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1 TÓPICOS ESPECIAIS DE FILOSOFIA SOCIAL 2 TÓPICOS ESPECIAIS DE FILOSOFIA SOCIAL DÚVIDAS E ORIENTAÇÕES Segunda a Sexta das 0900 as 1800 ATENDIMENTO AO ALUNO editorafamartfamartedubr 3 Sumário A Fundação da Sociologia e o Contexto HistóricoSocial e Intelectual 4 O QUE É SOCIOLOGIA 8 A FUNDAÇÃO DA SOCIOLOGIA Contexto HistóricoSocial 13 A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE MODERNA 13 A FUNDAÇÃO DA SOCIOLOGIA CONTEXTO INTELECTUAL 25 O PENSAMENTO DE MAQUIAVEL E A CIÊNCIA MODERNA 28 O PENSAMENTO SOCIAL ANTERIOR À SOCIOLOGIA 49 THOMAS HOBBES 50 JOHN LOCKE 52 AS TEORIAS SOCIOLÓGICAS CLÁSSICAS COMTE DURKHEIM MARX E ENGELS WEBER 59 COMTE Ordem e Progresso 60 DURKHEIM a Preponderância Progressiva da Solidariedade Orgânica 66 MARX e ENGELS a Concepção Materialista da Sociedade e da História 74 Sociologia e Crise da Modernidade 96 Referências 114 4 4 A Fundação da Sociologia e o Contexto HistóricoSocial e Intelectual A criação da Sociologia pode ser inserida entre os grandes eventos ocorridos no século 19 Ela mudou profundamente o modo do homem entender o mundo e a si próprio O homem descobriuse definitivamente como um ser cuja essência é a sua sociabilidade permanente Obviamente as ações humanas fundamentais têm sempre o sentido da reprodução da vida O que a Sociologia nos permitiu perceber é que não há possibilidade de que a reprodução possa ser um ato individual A vida humana desenvolvese numa estrutura espaçotemporal que passamos a chamar de sociedade Os sociólogos logo descobriram que desenvolver uma ciência da sociedade é uma tarefa extremamente difícil e complexa Uma pergunta repetida até hoje é se a Sociologia pode ser concebida como uma ciência com o mesmo caráter das ciências físicas e naturais Respostas diferentes foram dadas a essa questão pelos autores que fundaram as três grandes teorias da sociedade Comte e Durkheim Marx e Engels e Weber Por isso conhecêlos é uma tarefa urgente para quem quiser tornar se um sociólogo Leia com atenção a opinião de Peter Berger sobre a relação do sociólogo com a sociedade e com o seu objeto de estudo O fascínio da sociologia está no fato de que sua perspectiva nos leva a ver sob nova luz o próprio mundo em que vivemos Isto também constitui uma transformação da consciência Além disso essa transformação é mais relevante do ponto de vista existencial que a de muitas outras disciplinas intelectuais porque é mais difícil de segregar em algum compartimento especial do espírito O astrônomo não vive nas galáxias distantes e fora de seu laboratório o físico nuclear pode comer rir amar e votar sem pensar em partículas atômicas O geólogo só examina rochas em momentos apropriados e o linguista conversa com sua mulher na linguagem de todo o mundo O sociólogo porém vive na sociedade tanto em seu trabalho como fora dele Sua própria vida inevitavelmente convertese em parte de seu campo de estudo Em vista da natureza humana ser o que é os sociólogos também conseguem estabelecer uma separação entre sua atividade profissional e sua vida pessoal em 5 sociedade Mas é uma façanha um tanto difícil de ser realizada em boa fé Berger 1980 p 31 O sociólogo é ao mesmo tempo sujeito e objeto do conhecimento sociológico Ele sofreu ao longo da sua vida um processo de socialização como qualquer outra pessoa incorporando valores conceitos e habilidades além de ocupar lugares sociais determinados Em resumo ele faz parte do seu objeto de estudo de modo que quando um sociólogo emite uma opinião sobre a sociedade ele também está falando de si próprio Mais adequado seria considerarmos que a Sociologia é uma ciência com um caráter específico que não pode ser reduzida às ciências naturais Esse debate esteve presente ao longo de todo o processo de desenvolvimento da Sociologia E nada indica que ele tenha sido superado Atualmente tem se levantado com bastante frequência a tese de que se há um paradigma científico este deve ter como referência às Ciências Sociais pois mesmo os conhecimentos sobre a natureza são conhecimentos sociais Tome como exemplo a seguinte questão por que uma instituição de pesquisa via de regra financia um projeto de pesquisa sobre transgênicos e não sobre agroecologia A Sociologia nasceu num contexto de afirmação da modernidade em que a sociedade industrial capitalista organizada territorialmente em economias nacionais cuja unidade e soberania de cada território é determinada por um poder político e ideológico igualmente nacional Todas as teorias sociológicas foram teorias elaboradas sobre essa sociedade porém não são apenas teorias equidistantes dos problemas que querem explicar constituem aberta ou veladamente propostas de ação Por isso não é surpreendente que Auguste Comte tenha fundado a partir do positivismo que estudaremos mais adiante uma religião da humanidade e Marx e Engels tenham atuado decisivamente na criação do primeiro partido político moderno A Sociologia constitui a base e o fundamento das Ciências Sociais contemporâneas como a Antropologia a Ciência Política a Economia a Geografia a História o Serviço Social a Comunicação Social etc Foi por meio da Sociologia que a pesquisa de temáticas diversas foi possível estabelecendo várias especialidades rural urbana do trabalho de Direito da religião da cultura da 6 política da economia etc O desenvolvimento da divisão do trabalho científico contudo estabeleceu uma outra divisão compondo o que hoje denominamos de Ciências Sociais particulares Além da Sociologia também a Antropologia a Ciência Política a Economia a Geografia a História o Serviço Social a Comunicação Social etc fazem parte desse campo teórico Mesmo que cada ciência tenha um campo particular elas possuem uma identidade e um fundamento comuns a existência social do homem Como Ciências Sociais precisam enfrentar os mesmos problemas metodológicos que caracterizaram a história da Sociologia Estamos vivendo uma nova era de transição social a sociedade industrial nacional tanto na sua versão capitalista como socialista está sendo substituída por uma outra sociedade que provisoriamente vamos designar como informacional global Esta nova sociedade é um produto do desenvolvimento do capitalismo pois foi o mundo do capital que acumulou forças produtivas capazes de gerar uma nova evolução industrial ou informacional Tudo indica que está em desenvolvimento uma nova e prolongada fase de reprodução capitalista Nas últimas décadas duas idéias tomaram conta da intelectualidade mundial De um lado a afirmação taxativa do fim das ideologias e da história como expressão do predomínio definitivo da economia de mercado e do Estado liberal democrático De outro a idéia de crise do paradigma científico da modernidade que atingiu em cheio a Sociologia e as Ciências Sociais É claro que não se pode separar a crise das Ciências Sociais da atual situação de transformação social Um desdobramento da crise das Ciências Sociais revelase na alternativa reconstrução da modernidade ou pósmodernidade A modernidade esgotou suas promessas de emancipação do homem de tal modo que a saída está na descontrução das instituições da modernidade ou ainda é possível reconstruir o projeto da modernidade mediante uma revisão profunda dos seus pressupostos A primeira alternativa marginaliza a Sociologia e as Ciências Sociais a segunda exige uma transformação paradigmática das mesmas a começar pela crítica ao trabalho categoria central da sociabilidade humana A reconstrução requer uma nova concepção de conhecimento fundada na virada linguística razão e verdade constituemse nas relações intersubjetivas protagonizadas pelo diálogo entre sujeitos 7 linguisticamente competentes Nesse sentido trabalho ou linguagem transformase numa questão central para as Ciências Sociais atualmente A crise da Sociologia pode ser entendida também como o descompasso entre a sua capacidade explicativa e a nova realidade social Aprendemos que as categorias de análise sociológica são realidades históricas Por exemplo o sistema de classes burgueses e proletários típico do capitalismo industrial é adequado para explicar as relações de classe do capitalismo globalizado Podemos inclusive por em dúvida a existência de classes sociais Por isso fazer um balanço crítico das conquistas e das fragilidades da Sociologia inclusive os impasses epistemológicos é uma postura mais adequada do que afirmar que ela é uma ciência em extinção Octavio Ianni 1997 p 16 um dos mais eminentes sociólogos brasileiros afirma que o objeto da sociologia desenvolvese continuamente tornandose muitas vezes mais complexo e provocando a recriação das suas configurações conhecidas Em lugar de manterse semelhante modificase todo o tempo Além de que se aperfeiçoam continuamente os recursos metodológicos e teóricos da sociologia o que permite aprimorar os modos de refletir sobre a realidade social e é inegável que esta realidade transfigurase de tempos em tempos ou continuamente Nesse sentido é que a sociologia ingressou na época do globalismo O seu campo de estudos apresenta relações processos e estruturas novos não só desconhecidos mas surpreendentes Simultaneamente as novas relações os novos processos e as novas estruturas de dominação e apropriação envolvendo integração e fragmentação tensões e antagonismos recriam as relações processos e estruturas conhecidos Isto significa que o globalismo confere novos significados às realidades locais nacionais e regionais ao norte e ao sul orientais e ocidentais Por isso ser sociólogo é aceitar o desafio de fazer uma ciência em que não é permitido descuidarse dos destinos da humanidade Mais uma vez vamos nos valer de uma afirmação de Peter Berger 1980 p 34 a perspectiva sociológica mais se assemelha a um demônio que possui uma pessoa que a compele repetidamente às questões que são só suas Por conseguinte um convite à sociologia é um convite a um tipo de paixão muito especial Não existe paixão sem perigos 8 O QUE É SOCIOLOGIA Todos os dias as pessoas em qualquer parte do mundo realizam atos bastante simples necessários à vida consomem alimentos cultivam a terra vão e voltam do trabalho levam os filhos à escola conversam com os amigos fazem exercícios físicos enfrentam o trânsito caótico das metrópoles a vida calma das pequenas cidades São atos tão rotineiros que na maioria das vezes são executados de forma mecânica como se não tivessem consciência de que os estão realizando Por um momento apenas vamos nos colocar como observadores de tais cenas cotidianas Pode ser que a nossa reação fosse de simples registro das pessoas e dos seus atos Assim não perceberíamos nada de diferente no mundo dos homens Pode ser contudo que por alguma razão nos motivássemos a ir além da percepção mais imediata das pessoas e dos seus atos Por exemplo perceber que embora os atos realizados sejam semelhantes ir ao trabalho as pessoas que os realizam são diferentes ou ao contrário que pessoas semelhantes realizam trabalhos diferentes A partir dessa questão inicial podese ir além perguntar o que faz as pessoas serem diferentes ou porque existem trabalhos diferentes Mais ainda As pessoas vão para o trabalho utilizandose de transporte coletivo ou individual Elas estão vestidas de terno e gravata ou um simples macacão Se uma pessoa vai ao trabalho de automóvel e usa terno e gravata podemos ter alguma idéia da sua renda e assim relacionar o tipo de escola que os seus filhos frequentam diferentemente da pessoa que veste um macacão e se utiliza de transporte coletivo A segunda postura que vai além do simples registro dos atos observados indica uma forma de pensar que pode ser identificada como sociológica Pensar sociologicamente significa olhar os fatos humanos considerando as relações que eles mantêm entre si Essas relações não são visíveis a um simples olhar elas só podem ser vistas por meio de um olhar conduzido por regras determinadas Vamos desenvolver mais um exemplo o ato de comer um pedaço de pão Pode ser um ato simples de uma pessoa que precisa saciar a fome Se avançarmos porém 9 na busca das relações envolvidas nesse ato a conclusão será surpreendente A primeira questão para construir a relação da pessoa com a coisa pão pode ser colocada pela pergunta sobre quem é a pessoa A resposta pode ser trabalhador empresário cristão muçulmano universitário analfabeto entre outras As pessoas são diferentes pelo lugar que ocupam no processo de trabalho pela identidade visão de mundo pelo grau de educação etc Se o pão é um produto do trabalho humano podemos perguntar como ocorre a sua produção é um processo artesanal ou industrial No primeiro caso pode ser feito por um trabalhador autônomo no segundo por um trabalhador assalariado de um empresário capitalista A matériaprima a farinha é produzida em pequenos moinhos pelas cooperativas ou por grandes empresas capitalistas globalizadas E o trigo ou o milho Qual o processo técnico adotado Ele produz destruição do meio ambiente As tecnologias empregadas na produção envolvem relações entre países Em que período histórico elas ocorrem na era do globalismo Há outras possibilidades no entanto se o ato de comer um pedaço de pão tem um sentido simbólico um ato religioso por exemplo Pela observação e análise deste ato poderíamos avaliar as ideologias presentes na sociedade e o papel desempenhado por elas na reprodução da vida social Atualmente muitos sociólogos insistem em que devemos considerar a identidade como categoria fundamental para explicarmos os comportamentos humanos Uma análise mais cuidadosa contudo evidencia que a Sociologia nunca negligenciou esse aspecto A diferença é que hoje em razão da revolução informacional e da globalização a identidade gerada tanto pelo trabalho quanto pela Nação por exemplo estão sofrendo um processo profundo de desconstrução Nesse sentido a busca de uma identidade é um objetivo fundamental dos seres humanos no momento atual Enfim podemos a partir de um ato simples estabelecer o conjunto de relações sociais que estão contidas na pessoa e no pão Como se pode depreender do exemplo as relações econômicas políticas e ideológicas de uma determinada época histórica estão contidas em todos os atos humanos Esta é a primeira manifestação da natureza do pensamento sociológico a perspectiva da totalidade As ações humanas não têm condições de existir isoladamente Sempre que alguém realiza uma 10 ação ela repercute sobre outros Se ela aparentemente se dirige para apanhar uma fruta silvestre por exemplo este ato está carregado de um significado universal na medida em que incorpora de alguma forma práticas humanas anteriores Uma ação individual não existe fora da sociedade ou dito de outra forma a sociedade existe em cada ação singular A reflexão feita até agora nos permite expor uma outra característica da Sociologia a existência da sociedade A criação da Sociologia deu visibilidade à dimensão social da condição humana portanto permitiu compreender o homem como ser social O homem existe como ser social e não como um indivíduo que existe em si e para si As implicações deste fato são óbvias os atos de cada indivíduo singular repercutem nos demais indivíduos cada ação realizada por um indivíduo implica em sua responsabilidade social por aquilo que foi feito A sociedade se torna assim o palco fundamental das ações humanas A Sociologia possibilita a compreensão das ações humanas como ações sociais bem como as interações entre as diferentes ações humanas Uma mesma pessoa pode agir como serquetrabalha que faz o pão do nosso exemplo como um sercidadão membro de uma comunidade política como um serqueproduzidéias membro da comunidade científica por exemplo Podemos fazer a seguinte pergunta essas dimensões têm a mesma importância na constituição do ser social ou há dimensões condicionantes das demais O desenvolvimento da Sociologia demonstrou que essa pergunta comporta diferentes respostas que determinaram a formação de diferentes teorias sociológicas Antes de aprofundarmos a problemática das teorias sociológicas cabe ainda a explicitação do papel mais profundo da Sociologia o autoconhecimento ou autoconsciência da sociedade A criação da Sociologia ao mesmo tempo que permitiu afirmar o caráter social da condição humana constituiuse como um conhecimento da sociedade que incide sobre ela exercendo uma ação decisiva na reprodução da sociedade no sentido da conservação ou da transformação das relações sociais vigentes Obviamente antes da criação da Sociologia havia outras formas de pensamento social como é o caso do contratualismo A diferença fundamental é que 11 o contratualismo parte do homem como ser natural o animal racional que pode estabelecer um pacto contrato entre todos criando assim a sociedade civil ou sociedade política enquanto para a Sociologia como vimos anteriormente o ser natural já é um ser social portanto a sociedade existe independentemente do contrato Também a Sociologia é um ato social porque os conceitos elaborados não serão conhecidos e empregados apenas pelo sociólogo O grande sociólogo brasileiro Florestan Fernandes denominou esse fenômeno de a natureza sociológica da Sociologia Esses conceitos serão de alguma forma disseminados para o conjunto da sociedade tendo mais ou menos influência social Mais adiante vamos nos referir aos autores que fundaram a Sociologia e por isso os denominamos de clássicos Muitos outros no entanto escreveram sobre a sociedade elaborando idéias até mesmo originais mas que não foram apropriadas pela sociedade como as idéias dos clássicos Poderíamos formular a seguinte hipótese além da profundidade da análise social feita apelos clássicos ela foi apropriada pelas classes fundamentais da sociedade porque sistematizava os interesses das classes de forma mais coerente A Sociologia constituiuse como um saber produzido segundo o método científico A maneira como fizemos a exposição do nosso exemplo indica como o saber sociológico se constrói A observação regulada das ações humanas é o modo de proceder à construção conceitual da realidade social A racionalidade considerada abstratamente não é capaz de produzir um saber sociológico A tarefa do sociólogo é pesquisar a realidade como ela é Esse saber científico a ciência da sociedade entretanto produz conhecimentos que mostram uma certa singularidade Por que falamos em teorias sociológicas e não em uma teoria sociológica como ocorre na Física na Química e na Biologia Após intensos debates percebemos que qualquer ciência é uma força social ativa é um poder criado pelo homem A ciência referese sempre ao ser mas não podemos eliminar o viraser o futuro Quando fazemos uma afirmação sobre o ser nesta afirmação já estão contidas as possibilidades do viraser Esse dilema é real dele não podemos fugir No caso da Sociologia o problema se amplia pois os conhecimentos produzidos sobre a sociedade envolvem necessariamente pontos de vista diferentes que ao longo da História recente fundamentaram projetos de 12 sociedade cuja expressão mais radical são os movimentos políticos Todo o conhecimento é um ato de criação da realidade investigada no pensamento e como objetividade O que isso significa Que a investigação sociológica não se esgota na compreensão da realidade vivida pelos homens ela também deve permitir ao homem projetarse presentificar o futuro O que a Sociologia não pode é aventurarse exclusivamente na pesquisa do deverser como procederam os pensadores da Utopia e da Cidade do Sol que estudaremos na seção 13 desta Unidade A investigação bemsucedida no entanto exige do observador da vida social uma grande capacidade de imaginação como condição para ultrapassar o mundo das aparências Por isso quando nos referimos à imaginação sociológica conceito criado pelo sociólogo norteamericano C Wright Mills temos de explicitar bem o sentido do termo Imaginação para o sociólogo não é o ato de abstrairse da realidade mas de inserirse tão profundamente quanto possível na realidade Promover a separação entre a consciência e a realidade social é um equívoco metodológico assim como negar que a dimensão criadora do homem se expressa por meio da consciência Assim sendo a imaginação sociológica consiste na postura intelectual em que se busca compreender o contexto social mais amplo e como ele é apreendido pelos indivíduos concretos tendo sempre presente a necessidade de separar as dimensões essenciais das nãoessenciais da vida social Para Wright Mills 1975 p 12 a imaginação sociológica afirma a idéia de que o indivíduo só pode compreender sua própria experiência e avaliar seu próprio destino localizandose dentro de seu período só pode conhecer suas possibilidades na vida tornandose cônscio das possibilidades de todas as pessoas nas mesmas circunstâncias em que ele Sob muitos aspectos é uma lição terrível sob muitos outros magnífica Não conhecemos os limites da capacidade que tem o homem de realizar esforços supremos ou degradarse voluntariamente de agonia ou exultação de brutalidade que traz prazer ou de deleite da razão Mas em nossa época chegamos a saber que os limites da natureza humana são assustadoramente amplos Chegamos a saber que todo o indivíduo vive de uma geração até a seguinte numa determinada sociedade que vive uma biografia que vive dentro de uma sequência histórica E pelo fato de viver contribui por menos 13 que seja para o condicionamento dessa sociedade e para o curso de sua história ao mesmo tempo em que é condicionado pela sociedade e pelo seu processo histórico O sociólogo está proibido de moldar a realidade aos conceitos como se estes fossem a própria verdade Ele deve ser capaz de deixarse surpreender pela realidade investigada Ser sociólogo é exercitar permanentemente a liberdade de investigação que não se resume a fazer o que se quer ou a escolher entre alternativas é também o exercício de refazer as escolhas reavaliar o caminho percorrido e assumir os erros cometidos Enfim ser sociólogo é permitir ser assaltado pela dúvida A FUNDAÇÃO DA SOCIOLOGIA Contexto HistóricoSocial A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE MODERNA A formação da sociedade moderna resulta da completa decomposição das instituições que formavam a sociedade feudal A nova sociedade afirmase pela constituição de um sistema econômico industrial capitalista por um Estado laico não religioso fundado na soberania popular e por uma cultura centrada na idéia de nação ou de uma identidade nacional e na dimensão racional do homem A longa marcha do feudalismo ao capitalismo é marcada por dois momentos importantes a conquista e a exploração da América no século 16 e pela ascensão a afirmação das burguesias nacionais no século 17 São esses processos que estabelecem as condições para o desenvolvimento das revoluções políticas inglesa americana e francesa e da Revolução Industrial inglesa A expansão européia é precedida de um amplo crescimento do comércio e das finanças a partir do século 13 Além disso a invenção da imprensa os avanços na metalurgia na produção de metais e de produtos têxteis a fabricação de canhões e de outras armas de fogo o aprimoramento da construção de caravelas e das técnicas de navegação entre outros fatores ampliam as condições para o desenvolvimento do comércio e das conquistas de novos territórios Nesse momento histórico a acumulação da riqueza vem do comércio e dos metais preciosos ouro prata Como afirma Michel Beaud 1991 p 20 14 Monarcas ávidos de grandezas e de riquezas Estados lutando pela supremacia mercadores e banqueiros encorajados ao enriquecimento são estas as forças que promoverão o comércio as conquistas e as guerras sistematizarão a pilhagem organizarão o tráfico de escravos prenderão vagabundos para obrigálos a trabalhar Os novos territórios conquistados são transformados em colônias que exercerão papel importante na acumulação das riquezas pelas metrópoles Além da apropriação do trabalho dos camponeses a pilhagem dos tesouros encontrados nos lugares e a organização da produção agrícola canadeaçúcar algodão etc são os fundamentos da acumulação chamada de mercantilista A idéia é que a riqueza provém da acumulação de metais preciosos e da capacidade de um território em vender mais e comprar menos Sintetizando a formação de imensas fortunas pelas burguesias bancária e mercantil o fortalecimento do poder dos reis e consequentemente dos Estados nacionais e sobretudo a elaboração de uma nova concepção de mundo que valoriza a riqueza e a acumulação criam as condições necessárias para a emergência de uma nova burguesia vinculada à produção manufatureira Na Europa no século 17 o processo expansionista desenvolverseá principalmente na Holanda na Inglaterra e na França Observase um significativo crescimento do comércio dos bancos da navegação e das atividades de transformação No caso da Holanda desenvolveuse uma rica burguesia vinculada às seguintes atividades de transformação indústria de lanifício em Leiden e indústria de tecidos em Haarlem tingimento e tecelagem da seda depois fiação de seda e corte de diamantes em Amsterdã refinação de açúcar e acabamento de tecidos ingleses cervejaria destilaria preparação do sal de tabaco de cacau trabalho de chumbo em Roterdã polimento de lentes ópticas fabricação de microscópios de pêndulos e instrumentos de navegação estabelecimento de mapas terrestres e marítimos impressões de livros em todas as línguas Beaud 1991 p 37 Também na Inglaterra formase uma burguesia que desenvolveu a produção manufatureira Diz Beaud 1991 p 39 que por volta de 1640 algumas hulheiras produzem de dez a vinte e cinco toneladas por ano contra algumas centenas de 15 toneladas no século anterior Altos fornos fundições com grandes martelos de água fábricas de alúmen e de papel empregam várias centenas de operários mercadores e fabricantes de têxteis fazem trabalhar várias centenas por vezes vários milhares de fiandeiros ou de tecelões a domicílio A burguesia que promove esse desenvolvimento comercial e manufatureiro necessita de encorajamento e de proteção ao mesmo tempo Na França mediante uma forte presença do Estado sobretudo no período de Luís XIV e seu ministro Colbert foram criadas mais de 400 manufaturas São manufaturas coletivas reunindo vários centros artesanais que se beneficiam juntos de privilégios concedidos fábrica de tecidos de Sedan ou de Elbeuf malharia de Troyes manufatura de armas de SaitÉtienne Manufaturas privadas empresas individuais Van Robais em Abbeville ou grandes companhias com sucursais em várias províncias especialmente para as minas para a grande metalurgia Companhia Dallier de la Tour forjas canhões âncoras armas para os lanifícios Manufaturas do rei enfim propriedade do soberano Gobelins Sèvres Aubusson Saintgobain mas também arsenais e fundições de canhões Os privilégios concedidos monopólios de produção ou de venda isenções financiamento têm como contrapartida controles rigorosos normas quantidade Beaud 1991 p 55 Nesse período vigorosa ainda uma política mercantilista A aliança da burguesia com o rei produziu uma forma de Estado absolutista em que será assegurada a riqueza do rei a defesa da produção e das políticas mercantilistas necessárias para garantir a expansão e a defesa do comércio em relação aos concorrentes estrangeiros Na Inglaterra essa aliança foi questionada a partir do confronto entre o rei Carlos I e o Parlamento este representando as novas classes em ascensão A derrubada da Monarquia e a instituição da República sob a direção de Oliver Cromwell fortaleceu as posições da burguesia na economia tanto que a restauração da Monarquia com Carlos II não foi capaz de gerar uma situação de estabilidade política Os confrontos se ampliaram culminando com o triunfo da Revolução Gloriosa em 1688 que estabeleceu definitivamente o poder do Parlamento Os ingleses produziram uma solução intermediária sendo mantido o poder do rei 16 Guilherme I porém submetido ao Parlamento o poder supremo e à Constituição Assim forjouse o Estado moderno na Inglaterra sob a égide da burguesia vinculada à produção ao comércio e às finanças dos profissionais liberais dos comerciantes e dos agricultores enriquecidos É importante sublinhar a situação de profunda exploração das classes trabalhadoras tais como camponeses e artesãos que trabalhavam para negociantes fabricantes mendigos obrigados a trabalhar nas workhouses e o trabalho escravo mantido nas Colônias que foram fundamentais para a produção e a acumulação de riquezas Na verdade o que se verifica nesse momento histórico é uma brutal exploração destes segmentos sociais que protagonizam inúmeras revoltas É o caso por exemplo das chamadas guerras camponesas que proliferaram em toda a Europa Essa situação social também possibilitou o surgimento das primeiras idéias de reforma social cujos exemplos mais importantes nesse período são a Utopia de Thomas Morus texto publicado em 1516 e a Cidade do Sol publicado em 1602 por Tomaso Campanella os quais abordaremos novamente na seção que trata do contexto intelectual em que ocorre a formação da Sociologia O fechamento dos campos enclosures acts pelos grandes proprietários provocou uma enorme migração de camponeses para as cidades Estes campos passaram a ser ocupados pela criação de ovelhas para atender à crescente demanda pela lã A reação dos camponeses logo se fez sentir intensamente reivindicando liberdade democracia parlamentar e propriedade Ao mesmo tempo as cidades cresceram e os mercados ultrapassaram os limites citadinos Esse processo é extremamente importante pois rompe com a estrutura das corporações que conseguiam atender às demandas locais por produtos artesanais Assim começa a surgir uma nova figura no processo produtivo um intermediário cuja função era fazer com que os produtos chegassem até os consumidores Quando ele passa também a disponibilizar a matériaprima o mestre artesão desempenha apenas as funções de empregador trabalhador e capataz Na verdade este se transforma paulatinamente em um simples produtor de mercadorias Mesmo que ainda fossem donos dos instrumentos de trabalho eles dependiam da matériaprima trazida pelos intermediários e não mais se apropriavam do produto final 17 Leo Huberman na sua magistral obra A História da Riqueza do Homem sintetiza o processo de evolução dos sistemas produtivos que culmina com o domínio do sistema fabril no século 18 Embora o desenvolvimento não seja um processo linear de etapas que se sucedem podese estabelecer as seguintes fases 1 Sistema familiar os membros de uma família produzem artigos para seu consumo e não para a venda O trabalho não se fazia com o objetivo de atender ao mercado Princípio da Idade Média 2 Sistema de corporações produção realizada por mestres artesãos independentes com dois ou três empregados para o mercado pequeno e estável Os trabalhadores eram donos tanto da matériaprima que utilizavam como das ferramentas com que trabalhavam Não vendiam o trabalho mas o produto do trabalho Durante toda a Idade Média 3 Sistema doméstico produção realizada em casa para um mercado em crescimento pelo mestre artesão com ajudantes tal como no sistema de corporações Com uma diferença importante os mestres já não eram independentes tinham ainda a propriedade dos instrumentos de trabalho mas dependiam para