quer dizer que desvencilhandose do homem o filósofo transforma completamente sua percepção do uni verso ultrapassando a perspectiva limitada do humano demasiado humano para elevarse a uma visão de uma perspectiva superior visão de alguma maneira sobrehuma na que revela a nudez da existência para além das opo sições parciais e de todos os falsos valores que o homem lhe acrescenta para talvez atingir um estado de simplici dade anterior a todas as distinções Caso o homem se ocupe com a prática desse despoja mento total é necessário que ele se exercite nela por meio do discurso interior isto é que rememore o princípio do não mais isto que aquilo e os argumentos que podem justificálo Pirro e seus discípulos também praticavam mé todos de meditação Relatasé2 do próprio Pirro que ele buscava a solidão e qu COllVefsava em VOZ alta COnsigo 49 Cf os versos de seu discípulo Tímon in Sexto Empírico Contra os moralistas 20 A natureza do divino e do bem sempre permanece a partir da qual advém ao homem uma vida sempre igual a si mesma Pirro aparece aqui como um dogmático como bem ressaltou F Decleva Caizzi Pirrone pp 256258 e W Gõrler resenha do livro de F Decleva Caizzi Archiv Jür Geschichte der Philosophie t 67 1985 pp 329 ss 50 Cícero Dos termos extremos II 13 43 e IV 16 43 51 D L IX 66 52 Id IX 6364 168 As escolas helenísticas mesmo como lhe perguntassem por que agia assim res pondeu Eu me exercito para ser um homem bom Seu discípulo Fílon de Atenas53 assim o descrevia Foge dos homens não se preocupa com a vanglória e com as discus sões acirradas Como a de Sócrates como a dos cínicos a filosofia de Pirro é antes de tudo uma filosofia vivida um exercício de transformação do modo de vida O epicurismo Epicuro54 c 342271 funda em 306 em Atenas uma escola que permanecerá viva nessa cidade pelo menos até o século II dC O poema de Lucrécio Da naturezrf5 ou as gigantescas inscrições que o epicurista Diógenes56 mandou gravar na cidade de Oinoanda em data incerta século I aC ou século II dC para permitir que seus concidadãos conhecessem os escritos e a doutrina de Epicuro testemunham o fervor missionário com o qual seus discípulos mesmo distantes esforçavamse para difundir sua mensagem 53 Id IX 69 54 Epicuro Lettres maximes sentences introd trad e com de JF Balaudé Paris 1994 citado Balaudé nas notas seguintes Essa obra é uma excelente introdução ao conhecimento do epicurismo Para o texto grego com tradução italiana vejase Epicuro Opere Torino Ed G Arrighetti 1973 citado Arrighetti nas notas seguintes Antologia de textos 2a ed tradução e notas de Agostinho da Silva São Paulo Abril Cultural 1980 Os Pensadores 55 Da Natureza 2a ed tradução e notas de Agostinho da Silva São Paulo Abril Cultural 1980 Os Pensadores 56 Diógenes de Oinoanda The Epicurean Inscription Napoli Ed M F Smith 1992 169 A filosofia como modo de vida Uma experiência e uma escolha No ponto de partida do epicurismo existe uma experiên cia e uma escolha Uma experiência a da carne A voz da carne diz não se deve sofrer a fome a sede e o frio aquele que é senhor disso e tem a esperança de possuílo no futuro pode lutar até mesmo com Zeus pela felicidade 57 A carne aqui não é uma parte anatômica do corpo mas em um sentido quase fenomenológico e totalmente novo parece em filosofia é o sujeito da dor e do prazer é o indivíduo Como bem mostrou C Diano58 Epicuro deveria falar de sofrimento de prazer e de carne para exprimir sua experiência pois não há outro meio de atingir e de mostrar profundamente o homem na pura e simples historicidade de seu ser no mundo e de descobrir enfim o que denominamos indivíduo esse indivíduo sem o qual não se pode falar de pessoa humana Pois é somente na carne que sofre ou se apazigua que nosso eu nossa alma emerge e revelase a si mesmo e ao outro 1 Eis por que as maiores obra de caridade 1 são as que têm por objeto a carne saciando a fome matando a sede 1 A carne não está então separada da alma se é verdade que não há prazer ou sofrimento sem que se te 57 Epicuro Sentenças vaticanas 33 Balaudé p 213 Retomo a tradu ção de JF Balaudé acrescentandolhe a menção a Zeus sem dúvida uma adição ao texto dos manuscritos mas que me parece justificada pelo kan que precede no texto grego 58 C Diano La philosophie du plaisir et la société des amis p 360 citado na p 150 nota 21 170 As escolas helenísticas nha consCiencia e sem que o estado de consciência se reproduza por sua vez na carne Uma experiência mas também uma escolha o que importa antes de tudo é libertar a carne de seu sofri mento o que lhe permite atingir o prazera Ep1c a escolha socrática e platônica em favor do amordOnem é uma ilusão na realidade ojJ1ªYiiU2 2JÍl2ill21 pela procura pLazer eJltJjrtteresse No entanto 0 ape da filosofia consistirá em saber procurar o prazer de maneira racional isto é em IEEI5 nilPfazerver dadeiro J1ll2 preç1eexistir pois toda a infelicidade td33rea dos homens provém de que eles ignoram o verdadeiro prazer Procurando o prazer são incapazes de atingilo pois não conseguem satisfazerse com o que têm ou porque procuram o que está fora de seu lcace ou porque arruínam o prazer pensando o tempo 1nte1ro que hão de perdêlo Podese dizer em certo sentido que o sofrimento dos homens é proveniente principalmente de suas opiniões vazias portanto de suas almas 59 A missão Ada filosofia a missão de Epicuro será antes de tudo terapeu tica será necessário curar a doença da alma e ensinar o homem a viver o prazer A ética A escolha fundamental será justificada então em um discurso teórico sobre a ética que proporá uma definição do verdadeiro prazer e uma ascese do desejo Nessa teoria 59 Cícero Dos termos extremos I 18 57 19 63 Cf AJ Voelke La philosophie comme thérapie de lâme pp 5972 Opinions vides et troubles de lâme 171 A filosofia como modo de vida epicurista do prazer os historiadores da filosofia descobrem com razão um eco das discussões sobre o prazer que ocor riam na Academia de Platão60 e das quais testemunham o diálogo de Platão intitulado Filebo e o livro X da Ética a Nicômaco de Aristóteles Segundo Epicuro há prazeres em movimento doces e lisonjeiros que se propagam na carne e provocam uma excitação violenta e efêmera É por procurar unicamente esses prazeres que os homens encontram a insatisfação e a dor porquanto esses prazeres são insaciáveis e tendo chegado a certo grau de intensi dade tornam a trazer sofrimentos É necessário distinguir totalmente desses prazeres móveis o prazer estável o prazer em repouso como um estado de equilíbrio É o estado do corpo apaziguado e sem sofrimento que consiste em não ter fome nem sede nem frio 61 A finalidade de todas as nossas ações é nos livrar do sofrimento e do temor e quando atingimos esse objetivo desaparece toda a tempestade da alma porquanto a criatura viva não tem ne cessidade de buscar algo que lhe falta nem de procurar coisas com que possa realizar o bem da alma e do corpo Sentimos necessidade do prazer somente quando sofremos pela ausência do prazer mas quando não srifremos não sentimos mais neces sidade do prazer Nessa perspectiva o prazer como supressão do sofrimento é um bem absoluto isto é que não pode crescer ao qual não se pode acrescentar um novo prazer do mesmo modo que um céu limpo não é suscetível de uma claridade mais 60 HJ Krãmer Platonismus und hellenistische Philosophie pp 164170 188211 216220 61 Epicuro Carta a Meneceu 128 Balaudé p 194 172 As escolas helenísticas 62 O rrV7Pr PctÍxul lC d VlVa ceiDJatwezaereuU arRcttHreza dprazere l2QY Ele se opõe ao indeterminado e ao infi nito como o repouso ao movimento como o que é fora do tempo ao que é temporal63 Talvez seja admirável ver atribuir essa transcendência à simples supressão da fome ou da sede e à satisfação das necessidades vitais Podese porém pensar que esse estado de supressão do sofrimento do corpo esse estado de equilíbrio abre à consciência um sentimento global cenestésico da própria existência tudo se passa então como se suprimindo o estado de insatisfação que o consumia na procura de um objeto particular o homem ficasse livre enfim para poder tomar consciência de alguma coisa extraordinária que já estava presente nele de maneira inconsciente o prazer de sua existência da identidade da pura existência para retomar a expressão de C Diano64 Esse estado tem alguma analogia com a felicidade suficiente perfeita e plena de que fala Rousseau65 em Les Rêveries du promeneur solitaire De que gozar em uma situação semelhante De nada exterior a si de nada senão de si mesmo e de sua própria existência contanto que esse estado dure ou baste para si mesmo como Deus Acrescentemos que esse estado de prazer estável e de equilíbrio corresponde também a um estado de tranquili dade da alma e ausência de perturbação O método para alcançar esse prazer estável consistirá em uma Com efeito se os homens são 62 Sêneca Cartas a Lucílio 66 45 Cf C Diano La philosophie du plaisir et la société des amis p 358 63 HJ Krãmer op cit p 218 64 C Diano La philosophie du plaisir et la société des amis p 364 65 JJ Rousseau Les Rêveries Paris Flammarion 1978 Cinquiême promenade p 102 G F ed br Devaneios do caminhante solitário Brasília UnB sd 173 A filosofia como modo de vida infelizes é porque são torturados por desejos imensos e vazios 66 a riqueza a luxúria a dominação A ascese dos desejos será fundada na distinção entre os desejos naturais e necessários os desejos naturais e desnecessários e enfim os desejos vazios os que não são naturais nem necessários67 distinção que já se esboçava por outro lado na República de Platão68 São naturais e necessários os desejos que levam à satis fação de libertarse de uma dor e correspondem às neces sidades elementares às exigências vitais São naturais mas desnecessários os desejos de comidas suntuosas ou ainda o desejo sexual Não são nem naturais nem necessários mas produzidos por opiniões vazias os desejos sem limites de riqueza de glória ou de imortalidade Uma sentença epicurista resumirá bem essa divisão dos desejos69 Graças sejam rendidas à bemaventurada Natureza que fez com que as coisas necessárias sejam fáceis de alcançar e que as coisas difíceis de alcançar não sejam necessárias ascese dos desejos consistirá em limitálos suprimin do os que não são naturais nem necessários limitando o mais possível os que são naturais mas desnecessários pois eles não suprimem um sofrimento real visam apenas às variações no prazer e podem arrastar a paixões violentas e desmedidas70 Essa ascese dos prazeres determinará um modo de vida que iremos descrever 66 Cícero Dos termos extremos I 18 59 67 Epicuro Carta a Meneceu 127128 Balaudé pp 116 e 194 68 Platão República VIII 558 d 69 Arrighetti p 567 240 70 Epicuro Máximas Principais XXX Balaudé p 204 Porfírio Da abstinência I 49 174 As escolas helenísticas A física e a canônica Mas uma grave ameaça pesa sobre a felicidade do homem Pode o prazer ser perfeito se o medo da morte e das decisões divinas neste mundo e no outro podem turválo Como mostra Ji22ÇSlUlriggr c llQIJt çtleeslá Jlªºfle g l Eões e tornam os homens iniFztc E para curar o homem desses terro res que Epicuro propõe seu discurso teórico sobre a física Não se deve sobretudo representar a física epicurista como uma teoria científica destinada a responder a interrogações objetivas e desinteressadas Os antigos já tinham notado que os epicuristas eram hostis à ideia de uma ciência estudada por ela mesma72 Ao contrário a teoria filosófica aqui é apenas a expressão e a consequência da escolha da vida original um meio de atingir a paz da alma e o prazer puro Epicuro repete com prazer73 Se não nos perturbássemos por causa de nossas angústias ante os fenômenos celestes e a morte temendo que esta última seja algo para nós por causa de nossa ignorância dos limites da dor e dos desejos não teríamos necessidade do estudo da natureza Não pode afastar o temor que importa para aquilo a que damos maior importância quem não saiba qual é a nature za do universo e tenha a preocupação das fábulas míticas Por isso não se podem gozar prazeres puros sem a ciência da natureza 71 Lucrécio Da natureza III 31 e ss 72 Cf AJ Festugiere Épicure et ses dieux Paris 1946 pp 5152 73 Epicuro Máximas Principais XI XII e Carta a Pítocles 85 vejase a tradução de JF Balaudé pp 175 e 201 e de Festugiere Epicure et ses dieux p 53 175 A filosofia como modo de vida Não há outra consequência a ser extraída do conheci mento dos fenômenos celestes que a paz da alma e uma firme segurança como é igualmente o objetivo de todas as outras investigações Como resulta claro na Carta a Pítocles7 há para Epicuro dois domínios bem distintos nas investigações sobre os fenômenos físicos Há de um lado o núcleo sistemático indiscutível que justifica a opção existencial por exemplo a representação de um universo eterno constituído pelos átomos e o vazio no qual os deuses não intervêm de outro as investigações sobre os problemas de importância secun dária por exemplo os fenômenos celestes meteorológicos que não permitem o mesmo rigor mas admitem uma plu ralidade de explicações Nos dois domínios as investigações são conduzidas unicamente para assegurar a paz da alma seja graças aos dogmas fundamentais que eliminarão o medo dos deuses e da morte seja nos problemas secun dários graças a uma ou várias explicações que ao mostrar que esses fenômenos são puramente físicos suprimirão a perturbação do espírito Tratase de suprimir o medo dos deuses e da morte Para tanto Epicuro sobTetudo nas Cartas a Heródoto e a Pítocles mostrará de um lado que os deuses nada têm a ver com a produção do universo que eles não se preocu pam com o que acontece com o mundo e os homens e de outro que a morte nada é para nós Com esse objeti vo Epicuro propõe uma explicação do mundo que deve 74 Epicuro Carta a Pítocles 8687 Carta a Pítocles in Diógenes Laércio Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres pp 302310 vejase Balaudé pp 106111 e 176 176 As escolas helenísticas muito às teorias naturalistas dos présocráticos em espe cial à de Demócrito o Todo não tem necessidade de ser criado por uma potência divina pois é eterno porquanto o ser não pode ser proveniente do nãoser mais que o nãoser não pode ser proveniente do ser Esse univer so eterno é constituído pelos corpos e pelo espaço isto é o vazio no qual se movem Os corpos que vemos os corpos dos seres vivos mas também os corpos da Terra e dos astros são constituídos por corpos indivisíveis e imutáveis em número infinito os átomos que caindo com força igual em linha reta graças a seu peso se unem e geram corpos compostos no momento em que se desviam infimamente de sua trajetória Os corpos e os mundos nascem mas também se desagregam em con sequência do movimento contínuo dos átomos Na infi nitude do vazio e do tempo há uma infinitude de mundos que aparecem e desaparecem Nosso universo é apenas um dentre eles A noção de desvio dos átomos tem dupla finalidade de uma parte explicar a formação dos corpos que não poderiam constituirse se os átomos se contentassem em cair em linha reta com força igual75 de outra ao introduzir o acaso na necessidade dar um fundamento à liberdade humana76 Ainda aqui é claro que a física é pensada em função da escolha de vida epicurista De um lado o homem deve ser senhor de seus desejos para poder atingir o prazer estável é neces sário que ele seja livre mas de outro se sua alma e seu intelecto são formados de átomos materiais movidos por 75 Cícero Dos termos extremos I 6 1820 76 Id Do destino 9 18 10 22 20 46 Da natureza dos deuses I 25 69 Vejase Arrighetti pp 512513 177 A filosofia como modo de vida um movimento sempre previsível como poderia o hom ser livre A solução consistirá precisamente em d1r que é exatamente nos átomos qu se situ um pnnCIl de espontaneidade interna que nao e senao ssa ossibi lidade de desviarse de sua trajetória o que da assim um fundamento à liberdade do querer e a torna possiVel Como diz Lucrécio77 Se a própria mente não tem em tudo o que faz uma Jata lidade interna e não é obrigada como contra a vontde a passividade completa é porque existe um pequeno desvz dos átomos sem ser em tempo determinado e volta para tras Inútil acrescentar que desde a Antiguidade até nssos dias esse desvio sem causa esse abandono do detenmmsmo sempre escandalizou os historiadores da filosofia7s Assim de um lado 0 homem não teme os deuses pois eles não exercem nenhuma ação sobre o mundo e sobre os homens e de outro o homem não deve mais temer a morte porque a alma composta de átomos desagregase como o corpo quando morre e perde toda sensibilidad A morte nada é para nós visto que nos bastams a os mesmos a morte nada éequando a morte é nao existi mos mais79 é dessa maneira que Diano resume as afirma ções da Carta a Meneceu nós não somos mais nós mesmos 77 Lucrécio Da natureza li 289293 h opara 78 Cícero Dos termos extremos I 6 19 Nada e mais vergou os um físio do qe dizer de um fato que ele se produz sem causa D Sedley E icurus Refutation of Determinism in SUZHTHSIS Studz sull epzcurezsmo gro e romano offerti a Marcello Gigante Contributi Napoli 1983 P 51 79 Epicuro Carta a Meneceu 124125 Cart a Meneceu m Dwgenes Laércio op cit pp 311314 Balaudé p 192 Dmno p 362 178 As escolas helenísticas quando a morte sobrevém Por que então temer algo que nada tem a ver conosco Dessa física materialista deduzse a teoria do conhe cimento canônica Todos os objetos materiais emitem fluxos particulares que tocam nossos sentidos e graças à continuidade desse fluxo nos dão a impressão de so lidez da resistência dos corpos A partir de sensações múltiplas provenientes de corpos que se reúnem por exemplo as advindas de diferentes indivíduos produzem se na alma imagens e noções gerais que nos permitem reconhecer as formas e identificálas ainda mais pelo fato de que a essas noções estão ligadas as palavras e a linguagem Com a linguagem manifestase a possibilidade do erro Para reconhecer a verdade de um enunciado será necessário verificar se ele está de acordo com os critérios de verdade que são as sensações e as noções gerais O pensamento poderá assim como dizem os epi curistas projetarse para a frente para intuir o que não está presente por exemplo para afirmar a existência do vazio que por definição é invisível mas cuja existência é necessária para explicar a existência do movimento Essa projeção sempre deverá ser controlada pela experiên cia portanto pela sensação80 O edificio teórico da física não tem por único objetivo libertar o homem do medo dos deuses e da morte Ele abre também o acesso ao prazer da contemplação dos deuses Porque os deuses existem o conhecimento que temos deles é com efeito uma clara evidência que se manifesta na preconcepção geral dos deuses presente em 80 Balaudé p 32 179 A filosofia como modo de vida toda a humanidadé1 O raciocínio exige também e neces sariamente que exista uma natureza superior a tudo e soberanamente perfeita Os deuses existem embora não tenham nenhuma ação sobre o mundo ou melhor porque eles não têm nenhuma ação sobre o mundo esta é a condição de sua perfeição82 O ser bemaventurado e imortal não tem perturbações nem perturba outro ser por isso é imune a movimentos de ira ou de gratidão pois todo movimento desse tipo implica fraqueza Essa é uma das grandes intuições de Epicuro ele não concebe a divindade como um poder de criar de dominar de impor sua vontade aos inferiores mas como a perfei ção de ser supremo felicidade indestrutibilidade beleza prazer tranquilidade A filosofia encontra na representa ção dos deuses a um só tempo o prazer maravilhado que se pode experimentar admirandose a beleza e o recon forto que pode proporcionar a visão do modelo de sabe doria Nessa perspectiva os deuses de Epicuro são a projeção e a encarnação do ideal de vida epicurista A vida dos deuses consiste em gozar de sua própria perfei ção do puro prazer de existir sem necessidade sem perturbação na mais dQçe as sociedades Sua beleza fí sica é a beleza da figura humâna83 Poderseia pensar com alguma razão que os deuses ideais são representações imaginadas pelos homens e que unicamente aos homens devem sua existência Entretanto Epicuro parece concebê los como realidades independentes que se mantêm eter namente no ser pois sabem afastarse do que poderia 81 Epicuro Carta a Meneceu 123 Balaudé p 192 82 Máximas Principais I Balaudé p 199 83 AJ Festugiere Épicure et ses dieux p 95 180 As escolas helenísticas destruílos e do que é perigoso para si Os deuses são os amigos dos sábios e os sábios são os amigos dos deuses Para os sábios o bem maior é contemplar o esplendor dos deuses Eles nada têm a pedirlhes mas apesar de tudo o pedem com uma oração de louvor84 é à perfeição dos deuses que suas homenagens se dirigem Pôdese falar sobre isso de puro amor de um amor que nada exige em troca85 Com essa representação de deuses que realizam 0 modo de vid epicurista a física tornase assim uma exortação a praticar concretamente a opção inicial da qual é a ex pressao la conu com isso à paz da alma e à alegria de estar hgado a VIda de contemplação que os próprios deses lvam O sábio como os deuses mergulha seu olhar na mfimtude dos mundos inumeráveis o universo fechado se abre para o infinito Exercícios Para chegar à cura da alma e a uma vida de acordo com a escolha fundamental não basta ter tomado conhecimento do discurso filosófico epicurista É necessário exercitarse ontinuamente Antes de tudo é necessário meditar isto e compenetrarse intimamente tomar consciência intensa dos dogmas fundamentais86 Media em todos esses ensinos dia e noite em toda parte e tambem com um companheiro semelhante a ti Assim não 84 Id ibid p 98 85 P Decharme La critique des traditions religieuses chez les Grecs Paris 1904 p 257 86 Epicuro Carta a Meneceu 124 e 135 Balaudé pp 192 e 198 181 A filosofia como modo de vida experimentarás perturbaçao nem em son hos nem em vigília mas viverás como um deus entre os homns rte nada e para nos Habituate a pensar que a mo d a reunião em resumos A sistematização dos ogas su los mais per d d preCisamente a torna e sentenças e estma a f eis de ter na memória dmiráveis e mais ac suasiVos mais a lo remédio destina a assegu como o famoso quadrup 1 se resume o essencial do rar a salvação da alma no qua ta87 discurso filosófico epiCuns Os deuses não são feitos para temer a morte não é feita para amedrontar o bem não é fácil de conquistar t 88 nem o mal de supor ar Contudo a leitura dos tratados dgmáticos de Ebicuro d 1 pode ahmentar tam em a de outros mestres a esclo a a intuição fundamental ditação e impregnar a a ma com Sobretudo é necessano praticar a disciplina dos dese e é fácil de b r contentarse com o qu JOS e necessano sa atisfaz as necessidades fundamentais alcançar com o que fluo Fórmula simples do ser e renuncar ado qlu e e sua aleração radical da ão deiXa eeyar a 1 mas que n das sim les roupas simp es vida contentarse com comi p blicos h nras aos cargos pu renunciar às riquezas as o viver retirado 1005 col IV 1014 texto restau 87 Filodemo in Papyrus Herculan N li 1983 2 ed nota 35 a d M Glgante Ricerche Fzlodemee apo ra o por Arrighetti p 548 H tradução de outros poemas d Phl d lpho Menezes a 88 Traduçao e 1 a e lo VII a c a v d C seleçao ffi u Palatma secu s in Poemas da Antologza ega 0 1 p tradução notas e posfácio de Jose Pau o aes São Paulo Companhia das Letras 1995 N do T 182 As escolas helenísticas A meditação e a ascese não podem ser praticadas na solidão Como na escola platônica a amizade é na escola epicurista o meio o caminho privilegiado para obter a transformação de si mesmo Mestres e discípulos devem Yudarse mutuamente para alcançar a cura de suas almas89 Nessa atmosfera de amizade o próprio Epicuro assume o papel de um diretor de consciência e como Sócrates e Platão conhece bem o papel terapêutico da palavra Essa direção espiritual só tem sentido em uma relação de indivíduo para indivíduo90 Essas coisas não é à multidão que as digo mas para ti Cada um de nós é um ouvinte muito vasto para o outro Ele sabe notadamente que a culpa91 tortura a consciên cia moral e que é possível libertarse dela reconhecendo as próprias faltas e aceitando as repreensões mesmo que elas provoquem algumas vezes um estado de contrição O exame de consciência a confissào a correção fraterna são exercícios indispensáveis para obter a cura da alma Possuímos fragmentos de um texto do epicurista Filodemo intitulado Da liberdade da palavra Trata nele da confiança e da abertura que deve reinar entre mestre e discípulos e entre os discípulos Se exprimirse livremente é para o mestre não temer repreender para o discípulo é não hesitar em reconhecer suas faltas ou mesmo não ter receio 89 Aj Festugiere op cit pp 3670 C Diano La philosophie du plaisir et la société des amis pp 365371 90 Sêneca Cartas a Lucz1io 7 11 C Diano p 370 91 Cf S Sudhaus Epikur als Beichtvater in Archiv für Heligionswissens chajt 14 1911 pp 647648 W Schmid Contritio und Ultima linea rerurn in neuen epikureischen Texten in Rheinisches Museum 100 301327 1957 I Hadot Seneca p 67 183 A filosofia como modo de vida de fazer conhecer a seus amigos as próprias faltas Uma das principais atividades da escola consistia em um diálogo corretivo e formador A personalidade de Epicuro nela desempenhava papel de destaque O próprio Epicuro pusera o princípio 92 Faze tudo como se Epicuro te visse e os epicuristas lhe faziam eco93 Nós obedecemos a Epicuro cuja forma de vida escolhemos Talvez por isso os epicuristas dessem tanta importância aos retratos de seu fundador que figuram não só nos quadros mas também nos anéis94 Epicuro aparecia para seus discípulos como um deus entre os homens95 isto é a encarnação da sabedoria o modelo que era necessário imitar Contudo em tudo isso era necessário evitar o esforço e a tensão Ao contrário o exercício fundamental do epi curista consistia na calma na serenidade na arte de gozar os prazeres da alma e os prazeres estáveis do corpo Prazer do conhecimento antes de tudo 96 No exercício da sabedoria a filosofia o prazer é equivalente ao conhecimento Pois não se tem prazer após ter aprendido mas é simultaneamente qae se aprende e que se tem prazer O prazer supremo é contemplar a infinitude do universo e a majestade dos deuses 92 Sêneca Cartas a Lucílio 25 5 93 Philodemi Peri Parrhesias Ed A Olivieri Leipzig 1914 p 22 M Gigante Philodême Sur la liberté de paroU Congrês Budé citado na p 159 nota 33 pp 196217 94 É o tema do livro de B Frischer The Sculpted Word 95 Epicuro Carta a Meneceu 135 Balaudé p 198 96 Id Sentenças vaticanas 27 Balaudé p 212 184 As escolas helenísticas Prazer da discussão como diz a carta enviada a Ido meneu por Epicuro antes de morrer97 A essas dores eu contraponho a alegria da alma que experi menta a lembrança de nossas conversas filosóficas Mas também o prazer da amizade Temos a esse res peito o testemunho de Cícerogs Epicuo diz da amiade que de todas as coisas que a sa bedorza nos proporczona para viver felizes não há nada superzor mais fcundo mais agradável que a amizade E ele ao se lzmztou a declarar isso mas o confirmou em s vzda tanto por seus atos como por seus costumes Na unza casa e Epicuro uma pequena casa aquele grupo de amzgo renzdos por ele unidos sentimentalmente por aquela conspzraçao de amor Praer de uma vida em comum que não menospreza alm disso a participação de escravos e mulheres Verda deira revolução que denta uma transformação completa da atmosfera em relaçao a homossexualidade sublimada da esco de Platão As mulheres então já excepcionalmente admitidas na escola de Platão agora fazem parte da co mumdade e entre elas não só as mulheres casadas por exemplo Temístia a mulher de Leonteus de Lamsaco as também as cortesãs como Leôntion a Leoa que pmtor Teoro representará em meditação99 1 97 Argheti P 427 52 e vejase Marco Aurélio Meditações IX 4 Medztaçoes 2 ed tradução e notas de Jaime Bruna São Paulo Ab i Cultural 1980 Os Pensadores n 98 Cícero Dos termos extremos I 20 65 99 Plínio o Velho História Natural XXXV 144 e 99 N w D Wi E d e Itt rzcurus Cita o na p 150 nota 21 pp 9596 185 A filosofia como modo de vida Prazer enfim de tomar consciência do que existe de maravilhoso na existência Saber antes de tudo governar o próprio pensamento para representarse as coisas agra dáveis ressuscitar a memória dos prazeres do passado e gozar os prazeres do presente reconhecendo quanto esses prazeres são grandes e agradáveis escolher deliberadamente a calma e a serenidade viver em gratidão profunda para com a natureza e a vida que nos oferecem sem cessar caso saibamos encontrálos o prazer e a alegria A meditação sobre a morte serve para despertar na alma imensa gratidão pelo dom maravilhoso da exis tência100 Convencete de que cada novo dia que nasce será para ti o último É então com gratidão que tu receberás cada hora inesperada Recebe cada momento do tempo que se acrescenta reconhe cendo todo seu valor como se acontecesse graças a um acaso incrível E Hoffmann recuperou admiravelmente a essência da escolha de vida epicurista quando escreveu101 A existência deve então ser considerada um puro acaso para poder em seguida ser vivida totalmente como uma maravilha única É necessário agir bem pois a existência inexoravelmente não tem lugar senão para uma vez para em seguida festejar o que ela tem de insubstituível e de único 100 Horácio Cartas I 4 13 Filodemo Da morte livro IY col 38 24 citado in M Gigante Ricerche Filodemee Napoli 1983 pp 181 e 215216 101 E Hoffmann Epikur in M Dessoir Die Geschichte der Philosophie T I Wiesbaden 1925 p 223 186 As escolas helenísticas O estoicismo A escola estoica fundada por Zenão102 no fim do século IV aC ganha novo impulso por volta da metade do sécu lo II sob direção de Crisipo Muito cedo preservando notavel umdade quanto aos dogmas fundamentais ela cindese em tendências opostas que continuarão a dividir s estoics no decorrer dos séculos103 Dispomos de poucas mfornaçoes sobre a história da escola a partir do século I aC E certo que até o século II dC a doutrina estoica era ainda florescente no Império romano basta citar Sêneca Musônio Epíteto e Marco Aurélio A escolha fundamental A propósito do epicurismo falamos de uma experiên cia a da carne e de uma escolha a do prazer e do in teresse individual transfigurado em puro prazer de existir evemos aga falar de experiência e de escolha a propó sito do estOICismo A escolha é fundamentalmente a de Sócrates que na Defesa de Sócrates escrita por Platão1o4 102 Os fragmentos dos estoicos foram reunidos por H von Arnim Stozcorum Veterum Fragmenta IIV Leipzig 19051924 reedição Stuttgart Teubner 1964 J Mansfield prepara uma nova edição dos fragmentos Encontrarsea uma tradução muito útil de certo número de textos estoicos Sêneca Epiteto e Marco Aurélio e testemunhos sobre o estoicismo em Diógenes Laércio Cícero e Plutarco em Les Stoiciens Éd É Bréhier et PM suhl Paris Gallimard 1964 Bibliothêque de la Pléiade citado Les Stozczens nas notas seguintes Sêneca A vida feliz tradução de André Bartholomeu apresentação de Denis Diderot Campinas Pontes 1991 103P Lynch Aristotles School p 143 I Hadot Tradition stocienne et idées politiques au temps des Grecques in Revue des Études Latines 48 161178 1971 104 Defesa 41 d vejamse também 30 b e 28 e 187 A filosofia como modo de vida declara Não há para o homem bom nenhum mal quer na vida quer na morte Pois o homem bom considera que não há mal senão o mal moral e que não há bem senão o bem moral ou seja o bem ou virtude é o valor supremo pelo qual não se deve hesitar em enfrentar a morte A escolha estoica situase assim na linha reta da escolha socrática e é diametralmente oposta à escolha epicurista a felicidade não consiste no prazer ou no inte resse individual mas na exigência do bem ditada pela razão e que transcende o indivíduo A escolha estoica opõese igualmente à escolha platônica na medida em que pretende que a felicidade isto é o bem moral seja aces sível a todos neste mundo A experiência estoica consiste em uma tomada de cons ciência aguda da situação trágica do homem condicionado pelo destino Aparentemente não somos livres para nada pois não depende absolutamente de nós ser belos fortes com boa saúde ricos experimentar o prazer ou escapar ao sofrimento Tudo isso depende de causas exteriores a nós Uma necessidade inexorável indiferente a nosso in teresse individual destrói aspirações e esperanças estamos entregues sem defesa a1 acidentes da vida aos reveses da fortuna à doença à morteTudo em nossa vida nos esca pa Disso resulta que os homens são infelizes porquanto procuram com paixão adquirir os bens que não podem obter e fugir dos males que são contudo inevitáveis Contudo há uma coisa uma única coisa que depende de nós e que nada nos pode tirar a vontade de fazer o bem a vontade de agir de acordo com a razão Haverá então oposição radical entre o que depende de nós e pode ser bom ou mau porque objeto de nossa decisão 188 As escolas helenísticas e o que não depende de nós105 mas de causas exteriores do destino e é indiferente A vontade de fazer o bem é cidadela interior inexpugnável que cada um pode edificar em si mesmo Lá é que se encontrará a liberdade a in dependência a invulnerabilidade e valor eminentemente estoico a coerência consigo mesmo Poderseia dizer tam bém que a escolha de vida estoica consiste na coerência consigo mesmo Sêneca resumiu essa atitude pela fórmula106 Sempre querer a mesma coisa sempre recusar a mesma coisa pois explicava a mesma coisa não pode univer sal e constantemente agradar senão o que é moralmente direito Essa coerência consigo é própria da razão todo iscurso racional só pode ser coerente consigo mesmo VIver segundo a razão é submeterse a essa obrigação de coerência Zenão 107 definia desta maneira a escolha de vida estoica Viver de maneira coerente isto é segundo uma regra de vida una e harmoniosa pois aqueles que vivem na incoerência são infelizes A física O discrso filosófico estoico comporta três partes a flSlca a logtca e a ética O discurso filosófico concernente à física justificará a escolha de vida da qual acabamos de falar e explicitará a maneira de ser no mundo que ela acarreta Como entre os epicuristas a física entre os estoicos não é desenvolvida por si mesma mas tem finalidade ética r os 105 Eiteto Manua 1 Conversações I 1 7 I 4 27 I 22 9 II 5 4 106 Seneca Cartas a Lucílio 20 5 107 Stoicorum Veterum Fragmenta citado SW nas notas que seguem I 179 108 SVF III 68 Les Stoiciens p 97 189 A filosofia como modo de vida A física é ensinada somente para que se possa ensinar a dis tinção que é necessário estabelecer entre os bens e os males Podese dizer antes de tudo que a física estoica é indispensável à ética pois ensina o homem a reconhecer que há coisas que não estão em seu poder mas dependem de causas exteriores a ele que se encadeiam de maneira necessária e racional Ela tem também uma finalidade ética na medida em que a racionalidade da ação humana fundase na racio nalidade da natureza Na perspectiva da física a vontade de coerência consigo fundamento da escolha estoica aparecerá no seio da realidade material como uma Lei fundamental interior a todo ser e ao conjunto dos seres109 De repente desde o primeiro instante de sua existência o ser vivo é conciliado consigo mesmo tende a conservarse a si mesmo e a amar sua própria existência e tudo o que pode conservála Mas o próprio mundo é um único ser vivo também ele conciliado consigo mesmo coerente con sigo mesmo no qual como em uma unidade sistemática e orgânica tudo tem relação com tudo tudo está em tudo tudo tem necessidade de tudo A escolha de vida estQica postula e exige a um só tempo que o universo seja acíonal É possível que sub sista alguma ordem em ti mas desordem no universo110 A razão humana que quer a coerência lógica e dialética consigo mesma e põe a moralidade deve fundarse em uma 109 Cícero Dos termos extremos III 4 1622 75 vejase o comentário notável desse texto por V Goldschmidt Le Systeme stoiâen et lidée de temps Paris 1977 pp 125131 I Hadot Seneca pp 7375 110 Marco Aurélio Meditações IV 27 citado Marco Aurélio nas notas seguintes 190 As escolas helenísticas razão do Todo do qual ela é apenas parte Viver de acordo com a razão será viver de acordo com a natureza de acor d com a Lei universal que move do interior revolu çao do mundo Universo racional mas ao mesmo tempo totalente materil a razo estoica é idêntica ao Fogo erachnano matenal tambem aqui em razão da escolha de VIda estoica como pensaram G Rodier e V Goldschmidtlll qu explicam esse materialismo pelo desejo de tornar fehnade acessível a todos neste mundo mesmo que não se opoe a um mundo superior Justificando racionalmente suas opções radicalmente diferentes estoicos e epicuristas propõem físicas radical mente opostas Para os últimos se os corpos são formados de agregados de átomos eles não formam uma verdadeira umdade e o niverso é apenas uma justaposição de ele mentos que nao se fundem simultaneamente cada ser é uma individualidade de alguma maneira atomizada isola da em relação às outras tudo está fora de tudo tudo acontece por acaso no vazio infinito formase uma infini dade de mundos Para os estoicos ao contrário tudo está em tudo os corpos são todos orgânicos o Mundo é um todo orgânico e tudo acontece por necessidade racional no tempo infinito há um único cosmos que se repete uma in fimdade de vezes Duas físicas contrárias e contudo uma proposição análoga pois as duas escolas tendem a fndar na própria natureza a possibilidade da escolha existencial Os picurists onsideravam que a espontaneidade da parhculas atomiCas poderia desviarse de sua tretória e tornar possível a liberdade humana e a ascese dos desejos 111 Rodier tudes de philosophie grecque Paris 1926 pp 254255 v Goldschmidt Le Systeme stoiCien p 59 nota 7 191 A filosofia como modo de vida Os estoicos fundam a razão humana na natureza concebi da como a Razão universal Mas sua explicação da possi bilidade de liberdade humana é muito mais complexa Para explicar a possibilidade de liberdade não basta simplesmente fundar a razão humana na razão cósmica Isso porque a razão cósmica corresponde a uma necessidade rigorosa ainda mais porque os estoicos a representam sobre 0 modelo heraclitiano de uma força o Fogo112 sopro e calor vital que misturandose totalmente à matéria gera todos os seres como uma semente na qual todas as sementes estão contidas e a partir da qual elas se desenvolvem De acordo consigo mesmo coerente consigo mesmo o cosmos como razão se quer necessariamente como é a ponto de repetirse em um ciclo eternamente idêntico no qual o fogo ao transformarse nos outros elementos volta a ser finalmente ele mesmo Se o cosmos se repete eternamente idêntico é porque é racional é lógico é porque é o único cosmos simultaneamente possível e necessário que a Razão pôde produzir Ela não pode produzir um melhor ou um pior E nesse cosmos tudo se encadeia necessariamente de acordo com o princípio de causalidade 113 Não há movimento sem causa se assim é tudo acontece por causas que dão a impulsã se não é assim tudo acontece pelo destino O menor acontecimento envolve toda a série de causas o encadeamento de todos os acontecimentos anteceden tes e finalmente todo o universo Queira o homem ou não todas as coisas acontecem necessariamente como elas 112 SW li 413421 113 Id li 952 Les Stoiciens p 481 192 As escolas helenísticas acontecem A Razão universal não pode agir de maneira diferente da que age precisamente porque ela é perfei tamente racional Mas então como uma escolha moral é possível O preço a pagar para que a moralidade seja possível será a liberdade de escolha isto é a possibilidade para o homem recusandose a aceitar o destino de revoltarse contra a ordem universal e de agir ou pensar contra a Razão uni versal e a natureza isto é de separarse do universo de tornarse um estrangeiro um exilado da grande cidade do mundo114 Essa recusa por outro lado não mudará em nada a ordem do mundo Segundo a fórmula do estoico Cleanto retomada por Sêneca115 Os destinos guiam quem os aceita arrastam quem a eles resiste A Razão incluise com efeito no plano do mundo e faz que contribuam para seu êxito todas as resistências todas as oposições todos os obstáculos116 Mas ainda uma vez podese perguntar como essa liber dade de escolha é possível É que a forma da razão própria ao homem não é a razão substancial formadora imediata mente imanente às coisas que é a Razão universal mas uma razão discursiva que nos juízos nos discursos que enuncia sobre a realidade tem o poder de dar um sentido aos acon tcimentos que o destino lhe impõe e às ações que ela produz E nesse universo de sentido que se situam tanto as paixões humanas como a moralidade Como disse Epiteto117 114 Marco Aurélio VIII 34 115 Sêneca Cartas a Lucílio 107 11 116 Marco Aurélio VIII 35 117 Epiteto Manual 5 Les Stoiciens p 1113 193 A filosofia como modo de vida Não são as coisas em sua materialidade que nos perturbam mas os juízos que jazemos sobre as coisas isto é o sentido que lhes damos A teoria do conhecimento A teoria estoica do conheciménto tem duplo aspecto De uma parte afirma que os objetos marcam com seu sinal nossa faculdade de sensação e que não podemos absolutamente duvidar de certas representações que levam uma marca de evidência indiscutível são as denominadas representações compreensivas ou objetivas Elas não depen dem absolutamente de nossa vontade Mas nosso discurso interior enuncia e descreve o conteúdo dessas representa ções e damos ou não nosso assentimento a esse enunciado É aí que se situa a possibilidade de erro e a liberdade118 Para fazer compreender esse aspecto subjetivo e voluntá rio da representação Crisipo comparavaa ao cilindro119 Todo o encadeamento de causas e de acontecimentos isto é o destino pode pôr em movimento um cilindro mas um cilindro somente rolará de acordo com sua própria forma de cilindro Da mesma maneira o encadeamento de causas pode provocar em nós essa ou aquela sensação dandonos assim ocasião de enunciar um juízo sobre essa sensação e de dar ou não nosso assentimento a esse juízo mas esse assentimento não terá menos sua forma própria independente e livre Para melhor compreender o que querem dizer os estoi cos podese desenvolver um exemplo proposto por Epíteto 118 SVF li 91 Sexto Empírico Contra os lógicos li 397 traduzido in P Hadot La Citadelle intérieure Paris 1992 p 124 119 Cícero Do destino 19 43 cf P Hadot op cit p 124 194 As escolas helenísticas Se em pleno ar percebo um trovão e os relâmpagos da tempestade nao posso negar que vejo esses estrondos aterrorizantes é a representação compreensiva e objetiva Essa sensação é o resultado de todo o encadeamento de causas portanto do destino Se me contento em constatar interiormente que graças ao destino sou posto frente a frente com uma tempestade isto é se meu discurso interior corresponde exatamente à representação objetiva estou na verdade Mas a percepção desses estrondos pode sem úvi submergir no terror o que é uma paixão Sob 0 illlpeno da emoção eu poderia me dizer interiormente Eisme aqui submerso na desgraça corro o risco de morrer e a morte é um mal Se dou meu assentimento ao discurso interior procado elo terror estarei no erro enquanto um estmco Ja que mmha opção existencial fundamental é precisamente que não há outro mal além do mal moraP2o De maneira geral o erro mas também a liberdade situam se nos juízos de valor que atribuo aos acontecimentos A atitude moral correta consistirá em reconhecer como bom ou mau apenas o que é bom ou mau moralmente e em considerar nem bom nem mau portanto indiferente 0 que não é bom nem mau moralmente A teoria moral Podese definir de outro modo a opos1çao entre 0 domínio da moral e o domínio do indiferente Será mol então isto é bom ou mau o que depende de nós sera md1ferente o que não depende de nós A única coisa dependente nós é com efeito nossa intenção moral 0 120 Aulo Géio Noites áticas XIX 1 1520 traduzido in P Hadot La Citadelle intérieure p 120 195 A filosofia como modo de vida sentido que atribuímos aos acontecimentos O que não depende de nós corresponde ao encadeamento necessário de causas e efeitos isto é ao destino ao curso da natureza às ações dos outros homens São assim indiferentes a vida e a morte a saúde e a doença o prazer e o sofrimento a beleza e a fealdade a força e a fraqueza a riqueza e a po breza a nobreza e o vulgo as carreiras políticas porque tudo isso não depende de nós Tudo isso deve em princí pio nos ser indiferente isto é não devemos introduzir aí diferenças mas aceitar o que acontece corno determinado pelo destino121 Não deseja que o que acontece aconteça como queres mas queiras que o que acontece aconteça como acontece e serás feliz Há aí urna inversão total da maneira de ver as coisas Passase de urna visão humana da realidade visão na qual nossos juízos de valor dependem de convenções sociais ou de nossas paixões a uma visão natural física das coisas que repõe cada acontecimento na perspectiva da natureza e da Razão universaP22 A indiferença estoica é profundamente diferente da indiferença pirroniana Para o pirrônico tudo é indiferente porque não se pode saber se uma coisa é boa ou má Não há aqui nada que não seja indiferente é a própria indiferença Para o estoico há uma única coisa que não é indiferente a intenção moral que se põe como boa ou má e leva o homem a modificarse a si mesmo e à sua atitude com relação ao mundo E a indiferença consiste em não fazer diferença mas em querer amar mesmo de maneira igual tudo o que é determinado pelo destino 121 Epíteto Manual 8 Les Stoiciens p 1114 122 Cf P Hadot op cit pp 122123 e pp 180 e ss 196 As escolas helenísticas Mas podese perguntar corno o estoico orientase na vida se tudo é indiferente exceto a intenção moral Devese casar exercer uma atividade política ou um ofício servir à pátria Aqui aparece uma parte essencial da doutrina estoica a teoria dos deveres não a do dever em geral ou das ações apropriadas 123 Essa teoria vai permitir à vontade boa encontrar matéria de exercício para ser guiada por um código de conduta prática e combinar um valor relativo às coisas indiferentes que são em princípio sem valor Para fundar essa teoria dos deveres os estoicos retor nam à sua intuição fundamental a do acordo instintivo e original do ser vivo consigo mesmo que exprime a vontade profunda da natureza Os seres vivos têm uma propensão original a conservarse e a repelir o que ameaça sua inte gridade Com a aparição da razão no homem o instinto natural tornarseá coisa refletida e raciocinada o amor pela vida por exemplo o amor pelas crianças o amor pe los concidadãos fundado no instinto de sociabilidade Casar se ter uma atividade política servir à pátria todas essas ações serão apropriadas à natureza humana e terão um valor O que caracteriza a ação apropriada é que em parte ela depende de nós pois supõe uma intenção moral e em parte não depende pois seu êxito depende não só de nossa vontade mas dos outros homens ou das circunstâncias dos acontecimentos do destino enfim Essa teoria dos deveres ou ações apropriadas permite ao filósofo orientarse na 123 Empresto essa tradução de I G Kidd Posidonius on Emotions in Problems in Stoicism Ed A A Long London 1971 p 201 Sobre as ações apropriadas cf I Hadot Seneca pp 7278 V Goldschmidt Le Systime stoiiien pp 145168 P Hadot op cit pp 204206 197 A filosofia como modo de vida incerteza da vida cotidiana ao propor escolhas razoáveis que nossa razão pode aprovar sem jamais ter a certeza de fazer bem O que conta com efeito não é o resultado sempre incerto não é a eficácia mas a intenção de fazer bem124 O estoico age sempre sob reserva ao dizer a si mesmo Eu quero fazer isto se o destino o permitir Se o destino não o permite buscará o êxito de outra maneira ou aceitará o destino querendo o que acontece O estoico age sempre sob reserva mas age toma parte na vida social e política Esse também é um ponto muito importante que o separa dos epicuristas que se retiram em princípio de tudo o que pode causar preocupação Ele age não em seu próprio interesse material ou mesmo espiritual mas de maneira desinteressada a serviço da comunidade humana125 Nenhuma escola tem mais bondade e doçura nenhuma tem mais amor pelos homens mais atenção pelo bem comum O fim que ela nos assinala é ser útil ajudar os outros e ter cuidado não somente de si mesmo mas de todos em geral e de cada um em particular Os exercícios Em consequência da perda da maior parte dos escritos dos fundadores da corrente Zenão e Crisipo temos no caso do estoicismo muito menos testemunhos sobre os exercícios espirituais praticados na escola do que no caso do epicurismo Os mais interessantes os de Cícero Fílon de Alexandria Sêneca Epíteto e Marco Aurélio são relati 124 Cf id ibid pp 220224 125 Sêneca Da clemência II 3 3 198 As escolas helenísticas vamente tardios mas nos revelam segundo toda verossi milhança uma tradição anterior da qual se pode ver traços em certos fragmentos de Crisipo e mesmo de Zenão Parece assim que no estoicismo fazem parte da filosofia não só discursos teóricos mas também temas de exercício que devem ser praticados concretamente caso se queira viver como um filósofo É assim que a lógica não se limita a uma teoria abstrata do raciocínio nem mesmo a exercícios escolares silogísticos mas haverá uma prática cotidiana da lógica aplicada aos problemas da vida de todos os dias a lógica aparecerá então como um domínio do discurso interior Isso será tanto mais necessário na medida em que de acordo com o intelectualismo socrático os estoicos consideravam que as paixões humanas correspondem a um mau uso desse discurso interior isto é de erros de juízo e de raciocínio Será preciso vigiar os discursos para verificar se um juízo de valor errado não se introduziu neles acrescentando assim à representação compreensiva algo de estranho Marco Aurélio aconselha que se faça de alguma maneira uma definição física do objeto que se apresenta isto é do acontecimento ou da coisa que provoca nossa paixão126 Para vêla tal qual é na essência nua e por inteiro distinta no seu todo e dizer de si para consigo o nome que a designa Com efeito esse exercício consiste em conside rar a realidade tal qual ela é sem acrescentarlhe juízos de valor inspirados pelas convenções os preconceitos ou as paixõesm 126 Marco Aurélio III 11 cf acima p 196 nota 122 127 Id VI 13 199 A filosofia como modo de vida Essa púrpura imperial é pelo de uma ovelha tinto com o san gue de um molusco A união dos sexos é uma fricção de ventre com ejaculação num espasmo de um líquido gosmento Aqui o exercício lógico ligouse de novo ao domínio da física pois essa definição se situa na perspectiva da natureza sem nenhuma consideração subjetiva e antropomórfica É que a física estoica não mais que a lógica não é só uma teoria abstrata mas um tema de exercício espiritual Para pôr em prática a física um primeiro exercício consistirá em reconhecerse como parte do Todo em elevarse à consciência cósmica em imergir na totalidade do cosmos Deve haver um esforço quando se medita na física estoica para ver todas as coisas segundo o ponto de vista da Razão universal e por isso se praticará o exercício da imaginação que consiste em ver todas as coisas por um olhar de longo alcance por sobre as coisas humanas128 Na mesma perspectiva exercitarseá para ver em cada instante as coisas enquanto se metamorfoseiam129 De que modo se transformam todas as coisas umas nas outras Procura um método de investigálo presta atenção e trata de exercitarte nesse particular nada contribui tanto para a elevação dos sentimentos Detémte sobre cada ser sob teus olhos e reflete que já se está dissolvendo já entrou numa transformação por exemplo em putrefação ou dispersão ou na espécie de morte natural a cada um Essa visão da metamorfose universal conduzirá à medi tação sobre a morte sempre iminente mas que se aceitará 128 Cf adiante pp 297299 129 Marco Aurélio X 11 e 18 200 As escolas helenísticas como uma lei fundamental da ordem universal pois final mente a física como exercício espiritual conduz o filóso fo a aceitar com amor os acontecimentos desejados pela Razão imanente ao cosmos130 Não se pode contudo apenas aceitar os acontecimentos quando eles acontecem mas é necessário prepararse para eles Uma das práticas espirituais estoicas mais famosas con sistia no préexercício praemeditatio dos males digamos no exercício preparatório para as experiências131 Tratase de representarse o avanço das dificuldades os reveses da fortuna os sofrimentos e a morte Fílon de Alexandria132 dizia a esse respeito Não se curvem sob os golpes da sorte mas calculem o avanço dos ataques pois entre as coisas que acontecem sem que se queira mesmo as mais penosas são atenuadas pela previsão quando o pensamento nada mais encontra de inesperado nos acontecimentos mas embota a percepção como se se tratasse de coisas antigas e usadas Esse exercício é tão complexo que essa descrição não permite entendêlo Ao praticálo o filósofo não quer ape nas abrandar o choque da realidade ao penetrar bem nos princípios fundamentais do estoicismo quer restaurar em si mesmo a tranquilidade e a paz da alma Não se pode ter medo de pensar no avanço dos acontecimentos que os outros homens consideram infaustos é necessário sempre pensar neles para convencerse antes de tudo de que os 130 Crisipo in SW t li 912 fala do consentimento que dão os sábios ao destino Marco Aurélio UI 16 3 VIII 7 131 Sobre esse exercício cf I Hadot Seneca pp 6061 P Hadot La Citadelle pp 220224 132 Fílon Das leis especiais li 46 201 A filosofia como modo de vida males futuros nao são males pms nao sao presentes e sobretudo de que os acontecimentos como a doença a pobreza e a morte que os outros homens percebem como males não são males pois não depende de nós e não são da ordem da moralidade O pensamento da morte imi nente transformará de maneira radical a maneira de agir fazendo que se tome consciência do valor infinito de cada instante133 É necessário realizar cada ação da vida como se fosse a última Com o exercício de previsão dos males e da morte passase impassivelmente da física praticada à ética praticada Essa previsão está intimamente ligada à ação assim como o filó sofo estoico a pratica Quando age ele prevê os obstáculos e nada acontece contra sua expectativa Sua intenção moral permanece intacta mesmo que smjam obstáculos134 Acabamos de perceber em uma filosofia pratiçada os limites entre as partes da filosofia se ocultando O exercício da definição é a um só tempo lógico e físico o pensa mento da morte ou o exercício de previsão das dificulda des simultaneamente físico e ético Misturando assim as partes da filosofia os estoicos queriam provavelmente responder a Aríston de Qufos estoico da primeira geração que suprimia as partes física e lógica da filosofia para deixar subsistir apenas a ética135 Para eles Aríston tinha razão em considerar a filosofia uma prática mas as partes lógica e física da filosofia não eram puramente teóricas correspondiam a uma filosofia vivida A filosofia era para 133 Marco Aurélio II 5 2 134 Cf P Hadot La Citadelle pp 216220 135 SW I Aríston 351352 D L VI 103 202 As escolas helenísticas eles um ato único que era necessano praticar a cada instante em uma atenção prosokhé incessantemente re novada atenção a si mesmo e ao momento presente A atitude fundamental do estoico é essa atenção contínua que é uma tensão constante uma consciência uma vigi lância em cada instante Graças a essa atenção o filósofo está sem cessar perfeitamente consciente não só do que faz mas do que pensa é a lógica vivida e do que é isto é de seu lugar no cosmos é a física vivida Essa consciência de si é antes de tudo uma consciência moral ela procura realizar a todo instante uma purificação e uma correção da intenção recusase a cada instante a admitir outro motivo da ação além da vontade de fazer o bem Contudo essa consciência de si não é somente moral também é cósmica e racional o homem atento vive sem cessar na presença da Razão universal imanente ao cosmos vendo todas as coisas na perspectiva dessa Razão e acei tando alegremente sua vontade A essa filosofia praticada a esse exerCicw ao mesmo tempo único e complexo da sabedoria os estoicos opõem o discurso teórico filosófico formado de proposições que compreende como partes distintas a lógica a física e a ética Eles querem dizer com isso que quando se quer ensinar filosofia e convidar à sua prática é necessário antes discor rer isto é expor a teoria física a teoria lógica e a teoria ética num conjunto de proposições Mas quando se trata de exercer a sabedoria isto é de viver filosoficamente tudo o que foi enunciado separadamente no ensino deve agora ser vivido e praticado de maneira inseparáveP36 136 D L VII 39 e 41 Cf P Hadot Les divisions des parties de la philosophie dans lAntiquité in Museum Helveticum 36 201223 1979 203 A filosofia como modo de vida Para eles é a mesma razão que atua na natureza e na física na comunidade humana e na ética e no pensamento individual e na lógica O ato único do filósofo preparando se para a sabedoria coincide com o ato único da Razão universal presente em todas as coisas e harmonizandose consigo mesma O aristotelismo Os aristotélicos137 da época helenística são sobretudo sábios Apenas Teofrasto primeiro sucessor de Aristóteles parece ser como seu mestre ao mesmo tempo um contem plativo e um organizador de investigação notadamente no domínio de história natural Em consequência disso a es cola parece terse especializado na investigação enciclopé dica e sobretudo na erudição histórica e literária biografia etnologia caracterologia em investigações físicas na elabo ração da lógica e em exercícios retóricos uma obra imen sa da qual conservamos apenas uns poucos fragmentos O astrônomo Aristarco de Samos138 século III aC formula Philosophie discours philosophique et divisions de la philosophie chez les sto1ciens in Reuue Internationale dePhilosophie 45 205219 1991 e La philosophie éthique une éthique ou une pratique in Problemes de morale antique Éd P Demont Faculté des Lettres Université de Picardie 1991 pp 737 Vejamse as observações de K Ierodiakonou The Stoic Division of Philosophy in Phronesis 38 5961 1993 que pareceme apenas confirma minha interpretação 137 Os fragmentos foram reunidos por F Wehrli Die Schule der Aristoteles Dez fascículos e dez suplementos Bãle 19441959 19741978 J P Lynch Aristotles Schoo Berkeley 1972 estudo de conjunto J Moreau Aristote et son école Paris 1962 138 Cf R Goulet Aristarque de Sarnas in Dictionnaire des philosophes antiques t 1 p 356 204 As escolas helenísticas a hipótese de que o Sol e as estrelas são imóveis e de que os planetas giram em torno do Sol cada um em torno de seu eixo Encontramse em Estratão de Lampsaco que professava uma física materialista certas tentativas para uma física experimental notadamente a propósito do vazio Temos pouquíssimos testemunhos sobre a ética de modera ção das paixões preconizada pelos aristotélicos dessa época e sobre sua atitude com relação à condução da vida139 A academia platônica Por volta da metade do século III aC quando Arquesilau tornase chefe da escola a Academia platônica realiza uma espécie de retorno à escolha de vida socrá tica140 O discurso filosófico volta a ser essencialmente crítico interrogativo e aporético Eis por que Arquesilau nada escreve Seu método de ensino consiste em refutar por sua argumentação a tese que os ouvintes são convida dos a proporlhe141 Qualquer que seja a tese ele se dedi ca a demonstrar que a tese oposta também pode ser provada o que mostra a impossibilidade de fazr afirmações que atinjam a certeza e a verdade absolutas E necessário portanto suspender todo juízo o que significa coibir toda investigação e toda atividade crítica Retorno ao socratismo portanto pois Sócrates dizia na Defesa que o bem supremo a seus olhos era pôr tudo em exame e que uma vida que não se entregasse a essa investigação não mereceria ser vivi 139 Sobre essa questão cf I Hadot Seneca pp 4045 140 AM Ioppolo Opinione e scienza Napoli 1986 pp 4450 5354 citado Ioppolo nas notas seguintes 141 Cícero Dos termos extremos li 1 14 205 A filosofia como modo de vida da a felicidade consistindo assim nessa busca que jamais findava142 Mas também finalmente retorno à definição platônica de filosofia como consciência de nada saber e de ser privado de sabedoria esta pertencente somente aos deuses143 Aos olhos de Arquesilau Platão compreendeu que os homens não podem chegar ao saber absoluto Co mo Sócrates Arquesilau nada ensina mas também como Sócrates perturba e fascina seus ouvintes ensinandoos a libertarse de seus preconceitos convidandoos como Sócrates a questionarse144 Podese não obstante descobrir uma diferença em relação ao socratismo Sócrates e Arquesilau denunciam o falso saber as falsas certezas Mas Sócrates criticava as opi niões e os preconceitos de filósofos que eram para ele os sofistas e de não filósofos Em Arquesilau a crítica se exerce antes de tudo contra o falso saber e as falsas certe zas dos filósofos dogmáticos A filosofia consiste para ele em mostrar as contradições de um discurso filosófico como o dos estoicos e o dos epicuristas que pretende atingir certezas sobre as coisas divinas e humanas A vida moral não tem necessidade de ser fundada em princípios e jus tificada por um discurso filosfico Como Sócrates e Platão Arquesilau admite que existe no homem um desejo fun damental e original do bem e uma tendência natural para agir de maneira boa145 Ao purificarse de toda opinião ao suspender totalmente seu juízo o filósofo tornará a 142 Platão Defesa 23 b 38 a 41 bc 143 Cf C Lévy La nouvelle Académie atelle été antiplatonicienne in Contre Platon l Le platonisme dévoilé pp 144149 e Ioppolo p 49 144 Id pp 162165 145 Id p 139 citando Plutarco Contra Calotes 1122 ce 206 As escolas helenísticas encontrar a espontaneidade de tendências naturais ante riores a toda especulação caso se sigam essas tendências às quais é racional ceder146 a ação moral será justificada Na Antiguidade concordavase em reconhecer a extraor dinária bondade de Arquesilau a delicadeza com a qual praticava a beneficência147 A Academia com os sucessores de Arquesilau Carneada e Fílon de Larissa evoluiu na direção do probabilismo Admitese que se não se pode alcançar a verdade pode se ao menos atingir o verossímil isto é soluções que se pode racionalmente aceitar tanto no domínio científico como sobretudo no da prática moraP48 Essa tendência filosófica teve grande influência sobre a filosofia moderna graças ao imenso sucesso no Renascimento e nos tempos modernos das obras filosóficas de Cícero Põese em obra essa filosofia acadêmica que dá ao indivíduo a liberdade de escolher em cada caso concreto a atitude que ele julgue a melhor conforme as circunstâncias lllesmo que inspira da pelo estoicismo ou pelo epicurismo ou outra filosofia sem imporlhe a priori uma conduta a seguir ditada por princípios anteriormente fixados Cícero149 elogia seguidas vezes a liberdade do acadêmico que não é vinculada a nenhum sistema Nós outros os acadêmicos vivemos o dia a dia isto é julgamos em função do caso particular Eis por que somos livres Desfrutamos da maior liberdade somos mais independentes nosso poder de julgar não conhece entraves não temos de obedecer a 146 Id pp 135146 14 7 Sêneca Sobre os benfeitores II I O l 148 Ioppolo pp 203209 149 Cícero Tusculanas V 11 33 Lúculo 3 78 207 A filosofia como modo de vida nenhuma prescrição a nenhuma ordem e até diria que nenhu ma obrigação se nos impõe de defender uma causa qualquer 4 A filosofia aparece aqui essencialmente como uma ativi dade de escolha e de decisão pela qual o indivíduo assume toda a responsabilidade150 É ele que escolhe o que convém à sua maneira de viver nos diferentes discursos filosóficos que lhe são propostos As opções morais encontram sua justificação em si mesmas independentemente de hipóteses metafísicas construídas pelos discursos filosóficos do mesmo modo que a vontade humana é também independente de causas exteriores e encontra sua causa em si mesma151 Na Academia de Arquesilau e de Cameada da qual Cícero mas também filósofos ainda mais tardios como Plutarco152 e Favorino século li dC são adeptos a distinção entre o discurso filosófico e a filosofia é particularmente nítida A filosofia é antes de tudo uma arte de viver153 Ou como quer Arquesilau os discursos filosóficos teóricos não podem fundar nem justificar essa arte de viver e apenas um discurso crítico pode nela se introduzir ou como pensam Carneada e Cícero os discursos filosóficos teóricos e dogmáticos são 150 Sobre o ecletismo cf I Hadot Du bom et du mauvais usage du terme écletisme dans lhistoiredela philosophie antique in Herméneu tique et ontologie Hommage à Pierre Aubenque Éd R Brague JF Courtine Paris 1990 pp 147162 Sobre o ecletismo na época das Luzes concebido como atitude que consiste em pensar por si mesmo sem obedecer às autoridades cf H Holzhey Der Philosoph für die Welt Eine Chimàre der deutschen Auflklàrung in Esoterik und Exoterik der Philosophie Ed H Holzhey Bâle 1977 p 132 151 Cícero Do destino ll 2425 152 Cf D Babut Du scepticisme au dépassement de la raison Philo sophie et foi religieuse chez Plutarque in Parerga Choix darticles de D Babut Lyon 1994 pp 549581 153 Plutarco Questões de Convivas I 2 613 b 208 As escolas helenísticas apenas meios fragmentários e passageiros utilizados no dia a dia em função de sua maior ou menor eficácia na prática concreta da vida filosófica O ceticismo Com o ceticismo15 a distinção entre filosofia e discurso filosófico chega a seu extremo pois como mostrou com propriedade AJ Voelke155 e como tomaremos a afirmar o discurso filosófico cético finda por sua própria autossu pressão por não dar lugar a um modo de vida e porque se quer além disso não filosófico A filosofia cética isto é o modo de vida a escolha de vida dos céticos é a da paz da tranquilidade da alma Como todos os outros filósofos da época helenística o cético fornece por amor aos homens156 um diagnóstico sobre as causas da infelicidade dos homens e propõe um remédio para o sofrimento uma terapêutica de cura157 Aquele que acredita que uma coisa é bela ou feia por natureza não deixa de ser inquieto Quando vem a faltarlhe o que ele crê ser um bem ele se imagina padecendo os piores tormentos e se lança à perseguição do que crê ser um bem Quando já o possui enfim eis que submerge em múltiplas inquietações que 154 Principal fonte a obra de Sexto Empírico Encontrarseao os prin cipais textos reunidos in CEuvres choisies de Sextus Empiricus trad J Grenier et G Goron Paris 1948 e JP Dumont Les Sceptiques textes choisis Paris 1966 citado Dumont nas notas seguintes 155 AJ Voelke La philosophie comme thérapie de lâme pp 107126 156 Sexto Empírico Hipotiposes 111 280 Dumont p 212 ÁJ Voelke comparou essa filantropia à dos médicos antigos op cit p 109 157 Sexto Empírico Hipotiposes I 2730 Dumont pp 1314 209 A filosofia como modo de vida excitam nele uma busca sem medida e pelo medo de um rever so da fortuna Jaz de tudo para que não lhe seja arrebatado o que acredita ser um bem Enquanto aquele que não se pro nuncia sobre o que é naturalmente bom nem sobre o que e naturalmente mau não foge de nada e não se consome em vãs perseguições Também conhece ele a quietude Em suma aconteceu ao cético o que se diz aconteceu ao pzntor Apeles Um dia ao pintar um cavalo e querendo representar em seu quadro o suor do animal ele deiste furioso joa sobre sua pintura a esponja com a quallzmpava ses zncezs o que teve por efeito deixar um traço de cor 1ue zmztaa o suor do cavalo Os céticos também esperam atzngzr a quzetu de divididos pelo julgamento da contradição entre o que nos aparece e as concepções do espírito e caso ão alcancem zsso suspendem seu juízo Por felicidade a quzetude acompanha a suspensão do juízo como a sombra o corpo Do mesmo modo que Apeles