·

Direito ·

Direito Constitucional

Send your question to AI and receive an answer instantly

Ask Question

Preview text

DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO Virgílio Afonso da Silva SÃO PAULO 2021 edusp PRÓREITORIA DE GRADUAÇÃO 10 PRIVACIDADE Talvez não haja outro direito que tenha passado por transformações tão profundas e tão rápidas em seu significado nas últimas décadas como o direito à privacidade Se há algumas décadas privacidade ainda significava o direito de ficar só atualmente as transformações nos costumes bem como os desenvolvimentos tecnológicos e nas comunicações que tanto provocam um esmaecimento das fronteiras entre o público e o privado quanto facilitam a coleta maciça de dados pessoais exigem uma nova abordagem e interpretação do escopo da proteção da privacidade O art 5º da Constituição possui três incisos diretamente ligados a aspectos do direito à privacidade O art 5º x o mais geral deles prevê que são invioláveis a intimidade a vida privada a honra e a imagem das pessoas assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação Já o art 5º xi regula um aspecto específico da vida privada que é a inviolabilidade do domicílio nos seguintes termos a casa é asilo inviolável do indivíduo ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador salvo em caso de flagrante delito ou desastre ou para prestar socorro ou durante o dia por determinação judicial O art 5º xii por fim protege a privacidade por meio de regras sobre o sigilo de quatro formas distintas de comunicação e prevê que é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas de dados e das comunicações telefônicas salvo no último caso por ordem judicial nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal 204 Direito Constitucional Brasileiro As próximas seções serão dedicadas à análise desses três incisos com a finalidade de definir e distinguir os diversos termos e conceitos envolvidos e com isso examinar os diversos âmbitos da privacidade que são protegidos por esses dispositivos 101 INTIMIDADE VIDA PRIVADA HONRA E IMAGEM Como mencionado o art 5º x emprega quatro conceitos distintos nem todos eles de fato diretamente ligados ao direito à privacidade como é o caso da proteção da honra A distinção entre intimidade e vida privada é aquela que costuma ocupar mais a literatura jurídica Não há exatamente consenso sobre os critérios para distinguir esses dois âmbitos da privacidade e em parte dos casos uma diferenciação não é nem mesmo imprescindível sobretudo porque a intimidade em qualquer de seus conceitos será sempre um aspecto da vida privada Em outras palavras não importa se na definição de intimidade a ênfase recaia sobre o domínio do próprio corpo a relação entre corpos a sexualidade a afetividade os segredos íntimos as comunicações pessoais a vida doméstica todas essas esferas estão contidas também no conceito de vida privada ao menos em uma definição ampla desse conceito É frequente em vista dessa pluralidade de sentidos fazer menção a um direito à privacidade o qual inclui tanto a proteção da intimidade quanto a da vida privada Além do que foi mencionado o direito à privacidade tem relação direta com a proteção de dados pessoais Esse aspecto é aquele cujas transformações e desafios têm sido cada vez maiores e complexos e será analisado adiante Antes porém é necessário analisar os dois outros termos empregados pelo art 5º x honra e imagem das pessoas Em uma primeira análise honra e imagem são direitos correlatos relacionados à ideia de reputação que é um conceito eminentemente social e se refere à forma como os indivíduos são vistos e percebidos por outros indivíduos em uma comunidade Na jurisprudência do STF por exemplo o direito à imagem é quase sempre empregado em conjunto com o direito à honra nunca como um direito autônomo Mas honra e imagem são termos que podem ser empregados de forma mais estrita e nesse caso as diferenças entre eles ficam claras A partir dessa conceituação mais estrita embora o direito à honra ainda mantenha estreita relação com reputação o direito à imagem adquire uma função independente O direito à imagem só está relacionado à reputação quando ambos os termos são empregados como sinônimos Nessa acepção a imagem de alguém é a sua imagem social que pode ser definida em termos semelhantes aos já empregados para definir reputação a forma como um indivíduo é visto e percebido em uma dada comunidade Mas há outra acepção do direito à imagem que apenas incidentalmente se relaciona com a reputação Tratase da proteção contra a reprodução da imagem de alguém por meios fotográficos ou reprográficos filmes ou vídeos dentre outros Aqui a proteção do direito à imagem não depende de aferição de danos à reputação do indivíduo Tratase de âmbitos distintos e nesse último caso a proteção relacionase ao controle que os indivíduos devem ter sobre sua própria imagem1 Em tempos nos quais os indivíduos não apenas possuem uma câmera fotográfica e de vídeo em suas mãos a todo instante mas também divulgam imediatamente aquilo que é registrado a proteção do direito à imagem na forma como concebida no passado tornase extremamente complexa Ainda assim o direito prima facie permanece inalterado a reprodução e o compartilhamento da imagem dependem da autorização de quem nela aparece2 Tratase contudo de direito que sofre constantes restrições Algumas delas sempre existiram como a reduzida proteção do direito à imagem de pessoas públicas jornais nunca precisaram da autorização do presidente da República para reproduzir sua imagem outras dessas restrições surgem com o desenvolvimento tecnológico Ainda assim esse desenvolvimento tecnológico não pode ser uma justificativa universal para a mitigação da proteção do direito à imagem Também o direito à honra embora necessariamente associado à reputação tem um aspecto que dela se afasta O aspecto do direito à honra intimamente ligado à reputação é aquilo que muitos denominam honra objetiva A este é muitas vezes acrescido outro aspecto denominado honra subjetiva que não teria relação com a reputação em uma comunidade mas com a apreciação que o indivíduo faz de si mesmo Embora a legislação ordinária não seja um critério para interpretar a Constituição a definição dos crimes contra a honra no Código Penal calúnia difamação e injúria arts 138 a 140 pode ser ilustrativa Ainda que possa haver divergências a respeito a calúnia imputar falsamente a alguém ato definido como crime e a difamação imputar a alguém fato ofensivo à sua reputação atingem a honra objetiva e no sentido apresentado acima a reputação de um indivíduo Já a injúria ofender a dignidade ou decoro de alguém atinge a honra subjetiva O peso dado a cada uma dessas dimensões da honra também varia A proteção da reputação honra objetiva é mais robusta do que a simples proteção contra ofensas honra subjetiva Em uma democracia na qual a liberdade de expressão desempenha papel central a tensão entre esta e a proteção da honra é constante e a diferença de pesos entre honra objetiva e honra subjetiva é elemento relevante na solução de conflitos Sentirse ofendido em decorrência de opinião desfavorável sobre sua pessoa ainda que por meio de termos pouco corteses não deve ser considerada razão suficiente para a aplicação de um tipo penal que restringe a liberdade de expressão caso contrário pode ocorrer um arrefecimento indevido da livre manifestação do pensamento Embora no Brasil o Poder Judiciário esteja habituado a punir criminalmente indivíduos por injúria sem grandes reflexões sobre o valor da liberdade de expressão é possível afirmar que na maioria dos casos essa aplicação é incompatível com a Constituição 102 PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS Até agosto de 2018 o Brasil não tinha uma lei dedicada especificamente à proteção de dados pessoais Até então esta era fragmentada e disciplinada em leis cujo objetivo principal era outro3 Ainda que pudesse ser adequada para dar conta de algumas situações essa proteção fragmentada era claramente insuficiente para lidar com os principais desafios contemporâneos que a coleta maciça de dados cria Nem mesmo o Marco Civil da Internet lei 129652014 previa mecanismos efetivos para a proteção de dados pessoais ainda que tivesse dispositivos relacionados com a proteção da privacidade A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais lei 137092018 foi em grande medida inspirada pela Regulação Geral de Proteção de Dados da União Europeia Ela entrou em vigor em agosto de 2020 e por isso ainda é cedo para avaliar sua efetividade4 Ainda assim é possível afirmar que a promulgação da lei e a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados e do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade foram um passo fundamental para o robustecimento da proteção da privacidade no Brasil As ameaças que a coleta maciça e o compartilhamento e a comercialização de dados pessoais implicam para a proteção da privacidade foram por muito tempo subestimados pela literatura constitucional brasileira Para muitos parecia tratarse de problema menor Como será visto adiante quando o habeas data for analisado5 a literatura constitucional por muito tempo entendeu que a coleta e o armazenamento de dados e mesmo o compartilhamento de muitos deles não seriam em si um problema O problema surgiria apenas quando os dados estivessem incorretos caso em que os indivíduos poderiam requisitar sua correção mas não sua eliminação Esse entendimento parece decorrer da visão tão popular quanto equivocada de que o indivíduo exemplar é aquele que não tem nada a esconder O fato é contudo que todas as pessoas têm muito a esconder Ter segredos é parte da natureza humana Por isso a contraposição entre informação correta ou verídica e incorreta ou inverídica não é relevante neste âmbito Ou seja compartilhar informações pessoais de alguém não deixa de ser uma restrição ao direito de privacidade apenas porque essas informações são verídicas ou corretas6 A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais LGPD marca um necessário ponto de inflexão neste âmbito que não pode ser ignorado pelos constitucionalistas Não apenas a proteção da privacidade mas sobretudo a noção de autodeterminação informativa LGPD art 2º II7 que daquela decorre passam a ocupar um papel de destaque como dois direitos que devem servir de obstáculo à coleta ao compartilhamento e à comercialização desenfreada de dados pessoais A LGPD emprega um conceito amplo de tratamento de dados pessoais que inclui toda operação realizada com dados pessoais como as que se referem à coleta produção recepção classificação utilização acesso reprodução transmissão distribuição processamento arquivamento armazenamento eliminação avaliação ou controle da informação modificação comunicação transferência difusão ou extração LGPD art 5º X e a regra geral é a de que quaisquer dessas operações só poderá ocorrer com o consentimento do titular do dado LGPD art 7º I8 Para o tratamento de dados pessoais sensíveis que são aqueles sobre origem racial ou étnica convicção religiosa opinião política filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso filosófico ou político dado referente à saúde ou à vida sexual dado genético ou biométrico quando vinculado a uma pessoa natural LGPD art 5º II a dependência do consentimento do titular é ainda mais forte e os casos excepcionais por conseguinte ainda mais limitados A menção específica aos dados sensíveis e a previsão de regras ainda mais restritas para o seu tratamento mostram que a proteção de dados pessoais não tem relação apenas com o direito à privacidade embora essa seja a relação mais visível Também a igualdade pode ser intensamente afetada pela coleta utilização reprodução e difusão de dados sensíveis Mesmo quando anonimizado esses dados podem também gerar violações de direitos fundamentais e nesse âmbito a proteção da igualdade é também o direito mais relevante Dados anonimizados têm sido usados como instrumento de discriminação ainda que às vezes involuntária contra grupos de pessoas com base em raça gênero classe social local de residência e outros9 Combater essa e outras ameaças do processamento e compartilhamento maciço de dados é uma tarefa constitucional relevante Não apenas pessoas mas também algoritmos têm sido agentes de discriminação 208 Direito Constitucional Brasileiro O desenvolvimento tecnológico ainda tem provocado profundas mudanças na forma de agir dos poderes públicos Não são apenas grandes corporações que podem ameaçar a privacidade e a igualdade mas também agentes estatais A LGPD tem um capítulo inteiro destinado ao tratamento de dados pessoais pelo poder público Até então da mesma forma que ocorria com o setor privado o poder público nunca esteve sujeito a uma disciplina clara sobre o tratamento de dados pessoais Ao contrário sempre predominou o entendimento segundo o qual o Estado sempre age no interesse público e direitos individuais como a proteção de dados pessoais deveriam ceder frente a esse interesse Essa é uma interpretação equivocada da relação entre interesse público e direitos individuais e a LGPD ainda que timidamente procura deixar isso claro Um exemplo simples de como informações pessoais têm sido tratadas pelos poderes públicos é a identificação biométrica O TSE tem feito aquilo que chama de cadastramento biométrico dos eleitores que envolve a coleta de mais informações do que aquelas antes coletadas para a identificação civil e para a própria identificação eleitoral A base de dados biométricos criada pelo TSE será uma das fontes da futura Identificação Civil Nacional ICN criada pela lei 134442017 Mais do que isso a resolução 234402015 do TSE permite a celebração de acordos de cooperação entre a Justiça Eleitoral e entidades públicas ou privadas visando à ampliação transferência eou aproveitamento de dados biométricos art 17 Contudo nem a lei 134442017 nem a resolução 234402015 do TSE têm qualquer dispositivo sobre proteção de dados A falta de regras sobre tratamento de dados na legislação sobre identificação civil e eleitoral já era suficiente para considerála em boa medida inconstitucional A promulgação da LGPD certamente deixou ainda mais clara a invalidade de vários dos dispositivos da lei 134442017 e da resolução 234402015 10 10 Esse é apenas um dos muitos exemplos problemáticos de compartilhamento de dados pessoais entre órgãos públicos ou mesmo entre órgãos públicos e entidades privadas Embora o STF ainda não tenha jurisprudência firmada sobre a questão não há dúvidas de que no futuro o tribunal será provocado com frequência a decidir casos a respeito Um dos primeiros exemplos é a ADPF 695 pendente ajuizada em junho de 2020 que questiona o compartilhamento de dados da Carteira Nacional de Habilitação entre Serviço Federal de Processamento de Dados Serpro e a Agência Brasileira de Inteligência Abin Embora o termo de autorização que permitia esse compartilhamento tenha sido revogado logo após o ajuizamento da ação o STF decidiu que não houve perda de objeto e ainda decidirá sobre a interpretação de dispositivos do decreto 100462019 que supostamente embasava o compartilhamento Privacidade 209 limites importantes ao poder de investigar são constantes as tentativas de minar sua efetividade Neste tópico será analisada a inviolabilidade do domicílio O sigilo das comunicações será analisado no tópico seguinte A inviolabilidade do domicílio prevista pelo art 5 XI é um direito com contornos bem definidos a casa é asilo inviolável do indivíduo ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador salvo em caso de flagrante delito ou desastre ou para prestar socorro ou durante o dia por determinação judicial 11 O conceito de casa tem sido interpretado sem grandes polêmicas de forma ampla e inclui toda e qualquer moradia seja própria ou não seja uma casa ou apenas um quarto em habitação coletiva A jurisprudência e a literatura incluem também quartos de hotel nesse conceito e de fato não haveria por que não o fazer 12 Tampouco faz sentido distinguir em um terreno privado as partes construídas das partes não construídas As exceções à inviolabilidade do domicílio estão previstas de forma clara pelo próprio art 5 XI Os termos chave neste ponto são flagrante delito desastre prestação de socorro dia e determinação judicial Não parece haver controvérsia sobre a definição dos termos desastre prestação de socorro e determinação judicial Em seguida serão analisadas algumas controvérsias sobre o conceito de flagrante delito e sobre a definição da expressão durante o dia Flagrante delito é um conceito sobre o qual há pouca dúvida Ainda assim ele tem sido muitas vezes utilizado pelas autoridades policiais com o apoio do Ministério Público de forma injustificada para que a invasão de domicílios sem determinação judicial seja aceita Isso tem ocorrido especialmente nos casos de crimes permanentes isto é aqueles crimes cuja consumação se protrai no tempo para os quais se atribui um estado de flagrância permanente o que desconfigura a proteção do art 5 XI Até mesmo o Supremo Tribunal Federal tem aceitado essa interpretação Com isso nos casos de crimes permanentes o tribunal deu carta branca para que as autoridades policiais entrem na casa das pessoas até mesmo à noite 13 Esse é um desvirtuamento do conceito de flagrante para os fins do art 5 XI Esse artigo estabelece a regra da inviolabilidade e permite a entrada excepcional sem determinação judicial apenas quando não há outra forma de conter danos maiores Se há tempo para a obtenção de ordem judicial e essa costuma ser a situação nos casos de crimes permanentes a entrada somente é permitida com essa ordem A expressão durante o dia pode ter duas interpretações Ou se trata de um conceito fluido ligado à luminosidade da aurora ao crepúsculo como muitos dizem ou um conceito exato marcado por horários de início e de término Em se tratando de uma restrição a um direito fundamental parece haver apenas razões para escolher o critério exato horário porque ele confere segurança ao titular do 11 Ver também art 150 do Código Penal 12 Ver RHC 90376 2007 13 Ver RE 603616 2015 210 Direito Constitucional Brasileiro direito Mas isso não significa que desde que uma hora específica seja estipulada qualquer horário é aceitável como critério É preciso que o critério seja compatível com a expressão durante o dia Por isso o horário definido pelo art 212 do Código de Processo Civil para os atos processuais das 6 às 20 horas não é adequado porque 20 horas claramente não é mais durante o dia A regra mais aceita é aquela que define durante o dia como o período das 6 às 18 horas Nos últimos anos as autoridades policiais o Ministério Público e também parte do Judiciário têm recorrido àquilo que se tem chamado de medidas de busca e apreensão coletivas ou genéricas para burlar a inviolabilidade do domicílio Embora o art 243 do Código de Processo Penal preveja que os mandados de busca dentre outros requisitos deverão indicar o mais precisamente possível a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador as autoridades policiais têm requerido e o Judiciário tem deferido mandados de busca genéricos que abarcam bairros inteiros A inviolabilidade do domicílio fica claramente comprometida e pessoas passam a ser consideradas suspeitas simplesmente por morar em determinada área Atualmente há um habeas corpus preventivo pendente de decisão no STF cujo pedido é a proibição dessa prática 14 104 SIGILO DE COMUNICAÇÃO O art 5 XII garante o sigilo de diversas formas de comunicação Como não poderia deixar de ser o texto constitucional reflete o estágio tecnológico das comunicações no momento de sua promulgação em 1988 Assim o desenvolvimento tecnológico posterior de um lado tornou obsoleta a proteção a algumas formas de comunicação e de outro criou novos desafios interpretativos para a proteção de formas de comunicação que ou não existiam em 1988 ou não eram difundidas o suficiente para chamar a atenção da Assembleia Constituinte O art 5 XII estabelece que é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas de dados e das comunicações telefônicas salvo no último caso por ordem judicial nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal Percebese portanto que de um lado a proteção às comunicações telegráficas tornouse obsoleta enquanto as comunicações eletrônicas como aquelas feitas por email ou aplicativos de mensagem em computadores ou telefones 15 não têm proteção constitucional explícita 14 Ver HC 154118 pendente A opinião da ProcuradoriaGeral da República nesse habeas corpus é ilustrativa não apenas da hipertrofia da proteção da segurança em detrimento de outros direitos fundamentais mas também da total incompreensão do que significa sopesar direitos quando afirma que o direito de poucos cede diante da necessidade de todos 15 Como mencionado adiante algumas dessas formas de comunicação surgiram depois de 1988 especialmente os aplicativos de mensagens em telefones celulares Outras no entanto como é o caso do email já existiam desde muito antes da promulgação da Constituição mas como estavam restritas a um grupo específico de Desde 1988 e independentemente dos avanços tecnológicos duas controvérsias sobre o texto do art 5º xii concentraram a atenção da literatura constitucional A primeira diz respeito à menção a dados A segunda à correta interpretação da expressão no último caso Ambas serão analisadas nos próximos tópicos 1041 Objeto da Proteção O Sigilo das Comunicações Muito se discutiu se o que o art 5º xii protege é o sigilo de dados ou o sigilo das comunicações de dados Tratase de uma questão de interpretação do texto na forma como foi redigido isto é se o termo comunicações que vem antes de telegráficas também abrange o que vem depois ou seja de dados ou se de dados está ligado apenas ao início do inciso ou seja à proteção do sigilo Em suma discutese se a leitura deve ser é inviolável o sigilo de dados ou é inviolável o sigilo das comunicações de dados Há um importante argumento linguístico para fundamentar a primeira interpretação segundo o qual não faria sentido o texto constitucional mencionar explicitamente o termo comunicações em comunicações telegráficas e comunicações telefônicas e não o fazer em relação a dados segundo esse argumento a omissão do termo comunicações deve ser compreendida como uma opção pelo sigilo de dados não pelo sigilo da comunicação de dados Nesse sentido a Constituição teria que ter ou repetido o termo comunicações três vezes antes de telegráficas de de dados e telefônicas ou apenas na primeira vez ou seja sigilo das comunicações telegráficas de dados e telefônicas A omissão específica em relação ao adjunto de dados teria sido uma opção Essa interpretação oferece uma proteção mais restrita aos dados que estariam protegidos em um banco de dados mas desprotegidos quando comunicados Há argumentos mais robustos para rejeitar esses argumentos e justificar a interpretação segundo a qual o que se protege é o sigilo das comunicações de dados O primeiro deles não é textual mas sistemático ainda que limitado apenas ao art 5º xii O inciso xii tem um campo temático muito claro ele protege diversas formas de comunicação Faz pouco sentido sugerir que um inciso que tem como objetivo proteger a comunicação incluiria um objeto de proteção dados justamente para negar a proteção à comunicação desse objeto Segundo essa interpretação a proteção de dados é feita pelo art 5º x que se refere à intimidade e à vida privada enquanto a comunicação de dados é protegida pelo inciso que protege as formas de comunicação isto é o art 5º xii Além desse argumento sistemático há também um argumento linguístico que justifica a não repetição do termo comunicações antes de de dados Um bom estilo de texto usaria o substantivo comunicações apenas uma vez e ficaria claro que todos os adjuntos que o seguissem telegráficas de dados e telefônicas estariam a ele relacionados A usuários nos casos dos emails sobretudo à comunidade acadêmica não mereceram a atenção da Assembleia Constituinte repetição do substantivo comunicações antes de telefônicas não foi uma opção para excluir de dados mas para criar um núcleo independente para o que vem logo em seguida no mesmo inciso ou seja a possibilidade de interceptação das comunicações Isso conduz à segunda dúvida interpretativa relacionada ao significado da expressão no último caso Para facilitar a análise dessa segunda dúvida interpretativa reproduzo o texto do art 5º xii mais uma vez é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas de dados e das comunicações telefônicas salvo no último caso por ordem judicial nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal A expressão no último caso pode fazer referência apenas a comunicações telefônicas porque essa é a última forma de comunicação prevista no inciso mas há quem argumente que no último caso se refere às comunicações telegráficas de dados e telefônicas não incluindo portanto apenas sigilo da correspondência Em outras palavras correspondências não poderiam ser interceptadas mas as comunicações telegráficas de dados e telefônicas sim Essa última interpretação ignora os argumentos linguísticos expostos anteriormente que mostram que a repetição do termo comunicações antes de telefônicas só faz sentido se se percebe que se quis isolar um objeto específico comunicações telefônicas para tratálo de forma distinta dos demais Além disso em uma enumeração contendo quatro itens não faz sentido concluir que a expressão último caso se refere aos três últimos deixando de fora apenas o primeiro Um último argumento recorrente para justificar a interpretação segundo a qual no último caso referese apenas a comunicações telefônicas envolve considerações sobre as razões por que autorizar interceptação de apenas um tipo de comunicação O que se afirma é que a única forma de ter acesso ao que foi transmitido por meio de comunicação telefônica é por meio da interceptação isto é da captação da comunicação no momento em que ela ocorre porque depois desse momento não há mais como se saber o que foi comunicado enquanto o acesso ao que foi transmitido por meio das outras formas de comunicação correspondência telégrafo dados pode ocorrer de outras formas16 Embora a interpretação segundo a qual a expressão no último caso diz respeito apenas a comunicações telefônicas seja a correta daí não decorre necessariamente que outras formas de comunicação nunca poderão ser interceptadas Significa apenas que a autorização para interceptações telefônicas ocorre no nível constitucional e não pode ser negada pela legislação ordinária Essa distinção será analisada no tópico a seguir 16 Com isso não se quer dizer que o acesso ao que foi transmitido por meio das outras formas de comunicação correspondência telégrafo dados será sempre possível por outros meios que não a interceptação Alguém pode por exemplo queimar uma carta logo após sua leitura Alguns aplicativos de troca de mensagens oferecem função semelhante isto é apagar a mensagem após a sua leitura ou após um certo tempo alguns segundos dias semanas por exemplo 1042 Interceptação das Comunicações A parte final do art 5º xii permite a interceptação e a gravação de comunicações telefônicas nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal Essa exceção ao sigilo de comunicações é disciplinada pela lei 92961996 que define procedimentos prazos e alcance das interceptações Como já foi mencionado no fim do tópico anterior uma das principais controvérsias nesse âmbito diz respeito a quais formas de comunicação podem ser interceptadas O art 5º xii reconhece expressamente apenas a interceptação de conversas telefônicas No entanto a lei 92961996 ampliou esse escopo ao prever que as regras contidas na lei aplicamse também à interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática17 Com base nessa norma têm sido interceptadas comunicações digitais das mais variadas como emails SMS e outros tipos de mensagens transportadas por aplicativos específicos especialmente em telefones celulares A constitucionalidade dessa ampliação do poder de interceptar outras formas de comunicação depende da compreensão de algo mais amplo que é o papel da referência à lei ordinária como possível instrumento restritivo de direitos fundamentais Muitos entendem que a lei ordinária somente pode restringir direitos fundamentais quando a própria Constituição assim expressamente prevê É o que acontece com o art 5º xii mas apenas em relação à interceptação das comunicações telefônicas como foi visto no tópico anterior Segundo essa interpretação se a Constituição não autoriza expressamente a lei ordinária a restringir direitos fundamentais a lei não poderá fazêlo Já ficou claro anteriormente que essa interpretação conduz a resultados insustentáveis18 A maioria dos incisos do art 5º não faz menção a legislação restritiva e diante disso seria necessário interpretar todos os direitos garantidos sem referência à lei como absolutos Para demonstrar como essa interpretação é insustentável basta fazer referência ao confronto entre outro inciso ligado à privacidade o art 5º x e o inciso que garante a liberdade de expressão o art 5º iv Nenhum deles faz qualquer menção à possibilidade de que os direitos por eles protegidos sejam restringidos por lei ordinária No entanto é justamente o que os arts 138 a 140 do Código Penal fazem ao punir a calúnia a difamação e a injúria Esses artigos do Código Penal restringem a liberdade de expressão para garantir o direito à honra embora a Constituição não autorize essa restrição expressamente Essa digressão é suficiente aqui para fundamentar o que foi afirmado no fim do tópico anterior ou seja que embora a interceptação das comunicações telefônicas seja a única expressamente autorizada pela Constituição daí não decorre que 17 Lei 92961996 art 1º parágrafo único 18 Ver o tópico 671 outras formas de interceptação não poderão ser previstas na legislação ordinária Relevante é sempre ter em mente que toda e qualquer restrição especialmente as não previstas pela Constituição dependem de robusta fundamentação e têm que passar pelo teste da proporcionalidade Assim a possibilidade de interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática não é em si mesma inconstitucional simplesmente porque a Constituição não a prevê expressamente Mas ela pode ser inconstitucional por razões substanciais sobretudo porque a lei 92961996 prevê as mesmas regras para interceptações telefônicas e interceptações em sistemas de informática Se é plausível aceitar que a interceptação telefônica se justifica porque é impossível ter acesso ao conteúdo da comunicação depois que ela se encerra o mesmo não vale necessariamente para comunicações em sistemas de informática Embora esse fato por si só não seja suficiente para dizer que toda e qualquer interceptação do fluxo de comunicações de sistemas de informática ou telemática é inconstitucional ele é suficiente para fundamentar a exigência de um tratamento distinto mais restritivo às interceptações em sistemas de informática e telemática Para além do debate sobre a possibilidade de interceptação de comunicações em sistemas de informática é necessário indagar o que exatamente significa interceptar Uma primeira definição relevante que vale para qualquer forma de interceptação é aquela segundo a qual não constitui interceptação o registro e a gravação de comunicação por um dos interlocutores ainda que sem o consentimento do outro Dependendo do conteúdo da conversa sua divulgação por um dos interlocutores pode violar o direito à privacidade previsto pelo art 5º x mas essa gravação não constitui interceptação nos termos do art 5º xii nem da lei 92961996 Uma segunda definição relevante acerca do conceito de interceptação tem a ver com o seu produto As interceptações telefônicas a que a Constituição de 1988 faz menção não suscitavam dúvidas deveria ser permitido às autoridades investigadoras o acesso ao que estava sendo transmitido por meio de comunicação telefônica Atualmente uma das principais controvérsias sobre interceptação das comunicações está relacionada ao uso de criptografia de ponta a ponta nos aplicativos de troca de mensagens Ao menos em tese o uso de criptografia de ponta a ponta impede que qualquer outra pessoa que não o remetente e o destinatário tenha acesso ao conteúdo da mensagem Os provedores de acesso à internet as empresas de comunicação e o desenvolvedor e mantenedor do aplicativo não conseguem ler as mensagens Com isso embora seja possível interceptar as mensagens no meio do caminho quem intercepta terá acesso a um conteúdo ilegível devido à criptografia Assim ao contrário da interceptação telefônica que garante automaticamente o acesso ao conteúdo das conversas comunicações criptografadas ainda que interceptadas não são compreensíveis para terceiros Essa forma de interceptação que não dá acesso a um conteúdo inteligível fez com que autoridades policiais e o Ministério Público se manifestassem contra o uso de criptografia de ponta a ponta porque esta pode dificultar a investigação criminal Em alguns casos juízes decidiram suspender os serviços de comunicação de alguns aplicativos afetando a comunicação de milhões de pessoas para tentar forçálos a revelar conteúdos de conversas sempre sem êxito Ao menos duas ações foram ajuizadas perante o STF sobre essa questão que envolve a interpretação dos arts 10 e 12 IIIIV do Marco Civil da Internet lei 129652014 Em junho de 2017 o tribunal realizou uma audiência pública para discutir a questão As ações ainda não foram decididas Embora seja verdade que a criptografia de ponta a ponta dificulta o acesso direto ao conteúdo das mensagens trocadas é importante não perder de vista que a intensificação das comunicações digitais mesmo que criptografadas ampliou significativamente a quantidade de dados e metadados produzidos pelos usuários o que pode aumentar a eficiência das investigações criminais Além disso o acesso ao conteúdo de uma comunicação pode ocorrer a despeito da criptografia por exemplo com a apreensão de aparelhos telefônicos ou computadores usados em trocas de mensagens Isso não significa contudo que esses aparelhos e computadores possam ser apreendidos livremente A garantia do devido processo legal é plenamente aplicável a esses casos Tampouco podem seus proprietários ser forçados a fornecer a senha para desbloqueálos Caso haja autorização judicial para a apreensão de aparelhos é tarefa da polícia obter acesso ao conteúdo neles armazenado Outra forma de obter o conteúdo de comunicações privadas é por meio daquilo que se convencionou chamar de hacking governamental por exemplo por meio da invasão remota de computadores e telefones alheios ou da disseminação de malwares isto é programas que se infiltram em computadores sem que seus usuários percebam com o intuito de infectar esses aparelhos e permitir que sejam controlados pelo governo Ao contrário do que ocorre com a apreensão de computadores telefones e outros tipos de equipamentos claramente sujeita a todas as garantias do devido processo legal o hacking governamental é questão relativamente recente e sobre a qual ainda pairam muitas dúvidas Não é possível sustentar no entanto que essa atividade por não se tratar de interceptação no sentido habitual da palavra ou da apreensão física de um bem não está sujeita ao estrito cumprimento do devido processo legal Tanto a invasão remota de computadores quanto a disseminação de malwares e quaisquer outras formas de hacking governamental restringem o direito à privacidade e por isso demandam um controle estrito se autorizadas em casos excepcionais somente poderão ocorrer por força de decisão judicial É importante ressaltar para concluir que embora cada vez mais se discutam novas formas de comunicação e as necessárias alterações e adaptações dos conceitos de sigilo e interceptação a prática investigativa brasileira não costuma respeitar nem mesmo as regras mais básicas das interceptações telefônicas mais simples Assim se é verdade que o art 5º da lei 92961996 prevê que o tempo máximo de interceptação será de trinta dias e o art 8º da mesma lei prevê que a confidencialidade das gravações e transcrições será protegida essas previsões são com frequência desrespeitadas por decisões judiciais a pedido do Ministério Público ou de autoridades policiais Em um dos casos em que o Brasil foi parte perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos essa Corte decidiu que o país viola o direito à vida privada honra e reputação das pessoas quando não impede interceptações sem fundamento legal e a disseminação do conteúdo de conversas telefônicas interceptadas 105 DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS No início deste capítulo mencionouse que o direito à intimidade inclui o domínio do próprio corpo a relação entre corpos a sexualidade a afetividade dentre outros Um dos principais aspectos desse aspecto da proteção da privacidade é sem dúvida aquilo que se convencionou chamar de direitos sexuais e reprodutivos O reconhecimento desses direitos no entanto decorre da interpretação de vários direitos fundamentais não apenas da intimidade Dentre os mais importantes está sem dúvida o direito à saúde Um aspecto do reconhecimento de direitos sexuais e reprodutivos que está intimamente relacionado à intimidade é o planejamento reprodutivo O reconhecimento e a proteção de parte considerável dos direitos e deveres que esse planejamento envolve já estão em grande medida consolidados no ordenamento jurídico brasileiro O direito ao acesso a métodos contraceptivos é provavelmente o melhor exemplo Ainda assim a liberdade sexual sobretudo da mulher e determinadas opções sexuais são constantemente colocadas à prova no cotidiano brasileiro Mas talvez não haja aspecto dos direitos sexuais e reprodutivos que seja mais controverso e complexo do que o aborto Esse tema que claramente envolve o direito à intimidade em sua expressão reprodutiva já foi analisado anteriormente29 106 SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS ANTONIALLI Dennys FRAGOSO Nathalie orgs Direitos Fundamentais e Processo Penal na Era Digital São Paulo InternetLab 2019 BRANCO Sérgio TEFFÉ Chiara de orgs Privacidade em Perspectivas Rio de Janeiro Lumen Juris 2018 DE LUCCA Newton LIMA Cíntia Rosa Pereira de orgs Direito Internet IV Sistema de Proteção de Dados Pessoais São Paulo Quartier Latin 2019 DE LUCCA Newton SIMÃO FILHO Adalberto LIMA Cíntia Rosa Pereira de orgs Direito Internet III Marco Civil da Internet Lei n 129652014 São Paulo Quartier Latin 2015 DONEDA Danilo Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais Rio de Janeiro Renovar 2006 FERRAZ JR Tercio Sampaio Sigilo de Dados O Direito à Privacidade e os Limites à Função Fiscalizadora do Estado Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo vol 88 pp 439459 1993 LEONARDI Marcel Tutela e Privacidade na Internet São Paulo Saraiva 2012 MARTINS Leonardo Direitos Fundamentais à Intimidade à Vida Privada à Honra e à Imagem Art 5 x da CF Dos Seus Limites Constitucionais e Justificação Constitucional de Sua Imposição Ius Gentium vol 7 n 2 pp 227251 2016 MENDES Laura Schertel Privacidade Proteção de Dados e Defesa do Consumidor Linhas Gerais de um Novo Direito Fundamental São Paulo Saraiva 2014 MENDES Laura Schertel DONEDA Danilo Comentário à Nova Lei de Proteção de Dados Lei 137092018 O Novo Paradigma da Proteção de Dados no Brasil Revista de Direito do Consumidor vol 120 pp 555570 2018 Reflexões Iniciais sobre a Nova Lei Geral de Proteção de Dados Revista de Direito do Consumidor vol 120 pp 469483 2018 ROESSLER Beate MOKROSINSKA Dorota orgs Social Dimensions of Privacy Interdisciplinary Perspectives Cambridge Cambridge University Press 2015 SAMPAIO José Adércio Leite Direito à Intimidade e à Vida Privada Uma Visão Jurídica da Sexualidade da Família da Comunicação e Informações Pessoais da Vida e da Morte Belo Horizonte Del Rey 1998 TEPEDINO Gustavo FRAZÃO Ana OLIVA Milena Donato orgs Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais E Suas Repercussões no Direito Brasileiro São Paulo Revista dos Tribunais 2019 YUSTE Rafael GOERING Sara ARCAS Blaise Agüera y BI Guoqiang CARMENA Jose M CARTER Adrian FINS Joseph J et al Four Ethical Priorities for Neurotechnologies and AI Nature vol 551 n 7679 pp 159163 2017 29 Ver os tópicos 641 e 83 DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO Virgílio