a matériaprima de um empreendedor que surgira entre eles e o consumidor Passaram a ser simplesmente tarefeiros assalariados Do século XVI ao XVIII 4 Sistema fabril produção para um mercado cada vez maior e oscilante realizado fora de casa nos edifícios do empregador e sob rigorosa supervisão Os trabalhadores perderam completamente sua independência Não possuem a matéria prima como ocorria no sistema de corporações nem os instrumentos tal como no sistema doméstico A habilidade deixou de ser tão importante como antes devido ao maior uso da máquina O capital tornouse mais necessário do que nunca Do século XX até hoje Huberman 1974 p 125 A Revolução Industrial é um evento que se desenvolve fundamentalmente na Inglaterra A combinação de vários fatores econômicos sociais políticos e culturais fez do território inglês um lugar em que incontáveis decisões de empresários e investidores respaldados por uma nova institucionalidade política fossem comandadas pela busca do lucro máximo De acordo com Hobsbawm 1977a p 47 18 as condições adequadas estavam visivelmente presentes na GrãBretanha onde mais de um século se passara desde que o primeiro rei tinha sido formalmente julgado e executado pelo povo e desde que o lucro privado e o desenvolvimento econômico tinham sido aceitos como os supremos objetivos da política governamental A solução britânica do problema agrário singularmente revolucionária já tinha sido encontrada na prática Uma relativa quantidade de proprietários com espírito comercial já quase monopolizava a terra que era cultivada por arrendatários empregando camponeses sem terra ou pequenos agricultores As atividades agrícolas já estavam predominantemente dirigidas para o mercado as manufaturas de há muito tinhamse disseminado por um interior não feudal A agricultura já estava preparada para levar a termo suas três funções fundamentais numa era de industrialização aumentar a produção e a produtividade de modo a alimentar uma população não agrícola em rápido crescimento fornecer um grande e crescente excedente de recrutas em potencial para as cidades e as indústrias e fornecer um mecanismo para o acúmulo de capital a ser usado nos setores mais modernos da economia Um considerável volume de capital social elevado o caro equipamento geral necessário para toda a economia progredir suavemente já estava sendo criado principalmente na construção de uma frota mercante e de facilidades portuárias e na melhoria das estradas e vias navegáveis A política estava engatada ao lucro A forma principal do capitalismo inglês presente nas atividades de transformação foi o sistema doméstico em que artesãos ou camponeses pobres produzem bens a domicílio para um mercadorfabricante A manufatura reunindo no mesmo espaço muitos trabalhadores não se desenvolveu plenamente na Inglaterra A partir da segunda metade do século 18 contudo desenvolveuse a forma de organização típica da produção capitalista o sistema de fábricas Durante todo o século 18 são geradas na Inglaterra as inovações técnicas que aumentaram significativamente a produção Já no início do século John Lombe furtou os segredos das máquinas italianas de fiar a seda construindo com seu irmão uma fábrica em 1717 Nessa mesma época os Darby melhoraram a produção de ferro fundido com misturas de coque de turfa e de pó de carvão utilizando um potente fole de forja Nas minas são empregadas bombas atmosféricas a vapor para retirar a água 19 Em 1733 o tecelão John Kay inventa uma lançadeira volante cujo uso se generaliza duas décadas depois Em 1749 o relojoeiro Huntsmann fabrica aço fundido No período de 1730 a 1760 a utilização do ferro aumenta em 50 De 1740 a 1770 o consumo de algodão aumenta 117 Em 1764 o tecelão James Hargreaves aperfeiçoa a roca spinning jenny possibilitando fiar vários fios ao mesmo tempo Em 17671770 o cardador Thomas Hights e o penteador Arkwright passam a utilizar a energia da água com o waterframe O fiador e tecelão Compton irá combinar essas duas invenções por meio da mule jenny localizando as fiações próximas às correntes de água James Watt nos anos 60 inventa a máquina a vapor que será usada na indústria a partir de 1775 Em 1785 será construída em Nottingham a primeira fiação a empregar máquinas a vapor Nesse mesmo ano o pastor Cartwright inventa o tear mecânico cujo emprego será generalizado no fim do século Paralelamente o progresso técnico verificase em outras áreas da produção têxtil máquinas de bater de cardar de fiar em quantidade branqueamento tintura etc e em outras indústrias fábricas de papel serraria madeira etc Também a produção do ferro progride intensamente Em 1776 são fabricados os primeiros trilhos de ferro e em 1778 é construído o primeiro navio de ferro Cabe ressaltar também a centralidade do algodão na Revolução Industrial Afirma Eric Hobsbawm que o algodão permitiu a criação de um conjunto bastante amplo de atividades fabris responsáveis por uma expressiva parcela do crescimento econômico da Inglaterra até 1830 Também cabe ressaltar a importância do carvão a principal fonte de energia industrial e importante combustível doméstico na Inglaterra O carvão está na base do desenvolvimento de uma das principais invenções da Revolução Industrial a ferrovia A expansão das ferrovias foi significativa Em 1830 havia poucos quilômetros de ferrovias no mundo em 1840 havia 7 mil quilômetros e em 1850 mais de 37 mil quilômetros Essa expansão explicase pelo fato de que as classes ricas acumulavam renda tão rapidamente em tão grandes quantidades que excediam todas as possibilidades disponíveis de gasto e investimento Hobsbawn 1977a p 62 Esse conjunto de invenções e de técnicas revoluciona a produção gerando 20 uma nova forma de organização a fábrica Ela se generaliza nos séculos seguintes constituindo o núcleo estratégico do desenvolvimento do capitalismo De acordo com Beaud 1991 p 107 a fábrica utiliza uma energia hulha preta para o calor hulha branca para acionar os mecanismos e máquinas É apenas no fim do século que os motores a vapor concebidos e experimentados por Watt entre 1765 e 1775 serão usados para acionar as máquinas haverá cerca de quinhentos em serviço por volta de 1800 Com essa energia é promovido um sistema de máquinas que resulta necessariamente na organização da produção e dos ritmos do trabalho e que implica uma nova disciplina para os trabalhadores que a servem São construídas fiações construções de tijolo de quatro ou cinco andares empregando centenas de operários fábricas de ferro e de fundição reúnem altos fornos e várias forjas A fábrica tornase o espaço institucional privilegiado para a produção capitalista de mercadorias Nela estabelecemse relações entre duas classes importantes o empresário capitalista proprietário dos meios de produção e os trabalhadores assalariados Como se trata de uma forma de produção que visa ao lucro e à acumulação do capital a inovação das técnicas e a permanente ampliação dos mercados constituemse em práticas fundamentais A concorrência ameaça permanentemente cada capitalista individual e as crises periódicas o conjunto dos capitalistas Os trabalhadores também estão sob a constante ameaça do desemprego e da redução dos salários Além disso são submetidos a uma rígida disciplina e a formas de controle cada vez mais científicas Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista reconhecendo o papel revolucionário desempenhado pela burguesia na História moderna assim avaliaram as consequências da hegemonia da burguesia no mundo moderno onde quer que tenha chegado ao poder a burguesia destruiu todas as relações feudais patriarcais idílicas Dilacerou impiedosamente os variegados laços feudais que ligavam o ser humano a seus superiores naturais e não deixou subsistir entre homem e homem outro vínculo que não o interesse nu e cru o insensível pagamento em dinheiro Afogou nas águas gélidas do cálculo egoísta os sagrados frêmitos da exaltação religiosa do entusiasmo cavalheiresco do sentimentalismo pequenoburguês Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca e no lugar das inúmeras liberdades já 21 reconhecidas e duramente conquistadas colocou unicamente a liberdade de comércio sem escrúpulos Transformou em seus trabalhadores assalariados o médico o jurista o padre o poeta o homem de ciência A necessidade de mercados cada vez mais extensos para seus produtos impele a burguesia para todo o globo terrestre Ela deve estabelecerse em toda a parte instalarse em toda a parte criar vínculos em toda a parte Através da exploração do mercado mundial a burguesia deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países Marx Engels 1996 p 68 69 Sintetizando os processos sociais que se desenvolveram entre os séculos 15 e 18 culminaram com a Revolução Industrial o estabelecimento do sistema fabril e as demais instituições da sociedade moderna Uma nova sociedade nasceu urbana industrial e capitalista É claro que essa colossal transformação do mundo não teria sido possível se as novas classes sociais não tivessem desenvolvido uma visão de mundo coerente com seus interesses uma nova cultura e uma igualmente nova forma de Estado Assim as novas classes ligadas ao comércio à produção manufatureira e posteriormente fabril desenvolveram uma visão de mundo uma forma de Estado que genericamente podemos designar como liberal Inicialmente fizemos menção ao primeiro grande acontecimento político ocorrido no século 17 as duas revoluções inglesas que criaram as bases políticas e culturais para o desenvolvimento da Revolução Industrial na Inglaterra e do Estado moderno Posteriormente em 1776 a revolução americana embora não tenha tido a mesma importância ao mesmo tempo que afirmou a independência e a criação dos Estados Unidos da América instituiu uma forma republicana de Estado Esses processos políticos terão como momento culminante a Revolução Francesa Se a Revolução Industrial inglesa como vimos moldou a economia moderna foram os acontecimentos ocorridos na França em 1789 que deram forma à política e à ideologia moderna Foi uma verdadeira revolução social de massa mais radical do que outros processos similares e profundamente ecumênica Conforme Hobsbawm 1977a p 73 seus exércitos partiram para revolucionar o mundo suas 22 idéias de fato o revolucionaram Sua influência direta é universal pois ela forneceu o padrão para todos os movimentos revolucionários subsequentes suas lições interpretadas segundo o gosto de cada um tendo sido incorporadas ao socialismo e ao comunismo modernos A revolução francesa passou por várias fases de avanços e recuos O seu momento mais radical a república jacobina passou para a história como a fase do terror no entanto podese arguir que sem esse momento talvez a restauração ocorrida posteriormente teria sido mais substantiva do ponto de vista social e político Com o fim da república jacobina ocorreram várias alternâncias de regime responsáveis pela manutenção da sociedade burguesa Diretório 17951799 Consulado 17991804 Império 18041814 a restauração da Monarquia Bourbon 18151830 a Monarquia Constitucional 18301848 a República 18481851 e o Império 18521870 A fase dirigida por Napoleão oriundo do próprio movimento jacobino representou o momento das grandes conquistas e da consolidação da revolução É certo que a utopia radical da liberdade igualdade e fraternidade foi substituída pelos símbolos maiores da sociedade burguesa o Código Civil a criação do Banco Nacional a hierarquia do funcionalismo público e a instituição das grandes carreiras da vida pública francesa como o exército o Direito e a educação Ainda de acordo com Hobsbawm 1977a p 94 o regime napoleônico trouxe estabilidade e prosperidade para todos exceto para os 250 mil franceses que não retornaram de suas guerras embora mesmo para os parentes deles tivesse trazido a glória Sem dúvida os britânicos se viam como os lutadores pela causa da liberdade contra a tirania mas em 1815 a maioria dos ingleses era mais pobre do que o fora em 1800 enquanto que a maioria dos franceses era quase que certamente mais rica e ninguém exceto os trabalhadores assalariados cujo número ainda era insignificante tinha perdido os substanciais benefícios econômicos da Revolução A derrota militar sofrida por Napoleão não impediu a continuidade da revolução burguesa Apenas colocou um ponto final na política expansionista francesa impedindo que a França se tornasse a grande potência do mundo lugar que foi ocupado pela Inglaterra que como vimos foi capaz de desenvolver com sucesso 23 uma economia capitalista Este processo de transformação obviamente não se restringiu às mudanças na esfera econômica ele estendeu sua influência aos campos da política e da cultura gerando um novo processo societário Resta ainda considerar dois aspectos socialmente importantes para compreender o processo de surgimento da Sociologia O primeiro diz respeito à emergência da classe operária como sujeito político independente a partir de 1830 na França e na Inglaterra como produto do aprofundamento da industrialização Podemos citar como exemplo o movimento cartista movimento de trabalhadores ocorrido na Inglaterra que reivindicava o voto universal e secreto igualdade dos distritos eleitorais eleição anual do Parlamento pagamento aos parlamentares e abolição da condição de proprietários para ser candidato O segundo se refere à revolução de 1848 Esse processo que ocorreu mais ou menos simultaneamente em todos os principais países europeus assumiu os contornos de uma verdadeira revolução social O objetivo das forças revolucionárias era o estabelecimento de uma república democrática e social capaz de superar as injustiças e as desigualdades profundas geradas pelo desenvolvimento da sociedade burguesa Com a mesma presteza com que os governos conservadores foram derrubados porém as forças sociais que os sustentavam foram capazes de restabelecer a ordem social Na verdade a verdadeira força revolucionária segundo Hobsbawm foram os trabalhadores pobres Estes constituíram a base social da revolução mas pela falta de organização e inexperiência política não conseguiram formular um projeto claro de sociedade Os pequenos proprietários agricultores a baixa classe média os artesãos descontentes e seus portavozes intelectuais foram importantes agentes revolucionários mas também incapazes de constituir uma real alternativa política Nessa revolução a burguesia assumiu a sua condição de classe deixando de ser definitivamente uma força socialmente revolucionária A revolução de 1848 também produziu mudanças Talvez a mais importante foi levar ao fim a crença na virtude das monarquias sustentadas pela imutabilidade das regras divinas e pela rigidez das hierarquias sociais A defesa da nova ordem social precisava de novos instrumentos conceituais e políticos As diferentes teorias sociais 24 pré e pósrevolucionárias fornecerão os meios mais adequados para a defesa da ordem capitalista mas desenvolverão também os meios para a sua superação A criação da Sociologia vale repetir é parte importante juntamente com o pensamento liberal do universo intelectual dessa época Nela se configuram as teorias que sustentam e as que criticam a nova sociedade industrial capitalista A derrota das forças revolucionárias fortaleceu a sociedade burguesa O período que se seguiu foi de intensa expansão econômica sob a ótica liberal até 1875 ano em que tem início uma profunda depressão econômica Na verdade esse período expansivo criou as bases para a segunda Revolução Industrial Eric Hobsbawm 1977a p 312313 sintetizou as transformações ocorridas nesse período da seguinte forma a economia capitalista mudou de quatro formas significativas Em primeiro lugar entramos agora numa nova era tecnológica não mais determinada pelas invenções e métodos da primeira Revolução Industrial uma era de novas fontes de poder eletricidade e petróleo turbinas e motor a explosão de nova maquinaria baseada em novos materiais ferro ligas metais nãoferrosos de indústrias baseadas em novas ciências tais como a indústria em expansão da química orgânica Em segundo lugar entramos também agora cada vez mais na economia de mercado de consumo doméstico iniciada nos estados Unidos desenvolvida na Europa ainda modestamente pela crescente renda das massas mas sobretudo pelo substancial aumento demográfico dos países desenvolvidos De 1870 a 1910 a população da Europa cresceu de 290 para 435 milhões a dos Estados Unidos de 385 para 92 milhões Em outras palavras entramos no período da produção de massa incluindo alguns bens de consumo duráveis Em terceiro lugar e de certa forma este foi o desenvolvimento mais decisivo uma reviravolta paradoxal teve lugar A era do triunfo liberal tinha sido aquela era de facto do monopólio industrial inglês dentro do qual com notáveis exceções os lucros eram assegurados sem muita dificuldade pela competição de pequenas e médias empresas A era pósliberal caracterizavase por uma competição internacional entre economias industriais nacionais rivais a inglesa a alemã a norte americana uma competição acirrada pelas dificuldades que as firmas dentro de cada uma destas economias enfrentavam no período de depressões para fazer lucros 25 adequados A competição levava portanto à concentração econômica controle do mercado e manipulação O mundo entrou no período do imperialismo no sentido maior da palavra que inclui as mudanças na estrutura da organização econômica como por exemplo o capitalismo monopolista mas também em seu sentido menor uma nova integração dos países subdesenvolvidos enquanto dependências em uma economia mundial dominada pelos países desenvolvidos Além da rivalidade que levou as potências a dividir o globo entre reservas formais ou informais para seus próprios negócios entre mercados e exportações de capital tal processo também era devido à crescente não disponibilidade de matériasprimas na maioria dos próprios países desenvolvidos por razões geológicas ou climáticas Numa escala global esta dicotomia entre áreas desenvolvidas e subdesenvolvidas teoricamente complementares embora não nova em si mesma começou a tomar uma forma reconhecidamente moderna O desenvolvimento da nova forma de desenvolvimentodependência iria continuar com apenas breves interrupções até a queda geral na década de 1930 e forma a quarta grande mudança na economia mundial Um novo estado cada vez mais forte e intervencionista e dentro dele um novo tipo de política desenvolveramse a partir de então recebidos com melancolia pelos pensadores antidemocráticos Esse é o mundo que surgiu das grandes revoluções inglesa e francesa A Revolução Industrial inglesa levou ao limite o desenvolvimento de um processo civilizatório capitalista A revolução francesa expôs as contradições sociais geradas pelas sociedades de classes notadamente a sociedade burguesa criando situações políticas em que diferentes projetos históricos foram confrontados Apesar das derrotas sofridas pelos projetos que envolveram o povo a acúmulo produzido pelas lutas sociais revolucionárias desembocará no mais importante evento do século 20 a revolução soviética A FUNDAÇÃO DA SOCIOLOGIA CONTEXTO INTELECTUAL 26 Reconstruímos o contexto históricosocial em que ocorreu a formação da Sociologia Esse conjunto de transformações obviamente não teria ocorrido se paralelamente os homens não tivessem desenvolvido outras formas de pensar o mundo e a sociedade contrapondoas com o pensamento religioso Por isso é fundamental discutir o contexto intelectual em que ocorre a formação da Sociologia Vale lembrar que a Sociologia como um evento do século 19 ao completar o ciclo de formação das ciências pode ser caracterizada como o momento de consolidação do pensamento científico A nossa tarefa agora será recuperar os momentos principais desse processo A ciência moderna estruturase definitivamente no século 19 Porém a sua história iniciase efetivamente no mundo grego Seria fundamental reconstruir esse processo histórico no seu conjunto Nesse sentido precisaríamos nos referir por exemplo aos pensadores présocráticos como Parmênides para quem o caminho que conduz à verdade é aquele que diz que o ser é e que o nãoser não é ou Heráclito que afirma que o mundo é movimento e contradição esse mundo igual para todos nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez foi é e sempre será um fogo eternamente vivo acendendose e apagandose conforme a medida Ainda se poderia designar as idéias de Empédocles às vezes do múltiplo cresce o uno para um único ser outras ao contrário dividese o uno na multiplicidade ou de Anaxágoras todas as outras coisas participam de todas as coisas Serão os filósofos do período socrático no entanto que darão um impulso novo para a criação de um pensamento racional notadamente Sócrates Platão e Aristóteles Sócrates a partir das premissas conhecete a ti mesmo e só sei que nada sei estabelece um método de produção do conhecimento ou de superação da simples opinião mediante sucessivas perguntas É com esse método que Platão na República chega à conclusão de que a cidade justa é aquela que distribui os homens hierarquicamente em classes segundo sua aptidão os dirigentesfilósofos os soldados e os trabalhadores Para Platão há uma diferença fundamental entre o mundo das idéias mundo perfeito do bem absoluto mundo inteligível ao qual se chega pela Filosofia e o mundo sensível das coisas visíveis e das imagens simples cópia do mundo inteligível Nem todos os homens têm acesso ao mundo 27 inteligível apenas aqueles que podem desenvolver a virtude da sabedoria pois na sua alma predomina o elemento racional Aristóteles contrapõese a Platão sobretudo em relação aos dois mundos o inteligível e o sensível O pensamento aristotélico estabelece um ponto de partida a categoria substância Substância é aquilo que existe o ser e sobre ela podemos construir um conhecimento por meio das categorias estabelecidas pela lógica A substância é ato e potência ou seja possui uma potencialidade que se concretiza o ato numa forma determinada De forma simplificada podese dizer que o mundo das idéias é uma expressão inteligível do mundo sensível Para os objetivos desta reflexão no entanto vamos considerar basicamente as mudanças que se iniciam com o Renascimento no século 15 e vão até o século 19 Esse período inicial pode ser caracterizado pela recuperação do pensamento grego sobretudo a contribuição de Aristóteles feita por Santo Tomás de Aquino Até então prevalecia a influência de Platão incorporada pelo pensamento de Santo Agostinho O humanismo renascentista pode ser resumido na seguinte questão a retomada das reflexões sobre o homem e a natureza oscilando entre as perspectivas humana e religiosa O Renascimento abre a possibilidade de construção de um novo processo civilizatório inicia o rompimento com a época medieval e inaugura a era moderna A retomada do pensamento grego é fundamental porque é por meio dele que os homens começam a pensar o mundo a partir do próprio mundo Além dos artistas vários pensadores renascentistas destacaramse Petrarca Nicolau de Cusa Marcílio Ficino Pico de Mirândola Michel de Montaigne Erasmo de Roterdã Lutero Calvino Tomas Morus Leonardo da Vinci Maquiavel Giordano Bruno Tomaso Campanella entre outros O pensamento humanistarenascentista expressa uma grande vontade de renovação religiosa Lutero e Calvino são exemplos importantes segundo eles a salvação do homem está unicamente na fé e na palavra de Deus revelada nas Sagradas Escrituras Calvino leva ao limite as idéias de providência e predestinação A visão radical de Lutero a liberdade de interpretação do texto sagrado e a possibilidade de qualquer homem iluminado poder pregar a palavra de Deus leva a uma grande divisão da Igreja Católica com a criação da Igreja Luterana Consumada 28 a divisão no entanto o próprio Lutero exortou os príncipes a reprimirem os delitos públicos os perjúrios e as blasfêmias manifestadas em nome de Deus Também é importante ressaltar que nesse período surge um pensamento social crítico protagonizado por Tomas Morus e Tomaso Campanella O primeiro imaginou a ilha de Utopia e o segundo a Cidade do Sol formas de organização social fundadas na propriedade comum dos meios de produção Na Utopia o dinheiro seria abolido e com ele os roubos a violência e a pobreza a igualdade possibilitaria o desenvolvimento do nosso o trabalho deixaria de ser uma atividade penosa os homens seriam pacifistas e seria admitido o pluralismo religioso A Cidade do Sol é uma cidade cristã dirigida por um príncipesacerdote denominado Sol e nela as virtudes verdade gratidão justiça fortaleza magnanimidade etc predominariam sobre os vícios Seus habitantes louvam Ptolomeu admiram Copérnico e são inimigos de Aristóteles O PENSAMENTO DE MAQUIAVEL E A CIÊNCIA MODERNA A Ciência moderna começa a se constituir efetivamente a partir das reflexões feitas por Maquiavel 14691527 sobre o Estado e a política As lições elaboradas por Maquiavel em O príncipe 1513 e nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio escritos entre 1513 e 1519 estabelecem uma nova maneira de produzir o conhecimento Maquiavel abandona a idéia de estabelecer as coisas como elas deveriam ser para analisar as coisas como elas são Afirma ele 1998 p 73 Sendo meu intento escrever algo útil para quem me ler pareceme mais conveniente procurar a verdade efetiva da coisa do que uma imaginação sobre ela Muitos imaginaram repúblicas e principados que jamais foram vistos e que nem se soube se existiram de verdade porque há tamanha distância entre como se vive e como se deveria viver que aquele que trocar o que se faz por aquilo que se deveria fazer aprende antes sua ruína do que sua preservação Esta afirmação é confirmada pelo conteúdo dos dois livros citados Na verdade Maquiavel mediante a observação estabelece princípios sobre o homem e a natureza do Estado bem como das ações que levaram certos príncipes a serem vitoriosos e 29 outros derrotados O fato de os homens serem ingratos volúveis simulados e dissimulados fogem dos perigos são ávidos de ganhar determina a necessidade do Estado como instituição capaz de estabelecer alguma ordem entre os homens que obviamente se transformará em desordem considerando as características imutáveis dos homens Também justifica a necessidade do Estado o fato de existirem duas forças em confronto nas sociedades o povo não quer ser comandado nem oprimido pelos grandes enquanto os grandes desejam comandar e oprimir o povo 1998 p 43 A observação detalhada das ações dos grandes homens governantes chefes militares e da sua própria como dirigente da República de Florença lhe permite construir um conjunto de regras necessárias para a conquista e manutenção do poder político Por exemplo uma regra fundamental para o bom governante é considerar que é mais adequado ser temido do que ser amado posto que a condição preferível uma combinação das duas é muito difícil de ser alcançada O temor coloca a questão do uso da crueldade o governante bemsucedido não deve ter o escrúpulo de empreender ações cruéis se elas forem necessárias para manter o poder do Estado Deve no entanto proceder de forma adequada quando houver justificativa conveniente e causa manifesta evitando sempre atentar contra os bens dos outros A violência é portanto intrínseca ao governante e ao Estado Maquiavel emprega duas categorias analíticas para a compreensão das ações políticas virtú e fortuna Considerando que muitos defendem que as ações humanas são governadas pela fortuna e por Deus Maquiavel posicionase da seguinte maneira já que o nosso livrearbítrio não desapareceu julgo possível ser verdade que a fortuna seja árbitro de metade de nossas ações mas que também deixe ao nosso governo a outra metade ou quase 1998 p 119 A fortuna pode ser traduzida como sorte ou mais precisamente como a indeterminação o acaso A virtú representa a ação determinada ou o conhecimento da situação Se fôssemos inteiramente governados pela deusa fortuna pouco teríamos a fazer como somos apenas em parte governados pela fortuna podemos por meio da virtú dominála Maquiavel cita o exemplo dos rios caudalosos que durante as enchentes arrasam tudo o que está próximo Quando volta a calmaria nada impede 30 que os homens construam diques para controlar a fúria das águas na próxima enchente O que isso significa É a efetiva presença da virtú ou seja da capacidade dos homens observarem um fenômeno natural e inventarem estruturas de proteção Assim a fortuna é controlada pela virtú os homens conquistam sua liberdade A política é uma atividade humana desvinculada dos deuses e da ética ela é governada pela capacidade dos homens em conhecer e transformar o mundo O governante vitorioso é aquele que é capaz de desenvolver a virtú transformandose num verdadeiro sujeito do conhecimento e da política Ele precisa conhecer as diferentes forças sociais a capacidade das mesmas em mobilizar recursos para a disputa pelo poder as estratégias políticas tradicionais e novas e principalmente conhecer a si próprio as suas próprias forças Na modernidade o governante é o partido político que tem um plano de ação administrativa programa de governo capaz de expressar os interesses da maioria da população de tal modo que ela o assume como seu hegemonia O método de investigação adotado por Maquiavel o coloca como um dos precursores da Sociologia Gérald Namer identificao como o fundador da Sociologia do conhecimento É claro que as perspectivas são diferentes o governante o povo e contemporaneamente o sociólogo O próprio Maquiavel adverte para esse problema para conhecer bem a natureza dos povos é preciso ser príncipe e para conhecer a natureza dos príncipes é preciso ser povo 1998 p 130 Como há sempre uma oposição na sociedade os conhecimentos são relativos e respondem aos interesses concretos do povo ou do príncipe Além disso há uma dimensão fundamental a ser observada pelo príncipe que sobrepõe o parecer ser ao ser Essa intransparência se manifesta por exemplo em relação à palavra empenhada para o povo Como ninguém é absolutamente bom novas circunstâncias podem obrigar o príncipe a mudar de posição É nesse momento que deve aparecer uma habilidade inerente ao príncipe saber disfarçar ser um grande simulador e dissimulador Por isso não é necessário que o príncipe efetivamente tenha as qualidades que ele afirma ter como a integridade a humanidade a piedade a fé a bondade a convicção democrática etc mas é indispensável parecer têlas Por isso precisa não se afastar do bem mas entrar no 31 mal se necessário 1998 p 85 Há duas verdades a do príncipe e a do povo Poderíamos julgar apressadamente que este é o pior dos mundos na medida em que ele nos impede de chegar a um conhecimento universal ou ao mundo do bem absoluto Lembremo nos porém de que o príncipe ou o Estado é necessário para instaurar a ordem no mundo dilacerado pelos egoísmos e os conflitos inerentes ao homem Maquiavel sentencia como não há tribunal onde reclamar das ações de todos os homens e principalmente dos príncipes o que conta por fim são os resultados Cuide pois o príncipe de vencer e manter o estado os meios serão sempre julgados honrosos e louvados por todos porque o vulgo está sempre voltado para as aparências e para o resultado das