consegue realizar a perfei ção da arte renunciando à arte o cético consegue realizar a obra de arte filosófica isto é a paz da alma renunnando à filosofia entendida como discurso filosófico Com efeito é necessário um discurso filosófico para eliminar o discurso filosófico Conhecemos o discurso cético graças a Sexto Empírico médico que escrevia no fim do século li dC e nos deu preciosas indicações sobre a história do movimento cético Os céticos consideravam Pirro o modelo do modo de vida cético Mas parece que a argumentação técnica do discurso filosófico cético só foi formulada mais tarde talvez no século I aC Enesídemo 158 enumerava dez tipos de argumento que justificam a sus pensão de todo juízo Eles se fundam na diversidade das 158 Hipotiposes I 3639 Dumont p 49 D L IX 7988 210 As escolas helenísticas contradições das percepções dos sentidos e das crenças diversidade de costume e de práticas religiosas diversidade de reações diante de fenômenos raros ou ao contrário frequentes diversidade de percepções segundo os órgãos de percepção nos animais e nos homens ou conforme as circunstâncias e as disposições interiores dos indivíduos ou ainda conforme se considere as coisas em grande ou pequena escala de perto ou de longe sob esse ou aquele ângulo mistura e relação de todas as coisas com todas as coisas donde a impossibilidade de percebêlas em estado puro ilusões dos sentidos Outro cético Agripa159 posterior a Enesídemo propunha cinco outros argumentos contra os lógicos dogmáticos os filósofos se contradizem para provar alguma coisa é necessário ir ao infinito ou mesmo fazer um círculo vicioso ou postular sem fundamento princípios indemonstráveis enfim tudo é relativo todas as coisas se supõem mutuamente e é impossível tanto conhecêlas em seu counto como em seus detalhes O discurso filosófico conduz à epokhé isto é à suspensão da adesão aos discursos filosóficos dogmáticos e chega até a compreender o próprio discurso cético que como um pur gativo evacuase em seus humores dos quais provocou a evacuação160 AJ Voelke comparou com razão essa atitude com a de Wittgenstein rejeitando como uma escada que se tomou inútil no fim do Tractatus as proposições do Tractatus e opondo a filosofia como patologia à filosofia como cura161 O que resta então depois da eliminação do discurso filosó fico pelo discurso filosófico Um modo de vida que será 159 D L IX 88 160 Sexto Empírico Hipotiposes I 206 II 188 AJ Voelke op cit pp 123 ss 161 Id ibid p 116 211 A filosofia como modo de vida então um modo de vida não filosófico É a vida162 ela mesma isto é a vida de todos os dias a vida que levam todos os homns é essa vida que será a regra de vida do cético utilizar tudo simplesmente como os leigos seus recursos naturais seus sentidos e suas inteligências conformarse aos costums às leis às instituições de seu país seguir suas disposições e tendências naturais comer uado s tm fome beber quando se tem sede Retorno 1genuo a sim plicidade Talvez mas de um filósofo ue e udo menos ingênuo Pois está persuadido de que e 1mpossiVel saber se essa coisa ou esse acontecimento é melhor que outra cmsa ou outro acontecimento graças à suspensão de todo juízo de valor sobre as coisas suspensão que diminuirá caso seja levado a sofrêlas suas dores e seus sofrimentos evino com isso acrescentar à dor ou ao revés da fortuna a 1de1a torturante que se trata de um mal Ele se limitará em todas as coisas a descrever o que experimenta o que lhe apare ce sem nada acrescentar ao que são ou ao que valem as coisas contentase em descrever a representação sensível que é a sua e em enunciar o estado de sua sensibilidade sem a elas acrescentar seu parecer163 Como os epicuristas ou os estoicos o cético utilizará então para renovar a todo C ul d t 164 momento sua escolha de Vldaê curtas orm as eVI en es por exemplo não mais isto dÕ que aquilo talvez tudo é indeterminado tudo escapa à compreensão a todo argumento opõe um argumento igual eu sspendo meu juízo O modo de vida cético exige exerocws do pesa mento e da vontade Podese dizer que é a escolha de VIda filosófica de um modo de vida não filosófico 162 Sexto Empírico Contra os moralistas 141166 Dumont pp 206212 163 Hipotiposes I 15 e 197 Dumont pp 12 e 43 164 Hipotiposes I 188205 Dumont pp 4148 212 Capítulo 8 fis escolas filosóficas na era imperial Características gerais As novas escolas Durante o período helenístico e no início da conquista romana as instituições escolares filosóficas estiveram como vimos concentradas em Atenas Ora todas salvo a dos epicuristas desapareceram no fim da República romana ou no início do Império em consequência de um con junto muito complexo de circunstâncias históricas entre as quais a destruição de Atenas por Silas 87 aC talvez seja a mais importante A partir do século I aC abrem se escolas filosóficas em umerosas cidades do Império romano notadamente na Asia e sobretudo em Alexandria e Roma 1 Isso resulta em uma transformação profunda nos métodos de ensino de filosofia Há sempre quatro grandes escolas tomando desta vez o termo escola no sentido de tendência doutrinai o platonismo o aristotelismo o l Cf JP Lynch Aristotles School pp 154207 Glucker Antiochus and the Late Academy pp 373379 213 A filosofia como modo de vida estmosmo e o epicurismo acompanhadas de dois fen menos mais complexos o ceticismo e o cinismo A partir dos séculos III e IV estoicismo epicurismo e ceticismo vão então pouco a pouco quase desaparecer totalmente para dar lugar ao que se denomina o neoplatonismo que é em certo sentido uma fusão do aristotelismo e do platonismo Essa tendência começara a esboçarse desde o início do século I na Academia platônica com Antíoco de Ascalon2 mas só foi definitivamente admitida a partir do século III dC com Porfírio e em seguida com o neo platonismo pósporfiriand O ensino de doutrinas filosóficas não é mais ministrado nas instituições escolares que mantiveram uma relação de continuidade com seu fundador Em cada cidade impor tante há instituições nas quais se pode aprender o ue é o platonismo o aristotelismo o estoicismo ou o epicu rismo Assistese ao término de um processo que tivera o início de seu esboço no fim da época helenística a funcio nalização do ensino de filosofia4 O movimento começou na Atenas do século li aC quando a instituição oficial da efebia ateniense pôs em seu programa de ensino aulas de filosofia escolhidas provavelmente por representantes de uma ou de outra das quatFograndes correntes 5 Por essa participação em um serviço público a cidade dava possi velmente uma remuneração a seus filósofos Seja como for um ensino filosófico municipal remunerado pelas cidades 2 Cícero Novos livros acadêmicos 4 1512 43 3 Cf I Hadot Le probleme du néoplatonisme alexandrin Hiérocles et Sim plicius Paris 1978 pp 7376 4 Cf id Arts libéraux et philosophie dans la pensee anttque Pans 1984 pp 215261 5 Id ibid pp 217218 214 As escolas filosóficas na era imperial tende cada vez mais a generalizarse na era imperial Esse movimento encontra seu apogeu e sua consagração quando o imperador Marco Aurélio funda em 176 aC quatro cátedras imperiais remuneradas pelo Tesouro imperial nas quais serão ensinadas as quatro doutrinas tradicionais pla tonismo aristotelismo epicurismo e estoicismo As cátedras criadas por Marco Aurélio não tiveram nenhuma relação de continuidade com as antigas instituições atenienses mas são por parte do imperador uma tentativa de fazer com que Atenas seja novamente um centro de cultura filosófica E de fato os estudantes afluíram novamente para a antiga cidade Há certa probabilidade de que a cátedra aristotélica de Atenas tenha tido no fim do século li um titular célebre o grande comentador de Aristóteles Alexandre de Afrodísia6 Ao lado desses funcionários municipais ou imperiais houve sempre professores particulares de fUosofia que abriam uma escola por vezes sem sucessor nessa ou na quela cidade do Império por exemplo Amônia Sacas em Alexandria Plotino em Roma Jâmblico na Síria É necessá rio ter claro que a escola platônica de Atenas a de Plutarco de Atenas de Siriano e de Proclo do século IV ao VI é uma instituição privada sustentada pelos subsídios de ricos pagãos que nada teve a ver com a cátedra imperial de platonismo fundada por Marco Aurélio7 Essa escola platônica de Atenas chega a ressuscitar artificialmente a 6 R Goulet e M Aouad Alexandros dAphrodisias in Dictionnaire des philosophes t I pp 125126 P Thillet Introduction a Alexandre de Mrodísia Traité du Destin Paris 1984 pp XLIXL 7 JP Lynch Aristotles School pp 177189 I Hadot Le probleme du neoplatonzsme pp 910 215 A filosofia como modo de vida organização da antiga Academia e a restabelecer proprie dades análogas às da escola de Platão que os escolarcas transmitem uns aos outros Eles se nomeiam como outro ra os diádocos os sucessores e os membros da escola esforçamse para viver segundo o modo de vida pitagó rico que era pensavam eles o dos antigos acadêmicos Tudo isso é uma recriação não a continuação de uma tradição que era viva e ininterrupta O fenômeno da dispersão de escolas filosóficas teve consequências para o próprio ensino Podese falar sem dúvida em uma espécie de democratização com as vanta gens e os riscos que essa situação pode comportar Onde quer que se encontre no Império não é mais necessário viajar muito longe doravante para iniciarse nessa ou na quela filosofia Mas essas múltiplas escolas já não têm em sua maior parte uma relação viva de continuidade com as grandes ancestrais suas bibliotecas já não contêm os textos das aulas e das discussões dos diferentes chefes de escolas que eram comunicados apenas aos adeptos e já não há uma cadeia ininterrupta de chefes de escola É necessário agora voltar às fontes O ensino vai consistir em explicar os textos das autoridades por exemplo os diálogos de Platão os tratados de Aristóteles as obras de Crisipo e de seus sucessores Enquanto na época precedente a atividade escolar consistia antes de tudo em formar os alunos nos métodos de pensamento e de argumentação e os membros importantes da escola frequentemente tinham opiniões muito diferentes nessa época o ensino de uma ortodoxia tornase essencial A liberdade de discussão que sempre existira é muito mais restrita As razões dessa transformação são múltiplas 216 As escolas filosóficas na era imperial Em primeiro lugar os acadêmicos como Arquesilau ou Cameada e os céticos consagraram a maior parte de seu ensi no a criticar as ideias mas também frequentemente os textos das escolas dogmáticas A discussão de texto tornara se uma parte do ensino Além disso com o avanço dos séculos os textos dos fundadores das escolas tornaramse mais difíceis de ser compreendidos pelos aprendizes de filósofos e sobretudo tornaremos a repetir representavase agora a verdade como fidelidade à tradição recebida das autoridades Nessa atmosfera escolar e professora será muito fre quente a tendência em satisfazerse com o conhecimento dos dogmas das quatro grandes escolas sem se preocupar em adquirir uma verdadeira formação pessoal Os aprendizes de filósofos terão muitas vezes a tendência de interessar se mais pelo aperfeiçoamento de sua cultura geral do que pela escolha de vida existencial que a filosofia supõe Não obstante muitos testemunhos dão a entender que a filosofia continua nessa época a ser concebida como um esforço de progresso espiritual como um meio de trans formação interior Os méwdos de ensino a era do comentário Possuímos numerosos testemunhos que nos revelam essa mudança radical na maneira de ensinar que deve ter principiado a esboçarse no fim do século II aC sabemos por exemplo que Crasso um político romano teria lido em Atenas em 110 aC o Górgias de Platão sob a direção do filósofo acadêmico Carmadas8 É necessário contudo 8 Cícero Do orador I 11 47 217 A filosofia como modo de vida especificar que o gênero literário do comentário filosófico era muito antigo O platônico Crantor teria composto por volta de 300 aC um comentário sobre o Timeu de Platão9 A mudança radical que se opera por volta do sé culo I aC consiste no fato de que doravante é o próprio ensino de filosofia que no essencial toma a forma de um comentário de texto Temos sobre isso um precioso testemunho proveniente de um escritor latino10 do século li dC Ele nos narra que o platônico Tauro que ensinava em Atenas nessa época evocava com nostalgia a disciplina que reinava na comunidade pitagórica primitiva opondoa à atitude dos discípulos modernos que dizia ele queriam decidir eles mesmos a ordem na qual aprenderiam filosofia Um arde para começar pelo Banquete de Platão por causa da orgia de Alcibíades outro pelo F edro por causa do discurso de Lísias Há mesmo quem queira ler Platão não para tornar sua vida melhor mas para apurar sua língua e seu estilo não para tornarse mais temperante mas para adquirir mais charme Portanto ensinar filosofia é para os platônicos ler Platão e acrescentemos para osaristotélicos ler Aristóteles para os estoicos ler Crisipo para os epicuristas ler Epicuro Percebemos igualmente nesse relato que na escola de Tauro quando se lê Platão se o lê em certa ordem que corresponde ao programa de ensino isto é às etapas do progresso espiritual Com efeito graças a essa leitura nos 9 Cf Proclo Comentário sobre o Timeu t I p 76 1 Diehl trad Festu giere t I p 1ll 10 Aulo Célio Noites Áticas I 9 8 218 As escolas filosóficas na era imperial diz Tauro tratase de tornarse melhores e mais temperan tes Essa perspectiva não parece contudo entusiasmar particularmente os ouvintes Muitos outros testemunhos nos confirmam o fato de que o curso de filosofia é doravante consagrado antes de tudo à leitura e à exegese dos textos Por exemplo os alunos de Epíteto o estoico comentam Crisipo11 No curso do neoplatônico Plotino a aula tinha início pela leitura dos comentadores de Aristóteles e de Platão e depois Plotino propunha sua exegese do texto comentado12 No período precedente o ensino situavase quase totalmente na esfera da oralidade mestre e discípulos dialogavam o filósofo falava os discípulos falavam e exercitavamse para falar Podese dizer que de alguma ma neira aprendiase a viver aprendendose a falar Doravante aprendese filosofia pela leitura de textos mas não se trata de uma leitura solitária os cursos de filosofia consistem em exercícios orais de explicação de textos escritos Mas fato muito característico em sua quase totalidade as obras filosóficas sobretudo a partir do século III dC são o re gistro escrito seja pelo mestre seja por um discípulo de um comentário oral de texto ou ao menos como muitos tratados de Plotino dissertações sobre questões levantadas pelo texto de Platão Já não se discutem os próprios problemas já não se fala diretamente das coisas mas do que Platão Aristóteles 11 Epíteto Manual 49 alusões aos comentários de textos durante o curso Conversações I 10 8 I 26 13 12 Porfírio Vida de Plotino 14 lO in Porfírio Vie de Plotin T II trad et comm par L Brisson Paris 1992 p 155 e o estudo de M0 Goulet Cazé t I pp 262264 219 A filosofia como modo de vida ou Crisipo disseram dos problemas e das coisas A questão O mundo é eterno substituíse pela questão exegética Podese admitir que Platão considera o mundo eterno se ele admite um artífice do mundo no Ti meu Tratandose essa questão posta sob forma exegética discutirseá final mente a questão básica fazendo que os textos platônicos aristotélicos ou outros digam o que se quer que digam O essencial é doravante sempre tomar seu ponto de partida em um texto MD Chenu13 definiu excelentemente a escolástica da Idade Média como uma forma racional de pensamento que se elabora consciente e voluntariamente a partir de um texto tido como autoritativo Caso se aceite essa definição podese dizer que o discurso filosófico a partir do século I aC começa a tornarse uma escolástica da qual a escolástica da Idade Média será a herdeira Vi mos que sob certo ponto de vista essa época assiste ao nascimento da era dos professores É também a era dos manuais e dos resumos destinados seja a servir de base a uma exposição escolar oral seja a iniciar os estudantes e talvez o grande público nas doutrinas de um filósofo Possuímos por exemplo um Platão e sua doutrina obra do célebre Iet latino Apuleío uma Lição sobre as doutrinas de Platão composta por Alcínoo um Resumo dos dogmas das diversas escolas de Ária Dídimo Em certo sentido podese dizer que o discurso filosó fico dessa época sobretudo sob a forma da qual se reves te no neoplatonísmo considera finalmente a verdade como 13 MD Chenu Introduction à létude de saint Thomas dAquin Paris Vrin 1954 p 55 220 As escolas filosóficas na era imperial revelada De uma parte como já pensavam os estoicos14 existem em todos os homens noções inatas postas neles pela Natureza ou pela Razão universal essas centelhas do lógos permitem um primeiro conhecimento das verdades fundamentais que o discurso filosófico se esforçará para desenvolver e elevar a um nível científico Mas a essa reve lação natural se acresce aquilo em que os gregos sempre acreditaram as revelações feitas pelos deuses a certos ho mens inspirados de preferência na origem de diferentes povos operantes em legisladores em poetas e finalmente em filósofos como Pitágoras Hesíodo relata em sua Teogo nia o que lhe disseram as Musas Nas origens segundo o Timeu de Platão15 Palas Atena revelou aos primeiros ate nienses as ciências divinas a adivinhação a medicina Procurase sempre remontar às origens da tradição de Platão a Pitágoras de Pitágoras a Orfeu Ao lado dessas revelações devemse ter em conta também os oráculos dos deuses proclamados de diferentes maneiras em diferen tes santuários notadamente os de Delfos sabedoria antiga mas também os oráculos mais recentes como os de Dídimo ou os de Claros16 E buscamse também as revelações feitas pelos bárbaros pelos judeus pelos egípcios pelos assírios ou pelos habitantes da Índia Os Oráculos caldaicos parecem ter sido escritos e apresentados como uma revelação no século li dC Os neoplatônicos consideravamnos uma Escritura sagrada Quanto mais uma doutrina filosófica ou religiosa é antiga mais próxima está do estado primitivo 14 D L VII 5354 15 Timeu 24 c 16 Cf L Robert Trois oracles de la Théosophie et un prophete dApollon in Académie des inscriptions et belleslettres comptes rendus de lannée 1968 pp 568599 Un oracle gravé à Oinoanda ibid année 1971 pp 597619 221 A filosofia como modo de vida da humanidade no qual a Razão ainda se fazia presente em toda a sua pureza e é mais verdadeira e venerável A tradição histórica é a norma da verdade verdade e tradi ção razão e autoridade se identificam Um polemista anticristão Celso intitulará sua obra O Verdadeiro Lógos querendo dizer com isso Norma antiga Verdadeira Tradição A investigação da verdade pode consistir apenas na exegese de um dado preexistente e revelado A esco lástica dessa época há de esforçarse para conciliar todas essas autoridades para extrair disso uma espécie de siste ma geral de filosofia17 A escolha de vida Ensinase a filosofia comentando textos e especifiquemos comentandoos de uma maneira ao mesmo tempo muito técnica e muito alegórica mas e aqui tornamos a en contrar a concepção tradicional de filosofia finalmente como dizia o filósofo Tauro para tomarnos melhores e mais temperantes Ensinar filosofia mesmo lendo e co mentando os textos é simultaneamente ensinar um modo de vida e praticálo Considerado formalmente em si mes mo o exercício do comentário já é assim como o era o exercício da dialética um exercício formador na medida em que é um exercício da razão um convite à modéstia um elemento da vida contemplativa Mas além disso o conteúdo dos textos comentados quer se trate de textos de Platão Aristóteles Crisipo ou Epicuro convida a uma transformação da vida O estoico Epiteto18 repreenderá seus 17 Cf P Hadot Thélogie exégese révélation écriture dans la philo sophie grecque in Les Régles de linterprétation Éd par M Tardieu Paris 1987 pp 1334 18 Conversações III 2123 Manual 49 222 As escolas filosóficas na era impe1ial alunos por explicarem os textos apenas para aparecer di zendolhes Antes de exaltarme quando alguém me pede que comente Crisipo eu me ruborizo se não posso mostrar uma conduta que se assemelhe a seus ensinamentos e a eles se harmonize Segundo Plutarco Platão e Aristóteles faziam culminar a filosofia numa epóptica19 isto é como nos mistérios na revelação suprema da realidade transcendente Parece que desde o início do século II dC e vários testemunhos nolo provam20 a filosofia foi concebida como um itinerá rio espiritual ascendente que corresponde a uma hierarquia das partes da filosofia A ética assegura a purificação inicial da alma a física revela que o mundo tem uma causa trans cendente e induz assim a que se estudem as realidades incorpóreas a metafísica ou teologia denominada também epóptica pois ela é como nos mistérios o termo da iniciação leva finalmente à contemplação de Deus Na perspectiva do exercício do comentárioserá necessário para percorrer esse itinerário espiritual ler em certa ordem os textos a comentar Para quem é partidário de Platão devese principiar pelos diálogos morais sobretudo por Alcibíades que trata do conhecimento de si e pelo Fédon que convida a sepa rarse do corpo continuar pelos diálogos físicos como o Timeu para aprender a separarse do mundo sensível e 19 De epoptéia contemplação dos misté1ios e epoptikós aquilo que concerne ao mais elevado grau de iniciação isto é a contemplação optei por transliterar a palavra grega N do T 20 Plutarco Ísis e Osíris 382 d Cf P Hadot La division des parties de la philosophie dans lAntiquité in Museum Helveticum 36 218221 1979 bibliografia 223 A filosofia como modo de vida elevarse enfim aos diálogos teológicos como o Parmênides ou o Filebo para descobrir o Uno e o Bem Eis por que quando Porfírio aluno de Plotino edita os tratados de seu mestre até então só acessíveis aos discípulos confirma dos ele não os apresenta segundo sua ordem cronológica de aparição mas segundo as etapas do progresso espiri tual a primeira Eneada isto é os nove primeiros tratados reúne os escritos de caráter ético a segunda e terceira Eneadas referemse ao mundo sensível e ao que nele cor responde à parte física a quarta a quinta e a sexta Eneadas têm por objeto as divinas a alma o Intelecto e o Uno e correspondem à epóptica As questões de exegese pla tônica tratadas por Plotino nas diferentes Eneadas corres pondem muito bem à ordem de leitura dos diálogos de Platão proposta nas escolas platônicas Essa noção de pro gresso espiritual significa que os discípulos só podem empreender o estudo de uma obra quando chegam ao nível intelectual e espiritual que lhes permita extrair pro veito dela Certas obras são reservadas aos iniciantes outras aos que progridem Não serão expostas em uma obra destinada aos iniciantes questões complexas reservadas aos que progridem21 Por outro lado cada comentário é considerado um exercício espiritual não só porque a investigação do senti do de um texto exige qualidades morais de modéstia e de amor pela verdade mas também porque a leitura de cada obra filosófica deve produzir uma transformação no ouvin te ou no leitor do comentário como atestam por exemplo 21 L Hadot Le probleme du néoplatonisme pp 160164 da mesma autora Introduction cap III a Simplício Commentaire sur le Manuel dÉpictete Leyde 1995 224 As escolas filosóficas na era imperial as palavras finais que Simplício exegeta neoplatônico de Aristóteles e de Epíteto pôs no fim de alguns de seus comentários e que sempre enunciam o benefício espiritual que se pode extrair da exegese deste ou da quele escrito por exemplo a grandeza de alma lendo o tratado Do céu de Aristóteles ou a retificação da razão lendo o Manual de Epíteto O antigo costume que fazia dialogar mestre e alunos no decorrer da aula presente tanto na escola platônica como na aristotélica parece ter sido mantido nas escolas filosóficas do fim da Antiguidade à margem do exercício principal que era o comentário Por exemplo o texto que denominamos Conversações de Epíteto é composto justa mente das notas tomadas por seu aluno Arriano durante as discussões que se seguiam à aula propriamente dita isto é que aconteciam depois da explicação do texto Aulo Gélio relatanos por exemplo que seu mestre o platôni co Tauro permitia a seus ouvintes depois da aula propor lhe as questões que quisessem O próprio Aulo Gélio tinha perguntado a Tauro se o sábio se encoleriza ao que o filósofo lhe teria respondido longamente22 Plotino tam bém nós o sabemos por seu discípulo Porfírio encoraja va seus ouvintes a propor questões o que ocasionava muita tagarelice acrescenta Porfírio23 Ora vemos pelas Conversações de Epiteto e entrevemos nos escritos de Plotino que as respostas do mestre eram na maior parte do tempo destinadas a incitar o discípulo a mudar de vida ou a progredir espiritualmente 22 Aulo Gélio Noites Áticas I 26 111 Para Epiteto cf J Souilhé Introduction a Epiteto Conversações T I Paris 1948 p XXIX 23 Porfírio Vida de Plotino 3 35 225 A filosofia como modo de vida De maneira geral o professor de filosofia continua como nos séculos precedentes não somente a animar o grupo de discípulos reunidos a seu redor que faziam com ele em certas circunstâncias refeições comuns24 e muitas vezes viviam perto do mestre mas também a cuidar de cada um deles A comunidade de vida é um dos elementos mais importantes da formação O professor não se contenta em ensinar mas desempenha o papel de um verdadeiro diretor de consciência que cuida dos problemas espirituais de seus alunos Nesse contexto é necessário assinalar o renascimento nessa época da tradição pitagórica É verdade que desde a época de Pitágoras sempre houve comunidades que se vinculavam a ele que se distinguiam do comum dos mortais por certo gênero de vida os adeptos não comiam carne e praticavam uma vida asséptica na expectativa de ter uma sorte melhor na vida futura25 Seu costume sua abstinência eram um dos alvos favoritos dos autores cômicos26 Eles são vegetarianos nada bebem além de água Um eterno manto no qual fervílha a vermína E o terror do banho nínguém em nossa época Poderia suportar esse regíme 0 gênero de vida dos pitagóricos parece ter consisti do em praticar a akysmata conjunto de máximas em que se misturavam interditos alimentares tabus conselhos 24 Aulo Gélio Noites Áticas XVII 8 e VII 13 25 W Burkert Lore and Science in Ancient Pythagoreanism Harvard University Press 1972 p 199 26 Aristofonte in O Pitagorista citado in Les Présocratiques Éd JP Dumont p 612 226 As escolas filosóficas na era imperial morais definições teóricas e prescrições rituais27 Próximo da era cristã assistese a uma renovação do pitagorismo análoga à das outras escolas Uma literatura pitagórica apócrifa se desenvolve nessa época são compostos os fa mosos Versos de ourrr8 Nas numerosas Vídas de Pítágoras notadamente as de Porfírio29 e de Jâmblico descrevese a vida filosófica idílica que se levava na escola do mestre e a maneira pela qual era organizada a comunidade pita górica primitiva a escolha de candidatos o noviciado que consistia em um silêncio de vários anos a comunidade de bens entre os membros do grupo sua ascese mas também sua vida contemplativa30 Nas comunidades pita góricas recriamse então as especulações sobre os núme ros que se desenvolvem e o platônicos têm a tendência a considerar em virtude do princípio de continuidade da tradição de verdade que o platonismo é o prolongamen to do pitagorismo Plotino e Porfírio A escolha de vida Acabamos de falar do renascimento do pitagorismo Reencontramos esse fenômeno evocando o tratado inti 27 W Burkert Lore and Science pp 150175 28 P C Van der Horst Les Vers dor pythagoriciens edição comentada Leyde 1932 M Meunier Les Vers dor Hiérocles Commentaire sur les Vers dor Paris 1979 29 Porfírio Vie de Pythagore Éd et trad É des Places Paris 1982 Jãmbico Pythagoras tradução de M von Albrecht Darmstadt 1985 30 Tauro in Aulo Gélio Noites Áticas I 9 cf AJ Festugiere Études de philosophie grecque Paris 1971 pp 437462 Sur le De vita pythagorica de Jamblique 227 A filosofia como modo de vida tulado Da abstinência que Porfírio o discípulo de Plotino escrevera para reconduzir Castrício outro membro da escola à prática do vegetarismo Porfírio31 repreende Castrício por ser infiel às leis ancestrais da filosofia isto é à filosofia de Pitágoras e de Empédocles do qual ele fora adepto Porfírio quer aqui simplesmente designar o platonismo concebido como idêntico à filosofia revelada desde as origens da humanidade Mas precisamente essa filosofia apresentase como um modo de vida que engloba todos os aspectos da existência Porfírio tem perfeitamente consciência do fato de que esse modo de vida distinguese radicalmente daquele do restante dos homens Ele não se dirige afirma32 aos homens que exercem ofícios manuais nem aos atletas nem aos soldados nem aos mari nheiros nem aos oradores nem aos políticos mas a quem refletiu sobre essas questões Quem sou eu De onde venho Para onde vou e a quem se fixou no alimento e em outros domínios em princípios diferentes dos que regem os outros gêneros de vida O modo de vida que Porfírio33 recomenda e que é o da escola de Plotino consiste como era o caso na escola de Aristóteles em viver segundo o espírito isto é segun do a parte mais elevada de nós mesmos que é o intelecto Platonismo e aristotelismo se fundem aqui Ao mesmo tempo a perspectiva de uma ação política dos filósofos que existia na Academia e também no pitagorismo pri mitivo desaparece ou ao menos passa a segundo plano A vida segundo o espírito não se reduz a uma atividade puramente racional e discursiva 31 Porfírio Da abstinência I 2 3 e 3 3 32 ld ibid I 27 1 33 ld ibid I 29 16 228 As escolas filosóficas na era imperial A theoría a contemplação que nos conduz à felicidade não consiste em um acúmulo de raciocínios nem em uma massa de conhecimentos aprendidos como se poderia crer Ela não se edifica com isso pedaço por pedaço A quantidade de raciocínios não a Jaz progredir E Porfírio retoma o tema aristotélico nao basta adquirir conhecimentos mas é necessário que esses conhecimentos se tornem natureza em nós que eles cresçam conosco34 Só há contemplação diz Porfírio quando nossos conhecimentos se tornam em nós vida e natureza Ele reencontra por outro lado essa con cepção no Timeu35 que afirmava que quem contempla deve se tornar seinelhante ao que contempla e fazer assim um retorno a seu estado anterior É por meio des sa assimilação dizia Platão que se atinge o objetivo da vida A contemplação não é conhecimento abstrato mas transformação de sP6 Caso a felicidade srga obtida escrevendo discursos seria possível atingir esse fim sem ter o cuidado de escolher seu alimento ou realizar certos atos Mas porque é necessário mudar nossa vida atual para outra vida purificandonos simultaneamente pelos discursos e pelas ações examinemos quais discursos e quais ações predispõem para essa outra vida Essa transformação de si é por outro lado como o queria Aristóteles37 um retorno ao verdadeiro eu que não é senão o espírito em nós o divino em nós38 34 Cf acima p 136 nota 38 35 Timeu 90 a 36 Porfírio Da abstinência I 29 6 37 Cf acima p 123 38 Da abstinência I 29 4 229 A filosofia como modo de vida O retorno não se Jaz a outra coisa senão a nosso verdadeiro eu e a assimilação literalmente a conaturalidade symphysis nos assimila precisamente a nosso verdadeiro eu Nosso ver dadeiro eu é o espírito e o fim que buscamos é viver SeUndo o espírito Encontramos aqui a passagem de um eu inferior ao eu verdadeiro e transcendente que tornamos a verificar ao longo de toda a história da filosofia antiga Porfírio descreverá o modo de vida próprio ao filóso fo separarse da sensação da imaginação das paixões dar ao corpo apenas o estrito necessário afastarse da agitação da multidão como o fizeram os pitagóricos e os filósofos que Platão39 descreve no Teeteto A vida contemplativa implica uma vida ascética Mas essa vida ascética tem tam bém valor em si mesma ela é enfim boa40 para a saúde como testemunha a história da conversão do discípulo de Plotino Rogaciano membro do Senado romano que renuncia a suas funções a sua casa a seus servidores alimentase apenas a cada dois dias e curase assim da doença da gota41 Essa ascese será destinada sobretudo a impedir que a parte inferior da alma atraia para si a atenção que deve ser orientada para o espírito Pois é pela totalidade de nós mesmos que exercemos nossa atenção42 O modo de vida ascético destinase a permitir uma disciplina da atenção 39 Cf acima pp 107108 40 Plotino Eneadas li 9 33 14 11 41 Id Vida de Platina 7 31 42 Da abstinência I 41 5 230 As escolas filosóficas na era imperial tão estrita em Plotino quanto entre os estoicos Como nota Porfírio43 em sua Vida de Platina Sua atenção a si mesmo jamais relaxa senão durante o sono o que o impede ademais até mesmo de alimentarse pobre mente muitas vezes ele não comia sequer pão e a contínua orientação de seu pensamento para o Espírito Isso não impede que Plotino se ocupe do outro Ele é tutor de numerosas crianças que os membros da aristocracia romana lhe confiam até sua morte e ocupase também de sua educação e de seus bens Parece aqui que a vida contemplativa não abole o cuida do do outro e que esse cuidado pode conciliarse também com a vida segundo o espírito Tudo estando à disposição de todos4 ele jamais relaxa no estado de vigília sua atenção para o Intelecto ele está totalmente presente simultaneamente a si mesmo e aos outros A si mesmo significa ao seu verdadeiro eu isto é ao Intelecto No tratado Da abstinência Porfírio afirmava que o fim procurado pelos filósofos é viver segundo o espírito segundo o intelecto que se pode escrever tanto com minúscula como com maiúscula porque se trata a um só tempo de nossa inteligência e da Inteligência divina da qual nossa inteligência participa Mas em sua Vida de Platina lemos45 que o fim e o início são para Platina ser unido ao Deus supremo e aproximarse dele 43 Vida de Platina 8 20 44 Ibid 9 18 e 8 19 45 Ibid 23 718 231 A filosofia como modo de vida O Deus supremo é superior ao Intelecto porque como afirma Porfírio está estabelecido acima do Intelecto e do inteligível Poderseia então pensar que há dois tipos de vida contemplativa e dois objetivos diferentes para a vida Mas o discurso filosófico plotiniano nos explicará essa diferença de nível no mundo divino e nos fará com preender que os dois objetivos são no fundo idênticos Porfírio especifica que Plotino atingiu esse objetivo da união com o Deus supremo quatro vezes durante os seis anos nos os quais frequentou a escola de Plotino e que ele mesmo o alcançou uma vez em toda sua vida quando tinha 68 anos Ele fala de experiências muito raras que se podem qualificar de místicas ou unitivas Esses ins tantes privilegiados e excepcionais destacamse de alguma maneira contra o fundo de uma atividade continuamente voltada para o Intelecto Se essas experiências são raras nem por isso são menos fundamentais para o modo de vida plotiniano que nos aparece agora como o limite do surgimento imprevisível desses momentos privilegiados que conferem todo seu sentido à vida Plotino faz a descrição dessas experiências em vários lugares de seus escritos Daremos apenas um exemplo46 E quando a alma temaclrance de encontráLo quando Ele vem a ela melhor ainda quando Ele lhe aparece presente quando ela se desvia de toda outra presença estando prepa rada para ser a mais bela possível e tendo chegado assim à semelhança com Ele pois essa preparação essa ordenação são bem conhecidas por quem aspratica O vê aparecer subita mente em si pois nada mais há entre eles e já não são dois 46 Plotino Eneadas VI 7 38 34 937 vejamse as notas e o comen tário in P Hadot Plotino Traité 38 Paris 1988 232 As escolas filosóficas na era imperial mas os dois são um com efeito tu não podes mais distingui los a partir do momento em que Ele está aí a imagem disso são os amantes e os amados neste mundo que querem muito fundirse um no outro quando a alma não tem mais consciên cia de seu corpo nem que se encontra neste corpo e ela não diz mais que é diferente Dele homem ou animal ou ser ou tudo pois olhar as coisas é de alguma maneira Jazer diferenças e por outro lado ela não tem prazer em voltarse para elas nem em desejálas mas depois de têLo buscado quando Ele está presente vai a Seu encontro e é para Ele que ela olha em vez de para si mesma e ela não tem prazer em ver quem é ela que olha porquanto certamente ela não trocaria nenhuma de todas as outras coisas por Ele mesmo se lhe fosse dado o céu inteiro pois sabe que nada há de mais precioso e melhor que Ele pois ela não pode subir mais alto e todas as outras coisas mesmo que estejam no alto são para ela descenso de modo que nesse momento lhe foi dado julgar e conhecer perfeitamente que é Ele que ela desEjava e afirmar que nada há que srja preferível a Ele pois lá engano nenhum épossível encontrar seá onde mais verdadeiramente o verdadeiro E o que ela diz portanto É Ele é mais tarde que o pronuncia agora é eu silêncio que o diz e plena de alegria não se engana precisa mente porque plena de alegria e nada diz não por causa do prazer que lhe acomete o corpo mas porque ela se transformou naquilo que era outrora quando era feliz Se acontecesse que todas as coisas ao seu redor fossem destruídas seria isso mesmo o que ela haveria de querer contanto somente que esti vesse com Ele tão grande é a alegria que ela alcançou Há aqui uma tonalidade e uma atmosfera relativamente novas na história da filosofia antiga Aqui o discurso filo sófico serve apenas para mostrar sem exprimir o que o ul trapassa isto é uma experiência na qual todo discurso se 233 A filosofia como modo de vida anula na qual também não há mais consciência do eu in dividual mas somente um sentimento de alegria e presença Essa experiência inscrevese contudo em uma tradição que remonta pelo menos ao Banquete de Platão47 em que se fala da visão súbita de algo de maravilhosamente belo em sua natureza que é justamente o Belo em si visão que Platão assimila à que aparece aos olhos do iniciado nos mistérios de Elêusis E por outro lado se a experiência mística é denominada mística é por causa dos mistérios isto é das visões secretas de Elêusis que se apresentam também como uma visão inesperada Essa visão diz Platão é o ponto da vida no qual a vida vale a pena ser vivida e se o amor pela beleza humana pode nos levar para além de nós mesmos qual não será a potência do amor provocado por essa Beleza48 Encontramse traços dessa tradição em Fílon de Alexandria49 por exemplo neste texto em que o caráter passageiro da experiência é fortemente marcado Quando o intelecto do homem é possuído pelo amor divino quando ele despende todos os seus esforços para chegar ao santuário mais secreto quando ele age com todo seu empenho e com todo seu zelo atraído por Deus esquecese de tudo esquece se de si mesmo não se lembra senão de Deus e se liga a ele 1 Mas quando o entusiasmo declina e quando o desejo diminui em seu fervoi torna a ser homem distanciandose das coisas divinas reencontrando então as coisas humanas que são como ciladas no vestíbulo do templo Não se deve esquecer contudo que essa tendência não é estranha ao aristotelismo na medida em que é na contem 47 Banquete 210 e 4 48 Ibid 211 de 49 Fílon Dos sonhos II 232 234 As escolas filosóficas na era imperial plação que tem por objeto supremo o Pensamento do Pensamento que reside a felicidade do homem Se não falamos aqui do grande comentador de Aristóteles que foi Alexandre de Mrodísia é porque sabemos pouco sobre o que foram sua vida e seu ensino e nada resta do que se poderia50 classificar de aristotelismo místico a propósito da representação que Alexandre fazia da união de nosso intelecto com o Intelecto divino Com a experiência mística estamos na presença de ou tro aspecto da vida filosófica não mais a decisão a opção por um modo de vida mas para além de todo discurso a experiência indizível que invade o indivíduo e arruína toda consciência do eu por um sentimento de presença in exprimível Os níveis do eu e os limites do discurso filosófico Podemse extrair dos cinquenta e quatro tratados de Plotino uma teoria que explique a gênese da realidade a partir de uma unidade primordial o Uno ou o Bem pela aparição de níveis de realidade mais e mais inferiores e mesclados de multiplicidade o Intelecto depois a alma depois as coisas sensíveis Com efeito como Aristóteles e Platão Plotino não escreve para expor um sistema mas para resolver questões particulares apresentadas por seus ouvintes a propósito de seu ensino51 Isso não significa que Plotino não tenha uma visão unificada da realidade mas suas obras são escritos de circunstância Por uma parte 50 Ph Merlan Monopsychism Mysticism Metaconsciousness Problems ofthe Soul in the Neoristotelian and Neoplatonic Tradition La Haye 1963 pp 35 ss 51 Porfirio Vida de Platina 4 11 e 5 5 235 A filosofia como modo de vida também elas têm por fim exortar o ouvinte ou o leitor a tomar uma atitude a adotar um modo de vida O discurso filosófico de Plotino para todos os níveis da realidade conduz a uma ascese e a uma experiência interiores que são o verdadeiro conhecimento pelo qual o filósofo eleva se para a realidade suprema alcançando progressivamente níveis mais e mais elevados e mais e mais interiores da consciência de si Plotino retoma o velho adágio52 somente o semelhante conhece o semelhante Mas isso significa para ele que é somente se tornando espiritualmente semelhante à realidade que se quer conhecer que se pode colhêla A filosofia de Plotino revela assim por outro lado o espírito do platonismo isto é a indissolúvel unidade do saber e da virtude só há saber em e pela progressão existencial na direção do Bem A primeira etapa da ascensão é a tomada de consciên cia pela alma racional do fato de que ela não se confun de com a alma irracional que encarregada de animar o corpo é perturbada pelos prazeres e pelas penas que re sultam da vida do corpo O discurso filosófico pode expor argumentos sobre a distinção entre alma racional e alma irracional mas o que importa não é chegar à conclusão de que há uma alma raGional mas que o próprio eu viva como uma alma racional O discurso filosófico pode esfor çarse para pensar a alma53 considerandoa no estado puro porque toda adição a uma coisa é um obstáculo ao conhe cimento da coisa Mas somente a ascese permite ao eu conhecerse efetivamente como alma separada do que não 52 Empédocles B 109 Demócrito B 164 Les Présocratiques Dumont pp 417 e 887 53 Eneadas N 7 2 10 27 ss 236 As escolas filosóficas na era imperial é ela isto é tornarse concreta e conscientemente o que ela foi sem o saber54 Restringete e examinate Tira o que é supérfluo não cesses de esculpir tua própria estátua Para tanto é necessário que o próprio eu se se pare do que foi acrescentado à alma racional e se veja tal qual se tornou Mas nem o discurso filosófico nem o itinerário interior podem deter a alma racional O discurso filosófico é cos trangido a admitir como fizera Aristóteles que a alma nao pode raciocinar e pensar se não tem inte de si u eu sarnento substancial que funde a poss1b1hdade de racwcmar e de conhecer Desse pensamento desse Intelecto trans cendente a alma reconhece os traços em si mesma sob a forma de princípios que lhe permitem raciocinar5 5 A vida segundo o Espírito em Plotino como em Aristóteles situa se em dois níveis hierarquizados Começa no nível da alma racional iluminada pelo Intelecto e consiste então na atividade dos raciocínios filosóficos e na prática das virtudes guiada pela razão Mas se a reflexão filosófica a conduz para o Intelecto ela terá ainda aqui duas vias e acesso a essa realidade de uma parte o d1scurso filosofico de outra a experiência interior Ela terá ainda como afirma Plotino duas formas de conhecimento de si de uma parte um conhecimento de si como alma racional dependente do Intelecto mas que permanece no plano da razão e de outra um conhecimento de si como se ela mesma se tor nasse o Intelecto Plotino a descreve da seguinte maneira Então conhecerse a si mesmo é conhecerse não mais como homem mas como tornado totalmente outro como se se tivesse 54 Ibid IV 7 2 10 30 e I 6 1 9 7 55 Ibid V 3 49 4 14 e ss 237 A filosofia como modo de vida arrastado a si mesmo para o alto para exercer apenas o melhor da alma56 O eu descobre então que o que há de mais elevado na alma é Intelecto e Espírito e que ela vive constantemente e de maneira inconsciente a vida do Intelecto E precisa mente como dissera Aristóteles57 e como tornara a dizer Porfírio o objetivo da vida é a vida segundo o Espírito a vida segundo o Intelecto É necessário tomar consciência dessa atividade inconsciente é necessário voltar a atenção para essa transcendência que se abre ao eu58 Isto é como um homem que está à escuta de uma voz que deseja ouvir descartará todos os outros sons voltará os ouvidos para o som por que anseia para saber se ele se aproxima da mesma maneira precisamos deixar de lado os ruídos provenien tes do mundo sensível a não ser em caso de necessidade para olhar a potência da consciência da alma pura e preparada para escutar os sons que vêm do alto Chegamos aqui a um primeiro grau da experiência mística pois há aí um excesso da atividade própria à alma racional um tomarse outro um desenraizamento para o alto O eu depois de ser identificado à alma racional identificase agora ao IntelectJtomase Intelecto Mas como representar o que quer dizer tomarse Intelecto Plotino concebe o Intelecto a partir do modelo do Pensamento aris totélico isto é como um conhecimento de si perfeitamente adequado e transparente Ao mesmo tempo ele considera que o Intelecto contém em si todas as Formas todas as 56 Ibid V 349 4 10 57 Cf acima pp 121123 58 Eneadas V 1 10 12 14 238 As escolas filosóficas na era imperial Ideias isso implica que cada Forma é o Intelecto que o Intelecto é a totalidade das Formas que se pensa a si mesma que cada Forma é à sua maneira enquanto Ideia de Homem ou Ideia de Cavalo a totalidade das Formas no Intelecto tudo é interior a tudo Tornarse Intelecto é pensarse na perspectiva da totalidade é pensarse não mais como indivíduo mas como pensamento da totalida de não particularizando essa totalidade mas ao contrário experimentando a concentração a interioridade o acordo profundo59 É necessário ver o Espírito como nosso pró prio eu diz Plotino60 Tornarse Intelecto é finalmente chegar a um estado do eu no qual se atinja essa interio ridade esse recolhimento em si mesmo essa transparência para si mesmo que caracterizam o Intelecto simbolizados pela ideia de uma luz que se vê a si mesma e por si mes ma61 Tomarse Intelecto é atingir um estado de perfei ta transparência na relação consigo mesmo cerceando precisamente o aspecto individual do eu ligado a uma alma e a um corpo pata deixar subsistir apenas a interio ridade pura do pensamento62 Transformase a si mesmo em Intelecto quando separando de si as outras coisas olhase o Intelecto por esse Intelecto olhase a si mesmo por si mesmo Tomarse um indivíduo determinado é separarse do Todo acrescentando uma diferença que diz Plotino63 é 59 Cf P Hadot Introduction a Plotino Traité 38 Paris 1988 pp 3143 60 Eneadas V 8 31 10 40 61 Ibid V 3 49 8 22 cf É Bréhier La Philosophie de Plotin Paris 1982 p 98 62 Eneadas V 3 49 4 29 63 Ibid VI 5 23 12 20 239 A filosofia como modo de vida uma negação Separandose de todas as diferenças indivi duais e de sua própria individualidade tornase o Todo Tornarse o Intelecto é verse a si mesmo e a todas as coisas na perspectiva totalizante do Espírito divino Chegado a esse ponto o eu não é contudo o termo de sua ascensão Segundo a imagem plotiniana o Intelec b d 64 to no qual estamos su mersos e como uma on a que armandose nos ergue para uma nova visão Ainda aqui o discurso filosófico pode demonstrar que para além da Unitotalidade que representa o Intelecto e que é apenas uma unidade derivada é preciso admitir uma unidade absoluta e primeira65 Mas o discurso filosófico chega também a seu limite pois ele não pode exprimir o que é a Unidade absoluta já que falar é ligar os com plementos ou os atributos aos sujeitos por intermédio dos verbos ora o Uno não pode ter complementos ou atributos sendo absolutamente um Dele não se pode sequer dizer o que não é E se nos afiguramos atribuirlhe predicados positivos dizendo por exemplo O Uno é causa de tudo não dizemos o que é ele mesmo mas o que somos em relação a ele isto é que somos seus efeitos Em outras palavras acreditando falar çlçle não falamos senão de nós66 O relativo que somos é sempre relativo a si mesmo e não alcança o absoluto O único acesso que temos a essa realidade transcen dente é a experiência não discursiva a experiência uniti 64 Ibid VI 7 38 36 19 65 Ibid VI 9 9 14 vejase a tradução in P Hadot Plotino Traité 9 Paris 1994 66 Eneadas VI 9 9 3 3754 240 As escolas filosóficas na era imperial va A experiência do Intelecto correspondia a um estado do eu no qual se chega à interioridade e à transparência perfeita consigo mesmo A experiência do Uno corres ponde a um novo estado do eu no qual aquele que chega poderseia dizer se perde e se reencontra Ele se perde porque experimenta a impressão de não ser mais ele mesmo 67 nem para si mesmo mas ser a possessão de outro Mas ao mesmo tempo esse estado de anulação da identidade pessoal é percebido58 como uma manifes tação de si como uma intensificação de si Separan dose de todas as coisas69 não se encontra mais nesse nível a Totalidade mas a Presença que está no fundo de todas as coisas e de si mesmo anterior a toda determi nação e individuação Essa experiência é indizível e ao descrevêla Plotino nada pode dizer sobre o Uno ele descreve unicamente o estado subjetivo de quem a experimenta Contudo essa experiência é o que conduz realmente ao Uno Plotino distingue muito nitidamente aqui ensino discursivo e experiência não discursiva A teologia que só pode ser discursiva nos proporciona um ensino uma instrução sobre o Bem e o Uno mas o que nos conduz ao Uno é a virtude a purificação da alma o esforço para viver a vida segundo o Espírito O ensino é como um poste indicador que nos diz para qual direção se deve ir mas para chegar ao Uno é necessário andar efetivamente por uma estrada que só se trilha sozinho rumo ao Só70 67 Ibid VI 9 9 10 15 e 11 11 68 Ibid VI 9 9 11 22 69 Ibid v 3 49 17 37 70 Ibid VI 7 38 610 VI 9 9 4 1116 241 A filosofia como modo de vida Não obstante o discurso filosófico pode reaparecer para explicar como essa experiência do Uno é possível Se o eu pode atingir o Uno é precisamente porque vive a vida do Espírito Pois há no Espírito no Intelecto dois níveis de uma parte o nível do Intelecto pensante que corresponde ao estado do Intelecto completamente constituído pensandose a si mesmo como totalidade das Formas e de outra o nível do Intelecto nascente que ainda não é Intelecto ainda não pensa mas emana do Uno como uma irradiação e encontrase desse modo em contato imediato com ele Como consequência de tocar o Uno diznos Plotino o Espírito é inflamado de amor inebriado de néctar ele se regozija no gozo71 Tornarse Intelecto pensante já é para o eu uma experiência mística Mas tornarse Intelecto amante é elevarse a uma experiên cia mística superior é situarse no ponto de origem em que todas as coisas emanam do Bem e que é apenas o Intelecto nascente podese representar imaginativamente um ponto situado sobre um raio que chegaria a coincidir com o ponto no qual o raio emana do centro o ponto de nascimento do raio está infinitamente próximo do centro e contudo infinitamente separado pois não é o centro mas um ponto de emanação Tal é a relação do relativo ao absoluto As relações que existem em Plotino entre o discurso filosófico e a opção existencial estão bem resumidas nesta frase de Plotino dirigida contra os gnósticos73 71 Ibid VI 7 38 35 1933 vejase o comentário in P Hadot Plotino Traité 38 pp 3743 e 343345 72 Cf P Hadot Plotino Traité 9 pp 3744 73 Eneadas 11 9 34 15 3940 242 As escolas filosóficas na era imperial Quando se diz Deus sem praticar realmente a virtude Deus não passa de uma palavra Apenas a experiência moral ou mística pode dar con teudo ao discurso filosófico O neoplatonismo pósplotiniano e a teurgia O discurso filosófico e a vontade de harmonização entre as tradições O neoplatonismo posterior a Plotino representado sobretudo por Jâblio Siriano Proclo e Damásquio podna parecer a pnmeira vista um desenvolvimento do Slstema hierárquico de Plotino Mas com efeito ele se caracenza como dissemos por um gigantesco esfor ço e smtese entre os mais disparatados elementos da tradiçao filosofica e religiosa de toda a Antiguidade De acoro corou uma longa tradição o platonismo identificase o pltagonsmo por outro lado o aristotelismo é reconci hao com o platonismo na medida em que os escritos de Aristoteles desde então interpretados em sentido platônico represntam uma pmeira etapa no curso geral do ensin platomco que consiste na explicação de certo número de trataos de Aristóteles74 e também dos diálogos de Platão7s em VIrtude das etapas do progresso espiritual 7 Sore a harrnonzação entre Platão e Aristóteles cf I Hadot Aristote dans l enseignement philosophique néoplatonicien in Revue de Th l de Philosophie 14 407425 1992 sobre a represetação que os c dores neoplatomcos faziam da obra de Aristóteles cf I Had t s l Co t l C o 1rnp Cio mmen azre sur es ategorzes Fase I Leyde 1990 63107 75 Cf A J F pp estugiere Etudes de phzlosophze grecque pp 535550 L ordre de lecture des dialogiies de Platon aux VeVle siecles 243 A filosofia como modo de vida Mas a harmonização não se detém aí Buscase igual mente fazer concordar entre si a tradição filosófica e as tradições reveladas pelos deuses que são os escritos órficos e os Oráculos caldaicos Tratase assim de sistematizar todo dado revelado o orfismo o pitagorismo o caldaísmo com a tradição filosófica pitagórica e platônica Chegase dessa maneira ao que pode nos parecer charlatanices inverossímeis Os neoplatônicos são capazes de encontrar as diferentes classes de deuses dos Oráculos caldaicos em cada uma das articulações da argumentação dialética que se refere às famosas hipóteses sobre o Uno desenvolvidas no Parmênides de Platão Por outro lado as hierarquias de noções extraídas artificialmente dos diálogos de Platão correspondem termo a termo às hierarquias de entidades órficas e caldaicas Assim as revelações caldaicas e órficas penetram no discurso filosófico neoplatônico Não se deve contudo imaginar por isso que o discurso filosófico neoplatônico seja somente uma miscelânea confusa Com efeito toda escolástica é um esforço racional de exegese e de sistematização Ela obriga o espírito a uma ginástica intelectual que é finalmente formadora e que desenvolve a capacidade de analisar os conceitos e o rigor lógico só se pode admirar a tentativade Proclo quando procura expor more geometrico as etapas da processão dos seres em seus Elementos de teologia Os comentários de Proclo sobre Platão são notáveis monumentos de exegese E para tomar outro exemplo as reflexões de Damásquio sobre as aporias implicadas na noção de Princípio de tudo alcançam gran de profundidade Não é de espantar que o sistea e Proclo tenha tido uma influência capital em toda a h1stona do pensamento ocidental sobretudo no Renascimento e na época do romantismo alemão 244 As escolas filosóficas na era imperial A atividade dos neoplatônicos posteriores a Plotino foi consagrada sobretudo à exegese dos textos de Aristóteles e de Platão Certo número de seus comentários sobre Aristóteles serão traduzidos ao latim e desempenharão considerável papel na interpretação que se proporá desse filósofo na Idade Média O modo de vida Para os neoplatônicos como para Plotino o discurso filosófico está estreitamente ligado a práticas concretas e a um modo de vida Mas para Plotino a vida segundo o Espírito consistia em uma vida filosófica isto é na ascese e na experiência moral e mística Para os neoplatônicos posteriores isso tudo é muito diferente Eles conservam sem dúvida a prática filosófica da ascese e da virtude76 mas consideram igualmente importante ou mesmo apa rentemente no caso de Jâmblico mais importante ainda o que eles denominam prática teúrgica A palavra teurgia aparece apenas no século II dC parece ter sido criada pelo autor ou pelos autores dos Oráculos caldaicos para designar ritos capazes de purificar a alma e seu veículo imediato o corpo astral a fim de permitirlhe contemplar os deuses77 Esses ritos comportavam abluções sacrifícios e invocações que utilizavam palavras rituais frequentemen te incompreensíveis O que diferencia a teurgia da magia é que ela não pretende forçar os deuses mas ao contrário 76 Cf por exemplo R Masullo Il Tema degli Esercizi Spirituali nella Vita Isidori di Damascio in Talariskos Studia Graeca Antonio Garzya sexagenario a discipulis oblata Napoli 1987 pp 225242 77 Cf H Lewy Chaldean Oracles and Theurgy 2a ed Paris 1978 uma 3a d está no prelo HD Saffrey Recherches sur le néoplatonisme apres Plotin Pans 1990 pp 3394 P Hadot Théologie exégese pp 2629 245 A filosofia como modo de vida ela se submete à sua vontade efetuando os ritos que su postamente eles mesmos fixaram Não é a filosofia teórica diz Jâmblico78 mas os ritos que não compreendemos os únicos que podem operar nossa união com os deuses Não é por uma atividade de pensamento que podemos realizá los pois sem isso sua eficácia dependeria de nós São os deuses que têm a iniciativa e escolheram os signos mate riais os sacramentos poderseia dizer que atraem os deuses e permitem o contato com o divino e a visão das formas divinas Estamos aqui diante de uma espécie de doutrina da graça salvífica Nessa concepção a ideia de uma união mística não desaparece mas é compreendida na perspectiva geral da teurgia Como os outros deuses o Deus supremo pode manifestarse também eventualmente à alma na experiência mística79 por intermédio do que Proclo denomina o uno da alma isto é da parte supre ma e transcendente da alma o uno da alma correspon deria então de alguma maneira ao signo que na prática teúrgica ordinária atrai os deuses para a alma Essa invasão da teurgia no platonismo é para nós muito enigmática É difícil compreender por que o neoplatonismo do fim da Antiguidade introduziu as práticas teúrgicas na prática filosófica Como bemressaltou HD Saffreyw pode se explicar essa atitude pela representação que os neopla tônicos posteriores fazem do papel do homem em relação 78 Jâmblico Les Mysteres dÉgypte Éd É des Places Paris 1966 li 11 p 96 79 Cf A Sheppard Proclus Attitude to Theurgy in Classical Qua terly 32 212224 1982 HD Saffrey From Iamblichus to Proclus and Damascius in Classical Mediterranean Spirituality Ed A H Armstrong New York 1986 pp 250265 80 HD Saffrey Recherches sur le néoplatonisme apres Plotin pp 5456 246 As escolas filosóficas na era imperial ao divino Então enquanto Plotino considerava que a alma humana está sempre em contato inconsciente com o Inte lecto e o mundo espiritual os neoplatônicos posteriores consideram que a alma porque caiu no corpo tem neces sidade de passar por ritos materiais e sensíveis pará poder voltar ao divino Há aí em suma um traço análogo ao do cristianismo segundo o qual é necessário ao homem cor rompido pelo pecado original a mediação do Lógos encar nado e dos signos sensíveis os sacramentos para poder entrar em contato com Deus Para os dois movimentos es pirituais que dominam o fim da Antiguidade e se opõem um ao outro o neoplatonismo e o cristianismo o homem não pode salvarse por suas próprias forças ele tem neces sidade da iniciativa divina 247 Capítulo 9 Filosofia e discurso filosófico A filosofia e a ambiguidade do discurso filosófico Os estoicos distinguiam a filosofia isto é a prática vivida das virtudes que era para eles a lógica a física e a ética1 do discurso segundo a filosofia isto é o ensino teórico da filosofia dividido em teoria da física teoria da lógica e teoria da ética Essa distinção que tem um sentido muito preciso no sistema estoico pode ser utilizada de maneira mais geral para descrever o fenômeno da filosofia na Antiguidade Reconhecemos ao longo de nosso estudo de um lado a existência de uma vida filosófica mais precisamente de um modo de vida que se pode caracterizar como filosófico e se opõe radicalmente ao modo de vida dos não filósofos e de outro a existência de um discurso filosófico que justifica motiva e influencia essa escolha de vida Filosofia e discursos filosóficos apresentamse assim simultaneamente como incomensuráveis e inseparáveis 1 Cícero Dos termos extremos III 72 D L VII 39 e 41 cf acima pp 198204 249 A filosofia como modo de vida Incomensuráveis em primeiro lugar porque para os antigos se é filósofo não em função da originalidade ou da abundância do discurso filosófico que se inventou ou de senvolveu mas em função da maneira pela qual se vive Tratase antes de tudo de tornarse melhor E o discurso só é filosófico quando se transforma em modo de vida Isso é verdade para a tradição platônica e aristotélica pr a qual a vida filosófica culmina na vida segundo o espirIto Mas também é verdadeiro para os cínicos para os quais o discurso filosófico reduzse ao mínimo quase que a alguns gestos nem por isso são eles considerados menos filóso fos sendo tomados até como modelos de filosoa Outro exemplo homem de Estado romano Catão2 da Utica que se opunha à ditadura de César e pôs fim a sa vida por um suicídio famoso foi admirado pela postendade como um filósofo e mesmo como um dos raros sábios estoicos que existiram é que em sua atividade política ee pratca com rigor exemplar as virtudes estoicas Iso se da tamem com outros políticos romanos como Rutího Rufo e Qumt Múcio Escávola Pontífice que praticaram à letra o estOI cismo mostrando uma desvinculação exemplar na adminis traçã de províncias ou sendo os únicos a levar a sério as prescrições das leis editadas contra o luxo defendeose diante dos tribunais sem fazer apelo aos recursos retoncos mas num estilo estoico3 Podese também evocar o impera dor Marco Aurélio chamado oficialmente o filósofo por seu modo de viver quando ainda se ignorava contudo que ele escrevera as Meditações e quando não poderia apa 2 Sêneca Da constância do sábio 7 1 Da providência li 9 3 Cf I Hadot Tradition sto1cienne et idées politiques au temps des Grecques in Revue des études atines 48 174178 1970 250 Filosofia e discúrso filosófico recer como teórico4 Filósofo também embora não tenha lecionado o senador Rogaciano5 discípulo de Plotino do qual falamos acima que no dia em que deveria assumir suas funções de pretor renuncia a seus cargos políticos e a suas riquezas Vida filosófica e discurso filosófico são incomensuráveis sobretudo porque de ordem totalmente heterogênea O que faz o essencial da vida filosófica a escolha existencial de um modo de vida a experiência de certos estados de certas disposições interiores escapa totalmente à expressão do dis curso filosófico Isso aparece mais claramente na experiência platônica do amor talvez mesmo na intuição aristotélica das substâncias simples e sobretudo na experiência unitiva plotiniana totalmente indizível em sua especificidade pois quem fala dela assim que a experiência é finda já não se situa no mesmo nível psíquico de quando vivia a experiên cia Mas isso é verdade também para a experiência de vida epicurista estoica ou cínica A experiência vivida do prazer puro ou da coerência consigo mesmo e com a Natureza é de ordem distinta da ordem do discurso que a prescreve ou a descreve do exterior Essas experiências não são da ordem do discurso ou das proposições Incomensuráveis mas também inseparáveis Não há discurso que mereça ser denominado filosófico se está se parado da vida filosófica não há vida filosófica se não está estreitamente vinculada ao discurso filosófico Aí contudo reside o perigo inerente à vida filosófica a ambiguidade do discurso filosófico 4 Cf P Hadot La Citadelle intérieure Paris 1992 pp 1631 5 Porfírio Vida de Platina 732 251 A filosofia como modo de vida Todas as escolas denunciaram o perigo que corre o filósofo se imagina que seu discurso filosófico pode bastar se a si mesmo sem estar de acordo com a vida filosófica São constantemente atacados para retomar os termos do platônico Polêmon6 os que procuram se fazer admirar por sua habilidade na argumentação silogística mas se contradizem na conduta de sua vida ou como afirma uma sentença epicurista7 os que desenvolvem discursos vazios os que como afirma o estoico Epiúto 8 dissertam sobre a arte de viver como homens em vez de viver eles mesmos como homens que fazem segundo a expressão de Sêneca do amor pela sabedoria philosophia um amor pela palavra philologia 9 Tradicionalmente os que desenvolvem um discurso aparentemente filosófico sem procurar pôr sua vida em relação com seu discurso e sem que seu discurso emane de sua experiência e de sua vida são denomina dos sofistas pelos filósofos desde Platão e Aristóteles10 até Plutarco que declara que uma vez que os sofistas se distanciam de suas cátedras e põem de lado seus livros e manuais eles não são melhores que os outros homens nos atos reais da vida 11 Ao contrário a vida filosófica não pode passar sem o discurso filosófico com acondição de que esse discurso seja inspirado e animado por ela Ele é parte integrante dessa vida Podese considerar a relação entre vida filo 6 D L N 18 7 In Porfírio Carta a Marcela 31 S Epiteto Conversações Til 21 46 9 Sêneca Carta a Lucílio 128 23 CfJ Pépin PhilologosPhilosophos in Porfírio Vida de Platina t li pp 477501 citado p 219 12 10 Cf acima pp 3234 11 Plutarco Como escutar 43 f 252 Filosofia e discurso filosófico sófica e discurso filosófico de três maneiras diferentes e por outro lado estreitamente ligadas Em primeiro luga o discurso justifica a escolha de vida e desenvolve todas as suas implicações poderseia dizer que é uma espécie de causalidade recíproca a escolha de vida determina o discurso e o discurso determina a escolha de vida jstificandoa teoricamente Em segundo lugar para poder VIver filosoficamente é necessário exercer uma ação sobre si mesmo e sobre os outros e o discurso filosófico se é realmente a expressão de uma opção existencial é nesta perspectiva um meio indispensável Enfim o discurso fi losófico é mesmo uma das formas de exercício do modo de vida filosófico sob a forma do diálogo com outrem ou consigo mesmo Em primeiro lugar o discurso filosófico justifica teori camente a escolha de vida Constatamos isso de uma ex tremidade a outra da história da filosofia antiga para fundar a racionalidade de sua escolha de vida os filósofos devem recorrer a um discurso que vise tanto quanto pos sível a uma racionalidade rigorosa Quer se trate em Platão da escolha do Bem ou entre os epicuristas da escolha do prazer puro ou entre os estoicos da escolha da intenção moral ou ainda em Aristóteles e Plotino da escolha de vida segundo o Intelecto será necessário ada vez desembaraçar com precisão os pressupostos as impli cações as consequências dessa atitude por exemplo como vimos para o estoicismo ou para o epicurismo investigar na perspectiva da opção existencial o lugar do homem no mundo e elaborar desse modo uma física coroada ou não por uma teologia definir também as relações do homem com seus semelhantes e elaborar assim uma éti ca definir enfim as próprias regras do raciocínio utiliza 253 A filosofia como modo de vida das na física e na ética e elaborar ainda uma lógica e uma teoria do conhecimento Devese utilizar uma lingua gem técnica falar de átomos ou dos incorpóreos ou das Ideias ou do Ser ou do Uno ou das regras lógicas da discussão Mesmo para a escolha de vida cínica na qual o discurso filosófico é muito reduzido podese evidenciar em última instância uma reflexão sobre as relações entre a convenção