Afonso da Silva SÃO PAULO 2021 ed usp PRÓREITORIA DE GRADUAÇÃO 9 LIBERDADES Definir liberdade não é tarefa simples e os debates a respeito são milenares No entanto não é necessário abordar esse debate aqui O objetivo deste capítulo é expor e analisar aqueles direitos fundamentais que têm como objetivo primordial garantir uma esfera de autonomia aos indivíduos no âmbito da qual suas escolhas pessoais devem ocorrer sem ingerência externa sobretudo estatal Os exemplos mais claros dessas esferas de autonomia relacionamse com a liberdade de manifestar o pensamento liberdade de crença de ter ou não ter uma religião de se manifestar em praça pública de se associar ou não se associar a outras pessoas de escolher uma profissão dentre várias outras Nesse sentido a garantia de direitos de liberdade exige sobretudo mas não somente1 uma abstenção estatal nessas esferas2 Por essa razão chamase muitas vezes esse conceito de liberdade de liberdade negativa A ela contrapõese aquilo que se convencionou chamar de liberdade positiva que se expressa no direito de participar da tomada das decisões políticas em uma sociedade Nos Estados constitucionais contemporâneos essa liberdade é garantida especialmente por meio dos direitos políticos que serão analisados em capítulo posterior3 1 Ver o tópico 63 2 Há vários outros direitos fundamentais que têm como objetivo garantir esferas de autonomia aos indivíduos sem que o termo liberdade seja utilizado Embora esses direitos também possam ser considerados como liberdades negativas eles serão tratados em outros capítulos Talvez o exemplo mais claro seja o direito à privacidade 3 Ver capítulo 16 É importante deixar claro aqui que liberdade positiva e direitos políticos não são sinônimos A autodeterminação política expressa pela primeira embora tenda a ser contemporaneamente realizada pelos segundos com eles não se confunde e pode ser realizada de outras formas 91 LIBERDADE GERAL DE AÇÃO O caput do art 5º garante de forma genérica um direito de liberdade Há duas formas antagônicas de se compreender essa garantia de uma liberdade sem nenhuma qualificação A primeira mais ampla interpreta esse enunciado como o reconhecimento de uma liberdade geral de ação que seria a expressão mais clara do reconhecimento da autonomia individual A segunda forma mais restrita entende que a menção à liberdade no caput é apenas a introdução de um direito cujos contornos serão definidos por vários incisos do próprio art 5º Ou seja as liberdades garantidas são sempre tematicamente delimitadas liberdade de expressão liberdade de crença e consciência liberdade artística liberdade de reunião liberdade profissional liberdade de locomoção liberdade de associação e outras mais Segundo esse entendimento não haveria uma liberdade geral para além dessas liberdades temáticas Esse não é um tema analisado com frequência pela literatura constitucional brasileira Tampouco parece haver uma manifestação clara do Supremo Tribunal Federal sobre a questão No entanto embora muitas vezes não se dê atenção a ela essa é uma questão central na interpretação dos direitos de liberdade O reconhecimento de uma liberdade geral de ação implica que toda atividade estatal que restrinja em qualquer âmbito e em qualquer grau a autonomia dos indivíduos carece de justificação Os exemplos vão desde singelas restrições às liberdades de alimentar pombas em uma cidade ou de cavalgar em bosques até a proibição do consumo de algumas drogas4 Como já ficou claro anteriormente as análises deste livro baseiamse em um âmbito de proteção amplo para os direitos fundamentais5 Diante disso e diante da expressa previsão constitucional de uma liberdade sem qualificativos no caput do art 5º não parece ser plausível deixar de reconhecer uma liberdade geral de ação O exemplo do consumo de drogas pode ser ilustrativo Embora não haja uma liberdade específica para consumir drogas garantida constitucionalmente qualquer restrição na autonomia individual para consumilas depende de uma justificativa robusta Uma evidência disso é o fato de que seria impensável que o Congresso Nacional proibisse o consumo de cerveja vinho ou caipirinha no Brasil sem qualquer justificativa O fato de o álcool ser uma droga não significa que é possível proibir seu consumo sem que haja uma justificativa constitucional relevante que passe pelo teste da proporcionalidade O mesmo vale para o consumo de outras drogas Se 4 Dois dos exemplos de reconhecimento de uma liberdade geral de ação mais usados na literatura internacional são justamente as liberdades de alimentar pombas e de andar a cavalo em bosques e florestas fora dos caminhos definidos para tanto Tratase de dois casos decididos pelo Tribunal Constitucional alemão que embora tenha reconhecido essas liberdades reconheceu também a possibilidade de restringilas sobretudo por razões de saúde pública ou segurança Ver BVerfGE 54 143 1980 e BVerfGE 80 137 1989 Também a decisão do mesmo tribunal sobre o consumo de produtos derivados da cannabis sativa reconhece a existência de uma liberdade geral de ação Ver BVerfGE 90 145 1994 5 Ver o tópico 62 se reconhece uma liberdade geral de ação a decisão sobre permitir ou proibir o consumo de drogas ou dar comida para pombas deixa de ser uma decisão simplesmente política Ela passa a ser uma decisão no âmbito de um direito fundamental e portanto demanda que se demonstre que essa proibição é adequada necessária e proporcional em sentido estrito6 Daí não decorre que os indivíduos têm um direito definitivo a alimentar pombos andar a cavalo onde quiserem ou consumir quaisquer drogas Significa apenas que eventuais restrições a essas ações devem ser justificadas da mesma forma que ocorre com as restrições a quaisquer outros direitos fundamentais Nesse ponto é importante ressaltar a relação da liberdade geral de ação com a legalidade prevista no art 5º II ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei A literatura constitucional brasileira quando faz alguma menção a uma liberdade geral de ação muitas vezes supõe que ela é constituída por aquilo que resta depois da regulação estatal Ou seja os indivíduos teriam liberdade de agir desde que essa ação não fosse proibida ou obrig ada por lei Mas essa interpretação esvazia quase por completo a liberdade geral de ação pois a liberdade seria garantida apenas se não fosse restringida Essa forma de interpretar a relação entre direitos fundamentais e a lei não é válida para nenhum outro direito fundamental e não há nenhuma razão para fazêlo apenas para o caso da liberdade geral de ação Assim se é verdade que ninguém tem a liberdade de fazer aquilo que é proibido por lei o controle do que pode e do que não pode ser proibido ou obrigado somente é possível se se toma a liberdade como a regra e a restrição como uma exceção que demanda fundamentação 92 LIBERDADE DE EXPRESSÃO A proteção da liberdade de expressão no Brasil é mais ou menos ampla dependendo do âmbito em que seus limites são discutidos O Poder Legislativo e os juízos tribunais inferiores tendem a impor ou aceitar mais restrições à liberdade de expressão do que o Supremo Tribunal Federal Enquanto os primeiros em muitos casos tendem a dar preferência a outros direitos como honra privacidade imagem ou propriedade a jurisprudência do STF é mais favorável à liberdade de expressão Isso não significa obviamente que esta nunca seja restringida em razão de decisões do STF significa apenas a identificação de uma tendência no sentido contrário A Constituição de 1988 protege a liberdade de expressão em três incisos do art 5º Esses incisos não apenas definem e protegem a liberdade de expressão mas também estabelecem limites explícitos ao seu exercício O art 5º IV por exemplo contém a enunciação geral da liberdade de expressão nos seguintes termos é livre a manifestação do pensamento mas prevê uma limitação sendo vedado o 6 Ver o tópico 672 anonimato O art 5º V define as formas de reparação e compensação para os casos em que o exercício da liberdade de expressão causa danos ao garantir um direito de resposta proporcional ao agravo7 além da indenização por dano material moral ou à imagem Já o art 5º IX protege aspectos específicos da liberdade de expressão em certas áreas e também proíbe a censura e exigências de licença nos seguintes termos é livre a expressão da atividade intelectual artística científica e de comunicação independentemente de censura ou licença Neste tópico serão apresentadas 1 as decisões mais importantes do STF sobre a liberdade de expressão em geral bem como aquelas que se inserem nas áreas específicas mencionadas acima ou seja as liberdades intelectual artística científica e de comunicação e 2 as controvérsias sobre dois termos ligados à liberdade de expressão utilizados pelo art 5º anonimato e censura Embora o STF costume atribuir um peso maior à liberdade de expressão quando esta entra em colisão com outros direitos a mais conhecida decisão do tribunal nesse âmbito não segue essa tendência Em 2003 o STF decidiu o caso Ellwanger8 Siegfried Ellwanger era um escritor e editor que publicava livros com conteúdo antisse mita escritos por ele mesmo e também por outros autores Os livros foram proibidos e Ellwanger foi condenado à pena de reclusão Após o caso passar pelas instâncias inferiores o STF decidiu que antissemitismo é uma forma de racismo e que a liberdade de expressão é claramente restringida pela criminalização do racismo art 5º XLII Em outras palavras discursos racistas não seriam protegidos pelo art 5º IV No âmbito das liberdades intelectual artística e científica uma das decisões mais importantes está relacionada ao art 20 do Código Civil segundo o qual salvo se autorizadas ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública a divulgação de escritos a transmissão da palavra ou a publicação a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber se lhe atingirem a honra a boa fama ou a respeitabilidade ou se se destinarem a fins comerciais Especialmente para o caso de obras biográficas mas na verdade também em qualquer outro tipo de obra que envolva os atos direitos e bens mencionados no art 20 do Código Civil esse artigo costumava ser interpretado como se estabelecesse a necessidade de autorização do biografado Em uma decisão unânime e ainda assim extremamente prolixa9 o tribunal decidiu não declarar a nulidade do art 20 mas declarar a inconstitucionalidade de qualquer interpretação dele10 que implique a necessidade de autorização prévia para 7 O direito de resposta é disciplinado pela lei 131882015 Ao menos duas ADI já foram ajuizadas para questionar a constitucionalidade de alguns de seus dispositivos Ver ADI 5415 pendente e ADI 5436 pendente 8 HC 82424 2003 9 A decisão tem quase trezentas páginas 10 Sobre a possibilidade de não decidir pela nulidade de um dispositivo legal mas ainda assim afastar determinadas interpretações dele ver o tópico 3091 a publicação de biografias11 Contudo ao contrário do que já ocorreu em decisões similares de cortes constitucionais e supremas cortes de outros países o stf não estabeleceu uma clara distinção entre pessoas públicas isto é pessoas que fazem parte da história presente ou passada de um país e pessoas cuja vida privada não suscita interesse público12 Outra peculiaridade da proteção da liberdade de expressão no Brasil é a criminalização de expressões ofensivas dirigidas a funcionários públicos no exercício de sua função O crime de desacato é previsto no art 331 do Código Penal Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela Pena detenção de seis meses a dois anos ou multa A Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão aprovada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2000 claramente afirma que a criminalização do desacato é incompatível com o art 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos liberdade de pensamento e de expressão O princípio 11 da Declaração de Princípios afirma Os funcionários públicos estão sujeitos a maior escrutínio da sociedade As leis que punem a expressão ofensiva contra funcionários públicos geralmente conhecidas como leis de desacato atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação Apenas recentemente alguns tribunais brasileiros passaram a aplicar o art 13 da Convenção Americana de forma a afastar a aplicação do art 331 do Código Penal Embora o stf já tenha decidido que a Convenção ocupa uma posição hierárquica superior à lei ordinária como é o caso do Código Penal13 o tribunal entende que o crime de desacato a funcionário público é compatível com a Constituição14 Por essa razão o desacato ainda é criminalmente punível no Brasil e a liberdade de expressão encontra nele um limite Essa situação é um resquício incompatível com a Constituição de 1988 de uma sobrevalorização do direito à honra até mesmo da honra de instituições em detrimento da liberdade de expressão e da liberdade de crítica que ela implica 921 Anonimato O art 5 iv protege uma liberdade geral de manifestação do pensamento mas ao mesmo tempo estabelece uma importante limitação vedase o anonimato A interpretação corrente e quase unânime dessa cláusula pressupõe que o anonimato em si mesmo deve ser proibido ou seja que a manifestação do pensamento é protegida se e apenas se o autor for identificado ou identificável Publicações 11 adi 4815 2015 12 É verdade que algumas ministras e ministros mencionam essa distinção Mas a ementa e o acórdão não fazem referência a ela Em algumas ocasiões contudo o stf foi mais enfático no sentido de que a privacidade de pessoas públicas tem proteção menos intensa Ver por exemplo Rcl 18638mc 2014 As pessoas que ocupam cargos públicos têm o seu direito de privacidade tutelado em intensidade mais branda 13 Ver o tópico 171 14 Ver adpf 496 2020 O stj por sua vez já decidiu em sentido contrário dando prevalência à Convenção em face do Código Penal o resp 1640084 2016 de autoria não identificada ou não identificável poderiam segundo essa linha de argumentação ser proibidas independentemente de seu conteúdo Sem dúvida há fortes argumentos para essa interpretação dominante A liberdade de expressão pode causar danos e em muitos casos de fato os causa Assim a autoria identificável seria necessária sobretudo para a correta aplicação do art 5 v que prevê a indenização por dano material moral ou à imagem resultante do exercício da liberdade de expressão Apesar disso a interpretação dominante parece ignorar que o anonimato pode desempenhar um papel importante no livre fluxo de ideias e com isso fortalecer a própria democracia e a garantia de outros direitos O anonimato pode proteger pessoas contra retaliações e violência Na história da liberdade de expressão provavelmente muita coisa não teria sido dita se publicações anônimas fossem simplesmente proibidas Não é coincidência que o voto secreto é uma das bases indiscutíveis da democracia representativa contemporânea Sua função é exatamente essa proteger os indivíduos contra pressão e violência O stf não tem uma posição firmada sobre o sentido e os limites da expressão sendo vedado o anonimato Mas o tribunal já foi obrigado a lidar com a questão em alguns casos que envolviam a chamada denúncia ou delação anônima Em alguns estados brasileiros há números telefônicos muitas vezes conhecidos como disque denúncia por meio dos quais alguém pode notificar o cometimento de um crime sem o dever de se identificar Embora o debate sobre liberdade de expressão usualmente se preocupe com discursos politicamente sensíveis os casos envolvendo denúncias anônimas são ainda assim úteis para jogar algumas luzes na importância do anonimato e da necessidade de aceitálo em algumas circunstâncias De um lado a comunicação falsa de crime é também um crime Código Penal art 340 por isso a responsabilidade por aquilo que se fala é também um fator relevante nesses casos De outro lado o medo de violência por dizer a verdade também está presente O stf identificou essa tensão e tem aceitado a denúncia anônima como uma evidência válida para a investigação criminal15 Não é o caso aqui de fazer uma análise detalhada de todos aspectos e consequências de uma vedação absoluta do anonimato Mas pareceme claro que em certos contextos o anonimato é quase precondição para o exercício sincero da liberdade de expressão Em muitas circunstâncias é compreensível que indivíduos tenham receio de dizer o que pensam Em alguns contextos proibir expressões anônimas implicaria exigir atitudes heroicas daqueles que querem exercer sua liberdade de expressão e isso pode ser um fardo excessivo O fato de o anonimato poder ser usado como escudo para discursos caluniosos difamantes ou mesmo racistas não deve ofuscar sua importância em determinadas situações 15 Ver Inq 1957 2005 Contudo o stf rejeita a possibilidade de apresentação de denúncia baseada apenas em delação anônima Ver por exemplo hc 84827 2007 hc 106664 2013 A necessidade de identificação de quem manifesta seu pensamento como forma de possibilitar eventual responsabilização por danos não é suficiente para justificar um dever geral de identificação Se esse dever existisse boa parte da comunicação diária entre as pessoas seria impossível porque essa comunicação muitas vezes se dá entre desconhecidos Mais do que isso eventual responsabilização tampouco impede a publicação de livros anônimos ou sob pseudônimo Se a vedação de anonimato é instrumental para eventual responsabilização ela só é relevante quando um dano é constatado de forma definitiva Assim editoras têm o direito de publicar livros anônimos ou sob pseudônimo e não têm o dever de identificar o autor ou autora Apenas uma decisão judicial transitada em julgado constatando um dever de responsabilização do autor ou autora por danos poderá ser argumento para a revelação da autoria Quando não há danos o anonimato é permitido Se assim não fosse não seria possível a publicação de clássicos da literatura mundial como Lazanillo de Tormes ou mesmo de livros contemporâneos como aqueles publicados sob o pseudônimo de Elena Ferrante Por fim além dos argumentos legais e morais a favor ou contra a vedação absoluta do anonimato é preciso também enfatizar que avanços tecnológicos podem aumentar ainda mais a importância da defesa do anonimato em algumas circunstâncias por exemplo como uma defesa contra a coleta incontrolada de dados pessoais nos meios digitais 922 Censura A censura sempre fez parte da história constitucional brasileira até 1988 e não apenas durante os períodos autoritários O art 5 ix pôs um fim definitivo a essa história ao claramente prever que é livre a expressão da atividade intelectual artística científica e de comunicação independentemente de censura ou licença16 A despeito disso o próprio conceito de censura e por conseguinte os limites daquilo que é de fato vedado é ainda objeto de inúmeras controvérsias E a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal pouco ajuda na definição desse conceito O tribunal às vezes utiliza um conceito amplo de censura que inclui até mesmo aquilo que ele próprio chama de censura privada que ocorre por exemplo quando alguém tenta impedir a publicação de uma biografia17 às vezes no entanto o stf usa o termo como sinônimo de censura governamental18 Essa falta de consistência que não é uma peculiaridade que envolve apenas a liberdade de expressão mas vários outros direitos é certamente útil para o stf Sempre que as ministras e ministros querem considerar inconstitucional uma 16 Em 1985 após o fim do regime autoritário mas ainda antes da promulgação da Constituição de 1988 o então ministro da Justiça chegou a anunciar o fim da censura no Brasil No ano seguinte contudo o filme Je vous salue Marie de JeanLuc Godard foi censurado 17 adi 4815 2015 18 adpf 130 2009 restrição à liberdade de expressão o conceito de censura porque necessariamente negativo é naturalmente usado sem nenhuma preocupação com a definição de contornos mais precisos Uma vedação explícita de censura também é prevista no capítulo sobre a comunicação social no âmbito da liberdade de imprensa O art 220 2º prevê que é vedada toda e qualquer censura de natureza política ideológica e artística Os contornos do que se poderia e deveria entender por censura serão discutidos em