coisas 1998 p 8586 Há várias passagens no entanto em que ele afirma o papel decisivo do povo na política O povo aparece como o ator decisivo para a preservação da liberdade e da República a desunião entre o povo e o Senado de Roma foi a causa da grandeza e da liberdade da República Também quando afirma que um príncipe deve valorizar os grandes ele não se descuida quanto ao papel do povo pois o príncipe não pode se fazer odiar pelo povo Talvez seja inútil o esforço intelectual no sentido de encontrar a verdadeira perspectiva teórica de Maquiavel As suas lições indicam a relatividade das posições políticas As teses de que os fins justificam os meios e da violência como instrumento do Estado transformaram Maquiavel no grande demônio da política num símbolo do mal A própria Igreja Católica se encarregou de elaborar e propagar essa idéia No Concílio de Trento realizado de 1545 a 1561 as obras de Maquiavel foram colocadas no índex dos livros proibidos A partir de então os vocábulos maquiavélico e maquiavelismo adquiriram um sentido pejorativo significando maldade crueldade máfé mentira sacanagem manipulação etc Apesar disso a obra de Maquiavel sobreviveu sendo incorporada definitivamente na formação do pensamento ocidental Uma obra nunca produz unanimidade de pensamento por isso ela só pode se destacar pela sua capacidade de despertar o pensamento crítico É assim que se desenvolve o pensamento de Maquiavel A equação política maquiaveliana não tem solução Mesmo que o povo se torne 32 príncipe ele terá de oprimir aqueles que foram seus opressores A modernidade engendrou novas equações políticas e novas soluções como o Estado democrático de direito que tem oscilado entre uma forma liberal e outra social e o socialismo O Concílio de Trento encerra o movimento renascentista italiano A Igreja Católica por meio da censura e da repressão procura se antepor aos processos sociais políticos e culturais em curso mas não consegue impedir o progresso do pensamento racional Outros pensadores italianos que tiveram problemas com a Igreja foram Giordano Bruno e Tomaso Campanella Este foi preso e condenado à morte salvandose pela sua capacidade de simulação de loucura Giordano Bruno foi denunciado ao Santo Ofício As várias tentativas de convencêlo a renegar suas teses notadamente a sua defesa da revolução copernicana que a seguir estudaremos não surtiram efeito Ele foi julgado e condenado à morte na fogueira sentença executada em fevereiro de 1600 A Revolução Copernicana e a Ciência Moderna Vamos agora analisar o momento decisivo para a constituição da Ciência moderna Na verdade tratase de um processo que apresenta três momentos importantes 1 a revolução astronômica sustentada pelas reflexões de Copérnico Tycho Brahe Kepler e Galileu 2 as contribuições de Bacon e Descartes 3 a formação da Física clássica por Isaac Newton Comecemos pela chamada revolução copernicana o estopim desse processo A obra de Nicolau Copérnico De revolutionibus orbium celestium escrita em 1532 começa a mudar a imagem do mundo produzida pela concepção de Ptolomeu e Aristóteles e sustentada pela Igreja Católica Essa imagem dominante situa a Terra como o centro do universo A Terra é o lugar privilegiado da criação pois foi nela que Deus colocou o homem a sua obra mais importante O que afirma Copérnico A Terra é um corpo celeste como os demais e não ocupa o lugar central no 33 universo Ela está girando em órbitas definidas ao redor do Sol este o verdadeiro centro do universo As principais questões defendidas por Copérnico são o mundo e a Terra são esféricos o movimento dos corpos celestes é uniforme circular e perpétuo a Terra se move em um círculo orbital em torno do seu centro e gira sobre o seu próprio eixo a Terra não está no cento do universo Segundo um texto do próprio Copérnico citado por Reali e Antiseri 1990 p 219 todas as esferas giram em torno do Sol como o seu ponto central Portanto o centro do universo está em torno do Sol O movimento da Terra portanto é suficiente para explicar todas as desigualdades que aparecem no céu Tycho Brahe desenvolveu uma posição crítica ao sistema criado por Copérnico sem negálo totalmente Brahe afirmou que a Terra não ocupa o centro em relação a todos os planetas Para ele o Sol e a Lua giram ao redor da Terra que preside a determinação do tempo porém os demais planetas Mercúrio Vênus Marte Júpiter e Saturno giram em torno do Sol Na verdade estabeleceu uma solução intermediária entre os sistemas de Ptolomeu e Copérnico solução que se mostrou insustentável como irão demonstrar posteriormente Kepler e Galileu Johannes Kepler 1571 1630 assumiu a defesa do sistema copernicano agregando contribuições importantes para o seu desenvolvimento Como matemático sustentava a possibilidade de estabelecer relações entre a ordem do mundo e a sua expressão matemática Assim procedeu a uma revisão da concepção de Copérnico sobre a circularidade e a uniformidade dos movimentos planetários Formulou as seguintes leis as órbitas dos planetas são elipses das quais o Sol ocupa um dos focos a velocidade orbital de cada planeta varia de tal modo que a linha que liga o Sol e o planeta cobre em iguais intervalos de tempo iguais porções de superfície Além disso sustentou que o Sol fundamento das celestes harmonias é a causa determinante do movimento dos planetas o primeiro motor do universo a causa do seu próprio corpo há uma força motriz que se origina do Sol e que provoca os movimentos dos planetas 34 Será Galileu Galilei 15641642 entretanto o grande responsável pela afirmação definitiva do sistema copernicano A contribuição de Galileu foi tão expressiva que podemos considerálo como o verdadeiro fundador da Ciência moderna Ele esteve no centro de um profundo confronto político com a Igreja o que evidencia que a fundação da Ciência além da dimensão intelectual foi também um processo político A condenação de Galileu não foi capaz de impedir o avanço e a consolidação da racionalidade científica como forma de se chegar à verdade Galileu escreveu várias obras Entre elas se destacam Sidereus Nuncius Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo e Discursos e demonstrações matemáticas sobre as duas Nnovas ciências atinentes à mecânica a aos movimentos locais Vamos agora resumir as principais contribuições de Galileu que consolidam a ciência astronômica e propõem duas outras ciências a estática e a dinâmica Em seguida entender a posição de Galileu no processo de formação da Ciência moderna O contexto das reflexões de Galileu tão bem estabelecido por ele próprio é o confronto entre dois sistemas ou dois mundos o aristotélicoptolomaico em que a Terra está no centro e o Sol girando ao seu redor e o copernicano que inverte radicalmente a ordem do mundo a Terra gira ao redor do Sol É importante referir também que o sistema geocêntrico afirmava a divisão do mundo o supralunar constituído pelos céus perfeito incorruptível e imóvel e o sublunar constituído pela Terra imóvel porém considerando que nela existem corpos em constante movimento imperfeitos perecíveis e corruptíveis Utilizandose de uma luneta aperfeiçoada por ele próprio Galileu consegue fazer observações até então impossíveis de realizar E destaca até as estrelas que normalmente não aparecem à nossa vista e aos nossos olhos por sua pequenez e pela fraqueza de nossa vista podem ser vistas por meio deste instrumento Assim ele constata que existiam mais estrelas do que aquelas vistas a olho nu a superfície da Lua era irregular e rugosa o Sol tinha manchas Júpiter possuía satélites e as nebulosas eram amontoados de pequenas estrelas Observando os movimentos da Terra em relação ao sistema ele constata que é falsa a distinção aristotélica dos dois mundos Existe apenas um mundo e portanto apenas uma única física As duas ciências propostas por Galileu a estática e a dinâmica são ciências 35 que tratam do mesmo objeto o mundo físico no entanto elas têm como fundamento a observação e a experiência Galileu expôs numa carta em 1615 a sua posição sobre as possibilidades do conhecimento do mundo físico pareceme que nas disputas sobre problemas naturais não se deveria começar pela autoridade de passagens das Escrituras mas sim pelas sensatas experiências e pelas demonstrações necessárias Podemos concluir que a Ciência não depende da fé Ela é autônoma em relação à religião e por isso não pode ter pretensões de um saber dogmático Para Galileu a Ciência é o conhecimento objetivo das sensações ou das relações quantificáveis e mensuráveis dos corpos que se expressam em linguagem matemática A Matemática e a experimentação se combinam na explicação da realidade Referimos a luneta mas Galileu inventou outros instrumentos que possibilitaram a realização de observações como é o caso do plano inclinado do termômetro e do relógio de água A experiência é uma construção do cientista que se coloca um problema sob a forma de suposições que serão ou não comprovadas pela construção de determinados experimentos Para ele não há outra possibilidade para produzir uma explicação verdadeira da realidade Esse modo de ver e explicar o mundo pôs Galileu em posição de confronto com a Igreja O primeiro processo movido contra ele foi em 1616 O Santo Ofício exigiu que ele abandonasse a idéia de Copérnico determinandolhe sob a ameaça de prisão a não ensinála e não defendêla de nenhum modo nem com a palavra nem com os escritos Com a escolha do cardeal Mafeu Barberini como papa Urbano VIII amigo e admirador de Galileu ele retoma os seus escritos O papa entretanto foi convencido pelos adversários de Galileu de que este era uma ameaça a sua autoridade O inquisidor de Florença proibiu a circulação do Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo Em 1633 ele estava novamente diante do Santo Ofício afirmando que o seu escrito tinha como objetivo demonstrar que o sistema copernicano não era válido Os inquisidores não aceitaram o seu argumento e o condenaram em 22 de junho de 1633 à prisão perpétua e a renunciar as suas idéias Aceitando a condenação de joelhos Galileu assim se pronunciou 36 Abjuro maldigo e detesto os referidos erros e heresias e em geral todo e qualquer outro erro heresia e seita contrárias à Santa Igreja E juro que para o futuro nunca mais direi nem afirmarei por voz ou por escrito coisas tais pelas quais se possa ter de mim semelhante suspeita A prisão perpétua foi transformada em pena de confinamento sendo proibido de encontrar pessoas ou escrever sem autorização Apesar disso Galileu continuou escrevendo e em 1638 foi publicada sua última grande obra dando continuidade às suas reflexões Discursos e demonstrações matemáticas sobre duas novas ciências Morreu em 1642 Em 1992 o Vaticano anunciou a reabilitação de Galileu Analisamos a contribuição de Galileu para a formação da Ciência moderna Vamos agora analisar sucintamente os vários aspectos que fazem de Isaac Newton 16421727 o grande cientista que coloca o último tijolo no processo de formação da Ciência moderna materializada na constituição da Física clássica Newton autor de Philosophiae naturalis principia mathematica é considerado o ponto culminante de muitos esforços e obstáculos para compreender a dinâmica do universo dos princípios da força e dos corpos em movimento Inventou um telescópio por reflexão estudou a luz formulando a teoria corpuscular da luz as cores o cálculo infinitesimal e a mais importante das suas formulações a lei da gravitação universal Procedeu à demonstração matemática da teoria copernicana do universo afirmando que todos os movimentos celestes estão submetidos a uma força de gravitação em direção ao Sol inversamente proporcional ao quadrado das distâncias em relação a ele As regras da Física estabelecidas por Newton podem ser assim resumidas a simplicidade da natureza não se deve admitir mais causas para explicar os fenômenos naturais do que aquelas que são tanto verdadeiras como suficientes para explicálos a uniformidade da natureza aos mesmos efeitos devese atribuir as mesmas causas as qualidades que pertencem a todos os corpos presentes num experimento devem ser consideradas qualidades universais dos corpos Assim a natureza é simples e uniforme e por meio das observações e dos experimentos podese por 37 indução chegar à definição das propriedades fundamentais dos corpos como extensão dureza impenetrabilidade mobilidade inércia e a gravitação universal Em relação ao movimento dos corpos Newton formulou as seguintes leis até hoje vigentes todo o corpo mantém seu estado de repouso ou movimento a não ser que uma força exerça ação sobre ele a mudança de movimento é proporcional à força exercida e ocorre na direção da linha reta segundo a qual ela foi exercida toda a ação gera uma reação igual e contrária os corpos seus movimentos e suas conexões estão todos submetidos a um único princípio a lei da gravidade Temos assim a formulação de um aspecto que torna possível a Ciência a ordem do mundo Essa ordem o sistema do mundo é uma grande máquina em que cada corpo tem um lugar e um movimento em relação a si e a todos caracteriza o princípio da gravitação recíproca Essa ordem explicada pela Ciência só pode ser compreendida na sua essência como criação de um ser inteligente poderoso e perfeito Este ser é Deus o governador de todas as coisas o senhor de tudo ele é eterno infinito onipotente e onisciente Como se vê a ordem do universo pode ser conhecida segundo as regras da observação e da experiência o físico a constata e a explica por intermédio da gravidade Sabe que a gravidade existe objetivamente mas ao indagar sua essência percebe que isto extrapola a experiência Essa questão segundo Newton foge da Física experimental A religião contudo pode produzir uma resposta para a questão das causas últimas É importante destacar também que todos os trabalhos de Newton foram legitimados pela Sociedade Real de Londres para a Promoção dos Conhecimentos Naturais Royal Society importante instituição científica formada pelos filósofos experimentais e reconhecida pelo Estado inglês Newton ocupou a presidência da Sociedade de 1703 até a sua morte Cabe ainda uma referência a Francis Bacon 15611626 O autor de Novum Organun é anterior a Newton Ele não é um cientista é um defensor da Ciência como prática necessária para transformar a vida humana efetivando os valores da 38 fraternidade e do progresso Crítico impiedoso dos filósofos antigos medievais e renascentistas autores de uma filosofia das palavras que deveria ser substituída por uma filosofia das obras Além disso critica a lógica tradicional que é inútil para a pesquisa das ciências O verdadeiro método para a descoberta da verdade não é o aristotélicoescolástico mas aquele que parte dos sentidos e dos casos particulares compondo axiomas que vão gradualmente sendo generalizados O método científico fundamentase na experiência e na indução É da experiência que se pode formular um axioma e deste voltar novamente à experiência Há no entanto uma primeira regra fundamental eliminar da mente os idola ou falsas noções que invadiram o intelecto humano nele lançando profundas raízes e que impedem o acesso à verdade Os ídolos manifestamse de várias formas entre as quais 1 os que penetram no espírito humano pelas doutrinas filosóficas 2 os que decorrem das relações de fala entre os homens 3 os que derivam da singularidade de cada indivíduo e 4 os que advêm dos interesses e da conveniência de cada um A questão dos ídolos antecipa o debate sobre a relação entre Ciência e ideologia ou a questão da neutralidade científica Uma vez superadas as falsas noções podemos por meio da experiência chegar à verdade É nesse momento que se deve promover a união do experimental e do racional exatamente para compreender a estrutura do fenômeno e a lei que o regula Em síntese a formação da ciência moderna tem um fundamento o mundo é uma realidade ordenada e uniforme A tarefa da Ciência é captar as regularidades dos fenômenos estabelecendo as relações entre eles Esse empreendimento só é possível mediante o método experimental ou seja formulamse hipóteses como fez Copérnico e por meio da experiência como fez Galileu concluise pela comprovação ou não das hipóteses A Ciência não deve se ocupar das causas últimas mas apenas das relações causais verificáveis É importante frisar que o confronto entre os sistemas geocêntrico e heliocêntrico constituiuse na expressão 39 intelectual de dois mundos sociais em confronto cujo epílogo foi a Revolução Francesa O Confronto entre Racionalismo e Empirismo A história da Ciência terá ainda novos confrontos importantes A imagem do mundo construída de Copérnico a Newton abre novos confrontos apesar da condenação de Galileu pela Igreja Dois movimentos importantes vão se constituir um deles vai colocar a necessidade de submeter a experiência ao domínio da razão o racionalismo cartesiano o outro vai afirmar a experiência como fundamento e limite do conhecimento o empirismo Vamos analisar resumidamente os argumentos que constituem o racionalismo de René Descartes 15961650 Descartes publicou em 1637 uma obra que se tornou clássica no pensamento ocidental o Discurso do Método para conduzir bem sua razão e procurar a verdade nas ciências A questão que ele analisa referese à validade dos conhecimentos científicos Por isso a problemática do método como condição para buscar a verdade adquire um lugar central na reflexão cartesiana Os conhecimentos adequados devem ser úteis à vida considerando a perspectiva de os homens tornaremse como que senhores e possuidores da natureza Vejamos o procedimento de Descartes para estabelecer um método que é o próprio processo de produção do conhecimento Inspirado na Matemática ele estabelece quatro regras para conduzir a res cogitans no seu propósito de conhecer Na verdade tratase de suspender ou pôr em dúvida todos os conhecimentos existentes São elas Jamais aceitar alguma coisa como verdadeira que não soubesse ser evidentemente como tal isto é de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção dividir cada uma das dificuldades em tantas partes quantas possíveis conduzir por ordem meus pensamentos a começar pelos objetos mais simples e mais fáceis de serem conhecidos para galgar pouco a pouco como que por graus até o conhecimento dos mais complexos fazer em toda a parte enumerações tão completas e revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada ter omitido Descartes 1989 40 p 4445 Além disso Descartes estabeleceu uma moral provisória que define o contexto em que o pensamento deve operar Essa questão é importante pois ela estabelece os limites políticos do conhecimento Nem tudo o que existe será negado São as seguintes as regras morais Obedecer às leis e aos costumes de meu país tendo presente constantemente a religião ser eu o mais firme e o mais resoluto possível em minhas ações procurar sempre vencer a mim próprio do que ao destino e de modificar mais os meus desejos do que a ordem do mundo aplicar toda a minha vida em cultivar a razão avançando o mais que pudesse no conhecimento da verdade segundo o método que me prescrevera Descartes 1989 p 4851 Definidas as regras do método e a moral provisória Descartes começa as suas meditações O método adotado implica rejeitar tudo aquilo que é incerto Os sentidos podem nos levar a enganos ilusões de modo que nada indica que uma coisa realmente exista Mesmo os raciocínios matemáticos podem nos levar a erros Se a existência de qualquer corpo ou pensamento pode ser posta em dúvida então o que pode ser considerado verdadeiro Descartes p 56 responde Concluí que enquanto eu queria pensar que tudo era falso cumpria necessariamente que eu que pensava fosse alguma coisa E notando que esta verdade penso logo existo era tão firme e segura que as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar julguei que podia aceitála sem escrúpulo como o primeiro princípio da Filosofia que procurava Em outro texto Meditações Filosóficas 1996 p 266267 Descartes expressa de outra forma a mesma conclusão Mas há algum não sei qual enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em enganarse sempre Não há pois dúvida alguma de que sou se ele me engana e por mais que me engane não poderá jamais fazer com que eu nada seja enquanto eu pensar ser alguma coisa De sorte que após ter pensado bastante nisto e ter examinado cuidadosamente todas as coisas cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição eu sou eu existo é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu 41 espírito Para ele o processo de instauração da dúvida é um ato de pensar portanto tudo aquilo que pensa existe sendo a proposição penso logo existo absolutamente verdadeira contudo diante do fato de que o ato de pensar não necessita de um lugar nem depende de qualquer coisa material leva Descartes 1989 p 56 a concluir que esse eu isto é a alma pela qual sou o que sou é inteiramente distinta do corpo e inclusive é mais fácil de conhecer do que ele e ainda que o corpo nada fosse a alma não deixaria de ser tudo o que é Há portanto duas substâncias distintas que formam o mundo a res cogitans e a res extensa A dualidade cartesiana da alma e do corpo encontra a sua unidade no homem A alma realidade inextensa comanda o corpo realidade extensa do homem A res extensa é matéria e espaço ao mesmo tempo o que permite concluir que o mundo como uma extensão infinita é constituído pela mesma matéria O conhecimento deixa de estar submetido ao mundo sensível experiência pois a substância racional é dotada de autonomia Como Descartes na sua moral provisória não questiona a Igreja e a religião precisa encontrar uma forma de justificar a existência de Deus O raciocínio é simples o homem como ser que precisa duvidar para demonstrar sua existência é imperfeito Como o homem entretanto tem a idéia do perfeito que não pode ser ele mesmo porque é imperfeito então o perfeito só pode ser Deus Deus existe e é o autor do ser homem imperfeito A existência está compreendida na idéia de Deus porque não poderia existir perfeição sem existência Em síntese Deus criou a res extensa matéria extensa e matematizável e a res cogitans Ele imprimiu as leis da natureza na alma humana as leis inatas de modo que depois de refletir sobre elas não poderíamos duvidar que não fossem exatamente observadas em tudo o que existe ou se faz no mundo Descartes 1989 p 63 É importante compreender a estratégia cartesiana para revelar a verdade sem confrontarse com a Igreja Ele escreve o Discurso do Método em francês e não em latim como era usual Assim ele se dirige para um público mais amplo Sem negar a existência de Deus situa o homem no centro do processo de produção do conhecimento mediante o eu penso que é uma verdade autoevidente O homem ao empreender a sua aventura para conhecer o mundo que é obra de Deus está 42 conhecendo e afirmando a existência do próprio Deus Apesar disso o homem dá um passo decisivo na conquista da sua autonomia que se expressará nos direitos civis institucionalizados pelas revoluções políticas modernas No curso da história das idéias o cartesianismo será criticado por uma corrente de pensamento com grande expressão na Inglaterra o empirismo A palavra empirismo vem do grego empeiria cujo significado é experiência Os principais expoentes dessa corrente são Thomas Hobbes John Locke e David Hume Essa corrente de pensamento levará ao limite a idéia de que o conhecimento se origina da experiência John Locke bastante conhecido como um dos fundadores do liberalismo afirma que o pensamento recebe o material do conhecimento unicamente por meio da experiência Não existem idéias inatas anteriores à experiência Para justificar sua posição ele elabora o seguinte argumento que consta da sua obra Ensaio Acerca do Entendimento Humano 1690 citado por Reali e Antiseri 1990 p 513 Suponhamos portanto que o espírito seja por assim dizer uma folha em branco privada de qualquer escrita e sem nenhuma idéia De qualquer modo virá a ser preenchida De onde provém aquele vasto depósito que a industriosa e ilimitada fantasia do homem traçoulhe com variedade quase infinita De onde procede todo o material da razão e do conhecimento Respondo com uma só palavra da experiência É nela que o nosso conhecimento se baseia e é dela que em última análise ele deriva O grande pensador do empirismo entretanto foi David Hume 17111776 autor de várias obras entre as quais Investigações Acerca do Entendimento Humano 1748 Hume critica o conceito de idéias inatas do racionalismo O conhecimento fundamentase nas impressões dados fornecidos pelos sentidos e nas idéias que são representações produzidas pelas impressões As impressões simples precedem as idéias correspondentes As idéias simples pelo princípio da associação reúnem se em idéias complexas segundo três propriedades 1 semelhança 2 contiguidade no tempo e no espaço e 3 causa e efeito Reafirmase em Hume a experiência como fundamento do conhecimento Hume no entanto desenvolve um certo ceticismo em relação ao sentido das relações entre os dados da experiência Não há nenhum vínculo lógico ou ontológico 43 entre os dados As relações estabelecidas entre os dados decorrem apenas do costume ou do hábito que desenvolvemos com a observação É assim que elaboramos as conclusões cujo ponto de partida é a experiência Diz Hume 1996 p 63 o costume é pois o grande guia da vida humana É o único princípio que torna útil nossa experiência e nos faz esperar no futuro uma série de eventos semelhantes àqueles que aparecerem no passado Sem a influência do costume ignoraríamos completamente toda questão de fato que está fora do alcance dos dados imediatos da memória e dos sentidos Nunca poderíamos saber como ajustar os meios em função dos fins nem como empregar nossas faculdades naturais para a produção de um efeito Seria ao mesmo tempo o fim de toda a ação como também de quase toda especulação O grande questionamento feito por Hume entretanto referese à relação entre causa e efeito Todos os fatos parecem estar submetidos a uma relação de causa e efeito Não se chega ao conhecimento dessa relação por raciocínios prévios ou seja pela razão chegase pela experiência Se observarmos um objeto completamente novo mesmo com um exame minucioso das suas qualidades não é possível estabelecer a relação causa e efeito Como causa e efeito são duas realidades distintas não há entre elas uma conexão necessária e por isso não podem ser concebidos pela razão Mais uma vez surge o costume como elemento que produz alguma inteligibilidade à experiência Afirma Hume 1996 p 64 toda a crença em matéria de fato e de existência real procede unicamente de um objeto presente à memória ou aos sentidos e de uma conjunção costumeira entre esse e algum outro objeto Ou em outras palavras como o espírito tem encontrado em numerosos casos que dois gêneros quaisquer de objetos a chama e o calor a neve e o frio sempre têm estado em conjunção se de novo a chama ou a neve se apresentassem aos sentidos o espírito é levado pelo costume a esperar calor ou frio e a acreditar que esta qualidade existe realmente e que se manifestaria se estivesse mais próxima de nós Essa crença é o resultado necessário de colocar o espírito em determinadas circunstâncias É uma operação da alma tão inevitável como quando nos encontramos em determinada situação para sentir a paixão do amor quando recebemos benefícios ou a de ódio quando nos defrontamos com injustiças Todas essas operações são 44 uma espécie de instinto natural que nenhum raciocínio ou processo do pensamento e do entendimento é capaz de produzir ou impedir Assim a razão perde a sua condição de tribunal onde se produz a verdade A experiência é o único caminho para a verdade ela determina a própria racionalidade Estabelecese assim um grande confronto afinal de onde vem a verdade Uma solução para esse impasse teórico foi elaborada pelo filósofo alemão Imanuel Kant 17241804 O professor de Königsberg conhecido por seus hábitos rigorosos é autor de uma obra ampla e profunda que aborda quase todos os temas discutidos na época Kant é um pensador iluminista que sustenta a necessidade de o homem sair do seu estado de menoridade situação em que se encontra por ser incapaz de usar sua própria inteligência O homem é dotado de liberdade portanto é o autor das suas próprias regras Estas têm origem na primeira regra moral o imperativo categórico e que pode ser assim enunciada age de modo tal que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal A liberdade como fundamento da ação moral não está submetida à experiência ou aos impulsos do mundo sensível ela se impõe por si mesma na autonomia da vontade e da razão Interessanos apenas analisar a proposição de Kant contida na Crítica da Razão Pura 1781 que se expressa na síntese entre o racionalismo e empirismo Essa síntese indica que devemos procurar outro caminho para explicar o conhecimento nem o empirismo em que a razão é passiva diante da realidade sensível nem o idealismo em que conhecer é buscar o mundo inteligível Kant promove uma verdadeira revolução copernicana fazendo os objetos ajustaremse ao nosso conhecimento de modo que possamos estabelecer previamente algum conhecimento sobre eles Em outras palavras em vez de o sujeito girar ao redor do objeto é este que deve girar em torno do sujeito Vamos começar analisando o sujeito com os princípios da sensibilidade e da razão o sujeito do conhecimento Esse sujeito é dotado de estruturas transcendentais sensibilidade e razão que produzem um conhecimento não ligado aos objetos mas com o nosso modo de conhecer os objetos É um conhecimento a priori que o sujeito põe nas coisas no ato de conhecêlas 45 A estética transcendental diz respeito às estruturas da sensibilidade ao modo como o sujeito recebe as sensações e o conhecimento sensível A sensibilidade é a faculdade do sujeito em receber as sensações em ser afetado por elas A intuição é o conhecimento imediato dos objetos ou seja a apreensão dos fenômenos tal com eles se manifestam ou aparecem para o sujeito As intuições empíricas dizem respeito aos conhecimentos que fazem parte das sensações e as intuições puras são as formas a priori que existem no sujeito como modos de funcionamento da sensibilidade a saber o espaço e o tempo O espaço é a forma de conhecimento que capta o sentido externo dos fenômenos ou a existência dos mesmos fora do sujeito É a condição da possibilidade dos fenômenos O tempo é a forma do sentido interno a intuição pura que existe no sujeito e para ele próprio O tempo representa a condição formal a priori de todos os fenômenos em geral São eles o espaço e o tempo que ordenam a multiplicidade das sensações Kant considera que a coisa em si é inconhecível O que conhecemos são os fenômenos que são suas formas de manifestação para o sujeito É importante considerar que os fenômenos existem em relação ao sujeito portanto são realidades que não podem ser procuradas no objeto em si Não se trata de afirmar que os fenômenos não existem mas que eles existem somente em relação ao sujeito Passemos agora à Analítica Transcendental que diz respeito a outra fonte do conhecimento o entendimento que permite ao sujeito expressar os fenômenos sob a forma de conceitos O entendimento pode ser