e a natureza Um esforço de conceituali zação e de sistematização mais ou menos grande é reco nhecível de um extremo a outro da filosofia antiga Em segundo lugar o discurso é um meio privilegia do graças ao qual o filósofo pode agir sobre si mesmo e sobre os outros pois se ele é a expressão de uma opção existencial daquele que o sustenta sempre tem direta ou indiretamente uma função formadora educadora psicagó gica terapêutica É sempre destinado a produzir um efeito a criar na alma um habitus a provocar uma transforma ção do eu É a esse papel criador que Plutarco faz alusão quando escreve12 O discurso filosófico não esculpe estátuas imóveis mas tudo o que toca ele o quer tornar ativo eficaz e vivo ele inspira impulsos motores juízosgerdores de atos úteis escolhas em favor do bem Nesta perspectiva podese definilo como um exercício espiritual isto é como uma prática destinada a operar uma mudança radical do ser Os diferentes tipos de discursos filosóficos esforçarseão para realizar essa transformação do eu de diferentes ma 12 Plutarco A filosofia deve conversar sobretudo com os grandes 776 cd 254 Filosofia e discurso filosófico neiras É assim que o discurso puramente teórico e dogmático reduzido poderseia dizer a si mesmo pode já operar isso de alguma maneira apenas com a força da evidência Por exemplo por sua forma sistemáti ca rigorosa pelos traços atraentes da forma de vida que propõem e pela figura do sábio que desenham as teorias epicuristas induzem de alguma maneira a que se faça a escolha de vida que elas acarretam Mas elas podem ainda ampliar seu vigor persuasivo concentrandose em resumos muito densos como o quá druplo remédio dos epicuristas Eis por que estoicos e epicuristas aconselham seus discípulos a rememorar dia e noite não apenas nentalmente mas por escrito seus dogmas fundamentais E nessa perspectiva que se deve com preender o exercício que constituem as Meditações de Marco Aurélio Nessa obra o imperadorfilósofo formula para si mesmo os dogmas do estoicismo Mas não se trata de um resumo ou de um sumário que bastaria reler não se trata de fórmulas matemáticas recebidas de ua vez por todas e destinadas a ser aplicadas mecanicamente Também não se trata de resolver problemas teóricos e abstratos mas de renderse novamente às regras de tal modo que se sinta obrigado a viver como um estoico Não basta reler as pa lavras mas é necessário sempre de novo formular de maneira notável máximas que instiguem à ação o que conta é o ato de escrever de falarse para si mesmo13 De maneira geral podese dizer que a vantagem da estrutura sistemática das teorias estoica e epicurista é que os refinamentos dou trinais podem ser reservados aos especialistas mas que o essencial da doutrina é acessível a um público mais amplo 13 P Hadot La Citadelle Intérieure pp 6466 255 A filosofia como modo de vida há aí uma analogia com o cristianismo no qual se as dis cussões são reservadas aos teólogos o catecismo basta ao povo cristão Essas filosofias podem portanto como dissemos tornarse populares Elas são missionárias Existe outro tipo de discurso aparentemente tam bém de ordem teórica são os que tomam a forma de interrogação de investigação da própria aporia que não propõem dogmas nem sistema mas obrigam os discípulos a um esforço pessoal a um exercício ativo Esses discur sos tendem também a produzir uma atitude um habitus na alma do interlocutor e a conduzilo a uma escolha de vida determinada No diálogo de tipo socrático no qual o mestre simula nada saber e nada ensinar a seu interlocutor este último é finalmente posto em questão ele deve dar razão de si mesmo e da maneira pela qual vive e pela qual viveu As interrogações socráticas levamno a tomar cuidado consigo mesmo e por consequência a mudar de vida O diálogo platônico por exemplo o Sofista ou o Filebo é um exercício mais intelectual porém temse de reco nhecer é antes de tudo um exercício Como vimos ele não tem por objetivo princÍpal e único resolver o proble ma proposto mas fazer o participante tornarse melhor dialético E precisamente ser melhor dialético não é apenas ser hábil em inventar ou denunciar as sutilezas do raciocínio mas antes de tudo saber dialogar com todas as exigências que isso demanda reconhecer a presença e os direitos do interlocutor fundar sua resposta sobre o que o interlocutor reconhece saber pôrse em acordo com ele em cada etapa da discussão é sobretudo submeterse às 256 Filosofia e discurso filosófico exigências e normas da razão da investigação da verdade e finalmente reconhecer o valor absoluto do Bem É sair de seu ponto de vista individual para elevarse a um ponto de vista universal esforçarse para ver as coisas na perspec tiva do Todo e do Bem e transformar com isso sua visão do mundo e a própria atitude interior O discurso filosófico pode então tomar também a forma de uma exposição contínua de um discurso de exortação ou de consolação no qual todos os recursos da retórica serão utilizados para provocar a transformação da alma Enfim terceiro aspecto das relações entre filosofia e discurso filosófico o discurso filosófico é uma das formas do exercício do modo de vida filosófico Como acabamos de ver o diálogo é parte integrante do modo de vida platônico A vida na Academia implica uma constante mudança intelectual e espiritual no diálogo mas também na investigação científica Essa comunidade de filósofos é também uma comunidade de sábios que praticam as ma temáticas ou a astronomia e a reflexão política Mais ainda que a escola platônica a escola aristotélica é uma comunidade de sábios A escolha de vida aristotéli ca é com efeito viver segundo o Intelecto isto é en contrar o sentido de sua vida e seu prazer na investiga ção é portanto finalmente levar uma vida de sábio e de contemplativo fazer investigações muitas vezes coletivas sobre todos os aspectos da realidade humana e cósmica O discurso filosófico e científico que para Aristóteles não pode ser somente dialógico é então também para ele um elemento essencial da vida segundo o espírito Atividade de 257 A filosofia como modo de vida sábio que pode por outro lado excederse em uma intuição mística quando o intelecto humano entra em contato em um contato não discursivo com o Intelecto divino Tornase a encontrar em outras escolas essa comunida de de investigação de discussão de cuidado de si e dos outros de correção mútua tanto como vimos na amiza de epicurista como na direção de consciência estoica ou neoplatônica Reconhecese também um exercício do modo de vida filosófico no discurso de meditação que é de alguma maneira um diálogo do filósofo sozinho consigo mesmo que já encontramos acima O diálogo consigo mesmo é um uso comum em toda a Antiguidade Sabese por exemplo que Pirro surpreendia seus concidadãos porque falava em voz alta consigo mesmo1 e que o estoico Cleanto se fazia censuras da mesma maneira A meditação silen ciosa pode ser praticada em pé e imóvel à maneira de Sócrates ou passeando como dizem o poeta Horácio15 Tu andas silencioso a passo lento através dos bosques salubres tendo na cabeça todos os pensamentos dignos de um sábio e de um homem bom e o estoico Epiteto16 Passeia sozinho conversa contigo mesmo A meditação faz parte de um conjunto de práticas que nem sempre são da ordem do discurso mas que sempre são o testemunho do envolvimento pessoal do filósofo e para ele um meio de transformarse e influenciarse a si mesmo São esses os exercícios espirituais que iremos agora evocar 14 D L IX 64 e VII 171 15 Horácio Epístolas I 4 45 16 Epíteto Conversações 111 14 l 258 Filosofia e discurso filosófico Os exercícios espirituais Ao longo de nossa investigação encontramos em todas as escolas mesmo nas céticas exercícios áskesis meletê isto é práticas voluntárias e pessoais destinadas a operar uma transformação do eu Elas são inerentes ao modo de vida filosófico Analisarei agora as tendências comuns que podem ser verificadas nas práticas das diferentes escolas Préhistória Jamais houve início absoluto na história do pensamen to Podese supor que existiu uma préhistória dos exercí cios espirituais nos pensadores présocráticos e na Grécia arcaica Infelizmente tudo o que conhecemos dos pré socráticos é extremamente lacunar os testemunhos são muito tardios e os fragmentos conservados bastante difíceis de interpretar porque nem sempre podemos entender com certeza o sentido das palavras empregadas Por exemplo Empédocles17 fala da seguinte maneira de uma personagem fora do comum que talvez seja Pitágoras E vivia entre eles um homem de extremo saber que o maior tesouro adquiriu de entranhados pensamentos prapidôn em toda espécie de obras sábias altamente capaz pois sempre que se retesava em todas as entranhas prapi dessin fácil ele de todos os seres se punha a ver cada um não apenas em dez mas em vinte tempos de vida humana 17 Les Présocratiques Empédocles B CXXIX Dumont p 428 Fragmento 129 da tradução brasileira 259 A filosofia como modo de vida Quisse ver aqui uma alusão aos exercícios de memória praticados por Pitágoras18 o que tornaremos a ver mas para o momento podemos considerar que essa rememoração se faz por entranhados pensamentos A palavra prapides empregada duas vezes nesse texto significava originalmen te o diafragma na tensão para segurar a respiração e de maneira figurada a reflexão o pensamento Como a pala vra coração que tem a um só tempo uma significação fisiológica e psicológica JP Vernant19 em continuidade a L Gernet20 considera que o texto de Empédocles faz alusão a um exercício espiritual de rememoração que consiste em técnicas de controle do sopro respiratório pelo diafragma que devem permitir à alma concentrarse para libertarse do corpo e viajar para longe Mas podese admitir que a palavra prapides quando se trata do esforço de rememoração tenha um sentido fisiológico se duas linhas antes ao designar as reflexões e os pensamentos atribui a eles um sentido psicológico Em outro texto de Empédocles21 Feliz o que de entranhas divinas prapidôn adquiriu tesouro e mísero o que sobre deuses obscura opinião mantém encontrase o mesmo sentidopsicológico de prapides con firmado por outro lado pela oposição desse termo a um termo significando opinião A afirmação nesse contexto 18 JP Vemant Mythe et pensée chez les Grecs Paris 1971 t I p 114 p 138 da tradução brasileira 19 Id ibid p 114 e 9596 pp 138 e 119120 da tradução brasileira respectivamente 20 L Gemet Anthropologie de la Grece antique Paris 1982 p 252 21 B CXXXII Dumont p 429 Fragmento 132 da tradução brasi leira 260 Filosofia e discurso filosófico da existência de técnicas de controle respiratório apoiase unicamente na ambiguidade da palavra prapides ora nada prova que a palavra designe o diafragma nessa frase de Empédocles Não quero dizer aqui que não tenham existido técnicas de controle respiratório na tradição filosófica grega A con cepção de alma como um sopro22 bastaria para fazer supor isso Suporseia que o exercício platônico que consiste em concentrar a alma comumente dispersa ein todas as partes do corpo23 deva ser compreendido nessa perspectiva É espantoso também constatar que nas narrativas referentes às mortes de filósofos por exemplo a de dois cínicos Diógenes e Métroclo24 mencionamse frequentemente personagens que teriam posto fim a seus dias prendendo a respiração o que permite supor que práticas desse gênero eram evo cadas nas tradições biográficas Mas quero somente dar aqui um exemplo entre outros das incertezas e dificuldades que pesam sobre todas as reconstruções ehipóteses que se extraem dos présocráticos e da Grécia arcaica JP Vernant25 acrescenta que as técnicas de controle da respiração serão reconstituídas na tradição xamanista O xamanismo26 é um fenômeno social fundamentalmente 22 JP Vemant op cit t li p 111 23 Cf acima pp 107108 24 D L VI 76 e 95 25 JP Vemant op cit t I p 96 e t li p 111 N do T p 362 da tradução brasileira 26 R N Hamayon La chasse à lârne Esquisse dune théorie du charnanis me sibérien Paris Société dEthnologie 1990 Nas linhas que se seguem sirvome da exposição sobre o xamanismo apresentada por R N Hamayon Le chamanisme sibérien réflexion sur un médium in La Recherche 275 416422 abril 1995 261 A filosofia como modo de vida vinculado às civilizações da caça ele permaneceu um fenômeno central na sociedade apenas na Sibéria e na América do Sul mas adaptouse e misturouse a outras culturas e religiões em datas mais ou menos remotas tendo o substrato permanecido mais visível na Escandi návia ou na Indonésia Ele é centrado na figura do xamã personagem que sabe graças a uma ação ritual entrar em contato com o mundo dos espíritos de animais ou de homens vivos ou mortos para permitir a caça a criação de animais ou a cura das almas dos vivos ou dos mortos Desde K Meuli27 e E R Dodds28 quisse ver no xamanismo a origem das representações dos fi lósofos gregos sobre a alma sobre a separação entre alma e corpo também sobre a origem das técnicas de concentração espiritual das representações de viagens da alma fora do corpo desde M Eliade29 a origem igualmente das técnicas de êxtase Serei extremamente reticente sobre esse gênero de explicação por duas razões principais Em primeiro lugar mesmo que se admita essa pré histórica xamanista não é menos verdade que os exercícios espirituais que nos interessam nada têm a ver com os rituais xamanistas mas respondemao contrário a uma rigorosa necessidade de controle racional a qual aparece para nós com os primeiros pensadores da Grécia e com os sofistas e Sócrates Uma comparação muito estreita arriscase a falsear a representação que se faz da filosofia grega 27 K Meuli Scythica in Hermes t 70 1935 pp 137 ss 28 E R Dodds Les Grecs et lirrationnel Paris Aubier 1965 pp 135174 29 M Eliade Le chamanisme et les techniques archaiques de lextase Paris 1968 OU ed 1951 262 Filosofia e discurso filosófico Em segundo lugar pareceme que os historiadores da filosofia fazem do xamanismo uma representação fortemen te idealizada e espiritualizada o que permite ver exemplos dele por toda parte Podese por exemplo falar realmente de Sócrates dizendo com H Joly30 Que Sócrates tenha sido o último xamã e o primeiro filósofo Jaz parte doravante das verdades antropologicamente admitidas O que são verdades antropologicamente admitidas Podese dizer realmente que ele foi o primeiro filósofo E o que quer dizer aqui a palavra xamã Significaria que de acordo com o que é a essência do xamanismo isto é na perspectiva da caça e da pesca a aliança entre as almas humanas e os espíritos animais concebidos a partir do modelo matrimonial Sócrates tem uma esposa ritual que seria um espírito feminino do mundo nutriz filha de espírito doador de caça é denominada espírito da floresta filha de espírito aquático doador de peixe O tempo do ritual é animalizado por sua relação e seu comportamento E o macho dá saltos e gritos repele seus rivais e acasalase com sua fêmea Faço alusão aqui a uma descrição da ati vidade do xamã dada recentemente por meu colega R N Hamayon31 Ele também pareceme iluminou admiravel mente a ambiguidade inerente ao uso do termo transe que é bastante próximo de êxtase para reagrupar o con junto das condutas corporais xamanistas32 Ele se contenta em dizer que o xamã está em transe sem descrever porme norizadamente seus gestos Mas o que importa é precisa 30 H Joly Le Renversement platonicien Paris Vrin 1974 pp 6769 31 R N Hamayon Le chamanisme sibérien pp 418419 32 Id De la portée des concepts de transe extase dans létude du chamanisme in Études mongoles et sibériennes T 25 1994 263 A filosofia como modo de vida mente o detalhe dos gestos corporais tremer ou dar saltos não exprimem o mesmo tipo de relação e dirigemse a tipos de espíritos diferentes33 O simbolismo da aliança com espíritos animais pelo Jato de que implica a animalização ritual do xamã é suficiente para dar conta da estranheza de seu comportamento Ele permite descrever sua natureza normal ou patológica e o caráter ar tificial ou espontâneo de sua conduta Nenhuma necessidade de apelar a um psiquismo particular nem a um condicio namento físico O xamã comunicase pelos movimentos de seu corpo com os espíritos animais como o Jazem entre si espécies diferentes sem linguagem comum Dando saltos ou estendendose inerte não fica fora de si não desmaia nem fica histérico ou cataléptico ele desempenha seu papel Não se trata para ele de atingir um estado ou de viver uma experiência como o querem certas interpretações ocidentais mas de realizar a ação esperada pelos seus Não há lugar para Jazer apelo ao vocabulário do transe do êxtase ou de estados alterados de consciência vocabulário ambíguo que implica entre estado físico estado psíquico e ato simbólico um lugar que nada experimenta Para poder falar de Sócrates como um xamã é neces sário pareceme eliminarâãnoção de xamã tudo o que lhe confere sua especificidade Para H Joly3 o fato de Sócrates ficar à parte e permanecer imóvel para meditar o fato de que ele ocupava seu espírito consigo mesmo35 prova que ele recorria a técnicas bem conhecidas de con trole da respiração Bem conhecidas pareceme exage 33 R N Hamayon Le chamanisme sibérien p 419 34 H Joly op cit p 69 35 Banquete 174 d 264 Filosofia e discurso filosófico rado supostas ou possíveis seria mais exato como mos Pens por minha parte que caso se queira me ditar tranqmlamente devese permanecer imóvel e silencio so e que essa conduta nada tem a ver com o retrato do xamã Dodds fala em relação a isso de um retrato religioso período de arrebatamento rigoroso na solidão e no jejum e que pode incluir uma mudança psicológica de sexo Depois desse período a alma do xamã pode deixar seu corpo viajar para longe para o mundo dos espíritos Mas as realidades são muito mais complexas estando sempre ligadas a certa relação ritual com os es píritos animais ou as almas dos mortos Eliade e Dodds representam o xamanismo como o poder que um indiví duo tem de modificar como quer as relações de sua alma e de seu corpo ao passo que se trata antes da arte de praticar uma conduta simbólica em relação com certas situações concretas E pelo que é o retrato do xamã cito aqui ainda R N Hamayon36 A aliança com um espírito animal funda o aspecto selvagem e espontâneo da conduta ritual do xamã Funda também as condutas informais que envolvem sua carreira fugas recusa de comida sonolência etc Manifestadas à puberdade essas condutas levam a exprimir a entrada em contato com os es píritos animais e a constituir uma prova de virilidade Quase não se vê em tudo isso uma relação com o com portamento de Sócrates Dodds quis ver também traços de xamanimo nas histórias que se relatam sobre personagens como Abaris Arísteas de Proconeso Hermotimo de Clazômenas ou Epimênides que teriam vicyado fora de seu 36 R N Hamayon Le chamanisme sibérien p 419 265 A filosofia como modo de vida corpo A descrição que oferece um escritor tardio da se gunda metade do século II dC portanto nove séculos depois de Arísteas da aventura deste último poderia por outro lado parecer confirmar a representação idealizada que se fazia habitualmente do xamanismo37 jazendo sobre o solo respirando penosamente sua alma aban doando seu corpo vagueia como um pássaro e vê tudo o que esta sob ela a terra o mar os rios as cidades os costumes e as paixões dos homens as naturezas de todo gênero Depois disso tornando a entrar em seu corpo e Jazendoo levantarse servindose novamente dele como um instrumento ela narra o que viu e percebeu J D P Bolton38 mostrou graças a um estudo minucio so u foi sob a influência de um discípulo de Platão Herachdo do Ponto interessado nesse gênero de fenô menos que a história de Arísteas fora interpretada dessa mneira Mas segundo Bolton tudo leva a pensar que Ar1steas que VIVeu no século VII aC teria feito realmente uma viagem de exploração para o Sul da atual Rússia e para as estepes da Ásia e que ao retornar teria escrito um poema intitulado Arimaspea relatando sua aventura Parece que no caso deAristeas ele não fez nenhuma viagem psíquica mas uma autêntica viagem terrestre Ausente durante seis anos foi considerado morto Pensou se então ter sido sua alma que fizera essa viagem em um estado de morte aparente Vêse aqui ainda a incerteza que pesa sobre esse gênero de interpretações xamanistas 37 Máxülo de Tiro Discursos XVI 2 p 60 Dübner in Theophrasti Characteres Ed F Dübner Paris Didot 1877 38 D P Bolton Aristeas of Proconnesus Oxford 1962 266 Filosofia e discurso filosófico Talvez se possam descobrir traços de xamanismo em certos aspectos religiosos e rituais da Grécia arcaica mas é necessário sem dúvida observar a mais extrema prudência quando se trata de interpretar pelo xamanismo as figuras e as práticas desses sábios de Arísteas a Pitágoras que teriam possuído o domínio de sua alma graças a uma disciplina de vida ascética arece que nesse domínio é igualmente legítimo hesitar E o que faz JP Vernant quando escreve a propósito de personagens como Ábaris ou Arísteas39 De nossa parte mais do que com os Jatos de xamanismo estaríamos tentados a estabelecer uma aproximação com as técnicas de tipo ioga Podemos agora voltar ao texto de Empédocles do qual extraímos algumas partes Ele nos deixa vislumbrar dois fatos bem conhecidos em primeiro lugar que Pitágoras acreditava nas reencarnações em seguida que tinha o poder de rememorar suas existências anteriores Diziase que ele tinha a lembrança de ter sido Euforbo40 filho de Pantoos que Menelau ocultou durante a guerra de Troia Os Antigos diziam também que os pitagóricos praticavam pela manhã ou pela tarde exercícios de rememoração pelos quais se duplicavam todos os acontecimentos do dia ou da vigília41 Pensouse que esses exercícios tinham como finalidade última permitir reenviar para a memória as vidas anteriores42 Essa interpretação pode apoiarse sobre um 39 JP Vernant Mythe et pensée chez les Grecs t I pp 114 t II p 110 nota 44 p 362 nota 44 da tradução brasileira 40 Porfírio Vida de Pitágoras 45 W Burkert Lore and Science pp 139141 41 Jâmblico Vida de Pitágoras 164165 42 JP Vernant Mythe et pensée t I p 111 267 A filosofia como modo de vida umco testemunho muito tardio o de Hiérocles escritor do século V aC comentador de um apócrifo neopitagórico os Versos dourados no qual se encontram entre outras coisas conselhos concernentes à prática do exame de consciência Hiérocles depois de ter mostrado a impor tância moral dessa prática acrescenta43 Essa lembrança da vida cotidiana tornase um exercício apropriado para que rememoremos o que fizemos em nossas vidas anteriores e para que possamos nos dar o sentimento de nossa imortalidade Notarseá contudo que duas testemunhas anteriores Diodoro da Sicília44 e Cícero quando evocam a prática pitagórica de rememoração dos acontecimentos da jor nada precedente e dos dias anteriores falam unicamente de exercícios destinados a intensificar as capacidades da memória Para Porfírio45 tratase antes de um exame de consciência pois é necessário se dar conta a si mesmo dos acontecimentos passados e também prever como se agirá no futuro Possuímos muitas descrições da vida na escola de Pitágoras Infelizmente elas são muitas vezes uma projeção do ideal de vida filosófica próprio às escolas bem posterio res ao pitagorismo Não se pode fiar nelas para reconstruir o modelo de vida pitagórico Sabemos que Platão46 elogia va esse modo de vida na República mas não nos dá detalhes sobre seu conteúdo Tudo o que podemos dizer com cer 43 M Meunier Pythagrm Les Vers dor Hiérocles Comentário sobre os Versos dourados versos XLXLIV p 226 44 Diodoro da Sicília Biblioteca histórica X 5 1 Cícero Da velhice 11 38 45 Porfírio Vida de Pitágoras 40 46 Platão República X 600 ab 268 Filosofia e discurso filosófico teza é em primeiro lugar que os pitagóricos do tempo de Pitágoras e depois dele exerceram influência política sobre várias cidades do Sul da Itália fornecendo com isso um modelo à ideia platônica de uma cidade orga nizada e governada por filósofos47 Também podemos dizer que após o revés dessa atividade política existiram tanto no Sul da Itália como no restante da Grécia co munidades pitagóricas que levavam uma vida ascética da qual falamos acima48 Sabemos muito pouco sobre as práticas espirituais que poderiam estar em uso em outros présocráticos Podese somente notar que para tratar de um de seus temas favo ritos a tranquilidade da alma filósofos como Sêneca e Plutarco49 aludiram a uma obra de Demócrito consagrada à euthymia isto é a boa disposição da alma que equivale à alegria Segundo Sêneca ele a procurava em um estado de equilíbrio da alma Podese chegar a esse estado pro curando adaptar a própria ação ao que se é capaz de fazer Tratase de ocuparse de seus negócios Úma ação sobre si mesmo é possível portanto É igualmente notável que uma abundante compilação de sentenças morais tenha sido posta sob o nome de Demócrito50 Por outro lado ele teria escrito também uma obra intitulada Tritogeneia que é um dos epítetos da deusa Palas Atena identificada por ele à sabedoria ou prudência definindo essa sabedo 47 Cf W Burkert Lore and Science pp 109120 e 192208 48 Cf acima pp 226227 49 Sêneca Da tranquilidade da alma 2 3 Plutarco Da tranquilidade da alma 465 c Diógenes Laércio IX 45 cf I Hadot Seneca pp 135 ss P Demont La cité grecque archaique et classique et l idéal de tranquillité Paris 1990 p 271 50 Demócrito B XXXV ss Les Présocratiques Dumont pp 862873 269 A filosofia como modo de vida ria como a arte de bem raciocinar de bem falar e de fazer o que é necessário fazer51 Entre os sofistas Antifonte52 apresenta o interesse bem particular de ter proposto uma terapêutica que consistia em cuidar das mágoas e das penas pela palavra Não sabemos como fazia isso mas podemos encontrar nos fragmentos conservados de suas obras preciosas indicações sobre seu conhecimento da psicologia humana Assinalaremos aqui apenas alguns exemplos Ele sabia por exemplo que não é possível tornarse sábio sem que a própria pessoa tenha experimentado o que é vergonhoso ou mau isto é sem que tenha obtido uma vitória sobre si mesma Também sabe que quem querendo fazer o mal a seu próximo não o faz imediatamente por medo de não se sair bem ou de ver surgir consequências desagradáveis termina frequen temente por renunciar a seu projeto53 Isso significa que a prudência consiste em refletir em tomar certa distância da ação Vislumbrase com isso o papel que desempenha a reflexão na conduta da vida Por outro lado Antifonte tinha a reputação de ser um admirável intérprete dos sonhos Observese esta advertência sobre a unicidade e a gravidade da vida54 Há pessoas que não vivem a vida presente é tudo como se elas se preparassem consagranàolhe todo o seu ardor para viver 51 Demócrito B II Les Présocratiques Dumont p 386 52 Antifonte o Sofista A VIVII Les Présocratiques Dumont pp 1094 1095 Cf G RomeyerDherbey Les Sophistes Paris 1985 pp 110115 M Narcy Antiphon le Sophiste in Dictionnaire des philosophes antiques t I pp 225244 W D Furley Antiphon der Sophist Ein Sophist als Psychotera peut in Rheinisches Museum 135 198216 1992 P Demont La cité grecque archaique pp 253255 53 Antifonte B LVIIILIX Dumont p 1114 54 Antifonte B LIII e LII Dumont p 1112 270 Filosofia e discurso filosófico não se sabe qual outra vida mas não esta e enquanto fazem isso o tempo é perdido Não se pode pôr em jogo a vida como um dado que se torna a jogar Imaginase já ouvir Epicuro ou Sêneca dizer Enquanto se espera viver a vida passa Conjeturase assim graças a alguns exemplos ter exis tido toda uma préhistória da vida filosófica e das práticas a ela vinculadas55 Mas diante da pobreza de fragmentos conservados e da dificuldade de interpretálos descrever com precisão essas práticas demandaria acabamos de vêlo um estudo muito longo Exercícios do corpo e exercícios da alma Embora muitos textos façam alusão a ele não exis te nenhum tratado sistemático codificando de maneira exaustiva uma teoria e uma técnica do exercício áskesis filosófico Podese supor que as práticas faziam antes de tudo parte de um ensino oral e eram vinculadas ao uso da direção espiritual Notarseá somente que existiram tratados Sobre o exercício agora perdidos Sob esse título possuímos apenas um pequeno tratado do estoico Musônio Rufo56 Depois de ter afirmado que os que principiam a filosofar têm necessidade de exercitarse distingue exercícios próprios à alma e exercícios comuns à alma e ao corpo Os primeiros consistirão de um lado em sempre ter à sua disposição portanto em meditar as 55 Sobre essa préhistória cf I Hadot The Spiritual Cuide in Classical Mediterranean Spirituality New York 1986 pp 436444 da mesma autora Seneca pp 10 ss 56 In AJ Festugiere Deux prédicateurs de lAntiquité Téles et Musonius Paris Vrin 1978 pp 6971 271 A filosofia como modo de vida demonstrações que estabelecem os dogmas fundamentais que regem a ação e igualmente em representarse as coisas em outra perspectiva e de outro em querer e procurar apenas os bens verdadeiros entendamos a pu reza da intenção moral Praticaremos exercícios comuns à alma e ao corpo caso nos acostumemos ao frio ao calor à sede à fome à frugalidade da alimentação à du reza da cama à abstinência das coisas agradáveis a suportar as coisas penosas O corpo tornarseá assim impassível à dor e disposto para a ação mas a própria alma graças a seus exercícios se fortificará tornandose corajosa e moderada Essas observações de Musônio são preciosas porque nos permitem entrever que a representação de um exercício filosófico enraízase no ideal do atletismo e da prática habitual da cultura física nos ginásios Do mesmo modo que graças aos exercícios corporais repetidos o atleta dá a seu corpo uma força e uma forma novas graças aos exercícios filosóficos o filósofo desenvolve sua força de alma e transformase a si mesmo A analogia pode ficar ainda mais evidente caso se considere que era precisa mente no gymnasion isto é no lugar onde se praticavam os exercícios físicos quese davam muitas vezes também as aulas de filosofia57 Exercício do corpo e exercício da alma concorrem para esculpir o homem verdadeiro livre forte e independente Demos numerosos exemplos dessas práticas a propó sito de diferentes escolas Mostraremos agora o profundo parentesco que se pode evidenciar entre esses exercícios 57 J Delorme Gymnasion Paris 1960 pp 316 ss e p 466 272 Filosofia e discurso filosófico e reconhecer que eles reconduzem finalmente a dois movimentos de tomada de consciência de si opostos e complementares concentração e dilatação do eu O que unifica essas práticas é o desígnio do mesmo ideal a figura do sábio que apesar das aparentes diferenças as diversas escolas representavam com muitos traços comuns A relação consigo e a concentração do eu A ascese Quase todas as escolas propõem exercícios de ascese a palavra grega áskesis significa precisamente exercício e de domínio de si há a ascese platônica que consiste em renunciar aos prazeres dos sentidos e em praticar um regime alimentar em certas circunstâncias chegando sob a influência do neopitagorismo até a abstinência da car ne de animais ascese destinada a enfraquecer o corpo pelos jejuns e pelas vigílias para melhor viver a vida do espírito há a ascese cínica praticada também por alguns estoicos que faz suportar a fome o frio as injúrias su primir todo luxo todo conforto todos os artifícios da civilização para adquirir resistência e conquistar indepen dência há a ascese pirrônica que se aplica a considerar todas as coisas indiferentes pois não se pode dizer se são boas ou más há a dos epicuristas que limitam seus desejos para chegar ao prazer puro há a dos estoicos retificando seus juízos sobre os objetos e reconhecendo que não se deve prenderse às coisas indiferentes Todas elas supõem um desdobramento pelo qual o eu recusa confundirse com seus desejos e apetites distanciase dos objetos de sua cobiça e toma consciência de seu poder de desli garse deles Ele se eleva com isso de um ponto de vista 273 A filosofia como modo de vida injusto e parcial58 a uma perspectiva universal seja ela da natureza ou do espírito O eu o presente e a morte Os exercícios espirituais correspondem quase sempre ao movimento pelo qual o eu se concentra em si mesmo descobrindo que não é o que acreditava ser que não se confunde com os objetos aos quais se prendia O pensamento da morte desempenha aqui um papel decisivo Vimos que Platão definia a filosofia como um exercício para a morte na medida em que sendo a morte uma separação da alma e do corpo o filósofo separavase espiritualmente do corpo Na perspectiva platônica somos assim reconduzidos à ascese que consiste em descobrir o eu puro e em superar o eu egoísta fechado em sua indi vidualidade separandoo de tudo o que a ele se prendia e ao qual estava preso e que o impede de tomar consciência de si mesmo como o deus marinho Glauco coberto de conchas algas e seixos do qual fala Platão59 A tomada de consciência é um ato de ascese e de desligamento como é patente também em Plotino que aconselha ao eu que se separe do que lhe é estranho60 Se tu não vês ainda tua própria beleza faze como o escultor de uma estátua que deve ser bela tira isto raspa aquilo dei xa tal lugar liso limpa tal outro até fazer aparecer uma bela 58 O autor faz um jogo de palavras que não é possível reproduzir em português partial e partiel Partial remete ao ato de cometer uma injustiça quando se toma partido de alguém ou de uma causa partiel aplicase ao que é uma parte de um todo àquilo que constitui uma parte N do T 59 República X 611 d 60 Plotino Eneadas I 6 1 9 7 ss 274 Filosofia e discurso filosófico aparência na estátua Da mesma maneira tu também tira tudo oque é supérfluo corrige o que é torto purificando tudo o que tenebroso para tornálo mais brilhante e não cesses de esculpzr tua própria estátua até que brilhe em ti a luz divina da virtude O exercício do qual acabamos de falar encontrase também nos estoicos por exemplo em Marco Aurélio61 Ele se exorta a separarse de si mesmo isto é diz ele d e seu pensamento do que os outros fazem ou dizem do qe ele próprio fez ou disse no passado a separa ame de seu eu todas as coisas futuras que podem mqmetalo seu corpo e mesmo a alma que anima seu corpo os acontecimentos provenientes do encadeamento das causas universais isto é do destino as coisas que se prenderam a ele visto que ele se prendeu a elas e ele promete a si mesmo cm isso caso se separe do tempo passado e o futuro e VIVa no presente atingir um estado de tranquihdade e serenidade Nesse exercício o eu é totalmente circunscrito no presnte ele se prepara para viver somente 0 que vive Isto e o presente ele se separa do que fez e disse no passado e do que viverá no futuro Cada um vive apenas o presente momento infinitamente breve O mais da vida diz Marco Aurélio62 ou já se viveu ou está na in crteza O passado não me diz mais respeito o futuro ama nao me diz respeito63 Encontramos aqui a oposição estmca entre o que depende e o que não depende de nós 61 Marco Aurélio Meditações XII 3 1 ss Cf P Hadot La Citadelle Inteneure pp 130 ss e pp 148154 62 Meditações III 10 1 63 Sêneca Cartas a Lucílio 78 14 275 A filosofia como modo de vida O que depende de nós é o presente lugar da ação da decisão da liberdade o que não depende de nós são o passado e o futuro ante os quais nada podemos O pas sado e o futuro podem representar para nós penas ou prazeres imaginários64 Devese compreender bem esse exerooo de concen tração no presente e não imaginar que o estoico não se lembre de nada e jamais pense no futuro O que ele recusa não é o pensamento do futuro e do passado mas as paixões que ele pode ocasionar as vãs esperanças as penas vãs O estoico se quer como homem de ação e para viver para agir é necessário fazer projetos e considerar o passado para prever suas ações Mas precisamente porque só há ação no presente é apenas em função da ação na medida em que o pensamento pode ter qualquer utilidade para a ação que se deve pensar no passado e no futuro É portanto a escolha a decisão a própria ação que de limita a densidade do presente Os estoicos distinguiam duas maneiras de definir o presente A primeira consistia em compreendêlo como o limite entre o passado e o futuro Desse ponto de vista jamais há tempo presente visto que o tempo é divisível ao infinito Mas tratase aí de uma divisão abstrata de ordem matemática o presente reduzindose então a um instante infinitesimal A segunda maneira de conceber o presente consistia em definilo em relação à consciência humana ele representaria uma densidade uma duração que corresponderia à atenção da consciência vivida65 É desse presente vivido que se trata quando se fala de concentração no presente 64 Marco Aurélio Meditações VIII 36 e XII 1 65 Cf P Hadot La Citadelle intérieure p 152 276 Filosofia e discurso filosófico A consciência de si não passa da consciência de um eu que age e vive no momento presente Marco Aurélio por exemplo não cessa de repetir é necessário que e concentre minha atenção no que penso neste momento no que faço neste momento no que me acontecé nest momento de modo que eu veja as coisas como elas se aresentam a mim neste momento de modo que eu d1recwne mmha intenção para a ação que estou em vias de fazer querendo fazer apenas o que serve à comunida de humana de modo que eu aceite como determinado pelo destino o que me acontece neste momento e não depende de mim 66 O exercício da consciência de si remete assim a um eercício de atenção67 a si mesmo prosokhé e de gilân na que supoe que se renova a cada instante a escolha de vida isto é a pureza da intenção a confoidade da vontade do indivíduo com a vontade da Natureza univer sal e que se teham presentes ao esrírito os princípios e s regra de VIda ue o exprimem E necessário que o filosofo seJa a cada mstante perfeitamente consciente do que é e do que faz Essa concetraão no momento presente supõe também como a consoenoa de si platônica um exercício para a morte O pensamento da possibilidade da morte confere seu valor e sua gravidade em todo momento e em toda ação da vida68 66 Marco Aurélio Meditações VII 54 67 Cf Epíteto Conversações N 12 68 Marco Aurélio Meditações II 11 11 5 2 VIl 69 Epíteto Manual 21 Seneca Cartas 93 6 101 7 277 A filosofia como modo de vida Em todos os teus atos ditos e pensamentos procede como se houvesses de deixar a vida dentro de pouco Desempenha cada ação de tua vida como se fosse a ultzma isenta de toda leviandade É da perfeição moral passar cada dia amo se fosse o ultzmo sem comoções nem torpores nem jingzmento Que a morte esteja diante de teus olhos a cad dza e amazs terás algum pensamento baixo ou algum deseJO excesszvo Nessa perspectiva quem dedica toda sua atenção e consciência ao presente considerará que tem tudo no momento presente porquanto tem neste momento e ao mesmo tempo o valor absoluto da existência e o valor al absoluto da intenção moral Nada tem a desejar em d T da a duração de uma vida e toda a etermdade ISSO o d d 69 S 1 ém não poderiam trazerlhe mais fehc a e e a gu tem a sabedoria por um instante nao a abandnaraem favor daquele que a possui desde toda a etermdae A felicidade é inteiramente felicidade como um orculo continua sendo um círculo quer seja pequeno quer seja imenso7o À diferença do espetáculo de danç ou da pea de teatro inacabados caso sejam interrompidos a açao moral é inteiramente perfeita a cada momento71 Esse mo mento presente equivale a toda uma vida odese dizer 1 ha Vlda tive tudo o que podena esperar da rea Izei min vida Posso morrer72 69 Crisipo in Plutarco Das noções comuns contra os estoicos 1062 a in Les Stoiciens éd É Bréhier P 140 1990 7 S C rt 74 27 cf J Kristeva Les Samourazs Pans P O eneca a as d feliz porque e 380 O círculo perfeito quer seja pequeno ou gran e e justo 71 Marco Aurélio Medztaçoes XI 1 l 72 Sêneca Cartas 12 9 101 10 278 Filosofia e discurso filosófico No momento de ir dormir falamos da alegria e do regozijo Eu vivi cumpri a carreira que me assinalou a fortuna Se um deus nós dá o dia seguinte a mais recebemolo com regozijo É plenamente feliz tem a tranquila possessão de si mesmp quem espera o dia seguinte sem inquietude Todo aquele que se diz Eu vivi vive cada dia como um benefício inesperado Apressate para viver e considera cada dia uma vida acabada Aquele para o qual cada dia a sua vida foi completa possui a paz da alma Vêse assim como esse exerooo conduz a olhar o tempo e a vida de maneira totalmente diferente e che ga a uma verdadeira transformação do presente Isso é tanto mais interessante de constatar quanto nessa marca espiritual epicurismo e estoicismo se encontram em mais de um ponto No epicurismo73 há também uma concentração em si e uma tomada de consciência de si ligadas a uma ascese que consiste em limitar os próprios desejos àqueles naturais e necessários que assegurem à carne isto é ao indivíduo um prazer estável Aristóteles74 teria dito Sentir que se vive é um prazer Mas viver é precisamente sentir É necessário dizer Sentir que se sente é um prazer Há para Epicuro uma espécie de tomada de consciência por si mesmo do ser senciente que é precisamente o prazer filosófico o puro prazer de existir Mas para atingir essa consciência de SI e necessano ainda uma vez separar o eu do que lhe é estranho isto é 73 Sobre o presente no estoicismo e no epicurismo cf P Hadot Le présent seul est notre bonheur in Diogime 133 5881 janmar 1986 74 Ética a Nicômaco IX 1170 b L 279 A filosofia como modo de vida não as pmxoes provocadas pelo corpo mas as paixões provocadas pelos desejos vãos da alma E tornamos en contrar aqui ainda a concentração no presente pms se nos deixarmos arrastar e perturbar pela expectativa e pela esperança do futuro é que a alma pensa no pssado e o futuro 75 porque ela não é cerceada pelos deseJOS que nao são nem naturais nem necessários por exemplo a perse guição de riquezas e de honras que só pode ser satisfeita por um longo esforço tão penoso quanto incerto 76 Os insensatos vivem à espera de bens futuros Sabendo que são incertos são consumidos pela ansiedade e pelo medo E mais tarde é o pior de seus tormentos apercebemse de que foi inutilmente que se apaixonaram pelo dinheiro pelo poder ou pela glória Pois eles não retiraram nenhum prazer de todas essas coisas cuja esperança que os tinha inflamado e pela conquista das quais trabalharam tão penosamente A vida do insensato é ingrata e inquieta Ela se rói comple tamente pelo futuro Os epicuristas admitem que se pode proporcionar um prazer estável mas apenas na medida em que o que é do passado o reatualiza77 É assim que Epicuro78 escreve que suas dores físicas são atenuadas pela lembrança dos raciocínios filosóficos discutidos com seus discípulos o que pode significar por outro lado não somente que a lembrança do prazer passado lhe proporciona um prazer presente mas que os raciocínios filosóficos que rememora lhe permitem também superar seu sofrimento 75 D L X 137 cf JF Balaudé ÉpicuTe p 135 76 Cícero Dos tmnos extmmos I 18 60 Sêneca CaTtas 15 9 77 Cf JF Balaudé Épicure p 135 78 D L X 22 cf Balaudé p 128 280 Filosofia e discurso filosófico Como para os estoicos o exerooo espiritual funda mental consiste para os epicuristas em concentrarse no presente isto é na consciência do eu no presente e em evitar projetar seus desejos sobre o futuro O presente basta para a felicidade pois permite satisfazer os desejos mais simples e mais necessários aqueles que proporcionam um prazer estável É esse um dos temas favoritos do poeta Horácio79 Que a alma feliz no presente recuse inquietarse com o que virá em seguida O presente sonho para bem dispor de um espírito sereno Todo o restante levado como um rio Como para os estoicos esse exercício está por outro lado estreitamente ligado ao pensamento da morte É ele que dá seu valor a cada instante e a cada dia da vida Eis por que é necessário viver cada momento como se fosse o último80 Enquanto falamos o zeloso tempo fugiu colhe então d dia sem te fiar no amanhã Convencete de que cada novo dia que se leva será para ti o último Então é com gratidão que hás de receber cada hora inesperada Com gratidão porque cada instante se manifesta na perspectiva da morte como um dom maravilhoso como uma graça inesperada em sua unicidade81 79 Horácio Odes II 16 35 e III 29 33 80 Id ibid I 11 7 Epístolas I 4 13 81 Filodemo Da morte 37 20 in M Gigante Ricerche Filodemee Napo li 1983 pp 181 e 215216 281 A filosofia como modo de vida Receber reconhecendo todo o seu valor cada momento do empo que se acresce como se chegasse por uma chance maravzlhosa e incrível Devese tomar consciência do esplendor da existências2 a maior parte dos homens são inconscientes e consomemse em desejos vãos que ocultam sua própia vida Sêneca estoicos3 dissera Enquanto se espera VIver a VIda passa 84 Ele parece assim fazer eco a esta sentença epKunsta Só se vive uma vez duas vezes não é permitido Portanto é necessário que não durmamos por toda a eternidade mas tu que não és senhor do amanhã tu ainda mandas a ale gria para 0 dia seguinte A vida contudo se consoe e vão nessas esperas e cada um de nós morre sem ter 1amazs usufruído a paz Como 0 estoico 0 epicurista encontra a perfeição o momento presente Para ele o prazer desse moment ao tem necessidade de durar para ser perfeito Um mco instante de prazer é tão perfeito quanto ma eter1dade de prazerBs Epicuro é aqui o herdeiro da teona anstotelica do prazers6 Para Aristóteles da mesma maneia ue o ato de ver é completo e acabado em sua espenfi1dae em cada momento de sua duraçao0 prazer tambem e em ad momento especificamente acabado O prazer nao e 82 Sobre a paz fundada na identidade do ser do seHe da ipseidade e do sentitse existir cf a bela página de M Hulin La Mystzque sauvage p 237 83 Sêneca Cartas I 13 10 84 Sentenças vaticanas 14 m JF Balaude Epzcure P 2 85 Máximas capitais XIX Balaudé p 202 Cícero Dos termos extremos I 19 63 li 27 87 T Kr 86 Aristóteles Ética a Nicômaco X 3 1174 a 17 ss Cf HJ amer Platonismus und hellenistische Philosophie Berlin 1971 PP 188 ss 282 Filosofia e discurso filosófico um movimento que se desenrola no tempo não depende da duração É uma realidade em si que não se situa na categoria do tempo Do prazer epicurista como da virtude estoica podese dizer que sua quantidade e sua duração em nada mudam sua essência um círculo é um círculo quer seja imenso ou minúsculo Eis por que esperar do futuro um aumento do prazer é ignorar a própria nature za do prazer Só há verdadeiro prazer estável e pacificador para quem sabe limitarse ao que pode alcançar no mo mento presente sem deixarse arrastar pela volúpia des medida dos desejos Virtude estoica e prazer epicurista são assim perfeitos e acabados em cada momento Como o estoico o epicurista pode dizer com Horácio87 Senhor de si e feliz é quem pode dizer a cada dia Eu vivi Eu vivi porque eu conheci a atemporalidade do prazer a perfeição e o valor absoluto do prazer estável eu vivi também porque tomei consciência da atemporalidade do ser Nada poderá impedir com efeito que eu esteja no ser que eu tenha chegado ao prazer de me sentir existir88 A meditação epicurista da morte é destinada simultanea mente a fazer tomar consciência do valor absoluto da existência e do nada da morte a proporcionar o amor da vida e a suprimir o medo da morteB9 É uma e a mesma coisa o exercício do bem viver e o exercício de bem mor rer Bem morrer é compreender que a morte enquanto nãoser nada é para nós mas é também regozijarse a cada instante por ter chegado a ser e saber que a morte não pode diminuir em nada a plenitude do prazer de ser Como 87 Horácio Odes III 29 42 88 C Diano La philosophie du plaisir et la société des amis in id Studi e saggi di filosofia antica Padova 1973 p 364 89 Epicuro Carta a Meneceu 126 Balaudé p 193 283 A filosofia como modo de vida bem notou C Diano por trás da ideia segundo a qual a morte nada é para mim há uma intuição ontológica pro funda o ser não é o nãoser não há passagem do ser ao nada Wittgenstein90 pensa em Epicuro quando escreve A morte não é um evento da vida A morte não se vive Se por eternidade não se entende a duração temporal infinita mas a atemporalidade então vive eternamente quem vive no presente Percebese aqui que Espinosa91 não tinha razão em cer to sentido ao opor a meditação da morte à meditação da vida Elas são com efeito inseparáveis uma da outra são no fundo idênticas e condição indispensável da tomada de consciência de si Desse ponto de vista também não se terá razão em opor radicalmente o exercício da morte em Platão por um lado e entre estoicos e epicuristas por outro Pois de um lado e de outro tratase sempre graças ao pensamento da morte de uma tomada de consciên cia de si visto que de uma maneira ou de outra o que pensa sua morte se pensa na atemporalidade do espírito ou na atemporalidade do ser Podese dizer que em certo sentido um dos exercícios filosóficos mais fundamentais é o exercício da morte Concentração em si e exame de consciência Na perspectiva da filosofia vivida que acabamos de ex por tomar consciência de si é um ato essencialmente ético graças ao qual se transforma a maneira de ser de viver e 90 Wittgenstein Tractatus logicophilosophicus 64311 N do T valime da tradução brasileira 91 Espinosa Ética IV proposição 67 284 Filosofia e discurso filosófico de ver as coisas Ter consciência de si é ter consnencia do estado moral no qual se encontra É o que a tradição da espiritualidade cristã denomina exame de consciên cia prática muito disseminada nas escolas filosóficas da An d d 92 E t1gu1 a e ssa prática enraízase em primeiro lugar no simples fato de que o início da filosofia em todas as escolas é a tomada de consciência do estado de alienação de dispersão de infelicidade no qual alguém se encontra antes de converterse à filosofia Ao princípio epicurista93 O conhecimento do erro é o início da salvação responde 0 princípio estoico94 O ponto de partida da filosofia é a consciência de sua própria fragilidade Mas não se trata somente de pensar nas próprias faltas tratase também de constatar os progressos realizados Em relação aos estoicos sabemos que o fundador da escola Zenão recomendava ao filósofo que examinasse seus sonhos para se dar conta dos progressos da alma o que permite supor uma prática de exame de consciência95 Ele pensava que cada um poderia graças a seus sonhos tomar consciência dos progressos que fazia Esses progressos serão reais caso não se veja mais em sonho vencido por alguma paixão vergonhosa ou ainda consentindo com uma coisa má ou injusta ou mesmo cometendoa mas as faculdades de re presentação e de afetividade da alma suavizadas pela razão 92 Cf H Jaeger Lexamen de conscience dans les religions non chré tJennes et avant e christianisme in Numen 6 175233 1959 e Dictionnaire de spiritualité IV 2 1961 cols 17921794 I Hadot Seneca pp 6671 93 Sêneca Cartas 28 9 citando um texto epicurista 94 Epiteto Conversações II 11 1 95 Plutarco Como perceber que se progride na virtude 82 f 285 A filosofia como modo de vida resplandecem como num oceano diáfano de serenidade que nenhuma vaga vem perturbar Platão96 como vimos já constatara que os sonhos per mitem desvelar o estado da alma O tema reaparecerá na espiritualidade cristã97 Embora não seja atestado explicitamente nos textos podese legitimamente supor que o exame de consciên cia tenha sido praticado na escola epicurista pois ele é quase inseparável da confissão e da correção fraternal nela valorizadas Encontrase um traço disso no século II aC na Carta a ArísteaSJ8 que afirma ser um dever do bom rei divulgar todos os seus feitos e gestos do dia para corrigir o que porventura tenha feito de mal No início da era cristã o neopitagorismo retoma em sentido moral os exercícios de memória que praticavam os antigos pitagóricos como se vê nos Versos douradoSJ9 Não deixa o sono cair sobre teus olhos lassos Antes de ter pesado todos os atos do dia Em que falhei Que fiz qual dever omiti Começa por aí e prossegue oexame após o que Condena o malfeito alegrate pelo bem 96 República IX 571 d 97 Evágrio o Pôntico Tratado prático do monge 5456 cf F Refoulé Revês et vie spirituelle daprês Évrage le Pontique in Supplément de la Vie Spirituelle 59 470516 1961 98 Carta a Aristeas 298 cf I Hadot Seneca pp 6869 Tratase de um texto de origem judaica do século ll aC influenciado pela filosofia grega 99 Porfírio Vida de Pitágoras 40 Epíteto Conversações III 10 3 tradução Souilhé 286 Filosofia e discurso filosófico Essa psagem dos Versos dourados será depois frequen temente Citada ou evocada em apoio da prática do exame de consciência pelos estoicos como Epíteto por um filó sf independente como Galeno e sobretudo pelos neopla tomcos como Porfírio e Jâmblico que descrevem a vida das comunidades pitagóricas como o modelo ideal da vida filosófica O médico Galeno100 independente de toda esco la filosófica preocupdo em cuidar não só dos corpos mas tambem das almas VIncula o exame de consciência à dire ção espiritual Aconselhava que se deveria deixar advertir por suas faltas por um homem mais velho e experimentado e também examinarse a si mesmo pela manhã e à tarde SA 10 fi eneca a rma que ele mesmo pratica esse exercício e qu nis segue o exemplo de um filósofo de inspiração neop1tagonca Sexuo que vivia no tempo de Augusto É necessrio pedir a cada dia à alma a apresentação das contas E o que fazia Sextio após a jornada uma vez tendo se retirado a seu quarto interrogava sua alma De qual mal te curaste hoje Qual vício combateste Em que melhoraste Existe algo mais belo do que escrutar toda uma jornada Qal sono se segue a esse exame que é tranquilo profundo e lzvre quando o espírito é elogiado ou advertido quando ele se faz o observador e o juiz secreto de seus pró prws costumes Uso esse poder e a cada dia defendo minha causa diante de mim mesmo Quando se levantou a luz e minha mulher já habituada à minha maneira de agir se 100 Galeno Do iqgnóstico e do tratamnto das paixões próprias da alma de cada um m Galeno LAme et ses passions Ed et trad V Barras T Birchler AF Morand Paris 1995 p 23 101 Séneca Da cólera III 36 13 P Rabbow Seelenführung citado p 24 nota 9 pp 180181 287 A filosofia como modo de vida matou examino toda a minha jornada e meço meus atos e ditos não escondo nada não perco nada Sêneca desenvolve alhures esta comparação com o pro cedimento judiciário102 Faze a função de acusador de ti mesmo depois de juiz em último lugar de advogado Vêse aparecer aqui a noção de tribunal interior da consciência que se encontrará entre outros em Hiérocles103 ao comentar os Versos dourados pitagóricos o tribunal interior de que falará Kantl04 ao observar a esse propósito que nessa si tuação de juiz de si mesmo o eu se desdobra em um eu inteligível que se dá a si mesmo a sua própria lei pono se em um ponto de vista universal e em um eu sensiVel e individual Reencontramos aqui ainda o desdobramento implicado na ascese e na tomada de consciência de si O eu identificase aqui com a Razão imparcial e objetiva Podese supor que o exame algumas vezes era praticado por escrito quando se vê Epiteto105 aconselhar a que se observe exatamente a frequência dos erros se se encolenza todos os dias ou a cada dois três ou quatro dias106 Mas o exame de consciência não se perde habitual mente nessas minúcias Ao contrário é muito menos um balanço positivo ou negativo do estado da alma do que um meio de restabelecer a consciência de si a atenção a si 102 Sêneca Cartas 28 10 103 Hiérocles In Aureum Carmen Commentarius XIX 4044 Ed F Kõhler Stuttgart 1974 pp 80 20 Commentarius sur les Vers dor p 222 trad M Meunier 104 Kant Métaphysique des mreurs II Premiers Príncipes métaphysiques de la doctrine de la vertu I 1 13 trad A Renaut Paris 1994 t II p 295 105 Epiteto Conversações II 18 12 106 I Hadot Seneca p 70 P Rabbow Seelenführung p 182 288 Filosofia e discurso filosófico o poder da razão Constatase por exemplo em Marco Aurélio 107 que se exorta a si mesmo a prepararse para as dificuldades que encontrará com os outros hqmens e recordase das regras de vida fundamentais que regem as relações com o outro Da mesma maneira Galeno108 recomenda no momento de levantarse e antes de exe cutar as atividades do dia que se pergunte se é melhor viver na escravidão das paixões ou ao contrário utilizar o raciocínio em todas as coisas Epiteto109 também acon selha a que se examine pela manhã para recordarse não só do progresso que se deve fazer mas dos princípios que devem guiar a ação Pela manhã tão logo te levantes perguntate O que me resta fazer para conquistar a impassibilidade e a ausência de perturbação O que eu sou Um corpo Uma fortuna Uma reputação Nada disso Mas o quê Sou um ser racio nal Então o que se exige de tal ser Repassa no espírito tuas ações O que negligenciei em relação ao que conduz à felicidade O que fiz de contrário à amizade às obrigações da sociedade às qualidades do coração Que dever omiti nesses assuntos Entreveemse mesmo perspectivas ainda maiores quan do Epiteto110 exortando o filósofo a saber viver apenas consigo mesmo lhe dá o exemplo de Zeus que quando estava só após a conflagração periódica do universo e antes do início de uni novo período cósmico descansa em si mesmo reflete sobre a natureza de seu próprio 107 Marco Aurélio Meditações II 1 108 Galeno Do diagnóstico p 19 109 Epiteto Conversações N 6 34 llO Id ibid III 13 6 289 A filosofia como modo de vida governo e entretémse com pensamentos dignos dele Assim continua Epiteto Também nós devemos conversar com nós mesmos saber passar sem os outros não nos enredar pela maneira de ocupar nossa vida devemos refletir sobre o governo divino sobre nossas re lações com o restante do mundo considerar qual foi até hOje nossa atitude em face dos acontecimentos qual é ela agora quais são as coisas que nos afligem como também podemos remediar isso como se pode extirpálas Aqui o exame de consciência aparece como parte de um exercício muito mais vasto que o da meditação O movimento de concentração em si e de atenção a si está estreitamente ligado a um movimento inverso o de dilata ção e expansão pelo qual seu eu se repõe na perspectiva do Todo de sua relação com o restante do mundo e com o destino que se manifesta nos acontecimentos A relação com o cosmos e a expansão do eu A expansão do eu no cosmos Vimos como um dos exercícios espirituais recomendados por Platão consistia em uma espécie de dilatação do eu na totalidade do real A almadeve tender incessantemente a abraçar em seu conjunto e em sua totalidade as coisas divinas e as humanas contemplar todos os tempos e todos os seresm Desse modo a alma se estende de alguma maneira para a imensidão caminha pelo espaço e gover 111 República VI 486 a Sobre esse tema cf P Hadot La terre vue den haut et le voyage cosmique inJ Schneider et Monique LégerOrine Frontieres et conquête spatiale La philosophie à lépreuve Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1988 pp 3140 290 Filosofia e discurso filosófico na todo o Universo112 enquanto o corpo continua apenas a habitar a cidade O pensamento considerando inane e sem valor todas as coisas merecedoras apenas de desdém paira acima de tudo sonlando os abismos da terra e medindo sua superfície contemplando os astros para além do céu a perscrutar a natureza em universal e cada ser em sua totalidade sem jamais descer a ocuparse com o que se passa a seu lado 113 A contemplação aristotélica da natureza indo do olhar amoroso voltado para a natureza ao prazer maravilhoso que proporcionam as obras da Natureza provoca a mesma elevação de pensamento Há igualmente uma expansão do eu no cosmos entre os epicuristas ela proporciona a volúpia de mergulhar no infinito O mundo que vemos é para o epicurista apenas um dos mundos inumeráveis que se estendem no espaço infinito e no tempo infinito114 É nos espaços inumeráveis infinitos que o espírito alça seu voa e abrese para percorrêlos em todas as direções de modo que jamais veja termo algum nenhum limite no qual possa deterse Visto que o espaço se estende ao infinito para além das muralhas deste mundo o espírito procura saber o que se encontra nesta imensidão na qual pode mergulhar seu olhar tão longe quanto possa e na qual possa voar com um voa livre e espontâneo As muralhas do mundo se desvanecem Vejo no imenso vazio nascer as coisas A terra não me impede de distinguir 112 Fedro 246 bc 113 Teeteto 173 e 114 Cícero Da natureza dos deuses I 21 54 Lucrécio Da natureza II 10441047 e III 16 e 30 291 A filosofia como modo de vida tudo o que sob os meus pés realiza no vazio Ante esse espe táculo sintome tomado por um frêmito de prazer divino Notemos de passagem que como pensam alguns histo riadores não será necessário esperar Copérnico para que as muralhas do mundo se desvaneçam e para que se passe do mundo fechado ao universo infinito115 Como a consciência da existência a contemplação epicurista da natureza é uma elevação à atemporalidade como diz uma sentença epicurista116 Lembrate de que tu nascido mortal e tendo recebido uma vida limitada tu contudo te elevaste graças à ciência da natureza até a eternidade e que viste infinitas coisas as que serão e as que são Entre os estoicos há também um exercício de expan são do eu e essa expansão se faz igualmente no infinito porém não mais no infinito dos universos inumeráveis pois para eles o mundo é finito e único mas na infinitude do tempo no seio do qual se repete eternamente o mesmo desenrolar de acontecimentos que constitui o mundo O eu mergulha na totalidade do mundo da qual experimenta com alegria já que é parte integrante117 Diznos antes quão natual é ao homem estender seu pensa mento no infinito Ele nãoadmite limites senão aqueles que são comuns com o próprio Deus 1 Sua pátria é a que encer ra por seu movimento circular o céu e o mundo 1 115 Para retomar o título do livro de A Koyré Du monde elos à lunivers infini Paris 1973 Do mundo fechado ao universo infinito tradução de Donaldson M Garschagen São PauloRio de Janeiro EduspForense Universitária 1979 116 Sentenças vaticanas 10 Balaudé p 210 117 Sêneca Cartas 102 21 Questões naturais I Prólogo 12 Marco Aurélio Meditações XI 1 3 VII 47 1 X 17 292 Filosofia e discurso filosófico A alma atinge a plenitude e o acabamento da felicidade que pode atingir a condição humana quando ganha as alturas e chega ao interior do seio da natureza 1 ela se apraz em planar no meio dos astros 1 Tendo chegado ao alto ela se alimenta e avulta dele liberta de seus entraves regressa à sua origem A alma percorre o mundo inteiro e o vazio que o rodeia e sua forma e estendese na infinitude do tempo infinito e abraça e concebe o renascimento periódico do tempo Abraçar pelo olhar os cursos dos astros como se eles te do minassem com suas revoluções e constantemente pensar as transformações dos elementos uns nos outros Tais representações purificam as manchas da vida terrestre ConstantertJente imaginar a totalidade do mundo e a totali dade da realidade Na tradição platônica na qual domina a memória da República do Fedro e do Teeteto o voo da alma nos espaços cósmicos é um tema muito frequente118 Aspirando a uma vida de paz e de serenidade eles comple mentam a natureza e tudo o que se encontra nela 1 eles acompanham pelo pensamento a lua o sol as evoluções dos outros astros errantes ou fixos seus corpos permanecem sem dúvida sobre a terra mas eles dão asas às suas almas por quanto elevandose no éter elas observam as potências que aí se encontram como convém a homens que se tornaram cidadãos do mundo O astrônomo Ptolomeu no qual se encontram ecos das doutrinas platônica estoica e aristotélica exprime também em um epigrama que lhe é atribuído com alguma verossimi 118 Fílon de Alexandria De specialibus legibus 11 45 293 A filosofia como modo de vida lhança a impressão que experimenta ao unirse à vida di vina quando voa pelo pensamento nos espaços celestes119 Eu o sei sou mortal e não duro senão um dia Mas quando acompanho em seu curso circular as filas rápidas dos astros meus pés não tocam mais a terra vou à presença do próprio Zeus me fartar de ambrosia como os deuses Em todas as escolas que o praticam esse exercício de pensamento e de imaginação consiste finalmente para o filósofo em tomar consciência de seu ser no Todo como ponto minúsculo e de frágil duração mas capaz de dilatarse no campo imenso do espaço infinito e de colher em uma única intuição a totalidade da realidade O eu há de experimentar assim um duplo sentimento o da pequenez ao ver sua individualidade corporal perdida no infinito do espaço e do tempo e o de sua grandeza ao experimentar seu poder de abraçar a totalidade das coisas120 Podese dizer que se trata aí de um exercício de desligamento de distanciamento destinado a nos ensinar a ver as coisas com imparcialidade e objetividade É o que os modernos denominarão o ponto de vista de Sírio Renan121 escreverá em 1880 Quando se põe no pontode vista do sistema solar nossas revoluções mal têm a amplitude de movimentos do átomo Do ponto de vista de Sírio ainda menos Inútil dizer que essa visão racional e universal nada tem a ver com o pretenso transe do xamã 119 Tradução Aj Festugiere La Rioélation dHermes Trismégiste T I Paris 1944 p 317 Antologia palatina IX 577 120 Cf P Hadot La Citadelle intérieure pp 195198 121 E Renan illuvres completes T II Paris 1948 p 1037 294 Filosofia e discurso filosôfico O olhar do alto Das alturas às quais se eleva pelo pensamento do alto o filósofo lança um olhar à terra e aos homens e os julga por seu justo valor Como diz um texto de filosofia chinesa122 Ele vê as coisas à luz do Céu A visão da totalidade do ser e do tempo da qual fala a República de Platão conduz a que se despreze a morte E no Teeteto para o filósofo que percorre toda a vastidão do real todos os negócios humanos são mesquinharias e nada e ele considera bem pequenas as posses dos homens ele que está habituado123 a abraçar com o olhar a terra inteira Esse tema é reencontrado no famoso Sonho de Cipião no qual Cícero narra como Cipião Emiliano viu aparecer em sonho seu avô Cipião o Africano Transportado então para a Via Láctea donde contempla todo o universo ele vê do alto a terra que lhe parece como um ponto de modo que tem vergonha das pequenas dimensões do Império romano Seu avô o faz observar a existência de vastas ex tensões desérticas para fazêlo sentir como é minúsculo o espaço no qual pode estenderse o renome ao qual se atribui tanto valor124 Sob a influência de uma fonte neopitagórica Ovídio125 no fim das Metamorfoses põe estas palavras na boca de Pitágoras 122 Fong YeouLan Précis de philosophie chinoise Paris 1952 p 128 123 Teeteto 174 e 124 Cícero República VI 9 9 Vejase Aj Festugiere La Rioélation dHermes Trismégiste T II Paris 1944 pp 441459 125 Ovídio Metamorfoses XV 147 ss Metamorfoses in Maria da Glória Novak org Poesia lírica latina 2a ed São Paulo Martins Fontes 1992 295 A filosofia como modo de vida Quero encontrar meu caminho entre os astros supremos quero abandonar a terra moradia inerte quero me Jazer levar pelas nuvens do alto eu veria os homens errando ao acaso e tremendo por falta de razão ante a ideia da morte Os epicuristas e os estoicos recomendam também essa atitude Do alto das regiões serenas Lucrécio126 volta seu olhar para os homens e os vê errar por um lado e outro e procurar ao acaso o caminho da vida Para Sêneca127 a alma do filósofo transportada para o meio dos astros lança do alto do céu um olhar à Terra que lhe parece um ponto As guerras por fronteiras que os homens fazem entre si parecem ridículas e as tropas que invadem os territórios são apenas formigas que combatem num espaço estreito É isso o que pensa o cínico Menipo na brilhante nar ração de Luciano intitulada Icaromenipo quando tendo chegado à lua vê os homens brigar estupidamente pelos limites de um país e os ricos orgulharse de suas terras que diz ele não são maiores que um átomo de Epicuro Ele também ao ver do alto os homens comparaos a for migas Em outra obra intitulada Garante o