detalhes nesse contexto 93 LIBERDADE DE IMPRENSA Além da liberdade geral de expressão a Constituição dedica um capítulo inteiro título VIII capítulo v à comunicação social Os artigos desse capítulo estabelecem normas gerais em relação à liberdade de imprensa art 220 produção e programação das emissoras de rádio e televisão art 221 propriedade de empresa jornalística de rádio e tv art 222 e concessão de serviços de tv aberta e radiodifusão art 223 No que diz respeito à jurisprudência do stf parece valer para a liberdade de imprensa o mesmo que já foi dito acerca da liberdade de expressão a despeito da dificuldade de se identificar uma linha jurisprudencial coerente o stf parece ser muito mais enfático na proteção da liberdade de imprensa do que tribunais e juízos inferiores e do que o Poder Legislativo em todos os níveis da federação Decisões como aquelas que declararam a inconstitucionalidade ou na terminologia do stf a não recepção da Lei de Imprensa lei 52501967 promulgada no início do regime autoritário 1964198519 da exigência de diploma para o exercício da profissão de jornalista20 ou do art 45 II e III da Lei de Eleições lei 95041997 que dentre outras coisas proibiam programas de rádio e tv de durante o período eleitoral ridicularizar candidato partido ou coligação21 são apenas alguns exemplos nesse sentido22 931 Restrição e Censura O artigo mais importante do capítulo sobre a comunicação social é sem dúvida o art 220 o qual estabelece que a liberdade de imprensa não sofrerá qualquer restrição 19 ADPF 130 2009 20 RE 511961 2009 21 ADI 4451MCREF 2010 22 Embora seja necessário salientar que nos últimos anos o stf tem restringido a liberdade de imprensa em momentoschave com mais frequência do que fazia no passado Exemplos centrais dessa nova postura são a proibição de publicação de entrevista com o expresidente Lula às vésperas das eleições de 2018 SL 1178 2018 e a proibição de veiculação de matérias sobre o presidente do stf em alguns sites na internet Inq 4781 2019 Ambas as decisões foram posteriormente reformadas observado o disposto na Constituição A regulamentação mais imediata dessas restrições encontrase nos parágrafos e incisos do próprio art 220 que inicia com a regra geral segundo a qual nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social a qual é imediatamente relativizada pela cláusula de exceção observado o disposto no art 5º IV V X XIII e XIV art 220 1º Em outras palavras o art 220 1º embora estabeleça uma regra geral de não restrição deixa explícitas causas legítimas para que restrições ocorram Essas causas legítimas são aquelas relacionadas aos incisos do art 5º que são mencionados pelo art 220 1º ou seja IV é livre a manifestação do pensamento sendo vedado o anonimato V é assegurado o direito de resposta proporcional ao agravo além da indenização por dano material moral ou à imagem X são invioláveis a intimidade a vida privada a honra e a imagem das pessoas assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação XIII é livre o exercício de qualquer trabalho ofício ou profissão atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer e XIV é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte quando necessário ao exercício profissional Outras causas explícitas para restrições à liberdade de imprensa podem ser encontradas nos 3º e 4º do mesmo art 220 O primeiro deixa clara a possibilidade daquilo que se convencionou chamar de classificação indicativa isto é o dever do Poder Público de informar sobre a natureza de diversões e espetáculos públicos as faixas etárias a que não se recomendem locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada art 220 3º I23 bem como o dever de criar meios para que as pessoas façam valer os princípios aplicáveis à programação das emissoras de rádio e tv definidos no art 221 e possam se defender contra a propaganda de produtos práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente art 220 3º II Já o art 220 4º explicitamente menciona que a propaganda comercial de tabaco bebidas alcoólicas agrotóxicos medicamentos e terapias estão sujeitas às limitações legais24 Mais do que simplesmente expor aquilo que a Constituição já prevê com relativa clareza a menção a esses casos de restrição à liberdade de imprensa e de publicidade tem uma outra finalidade relevante Ao contrário do que ocorre em geral com os demais direitos fundamentais para os quais a Constituição raramente prevê explicitamente a possibilidade de restrições o art 220 da Constituição ao regulamentar a comunicação social estabelece expressamente uma série de possíveis restrições Essa forma de proceder pode suscitar duas questões principais 1 se a Constituição em alguns momentos prevê a possibilidade de restrição a direitos fundamentais isso significa que nos outros casos quando ela não o faz os direitos fundamentais não podem ser restringidos e 2 quando a Constituição prevê expressamente que determinadas restrições a determinados direitos nesse caso específico à comunicação social são aceitas isso significa que esses mesmos direitos somente podem ser restringidos na forma e nas circunstâncias expressamente previstas pela Constituição Essas são duas perguntas centrais sobre a possibilidade de restrição a direitos fundamentais e seus limites Como elas dizem respeito a todos os direitos em vez de abordálas neste tópico é necessária uma remissão à parte deste livro na qual isso foi analisado com maior profundidade25 As respostas obtidas lá valem para as perguntas feitas aqui Como foi mencionado no tópico anterior também na parte sobre comunicação social a Constituição reitera a abolição da censura Mas o capítulo da comunicação social fornece elementos para um debate mais aprofundado sobre o conceito de censura O art 220 2º prevê que é vedada toda e qualquer censura de natureza política ideológica e artística e o art 220 6º prevê que a publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade Este último não demanda grandes explicações Já o art 220 2º fornece elementos importantes para o debate sobre a distinção entre censura e restrição às liberdades de imprensa e de expressão Uma interpretação ao mesmo tempo compatível com a sistemática adotada pela Constituição e conceitualmente consistente isto é capaz de manter significados distintos para conceitos distintos é a seguinte restrição à liberdade de imprensa que tenha caráter político ideológico e artístico é censura não importa se prévia ou posterior não importa a autoridade que a executa não importa o procedimento E se é censura não é aceita no ordenamento jurídico brasileiro Isso não significa claro que não pode haver restrição à expressão de certas ideologias significa apenas que a restrição não pode se basear apenas em um dissenso ideológico Assim se uma ideologia prega a superioridade de uma raça sobre outra e usa os veículos de comunicação de massa para defender essa superioridade uma restrição a essa liberdade de expressão apesar de afetar diretamente a ideologia não está baseada em questões puramente ideológicas mas na defesa de outros direitos fundamentais como a igualdade A restrição a um direito para a realização de outro direito não é censura desde que feita por autoridade competente e siga os procedimentos corretos26 Essa proposta de distinção é consistente com a Constituição que claramente veda a censura mas prevê a possibilidade de restrição à liberdade de imprensa e de expressão O parágrafo anterior deixou claro um tipo de restrição que sempre será censura restrições baseadas em posições políticas ideológicas e artísticas Mas ficou aberta a questão sobre como definir outros tipos de restrição Para essa definição é necessária uma análise de elementos ligados à autoridade e ao procedimento ou seja sobre quem pode restringir o livro fluxo da comunicação e com base em 25 Ver o tópico 67 26 Ver o tópico 67 que procedimentos isso pode ocorrer Como já ficou claro em relação aos direitos fundamentais em geral a realização de um direito pode ser restringida pela proteção de outros direitos27 Essa ideia geral vale também para a liberdade de imprensa Assim restrições à liberdade de imprensa que tenham como objetivo a proteção de outros direitos fundamentais poderão ser legítimas e constitucionais desde que tomadas pela autoridade competente e sigam determinados procedimentos O próprio art 220 indica uma importante autoridade a lei A lei pode portanto prever casos de restrição à liberdade de imprensa para que outros direitos fundamentais sejam protegidos Um exemplo pode deixar isso claro Quando o art 20 da lei 77161989 prevê como crime praticar induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça cor etnia religião ou procedência nacional ele estabelece uma clara restrição à liberdade de expressão Quando o mesmo artigo acrescenta que esses mesmos atos de discriminação ou preconceito serão punidos de forma ainda mais severa se cometidos por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza art 20 2º ele estabelece uma clara restrição à liberdade de imprensa Nenhum dos dois casos configura censura embora sejam claramente restrições à liberdade de expressão e de imprensa Não são censura porque feitos pela lei não por uma autoridade administrativa qualquer a serviço dessa ou daquela orientação política ideológica ou artística e porque têm como objetivo proteger outro direito a igualdade Um questionamento necessariamente deve surgir neste momento essa conclusão implica que toda restrição às liberdades de expressão e imprensa que seja feita pela lei e tenha como objetivo proteger outro direito fundamental é legítima constitucional e portanto não é censura A resposta só pode ser negativa Da mesma forma que restrições a quaisquer direitos fundamentais estão sujeitas a controle restrições às liberdades de expressão e imprensa também estão O fato de que essas liberdades são essenciais em uma democracia e instrumentais para a própria garantia do sistema constitucional exige que toda e qualquer restrição seja controlada de forma estrita Como será visto em relação aos outros direitos esse controle deve ser feito pelo Poder Judiciário por meio da aplicação do teste de proporcionalidade28 Restrições desproporcionais são inconstitucionais não importa quem as tenha estabelecido Em vista do que foi exposto até aqui fica uma pergunta em aberto as restrições às liberdades de imprensa e de expressão que forem consideradas desproporcionais pelo Judiciário devem ser classificadas como tentativas de censura De todas as perguntas essa parece ser a menos relevante porque se trata de uma simples questão de terminologia Importante é que restrições desproporcionais são inconstitucionais Chamálas de censura ou não é uma questão mais retórica do que jurídica Mas 27 Ver o tópico 672 28 Ver o tópico 672 é importante ter em mente que a vedação de censura definida pela Constituição arts 5º IX e 220 2º não se refere a esse tipo de restrição Estender o conceito de censura para além das restrições políticas ideológicas e artísticas enfraquece a vedação absoluta de censura prevista pela Constituição 932 Restrições Prévias Restrições Posteriores e Censura É importante reforçar algo que está implícito no que foi exposto até aqui Embora a literatura constitucional e a jurisprudência tenham uma certa fixação com a contraposição entre proibição prévia e posterior supondo que a primeira é sempre censura e por isso sempre vedada o fato é que essa contraposição não é capaz de servir de critério de decisão Um exemplo pode deixar isso claro A proibição de alguma forma de expressão ou da veiculação de alguma informação pelos veículos de imprensa que seja feita por uma autoridade administrativa sem direito de defesa e que se baseie em razões exclusivamente políticas ideológicas ou artísticas será censura não importa se feita antes ou depois do ato de expressão ou comunicação O fato de a proibição ser posterior não descaracteriza sua natureza de censura De outro lado e como já foi indicado uma restrição à liberdade de imprensa feita pelo Judiciário para proteger direitos fundamentais de terceiros respeitado o direito ao contraditório e à ampla defesa por razões que não são nem políticas nem ideológicas nem artísticas se não é considerada censura se for posterior tampouco poderá ser considerada censura se for prévia29 Não é o momento que importa mas a autoridade as razões e os fundamentos O já mencionado caso Ellwanger pode ser ilustrativo30 Nesse ponto a prisão de Ellwanger não é relevante relevante é o dever de recolher os livros considerados antissemitas nos termos do art 20 3º I da lei 77161989 Nem o STF nem a literatura constitucional classificaram como censura esse dever de recolher os livros Nem poderiam porque se fosse censura o próprio art 20 3º I que ordena o recolhimento imediato do material por meio do qual se pratica induz ou incita a discriminação ou preconceito de raça cor etnia religião ou procedência nacional deveria ser declarado inconstitucional Suponha agora que os mesmos livros que foram considerados antissemitas pelo STF no caso Ellwanger estivessem impressos mas não houvessem ainda sido distribuídos Suponha também que alguém fique sabendo desse fato e procure o Judiciário com uma prova da impressão Se os livros no caso real foram considerados antissemitas após a publicação essa característica não se altera no exemplo hipotético Quem 29 Essa frase não deve ser entendida como uma ingênua suposição de que os procedimentos judiciais garantem sempre decisões corretas Como já foi afirmado no início da seção sobre liberdade de imprensa e também na seção sobre liberdade de expressão o Poder Judiciário no Brasil tem um claro viés restritivo em relação a ambas as liberdades Muitas de suas decisões são mal fundamentadas e restringem o que não deveria ser restringido O que se quer aqui argumentar é apenas que classificar como censura qualquer decisão ruim é esvaziar a força do conceito 30 Ver o tópico 92 acima ver HC 82424 2003 considera que toda restrição prévia à liberdade intelectual ou de imprensa é necessariamente censura terá que sustentar que nesse caso o Judiciário nada poderá fazer e terá que esperar a distribuição dos livros para logo a seguir determinar o recolhimento imediato de tudo aquilo que tenha sido distribuído Essa solução é um disparate Permitir a publicação daquilo que de antemão já se sabe antissemit a ou racista só faz sentido quando se é contrário a toda e qualquer restrição ao livre fluxo de ideias Mas também essa posição acerca da liberdade intelectual e de imprensa para ser defensável tem que ser coerente toda e qualquer vedação ao livre fluxo de ideias seria proibida não importa se prévia ou posterior Em qualquer dos casos portanto a diferença entre restrição prévia e posterior tão cara à jurisprudência do STF e à literatura constitucional como critério supostamente definitivo para identificar censura não é capaz de desempenhar o papel a ela atribuído Mais do que isso a fixação da jurisprudência e da literatura constitucional brasileiras pela contraposição entre restrição prévia e restrição posterior acaba por subestimar os impactos dessa última na liberdade de expressão Ao definir a primeira restrição prévia como a grande ou única ameaça às liberdades de expressão e de imprensa a segunda restrição posterior acaba sendo naturalizada No entanto restrições posteriores também podem produzir sérios impactos negativos no livre fluxo de ideias O mesmo vale para decisões judiciais baseadas no direito à indenização por dano moral prevista no art 5º V A prática judicial reiterada e irrefletida de conceder indenizações por danos morais muitas vezes de valores elevadíssimos tende a arrefecer o livre fluxo de ideias e por isso deve ser encarada com muitas reservas Antes de passar ao próximo tópico é importante deixar claro que os argumentos aduzidos até aqui que procuraram mitigar o papel que a jurisprudência e a literatura constitucional brasileiras conferem à distinção entre restrições prévias e posteriores não devem ser entendidos como uma tentativa de igualar esses dois momentos de restrição em todos os aspectos e contextos O que se argumentou até aqui foi apenas que o momento da restrição não é o que distingue censura de não censura Ainda assim a distinção entre restrição prévia e restrição posterior pode desempenhar um papel É possível afirmar que uma restrição prévia por impedir o escrutínio de toda a sociedade acerca daquilo que se quer expressar deve estar cercada de cautelas muito maiores Em outras palavras embora possa haver contextos em que uma restrição prévia à liberdade de expressão ou à liberdade de imprensa seja necessária esse tipo de restrição demanda argumentos muito mais robustos para que possa ser justificado e por isso só deve acontecer em casos excepcionalíssimos 933 Liberdade de Imprensa e Democracia Como foi afirmado antes uma imprensa livre e robusta tem um papel central na proteção e na promoção da democracia O caso brasileiro não é diferente A imprensa tem exercido esse papel desde o período de transição para a democracia e tem conseguido desempenhar a tarefa de controladora da atividade das autoridades públicas sobretudo por meio de jornalismo investigativo que colabora para o esclarecimento de casos de corrupção e desvios políticos além de aumentar o grau de transparência da administração e fomentar o pluralismo de ideias Ainda assim vários fatores impedem o exercício da plena liberdade de imprensa no Brasil Não por acaso no ranking dos Repórteres Sem Fronteiras o Brasil ocupa a 107ª posição bem atrás de outros países da América do Sul como Uruguai 19ª Chile 51ª e Argentina 64ª31 Já o ranking sobre liberdade de imprensa elaborado pela Freedom House classifica a imprensa brasileira apenas como parcialmente livre32 Há várias razões para o desempenho ruim nesses rankings De um lado a liberdade de imprensa é afetada pela persistente violência contra jornalistas O jornalismo investigativo é em muitas partes do país uma atividade de risco Segundo os Repórteres sem Fronteiras o Brasil continua a ser um dos países de maior violência contra jornalistas na América Latina33 Segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos apenas no ano de 2015 onze jornalistas foram mortos no Brasil em razão de sua profissão e vários outros foram vítimas de violências físicas das mais diversas naturezas34 De outro lado a imprensa brasileira ainda é menos plural do que poderia e deveria ser Os maiores jornais revistas e emissoras de rádio e TV pertencem a poucas empresas muitas delas dirigidas pela mesma família há décadas E as emissoras públicas de rádio e TV que em muitos países têm sido responsáveis por oferecer programação plural de qualidade e sem fins lucrativos têm alcance reduzidíssimo no mercado brasileiro A concentração do mercado da comunicação em poucos agentes privados dificulta a regulação da mídia no Brasil e todas as tentativas nesse sentido têm fracassado Por fim muitos jornais revistas e emissoras de rádio e TV dependem em grande medida de recursos advindos de publicidade estatal algo que em muitos casos pode comprometer sua independência editorial A constatação de que a imprensa brasileira ainda é menos plural do que deveria ser não é suficiente para levar à conclusão de que é na internet e nas redes sociais que o livre fluxo de informações ocorre Embora seja verdade que nessas redes é possível escrever quase tudo o que se pensa é ainda assim equivocado supor que a liberdade de imprensa e sobretudo a liberdade de informação são mais bem realizadas nessas plataformas O controle das redes sociais é ainda mais concentrado do que na imprensa tradicional Três das maiores plataformas de comunicação do planeta Facebook Instagram e WhatsApp por meio das quais bilhões de pessoas se comunicam diariamente pertencem a uma mesma corporação a qual por sua vez pertence majoritariamente a uma única pessoa Ao contrário do que um número considerável dos usuários dessas redes supõe o fluxo de informações não é realmente livre por duas razões principais em algumas dessas redes porque esse fluxo é guiado por algoritmos que definem quais mensagens e notícias deverão ter destaque e quais não e porque em todas as