representado como uma faculdade de julgar na medida em que seus atos se reduzem a juízos Juízos são as relações estabelecidas entre as várias representações reduzindoas à unidade Para isso é preciso considerar que o pensamento por meio da lógica transcendental elabora categorias sem as quais nenhum fenômeno pode ser pensado A função das categorias é a aplicação sobre os objetos da experiência para produzir conhecimento As categorias operam segundo regras denominadas princípios As categorias são conceitos puros a priori que determinam leis aos fenômenos e a natureza As categorias correspondem às formas lógicas do juízo Por exemplo as categorias da quantidade unidade pluralidade totalidade da qualidade realidade negação 46 limitação da relação substância e acidente causa e efeito ação entre agente e paciente e da modalidade possibilidadeimpossibilidade existêncianão existência necessidadecontingência O eu penso que possibilita a unidade da consciência está presente em todas as representações pois sem ele estas seriam impossíveis O conhecimento resulta da combinação entre sensibilidade e entendimento Não há prioridade entre elas pois sem a sensibilidade o objeto não seria apreendido e sem o entendimento ele não seria pensado A experiência é o limite do conhecimento mas o entendimento pode ir além da experiência e efetivamente o faz instituindo a razão Os conceitos puros racionais são as idéias transcendentais que não têm vínculo com a experiência As idéias da razão são a alma o mundo e Deus Elas têm um sentido normativo podendo ordenar a experiência dandolhe uma maior unidade Também a chamada razão prática ou moral não está condicionada pela experiência Toda vez que se busca referenciála ao mundo sensível perdese a liberdade ou quebrase a autonomia da vontade princípio fundante de todas as leis morais e dos deveres delas decorrentes O imperativo moral não está baseado nas intuições sensíveis mas na razão pura prática por meio da qual a vontade se expressa A revolução intelectual promovida por Kant revela ao homem sua finitude como sujeito da razão pura mas esta própria razão por intermédio das idéias transcendentais o projeta para o infinito Da mesma forma a razão pura prática como esfera incondicionada por meio da lei moral projeta o homem para o infinito para além do mundo sensível Kant referiu que duas coisas tinham especial significação para a sua vida o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim O primeiro aspecto diz respeito ao lugar ocupado no mundo sensível externo e o segundo compreende um mundo infinito só perceptível ao entendimento com o qual diz ele me reconheço em uma conexão não simplesmente acidental como no primeiro caso mas universal e necessária Kant foi um dos pilares do denominado idealismo filosófico Transformouse numa referência intelectual da modernidade construindo argumentos sólidos para o desenvolvimento da Ciência e consequentemente da verdade 47 O outro grande filósofo idealista é Hegel 17701831 Também ele transformouse numa referência para pensar a modernidade inclusive para seus críticos como Marx Kant e Hegel foram e ainda são um divisor de águas do pensamento ocidental Hegel é o pensador da dialética e da História A dialética constitui o conceito fundamental do sistema hegeliano Ela é a alma do procedimento científico pois permite a permanente superação ou a passagem de uma situação para outra a negação da negação O método dialético pressupõe três momentos a tese a antítese e a síntese São os momentos da afirmação do negativo e da síntese superação ou conservaçãosupressão A síntese expressa o momento mais elevado quando nasce o conceito Na Fenomenologia do Espírito Hegel estabelece o processo de formação do Espírito Absoluto momento mais elevado do conhecimento e da própria História Esse movimento iniciase com a consciência certeza sensível percepção e entendimento transformase na autoconsciência dialética do senhor e do escravo libertação da autoconsciência na razão no espírito na religião e finalmente no saber absoluto sistema da Ciência É nesse momento mais elevado que o real se expressa como racional e o racional como real A dialética do Espírito Absoluto não representa apenas um processo de produção do conhecimento mas é a expressão da própria História A História é o movimento da razão em busca da sua autonomia No plano social esse processo se manifesta nos momentos da eticidade família sociedade civil e Estado O Estado é a manifestação do Espírito Absoluto quando o homem tornase cidadão conquistando assim a sua autonomia É portanto o momento mais elevado da vida humana Ser membro de Estado é ser livre Analisamos o longo processo de formação da ciência moderna É neste contexto que a formação da Sociologia adquire sentido Cabe ainda uma referência à contribuição de Montesquieu 16891755 que elaborou um conceito de lei posteriormente incorporado pelo Positivismo No início da sua principal obra Do Espírito das Leis 1748 Montesquieu conceitua lei como as relações necessárias que derivam da natureza das coisas e nesse sentido todos os seres têm as leis a divindade possui suas leis o mundo 48 material possui suas leis as inteligências superiores ao homem possuem suas leis os animais possuem suas leis o homem possui suas leis Montesquieu 1997 p 37 Os homens como seres físicos são governados por leis invariáveis porém como seres inteligentes frequentemente violam as leis divinas e modificam as suas leis que eles mesmos estabeleceram Montesquieu assinala que os homens estão submetidos a quatro leis naturais São elas 1 a fraqueza indica que eles procurariam a paz 2 a necessidade os incitaria a procurar alimentos 3 o prazer levaria à busca da relação entre sexos opostos e 4 o desejo de viver em sociedade Logo que os homens estão em sociedade perdem o sentimento de suas fraquezas a igualdade que existia entre eles desaparece e o estado de guerra começa afirma Montesquieu 1997 p 40 Considerando que existem diferentes povos e nações são necessárias leis que regulem as relações entre eles é o Direito das Gentes Cada sociedade tem um Direito político que regula a relações entre os que governam e os governados e um Direito civil que regula as relações dos cidadãos entre si Sem um governo nenhuma sociedade poderia subsistir A reunião de todas as forças individuais forma o que denominamos Estado Político p 41 Analisando as leis que revela diretamente da natureza do governo constata a existência de três espécies de governo a o republicano b o monárquico e c o despótico O governo republicano é aquele em que o povo possui o poder soberano o monárquico é o governo exercido por uma única pessoa e o despótico é também o governo de uma pessoa que governa segundo sua vontade e seus caprichos desobedecendo às leis vigentes A natureza dos governos indica o que faz o governo ser como é os princípios indicam como eles agem Assim no governo republicano vigora o princípio da virtude na monarquia a honra e no despotismo o medo Este último está destinado à autofagia em função dos conflitos e rebeliões constantes Outra contribuição importante é a necessidade da divisão de poderes Executivo Legislativo e Judiciário como forma de evitar o poder absoluto e a 49 preservação da liberdadeAs leis devem ser adequadas ao povo para o qual foram criadas De acordo com Montesquieu 1997 p 42 devem as leis ser relativas ao físico do país ao clima frio quente ou temperado à qualidade do solo à sua situação ao seu tamanho ao gênero de vida dos povos agricultores caçadores ou pastores devem relacionarse com o grau de liberdade que a constituição pode permitir com a religião dos habitantes suas inclinações riquezas número comércio costumes maneiras Possuem elas enfim relações entre si e com sua origem com os desígnios do legislador e com ordem das coisas sobre as quais são elas estabelecidas Tal é o espírito das leis das relações necessárias inerentes à natureza das coisas A Fundação da Sociologia as Teorias Sociológicas Clássicas O PENSAMENTO SOCIAL ANTERIOR À SOCIOLOGIA Em todos os tempos os homens elaboraram formas de pensamento referentes a sua própria sociabilidade Por exemplo na Antiguidade clássica destacamse os pensadores gregos na Idade Média os pensadores cristãos Na modernidade diversas teorias foram criadas no sentido de compreender as relações sociais Entre elas destacase o contratualismo como uma forma de pensamento social que se propõe a explicar a origem e a necessidade do Estado como espaço fundamental para o estabelecimento de formas permanentes de sociabilidade entre os homens Também foi o contratualismo que forneceu as idéias para as novas classes sociais capacitandoas a empreenderem movimentos revolucionários contra a sociedade feudal O contratualismo fundamentase na tríade estado de natureza contrato Estado sociedade civil sociedade política O ponto de partida é a afirmação de que o homem pode ser concebido a partir de uma condição natural estado de natureza em que ele desfruta enquanto indivíduo de um poder natural liberdade e igualdade absoluto Essa condição natural é um suposto lógico não proveniente da observação vale lembrar que a ciência moderna tem como um dos seus pressupostos a observação Devido aos inconvenientes do estado natural esse homem que não é 50 um animal selvagem mas um ser racional pode chegar à conclusão sobre as causas de tais inconvenientes e procurar uma saída que pode ser por meio da celebração de um contrato pacto do qual participam todos os homens para criar um outro poder mais precisamente um poder civil chamado Estado Pela importância histórica e qualidade teórica vamos considerar três autores dois ingleses e um francês Thomas Hobbes 15881679 e John Locke 16321704 foram contemporâneos das transformações sociais e políticas verificadas na Inglaterra que culminaram com a Revolução Gloriosa em 1688 processo político que instituiu a supremacia do Parlamento sobre a Monarquia ou o triunfo do liberalismo A obra principal de Hobbes é o Leviatã 1651 e a de Locke Dois Tratados sobre o Governo Civil 16791680 No caso de Rousseau 17121778 é notória a sua influência intelectual sobre a Revolução Francesa 1789 Duas obras são importantes Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens 1755 e o Contrato Social 1762 THOMAS HOBBES Thomas Hobbes foi colocado no rol dos pensadores malditos em função de sua concepção do homem como um ser belicoso por natureza e do Estado como algo monstruoso poder absoluto Essa visão preconceituosa impede que se entenda a profundidade das reflexões de Hobbes sobre o homem e o Estado bastante influenciadas pelo seu tempo marcado pela guerra civil inglesa a Revolução Puritana provocou a decapitação do rei Carlos I e introduziu a República e pelo fracionamento do poder político Os argumentos de Hobbes para justificar o Estado são os seguintes os homens são sempre os mesmos em relação a sua natureza Os homens no seu estado natural são iguais quanto às faculdades do corpo e do espírito Se dois homens desejam a mesma coisa ao mesmo tempo em que é impossível ela ser gozada por ambos eles tornamse inimigos E no caminho para seu fim que é principalmente sua própria conservação e às vezes apenas seu deleite esforçamse por se destruir ou subjugar um ao outro De modo que na 51 natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia Primeiro a competição segundo a desconfiança terceiro a glória Com isto se torna manifesto que durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito eles se encontram naquela condição a que se chama guerra e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens Hobbes 1988 p 7475 Assim sendo na condição natural os homens são iguais e livres tendo o direito ou a liberdade de usar todos os recursos disponíveis para preservar a sua vida Se cada homem tem o direito a todas as coisas não há segurança para viver o tempo que a natureza permite a cada homem de modo que a situação de guerra de todos contra todos instaura o medo da morte em todos os homens A saída para esse impasse é instituir um poder comum isto é conferir toda a força e poder a um homem ou a uma assembléia de homens designandoo como representante de suas pessoas considerandose e reconhecendose cada um como autor de todos aos atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar em tudo o que disser respeito à paz e à segurança comuns todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante e suas decisões à sua decisão Isto é mais do que consentimento ou concórdia é uma verdadeira unidade de todos eles numa só e mesma pessoa realizada por um pacto de cada homem com todos os homens de modo que é como se cada homem dissesse a cada homem Cedo e transfiro meu direito de governarme a mim mesmo a este homem ou a esta assembléia de homens com a condição de transferires a ele seu direito autorizando de maneira semelhante todas a suas ações Feito isso à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado em latim civitas É esta geração daquele grande Leviatã ou antes daquele Deus Mortal ao qual devemos abaixo do Deus Imortal nossa paz e defesa Pois graças a esta autoridade que lhes é dada por cada indivíduo no Estado élhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles no sentido da paz em seu próprio país e da ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros É nele que consiste a essência do Estado a qual pode ser assim definida Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão mediante pactos recíprocos uns com os outros foi instituída por cada 52 um como autora de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos da maneira que considerar conveniente para assegurar a paz e a defesa comum Aquele que é portador dessa pessoa se chama soberano e dele se diz que possui poder soberano Todos os restantes são súditos p 106106 O poder proposto por Hobbes é absoluto e indivisível condição para que ele seja soberano Este governa pelo medo que impõe aos súditos única forma de levá los à obediência As leis são instituídas pelo soberano que tem também o poder sobre as armas As leis sem o poder das armas são inócuas Do poder soberano derivam todos os direitos inclusive o direito de propriedade Todas as terras e bens estão sob o controle do soberano O pacto uma vez estabelecido não poderá ser desfeito contudo os súditos estão desobrigados à obediência sempre que o soberano agir contra o princípio da sua instituição preservar a vida dos súditos É importante ressaltar que o soberano se origina do contrato portanto ele não participa do mesmo JOHN LOCKE O contratualismo de Locke segue a mesma lógica contudo apresenta diferenças importantes em relação a Hobbes O estado de natureza é um estado de paz e harmonia em que os indivíduos mediante sua inteligência e força apropriam se dos meios necessários à preservação da vida O trabalho de cada um cria um direito natural de apropriação do esforço despendido na produção de bens Locke define a propriedade como o conjunto dos bens da vida e da liberdade A mudança fundamental é que a propriedade é anterior ao contrato portanto um direito natural Num primeiro momento a propriedade é limitada pelo trabalho ou pelas forças produtivas posteriormente com a ampliação da produção surgem as trocas e a moeda de modo que a propriedade pode ser adquirida pela compra O dinheiro produziu a concentração da propriedade e da riqueza e a distribuição desigual dos bens entre os homens O estado de natureza mesmo sendo uma situação de relativa harmonia apresenta inconvenientes para o usufruto da propriedade de cada um É possível a violação da propriedade pois inexistem leis comuns um juiz imparcial e uma força 53 capaz de impor as sentenças o que possibilita o desenvolvimento de conflitos entre os indivíduos Por isso estabelecese o pacto que resulta do livre consentimento de todos os indivíduos instituindose assim uma sociedade política cuja função é a preservação da propriedade enquanto um direito natural pois o objetivo grande e principal da união dos homens em comunidade colocandose eles sob governo é a preservação da propriedade Locke 1983 p 82 A sociedade política é um corpo político soberano em que o poder Legislativo é o poder supremo a ele se subordinam o poder Executivo e o poder Federativo que trata das relações exteriores Notase a presença na teoria política de Locke da divisão de poderes um dos pilares do Estado moderno O poder Judiciário ainda não está concebido como poder autônomo questão que será teoricamente desenvolvida por Montesquieu porém a teoria afirma a necessidade do juiz imparcial considerando que a sua inexistência é uma das condições para a passagem do estado natural para o estado político Na verdade o poder Judiciário está vinculado ao poder Legislativo porque os legisladores e os juízes têm a mesma função que é estabelecer o Direito leis fixas e iguais para todos O governo se constitui a partir de uma maioria e por uma maioria pode ser dissolvido Cabe uma breve observação sobre a contribuição de Montesquieu especialmente a sua teoria da divisão de poderes como condição para evitar o poder absoluto Os três poderes o Legislativo o Executivo e o Judiciário desempenham funções diferentes sem que um deva se sobrepor aos demais estabelecendo assim um sistema de freios e contrapesos O equilíbrio e a independência entre os poderes não quer dizer que não haja também uma interpenetração entre os mesmos que se manifesta por exemplo no veto do Executivo às leis votadas no Legislativo na ação deste sobre os atos do Executivo na nomeação de membros dos tribunais superiores etc A tese de Montesquieu visa a evitar o abuso do poder colocando em questão a liberdade e o exercício do poder para que não se possa abusar do poder é preciso que pela disposição das coisas o poder freie o poder Montesquieu 1997 p 200 O exercício da liberdade como direito de fazer tudo o que as leis permitem está ligado à instituição de um governo moderado o meiotermo aristotélico Para alguns 54 analistas da obra de Montesquieu a realização da liberdade não supõe apenas uma divisão de poderes mas a distribuição de poderes no sentido de constituir um equilíbrio social Essa forma de interpretação representaria uma retomada da idéia do governo misto construída na Antiguidade Por exemplo para Aristóteles o melhor governo seria resultado da combinação entre democracia e aristocracia na medida em que o governo seria o resultado da combinação entre pobres muitos e ricos poucos Trazendo esta idéia para a modernidade o Estado expressaria uma relação entre classes de modo que o equilíbrio de poderes seria um equilíbrio entre as classes Voltando a Locke cabe uma observação sobre o direito de resistência uma das teses mais importantes desse pensador Segundo ele sempre que os legisladores tentam tirar e destruir a propriedade do povo ou reduzilo à escravidão sob poder arbitrário entra em estado de guerra contra ele que fica assim absolvido de qualquer obediência mais abandonado ao refúgio comum que Deus providenciou para todos os homens contra a força e a violência O que se disse acima a respeito do legislativo em geral também se aplica ao executor supremo que recebendo duplo encargo ter parte no legislativo e exercer a suprema execução da lei age contra um e outro quando se esforça por firmar a própria vontade como lei da sociedade Age também contrariamente ao seu dever quando ou emprega a força o tesouro ou os cargos da sociedade para corromper os representantes e atraílos aos seus próprios fins ou quando alicia abertamente os eleitores e lhes impõe à escolha alguém que ganhou para os seus desígnios por meio de promessas ameaças e solicitações Quem julgará se o príncipe ou o legislativo agem contrariamente ao encargo recebido A isto respondo O povo será o juiz porque quem poderá julgar se o depositário ou o deputado age bem e de acordo com o encargo a ele confiado senão aquele que o nomeia devendo por têlo nomeado ter ainda poder para afastálo quando não agir conforme seu dever Locke 1983 p 121130JEANJACQUES ROUSSEAU O grande contratualista francês constrói uma visão crítica do contrato a partir dos mesmos pressupostos teóricos ou seja da contraposição entre estado de natureza e estado político A diferença é que para Rousseau os problemas humanos iniciamse com a constituição da sociedade civil Para comprovar a tese ele desenvolve uma história hipotética da humanidade Nesta história ele demonstra que a sociedade 55 civil ou política se estabelece no momento em que surge a propriedade privada o primeiro que tendo cercado um terreno atreveuse a dizer Isto é meu e encontrou pessoas bastante simples o suficiente para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil Rousseau 1993 p 181 A partir daí emerge a necessidade de legitimação da nova situação que se estabelece quando o rico proprietário apresenta a proposta de pacto da seguinte forma unamonos para resguardar os fracos da opressão conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse do que lhe pertence Instituamos regulamentos de justiça e paz aos quais todos sejam obrigados a adequarse que não abram exceção a ninguém e reparem de certo modo os caprichos da fortuna submetendo igualmente o poderoso e o fraco a deveres mútuos Em suma em vez de voltarmos nossas forças contra nós mesmos reunamolas em um poder supremo que nos governe segundo leis sábias que proteja e defenda todos os membros da associação rechace os inimigos comuns e nos mantenha numa concórdia eterna Rousseau 1993 p 196197 E conclui criticamente tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis que criaram novos entraves para o fraco e novas forças para o rico destruíram em definitivo a liberdade natural fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade de uma hábil usurpação fizeram um direito irrevogável e para o lucro de alguns ambiciosos sujeitaram daí para a frente todo o gênero humano ao trabalho à servidão e à miséria p 197 Em síntese o contrato que legitima a propriedade privada e a desigualdade é iníquo e injusto percebendose com clareza a diferença com a tese de Locke Como sair desse impasse aparentemente irremediável Voltar ao estado de natureza como querem alguns analistas da obra de Rousseau A resposta é não A análise da sua obra seguinte O Contrato Social revela a solução proposta por Rousseau o homem nasce livre e por toda parte encontrase a ferros O que se crê senhor dos demais não deixa de ser mais escravo do que eles Como adveio esta mudança Ignoroo Que poderá legitimála Creio poder resolver esta questão Rousseau 1987 p 22 O desafio que Rousseau se propõe é estabelecer uma forma de contrato que eleve a liberdade e a igualdade natural à condição política ou seja que na sociedade política o homem mesmo se constituindo como um homem artificial 56 não elimine a sua condição natural de liberdade e de igualdade mas a transforme numa instituição moral e política ampliando portanto o seu alcance Para conseguir esse objetivo as cláusulas do contrato reduzemse a uma só a alienação total de cada associado com todos os seus direitos à comunidade toda porque em primeiro lugar cada um dandose completamente a condição é igual para todos e sendo a condição igual para todos ninguém se interessa por tornála onerosa para os demais p 32 Assim se constitui um corpo político soberano que Rousseau define por meio do conceito de vontade geral Este é o segredo do contrato rousseauniano a instituição da vontade geral não como a simples soma das vontades particulares mas como uma síntese de todas as vontades particulares Criase assim uma força radicalmente nova um poder comum coletivo ao qual cada indivíduo deve submeterse Não há perda de liberdade porque ela se realiza coletivamente O corpo político criado o lugar efetivo de elaboração das leis civis representa a conquista da liberdade moral única a tornar o homem verdadeiramente senhor de si mesmo porque o impulso do puro apetite é escravidão e a obediência à lei que se prescreveu é liberdade p 37 Se os homens criam suas próprias leis numa situação de igualdade e liberdade obedecêlas não significa perder a liberdade mas obedecer a uma deliberação originada deles mesmos A vontade geral ou a soberania é a única força que pode dirigir o Estado de acordo com o bem comum Ela é indivisível porque senão seria apenas uma parte e inalienável Esta característica é fundamental no pensamento de Rousseau Afirma ele que a soberania por ser apenas o exercício da vontade geral não pode jamais se alienar e que o soberano que não é senão um ser coletivo só pode ser representado por si mesmo O poder pode ser transmitido mas não à vontade Se pois o povo promete simplesmente obedecer ele se dissolve por esse ato perde sua qualidade de povo desde que há um senhor não há mais soberano e a partir de então destróise o corpo político p 44 A tese da inalienabilidade da soberania tem consequências profundas sobre o processo legislativo A vontade geral não se representa ou é ela mesma ou é outra Nesse sentido os deputados do povo não são nem podem ser seus representantes 57 não passam de seus comissários nada podendo concluir definitivamente É nula toda lei que o povo diretamente não ratificar e em absoluto não é lei O povo inglês pensa ser livre e muito se engana pois o é somente durante a eleição dos membros do parlamento logo que são eleitos ele é escravo não é nada p 108 O argumento vale também para o governo Esta tese questiona a representação como um dos elementos centrais do Estado moderno e abre espaço para pensar a democracia direta como modo mais legitimo para a elaboração das leis porque institui o povo como o único e o verdadeiro poder soberano Em síntese o contratualismo é a teoria política fundadora do Estado moderno cujo ator principal é o indivíduo Dos autores considerados a contribuição de Locke é de longe a mais significativa tanto que ele é denominado o pai do liberalismo A idéia por ele desenvolvida de que a sociedade política é a instituição criada para assegurar o direito natural de propriedade tornouse o fundamento do chamado Estado Liberal Além disso está presente a necessidade de impor limites ao poder e às funções do Estado O primeiro aspecto materializase no conceito de Estado de direito Constituição governo das leis divisão de poderes etc e o segundo no conceito de Estado mínimo separação entre o político e o econômicopropriedademercado nãointervenção do Estado na economia e no campo social Já a perspectiva desenvolvida por Rousseau ao criticar o contrato firmado sob a ótica dos ricosproprietários traz os pressupostos para a construção de uma sociedade democrática Também se deve considerar como uma questão importante exposta por Rousseau para a teoria política de que o contrato nasce das desigualdades e não o contrário Essas teses serão retomadas no século 19 não mais a partir dos pressupostos contratualistas em que se contrapõe estado de natureza e estado político mas estabelecendose uma nova contraposição entre sociedade civil e sociedade política É o caso das teorias de Hegel e Marx e Engels É importante considerar que o contratualismo é uma teoria afirmativa do Estado como instituição necessária para superar os inconvenientes do estado de natureza Dessa forma o contratualismo não permite pensar uma sociedade sem Estado No limite podese pensar o Estado mínimo neoliberal visto apenas como 58 um mal necessário para garantir os direitos civis e políticos mas jamais interferir na economia no mercado e na questão social O contratualismo fundamentase na dicotomia estado de naturezasociedade política Em outras palavras a sociabilidade humana representada pela sociedade política constituise a partir do contrato O estado natural é um estado em que reina a individualidade absoluta cujos inconvenientes impõem ao homem o desafio de construir relações sociais que tornem a vida humana menos adversa A grande virtude do contratualismo é trazer para o âmbito humano a construção de soluções para os impasses e dilemas evidenciados na condição natural dos homens No século 19 ocorre uma mudança importante na formulação do pensamento político Para esta nova forma de pensar a política o Estado nasce das contradições da sociedade civil de modo que uma nova dicotomia se estabelece sociedade civilsociedade política A sociedade existe independentemente do contrato portanto faz parte da própria condição humana Essa fundamentação é possível em função do desenvolvimento da Ciência como procedimento para buscar a verdade Esta prática está vinculada à observação levada a efeito segundo uma determinada metodologia A observação permitiu uma conclusão os homens estabelecem relações necessárias entre si que decorrem dos atos necessários à produção da sua própria existência Essa nova forma de pensar o Estado e a sociedade pode ser posta numa perspectiva sociológica pois parte da sociedade como um dado da condição humana As maiores expressões teóricas dessa forma de pensar a política e o Estado são George W Hegel 1770 1831 Karl Marx 18181883 e Friedrich Engels 1820 1895 estes últimos compondo uma única corrente teórica o materialismo histórico Hegel pode ser considerado um dos precursores da Sociologia Recuperando a teoria política grega e a dialética Hegel inicia uma nova teoria sobre o Estado transformandoo na instituição na qual o homem se constitui como ser humano pleno universal Diz Hegel nos Princípios de Filosofia do Direito que o o fim racional do homem é a vida no Estado Inwood 1997 p 124 Nesse sentido o Estado expressa o momento mais elevado da história humana ou seja o momento em que o homem que inicia a sua aventura humana como ser sensível elevase à condição de Espírito Absoluto O Estado representa o momento éticopolítico ou simplesmente o momento 59 da eticidade Para chegar ao Estado o homem precisa superar dialeticamente a dimensão da família que expressa o amor e o sentimento e o faz no sentido de constituir a sociedade civil Nesta nova condição o homem se caracteriza pela particularidade os indivíduos pela divisão do trabalho e pelas trocas A sociedade civil constitui um sistema de carências ou necessidades que devem ser supridas pelo trabalho O contrato é o instrumento que regula as relações entre os indivíduos na sociedade civil Nessa dimensão contudo o homem vive dilacerado por ser apenas parte e não todo Esse conflito existencial se resolve com a instituição do Estado que permite ao homem alçarse à condição de ser universal de cidadão em que cada um se reconhece no outro Assim sendo só no Estado os homens são verdadeiramente livres e iguais O que está em questão é a conquista do gênero humano da universalidade da condição humana da humanidade como um todo como unidade O sentimento família não é simplesmente eliminado das relações humanas mas no Estado ele é transformado em sentimento de amor pela pátria por exemplo É claro que nessa nova situação que é resultado de uma superação dialética surge a racionalidade como categoria fundamental da ação política No Estado o indivíduo é subsumido pelo todo como na vontade geral de Rousseau deixa de ser o ator principal Para Hegel a constituição do Estado racional envolve três poderes o monarca cargo hereditário para evitar a instabilidade das eleições