barqueiro dos mortos Caronte olha de uma altura vertiginosa a vida dos homens sobre a Terra e a loucura de suas ações e as examina pensando que iogaos liomens morrerão Precisamente não é indiferente que esse observador seja o barqueiro dos mortos Olhar do alto é olhar as coisas na perspectiva da morte Nos dois casos olhamse as coi sas com afastamento distância recuo objetividade tais quais são em si mesmas repondoas na imensidão do 126 Lucrécio Da natureza 11 8 127 Sêneca Questões naturais I Prólogo 710 296 Filosofia e discurso filosófico universo na totalidade da natureza sem lhes acrescentar os falsos valores que emprestam a elas nossas paixões e as convenções humanas O olhar a partir do alto muda nossos juízos de valor sobre as coisas O luxo o poder a guerra as fronteiras os cuidados da vida cotidiana tornam se ridículos Vêse a tomada de consoencia de si quer seja no movimento de concentração em si ou no movimento de expansão para o Todo requer sempre o exercício da morte que é de alguma maneira desde Platão a essência da filosofia A física como exercício espiritual Já falamos do exercício espiritual da física128 A ex pressão soa estranha a nossos ouvidos modernos mas corresponde exatamente à representação que se fez tra dicionalmente da física na filosofia antiga ao menos a partir de Platão De maneira geral a física antiga não pretende propor um sistema de natureza totalmente rigoroso em todos os detalhes Há indiscutivelmente alguns princípios gerais de explicação por exemplo a oposição entre a escolha do melhor e a necessidade no Timeu ou o vazio e os átomos em Epicuro há também uma visão global do universo Mas para a explicação de fenômenos particulares o filósofo antigo não pretende alcançar a certeza ele se contenta em propor várias ou uma única explicação veros símil ou razoável que lhe satisfazem o espírito ou lhe 128 Cf acima p 200 297 A filosofia como modo de vida proporcionam prazer A propósito dos metais Platão faz esta observação129 Não é nada difícil explicar as outras substâncias desse tipo de metais sempre de acordo com o mito verossímil esse ti po de narração dá a todo homem que se entrega a um prazer sem remorso à guisa de recreação pondo de lado os discur sos relativos às realidades que sempre são e considerando a verossimilhança das coisas sujeitas ao devir a possibilidade de pôr em sua vida um momento de recreação moderada e razoável Aqui como sempre é necessário ter em conta a ironia platônica que simula não levar a sério o que lhe está no coração mas não resta dúvida que Platão considera que as coisas naturais produzidas pelos deuses por fim escapam a nosso conhecimento De maneira geral podese dizer que os escritos da Antiguidade que se reportam à física não são tratados nos quais de uma vez por todas seria exposta uma teoria definitiva e sistemática dos fenômenos físicos examinados por si mesmos Sua finalidade é outra Ensinase a tratar os fenômenos de maneira metódica caso de Aristóteles ou a consagrarse ao que Epicuro denomina o exercício energêma contí11uo da ciência da natureza physiologia exercício diz ele130 que conduz ao ponto mais alto a serenidade nesta vida ou ainda a elevar o espírito pela contemplação da natureza Esse exercício tem finalidade moral cuja tônica é dife rente sem dúvida nas diversas escolas mas que é sempre 129 Timeu 59 cd Cf J Mittelstrass Die Rettung der Phiinomene Berlin 1962 p llO 130 Epicuro Carta a Heródoto 36 Balaudé p 152 298 Filosofia e discurso filosófico reconhecida Isso já é verdadeiro no Timeu Platão131 convida a alma humana a imitar no movimento de seus pensamen tos a alma do mundo e a atingir assim o objetivo da vida humana Para Aristóteles a prática da investigação leva a alegria à alma e fála atingir assim a felicidade suprema da vida muitas vezes o filósofo atingirá apenas o verossímil o eulogon o que não satisfaz o espírito mas lhe proporciona uma alegria132 Para Epicuro o exercício da ciência da na tureza liberta do medo dos deuses e do temor da morte É em um texto de Cícero inspirado pela filosofia da Nova Academia que se encontrará talvez a melhor descrição da ffsica concebida como exercício espiritual Como bom discí pulo de Arquesilau e de Cameada ele começa por retomar as reflexões platônicas sobre as incertezas ligadas ao conhe cimento da natureza e notadamente sobre as dificuldades da observação e da experimentação Mas as investigações físicas não têm menos uma finalidade moraP33 Não penso que seja necessário renunciar às questões dos fí sicos A observação e a contemplação da natureza são uma espécie de alimento natural para as almas e os espíritos Nós nos corrigimos ampliamos leio lati ores olhamos do alto as coisas humanas e contemplando as coisas superiores e celestes desprezamos nossas coisas humanas como mesquinhas e estrei tas A investigação das coisas que são as maiores e ao mesmo tempo as mais obscuras nos dá prazer se nessa investigação alguma coisa de verossímil se nos apresenta nosso espírito é tomado por um nobre prazer humano 131 Timeu 90 a 132 JM Le Blond Aristote philosophe de la vie Paris 1944 p 71 133 Cícero Lucullus 41 127 299 A filosofia como modo de vida No início de suas Questões naturais Sêneca134 também vê na elevação da alma a principal justificação da física Contemplar essas coisas estudálas consagrarse a elas absorver se nelas não é exceder a condição mortal e ter acesso a uma condição superior Qual proveito tu me dizes poderás tirar de teus estudos Se não por outra coisa certamente por isso saberei que tu és pequeno quando eu tomar a medida de Deus Além disso acompanhada ou não de um esforço de explicação racional a contemplação da natureza tem uma significação existencial É a maior felicidade na Terra segundo o poeta Menandro135 talvez influenciado por Epicuro A maior felicidade a meus olhos 1 antes de retornar bem rápido de onde vimos é ter contemplado sem perturbação seres augustos o Sol que brilha sobre todos os astros a água as nuvens o Jogo Vivase cem ou alguns anos sempre o mesmo espetáculo se oferece a nós e jamais se verá outro que seja mais digno de homenagem Tratase aqui de uma tradição constante na filosofia antiga o que confere sentido e valor à vida humana é a contemplação da Natureza e é graças a essa contemplação que cada dia é uma festa pira o homem bom136 É no estoicismo que o exercício da física ganha todo seu valor Mais que de qualquer outra coisa o estoico tem consciência de estar a cada instante em contato com o 134 Sêneca Questões naturais I Prol 17 135 Tradução de AJ Festugiêre La Révélation dHerrnes Trismégiste t II pp 165 e 169 136 Plutarco Da tranquilidade da alma 477 ce 300 Filosofia e discurso filosófico universo inteiro É que em cada acontecimento presente o universo inteiro está implicado137 O que quer que te aconteça estava para ti preparado desde a eternidade e a urdidura das causas desde o tempo infinito havia entretecido tua substância com sua ocorrência Deves conformarte com o que te acontece por duas razões primeira porque foi Jeito para ti prescrito para ti e de certo modo se relacionava contigo desde o alto na urdidura das causas mais veneráveis Tudo o que te acontece estava desde o início determinado e urdido para ti desde o Todo Assim a concentração do eu no presente e a dilatação do eu no cosmos realizamse em um único instante Como o diz Sêneca138 Ele gozava do presente sem depender do que ainda não existe 1 Ele é sem esperança e sem desejo não se lança para um objetivo problemático pois se satisfaz com o que possui Ele não se satisfaz com pouca coisa pois o que possui é o universo 1 Como Deus ele diz Tudo é para mim Em todo momento ao encontrarme ante cada aconte cimento estou em relação com todo o desenrolar passado e futuro do universo E a escolha de vida estoica consiste precisamente em dizer sim ao Universo em sua totalida de em querer que o que acontece aconteça como aconte ce Marco Aurélio139 diz ao Universo Temos o mesmo amor Ora é a física que faz compreender que tudo está 137 Marco Aurélio Meditações X 5 V 8 12 IY 26 138 Sêneca Dos benefícios VII 2 e 3 3 139 Marco Aurélio Meditações X 21 301 A filosofia como modo de vida em tudo e que como diz Crisipo140 uma única gota de vinho pode misturarse a todo o mar e estenderse ao mundo inteiro O consentimento ao destino e ao Universo renova do por ocasião de cada acontecimento é a física praticada e vivida Esse exercício consiste em pôr a razão individual em acordo com a Natureza que é a Razão universal isto é em igualarse ao Todo a mergulliar no Todo141 em não ser mais homem mas Natureza Essa tendência ao despo jamento do homem é constante nas mais diversas escolas desde Pirro que como vimos dizia que era difícil despojar o homem até Aristóteles para quem a vida segundo o espírito é sobrehumana e até Plotino142 para quem na experiência mística não se é mais homem A relação com o outro Ao longo de toda nossa apresentação das diferentes escolas filosóficas encontramos o problema das relações do filósofo com os outros homens seu papel na cidade sua vida com os outros membros da escola Reconhecese antes de tudo a importância capital da direção espiri tuaP43 Isso comporta dois aspectos de uma parte a ação de educação moral em geral de outra a relação que liga individualmente um mestre a um discípulo Sob esses dois aspectos a filosofia antiga édireção espiritual Como dirá Simplício144 no fim da história do pensamento antigo 140 Plutarco Das noções comuns 37 1078 e in Les Stoiâens Éd E Bréhier p 169 141 Sêneca Cartas 66 6 142 Plotino Eneadas V 3 49 4 10 e VI 7 38 34 1617 143 I Hadot The Spiritual Guide in Classical Mediterranean Spirituality Egyptian Greek Roman New York Ed A H Armstrong 1986 pp 436459 144 Simplício Commentaire sur le Manuel dÉpictete XXXII ligne 154 Éd I Hadot Leyde Brill 1995 302 Filosofia e discurso filosófico Que lugar terá o filósofo na cidade Será o de um escultor de homens e de um artesão que fabrica cidadãos leais e dignos Ele não terá outro ofício além de purificarse a si mesmo e purificar os outros para viver a vida conforme a natureza que convém ao homem será o pai comum e o pedagogo de todos os cidadãos seu reformador seu conselheiro e seu protetor oferecendose a todos para cooperar na realização de todo o bem regozijandose com os que têm felicidade compadecendose dos que são afligidos e consolandoos No que concerne à educação moral geral como Ja entrevimos a filosofia tomou o partido da cidade A cida de grega como bem mostrou L Hadot145 preocupavase especialmente com a formação ética dos cidadãos como atesta entre outros o uso de erigir nas cidades estelas nas quais fossem gravadas as máximas da sabedoria délfica Cada escola filosófica quis retomar à sua maneira essa missão educativa seja como entre os platônicos e os aristotélicos agindo sobre os legisladores e os governantes considerados os educadores da cidade seja como entre os estoicos os epicuristas ou os cínicos procurando converter os indivíduos por uma propaganda missionária que se dirigia a todos os homens sem distinção de sexo ou de condição social A direção espiritual apresentase como um método de educação individual Ela tem duplo fim Tratase antes de tudo de permitir ao discípulo tomar consciência de si isto é de seus defeitos e progressos Esse era segundo Marco Aurélio o papel que teria desempenhado em sua vida o estoico Júnio Rústico146 A compreensão de que devia 145 I Hadot The Spiritual Guide pp 441444 146 Marco Aurélio Meditações I 7 1 303 A filosofia como modo de vida corrigir e cultivar meu caráter Tratase depois disso de ajudar o discípulo a fazer as escolhas particulares razoáveis na vida de todos os dias Razoáveis isto é quanto possível boas pois a maior parte das escolas concordam em reco nhecer que quando se trata de decidir pelas ações que não dependem inteiramente de nós navegar travar guer ra casarse ter filhos não podemos esperar ter a certeza para que possamos agir mas devemos fazer nossas escolhas conforme as probabilidades Um conselheiro é então frequentemente indispensável P Rabbow e I Hadot147 analisaram muito bem os méto dos e as formas da direção espiritual individual cuja prática é atestada em quase todas as escolas filosóficas Tal qual se nos revela nos Diálogos de Platão ou nas Memoráveis de Xenofonte Sócrates pode ser considerado o modelo do diretor espiritual que por seus discursos e sua maneira de ser provoca um golpe ou um choque na alma daquele a quem se dirige e obrigao assim a pôr em questão a pró pria vida Podese também qualificar com o mesmo termo a influência que Platão exerce sobre Díon de Siracusa e os conselhos morais e políticos que lhe concede A tradição menciona além disso que Platão era atento ao caráter particular de cada um de seus discípulos Ele teria dito a propósito de Aristóteles148 Ele tem necessidade de rédea e a propósito de Xenócrates Tem necessidade de espora Ele repetia constantemente a Xenócrates que era sempre severo e grave Sacrifica às Graças 147 P Rabbow Seelenjührung pp 260279 I Hadot The Spiritual Guide pp 444459 148 D L IV 6 304 Filosofia e discurso filosófico O próprio Platão apresenta na Carta VII os princípios que devem reger tanto a direção espiritual como a ação política149 Quando se dão conselhos a um homem doente que segue uma má dieta a primeira coisa a fazer para restituirlhe a saúde é mudar seu modo de vida É necessária uma mudança de vida para poder ser tratado A quem aceita essa mudança de vida podemse dar alguns conselhos Com semelhantes sentimentos sempre que alguém me consulta acerca de alguma questão vital ou seja sobre a posse de riqueza ou os cuidados que devemos dar ao corpo e à alma se seu modo de vida me parecer aceitável e que ele acolherá bem meus conselhos na matéria consultada com a melhor boa vontade lhe direi o que penso sem cingirme a uma resposta superficial por mero desencargo de consciência Reencontrase aqui o princípio da êtica do diálogo só se pode dialogar com alguém que queira sinceramente dialogar Não se deve constranger quem se recusa a mudar de modo de vida Não se deve irritálo nem lisoeálo nem fazerlhe vãs reprimendas nem ajudálo na satisfa ção de desejos que se desaprovam E isso também vale para a cidade que se recusa a mudar de modo de vida O filósofo poderá dizer que desaprova a depravação da cidade se nisso houver alguma utilidade Mas que não use de violência Quando não é possível assegurar a realização de um regime político melhor sem banir e sem matar homens é melhor 149 Carta VII 330 c331 a trad Brisson pp 176177 305 A filosofia como modo de vida manterse tranquilo e formular votos pelo seu bem pessoal e pelo da cidade Em relação aos nmcos conhecemos alguns casos em que o mestre desaprova esse ou aquele discípulo humilhan doo ou repreendendoo150 Da escola de Epicuro temos preciosos testemunhos sobre a prática da dição espitul notadamente sob a forma epistolar A pratrca da d1reçao espiritual chegava a ser nessa escola o objeto de um ensi 151 s b z namento como atesta o tratado de Filodemo o re a z berdade de palavra extraído das aulas dadas sobre o tema pelo epicurista Zenão152 A franqueza de linguagem o mestre aparece aí como uma arte defimda como aleatona estocástica na medida em que ele deve ter em conta os mo mentos e as circunstâncias O mestre deverá esperar os reve ses procurar e tornar a procurar corrigir a conduta do discípulo compadecendose de suas dificuldades Mas para tanto é necessário que o discípulo não hesite em reconhe cer suas dificuldades e seus erros e que fale com liberdade absoluta Como se vê a tradição epicurista reconhece o valor terapêutico da palavra Como conrapartida o nese deve escutar com simpatia sem zombana ou malevolenna Em resposta à confissão do discípulo o mestre deverá também falar livremente para admoestar o discípulo fa zendoo compreender a verdadeira finalidade de suas re primendas Epicuro nota Filodemo não hesitu em fazer repreensões bastante vivas em uma carta d1ng1da a seu 150 Cf a atitude de Crates com relação a seu discípulo Zenão in L Paquet Les Cyniques grecs Paris 1992 p 16 151 Sobre esse tratado d M G1gante Philodeme Sur la lzberte de pa rai in Actes du VIJie Congris 1969 Paris Association Guillaume Budé 1970 pp 196220 e Ricerche Filodemee 2 edizione Napoli 1983 pp 55113 152 P Rabbow Seelenführung pp 269270 306 Filosofia e discurso filosófico discípulo Apolonides É necessário que a admoestação seja serena sem faltar à benevolência Notese que Filodemo também acrescenta que o filósofo não deve temer dirigir repreensões aos homens políticos Na escola de Epicuro temos um exemplo de direção espiritual na carta que um de seus discípulos Metrodor0 I53 escreve ao jovem Pítocles Tu me dizes que o aguilhão da carne te leva a abusar dos prazeres do amor Se não infringes as leis e não perturbas de nenhum modo os bons costumes estabelecidos se não incomodas nenhum de teus vizinhos se não esgotas tuas forças e não dis sipas tua fortuna entregate sem escrúpulos à tua inclinação Entretanto é impossível não ser preso por ao menos uma dessas barreiras os prazeres do amor não oferecem nenhum proveito para ninguém já é muito quando não prejudicam Pouco sabemos sobre a direção de consciência no antigo estoicismo Podemos em todo caso supor que os tratados estoicos de casuística escritos por Antipater de Tarso e Diógenes da Babilônia cujos vestígios reencon tramos no tratado Dos deveres de Cícero resumem uma longa experiência de direção de consciência Seja como for a história do estoicismo apresentanos várias figuras de diretores de alma Sêneca em suas Cartas a Lucílio Musônio Rufo em seus escritos Epiteto nas Conversações referidas por Arriano A direção espiritual de Sêneca é muito lite rária De uma extremidade a outra de suas cartas as fór mulas notáveis as imagens as próprias sonoridades são escolhidas intencionalmente Mas as observações psicoló 153 Trad Festugiere in Épicure et ses dieux p 40 Sentenças vaticanas LI Balaudé p 216 307 A filosofia como modo de vida gicas e a descrição dos exercícios estoicos também são nelas muito preciosas Tudo leva a pensar que o mestre estoico de Marco Aurélio Júnio Rústico foi para ele um diretor de consciência com o qual o futuro imperador se irrita muitas vezes sem dúvida por causa da franqueza de linguagem desse filósofo Na Vida de Platina escrita por Porfírio e nas outras Vidas de filósofos do fim da Antiguidade muitos rela tos deixam entrever práticas de direção espiritual Por exemplo nelas se encontra a célebre história de Plotino aconselhando a viajar154 um Porfírio tomado por pen samentos suicidas Também conhecemos um pormenor interessante sobre a maneira pela qual Edésio filósofo que lecionava em Pérgamo no século IV corrigia a arro gância de seus alunos155 Edésio tinha uma maneira de ser afável e próxima do povo Após as justas dialéticas saía para passear em Pérgamo com seus discípulos mais notáveis Ele queria que seus discípulos tivessem na alma um sentimento de harmonia e de responsa bilidade em relação ao gênero humano quando via que eles se tornavam injuriosos e altivos por causa do orgulho que tinham de suas opiniões fqja cair suas asas não no mar mas na terra e no seio da vida numana Caso encontrasse uma vendedora de legumes tinha prazer nisso detinhase para conversar com ela sobre os preços sobre o dinheiro que ganhava sobre a produção de legumes Ele agia do mesmo modo com um tecelão um ferreiro um carpinteiro 154 Porfírio Vida de Platina 11 13 155 Eunapo Vida de filósofos e de sofistas p 57 1018 Giangrande veja se R Goulet Aidésius de Cappadoce in id Dictionnaire des philosophes antiques t I p 74 308 Filosofia e discurso filosófico Um texto de Plutarco156 resumirá oportunamente tudo 0 que acanos de entrever sobre o fenômeno da direção de cnsoenoa nas escolas filosóficas e a liberdade de ex pressao nelas valorizada No caso diz ele em que quem vai scutar m filósofo é perturbado por algumà coisa particular Seja ua paixão inflamada que tem necessida de e ser renmida seja um sofrimento que precisa ser apaziguado e necessano então mostrála aos olhos de todo o mundo e dela cuidar Se um golpe de cólera um acesso de superstição um desa cordo agudo com o que nos rodeia ou um desejo apaixo nado prduzzo pelo amor fazendo vibrar fibras de nosso coraçao amazs vibradas turva nossos pensamentos não se deve procurar falar de outra coisa com 0 mestre para evitar ser censuao mas é precisamente os discursos que tratam dessas pazxoes que é necessário escutar durante as aulas e terminada a aula é necessário ir encontrar em particular 0 mstres apresentandolhes questões suplementares É necessário evztar faze o inverso à imagem da maior parte das pessoas elas apreczam os filosofas e os admiram quando eles falam de outros assuntos mas se os filósofos deixando os outros temas de lado lhes falam em particular com franqueza sobre as cozsas que são importantes para elas e as recordam disso elas mal os suportam e os consideram indiscretos A maior parte das pessoas continua Plutarco vê os filó sofos apenas como sofistas que uma vez fora das tribunas e longe de seus livros e manuais de iniciação são inferiores aos outros homens nos atos reais da VIda e VIvem outro modo de VIda que o dos verdadeiros filósofos 156 Plutarco Como escutar 43 d 309 A filosofia como modo de vida Os filósofos antigos desenvolveram todos os tipos de prática de terapia da alma exercitandose por meio e di ferentes formas de discurso quer se trate da exortaçao da reprimenda da consolação ou da instrução Sbese qu na Grécia desde Homero e Hesíodo era possiVel modi ficar as decisões e as disposições interiores dos homens escolhendo habilmente as palavras capazes de persuadir157 É nessa tradição que na época dos sofistas se constituirão as regras da arte retórica A direção espiritual filosófica e também os exercícios espirituais pelos quais o indivíduo esforçase para influenciarse e modificarse a si mesmo utilizarão muitos procedimentos retóricos para provocar a conversão e operar a convicção Sobretudo o uso da direção espiritual e a terapia das almas conduzirão as filosofias antigas a um grande conhe cimento do coração humano de suas motivações cons cientes ou inconscientes de suas intenções profundas puras ou impuras O Fedro de Platão permitiu que se vislumbrasse mas sem entrar em detalhes a possibilidade de uma retó rica que saberia adaptar seus gêneros de discurso aos dife rentes tipos de alma Há nele além disso um programa de direção de consciência O livro II da Retórica158 de Aristóteles realiza em parte esse prújefoao descrever tudo o que é necessário conhecer das disposições do ouvinte por exem plo as influências que exercem sobre ele as paixões o es tado social ou a idade Muito importantes também so as descrições das virtudes e dos vícios nas diferentes Eticas 157 Cf J de Romilly Patience mon cmur LEssor de la psychologie dans la littérature grecque classique Paris 1984 158 Arte Retórica tradução de Antonio Pinto de Carvalho Sao Paulo Difusão Europeia do Livro 1959 310 Filosofia e discurso filosófico de Aristóteles nas quais elas se destinam a esclarecer o legislador sobre a maneira de governar os homens Vimos que o tratado epicurista Sobre a liberdade de palavra estudava comrecisão os senmentos que nascem no indivíduo por ocas1ao das exortaçoes da confissão e da culpabilidade Encontrase no epicurista Lucrécio e no estoico Sêneca uma notável descrição de torturas que a alma humana sabe se infligir Cada um procura fugir a si próprio mas fica preso à força a esse eu que odeia159 por esse aborrecimen to que vai até a náusea e faz dizer Até quando as mesmas coisas 160 ou ainda da hesitação em converterse à filosofia que Sêneca descreve no prólogo de seu tratado Sobre a tranquilidade da alma ao fazer falar seu amigo Sereno confessandose de certa forma a Sêneca161 Observando atentamente descobri em mim certos defeitos muito afarentes os quais poderia tocar com o dedo outros que se dzsszmulam nas regiões profundas outros enjim que não são contínuos mas reaparecem somente em intervalos A disposição que me surpreende ser a mais frequente porquanto não me abriria a ti mesmo como a um médico é a de não ter francamente me libertado de meus medos e de minhas repugnâncias de outrora nem mesmo sob seu império Sereno analisa longamente todos os aspectos de sua irresolução suas hesitações entre a vida simples e a vida de luxo entre a vida ativa a serviço dos homens e o lazer que leva à tranquilidade entre o desejo de imortalizarse em uma obra literária e a vontade de escrever apenas por utilidade moral 159 Lucrécio Da natureza III 1068 160 Sêneca Cartas 24 26 161 Sêneca Da tranquilidade da alma I 1 311 A filosofia como modo de vida Encontramse também observações muito fecundas no longo comentário que o neoplatônico Simplício consagrou ao Manual de Epiteto Essa prática tradicional da direção de consciência levou a compreender melhor tudo o que a pureza da ação moral exige Tomaremos como exemplo as Meditações de Marco Aurélio nas quais se encontra uma descrição ideal da ma neira pela qual é necessário praticar a ação sobre o outro Só se pode admirar por exemplo a extrema delicadeza com a qual Marco Aurélio define a atitude que se deve ter para agir sobre a consciência de outrem a benevolência de que se deve dar demonstração a quem cometeu uma falta como se deve dirigir a ele162 não insultando nem dando demonstração de minha constância mas com nobreza e sinceridade com simpatia sem ironia sem humilhar mas com afeição com um coração isento de amargura nem em tom de mestreescola nem para se Jazer admirar por alguém que tenha assistido à conversa e sim para ele só embora estefam algumas outras pessoas presentes Marco Aurélio vislumbra aqui que a simpatia é coisa tão delicada que mesmo querer ser simpático já seria dei xar de ser simpático porque todo artifício e toda afetação destroem a simpatia Por outro lado agese eficazmente sobre os outros quando se procura agir sobre eles quando se evita toda violência mesmo espiritual que pudesse ser feita ou a si mesmo ou aos outros É essa simpatia pura é essa delicadeza que tem o poder de fazer mudar de opi nião de converter de transformar os outros E do mesmo 162 Marco Aurélio Meditações XI 13 2 e XI 18 18 cf P Hadot La Citadelle intérieure p 241 312 Filosofia e discurso filosófico modo quando se quer fazer bem ao outro a intenção de beU fazer penas será verdadeiramente pura caso seja esponnea e mconsciente s benfeitor perfeito é aquele que nao sabe que o fazl63 E necessário ser como aqueles que fazem o bem inconscientemente Chegase qui ao suprmo paradoxo um querer de tal modo forte que se supnme cmo querer um hábito que se torna natureza e espontaeidade Ao mesmo tempo parece que a perfeição da relaçao com o outro culmina no respeito e no amor pelos outros Para todas as escolas o que motiva profundamente sua escolha de yida assim como seu discurso é o amor pelos homens E esse amor que inspira tanto o Sócrates da Defsa ou do utífronl64 de Platão como a propaganda epicunsta ou estmca e mesmo 0 discurso céticoi65 O sábio A figura do sábio e a escolha de vida A sabedoria é considerada em toda a Antiguidade um mo o de ser um estado no qual o homem é de maneira radclmdente diferente dos outros homens no qual é uma espene superhomem Se a filosofia é a atividade pela qual o fiosofo preparase para a sabedoria esse exercício consistira necessariamente não só em falar e e d d m Iscorrer e certa maneira mas em ser agir e ver o mundo de cer ta maneira Se a filosofia não é somente um discurso Ih d mas na eso a e VIda uma opção existencial e um exercício VIVIdo e porque ela é desejo de sabedoria É verdade que 163 Marco Aurélio Meditações v 6 3 164 Platão Eutífmn 3 d 6 165 Sexto Empírico Hip tp p Sceptiques p 212 o z ases zrronzanas III 280 Dumont Les 313 A filosofia como modo de vida na noção de sabedoria está inclusa a ideia de um saber perfeito Não obstante como vimos a propósito de Platão e de Aristóteles esse saber não consiste na posse de infor mações sobre a realidade mas é também um modo de vida que corresponde à atividade mais elevada que o homem pode exercer e está estreitamente ligada à excelência à virtude da alma Em cada escola a figura do sábio é a norma transcen dente que determina o modo de vida do filósofo E deve se constatar que na descrição dessa norma há para além das diferenças que aparecem nas diversas escolas acordos profundos tendências comuns que se pode descobrir Reencontramos aqui o mesmo fenômeno que descrevemos a propósito dos exercícios espirituais Em primeiro lugar o sábio permanece idêntico a si mesmo em uma perfeita igualdade de alma isto é feliz quaisquer que sejam as circunstâncias Assim Sócrates no Banquete de Platão mantém as mesmas disposições quer seja obrigado a suportar a fome e o frio quer ao contrário se encontre na abundância Ele sabe com o mesmo desem baraço absterse e usufruir as coisas Diziase de Aristipo166 um dos discípulos de Sócratesque ele se adaptava a todas as situações sabendo usufruir os bens que se lhe apresen tavam e não sofrer pela ausência dos que lhe faltavam Quanto a Pirro sempre permanecia no mesmo estado in terior o que quer dizer que se as circunstâncias exteriores mudavam ele não modificava em nada suas resoluções e disposições A coerência consigo e a permanência de iden tidade também caracterizam o sábio estoico pois a sabe 166 D L II 66 314 Filosofia e discurso filosófico daria consiste em sempre querer e em se a mesma coisa mpre nao querer É que precisamente o sábio encontra sua felicidad em SI me e A so e e portanto mdependente autarkês das nrcunstannas e das coisas exteriores como Sócrates que sgundo as Memoráveis de Xenofonte vivia por bastarse I mesmo sem embaraçarse com coisas supérfluas Essa e uma das características do sábio segundo Pl t 167 f S a ao que az ocrates afirmar Mas podemos tamb d 1 em Izer que pnn Ipa mente esse homem se basta para ser feliz e necessita e outrem mmto menos que os outros E d Ari I 16s segun o stote es o sabw lea a vida contemplativa porque não tem necessidade de cmsas exteriores para se exercitar e porque encontra com isso em si a felicidade e a perfeita mdepedência s depende de si bastase a si mesmo e eduZir ao naximo suas necessidades é especialmente o Ideal dos filosofas cmicos Os epicuristas por sua vez cega a iso limitando e dominando seu desejos ele nao sao mais dependentes da necessidade Quanto aos estmcos preferU dizer que é a virtude que basta a si só para obter a fehndade b Se sábio permanece sempre idêntico a si e se ele se asta e poque ao menos para Pirro para os cmicos e para os estmcos as coisas exteriores não podem perturbá lo porque considera que as coisas não são boas nem e po mas rqu por razoes diversas se recusa a enunciar sobre elas um JUizo de valor e as declara indiferentes Para Pirro por exemplo tudo é indiferente porquanto somos incapa 167 República UI 387 d 12 168 Aristóteles Ética a Nicômaco X 1177 a 27 315 A filosofia como modo de vida zes de saber se as coisas são boas ou más não podemos fazer diferença entre elas Para os estoicos todas as coisas que não dependem de nós são indiferentes há uma única coisa que depende de nós e não é indiferente é o bem moral isto é a intenção de fazer o bem porque é o bem Por si mesmas todas as outras coisas não são boas nem más mas depende de nós servirnos de maneira boa ou má por exemplo das riquezas ou da pobreza da saúde ou da doença Seu valor depende do uso soberano que delas faz o sábio A indiferença do sábio não é um desin teresse por tudo mas uma conversão do interesse e da atenção para algo diverso do que domina a atenção e o cuidado dos outros homens Do sábio estoico por exem plo podese dizer que a partir do momento em que ele descobriu que as coisas indiferentes não dependem de sua vontade mas da vontade da Natureza universal elas ganham para ele um interesse infinito ele as aceita com amor mas todas com um amor igual consideraas belas mas todas com a mesma admiração Ele diz sim ao uni verso inteiro e a cada uma de suas partes a cada um de seus acontecimentos mesmo que essa parte ou esse acon tecimento pareçam molestos ou repugnantes Reencontra se aqui a atitude de AristóeJs com relação à Natureza não se deve ter uma aversão pueril por essa ou aquela realidade produzida pela Natureza pois como dizia Heráclito mesmo na cozinha há deuses Essa indiferença do sábio corresponde a uma transformação total da rela ção com o mundo Igualdade de alma ausência de necessidade indiferen ça às coisas indiferentes as qualidades do sábio fundam sua tranquilidade de alma e sua ausência de perturbação A origem das perturbações da alma pode por outro lado 316 Filosofia e discurso filosófico ser muito diversa Aos olhos de Platão é o corpo por seus desejos e paixões que introduz a desordem e a in quietude na alma Mas há também os cuidados da vida privada e sobretudo da vida política Xenócrates169 teria dito que a filosofia foi inventada para fazer cessar a per turbação que produzem os cuidados A vida contempla tiva aristotélica distanciada dos negócios da política e das incertezas da ação introduzirá a serenidade Segundo Epicuro são os terrores vãos da morte e dos deuses que inquietam os homens mas também os desejos desordena dos e o comprometimento com os negócios da cidade Para o sábio que saiba limitar seus desejos e sua ação que saiba suprimir suas dores a serenidade da alma assim adquirida permitirá viver na Terra como um deus entre os homens Pirro encontrava a paz recusandose a decidir se as coisas são boas ou más E para os céticos a tranqui lidade interior seguia como uma sombra a suspensão do juízo isto é a recusa a atribuir juízos de valor às coi sas Segundo os estoicos enfim o sábio sabe conciliar a eficácia na ação e a serenidade interior porque na incer teza do êxito sempre age aceitando o destino e velando para obter uma intenção pura A figura do sábio aparece como uma espécie de núcleo de liberdade indomável e inexpugnável que o famoso texto de Horácio bem descreve170 O homem justo e firme em sua resolução nem a fúria dos cidadãos ordenando o mal nem a face de um tirano que 169 Xenócrates fr 4 Heinze R Heinze Xenocrates Darstellung der Lehre und Sammlung der Fragmente Leipzig 1892 170 Horácio Odes III 3 18 317 A filosofia como modo de vida ameaça abalar e consumir seu espírito não mais que Austero chefe turbulento do tempestuoso Adriático não mais que a grande mão de Júpiter fulminante que o mundo se rompa e desabe seus restos hão de maravilhar sem aterrorizar Reencontramos na figura do sábio o duplo movimento que evidenciamos a propósito dos exercícios de sabedoria O sábio toma consciência de si mesmo como de um eu que pode por seu poder sobre seus próprios juízos dirigindo os ou suspendendoos assegurar sua perfeita liberdade interior e sua independência de todas as coisas Mas essa liberdade interior não é uma liberdade arbitrária ela não é inexpugnável e inatacável senão quando se situa ou se põe assim na perspectiva da natureza ou do espírito ou ao menos no caso dos céticos da razão crítica O discurso filosófico sobre o sábio A figura do sábio desempenha papel decisivo na esco lha de vida filosófica Mas ela se oferece ao filósofo como um ideal descrito pelo discurso filosófico antes que co mo um modelo encarnado em uma personagem viva Os estoicos diziam que o sábio é extremamente raro há poucos deles talvez um talveznenhum Aqui quase todas as outras escolas estão bem próximas da mesma opinião salvo os epicuristas que não hesitam em venerar Epicuro como o sábio por excelência O único sábio universalmente reconhecido pelas outras escolas é Sócrates este sábio per turbador que não sabe que é sábio Mas evidentemente esse ou aquele filósofo se apraz em ver como sábio perfeito um de seus mestres ou alguma figura famosa do passado Caso de Sêneca quando fala por exemplo de Sextio ou 318 Filosofia e discurso filosófico Catão Caso também de outros autores de vidas de filósofos como Porfírio ao falar de Plotino Os historiadores da filosofia não ressaltaram muito talvez o lugar considerável que tinha na filosofia antig o discurso que consistia em descrever o sábio Tratavase menos de delinear os traços de figuras concretas de sábios ou de filósofos particularmente notáveis papel das vidas de filósofos do que de definir o comportamento ideal do sábio O que faria o sábio nessa ou naquela circunstân cia Esse é contudo muitas vezes o meio nas diferentes escolas de descrever sob forma ideal as particularidades do modo de vida que lhes é próprio Os estoicos davam grande importância em seu ensino à discussão de teses sobre os paradoxos do sábio Não só demonstravam que o sábio é o único ser infalível correto impassível feliz livre belo e rico mas que ele é também o único a ser real e excelentemente estadista legislador general poeta e rei Isso quer dizer que o sábio é pelo exercício perfeito da razão o único capaz de exercer todas essas funções 171 Deuse muita importância a esses paradoxos consideran doos tipicamente estoicos mas parece que eles correspondiam a eas d xercícios puramente escolares que talvez já eXIstissem a epoca dos sofistas mas que parecem em todo caso haver sido praticados na Academia de Platão Esses temas durante os cursos eram discutidos sob a forma de tese isto é de questões sobre as quais se pode argumentar Foi sim X 172 d que enocrates eu uma vez um curso sobre a tese Ape 171 É Bréhier Chrysippe pp 216218 172 Xenócrates in Plutarco Apotegmas lacônicos 220 d 319 A filosofia como modo de vida nas o sábio é um bom general Eudamidas rei de Esparta fora esse dia à Academia escutar Xenócrates O espartano com muito bomsenso diz após a aula O discurso é admi rável mas o discursador pouco crivei pois jamais ouviu o som das trombetas denunciando assim o perigo desses dis cursos nos quais se discutem abstratamente teorias sobre a sabedoria sem praticála efetivamente Podese supor também uma alusão a esse gênero de exercício na oração final do Fedro de Platão no qual Sócrates sustenta estar conven cido de que o sábio é rico Ao longo de toda a história da filosofia antiga encontrase esse gênero de questões sobre o sábio o sábio pode ser amado Pode ele misturarse aos ne gócios políticos Encolerizase Há contudo um paradoxo estoico muito mais signi ficativo ninguém se torna sábio pouco a pouco mas por uma transformação instantânea173 A sabedoria como vimos não é suscetível de ser maior ou menor Eis por que a passagem da não sabedoria à sabedoria não se pode fazer por um progresso mas por uma mutação brusca Esse paradoxo nos põe na via de outro paradoxo que se encontra em todas as escolas se o sábio representa um modo de ser diferente do modo de ser do comum dos mortais não se pode dizer que a figura do sábio174 tende a aproximarse da de Deus ou dos deuses Podese observar esse movimento mais claramente no epicurismo De uma parte aos olhos de Epicuro175 o sábio vive como um deus 173 SW lll 221 e 539542 Plutarco Conw perceber que se progride 75 c 174 Cf P Hadot La figure du sage dans lAntiquité grécolatine in G Gadoffre Les Sagesses du monde Paris 1991 pp 926 175 Epicuro Carta a Meneceu 135 Balaudé p 198 320 Filosofia e discurso filosófico entre os homens E de outra os deuses de Epicuro isto é os deuses da tradição os deuses do Olimpo mas reinter pretados por Epicuro vivem como os sábios Dotados de forma humana vivem no que os epicuristas denominam os intermundos nos espaços vazios entre os mundos es capando assim à corrupção inerente ao movimento dos átomos Como o sábio eles estão mergulhados em uma perfeita serenidade não estando misturados de nenhuma maneira à criação e à administração do mundo176 A natureza divina goza necessariamente de uma duração eterna com paz suprema e está afastada e distante de tudo o que se passa conosco Sem dor nenhuma e sem nenhum perigo apoiada em seus próprios recursos nada precisando de nós não a impressionam os benefícios nem a atinge a cólera Essa concepção de divindade foi destinada como vimos a suprimir no homem o temor dos deuses É na escolha de vida epicurista que se funda a necessidade de conferir no discurso filosófico uma explicação materialista da gênese do universo a fim de persuadir a alma de que os deuses não se ocupam do mundo Mas nos parece agora que essa representação também tinha por fim propor o divino como ideal de sabedoria na medida em que a essência do divino consiste para ela na serenidade na ausência de preocupação no prazer e na alegria De alguma maneira os deuses são sábios imortais e os sábios deuses mortais Para os sábios os deuses são amigos e iguais O sábio en contra sua alegria na presença dos deuses177 176 Lucrécio Da natureza Il 646 vejase também Balaudé p 114 177 Trad Festugiere in Épicure et ses dieux p 98 texto de Filodemo De dis Ill p 16 14 Diels 321 A filosofia como mqdo de vida Ele admira a natureza e a condição dos deuses ele se esforça por aproximarse dela aspira por assim dizer a tocála a viver com ela e nomeia os sábios amigos dos deuses e os deuses amigos dos sábios Os deuses não se ocupam das coisas humanas o sábio não invocará os deuses para obter algum benefício mas encontrará sua felicidade ao contemplar sua serenidade sua perfeição e ao associarse à sua alegria O sábio segundo Aristóteles consagrase ao exerc1c10 do pensamento e à vida do espírito Aqui ainda o divino é o modelo do sábio Pois como nota Aristóteles a condição humana torna frágil e intermitente essa atividade do espí rito dispersa no tempo e exposta ao erro e ao esquecimen to Mas podese representar indo ao limite um espírito cujo pensamento se exercerá perfeita e continuamente em um eterno presente Seu pensamento se pensará assim a si mesmo em um ato eterno Ele conhecerá eternamente a felicidade e o prazer que o espírito humano conhece apenas em raros momentos Essa é precisamente a descrição que Aristóteles dá de Deus como primeiro motor causa final do universo O sábio vive assim de maneira intermi tente o que Deus vive de modo contínuo Ao fazêlo ele vive uma vida que excedea condição humana e que não obstante corresponde ao que há de mais essencial no ho mem a vida do espírito As relações entre a ideia de Deus e a de sábio são me nos claras em Platão provavelmente porque a ideia do di vino em Platão apresentase sob uma forma extremamente complexa e hierarquizada O divino é uma realidade di fusa que compreende as entidades situadas em níveis diversos como o Bem as Ideias o Intelecto divino a figura 322 Filosofia e discurso filosófico mítica do Artesão do Demiurgo do mundo e enfim a alma do mundo Mas da perspectiva que nos ocupa Platão enunciou em todo caso um pnncípio fundamental Ir na direção oposta ao mal ir na direção da sabedoria é assi milarse a Deus na medida do possível ora assimilase a ele tornandose justo e bom na clareza do espírito178 A divin dade aparece aqui como o modelo da perfeição moral e intelectual do homem Por outro lado de maneira geral Platão apresenta Deus ou os deuses dotados de qualidades morais que poderiam ser as de um sábio Ele é verídico sábio e bom não tem nenhuma inveja e quer sempre pro duzir o que há de melhor A relação entre o sábio e Deus situase em Plotino em dois níveis Em primeiro lugar o Intelecto divino em sua relação de pensamento de identidade e de atividade consigo mesmo possui confundidas com sua essência as quatro virtudes o pensamento ou prudência a justiça a força e a temperança que neste estado são os modelos transcendentes da sabedoria e ele vive uma vida179 so beranamente sábia isenta de falta e de erro Mas visto que a alma segundo Plotino às vezes se eleva em raros momentos na experiência mística a um nível superior ao Intelecto encontramse também na descrição do Uno ou Bem os traços do sábio a independência a ausência de necessidade a identidade consigo mesmo Há nele muito claramente uma projeção da figura do sábio sobre a re presentação do divino É provavelmente porque a figura do sábio e a figura de Deus nelas são identificadas que as filosofias de Platão 178 Teeteto 176 b 179 Eneadas V 3 49 17 l 323 A filosofia como modo de vida de Plotino de Aristóteles e de Epicuro representam Deus antes como força de atração que como força criadora Deus é o modelo que os seres procuram imitar e o Valor que orienta sua escolha Como observa B Frischer o sábio e os deuses epicuristas são os motores imóveis como o Deus de Aristóteles eles atraem os outros transmitindo lhes suas imagens180 O sábio dos estoicos conhece a mesma felicidade que a Razão universal personificada alegoricamente por Zeus porque deuses e homens têm a mesma razão perfeita nos deuses perfectível nos homens18 e porque precisamente o sábio atingiu a perfeição da razão fazendo coincidir sua razão com a Razão divina sua vontade com a vontade divina As virtudes de Deus não são superiores às do sábio A teologia dos filósofos gregos é podese dizer uma teologia do sábio contra a qual protestou Nietzsche182 Afastemos a suprema bondade do conceito de Deus ela é indigna de um deus Afastemos do mesmo modo a suprema sabedoria foi a vaidade dos filósofos que se tornou culpável por essa extravagância de um deus monstro da sabedoria ele deveria lhe parecer tanto quanto possível Não Deus o poder supremo isso basta Disso emanatudo disso emana o mundo Onipotência ou bondade Não discutiremos esse pro blema mas devemos afirmar vigorosamente que contraria mente ao que Nietzsche parece entender o ideal do sábio nada tem a ver com uma moral ética clássica ou burgue 180 B Frischer The Sculpted Word p 83 181 Sêneca Cartas 92 27 SVF III 245252 182 Nietzsche Fragments posthumes Automne 1887 10 90 in CEuvres philosophiques complêtes T XIII Paris 1976 p 151 324 Filosofia e discurso filosófico sa mas corresponde antes para retomar a expressão de Nietzsche a uma reversão total dos valores183 recebidos e convencionais apresentandose sob as formas mais diversas como pudemos observar a propósito de diferentes escolas filosóficas Basta para dar um novo exemplo evocar a descrição do estado natural isto é não corrompido da sociedade que Zenão o estoico dava em sua República Ela possuía algo de escandaloso precisamente porque a apresentava como a vida de uma comunidade de sábios Havia uma única pátria o próprio mundo não havia leis pois a ra zão do sábio basta para prescreverlhe o que deve fazer não havia tribunais pois ele não comete faltas não havia templos pois os deuses não têm necessidade disso e por que é um contrassenso ter por sagradas obras feitas por mãos humanas não havia dinheiro não havia leis sobre o casamento mas a liberdade de unirse com quem se queira mesmo de maneira incestuosa não havia leis sobre a sepultura dos mortos A contemplação do mundo e do sábio B Grrethuysen 184 insistiu sobre um aspecto muito particu lar da figura do sábio antigo sua relação com o cosmos A consciência que ele tem do mundo é algo de particular ao sábio Unicamente o sábio não deixa de ter o todo constante mente presente ao espírito jamais se esquece do mundo pensa e age em relação ao cosmos O sábio Jaz parte do mundo 183 Cf Oswaldo Giacóia Júnior Labirintos da alma Nietzsche e a autossu pressão da moral Campinas Ed da Unicamp 1997 184 B Grcethuysen Anthropologie philosophique Paris 1952 p 80 325 A filosofia como modo de vida ele é cósmico Ele não se deixa desviar do mundo afastar do con junto cósmico O tipo do sábio e a representação do mun do formam de alguma maneira um conjunto indissolúvel Como vimos a consciência de si é inseparável de uma expansão no todo e de um movimento pelo qual o eu se repõe em uma totalidade que o engloba mas que longe de aprisionálo há de permitirlhe estenderse em um espaço e em um tempo infinitos185 Tu podes abrir a ti mesmo largo espaço para abarcar com o pensamento o universo inteiro Aí ainda a figura do sábio convida a uma transformação total da percepção do mundo Existe um texto notável de Sêneca no qual são as sociadas a contemplação do mundo e a contemplação do sábio186 Por minha parte tenho o hábito de tomar muito tempo a contemplar a sabedoria eu a olho com a mesma estupefação com a qual em outros momentos olho o mundo esse mundo que me acontece muitas vezes de olhar como se o visse pela primeira vez Reencontramos aqui dois exercícios espirituais um que conhecemos bem a contemplação do mundo outro que acabamos agora de entrever acontemplação da figura do sábio A julgar pelo contexto a figura que Sêneca contem pla é a de Sextio Ao te revelar os segredos da vida feliz ele não te tirará a esperança de atingila Notação abso lutamente capital para contemplar a sabedoria como para contemplar o mundo é necessário fazerse um novo olhar 185 Marco Aurélio Meditações IX 32 186 Sêneca Cartas 64 6 Cf P Hadot Le Sage et e monde in Le Temps de la réjlexion X 175188 1989 326 Filosofia e discurso filosófico Um novo aspecto da relação do filósofo com o tempo aparecenos aqui Não se trata somente de perceber e de viver cada momento do tempo como se fosse o último é necessário também percebêlo como se fosse o primeiro em toda estranheza estupefaciente de seu surgimento Como diz o epicurista Lucrécio187 Se tudo isto aparecesse agora pela primeira vez aos mortais se de improviso se apresentasse diante deles que se poderia di zer de mais admirável que tudo isso ou que menos ousariam os homens ter acreditado Tudo leva aqui a pensar que Sêneca preparavase para encontrar a ingenuidade do olhar ao contemplar o mundo a menos que isso seja aqui apenas a expressão fugaz de uma espécie de experiência espontânea de mística selvagem d M H 1 188 para retomar a expressao e u m O que explica essa íntima ligação entre a contempla ção do mundo e a contemplação do sábio é ainda uma vez a ideia do caráter sagrado isto é sobrehumano quase inumano da sabedoria Como diz alhures Sêneca na profundidade de um bosque antigo na solidão selva gem no manancial dos grandes rios diante da insondável profundidade de lagos de águas sombrias a alma vivencia o sentimento da presença do sagrado Mas ele também experimenta isso admirando o sábio189 E se tu vês um homem que o perigo não assusta em nada que as paixões não tocaram que feliz na adversidade plácido no meio de tempestades vê do alto os homens e vê os deuses no mes 187 Lucrécio Da natureza II 1031 ss 188 M Hulin La Mystique sauvage Paris 1993 189 Sêneca Cartas 41 34 Cf L Hadot Seneca p 94 327 A filosofia como modo de vida mo nível por acaso não serás possuído de veneração Em cada homem bom um deus habita Qual é ele Nenhuma certeza mas é um deus Contemplar o mundo e contemplar a sabedoria é final ene filosofar é com efeito operar uma transformação mtenor uma mutação da visão que me permite reconhecer ao msmo tempo duas coisas às quais raramente se presta atençao o esplendor do mundo e o esplendor da norma b 19o O que e o sa 10 ceu estrelado acima de mim e a lei moral em mim Conclusão É fácil ironizar esse ideal do sábio quase inacessível e que o filósofo não chega a atingir Os modernos não se privara e não deixaram de falar do irrealismo nostálgico e cnsnente de sua quimera191 os antigos como 0 satírico Lunn0 192 zombaram do infeliz que tendo passado toda sua Vlda esforçandose e em vigi1ia nem sempre alcançou a sabedoria Assim fala o senso comum que não com preendeu todo o alcance da definição de filósofo como não sábio no Banquete de Platão definição que não obstante permitirá a Kant 193 compreender o verdadeiro estatuto d filósofo E fácil zombar disso Terseia o direito de 0 fazer e os filósofos se tivessem contentado em tagarelar sobre 0 Ideal do sábio Mas se eles tomaram a decisão prenhe de 190 Kant Critique de la raison pratique trad Gibelin Paris 1983 175 191 p v In p rne troduction in Sêneca Entretiens Lettres à Lucilius p ex 192 Luciano Hermotimo cap 77 193 Cf abaixo pp 373380 328 Filosofia e discurso filosófico gravidade e de consequências de prepararse efetivamente para a sabedoria merecem nosso respeito mesmo que seus progressos tenham sido mínimos Tratase de saber para retomar a fórmula da qual J Bouveresse194 se serve pa ra exprimir uma ideia de Wittgenstein qual preço pssoal eles tiveram de pagar para ter o direito de falar de seu esforço para a sabedoria Apesar de minhas reticências contra a utilização do comparatismo em filosofia gostaria de tenninar este capítulo ressaltando até que ponto a descrição inspirada pelo budis mo que M Hulin deu das raízes existenciais da experiência mística pareceme próxima das características do ideal do sábio antigo de tal modo as semelhanças entre as duas indagações espirituais pareceramme evidentes Mas qual não foi minha surpresa ao reler o Crysippe de É Bréhier195 e encontrar um delineamento análogo ao que eu gostaria de fazer Após ter escrito Essa concepção de um sábio superior à humanidade isento de faltas e de infelicidades não é particular aos estoicos nessa época e chega mesmo a ser desde os cínicos teria sido possível para ele por outro lado dizer desde Sócrates e Platão uma concepção comum a todas as escolas ele cita em nota esta descrição budista do sábio Vitorioso conhecendo e compreendendo tudo livre do peso do acontecimento e da existência sem nenhuma necessidade tal é aquele que se pode glorificar como sábio 1 O viajante 194 Bouveresse Wittgenstein la rime et la raison Paris 1973 p 74 cf abaixo p 368 195 Crysippe p 219 nota l Bréhier cita Sutta Nipata Trad Oldenberg Deutsche Rundschau Januar 1910 329 A filosofia como modo de vida solitário não se inquieta nem com o louvor nem com o vitu pério condutor dos outros e não conduzido pelos outros tal é aquele que se pode celebrar como sábio Ora foi precisamente esta ideia do depósito do fardo que atraiu minha atenção para a descrição de M Hulin e pareceume apresentar uma analogia com a experiên cia espiritual que inspira a figura ideal do sábio antigo M Hulin196 mostra que na primeira das quatro nobre verdades do budismo Tudo é sofrimento a palavra sofrimento significa menos o sofrimento que a alternân cia das penas e das alegrias sua inextricável mistura seu contraste seu condicionamento mútuo O fardo é essa oposição que a afirmação da individualidade enclausurada em si instaura entre o agradável e o desagradável entre o bomparamim e o mauparamim e que obriga o homem a sempre ocuparse de seus interesses Por trás dessa oposição percebese a permanência de uma surda insatisfação sempre renascente que é poderseia dizer uma angústia existencial E precisamente para libertarse dessa insatisfação é necessário ousar depor o fardo Assim voltados e ocupados na perseguição de nossos interesses mundanos temos ao menos a ideia da imensa consolação que representará depositar o fardo isto é a renúncia a nos afirmar a todo custo contra a ordem do mundo e a expensas do outro 196 M Hulin La Mystique sauvage pp 243 e 238242 330 Capítulo 10 O cristianismo como filosofia revelada O cristianismo definindose como filosofia Em suas origens o cristianismo tal qual se apresenta nas palavras de Jesus anuncia a iminência do fim do mundo e o advento do reino de Deus uma mensagem totalmente estranha à mentalidade grega e às perspectivas da filosofia pois ele se inscreve no universo de pensamen to do judaísmo que sem dúvida subverte dele conser vando certas noções fundamentais Nada aparentemente poderia deixar prever que um século após a morte de Cristo alguns cristãos apresentariam o cristianismo não somente como uma filosofia isto é um fenômeno da cultura grega mas mesmo como a filosofia a filosofia eterna Contudo não se deve esquecer que existiam havia muito tempo relações entre o judaísmo e a filosofia grega sendo o exemplo mais famoso Fílon de Alexandria filósofo judeu contemporâneo da era cristã Nessa tradição a noção de um intermediário entre Deus e o Mundo denominado Sophía ou Lógos desempenhava papel cen tral O Lógos era para ela a Palavra criadora Deus diz 333 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos Que a luz seja mas também reveladora de Deus É nessa perspectiva que é necessário compreender o famo so prólogo do Evangelho de Joãol No início ou No Princípio isto é em Deus como 0 compreendem certos exegetas era o Verbo e o Verbo estava voltado para Deus e o Verbo era Deus Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada se fez do que foi Jeito Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens j E o Lógos se fez carne e habitou entre nós e nós vimos sua glória glória essa que Filho único cheio de graça e de verdade ele tem da parte do Pai Por causa da ambiguidade da palavra Lógos é que uma filsofia cristã foi possível Desde Heráclito a noção de Lógos fm um conceito central da filosofia grega na medida em que poderia significar igualmente palavra discurso e razo Muito specialmente os estoicos imaginavam que o Lagos concebido como força racional era imanente ao mundo à ntureza humana e a cada indivíduo Eis por que ao Identificar Jesus o Lógos eterno e o Filho de Deus o Pólgo do Evangelho de João permite apresentar cnstiamsmo como uma filosofia A Palavra substancial de Deus poderia ser concebida como Razão que cria o mundo 1 Tdas as citações bíblicas foram extraídas da Bíblia tradução ecumênica das Ed1ços Loyola Cf também a tradução oitocentista em decassílabos do hro de o por José Elói Ottoni O Livro de Jó estudo introdutório e fixa ço do texto por Haroldo de Campos São Paulo Edições LoyolaEditora Gwrdano 1993 Memória Brasileira 15 334 O cristianismo como filosofia revelada e guia o pensamento humano O neoplatônico Amélio2 discípulo de Plotino considerava por outro lado esse prólogo um texto filosófico quando escrevia E portanto está aí o Lógos graças ao qual todas as coisas geradas foram produzidas que é então sempre ele meso como disse Heráclitrr e também o Bárbaro o evangeltsta João diz que ele é voltado para Deus e que ele é Deus estabelecido no lugar e na dignidade do princípio que tudo foi Jeito por meio dele que ele estava no mundo e por ele o mundo foi Jeito que ele cai no corpo e revestzndo a carne toma a aparência de homem mas de tal modo que ao mesmo tempo mostra sua grandeza e que libertado de novo é divinizado é Deus tal qual era antes de cair no mundo dos corpos e de descer na carne e no homem Para Amélio4 o evangelista João que ele denomina o Bárbaro descreveu em seu prólogo a Alma do Mundo que é divina mas misturada de alguma maneira ao corpo Pouco importa contudo a interpretação proposta por élio o que nos interessa aqui é o parentesco reconhecido pelo filósofo neoplatônico entre o vocabulário do evangelista e o vocabulário próprio à filosofia Desde o século II dC os escritores cristãos denomina dos apologistas porque se esforçaram para apresentar o cristianismo sob uma forma compreensível ao mundo greco romano utilizaram a noção de Lógos para definir o cristia 2 Amélio in Eusébio Preparação evangélica XI 19 3 Heráclito B 1 Les Présocratiques trad Dumont p 1 5 4 Cf L Brisson Amélius Sa vie son ceuvre sa doctnne son sty1e in Aufstieg und Niedergang der romischen Welt Ed W Haase und H Tempo rini II vol 36 2 pp 840843 335 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos nismo como a filosofia Os filósofos gregos dizem eles até aqui possuíram apenas frações do Lógof isto é elementos do Discurso verdadeiro e da Razão perfeita mas os cristãos estão na posse do Lógos isto é do Discurso verdadeiro e da Razão perfeita encarnada em Jesus Cristo Se filosofar é viver conforme a Razão os cristãos são filósofos já que vivem conforme o Lógos divino6 Essa transformação do cristianis mo em filosofia há de acentuarse ainda em Alexandria no século III com Clemente de Alexandria7 para quem o cristianismo revelação completa do Lógos é a verdadeira filosofia aquela que nos ensina a conduzirnos de modo a nos assemelhar a Deus e a aceitar o plano divino como princípio diretor de toda nossa educação Assim como a grega a filosofia cristã há de apresentar se a um só tempo como discurso e como modo de vida Na época do nascimento do cristianismo nos séculos I e II o discurso filosófico de maneira preponderante toma ra nas várias escolas como vimos a forma de uma exege se dos textos dos fundadores O discurso da filosofia cristã será também e muito naturalmente exegética e as escolas de exegese do Antigo e do Novo Testamento como as que o mestre de Clemente de Alexandria ou ainda o próprio Orígenes tinham a5eilo em Alexandria oferece 5Justino Apologia II 8 1 e 13 3 cf A Wartelle Saintustin Apologies lntr texte trad e comm Paris 1987 6 Id ibid I 46 34 7 Clemente Stromáteis I 11 52 3 trad Mondésert Cerf collection Sources chrétiennes abreviado SC nas notas seguintes Vejase também o interessante texto de Gregório Taumaturgo Agradecimento a Orígenes que descreve a escola de Orígenes como uma escola filosófica tradicional com o amor entre mestre e discípulo os exercícios dialéticos mas também a submissão da filosofia à teologia cristã 336 O cristianismo como filosofia revelada rão um tipo de ensinamento igualmente análogo ao das escolas filosóficas contemporâneas Do mesmo modo que os platônicos propunham um curso de leitura dos diálo gos de Platão que correspondia às etapas do progresso espiritual os cristãos como Orígenes farão seus disCípulos lerem na ordem o livro bíblico de Provérbios o Eclesiastes8 e depois o Cântico dos Cânticos que correspondem res pectivamente segundo Orígenes à ética que proporciona uma purificação prévia à física que ensina a desvencilhar se das coisas sensíveis e à epóptica ou teologia que leva à união com Deus9 Vislumbrase aqui que a leitura de textos é como entre os filósofos dessa época uma leitu ra espiritual em estreita relação com o progresso da alma A noção filosófica de progresso constitui o arcabou ço da formação e do ensinamento cristãos Como o dis curso filosófico antigo para o modo de vida filosófico o discurso filosófico cristão é um meio de realizar o modo de vida cristão Poderseia dizer talvez e com razão que há mesmo uma diferença pois a exegese cristã é uma exegese de textos sagrados e a filosofia cristã fundase numa revelação o Lógos é precisamente a revelação e a manifestação de Deus A teologia cristã constituise pouco a pouco nas controvérsias dogmáticas sempre fundadas na exegese do Antigo e do Novo Testamento Mas existia completamente na filosofia grega uma tradição de teologia sistemática inaugurada pelo 8 Qohélet0quesabe Eclesiastes poema sapiencial transcriação de Haroldo de Campos São Paulo Perspectiva 1991 Signos 13 9 Orígenes Commentaire sur le Cantique des Cantiques Prologue 3 123 Éd et trad L Brézard H Crouzet et M Borret Paris SC 1991 t I pp 128143 cf L Hadot Introduction a Simplício Commentaire sur les Catégo ries Fase L Leyde 1990 pp 3644 337 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos Timeu e pelo livro X das Leis de Platão e desenvolvida no livro XII da Metafísica de Aristóteles tradição que distin guia as diferentes fontes de revelação os modos de ação e os diferentes graus da realidade divina e que integrará todos os tipos de revelação na época do neoplatonismo posterior A filosofia grega podia mesmo desse ponto de vista servir de modelo para a filosofia cristã10 Mas se certos cristãos podem apresentar o cristianismo como uma filosofia como a filosofia isso não é totalmente porque o cristianismo propõe uma exegese e uma teologia análogas à exegese e à teologia pagãs mas porque ele é um estilo de vida e um modo de ser e porque a filosofia antiga fora um estilo de vida e um modo de ser Como bem notou Dom Jean Leclerq11 Na Idade Média mo nástica tanto quanto na Antiguidade philosophia designa não uma teoria ou uma maneira de conhecer mas uma sabedoria vivida uma maneira de viver segundo a razão isto é segundo o Lógos A filosofia cristã consiste precisa mente em viver segundo o Lógos isto é segundo a razão a tal ponto que segundo Justino12 aqueles que antes de Cristo levaram uma vida acompanhada de razão lógos são cristãos tendo passado por ateus tais como Sócrates Heráclito e seus semelhantei Com essa assimilação do cristianismo a uma filosofia veemse aparecer no cristianismo práticas exercícios espiri 10 Cf P Hadot Théologie exégese révélation écriture dans la philosophie grecque in Les Regles de linterprétation Éd par M Tardieu Paris 1987 pp 1334 11 Leclerq Pour lhistoire de lexpression philosophie chrétienne in Mélanges de scíence religieuse 9 221226 1952 12 Justino Apologia I 46 3 Wartelle 338 O cristianismo como filosofia revelada tuais que eram próprios à filosofia profana Por exemplo Clemente de Alexandria13 poderia escrever isto É necessário que a lei divina inspire o temor a fim de que o filósofo adquira e conserve a tranquilidade da alma amerim nia graças à prudência eulabeia e à atenção prosokhê consigo mesmo Nesta frase entrevêse todo o universo de pensamento da filosofia antiga A lei divina é a um só tempo o Lógos dos filósofos e o Lógos cristão ela inspira a circunspecção na ação a prudência a atenção consigo mesmo isto é a atitude fundamental do estoico que proporciona a tranquili dade da alma disposição interior que todas as escolas procuram Ou ainda em Orígenes1 encontrase o exer cício muito filosófico do exame da consciência quando comentando o Cântico dos Cânticos Se não o sabes tu a mais bela das mulheres 15 ele o interpreta como um convite para a alma examinarse atentamente A alma deve dirigir seu exame para seus sentimentos e ações Propõe se ela o bem Procura as diferentes virtudes Está ela em progresso Reprimiu totalmente por exemplo as paixões da cólera da tristeza do medo ou do amor à glória Qual é sua maneira de dar e receber de julgar pela verdade Entre os Padres da Igreja do século IV os que se situam na tradição de Clemente de Alexandria e de Orígenes por exemplo Basílio de Cesareia Gregório Nazianzeno Gregório de Nissa Evágrio Pôntico em certo sentido 13 Clemente de Alexandria Stromáteis II 20 1 Mondésert SC 14 Orígenes Comentário sobre o Cântico dos Cânticos II 5 7 t I p 359 Brézard Crouzel et Borret 15 Cântico dos Cânticos 18 339 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos Atanásio de Alexandria e monges mais tardios como Doroteu de Gaza que escreve no século VI não deixaram de interpretar no sentido da filosofia cristã o fenômeno do monaquismo que se desenvolve a partir do início do século IV no Egito e na Síria É então que alguns cristãos começam a querer atingir a perfeição cristã por uma prá tica heroica de conselhos evangélicos e imitação da vida de Cristo retirandose para os desertos e levando uma vida consagrada totalmente a uma ascese rigorosa e à meditação Não se tratava de pessoas cultas e eles não pensavam absolutamente em qualquer relação com a filo sofia Encontraram seus modelos no Antigo e no Novo Testamento talvez também isso não deve ser excluído a priori nos exemplos do ascetismo budista ou mani queu16 É necessário também recordar que já na época de Fílon e de Jesus existiam comunidades de ascetas contem plativos como os Terapeutas que Fílon de Alexandria17 descreve em seu tratado Da vida contemplativa e nomeia filósofos ou ainda como a corrente judaica de Qumrân Mas para os defensores da filosofia cristã que vão aliás praticar o monaquismo é o movimento que L Bouyer18 denomina o monaquismo sábio a filo sofia há de designar doravante precisamente o modo de vida monástico como perfeição da vida cristã mas essa filosofia continuará a estar estreitamente ligada a algu mas categorias profanas como a paz da alma a ausência 16 Gribomont Monasticism and Asceticism in Christian Spirituality Ed M McGinn Meyendorff and Leclerq New York Clossroad 1986 p 91 17 Cf a introdução de F Daumas a Fílon de Alexandria De vita con templativa Paris SC 1963 notadamente p 31 18 L Bouyer La Spiritualité du Nouveau Testament et des Peres Paris 1960 pp 400472 340 O cristianismo como filosofia revelada de paixões19 a vida conforme a natureza e a razão20 Como a filosofia profana a vida monástica apresentarseá então como a prática de exercícios espirituais21 dos quais alguns serão especificamente