redes a força de uma mensagem e sua capacidade de difusão são fortemente influenciadas pela ação de terceiros que impulsionam artificialmente determinados conteúdos Além disso a ideia de que redes sociais são alternativas à imprensa é equivocada porque o fluxo de informações nessas redes não é submetido a testes controles nem apuração da veracidade das informações veiculadas Por fim a forma segmentada como as informações circulam faz com que as pessoas tendam a ter contato apenas com os conteúdos que lhes agradam Assim a pluralidade que é o objetivo de uma imprensa livre é erodida em ambos os lados das redes sociais não há pluralidade de veículos porque quase todos pertencem à mesma corporação e não há pluralidade real de conteúdos porque estes circulam de forma segmentada devido aos algoritmos com base nos quais as redes funcionam e aos hábitos de consumo de informações que eles fomentam 94 LIBERDADE DE INFORMAÇÃO Além das liberdades de expressão e de imprensa a Constituição também garante um direito à informação O art 5º xiv prevê que é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte quando necessário ao exercício profissional Este inciso garante dois direitos distintos De um lado um direito que é assegurado a todos a liberdade de informação de outro um direito que é assegurado apenas a um grupo de pessoas o sigilo de fonte isto é o direito a não revelar as fontes de determinadas informações sempre que isso for necessário ao exercício profissional Ambos serão apresentados separadamente nas próximas subseções 941 Acesso à Informação A jurisprudência do STF sobre acesso à informação é composta sobretudo por decisões sobre liberdade de imprensa O tribunal pressupõe corretamente que restrições à liberdade de imprensa tendem a afetar de modo negativo a liberdade de todos no acesso à informação Mas há outros âmbitos nos quais a liberdade de informação tem um papel central Assim para além do já mencionado inciso xiv o art 5º contém outro inciso relacionado ao acesso à informação quando esteja nas mãos dos poderes estatais O art 5º xxxiii garante que todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular ou de interesse coletivo ou geral que serão prestadas no prazo da lei sob pena de responsabilidade ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado O acesso à informação assegurado pelo art 5º xxxiii foi inicialmente disciplinado pelos arts 22 a 24 da lei 81591991 e pela lei 111112005 Ambas eram significativamente restritivas e concediam ao Poder Executivo quase ilimitados poderes para definir as circunstâncias que autorizariam a classificar documentos como secretos por essa razão sua constitucionalidade foi questionada perante o STF35 Antes da manifestação do tribunal contudo os mencionados artigos da lei 81591991 e toda a lei 111112005 foram revogados pela lei 125272011 também conhecida como Lei de Acesso à Informação LAI Ainda que parte da administração ainda resista a tornarse mais transparente a LAI sem dúvida fomentou uma importante transformação na forma como as informações são tratadas pelo poder público e ainda mais importante na forma como os cidadãos compreendem seu direito a receber informações que são públicas e deveriam ser acessíveis Vários dispositivos da LAI incentivam ou exigem o uso da internet para facilitar o acesso à informação O art 8º caput e 2º prevê a publicação obrigatória de informações de interesse coletivo ou geral produzidas ou custodiadas por órgãos ou entidades públicas em suas páginas na internet36 enquanto o art 10 2º exige que órgãos e entidades do poder público viabilizem alternativa de encaminhamento de pedidos de acesso por meio de seus sítios oficiais na internet 942 Sigilo de Fonte Como afirmado acima o direito de não revelar a fonte de uma informação não é um direito de todos Ele é garantido quando necessário ao exercício profissional art 5º xiv Diante dessa limitação é fundamental que sejam desenvolvidos critérios para identificar quem e quais atividades profissionais são protegidas Tradicionalmente o sigilo de fonte sempre foi visto como um direito associado ao exercício da atividade jornalística Mas identificar quem exerce atividade jornalística tem se tornado tarefa cada dia mais complexa Não há dúvidas de que os jornalistas que 35 Ver ADI 3987 pendente e ADI 4077 2016 36 Isso levou em todos os níveis da federação à promulgação de leis e à edição de outros atos normativos que exigem a publicação dos nomes e da remuneração de todos os servidores públicos nos portais de internet de seus respectivos órgãos em nível federal ver por exemplo o decreto 77242012 art 7º 3º VI Nesse ponto parece haver uma hipertrofia da transparência já que o mesmo objetivo poderia ser alcançado por meio da publicação da remuneração identificada por um número funcional por exemplo Esse meio seria igualmente eficiente para os fins de criar transparência sobre o uso do dinheiro público e restringiria em intensidade muito menor o direito à privacidade dos servidores Esse tipo de ato normativo já foi questionado perante o STF o qual no entanto nem ao menos reconhece uma colisão entre o interesse público de transparência e a proteção ao direito à privacidade Segundo o STF esse conflito é apenas aparente Ver SS 3902 2011 e ARE 652777 2015 Que esse tipo de colisão não é apenas aparente é algo que já ficou claro em capítulo anterior Ver os tópicos 62 e 67 trabalham para jornais revistas e emissoras de rádio e tv são protegidos por essa cláusula A questão é saber se apenas estes gozam dessa proteção As inovações tecnológicas que têm afetado a forma como se acessam notícias e informações em geral bem como a impossibilidade de identificar o jornalismo como profissão exercida exclusivamente por quem tem formação na área tem feito com que a proteção do sigilo de fonte tenha seu escopo potencialmente ampliado Não parece então ser possível negar a garantia do direito de sigilo de fonte a alguém apenas devido à ausência de formação em jornalismo ou não vinculação empregatícia ou contratual a veículo de imprensa No entanto tampouco faz sentido garantir esse direito a qualquer pessoa em qualquer circunstância Ainda que o exercício do jornalismo não dependa mais de formação universitária específica isso não significa que não seja possível definir uma determinada atividade como jornalismo de modo a distinguila de outras atividades supostamente semelhantes Não é o meio o que necessariamente importa mas outros critérios como regularidade identificação credibilidade e finalidade 95 LIBERDADE DE REUNIÃO Em junho de 2013 vários protestos tomaram conta de diversas cidades brasileiras No início eram protestos contra o aumento das tarifas do transporte público na cidade de São Paulo O uso desproporcional da força policial para dissolver uma dessas manifestações deu início a uma das maiores ondas de protestos populares desde a promulgação da Constituição de 1988 Não é relevante analisar aqui as causas e os efeitos desses protestos mas ressaltar algumas de suas características pode tornar claros os principais desafios do exercício da liberdade de reunião no Brasil Os governos federal estaduais e municipais estavam claramente despreparados para lidar com a situação Diversas questões surgiram e em grande medida ficaram sem resposta O governo pode impedir a realização de uma manifestação Qual é o papel das autoridades policiais Se uma manifestação inclui uma marcha é necessário comunicar o trajeto com antecedência O que as autoridades podem fazer se houver incidentes violentos em manifestações pacíficas É possível usar máscaras De forma semelhante ao que ocorre em constituições de vários países o dispositivo sobre a liberdade de reunião na Constituição de 1988 prevê mais detalhes e estabelece mais condições para o seu exercício do que costuma ocorrer com os dispositivos que garantem outros direitos fundamentais Ainda assim as respostas às perguntas formuladas no parágrafo anterior e a várias outras exigem mais do que a simples interpretação dos termos usados no art 5º xvi que prevê a liberdade de reunião no Brasil da seguinte forma todos podem reunirse pacificamente sem armas em locais abertos ao público independentemente de autorização desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente As questões que o exercício da liberdade de reunião suscita são complexas e claramente indicam a necessidade de uma regulamentação detalhada desse direito pela legislação ordinária No Brasil contudo essa regulamentação não existe em nível nacional embora alguns estados tenham promulgado leis sobre a questão Muitos ainda supõem que a regulação do exercício de um direito necessariamente implica uma restrição indevida Mas a recente experiência brasileira demonstra o contrário a ausência de regras confere um poder quase ilimitado às autoridades e à polícia para decidir caso a caso às vezes no calor do momento como agir Não é difícil perceber que esse é o maior risco à liberdade de reunião Todos os termos empregados pelo art 5º xvi suscitam algum tipo de controvérsia Nos parágrafos a seguir as principais delas serão abordadas Como ilustração em alguns momentos serão usados elementos de leis estaduais sobre o exercício da liberdade de reunião A liberdade de reunião só é garantida para manifestações pacíficas A dificuldade neste âmbito está menos em definir o que seja pacífico e mais em decidir as consequências de atos violentos dentro de uma manifestação pacífica Como não há regulamentação sobre a questão a decisão sobre como reagir nessas circunstâncias costuma ser tomada pela polícia que muitas vezes não é capaz especialmente no calor do momento de distinguir atos de violência pequenos e isolados contra a propriedade privada contra carros e vitrines de lojas por exemplo de violência generalizada que coloque em risco a segurança pública e a incolumidade física dos participantes da manifestação No Brasil a falta de regulamentação e de critérios de ação tem muitas vezes justificado o recurso a instrumentos e estratégias que podem ser considerados desproporcionais como o uso de balas de borracha gás lacrimogêneo bombas de efeito moral spray de pimenta além de outros Muitas vezes ações violentas isoladas têm sido usadas como justificativa para a dissolução de manifestações inteiras em geral com o emprego de mais força do que aquela usada nos atos violentos isolados Uma regulamentação proporcional nesse âmbito deveria partir de pressupostos básicos como a regra geral de não dissolução de manifestações e da proibição do uso de instrumentos que podem ferir gravemente os participantes A proibição do uso de armas tem um núcleo facilmente definível que é a vedação do porte de armas de fogo e armas brancas Não parece haver dúvidas sobre isso Mas para além dessas algumas leis proíbem o uso de outros objetos como os pontiagudos tacos bastões e pedras por exemplo37 Se é verdade que levar pedras a uma manifestação não parece cumprir nenhuma função que não a ação violenta o mesmo não se pode dizer de bastões Faixas normalmente usadas em protestos contêm bastões em suas extremidades e não se pode proibir seu uso apenas porque há a possibilidade de desvio 37 Ver lei estadual 155562014SP art 3º A liberdade de reunião somente é garantida em locais abertos ao público Isso não significa claro que não é permitido organizar reuniões em casa ou um encontro político em um imóvel alugado Essas reuniões são certamente permitidas Elas apenas não estão incluídas no escopo da liberdade de reunião prevista pelo art 5º xvi Interpretar de forma diversa implicaria por exemplo o dever de comunicar à autoridade competente a realização de festas e encontros familiares que ocorram em casa ou em espaços alugados Assim de um lado temos casos claros de locais abertos ao público nos quais não há dúvida de que a liberdade de reunião pode ser exercida como ruas praças e similares De outro casos claros de locais não abertos ao público nos quais reuniões também podem ser realizadas cuja proteção no entanto não tem relação com a liberdade de reunião prevista pelo art 5º xvi são as reuniões de qualquer natureza que indivíduos organizam em seus imóveis ou em imóveis alugados para esse fim38 As dificuldades que a interpretação da expressão locais abertos ao público costuma gerar afetam outros casos e podem ser resumidas por meio de duas perguntas 1 A liberdade de reunião pode ser exercida em um local que embora seja aberto ao público é uma propriedade privada Exemplos desse tipo de local podem ser shopping centers aeroportos campi de universidades privadas Esses são locais em alguma medida abertos ao público mas privados ou concedidos à iniciativa privada 2 A liberdade de reunião pode ser exercida em local público de uso especial ainda que aberto em determinados horários ao público Exemplos são escolas e universidades públicas hospitais públicos prédios de tribunais dentre outros Como se percebe essa pergunta tangencia a distinção usual no direito administrativo e positivada pelo Código Civil art 99 entre os bens públicos de uso comum do povo os de uso especial e os dominicais A legislação e a jurisprudência brasileiras parecem não se preocupar muito com essas questões Todas as leis e as pouquíssimas decisões sobre o assunto ou são omissas ou simplesmente repetem a fórmula constitucional locais abertos ao público sem se preocupar em definila Tradicionalmente manifestações são feitas em ruas e praças Isso não significa claro que a forma tradicional de exercício de um direito deverá ser mantida para sempre e outras formas deverão ser repelidas Mas ainda assim é plausível afirmar para o caso da liberdade de reunião que o emprego da expressão locais abertos ao público em outros contextos como aqueles resumidos pelas perguntas formuladas no parágrafo anterior pode demandar um ônus interpretativo adicional ou nem mesmo ser possível Suponha uma universidade pública tradicionalmente palco de inúmeras manifestações É possível afirmar que há uma diferença entre reuniões e manifestações feitas pela comunidade ligada à universidade estudantes docentes e funcionários não docentes e manifestações não restritas a essa comunidade E essa diferença fica clara se uma universidade pública 38 O outro lado dessa constatação também não gera problemas isto é não é possível fazer manifestações em locais privados de terceiros não abertos ao público sem o consentimento do proprietário ou possuidor Ou seja a casa e o local de trabalho não aberto ao público de um indivíduo não podem ser usados para reuniões sem o seu consentimento limitar o acesso ao seu campus por meio de catracas e cancelas com exigência de apresentação de documentos algo cada vez mais frequente Se a reitoria da universidade ou a direção de alguma de suas faculdades pode restringir o acesso ao público fechando parcialmente a porta para quem não pertence à comunidade universitária não é possível afirmar que uma universidade é um local de exercício da liberdade de reunião da mesma forma que o são ruas praças e avenidas Essas últimas por definição não têm portas catracas ou cancelas São enfim locais genuinamente abertos ao público O mesmo vale para exemplos mencionados anteriormente de imóveis públicos escolas hospitais tribunais e privados shopping centers aeroportos e campi de universidades privadas Alguns deles conseguem fechar com mais facilidade as portas outros teriam mais dificuldade Mas essa opção estará sempre à disposição de seus proprietários ou dirigentes Se isso é assim então não faz sentido ver esses locais como os locais abertos ao público previstos pelo art 5 xvi da Constituição Argumentar em outro sentido implicaria aceitar que o exercício de um direito fundamental a liberdade de reunião em local aberto ao público estaria sujeito a decisões administrativas ou privadas imunes a qualquer controle tomadas pelo reitor de uma universidade pelo diretor de um hospital pelo dono de um shopping center restaurante farmácia e vários outros locais que embora em certo sentido abertos ao público não o são no sentido previsto pela Constituição39 Mas a expressão locais abertos ao público pode gerar controvérsias também nos casos mais claros ruas praças avenidas estradas isto é nos casos de bens públicos de uso comum do povo Código Civil art 99 1 Ainda que haja um claro direito prima facie a realizar reuniões em todos esses locais isso não significa que haverá sempre um direito definitivo a fazêlo Em outras palavras a regulamentação da liberdade de reunião poderá estabelecer locais em que o exercício desse direito poderá ser restringido Embora isso possa causar alguma reação não são necessários muitos argumentos e exemplos para mostrar que essa constatação é simplesmente incontornável Não seria um exagero por exemplo restringir reuniões na frente de hospitais não apenas em razão do barulho mas também do bloqueio da chegada e saída de ambulâncias e outros veículos que transportem pessoas doentes Outras restrições poderão surgir Dado o caráter excepcional de todas elas deverão ser sempre solidamente justificadas e passar no teste da proporcionalidade Outro aspecto polêmico inicialmente decorrente de práticas policiais sem base legal e posteriormente da previsão em algumas leis estaduais é a proibição de uso de máscaras ou outras formas de ocultar o rosto Diferentemente do que faz o art 5 IV que veda o anonimato na liberdade de expressão o art 5 xvi não contém qualquer cláusula restritiva nesse sentido A vedação de anonimato problemática 39 Dessa constatação não decorre a conclusão de que estudantes não têm direito de se manifestar nos campi de suas universidades Eles e elas certamente o têm Mas esse direito não pode ser confundido com a liberdade de reunião garantida a todas e todos em locais abertos ao público e nesse sentido não sujeitos a controle de entrada definido discricionariamente pelo administrador de um espaço físico mesmo no âmbito da liberdade de expressão40 não faz sentido e não é compatível com a Constituição no âmbito da liberdade de reunião Manifestações com muita frequência têm como objetivo questionar e criticar quem detém o poder seja político militar econômico ou de outra natureza Especialmente mas não somente em locais mais isolados questionar os detentores do poder que muitas vezes detêm ao mesmo tempo os poderes político militar e econômico pode ser uma atividade de risco Liderar oposição contrariar interesses econômicos e outros pode gerar reações violentas Muitas vezes o anonimato é a única proteção de quem participa E desde que essa participação seja pacífica e sem armas não há que se falar em dever de identificação para possibilitar responsabilização Um dever de responsabilização surge apenas quando um ilícito é cometido Nesse caso cabe à polícia deter os que cometem ilícitos e identificar essas pessoas Pressupor que todos os que participam de uma manifestação são potenciais violadores da lei é incompatível com a Constituição Uma última questão relacionada ao texto do art 5 xvi abarca três aspectos que estão relacionados entre si independentemente de autorização desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local e sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente O primeiro e o terceiro devem ser compreendidos em conjunto e ambos têm como uma de suas finalidades permitir a averiguação daquilo que consta na segunda frase Assim manifestantes não precisam pedir autorização para se reunir eles devem apenas comunicar que vão fazêlo A comunicação é necessária em primeiro lugar para que se possa verificar se já não há outra manifestação prevista para o mesmo local dia e horário Se houver a segunda manifestação não poderá ser realizada ou terá que ser realizada em outro local dia ou horário Mas o dever de comunicação também desempenha outra função A autoridade local tem que saber onde uma manifestação será realizada para que possa se organizar a fim de garantir o bemestar e a incolumidade física tanto dos participantes quanto de terceiros A polícia nesse ponto tem um papel fundamental É frequente haver tensão entre participantes de manifestações e a polícia como se por definição um fosse inimigo do outro Muitas vezes essa tensão é explorada para criar atritos que podem ser