o poder executivo ou governamental burocracia judiciário etc poder Legislativo expressa o elemento universal porque é o povo como um todo e não como particulares que está nele representado Marx e Engels elaboram uma teoria crítica do Estado e da sociedade burguesa O ponto de partida é a concepção de Hegel criticadas por eles pelo seu caráter idealista Também incorporam a essa crítica as reflexões dos socialistas franceses e dos economistas ingleses Adam Smith e Ricardo Entendemos porém que o pensamento de Marx e Engels já se situa numa perspectiva sociológica razão pela qual o abordaremos na próxima seção AS TEORIAS SOCIOLÓGICAS CLÁSSICAS COMTE DURKHEIM MARX E ENGELS WEBER 60 Vamos analisar nesta seção o pensamento sociológico formado no século 19 em que Comte Marx e Engels são os precursores Tais reflexões caracterizam profundamente as ações humanas na medida em que afirmam a origem social dos problemas e dos conflitos que marcam a modernidade As soluções preconizadas obviamente decorrem desse caráter social do mundo humano A complexidade desse processo social se estende para a Sociologia que será também um palco das lutas que se travam no seio da sociedade Posteriormente analisaremos as contribuições de Durkheim que segue a mesma linha teórica iniciada por Comte e Weber que elabora uma teoria social inteiramente nova a Sociologia compreensiva Esses autores são considerados clássicos pois foram os responsáveis pela fundação da Sociologia ou mais precisamente criaram as diferentes teorias que compõem a Sociologia A exposição será bastante genérica procurando abordar os aspectos das teorias relativamente consensuais entre os estudiosos Além disso foram empregadas citações dos autores em questão para que cada leitor possa elaborar sua própria interpretação dos mesmos É assim que o conhecimento se desenvolve pela capacidade de apreensão crítica do pensamento constituído COMTE Ordem e Progresso Auguste Comte 17981857 é responsável pela elaboração da primeira reflexão consistente sobre o caráter social do homem como fato empiricamente observável A sociedade humana como dado objetivo pode ser compreendida por uma ciência particular que ele denomina primeiramente de Física Social e posteriormente de Sociologia Esta conclusão está embasada na formulação da lei dos três estados que explicita as formas evolutivas do conhecimento humano o teológico o metafísico e o positivo O estado positivo ou científico representa o momento mais desenvolvido do processo de produção de conhecimentos em que a observação e a experiência predominam sobre a imaginação Os estágios que expressam o desenvolvimento do conhecimento estão relacionados com a história da civilização De acordo com Comte In Moraes Filho 61 1978 a primeira é a época teológica e militar Nesse estado da sociedade todas as idéias teóricas tanto gerais como particulares são de ordem puramente sobrenatural A imaginação domina franca e completamente a observação à qual é interdito qualquer direito de exame Do mesmo modo todas as relações sociais quer particulares quer gerais são franca e completamente militares A sociedade tem como objetivo de atividade única e permanente a conquista De indústria há apenas o indispensável para a existência da espécie humana A escravidão pura e simples dos produtores é a principal instituição A segunda época é a época metafísica e legista Seu caráter geral consiste em não ter nenhum bem acentuado É intermediária e bastarda opera uma transição Sob o aspecto espiritual a observação é sempre dominada pela imaginação mas lhe é permitido modificála em certos limites Estes limites vão sendo sucessivamente recuados até que a observação conquista enfim o direito de exame sobre todos os pontos Sob o aspecto temporal a indústria ganhou maior extensão sem ser ainda predominante Por conseguinte a sociedade não é mais francamente militar nem é ainda francamente industrial quer nos seus elementos quer no seu conjunto A terceira época é a época científica e industrial Todas as idéias teóricas e particulares tornaramse positivas e as idéias gerais tendem a tornarse A observação dominou a imaginação quanto às primeiras e a destronou sem haver ainda hoje tomado seu lugar quanto às segundas No temporal a indústria tornouse predominante Todas as relações particulares estabeleceramse pouco a pouco em bases industriais A sociedade tomada coletivamente tende a organizarse do mesmo modo dandoselhe como objetivo de atividade única e permanente a produção p 145147 A lei dos três estados permite a Comte formular uma teoria sobre a natureza dos conflitos da sociedade humana tendo obviamente a Europa como referência A crise da sociedade decorre da anarquia moral e política que abala o próprio sistema industrial em fase de afirmação Isto significa que sem uma reforma do poder espiritual o predomínio da ciência não haverá desenvolvimento para o estágio social definitivo da espécie humana Para Comte a sociedade está hoje desorganizada tanto no aspecto espiritual quanto no temporal A anarquia espiritual precedeu e engendrou a 62 anarquia temporal O estudo atento da marcha da civilização prova que a reorganização espiritual da sociedade encontrase agora mais preparada do que sua reorganização temporal Deste modo a primeira série de esforços diretos para concluir a época revolucionária deve ter por objetivo reorganizar o poder espiritual enquanto que até o presente a atenção fixouse sempre sobre a reforma de poder temporal p 64 É neste contexto que Comte propõe a fundação da Física Social como campo de conhecimento necessário para compreender as leis que explicam a organização e o funcionamento da sociedade humana Esta ciência particular seria a forma mais evoluída do conhecimento iniciado com a Matemática e seguido respectivamente da Astronomia da Física da Química e da Biologia A afirmação da Física Social exige que se abandone definitivamente a busca das causas e das essências para pesquisar as leis invariáveis isto é as relações constantes que existem entre os fenômenos observados A seguinte afirmação de Comte elucida o objeto e o método da ciência social entendo por Física social a ciência que tem por objeto próprio o estudo dos fenômenos sociais considerados com o mesmo espírito que os fenômenos astronômicos físicos químicos e fisiológicos isto é como submetidos a leis naturais invariáveis cuja descoberta é o objetivo especial de suas pesquisas Propõese assim a explicar diretamente com a maior precisão possível o grande fenômeno do desenvolvimento da espécie humana considerado em todas as suas partes essenciais isto é a descobrir o encadeamento necessário de transformações sucessivas pelo qual o gênero humano partindo de um estado apenas superior ao das sociedades dos grandes macacos foi conduzido gradualmente ao ponto em que se encontra hoje na Europa civilizada O espírito dessa ciência consiste sobretudo em ver no estudo aprofundado do passado a verdadeira explicação do presente e a manifestação geral do futuro p 53 O aspecto metodológico fundamental da ciência social comteana é a objetividade dos fenômenos sociais o que significa que eles como objetos de observação existem independentemente do observador Por isso é possível apreendêlos como constituídos por leis imutáveis como os fenômenos da natureza A diferença é que enquanto na observação destes partese do particular para o geral 63 nos fenômenos sociais partese do geral para o particular Na ciência social o todo precede as partes A fundação da ciência social implica considerar que o seu objeto o social mantém uma posição de especificidade em relação aos demais objetos A história da humanidade é a continuação e o complemento indispensável da história natural do homem Comte mas essa continuidade não quer dizer que não se deve considerar a independência e a superioridade do homem sobre os demais seres Essa superioridade tem como fundamento a perfeição relativa ou a natureza especial da sua organização Considerando as influências que as gerações humanas exercem umas sobre as outras e que o estado da humanidade em cada geração depende imediatamente do estado da geração precedente concluise que o estudo dos fenômenos sociais não pode ser reduzido a um ponto de vista unicamente biológico O positivismo sociológico concebeu duas dimensões para o estudo dos fenômenos sociais a estática e a dinâmica Para Comte esse dualismo científico corresponde com perfeita exatidão no sentido político propriamente dito à dupla noção de ordem e progresso É evidente que o estudo estático do organismo social deve coincidir no fundo com a teoria positiva da ordem a qual com efeito somente pode consistir essencialmente numa justa harmonia permanente entre as diversas condições de existência das sociedades humanas Vêse do mesmo modo e ainda mais sensivelmente que o estudo dinâmico da vida coletiva da humanidade constitui necessariamente a teoria positiva do progresso social que afastandose de qualquer vão pensamento de perfectibilidade absoluta e ilimitada deve naturalmente reduzirse à simples noção do desenvolvimento fundamental 1978 p 105106 A ordem diz respeito ao conjunto de leis puramente estáticas da sociedade organizadas segundo a idéia geral do consensus Todos os fenômenos sociais particulares estabelecem relações necessárias entre si e com o todo de tal modo que não há sociedade em que não se exerce uma ação geral e combinada Há portanto entre as diversas partes que compõem a sociedade uma solidariedade fundamental objetivamente determinada Esta unidade social não quer dizer igualdade ou homogeneidade mas necessariamente diferenças e desigualdades determinadas pela própria natureza do organismo social 64 A sociedade não é o simples somatório de indivíduos A unidade básica da sociedade é a família no entanto os vínculos sociais são de natureza mais complexa que os vínculos familiares As relações domésticas têm um caráter essencialmente moral e afetivo A sociedade pressupõe relações de cooperação ela é composta em primeiro lugar pelas famílias os seus elementos básicos depois pelas classes os seus tecidos e por fim pelas cidades os seus órgãos efetivos A teoria positiva da ordem social considera que sem a separação dos ofícios não existiria entre as diversas famílias uma verdadeira associação mas um simples aglomerado Eis aí o que distingue essencialmente a ordem política fundada na cooperação da ordem puramente doméstica tendo por base a simpatia Comte É a divisão do trabalho o fundamento da sociabilidade moderna a condição para o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da espécie humana Nas palavras de Comte todos os progressos reais que se realizaram ou que poderão operarse na organização social podem ser encarados deste ponto de vista como tendo tido ou devendo ter por último resultado estabelecer melhor distribuição do trabalho A ordem social seria evidentemente perfeita quer sob o aspecto do bemestar particular quer sob o da boa harmonia do conjunto se cada indivíduo ou cada povo pudesse em todos os casos entregarse exclusivamente ao gênero preciso de atividade para a qual fosse mais apropriado seja por suas disposições naturais seja por seus antecedentes seja pelas circunstâncias especiais em que se ache colocado o que considerado sob outro prisma seria exatamente uma perfeita divisão do trabalho 1978 p 123 A divisão do trabalho responsável pela extensão e a complexificação das sociedades humanas pode ser também fator de desintegração social É da própria natureza da especialização do trabalho que os indivíduos e os grupos sociais se coloquem numa perspectiva cada vez mais limitada distantes uns dos outros reforçando o interesse particular em detrimento do interesse geral Essa tendência à dissolução da divisão do trabalho é uma ameaça ao progresso e precisa ser incessantemente combatida por uma ação sempre crescente de governo e sobretudo de governo espiritual Comte Tratase na verdade da incorporação do espírito positivo à existência humana único capaz de produzir o entendimento da 65 verdadeira função social da divisão do trabalho A dinâmica tem como objetivo o estudo do progresso ou do desenvolvimento gradual da humanidade Esse processo evolutivo da sociedade não significa somente a melhoria das condições materiais da vida humana mas também o desenvolvimento das faculdades mais importantes mediante o controle dos apetites físicos e o estímulo dos instintos sociais e das funções intelectuais no sentido de ampliar a influência da razão nas ações humanas A ordem social desenvolvese segundo uma lei necessária no sentido do aumento da diferenciação e da complexidade Esse movimento pode ser considerado a partir das causas modificadoras da sua velocidade a raça o clima e a ação política e dos fatores efetivos de mudança social o tédio o suceder das gerações e o aumento da população Sendo assim superase a ilusão metafísica sobre o aumento da felicidade humana nos diversos estágios da civilização para afirmarse o princípio científico do desenvolvimento contínuo da natureza humana considerada sob todos esses aspectos essenciais seguindo uma harmonia constante e de conformidade com leis invariáveis de evolução Comte A sociedade preconizada pelo positivismo é uma sociedade hierarquizada O poder espiritual deve ficar com os cientistas e o poder temporal com os chefes dos trabalhos industriais empresários capitalistas Esses lugares são ocupados segundo o mérito ou as aptidões naturais de cada indivíduo Entre os cientistas deve ser constituída uma nova classe os especialistas em Física Social responsáveis pela elaboração dos estudos sobre a sociedade Além disso entre os cientistas propriamente ditos e os produtores tende a se formar uma classe intermediária a dos engenheiros cuja destinação especial é organizar as relações entre teoria e prática A concepção social de Comte não pretende a eliminação da relação capital e trabalho da sociedade industrial segundo a proposta dos socialistas nem deixar essa relação ao livre jogo do mercado como propõem os liberais O seu programa trabalhista visa a garantir ao proletário todos os materiais de seu uso exclusivo e contínuo dele próprio ou de sua família e a afirmação da natureza social da propriedade Para isso a propriedade privada deve ser regulada pelo poder espiritual positivista o que significa a sua subordinação às necessidades sociais A crítica 66 comteana voltavase principalmente ao individualismo egoísta responsável pelos abusos cometidos pelos chefes temporais proprietários dos meios de produção Ainda cabe destacar a transformação sofrida pelo pensamento de Comte em 1847 quando proclama o positivismo como a religião da humanidade Os princípios científicos são obviamente postos a serviço da nova religião em que a humanidade ocupa o lugar do deus do cristianismo A religião positivista foi na verdade a tentativa de construir um movimento político cujo objetivo era a reforma moral do homem segundo o princípio viver para outrem A fórmula sagrada do positivismo era o amor por princípio e a ordem por base o progresso por fim DURKHEIM a Preponderância Progressiva da Solidariedade Orgânica Émile Durkheim 18581917 partindo do positivismo comteano produz uma reflexão decisiva para a constituição e a institucionalização da Sociologia como ciência da sociedade É o responsável direto pela criação da disciplina de Sociologia na Universidade de Sorbonne em 1910 Além da elaboração de uma teoria sobre a sociedade industrial Durkheim produz uma importante contribuição sobre o método sociológico isto é sobre o objeto da Sociologia e as regras necessárias para conduzir o processo de investigação dos fatos sociais O objeto da Sociologia é constituído pelos fatos sociais Estes são as manifestações humanas regulares ou não que existem de forma autônoma e independente das manifestações individuais e exercem uma coerção exterior sobre os indivíduos Durkheim leva ao limite o conceito de fato social como núcleo definidor da sociabilidade humana quando afirma que um fato social não pode ser explicado senão por um outro fato social Em outras palavras é o núcleo instituinte da própria condição humana A leitura que se pode fazer dessa tese é que os fatos externos não determinam a natureza da ordem e do movimento da sociedade são apenas condicionantes da vida coletiva Da mesma forma não se pode buscar a causa determinante de um fato social nos estados da consciência individual A sociedade é uma totalidade de fatos que se desenvolvem de acordo com o caráter do meio social interno A origem primária de qualquer processo social de uma certa importância deve 67 ser procurada na constituição do meio social interno afirma Durkheim Como os fatos sociais são realidades objetivas prega a primeira regra do método sociológico que se deve tratálos como coisas no sentido que são realidades desconhecidas que não podem ser naturalmente penetráveis pela inteligência humana mas apenas pela observação e experimentação passando progressivamente dos caracteres mais externos e mais imediatamente acessíveis aos menos visíveis e aos mais profundos Durkheim apud Gianotti 1983 p 76 Para dar conta desse processo exigese que o sociólogo se coloque em relação aos fatos sociais com o mesmo estado de espírito com que se colocam os físicos químicos ou biólogos diante dos seus objetos de investigação Afirma Durkheim o sociólogo ao penetrar no mundo social precisa ter consciência de que penetra no desconhecido é preciso que ele se sinta em presença dos fatos cujas leis lhe são tão insuspeitas como eram as da vida antes da biologia terse constituído é preciso que esteja preparado para fazer descobertas que o surpreenderão e o desconcertarão apud Gianotti 1983 p 77 Outro aspecto decisivo da Sociologia durkheimana referese à necessidade de se eliminarem todas as prenoções ou noções vulgares e julgamentos de valor sobre os fatos sociais Sem esse procedimento metodológico não se pode chegar a resultados objetivos pois se confunde a coisa com a idéia que se faz da coisa adentrandose assim no mundo da imaginação A objetividade e a neutralidade axiológica são as únicas posturas metodológicas possíveis para a produção de conhecimentos científicos A observação dos fatos sociais deve considerar também a existência de duas situações diferentes os fatos normais e os patológicos Levando em conta um tipo social determinado os fatos são normais quando se produzem na média das sociedades desta espécie consideradas numa fase determinada de desenvolvimento O fato patológico ou anormal é aquele que se afasta da média Por exemplo o crime mesmo que seja indesejável é normal para uma sociedade dada considerando seu estágio de desenvolvimento A função do crime e da pena é reforçar os laços sociais baseados nas semelhanças O crime pode tornarse um fato anormal quando atinge taxas exageradas 68 A constituição das espécies sociais está vinculada à distinção entre o normal e o patológico Esta constituição obedece à seguinte regra começarseá por classificar as sociedades segundo o grau de composição que apresentam tomando como base a sociedade perfeitamente simples ou de segmento único no interior destas classes procederseá à distinção das diferentes variedades conforme se produz ou não uma coalescência completa dos segmentos iniciais Durkheim A sociedade de segmento único é a horda Os agregados formados pela repetição de hordas podem ser chamados de sociedade polissegmentárias simples A seguir conforme o grau de complexidade vêm as sociedades polissegmentárias simplesmente e duplamente compostas Exemplo destas últimas são as cidades Para Durkheim a sociedade não é uma simples soma de indivíduos pois o sistema formado pela associação destes representa uma realidade específica que tem as suas características próprias Sem dúvida que nada se pode produzir de coletivo sem que se manifestem consciências particulares mas esta condição necessária não é suficiente É necessário ainda que estas consciências se associem de uma certa maneira é desta combinação que resulta a vida social e por conseguinte é esta combinação que a explica Ao agregaremse ao penetraremse ao fundiremse as almas individuais dão origem a um ser psíquico por assim dizer mas que constitui uma individualidade psíquica de um estilo novo É portanto na natureza desta individualidade e não na das unidades componentes que se deve procurar as causas próximas e determinantes dos fatos que nela se produzem O grupo pensa sente e age de um modo muito diferente do que o fariam os seus membros caso estivessem isolados Portanto se se parte destes últimos não se compreenderá absolutamente nada do que se passa no grupo 1983 p 139 As sociedades ou as espécies sociais podem ser identificadas por duas formas distintas de relações sociais denominadas de solidariedade mecânica e solidariedade orgânica Essas duas formas de solidariedade estão vinculadas entre si de modo que o crescimento de uma implica o decréscimo da outra Diz Durkheim que existem em nós duas consciências uma contém os estados que são pessoais a cada um de nós e que nos caracterizam enquanto os estados que abrangem a outra são comuns a toda a sociedade Durkheim apud Rodrigues 1981 p 75 69 A solidariedade mecânica representa o tipo coletivo que se caracteriza pelo conjunto de crenças e de sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade p 74 Essa consciência coletiva ou comum expressa uma solidariedade sui generis que originada das semelhanças liga o indivíduo diretamente à sociedade de modo que objetos semelhantes produzem sempre efeitos semelhantes A rigor na solidariedade mecânica não existem indivíduos relativamente independentes da sociedade eles são a própria sociedade A solidariedade mecânica se expressa por meio do Direito Penal ou repressivo Isso quer dizer que os conceitos de crime e pena estão relacionados à consciência coletiva na medida em que a preservação das semelhanças é um processo vital para a reprodução da sociedade Para Durkheim os atos que ele o direito penal proíbe e qualifica como crimes são de dois tipos ou bem eles manifestam diretamente uma dessemelhança muito violenta contra o agente que os executou e o tipo coletivo ou então ofendem o órgão da consciência comum Tanto num caso como no outro a autoridade atingida pelo crime que o repele é a mesma ela é um produto das similitudes sociais as mais essenciais e tem por efeito manter a coesão social que resulta dessas similitudes É esta autoridade que o direito penal protege contra todo enfraquecimento exigindo ao mesmo tempo de cada um de nós um mínimo de semelhanças sem as quais o indivíduo seria um ameaça para a unidade do corpo social e nos impondo o respeito ao símbolo que exprime e resume essas semelhanças ao mesmo tempo que lhes garante p 76 A pena precisa ser compreendida sob a ótica da solidariedade mecânica Como reação passional que é ela não serve para recuperar os indivíduos culpados ou para intimidar outros indivíduos para que não cometam atos semelhantes Essa forma aparente da pena não pode esconder sua verdadeira função manter intacta a coesão social mediante a reprodução da consciência comum A solidariedade orgânica expressa relações sociais inteiramente diversas A presença de indivíduos com esferas particulares de ação portanto diferentes origina outra forma de solidariedade que pode ser caracterizada como um sistema de funções diferentes e especiais que unem relações definidas Para que essa solidariedade possa desenvolverse é necessário que a consciência individual não 70 esteja totalmente submetida à consciência comum possibilitando assim o desenvolvimento da divisão do trabalho o verdadeiro substrato social da solidariedade orgânica Nesse caso produzse uma relação de dependência recíproca entre as diversas funções que compõem o todo social De acordo com Durkheim aqui pois a individualidade do todo aumenta ao mesmo tempo em que as partes a sociedade se torna mais capaz de se mover em conjunto ao mesmo tempo que cada um de seus elementos tem mais movimentos próprios Esta solidariedade se assemelha àquela que se observa nos animais superiores Cada órgão com efeito tem sua fisionomia especial sua autonomia e por conseguinte a unidade do organismo é tanto maior quanto a individualização das partes seja mais acentuada p 8384 O direito que expressa a solidariedade orgânica não tem um caráter repressivo É o direito restitutivo ou contratual Direito Civil Comercial Processual Administrativo Constitucional cuja ação consiste apenas no restabelecimento do estado de coisas anterior na renovação das relações afetadas na sua forma normal tanto que o ato incriminado seja recambiado à força à norma de que se desviou quanto seja anulado isto é privado de todo o valor social p 70 A função do direito restitutivo é regular as diferenças sociais produzidas pela divisão do trabalho estabelecendo com clareza os seus respectivos lugares sociais A solidariedade orgânica mesmo produzindo uma totalidade social interdependente não elimina a possibilidade de conflitos ou desequilíbrios Durkheim indica como um dos grandes problemas da sociedade industrial a presença de situações de anomia isto é de ausência de regras capazes de regulamentar as relações entre os diferentes órgãos Na medida em que as sociedades se desenvolvem os mercados tornamse mais extensos os produtores e consumidores estão cada vez mais distantes as máquinas substituem os trabalhadores as relações entre patrões e empregados tornamse mais complexas e as crises econômicas ficam mais densas Essa situação de anomia só pode ser resolvida mediante uma nova regulamentação A anomia decorrente da divisão do trabalho é um processo social extremamente importante se se considerar que uma das características básicas da 71 sociedade moderna é a preponderância progressiva da solidariedade orgânica Afirma Durkheim tratase pois de uma lei histórica que a solidariedade mecânica que inicialmente é a única ou quase perde terreno progressivamente e que a solidariedade orgânica se torna pouco a pouco preponderante p 85 Essa lei histórica pode ser formulada de outra forma a divisão do trabalho varia na razão direta do volume e da densidade das sociedades e se ela progride de uma maneira contínua no decurso do desenvolvimento social é porque as sociedades se tornam regularmente mais densas e muito geralmente mais volumosas Durkheim 1984 p 42 A densidade social expressase pela concentração espacial das populações pela formação e desenvolvimento das cidades e pelo número e rapidez das vias de comunicação e de transmissão O volume referese ao tamanho das populações Em outras palavras a maior densidade e o maior volume implicam o crescimento das interações sociais e consequentemente o crescimento da divisão do trabalho Obviamente para que haja progresso da divisão do trabalho é necessário que tenha ocorrido o desaparecimento ou pelo menos em parte da sociedade segmentar Ainda que Durkheim tenha preconizado que dia virá em que toda a nossa organização social e política terá uma base exclusivamente profissional não se trata de uma indicação no sentido do desaparecimento da solidariedade mecânica e consequentemente do Direito Penal considerando que as duas formas de solidariedade se desenvolvem na razão inversa uma da outra Nesse sentido o que é possível afirmar é a existência de uma tendência à redução da extensão das semelhanças na vida social mas não a sua extinção O desenvolvimento da solidariedade orgânica e a possibilidade da anomia levam à formulação de um diagnóstico da sociedade industrial o estado de anomia jurídica e moral no qual se encontra a vida econômica atualmente Como nada limita a ação das forças econômicas que passaram a desempenhar o papel principal na sociedade moderna o confronto entre elas tornouse inevitável Este conflito permanente é a manifestação de um estado patológico em que o individualismo egoísta e as paixões humanas rompem o equilíbrio da vida social Vale lembrar que este diagnóstico foi elaborado ainda na última década do século 19 72 As consequências danosas produzidas pela sociedade industrial sobre os indivíduos não podem ser explicadas pela divisão do trabalho As críticas que a acusam de reduzir o indivíduo à condição de máquina são equivocadas porque seus autores não percebem que a divisão do trabalho é fonte de sociabilidade e não o contrário Nesse sentido de nada adiantaria dar aos trabalhadores além de conhecimentos técnicos uma cultura geral A crítica de Durkheim dirigese também aos economistas que reduziram a divisão do trabalho a um meio de aumentar o rendimento das forças sociais Compreender a verdadeira natureza da divisão do trabalho significa portanto considerar que os seus efeitos negativos não são uma imposição da sua natureza mas de circunstâncias anormais e excepcionais Conforme Durkheim para que a divisão do trabalho se desenvolva sem provocar tal desastrosa influência sobre a consciência humana não é preciso temperála pelo seu contrário basta que seja ela mesma que nada venha desnaturála de fora Porque normalmente o desempenho de cada função especial exige que o indivíduo não se feche estreitamente mas que se mantenha em relações constantes com as funções vizinhas tome consciência de suas necessidades de mudanças que ocorram etc A divisão do trabalho supõe que o trabalhador longe de ficar curvado sobre sua tarefa não perde de vista seus colaboradores mas age sobre eles e sofre sua ação Não é pois uma máquina que repete movimentos dos quais ele não percebe a direção mas ele sabe que eles tendem para algum lugar para um objetivo que ele concebe mais ou menos distintamente Ele sente que serve para alguma coisa Para isto não é necessário que ele abranja vastas regiões do horizonte social basta que ele perceba o suficiente para compreender que suas ações têm um fim fora delas mesmas 1984 p 101102 Esta situação de guerra social ou de anomia pode ser superada somente com o desenvolvimento de uma moral profissional ainda em estado rudimentar A regulamentação moral ou jurídica depende da existência de um grupo na qual se possa constituir o dito sistema de regras Esse grupo não pode ser o Estado porque a vida econômica constrói cada dia mais a sua autonomia em relação à instituição política O grupo que tem condições de promover essa regulamentação por conhecer bem a natureza e o funcionamento das profissões é a corporação ou o grupo 73 profissional que reúne e organiza todos os agentes de uma mesma indústria em um mesmo corpo É evidente que Durkheim não estava se referindo às corporações da Idade Média As corporações da sociedade moderna teriam a incumbência de organizar todos os membros da profissão dispersos num território determinado Além disso deveriam estabelecer relações com o Estado a quem caberia instituir os princípios gerais da legislação industrial Às corporações caberá a tarefa de diversificar essa legislação segundo as diferentes espécies de indústrias As corporações além das funções profissionais deverão incorporar outras atribuições como funções de assistência e educação Assim concebidas elas estão destinadas a se tornarem a base ou uma das bases essenciais de nossa organização política E conclui