cristãos mas cuja maioria será herdada da filosofia profana Tornarseá a encontrar assim a atenção consigo mesmo que era a atitude fundamental dos estoicos e por outro lado dos neoplatônicos22 Essa é para Atanásio de Alexandria23 a própria definição da atitude monástica Narrando em sua Vida de Antão como Antão se converteu à vida monástica ele se contenta em dizer que se pôs a dar atenção a si mesmo e fará referência a estas palavras de Antão dirigidas no dia de sua morte a seus discípulos Vivei como se devêsseis morrer cada dia dando atenção a vós mesmos e vos recordando de minhas exortações Gregório Nazianzeno24 falará muito mais de concen tração em si mesmo Atenção a si concentração no pre sente pensamento da morte serão constantemente vincu lados na tradição monástica como na filosofia profana 19 Numerosos exemplos em Gregório Nazianzeno Lettres T Ill Éd P Gallay Paris Belles Lettres 19641967 t I pp 39 60 71 74 114 t II pp 14 85 Cf H Hunger Die Hochsprachliche profane Literatur der Byzantiner T I Munich 1978 pp 410 bibliografia abundante AM Malingrey Philosophia Paris 1961 20 Atanásio Vie dAntoine 14 4 Éd G M Bartelink Paris SC 1994 p 175 e 20 56 pp 189191 Evagro Traité pratique du moine Éd A et Cl Guillaumont Paris SC 1971 86 p 677 21 Rufino Historia Monachorum 7 e 29 Patrologia latina 21 410 e 453 d Cf Leclerq Exercices spirituels in Dictionnaire de spiritualité Paris t N cols 19021908 22 Cf acima pp 202 e 230231 23 Atanásio Vida de Antão 3 1 p 137 e 91 3 p 369 24 Gregório Nazianzeno Cartas t II p 45 Carta 153 341 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos Antão aconselha por exemplo que seus discípulos desper tem pensando no que talvez não tenham alcançado no dia anterior e que durmam pensando que não despertarão e Doroteu de Gaza adverte os seus dizendo25 Demos atenção a nós mesmos irmãos sejamos vigilantes pois temos muito tempo Desde o início de nossa conversa dispensamos duas ou três horas e nos aproximamos da morte mas notemos sem terror que perdemos tempo É bastante evidente que essa atenção a si mesmo é com efeito uma conversão uma orientação para a parte superior de si Isso aparecerá muito claramente em um sermão de Basílio de Cesareia que toma por tema um texto bíblico26 Guardate de ter em teu coração um pensamento vil No comentário de Basílio encontrarseão todos os temas do estoicismo e do platonismo Guardarse a si mesmo é animar em nós os princípios racionais de pensamento e de ação que Deus pôs em nossa alma é velar por nós mesmos isto é por nosso espírito e nossa alma e não pelo que é nosso isto é nosso corpo e nossos bens é velar também pela beleza de nossa alma examinando nossa consciência e conhecendonos a nós mesmos Corrigiremos assim os juízos que lançamos sobre nós mgsmos reconhecendo ao mesmo tempo nossa verdadeira pobreza e nossa verdadeira riqueza os esplendores que nos oferece o cosmos nosso corpo a Terra o céu os astros e sobretudo o destino da alma27 25 Atanásio Vida de Antão 19 3 p 187 Doroteu de Gaza Obras espirituais 114 115 SC 26 Deuteronômio 159 27 Basílio de Cesareia In illud attende tibi ipsi Patrologia graeca 31 cols 197217 edição crítica de S Y Rudberg Acta Universitatis Stockholmensis Studia Graeca Stockholmensia T 2 Stockholm 1962 342 O cristianismo como filosofia revelada A atenção a si mesmo supõe a prática do exame de consciência que o célebre Antão aconselhava que seus discípulos praticassem por escrito28 Que cada um anote por escrito as ações e os movimentos de sua alma como se os devesse fazer conhecer aos outros Preciosa notação psicológica o valor terapêutico do exame de consciência será maior se for exteriorizado graças à escritura Assim como teríamos vergonha de cometer faltas em público a escritura dános a impressão de estar em público Que a escritura assuma o lugar do ouvido do outro Seja como for o exercício do exame de consciência deve ser muito frequente e muito regular Doroteu de Gaza29 recomendava que todos se examinassem às seis horas mas também que fizessem um balanço do estado da alma a cada semana a cada mês a cada ano A atenção a si mesmo e a vigilância supõem também como vimos exercícios de pensamento tratase de meditar de rememorar de ter constantemente à mão os princípios da ação resumidos tanto quanto possível em curtas sen tenças É a essa necessidade que respondem na literatura monástica os Apojtegmas e o que se denomina Kephalaia Os Apoftegmail0 foram como os dos filósofos profanos reunidos por Diógenes Laércio pronunciados por mestres espirituais em uma circunstância determinada Os Kephalaia 28 Atanásio Vida de Antão 55 9 p 285 Cf M Foucault LÉcriture de soi in Corps écrit 5 pp 323 e minhas observações sobre esse texto de Foucault in Michel Foucault philosophe Paris 1989 pp 262266 29 Doroteu de Gaza CEuvres spirituels Éd L Regnault etJ de Préville Paris SC 1963 111 13 e 117 7 pp 353 e 365 30 Cf Les Apopthegmes des Peres Collection Systématique chap IIX Introd texte trad et notes par JC Guy Paris SC 1993 343 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos pontos capitais são coleções de sentenças relativamente curtas agrupadas quase sempre em centenas A meditação dos exemplos e das sentenças deverá como na filosofia profana ser constante Epicuro e Epíteto recomendavam que se cresça nisso dia e noite Doroteu de Gaza31 tam bém aconselha meditar sem cessar a fim de ter à mão os princípios da ação no momento oportuno e que se possa aproveitar todos os acontecimentos isto é reconhecer o que se deve fazer diante de cada acontecimento A atenção a si mesmo traduzse por um domínio um controle de si que só se pode obter pelo hábito e pela perseverança nas práticas ascéticas destinadas a realizar o triunfo da razão sobre as paixões atacadas até sua erra dicação radical Tratase de aplicar aqui uma terapêutica das paixões O caminho que leva a essa libertação total apatheia passa pelo desvinculamento dos objetos apros patheia isto é a supressão progressiva dos desejos que têm por objeto as coisas indiferentes Como o estoico Epíteto mas também como o platônico Plutarco que es crevera tratados aconselhando exercícios de domínio da curiosidade e da tagarelice Doroteu de Gaza recomenda começar por habituarse a Stiprimir pequenas coisas uma vã curiosidade uma palavra inútil para prepararse pouco a pouco para grandes sacrifícios32 Para Doroteu de Gaza graças a essas práticas é a vontade egoísta a vontade própria a vontade que busca seu prazer nos objetos que será pouco a pouco suprimida33 31 Doroteu de Gaza 60 2730 32 Id 20 133 e Epiteto Conversações I 18 18 e Manual 12 2 33 Doroteu de Gaza 20 28 e 187 1416 344 O cristianismo como filosofia revelada Por sorte chega enfim a não ter mais vontade própria mas seja o que for que lhe aconteça isso o contenta como isso lhe viesse dele mesmo Aquele que não tem vontade própria Jaz sempre o que quer tudo o que acontece o satisfaz e ele se acha a Jazer constantemente sua vontade a ele mesmo pois não quer que as coisas sejam como ele qu mas quer que as coisas sejam tais quais são Reconhecese aí o eco da célebre oitava sentença do Manual de Epíteto Não deseja que o que acontece aconteça como tu queres mas quezras que o que acontece aconteça como acontece e serás feliz Como o estoico o monge quer cada momento presente tal qual é Segundo outro conselho da filosofia tradicionaP os principiantes esforçarseão para combater uma paixão por exemplo a luxúria com uma paixão a ela oposta por exemplo a busca da boa reputação antes de poder combater diretamente essa paixão praticando a virtude que lhe é oposta35 São antes as concepções platônicas e neoplatônicas que exercem sua influência em Evágrio Pôntico36 que fora discípulo de Gregório Nazianzeno por exemplo quando ele utiliza a tripartição platônica da alma para definir o estado de virtude 34 Cícero Tusculanas IV 75 35 Evágrio Tratado prático 58 SC 36 Id ibid 86 345 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos A alma racional age segundo a natureza quando sua parte desejante epithymêtikon deseja a virtude quando sua parte guerreira thymikon combate pela virtude e quan do sua parte racional logistikon chega à contemplação dos seres A ascese é frequentemente concebida também de maneira platônica como uma separação do corpo e da alma que é a condição preliminar para a visão de Deus O tema aparece já em Clemente de Alexandria37 para quem a real piedade para com Deus consiste em separarse sem retorno do corpo e de suas paixões Eis por que talvez a filosofia tenha sido denominada a justo título exercício para a morte por Sócrates É necessário renunciar a utilizar os sentidos para poder reconhecer as verdadeiras realidades Gregório Nazianzeno repreende um amigo doente por lamentarse de seu sofrimento como se fora algo irremediável e o exorta38 É necessário ao contrário que tu filosofes isto é que tu te exercites para viver como um filósofo em teu sofrimento é ao mais alto grau o momento de purificar teu pensamento de revelarte superior aos laços que te prendem isto é ao corpo de ver em tua doença uma fieaagogia que te conduz ao que é útil para ti isto é a desprezar o corpo e as coisas corpóreas e tudo o que se vende e que é fonte de perturbação e de pe recimento a fim de que possas pertencer inteiramente à parte que está no alto fazendo desta vida aqui embaixo é o que diz Platão um exercício para a morte libertando 37 Clemente de Alexandria Stromáteis V 11 67 1 Éd A Le Boulluec Paris SC 1981 p 137 38 Gregório Nazianzeno Cartas XXXI t I p 39 346 O cristianismo como filosofia revelada assim tua alma tanto quanto possas seja do corpo sôma seja do túmulo sêma para falar como Platão Se tu filosofas dessa maneira 1 aprenderás muito a filosofar em teu sofrimento Quanto ao discípulo de Gregório Evágrio Pôntico é nestes termos claramente neoplatônicos que retoma o mesmo tema39 Separar o corpo da alma pertence apenas Àquele que os uniu mas separar a alma do corpo pertence precisamente àquele que tende à virtude Pois nossos Padres denominam anacorese a vida monástica o exercício para a morte e fuga do corpo Porfírio escrevera40 O que a natureza ligou ela o desligou mas o que a alma ligou é a alma que o desliga A natureza ligou o corpo na alma a alma ligouse a si mesma no corpo portanto a natureza desliga o corpo da alma mas a alma desligase a si mesma do corpo Ele opunha assim o laço natural do corpo com a alma que o faz viver ao laço afetivo que vincula a alma ao corpo laço que pode ser tão estreito que a alma se identifique ao corpo e cuide apenas de satisfazêlo Segundo Evágrio a morte para a qual se prepara o filósofo que é monge é a total erradicação das paixões que ligam a alma ao corpo para alcançar a perfeita separação do corpo que proporciona a apatheia a ausência de paixões 39 Evágrio Tratado prático 52 vejase in SC o comentário de A e C Guillaumont 40 Porfírio Sententiae cc 8 e 9 347 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos Cristianismo e filosofia antiga Se os cristãos puderam retomar a palavra grega philo sophia para designar essa perfeição da vida cristã que é o monaquismo é que essa palavra designava bem um modo de vida de maneira que retomandoa os filósofos cris tãos foram levados a introduzir no cristianismo práticas e atitudes herdadas da filosofia profana Isso não deve causar espanto vida filosófica profana e vida monástica teriam finalmente muitas analogias Sem dúvida o filósofo anti go não se retira para o deserto nem para o claustro ao contrário vive no mundo no qual exerce algumas vezes uma atividade política Mas se é realmente um filósofo ele teve de se converter fazer profissão de filósofo fez uma escolha de vida que o obriga a transformar toda sua vida no mundo e em certo sentido ele se separa do mundo Entra em uma comunidade sob a direção de um mestre espiritual na qual será levado a venerar o fundador da escola a participar muitas vezes das refeições comuns com os membros da escola ele vai examinar sua consciência talvez mesmo confessar suas faltas como era costume na escola epicurista levar uma vida ascética renunciar a todo conforto e toda riqueza se é um cínico seguir um regime vegetariano se pertence a uma escola pitagórica e se é neoplatônico consagrarse à contemplação procurar a união mística O cristianismo é indiscutivelmente um modo de vida Que seja apresentado como uma filosofia não implica por tanto nenhum problema Mas ao fazêlo ele adota certos valores e certas práticas próprias à filosofia antiga Isso era legítimo Essa evolução correspondia ao espírito original 348 O cristianismo como filosofia revelada do cristianismo A essa questão complexa não podemos oferecer uma resposta certa e exaustiva pois seria necessá rio antes de tudo definir de maneira rigorosa o que fora o cristianismo primitivo e isso ultrapassa nossa competência e o objetivo deste livro Gostaríamos somente de observar alguns pontos que nos parecem essenciais Em primeiro lugar e é isso o mais importante não se deve esquecer que se a espiritualidade cristã tomou em prestados da filosofia antiga certos exercícios espirituais eles passam a encontrar seu lugar em um mais vasto con junto de práticas especificamente cristãs A vida monástica supõe sempre o auxílio da graça de Deus e também uma disposição fundamental de humildade que se manifesta muitas vezes nas atitudes corporais que marcam a submis são e a culpabilidade como a prostração diante dos outros monges A renúncia à vontade própria realizase por uma obediência absoluta às ordens do superior O exercício para a morte está ligado à memória da morte de Cristo a ascese é compreendida como uma participação em sua Paixão Do mesmo modo é Cristo que o monge vê em cada homem41 Tu não tens vergonha de te encolerizar e de falar mal de teu irmão Não sabes que ele é Cristo e que é a Cristo que fazes desonra A prática das virtudes ganha então outro sentido Por outro lado os filósofos cristãos procuraram cris tianizar o emprego que faziam de temas filosóficos profa nos procurando dar a impressão de que os exercícios que aconselhavam já tinham sido recomendados pelo Antigo 41 Doroteu de Gaza Vida de Dositeu 6 349 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos ou pelo Novo Testamento Por exemplo se o Deuteronômio emprega a expressão Guardate Basílio conclui disso que o livro bíblico aconselha o exercício filosófico da atenção a si mesmo Essa atenção a si mesmo será de nominada também Guarda teu coração por causa de um texto de Provérbios42 Guarda teu coração com toda a vigilância Como se encontra na Segunda Epístola aos Coríntios43 a exortação Fazei vós mesmos vossa autocrí tica verseá aí um chamado ao exame de consciência e na Primeira Epístola aos Coríntios nas palavras44 Todos os dias eu morro o modelo do exercício para a morte Contudo é evidente que essas alusões aos textos escritu rísticos não podem impedir que os filósofos cristãos descrevam como vimos os exercícios espirituais de que falam utilizando o vocabulário e os conceitos da filosofia profana As alusões aos textos bíblicos se fundam muitas vezes apenas em uma interpretação alegórica que consis te finalmente em atribuir aos textos o sentido que se lhes deseja atribuir sem levar em conta a intenção do autor Muitos filósofos modernos utilizam esse modo de inter pretação para explicar os textos da Antiguidade Seja como for é por esse procedimento que os Padres da Igreja puderam por exemplo interpFetar expressões evangélicas tais como reino dos céus ou reino de Deus como se designassem partes da filosofia É o que se encontra nas primeiras linhas do Tratado prático de Evágrio Pôntico que começa por escrever45 42 Provérbios 4 23 Atanásio Vida de Antão 21 2 p 192 43 2Cor 13 5 Atanásio Vida de Antão 55 6 p 283 44 1Cor 15 31 Atanásio Vida de Antão 19 2 p 187 45 Evágrio Tratado prático 1 350 O cristianismo como filosofia revelada O cristianismo é a doutrina de Cristo nosso Salvador ela se compõe da prática da física e da teologia Reconhecemos aí enumeradas segundo sua ordem as três partes da filosofia valorizadas na escola platônic ao menos desde Plutarco46 que correspondiam às três etapas do progresso espiritual É bastante admirável apren der que Cristo propôs uma prática uma física e uma eologi Evidentemente poderseia admitir a rigor que e poss1vel reconhecer essas três partes da filosofia nos conselhos morais e nos ensinamentos sobre o fim do mundo e sobre Deus Mas é ainda mais admirável quando Evágrio define mais precisamente as três partes da filosofia Parece que para ele a fisica é o reino dos céus e a teologia o reino de Deus47 Temos então a surpresa de tornar a encontrar aqui a no ção evangélica de reino de Deus que era designada por suas expressões sinônimas o reino dos céus e o reino de Deus Essa noção provinha do judaísmo no qual correspondia à perspectiva futura de um reino de Deus e de sua Lei sobre todos os povos da Terra Na mensagem de Jesus o reino é a um só tempo presente e iminente pois começa a realizar se segundo o espírito e não segundo a letra pela conversão pela penitência pelo amor ao próximo pelo cumprimento da vontade de Deus Identificar a noção de reino de Deus ou de reino dos céus a partes da filosofia da física e da teologia é realmente atribuir a essas noções um sentido totalmente inesperado Sob a influência de Orígenes por outro lado as noções evangélicas de reino dos céus e de 46 Cf acima p 223 e 337 47 Evágrio op cit 23 351 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos reino de Deus tornamse dois estados da alma ou duas etapas do progresso espiritual Após a prática purificação preliminar graças à qual começase a adquirir a impassibi lidade apatheia diante das paixões o iniciante pode abor dar a física a contemplação das naturezas physeis isto é dos seres criados por Deus visíveis e invisíveis É enquanto criados que o iniciante os contempla isto é em sua rela ção com Deus Com essa contemplação consolidase a impassibilidade É o que Evágrio denomina o reino dos céus Indo além disso o iniciante atingirá então o reino de Deus isto é a contemplação do mistério de Deus em sua Trindade Essa será a etapa da teologia Essa interpretação dos termos reino dos céus e reino de Deus não é con tudo própria de Evágrio Já esboçada desde Clemente de Alexandria e Orígenes é abundantemente atestada nos escritores posteriores48 Nos anos que se seguirão à sua conversão Agostinho de Hipona confrontou em seu livro Sobre a verdadeira religião platonismo e cristianismo A seus olhos o essencial das doutrinas platônicas e o essencial das doutrinas cristãs se sobrepõem A lógica platônica ensina a reconhecer que as imagens sensíveis enchem nossa alma de erros e de opiniões falsas e que é necessário curála dessa doença para que ela possa descobrir a realidade divina A física nos ensina que todas as coisas nascem morrem e desaparecem tendo existência apenas graças ao ser verdadeiro de Deus que as formou Separandose das coisas sensíveis a alma poderá fixar seu olhar na Forma imutável que dá forma a todas as coisas e na Beleza sempre igual e em tudo semelhante 48 Orígenes De oratione 25 vejase a nota de A e C Guillaumont in Evágrio Tratado prático t II pp 499503 SC 352 O cristianismo como filosofia revelada a si mesma que o espaço não divide e o tempo não trans forma A ética fará descobrir que unicamente a alma racional e intelectual é capaz de usufruir a contemplação da eternidade de Deus e de nele encontrar a vida eterna49 Tal é para Agostinho a essência do platonismo e também a do cristianismo como ele afirma citando certo número de passagens do Novo Testamento opondo o mundo vi sível e o mundo invisível a carne e o espírito Mas dirseá qual é então a diferença entre o cristianismo e a filosofia platônica Para Agostinho ela consiste no fato de que o platonismo não pôde converter as massas e desprendêlas das coisas terrestres para orientálas para as coisas espiri tuais por essa razão desde o nascimento de Cristo homens de toda condição adotaram esse modo de vida e assistiram a uma verdadeira transformação da humanidade Se Platão voltasse à Terra diria Eis o que não ousei anunciar às massas Se as almas cegas pelas máculas corporais pu deram sem o auxílio das discussões filosóficas entrar em si mesmas e olhar para sua pátria é que Deus na Encarnação desceu até o corpo humano a autoridade da Razão divina50 Nessa perspectiva agostinista o cristianismo tem o mesmo conteúdo que o platonismo tratase de se pararse do mundo sensível para poder contemplar Deus e a realidade espiritual mas unicamente o cristianismo pôde fazer adotar esse modo de vida pelas massas popu lares Nietzsche51 teria podido apoiarse em Agostinho 49 Agostinho De vera religione III 3 Bibliotheque Augustinienne CEuvres de saint Augustin 8 1re série Opuscules VIII La Foi chrétienne Éd et trad Pegon Paris 1951 50 Agostinho Devera religione IV 7 51 Nietzsche Para além de bem e mal prefácio 4a ed tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho São Paulo Nova Cultural 1987 Os Pensadores 353 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos para justificar sua fórmula O cristianismo é um patonis mo para o povo É necessário reconhecer que sob a influência da filo sofia antiga certos valores que eram apenas secundários se não inexistentes vieram a ocupar o primeiro plano no cristianismo À ideia evangélica da irrupção do reino de Deus substituise o ideal filosófico de uma união com Deus de uma deificação alcançada pela ascese e pela contempla ção Algumas vezes a vida cristã tornase menos a vida de um homem que a de uma alma tornase uma vida segundo a razão análoga à dos filósofos profanos e mesmo mais especialmente ainda uma vida segundo o Espírito análoga à dos platônicos tratarseá agora de fugir do corpo para voltarse para uma realidade inteligível e transcendente e se possível atingila em uma experiência mística Em todo caso a atenção a si a busca da impassibilidade da paz da alma da ausência de cuidado e muito especialmente a fuga do corpo tornaramse os objetivos primordiais da vida espiritual Doroteu de Gaza52 não hesitará em afirmar que a paz da alma é tão importante que se deve caso isso seja necessário renunciar ao que se persegue para não perdêla Foi essa espiritualidade marcada fortemente pelo modo de vida das escolas filosófiGasantigas que o modo de vida cristão da Idade Média e dos tempos modernos herdou 52 Doroteu de Gaza 5860 354 Capítulo 11 cfJesaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia Se a filosofia antiga vinculava tão estreitamente discurso filosófico e forma de vida como se deveria hoje no ensino habitual de história da filosofia apresentar a filosofia antes de tudo como um discurso quer se trate de um discurso teórico e sistemático ou de um discurso crítico sem relação direta com a maneira de viver do filósofo Ainda uma vez cristianismo e filosofia A razão dessa transformação é antes de tudo de ordem histórica Ela se deve ao progresso do cristianismo O cristianismo acabamos de ver apresentouse muito cedo como uma filosofia no sentido antigo da palavra isto é como uin modo e uma escolha de vida implican do certo discurso a escolha de vida segundo Cristo Nesse modo de vida cristão e também no discurso cristão muitos elementos da filosofia tradicional grecoromana foram absorvidos e integrados Mas pouco a pouco por razões que ainda iremos expor efetuouse no seio do cristianismo 355 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos especialmente na Idade Média um divórcio entre o modo de vida e o discurso filosófico Certos modos de vida fi losóficos próprios às diferentes escolas da Antiguidade desapareceram totalmente por exemplo o epicurismo os outros como o estoicismo ou o platonismo foram absor vidos pelo modo de vida cristão Se é verdade que até certo ponto o modo de vida monástico foi denominado filosofia na Idade Média não é menos verdade que esse modo de vida embora integrasse exercícios espiri tuais próprios às filosofias antigas viuse separado do discurso filosófico ao qual se ligara anteriormente Por tanto subsistiram unicamente os discursos filosóficos de certas escolas antigas sobretudo os do platonismo e do aristotelismo mas separados dos modos de vida que os inspiraram foram reduzidos ao plano de um simples material conceitual utilizável nas controvérsias teológicas A filosofia posta a serviço da teologia é doravante apenas um discurso teórico e quando a filosofia moder na conquistar sua autonomia no século XVII e sobretu do no século XVIII terá sempre tendência a limitarse a esse ponto de vista Disse bem ela terá tendência pois como teremos oportunidade de repetir a concepção original e autêntica da filosofia grecoromana jamais será totalmente esquecida Graças aos trabalhos de J Domanski2 pude corrigir a apresentação demasiadamente breve e inexata que propu sera desse processo de teorização da filosofia em estudos 1 Cf acima p 340 2 J Domanski La philosophie théorie ou maniere de vivre Fribourg Paris 1996 356 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia anteriores3 Continuo sem dúvida a pensar que esse fe nômeno está intimamente ligado às relações entre filosofia e cristianismo notadamente como definidas nas universi dades medievais Mas por outro lado devo reconhecer que a redescoberta da filosofia como modo de vida não é tão tardia quanto eu afirmara sendo necessário admitir que começou a esboçarse também nas universidades me dievais Em contrapartida é necessário aduzir nuances e especificações na descrição dessa redescoberta da filosofia como modo de vida A filosofia como serva da teologia Escrevendo nos últimos anos do século XVI suas Dis putationes Metaphysicae obra que exercerá considerável influência sobre muitos filósofos desde o século XVII até o século XIX o autor escolástico F Suárez4 declara Nesta obra ponhome no papel de um filósofo tendo bem presente ao espírito que nossa filosofia deve ser uma filosofia cristã e serva da divina teologia Para Suárez uma filosofia cristã é a que não contradiz os dogmas do cristianismo e pode ser utilizada na eluci dação de problemas teológicos Isso não quer dizer que essa filosofia seja especificamente cristã nas doutrinas que 3 P Hadot Exercices spirituels et philosophie antique 3 ed Pa1is pp 5657 e 222225 4 Fr Suárez Disputationes Metaphysicae in Opera omnia Vives 1861 t XXV Ràtio et discursus totius operis citado por É Gilson LEsprit de la philo sophie médiévale Paris 1944 p 414 no qual se encontrará uma compilação de textos sobre a noção de filosofia cristã 357 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos professa Ao contrário tratase essencialmente da filosofia aristotélica tal qual assimilada e adaptada ao cristianismo pela escolástica do século XIII Essa representação da filosofia serva escrava de uma teologia ou sabedoria superior fez uma longa história5 Desde o início de nossa era encontrarseá em Fílon de Alexandria que propusera um esquema geral da formação e do progresso espiritual A primeira etapa era segundo o programa da República de Platão o estudo do ciclo das ciências como a geometria a música mas também a gramática e a retórica Comentando o livro do Gênesis Fílon identifica essas ciências a Hagar a escrava egípcia à qual Abraão deve unirse antes de se unir a Sara sua es posa6 O ciclo das ciências deve ser concebido como es cravo da filosofia Mas a filosofia deve por seu turno ser considerada escrava da sabedoria ou verdadeira filosofia que é para Fílon a Palavra de Deus revelada por Moisés7 Os Padres da Igreja como Clemente de Alexandria e sobretudo Orígenes retomarão essa relação de proporção estabelecida por Fílon entre o ciclo das ciências e a filo sofia grega de uma parte e a filosofia grega e a filosofia 5 Encontrarseá uma história da noçao in B Baudoux Philosophia Ancilla Theologiae in Antonianum 12 293326 1937 É Gilson La servante de la théologie in Études de philosophie médiévale Strasbourg 1921 pp 3050 Vejamse também as observações de A Cantin em sua introdução a P Damião Lettre sur la ToutePuissance divine Paris SC 1972 p 251 nota 3 N do T cf Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento A serva da teologia e a dama dos salões in Humanidades Brasília 83 281287 1992 6 Fílon de Alexandria De congressu ll cf I Hadot p 282 7 Fílon de Alexandria op cit 7980 cf I Hadot p 284 M Alexandre pp 7172 358 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia mosaica de outra substituindo evidentemente a filosofia de Moisés pela de Cristo8 Mas é necessário considerar que a filosofia grega pos ta aqui em questão é aquela que se reduz ao discurso fi losófico O cristianismo apresentouse a si mesmo confor me vimos como um modo de vida o único modo de vida válido Mas em face desse modo de vida cristão por vezes tingido por nuances emprestadas à filosofia profana per sistem os discursos filosóficos das diferentes escolas ou mais exatamente o discurso filosófico do neoplatonismo pois a partir do século III dC o neoplatonismo é como síntese do aristotelismo e do platonismo a única escola filosófica que subsiste É esse discurso filosófico neopla tônico que os Padres da Igreja depois de Clemente de Alexandria e de Orígenes hão de utilizar para desenvolver sua teologia Desse ponto de vista a filosofia será desde a Antiguidade cristã a serva da teologia uma serva que aduzirá seu saberfazer mas que deverá também adaptarse às exigências de sua senhora Haverá assim uma conta minação Na Trindade o Pai revestirseá bastante dos traços do primeiro Deus neoplatônico o Filho será con cebido sobre o modelo do segundo Deus de Numênio ou do Intelecto plotiniano Mas a evolução das controvérsias teológicas conduzirá à representação de uma Trindade consubstanciai A lógica e a ontologia aristotélicas que o neoplatonismo integrara fornecerão os conceitos indispen sáveis para formular os dogmas da Trindade e da Encarna ção permitindo distinguir natureza essência substância hipóstase E como recompensa por efeito do refinamento 8 Vejamse os textos de Clemente e de Orígenes in M Alexandre pp 8397 e I Hadot pp 287289 359 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modemos das discussões teológicas a ontologia aristotélica tomarseá mais aperfeiçoada e precisa Segundo Fílon e Orígenes as artes liberais eram uma propedêutica à filosofia grega e a filosofia grega uma pro pedêutica à filosofia revelada Mas pouco a pouco as etapas preparatórias tiveram tendência de fundirse entre si Por exemplo quando Agostinho de Hipona em seu De doctrina christiana enumera os conhecimentos profanos necessários ao exegeta cristão praticamente põe no mesmo plano de um lado as artes liberais como as matemáticas a dialética e de outro a filosofia9 Reencontrase esse nivelamento no início da Idade Média por exemplo na época carolíngia em Alcuíno10 Do século IX ao XII a filosofia grega graças a certas obras de Platão de Aristóteles de Porfírio conhecidas por intermédio de traduções e comentários realizados no fim da Antiguidade por Boécio Macróbio Marciano Capela há de continuar como no tempo dos Padres da Igreja a ser utilizada nas discussões teológicas mas servirá também para elaborar uma representação do mundo O platonismo da escola de Chartres é um fenômeno bem conhecido11 Durante esse período as artes liberais farão parte do ciclo de estudos nas escolas monásticas e catedrais12 9 Agostinho De doctrina christiana 40 60 Bibliotheque Augustinienne CEuvres de saint Augustin 11 1 série Opuscules XI Le Magistere chrétien Éd et trad Combes et Farges Paris 1949 p 331 10 Alcuíno Epistulae 280 in Monumenta Germaniae Historica Epistulae vol IV p 437 2731 Dümmler cf J Domanski La philosophie théorie ou maniere de vivre chap li 11 Cf É Jeauneau Lectio Philosophorum in Recherches sur lécole de Chartres Amsterdam 1972 12 Cf Ph Delhaye Enseignement et morale au XIIe siecle FribourgParis 1988 pp 158 360 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia A partir do século XIII dois novos fatos terão grande influência sobre a evolução do pensamento da Idade Média Tratase de uma parte da aparição das universi dades e de outra da ampla disseminação das traduções de Aristóteles O fenômeno da constituição das universi dades corresponde ao progresso das cidades e a um declínio das escolas monásticas que como diz MD Chenu13 preparavam sem ambiÇão o jovem monge à leitura da Bíblia e ao serviço divino A universidade que é ao mesmo tempo no seio da cidade a corporação intelectual de estudantes e de professores e na Igreja um corpo dependente da autoridade eclesiástica orga niza um curso escolar um ano letivo aulas exercícios de discussão de exames O ensino é reunido em duas faculdades a Faculdade de Artes na qual se ensinam em princípio as artes liberais e a Faculdade de Teologia É igualmente no século XIII que se descobre grande parte da obra de Aristóteles e de seus comentadores gregos e árabes graças às traduções latinas de textos árabes e gregos A filosofia de Aristóteles e entendamos por isso o discurso filosófico de Aristóteles há de desem penhar papel capital nas duas Faculdades Os teólogos utilizarão a dialética de Aristóteles mas também sua teo ria do conhecimento e sua física que opõe forma e ma téria para responder aos problemas que põem à razão os dogmas cristãos Na Faculdade de Artes o ensino da filosofia de Aristótele isto é o comentário das obras dialéticas físicas e éticas daquele que se nomeou o Filósofo há de substituirse em três grandes partes ao 13 MD Chenu Introduction à létude de saint Thomas dAquin Paris 1954 p 16 361 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos ensino das artes liberais14 A filosofia será identificada assim com o aristotelismo e a atividade o ofício do professor de filosofia consistirá em comentar as obras de Aristóteles em resolver os problemas de interpretação que elas apresentam Denominouse essa filosofia e tam bém essa teologia de escolástica Em si como vimos15 a escolástica é apenas a herdeira do método filosófico valorizado no fim da Antiguidade do mesmo modo que os exercícios escolares da lectio e da disputatio apenas prolongam os métodos de ensino e de exercício valori zados nas escolas da Antiguidade16 Os artistas da razão Empresto a expressão artista da razão de Kantl7 que designa por essa fórmula os filósofos que se interessam apenas pela especulação pura Essa representação de uma filosofia reduzida a seu conteúdo conceitual sobreviveu até nossos dias pode ser encontrada cotidianamente tanto nos cursos universitários como nos livros didáticos de qualquer 14 Cf J Domanski La philosophie théorie ou maniere de vivre chap II com a bibliografia detalhada na notal 7 desse capítulo II 15 Cf acima p 220 16 Cf P Hadot La Préhistoire des genres littéraires philosophiques médiévaux dans lAntiquité in Les Genres littéraires dans les sources théologiques et philosophiques médiévales Actes du Colloque International de Louvainla Neuve 1981 LouvainlaNeuve 1982 pp 19 17 Kant Critique de la raison pure trad Tremesaygues et Pacaud Paris 1944 nouv éd 1986 p 562 Lógica Trad Guillermit Paris 1966 nouv éd 1989 p 24 Critica da razão pura 3a ed tradução de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger São Paulo Nova Cultural 1987 867 A arquitetônica da razão pura Os Pensadores Lógica tradução de Fausto Castilho Campinas IFCHUnicamp 1991 Primeira Versão 35 362 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia nível Poderseia dizer que é a representação clássica es colar universitária de filosofia Inconsciente ou conscien temente nossas universidades são sempre as herdeiras da Escola isto é da tradição escolástica A Escola aliás continua viva até em nosso século XX na medida em que o tomismo foi tradicionalmente prote gido nas universidades católicas pelos papas dos séculos XIX e XX E precisamente podese constatar que os de fensores da filosofia neoescolástica ou tomista continuaram como na Idade Média a considerar a filosofia uma postura puramente teórica Eis por que por exemplo no debate consagrado ao problema da possibilidade e da significação de uma filosofia cristã que se estabeleceu por volta de 1930 jamais foi apresentado que eu saiba o problema da filo sofia como modo de vida Um filósofo neoescolástico como É Gilson formulava em termos puramente teóricos o cristianismo introduziu ou não na tradição filosófica novos conceitos e uma nova problemática18 Com a clare za de espírito que o caracterizava via o essencial do pro blema quando escrevia A posição filosófica mais favorável não é a do filósofo mas a do cristão a grande superiori dade do cristianismo consistindo em não ser um simples conhecimento abstrato da verdade mas um método eficaz de salvação Sem dúvida reconhece ele a filosofia fora a um só tempo ciência e vida na Antiguidade Mas aos olhos do cristianismo mensagem de salvação a filosofia antiga representa apenas pura especulação ao passo que o cristianismo é uma doutrina que oferece ao mesmo tempo todos os meios para pôrse em prática a si mesmo19 18 É Gilson LEsprit de la philosophie médiévale pp 138 19 Id ibid op cit p 25 363 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos não se pode afirmar mais claramente que a filosofia mo derna veio a constituirse como uma ciência teórica já que a dimensão existencial da filosofia não tinha mais sentido na perspectiva do cristianismo que era simultaneamente doutrina e vida Mas não há somente a Escola isto é a tradição da teologia escolástica há também as escolas não as comuni dades filosóficas da Antiguidade mas as universidades que apesar da diversidade de suas fundações e de seus funciona mentos nem por isso são menos herdeiras da universidade medieval E do mesmo modo que na Antiguidade houve estreita interação entre a estrutura social das instituições filosóficas e a concepção que elas faziam da filosofia do mesmo modo houve desde a Idade Média uma espécie de causalidade recíproca entre a estrutura das instituições universitárias e as representações que elas fizeram da na tureza da filosofia É o que permite vislumbrar um texto de Hegel citado por M Abensour e PJ Labarriere20 em sua excelente in trodução ao panfleto de Schopenhauer intitulado Contra a filosofia universitária Nesse texto Hegel lembra que a filosofia não é mais como entre os gregos exercida como uma arte particular mas tem uma existência oficial que concerne ao público ela está principal ou exclusivamente a serviço do Estado É necessário reconhecer que há uma oposição radical entre a escola filosófica antiga que se dirige a cada indiví 20 M Abensour e PJ Labarriere prefácio a Schopenhauer Contre la philosophie universitaire Paris 1994 p 9 Todo esse prefácio é importante na perspectiva das ideias que aqui desenvolvemos 364 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia duo para transformálo na totalidade de sua personalidade e a universidade que tem por missão conceder diplomas correspondendo a certo nível de saber objetivável Evi dentemente a perspectiva hegeliana de uma universidade a serviço do Estado não pode ser generalizada Mas é necessário reconhecer ainda que só há universidade por iniciativa de uma autoridade superior quer seja o Estado ou as diversas comunidades religiosas católicas luteranas calvinistas ou anglicanas A filosofia universitária encontra se sempre na situação em que se encontrava na Idade Média isto é é sempre serva por vezes da teologia nas universidades nas quais acontece de a Faculdade de Filo sofia não passar de uma Faculdade inferior à Faculdade de Teologia por vezes da ciência sempre em todo caso dos imperativos da organização geral do ensino ou na era contemporânea da investigação científica A escolha de professores matérias exames é sempre submetida a critérios objetivos políticos ou financeiros com muita frequência infelizmente alheios à filosofia A isso é necessário acrescentar que a instituição uni versitária leva a fazer do professor um funcionário cujo ofício consiste em grande parte em formar outros funcio nários já não se trata como na Antiguidade de formar no ofício de homem mas formar no ofício de clérigo ou de professor isto é de especialista de teórico deten tor de certo saber mais ou menos esotérico21 Mas esse saber não põe mais em jogo toda a vida como gostaria a filosofia antiga 21 Cf as páginas que J Bouveresse em seu livro Wittgenstein la rime et la raison Paris 1973 pp 7375 consagra ao ofício de professor de filosofia 365 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos 1 Bouveress 22 analisu admiravelmente a propósito das 1de1as de yYIttgenstem sobre a carreira de professor de filosofia o nsco de perdição intelectual e moral que espreita o professor Não há em certo sentido servidão mais intolerante do que a que constrange um homem a ter por profissão uma opinião no caso erz que ele não possui forçosamente a menor qualidade para zsso E o que está em questão aqui do ponto de vista de Wittgestein nã o saber do filósofo isto é o estoque de conheczmentos teorzcos de que dispõe mas o preço pessoal que teve de pagar pelo que acredita poder pensar e dizer Uma filosfia não pode ser afinal de contas outra coisa que a expressao de uma experiência humana exemplar Por outro lado o domínio do idealismo sobre toda a filosofia universitária desde Hegel até o advento do existen cialismo e em seguida a voga do estruturalismo contribuí rm aUplamene para disseminar a ideia segundo a qual nao ha verdadeira filosofia senão teórica e sistemática Tais são pareceme as razões históricas que levaram a conceber a filosofia como pura teoria A permanência da concepção de filosofia como modo de vida Apesar de tudo essa transformação não é tão radical quanto possa parecer Podese constatar na história da fi losofia ocidental certa permanência certa sobrevida da concepção antiga Por vezes no próprio seio da instituição 22 J Bouveresse Wittgenstein la rime et la raison p 74 366 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia universitária mais frequentemente em reação a ela e em meios que lhe são estranhos como certas comunidades religiosas ou profanas algumas vezes também de maneira solitária certos filósofos desde a Idade Média até nossos dias permaneceram fiéis à dimensão existencial e vital da filosofia antiga Dissemos acima que os mestres da Faculdade de Artes puderam graças às traduções de Aristóteles feitas a partir do grego ou do árabe ler a obra quase completa de um filósofo da Antiguidade E é igualmente significativo que eles tenham redescoberto graças a esses textos que a fi losofia não é somente um discurso mas um modo de vida23 O fato é ainda mais interessante porque se trata precisa mente de Aristóteles o filósofo considerado comumente um puro teórico Mas os comentadores de Aristóteles viram com muita perspicácia que para o Filósofo o essencial da filosofia é precisamente consagrarse à vida de investi gação à vida de contemplação e sobretudo ao esforço de assimilação ao Intelecto divino É assim que retomando as famosas afirmações de Aristóteles no fim do livro X da Ética a Nicômaco Boécio da Dácia24 considera que o fim do homem e sua felicidade consistem em viver segundo a parte mais elevada de seu ser isto é segundo a inteligência destinada a contemplar a verdade Essa vida é conforme à ordem da natureza que subordinou as potências inferiores às potências superiores Unicamente o filósofo que con sagra sua vida à especulação da verdade vive segundo a 23 Cf J Domanski La philosophie théorie ou maniere de vivre chap 11 et III 24 Boécio da Dácia De summo bano tradução in Philosophes médiévaux Anthologie de textes philosophiques XIIeXIVe siecle S d R Imbach et MH Méléard Paris 1986 pp 158166 367 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos natureza e leva uma vida muito deleitável A esse texto faz eco a declaração de Aubry de Reims25 Quand se sabe que se chefiOU ao termo devese apenas saborear e expenmentar o prazer E isso o que se denomina sabedoria ese sbor que se soube provar talvez sa amado por si mesm ezs az a filosofia é aí que se deve demorar Encontraremos atitudes análogas em Dante e em Eckhart26 Essa corrente de pensamento vai conceder como escreve J Domanski27 à filosofia uma autonomi completa sem considerála uma simples propedêutica à doutrina cristã o século XN Petrarca28 rejeitará a ideia de uma ética teonca e descritiva constatando que o fato de ler e de co mentar os tratados de Aristóteles sobre esse assunto não tomou ninguém melhor Por essa razão ele se recusa a de nominar filósofos os professores sentados numa cátedra e reserva esse nome somente àqueles que confirmam por seus atos o que ensinam29 Sobretudo essa fórmula tem im portância capital na perspectiva que nos ocupa3o É mais p 25 Aubry de Reims citado por A de Libera Penser au Moyen Âge ans 1991 p 147 26 Cf id ibid pp 317347 sobretudo pp 344347 27 a J Domanski a fhilosophie théorie ou maniere de vivre chap m 28 Petrarca De suz ipszus et multorum ignorantia in id Prose Ed G Martellottr Milano 1955 p 744 Para tudo 0 que se segue cfJ Doma ki chap N ns 29 Petrarca De vita solitaria II 7 Pnosa pp 524526 C b J D orno o serva oman capitulo rv nota 5 a expressão os professores sentados num catedra e proveniente de Sêneca Da brevidade da vida X 1 30 Petrarca De sui ipsius et multorum ignorantia in Prosa pp 746748 Satms est autem bonum velle quam verum nosce N do T 1 1 Q em atrm no ongma uerer o bem é preferível a conhecer a verdade 368 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia importante querer o bem que conhecer a verdade Encon trase a mesma atitude em Erasmo quando afirma muitas vezes que só é filósofo quem vive de maneira filosófica como o fizeram Sócrates Diógenes o Cínico Epiteto mas também João Batista Cristo e os apóstolos31 É necessário por outro lado especificar que quando Petrarca ou Erasmo falam de vida filosófica eles pensam como certos Padres da Igreja e certos monges em uma vida filosófica cristã admitindo contudo como acabamos de ver que os filósofos pagãos também puderam realizar o ideal do filósofo No Renascimento assistirseá a uma renovação não somente das tendências doutrinais mas das atitudes con cretas da filosofia antiga o epicurismo o estoicismo o platonismo o ceticismo Nos Ensaios de Montaigne por exemplo vêse o filósofo procurar praticar os diferentes modos de vida propostos pela filosofia antiga 32 Meu ofício minha arte é viver Seu itinerário espiritual vai assim leválo do estoicismo de Sêneca aoprobabilismo de Plutarco33 passando pelo ceticismo para terminar final e definitivamente no epicurismo 34 Nada fiz hoje Não vivestes então Pois essa é a ocupação mais fundamental e ilustre Nossa grande e gloriosa 31 Erasmo Adagia 2201 3 31 in Opera omnia Amsterdam 1969 II 5 pp 162 25 166 18 Cf J Domanski capítulo N nota 44 32 Montaigne Essais II 6 Éd Thibaudet Paris Gallimard 1962 p 359 Bibliothêque de la Pléiade p 179 da edição brasileira citada 33 Cf D Babut Du scepticisme au dépassement de la raison Philo sophie et foi religieuse chez Plutarque in Parerga Choix darticles de D Babut Lyon 1994 pp 549581 34 Ensaios III 13 pp 1088 e 1096 N do T pp 220 e 224 Cf H Friedrich Montaigne Paris 1949 p 337 369 1 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos obraprima é viver por motivo Saber lealmente gozar do pró prio ser eis a perfeição absoluta e divina M Foucault35 queria fazer começar com Descartes e não na Idade Média a teorização da filosofia Como já disse alhures se estou de acordo com ele quando diz Antes de Descartes uma pessoa não poderia ter acesso à verdade a menos que realizasse em si antes de tudo um trabalho que o tornasse suscetível de conhecer a verdade basta recordar o que eu disse acima36 a propósito de Aristóteles e de Porfírio distanciome dele quando acrescenta que segundo Descartes para chegar à verda de basta que eu seja não importa em qual condição capaz de ver o que é evidente a evidência substituiu a ascese Penso que quando Descartes escolhe dar a uma de suas obras o título de Meditaçõe 7 ele sabe muito bem que a palavra na tradição da espiritualidade antiga e cris tã designa um exercício da alma Cada Meditação é efeti vamente um trabalho de si sobre si que é necessário ter acabado para passar à etapa seguinte Como mostrou fi namente o romancista e filósofo M Buto 8 esses exercí cios são além disso apresentados com muita habilidade literária Se Descartes fala na primeira pessoa se ele evo ca o fogo diante do qual estã sentado o robe de chambre com o qual está vestido o papel que está diante dele e se 35 H Dreyfus et P Rabinow Michel Foucault Un parcours philosophique Paris 1984 pp 345346 36 Cf p 136 e p 228 37 Meditações sobre filosofia primeira tradução de Fausto Castilho Cam pinas IFCHUnicamp fevereiro 1994 a novembro de 1995 Textos Didáti cos 7 9 11 14 15 e 17 38 M Butor Lusage des pronoms personnels dans le roman in Problemes de la personne Éd I Meyerson ParisLa Haye 1973 pp 288290 370 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia descreve seus sentimentos ele quer de fato que seu lei tor percorra as etapas da evolução interior por el ds critas em outras palavras o eu empregado nas Medztaçoes d t que se dirige ao leitor Reencontramos e e Lato um u aí 0 movimento tão frequente na Antigmdade pelo qual se passa do eu individual a um eu elevdo ao plano da universalidade Cada Meditação trata umcament de u tema por exemplo a dúvida metódica na primeira Medz tação a descoberta do eu como realidade pensante a segunda Por isso o leitor pode asiilar bm o eyocw praticado em cada Meditação Aristoteles dissera E pre ciso tempo para que 0 que aprendemos se orne nsa natureza Descartes por sua parte sabe que e necessra uma longa meditação para fazer pentrar na meona a nova consciência de si assim conqmstada Ele diz a propósito da dúvida metódica 39 Não pude me dispensar de lhe dar uma Meditação completa gostaria que os leitores não empregassem somente o pouco de tempo que é necessário para lêla mas alfUns meses o ao menos algumas semanas a analisar as cozsas das quazs ela trata antes de passar a outra E tomando consciência do eu como realidade pensante É necessário examinála frequentemente e analisála durante muito tempo 0 que me parece uma causa bastane jta para tratar 0 ponto de outra matéria na segunda Medztaçao A terceira Meditação também se apresenta e suas meiras linhas como um exercício espiritual mmto platom 39 Descartes Réonses aux Secondes Objections contre les Méditations r in Ch Adam et P Tannery Descartes Euvres t IX PP 103104 371 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos co pois se trata de separarse radicalmente do conheci mento sensível Agoa fecharei meus olhos o ouvido tapado distraídos todos os sentzos apagarei tamhém do pensamento as imagens de todas s cozsas corporais 1 entretendome só comigo mesmo e me znspeczonando ais a fudo esforçarmeei para me tornar pau latznamente mazs conheczdo e mais familiar a mim mesm04o D manera mais geral não me parece que a evidência cartes1aa seJ acessível a qualquer sujeito É impossível com eelto nao reconhecer a definição estoica de repre sentaao 4 dequada e compreensiva nas linhas do Discurso do metodo que evocam o preceito da evidência O Pmeiro era o de jamais acolher alguma coisa como ver adezra que e não conhecesse evidentemente como tal isto e de evztr cuzdadosamente a precipitação e a prevenção e de nada nclz em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tao dzstzntamente a meu espírito que eu não tivesse nenhuma ocasião de pôlo em dúvida É exatamente a disciplina estoica do assentimento42 e como no estoicismo ela não é acessível indiferentement 40 1 p 7 Valime da traduçãobrasileira N do T 1 escartes Dzscours de la Méthode Seconda partie texte et comm par E Gilson Pans 1939 p 18 15 Gilson Discurso do Método 4a ed tra duçao de Jacó Guinsburg e Bento Prado Júnior São Paulo Nva Cu 1 1987 Os Pensadores ra 42 Cf SVF li 130131 Diógenes Laércio VII 4648 trad d L St d uzi o In es ozczens e réhier pp 3132 A ausência de precipitação no uizo é uma YJrtude estmc Dscartes provavelmente não encontrou isso e santo Tomas como quena Gilson Discours de la Méthode p 198 d mas antes entre os estmcos mo ernos o próprio Gilson p 481 cita Guillaume du Vair La Phzfosphze morale des Stoiques ed de 1603 p 55 ou antigos e n Laercio por exemplo m wgenes 372 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia a qualquer espírito pois exige também uma ascese e um esforço que consiste em evitar a precipitação aproptô sia propeteia Não se compreende suficientemente até que ponto a concepção antiga de filosofia está sempre presente em Descartes por exemplo nas Cartas à princesa Elisabeth que são por outro lado até certo ponto cartas de direção espiritual Para Kant a antiga definição de filosofia como philo sophia desejo amor exercício da sabedoria é sempre válida A filosofia diz ele é a doutrina e o exercício da stbedoria não simples ciência 43 e ele conhece a distância que separa a filosofia da sabedoria O homem não tem a posse da sabedoria Ele somente tende a ela e somente pode ter amor por ela e isso já é bastante meritório A filosofia é para o homem esforço para a sabedoria que sempre permanece descumprido44 Todo o edifício técnico da filosofia crítica kantiana só tem sentido na perspectiva da sabedoria ou antes do sábio pois Kant sempre tem a tendência de representar a sabedoria sob a figura do sábio norma ideal que jamais se encarnou num homem mas segundo a qual o filósofo procura viver Kant45 denomina igualmente esse modelo do sábio de filósofo Um filósofo que corresponda a esse modelo não existe não mais que um verdadeiro cristão não existe realmente Os dois são modelos 1 O modelo deve servir como norma 1 O filósofo é apenas uma ideia Talvez possamos lançar um 43 Kant Opus postumum trad F Marty Paris 1986 pp 245 e 246 44 Id ibid p 262 45 Id Vorlesungen über die philosophísche Encyclopiidie in Kants gesammelte Schriften XXX Berlin Akademie 1980 p 8 373 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos olar para ele imitálo em alguns pontos mas jamais o atzngzremos totalmente qui Kant situase na tradição do Sócrates do Banquete ao d1zer que a única coisa que ele sabe é que não é sábio que ainda não atingiu o modelo ideal do sábio E esse socrtismo já anuncia o de Kierkegaard quando diz que é cnstao apenas na medida em que sabe que não é cristão A Ideia de sabedoria deve ser o fundamento da filosofia como a Ideia de santidade deve ser o fundamento do cristianism046 Kant utiliza além disso tanto a expressão Ideia de sabedoria como a expressão Ideia da filosofia ou do filósofo uma vez que de fato o ideal que é a sabedoria é precisamente o ideal perseguido pelo filósofo47 Alguns antigos filósofos aproximaramse do modelo do ver dadeiro filósofo Rousseau igualmente somente não o atin giram alvez muitos tenham acreditado que já possuímos a doutrzna da sabedoria e que não deveríamos considerála uma simples ideia pois possuímos tantos livros cheios de prescões que os dizem como devemos agir Somente que elas sao na mazor parte proposições tautológicas e exigências que não se pode suportar entender pois não mostram nenhum meio de alcançálas E Kant continua a evocar a filosofia antiga4s Uma Ideia equivocada da filosofia há muito tempo está presente entre os homens Mas parece que ou eles não a compreen deram ou a consideraram uma contribuição à erudição Se 46 Kant Vorlesungen p 8 47 Id ibid p 8 48 Id ibid p 9 374 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia tomarmos os antigos filósofos gregos como Epicuro Zenão Sócrates etc descobriremos que o objeto principal de sua ciência foi o destino do homem e os meios de atingir isso Eles permaneceram muito mais fiéis à verdadeira Ideia do filósofo do que a que se faz nos tempos modernos nos quais se encontra o filósofo apenas como artista da razão E após ter descrito o ensinamento e sobretudo a vida de Sócrates de Epicuro de Diógenes Kant especifica que os antigos exigiam de seus filósofos que vivessem como ensinavam49 Quando hás de enfim começar a viver virtuosamente disse Platão a um ancião que lhe pedia escutasse algumas lições sobre a virtude Não se deve apenas especular mas é ne cessário também de uma vez por todas pensar em praticar Mas hoje tomase por sonhador aquele que vive de acordo com o que ensina Tanto que sobre esta Terra o sábio perfeito em seu modo de vida e em seu conhecimento não se tornará real e não haverá filosofia É somente a este o mestre no ideal que devemos denominar o filósofo mas ele não é encontrado em parte alguma50 A filosofia no sentido próprio do termo não existe ainda e talvez jamais venha a existir Só é possível o filosofar isto é um exercício da razão guiado pela ideia que se faz do mestre no ideal51 49 Id ibid p 12 50 Id Critique de la raison puTe trad Tremesaygues et Pacaud p 562 Critica da razão pura 867 A arquitetônica da razão pura 51 Id ibid pp 561562 Critica da mzão pum 867 A atquitetônj ca da razão pura cf Critique de la raison pratique Trad J Gibelin et E Gilson Paris 1983 p 123 375 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos Há duas representações possíveis de filosofia uma que Kant52 denomina o conceito de filosofia escolar outra que ele nomeia com o conceito de filosofia do mundo Em seu conceito escolar ou escolástico a filosofia é ape nas pura especulação visa apenas a ser sistemática à perfeição lógica do conhecimento Quem tem a concep ção escolástica de filosofia é diznos Kant53 um artista da razão isto é um filodoxo o amigo da opinião do qual fala Platão54 aquele que se interessa pela multidão de coisas belas mas sem ver a beleza em si pela multidão de coisas justas mas sem ver a justiça em si Isso leva a dizer que ele não é afinal perfeitamente sistemático porquanto não vê a unidade do interesse universalmente humano que anima o conjunto do esforço filosófico55 Para Kant a concepção escolar de filosofia permanece no nível da pura teoria e somente a concepção de filo sofia do mundo se situa na perspectiva do sentido últi mo da filosofia e pode realmente unificar a filosofia Concepção de filosofia do mundo Kant56 fala tam bém de concepção cósmica o cosmopolita A expres são é para nós embaraçosa E necessário remetêla ao contexto do século XVIII o Século das Luzes A palavra cósmica aqui não se relaciona ao mundo físico mas ao mundo humano isto é ao homem que vive no mundo dos 52 Id ibid p 562 Crítica da razão pura 867 A arquitetônica da razão pura 53 Id ibid p 562 Crítica da razão pura 867 A arquitetônica da razão pura Logique Trad Guillermit Paris 1966 nova edição 1989 p 24 54 República V 480 a 6 55 É Weil Probtemes kantiens Paris 1990 p 37 nota 17 56 Logique p 25 Sobre o conceito cósmico de filosofia d J Ralph Lindgren Kants Conceptus Cosmicus in Dialogue l 280300 19631964 376 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia homens A oposição entre filosofia de escola e filosofia do mundo57 já existia antes de Kant por exemplo em G Sulzer 1759 para quem a filosofia do mundo consiste na experiência dos homens e na sabedoria que dela resulta Essa distinção correspondia à tendência geral do Século das Luzes de fazer sair a filosofia do círculo fechado e conge lado da escola para tornála acessível e útil a todos os homens Devemos insistir nessa característica da filosofia do século XVIII que tende a reunir de novo como na Antiguidade discurso filosófico e maneira de viver Mas a noção kantiana de filosofia cósmica é mais profunda que a filosofia do mundo ou popular ao modo do século XVIII porquanto a filosofia cósmica tem como referência final a sabedoria encarnada no sábio ideal O que sempre fundou a noção de filosofia isto é de investigação da sabedoria é diz Kant58 a ideia de uma filosofia cósmica de uma filosofia do mundo e não a ideia de uma filosofia escolástica principalmente quando por assim dizer se personificou e se representou como um arquétipo do ideal do filósofo isso leva a dizer de quem se reconhece na figura do sábio Neste significado seria bastante vanglorioso chamarse a si mesmo de filósofo e arrogarse uma identidade com o arquétipo existente unicamente na ideia O filósofo ideal o sábio seria o legislador da razão isto é aquele que se dá a si mesmo sua própria lei que é a lei da razão Se o Sábio ideal não pode ser encontrado em parte alguma ao menos deparamos com a ideia de sua legislação em 57 Cf H Holzhey Der Philosoph für die Welt eine Chimãre der deutschen Aufklãrung in H Holzhey und W C Zimmerli Esoterik und Exoterik der Philosophie BâleStuttgart 1977 pp 117138 especialmente p 133 58 Kant Critique de la raison pure p 562 N do T Crítica da razão pura 867 A arquitetônica da razão pura 377 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos cada razão humana o que permite entender que é à luz da Ideia do sábio ideal que nossa razão formula os impe rativos que dirigem a ação humana59 No imperativo cate górico60 age unicamente de acordo com a máxima que faz com que possas querer ao mesmo tempo que ela se tome uma lei universal o eu se realiza e se supera universali zandose O imperativo deve ser incondicionado isto é não se fundar em nenhum interesse particular mas ao contrá rio determinar o indivíduo a agir apenas na perspectiva do universal Tornamos a encontrar um dos temas funda mentais do modo de vida próprio à filosofia antiga O leitor continuará sem dúvida a perguntarse por que Kant denominou precisamente conceito de filosofia cósmica o programa filosófico dominado pela ideia de sabe doria Mas talvez compreenda melhor a razão dessa deno minação lendo esta definição kantiana da ideia de filosofia cósmica61 Conceito cósmico significa aqui um conceito con cernente ao que interessa necessariamente a qualquer um isto é visto que o mundo cosmos em questão é o mun do humano ele interessa a todo o mundo O que inte ressa a todo o mundo ou antes o que deveria interessar a todo o mundo é precisamente tão só a sabedoria o estado normal natural cotidiano dos homens deveria ser a sabedoria mas eles não chegam a atingila Eis aí uma das ideias fundamentais da filosofia antiga Isso leva a dizer que o que interessa a cada homem não é somente a questão da crítica kantiana Que posso saber mas são so 59 É Weil Problemes kantiens p 34 60 Kant Fondements de la métaphysique des mreurs Trad V Delbos et A Philonenko Paris 1987 p 94 61 Kant Critique de la raison pure p 562 nota Crítica da razão pura 868 A arquitetônica da razão pura nota 378 Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia bretudo as questões Que devo fiazer2 Q p t ue me e permztzdo es erar Que e o homem questões fundamentais da filo sofia62 Essa ideia do interesse de interesse da razão é t Importa t mm o n e pOis st ligada à ideia de um primado da razão pratica em relaçao a razão teórica pois diz Kant63 1 todo interesse é finalmente prático e 1 d mesmoo a raa especulativa é apenas condicionado e completo no uso pratzco A filosfia kantiana dirigese com efeito apenas àqueles que ecpenmentam esse interesse prático pelo bem moral que sao dotados de um sentimento moral que optam p um fim or supremo por um bem soberano É admi I que c rave na rztzca da faculdade do juízo o interesse pelo bem moral e o sentimento moral apareçam como a condição bprel hmmar do interesse que se pode experimentar pela e eza da natureza64 Este interesse imediato pelo belo da natureza não é efetivamente mun nas somente próp1io daqueles cuja maneira de pensar a foz reznada para o bem ou é eminentemente receptiva a esse treznamento O discurso teórico de Kant é a um só tempo de sua parte e da parte daqueles aos quais se dirige ligado a uma 62 Kant Logique p 25 c r d l d l d n zque e a razson pure p 543 883 D I ea o bem supremo com f d 0 d o um un amento determinante do fim últi a razao pura mo 63 Id ibid Paris 1983 p 136 64 Critique de la faculté de 42 T p 133 yuger rad A Phlonenko Paris 1968 379 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos decisão que é um ato de fé que conduz à escolha de um modo de vida inspirado em última análise pelo modelo do sábio Podese reconhecer além disso na ética ascéti ca que ele propõe no final de sua Aftafísica dos costume uma exposição das regras do exerncw a lrtude que e esforça para reconciliar a serenidade ep1cunsta e a tensao do dever estoico Para descrever em toda sua amplitude a história da recepção da filosofia antiga na filosofia desde Idade Média até a era contemporânea seria necessana uma obra de considerável volume Contenteime em pôr algu mas balizas Montaigne Descartes Kant Haveria muitos outros nomes a evocar pensadores tão diversos quanto Rousseau Shaftesburf6 Schopenhauer Emerson Thoreu Kierkegaard Marx Nietzsche W James Bergson W1tt genstein MerleauPonty e ainda outros que todos de uma maneira ou de outra influenciados pelo modelo da filosofia antiga conceberam a filosofia como ua atividade concreta e prática e como uma transformaçao da maneira de viver ou de perceber o mundo 65 Métaphysique des mceurs li Doctrine de la vertu li 53 Trad A Renaut Paris 1994 pp 363365 66 Cf Shaftesbury Exercices trad et prés par L Jaffro ns 1993 tratase de exercícios espirituais segundo Epiteto e Marco Aureho 380 Capítulo 12 Qyestões e perspectivas Ao chegar ao fim desta obra o autor entrevê tudo o que não disse e as questões que o leitor gostaria de lhe propor Se por exemplo apresentamos a teorização da filosofia como resultado do encontro entre o cristianismo e a filosofia não seria desejável fazer um estudo de con junto sobre as relações entre filosofia e religião tanto na Antiguidade como no mundo moderno Na Antiguidade o filósofo encontra a religião na vida social com o culto oficial e na vida cultural com as obras de arte e a litera tura Mas ele a vive filosoficamente transformaa em filo sofia Se Epicuro recomenda a participação nas festas da cidade e mesmo na oração é para permitir ao filósofo epicurista contemplar os deuses como a teoria epicurista da natureza os concebe Mesmo os neoplatônicos tardios que praticam a teurgia integramna num progresso espiri tual essencialmente filosófico para elevarse finalmente a um Deus transcendente e incognoscível totalmente estranho à religião tradicional Se eles constroem uma teologia ra cional que faz corresponder aos deuses da religião tra dicional as entidades filosóficas essa teologia já não tem muita relação com as crenças antigas que querem defender contra o cristianismo O modo de vida filosófico na Antigui 381 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos dade não entra em concorrência com a religião porque a religião não é nesse momento un nodo de VIda ue englobe toda a existência e toda a VIda mtenor como e o caso no cristianismo É antes o discurso filosófico como no caso de Anaxágoras e de Sócrates que pode chocarse com as ideias sobre os deuses recebidas na cidade As relações entre filosofia e cristianism são mlio mais complexas do que vislumbramos e sna necessano um longo estudo para definilas Pdse dizer que quse todas as filosofias desde a Idade Media sofreram mflen cia do cristianismo Por um lado seu discurs loofico desenvolvese em relação estreita com o cnstiamsno seja para justificar direta ou indiretamente a doutnna cristã seja para combatêla Sobre esse ponto so se pode aprovar as observações de E Gilson1 que motran cmo a filosofia de Descartes de Malebranche de Leibmz situase finalmente na problemática cristã Ele tera podido acres centar também a de Kant2 mas é necessano reconhecer que ao assimilar a fé cristã à fé moral Kant transforma ants 0 cristianismo em filosofia E por outro lado o modo de vida filosófico desde a Idade Méia assano por Petrarca e Erasmo ou s estoicos e epicunsas cs tãos até 0 existencialismo cnstao de G Mareei ha mmto temo identificouse ao modode vida cristã a Pto de d se po er descobrir mesmo nas atitudes existenCiais dos 3 filósofos contemporâneos vestigws do cnstlamsmo o que 1 É Gilson LEsprit de la philosophie médiévale pp 111 G Bugault ll p 1994 pp 2526 M MerleauPonty Eloge