instrumentalizados por ambas as partes No entanto o exercício da liberdade de reunião especialmente em grandes centros urbanos complexos e populosos depende em boa medida da ação policial para garantir o bemestar dos participantes e de outras pessoas como foi mencionado A tomada de consciência da importância de uma polícia preparada para essa tarefa embora lenta já tem produzido alguns resultados com treinamento específico de integrantes das forças policiais para um desempenho de modo a privilegiar a distensão não a tensão Uma importante tarefa para qualquer regulamentação do exercício da liberdade de reunião é a definição dos procedimentos por meio dos quais a comunicação prévia exigida pelo art 5 xvi deverá ocorrer São detalhes administrativos que à 40 Ver o tópico 921 primeira vista podem parecer menores mas dos quais poderá depender o efetivo exercício de um direito Esses detalhes incluem formulários informações a serem fornecidas prazos autoridade à qual a comunicação deverá ser dirigida dentre outros Embora todos esses elementos sejam importantes a informação mais importante é sem dúvida o local onde a manifestação ocorrerá o que inclui a definição de um trajeto no caso de marchas Como já foi ressaltado se é dever das autoridades e da polícia garantir o bemestar dos manifestantes e dos demais habitantes então é necessário que elas saibam onde a manifestação ocorrerá Além disso como também foi mencionado a definição do local e se for o caso do trajeto serve para averiguar se uma manifestação não frustrará a realização de outra anteriormente comunicada Dessa exigência de comunicação prévia decorrem questionamentos importantes Quais são as consequências da não comunicação prévia A não comunicação autoriza a proibição de uma manifestação Se as pessoas ainda assim decidirem se reunir poderá a polícia dissolver a manifestação Muitos podem argumentar que se a Constituição estabelece condições para o exercício de um direito e uma dessas condições não é satisfeita a conclusão deverá ser a impossibilidade do exercício do direito Mas essa não é uma conclusão necessária tampouco a melhor Um exemplo simples pode ser útil para esse debate Manifestações são em geral planejadas com antecedência mas manifestações espontâneas não são infrequentes Elas podem ocorrer para criticar uma decisão governamental que acabou de ser tomada como reação a um crime violento que tenha chocado uma comunidade ou mesmo para se despedir de um ídolo que tenha morrido Em muitos desses casos a comunicação prévia não é possível seja em razão do tempo seja porque ninguém se considera de fato o organizador ou organizadora de um ato espontâneo Não há por que supor que manifestações espontâneas são vedadas pela Constituição Cabe às autoridades locais em situações excepcionais como essas organizarse de forma célere para garantir o bemestar de todos e todas Mas é também possível que atos planejados com antecedência não sejam comunicados Seja porque a não comunicação foi proposital seja porque decorreu de desleixo a questão subsiste é possível dissolver uma manifestação nessas circunstâncias Essa questão de certa forma é válida para todos os casos de descumprimento das condições estabelecidas pela Constituição ou seja vale também para manifestações comunicadas com antecedência mas que sofram alterações de trajetos sem prévio aviso ou para aquelas que apresentem focos isolados de violência Aqui também embora muitos possam argumentar que essas ocorrências justificariam a dissolução de uma manifestação essa não é a única resposta possível tampouco a melhor Dissolver manifestações sempre implica violência Mais do que isso são grandes as chances de que haja uma escalada de condutas violentas de ambas as partes manifestantes e autoridades policiais Diante disso os danos causados por uma dissolução violenta costumam ser maiores do que os danos que manifestações não comunicadas desviadas ou com focos isolados de violência poderiam causar Assim parece possível estabelecer uma regra básica a dissolução de uma manifestação só pode ocorrer quando os riscos para manifestantes e habitantes não participantes decorrentes da continuidade da manifestação forem maiores do que aqueles que a própria dissolução poderá suscitar Essa regra na prática será quase sempre sinônima da regra manifestações não devem ser dissolvidas Daí não decorre que não deverá haver nenhuma consequência para manifestações não comunicadas com atos de violência com mudanças injustificadas de trajeto dentre outras O argumento é outro e pode ser resumido por meio da seguinte fórmula não dissolver durante responsabilizar depois Isso não significa que manifestações nunca poderão ser dissolvidas Seria pouco plausível supor por exemplo que um grupo de dez pessoas pudesse bloquear por meses uma importante rodovia Ao contrário seria plausível supor que em algum momento haveria um dever estatal de dissolver o bloqueio O reconhecimento de um possível dever de dissolução em casos como esses apenas deixa clara a necessidade de uma regulamentação geral e cuidadosa do exercício do direito de reunião Dada a existência de tantas questões como todas as que foram formuladas neste tópico e dada a ausência de uma lei federal sobre o assunto é surpreendente que o Supremo Tribunal Federal não seja provocado a se manifestar com mais frequência sobre o exercício da liberdade de reunião Há pouquíssimas decisões sobre o assunto na jurisprudência do tribunal e nenhuma delas se preocupou em definir qualquer parâmetro concreto para o exercício desse direito Pelo contrário o STF costuma evitar qualquer definição clara sobre essas regras e tende a decidir casos com base em uma retórica genérica e grandiloquente sobre a importância da liberdade de reunião para a democracia e até mesmo sobre a impossibilidade de regulálo Ao decidir sobre o decreto do governador do Distrito Federal que proibia manifestações com altofalantes na Esplanada dos Ministérios na Praça dos Três Poderes e na Praça do Buriti o tribunal manteve a retórica genérica e perdeu a oportunidade de discutir muitos dos pontos suscitados nos parágrafos anteriores deste tópico41 Nem ao menos se preocupou em justificar por que proibir manifestações com altofalantes em frente às sedes dos poderes deveria ser considerado inconstitucional se a Lei de Eleições tem dispositivo semelhante até mais restritivo O art 39 3º I dessa lei prevê que o uso de altofalantes e amplificadores de som é vedado em distância inferior a duzentos metros das sedes dos Poderes Executivo e Legislativo da União dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios das sedes dos Tribunais Judiciais e dos quartéis e outros estabelecimentos militares 96 LIBERDADES DE CRENÇA DE CONSCIÊNCIA E RELIGIOSA A liberdade religiosa é protegida pela Constituição de 1988 nos seguintes termos é inviolável a liberdade de consciência e de crença sendo assegurado o livre exercício 41 Ver adi 1969 2007 dos cultos religiosos e garantida na forma da lei a proteção aos locais de culto e a suas liturgias art 5º vi Essa liberdade de consciência e de crença é complementada por outros dispositivos constitucionais como a garantia de prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva art 5º vii a vedação de privação de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política art 5º viii a imunidade tributária para templos de qualquer culto art 150 vi b e a possibilidade de objeção de consciência contra o serviço militar obrigatório art 143 1º42 O dever de neutralidade do Estado em relação a crenças religiosas também está intimamente ligado à liberdade religiosa Ainda que esses temas possam ser tratados de forma independente serão aqui analisados em conjunto nos tópicos a seguir 961 Crença Consciência e Religião Se se pressupõe um âmbito de proteção amplo para os direitos fundamentais43 mais relevante do que definir os limites precisos dos conceitos de crença consciência e religião é analisar que razões podem justificar restrições à sua proteção e em que circunstâncias Em certo sentido as liberdades de crença e consciência são absolutas já que não é possível proibir que os indivíduos creiam naquilo que querem crer Ainda assim a ação estatal pode ser capaz de interferir nessa liberdade quando assume como verdadeiras determinadas crenças e as difunde como oficiais Daí a íntima relação entre a proteção da liberdade de crença e o dever de neutralidade do Estado em relação a crenças religiosas que será analisado adiante O aspecto mais sensível da proteção das liberdades de crença e consciência é sem dúvida não a crença em si mas as ações que nela se baseiam Nesse âmbito a liberdade religiosa ocupa papel de destaque porque essa liberdade não se resume à possibilidade de crer em algo ela implica também a possibilidade de agir conforme essa crença e com base em determinadas regras e em muitos casos em certos dogmas44 A ação baseada em regras e em dogmas religiosos pode sofrer várias limitações Desde as mais simples como restrições urbanísticas à construção de templos religiosos relativas aos locais e ao tamanho das edificações por exemplo até possíveis restrições sensíveis e controversas como aquelas relativas ao uso de véus ao sacrifício de animais à liberdade de expressão ou ao repouso em dias de guarda Analisar essas possíveis restrições em detalhes extrapolaria os limites deste livro Ainda assim é importante destacar um aspecto particular da proteção da 42 O art 143 1º prevê que as Forças Armadas deverão atribuir serviço alternativo a quem alegar objeção de consciência ao serviço militar obrigatório É importante ressaltar que a objeção de consciência não está necessariamente ligada a razões religiosas O art 143 1º expressamente reconhece isso ao prever que a objeção de consciência pode decorrer de crença religiosa e de convicção filosófica ou política 43 Ver o tópico 62 44 Não é demais ressaltar que embora a crença religiosa ocupe papel de destaque a Constituição garante a liberdade de crença e consciência de maneira ampla Isso inclui portanto convicções filosóficas e políticas Esse aspecto ficará mais claro quando for tratada a objeção de consciência no próximo tópico liberdade religiosa e de possíveis restrições a ela A ação religiosa pode ter um aspecto institucional relevante Não se trata de simples crença individual mas de obediência a regras e dogmas definidos por uma instituição no caso das religiões cristãs a Igreja45 Se o controle de possíveis restrições a direitos fundamentais pressupõe uma avaliação sobre quão severas essas restrições são46 no caso da liberdade religiosa é necessário decidir se nessa avaliação deverão ser levadas em consideração as regras e os dogmas definidos pela instituição religiosa Embora o dever de neutralidade do Estado em relação a crenças religiosas que será analisado adiante pareça claramente vedar que se levem em consideração dogmas religiosos para decidir questões jurídicas talvez uma rejeição absoluta não seja possível nem conveniente Um exemplo simples pode mostrar que a questão pode ser mais complexa do que muitos supõem Seria possível imaginar uma lei que vedasse que funcionários públicos portassem quaisquer símbolos ou peças de vestuário com conotação religiosa A partir de um determinado ponto de vista essa lei trata igualmente todas as religiões Mas não é difícil perceber que o uso de determinados símbolos ou peças de vestuário é mais relevante para algumas e menos para outras crenças religiosas É possível argumentar que um funcionário público católico seria menos afetado por essa lei porque as regras e dogmas no qual baseia seus atos não incluem um dever de usar símbolos religiosos já um funcionário público judeu que não possa usar o quipá ou uma funcionária pública muçulmana que não possa vestir o véu seriam claramente afetados Esse exemplo não deve ser compreendido como uma sugestão de que a diversidade de dogmas e regras religiosas exige que a ação estatal se adapte a cada uma delas Em muitas circunstâncias restrições à liberdade religiosa devem ser consideradas constitucionais mesmo que afetem de maneira desigual diferentes crenças Uma lei que proíbe que sinos sejam tocados em certos horários não se torna inconstitucional apenas porque afeta mais severamente templos cristãos O que os exemplos pretendem deixar claro é o fato de que não é possível ignorar que uma mesma regra pode afetar de forma desigual crenças diferentes e que essa desigualdade só pode ser percebida quando se levam em consideração as regras e dogmas de cada religião Ainda assim em muitos casos e o exemplo do sino é ilustrativo nesse sentido há razões suficientes para justificar o tratamento desigual e a restrição a determinadas práticas religiosas 962 Objeção de Consciência Embora o art 143 1º seja a única referência explícita à objeção de consciência no texto constitucional e seu escopo é limitado ao serviço militar obrigatório o art 45 É importante deixar claro que há religiões no âmbito das quais esse aspecto institucional é tênue ou mesmo inexistente Por isso o texto acima fala que a ação religiosa pode ter um aspecto institucional 46 Ver o tópico 672 5º VIII prevê uma justificativa para a objeção de consciência em outros contextos ainda que se possa argumentar que esse não é o principal objetivo desse dispositivo A redação do art 5º VIII é a seguinte ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política salvo se as invocar para eximirse de obrigação legal a todos imposta e recusarse a cumprir prestação alternativa fixada em lei A objeção de consciência portanto é permitida apenas se o objetor cumprir prestação alternativa que seja compatível com sua crença e consciência A consequência de uma recusa injustificada de cumprir prestação alternativa é a suspensão de direitos políticos art 15 IV Questão relevante é saber se a objeção de consciência somente é permitida se a lei mencionada no art 5º VIII houver sido promulgada o que atualmente é o caso apenas para o serviço militar obrigatório47 mas não para outras circunstâncias Não parece fazer sentido condicionar o exercício de um direito a objeção de consciência à promulgação de uma lei na medida em que essa lei não é imprescindível para definir como o direito será exercido Nesse caso a lei teria como função apenas estabelecer as prestações alternativas Diante disso na ausência da lei a objeção de consciência pode ser exercida e o objetor não estará sujeito ao cumprimento de prestação alternativa tampouco à suspensão de direitos políticos porque esta só pode ocorrer em razão do descumprimento de prestação alternativa não do próprio exercício da objeção de consciência Como foi afirmado a possibilidade de objeção de consciência é apenas uma das normas que se extraem do art 5º VIII Esse dispositivo tem um escopo mais amplo e tem como objetivo proteger os indivíduos contra qualquer forma de privação de direitos que decorram de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política A objeção de consciência é uma atitude contra deveres que sejam incompatíveis com as crenças pessoais de alguém mas o art 5º VIII também tem como objetivo evitar que essas crenças sejam a razão mesmo que indireta para a privação de direitos O exemplo a seguir pode ser ilustrativo Em 2009 o Exame Nacional do Ensino Médio Enem foi realizado em um sábado e em um domingo Um instituto educacional judaico de São Paulo ajuizou ação requerendo a definição de uma data alternativa para a realização do exame caso contrário os estudantes judeus representados pelo instituto ficariam privados de seu direito de participar do Enem por razões religiosas o dever de respeitar as regras do shabat As regras do Enem já previam uma tentativa de acomodação para casos como esse quem por motivos religiosos não pudesse fazer o exame no horário regular das 14 às 18 horas poderia realizálo depois das 18 horas Nesse caso contudo essas pessoas teriam que chegar ao local do exame antes das 14 horas e esperar até as 18 horas em uma sala fechada para evitar que tivessem acesso ao conteúdo das provas antes de realizálas O STF denegou o pedido de data 47 Ver lei 82391991 alternativa48 sob o argumento de que a solução oferecida pela organização do Enem a possibilidade de se submeter ao exame após as 18 horas é a melhor forma de acomodar o direito à igualdade de tratamento e a liberdade religiosa O corolário desse argumento portanto é o de que a solução proposta pela organização do exame não implica a privação de direitos vedada pelo art 5º VIII 963 Secularismo A proteção da liberdade religiosa tem relação íntima com o dever de neutralidade do Estado em relação a crenças religiosas e com o secularismo A Constituição de 1824 foi outorgada por Pedro I em nome da Santíssima Trindade Seu art 5º definia a religião católica apostólica romana como religião do Império Embora o mesmo artigo previsse que todas as outras religiões seriam aceitas seus cultos somente eram permitidos em casa ou em imóveis especificamente destinados para isso desde que sem qualquer forma exterior de templo Além disso limites à liberdade religiosa eram definidos por exemplo pelo art 95 III que previa que quem não professasse a religião oficial não poderia ser eleitor nem membro da Câmara dos Deputados Em sua declaração de direitos fundamentais a Constituição de 1824 garantia a liberdade religiosa nos seguintes termos ninguém pode ser perseguido por motivo de religião uma vez que respeite a do Estado e não ofenda a moral pública Constituição de 1824 art 179 V Com base nisso o Código Criminal de 1830 definia como crime celebrar em edifício que tenha forma exterior de templo ou publicamente em qualquer lugar o culto de outra religião que não seja a do Estado e propagar doutrinas que diretamente destruam as verdadeas fundamentais da existência de Deus e da imortalidade da alma49 A proclamação da República em 1889 incorporava ideias claramente seculares O secularismo pode ser facilmente identificado no texto da Constituição de 1891 Sua declaração de direitos continha vários dispositivos relacionados ao caráter secular do Estado brasileiro e à liberdade religiosa os quais representavam uma clara reação ao regime anterior e à sua associação à Igreja católica O art 72 previa por exemplo que todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto 3º que o Brasil só reconhece o casamento civil 4º que cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes 5º que será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos 6º e que nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou o dos Estados 7º 48 Ver STA 389AgR 2009 49 Código Criminal de 1830 arts 276 e 278 respectivamente A menção a esses dispositivos não é apenas informação histórica Ela mostra que de 1891 a 1988 embora as constituições brasileiras tenham mantido seu caráter secular ainda assim foram aceitando cada vez mais exceções a esse valor Segundo o Censo 2010 do IBGE dos aproximadamente 200 milhões de habitantes do Brasil 87 eram cristãos e 646 católicos50 Embora a porcentagem de católicos venha diminuindo década após década51 o Brasil ainda é o país com o maior número de católicos no mundo e uma análise da prática constitucional brasileira não pode ignorar esses números Mas isso não significa que a prática constitucional deva ser guiada por eles A Constituição ao prever igualdade entre crenças e também entre não crenças exige que não haja tratamento privilegiado a qualquer uma delas Em outras palavras os números podem explicar mas não justificar muito do que será apresentado a seguir Embora a Constituição de 1988 contenha texto semelhante ao já mencionado art 72 7º da Constituição de 1891 o qual prevê que é vedado à União aos Estados ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionálos embaraçarlhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança ressalvada na forma da lei a colaboração de interesse público art 19 I elementos de não secularismo são onipresentes no Brasil e a religião católica é muitas vezes naturalizada como se oficial fosse Em muitas circunstâncias a exigência constitucional de neutralidade do Estado em relação a crenças religiosas é interpretada de forma peculiar por autoridades públicas e em muitos contextos é difícil