Durkheim apud Gianotti 1983 p 20 a crise da qual sofremos não tem uma única causa Para que ela cesse não é suficiente que uma regulamentação qualquer se estabeleça onde é necessária é preciso além do mais que ela seja o que deve ser quer dizer justa Imaginemos com efeito que esteja enfim realizada a condição primordial da justiça ideal suponhamos que os homens entrem na vida de um estado de perfeita igualdade econômica isto é que a riqueza tenha cessado completamente de ser hereditária Os problemas em meio aos quais nos debatemos não estariam resolvidos por isto Com efeito haverá sempre um aparelho econômico e diversos agentes que colaborarão para o seu funcionamento será preciso pois determinar seus direitos e seus deveres e isto para cada tipo de indústria Será preciso que em cada profissão se constitua um corpo de regras que fixe a quantidade de trabalho a justa remuneração dos diferentes funcionários seu dever frente aos outros e frente à comunidade etc Estarseá não menos que atualmente diante de uma tábua rasa Porque a riqueza não se transmitirá mais segundo os mesmos princípios de hoje o estado de anarquia não terá desaparecido pois ele não consiste apenas no fato de as coisas estarem aqui mais do que ali em tais mãos mais do que em outras mas em que a atividade da qual estas coisas são a ocasião ou instrumento não está regulamentada e ela não se regulamentará por encantamento assim que for útil se as forças necessárias para instituir esta regulamentação não forem previamente suscitadas e organizadas 74 MARX e ENGELS a Concepção Materialista da Sociedade e da História Devese a Karl Marx 18181883 e a Friedrich Engels 1820 1895 a elaboração de uma teoria crítica da sociedade moderna que em função da sua radicalidade transformouse no componente fundamental para a formação dos grandes movimentos políticos que povoaram o século 20 As principais revoluções desse século tiveram o materialismo histórico ou a ontologia do ser social como fundamento teórico e político tanto que a dissolução da União Soviética foi anunciada pelos seus opositores ocidentais como a derrota definitiva do pensamento de Marx e Engels e obviamente dos seus seguidores Para compreender qualquer teoria é preciso buscar os seus fundamentos e o contexto social em que eles estão sendo elaborados As reflexões de Marx e Engels ocorrem num momento histórico que se caracteriza pelo triunfo do capitalismo modo de produção que já havia completado seu aparecimento tanto do ponto de vista econômico como políticoideológico sessenta anos antes de 1848 Segundo Eric Hobsbawm os anos de 1789 a 1848 foram dominados por uma dupla revolução a Revolução Industrial iniciada e largamente confinada à Inglaterra e a transformação política associada e largamente confinada à França 1977 p 22 Dessa forma o capitalismo é ao mesmo tempo o contexto e o objeto das investigações de Marx e Engels O ponto de partida da reflexão marxiana é a consideração de que a condição primeira de toda história humana é naturalmente a existência de seres humanos vivos Marx Engels apud Ianni 1982 p 45 Ao estabelecer esse ponto de partida Marx e Engels se contrapõem a concepção idealista da História que afirma o primado da consciência em relação ao mundo sensível O homem não é uma consciência que coloca a si mesma no mundo segundo as diversas formulações do idealismo filosófico Descartes Kant Hegel e que desse modo depende de si própria para se desenvolver ela é o próprio mundo objetivo que se transforma em seu outro estabelecendo uma dualidade indissociável entre sujeito e objeto Ao considerarem os seres humanos vivos Marx e Engels afirmam a realidade 75 material dos homens como parte fundamental da História A produção da vida material não é menos importante do que a produção da consciência É preciso compreendêlas na sua interação e independência uma da outra Esse é o sentido da afirmação de que não é a consciência que determina a vida mas a vida que determina a consciência ou então a consciência jamais pode ser outra coisa que o Ser consciente e o Ser dos homens é o seu processo real de vida As idéias as representações e a consciência são criações humanas O que o materialismo histórico faz é afirmar a relação desse processo criativo com a atividade material e ao comércio material dos homens Vale lembrar a primeira tese marxiana sobre Feuerbach o defeito fundamental de todo o materialismo anterior inclusive o de Feuerbach está em que só concebe o objeto a realidade o ato sensorial sob a forma de objeto objekt ou da percepção mas não como atividade sensorial humana como prática não de modo subjetivo Daí decorre que o lado ativo fosse desenvolvido pelo idealismo por oposição ao materialismo mas só de um modo abstrato já que o idealismo naturalmente não conhece a atividade real sensorial como tal Feuerbach quer objeto sensíveis realmente distintos dos objetos conceituais mas também não concebe a atividade humana como uma atividade objetiva Marx apud Ianni 1982 p 178179 Assim constituise a categoria da práxis como categoria essencialmente humana Isso quer dizer que toda a atividade especificamente humana tem um caráter teleológico isto é ela é produto de escolhas Obviamente os homens não escolhem como querem pois precisam considerar as circunstâncias ou as situações concretas Isso no entanto não impede a afirmação da tese de que são os homens que fazem sua própria história Nem deuses nem determinismo natural os homens são seus próprios criadores A afirmação da existência como um dado objetivo do ser humano implica considerar que é inerente à realidade humana a produção da sua própria existência por meio da práxis A práxis tem como referência ontológica o trabalho que estabelece o relacionamento do homem com a natureza no sentido da realização consciente das suas necessidades materiais É isso que diferencia o homem das formas orgânicas e inorgâncias do ser Como adverte Lukács o trabalho deve ser entendido como a 76 protoforma do ser social O trabalho como ato teleológico determina a especificidade do ser social no sentido de que ele antecipa idealmente o resultado do trabalho O trabalho como atividade humana autogovernada evidenciase pela capacidade do homem em imprimir nos objetos da natureza a forma que melhor atender as suas necessidades Esse processo não existe nos animais porque mesmo que eles produzam a própria existência o fazem de modo espontâneo não criativo O trabalho é também o fundamento da sociabilidade humana ou da práxis social Quer dizer que o ato teleológico do trabalho efetivado pela multiplicidade dos indivíduos é também fonte primária das interações humanas Ora a produção da existência como ato necessário do ser social portanto ineliminável revela a continuidade como processo inerente ao ser social É o que se denomina de historicidade Em outras palavras o ser social ao produzir sua existência produz uma história ou seja uma sucessão de atos humanos temporalmente situados As evidências empíricas revelam que o movimento do ser social tende à complexidade colocando assim uma questão nova a reprodução social Colocar o trabalho é como elemento fundante do ser social não significa deduzir dele as demais categorias da reprodução social Há um texto de Marx talvez o mais citado em que ele afirma que na produção social da própria existência os homens entram em relações determinadas necessárias independentes de sua vontade estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social política e intelectual Não é a consciência dos homens que determina a realidade ao contrário é a realidade social que determina sua consciência Marx apud Ianni 1982 p 8283 Essa afirmação de Marx tem se prestado a muitas interpretações muitas delas responsáveis pela compreensão mecânica sem premeditação da complexa relação entre base e superestrutura Por certo o próprio texto de Marx se presta para isso como qualquer texto que se proponha à formulação sintética de uma idéia A 77 obra de Marx contudo é uma negação permanente a qualquer tipo de reducionismo analítico Uma coisa é afirmar o vínculo necessário entre base e superestrutura como sugere o texto outra é determinar as relações entre ambas tendo em vista a criação da superestrutura A superestrutura é uma instância da vida social em que os desafios da reprodução social se colocam de modo complexo O desenvolvimento histórico tem como consequência o recuo dos limites naturais do homem que implica em que elementos essencialmente sociais passem a determinar a história humana Assim como a divisão do trabalho tornase mais complexa em função do desenvolvimento das forças produtivas também a criação da superestrutura tornase um processo mais complexo exatamente para dar conta da multiplicidade dos problemas postos pela reprodução do ser social O processo de constituição da superestrutura da sociedade burguesa tomado como exemplo torna mais clara a afirmação anterior A constituição do Estado e da ordem jurídica burguesa resultou de inúmeros embates entre teorias de tal modo que em determinada conjuntura uma se tornava hegemônica mas nunca em estado puro Atualmente a idéia e a prática da regulação estatal da vida social perderam terreno para a desregulação e para o livre mercado certamente para administrar a nova divisão do trabalho informacional Para que essas idéias se transformassem em idéias dominantes entretanto elas tiveram de se defrontar e vencer outras idéias não apenas aquelas que expressam os interesses do capital mas também as idéias das classes e movimentos subalternos Nesse plano de confronto ideológico parece que a dimensão ontológica do trabalho desaparece Na verdade não é isso que ocorre é a sua complexificação o aparecer sob outras formas Talvez uma outra afirmação de Marx ajude a esclarecer essa questão as relações jurídicas bem como as formas do Estado não podem ser explicadas por si mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito humano estas relações têm ao contrário suas raízes nas condições materiais de existência em seu conjunto condições estas que Hegel a exemplo dos ingleses e dos franceses do século XVIII compreendia sob o nome de sociedade civil Marx apud Ianni 1982 p 82 78 O Estado e o Direito têm suas raízes na sociedade civil mas não podem ser dela deduzidos Se os considerássemos nessa forma de dedução a simples investigação da sociedade civil seria suficiente para decifrar os enigmas da história humana Sabese no entanto que o conhecimento das raízes não é suficiente para identificar a planta toda Assim também é o ato ontológico de criação da base e da superestrutura como processo que estabelece vínculos necessários e influências recíprocas entre elas Outra dimensão fundante do materialismo histórico de Marx e Engels é a dialética como método de compreensão da realidade mas sobretudo como seu modo de existir A realidade natural e social é dialética porque está fundada em três grandes princípios 1 a transformação da quantidade em qualidade e viceversa 2 a interpenetração dos contrários e 3 a negação da negação O primeiro princípio refere se ao vínculo entre a acumulação de quantidades e às mudanças qualitativas de modo que o salto qualitativo não ocorre sem que haja uma operação quantitativa Por exemplo num determinado país a passagem da qualidade subdesenvolvimento para a qualidade desenvolvimento requer a acumulação e a distribuição de determinadas quantidades de riqueza medidas por meio dos vários indicadores socioeconômicos O segundo princípio evidencia que os diversos aspectos da realidade não existem de forma isolada mas conectados uns aos outros estabelecendose uma interdependência dinâmica entre eles A interpenetração dos contrários indica que os diferentes aspectos da realidade são ao mesmo tempo complementares e contraditórios compondo uma totalidade concreta Esta situação de unidade e luta de contrários pode ser exemplificada por meio do capital e do trabalho assalariado Ambos não existem de forma isolada um não existe sem o outro mas ao mesmo tempo estabelecem relações de oposição pois existem como contrários O terceiro princípio a negação da negação diz respeito ao modo como se resolvem as contradições Se a realidade existe como afirmação tese ela gera o seu contrário a negação antítese Essa dualidade contraditória é superada por uma síntese isto é também uma negação que não significa um retorno à afirmação inicial mas expressa uma situação nova Por exemplo o proletariado é a negação da 79 burguesia já os produtores livres associados da sociedade comunista representam uma negação do proletariado e consequentemente da sociedade burguesa Cabe sublinhar que a síntese não é a conciliação entre os opostos mas a superação dos mesmos processo que tem início com a primeira negação no exemplo o proletariado A dialética como forma de existência da realidade e do pensamento se confunde com o movimento Por isso quando se afirma que a realidade é dialética está se dizendo que a realidade é movimento que se expressa nos princípios discutidos anteriormente Além disso essa realidade em movimento é uma totalidade concreta como esclarece Marx uma síntese de múltiplas determinações isto é unidade da diversidade Do ponto de vista metodológico a realidade só é inteligível se considerada como totalidade constituída como uma unidade de múltiplas contradições em permanente movimento de afirmação e de negação Como vimos o materialismo histórico considera o homem como um ser históricosocial que se constitui como tal por meio do trabalho Na verdade esse agir humano se concretiza em instituições sociais historicamente determinadas sejam elas referentes à organização do trabalho sejam elas voltadas à organização político jurídica e do mundo simbólico Estas constatações não foram elaboradas a priori para servirem de fio condutor para as investigações desenvolvidas por Marx e Engels Ao contrário foi mediante o esforço para compreender a estrutura e o funcionamento da sociedade burguesa que Marx e Engels chegaram a tais conclusões Esta sociedade como a organização histórica mais desenvolvida permite a compreensão das estruturas e relações constitutivas das sociedades menos desenvolvidas não porque sejam idênticas mas porque cada uma representa um estágio particular da história da humanidade Todas as formas econômicas de poder e de cultura são realidades históricas e transitórias Em O Capital Marx analisa em profundidade a gênese e o desenvolvimento das categorias que estruturam a sociedade burguesa ou capitalista bem como as possibilidades de superação De imediato é importante destacar uma idéia central que perpassa a compreensão marxiana do capitalismo o capital é a potência econômica da sociedade burguesa domina tudo A questão é então investigar a origem do capital as suas determinações e as contradições que o envolvem 80 O modo de produção do capital só pode existir quando se generaliza a produção de mercadorias Isso quer dizer que todos os bens produzidos pelo trabalho somente realizam sua utilidade que é satisfazer necessidades humanas mediante a troca Esses bens não são apropriados e consumidos segundo as necessidades mas por meio da troca ou seja se os homens não possuírem mercadorias estão excluídos do processo de troca e por conseguinte impedidos de satisfazerem suas necessidades vitais O processo de produção da existência resumese portanto a um processo de produção de mercadorias Para a instituição do capital duas outras condições são exigidas a existência de homens livres sem qualquer vínculo com os meios de produção e homens que desenvolveram uma acumulação originária dinheiro capaz de se apropriar dos componentes fundamentais para a produção de mercadorias Tratase dos meios de produção instrumentos de trabalho e matériasprimas e da força de trabalho para operar os referidos meios de produção O dinheiro só age como capital se ele se transforma em meios de produção e força de trabalho Observa Marx O capital também é uma relação social de produção É uma relação burguesa de produção relação de produção da sociedade burguesa Os meios de subsistência os instrumentos de trabalho as matériasprimas de que se compõe o capital não foram produzidos e acumulados em condições sociais dadas de conformidade com relações determinadas Não são eles empregados para uma nova produção em condições sociais dadas de acordo com relações sociais determinadas E não é precisamente este caráter social determinado que transforma os produtos destinados à nova produção em capital O capital não consiste apenas de meios de subsistência de instrumentos de trabalho e de matériaprima não se forma somente de produtos materiais compõe se igualmente de valores de troca Todos os produtos de que se constitui são mercadorias O capital não é portanto somente uma soma de produtos materiais é também uma soma de mercadorias de valores de troca de grandezas sociais Marx apud Ianni 1982 p 96 O capital pressupõe a formação de duas classes sociais opostas e complementares a burguesia e o proletariado São sujeitos iguais como proprietários 81 de mercadorias mas diferentes quanto aos objetivos com que atuam no processo de produção Os burgueses têm interesse em produzir para obter lucros o proletariado vende a sua força de trabalho para a obtenção dos meios de subsistência para a manutenção da própria vida Desse modo o processo de produção que ocorre durante uma jornada de trabalho determinada apresenta duas dimensões salários e lucros O salário referese ao tempo necessário para a produção da força de trabalho do qual constam os tempos necessários para a produção de todos os meios de subsistência para a manutenção da vida dos trabalhadores Como explica Marx o valor da força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários para a manutenção do trabalhador Este valor é obviamente determinado pelo custo social médio dos meios de subsistência necessários cuja referência é o mínimo vital a manutenção física dos trabalhadores A conceituação do lucro é um aspecto fundamental da teoria de Marx As idéias desenvolvidas pela economia política tradicional de que o lucro se refere à remuneração do capitalista ou à retribuição do risco inerente ao investimento são criticadas por Marx O lucro fundamentase no valor excedente produzido pela força de trabalho que é apropriado pelo proprietário dos meios de produção A força de trabalho é remunerada pelo seu valor no entanto ela produz um valor maior do que o seu próprio valor que corresponde a uma outra parcela da jornada de trabalho Esse excedente que Marx denomina de maisvalia se produz durante a jornada institucionalizada de trabalho Tratase de um trabalho não pago de modo que a origem do capital fundamentase na apropriação privada do trabalho excedente O processo social de produção capitalista é ao mesmo tempo um processo de reprodução social Se o capitalista utiliza a maisvalia produzida para consumo trata se da reprodução simples Se ele emprega apenas uma parte para o consumo e transforma o restante em dinheiro temse a reprodução ampliada ou a acumulação do capital Neste caso tratase de um processo de conversão da maisvalia em meios de produção e força de trabalho no sentido da ampliação da produção de mercadorias A acumulação capitalista ocorre numa situação de concorrência entre os diversos capitalistas individuais Isto impõe a necessidade dos capitalistas aumentarem a produção da maisvalia O aumento que decorre do prolongamento da 82 jornada de trabalho consiste na maisvaliaabsoluta A produção da maisvalia relativa significa o aumento do trabalho excedente mediante a diminuição do trabalho necessário isto é reduzse valor tempo de trabalho do salário mediante o desenvolvimento das forças produtivas e da organização do trabalho A maisvalia relativa leva à subordinação real do trabalho ao capital O desenvolvimento da produção da maisvalia relativa faz aparecer uma tendência à queda da taxa de lucro que gera uma redução da maisvalia produzida em relação ao capital total Para entender o funcionamento desse processo é necessário acrescentar à análise os conceitos de capital constante o trabalho morto contido nos meios de produção e capital variável o trabalho vivo a força de trabalho A relação entre capital constante e variável é denominada por Marx de composição orgânica do capital A busca da maisvalia relativa produz um aumento da composição orgânica do capital isto é aumenta o valor do capital constante em relação ao capital variável Se o primeiro apenas transfere valor e este último é que produz a maisvalia a sua substituição pelas máquinas tende a retirar do processo de produção trabalho vivo Isso significa que o aumento da composição orgânica do capital tem como consequência a redução da maisvalia ou da taxa de lucro No âmbito do próprio processo de produção capitalista formamse na verdade são criados fatores contrários à queda tendencial da taxa de lucro o aumento do grau de exploração do trabalho assalariado a redução dos salários a baixa de preço dos elementos do capital constante a superpopulação relativa o comércio exterior e o aumento do capital em ações A presença desses fatores não evita que em determinados momentos a queda da taxa de lucro se faça sentir com toda a intensidade sobre a produção capitalista É o momento em que se configura uma situação de crise em que surgem obstáculos que paralisam o processo de acumulação do capital O resultado mais visível é a falência das empresas capitalistas mais frágeis e do aumento do desemprego Como afirma Engels nas crises estoura em explosões violentas a contradição entre a produção social e a apropriação capitalista A circulação da mercadoria fica por um momento paralisada O meio de circulação o dinheiro convertese num obstáculo para a circulação todas as leis da 83 produção e da circulação das mercadorias se viram ao contrário O conflito econômico atinge o seu ponto culminante o modo de produção rebelase contra o modo de distribuição sd p 66 É inegável no entanto que a crise cria condições para a retomada da acumulação em novas bases elevando o patamar de concentração e de centralização do capital Este é portanto o centro de gravidade da produção capitalista a acumulação requer o aumento continuado da maisvalia A efetividade desse processo gera as condições para o surgimento em determinados momentos da crise em que se manifesta a contradição fundamental do capitalismo a apropriação privada e a produção social Como é o trabalho assalariado que produz o capital para que este se reproduza impõese a necessidade de expropriação permanente dos meios de produção de uma parte da sociedade Isso quer dizer que a existência do capital requer a presença permanente de uma classe social destituída da propriedade dos meios de produção O fundamento da luta de classes no capitalismo é a disputa pela maisvalia A reprodução do capital não se resume à manutenção das relações entre capital e trabalho assalariado como condição para a produção da maisvalia Embora seja este o fundamento da reprodução da sociedade capitalista tratase de um processo bem mais complexo Tal processo não seria possível sem a presença do Estado e da ideologia ou de uma cultura A classe que detém o poder material organiza a dominação no plano das idéias as idéias dominantes de uma época sempre foram apenas as idéias da classe dominante e obviamente no plano político jurídico O Estado moderno embora tenha promovido a separação entre a esfera privada e a esfera pública podendo assim apresentarse como expressão de uma vontade geral é uma instituição de classe Esta idéia está presente no conjunto da obra de Marx e Engels Por exemplo no Manifesto do Partido Comunista o poder do Estado moderno nada mais é do que um comitê para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa Marx Engels 1996 p 68 A ação das idéias dominantes e do Estado por meio da regulação e da coerção física não elimina a produção da maisvalia como núcleo gerador do conflito da 84 sociedade capitalista Na verdade a construção da superestrutura é uma forma de reforçar a reprodução dos pressupostos objetivos da acumulação capitalista a mercadoria a propriedade privada o trabalho assalariado e o lucro Estas categorias que expressam interesses particulares revestemse de um caráter universal Esse conflito mais dia menos dia também terá sua expressão no plano políticojurídico com a presença efetiva nesse plano dos sindicatos e sobretudo dos partidos operários Esta forma de compreensão da sociedade burguesa indica também as condições para sua superação Por mais avanços que possam ocorrer inclusive ampliando os direitos dos trabalhadores o capitalismo é incapaz de promover a emancipação do homem A exposição feita anteriormente contém os argumentos estabelecidos por Marx e Engels que justificam essa impossibilidade Daí que o caminho para a emancipação humana passa pela ruptura da sociedade burguesa e das suas instituições fundamentais Essa ruptura será obra do proletariado O desenvolvimento e a globalização da burguesia significam igual situação para o proletariado de modo que estas classes estão indissoluvelmente ligadas desde o nascimento do capitalismo e assim devem permanecer até o seu fim No Manifesto do Partido Comunista Marx e Engels expõem com clareza o papel do proletariado Afirmam que todas as classes que no passado conquistaram o poder procuraram consolidar a posição já adquirida submetendo toda a sociedade às suas condições de apropriação Os proletários não podem se apoderar das forças produtivas sociais a não ser suprimindo o modo de apropriação existente até hoje 1996 p 76 Como o proletariado terá de se apropriar das forças produtivas sociais ou dos meios de produção amplamente socializados pela sociedade burguesa ele não poderá pela própria lógica do processo construir um novo sistema de dominação A tomada do poder político pelo proletariado é uma condição necessária para a superação do capitalismo mas como o poder político repousa numa relação de classes uma vez que estas são destruídas o poder político tornase supérfluo podendo então ser eliminado da vida social É interessante reproduzir uma afirmação feita por Marx contida numa carta 85 escrita a um amigo J Weydemeyer no que a mim se refere não me cabe o mérito de haver descoberto a existência das classes na sociedade moderna nem a luta entre elas Muito antes de mim alguns historiadores burgueses já haviam exposto o desenvolvimento histórico dessa luta de classes e alguns economistas burgueses a sua anatomia econômica O que eu trouxe de novo foi a demonstração de que 1 a existência das classes só se liga a determinadas fases históricas de desenvolvimento da produção 2 a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado 3 esta mesma ditadura não é por si mais que a transição para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes Marx apud Ianni 1982 p 99 As classes portanto são realidades históricas transitórias As classes sociais não estavam presentes na organização social das sociedades primitivas Elas se constituem com o surgimento da propriedade privada dos meios de produção e se modificam na mesma medida em que se transformam as condições objetivas da produção social da existência humana O modo de produção capitalista representa a última forma de sociedade cujas relações sociais são constituídas por classes sociais A ascensão do proletariado ao poder inaugura uma nova era na história humana A fase de transição comandada pelo proletariado é o início do processo de abolição das classes sociais e do Estado De acordo com o Manifesto se na luta contra a burguesia o proletariado é forçado a organizarse como classe se mediante uma revolução tornase a classe dominante e como classe dominante suprime violentamente as antigas relações de produção então suprime também juntamente com essas relações de produção as condições de existência dos antagonismos de classe as classes em geral e com isso sua própria dominação de classe Marx Engels 1996 p 87 A sociedade comunista é genericamente definida por Marx e Engels como a sociedade sem classes e sem Estado A abolição das classes ocorre mediante a socialização dos meios de produção Ainda segundo o Manifesto o que caracteriza o comunismo não é a abolição da propriedade em geral mas a abolição da propriedade burguesa p 80 E conclui o comunismo não priva ninguém do poder de se apropriar dos produtos sociais o que faz é eliminar o poder de subjugar o 86 trabalho alheio por meio dessa apropriação p 82 Assim a propriedade perde o seu caráter de classe pela abolição da apropriação privada baseada nos tempos de trabalho necessário e excedente Instituise uma forma de apropriação baseada nas necessidades humanas de cada um segundo suas capacidades a cada um segundo suas necessidades Este processo repercute também sobre o Estado O raciocínio feito por Marx e Engels é relativamente simples Se o Estado está necessariamente vinculado à existência das classes sociais a abolição destas implica a abolição do próprio Estado Nesse sentido Engels escreve o proletariado toma nas suas mãos o Poder do Estado e começa por converter os meios de produção em propriedade do Estado Mas nesse mesmo ato destróise a si próprio como proletariado destruindo toda a diferença e todo o antagonismo de classes e com isso o Estado como tal O primeiro ato em que o Estado se manifesta efetivamente em nome de toda a sociedade é ao mesmo tempo o seu último ato independente como Estado A intervenção da autoridade do Estado nas relações sociais tornarseá supérflua num campo após outro da vida social e cessará por si mesma O governo sobre as pessoas é substituído pela administração das coisas e pela direção dos processos de produção O Estado não será abolido extinguese sd p 7273 Esta é a utopia possível criada por Marx e Engels Esse projeto que acalentou tantos sonhos propôsse a explicar as relações estabelecidas pelos homens entre si colocando com radicalidade a questão da emancipação humana como realização da liberdade Não há dúvidas de que ele continua vivo e instigandonos à tarefa de construir um novo mundo para os homens MAX WEBER a Racionalização da Civilização Ocidental Max Weber é o fundador de um modo de pensar a vida social profundamente diverso do positivismo e do marxismo A construção do seu método de investigação ocorre num contexto intelectual marcado pelo debate sobre o estatuto das Ciências Humanas ou das ciências do espírito Reconhecendo a autonomia das Ciências Humanas em relação às ciências da natureza Weber incorpora deste debate um conceito básico para a investigação das ações humanas o conceito de compreensão 87 O problema da compreensão é inteiramente diferente da explicação naturalística que procura captar as leis naturais objetivas O objetivo da compreensão é captar o sentido subjetivo presente nas ações humanas De acordo com Weber sentido é o sentido subjetivamente visado a na realidade a num caso historicamente dado por um agente ou b em média e aproximadamente numa quantidade dada de casos pelos agentes ou b num tipo puro conceitualmente construído pelo agente ou pelos agentes concebidos como típicos Não se trata de modo algum de um sentido objetivamente correto ou de