de la phz LInde pensete e ans losophie et autres essais p 201 h 2 s Zac Kant les stociens et le christianisme m Revue de Metap y sique et de Morale 1972 pp 137165 3 R R hlitz Esthétique de existence m Mzchel Foucault phzlosophe oc d P 290 fala de uma herança cristã e humanista seculanza a 382 Questões e perspectivas não é de admirar em virtude da força dessa tradição que impregnou toda a mentalidade ocidental Seria necessário uma longa reflexão para definir mais profundamente as relações entre filosofia e religião Penso que será útil especificar brevemente a represen tação que fiz da filosofia Admito perfeitamente que tanto na Antiguidade como em nossos dias a filosofia seja uma atividade teórica e conceitualizante Mas penso também que na Antiguidade é a escolha que o filósofo faz de um modo de vida que condiciona e determina as tendências fundamentais de seu discurso filosófico e acredito final mente que isso é verdadeiro para toda filosofia Não que ro dizer evidentemente que a filosofia seja determinada por uma escolha cega e arbitrária mas antes que há um primado da razão prática sobre a razão teórica a reflexão filosófica é motivada e dirigida pelo que interessa à razão como dizia Kant isto é pela escolha de um modo de vida Diria com Plotino 4 É o desejo que gera o pensamento Mas há uma espécie de interação ou de causalidade recí proca entre vontade e inteligência entre o que o filósofo quer profundamente o que lhe interessa no sentido mais forte do termo isto é a resposta à questão como viver e o que ele procura elucidar e esclarecer pela reflexão Vontade e reflexão são inseparáveis Nas filosofias moder nas ou contemporâneas essa interação existe em alguns casos e podemse explicar até certo ponto os discursos filosóficos pelas escolhas existenciais que os motivam Por exemplo como se sabe por uma carta5 de Wittgenstein o 4 Plotino Eneadas V 6 24 5 9 5 G Gabriel La logique comme littérature De la signification de la forme littéraire chez Wittgenstein in Le Nouveau Commerce cahier 8283 383 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos Tractatus logicophilosophicus que se apresenta aparentemen te como uma teoria da proposição e o é efetivamente nem por isso é menos fundamentalmente um livro de ética no qual o que pertence à ética não é dito mas mostrado A teoria da proposição é elaborada para justi ficar o silêncio concernente à ética previsto e intenciona do desde o início do livro O que motiva o Tractatus é com efeito a vontade de conduzir o leitor a um modo de vida a certa atitude completamente análoga às opções existenciais da filosofia antiga6 Viver no presente sem nada lastimar temer ou esperar7 Como já dissemos mui tos filósofos modernos e contemporâneos permaneceram para retomar a expressão de Kant fiéis à Ideia de filoso fia8 E finalmente foi antes o ensino escolar de filosofia e sobretudo de história da filosofia que sempre teve a tendência de insistir no aspecto teórico abstrato e con ceitual da filosofia Eis por que é necessário insistir sobre certos imperati vos metodológicos Para compreender as obras filosóficas da Antiguidade será necessário dar conta das condições particulares da vida filosófica naquela época revelar aí a intenção profunda do filósofo que é não desenvolver um discurso que teria seu fim em si mesmo mas agir sobre as almas De fato toda asserção deverá ser compreendida na perspectiva do efeito que ela visa produzir na alma do ouvinte ou do leitor Tratase por vezes de converter con printemps 1992 p 77 o nome do autor foi impresso equivocamente Gabriel Gottfried no lugar de Gottfried Gabriel 6 Tractatus 6 4311 7 Cf as excelentes explicações de J Bouveresse Wittgenstein la rime et la raison Paris 1973 p 89 e pp 2181 8 Cf acima pp 373 ss 384 Questões e perspectivas solar curar ou exortar mas tratase sempre e principal mente não de comunicar um saber acabado mas de formar isto é de ensinar um saberfazer de desenvolver um habi tus uma capacidade nova de julgar e de criticar e de transformar isto é de mudar a maneira de viver e de ver o mundo Não causará espanto então encontrar em Platão em Aristóteles ou em Plotino aporias nas quais o pensa mento pareça encerrarse retomadas e repetições incoe rências aparentes caso se recorde que são destinadas não a comunicar um saber mas a formar e a exercitar A relação entre a obra e seu destinatário terá impor tância capital O conteúdo escrito é parcialmente determi nado pela necessidade de adaptarse às capacidades espirituais dos destinatários Por outro lado jamais se deve esquecer de situar as obras dos filósofos antigos na pers pectiva da vida da escola à qual pertenciam Elas estão quase sempre em relação direta ou indireta com o ensino Por exemplo os tratados de Aristóteles são em grande parte apontamentos para o ensino oral os tratados de Plotino ecos das dificuldades surgidas durante os cursos Enfim a maior parte das obras filosóficas ou não da Antiguidade estava em estreita relação com a oralidade pois eram destinadas a ser lidas em voz alta muitas vezes em reuniões de leitura pública Essa estreita ligação do escrito e da palavra pode explicar certas particularidades embaraçosas dos escritos filosóficos Sem dúvida o leitor gostaria também de perguntarme se penso que a concepção antiga pode estar viva ainda hoje Creio já ter respondido em parte a essa questão deixando entrever como muitos filósofos da época moder na de Montaigne até nossos dias não consideraram a 385 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos filosofia um simples discurso teórico mas uma práica uma ascese e uma transformação de si9 Essa concepçao e sempre atual e sempre poe ser reatuizada 1 0 Eu apre sentaria a questão de outro modo Nao sena urgete descobrir a noção antiga de filósofo o fiósofo que VIV e escolhe sem 0 que a noção de filosofia nao tera sentido Não se poderia definir o filósofo não como um professor ou um escritor que desenvolve um discurso filosofico mas d d segundo a representação constante a Ant11 a e como um homem que leva uma VIda filosofica No sea neces sário rever 0 uso habitual da palavra filosofo ue se aplica habitualmente apenas ao teórico para atnbmla também a quem pratica a filosofia do mesmo mdo que 0 cristão pode praticar o cristianism sm ser teoreuco ou teólogo Será necessário que a propa pessoa tenha d construir um sistema filosófico para VIVer filosoficamente Isso não quer dizer que não se deva refletir sbre sua própria experiência e sobre a dos filósofos antenores ou contemporâneos Mas 0 que é viver como filósofo O que é a prática da filosofia Na presente obra quis mstrar ente outras coisas que a prática filosófica era relativamente mdepen 9 Cf acima pp 366380 10 Cf por exemplo numerosos trabalhos pbhcados ou no preo de Arnold I Davidson notadamente Ethics as Ascetlcs Foucault the H1story f Eth nd Ancient Thought in Foucault and the Wrztmg of Hzstory Ed O lCS a Phl h Goldstein Oxford 1994 pp 6380 vejase também H Hutter 1 oso Y s SelfTransformation in Historical Rejlections 1623 171198 1989 R Imbach La philosophie comme exercice spirituel m Crztzque 454 PP 275283 L Solere Philosophie et amour de la sagesse entre les Ane1ens et nous lI de 1n lnde Euroe Postmodernité Colloque de Ceret 1991 sous n r Ge d la direction de Poulain Paris 1993 pp 149198 Schlanger stes e philosophes Paris 1994 386 Questões e perspectivas dente do discurso filosófico O mesmo exercício espiritual pode ser justificado por discursos filosóficos extremamente diferentes que chegam demasiado tarde para descrever e justificar experiências cuja densidade existencial escapa afinal a todo esforço de teorização e de sistematização Por exemplo os estoicos e os epicuristas convidaram seus discípulos por razões diversas e quase opostas a viver na consciência da iminência da morte e a concentrar sua atenção no momento presente libertandose da inquietude do futuro e do peso do passado Mas quem pratica esse exercício de concentração vê o universo com novos olhos como se o visse pela primeira e última vez ele descobre na fruição do presente o mistério e o esplendor da existên cia atinge a serenidade experimentando a que ponto são relativas as coisas que provocam perturbação e inquietude Da mesma maneira e igualmente estoicos epicuristas e platônicos convidam por razões diferentes seus discípu los a elevarse a uma perspectiva cósmica a mergulhar na imensidão do espaço e do tempo e a transformar assim sua visão de mundo Vista dessa maneira a prática da filosofia ultrapassa as oposições das filosofias particulares Ela é essencialmente um esforço para tomar consciência de nós mesmos de nosso sernomundo de nosso sercomooutro um esforço também para reaprender a ver o mundo como dizia MerleauPonty11 para alcançar assim uma visão universal graças à qual poderemos nos colocar no lugar do outro e exceder nossa própria parcialidade 11 M MerleauPonty Phénoménologie de la perception Paris 1945 p XVI Fenomenologia da percepção tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura São Paulo Martins Fontes 1994 p 19 387 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos Existe um texto de G Friedmann 12 que tenho frequen temente citado em outras obras porque me parece capital na medida em que mostra como um homem contempo râneo engajado na luta política reconhece que pode e deve viver como filósofo Levantar seu voo cada dia Ao menos um momento por breve que seja persiga o que lhe seja intenso Cada dia um exercício espiritual sozinho ou em companhia de um homem que queira também melhorar Exercícios espirituais Sair da duração Esforçarse para despojarse de suas próprias paixões as vaidades a sensação de ruído em torno de seu nome que de um tempo a outro o atinja como um mal crônico Fugir da maledicência Despojar a piedade e o ódio Amar todos os homens livres Eternizarse superandose Esse esforço sobre sz e necessarzo essa ambição justa Numerosos são aqueles que se deixam inteiramente absorver pela política militante pela preparação da Revolução social Raros muito raros aqueles que para preparar a Revolução querem se tornar dignos Mas o filósofo da Antiguidade para praticar a filosofia vivia em relações mais ou mens estreitas com um grupo de filósofos ou pelo menos recebia de uma tradição filosófica suas regras de vida Sua tarefa era facilitada mesmo que viver efetivamente segundo essas regras de vida exigisse um duro esforço Agora não há mais escolas não há mais dogmas O filósofo está só Como encontrará seu caminho Ele o encontrará como muitos outros o encontraram antes dele como Montaigne ou Goethe ou Nietzsche que 12 G Friedmann La Puissance et la Sagesse Paris 1970 p 359 388 Questões e perspectivas também estavam sós e escolheram como modelos segun do as circunstâncias ou suas necessidades profundas os modos de vida da filosofia antiga Nietzsche por exemplo escrevia13 No que concerne à práxis vejo as diferentes escolas morais como laboratórios experimentais nos quais um número consi derável de receitas da arte de viver foram praticadas a fundo e pensadas até seu termo Os resultados de todas essas escolas e de todas as suas experiências pertencem a nós Nós não aceitamos uma receita estoica com menos agrado porque já nos apropriáramos de receitas epicuristas Uma longa experiência vivida durante séculos e as longas discussões em torno dessas experiências é que dão valor aos modelos antigos Utilizar sucessiva ou alternadamente o modelo estoico e o modelo epicurista será por exemplo em Nietzsche mas também em Montaigne em Goethe1 em Kant 15 em Wittgenstein16 emJaspers17 um meio de atingir certo equilíbrio na vida Mas outros modelos poderão ainda inspirar e guiar tão bem quanto elas a prática filosófica Sermeá perguntado assim como se pode explicar que apesar dos séculos e da evolução do mundo os modelos antigos podem sempre ser reatualizados Antes de tudo como dizia Nietzsche porque as escolas antigas são espé 13 Nietzsche Fragments posthumes automne 1881 15 59 in Nietzsche CEuvres philosophies T V Paris Gallimard 1982 p 530 14 Goethe Entretien avec Falk in F von Biedermann Goethes Ges priiche Leipzig 1910 t N p 469 15 Cf acima p 379380 16 Tractatus 6 4311 no qual se encontra uma alusão à representa ção epicurista da morte e à concepção estoica do presente 17 K Jaspers Epikur in Weltbewohner und Weimarianer Festschrift E Beutler 1960 pp 132133 389 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos cies de laboratórios de experimentação graças aos quais podemos comparar as consequências dos diferentes tipos de experiência espiritual que propõem Desse ponto de vista a pluralidade de escolas antigas é preciosa Os modelos que elas nos propõem só podem contudo ser reatualizados caso sejam reconduzidos à sua essência à sua significação profunda destacandoos de seus elementos caducos cosmológicos ou míticos e recuperando as posi ções fundamentais que as próprias escolas consideravam essenciais Podese ir mais longe Penso que esses modelos correspondem como já disse alhures18 a atitudes perma nentes e fundamentais que se impõem a todo ser humano que procura a sabedoria Evoquei nesse contexto a exis tência de uma espécie de estoicismo universal que não se encontra somente no Ocidente mas igualmente na China por exemplo como mostrou J Gernet19 Como já disse fui por muito tempo avesso à filosofia comparada porque pensava que poderia criar confusões e aproximações arbi trárias Mas me parece agora ao ler os trabalhos de meus colegas G Bugault20 RP Droit2 M Hulin22 JL Solere23 que há realmente analogias perturbadoras entre as atitu des filosóficas da Antiguidade e as do Oriente analogias que não podem ser explicadas por influências históricas mas em todo caso permitem taJvez melhor compreender tudo o que pode estar implicado nas atitudes filosóficas 18 P Hadot La Citadelle intérieure pp 330333 19 J Gernet Chine et christianisme 2 ed Paris 1991 p 191 La sagesse chez WangFoutche philosophe chinois du XVIIe siecle in Les Sagesses du monde Colloque s d G Gadoffre Paris 1991 pp 103104 20 G Bugault LInde pensetelle Paris 1994 21 RP Droit LOubli de lInde Paris 1989 22 M Hulin La Mystique sauvage Paris 1993 23 JL Solerecitado na p 386 nota 10 390 Questões e perspectivas que se eslarecem assim umas às outras Os meios que nos permitem chegar à paz interior e à comunhão com os outros homens ou com o universo não são ilimitados Talvez devamos dizer que a escolha de vida que descreve mos as de Sócrates de Pirro de Epicuro dos estoicos dos cínicos dos céticos correspondam a algumas espécies de modelos constantes e universais que se reencontram sob formas próprias a cada civilização nas diferentes regiões culturais da humanidade Por essa razão evoquei acima24 um texto budista e também uma análise de M Hulin ins pirada pelo budismo porque pensava que poderiam ajudar os a melhor formular a essência do sábo grego É muito mteressante constatar que na Grécia na India e na China uma das vias que levam à sabedoria consiste na indiferen ça isto é na recusa a atribuir às coisas diferenças de valor que expriiam o ponto de vista do indivíduo egoísta paroal e hm1tado o ponto de vista da rã no fundo do poço ou da mosca atraída pelo vinagre no fundo de um vaso de que fala Tshuangtsé25 Só conheço do Tao o que pode conhecer do universo uma mosca atraída pelo vinagre caído num vaso Se o mestre não tivesse levantado minha tampa eu sempre teria ignorado o universo em sua integralidade grandiosa Esse desinteresse e essa indiferença reconduzem assim a um estado original a quietude a paz que no fundo de nós existe anteriormente à afirmação de nossa individuali dade contra o mundo e contra o outro anteriormente por 24 Cf acima pp 329330 2 Tshangtsé XVII La crue dautomne e XXI Tien TseuFang traduc twn Lru KiaHway in Philosophes taofstes Paris Gallimard 1980 pp 202 e 244 Brbhotheque de la Pléiade 391 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos tanto ao egoísmo e ao egocentrismo que nos separam do universo e nos arrastam inexoravelmente na perseguição inquieta de prazeres e no temor do perpétuo castigo Os exercícios espirituais como viver no presente ou ver as coisas do alto encontramse assim em Goethe26 em Nietzsche27 ou em Wittgenstein28 São igualmente acessíveis ao filósofo no sentido em que o entendemos Espero voltar a esse tema em obras posteriores De maneira mais geral pareceme ter ficado claro que como diz JL Solere29 os antigos eram talvez mais próximos do Oriente que nós o que também quer dizer um autor chinês moderno30 quando escreve Os filósofos chineses eram todos Sócrates em graus diversos Na pessoa do filósofo saber e virtude eram inseparáveis Sua filosofia reclamava ser vivida por ele sendo ele próprio o veículo Viver de acordo com suas convicções filosóficas fazia parte de sua filosofia O filósofo o amante da sabedoria no sentido em que o entendemos poderá procurar também modelos de vida nas filosofias orientais e estas não são tão distantes assim dos modelos antigos 26 Cf P Hadot Le présent seul est notre banhem La valeur de linstant présent chez Goethe et âaiisla philosophie antique in Diogene 133 5881 1986 e do mesmo autor La terre vue den haut et le voyage cosmique Le point de vue du poete du philosophe et de lhistorien in Frontiires et conquête spatiales DordrechtLondres 1988 pp 3139 27 Tudo o que é necessário visto do alto e na ótica de uma economia de conjunto é igualmente útil em si Não se deve somente suportálo devese amálo Nietzsche Nietzsche contre Wagner Epilogue I Paris Gallimard Euvres philosophiques completes t VIII p 275 28 Tractatus 6 4311 e 6 45 29 JL Solere op cit p 198 30 Kin YueLin in Fong YeouLan Précis dhistoire de la philosophie chinoise p 31 392 Questões e perspectivas Esse filósofo estará contudo exposto a muitos riscos O primeiro será satisfazerse com o discurso filosófico Há um abismo entre as belas sentenças e a decisão real de mudar de vida entre as palavras e a tomada de consciência efetiva ou a transformação real de si mesmo Parece por outro lado que a razão mais profunda da teorização da filosofia seja essa tendência de certo modo conatural ao filósofo e que o induz a satisfazerse com o discurso com a arquitetura conceitual que constrói reconstrói ou admi ra Encontramse sempre de uma extremidade a outra da história da filosofia antiga em quase todas as escolas as mesmas advertências ante o perigo que corre o filósofo caso ele pense que seu discurso filosófico possa bastarse a si mesmo sem estar ligado a uma vida filosófica Perigo perpétuo que Platão já experimentava quando escreVIa para justificar sua decisão de ir a Siracusa31 Envergonhome diante de mim mesmo à só ideia de passar por charlatão incapaz de realizar algo concreto Outro perigo o pior de todos seria acreditar que é possível passar sem a reflexão filosófica É necessário que o modo de vida filosófico justifiquese num discurso filo sófico racional e motivado Esse discurso é inseparável do modo de vida Notadamente será necessária uma reflexão crítica sobre os discursos filosóficos antigos modernos ou orientais que justifiquem este ou aquele modo de vida Será necessário esforçarse para explicitar as razões pelas quais se age desta ou daquela maneira e refletir sobre a própria experiência e a dos outros Sem essa reflexão a vida filosófica arriscase a cair na banalidade ou na insipi 31 Platão Carta VII 328 c trad L Brisson p 173 393 Ruptura e continuidade A Idade Média e os tempos modernos dez ou nos bons sentimentos ou na aberração Sem dú vida não se pode esperar ter escrito a Crítica da razão pura para viver como filósofo Mas não é menos verdade que viver como filósofo é precisamente também refletir racioci nar conceitualizar de maneira rigorosa e técnica pensar por si mesmo como disse Kant A vida filosófica é uma busca que jamais termina32 Enfim não se deve esquecer apesar dos clichês tena zes que se reproduzem sempre nos manuais que a vida filosófica antiga sempre foi intimamente ligada ao cuidado do outro e que essa exigência é inerente à vida filosófica especialmente quando vivida no mundo contemporâneo Como diz G Friedmann33 Um sábio moderno caso exista não se desviará hoje como o fizeram tantos estetas com desgosto da cloaca dos homens Mas dizendo isso ele reencontra e nós com ele os problemas quase insolúveis das relações do filósofo antigo com a cidade Pois o filósofo engcgado arriscase sempre a deixarse levar pelo ódio e pelas paixões políticas Eis por que aos olhos de G Friedmann tratavase para buscar melhorar a sorte dos homens de concentrar seus esforços sobre grupos restritos e mesmo sobre indivíduos e sobre o esforço espiritual a mutação de alguns que acabará pensava ele por disseminarse e irradiar O filósofo expe rimenta cruelmente sua solidão e sua impotência em um mundo despedaçado entre duas inconsciências a que pro voca a idolatria pelo dinheiro e a que resulta da miséria 32 Cf RP Droit Philosophie de printemps in Le Monde des livres 21 avril 1995 p IX 33 G Friedmann La Puissance p 360 394 Questões e perspectivas e do sofrimento de milhares de seres humanos Nessas condições o filósofo decididamente jamais poderá atingir a serenidade absoluta do sábio Filosofar será sofrer por esse isolamento e por essa impotência Mas a filosofia an tiga nos ensina também a agir racionalmente e a nos es forçar para viver segundo a norma que é a Ideia de sabe doria o que quer que aconteça e mesmo que nossa ação pareçanos bem limitada Como dizia Marco Aurélio34 Não esperes a República de Platão satisfazte com um pro gresso ainda que mínimo considera que não é pouca coisa o resultado desse progresso 34 Marco Aurélio Meditações IX 29 cf P Hadot La Citadelle intérieure pp 321325 395 CJibliografia I Referências dos textos citados em epígrafe EPITETO Conversações III 21 23 KANT Vorlesungen über die philosophische Encyclopiidie in Kants gesammelte Schriften XXIX Berlin Akademie 1980 pp 8 12 MONTAIGNE Essais III 13 Paris GallimardPléiade 1962 p 1088 N do T valime da tradução brasileira Ensaios 4a ed Tradução de Sérgio Milliet São Paulo Abril Cultural 1988 p 220 Os Pensadores NlETZSCHE Fragments posthumes Autonne 1881 15 59 in CEuvres philosophiques completes T V p 530 N do T Fragmen tos póstumos de Friedrich Nietzsche Tradução e introdução de Oswaldo Giacóia Júnior In Transformação São Paulo 13 139145 1990 Fragmentos póstumos Tradução de Oswaldo Gia cóia Júnior Campinas lFCHUnicamp abril de 1996 Textos Didáticos 22 NlETZSCHE Humain trop humain Le voyageur et son ombre 86 in id CEuvres philosophiques completes T III 2 Paris Galimard p 200 N do T Humano demasiado humano 3a ed Tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho São Paulo Abril Cultural 1983 Os Pensadores PASCAL Pensées 331 Brunschvicg Classiques Hachette N do T valime da tradução brasileira Pensamentos 4a ed Tradução de Sérgio Milliet São Paulo Nova Cultural 1988 Os Pensadores 397 O que é a filosofia antiga PETRARCA De sui ipsius et multorum ignorantia in Prose A cura di G Martellotti Milano 1955 pp 746748 PLOTINO Eneadas V 6 24 5 9 SÊNECA Cartas a Lucílio 108 36 SIMPLÍCIO Commentaire sur le Manuel dÉpictete lntroduction texte grec et apparat critique par I Hadot Leyde Brill 1995 XXIII linha 163 THOREAU Walden Éd et trad G LandréAugier Paris 1967 p 89 11 Citações de textos antigos As referências exatas das citações de textos antigos são em geral dadas nas notas Todavia para os autores muito clássicos como Aristóteles ou Platão não dei referências de edições ou traduções específicas contentandome em reproduzir as referências usuais que figuram na margem de todas as edições por exemplo para Platão Banquete 208 e ou ainda as divisões por livros capítulos e parágrafos utilizadas habitualmente para citar autores como Cícero e Epíteto Para completar estas sucintas indicações dadas em nota as especificações que se seguem são destinadas a auxiliar o leitor que quiser verificar os textos fomecendolhe indicações sobre as coleções de textos antigos das quais me servi Abreviações BL Collection des Universités de France Paris Les Belles Lettres CAG Commentaria in Aristotelem Graeca Berlin GF Collection Gamier Glammarion Paris Flammarion Pléiade Bibliotheque de la Pléiade Paris Gallimard LCL Loeb Classical Library Cambridge MassLondon SC Sources Chrétiennes Paris Éditions du Cerf SVF Stoicorum Veterum Fragmenta Ed H von Arnim IIV Leipzig 19051924 reed Stuttgart Teubner 1964 398 Bibliografia AGOSTINHO La Cité de Dieu Livres IXXII Trad Combes in Bibliotheque augustinienne CEuvres de saint Augustin nn 3337 Turnhout Brepols 19591960 ARISTEU vejase LEITRE DARISTÉE ARISTÓFANES Les Nuées in Aristófanes t I texte de V Coulon trad par H Van Daele 1960 ARISTÓTELES as traduções citadas são extraídas e por vezes mo dificadas seja da tradução completa de Tricot na Bibliotheque des Textes Philosophiques Paris Vrin 19511970 seja nas traduções que se encontram na BL ou na GF AULO GÉLIO Nuits attiques Livres IXV Éd et trad R Marache BL 19671989 CÍCERO as traduções citadas são extraídas e por vezes modificadas da tradução quase completa in BL notadamente Des termes extrêmes des biens et des maux Alguns tratados estão traduzidos na coleção GF notadamente os Nouveaux livres académiques e o Lucullus no volume Cícero De la divination etc Trad Ch Appuhn GF 1937 reedições CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromates 111 trad C Mondésert V trad ALe Boulluec SC 19541981 Le Pédagogue 1III trad M Harl Cl Mondésert Ch Matray introd et notes dH1 Marrou SC 19601970 DIODORO DA SICÍLIA Biblioteca histórica texto grego e tradução inglesa por diferentes autores sob o título Diodorus Siculus tt IXII in LCL 19331967 edição e tradução em curso livros I III XII XV XVIIXIX in BL 19721993 DIÓGENES LAÉRCIO citado D L Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres em geral as traduções por mim dadas são originais Existe uma tradução completa mas pouco satisfatória in GF uma nova edição e uma nova tradução estão em preparação tradução inglesa com texto grego por R D Hicks in LCL nn 184185 1925 reedições EPITETO Entretiens Livres IIV Texte établi et traduit par Souilhé BL 19481965 vejase também a tradução de V Goldschmidt in É Bréhier et PM Schuhl Les StoiCiens Pléiade 1964 Manuel Trad Pépin in Les StoiCiens Pléiade 1964 399 O que é a filosofia antiga EUSÉBIO DE CESAREIA Préparation evangélique Livre XI Éd des Places trad G Favrelle Paris SC 1982 EVÁGRIO PÔNTICO Traité pratique du Moine Texte grec et trad par A et Cl Guillaumont SC 1971 Le gnostique Texte grec et trad par A et Cl Guillaumont SC 1989 FÍLON DE ALEXANDRIA as traduções citadas são extraídas e por vezes modificadas da tradução completa acompanhada do tex to grego realizada por diferentes autores in R Arnaldez Cl Mondésert et J Pouilloux CEuvres de Philon dAlexandrie Paris Éditions du Cerf 19621992 HERÓDOTO Histoires Livre I Texte et trad Ph E Legrand BL 1970 HESÍODO Thégonie Les Travaux les Jours Éd et trad par P Mazon BL 1928 reedições HOMERO Iliade Chants IXXIV t IIV Éd et trad P Mazon BL 1937 reedições Odyssée Chants IXXIV tt IIII Éd et trad V Bérar BL 1924 reedições N do T Odisseia 2a ed Tradução de Manuel Odorico Mendes edição de Antônio Medina Rodrigues introdução de Haroldo de Campos São Paulo Edusp 1996 Odisseia Tradução de Carlos Alberto Nunes São Paulo Ediouro sem data Odisseia Tradução de Antônio Pinto de Carvalho São Paulo Abril Cultural 1979 Hinos homéricos Homero Hymnes Éd et trad par J Humbert BL 1936 reedições HORÁCIO as traduções citadas são extraídas e por vezes modificadas da tradução completa das abras do poeta estabelecida por F Villeneuve in BL 19291934 reedições JÂMBLICO Vida de Pitágoras tradução alemã Iamblichos Pythagoras Herausg übersetzt und eingeleitet von M von Albrecht Darmstadt 1985 SÓCRATES Discours TT IN Éd et trad par G Matthieu et É Brémond BL 1962 LETTRE DARISTÉE Éd et trad A Pelletier SC 89 1962 LUCRÉCIO De la nature Texte établi et traduit par A Ernout t III BL 1924 reedições vejase também Lucrécio De rerum natura Commentaire exégétique et critique par Alfred Ernout 400 Bibliografia et Léon Robin BL 19251926 Lucrécio De la nature Traduit du latin par J KanyTurpin Paris Aubier 1993 MARCO AURÉLIO dei minha própria tradução das Meditações da qual se encontrará o texto grego in BL éd Trannoy 1924 reedi ções e sobretudo na edição de Dalfen Leipzig Teubner 1972 2a ed 1987 NUMÊNIO Fragments Éd et trad par É des Places BL 1973 OVÍDIO Métamorphoses Éd et trad par G Lagaye BL 19281930 reedições PLATÃO as traduções citadas são extraídas e por vezes modificadas tanto da tradução completa da BL e da Pléiade como das novas traduções publicadas in GF PLÍNIO O VELHO Histoire naturelle XXXV Éd et trad M Croisille BL 1985 PLOTINO Ennéades Éd et trad par É Bréhier BL 19241938 para Ennéades III 5 VI 7 VI 9 respectivamente os tratados 50 38 e 9 extraí minhas citações dos três volumes que aparecem na coleção Les Écrits de Plotin sous la direction de P Hadot Paris Cerf 19881994 PLUTARCO as traduções citadas foram extraídas tanto da tradução bastante superada das Vies e das CEuvres morales que se encontra na BL como das traduções dos tratados antiestoicos compiladas com textos de outros autores na Bibliotheque de la Pléiade sob o título Les Stoiciens Vejase também para os tratados antiestoicos a tradução inglesa de H Cherniss in IBL nn 470 1976 PORFÍRIO De labstinence Livres IIV Éd et trad Bouffartigue M Patillon et A Segonds BL 19791995 Vie de Pythagore Lettre à Marcella Éd et trad É des Places BL 1982 Sententiae Éd du texte grec par E Lambertz Leipzig Teubner 1975 uma tradução francesa deve aparecer proximamente PROCLO Commentaire sur le Timée Trad Festugiere tt IV Paris Vrin 19661968 SÊNECA as traduções citadas são extraídas e por vezes modificadas da tradução completa in BL 19291961 reedições vejase também Sêneca Entretiens Lettres à Lucilius Paris L Laffont Bouquins 1993 révisé par P Veyne 401 O que é a filosofia antiga SEXTO EMPÍRICO não existe em francês tradução completa do counto da obra Extraí certas traduções de JP Dumont Les Sceptiques grecs Textes choisis Paris PUF 1966 vejase também Euvres choisies de Sextus Empiricus Trad J Grenier et G Gorou Paris Aubier 1948 tradução inglesa por R G Bury in IBL nn 273 291 e 311 19351936 reedições SOLON Elegia às Musas Texto grego in E Diehl Anthologia Lyrica Cjraeca Leipzig Teubner 1953 p 20 TU CID IDES La guerre du Péloponnese Livres IVII Éd e trad J de Romilly BL 19681970 XENOFONTE Banquet Éd et trad par F Ollier BL 1961 reedi ções Mémorables in Xenofonte Euvres completes t 111 GF 1967 reedições In Seleção de textos concernentes a certos aspectos da filosofia antiga Em versas obas citadas nas notas do livro poderseia consul tar a semte seleçao voluntariamente muito restrita de trabalhos suscetíveis de contribuir com complementos de informação sobre temas tratados neste livro Archiv für Begriffsgeschichte T 11 1982 pp 166230 Homena gem a Jacob Lanz artigos emJíngna alemã consagrados à noção de filosofia BABUT D La religion des philosophes grécs de Thates aux Stofciens Paris 1974 BOYANCÉ P Lucrece et lépicurisme Paris 1963 BROCHARD V Les sceptiques grecs Paris 2e éd 1932 réimpression 1959 DAVIDSON A Introduction a Pierre Hadot Philosophy as a Way of Life OxfordCambridge Mass 1995 pp 145 DETIENNE M Les maítres de vérité dans la Grece archafque Paris 1967 N do T Os mestres de verdade na Grécia arcaica Rio de Janeiro 402 Bibliografia Jorge Zahar Editor 1988 aspectos religiosos e intelectuais do pensamento présocrático DUMONT JP Éléments dhistoire de la pkilosophie antique Paris 1993 FRIEDLÃNDER P Plato I An Introduction Princeton 1973 HADOT P Exercices spirituels et philosophie antique Paris 3e éd 1993 Philosophy as a Way of Life vejase em A Davidson La philosophie hellénistique in J Russ ed Histoire de la pkilosophe Les pensées Jondatrices Paris 1993 Il y a de nos jours des professeurs de philosophie mais pas de philosophes in LHeme Henry D Thoreau Paris 1994 pp 188193 Émerveillements in La Bibliotheque imaginaire du College de France Éd par F Gaussen Paris 1990 pp 121128 HERSCH J Létonnement pkilosophie pkilosophique Une histoire de la philosophie Paris 1981 2e éd 1993 HUMMANS JR BL ASKHSIS Notes on Epictetus Educational System Assen 1959 INGENKAMP HG Plutarchs Schriften über die Heilung der Seele Gõttingen 1971 JORDAN W Ancient Concepts of Philosophy LondonNew York 1990 KIMMICH D Epikureische Aufkliirung Philosophische und poetische Konzepte der Selbstorge Darmstadt 1993 LAKMANN ML Der Platoniker Tauros in der Darstellung des Aulus Gellius Leyde 1995 NUSSBAUM M C The Therapy of Desire Theory and Practice in Hel lenistic Ethics Princeton 1994 PERRET J Le bonheur du sage in Hommages à Henry Bardon Collection Latomus t 187 Bruxelles 1985 pp 291298 PHILIP J A Pythagoras and Early Pythagoreanism Phoenix suppl vol Vil University of Toronto Press 1966 pp 159162 crítica da interpretação xamanística PIGEAUD J La maladie de lâme Étude sur la relation de lâme et du corps dans la tradition médicophilosophique antique Paris 1981 Platos Apology of Socrates A Literary and Philosophical Study with a Running Commentary Edited and completed from the papers of the late E de Strycker Leyde 1994 RICHARD MD Lenseigment oral de Platon Une nouvelle interprétation du platonisme Préface de P Hadot Paris 1986 tradução de 403 O que é a filosofia antiga textos e bibliografia sobre as teorias concementes ao ensino oral de Platão THOM C The Pythagorean Golden Verses with Introduction and Com mentary Leyde 1995 texto tradução comentário dos Versos dourados pitagóricos VAN GEYTENBEECK A C Musonius Rufus and Greel Diatribes Assen 1963 WIELAND W Platon und die Formen des Wissens Gõttingen 1982 Platão não ensina um saber mas um saberfazer 404 Cronologia O signo indica que a data proposta é aproximativa ela é muito frequente no caso do período de atividade e de ensino dos filósofos escolhi no geral datas que correspondem ao que se denominava na Antiguidade a akmé isto é o momento no qual a personagem em questão atinge a maturidade ou cimo de sua atividade e de seu renome Encontrarseão preciosos detalhes biobibliográficos sobre os diferentes filósofos in R Goulet Dictionnaire des philosophes antiques I Abammon à Axiothea 11 Babélyca à Dyscolius Paris 1994 Antes de Cristo 850750 Composição dos poemas homéricos 700 Hesíodo 650 640 600550 600 Viagem de Aristeu do Proconeso para a Ásia central e composição de seu poema Arimaspea Epimênides faz um sacrifício expiatório em Atenas Nas primeiras colônias gregas da Ásia Menor aparição dos primeiros pensadores Tales de Mileto que prediz o eclipse do Sol de 28 de maio de 585 Anaximandro Axímenes Figuras ao mesmo tempo históricas e lendárias dos Sete Sábios Sólon Pítacos de Mitilene Qm1on de Esparta Bias de Priene Periandro de Corinto Cleóbulo de Lindos 405 O que é a filosofia antiga 594 Sólon político e poeta ateniense considerado posterior mente um dos Sete Sábios 560 Abaris personagem posta em relação com Pitágoras pelas 540 540 532 tradições pitagórica e platônica enófanes de Colofão emigra de Colofão colônia grega da Asia Menor e chega a Eleia colônia grega do Sul da Itália Teógnis poeta elegíaco moral aristocrática Pitágoras Originário da ilha de Samos emigra para as co lônias gregas do Sul da Itália Crotona depois Metaponto Diziase de Pitágoras que ele era uma reencarnação do filósofo lendário Hermotimo de Clazômenas 504 Heráclito de Éfeso colônia grega da Ásia Menor 500 Ensinamentos de Buda e de Confúcio 490429 Datas do nascimento e da morte do político ateniense Péricles 4 70 Anaxágoras de Clazômenas 460 Empédocles de Agrigento 450ss Parmênides de Eleia Zenão de Eleia Melisso de Samos 450ss 450 440 435 432 Desenvolvimento do movimento sofístico Protágoras Górgias Pródicos Hípias Trasímaco Antifonte Crítias Heródoto historiador Demócrito de Abdera Ensino de Sócrates em Atenas Processo de impiedade em Atenas contra Anaxágoras que deve exilarse 432431 Batalha de Potideia na qual Sócrates participa 431416 Alcibíades político ateniense discípulo de Sócrates 430 Redação da obra históricade Tucídides 423 Representação da peça de Aristófanes As Nuvens que ridiculariza o ensino de Sócrates 399 Processo de impiedade em Atenas contra Sócrates que é condenado à morte 399 Antístenes Aristipo de Cirene Euclides de Megara discí 390 pulos de Sócrates fundam suas próprias escolas Isócrates abre uma escola em Atenas na qual ensina a filosofia como cultura geral 389388 Primeira viagem de Platão ao Sul da Itália e à Sicília Encontro com Díon de Siracusa 406 Cronologia 388387 Platão funda sua escola em Atenas no ginásio denominado Academia Principais membros da Academia Eudoxo He ráclido Xenócrates Espeusipo Aristóteles Teeteto duas mulheres Axioteia Lasteneia 370301 Tshuangtsé filósofo chinês que apresenta Lietsé como 367365 361360 360ss 360 seu mestre Eudoxo de Cinide substitui Platão à frente da Academia durante sua segunda viagem à Sicília para a corte de Dionísio II de Siracusa Heráclido do Ponto substitui Platão à frente da Academia durante sua terceira viagem à Sicília Diógenes o Cínico que fora discíplo de Antísteres Ésquines Aisquines de Esfetos disCipulo de Sorates ensina em Atenas e compõe diálogos que poem Socrates em cena 350 Xenofonte discípulo de Sócrates escreve suas memórias Memoráveis sobre Sócrates 349348 Morte de Platão Espeusipo lhe sucede à frente da escola 339338 Eleição de Xenócrates como escolarca da Academia sucessor de Espeusipo Período helenístico 336 337 334 328ss 326323 Chegada de Alexandre o Grande rei da Macedônia Aristóteles funda em Atenas sua própria escola Membros Importantes de sua escola Teofrasto Aristoxeno Dicearco Clearco encontramse documentos epigráficos que atstam a existência de uma viagem deste último a uma Cidade grega que existia nas proximidades da atual Ai Rhanoum o Afeganistão Expedição de Alexandre à Pérsia e à India ea toam parte Anarco de Abdera discípulo de Democnto P1rro Onesícrito Primeira geração de discípulos de Diógenes o Cínco Mônimo Onesícrito Crates Hipárquia Métrocles Mempo Menedemo O sábio indiano Calano encontra os gregos por ocasião da estadia de Alexandre em Taxila e suicidase pouco tempo antes da morte de Alexandre 407 O que é a filosofia antiga 323 Morte de Alexandre na Babilônia Seguese um período de perturbações que acompanha a formação de diferentes monarquias helenísticas 322 Morte de Aristóteles Teofrasto o sucede 321 Menandro poeta cômico talvez influenciado por Epicuro 320 Atividade filosófica de Pirro de Élis Ele tem por discípulos Fílon de Atenas e Tímon de Atenas 312 Morte de Xenócrates Polêmon o sucede à frente da Aca demia 313 Epicuro funda sua escola em Atenas Primeiros discípu los Heródoto Pítocles Hermarco Metrodoro Polieno Leonteus de Lampsaco Temístia Leôntion Colotes Apolonides Amigo Idomeneu 301 Zenão de Citium funda a escola estoica em Atenas Primei ros discípulos Perseu Aríston de Quíos Cleanto de Assos 300 Elementos de Euclides de Alexandria 300 295 Crantor escolarca da Academia Fundação em Alexandria por Ptolomeu I de um centro de estudos científicos denominado Museu ao qual está associado Demétrio de Falera um aristotélico e onde ensinam por exemplo no fim do século 111 o astrônomo Aristarco de Samos e o médico Herófilo 287286 Estratão de Lampsaco sucede Teofrasto como escolarca da escola peripatética 283239 Antígonos Gonatas rei da Macedônia favorece os filósofos notadamente estoicos Cleanto 276241 Arquesilau escolarca da Academia confere à escola uma 268 262 235 230 212 orientação crítica Lícon sucede Estratão de Lampsaco como escolarca da escola peripatética Cleanto chefe da escola estoica na morte de Zenão O estoico Esfairos discípulo de Zenão e de Cleanto con selheiro do rei de Esparta Cleômeno 111 e provavelmente de seu predecessor Ágis IV sugerelhe reformas sociais Crisipo chefe da escola estoica na morte de Cleanto Arquimedes de Siracusa astrônomo matemático e en genheiro é morto por soldados romanos por ocasião da ocupação de Siracusa 408 164 155 150 149146 144 133 110 99 9755 9546 87 79 60 50 50 49 44 43 Cronologia Cameada escolarca da Academia Embaixada enviada a Roma pelos atenienses para con seguir que a cidade de Atenas fosse isenta de uma forte multa Ela inclui três filósofos o acadêmico Cameada o aristotélico Critolau o estoico Diógenes da Babilônia Antipater ou Antipratos de Tarso chefe da escola estoica Submissão a Roma da Macedônia e da Grécia O estoico Panécio admitido no círculo dos Cipião Ele sucede em 129 Antipater à frente da escola estoica Blóssio estoico discípulo de Antipater sugere em Roma as reformas sociais de Tibério Graco e talvez também em Pérgamo a revolta de Aristonico que quer a libertação de todos os escravos e a igualdade de todos os cidadãos Fílon de Larissa e Carmadas ensinam na Academia Quinto Múcio Escávola Pontífice Rutílio Rufo políticos romanos estoicos Lucrécio epicurista autor do poema De rerum natura Catão da Útica político romano e filósofo estoico Atenas tomada pelos romanos Pilhagem da cidade pelas tropas de Silas Antíoco de Ascalão abre sua própria escola em Atenas ele se opõe à atitude crítica que a Academia tinha adotado desde Arquesilau até Fílon de Larissa Diversas manifestações de uma renovação do pitagorismo Apolófanes de Pérgamo filósofo epicurista Filodemo de Gadara filósofo epicurista amigo de Calpúmio Pisou que era o sogro de Júlio César Diodoro da Sicília historiador Assassinato de Júlio César Júnio Bruto político romano assassino de César assiste em Atenas às aulas do platônico Teomnesto último filósofo ensinando em Atenas a ser denominado acadêmico isto é crítico As instituições escolares fundadas por Platão Aristóteles e Zenão desaparecem nos últimos anos da Re pública romana Somente sobrevive a instituição fundada por Epicuro Novas escolas retomando a herança doutrinai de Platão Aristóteles e Zenão abremse em outras cidades e na própria Atenas 409 O que é a filosofia antiga 35 Eudoro de Alexandria filósofo platônico 30 Batalha de Actium morte de Cleópatra última rainha do Egito Fim da época helenística 30 Inscrição epicurista gravada por Diógenes de Oinoanda em sua cidade natal datada também por certos especialista no século II dC 27 Otávio recebe do Senado o imperium e o título de Augusto Fim da República Romana e início do Império Nessa época florescimento da literatura latina Horácio Ovídio Ário Dídimo conselheiro de Augusto e autor de um manual doxográfico sobre os dogmas das diferentes escolas filo sóficas Sextio pai e filho filósofos romanos influenciados pelo estoicismo e pelo pitagorismo que exercerão grande influência sobre o pensamento de Sêneca 7 Amínias de Samos filósofo epicurista Depois de Cristo O Império Romano 2930 Crucificação de Jesus de Nazaré em Jerusalém 40 Fílon de Alexandria platônico um dos escritores mais im portantes do judaísmo helenístico Exercerá forte influência sobre a filosofia cristã 4865 Sêneca filósofo estoicopreceptor e depois conselheiro do imperador Nero Após 62 consagrase unicamente à ativida de filosófica Em 65 forçado ao suicídio pelo imperador 60 Amônio platônico ensina em Atenas Plutarco de Que roneia é seu ouvinte 9394 Expulsão de Roma de todos os filósofos pelo imperador Domiciano Expulso de Roma o estoico Epíteto aluno de Musônio Rufo funda uma escola em Nicópolis na costa grega do Adriático 96 Advento do imperador Nerva 100ss Plutarco de Queroneia platônico de tendência crítica 410 Cronologia 120 129200 Início da atividade literária dos Apologistas cristãos no tadamente Justino Atenágoras Teófilo de Antioquia que apresentam o cristianismo como uma filosofia Vida de Galena de Pérgamo médico e filósofo 133 140 140 146 147 150 150 150 150 155 160 161180 176 176 177 177 180ss 190 Basílidas primeiro gnóstico historicamente determinado ensina em Alexandria Valentino o gnóstico ensina em Roma durante 0 reino de Antonino o Piedoso Favorino de Árles platônico de tendência crítica Calvísio Tauro platônico ensina em Atenas Aulo Célio é seu aluno Cláudo Ptolomeu astrônomo matemático geógrafo Apulew de Madaura platônico Numênio e Crônio platônicos Alcínoo platônico autor de um resumo do platonismo Didaskalikos Albio pltônico autor de uma Introdução aos diálogos de Platao ensma em Esmirna Máximo de Tiro retor e filósofo platônico Luciano autor satírico influenciado pelo cinismo Reinado do imperador Marco Aurélio estoico muito in fluenciado por Epíteto Marco Aurélio funda em Atenas cátedras de filosofia para as quatros principais correntes platônica aristotélica estoica epicurista mantidas pelos fundos imperiais Atico filósofo platônico Ensina em Atenas na cátedra fundada por Marco Aurélio Composição das Noites áticas de Aulo Célio Celso filósofo platônico polemista anticristão Alexandria e Cesareia da Palestina tornamse grandes centros de ensino da filosofia cristã Pantene Clemente de Alexandria Orígenes Gregório o Taumaturgo Eusébio de Cesareia Sexto Empírico médico filósofo cético graças a quem co nhecemos os argumentos dos céticos anteriores Enesídemo metade do século I aC e Agripa difícil de datar 411 O que é a filosofia antiga 198 Alexandre de Afrodísia ensina a filosofia aristotélica em Atenas e publica numerosos comentários sobre as obras de Aristóteles 200 Diógenes Laércio autor de uma obra intitulada Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres 244270 Plotino aluno de Amônio Sacas funda em Roma uma escola platônica neoplatônica Ele tem por discípulos Porfírio Amélio Castrício Rogaciano Em alguns de seus escritos encontramse discussões com os gnósticos 300 Início do monaquismo cristão Antônio retirase para o de serto Atanásio de Alexandria escreverá sua vida em 356 O Império cristão 312313 Conversão ao cristianismo do imperador Constantino que promulga o Edito de Milão assegurando a tolerância do exercício do culto cristão 313 Iâmblico funda uma escola platônica neoplatônica na Síria provavelmente em Apameia Ele influenciou fortemente o platonismo posterior pela importância que confere à tradição pitagórica e às práticas teúrgicas Escreve numerosos comentários sobre Platão e Aristóteles Teve por discípulos entre outros Aidésio da Capadócia e Teodoro de Asino 361363 O reinado do imperador Juliano filósofo neoplatônico aluno de Máximo de Éfeso na tradição de Iâmblico dá lugar a uma reação eontra o cristianismo inspirada pelo neoplatonismo 360 Desenvolvimento do monaquismo sábio Basílio de Cesareia Gregório Nazianzeno Gregório de Nissa Evágrio Pôntico 375 Plutarco de Atenas nascimento da escola platônica neoplatônica de Atenas 386430 Atividade literária de Agostinho 400ss Desenvolvimento do ensino platônico em Atenas e em Alexandria escolas privadas Siriano Proclo Damásquio Hiérocles Hérmias Amônio Simplício Olimpiodoro Não 412 529 529 540 Cronologia se pode observar diferenças doutrinais importantes entre os neoplatônicos que ensinam nos séculos V e VI em Atenas e os que como Hiérocles Hérmias Amônio Olimpiodoro ensinam em Alexandria Numerosos comentários sobre Platão e Aristóteles redigidos entre outros por Siriano Proclo Hérmias Amônio Olimpiodoro Filoponos Simplício O neoplatonismo é um foco de resistência ao cristianismo O imperador Justiniano proíbe os pagãos de ensinar Os filósofos neoplatônicos Damásquio Simplício e Prisciano deixam Atenas para refugiarse na Pérsia Após o tratado de paz concluído entre Corroés e Justiniano eles se instalam em Carrae em território bizantino mas sob influência persa e ali continuam seu ensino O neoplatônico João Filoponos convertese ao cristianismo de fato por causa das medidas de interdição do ensino impostas aos pagãos por Justiniano Doroteu de Gaza escritor monástico 413 Indice de nomes A Abaris 406 Abensour 364 Mrodite 73 74 Agostinho 92 169 352354 360 412 Agripa 411 Albino 411 Alcínoo 220 411 Alexandre de Mrodísia 157 215 235 407 412 Alexandre o Grande 407 Amélio 335 412 Amínias de Samos 143 Amônio 215 410 412 413 Anaxágoras 142 151 382 406 Anaxarco 145 146 166 Anaximandro 27 405 Anaxímenes 27 Antifonte 33 270 406 Antígonos Gonatas 151 408 Antíoco de Ascalão 409 Antipater de Tarso 307 Antístenes 48 91 162 406 407 Antoninó o Piedoso 411 Antão 341343 350 400 412 Aouad 215 Apeles 210 212 Apolo 43 51 Apolófanes de Pérgamo 143 409 Apolonides 307 408 Apuleio 220 411 Ária Dídimo 220 410 Aristarco de Sarnas 141 204 408 Aristeu do Proconeso 405 Aristipo de Cirene 91 406 Aristófanes 7072 75 399 406 Aristofonte 226 Aríston de Quíos 152 202 408 Aristonico 409 Aristóteles 2 6 12 15 16 19 27 33 44 49 51 63 91 95 97 102 113 119134 136138 140 142145148149154156157 172204215216218219222 223225228235237243245 253 257 282 298 299 302 310311314316322324338 360362 367 368 370 371 385 398 407409 412 413 Aristoxeno 120 407 Arquesilau 157 205208 217 299 408 409 415 O que é a filosofia antiga Arriano 225 307 Arrighetti 150 169 174 177 182 185 Atanásio de Alexandria 339 341 412 Atena 39 221 269 Atenágoras 411 Ático 411 Aubenque 135 208 Aubry de Reims 368 Augusto 140 287 410 Aulo Célio 195 218 225 227 411 Axioteia 96 112 407 B Babut 71 72 208 369 Balaudé 42 169 170 172 174 176 178181 184 280 282 283 292 298 307 320 321 Baldry 147 Basílidas 411 Basílio de Cesareia 339 342 412 Bataillard 121 Baudoux 358 Bergson 15 380 Bien 120 Billot 92 Blóssio 144 409 Bodéüs 120 133137 Boécio da Dácia 360 367 Bollack 40 Bolton 266 Bourgey 126 Bouveresse 329 365 366 384 Bouyer 340 Bréhier 141 187 239 278 302 319 329 372 399 401 Brisson 94 102 103 113 114 116 219 305 335 393 Bruto 409 Buda 406 Bugault 382 390 Burkert 35 37 226 227 267 269 Butor 370 c Calano 146 407 Cantin 358 Carmadas 409 Carneada 207 208 217 299 409 Caronte 296 Cassin 2 33 Castrício 228 412 Catão da Útica 409 Celso 222 411 Chenu 220 361 Cícero 35 52 82 92 145 156 158 168 171 174 177 178 185 187 190 194 198 205 207 208 214 217 249 268 280 282 291 295 299 307 345 398 399 Cipião Emiliano 295 Cipião o Mricano 295 Cimos 42 Cleanto 91 152 193 258 408 Clemente de Alexandria 146 336 339 346 352 358 359 411 Cleóbulo de Lindos 43 405 Cleômeno 144 408 Cleópatra 140 410 Colotes 206 408 Confúcio 406 Constantino 412 416 Índice de nomes Copérnico 292 Crantor 218 408 Crasso 217 Crates 162 163 306 407 Creso 36 Crisipo 145 152 187 194 198 199 201 216 218 220 222 223 278 408 Critias 29 406 Critolau 409 Crônio 411 D Damásquio 243 244 412 413 Dante 368 Daumas 340 Davidson 386 403 Decharme 32 181 Decleva Caizzi 165 168 Deleuze 15 Delorme 272 Demétrio de Falera 408 Demócrito 44 146147177236 269 270 406 407 Demont 121 204 269 270 Descartes 15 370373 380 382 di Giuseppe 105 Diano 131 132 150 170 173 178 183 283 284 Dicearco 92 120 407 Dihle 68 Diodoro da Sicília 268 399 409 Diógenes da Babilônia 307 409 Diógenes Laércio 35 75 120 146 149 151 158 176 178 187 249 269 314 343 372 412 Diógenes o Cínico 153 369 407 417 Díon de Siracusa 104 304 406 Dionísio li de Siracusa 407 Diotima 7278 109 Dixsaut 70 153 Dodds 262 265 Domanski 23 356 360 362 367369 Domiciano 410 Dõring 58 Doroteu de Gaza 340 342344 349 354 413 Dreyfus 370 Dumont 27 29 33 35 45 209 210 212 226 236 259 260 269 270 313 335 402 Düring 100 125 126 133 137 E Eckhart 368 Edésio 308 412 Eliade 262 265 Elisabeth 373 Emerson 380 Empédocles 28 52 110 228 236 259 260 261 267 406 Enesídemo 211 411 Epicuro 11 15 42 91 149151 159 169 170172 174178 180185 218 222 271 279 282284 296300 306 307 317 318 320 321 324 344 375 381 391 408 409 Epimênides 265 405 Epíteto 13 145 187 189 193 194 196 199 219 225 252 258 277 285290 307 312 344 345 369 380 410 411 O que é a filosofia antiga Erasmo 23 369 382 Eros 6 70 7275 77 79 80 89 90 llO 165 Escávola 250 409 Esfairos 144 408 Espeusipo 96 97 101 407 Espinosa 15 284 Ésquines de Esfetos 57 Estratão de Lampsaco 205 408 Euclides de Megara 91 406 Eudamidas 320 Eudoro de Alexandria 410 Eudoxo de Cnide 97 Eunapo 308 Eusébio de Cesareia 411 Evágrio Pôntico 286 339 347 350 Evangelista o João 335 F Favorino de Árles 4ll Festugiere 92 141 151 175 180 181 183 218 227 243 271 294 295 300 307 321 401 Fichte 15 Filodemo 182 183 186 281 306 307 321 409 Fílon de Alexandria 198 293 333 340 358 410 Fílon de Atenas 408 Fílon de Larissa 207 409 Filoponos 413 Fong 295 392 Foucault 2 23 343 370 382 386 Friedmann 388 394 Friedrich 369 397 Frischer 95 184 324 Furley 270 G Gabriel 19 383 384 Gaiser 95 97 ll2 Galena 287 289 411 Gemet J 390 Gemet L 260 Gigante 178 182 184 186 281 306 Gille 141 Gilson 357 358 363 372 375 379 382 Gladigow 39 40 Glauco 274 Glucker 148 213 Goethe 109 388 389 392 Goldschmidt ll3 190 191 197 399 Górgias 32 33 38 ll6 217 406 Gõrler 168 Goron 209 402 Goulet R 92 ll2 143 146 147 204 215 308 405 GouletCazé 146 162 163 Graco 409 Gregório Nazianzeno 339 341 345 346 412 418 Gregório Taumaturgo 336 Grenier 209 402 Gribomont 340 Grcethuysen 325 Guattari 15 H Hadot I 30 44 85 98 103 143 144 150 159 161 183 187 Índice de nomes 190 197 201 208 214 215 224 243 250 269 271 285 286 288 302304 327 337 358 359 397 Hadot P 23 29 99 143 157 161 194198 201203 222 223 232 239 240 242 245 251 255 275 276 279 290 294 312 320 326 338 357 362 390 392 395 401 403 Hamayon 24 261 263265 Havelock 37 Hegel 15 52 67 364 366 Heitsch 100 Heráclido do Ponto 35 97 266 407 Heráclito 29 35 36 44 52 128 130 316 334 335 338 406 Hermarco 91 408 Hérmias 412 413 Hermotimo de Clazômenas 265 406 Heródoto historiador 5 3537 43 158 159 176 298 406 Herófilo 141 408 Hesíodo 4042 221 310 405 Hiérocles 227 268 288 412 413 Hipárquia 163 407 Hípias 59 406 Hoffmann 186 Hõlderlin 71 Holzhey 208 377 Homero 37 39 40 57 310 400 Horácio 11 145 186 258 281 283 317 410 Hulin 282 327 329 330 390 391 Hunger 341 Hutter 386 I Idomeneu 150 185 408 Ierodiakonou 204 Imbach 367 386 Ioppolo 57 205207 Isnasdi Parente 94 Isócrates 6 38 83 85 92 406 J Onias 129 Jaeger H 285 J Jaeger W 30 31 126 Jâmblico 35 215 227 243 245 246 267 287 412 James 380 Jankélévitch 52 74 Jaspers 389 Jesus Cristo 8 336 405 410 João Batista 369 Jo1y H 263 264 Joly R 35 Juliano 412 Júlio César 409 Justiniano 413 Justino 336 338 4ll K Kant 11 1565 130288328362 373380 382384 394 Kerferd 39 Kidd 197 Kierkegaard 57 79 374 380 Kin 392 Koyré 292 Krâmer 78 92 101 172 173 282 419 O que é a filosofia antiga Kristeva 278 Kudlien 41 Labarriere 364 L Lain Entralgo 41 Lasserre 98 Lasteneia 96 407 Le Blond 299 Leclerq 338 340 341 Leibniz 15 382 Leonteus de Lampsaco 185 408 Leôntion 185 408 Lévy 206 Lewy 245 Libera 368 Lícon 149 408 Lietsé 166 407 Lindgren 376 Luciano 296 328 411 Lucrécio 145169175178291296 311 321 327 400 401 409 Lynch 3133939496 120149 151 187 204 213 215 M Macróbio 360 Malebranche 15 382 Malingrey 341 Mansfield 187 Marcel 382 Marciano Capela 360 Marco Aurélio 143 145 185 187 190 193 199 200202 215 250 255 275278 289 292 301 303 308 312 313 326 380 395 411 Marrou 30 399 Martens 47 105 Marx 380 Masullo 245 Máximo de Éfeso 412 Máximo de Tiro 266 411 Melisso 32 406 Menandro 150 408 Menedemo 407 Menipo 296 407 Merlan 235 MerleauPonty 65 67 380 382 387 Métroclo 261 Metrodoro 42 91 408 Meuli 262 Meunier 227 268 288 Mittelstrass 102 112 298 Mnemosyne 41 Moles 147 Mônimo 407 Montaigne 11 13 369 380 385 388 389 Moreau 204 Múcio 250 409 Muckensturm 146 Müller 49 58 Murray 141 Musas 40 41 96 149 221 402 Musônio Rufo 307 410 420 N Naddaf 28 29 30 33 Narcy 270 Nero 410 Nerva 410 Nietzsche 12 71 83 324 325 353 380 388 389 392 397 Índice de nomes Numênio 92 359 411 o Olimpiodoro 412 413 Onesícrito 146 407 Orfeu 221 Orígenes 336 337 339 351 352 358360 411 Ovídio 295 410 p Panécio 409 Paquet 162 306 Parain 106 Parmênides 28 32 35 52 110 115 224 244 406 Parmentier 109 Pascal 12 79 Penia 7375 Pépin 252 399 Periandro de Corinto 43 405 Péricles 31 3638 57 406 Perseu 151 408 Petrarca 12 23 368 369 382 Philonenko 15 378 379 Pirro de Élis 145 408 Pison 409 Pitágoras 6 28 35 92 93 221 226228 259 267269 286 295 400 406 Platão 5 6 11 12 15 19 22 27 29 30 33 37 42 43 4751 54 56 58 63 66 69 70 71 76 788489 90105 107115 117 119 120 122 123 133 134 137 138 140 142 145 148 149 154 156 172 174 183 421 185206216224229234235 24245252253266268274 284 290 295 297 298 304 305 310 313 314 317 319 320 322 323 328 329 Plínio o velho 401 Plotino 7 12 13 15 19 79 215 219 224 225 227 228 230 231 232 235243 245 247 251 253 274 302 308 319 323 324 335 383 385 412 Plutarco de Atenas 215 412 Plutarco de Queroneia 410 Polêmon 148 151 408 Polieno 91 408 Pontífice 250 409 Porfírio 7 174 214 219 224 225 227232 235 238 251 252 267 268 286 287 308 319 347 360 370 412 Poros 74 75 90 Prisciano 413 Proclo 92 215 218 243 244 246 412 413 Pródicos 32 406 Protágoras 32 33 43 406 Ptolomeu Cláudio 293 411 Ptolomeu I 408 Q Quílon de Esparta 43 405 R Rabbow 22 104 107 287 288 304 306 Rabinow 370 Refoulé 286 O que é a filosofia antiga Renan 294 Robert 44 130 141 221 Robin 80 90 401 Rochlitz 382 Rodier 121 191 Rogaciano 230 412 RomeyerDherbey 33 41 270 Romilly 33 310 402 Rousseau 173 374 380 Ruffié 20 Rufino 341 Rústico 308 Ryckrnans 167 s Saffrey 245 246 Schaerer 52 106 112 113 116 Schelling 15 Schlanger 386 Schmid 183 Schopenhauer 364 380 Schuhl 187 399 Sedley 178 Sêneca 12 22 91 145 173 183 184 187 189 193 198 199 207 250 252 269 271 275 277 278 280 282 285 287 288 292 296 300302 307 311 318 324 326328 368 369 401 410 Sereno 311 Sextio 287 318 326 410 Sexto Empúico 147 153 168 194 209 210212 313 411 Shaftesbury 380 Sheppard 246 Shitao 166 Silas 144 213 409 Simplício 12 224 225 243 302 312 337 412 413 Siriano 215 243 412 413 Smith 169 Snell 43 Sócrates 5 6 11 17 21 30 33 4777 7981 83 89 91 92 94 99 103105 10 112 11 133 142 151 154 161 162 165 169 183 187 205 206 258 262265 304 313315 318 320 329 338 346 369 374 375 382 391 392 406 407 Solêre 386 390 392 Sólon 36 37 40 43 Souilhé 225 286 399 Suárez 357 Sudhaus 183 Sulzer 377 T Tales de Mileto 43 44 405 Tauro 218 222 225 227 411 Teeteto 53 54 57 97 107 108 116 230 291 293 295 323 407 Temístia 185 408 leófilo de Antioquia 411 Teofrasto 120 132 149 204 407 408 Teógnis 31 42 406 Teomnesto 409 Teoro 185 Thillet 215 Thoreau 13 380 403 Tímon de Atenas 408 Trasímaco 45 406 Tshuangtsé 166 391 407 Tucídides 37 406 422 Índice de nomes Vair 372 Valentino 411 v Van der Horst 227 Vemant 21 260 261 267 Veyne 328 401 Voelke 9 23 63 155 171 209 211 Voge1 35 w Wartelle 336 338 Wehrli 204 Weil 19 376 378 Whitehead 109 Wittgenstein 19 211 284 329 365 366 380 383 384 Wolff 47 48 X Xenócrates 96 97 101 149 151 304 317 319 320 407 408 Xenófanes 28 35 110 406 Xenofonte 48 59 63 66 67 69 83 110 304 315 402 407 z Zac 382 Zenão de Citium 151 408 Zenão de Eleia 32 406 423 Caio Prado Jr O QUE É FILOSOFIA editora brasiliense ddLivros Livros Baixe Livros de forma Rápida e Gratuita Converted by convertEPub O que é filosofia Caio Prado Jr Copyright by Caio Prado Jr 2008 Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada armazenada em sistemas eletrônicos fotocopiada reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor Primeira edição 1981 41ª reimpressão 2012 Diretora Editorial Maria Teresa B de Lima Editor Max Welcman Produção Gráfica Adriana FB Zerbinati Produção Editorial Ione Franco Caricaturas Emilio Damiani Capa e ilustração 123 antigo 27 Artistas Gráficos Atualização da Nova Ortografia Natália Chagas Máximo eBook Ana Clara Cornelio Bruna Cecília Bueno João Pedro Oliveira Rocha e José Eduardo S Góes Produção Editora Hedra Ltda editora e livraria brasiliense R Antônio de Barros 1839 Tatuapé São Paulo SP 03401001 wwweditorabrasiliensecombr Sumário Sumário O que é filosofia Sobre o autor O que é filosofia Não precisamos buscar na infinidade de conceitos de filosofia talvez um para cada autor de certa expressão e que à vagueza das formulações acrescentam às vezes até posições contraditórias não precisamos procurar aí a incerteza e imprecisão que reinam e sobretudo em nossos dias no que concerne o objeto da especulação filosófica Muito mais ilustrativa é a consulta aos textos filosóficos ou qualquer exposição ou análise do desenvolvimento histórico do assunto De tudo se trata podese dizer ou se tem tratado na filosofia e até os mesmos assuntos ou aparentemente os mesmos são considerados em perspectivas de tal modo apartadas uma das outras que não se combinam e entrosam entre si tornandose impossível contrastálas Para alguns essa situação é não apenas normal mas plenamente justificável A filosofia seria isso mesmo uma especulação infinita e desregrada em torno de qualquer assunto ou questão ao sabor de cada autor de suas preferências e mesmo de seus humores Há até quem afirme não caber à filosofia resolver e sim sugerir questões e propor problemas fazer perguntas cujas respostas não têm maior interesse e com o fim único de estimular a reflexão aguçar a curiosidade E já se afirmou até que a filosofia não passava de uma ginástica do pensamento entendendo por isso o simples exercício e adestramento de uma função no caso o pensamento em vez dos músculos sem outra finalidade que essa Texto originalmente publicado em Almanaque nº 4 Ed Brasiliense 1977 Apesar contudo de boa parte da especulação filosófica particularmente em nossos dias parecer confirmar tal ponto de vista ele certamente não é verdadeiro Há sem dúvida um terreno comum no qual a filosofia ou aquilo que se tem entendido como tal se confunde com a literatura no bom sentido entendase bem e não objetiva realmente conclusão alguma destinandose tão somente como toda literatura a par do entretimento que proporciona levar aos leitores ou ouvintes a partir desses centros condensadores da consciência coletiva que são os profissionais do pensamento levarlhes impressões e estados de espírito emoções e estímulos dúvidas e indagações Mas esse terreno que a filosofia ou pelo menos aquilo que se tem entendido por filosofia compartilha com a literatura não é toda filosofia nem mesmo de certo modo a sua mais importante e principal parte E nem ao menos a meu ver com todo interesse que possa representar constitui propriamente filosofia e deveria antes se confundir na classificação e às vezes até mesmo na designação com a mesma literatura com que já apresenta tantas afinidades Mas conserve embora a filosofia literária sua qualificação e status é necessário que a par dela e com ela se desenvolva também uma filosofia de outro teor que dê resposta e na medida do possível precisa às questões que efetivamente nela se propõem A filosofia pode a rigor ser tratada literariamente como pode sêlo a ciência e o conhecimento em geral Mas que isso seja forma e não fundo Esse fundo é outra coisa que apesar de tudo se percebe em todo verdadeiro filósofo por mais que se disfarce num pensamento confuso disperso sem objetivo desde logo aparente e seguro Que se percebe sobretudo na filosofia em conjunto como maneira específica de tratar dos assuntos de que se ocupa por mais variados e díspares que sejam Com toda sua heterogeneidade confusão e hermetismo de tantos de seus textos vazados em linguagem acessível unicamente a iniciados ou antes por eles julgados acessíveis mais do que acessíveis de fato com tudo isso a filosofia encontra ressonância tal que se não fosse outro o motivo já por si bastaria para comprovar que nela se abrigam questões que dizem muito de perto com interesses e aspirações humanas que devem por isso ser atendidos e não frustrados pela ausência ou desconhecimento de objetivo e rumo seguros da parte daqueles que se ocupam do assunto Mas onde encontrar esse objeto último e profundo da especulação filosófica para o qual converge e onde se concentra a variegada problemática de que a filosofia vem através dos séculos e em todos os lugares se ocupando e de que trata É muito importante determinálo porque isso pouparia esforços que tão frequentemente se perdem em indagações inúteis ou mal propostas e que concentrados na direção de um alvo legítimo e claramente definido reuniriam um máximo de probabilidades de atingirem esse alvo ou pelo menos de o aproximarem Existirá contudo esse objeto central e legítimo de toda a especulação filosófica um denominador comum que embora disfarçado e mal explícito orienta mais ou menos inconscientemente aquela especulação Acredito que sim e a sua determinação constitui tarefa necessária e preliminar da indagação filosófica e certamente mesmo que não chegue logo a uma precisão rigorosa se é que ela é possível será por certo de resultados altamente fecundos O ponto de partida dessa determinação deve ser para nada perder em objetividade a consideração e o exame do próprio conteúdo e desenvolvimento daquilo que se tem por pesquisa filosófica e do conhecimento em geral Mais comumente a filosofia é ti da como uma complementação da ciência e da elaboração cognitiva em geral como seu coroamento e síntese Esse conceito da filosofia se encontra aliás mais ou menos expressamente formulado em boa parte das definições e explicações que dela se dão e partidas dos mais afastados e mesmo antagônicos quadrantes Até mesmo o século XVIII e talvez o seguinte filosofia ainda se confundia com ciência e das filosofias particulares como a filosofia química que não é senão a nossa química simplesmente passavase imperceptivelmente para assuntos gerais que se enquadrariam melhor naquilo que hoje entenderíamos mais especificamente como filosofia Que a filosofia é conhecimento e que de certa forma se ocupa dos mesmos objetos que as ciências em geral não há dúvida Mas tudo está nessa restrição de certa forma Isso porque a filosofia não é e não pode ser logo veremos por que simplesmente prolongamento da ciência uma super ciência que a ela se sobrepõe e que a completa Não há lugar para esse simples prolongamento Ou melhor qualquer legítimo prolongamento da ciência é e sempre será tudo indica ciência e não outra coisa Isso se pode concluir do fato que o desenvolvimento da ciência quando se excluem indevidas extrapolações se faz sempre num sentido único que é o da crescente generalização E não há nenhum ponto fixado no passado ou previsível no futuro nem mesmo fronteira difusa naquele processo além do qual não caberia mais falar em ciência propriamente A história da ciência nos mostra que sua marcha e seu progresso vão uniformemente no sentido da elaboração de conceitos ou melhor conceituação cada vez mais abstrata e geral Isto é de sistemas conceptuais mais inclusivos que por isso mesmo cobrem e representam conjuntos mais amplos da realidade universal não no sentido de mais extensos simplesmente quantitativamente maiores e sim mais complexos e abrangentes de feições mais diferenciadas Comparemse a esse propósito os dois setores do conhecimento que se encontram contemporaneamente nos extremos da linha ascendente do progresso científico de um lado as ciências sociais de outro as físicas No primeiro desses setores encontramo nos em face de um conhecimento empírico ainda solidário diretamente com dados imediatos da observação e experimentação A conceituação representativa desses dados que refletem os fatos sociais é de insignificante generalidade os conceitos que a constituem se entrosam mal e frouxadamente entre si e não se englobam em sistemas amplos capazes de formar por sua vez outros tantos conceitos de mais elevado nível de abstração e generalidade Confrontese essa situação com a das ciências físicas e de seus imponentes sistemas conceptuais que cobrem e compreendem representandoos conceptualmente extensos e amplamente diversificados aspectos e feições da realidade universal Considerese em particular o progresso recente dessas ciências no sentido de uma precipitada generalização que já hoje compreende embora ainda falte um bom caminho para a complementação e integração sistemática total do assunto o conjunto das ciências físicoquímicas que há algumas décadas ainda se confinavam em esferas estanques e impenetráveis umas às outras Observandose esses fatos da marcha progressiva do conhecimento e da ciência o que se verifica é a homogeneidade desse progresso E daí se pode concluir a respeito da homogeneidade também do conhecimento científico de sua natureza caráter e estrutura que são sempre uniformes e do mesmo