distinguir a simples reprodução de costumes religiosos que permeiam o cotidiano brasileiro da ingerência intencional e estratégica de certos grupos religiosos Nesse cenário é frequente a menção a Deus à Bíblia e a Jesus Cristo em diversos documentos oficiais e muitos não percebem isso como uma afronta ao dever de neutralidade do Estado em relação a crenças religiosas Há um argumento recorrente em quase todos os casos concretos que põem em questão o dever de neutralidade do Estado em relação a crenças religiosas o recurso à cultura e à tradição Segundo esse argumento o Brasil é um país majoritariamente católico e as manifestações religiosas fazem parte da tradição da cultura e da história brasileiras Com base nessa visão a religião permeia os espaços públicos e estatais não como uma afronta ao dever de neutralidade do Estado em relação a crenças religiosas mas como uma inevitável expressão da cultura popular do país Esse argumento é apenas em parte procedente Em muitos contextos manifestações da cultura popular incorporam elementos religiosos e não há como nem por que tentar separar um do outro Assim não é uma questão constitucional relevante que santos da Igreja católica como Santa Catarina ou São Paulo deem nome a alguns estados e municípios que o Natal seja feriado nacional ou que um 50 IBGE Censo 2010 disponível em httpsidraibgegovbrtabela2094 acesso em 20 jun 2020 51 Em 1970 9177 dos brasileiros e brasileiras eram católicos em 2000 eram 736 em 2010 como mencionado no texto eram apenas 646 dos marcos turísticos do Brasil seja a estátua do Cristo Redentor no Rio de Janeiro Tampouco é em si um problema que algumas das mais importantes manifestações populares brasileiras como as festas de São João o Círio de Nazaré a Paixão de Cristo dentre tantas outras estejam intimamente associadas a uma determinada religião e tenham apoio dos poderes públicos Mas se é verdade que o argumento baseado na cultura e na tradição pode ter peso para justificar alguma confusão entre ações estatais e práticas religiosas que estejam de fato enraizadas na cultura brasileira o fato é que esse argumento tem sido usado para justificar práticas contemporâneas que embora em alguma medida semelhantes a práticas do passado ocorrem em contexto distinto que não pode ser ignorado Assim dar nome de um santo a uma cidade no século XXI não significa a mesma coisa que fazêlo no século XVI Muitas vezes tratase pura e simplesmente de aliança estratégica e inconstitucional entre o poder político e o poder religioso O mesmo vale para todos os fenômenos mencionados acima definição de feriados oficiais construção de monumentos religiosos em espaços públicos organização e financiamento de festividades e eventos Embora não exista uma métrica única é ainda assim possível e necessário diferenciar a tradição merecedora de proteção de um lado da aliança politicamente estratégica ou da simples reprodução inercial de práticas passadas de outro Um dos exemplos mais simbólicos dessa confusão indevida que já foi objeto de decisões judiciais em outros países é a afixação de crucifixos em quase todos os edifícios dos poderes Legislativo Executivo e Judiciário em todos os níveis da federação No plenário do Supremo Tribunal Federal o crucifixo ocupa o espaço de maior destaque e é até mesmo maior do que o próprio brasão da República Nos plenários da Câmara dos Deputados e do Senado Federal crucifixos ocupam também posição de destaque O regimento interno da Câmara dos Deputados prevê que as sessões plenárias deverão se iniciar com a seguinte exortação Sob a proteção de Deus e em nome do povo brasileiro iniciamos nossos trabalhos RICD art 79 2º O regimento interno do Senado Federal contém dispositivo semelhante RISF art 155 1º52 Ainda mais claramente incompatível com o secularismo constitucional é o dispositivo que prevê que a Bíblia Sagrada deverá ficar durante todo o tempo da sessão sobre a mesa à disposição de quem dela quiser fazer uso53 Nenhum desses fatos ou práticas é compatível com a Constituição Nem mesmo o recurso à cultura popular faz sentido aqui Se a preservação da cultura e da tradição é o que justifica que uma festa religiosa como o Natal seja feriado oficial a afixação de crucifixos em espaços públicos não preserva nem fomenta objetivo semelhante Simplesmente não faz sentido afirmar que a afixação de um crucifixo no plenário do Supremo Tribunal Federal tem como objetivo fomentar as tradições brasileiras Tratase de simples reprodução inercial de práticas políticas não populares passadas54 O mesmo vale em relação aos outros exemplos Ou seja a existência de uma estátua do Cristo Redentor no Rio de Janeiro não é um argumento suficiente para justificar a construção de estátuas semelhantes ou outros monumentos de caráter religioso em espaços públicos no século XXI Tampouco a existência de feriados nacionais como a Páscoa e o Natal é argumento suficiente para a criação de novos feriados de cunho religioso Outra importante questão relacionada ao dever de neutralidade do Estado em relação a crenças religiosas é o ensino religioso A Constituição de 1988 prevê esse ensino nas escolas públicas o qual no entanto não pode ser obrigatório O art 210 1º prevê que o ensino religioso de matrícula facultativa constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental É possível interpretar esse dispositivo como um reconhecimento de que a religião é um importante aspecto da vida das pessoas e da história da humanidade O dever de neutralidade do Estado em relação a crenças religiosas não implica a negação dessa importância Contudo se o ensino religioso nas escolas públicas for confessional e oferecido pelas instituições religiosas ele deixa de cumprir sua função educativa e tende a ser proselitismo das instituições que têm mais capacidade de organização Uma interpretação do art 220 1º que permita o ensino religioso confessional seria portanto incompatível com o dever de neutralidade do Estado em relação a crenças religiosas No entanto foi justamente essa a interpretação dada pelo STF o qual em decisão acirrada e polêmica entendeu que é possível haver ensino religioso confessional nas escolas públicas55 97 LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO A liberdade de locomoção é garantida pelo art 5º xv que tem a seguinte redação é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz podendo qualquer pessoa nos termos da lei nele entrar permanecer ou dele sair com seus bens A liberdade de locomoção por abarcar uma atividade tão essencial ao ser humano produz seus efeitos em diversos âmbitos da vida dos indivíduos Apesar disso é muitas vezes analisada com base em apenas dois enfoques o internacional que se refere à possibilidade de entrar no país e dele sair com seus bens e o punitivo penal ou civil que diz respeito à mais séria das restrições à liberdade de locomoção a prisão Não por acaso o remédio constitucional destinado a evitar ou remediar restrições à 54 No entanto embora já tenha havido pedidos ao Conselho Nacional de Justiça para que os crucifixos fossem retirados das paredes em edifícios do Poder Judiciário todos foram denegados sob o argumento de que crucifixos fazem parte da história e cultura brasileiras Ver por exemplo CNJ pp 1344 2007 pp 1345 2007 pp 1346 2007 e pp 1362 2007 55 Ver ADI 4439 2017 liberdade de locomoção o habeas corpus art 5º lxviii é empregado sobretudo em circunstâncias que podem resultar ou já tenham resultado em prisão Algumas das principais questões relacionadas a essa forma específica de restrição à liberdade de locomoção e a outras liberdades também serão abordadas em capítulo posterior56 As restrições à liberdade de entrar e permanecer em território nacional e dele sair é um dos principais exemplos de aplicação da cláusula de titularidade estabelecida no caput do art 5º segundo a qual os titulares dos direitos fundamentais previstos nesse artigo são apenas os brasileiros e os estrangeiros residentes no país Estrangeiros não residentes estão sujeitos a um procedimento próprio para entrar no país e seu direito a aqui permanecer está também sujeito a condições específicas57 Para além desses dois aspectos a liberdade de locomoção raramente suscita controvérsias Mas o fato é que se se pressupõe um âmbito de proteção amplo para os direitos fundamentais58 a liberdade de locomoção é restringida cotidianamente mesmo que essas restrições sejam muitas vezes naturalizadas A liberdade de locomoção é restringida por exemplo por obstáculos estruturais em cidades não adaptadas para pessoas com deficiências basta uma guia sem rampa ou um degrau em na calçada para impedir que uma pessoa em cadeira de rodas consiga se locomover livremente pedágios em rodovias restringem a liberdade de locomoção entre cidades e estados especialmente para quem tem menos recursos calçadas estreitas ou inexistentes restringem a liberdade de locomoção de pedestres insegurança e toques de recolher determinados por grupos criminosos ou paramilitares restringem a liberdade de ir e vir dos moradores de várias partes do país falta de transporte público restringe a liberdade de locomoção de todos59 Embora muitos estejam acostumados a essas circunstâncias o fato é que elas implicam restrições à liberdade de locomoção Algumas decorrem de ação estatal outras de omissão Algumas são justificáveis e proporcionais outras não60 Nos termos do art 5º xv a liberdade de locomoção em território nacional é livre em tempo de paz Embora tempo de paz seja o oposto de tempo de guerra e embora seja comum no caso da liberdade de locomoção que essa expressão tempo de paz seja compreendida como ausência de guerra declarada nos termos dos arts 84 xix e 49 II a Constituição prevê ao menos uma circunstância de severa 56 Ver capítulo 13 57 Ver Lei de Migração lei 134452017 Além de deixar explícitas as limitações à ideia de universalidade da titularidade dos direitos fundamentais a liberdade de locomoção também deixa claros os limites ao discurso universalista sobre os direitos humanos parte considerável daqueles que defendem que direitos humanos são universais e por isso não devem ser relativizados em razão de tradições e culturas locais ao mesmo tempo aceitam que a liberdade de locomoção vale apenas dentro de fronteiras nacionais 58 A esse respeito ver o tópico 62 59 Embora o dever de oferecer transporte público seja primariamente associado ao direito social ao transporte ver o tópico 148 ele também está atrelado ao dever estatal de criar condições para o exercício da liberdade de locomoção 60 Outra situação que pode implicar intensa restrição à liberdade de locomoção e também a outros direitos fundamentais é a declaração de emergência em saúde pública ver decreto 76162011 A lei 139792020 promulgada no contexto da covid19 elenca várias formas de restrições à liberdade de locomoção como isolamento quarentena e restrições à locomoção interestadual e intermunicipal por exemplo restrição à liberdade de locomoção mesmo sem a declaração de guerra durante a vigência do estado de sítio art 139 I61 98 LIBERDADE PROFISSIONAL O art 5º XIII prevê que é livre o exercício de qualquer trabalho ofício ou profissão atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer À primeira vista a menção à lei nesse inciso poderia ser compreendida de duas formas distintas A redação parece dar a entender que o exercício de qualquer trabalho ofício ou profissão só é livre nos termos da lei Mas essa leitura segundo a qual as condições do exercício de um direito fundamental seriam definidas livremente pela lei atribuiria uma liberdade à lei que não é atribuída no âmbito de nenhum outro direito fundamental A leitura correta portanto tem que ser outra A liberdade é a regra A restrição estabelecimento de qualificações mínimas é a exceção A partir dessa leitura fica explícito que estabelecer qualquer qualificação profissional para o exercício de qualquer profissão restringe um direito fundamental E como toda restrição tem que fomentar um objetivo legítimo e ser proporcional62 Mesmo as qualificações mais intuitivas como a exigência de formação específica para exercer a medicina por exemplo são restrições à liberdade profissional Se são aceitas de forma quase unânime isso é apenas um indício de que fomentam um fim legítimo e são proporcionais não de que não constituem uma restrição à liberdade Os maiores desafios para a interpretação do art 5º XIII são aqueles relacionados a 1 quais podem ser as qualificações exigidas 2 como elas devem ser demonstradas 3 quais razões podem justificar a exigência de qualificações para o exercício de determinadas profissões e 4 quem deve controlar as qualificações mínimas e de que forma Antes é importante deixar claro que nem toda regulamentação profissional tem relação com a parte final do art 5º XIII que diz respeito apenas a qualificações profissionais É possível regulamentar profissões por diferentes razões como controle segurança proteção à saúde estabelecimento de jornadas de trabalho além de outras A profissão de repentista é disciplinada pela lei 121982010 que não exige qualquer qualificação profissional para o exercício dessa profissão Seu objetivo é o reconhecimento dos repentistas como músicos e com isso estender àqueles as regras sobre jornada de trabalho aplicáveis a estes Já a lei 62421975 regula a profissão de guardador e lavador de carros Não há qualquer requisito de qualificação profissional para o exercício dessa profissão essa lei tem como objetivo definir a 61 Sobre estado de sítio ver o tópico 313 A menção ao estado de sítio como razão para restringir a liberdade de locomoção mesmo em tempo de paz não deve ser entendida como se fosse essa a única situação em que isso poderá ocorrer Os exemplos mencionados ao longo deste tópico são suficientes para demonstrar que essa liberdade sofre várias restrições em tempos de normalidade 62 Ver o tópico 672 necessidade de registro na delegacia regional do trabalho além de estabelecer para a autoridade municipal o dever de fixar os locais onde será permitida a lavagem de carros63 Há também leis que regulamentam profissões sem definir qualificações formas de registro controle exames dentre outros É o caso da lei que regulamenta a profissão de sommelier lei 124672011 Em casos como esses a regulamentação tem efeitos meramente simbólicos Em boa parte dos casos contudo a regulamentação de uma profissão tem como objetivo estabelecer alguma qualificação necessária que seria requisito para o próprio exercício da profissão Não há uma forma única para se definir o preenchimento desse requisito As principais dessas formas são exigência de um diploma seja de ensino técnico seja de ensino universitário ou a demonstração de conhecimentos por meio da aprovação em um exame Essas formas são independentes entre si Mas elas podem ser combinadas O caso da advocacia é um exemplo claro de combinação Ter um diploma de bacharel em direito não é suficiente E quem não tem diploma não pode se submeter ao exame de ordem É necessária a combinação de ambas as exigências64 Para o exercício da engenharia de outro lado basta o diploma Pressupõese que quem tenha estudado engenharia em uma universidade reconhecida pelos poderes públicos está apto ao exercício da profissão sem a necessidade de exame adicional65 A questão central no entanto não se refere à forma de demonstração de determinada qualificação profissional mas à razão por que para exercer algumas profissões ou ofícios é necessária alguma qualificação A questão é válida para todas as professões mesmo para aquelas em relação às quais estamos acostumados a pressupor sem grandes questionamentos que é necessária formação profissional prévia Ou seja por que é necessário estudar medicina para ser médica engenharia para ser engenheira direito para ser advogada E por que não é necessário estudar jornalismo para ser jornalista música para ser músico administração para ser administrador Em atividades nas quais entidades corporativas exercem pressão constante para ampliar ou proteger mercados nem sempre é simples distinguir o que são razões legítimas do que é o simples produto dessas pressões Na literatura e em especial na jurisprudência há um foco excessivo na ideia de dano ou risco É frequente que a exigência de qualificações profissionais seja justificada unicamente como forma de evitar danos a terceiros66 e muitas vezes a suposta ausência de riscos ou danos parece ser a chave para rejeitar a regulamentação uma atividade profissional67 A existência de risco e potencial de causar dano embora seja o principal argumento para o estabelecimento de qualificações profissionais não é razão necessária nem suficiente para justificar a exigência de qualificações Se fosse razão suficiente o 63 O fato de não se relacionarem com a parte final do art 5º XIII não significa que não sejam restrições à liberdade e portanto carentes de justificativa e sujeitas a controle 64 Ver lei 89061994 art 8º I e II 65 Ver lei 51941966 art 2º 66 Ver RE 603583 2011 sobre a profissão de advogado 67 Ver RE 414426 2011 sobre a profissão de músico exercício de toda profissão com potencial de causar dano deveria pressupor qualificações demonstradas por meio de alguma das formas expostas1 Não há dúvidas de que eletricistas sem formação técnica podem causar danos ao patrimônio e à incolumidade física das pessoas Apesar disso não se exige qualificação demonstrada por meio de diploma ou exame para o exercício desse ofício E a existência de potencial de causar dano não é razão necessária porque pode haver outras que justifiquem a exigência de qualificações profissionais para que uma atividade seja exercida A exigência de diploma ou certificado pode ter como objetivo fomentar um exercício qualificado de determinada profissão É plausível pressupor que como tendência geral profissionais que possuam formação específica desempenham melhor a sua profissão Diante do que foi exposto até aqui os argumentos podem ser sistematizados da seguinte forma Com relação às qualificações profissionais exigidas é possível exigir a demonstração de determinadas habilidades em prova específica sem necessidade de curso formal prévio b certificado de conclusão de curso técnico livre de curta duração c certificado de formação técnica de nível médio d diploma de curso superior As opções b a d podem ser mais restritivas à liberdade profissional caso se exija além da formação específica a aprovação em um exame adicional E todas as opções a a d podem ser ainda mais restritivas caso se exija também a filiação a conselho profissional como condição para o exercício da profissão Como se percebe diante do que já foi mencionado acerca do controle das restrições às liberdades68 as possibilidades mencionadas aqui implicam de forma crescente graus distintos de restrição à liberdade profissional A análise de cada caso concreto deve levar em consideração essa gradação para decidir se determinada exigência de qualificação profissional é ou não compatível com a Constituição69 A análise dessa compatibilidade envolve também uma gradação em relação aos objetivos que essa exigência pretende fomentar Melhorar marginalmente a qualificação de quem exerce uma dada profissão por exemplo é uma justificativa menos relevante do que evitar a morte de pessoas ou grandes danos ao patrimônio70 99 LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO Direitos com características e titularidades distintas são protegidos pela liberdade de associação Essa variedade de aspectos é perceptível pela simples constatação de 68 Ver o tópico 672 69 Há claro outras variáveis que podem e devem complementar essa gradação Nesse sentido pode se dizer que exigir a conclusão de um curso técnico em localidades nas quais há suficiente oferta gratuita desses cursos é uma restrição menor do que aquela imposta por exigência idêntica em um local no qual a oferta gratuita é escassa ou mesmo inexistente 70 Além disso muitas vezes a exigência de qualificações profissionais específicas tem impacto negativo em outros direitos fundamentais além da liberdade profissional O caso da exigência de diploma para o exercício do jornalismo é um bom exemplo porque tem efeitos também na liberdade de imprensa Nesse sentido ver RE 511961 2009 que