um sentido verdadeiro obtido por indagação metafísica Nisso reside a diferença entre as ciências empíricas da ação a Sociologia e a História e todas as ciências dogmáticas a Jurisprudência a Lógica a Ética e a Estética que pretendem investigar em seus objetos o sentido correto e válido 1994 p 4 A especificidade da compreensão weberiana que possibilita a fundação da Sociologia compreensiva não elimina a causalidade Não há contradição em estabelecer uma explicação compreensiva na medida em que esta se refere às relações causais significativas ou de sentido Essa posição que não é outra coisa senão o estabelecimento do controle da investigação pelos procedimentos usuais do trabalho científico visa a conferir maior validade para o método compreensivo A Sociologia compreensiva está centrada no indivíduo Ele é o fundamento da ação social e das interações sociais A compreensão segundo Weber considera o indivíduo isolado e sua atividade como a unidade de base diria em seu átomo se me permitem utilizar de passagem esta comparação imprudente A função de que se revestem outras maneiras de ver as coisas pode muito bem fazer com que o indivíduo seja eventualmente tratado como um complexo de processos psíquicos químicos ou outros Do ponto de vista da sociologia entretanto tudo o que fica aquém do limiar de um comportamento relativo a objetos exteriores ou íntimos suscetível de ser interpretado significativamente só é levado em conta nas mesmas condições dos acontecimentos da natureza estranha à significação isto é como condições ou objetos subjetivos da relatividade desse comportamento Pela mesma razão o indivíduo forma o limite superior pois ele é o único portador de comportamento significativo Nenhum modo divergente de exprimilo poderia dissimulálo Weber 88 apud Freund 1987 p 8485 Em outros termos o indivíduo como sujeito capaz de empreender ações significativas dotadas de sentido deve ser colocado como base da Sociologia compreensiva pois é por meio dele que os conceitos coletivos se tornam inteligíveis Outro aspecto fundamental do método compreensivo é a construção do tipo ideal puro Consiste numa elaboração racional em que o cientista seleciona aspectos considerados relevantes para a compreensão da realidade social O tipo ideal não se confunde com a realidade é apenas um instrumento de aproximação uma espécie de medida que permite a inteligibilidade da realidade Conforme afirma Weber obtémse o tipo ideal acentuando unilateralmente um ou vários pontos de vista e encadeando uma multidão de fenômenos isolados difusos e discretos que se encontram ora em grande número ora em pequeno número até o mínimo possível que se ordenam segundo os anteriores pontos de vista escolhidos unilateralmente para formarem um quadro de pensamento homogêneo p 48 Na construção do tipo ideal colocase a questão dos valores do cientista o que significa que se pode construir uma multiplicidade de tipos ideais sem que se possa chegar a uma conclusão sobre o correto ou o verdadeiro Também não é esta a função do tipo ideal no processo do conhecimento A pesquisa em si no entanto exige rigor científico e neutralidade axiológica O cientista não pode confundirse com o homem de ação Pode apenas uma vez fixados os objetivos a serem alcançados sugerir os meios mais adequados para atingir os objetivos indicar as possíveis consequências da ação empreendida e ajudálo a compreender melhor a importância da ação proposta Em uma palavra não é possível por meio da Ciência definir os fins a serem alcançados na medida em que estes são fundamentados em valores A tarefa do cientista social é compreender as estruturas da sociedade e não assumir a postura de reformador social ou definir qual a sociedade melhor O mundo é constituído por uma infinidade de pontos de vista e de valores que se chocam entre si de modo que não é possível superar esse antagonismo dos valores como advogam certas filosofias da história Essas diferenças que animam as ações humanas notadamente as ações determinadas pela convicção produzem muitas vezes resultados contrários às intenções Assim sendo a dificuldade ou 89 mesmo a despreocupação em prever as consequências associadas à pluralidade dos valores e dos fins últimos revelam a irracionalidade ética do mundo Em certo sentido essa insuperável pluralidade de valores pode ser vista também como uma forma de afirmação da liberdade humana É importante sublinhar que a liberdade não é produto nem produtora do irracionalismo do mundo A tarefa da ciência social é compreender a ação social entendida como o ato humano dotado de sentido para o outro Nem todos os atos humanos podem ser qualificados como ação social Uma ação que se refere a uma expectativa em relação a objetos materiais à oração solitária de um indivíduo à atividade econômica individual são exemplos de ações humanas que não têm um sentido social Para Weber a ação social como toda a ação pode ser determinada 1 de modo racional referente a fins por expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo exterior e de outras pessoas utilizando essas expectativas como condições ou meios para alcançar fins próprios ponderados e perseguidos racionalmente como sucesso 2 de modo racional referente a valores pela crença consciente no valor ético estético religioso ou qualquer que seja sua interpretação absoluto e inerente a determinado comportamento como tal independente do resultado 3 de modo afetivo especialmente emocional por afetos ou estados emocionais atuais 4 de modo tradicional por costume arraigado 1994 p 15 A ação racional referente a valores é aquela em que seu autor age a serviço da convicção tendo em vista o dever a dignidade a beleza as diretivas religiosas a importância de uma causa É um tipo de ação que ocorre segundo mandamentos ou exigências que o agente acredita serem dirigidas a ele desconsiderando as consequências previsíveis Este tipo de ação é irracional considerando a ação referente a fins tanto mais quanto os valores são colocados de forma absoluta É o que Weber denomina também de ética da convicção uma ética absoluta do tudo ou nada A ação racional referente a fins orientase pela definição e avaliação dos fins dos meios e das consequências previsíveis Essa modalidade de ação é também 90 denominada de ética da responsabilidade Segundo Weber a decisão entre fins e consequências concorrentes e incompatíveis por sua vez pode ser orientada racionalmente com referência a valores nesse caso a ação só é racional com referência a fins no que se refere aos meios Ou também o agente sem orientação racional com referência a valores na forma de mandamentos ou exigências pode simplesmente aceitar os fins concorrentes e incompatíveis como necessidades subjetivamente dadas e colocálos numa escala segundo sua urgência conscientemente ponderada orientando sua ação por essa escala de modo que as necessidades possam ser satisfeitas nessa ordem estabelecida princípio da utilidade marginal A orientação racional referente a valores pode portanto estar em relações muito diversas com a orientação racional referente a fins p 16 A ação referente a fins concebida em termos absolutos é essencialmente um casolimite construído As diversas modalidades de ação social são construções de tipos puros Na realidade é pouco frequente que os indivíduos desenvolvam ações exclusivamente em uma ou outra forma Isso não significa que determinadas formas de ação social não sejam características de determinadas sociedades É caso por exemplo da sociedade ocidental que para Weber caracterizase pela presença da racionalidade referente a fins em todas as esferas da vida social O homem ocidental está cada vez mais submetido a um processo de racionalização que tem suas origens no desenvolvimento da Ciência e da diferenciação técnica considerando a busca da eficácia e do rendimento A esse processo de racionalização Weber designou também como desencantamento do mundo ou seja a perda do sentido mágico ou sagrado do mundo O grande esforço intelectual de Weber foi no sentido de responder à indagação sobre a singularidade da civilização ocidental ou seja qual a combinação de fatores a que se pode atribuir o fato de na Civilização Ocidental e somente na Civilização Ocidental haverem aparecido fenômenos culturais dotados como queremos crer de um desenvolvimento universal em seu valor e significado 1997 p 1 A resposta dada a esta questão como vimos é o processo de racionalização que invade todas as esferas da vida ocidental A Ciência as artes a educação o 91 Direito a administração a política e a economia são práticas comandadas pela técnica e pelo cálculo racional o mesmo ocorrendo com a força mais significativa de nossa época o Capitalismo Weber 1997 p 4 É claro que em outras civilizações a racionalização também está presente no entanto ela ficou restrita a certa quantidade de atos incapaz de expandirse para o conjunto da vida social No Ocidente a racionalização se apresenta como uma intelectualização progressiva da vida despoja o mundo de seus encantos e de sua poesia a intelectualização é desencanto Em suma o mundo se torna cada vez mais a obra artificial do homem que o governa quase como se comanda uma máquina Não há pois motivo de espanto ante o impulso formidável da técnica e de seu corolário a especialização graças a uma divisão e uma subdivisão cada vez mais avançadas do trabalho Freund 1987 p 107 Não é objetivo dessa exposição do pensamento de Weber analisar cada uma das expressões ou racionalidades da vida social Cabe ressaltar porém uma questão metodológica importante Para Weber não é adequado estabelecer uma relação causal única e universal entre os fenômenos sociais Tais relações não são dotadas de um caráter necessário mas apenas probabilístico Este aspecto pode ser constatado na sua definição de relação social Assegura Por relação social entendemos o comportamento reciprocamente referido quanto a seu conteúdo de sentido por uma pluralidade de agentes e que se orienta por essa referência A relação social consiste portanto completa e exclusivamente na probabilidade de que se aja socialmente numa forma indicável pelo sentido não importando por enquanto em que se baseia essa probabilidade Weber 1994 p 16 Esta concepção é perfeitamente compreensível pois as ações sociais não são realidades objetivas mas subjetivamente determinadas pelo sentido A ação social e consequentemente a relação social persistem apenas enquanto os agentes lhe atribuírem sentido Um conceito importante da Sociologia compreensiva é o conceito de dominação legítima Enquanto o poder significa a probabilidade de impor a própria vontade numa relação social a dominação referese à probabilidade de conseguir obediência a uma ordem determinada A relação entre mando e obediência está na 92 base do conceito de legitimidade cujo sentido atribuído a essa relação permite conceber formas diferentes de dominação legítima legal racional tradicional carismática As três formas de dominação também constituem tipos puros porém na realidade elas podem coexistir Segundo Weber há três tipos puros de dominação legítima A vigência de sua legitimidade pode ser primordialmente 1 de caráter racional baseada na crença na legitimidade das ordens estatuídas e do direito de mando daqueles que em virtude dessas ordens estão nomeados para exercer a dominação dominação legal ou 2 de caráter tradicional baseada na crença cotidiana na santidade das tradições vigentes desde sempre e na legitimidade daqueles que em virtude dessas tradições representam a autoridade dominação tradicional ou por fim 3 de caráter carismático baseada na veneração extracotidiana da santidade do poder heróico ou do caráter exemplar de uma pessoa e das ordens por esta reveladas ou criadas dominação carismática No caso da dominação baseada em estatutos obedecese à ordem impessoal objetiva e legalmente estatuída e aos superiores por ela determinados em virtude da legalidade formal das suas disposições e dentro do âmbito de vigência destas No caso da dominação tradicional obedecese à pessoa do senhor nomeada pela tradição e vinculada a esta dentro do âmbito de vigência dela em virtude de devoção aos hábitos costumeiros No caso da dominação carismática obedecese ao líder carismaticamente qualificado como tal em virtude da confiança pessoal em revelação heroísmo ou exemplaridade dentro do âmbito da crença nesse carisma Weber 1994 p 141 A dominação legal racional é uma característica da sociedade moderna ocidental Entre os processos que a constituem está o desenvolvimento da racionalidade legal ou seja do Direito moderno que ocupa lugar central nessa forma de dominação Na verdade os homens obedecem a regras abstratas universais e impessoais que são em última instância estabelecidas racionalmente pelo debate público Nesse caso é a ordem jurídica que institui o Estado e não o contrário que detém o monopólio da coação física por parte do quadro administrativo burocracia num determinado território A burocracia se constitui por processos impessoais desde 93 o seu recrutamento até o desempenho das suas funções A dominação tradicional pode ser exemplificada pelo patrimonialismo característica das monarquias européias em que a autoridade é exercida por uma pessoa rei sendo a obediência uma relação estabelecida com esta pessoa Da mesma forma as pessoas que estão próximas ao soberano são servidores recrutados preferencialmente entre os senhores feudais sem que se estabeleça um critério de competência e especialização A personalização é a marca da administração patrimonial Não há como na dominação legal uma separação nítida entre o público e o privado A dominação carismática é exemplificada por meio das figuras do demagogo do profeta do ditador social do herói militar ou do revolucionário Os homens se entregam à obediência a uma pessoa que se acredita predestinada a realizar uma missão A obediência expressa uma relação emocional com os discípulos ou apóstolos baseada na fé Os limites de ação são estabelecidos pela própria autoridade considerando as exigências da sua vocação A dominação carismática é por natureza instável tendo de se renovar continuamente Ela é ao mesmo tempo criação e destruição É inadequado conceber a ação do direito nessa forma de dominação na medida em que ela não reconhece as instituições os regulamentos e os costumes O que vale é a palavra do chefe e esta muda conforme mudam as circunstâncias Cabem ainda dois comentários Um sobre o capitalismo outro sobre o conceito de classe social Para Weber o capitalismo é uma forma de economia que atingiu seu máximo desenvolvimento na sociedade ocidental sendo uma das formas de racionalidade predominante nesta sociedade Há uma multiplicidade de causas que promoveram o desenvolvimento da racionalidade capitalista entre elas estão a ciência as técnicas a divisão do trabalho o Direito moderno e a ética protestante Em relação a esta última as suas análises são bastante ricas Ele consegue demonstrar a contribuição da ética protestante no caso o calvinismo na formação do espírito capitalista Segundo Weber uma ética profissional especificamente burguesa surgiu em seu lugar Consciente de estar na plena graça de Deus e sob sua visível bênção o empreendedor burguês enquanto sua conduta moral fosse sem manchas e não 94 fosse bjetável o uso de sua riqueza podia agir segundo os seus interesses pecuniários e assim devia proceder O poder da ascese religiosa além disso punha à sua disposição trabalhadores sóbrios conscientes e incomparavelmente industriosos que se aferraram ao trabalho como uma finalidade de vida desejada por Deus Davalhe além disso a tranquilizadora garantia de que a desigual distribuição da riqueza deste mundo era obra especial da Divina Providência que com essas diferenças e com a graça particular perseguia seus fins secretos desconhecidos do homem 1997 p 127 Também a conduta racional baseada na idéia de vocação nasceu do espírito da ascese cristã A presença do ascetismo na vida profissional secular contribuiu de forma decisiva para a formação e o desenvolvimento da moderna ordem econômica e técnica ligada à produção em série através da máquinap 130 131 E conclui Weber desde que o ascetismo começou a remodelar o mundo e a nele se desenvolver os bens materiais foram assumindo uma crescente e finalmente uma inexorável força sobre os homens como nunca antes na História Hoje em dia ou definitivamente quem sabe seu espírito religioso safouse da prisão O capitalismo vencedor apoiado numa base mecânica não carece mais de seu abrigo Também o róseo caráter de sua risonha sucessora a Aufklärung parece estar desvanecendo irremediavelmente enquanto a crença religiosa no dever vocacional como um fantasma ronda em torno de nossas vidas Onde a plenitude vocacional não pode ser relacionada diretamente aos mais elevados valores culturais ou onde ao contrário ela também deve ser sentida como uma pressão econômica o indivíduo renuncia a toda a tentativa de justificála No setor de seu mais alto desenvolvimento nos Estados Unidos a procura da riqueza despida de sua roupagem éticoreligosa tende cada vez mais a associarse com paixões puramente mundanas que frequentemente lhe dão o caráter de esporte Ninguém sabe ainda a quem caberá no futuro viver nessa prisão ou se no fim desse tremendo desenvolvimento não surgirão profetas inteiramente novos ou um vigoroso renascimento de velhos pensamentos e idéias ou ainda se nenhuma dessas duas a eventualidade de uma petrificação mecanizada caracterizada por esta convulsiva espécie de autojustificação Nesse caso os últimos homens desse 95 desenvolvimento cultural poderiam ser designados como especialistas sem espírito sensualistas sem coração nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado p 131 As palavras de Weber são bastante eloquentes o espírito capitalista se separa da sua dimensão éticoreligiosa inicial o desencantamento do mundo e em seu lugar se afirma uma racionalidade econômica autônoma dotada de lógica própria Isto pode ser percebido na sua definição de capitalismo como atividade empresarial lucrativa Para que exista capitalismo impõese como premissa mais geral a existência de uma contabilidade racional do capital como norma para todas as grandes empresas lucrativas que se ocupam da satisfação das necessidades cotidianas As premissas dessas empresas por sua vez são as seguintes 1 apropriação dos bens materiais de produção a terra aparelhos instrumentos máquinas etc como propriedade de livre disposição por parte de empresas lucrativas autônomas 2 a liberdade mercantil ou seja a liberdade de mercado em face de toda limitação irracional de intercâmbio 3 técnica racional ou seja contabilizável ao máximo e em consequência mecanizada 4 direito racional ou seja calculável Para que a exploração econômica capitalista se processe racionalmente precisa confiar em que a justiça e a administração seguirão determinadas normas 5 trabalho livre ou seja que existam pessoas não só em seu aspecto jurídico mas também no econômico obrigados a vender livremente sua atividade em um mercado 6 comercialização da economia sob cuja denominação compreendese o uso geral de títulos de valor para os direitos de participação nas empresas e igualmente para os direitos patrimoniais Em resumo a possibilidade de uma orientação exclusiva no que se refere à satisfação das necessidades no sentido mercantil e da rentabilidade Weber apud Iannim 1996 p 115116 A racionalidade capitalista caracteriza portanto a existência de indivíduos que se movem no sentido de maximizar benefícios e minimizar custos sejam eles capitalistas trabalhadores ou genericamente consumidores Na verdade a racionalidade que se afirma como paradigma da civilização ocidental é uma racionalidade instrumental cujo móvel é o cálculo da relação custobenefício Vale lembrar ainda que a racionalidade capitalista não determina as outras formas de 96 racionalidade como a da política do Direito e da cultura É claro que existem relações entre elas no sentido probabilístico Por fim um breve comentário sobre o conceito de classe social concebido por Max Weber À semelhança do que foi exposto anteriormente a existência de classes sociais como grupo econômico não condiciona necessariamente às formas de dominação ou de estratificação segundo o prestígio embora possam haver influências recíprocas Weber distingue classe status e partido como formas diferentes de distribuição de poder segundo a economia o poder e a honra prestígio As classes são definidas como grupos de pessoas que vivenciam igual situação de classe que se caracteriza pela oportunidade de abastecimento de bens posição de vida externa e destino pessoal Nesse sentido podese afirmar a existência das seguintes situações de classe classe proprietária determinada pelas diferenças de propriedade classe aquisitiva que apresenta oportunidades de valorização de bens ou serviços classe social caracterizada pela ocorrência de mudança pessoal e na sucessão de gerações Podem ocorrer associações entre as diversas classes ou dos indivíduos pertencentes às diferentes classes bem como mobilidade entre elas O status referese à distribuição da honra ou do prestígio Esta se refere a uma estimativa específica positiva ou negativa da honraria que pode estar relacionada a uma qualidade partilhada por uma comunidade de indivíduos ou a uma situação de classe e que expressa um estilo de vida Já o partido referese à distribuição ou à aquisição do poder social com vistas a influenciar a ação comunitária que pode ser tanto num clube social como num Estado Analisamos as contribuições dos fundadores da Sociologia os autores clássicos Comte Marx e Engels Durkheim e Weber Foram eles que possibilitaram que a Sociologia se afirmasse como uma das mais importantes formas de conhecimento social Essas teorias constituíramse num momento histórico determinado contudo estenderam a sua influência até hoje momento que definimos como uma nova transição social da sociedade industrial nacional para a sociedade informacional global Sociologia e Crise da Modernidade 97 Estamos vivendo um novo momento histórico de intensas transformações sociais Palavras como pósmodernidade pósindustrial póscapitalista informacional sociedade global sociedade do conhecimento passaram a fazer parte do cotidiano na Sociologia nas demais Ciências Sociais e nos meios de comunicação de massa Elas pretendem indicar as mudanças sociais que estão em curso A discussão mais acirrada coloca em oposição modernidade e pósmodernidade Outro entendimento é de que o projeto da modernidade está em crise mas as soluções estão ainda no próprio paradigma da modernidade A Sociologia no primeiro caso está em questão junto com o projeto da modernidade no segundo ela precisa ser reformulada ou reconstruída Para a análise que se pretende desenvolver nas próximas páginas vamos nos situar na segunda posição Além disso vamos conceber o momento atual de mudança da seguinte forma a humanidade vive um momento de transição social que pode ser genericamente identificado pelos conceitos de sociedade industrial nacional e de sociedade informacional global O primeiro conceito foi elaborado pela própria Sociologia e constitui o seu objeto de análise o segundo ainda está em construção de modo que sobre ele podemos apenas fazer indicações gerais As teorias sociológicas clássicas elaboraram uma compreensão da sociedade industrial nacional em que a ênfase em determinados princípios gerais apontava para a sociedade que atualmente encontrase em formação A constatação da lei histórica da preponderância progressiva da solidariedade orgânica feita por Durkheim indica a possibilidade do processo atual se por globalização entendermos a ampliação da divisão do trabalho mesmo que esta tenha diferenças importantes daquela estabelecida na sociedade industrial Podemos fazer a mesma afirmação sobre a tese de Weber da racionalização da sociedade ocidental e sobre as várias observações feitas por Marx em toda a sua obra sobre a tendência globalizante dos movimentos do capital para viabilizar o processo de acumulação Se esses autores entretanto constataram uma tendência geral de desenvolvimento das sociedades nada nos autoriza a afirmar que as teorias não precisam ser atualizadas Talvez a questão central a ser enfrentada pela Sociologia 98 neste momento possa ser assim expressa além da atualização das teorias diante da nova realidade social há que se enfrentar problemas de natureza epistemológica referentes à teoria do conhecimento Ou seja a transição social comporta duas dimensões articuladas entre si uma societária e outra epistemológica A dimensão societária tem sido amplamente discutida pela Sociologia em todo o mundo Podese assegurar que os conhecimentos que temos sobre a sociedade informacional global foram em grande parte produzidos pela Sociologia mesmo que em muitas universidades os recursos para pesquisa em Ciências Sociais tenham sido bastante reduzidos Este fato não se deve a uma perda de capacidade da Sociologia de explicar o mundo social Podese dizer que a crise do Estado do BemEstar Social e a hegemonia do mercado na promoção do crescimento e da prosperidade foram fatores decisivos para definir um lugar marginal para a Sociologia na sociedade Não é por acaso que hoje se observa um processo de aproximação dos movimentos e instituições sociais com o pensamento sociológico crítico A rigor não há nenhuma novidade nisso pois a Sociologia constituiuse e se desenvolveu no âmbito das lutas sociais da modernidade Vários autores têm produzido reflexões importantes sobre o caráter das transformações sociais atuais Entre eles destacamse Alain Touraine Boaventura de Sousa Santos Manuel Castells Niklas Luhmann Pierre Bourdieu Octavio Ianni Immanuel Wallerstein Anthony Giddens Pierre Lévy John Thompson Zigmunt Bauman Jena Lojkine Ulrich Beck Edgar Morin Michel Maffesoli e Jurgen Habermas Há também um número bastante expressivo de pensadores da Sociologia e de outras áreas do conhecimento com importantes análises sobre o capitalismo atual numa perspectiva marxiana como é o caso de István Mészáros na sua obra Para Além do Capital Esses autores seguindo a posição de Georg Lukács não consideram o marxismo como uma Sociologia na medida em que estão ausentes nele as questões econômicas na análise da sociedade Não vamos discutir a contribuição dos autores Cabe apenas fazer algumas considerações gerais sobre a transição social inspiradas nas contribuições desses autores que representam o universo da Sociologia neste momento histórico Vamos considerar três questões principais que estão no centro dos debates os fundamentos 99 da sociabilidade humana o caráter das transformações sociais e as instituições da modernidade e os problemas epistemológicos postos pela transição social A primeira questão diz respeito ao fundamento da sociabilidade humana Na modernidade as duas principais teorias sociológicas marxismo e positivismo partiram do trabalho como categoria explicativa das sociedades Essa discussão foi feita na unidade anterior quando tratamos dos clássicos da Sociologia Para Marx o trabalho tem uma dimensão constitutiva do ser humano para Durkheim o trabalho é o fundamento da solidariedade orgânica que caracteriza a integração social na sociedade industrial Atualmente vem ocorrendo um questionamento da categoria trabalho Vários autores como Habermas e Luhmann têm sustentado que os processos sociais são processos de comunicação Assim o homem não é prioritariamente um ser que fabrica ferramentas mas um ser que produz linguagem A centralidade da linguagem nos processos sociocomunicativos está fundamentada na chamada virada linguística em que a filosofia da consciência é superada pela filosofia da linguagem As consequências do novo paradigma sobre a teoria sociológica são profundas Por exemplo na perspectiva de Habermas a emancipação humana deslocase do mundo do trabalho para o campo da ação comunicativa na perspectiva da teoria dos sistemas Luhmann sustenta que os sistemas sociais como sistemas autopoiéticos autoreferentes e operacionalmente fechados são formados por comunicações Sociólogos que atuam nas universidades de vários países definem a categoria trabalho como o fundamento da sociabilidade humana Eles compõem um grupo bastante significativo com intensa produção intelectual e vinculação com as lutas sociais É importante destacar que estes autores têm buscado sua fundamentação teórica nas obras do próprio Marx de Georg Lukács principalmente a Ontologia do Ser Social e de Antonio Gramsci Por meio da reelaboração do conceito de sociedade civil como momento da conquista da direção moral e intelectual hegemonia da sociedade Gramsci recoloca a discussão do Estado Em sentido amplo o Estado definese como a sociedade política mais a sociedade civil hegemonia revestida de coerção Já Lukács a partir do conceito de ontologia afirma que as questões presentes na obra de Marx constituem uma discussão sobre um certo tipo de ser 100 ou seja é a condição humana que se revela pelo trabalho o fundamento da sua sociabilidade e historicidade Uma segunda questão referese ao impacto das transformações sociais sobre as instituições clássicas da modernidade a fábrica fordista o EstadoNação a família a escola e a Igreja Todas essas instituições estão sendo redesenhadas pela sociedade informacional global Para detalhar um pouco mais esse processo vamos considerar que está em desenvolvimento uma terceira revolução industrial A diferença entre essa nova revolução e as anteriores é que ela pela criação de tecnologias inteligentes atua sobre o cérebro do homem Por isso Jean Lojkine a denomina de revolução informacional Sob o impacto da revolução informacional a fábrica fordista transformase em pósfordista ou toyotista é uma fábrica flexível descentralizada exige cada vez mais inteligência artificial dispensa trabalhadores e precariza as relações de trabalho Esse novo modelo fabril constitui a megaempresa capitalista globalizada cuja capacidade de acumulação é maior que a grande maioria dos Estados nacionais Outra característica desse novo mundo empresarial é a crescente centralização e concentração de capitais processos de fusões e aquisições de empresas são quase diários Além disso generalizase um processo econômico de financeirização da riqueza O Estado nacional instituição política afirmativa da soberania nacional sofre as consequências do processo de globalização da economia Os governos têm se mostrado incapazes de formular e operacionalizar políticas macroeconômicas de caráter nacional porque se observa a existência de múltiplos centros de decisão descentralização que lhes permite em grande parte uma liberação das amarras impostas pelos territórios nacionais Além disso por decisão política o EstadoNação se afasta da regulação da economia e da questão social deixando que estas se realizem segundo as leis do mercado Obviamente surgem novas estruturas de poder que operam num território supranacional em permanente movimento e mutação Também a ordem jurídica estatal um dos pilares do Estado Democrático de Direito e da soberania nacional sofre profundas transformações Estruturamse novas fontes do Direito vinculadas às