padrão Onde pois o hiato ou transformação qualitativa suficientemente acentuado para justificar nesse processo de desenvolvimento e aprofundamento do conhecimento a eventualidade da fixação de limites além dos quais já não se trataria mais de ciência e sim de outra disciplina Outra ordem de conhecimento que caberia à filosofia Essa indagação sem resposta plausível leva à conclusão de que a filosofia não é e não pode ser simples prolongamento do conhecimento científico nada mais que um ponto de vista mais geral e amplo mas essencialmente de igual natureza dos mesmos objetos de que se ocupa a ciência É simplesmente ciência e não há por que incluíla em outra ordem de conhecimentos além da ciência A filosofia será outra coisa ou então não tem razão de existir Aquilo de que se ocuparia um simples prolongamento ou generalização do conhecimento científico não merece outro nome que ciência simplesmente Em outras palavras e mais sumariamente é pelo objeto pela matéria ou assunto de que se ocupa que a filosofia para ter existência própria e se legitimar se há de distinguir Não seria simplesmente pela maneira pelo método específico de tratar do mesmo objeto das ciências que se justificaria uma ordem distinta de conhecimentos que caberiam então à filosofia Se o objeto da filosofia é identicamente o mesmo que o das ciências a saber os fatos e as feições do Universo em geral não haveria mister dela e a própria ciência daria conta da tarefa Isso porque a elaboração do conhecimento não segue caminhos diversos ou não deveria seguilos um que seria o ordinário da ciência outro distinto deste que se observa correntemente na elaboração científica e que por ser assim distinto caberia à filosofia É certo que a elaboração científica se realiza por meio de procedimentos vários que a rigor se poderiam considerar métodos diferentes Os tratados usuais da lógica elementar costumam considerar e enumerar esses métodos se é que merecem a designação Mas essas diferenças não são essenciais Tratase antes de técnicas digamos assim de investigação e exame dos fatos considerados Táticas ou estratégias por assim dizer de abordagem desses fatos pela inquirição científica O essencial do processo de elaboração científica digna desse nome e legítima é fundamentalmente o mesmo em qualquer terreno O que se procura e o que se obtém com essa elaboração não somente não apresenta disparidade essencial alguma como não se percebe ou concebe onde e de que modo essa disparidade se poderia insinuar Não é com ela pois que se logrará discernir e determinar uma ordem de conhecimentos distintos dos da ciência e necessitando por isso de outra disciplina que seria a filosofia É assim pelo seu objeto e somente por ele que a filosofia se há de distinguir da ciência e com isso se legitimar como disciplina à parte Mas se à ciência cabe como objeto a realidade universal isto é o Universo e seu conjunto de ocorrências feições circunstâncias que envolvem e também compreendem o homem o que ficará de fora para eventualmente constituir objeto próprio da filosofia Notese que estamos aqui empregando a expressão ciência onde deveríamos com mais propriedade dizer conhecimento Isso porque ciência não é senão conhecimento sistematizado e advertida e intencionalmente elaborado não se distinguindo senão por essa sistematização em nível elevado e elaboração intencional do conhecimento comum ou vulgar aquele de que todo ser humano é titular por mais rudimentar que seja seu nível de cultura O conhecimento é essencialmente de uma só natureza e por mais elementar e grosseiro que seja tem fundamentalmente o mesmo caráter do mais complexo e refinado conhecimento científico Não há aliás nenhuma fronteira marcada ou possível de marcar nessa complexidade nem mesmo separação possível pois o conhecimento científico de hoje será o vulgar de amanhã Assim sendo as nossas considerações acima se aplicam não especialmente ao conhecimento científico e sim ao conhecimento em geral ocupe ele o plano hierárquico e o nível de importância que ocupar E reformulando nessa base a nossa questão diríamos qual o possível objeto do conhecimento que não seja objeto do conhecimento Pergunta aparentemente sem sentido dentro dos cânones lógicolinguísticos ordinários mas que se resolve simplesmente e veremos que historicamente também no fato de que além do conhecimento dos objetos ordinários do conhecimento as feições e ocorrências do Universo em que existimos e de que participamos pode haver e efetivamente há ainda reflexivamente um conhecimento do próprio conhecimento Realmente é o que se verifica no desenvolvimento histórico do pensamento humano logo que o progresso do conhecimento atinge certo nível Isto é um retorno reflexivo da elaboração cognitiva sobre si mesma passando o próprio conhecimento a se fazer objeto do conhecer Fato esse suficientemente marcado para dar lugar a uma ordem de cogitações bem caracterizadas e distintas do conhecimento ordinário E se bem que pensadores e elaboradores do conhecimento não se tenham desde logo dado plenamente conta da diferenciação e partição interior dos objetos de que se ocupavam do que aliás resultariam malentendidos e confusões de largas consequências a sua obra não deixará de refletir a duplicidade do assunto tratado e o novo rumo que tomava o pensamento e a elaboração do conhecimento isto é a par do conhecimento a do conhecimento do conhecimento O que cronologicamente coincide no Mundo Antigo e não terá sido por certo uma simples coincidência com a eclosão daquilo que seria havido como filosofia Veremos isso com suficiente clareza para uma primeira abordagem do assunto assim penso numa sumária recapitulação a largos traços das linhas mestras e momentos culminantes e decisivos do pensamento e da elaboração do conhecimento nas sociedades que mais contribuíram até os nossos dias para a evolução em conjunto e conformação da cultura moderna e que vem a ser aquela que brotada no seio das civilizações do Mediterrâneo oriental se difundiria pela Europa ocidental e daí para o mundo todo Mas em que consiste ou pode consistir esse conhecimento do conhecimento cuja gênese e vicissitudes sofridas no curso de sua evolução se trata para nós aqui de examinar Ou em outras palavras que vem a ser conhecimento como objeto do conhecimento Em primeiro lugar está claro a natureza do conhecimento seu processamento Dito de outro modo o que vem a ser o fato ou ato de conhecer e como se realiza esse fato qual a sua sequencia sua gênese seu desenvolvimento e seu desenlace em que vai dar Isto é como se apresenta e configura na sua conclusão como corpo de conhecimentos para o qual o processo afinal se dirige e em que se torna São essas as questões que se agrupam na disciplina ordinariamente conhecida por teoria do conhecimento epistemologia ou mais genericamente gnosiologia Disciplinas essas que constituem segundo consenso generalizado capítulos da filosofia Até aí portanto não haverá divergências apreciáveis que começam daí por diante Há os que restringem a filosofia a isso mesmo e até menos como os logicalistas que fazem da própria teoria do conhecimento e pois da filosofia que a ele se reduziria uma simples análise lógicocrítica da linguagem ou simbolismo em que o conhecimento e a ciência em particular se exprimem Essa concepção contudo é restrita a reduzidos círculos Em regra pelo contrário a teoria do conhecimento em si ocupa oficialmente um lugar secundário e diríamos quase marginal da filosofia que a julgar pelos assuntos nela tratados ou pelo menos sob sua responsabilidade tem voz em qualquer terreno duplicando de certa forma com isso o papel da ciência cujo objeto não se distinguiria essencialmente do seu filosofia e ciência distintas embora quanto à perspectiva em que respectivamente se colocam e ao método ou antes estilo que adotam se ocupariam uma e outra da mesma realidade universal Já lembramos essa universalidade da filosofia bem como a confusão reinante no seu ponto de partida entre os objetos respectivos do conhecimento que seria em particular a ciência e o conhecimento do conhecimento ou filosofia Confusão essa que se prolongará sob muitos aspectos embora progressivamente se atenuando até os dias de hoje Notamos também que em princípio e em frente aos fatos do desenvolvimento histórico da ciência essa pretensão da filosofia de se ocupar com assuntos da alçada da ciência não se justifica Nesse ponto os logicalistas que partem dessa questão para seu programa de limitação do campo da filosofia têm plena razão Quando a filosofia se ocupa dos objetos da ciência a saber das feições e dos fatos do Universo suas conclusões são sempre desmentidas em prazo mais ou menos dilatado mas sempre fatal Como se depreende claramente da história da ciência e sobretudo da física moderna a filosofia ou antes os filósofos no que se refere à sua atuação no campo científico não têm feito mais que consagrar velhas e ultrapassadas concepções disfarçandoas em princípios absolutos com pretensões à validade eterna É sob esse disfarce que as rudimentares e grosseiras noções físicas de Aristóteles atravessaram os séculos e mais tarde a mecânica newtoniana foi erigida em verdade final e absoluta Assim tem sido porque tratando de objetos que não são seus e portanto sem condições para fazêlo a filosofia não podia dar como não deu em outra coisa que vestir hipóteses científicas de trajes filosóficos fazendo deles princípios dentro dos quais aquelas hipóteses se petrificam na sugestiva expressão de P Franck1 A filosofia embora ultrapassando largamente aquilo que de ordinário se trata na teoria do conhecimento conservase dentro e no âmbito do conhecimento como objeto Isto é enquanto a ciência e o conhecimento em geral em que a ciência constitui o setor organizado e sistematizado têm por objeto as feições e ocorrências do Universo que envolvem o homem e de que ele também participa o objeto da filosofia é precisamente esse conhecimento de tais feições e ocorrências É assim conhecimento desse conhecimento E isso não apenas por ser essa para a filosofia a perspectiva própria para a consideração e exame das questões que nela legitimamente se propõe Mas ainda e sobretudo porque esse tem sido o seu campo de ação mesmo quando por uma falsa perspectiva e involuntária confusão aparenta dela se afastar A filosofia sempre se ocupou de fato do conhecimento em si e todas suas implicações embora frequentemente julgue ou melhor julgam os filósofos seus autores estarem tratando de outro objeto É aliás dessa confusão que resultam e sempre têm resultado os malentendidos que viciam a especulação filosófica e a tornam em tão grande parte e alto grau imprecisa e ambígua infestada de debates estéreis e questões inúteis e insolúveis O que além do mais faz perder de vista ou propõe de forma defeituosa algumas das questões essenciais da filosofia Bem como perturba a elaboração científica como tão frequentemente tem acontecido como teremos ocasião de referir e já foi lembrado no caso da filosofia de Aristóteles e da mecânica de Newton Vejamos como isso ocorre Procurarei aqui clarear e explicar a confusão básica que vicia a generalidade da especulação filosófica para em seguida mostrar como ela efetivamente se vem verificando no curso do desenvolvimento histórico da filosofia O conhecimento como objeto do conhecimento se propõe em sequencia ao conhecimento da realidade universal exterior ao pensamento elaborador2 Esse conhecimento da realidade se apresenta na conceituação que elaborada na base da experiência do indivíduo pensante reflete ou melhor representa na esfera mental desse indivíduo pensante as feições e ocorrências da realidade Desse primeiro momento ou nível da atividade cognitiva isto é a elaboração da conceituação representativa da realidade o instrumento dessa atividade que é o pensamento elaborador do conhecimento se volta sobre si próprio e toma reflexivamente por objeto aquele mesmo conteúdo conceptual ou conhecimento por ele elaborado Tratase de uma posição como que crítica que objetiva de um lado e entre outros aferir de um modo geral a segurança e ponderar o valor e alcance do conhecimento adquirido e por adquirir e de outro visa e se propõe dar ao conhecimento expressão conveniente em especial e fundamentalmente pela linguagem discursiva e ordenar e sistematizar a conceituação que compõe o conhecimento Isso tudo para no contexto geral do processo cognitivo alcançar o seu fim primordial que é o do conhecer como função e constituinte essencial da natureza humana fim primordial de determinar e orientar devidamente o comportamento do homem Não entraremos aqui no pormenor desses pontos a fim de não particularizar a exposição e com isso perder de vista o conjunto e o essencial do assunto que diretamente aqui nos interessa e que vem a ser a duplicidade dos níveis em que opera o pensamento elaborador do conhecimento e o que essa duplicidade significa Repetindo temos de um lado como ponto de partida o nível do conhecimento direto e imediato das feições e ocorrências da realidade que se trata de conhecer isto é aquilo que ordinariamente entendemos simplesmente por conhecimento e ciência em particular Temos de outro e em seguida um segundo nível sobreposto ao primeiro e no qual o pensamento se ocupa já não diretamente com as feições e ocorrências da realidade mas com o conhecimento acerca dessas feições e ocorrências No primeiro nível o pensamento estará se aplicando à esfera objetiva e exterior ao ato pensante3 no outro se aplicará a si próprio ou antes ao seu conteúdo e notese bem propriamente como seu conteúdo já desligado da realidade que representa conteúdo de conhecimento ou conceituação representativa da esfera objetiva e elaborada no curso de sua atividade no primeiro nível Mas aplicandose embora ao seu conteúdo de conhecimento e conceituação ou seja à esfera subjetiva o pensamento irá por força se referir ainda que indiretamente aos objetos daquele conhecimento que são repetimos as feições e ocorrências da realidade que lhe são exteriores Isso é óbvio pois pensamento ou conhecimento não existem em estado puro e vazio de representação conceptual das feições e ocorrências do Universo Não existem mesmo tais quais faculdades potenciais do indivíduo pensante e conhecedor à parte dessa representação que lhes concede a substância de que se constituem Essa situação é por sua própria natureza fonte de confusão entre as duas esferas a subjetiva e a objetiva E deriva daí a impressão e ilusão que tão fortemente se ancoraria na filosofia e que consiste em tratar de um objeto julgando tratarse de outro Ou melhor simplesmente ignorar a distinção e oscilar dubiamente entre um e outro ocuparse do conhecimento e da conceituação que o compõe como se tratasse das feições e ocorrências da realidade exterior ao pensamento representado conceptualmente por aquele conhecimento Caso flagrante disso que refiro a título de ilustração bem esclarecedora dessa confusão é o conceito matéria que vem constituindo através dos séculos um dos principais divisores do pensamento filosófico e a respeito do qual as partes que contendem incessantemente não conseguem sequer fixar com clareza o que está sendo debatido O que torna o debate no mais das vezes em infindáveis monólogos que se desenrolam paralelamente uns aos outros e sem correspondência no mais das vezes entre si Cada qual trata respectivamente de assuntos que não coincidem embora essa coincidência esteja sendo presumida O desentendimento nesse caso tem suas raízes na consideração de matéria de ângulos distintos em que se mesclam em proporções várias conforme os filósofos de um lado a perspectiva de algo exterior e que a expressão matéria designaria substância corpórea ou sensível componente primário e original do Universo subtratum de todas as coisas de outro lado o conceito propriamente de matéria como se dá quando se trata de contrastar o conceito matéria com outros conceitos como seja espírito ideia forma ou então quando com o conceito de matéria se integra um sistema conceptual como se dá com a noção aristotélica de potencialidade para receber forma Notese bem que não se trata aí unicamente nem mesmo essencialmente de diferença de sentido de acepção da palavra matéria pois se fosse apenas isso o acordo ainda seria possível pelo menos no que se refere às premissas da discussão seu ponto de partida A divergência é muito mais profunda pois diz respeito à localização digamos assim daquilo que se designa por matéria Localização essa que nos casos extremos mais puros será alternativamente ou entre objetos ou feições naturais exteriores ao pensamento ou no caso contrário entre elementos conceptuais Na maioria dos textos filosóficos em que ocorre o conceito matéria um exame atento e devidamente alertado revela essa indistinção entre o conceito propriamente e em si de um lado e de outro o objeto da realidade exterior que ele representa ou que deveria ou poderia referir e representar Naturalmente os filósofos julgam sempre ou parecem julgar ao se referirem à matéria estar tratando de objetos exteriores ao pensamento e incluídos na realidade e nas feições do Universo Mas o que efetivamente estão fazendo no caso da matéria como no de outro conceito qualquer da mesma natureza ambígua é projetar seu pensamento e conceituação no mundo exterior e tratar assim como incluído nesse mundo exterior o que realmente constitui um fato de seu pensamento um conceito4 A confusão entre esfera subjetiva e objetiva vai dar assim na projeção da primeira na segunda a projeção da conceituação no mundo exterior ao pensamento Fato esse que tem papel essencial em todo desenvolvimento histórico do pensamento humano Podese mesmo dizer que o comum das concepções gerais acerca da realidade isso tanto no nível da filosofia e da ciência como no das concepções vulgares se acha fortemente influenciado por essa verdadeira inversão idealista pela qual se recria no exterior do pensamento um mundo feito à imagem desse pensamento Isto é modelado e configurado segundo padrões conceptuais Engels o primeiro que eu saiba a assinalar essa inversão idealista assim a descreve Primeiro fabricase tirandoo do objeto o conceito desse objeto depois invertese tudo e medese o objeto pela sua cópia o conceito5 Daqueles padrões conceptuais pelos quais se modela a realidade o mais importante é naturalmente o da linguagem discursiva na qual e por meio da qual a conceituação no mais das vezes se formaliza e exprime6 Essa a razão principal por que encontramos a nossa concepção corrente e ordinária do Universo fundamentalmente conformada por estruturas verbais É pelas formas verbais que o realismo ingênuo que espontaneamente e na base de nossa educação e formação ordinária é de todos nós enxerga o Universo e o interpreta e é na base delas que se dispõem as feições e ocorrências da realidade universal É daí que deriva entre outras a noção de um mundo constituído de coisas e entidades bem discriminadas e separadas entre si coisas e entidades essas de cujas qualidades e comportamento resultam os fatos as feições e as circunstâncias em geral do Universo Mal se disfarça nessa concepção ingênua e integrada tanto no pensamento filosófico profissional como no ordinário e vulgar mal se disfarça aí o modelo que o inspira a saber a estrutura gramatical do sujeito e predicado e seus elementos constituintes essenciais substantivo adjetivo verbo Temos aí os materiais com que se constitui e concebe ordinariamente o Universo com as circunstâncias que nele se verificam e ocorrem Os substantivos se farão nas coisas e entidades em que o Universo é discriminado e dividido os adjetivos serão as qualidades com que se revestem aquelas coisas e entidades e os verbos finalmente designarão e a rigor serão mesmo a ação das mesmas coisas e entidades ação essa com que se descreverá o comportamento do Universo Essa maneira de proceder isto é de inverter a ordem do processo do conhecimento que originandose na realidade exterior ao pensamento elaborador retorna e se projeta afinal sobre essa mesma realidade e a modela segundo seus padrões esse procedimento tem na filosofia raízes tão fortes que a encontramos mesmo naqueles setores que mais diligentemente procuraram se libertar dos preconceitos e distorções da filosofia clássica que vem a ser aliás a metafísica aristotélica que consagrou filosoficamente e projetou pelos séculos afora e até nossos dias como aliás veremos adiante a confusão das esferas subjetiva e objetiva do pensamento e conhecimento Assim os logicalistas que fundamentalmente visavam desfazer aquelas distorções por meio do correto emprego da linguagem simbólica perfeitamente construída e são essa correção e perfeição que sobretudo visam em seus trabalhos acabam concebendo e construindo com todas as peças esse mundo idealmente modelado para ser adequadamente descrito por aquela linguagem perfeita por eles pretendida A abertura do Tractatus lógicophilosophicus o evangelho podese dizer do logicalismo de Wittgenstein nos dá conta desse mundo ideal num encadeamento de proposições tal qual normas de um texto legal segundo o estilo tão característico do autor cuja inspiração em modelos c padrões puramente gramaticais é patente e inconfundível Numa consideração bem alertada e atenta interpretação do desenvolvimento histórico da filosofia vamos encontrar a comprovação não somente de que o verdadeiro objeto dela é o conhecimento em si e não dos objetos desse conhecimento que são os fatos as feições ou as circunstâncias em geral da realidade exterior ao pensamento elaborador embora frequentemente e mesmo no mais das vezes isso tenha passado despercebido veremos não somente isso mas ainda que foi e ainda é precisamente essa incompreensão ou falta de rigorosa discriminação entre as esferas objetiva e subjetiva que se encontra na base dos malentendidos e das confusões que permeiam e viciam o pensamento filosófico tornando tão precária a realização da tarefa que lhe incumbe Como foi notado e procuraremos comproválo agora com os fatos históricos a filosofia tem suas origens e ponto de partida quando o pensamento investigador do homem se volta reflexivamente sobre si próprio e seu conteúdo de conhecimentos já elaborados e conceituados ou em via de elaboração a fim de aferilos compreender o processo de sua elaboração concederlhe segurança e orientação adequada para a utilização prática a que se destinam E para realizar isso organizálos e concatená los devidamente na sua expressão verbal Transferese então o pensamento investigador para outro nível Isso é da consideração das feições e dos fatos da realidade exterior bem como da atividade elaboradora do conhecimento dessa realidade passase para a consideração desse mesmo conhecimento em si e processo de sua elaboração Isso contudo não se perceberá plenamente desde logo dando lugar à confusão das esferas subjetiva objeto da filosofia e objetiva objeto da ciência E com isso se baralham os distintos níveis de elaboração do conhecimento Observemos essa sequencia de fatos históricos e as primeiras manifestações do malentendido e da confusão que viciariam daí por diante o pensamento filosófico já no desabrochar da filosofia grega Nesse prelúdio do que seria a matriz principal de todo pensamento ocidental através dos séculos verificase muito bem aquela transição da elaboração cognitiva para novo nível que será o da filosofia que então se inaugura Esse momento se situa nos chamados físicos de Mileto e vaise sobretudo revelar na natureza do problema central proposto por esses precursores da filosofia grega e que seria o seu ponto de partida A saber o problema da substância universal que daria origem a todas as coisas e as teria constituído Tales dirá como se sabe que é a água Anaxímenes o ar Anaximandro uma substância indefinida apeiron Como se explica a proposição desse problema da existência de uma substância universal originária de todas as coisas É o que não tem preocupado devidamente os historiadores da filosofia como se a questão se apresentasse espontaneamente e fatalmente sem necessidade de maior explicação Entretanto as circunstâncias em que ela se propõe tanto seus antecedentes como seu desenvolvimento futuro nos dizem muita coisa a respeito e mostram que o pensamento grego se engajara aí em nova direção que embora preparada e condicionada pelo que a precedera assumia outro sentido bem diverso do anterior Os milésios trouxeram grande contribuição como se sabe para a ciência e o conhecimento dos fatos da natureza Mas o tema que os ocupa centralmente e que diz respeito à substância constituinte do Universo representa sem dúvida alguma coisa bem diferente e um novo caminho imprimido a seu pensamento Constitui erro assim penso e imperdoável anacronismo considerar como frequentemente se tem feito ou pelo menos insinuado que os pensadores gregos estivessem preocupados com a substância ou o elemento constituinte do Universo com o mesmo espírito com que os físicos da atualidade e de um século para cá investigam as partículas ou outras ocorrências de cujas estruturas disposição e comportamento no plano microscópico resultam os fatos observados no plano macroscópico que é o nosso usual de todos os dias Estruturas e comportamento esses com que se torna possível explicar tais fatos ou antes representálos conceptualmente mentalmente e formalizar e exprimir essa representação que os descreve por meio do simbolismo matemático Evidentemente preocupações dessa natureza eram completamente estranhas como não podia deixar de ser aos pensadores gregos Nem possuíam eles lastro suficiente de conhecimentos para cogitar delas tampouco a maneira de propor o assunto e em seguida desenvolvêlo apresentam a mais remota analogia com o que ocorre nos procedimentos da ciência de nossos dias De fato o que os pensadores que se ocupam do assunto têm em mira é essencialmente uma questão gnosiológica que constituirá o pano de fundo de todo debate e tema central da filosofia grega em geral Já em outra oportunidade procurei desenvolver esse assunto7 que consiste resumidamente no seguinte Tratase em suma e esquematicamente de explicar como neste mundo tão variado e em permanente fluxo e transformação onde as feições naturais se apresentam aos sentidos não somente sob tal multiplicidade de aspectos a ponto de nunca se assemelharem perfeitamente entre si como também porque se modificam sem cessar tratase assim de explicar como é possível neste mundo tão variado e variável multiforme e em fluxo e transformação permanentes como é possível um verdadeiro e legítimo conhecimento que implica uniformidade e permanência condições essas indispensáveis para a caracterização e identificação dos objetos daquele conhecimento Todo conhecimento começa necessariamente por essa caracterização e identificação dos objetos que se trata de conhecer o que somente é concebível na uniformidade e estabilidade deles Os milésios responderão a essa questão que é como se vê fundamentalmente gnosiológica trata se no essencial de estabelecer e fixar as condições do conhecimento8 com a sua substância material ou assemelhada que preencherá para eles a função de representar o substrato permanente e estável do Universo que faz possível o conhecimento Com isso os milésios davam bem mostra da ingenuidade de suas concepções ainda presas inteiramente a um nível rudimentar e grosseiro de conhecimento não liberto do empirismo de seus começos e confundido por isso com os dados diretos e imediatos dos sentidos com que o homem entra em primeiro e original contato com a realidade exterior Uma nova geração de pensadores mais maduros que segue esses precursores e se inaugura na segunda metade do VI século aC procurará dar à questão uma resposta mais profunda embora a mesclem ainda em grandes proporções com as grosseiras concepções derivadas dos milésios concepções essas que somente desaparecerão na obra de Platão A multiplicidade e instabilidade das feições naturais serão por eles atribuídas à ilusão enganadora dos sentidos Por trás dessa ilusão dirão eles se abriga a verdadeira realidade onde se encontram a uniformidade e permanência que se trata de apreender e que proporcionarão o legítimo conhecimento A identidade desse princípio ideal ou pelo menos semiideal como é o caso dos mais antigos pensadores dessa fase princípio unificador da natureza variará segundo os filósofos serão os números para Pitágoras o SER para Parmênides o Lagos para Heráclito o Nous para Anaxágoras Mas seja qual for a natureza atribuída ao princípio unificador ele mal disfarça e em última instância se confunde sempre com o pensamento E a solução do problema da uniformidade na multiplicidade e da permanência no fluxo das coisas e feições do Universo se transferirá para o plano do pensamento do homem exibindose com isso a natureza do que seria a filosofia e seu objeto que não consistia como poderia às vezes parecer à primeira vista e nas concepções grosseiras dos milésios podia mesmo iludir não consistia nas feições da natureza O objeto de que se ocupam os pensadores que mereceram e com acerto a qualificação de filósofos pois de outra forma seriam como realmente os houve simplesmente homens de ciência esse objeto eram o pensamento e o produto da elaboração desse pensamento que vem a ser o conhecimento Isso é patente sobretudo e por isso o destacamos aqui naquela concepção que mais se projetaria no futuro desenvolvimento da filosofia e durante séculos constituiria podemos dizer seu tema central Refirome ao SER de Parmênides que é afinal e sem embargo da tempestade verborrágica que a metafísica desencadearia em torno do assunto9 não é senão expressão geral e formal da operação mental com que se qualificam e identificam as feições da natureza e com isso se caracterizam determinam e fixam O SER é originariamente a cópula verbo com que formalmente se exprime a qualificação e se designa a identificação a árvore é um vegetal o homem é racional isto com que escrevo é uma esferográfica Não pode haver dúvida que Parmênides pressentiu com sua concepção confusamente embora mas com mais clareza que qualquer de seus contemporâneos que a questão central proposta pelos milésios se situava efetivamente no plano conceptual Que se tratava para empregarmos uma linguagem no caso anacrônica de um problema da teoria do conhecimento O pressentimento de Parmênides que aliás ficará nisso degenerando em sua esdrúxula e grosseira imagem de uma esfera imóvel sem princípio e sem fim encontrará seu intérprete em seguimento aos sofistas e sobretudo Sócrates em Platão Não vamos aqui entrar no exame da filosofia platônica Ela se resume no essencial podese dizer na observação de Raphael Demos A filosofia de Platão se sumariza na vida da razão10 Não importa que Platão tenha hipostasiado a razão fazendo dela um mundo suprassensível à parte o mundo das ideias que faz contrapeso e contrasta com o mundo sensível que constitui o protótipo de que esse mundo sensível não é senão imperfeita reprodução Esse mundo das ideias não é senão o pensamento a função pensante e a atividade racional do homem E é desse pensamento disfarçado sublimado e substancializado que o filósofo se ocupa E se ocupa num exame que desbastado do floreio em que este poeta que foi Platão o envolve revela efetivamente e com precisão e segurança alguns dos aspectos essenciais da atividade do pensamento na estruturação do conhecimento Em particular o processo mental da identificação e qualificação fundamento e ponto de partida de toda atividade racional na elaboração e expressão do conhecimento encontra em Platão um analista seguro E foi a compreensão desse processo que permitiu a Platão abrir as perspectivas para a formulação da lógica formal que já delineada e potencialmente contida na obra do filósofo será desenvolvida por seu discípulo e sucessor Aristóteles que lhe dará forma final e acabada Se alguma dúvida houvesse nos filósofos que antecederam Platão e lhe prepararam o caminho acerca da natureza e do objeto da filosofia nesta sua fase preliminar e ponto de partida do que seria o pensamento grego essa dúvida se desfaz inteiramente na consideração e no exame da obra platônica que consistiu em continuar e prolongar a linha de desenvolvimento daquele pensamento procurando e com grande sucesso dar resposta às perguntas nele propostas Aquilo de que Platão se ocupa em continuação aos pensadores que o precederam e que constitui o objeto essencial e fundamental de sua obra contribuição máxima para a cultura são o pensamento e o conhecimento tal como nós hoje o conceituamos O seu ponto de partida e questão primeira que a ele se propõe é a mesma de toda a filosofia grega desde seu nascedouro com os milésios e centralizada como vimos no problema da unidade e permanência na diversidade e fluxo em que a natureza se apresenta aos sentidos unidade e permanência essa que já se fixara no consenso geral ou pelo menos decisivamente dominante no SER de Parmênides que não vem a ser senão isso também se consagrara o universal idêntico e permanente em contraste com o particular dado na percepção sensível e diverso e em transformação constante Universal que se revela e representa na ideia no conceito É daí que Platão parte O que traduzido para nossa linguagem ordinária e corrente vai dar em que as ideias do platonismo não são outra coisa mais que aquilo que entendemos por conhecimento Platão exterioriza suas ideias e lhes concede uma existência extrahumana Mas vistas mais de perto e no quadro de nossas concepções atuais que têm atrás de si a alimentálas e a lhes darem base não o esqueçamos a longa experiência aprendizagem e progresso cultural e científico milenares de que somos herdeiros tais ideias são apenas e simplesmente as nossas ideias vulgares conceitos cujo conjunto constitui o conhecimento A análise que Platão faz das ideias procurando determinar a sua natureza e estruturação a disposição relativa em que elas em conjunto se articulam e entrosam entre si sua derivação e filiação umas das outras e aí Platão apresenta um dos capítulos mais fecundos de sua obra quando entre outros no sofista considera a classificação isto é a operação mental de classificar tudo isso significa na realidade análise do conhecimento e da sistemática conceptual em que os conhecimentos se apresentam É desse conhecimento portanto que Platão e mais que ele a própria filosofia para cujo embasamento e constituição o platonismo tanto contribuiu é disso que se trata A filosofia como conhecimento do conhecimento se revela aí claramente Podese mesmo dizer que Platão embora envolvendo suas concepções num manto de misticismo e fantasia literária que lamentavelmente as ofusca e muitas vezes lhes torce o sentido profundo bem como disfarça o que deveria ser sua contribuição mais fecunda para a devida proposição das verdadeiras questões da filosofia podese dizer que Platão teve a intuição e marcou com um máximo de clareza para um precursor a distinção entre conhecimento e conhecimento do conhecimento entre ciência e filosofia Desenvolvendo uma noção já em germe nos filósofos seus antecessores e particularmente em Parmênides que separava o conhecimento da simples opinião Platão que emprega aliás as mesmas designações acentua o objeto daquelas duas esferas A primeira objetivaria as imagens dados sensíveis a outra as ideias constituindo esta outra a cumeeira do saber11 Não é difícil para nós hoje em dia identificar atrás dessa distinção aquela que efetivamente ocorre entre o que designamos por ciência e filosofia a primeira ocupandose com os dados experimentais colhidos na consideração direta das feições e ocorrências da Realidade e a filosofia com as ideias diríamos melhor conceitos ou representações mentais daquela realidade exterior carreada pela experiência Só que Platão inverte a nossa ordem de precedência processamento e estrutura do conhecimento para ele as imagens ou os dados da experiência são reflexos ou cópias aproximadas e imperfeitas das ideias enquanto para nós isto é à luz das concepções científicas de nossos dias se bem que ainda sobrem idealistas que pensam diferentemente e embora nem sempre com muita consciência disso aproximamse mais de Platão são as ideias que constituem reprodução ou melhor representação da Realidade A distinção entre conhecimento e conhecimento do conhecimento aí está E tivessem os sucessores de Platão insistido nesse ponto logrando ao mesmo tempo despir o platonismo do véu místico que o envolve sem desprezar aquela distinção e outra teria sido talvez a marcha da filosofia Mas as coisas não estavam maduras para isso que viria gradualmente muito mais tarde na base do progresso científico como veremos adiante E pelo contrário quem desembaraçará o platonismo nisso com todo acerto de suas complicações místicas e envolvimento poético será ao mesmo tempo quem mais contribuirá para borrar a distinção nele feita entre ciência e filosofia Ou antes entre os objetos respectivamente de uma e outra esfera do saber Será esse Aristóteles que introduzirá ou pelo menos cuja obra servirá para fundamentar a grande confusão e malentendido que viciarão daí por diante e através dos séculos o pensamento filosófico E científico também E que ainda hoje encontram forte ressonância e reflexos poderosos Aristóteles elimina a distinção estabelecida por Platão entre os objetos da ciência e da filosofia empreguemos para cortar confusões a nossa terminologia moderna em substituição à de Platão para quem só a filosofia ou dialética a dele Platão constituía conhecimento E trazendo as ideias platônicas da esfera suprassensível em que se encontravam para as coisas do mundo sensível confunde assim o objeto do conhecimento com o conhecimento como objeto De fato Platão separara as ideias das coisas sensíveis que não seriam mais que cópias deformadas da verdadeira realidade daquelas coisas Tal como os círculos que traçamos ou que encontramos na realidade sensível como por exemplo os círculos concêntricos produzidos numa superfície dágua tranquila pelo impacto de uma pedra nela caída círculos esses que seriam uma reprodução aproximada mas imperfeita do círculo real que concebe a matemática Aristóteles integra aquelas ideias nas próprias coisas da realidade sensível Para ele o que Platão designa por ideias não são mais que diferentes maneiras com que concebemos as coisas e com isso Aristóteles descarta com grande acerto o misticismo platônico Mas essas maneiras de conceber as coisas ou seja as categorias do entendimento substância qualidade quantidade relação lugar tempo situação maneira de ser ação sofrida constituem para Aristóteles maneiras de ser das próprias coisas Isto é elas são tudo isso substância qualidade quantidade etc E não apenas se concebem e denominam como tal12 Em suma e exprimindonos em linguagem mais atualizada os conceitos e a conceituação com que representamos mentalmente a realidade exterior ao pensamento é incluída por Aristóteles nessa própria realidade É o que denominamos acima de inversão idealista que consiste em projetar as operações e fatos mentais na realidade extramental e exterior ao pensamento e nela integrandoos As representações mentais ideias ou conceitos se elaboram pelo pensamento a partir da realidade exterior que são as feições e ocorrências da natureza com que o indivíduo pensante se defronta A inversão idealista consiste em levar essas ideias ou conceitos que evidentemente não são aquelas feições e ocorrências e sim a sua representação no pensamento leválas de retorno às mesmas feições e ocorrências considerandoas nelas incluídas Lembramos como exemplificação da inversão idealista que ainda hoje é fator de não pouca confusão o caso do conceito matéria que de conceito se faz ou antes é feito em constituinte das coisas que compõem o Universo E ainda voltaremos ao assunto mais adiante É isso que Aristóteles faz e é o que viciará profundamente não só a filosofia subsequente mas ainda os hábitos ordinários de pensar e maneira de ver e de interpretar as coisas generalizadamente arraigadas em toda a cultura ocidental para cuja conformação Aristóteles direta ou indiretamente tanto contribuiu Embaraçará também a marcha da elaboração científica que somente ganhará impulso quando modernamente se libera da filosofia ou antes da metafísica em que a filosofia se envolvera Vejamos como Aristóteles desenvolve seu pensamento as conclusões a que chega e as consequências a que por elas é levado Platão seu mestre concentrara a uniformidade e permanência condição para os gregos como referimos do conhecimento no mundo das ideias fixas e estáveis e por isso distinto e separado do variegado mundo da percepção sensível mundo instável e em permanente fluxo e transformação E Platão assim procedera no depoimento do próprio Aristóteles num texto que já referimos antes porque se existe a ciência e o conhecimento de algo devem existir outras realidades além das naturezas sensíveis realidades estáveis pois não há ciência daquilo que está em perpétuo fluxo Tais outras realidades estáveis além do mundo sensível seriam as ideias Mas para Aristóteles que tem os pés mais firmes na terra que o sonhador e poeta que é seu mestre embora reconhecendo a necessidade para o conhecimento de uma base estável em que se apoiar e fundar para Aristóteles são precisamente outras realidades mas ao alcance da percepção sensível que se trata de desvendar conhecer e compreender É esse mundo dos sentidos variegado e aparentemente tão instável que cerca o homem e onde ele vive a natureza sensível como Aristóteles a denomina e que as ideias platônicas marginalizam é isso que importa E para o conhecimento da natureza sensível as ideias não são de nenhum auxílio13 Não será isolando a fonte do conhecimento da natureza sensível e isolandoa num mundo à parte de ideias como fez Platão não é assim que se alcançará aquela natureza sensível que é o que interessa segundo Aristóteles e que ele objetiva conhecer É graças aos princípios e com os princípios afirma Aristóteles que se conhece o resto14 E no esquema platônico os princípios ficariam naturalmente restritos ao mundo apartado e estanque de realidades estáveis as ideias que eles encarnam e exprimem É preciso assim substituir o esquema platônico e abrir caminho para comunicar o setor estável da realidade onde se situam o conhecimento e os princípios e que Platão apartara e isolara é preciso comunicálo com a natureza sensível que se trata de conhecer É o que fará Aristóteles estabelecendo a comunicação pela dedução do particular que é o dado na percepção sensível a partir do universal que substitui de certa forma a ideia platônica e que é o verdadeiro SER e seu conhecimento Dedução essa cujo processamento e método que será a sua grande realização Aristóteles vai buscar no exame do discurso a linguagem discursiva informandose para isso em especial nos modelos dialéticos debates orais de seus antecessores na matéria os sofistas e sobretudo nos diálogos de seu mestre Platão É num tal exame que Aristóteles logrará destacar e revelar os elementos ou formas essenciais da estrutura básica da linguagem discursiva Ou seja a maneira ou forma como se dispõe e interliga nos seus termos a expressão verbal capaz de pela sua coerência demonstrar com segurança e sem contestação possível opiniões ou teses defendidas e convencer com isso o interlocutor Circunstâncias essas que se admitiam a priori como prova incontestável do acerto a verdade das conclusões É com isso reduzido a normas precisas que Aristóteles constituirá a sua lógica que tem como núcleo central como se sabe o silogismo Precisamente o instrumento que Aristóteles necessitava para realizar sua almejada dedução do particular a partir do universal Isto é o entrosamento e a sequencia verbal coerente não contraditório de uma para outra das expressões verbais daqueles dois termos da operação dedutiva respectivamente o universal e o particular É na base e com a manipulação dessa sua lógica que Aristóteles procurará a sistematização dos conhecimentos do seu tempo e entrosamento dedutivo da expressão verbal deles Tarefa que muito pouco tem de científico propriamente no sentido de que hoje se dá à ciência e sua elaboração afora a coleção dos parcos dados empíricos existentes na época e ao alcance de Aristóteles no que aliás ele se mostra muito bem informado E constitui de fato tentativa e ensaio o que era aliás o que Aristóteles pretendia embora sem muito discernimento do que realizava ensaio de modelo de entrosamento dedutivo daqueles dados empíricos dentro da sistemática conceptual e sua expressão verbal implícitas nos conhecimentos do seu tempo e que ele soube em suas linhas gerais revelar O método que Aristóteles emprega para o estudo dos fenômenos fatos físicos observa um dos mais modernos tradutores e autorizados comentaristas dos textos aristotélicos é antes de tudo dedutivo e sistemático Nas Meteorológicas como em toda sua obra Aristóteles julga que uma explicação verdadeira não pode ser senão racional15 Isto é apresentado de maneira formalmente coerente que vem a ser aquilo que ordinariamente chamaríamos de lógico E poderíamos acrescentar o inverso que a explicação racional é necessariamente verdadeira Em suma o que Aristóteles de fato realiza é a organização e a integração na medida do possível bem entendido e que não podia ser como não foi muito ampla e rigorosa da conceituação de seu tempo relativa aos objetos tratados no que hoje seriam a física a astronomia a biologia etc em sistemas lógicoformais Isto é expressos em forma verbal coerente de modo a se poderem deduzir logicamente dentro dos cânones lógicos os dados empíricos disponíveis Notese de início e isso é importante para o que nos interessa aqui centralmente que assim procedendo Aristóteles estará de fato e essencialmente ocupandose não com os fatos propriamente e os dados empíricos que a percepção sensível proporciona e sim com a maneira de filiar esses dados seria a sua dedução a uma conceituação preexistente ou pelo menos presumida ou melhor dada a priori E dentro dela enquadrálos A maneira de justificálos logicamente por meio de um enquadramento e integração numa sistemática conceptual préformada Racionalização diríamos hoje A atenção de Aristóteles numa tal tarefa estará assim primordialmente voltada como logo se vê para aquela sistemática conceptual e sua estrutura procurando alcançála pela aplicação do seu método Tanto é assim que seu resultado principal não será propriamente uma contribuição científica na acepção corrente de nossos dias o que a obra de Aristóteles como já foi notado não oferece e sim um exemplo de modelo de aplicação da lógica na consideração dos dados sensíveis da observação empírica visando como que uma interpretação lógica do comportamento da natureza tal como ela se apresenta naqueles dados Em conclusão o interesse de Aristóteles e a contribuição que oferece afinal se fixam essencialmente não nos fatos que refere e sim no conhecimento deles no conhecimento em si O objeto é assunto de que Aristóteles se ocupa em seus tratados relativos aos fatos da natureza físicos geológicos astronômicos biológicos etc não são direta e essencialmente tais fatos e sim a maneira como esses fatos são concebidos ou devem ser concebidos os conceitos em que se enquadram e como esses conceitos se hão de entrosar uns com os outros logicamente se estruturarem e formalmente ex primirem no discurso Aristóteles estará não elaborando co nhecimentos ou expondo seus procedimentos no processo de elaboração o que consistiria em compor nova conceituação ou remodelar a existente na base de dados originais ou antes não considerados devidamente e que se trataria de determinar e incluir na conceituação existente dandose assim conta deles Não é isso a obra de Aristóteles que estará antes e como que oferecendo e ilustrando um modelo lógico Ocupandose pois não do conhecimento propriamente mas do conhecimento do conhecimento E façase de Aristóteles o juízo que for e já sem falar na sua lógica o significativo da obra que deixou e que tamanho papel desempenharia na evolução do pensamento humano bem como aquilo que se pode considerar nessa obra a sua filosofia isso não será elaboração científica nem outra coisa senão um tal conhecimento do conhecimento É isso a obra de Aristóteles Obra que constituiu a complementação e encerramento de um ciclo decisivo do pensamento humano e que vem a ser a tarefa empreendida pelos pensadores que precederam Aristóteles no mesmo rumo desde os pioneiros da filosofia grega até os sofistas Sócrates e Platão que foram sucessiva e progressivamente contribuindo para a ascensão do pensamento e conhecimento do empirismo rudimentar e grosseiro que constitui a primeira e mais primitiva etapa da evolução mental do indivíduo pensante e conhecedor que é o homem para o racionalismo propriamente que faz então sua entrada decisiva na cultura humana Do conhecimento limitado à simples constatação empírica e registro de fatos diretamente acessíveis à percepção sensível e de sua representação imaginativa segundo modelos sensíveis de fácil e imediata identificação como os arcos de uma roda com que Anaximandro ainda explicava os fogos celestes ou a própria substância do Universo modelada com materiais comuns16 passam os pensadores gregos a um plano abstrato e vão ocuparse reflexivamente do próprio pensamento em si e da sistematização do conhecimento procurando realizar no conjunto dele o que a lógica designaria mais tarde por coerência A saber o entrosamento disciplinado e não contraditório da conceituação e sua expressão verbal Ou seja a adequada estruturação conceptual e de suas formas expressivas em contraste com o simples registro empírico e disperso de representações sensíveis imediatas que caracteriza a fase anterior A obra de Aristóteles oferecerá assim a par de sua lógica e método de pensamento que implica o primeiro esboço e modelo grosseiro embora para uma tal racionalização geral do conhecimento A sua logificação podemos assim denominar o processo Em suma o conhecimento se torna em sistema geral abstrato e de conjunto e por isso mesmo de mais fácil acesso evocação comunicação eficiente e utilização na ação o que constitui afinal o objetivo da função humana do conhecimento Notese que não seria isso certamente nem poderia ser o que Aristóteles deliberadamente objetivava Aquilo de que julgava cuidar e de que pretendeu ocuparse em seus tratados naturais era o conhecimento da realidade da percepção desses seres sensíveis que por sua diversidade e instabilidade e nada mais que imperfeitas cópias dos verdadeiros seres que seriam as ideias seu mestre Platão deixara de lado e reputara impossíveis de legítimo conhecimento e objetos unicamente da opinião Aristóteles em oposição a seu mestre acreditava chegar a esse conhecimento como vimos pela dedução de que revelou o método a sua lógica e precisamente para aquele fim Mas para justificar a legitimidade de sua dedução havia que ligar o ser o conceito dado no universal e que Platão isolara nas suas ideias ligálo com a realidade sensível expressa no particular Como realizálo É o que Aristóteles desenvolve no que seria a sua metafísica a sua concepção geral e fundamental da realidade que se faria padrão do pensamento filosófico pelos tempos afora E que embora retocado continuamente através dos séculos torcido e retorcido pelas sucessivas gerações de pensadores e escolas filosóficas na tentativa de muito poucos resultados de ajustála às novas feições que o conhecimento foi tomando e harmonizála com o progresso desses conhecimentos embora tudo isso a metafísica aristotélica ainda conserva até hoje seus quadros fundamentais que impregnam o pensamento moderno e lhe trazem toda sorte de dificuldades e deformações Vejamos esquematicamente os pontos essenciais e linhas mestras dessa metafísica e em especial as circunstâncias que a inspiram em seu nascedouro e que foram como se notou a necessidade de fundamentar o método dedutivo com que Aristóteles julgava alcançar o conhecimento da realidade sensível A atenta consideração de tais circunstâncias esclarece muita coisa dos rumos que tomaria o pensamento filosófico e contribui em particular para a compreensão dos principais problemas e questões que a perspectiva metafísica subjacente naquele pensamento iria suscitar mesmo depois de formalmente e oficialmente posta de lado pelos principais setores do pensamento moderno O que não impediu que se conservasse latente em muito dele e em questões pendentes até os dias de hoje O interesse do assunto continua assim a ser da maior atualidade Na metafísica Aristóteles transfere a sua lógica e com ela o método dedutivo que implica lógica e método que de fato não são senão sistemas derivados de formas linguísticas17 transfere sua lógica para os fatos da realidade concreta para o mundo das coisas sensíveis designação com que o próprio Aristóteles por vezes se refere às realidades da percepção que trata de conhecer pela aplicação do método Simples transferência de fato porque a nada mais que isso corresponde essa concepção aristotélica centro nevrálgico da metafísica que vem a ser a da geração das coisas sensíveis que afinal não são senão o particular em contraste com o universal pela realização da forma aquilo que faz a coisa ser o que é na matéria substância indeterminada das coisas sensíveis mas que reúnem em cada caso as condições específicas necessárias para que a forma determinada possa nela se concretizar ou gerar que tenha a potencialidade para isso que seja a coisa em potência na terminologia aristotélica Para usar uma ilustração entre outras do próprio Aristóteles tal como se dá com o lenho relativamente ao cofre que é com ele confeccionado o lenho seria a matéria em potência na qual a forma cofre se realiza é gerada18 Ora a forma que é essência ou aquilo que faz a coisa ser o que é se reduz na terminologia aristotélica à ideia ao universal19 E assim tal como na lógica aristotélica o particular se deduz do universal assim também a coisa sensível que é o particular se gera pela realização da forma potencial contida na matéria forma essa que vem a ser o universal Os dois casos se emparelham de um lado a operação lógica pela qual se alcança o conhecimento das coisas sensíveis o que as coisas são de outro o fato concreto em que se geram as coisas Ambos se confundem vêm no final a dar no mesmo E consumase com isso a inversão idealista aristotélica a confusão das esferas subjetiva e objetiva que se projetará pelos séculos afora e ainda impregna até hoje o pensamento filosófico e com ele a maneira ordinária de pensar e em muitos casos até mesmo a científica ou que se pretende ou presume científica A confusão das coisas que é a designação tradicional e consagrada da metafísica e aliás corrente em todos os setores para indicar as feições do Universo e assim fragmentálo numa outra instância da inversão idealista à imagem da expressão verbal a confusão das coisas com a maneira como se conhecem E a confusão consequentes do conhecido com o conhecimento da esfera exterior ao pensar e objeto dele com esse próprio pensar O que praticamente vem a consistir na tarefa de interpretação da realidade e elaboração do conhecimento e da construção da ciência na confusão do conhecimento com o conhecimento do conhecimento com o embaralhamento de seus respectivos objetos O pesquisador mais precisamente o filósofo de formação aristotélica e muitas vezes o cientista também pretende ocuparse de ocorrências e circunstâncias da natureza e frequentemente julga fazêlo quando de fato se encontra na perspectiva do conhecimento do conhecimento e vai tratar não daquelas ocorrências e sim do conhecimento que se tem delas de sua representação mental ou conceito e de sua expressão verbal que assim inadvertidamente se projeta na realidade considerada Já nos referimos acima a essa confusão e projeção idealista ao lembrarmos o caso tão flagrante do conceito matéria Outra instância característica no assunto fartamente conhecida debatida e de considerável papel na história e evolução do pensamento filosófico bem como do científico também é a dos conceitos espaço e tempo Em virtude daquela deformada perspectiva e inversão o espaço de simples relação de situação ou posição de uns objetos com respeito a outros e o tempo de relação de sucessão de situações20 isto é de simples conceitos mentalmente representativos de circunstâncias particulares da realidade se farão uma vez transpostos para essa realidade e nela confundidos e substancializados se farão num espaço e tempo absolutos e de realidade e existência extramental concreta e em si independentemente de quaisquer objetos eventualmente neles presentes e incluídos Algo como para o espaço um continente extenso e infinito predisposto para conter e abrigar no seu interior as coisas de um Universo nele eventualmente introduzido mas que dele inteiramente independe podendo ser concebido como sem esse conteúdo E no que diz respeito ao tempo seria como o desenrolar no vácuo dessa outra entidade ad hoc inventada e que seria a Eternidade a presenciar ou o vazio ou o perpassar incidente de coisas e ocorrências eventualmente presentes no correr de uma existência sem começo nem fim A literatura filosófica com extensões traiçoeiras inclusive para o campo da ciência aí está para exibir o infindável debate sem perspectivas e os paradoxos sem conta nem saída a que levaram e levam ainda hoje baralhamentos como esses das esferas subjetiva e objetiva A confusão da realidade concreta com o pensamento dessa realidade o que dá na confusão do conhecimento com o conhecimento do conhecimento Nesse sentido e de certo modo poderíamos dizer possivelmente com alguma dose de anacronismo que a obra de Aristóteles constituiu um passo atrás nas realizações de seus antecessores Estes embora sem muita clareza e precisão muito pelo contrário é força reconhecer e de forma grosseira no tratar o assunto tinham ao menos vislumbrado a distinção entre as esferas mental e extramental Parmênides por exemplo como foi lembrado ocupase em separado daquilo que respectivamente designa por verdade que diria respeito à esfera mental e por opinião que constituiria o que hoje designaríamos por conhecimento propriamente em contraste com o conhecimento do conhecimento ou ciência empírica isto é dirigida direta e imediatamente para a realidade exterior ao pensamento Em Platão essa separação se faz ainda mais radical e de tal modo extremada que as ideias platônicas se substancializam num mundo supersensível bem destacado do sensível que constituiria a realidade de nossa experiência concreta ordinária Com toda sua fantasia poética e deformação mística a concepção platônica tinha pelo menos o mérito de distinguir as duas esferas respectivamente mental e extramental Obviavase com isso a confusão em que incorreria Aristóteles e de tão danosas consequências que até nossos dias ainda vicia o pensamento filosófico fazendoo tão frequentemente perder de vista suas verdadeiras e legítimas metas com a proposição de questões sem conteúdo real algum e incapazes de levar a outra coisa senão a um infindável e estéril debate em torno do significado de conceitos ou pseudoconceitos reduzidos a simples formulações verbais que já há muito perderam qualquer ligação com a realidade em que vivemos e que condiciona a existência humana se é que jamais tiveram aquela ligação Isso a par dos empecilhos que tantas vezes opôs e ainda opõe a uma correta e adequada elaboração científica Considerese para exemplificar a famosa questão dos universais que agitou e dada a posição central que ocupa esterilizou em boa parte durante séculos o melhor do pensamento filosófico E ainda hoje embora com alguns disfarces tem os seus apreciadores Os danosos efeitos da confusão das duas esferas têm aí flagrante confirmação pois o que se discute no assunto em última instância é precisamente o grau de participação digamos assim dos conceitos numa ou noutra esfera A simples delimitação delas elimina a questão Em vez disso e enquanto os filósofos se afogam em sutilezas que não passam no mais das vezes de puro jogo de palavras a questão que se pode dizer básica da filosofia que é a da caracterização e processamento da conceituação premissa essencial da teoria do conhecimento e portanto de toda problemática da filosofia em geral se obscurece e perde inteiramente num cipoal sem saída e debate sem solução nos termos em que a questão é proposta A confusão das esferas subjetiva e objetiva do conhecimento que deriva da metafísica aristotélica não vicia somente a filosofia mas ainda e até nossos dias atinge importantes setores da elaboração científica e até mesmo concepções correntes e hábitos usuais de pensamento Efetivamente o fato de sobrepor o pensamento e seus sistemas e formas à realidade que lhe é exterior e incluir nessa realidade os quadros conceptuais em que pensamento e conhecimento se organizam e estruturam e é nisso que vai dar a confusão aristotélica e derivando por conseguinte a elaboração do conhecimento daqueles quadros tais circunstâncias resultam forçosamente na tendência que acima referimos ao enrijecimento e imobilização do conhecimento Isso porque por força delas passase a lidar com conceitos e as formas lógicas de sua expressão verbal julgando tratar de fatos da realidade exterior ao pensamento como aliás se vê tão claramente nas instâncias acima lembradas dos conceitos espaço e tempo que representando embora relações se fazem porque expressos verbalmente por substantivos em coisas ou entidades de existência substancial incluída na realidade exterior ao pensamento Erigemse assim por força de confusão análoga simples operações mentais que vêm a ser a dedução aristotélica em fiel reprodução de ocorrências da realidade O logicamente coerente e pois corretamente deduzido e ajustável com isso ao sistema ou sistemas conceptuais estabelecidos e consagrados se reputa desde logo como reprodução ou representação acertada da realidade Não é por simples acaso ou analogia que a expressão vulgar e corrente tão em voga que vem a ser é lógico tem o sentido de acerto e segurança da afirmação formulada e assim qualificada Tampouco constitui coincidência o emprego na terminologia consagrada da lógica do mesmo vocábulo para designar a verdade formal e a verdade empírica com o que se equipara em valor significativo a articulação coerente da expressão verbal ou simbólica fato puramente mental com a verificação empírica a verdade do puro pensamento e a verdade real Pensamento e realidade se confundem É a transposição do pensamento para a realidade ou inversamente se preferirem a interiorização da realidade no pensamento Em ambos esses casos exemplificativos citados fazse sentir a presença da velha concepção aristotélica e confusão que nela se faz entre as duas esferas do conhecimento entre o mental e o extramental Bem como do complicado dispositivo metafísico que antes procurei esquematizar e que resulta dessa confusão e pretende justificála Dispositivo esse com que Aristóteles introduziu as ideias platônicas nas coisas sensíveis tornandoas componentes delas a forma realizandose na matéria e dando com isso a coisa Forma essa que vem a ser afinal o conceito que se trata de alcançar pelo conhecimento a ser obtido na concepção aristotélica endossada em seguida pelos séculos afora com a descoberta daquele conceito no amálgama de potência e ato em que a coisa sensível se realiza É assim na manipulação conceptual por meio de operações lógicas que se alcança o conhecimento21 Quanto aos fatos reais às feições e circunstâncias que compõem a realidade concreta exterior ao pensamento conhecedor e elaborador do conhecimento isso que constitui na perspectiva moderna pósmetafísica o legítimo objeto do conhecimento se subestima se não se desconsidera por completo ou então se manipula convenientemente a fim de acomodálo aos esquemas conceptuais consagrados É com esse rumo que a metafísica de inspiração aristotélica intervirá na tarefa de elaboração científica com os resultados que se podem avaliar e que a história fartamente ilustra Uma instância flagrante desse procedimento tanto mais esclarecedora como exemplo que já data dos tempos modernos e por isso além de largamente documentada e de fácil acesso e exame melhor se destaca no contraste com o novo pensamento antimetafísico que começava na época a dominar essa instância será a famosa questão da essência das espécies que tamanho papel e papel altamente negativo representou no desenvolvimento das ciências naturais Ocupeime do assunto em outra oportunidade22 e lembrarei aqui apenas a observação de Darwin a respeito do assunto lamentando os naturalistas do seu tempo incessantemente perseguidos pelas dúvidas insolúveis sobre a essência específica desta ou daquela forma Em suma a elaboração científica se tornava essencialmente na base do modelo metafísico um processo especulativo onde operações lógico dedutivas faziam as vezes da observação empírica e conceptualização da experiência É na forma lógica que se haveria de desvendar a VERDADE Não é preciso insistir que é isso o observado no mundo ocidental acentuandose com a escolástica e a consagração da metafísica aristotélica que iria daí por diante soberanamente inspirar e orientar o pensamento da época Assistiremos aí a par de um intenso trabalho de elaboração lógica ou antes de refinamento e bizantinização da lógica aristotélica a uma desenfreada especulação abstrata orientada por aquela lógica e que no terreno da elaboração científica deixa a consideração dos fatos reais num segundo e muito apagado plano A ciência por isso marcará passo e somente ganhará impulso quando nos tempos modernos começa a gradualmente se desligar da filosofia ou antes da metafísica e dos esquemas lógicos estereotipados e especulações sem fim a que ela se reduzirá23 E a elaboração do conhecimento em alguns de seus setores pelo menos se orientará diretamente para seu verdadeiro objeto os fatos naturais exteriores ao pensamento elaborador24 e não os fatos mentais que não fazem senão representar conceptualmente aqueles fatos naturais E abremse com isso as perspectivas para a separação das duas esferas do pensamento confundidas pela metafísica de um lado o processo mental pelo qual se elabora o conhecimento propriamente a saber a representação mental das feições da realidade exterior ao pensamento elaborador De outro a consideração dessa mesma representação mental elaborada pelo pensamento e nele presente como conceituação constituinte do conhecimento da ciência em particular Para essa discriminação dos objetos da atividade pensante discriminação essa que delimitará as esferas objetiva e subjetiva isto é que separará os campos respectivos do conhecimento de um lado de outro do conhecimento do conhecimento que constitui ou deve constituir o próprio da filosofia para essa discriminação é importante notálo contribui sobretudo a experimentação Realmente na experimentação as duas esferas se propõem desde logo separadamente e bem discriminadas uma da outra Diferentemente da simples observação passiva e contemplativa o pensador e elaborador do conhecimento na experimentação intervém ativamente para dispor de maneira conveniente e em perspectiva adequada o objeto de sua consideração e exame para fazer com que se reproduza nesse objeto o fato que se trata de compreender e representar mentalmente Intervir nele e como que participar dele com sua ação Ação pensada e no outro extremo da ação reflexa com o pensamento alertado não somente visando o objetivo imediato de dirigir a ação e sim também o de se integrar no conhecimento preexistente tornase ele próprio conhecimento novo Ação pensada em função do objeto considerado no curso da qual se desenrola o processo de elaboração cognitiva e em que essa elaboração se realiza na base do duplo e conjugado impulso do pensamento conduzindo a ação para amoldá la ao