cinco dos incisos do art 5º são dedicados à liberdade de associação quantidade maior do que a dedicada a quaisquer das liberdades analisadas neste capítulo Além disso outros aspectos da liberdade de associação são também tratados em outros artigos da Constituição como aqueles relativos aos sindicatos arts 8º e 37 vi e aos partidos políticos art 17 por exemplo71 O primeiro aspecto da proteção da liberdade de associação e sem dúvida aquele que constitui o seu cerne é simplesmente a garantia de que as pessoas podem se associar para buscar em conjunto o objetivo que desejarem desde que lícito sem necessidade de autorização e sem interferência estatal em seu funcionamento É o que dispõem os incisos XVII e XVIII do art 5º72 Esse primeiro aspecto da liberdade de associarse tem um corolário importante garantido pelo art 5º xx segundo o qual ninguém poderá ser compelido a associarse ou a permanecer associado73 A proteção constitucional da liberdade de associação não pressupõe qualquer personalidade jurídica para produzir efeitos Em outras palavras ela protege qualquer forma de associação que seja estável e tenha uma finalidade definida Ainda assim a previsão infraconstitucional de formas associativas sejam as sem fins lucrativos como as associações civis sejam as com fins lucrativos como as sociedades em geral74 são sem dúvida uma forma de realização da liberdade de associação prevista constitucionalmente Como já foi mencionado em outras oportunidades esse é um claro exemplo de direito de liberdade cujo exercício efetivo depende não apenas de abstenção mas também de ação estatal75 A vedação à obrigação de se associar garantida no já mencionado art 5º xx encontra uma série de exceções baseadas em objetivos previstos em outros direitos fundamentais A mais clara dessas exceções é aquela que diz respeito à liberdade profissional76 É condição para o exercício de algumas profissões a filiação a um conselho ou ordem profissional como a Ordem dos Advogados do Brasil ou o Conselho Federal de Engenharia e Agronomia Há quem afirme que essa forma de filiação por não decorrer de um ato de vontade mas de uma condição legal para o exercício da profissão77 não estaria abrangida pelo âmbito de proteção da liberdade de associação78 Esse é um equívoco Quando uma lei exige a filiação ou registro a um conselho profissional como condição para o exercício de profissão ela ao mesmo tempo restringe a liberdade profissional porque impede que os 71 A Constituição contém vários outros dispositivos com regras que estabelecem direitos e deveres de associações sindicatos e cooperativas como os arts 5º xxviii b 5º lxx b 21 xxv 29 xii 74 2º 103 ix 146 iii c 150 vi c 174 2º a 4º 187 vi 217 i 72 Art 5º XVII é plena a liberdade de associação para fins lícitos vedada a de caráter paramilitar XVIII a criação de associações e na forma da lei a de cooperativas independente de autorização sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento 73 Ver também art 8º v ninguém será obrigado a filiarse ou a manterse filiado a sindicato 74 Código Civil arts 53 a 61 e 981 a 1141 75 Ver os tópicos 34 e 63 76 Ver o tópico 98 77 A obrigação de se filiar a essas ordens ou conselhos é sempre definida em lei Em relação aos exemplos usados no texto para a OAB tratase da lei 89061994 para o Confea da lei 51941966 78 Sobre o conceito de âmbito de proteção dos direitos fundamentais ver o tópico 62 não filiados e não registrados exerçam a profissão e também a liberdade de associação porque compele quem deseja exercer essa profissão a se associar Por ser uma restrição a direitos fundamentais uma lei que exija a filiação como condição para agir em determinado âmbito deve passar pelo teste de proporcionalidade79 caso contrário será inconstitucional Esse raciocínio não vale apenas para as associações profissionais Vale para qualquer situação em que para exercer um direito D seja necessário associarse à associação A Essa situação por implicar uma restrição à liberdade de associação deve ser excepcional e como afirmado passar pelo teste da proporcionalidade80 a não ser nos casos em que a própria Constituição tenha estabelecido o dever de associação como condição para o efetivo exercício de um direito81 A liberdade de associação é um dos direitos cujo exercício mais suscita a questão da vinculação dos particulares a direitos fundamentais82 Se não há dúvida de que as pessoas podem se unir para formar associações mais intrincada é a questão se elas podem sempre escolher livremente com quem se unir Embora intuitivamente se possa supor que a liberdade de se associar deve incluir também a liberdade de escolher tanto os objetivos da associação quanto as pessoas com quem se deseja associar a realidade pode ser um pouco mais complexa Uma hipotética Associação dos Descendentes de Nepalese no Brasil seria obrigada a aceitar quem não preenche os requisitos de associação isto é ser descendente de nepaleses Tratase de uma forma de racismo vedada pela Constituição e pelo art 20 da lei 77161989 ou simplesmente a expressão do exercício da liberdade de associação Esse exemplo pretende apenas salientar uma característica inerente à liberdade de associação ela é movida por interesses e afinidades entre pessoas Interesses e afinidades pessoais não são universais mas particulares e mais do que isso seletivos e muitas vezes potencialmente segregadores Diante dessa complexidade não há critério binário possível para definir os limites da liberdade de associação Talvez seja possível considerar permitido aceitar apenas descendentes de nepaleses na hipotética Associação dos Descendentes de Nepalese no Brasil mas o mesmo pode não valer para outros critérios de origem e sobretudo para critérios raciais ainda muito usados no Brasil para definir a aceitação de associados em clubes por exemplo Além da garantia da liberdade de se associar e de seu corolário a vedação de imposição de associação a proteção geral da liberdade de associação também inclui direitos cujos titulares são as próprias associações Essa liberdade só é efetiva se as associações criadas pelas pessoas não tiverem seu funcionamento ameaçado Diante 79 Ver o tópico 672 80 A jurisprudência do STF sobre liberdade de associação nem sempre recorre ao teste de proporcionalidade para decidir casos como esses seja para confirmar a constitucionalidade de lei que condiciona o exercício de um direito à associação ver ADI 2054 2003 seja para declarar a inconstitucionalidade da obrigação de se associar ver ADI 3464 2008 81 O caso mais emblemático nesse sentido é o dever de estar filiado a um partido político para exercer o direito a se candidatar a um cargo eletivo art 14 3º v Sobre isso ver o tópico 2243 82 Sobre essa questão ver o tópico 66 disso o art 5º XIX prevê que as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial exigindose no primeiro caso o trânsito em julgado Por fim um direito cujos titulares também são as próprias associações é a legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente Para que isso ocorra no entanto a regra geral é a necessidade de que os associados a autorizem expressamente art 5º xxi Mas a própria Constituição estabelece uma importante exceção a essa regra geral no âmbito sindical já que os sindicatos representam seus filiados independentemente de autorização expressa porque essa é a sua função precípua art 8º III 910 SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA Fernando Dias Menezes de Liberdade de Reunião São Paulo Max Limonad 2001 BEADE Gustavo A VITA Leticia orgs Criminalización de la Protesta La Respuesta del Estado Frente a Los Reclamos Ciudadanos Buenos Aires AdHoc 2015 BELLO Enzo RIBEIRO Samantha S Moura Ribeiro orgs Democracia nos Meios de Comunicação Pluralismo Liberdade de Expressão e Informação Rio de Janeiro Lumen Juris 2016 CANOTILHO J J Gomes MACHADO Jónatas E M GAIO JÚNOR Antônio Pereira Biografia Não Autorizada versus Liberdade de Expressão Curitiba Juruá 2014 CARNEIRO Maria Luiza Tucci org Minorias Silenciadas História da Censura no Brasil São Paulo EduspImprensa Oficial de São Paulo 2001 FARAH André Liberdade de Expressão e Remoção de Conteúdo da Internet Rio de Janeiro Lumen Juris 2018 FISCHMANN Roseli Estado Laico São Paulo Fundação Memorial da América Latina 2008 LAZARI Rafael José Nadim de BERNARDI Renato LEAL Bruno Bianco NISHIYAMA Adolfo Mamoru orgs Liberdade Religiosa no Estado Democrático de Direito Questões Históricas Filosóficas Políticas e Jurídicas Rio de Janeiro Lumen Juris 2014 LEITE Fábio Carvalho Estado e Religião A Liberdade Religiosa no Brasil Curitiba Juruá 2014 Liberdade de Expressão e Direito à Honra Novas Diretrizes para um Velho Problema In CLÊVE Clèmerson Merlin FREIRE Alexandre orgs Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional São Paulo Revista dos Tribunais 2014 pp 395407 MACHADO Jónatas E M Liberdade de Expressão Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social Coimbra Coimbra Editora 2002 Studia Iuridica 65 Liberdade Religiosa Numa Comunidade Constitucional Inclusiva Dos Direitos da Verdade aos Direitos dos Cidadãos Coimbra Coimbra Editora 1996 Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 18 MARTEL Letícia de Campos Velho Laico Mas Nem Tanto Cinco Tópicos sobre Liberdade Religiosa e Laicidade Estatal na Jurisdição Constitucional Brasileira Revista Jurídica da Presidência vol 9 n 86 pp 1157 2007 MARTINS Leonardo Direito Constitucional à Expressão Artística In MAMEDE Gladston FRANÇA Filho Marcílio Toscano RODRIGUES JUNIOR Otavio Luiz orgs Direito da Arte São Paulo Atlas 2015 pp 2986 DANTAS Diogo Caldas Leonardo Crucifixos em Repartições Públicas Do Exame de Constitucionalidade de uma Prática Administrativa Baseada na Tradição Espaço Jurídico vol 17 n 3 pp 885912 2016 MELLO FILHO José Celso de O Direito Constitucional de Reunião Justitia vol 39 n 98 pp 159164 1977 202 Direito Constitucional Brasileiro MELO Mariana Cunha e Liberdade de Expressão e o Acórdão sobre Biografias Não Autorizadas Minimalismo Insegurança e Efeito Inibidor Curitiba Juruá 2017 MOURA Maria Aparecida org A Construção Social do Acesso Público à Informação no Brasil Contexto Historicidade e Repercussões Belo Horizonte Editora UFMG 2014 NITRINI Rodrigo Vidal Liberdade de Informação e Proteção ao Sigilo de Fonte Desafios Constitucionais na Era da Informação Digital São Paulo Hucitec 2016 OLIVIERI Cris NATALE Edson orgs Direito Arte e Liberdade São Paulo Edições SESC 2018 OSORIO Aline Direito Eleitoral e Liberdade de Expressão Belo Horizonte Fórum 2017 SALGADO Eneida Desiree Lei de Acesso à Informação LAI Comentários à Lei 125272011 e ao Decreto 77242012 São Paulo Atlas 2015 SAMPAIO José Adércio Leite org Liberdade de Expressão no Século XXI Belo Horizonte Del Rey 2016 SARLET Ingo Wolfgang MARTOS José Antonio Montilla RUARO Regina Linden orgs Acesso à Informação como Direito Fundamental e Dever Estatal Porto Alegre Livraria do Advogado 2016 WEINGARTNER NETO Jayme Liberdade Religiosa na Constituição Fundamentalismo Pluralismo Crenças Cultos Porto Alegre Livraria do Advogado 2007 ZYLBERSZTAJN Joana A Laicidade do Estado Brasileiro São Paulo Verbena 2016 O nosso ordenamento jurídico prevê uma série de direitos fundamentais que asseguram a autonomia do cidadão e outros aspectos Nesse sentido mais especificadamente dentre outros há os direitos fundamentais de liberdade e os direitos fundamentais de privacidade A intimidade sempre será um aspecto da vida privada sendo assim o direito à privacidade tanto inclui a proteção da intimidade quanto a proteção da vida privada tendo diretamente relação com a proteção de dados A Constituição brasileira de 1988 em seu artigo 5º dispõe sobre o direito à privacidade em três incisos diretamente De modo geral são invioláveis a intimidade a vida privada a honra a imagem a casa o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas de dados e das comunicações telefônicas A honra e a imagem são direitos interligados e relacionados a ideia de reputação segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Contudo no que tange a reprodução da imagem de alguém não é necessário a aferição de danos à reputação do indivíduo sendo importante somente a proteção sobre o controle da própria imagem A honra diretamente ligada a reputação é chamada de honra objetiva portanto para assegurar o direito a honra de forma subjetiva basta levar em contra com a apreciação que indivíduo faz de si mesmo No que tange os dados pessoais estes estão protegidos principalmente pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais sendo assegurado que toda operação realizada com dados pessoais só poderá ocorrer com o consentimento do titular do dado Outro direito fundamental de privacidade é a inviolabilidade do domicílio sendo a casa asilo inviolável do indivíduo tirando as suas exceções Com o avanço da tecnologia o direito a sigilo de comunicações teve de passar pela adaptação de sua interpretação não havendo atualmente proteção explícita de proteção as comunicações eletrônicas como aquelas feitas por email ou por aplicativo de mensagens seja em computadores telefones ou qualquer outro aparelho eletrônico compatível Por fim o direito à privacidade abrange também os direitos sexuais e os direitos reprodutivos na esfera em que o direito à intimidade inclui o domínio do próprio corpo a relação entre corpos a sexualidade a afetividade e outros sendo o exemplo mais notável o direito de acesso a métodos contraceptivos e o direito à saúde No tocante aos direitos relacionados a liberdade os mais claros são a liberdade de manifestar o pensamento liberdade de crença de ter ou não ter religião de se manifestar em praça pública de se associar e não associar a outras pessoas de escolher uma profissão etc Para que a liberdade seja assegurada é importante que haja uma abstenção estatal nessas esferas A liberdade pode ser genérica sendo está de formal geral de ação e expressamente uma forma de autonomia individual a parte restrita é aquela que entende que a liberdade de ação é uma forma de introdução para as liberdades específicas como a liberdade de expressão liberdade de crença e consciência liberdade artística liberdade de reunião e diversas outras A liberdade de expressão é a livre manifestação do pensamento porém sem que haja o anonimato com a existência de direito de resposta proporcional ao agravo ocasionado pela liberdade de expressão exacerbada Na comunicação social é importante frisar o direito a liberdade de imprensa sendo estabelecido que a liberdade de imprensa não sofreria qualquer restrição observando o disposto na constituição sendo possível desde que outros direitos fundamentais tenham sofrido algum dano por conta de liberdade de imprensa A constituição também prevê o direito à informação onde é assegurado a todos desde que seja resguardado o sigilo da fonte quando necessário ao exercício profissional o direito da liberdade de reunião onde não regulamentação em nível nacional o direito a liberdade de crença de consciência e religiosa onde é assegurado a todos o livre exercício de cultos inclusive em entidades civis e militares de internação coletiva Outra liberdade assegurada pelo texto constitucional é o direito a liberdade de locomoção sendo livre a locomoção em território nacional em tempo de paz a liberdade profissional que assegura o livre exercício de qualquer trabalho ofício ou profissão desde que atendida as qualificações legais Por fim o direito a liberdade de associação assegura a todos a livre associação sem necessidade de autorização ou interferência estatal para o seu pleno objetivo sendo também assegurado que ninguém poderá ser compelido a associarse ou a permanecer associado O nosso ordenamento jurídico prevê uma série de direitos fundamentais que asseguram a autonomia do cidadão e outros aspectos Nesse sentido mais especificadamente dentre outros há os direitos fundamentais de liberdade e os direitos fundamentais de privacidade A intimidade sempre será um aspecto da vida privada sendo assim o direito à privacidade tanto inclui a proteção da intimidade quanto a proteção da vida privada tendo diretamente relação com a proteção de dados A Constituição brasileira de 1988 em seu artigo 5º dispõe sobre o direito à privacidade em três incisos diretamente De modo geral são invioláveis a intimidade a vida privada a honra a imagem a casa o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas de dados e das comunicações telefônicas A honra e a imagem são direitos interligados e relacionados a ideia de reputação segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Contudo no que tange a reprodução da imagem de alguém não é necessário a aferição de danos à reputação do indivíduo sendo importante somente a proteção sobre o controle da própria imagem A honra diretamente ligada a reputação é chamada de honra objetiva portanto para assegurar o direito a honra de forma subjetiva basta levar em contra com a apreciação que indivíduo faz de si mesmo No que tange os dados pessoais estes estão protegidos principalmente pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais sendo assegurado que toda operação realizada com dados pessoais só poderá ocorrer com o consentimento do titular do dado Outro direito fundamental de privacidade é a inviolabilidade do domicílio sendo a casa asilo inviolável do indivíduo tirando as suas exceções Com o avanço da tecnologia o direito a sigilo de comunicações teve de passar pela adaptação de sua interpretação não havendo atualmente proteção explícita de proteção as comunicações eletrônicas como aquelas feitas por email ou por aplicativo de mensagens seja em computadores telefones ou qualquer outro aparelho eletrônico compatível Por fim o direito à privacidade abrange também os direitos sexuais e os direitos reprodutivos na esfera em que o direito à intimidade inclui o domínio do próprio corpo a relação entre corpos a sexualidade a afetividade e outros sendo o exemplo mais notável o direito de acesso a métodos contraceptivos e o direito à saúde No tocante aos direitos relacionados a liberdade os mais claros são a liberdade de manifestar o pensamento liberdade de crença de ter ou não ter religião de se manifestar em praça pública de se associar e não associar a outras pessoas de escolher uma profissão etc Para que a liberdade seja assegurada é importante que haja uma abstenção estatal nessas esferas A liberdade pode ser genérica sendo está de formal geral de ação e expressamente uma forma de autonomia individual a parte restrita é aquela que entende que a liberdade de ação é uma forma de introdução para as liberdades específicas como a liberdade de expressão liberdade de crença e consciência liberdade artística liberdade de reunião e diversas outras A liberdade de expressão é a livre manifestação do pensamento porém sem que haja o anonimato com a existência de direito de resposta proporcional ao agravo ocasionado pela liberdade de expressão exacerbada Na comunicação social é importante frisar o direito a liberdade de imprensa sendo estabelecido que a liberdade de imprensa não sofreria qualquer restrição observando o disposto na constituição sendo possível desde que outros direitos fundamentais tenham sofrido algum dano por conta de liberdade de imprensa A constituição também prevê o direito à informação onde é assegurado a todos desde que seja resguardado o sigilo da fonte quando necessário ao exercício profissional o direito da liberdade de reunião onde não regulamentação em nível nacional o direito a liberdade de crença de consciência e religiosa onde é assegurado a todos o livre exercício de cultos inclusive em entidades civis e militares de internação coletiva Outra liberdade assegurada pelo texto constitucional é o direito a liberdade de locomoção sendo livre a locomoção em território nacional em tempo de paz a liberdade profissional que assegura o livre exercício de qualquer trabalho ofício ou profissão desde que atendida as qualificações legais Por fim o direito a liberdade de associação assegura a todos a livre associação sem necessidade de autorização ou interferência estatal para o seu pleno objetivo sendo também assegurado que ninguém poderá ser compelido a associarse ou a permanecer associado