objeto e reproduzila e da ação inspirando e estimulando o pensamento e o ajustando ao objeto É esse o processo cognitivo processo natural e espontâneo mas que se vai tornando cada vez mais consciente e deliberado no curso da experimentação científica e adestramento que proporciona é isso que se revelará sempre mais acentuadamente nos procedimentos da elaboração científica moderna Procedimentos esses que pela sua própria natureza e dinâmica em contraste com a especulação abstrata e a simples observação passiva põem em confronto direto e ao longo de todas as suas operações o sujeito e o objeto bem discriminados um do outro Isso tanto mais acentuadamente quanto por força de circunstâncias históricas gerais notórias que não precisam ser aqui repisadas propõese crescentemente no conhecer não apenas como objetivo o simples deleite intelectual ou valor intrínseco e em si da atividade intelectual e do saber como se dava com os filósofos gregos ou como nos séculos que os separam do mundo moderno o objetivo fixado no sobrenatural e no conhecimento da Divindade e de seu comportamento com relação à humanidade E sim propõese o conhecer na expressão famosa de Descartes como aquisição de uma prática pela qual conhecendo a força e as ações do fogo da água dos astros dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam tão distintamente como conhecemos os diferentes misteres de nossos artesãos pudéssemos aplicálos pela mesma forma a todos os usos para os quais são próprios e tornandonos assim como senhores e possuidores do Universo25 Esse domínio do homem sobre a realidade que Descartes preconizava e de fato se estava realizando em ritmo acelerado com o progresso da ciência moderna esse gerar das coisas sensíveis sem ser pela forma potencialmente preexistente e incluída nelas nos termos da metafísica e sim forjadas no conhecimento construtor pelo próprio homem dirigindo a sua ação e não desvendado pela dedução isso permite desde logo discriminar os objetos do conhecimento e abrir claras perspectivas para o conhecimento do conhecimento para o objeto da filosofia disfarçado na confusão metafísica do ser e do conhecer Assim será efetivamente e o objeto próprio da filosofia começa a se definir É que o problema do conhecimento o como conhecer premissa da filosofia se propõe de forma patente com o progresso da ciência e as perspectivas que esse progresso abria Tratavase de uma transformação radical dos métodos de elaboração cognitiva Galileu e seus sucessores atirando objetos de alturas para o solo e fazendo rolar esferas sobre planos inclinados contrastavam nitidamente seus métodos com a anterior e habitual especulação inspirada na metafísica aristotélica Achavamse pois abertamente em jogo os procedimentos adequados para a elaboração do conhecimento E era preciso não somente determinar esses procedimentos mas trazer a sua justificação e reeducarse na condução dos novos métodos Tanto mais que tais métodos iam chocarse em última instância com preconceitos profundamente implantados em concepções tradicionais que traziam o poderoso selo de convicções religiosas As necessidades do momento levavam assim os homens de pensamento a se deterem atentamente nos problemas do conhecimento O que afora as estéreis manipulações verbais a que se reduzira a lógica formal clássica praticamente já não detinha a atenção de ninguém Abriase com isso uma nova fase para a filosofia forçandoa a se voltar para seus objetos próprios e neles se concentrar Afirmamse tais objetos que se farão patentes Toda a filosofia moderna nos traz o testemunho disso de Bacon e Descartes até o criticismo kantiano Aquilo que ocupará desde o século XVI notese a precisa coincidência com o grande surto da ciência moderna o centro das atenções filosóficas serão expressamente as questões relativas ao conhecimento e sua elaboração26 A filosofia encontrava seu caminho como conhecimento do conhecimento A indagação central e nevrálgica que se propõe será essencialmente determinar a relação entre a mente humana pensamento Razão e o mundo exterior da experiência sensível e que Conhecimento da Realidade tal relação pode proporcionar O que vai dar no como e em que medida contribuem respectivamente para o Conhecimento e como para isso se combinam e associam entre si os dois fatores cuja participação se podia observar na prática da elaboração científica moderna Numa palavra tratavase de determinar como se repartia e como se combinava a participação respectiva de um lado da experiência sensível de outro do pensamento propriamente e independentemente de qualquer outra contribuição É nesses termos que fundamentalmente se propõe o problema do Conhecimento dando origem às duas tendências para as quais se inclinam respectivamente as soluções propostas no sentido seja da valorização e destaque da atividade pensante e racional com a relativa desconsideração e até mesmo nos casos extremos eliminação da realidade sensível e dos dados que fornece seja em sentido oposto a subestimação da atividade pensante relegada a papel subsidiário e insignificante da simples sensação Os dois polos da filosofia moderna o idealismo e o materialismo embora muitas vezes reciprocamente se interpenetrando sobrepondose um a outro e inextricavelmente se confundindo têm suas raízes nessa oposição mais ou menos marcada e radicalizada conforme os autores em que se situa o problema do conhecimento E será em última instância sob a inspiração e na base das respectivas posições em face de tal problema que se vão constituir os sistemas filosóficos e concepções ontológicas Tudo isso naturalmente temperado e ajustado convenientemente em função de concepções fideístas ditadas pelo hábito muito mais que por outra coisa já fora ficando para trás a verdadeira fé religiosa que o mundo medieval conhecera preconceitos ideológicos respeito à tradição e conveniências políticas O que não deixa muitas vezes de complicar inextricavelmente os textos filosóficos da época tão marcados ainda pelos remanescentes da herança metafísica e o característico estilo da especulação escolástica27 Apesar disso contudo destacamse linhas discriminatórias suficientemente marcadas Os materialistas ou antes os mais voltados para a substância material como componente do Universo em contraste com a substância ideal dos idealistas esses simplesmente equiparam o conhecimento elaborado ou por elaborar ou mais precisamente a conceituação e a forma verbal em que tal conceituação se exprime e apresenta equiparamna em correspondência biunívoca à realidade sensível Cada coisa entidade qualidade ação que compõe o Universo e que os sentidos percebem terá sua ideia e expressão verbal própria a registrála no pensamento Reduzse assim ao mínimo se não se elimina de todo o papel ativo do pensamento na elaboração do conhecimento e da formação dos conceitos ou ideias que se tornam com o conhecimento que compõem em simples reflexo mental mais ou menos passivo da realidade exterior Locke que destacamos aqui apenas como pioneiro que foi do materialismo moderno e aproximadamente na mesma esteira a generalidade dos materialistas28 Locke deriva as ideias de que se constitui o conhecimento diretamente das sensações que se marcariam na mente como impressões na cera não cabendo assim ao pensamento nada mais com aquele registro das sensações tornadas em ideias que combinar comparar e analisar essas mesmas ideias Desse modo o materialismo se de um lado empresta o devido valor à experiência sensível como fator primário da elaboração cognitiva de outro tende a fechar as perspectivas para uma apreciação adequada da função pensante e da natureza real do conhecimento Os idealistas vão em sentido contrário Em vez de exteriorizarem o conhecimento segundo o modelo do materialismo fazendo dele algo a ser simplesmente copiado pelos sentidos como que desvendado descoberto na realidade onde já estaria préformado29 os idealistas trazem o Universo para dentro da esfera subjetiva e aí irá buscálo o conhecimento Em alguns idealistas particularmente nos grandes precursores de Kant e no próprio Kant isso se disfarça ainda sob a aparência de uma realidade exterior que embora incognoscível assim mesmo existe e representa o papel discreto de estimulante do pensamento é a coisa em si o noúmeno kantiano Mas como bem dirá Fichte em seguimento a Kant se esta pseudoexistência é incognoscível é que verdadeiramente não existe E assim o idealismo tende necessariamente para a eliminação da realidade exterior ao pensamento e à subestimação senão desprezo total da experiência sensível na formação do conhecimento Seja contudo qual for o tipo ou matiz do idealismo em todo ele o que realmente ocorre aquilo de que os filósofos idealistas se ocupam e é o que centralmente nos interessa aqui é do pensamento e seu produto que é o conhecimento E assim revestindo embora seu exame e suas conclusões de linguagem ambígua que nem sempre deixa muito claro o objeto a que se refere o idealismo devidamente filtrado vai oferecer algumas das principais premissas para a devida proposição do problema do conhecimento e a caracterização e definição do conhecimento do conhecimento Isto é do papel da filosofia É essa em particular a contribuição de Kant e Hegel O criticismo kantiano coloca em plena luz o papel ativo e participante do pensamento a razão na elaboração do conhecimento E desfaz com isso a falsa perspectiva dos materialistas e de sua concepção de um conhecimento simples reflexo passivo através dos sentidos da Realidade exterior e cuja elaboração consiste unicamente na descoberta de verdades já de antemão incluídas na Realidade Quanto a Hegel a sua dialética romperá pela primeira vez a tradição metafísica de conceitos fixos e invariáveis tradição essa também incorporada pelo materialismo vulgar como aliás não podia deixar de ser dentro das posições básicas desse materialismo e seu postulado implícito de uma correspondência biunívoca entre a conceituação os conceitos ou antes a expressão verbal desses conceitos e as feições e circunstâncias da realidade A dialética hegeliana apresentará em contraste com aquela velha e tradicional concepção metafísica a verdadeira natureza da conceituação a mútua ligação e entrosamento dos conceitos em sistemas de conjunto através dos quais e somente assim adquirem conteúdo e sentido Em outras palavras os conceitos nada significam ou representam por si e isoladamente Essa significação e representação se realizam pelas ligações e no entrosamento deles entre si Isto é no sistema que formam em conjunto30 Revelou Hegel com isso na sua intimidade a constituição e estruturação da conceituação de que o conhecimento se compõe E abriu com isso larga perspectiva para a interpretação das operações do pensamento e processo de elaboração do conhecimento e formação dos conceitos Hegel traz com isso a maior contribuição de todos os tempos para a elucidação do problema do conhecimento Não vamos aqui debater o fundo do pensamento hegeliano de tão difícil penetração pelo complexo e imaginativo estilo em que se envolve a obra de Hegel Mas o certo é que o descrito nessa obra consiste em suma e no essencial para o que nos interessa aqui na gênese e no desenvolvimento da racionalidade do homem através do progresso do conhecimento A descrição que Hegel faz desse progresso é fantasiosa mais ou menos arbitrária no que diz respeito à realidade dos fatos e acompanhando muito maio verdadeiro processo histórico tal como ele efetivamente se realizou Além disso como idealista que é Hegel encarna o progresso do conhecimento e da razão na marcha do espírito desde sua gênese na Certeza sensível até sua plena eclosão no Saber absoluto A concepção histórica de Hegel escreverá Marx supõe um espírito abstrato ou absoluto que se desenvolve de tal maneira que a humanidade não é senão uma massa dele impregnada mais ou menos conscientemente No quadro da história empírica exotérica Hegel faz pois operar uma história especulativa esotérica A história da humanidade se torna a história do espírito abstrato da humanidade estranho por conseguinte ao homem real31 Se contudo a descrição histórica de Hegel é arbitrária e fantástica e a forma que lhe concede essencialmente especulativa a análise que faz do pensamento e conhecimento e que se inclui naquela descrição isso nos dá o enquadramento e a estrutura do processo racional no ato de apreensão e representação mental da realidade exterior ato no qual o processo é gerado e se constitui em razão conhecedora conhecimento E é isso que Marx irá buscar no seu mestre a saber na observação de Engels o núcleo que encerra as verdadeiras descobertas de Hegel o método dialético na sua forma simples em que é a única forma justa do desenvolvimento do pensamento32 Não nos deteremos naturalmente aqui por estar fora de nosso assunto no tratamento específico que Marx com o método dialético que foi buscar em Hegel deu aos fatos econômicos sociais e políticos que resultaram na transformação histórica do mundo moderno na eclosão e estruturação do capitalismo industrial e no delineamento das premissas do socialismo O que imediatamente nos interessa agora e é o que se observará com toda clareza na obra de Marx consiste no fato de que historicamente é afinal na consideração do conhecimento do homem aquilo que seriam as nossas ciências humanas de hoje e naturalmente o tema marxista por excelência é aí bem como no método de elaboração desse conhecimento que se revelaria com precisão o conjunto e a generalidade do problema filosófico isto é a determinação em sua totalidade e a caracterização do conhecimento que vem a ser o conteúdo e objeto central e geral da filosofia e onde ela encontra em toda sua plenitude o terreno que lhe é próprio e específico no complexo geral do conhecimento Tal como desde suas origens nos primeiros passos do pensamento grego e embora tão confusamente como foi observado se propôs à reflexão Os fatos sociais que são os que se situam ou devem ser situados no centro do objeto real do conhecimento do homem têm isto de singular em confronto com outros fatos físicos biológicos que neles o homem é simultaneamente agente e paciente determinante e determinado e o que é mais característico e específico é que na perspectiva do conhecimento o homem é ao mesmo tempo que o conhecido também o conhecedor E conhecido como conhecedor tanto como viceversa conhecedor como conhecido Considerese a situação O indivíduo humano determina seus atos e dirige seu comportamento e é desse comportamento que resultam afinal os fatos sociais O comportamento é mesmo o constituinte de tais fatos O homem é assim autor deles seu motor e fator determinante Mas doutro lado também resulta deles são esses mesmos fatos sociais que determinam o homem no sentido que ele é antes de tudo um produto da sociedade e se comporta em função do meio social de que participa em que vive e que lhe modela a personalidade Essas relações sociais contudo as instituições tudo enfim que rodeia o homem e o retém numa densa e estreita malha de normas e modos de ser de agir e mesmo de pensar e até de sentir tudo aquilo que constitui o enquadramento dentro do qual o homem desenrola sua existência e desenvolve suas atividades e que o condicionam tudo é obra dele do próprio homem Mas é obra que ele realiza impulsionado e orientado pelo seu pensamento e conhecimento que afinal constituem sua razão formados naquele mesmo enquadramento de relações e instituições sociais em que ele se educa e forma no qual e pelo qual se modela a sua própria maneira de ser E em que ele faz propriamente o indivíduo humano que é com suas características próprias tendência impulsos aspirações motivações em geral Como se verifica o processo é nos dois sentidos ou melhor gira em circuito fechado sobre si próprio confundindose permanentemente o ponto de partida com a chegada Ao homem determinante se sobrepõe o homem determinado que parte em seguida para nova determinação de si próprio Os dois momentos da ação e comportamento humanos a saber de um lado a maneira de agir do indivíduo humano de outro o fator determinante dessa maneira de agir ou para empregar expressões usuais efeito e causa do comportamento humano se confundem no mesmo homem simultaneamente agente e paciente E agente como paciente e paciente como agente É assim de forma tão específica e original no conjunto dos fatos em geral que se propõe a questão relativamente aos fatos humanos Perguntase então como enquadrar situação como essa de aparência tão aberrante do ordinário dentro dos moldes correntes do pensamento científico Como conceituála devidamente e dar conta teórica dos fatos sociais e humanos pela mesma forma que se vinha praticando com os fatos físicos desde os primórdios da ciência moderna no século XVI E realizálo notese bem não apenas com o objetivo de mais uma realização erudita no estilo prémoderno e sim condição para o sucesso tal como se dera com os fatos físicos para alcançar também no conhecimento do homem o ideal cartesiano já anteriormente lembrado de uma prática que tornasse os homens em senhores e possuidores do Universo Faziase para isso necessário contornar a dificuldade ausente nos demais setores do conhecimento onde ao contrário do que se passa com os fatos humanos o elaborador do conhecimento que é o homem não se situa fora dos acontecimentos que se trata de conhecer e de fora deles os observa e interpreta sem que com isso eles modifiquem o seu curso No conhecimento do homem na observação e interpretação dos fatos humanos sociais todo conhecimento elaborado se integra nesses mesmos fatos se torna deles e vai configurar uma nova realidade social e humana distinta da anterior Isso porque insistimos os fatos sociais não se desenrolam está visto independentemente da ação humana porque se constituem dessa ação que tão pouco se realiza independentemente do pensamento do homem agente e do seu conhecimento Inspirase nesse conhecimento e por ele se orienta e dirige O conhecimento dos fatos sociais é assim ele próprio participante e parte integrante e essencial dos mesmos fatos Nessa maneira de propor o assunto e de se situar em frente a ele na prática da elaboração do conhecimento e é assim como veremos que se situa Marx donde o alcance que assinalamos de sua obra nessa maneira já se encontra implícita a solução da questão Bem como a resposta ao mesmo tempo do problema filosófico essencial que tem sua principal origem como se viu na maior ou menor confusão das duas esferas do homem pensante e conhecedor e que vêm a ser as esferas subjetiva e objetiva O pensar e o conhecer de um lado o pensado e o conhecido de outro Tal confusão das esferas subjetiva e objetiva não consiste simplesmente na superposição ou indistinção de ambas Dessa indistinção deriva também a exclusão de uma ou outra Quando não se as distingue e discrimina devidamente entre si determinandose suas relações recíprocas dáse a desconsideração de uma delas com a consequente fixação na outra É o que sempre fizeram e continuam muitas vezes a fazer em campos opostos idealistas e materialistas vulgares isto é não dialéticos acentuando cada qual e respectivamente ou a esfera subjetiva ou a objetiva com a desconsideração da outra Isso se verificará mais uma vez e de maneira flagrante mas agora se abrirá a perspectiva para desfazer afinal em definitivo a confusão se verificará no debate do problema do homem e da sua liberdade equacionado pela ciência moderna Será o conflito entre a liberdade de escolha pelo indivíduo o livrearbítrio de uma parte e doutra a premissa essencial da ciência a saber a sujeição do Universo e de todas suas ocorrências inclusive no relativo ao homem a leis isto é à necessidade Considerada unicamente a esfera subjetiva e não há senão afirmar a liberdade do homem na determinação de seus atos e comportamento e portanto dos fatos sociais que em última instância resultam desses atos e comportamento A decisão o impulso o motor estão no homem não há como negálo É a subjetividade pois que configura o comportamento humano O interior do homem impenetrável e indeterminado Ou antes a sua razão a sua racionalidade O homem determinado privado de sua capacidade de escolha é precisamente aquele em que se aboliu a razão aquela racionalidade que faz dele o verdadeiro homem sinônimo de ser racional O homem privado de liberdade e livre escolha deixa de ser verdadeiro homem É sobre essa base e à luz dessa concepção o que mostra sua profundidade e universalidade de seu reconhecimento que se construíram todos os sistemas normativos da conduta humana das simples regras de civilidade até a ética e o direito A saber sobre a noção de responsabilidade que implica está visto a liberdade Detendose aí não há como introduzir o determinismo que a ciência implica Se nos fixamos e imobilizamos na subjetividade não há não pode haver verdadeira ciência do homem no sentido moderno da palavra Isso porque considerada a razão humana em si irredutível e dada como um todo desde logo completo e acabado sem antecedente ou préformação e é assim que se propõe a razão para quem se fixa na subjetividade e parte daí para a ação e comportamento humano sem considerar o inverso da ação e comportamento para a razão sem considerar a origem as raízes a gênese e constituição dela tomada assim a razão ela permanece fora do determinismo e não há como legitimamente nele incluí la Determinismo no sentido de premissa da ciência o determinismo da necessidade É por isso que a generalidade dos filósofos quando procuram como de fato se dá propor o problema do homem em termos científicos isto é integrálo na ciência moderna tendem a saltar para fora da subjetividade para seu oposto e consideram unicamente o homemobjeto da ciência o homem determinado e não determinante Determinado apenas extrahumanamente como outro objeto físico qualquer Consideram apenas a esfera objetiva Há posições intermédias em que entram em linha de conta uma e outra esfera Mas sempre com saltos de uma para outra e escamoteação mais ou menos disfarçada e com maior ou menor habilidade e sutileza ora de uma ora de outra daquelas esferas São tentativas de conciliação de situações incompatíveis nos termos em que a questão é proposta A saber de um lado a livre escolha e deliberação do ser racional cuja razão paira acima das contingências extrarracionais e delas independe não sendo pois por elas determinado em sua vontade De outro lado essas mesmas contingências necessariamente incluídas no postulado determinista e que seriam pois determinantes Marx segue outro caminho e inspirandose na dialética hegeliana faz dela o seu método que vai aplicar à consideração e interpretação da história e em particular dos fatos que presencia e de que participa e que como homem de ação e revolucionário pretende orientar necessitando para isso não somente fixarlhes o determinismo mas com isso também as circunstâncias que modelam esse determinismo e que a ação política e revolucionária seja capaz de orientar É o que lhe permitirá situar diferentemente a questão em foco de maneira a articular num conjunto e totalidade em outras palavras ligar dialeticamente os termos do dilema Isto é Marx não começa por isolar como fazem seus predecessores o ser racional com a sua razão o homem pensante e conhecedor não o isola das circunstâncias extrarracionais em meio às quais e em função de que o homem é agente Noutras palavras não absorve e com isso anula o homem agente no homem pensante e conhecedor deixando em consequência de lado as circunstâncias exteriores em meio às quais o homem é agente como fazem os idealistas e filósofos da liberdade humana do livrearbítrio Tampouco e inversamente confunde o homem pensante e conhecedor no homem agente fazendo daquele pensamento e conhecimento simples epifenômeno de uma ação e comportamento exteriormente determinados Marx fixa sua atenção será o seu método não separadamente num ou noutro desses termos alternadamente ou no pensamento razão ou na ação concreta E sim consideraos em conjunto melhor no processo em que ambos se conjugam unificam e que constitui precisamente o essencial da história o seu movimento Processo e movimento da história esses que serão a passagem a transição de um para outro momento do mesmo processo consistindo na permanente transformação nos dois sentidos de um no outro O pensamento fazendose ação tanto como a ação se fazendo pensamento E conhecimento Em outras palavras é pelo pensamento e conhecimento que o constitui e inspira pois não há pensamento puro e vazio de conhecimento pensamento e conhecimento no final se confundem é assim que o ser racional que é o homem livremente se determina e delibera sua ação Mas esse pensamento e conhecimento determinantes se forjam nas circunstâncias da vida e do meio físico e humano em que o homem social por excelência age desenrola sua ação e se torna com isso o ser racional que é A ação dele se faz pensamento e conhecimento porque estes se estimulam e informam nessa ação tal como pensamento e conhecimento se fizeram ação porque são eles que a promovem e impulsionam E o processo continua assim ininterrupto entrosandose nele homem pensante e conhecedor e homem agente O homem pensante e conhecedor transformandose em homem agente e inversamente este naquele E tratase aí notese bem não de uma alternância monótona e que se repete sempre igual Longe disso e muito pelo contrário o processo que é tanto da história do indivíduo o desenrolar de sua existência individual como da coletividade em que os indivíduos se comunicam e da espécie em que eles se sucedem e continuam uns aos outros o processo dizemos se renova permanentemente em cada ciclo que é sempre diverso do anterior mais rico de ação de experiência realizada de pensamento desenvolvido de conhecimento acrescido graças à acumulação de sucessivas aquisições Acumulação essa cuja possibilidade constitui no Universo privilégio do homem e o fator que precisamente faz dele o ser racional que é É graças a essa faculdade de se valer do seu passado a fim de utilizálo no presente e projetálo no futuro com o acréscimo das novas aquisições do presente é graças a esse privilégio que o homem ocupa a posição ímpar que é a sua no Universo Que logra marchar para a frente progredir e se transformar e renovar em ritmo quantitativo e qualitativo sem paralelo em outras feições da natureza Essa é a perspectiva dialética do homem que permite considerálo no ângulo adequado e devidamente conceituar em termos científicos este aspecto ou feição do Universo que é a humanidade o fato humano ou a razão que vem a dar no mesmo e para empregar a terminologia consagrada da filosofia E elaborar com isso o conhecimento do homem Nisso consistiu a obra filosófica de Marx lançar as premissas desse conhecimento com o método adequado para elaborálo E Marx realizou isso não apenas teoricamente nem teria sido possível realizálo assim e é importante notálo para modelo e ensinamento porque outro fosse o caso e Marx com todo seu gênio e erudição teria fracassado ou avançado muito pouco tal como se deu e dá ainda com tantos que procuraram e outros que continuam procurando sem dar com ele o caminho acertado Marx não foi unicamente o cientista puro ou filósofo do velho estilo e quantos sobram ainda que de longe e sobranceiramente contempla os fatos que pretende interpretar e conhecer Marx envolveuse nesses fatos participou ativamente deles e é por isso que logrou compreendêlos e os tornar em teoria Abordou a questão simultaneamente como homem de pensamento e homem de ação Como filósofo e homem de ciência e como revolucionário Homem pensante e conhecedor e homem agente E o fez em plena consciência da obra que realiza e do papel que desempenha Ele o registra expressamente quando na XI e última das Teses sobre Feuerbach escreve Os filósofos não fizeram até hoje senão interpretar o mundo de diferentes maneiras Tratase agora de transformálo E foi o que fez filósofo propôsse a tarefa de impulsionar a transformação socialista do mundo capitalista que era a direção para a qual apontavam os fatos que vivia Fatos que soube progressivamente entender e interpretar com acerto graças a um pensamento e conhecimento cuja acuidade e nível trouxera em parte de sua formação num meio do mais alto teor Mas que no essencial e decisivo soube forjar no correr da própria realização da tarefa a que se dedicara de cabeça e coração o que lhe permitiu nesse amálgama de teoria e prática prática e teoria elaborar a teoria do processo histórico em que se engajara traçarlhe as primeiras e fundamentais linhas da prática que levaria à sua complementação E dar com sua ação os passos preliminares de tal prática Espelhase assim em miniatura na vida de Marx na qual pensamento e ação ação e pensamento se ligam num processo e conjunto indissolúvel e autoestimulante espelhase aí a premissa básica e ponto de partida do conhecimento do homem o homem ao mesmo tempo autor e ator da história seu ativista e como tal autor e determinante dela mas simultaneamente também sua criatura nada mais fruto legítimo do mundo capitalista do século XIX em seus primeiros passos revolucionários para o socialismo e seu derivado que Marx e sua obra E assim a par de determinante determinado também Marx realiza com isso um modelo em relevo e grande destaque da posição do homem ao mesmo tempo autor e ator da história Será assim Ou não será Marx senão um caso todo particular específico inconfundível e incomparável com o da massa de seus contemporâneos É certo que o plano em que se situam os indivíduos humanos e o grau de participação de cada qual pelo seu pensamento e ação na marcha da história não são os mesmos e muito pelo contrário divergem consideravelmente A generalidade se conserva no modesto plano de uma vida privada que se encerra em estreitos horizontes familiares e ocupacionais modestos e de relações sociais e atividades de ordem pública relativamente restritas Os indivíduos nessa situação terão naturalmente cada qual por si papel muito reduzido na marcha da história Mas nem por isso deixam de trazer a sua contribuição porque é da totalidade dessas contribuições individuais em conjunto que a história se faz Sem ela a história não existiria com a feição que foi a sua Todos os indivíduos embora em proporções largamente distintas trazem a sua parte de pensamento e ação que esse pensamento determina para a resultante final que será a história da coletividade que serão os fatos sociais de que participam e no conjunto compõem Marx terá sido apenas um indivíduo entre muitos milhares que agindo embora cada qual por conta própria e por linhas distintas contribuíram todos eles com alguma coisa para aquela resultante final A própria projeção de Marx e sua obra é função da mesma resultante Em Marx naturalmente se atinge elevada e excepcional culminância Nele se reúnem e conjugam o filósofo de larga visão e imensa erudição um pensamento e conhecimento pois de alto teor e o político revolucionário que pôs aquele pensamento e conhecimento a serviço de intensa atividade desenrolada no cenário dos mais amplos e decisivos fatos de sua época no coração da história de seu tempo que é o embate das classes fundamentais geradas pelo capitalismo burguesia e proletariado em torno de cuja luta se configura o essencial da história do século XIX É essa excepcional e quase singular conjugação de um pensamento poderoso e ação de raio imenso que alcança o principal da vida social de seu tempo é isso que permitirá a Marx no seu papel de ator e autor da história que desempenhará com plena consciência dele o que também não é dado à generalidade dos indivíduos é isso que permitirá a Marx situarse na posição de verdadeiro experimentador social reproduzindo no terreno dos fatos sociais algo análogo mutatis mutandis dos processos experimentais em que se elaboraram as ciências físicas modernas Efetivamente Marx na base de sua observação e experiência colhidas no mais vivo do desenrolar dos fatos históricos de seu tempo e de que intensamente participa Marx logra elaborar a teoria desses fatos isto é determinar suas ligações mútuas e sistema de relações no qual em conjunto eles se dispõem desvendando com isso a dinâmica essencial que os anima e impulsiona a saber a luta do proletariado em suas diferentes formas da simples desinteligência entre empregados e empregadores à greve e à insurreição E apreende as motivações dessa luta as reivindicações dos trabalhadores assalariados como contrapartida da acumulação de capital gerada pela maisvalia subtraída pelos detentores do capital no jogo das transações de compra e venda da força de trabalho Apreende mais o progressivo despertar no trabalhador de uma consciência de classe adquirida na luta em que se engaja consciência essa que vai dar em sua expressão mais alta quando nela se configura o fim último a que a luta se dirige e que vem a ser a transformação da ordem capitalista Marx tem com isso os elementos necessários para o fim de como dirigente político estimular a luta organizála e a orientar determinar as suas formas preliminares e etapas sucessivas e concederlhe o conteúdo ideológico necessário para que se dirija certeiramente a seus fins próprios Nessa ação prática e em face dos efeitos que produz e resultados nela alcançados positivos ou negativos Marx vai enriquecendo sua experiência e na base desse enriquecimento vai retificando reajustando e precisando suas conclusões teóricas e determinando suas posições práticas Isso porque em Marx como homem de pensamento que é a ação tem não somente sentido praticista isto é os efeitos revolucionários imediatos que se almejam mas inclui também conscientemente o conteúdo de experiência que traz para o embasamento elaboração e desenvolvimento da teoria Reproduzemse assim na obra políticosocial de Marx e no que se refere aos fatos humanos e à realidade históricosocial circunstâncias que se podem comparar e emparelhar às verificadas na experimentação física A saber a intervenção deliberada e planejada do observador e elaborador do conhecimento no desenrolar dos fatos considerados a fim de os dispor ou disporse em relação a eles da maneira mais favorável à observação e exame Marx tanto como o físico experimentador e como ele orientado por seus conhecimentos anteriores age sobre os fatos ele Marx como político e homem de ação que é procurando dispôlos em perspectiva conveniente e atuar sobre eles reajustando com isso suas observações ampliando o conhecimento dos mesmos fatos e aprimorando sua ação de político Comportase com isso como experimentador unindo a teoria à prática e a prática à teoria e iluminandoas ambas e reciprocamente cada qual pela outra E leva com isso para o terreno dos fatos sociais procedimentos metodológicos que se assimilam àqueles empregados na elaboração moderna das ciências físicas que já tinham dado e continuavam dando comprovação de seu alcance Logra assim assentar as bases para a elaboração científica do conhecimento do homem Ao mesmo tempo abremse com isso as perspectivas para a proposição do problema filosófico a começar pela liminar que é a determinação precisa do objeto da filosofia Situado o homem na sua história no evoluir de sua existência nela simultaneamente autor e ator agente e paciente tornase possível situálo no conjunto do Universo Também aí autor e ator Determinado por esse Universo e totalidade de que participa mas também determinante Isto é atuando sobre ele modificandoo e o transformando à feição de suas necessidades e aspirações dele homem Parte integrante da natureza e suas feições ele próprio com sua especificidade racional constituindo uma dessas feições e determinado embora por aquele conjunto de que é parte o homem não é a ocorrência passiva que se submete e docilmente adapta às contingências em meio às quais se encontra e que o afetam e assim determinam como se dá com a generalidade das feições e circunstâncias que com ele compõem a natureza Ou antes deixa progressivamente no desenrolar de sua evolução de ser aquela ocorrência passiva E deixa de sêlo na medida pm que graças a suas peculiaridades anatomofisiológicas e consequentemente psíquicas a saber o grande desenvolvimento adquirido por seu sistema nervoso superior ele homem se racionaliza isto é logra transformar as experiências que colhe no curso de suas atividades e prática no contato com o meio natural em que vive e também e sobretudo o humano das relações sociais logra transformar tal experiência em conhecimento consciente que vai acumulando e acrescendo para si próprio e seus semelhantes e que se transmite de geração em geração E conhecimento esse que deliberadamente se faz e sistematiza em normas de ação e condução daquela prática Nisso precisamente consiste a especificidade e singularidade do homem a sua potencialidade racional que da indistinção e confusão originárias no seio do Universo o faz emergir e progressivamente destacar como ser racional em que se torna não somente conhecedor mas sobretudo plenamente consciente de seu conhecimento o que lhe permite utilizálo intencionalmente e não apenas como simples reflexo nervoso e isso em nível e extensão cada vez mais elevados e amplos E na mesma medida e progressão o faz imprimir sua marca na natureza inclusive a humana sua última conquista em plena eclosão nos dias de hoje em moldes científicos modernos transformando a e se fazendo com isso senhor dela e de seu destino próprio Senhor e possuidor do Universo na predição de Descartes É nesse devenir racional que consiste a dialética do homem e de sua história E é na consideração dessa dialética que se esclarece o problema filosófico Nela se configura o verdadeiro homem o seu ser real e integral que não é o homem situado com uma razão absoluta à parte do Universo que como de fora e sobranceiro ele contempla interpreta e assim domina à feição do racionalismo clássico Não é tampouco o homem confundido no conjunto da natureza e com ela nivelado dominado por contingências a que passivamente se submete sem mesmo a consciência disso arrastado por rígido determinismo geral e igual para todas as coisas Do que se trata é do homem simultaneamente nessas duas situações ou antes passando permanentemente de uma para outra tornandose uma e outra em eterno devenir Ao mesmo tempo parte e parcela do todo universal mas também nele progressivamente se discriminando e destacando fazendose pelo pensamento e conhecimento no ser racional que consciente e intencionalmente modifica e transforma com a sua ação e para seus fins o meio físico e o humano das relações sociais de que participa e consequentemente se transformando também ele próprio com as transformações que determina e que passam a determinálo Esse o tema central da filosofia a saber o desenvolvimento dessa dialética do ser humano que a partir de sua indiferenciação no seio da natureza em que se emparelha com as demais feições e ocorrências com as quais nela coabita como simples parcela envolvida no conjunto universal em pé de igualdade e nele arrastado passivamente na mesma determinação geral que é do todo e transcende as suas partes a partir daí vai o ser humano progressivamente e de forma cada vez mais acentuada e generalizada fazendose ele próprio em si e por si poderoso fator determinante e consciente dessa sua determinação do todo universal de que participa Fator determinante em particular naquele setor que mais proximamente o atinge e envolve e que vem a ser o da convivência humana das relações sociais Setor esse em que ensaia apenas em nossos dias seus primeiros ainda tímidos hesitantes e incertos passos É essa dialética que cabe essencialmente à filosofia considerar e compreender pois é dessa compreensão que resultará o coroamento da tarefa de verdadeiro conhecimento integral do ser humano em suas possibilidades e limitações E terseá o que afinal mais importa para a projeção futura do processo dialético em que o homem se acha engajado Essa matéria não é nem pode ser objeto do conhecimento ordinário da ciência propriamente uma vez que esta tem por objetivo específico a simples representação mental da realidade o como essa realidade com suas feições e ocorrências se há de representar no pensamento e se tornar com isso conhecida pelo indivíduo pensante Isso inclusive no que respeita o terreno do conhecimento do homem Esse o objetivo do conhecimento ordinário do conhecimento em seu primeiro nível e não a participação daquela própria representação mental ou conhecimento elaborado em seu conjunto e generalidade na conformação do homem e determinação de sua dialética nas circunstâncias acima consideradas Isto é o entrosamento e relacionamento dialético do conhecimento e do comportamento do homem situado no todo universal de que participa Essa é matéria que vai além daquela que cabe à ciência propriamente Nem é acessível simplesmente aos procedimentos ordinários da elaboração científica Pertence assim necessariamente à outra ordem de conhecimentos que a respeitar nomenclatura consagrada não pode ser senão aquilo que se tem entendido por filosofia sob cuja designação se reúne de ordinário embora de maneira no geral informe e dispersa particularizada e confusa boa parte das questões que precisamente direta ou indiretamente dizem respeito à matéria que estamos considerando Mas esse último ponto é de segunda importância Mais uma questão de nomenclatura O que importa é a delimitação com um mínimo de precisão e a sistematização naquilo que é aproveitável desse variegado material que se tem entendido por filosofia e que de fato corresponde nos seus traços gerais embora no mais das vezes vagamente apenas com a fundamental dialética humana Uma tal sistematização se fará assim penso sobre a base e em torno da consideração metódica do processo em que se centraliza a atividade racional do homem e que vem a ser o fato do conhecimento como circunstância específica da dialética humana É no conhecimento e por ele que se gera a potencialidade humana como motor da dialética do homem O objeto da filosofia seria assim o fato do conhecimento considerado em toda sua amplitude a partir do processo da elaboração cognitiva que é propriamente o pensamento e a comunicação dessa atividade pensante Em especial pela sua expressão verbal a linguagem discursiva que torna o pensamento plenamente consciente e o faz amplamente comunicável e registrável e pois socializa o processo de elaboração cognitiva e concede permanência ao conhecimento elaborado E temos aí o que ordinariamente se entende por teoria do conhecimento Daí a consideração e exame do fato do conhecimento se estenderia para a função dele seu objetivo e papel que desempenha na existência humana e que vem a ser a sua utilização ou seja a determinação e orientação da ação Determinação e orientação essas que se realizam pela mediação do conhecimento reduzido a diretivas da ação normas de comportamento hábitos costumes normas de civilidade princípios éticos instituições jurídicas técnicas O conjunto enfim de diretivas que regulam a ação e conduta humanas Ação e comportamento que relacionam o homem com o meio que o envolve e com isso o situam no Universo de que participa Esse exame do conhecimento do fato cognitivo em sua generalidade se reduz como se vê à consideração sistemática do essencial dos sucessivos fatos ou momentos em que se compõe e desdobra a dialética humana da prática ao conhecimento e desse conhecimento de retorno à prática O que representaria esquematicamente a linha de desenvolvimento teórico do que haveria de ser a filosofia 1 Philipp Franck Modern Science and its Philosophy Cambridge Harvard University Press 1950 p 214 2 Essa restrição do pensamento elaborador é necessária pois o pensamento em si abstração feita do ato da elaboração do conhecimento participa das ocorrências do Universo como as demais E será objeto legítimo da ciência da psicologia em particular 3 Lembramos aqui novamente a observação já feita em nota anterior que o pensamento em si pode ser e é de fato objeto da ciência da psicologia em particular Mas nesse caso ele será considerado em abstrato e fora do ato pensante efetivo isto é na perspectiva de uma feição ocorrência do Universo tal como o restante da objetividade de que se ocupa a atividade cognitiva 4 Particularmente ilustrativo dos termos confusos em que se situa o debate acerca de matéria é a longamente disputada distinção entre os próprios escolásticos que Tomás de Aquino faz entre matériaprima que tem mais ares de puro conceito e matéria signata que é matéria com extensão e que portanto já lembra mais algo de material no sentido vulgar e mais corrente da palavra 5 Engels M E Duhring bouleverse la science anti Duhring trad francesa Paris 1931 I 139 6 Na acepção aqui adotada reservase a designação de conceito ou conceituação à representação mental das ocorrências ou circunstâncias em geral do Universo Aquilo em suma que ordinariamente se entende por ideia A linguagem discursiva tal como outras verbais gráficas e demais como em particular 7 Dialética do conhecimento 5ª ed 1969 I 177 8 Mais tarde mas sempre na mesma linha de pensamento Platão usará como fundamento básico de sua doutrina das ideias sobre o que voltaremos adiante o argumento referido por Aristóteles que procura refutálo Se há ciência e conhecimento de alguma coisa devem existir algumas outras naturezas além das naturezas sensíveis realidades estáveis pois não há ciência do que está em permanente fluxo Aristóteles Metafísica trad francesa de J Tricot 1733 9 Heidegger chega a considerar o problema do SER o centro da filosofia e entende que se a palavra SER não existisse não existiria o homem como tal 10 The Dialogues of Plato translated into english by B Jowett M A Introdução X Weber dirá Para Platão o mundo sensível todo inteiro não é senão um símbolo uma figura uma alegoria É a coisa significada a ideia expressa pelas coisas que somente interessa ao filósofo Alfred Weber Histoire de la philosophie europeéne Paris 1925 p 62 11 Estamos naturalmente esquematizando para fins de simples exposição sumária o pensamento de Platão na realidade mais complexo Vejase a respeito em particular a parte final do Livro IV de República 12 Alfred Weber op cit 77 Como bem demonstrou Zeller as categorias aristotélicas têm um caráter metafísico e ontológico tanto quanto lógico são formas do atributo predicados do ser e não como em Kant formas subjetivas do pensamento Cito J Tricot La métaphysique I 270 n 2 13 Aristóteles La métaphisique trad cit M 5 II 14 Id A 2 I 15 15 J Tricot L météorologiques Introdução VIII Paris 1941 16 Notese que Aristóteles também lançava mão desses modelos sensíveis como entre outros os quatro elementos do mundo sublunar engendrados pelos princípios o quente o frio o úmido o seco Os geração e Corrupção II 2 e 3 ou as exalações destinadas a dar conta dos fenômenos os mais estranhos uns a outros Mas aí o pensamento central já é outro como observa Tricot tratase de reduzir essa variedade a uma unidade fundamental da razão LBS météorologiques Intr VIII 17 Já tem sido observada a coincidência das estruturas e categorias lógicas e gramaticais Abordam o assunto dois trabalhos incluídos no nº de 1958 de Les études philosophiques Paris Pensée et grammaire de Jean Fourquet e Catégories de pensée et catégories de langue de Émile Benveniste Não se procurou todavia ainda que eu saiba concluir daí o que me parece evidente e se confirma historicamente como aliás já foi notado acima que a lógica formal clássica se elaborou na base da linguagem discursiva Nada tem a ver com leis do pensamento ou estruturas a priori préformadas não se sabe onde 18 Metafísica IX 7 19 E Zeller Outlines of the History of Greek Philosophy trad ingl de L R Palmer London 173 20 Leibniz dirá do espaço e tempo que são ambos uma ordem geral das coisas O espaço é a ordem das coexistências e o tempo a ordem das existências sucessivas São coisas verdadeiras mas ideias como os números Opera ed Dutens III 445 21 Não é aqui o lugar próprio para desenvolver a teoria dessa excrescência da metafísica que é a indução aristotélica cuja verdadeira natureza sempre se discutiu e discute ainda sem maior esclarecimento do assunto O certo contudo é que com a indução aristotélica não consideramos sua variante da indução completa que é puro truísmo verbal e nada tem de significativo não se trata propriamente de elaborar construir o conceito e representação mental das feições da realidade que é no que efetivamente consiste o conhecimento E tratase sim de atinar com a essência das coisas que vem a ser o conceito que preexiste à operação de conhecer e que se trata de desvendar 22 Dialética do conhecimento 5ª Ed São Paulo 1969 11 361 23 Há um beneficio contudo que talvez tenha sobrado dessa desenfreada especulação a que levou a metafísica São muitas gerações sucessivas que se terão exercitado na condução disciplinada das operações racionais a que levou aquela especulação o que possivelmente teria contribuído apesar de sua esterilidade em matéria de elaboração do conhecimento como ginástica mental adestradora do pensamento e educadora dele nos hábitos de rigor e precisão em que a cultura ocidental tão marcadamente se destaca O que teria possivelmente preparado o terreno para o surto da ciência moderna em que o pioneirismo dessa cultura é manifesto 24 É preciso atenção para essa restrição pensamento elaborador pois o próprio pensamento ou antes a atividade pensante pode constituir e eventualmente constitui de fato objeto do conhecimento como feição da realidade que também é Assim na psicologia que numa certa perspectiva se ocupa do pensamento como objeto Do que se trata no texto é do pensamento como integrante do sujeito do conhecimento em confronto com o objeto do mesmo conhecimento 25 Discursos do método Sexta Parte 26 Na filosofia moderna a partir de Descartes há uma inversão da pergunta clássica Que são as coisas para convertêla na pergunta Que é o conhecimento das coisas e como se pode alcançálo José Ferrater Mora Diccionario de filosofia Buenos Aires 1958 p 647 Só que o autor como em geral os historiadores da Filosofia não se dá muito ao trabalho de pesquisar a fundo e interpretar essa inversão no conjunto do processo evolutivo do pensamento filosófico ligando o anterior ao posterior da inversão Com algumas exceções bem entendido mas raras A história da filosofia se apresenta em geral como o desfilar num mesmo plano das opiniões de sucessivos filósofos e suas escolas 27 Não posso deixar aqui de chamar a atenção para Descartes certamente a grande figura daqueles séculos Ninguém como ele terá exibido melhor o modelo ilustrativo dessa confusão discursiva característica da época E para sentilo bem nada melhor que a comparação entre outros textos cartesianos da clareza rigor e precisão das Regras para a condução do espírito e a divagação o convencionalismo e o repetido ajustamento formal do texto para tais objetivos presentes na linha dominante do consagrado Discurso do método 28 Notese bem que estamos aqui nos referindo ao chamado materialismo vulgar que Marx e Engels viriam mais tarde reformular no materialismo dialético 29 Como vimos pelo nosso esquema os conceitos ou ideias se apresentariam aos materialistas como que presentes nas coisas etc do Universo uma vez que não há no caso senão percebêlas pelos sentidos e registrálas sob forma de ideias O que se assemelha mais a uma simples descoberta e não elaboração como efetivamente se dá com os conceitos e será obra da dialética marxista 30 Procurei desenvolver essa questão em Notas introdutórias à lógica dialética 31 Karl Marx La Sainte Famille Oeuvres philosophiques trad J Molitor Paris 1927 11 151 32 F Engels La Contribution à la critique de léconomie politique de Karl Marx in ÉtuLdes philosophiques Paris Éditions Sociales 1951 p 84 Sobre o autor Caio Prado Júnior 19071990 nascido em São Paulo fez seus estudos secundários no Colégio São Luís bem como em Eastbourne Inglaterra Formado em 1928 pela Faculdade de Direito hoje incorporada à Universidade de São Paulo obteve nela em 1956 a livredocência com a sua tese Diretrizes para uma política econômica brasileira Deputado estadual em 1947 teve seu mandato cassado em consequência do cancelamento do registro do Partido Comunista do Brasil pelo qual se elegera Recebeu o título de Intelectual do Ano pela publicação do livro A revolução brasileira sendo agraciado com o prêmio Juca Pato Faleceu em 1990 Marília Bernardes Marques O QUE É CÉLULATRONCO editora brasiliense O que é célulatronco Marques Marília Bernardes 9788511350579 105 páginas Compre agora e leia Este livro é uma condição oportuna e indispensável ao enriquecimento de um dos temas contemporâneos mais desafiadores envolvendo a ciência o uso das células tronco embrionárias A autora aborda o tema com um enfoque abrangente e integrador descrevendo e analisando a forma histórica e social assumida até o presente pelo dilema que fervilha a cada dia nas páginas dos jornais do mundo todo Analisa uma a uma as justificações presentes nas numerosas visões em confronto prudentemente tentando manter a devida distância dos indisfarçáveis interesses em jogo Compre agora e leia Álvaro L M Valls O QUE É ÉTICA editora brasiliense O que é ética Valls Álvaro L M 9788511351200 61 páginas Compre agora e leia Não existe povo ou lugar que não tenha noções de bem e mal de certo e errado Da Grécia antiga aos nossos dias a ética é um conceito que sempre esteve presente em todas as sociedades Mas apesar disso as dúvidas são muitas Seria a ética apenas um princípio supremo que atravessa toda a história da humanidade E numa sociedade capitalista qual a relação entre ética e lucro Compre agora e leia Maria Amélia de Almeida Teles O QUE SÃO DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES editora brasiliense O que são direitos humanos das mulheres de Teles Maria Amélia Almeida 9788511350302 130 páginas Compre agora e leia Sempre houve preconceito contra a discussão das questõs específicas das mulheres Não se concebia que mulheres violentadas por seus maridoscompanheiros espancadas e assassinadas sob a alegação de defesa da honra tinham seus direitos humanos violados Considera se normal que mulheres tenham salários mais baixos que homens que mulheres sejam alvo das ações masculinas de assédio sexual de estupro e demais tipos de violência de gênero É como se os direitos do homem incluíssem os da mulher ou como se estes fossem secundários A exclusão da cidadania das mulheres está arraigada em nossa cultura É preciso tratar o tema recuperando os conceitos históricos e as lutas políticas já travadas para conquistar a igualdade Consolidar os direitos humanos das mulheres é prioridade para uma sociedade justa e digna Compre agora e leia Carlos Rodrigues Brandão O QUE É EDUCAÇÃO POPULAR editora brasiliense O que é educação popular Brandão Carlos Rodrigues 9788511350562 95 páginas Compre agora e leia Normalmente a educação é pensada em domínios restritos como a Universidade a alfabetização o Ensino Médio e a supervisão escolar Na maioria das vezes ela não é analisada em seu cotidiano a cultura A educação propriamente dita é um domínio de ideias e práticas regidas pelas diferenças entre as diversas realidades sociais Mais do que pensar em domínios restritos é necessário pensar no modo de ser da educação popular e nas várias formas e situações que ela possui hoje em dia a educação na comunidade primitiva no ensino público nas classes populares e na sociedade igualitária A educação pode ser tanto uma forma de opressão quanto uma forma de libertação Isto depende apenas de como ela é pensada e praticada Compre agora e leia coleção primeiros passos 62 Roberto Lyra Filho O QUE É DIREITO editora brasiliense O que é direito Filho Roberto Lyra 9788511010626 100 páginas Compre agora e leia Quais as relações entre Direito e Justiça Direito e ideologia Direito e conflito social Em linguagem clara e precisa o professor Roberto Lyra discute as várias dimensões do direito apresentandoo não como conjunto imutável de regras mas como atividade em permanente transformação A maior dificuldade numa apresentação do direito não será mostrar o que ele é mas dissolver as imagens falsas ou distorcidas que muita gente aceita como retrato fiel Compre agora e leia Resumo Indicativo O que é Filosofia Antiga de Pierre Hadot Pierre Hadot em sua obra O que é filosofia antiga fornece um exame abrangente da essência e da progressão da filosofia durante a antiguidade Ele afirma que ao contrário das percepções contemporâneas a filosofia antiga era principalmente um modo de vida Hadot postula que nas eras antigas a filosofia transcendeu a mera contemplação teórica abrangendo aplicações práticas da vida e empreendimentos espirituais destinados a transformar profundamente os indivíduos Sua afirmação fundamental é que a filosofia antiga deve ser interpretada como uma disciplina espiritual voltada para remodelar o estilo de vida dos filósofos Ele afirma que luminares da filosofia antiga como Sócrates Platão Aristóteles e os estóicos perceberam a filosofia como uma jornada para adquirir sabedoria virtude e contentamento por meio de práticas como meditação autorreflexão e discurso filosófico Hadot ressalta a inseparabilidade da filosofia da existência diária dos filósofos e de suas comunidades Ele postula que a filosofia antiga funcionava como um regime espiritual voltado para a metamorfose pessoal e o aprimoramento moral contrastandoa com a inclinação contemporânea da filosofia para a teorização abstrata divorciada das realidades práticas Hadot afirma que os filósofos antigos praticavam exercícios espirituais para preparar as pessoas para os desafios da vida e a mortalidade promovendo um estilo de vida alinhado com a ordem natural e a harmonia cósmica Um pilar essencial da argumentação de Hadot é seu escrutínio meticuloso das diversas escolas filosóficas da antiguidade e suas práticas de vida correspondentes Ele investiga como os estoicos por exemplo se engajaram em reflexões diárias sobre a mortalidade e a impermanência das coisas mundanas como um método de cultivar a equanimidade e a resiliência em face da adversidade Hadot disseca o método socrático de diálogo que buscava despertar a percepção da própria ignorância nos parceiros de conversação estimulandoos à busca da verdade Ele fornece uma visão geral abrangente dos diversos exercícios filosóficos enfatizando o papel fundamental das práticas espirituais nas antigas tradições filosóficas Hadot elucida como os filósofos adotaram práticas como atenção plena prosoche e preparação para a morte melete thanatou para fortalecer a alma e guiar os indivíduos em direção à tranquilidade interior Esses exercícios foram considerados indispensáveis para o progresso moral e espiritual dos filósofos Além disso Hadot ressalta a importância das comunidades filosóficas onde o ensino e a promulgação da filosofia ocorreram coletivamente promovendo fortes laços entre mentores e discípulos Ele afirma que na antiguidade a educação filosófica era profundamente comunitária com os discípulos ativamente engajados na vida e nos rituais da escola filosófica Hadot investiga a distinção entre filosofia antiga e moderna enfatizando que a filosofia antiga tinha uma orientação prática e transformadora ao contrário de sua contraparte moderna Ele postula que os antigos empreendimentos filosóficos se estendiam além de uma mera busca por conhecimento teórico concentrandose em uma disciplina voltada para a metamorfose da vida cotidiana Compreender essa faceta é crucial para compreender a importância da filosofia antiga na formação do caráter e na busca da virtude moral Por meio de sua análise de várias escolas filosóficas como estoicismo epicurismo e platonismo Hadot revela como cada escola criou práticas específicas para promover a virtude e a sabedoria entre seus adeptos Ele elucida como essas escolas adaptaram suas filosofias para atender às necessidades de seus seguidores oferecendo um caminho pragmático para a realização pessoal Além disso Hadot investiga o papel crítico e transformador da filosofia alegando que ela funcionou como uma ferramenta para o autoaperfeiçoamento e como um meio de desafiar as crenças estabelecidas Ele ressalta a importância dos diálogos filosóficos socráticos para questionar e refinar os próprios pensamentos e convicções Além disso Hadot explora a interseção da filosofia antiga com campos como medicina e política apresentando uma visão holística da vida que engloba o bemestar físico mental e espiritual Ele afirma que a filosofia forneceu uma base ética e racional para as esferas pública e privada contribuindo para o avanço de uma sociedade mais justa e equitativa O processo de reflexão filosófica foi visto como uma jornada contínua de crescimento pessoal envolvendo introspecção autoavaliação moral e o cultivo diário de comportamentos virtuosos Hadot enfatiza que para os antigos a filosofia serviu como uma preparação tanto para os desafios da vida quanto para a inevitabilidade da morte incutindo um senso de propósito e orientação ética Ele propõe que o envolvimento em exercícios filosóficos diários ajudou as pessoas a enfrentar as adversidades da vida com equanimidade e firmeza Hadot destaca que a filosofia antiga prescrevia uma série de práticas espirituais cruciais para o cultivo da virtude e da sabedoria Essas práticas incluíam exercícios como contemplar a mortalidade refletir sobre suas ações e praticar a atenção plena todos os quais foram fundamentais para promover a tranquilidade interior e o alinhamento com a ordem natural Ele afirma que esses exercícios desempenharam um papel fundamental na formação do caráter e na busca da excelência moral Concluindo Pierre Hadot nos convida a reavaliar a importância da filosofia antiga como um modo de vida enfatizando a natureza crucial de incorporar práticas espirituais e exercícios filosóficos em nossas rotinas diárias Ele afirma que ao adotar essa abordagem podemos descobrir camadas mais profundas de significado em nossa existência e enfrentar dilemas existenciais com maior tranquilidade e sagacidade Hadot afirma que ao longo da história o aspecto pragmático da filosofia gradualmente cedeu terreno a uma postura mais teórica e abstrata particularmente evidente desde a era da Idade Média e o surgimento da filosofia escolar No entanto ele afirma que ainda existe a possibilidade de salvar a filosofia como um canal para a metamorfose pessoal e espiritual implementando os princípios defendidos pelos antigos pensadores em nossas experiências pessoais Este trabalho acadêmico não apenas oferece um exame meticuloso da filosofia antiga a partir de uma perspectiva histórica mas também avança na contemplação de como podemos colocar essas doutrinas em prática em nossas próprias vidas revivendo assim a filosofia como um meio de evolução pessoal e espiritual Resumo Indicativo O que é Filosofia de Caio Prado Júnior Caio Prado Júnior em sua obra O que é filosofia conduz um exame minucioso da essência objetivos e metodologias da filosofia sublinhando sua diferenciação fundamental da ciência e da literatura Ele postula que a filosofia não deve ser mal interpretada como uma especulação aleatória ou mera contemplação literária em vez disso deve ser percebida como uma investigação profunda e meticulosa sobre os aspectos mais essenciais e universais da realidade Prado Júnior afirma que a filosofia é validada por seu assunto distintivo a compreensão do conhecimento Enquanto a ciência se preocupa com realidades empíricas e fatos observáveis a filosofia investiga as condições processos e limites do ato cognitivo Essa diferenciação é fundamental para compreender o propósito e o significado da filosofia que supera as metodologias científicas ao abordar questões que transcendem o reino das investigações empíricas A filosofia se esforça para compreender não apenas o que sabemos mas também como adquirimos conhecimento e o que limita nossa compreensão O discurso acadêmico de Prado Júnior investiga a progressão histórica da filosofia ilustrando como diversas escolas de pensamento e ambientes culturais influenciaram a disciplina ao longo da história Ele ressalta a necessidade de contextualizar a filosofia dentro de seu contexto histórico reconhecendo as inúmeras definições e abordagens que refletem uma herança intelectual vibrante e ocasionalmente conflitante A filosofia conforme elucidada por Prado Júnior não é um campo estático mas um empreendimento dinâmico que evolui e se ajusta às mudanças culturais e intelectuais Um ponto central levantado por Prado Júnior é o papel fundamental da filosofia na análise crítica Ele afirma que a filosofia assume uma função crucial ao examinar e contemplar os fundamentos e as repercussões do conhecimento estabelecido Ao desafiar suposições a filosofia promove uma compreensão mais profunda da realidade servindo como uma busca crítica e introspectiva Essa função crítica é a pedra angular do avanço intelectual e cultural promovendo um escrutínio meticuloso e a reavaliação contínua das noções e teorias predominantes Além de seu papel crítico a filosofia complementa a investigação científica ao abordar dilemas profundos e universais que a ciência limitada por seus limites metodológicos não pode resolver Prado Júnior defende a noção de que filosofia e ciência compartilham uma base comum para explorar a realidade mas divergem em seus objetivos e amplitude Enquanto a ciência se concentra em facetas específicas e delineadas da existência empírica a filosofia lida com questões mais amplas e abstratas oferecendo uma perspectiva holística das experiências e conhecimentos humanos Essa relação complementar enriquece a compreensão humana oferecendo uma síntese que mescla diversas formas de conhecimento Prado Júnior também investiga a essência do conhecimento filosófico propondo que ele se baseie na contemplação profunda e criteriosa dos processos cognitivos e suas implicações A filosofia se esforça para desvendar os mecanismos e requisitos que facilitam o conhecimento investigando as estruturas subjacentes e os limites da compreensão humana A especulação filosófica conforme discutida por Prado Júnior ocupa uma posição central no reino da filosofia Ele reconhece as várias abordagens que existem na filosofia mas afirma que todas elas estão unidas por um fio condutor a busca incansável de respostas para investigações profundas sobre existência realidade e conhecimento Essa forma de especulação é a pedra angular da filosofia diferenciando a de outros campos do conhecimento A filosofia se diferencia ao evitar soluções superficiais ou imediatas dedicandose à exploração completa e meticulosa das questões mais intrincadas e misteriosas que deixam a humanidade perplexa Prado Júnior ressalta a importância contemporânea da filosofia afirmando que em um mundo que está em um estado de fluxo perpétuo a filosofia fornece uma base crítica e contemplativa para compreender e enfrentar novos desafios A filosofia mantém sua relevância ao se envolver com questões persistentes que continuam a confundir a humanidade oferecendo uma perspectiva crítica e contemplativa sobre o conhecimento e a realidade Seu papel vai além da mera observação de mudanças culturais e intelectuais contribui ativamente para moldálas fornecendo instrumentos conceituais e metodológicos para examinar e interpretar realidades emergentes Em sua análise final Caio Prado Júnior afirma que a filosofia se destaca como uma disciplina indispensável e distinta cuja legitimidade se baseia na profundidade e amplitude dos tópicos em que se aprofunda Ao abordar questões fundamentais e universais que estão além do alcance da ciência devido às suas restrições metodológicas a filosofia complementa a investigação científica Consequentemente a filosofia fornece uma visão holística e abrangente da realidade enriquecendo nossa compreensão das experiências e conhecimentos humanos