grandes empresas e aos mercados globalizados 101 A família patriarcal modelo clássico da sociedade industrial está em crise A escola formal principalmente a universidade deixa de ser a única instituição voltada para a formação profissional e não consegue acompanhar outras formas mais dinâmicas de produção de conhecimentos e informações requeridas para a formação de opinião pública plural e democrática A Igreja em todas as suas vertentes sofre o impacto da crescente racionalização do mundo Igrejas criadas mais recentemente assumiram uma dimensão abertamente mercantil Também tem se colocado com insistência a necessidade de ampliar os conhecimentos sobre os meios de comunicação de massa cuja capacidade de inserção na vida cotidiana aumentou significativamente Percebese a formação de gigantescos conglomerados empresariais de comunicação que controlam a informação e o lazer de sociedades inteiras São empresas que visam ao lucro e que ao mesmo tempo precisam atender ao requisito da pluralidade segundo princípio liberal da liberdade de informação Essa contradição cada dia mais evidente se resolve pelo predomínio da lógica do mercado sobre o pluralismo Claramente os meios de comunicação de massa deixaram de ser o quarto poder Octavio Ianni emprega com bastante propriedade a expressão príncipe eletrônico para identificar a característica fundamental dos meios de comunicação de massa ou seja o seu papel decisivo na conquista e na manutenção do poder político Há no entanto um problema central não existe nenhum mecanismo capaz de funcionar como contraponto efetivo ao poder dos meios de comunicação que caracteriza uma situação de poder absoluto ou dito de outra forma um poder não democrático ou despótico que rompe com a democracia até mesmo na sua forma liberal Este é um resumo das questões discutidas pela Sociologia sobre o caráter da nova sociedade Do ponto de vista dos grandes modelos societários há uma questão importante em debate a sociedade informacional global é uma sociedade capitalista Os defensores da globalização econômica e da grande empresa privada afirmadas como a única alternativa para o desenvolvimento empregam fartamente a palavra capital também afirmam que o emprego e o lucro são objetivos fundamentais dos grandes investimentos globalizados Se é possível identificar de um lado o capital e do outro o trabalho assalariado configurase ainda a existência de classes sociais 102 obviamente não com as mesmas características do capitalismo industrial Podese assegurar que estamos diante de uma sociedade de tipo capitalista que se desenvolve segundo o princípio do mercado ou do privado em detrimento do Estado ou do público Esta é uma mudança fundamental que decorre da crise e dissolução do socialismo soviético e do Estado do BemEstar Social europeu A força social que comanda a globalização é o capitalismo é ele que desenvolve e se apropria da revolução informacional Obviamente as estatísticas revelam que a grande empresa capitalista global cujas características relacionamos nos parágrafos anteriores vive um momento de acelerada expansão A voracidade do capital na ocupação e transformação dos territórios é inédita É o momento histórico em que a destruição criadora se desenvolve com mais radicalidade e velocidade Por isso as consequências são igualmente trágicas A cada movimento do grande capital globalizado uma parte do EstadoNação é destruída Certamente o objetivo não é destruir o Estado mas reduzir drasticamente seu raio de ação política A redução dos impostos o confinamento da democracia aos limites da representação política o desenvolvimento do Terceiro Setor como forma de enfrentar a questão social estimulando o trabalho voluntário sem custos para a acumulação do capital constituem aspectos da estratégia de reprodução do capitalismo informacional No limite podemos estar vivendo uma situação em que na visão de Alain Touraine a globalização não deve ser entendida apenas como uma mundialização da produção e dos intercâmbios mas sobretudo como uma forma extrema de capitalismo como separação completa entre a economia e outras instituições particularmente sociais e políticas que não podem mais controlála Esta dissolução de fronteiras de todos os tipos acarreta a fragmentação daquilo que se chamava sociedade Touraine 2006 p 239 Ou seja o capital globalizado está destruindo a própria sociedade o lugar onde se desenvolve a vida humana Em outras palavras é a própria destruição da vida humana Destruição ou transformação da vida humana A revolução informacional está deixando o homem cada vez menos natural ou mais artificial As reflexões de Pierre Lévy sobre as tecnologias inteligentes a realidade virtual e o ciberespaço indicam um 103 caminho possível para o novo mundo em construção Alerta este autor a tendência se desenha claramente Nos primeiros decênios do século XXI mais de 80 dos seres humanos terão acesso ao ciberespaço e se servirão dele cotidianamente A maior parte da vida social tomará parte desse meio Os processos de concepção produção e comercialização serão integralmente condicionados por sua imersão no espaço virtual As atividades de pesquisa de aprendizagem e de lazer serão virtuais ou comandadas pela economia virtual O ciberespaço será o epicentro do mercado o lugar da criação e da aquisição de conhecimentos o principal meio da comunicação e da vida social A Internet representa simplesmente o estado de reagrupamento da sociedade que se sucede à cidade física Encontraremos nela quase todas as atividades que encontramos na cidade além de algumas outras completamente novas A principal originalidade da cidade virtual é que ela é única e planetária ainda que ela conte com cinturões protegidos redes especializadas e com bairros reservados intranets e extranets É absurdo opor a sociabilidade e as trocas intelectuais livres e gratuitas às atividades comerciais no ciberespaço tanto quanto seria opôlas na cidade As cidades são necessariamente ao mesmo tempo e no mesmo lugar mercados centros de troca de informações e desenvolvimento da cultura espaços de sociabilidade Ocorre exatamente o mesmo com o ciberespaço As redes se assemelham às estradas e às ruas os computadores e os programas de navegação são equivalentes ao automóvel individual os websites são como lojas escritórios e casas os grupos de discussão e as comunidades virtuais são praças cafés salões agrupamentos por afinidades Os mundos virtuais interativos mais ou menos lúdicos serão as novas obras de arte os cinemas teatros e óperas do século XXI Continuaremos entretanto a nos deslocar fisicamente e a nos encontrar em carne e osso e provavelmente ainda mais do que o fazemos hoje uma vez que os fenômenos de contato de relação e de interconexão de todos os tipos virtuais ou não serão amplificados e acelerados Lévy 2001 p 5152 Pierre Lévy é bastante otimista em relação ao ciberespaço Considera que nenhum outro espaço de comunicação tem um caráter tão transversal e aberto como o ciberespaço pois ele permite uma comunicação do tipo todos para todos Todos os textos se reúnem num hipertexto aberto e em permanente construção Todos as 104 autores se fundem num único autor coletivo múltiplo e contraditório O ciberespaço é um espaço não territorial de modo que os que ocupam muito espaço na Internet não tiram nada dos outros Há sempre mais lugar Haverá lugar para todo o mundo todas as culturas todas as singularidades indefinidamente p 141 Em síntese é a realização da sociedade democrática livre e plural de seres iguais e diferentes É preciso entretanto abordar a seguinte questão como o ciberespaço está sendo criado pelo capitalismo como é possível gerar uma sociedade democrática no sentido defendido por Lévy Vale lembrar que este capitalismo do capital financeiro e da grande empresa privada globalizada apesar do crescimento econômico não tem conseguido promover a inclusão social por meio do emprego Ao contrário os grandes empresários têm sustentado que apenas 20 da população economicamente ativa seriam suficientes para manter o ritmo da economia mundial produzindo todas as mercadorias e serviços e ao mesmo tempo participando ativamente da vida econômica do consumo e do lazer Os 80 restantes seriam os sememprego que não poderiam ser protegidos pelo Estado mínimo Algumas formas de proteção poderiam ser desenvolvidas pelo Terceiro Setor ou setor social assentado na filantropia e voluntariado Dessa forma a sociedade 20 por 80 como é denominada não pode ser desconsiderada na projeção da nova sociedade Podemos supor que a empresa capitalista globalizada geradora da nova sociedade informacional possa recriar as estruturas de desigualdade e exclusão social Por fim cabe destacar também outro aspecto teorizado principalmente por Anthony Giddens e Ulrich Beck a sociedade do risco e a reflexividade Por reflexividade entendese a ação transformadora que as ciências e as técnicas produzem sobre a sociedade diferente do que ocorria nas sociedades pré capitalistas que se caracterizavam por numa relativa imobilidade O conhecimento sistemático sobre a sociedade tornase parte necessária da reprodução do sistema que dele se apropria modificandose e ao mesmo tempo produzindo a necessidade de novos conhecimentos Esse processo ocorre numa perspectiva de certeza e de controle dos efeitos desejados Ocorrem contudo sempre consequências não desejadas que se acredita possam ser superadas por outras intervenções organizadas por novos conhecimentos específicos 105 A sociedade do risco resulta da modernização da sociedade industrial Num primeiro momento os efeitos não desejados são absorvidos pela sociedade de modo que não se tornam um problema porque predomina a certeza de que novos conhecimentos devem produzir situações adequadas Num segundo momento as instituições sociais econômicas sociais políticas ambientais não mais conseguem evitar que os riscos se tornem questões públicas Poderseia alertar que não se trata mais de considerar tais efeitos como colaterais mas produtos do próprio funcionamento do sistema industrial capitalista São exemplos significativos da sociedade do risco as recentes discussões sobre o aquecimento global o fim do trabalho assalariado a incerteza dos mercados financeiros o aumento da violência Neste contexto da sociedade do risco ressalta o debate sobre a crise ambiental A globalização do modo de produção capitalista embora a poluição tenha sido também uma característica do socialismo soviético ampliou de modo significativo a problemática ambiental Não é apenas o aumento das várias modalidades de poluição que preocupa mas as consequências da própria forma de intervenção do homem sobre a natureza Lembremonos que na base do pensamento da modernidade está a idéia do homem como senhor e proprietário da natureza A concepção crítica tem apontado para a insustentabilidade da relação homem e natureza que é determinada pelo modo de vida ocidental centrado no consumo ilimitado e no individualismo Esse modo de vida mostrase incompatível com as condições do planeta sua existência é possível apenas para um grupo bastante reduzido de pessoas e países É importante retomar a argumentação que serve de base para a conceituação da sociedade atual O capitalismo informacional globalizado leva ao limite a contradição entre a acumulação do capital como processo infinito e o ecossistema do planeta Terra que é finito Essa contradição sempre esteve presente na relação capital e natureza mas só agora adquire visibilidade ou publicidade Por isso um dos pontos centrais na investigação sociológica da atualidade é o desenvolvimento sustentável Na verdade esse conceito como qualquer outro precisa ser construído Analisamos sucintamente os desafios que a Sociologia tem enfrentado diante da nova realidade social que precisa ser compreendida Como no entanto as 106 mudanças têm o caráter de uma transição social surgem também problemas de natureza epistemológica ou seja estão em questão também as regras do método sociológico Em outras palavras as possibilidades e os limites do conhecimento sociológico Uma das análises mais importantes sobre as interinfluências entre questões epistemológicas e societárias foi desenvolvida por Boaventura de Sousa Santos Na sua obra Um discurso sobre as ciências ele sustenta que estamos vivendo um momento em que a transição social revela que há também uma transição no paradigma das Ciências Na modernidade o paradigma dominante da racionalidade científica foi determinado pelas Ciências Naturais que se estendeu inclusive para a Sociologia e para as outras Ciências Sociais A observação rigorosa dos fatos deve ser orientada pela Matemática que estabelece um modelo de representação da realidade e do próprio processo de investigação O método científico assentase na redução da complexidade e na quantificação A qualidade inerente aos objetos é relegada a um plano secundário para pesquisar as relações causais existentes entre eles leis transformandoas em relações estatísticas Assim a Ciência propõese a buscar a verdade a partir de três aspectos interligados objetividade estabilidade e simplicidade do mundo O desenvolvimento do conhecimento está deixando à mostra a fragilidade dos fundamentos do paradigma tradicional da Ciência o que determina a sua crise Percebese também a presença de sinais que identificam um novo paradigma Esses sinais podem ser sintetizados nos tópicos seguintes todo o conhecimento científico natural é científicosocial todo o conhecimento é local e total todo o conhecimento é autoconhecimento todo o conhecimento científico visa a constituirse em senso comum Esses tópicos têm como base a tese da crescente perda de sentido e da superação da divisão Ciências Naturais e Ciências Sociais Mais do que isso observa se que essa superação está ocorrendo no sentido da afirmação das Ciências Sociais como novo paradigma da Ciência Um conjunto de questões que hoje estão sendo postas para as Ciências Naturais como o debate sobre a relação sujeito e objeto ou sobre a relação entre parte e todo são por assim dizer constitutivos da Sociologia e das Ciências Sociais 107 Acrescentese o fato de que cada vez mais os estudos sobre a natureza são estudos sobre a sociedade que se organiza e sobredetermina o meio ambiente natural É claro que a Sociologia teria de se reconstruir desfazendose das teorias que são extensões das Ciências Naturais revalorizando as humanidades e as outras formas de saber nãocientífico Por fim diferentemente da Ciência moderna que se afirma pela negação do senso comum a Ciência pósmoderna interage com ele Segundo Boaventura de Sousa Santos deixado a si mesmo o senso comum é conservador e pode legitimar prepotências mas interpenetrado pelo conhecimento científico pode estar na origem de uma nova racionalidade Uma racionalidade feita de racionalidades Para que esta configuração de conhecimento ocorra é necessário inverter a ruptura epistemológica Na ciência moderna a ruptura epistemológica simboliza o salto qualitativo do conhecimento do senso comum para o conhecimento científico na ciência pósmoderna o salto mais importante é o que é dado do conhecimento científico para o conhecimento do senso comum O conhecimento científico pósmoderno só se realiza enquanto tal na medida em que se converte em senso comum 2004 p 9091 A denominação pósmoderna ou pósmodernidade tem um sentido bem preciso para Boaventura Ele identifica duas versões possíveis para o conceito Uma das versões denominada pósmodernismo reconfortante ou de celebração que afirma que a crise é do esgotamento da própria idéia moderna da transformação social do capitalismo esvaziandose assim qualquer possibilidade de atribuir sentido histórico para a vida social a outra com a qual ele se identifica o pósmodernismo inquietante ou de oposição fundamentase na idéia de transição paradigmática Essa posição caracteriza o momento atual pela coincidência de duas crises da regulação e da emancipação social Isso significa que as promessas da modernidade não podem ser realizadas pelo capitalismo e nem pelos mecanismos estabelecidos pelo pensamento moderno o socialismo marxista por exemplo Em outro texto O Fórum Social Mundial Manual de Uso boaventura de Sousa Santos coloca a problemática da produção dos conhecimentos numa perspectiva NorteSul Essa perspectiva de análise foi viabilizada pelo Fórum Social Mundial que ele identifica como uma epistemologia do Sul A rigor esta discussão não é nova na 108 Sociologia Tomandose os conhecimentos sociológicos produzidos no Brasil e na América Latina vêse que os mais significativos que adquiriram força popular foram aqueles que observaram o mundo ocidental da periferia para o centro Dessa perspectiva intelectual surgiu a teoria da dependência nas suas várias versões O Fórum Social Mundial FSM possibilita o estabelecimento de uma Sociologia das ausências e de uma Sociologia das emergências A primeira permite detectar que o não existente é produzido como tal Assim a não existência se manifesta nas monoculturas do saber e do rigor do saber do tempo linear da naturalização das diferenças do universal e do global e dos critérios de produtividade e de eficácia capitalista Estas monoculturas seriam superadas pelo reconhecimento dos múltiplos saberes e das diferenças das múltiplas temporalidades e das produtividades e das várias escalas de desenvolvimento Finalmente afirma uma Sociologia das emergências que deve se ocupar das pesquisas das alternativas que cabem no horizonte das possibilidades concretas Consiste em proceder a uma ampliação simbólica dos saberes práticas e agentes de modo a identificar neles as tendências do futuro o AindaNão sobre as quais é possível intervir para maximizar a probabilidade de esperança em relação à probabilidade da frustração A ampliação simbólica é no fundo uma forma de imaginação sociológica que visa um duplo objetivo por um lado conhecer melhor as condições de possibilidade da esperança por outro definir princípios de acção que promovam a realização dessas condições E conclui a ampliação simbólica operada pela sociologia das emergências consiste em identificar sinais pistas ou traços de possibilidades futuras em tudo o que existe A ciência e a racionalidade hegemônicas descartaram totalmente este tipo de pesquisa ou por considerarem que o futuro está prédeterminado ou por entenderem que ele só pode ser identificado através de indicadores precisos Para elas pistas são algo demasiado vago subjetivo e caótico para constituir um indicador credível Ao centrarse intensamente na componente de pista que a realidade possui a sociologia das emergências amplia simbolicamente as possibilidades de futuro que residem em forma latente nas experiências sociais concretas Santos 2005 p 3133 O Fórum Social Mundial como expressão dos múltiplos movimentos e instituições sociais locais e globais precisa ser compreendido como uma utopia 109 crítica ou seja como crítica radical ao mundo social organizado pela globalização neoliberal Esta é colocada como a única alternativa para o desenvolvimento das sociedades O FSM é a afirmação de uma globalização contrahegemônica que se desenvolve como epistemologia do Sul e como ação política cosmopolita das classes subalternas Outro autor que tem trazido à discussão o paradigma da ciência moderna é Edgar Morin Partindo da crítica ao paradigma tradicional caracterizado pela disciplinaridade pelo reducionismo e pela linearidade introduz a idéia da complexidade O pensamento complexo fundamentase nos seguintes princípios sistêmico relação parte e todo hologramático o todo está em cada parte anel retroativo autoregulação anel recursivo autoprodução e autoorganização auto ecoorganização autonomia e dependência dialogicidade a unidade entre dois princípios e a reintrodução do sujeito que conhece em todo o processo de produção do conhecimento O pensamento complexo não pretende abandonar os princípios da ordem da separabilidade e da lógica clássica mas conceber separação e união ordem e desordem certeza e incerteza numa perspectiva de totalidade Em outras palavras unir é distinguir e contextualizar separar e juntar o todo e as partes A idéia da complexidade exige uma reforma do pensamento e da própria universidade lugar por excelência da produção do conhecimento A universidade deve colocarse na perspectiva institucional como produto e ao mesmo tempo como produtora da sociedade Podese constatar que o pensamento complexo desenvolveuse sob o estímulo das disciplinas e das duas revoluções científicas Segundo Morin 2000 p 3637 a segunda revolução científica mais recente ainda inacabada a revolução sistêmica introduz a organização nas ciências da terra e da ciência ecológica ela se prolongará sem dúvida em revolução de autoorganização na biologia e na sociologia O pensamento complexo é portanto essencialmente aquele que trata com a incerteza e consegue conceber a organização Apto a unir contextualizar globalizar mas ao mesmo tempo a reconhecer o singular o individual e o concreto O pensamento complexo não se reduz nem à ciência nem à filosofia mas permite a comunicação entre elas servindolhes de ponte O modo complexo de pensar não tem utilidade somente nos problemas organizacionais sociais e políticos 110 pois um pensamento que enfrenta a incerteza pode esclarecer as estratégias no nosso mundo incerto o pensamento que une pode iluminar uma ética da religação ou da solidariedade O pensamento da complexidade tem igualmente seus prolongamentos existenciais ao postular a compreensão entre os homens O pensamento sistêmico não se expressa apenas por meio da complexidade Niklas Luhmann partindo da teoria dos sistemas sobretudo da contribuição do biólogo chileno Humberto Maturana pretende estendêla para a Sociologia ainda esterilizada pela vigência das teorias sociológicas clássicas Para isso propõe três rupturas com a idéia humanista que concebe a sociedade como uma relação entre pessoas com a sociedade como território no sentido de conceber as diferenças na sociedade e não entre sociedades com a diferença entre sujeito e objeto do conhecimento Em vez de considerar a sociedade como uma realidade objetiva que pode ser compreendida por um sujeito Luhmann propõe uma teoria dos sistemas sociais fundada na diferença entre sistema e ambiente Os sistemas sociais não são formados por pessoas mas por sistemas de comunicação que se produzem autopoieticamente Segundo ele os desenvolvimentos já esboçados da teoria dos sistemas possibilitam um salto pois eles são capazes de mostrar que as premissas clássicas são inúteis e por que e podem apresentar um design teórico para ocupar o lugar delas ou seja a teoria dos sistemas sociais autoreferenciais e operacionalmente fechados A teoria dos sistemas autopoiéticos exige sobretudo que se determine com exatidão a operação que realiza a autopoiésis do sistema e que através disso reproduz tanto os elementos isto é estas mesmas operações como também a diferença entre sistema e ambiente isto é a forma do sistema Luhmann 1997 p 6970 A sociedade é um sistema que se autoobserva e se autoexplica Não há observadores externos à sociedade Cada subsistema opera como um sistema autopoiético autoreferente e operacionalmente fechado As relações entre sistema e ambiente são explicadas pelo conceito de acoplamento estrutural que permite o estabelecimento de interdependências regulares para atender às demandas de 111 autoprodução do sistema O ambiente contudo mesmo sendo prérequisito para a autopoiése do sistema não intervém na realização O ambiente não contribui para as operações do sistema mas pode irritálo quando aparece no sistema como informação A teoria dos sistemas é uma das mais ousadas projeções da teoria sociológica pois além de questionar a compreensão da sociedade elaborada pela Sociologia clássica introduz a necessidade de uma ruptura epistemológica com o paradigma da ciência moderna do qual a Sociologia é parte integrante De acordo com Luhman 1997 p 48 uma vez que se decida por esse caminho tornase fácil transferir para a sociologia todas as inovações importantes da mais recente teoria dos sistemas Sobretudo produzse um conceito inequívoco da sociedade e com isso uma teoria do sistema social mais amplo a qual sempre fracassou na sociologia vigente com base nas consideráveis diferenças nacionais culturais regionais e políticas Tudo isso pode agora ser tratado como diferenciação social interna por exemplo como diferença na extensão da participação nas vantagens e desvantagens da moderna civilização Decisivo é a sociedade é o sistema social mais amplo de reprodução da comunicação através da comunicação É um sistema autopoiético Ela é um sistema fechado autoreferencial já que não existe nenhuma comunicação entre a sociedade e seu ambiente por exemplo entre a sociedade e pessoas que vivem individualmente Toda a comunicação é uma operação interna à sociedade é produção de sociedade e se expõe como acontecimento empírico não somente à continuação mas também à observação através de outras comunicações Neste sentido a sociedade moderna alcança uma complexidade que lhe permite reproduzir múltiplas autodescrições não passíveis de serem integradas e simultaneamente observar através de descrições das descrições que isto acontece Cabe ainda uma referência breve à teoria da ação comunicativa de Habermas e suas implicações epistemológicas na Sociologia Como já nos referimos a sua reflexão se desenvolve tendo como referência a Filosofia da Linguagem o que significa deslocar toda a problemática humana para este novo paradigma Habermas parte da crítica elaborada pela teoria social crítica da Escola de Frankfurt que analisa o caráter instrumental assumido pela razão sob o capitalismo transformandose 112 numa forma de dominação Para Habermas existem duas racionalidades a razão instrumental que vincula o homem à natureza e a razão comunicativa que permite a reintrodução da perspectiva emancipatória no projeto da modernidade A razão comunicativa se expressa pela da linguagem realidade auto referencial e autosuficiente que permite distinguir o homem como ser social A linguagem é a única coisa que podemos conhecer como realidade visível podemos proceder a uma análise objetiva por intermédio das suas expressões gramaticais A linguagem é também o meio que permite aos homens estabelecerem relações entre si e com o mundo ou seja possibilita o entendimento entre os homens sobre uma determinada situação À ação comunicativa guiada pelo entendimento corresponde o interesse emancipatório ou de uma razão libertadora No novo paradigma o conhecimento não se dá por meio da relação entre sujeito e objeto mas da relação entre sujeitos capazes de produzirem entendimentos sobre o mundo A verdade tornase consensual ela resulta da relação intersubjetiva entre sujeitos falantes e ouvintes participantes de uma comunidade comunicacional A ação comunicativa tem como pano de fundo o mundo da vida horizonte de referência simbólica comum a todos que torna possível o entendimento Ele apresenta dois momentos enquanto suposto do entendimento ele é quase transcendental como expressão empírica ele é o produto da ação comunicativa da tomada de posição e dos acordos produzidos pelos sujeitos Formado por três estruturas permanentes e atemporais cultura personalidade e sociedade o mundo da vida é na verdade o espaço das interações ou da socialização produzidas pelos sujeitos Ele define os limites sempre provisórios sobre o que e como pode haver entendimento A ação comunicativa visa ao entendimento mas para que ele se viabilize é necessário estabelecer o critério da busca do melhor argumento ou seja que as pretensões de validade sejam racionalmente construídas Além disso devese considerar uma situação ideal de fala como possibilidade de criticar um consenso estabelecido Nesse caso é preciso supor uma distribuição simétrica ou igualitária entre os participantes das possibilidades de falar proceder a interpretações explicações justificações permitir proibir fazer promessas etc sem coações a não 113 ser a única coação permitida a da busca do melhor argumento A razão instrumental está ligada ao conhecimento técnico que visa à dominação a emancipação está pois vinculada à racionalidade comunicativa A modernidade produziu a dissociação entre as duas racionalidades e a colonização do mundo da vida pela racionalidade instrumental materializada na organização sistêmica do poder e do dinheiro Esse processo explica o surgimento das patologias sociais na sociedade contemporânea A superação das patologias pode ser alcançada pela afirmação da racionalidade comunicativa que consiste em revigorar a esfera pública mediante o fortalecimento da sociedade civil da neutralização dos efeitos do sistema do poder e do dinheiro sobre o processo decisório e da democratização das instituições econômicas e políticas Esse processo deve ocorrer em consonância com o Estado Democrático de Direito espaço político fundamental para regular as ações comunicativas Além disso Habermas vislumbra a necessidade de estruturas globais de comunicação nãoestatais as ONGs por exemplo para evitar a reprodução do sistema do poder e do dinheiro Buscamos nesta unidade estruturar um quadro geral da Sociologia nos tempos atuais de transição social O objetivo delineado não foi discutir exaustivamente as contribuições dos diferentes sociólogos sobre o mundo atual ou sobre as questões que dizem respeito às condições de produção dos conhecimentos sociológicos Enfatizamos apenas alguns autores aqueles cujas reflexões a nosso juízo são mais instigantes Mais precisamente foram feitas provocações para que cada um faça as suas próprias leituras e chegue as suas próprias conclusões É assim que se produz o pensamento crítico e transformador 114 Referências ADORNO Sergio Org A Sociologia entre a modernidade e a contemporaneidade Porto Alegre Ed UFRGSSBS 1995 ARON Raymond As etapas do pensamento sociológico São Paulo Martins Fontes 2005 BERGER Peter Perspectivas sociológicas uma visão humanística Petrópolis Vozes 1976 CASTELLS Manuel A era da informação economia sociedade e cultura São Paulo Paz e Terra 1999 COSTA Maria Cristina Castilho Sociologia introdução à ciência da sociedade São Paulo Moderna 1987 COULSON Margaret A RIDDEL David S Introdução crítica à Sociologia Rio de Janeiro Zahar Editores 1975 COUTINHO Carlos Nelson Marxismo e Política a dualidade de poderes São Paulo Cortez Editora 1996 CUIN CharlesHenry GRESLE François História da Sociologia São Paulo Ensaio 1996 DOMINGUES José Maurício Teorias sociológicas no século XX Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2001 FERNANDES Florestan Fundamentos empíricos da explicação sociológica São Paulo T A Queiroz 1980a FERNANDES Florestan A natureza sociológica da Sociologia São Paulo Editora Ática 1980b FERREIRA Leila da Costa Org A sociologia no horizonte do século XXI São Paulo Boitempo Editorial 1997 GIDDENS Anthony Em defesa da sociologia São Paulo Ed Unesp 2001 GIDDENS Anthony Sociologia Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2004 GIDDENS Anthony As consequências da modernidade São Paulo Ed Unesp 1991 GIDDENS Anthony TURNER Jonathan Orgs Teoria social hoje São Paulo Ed UNESP 1999 115 IANNI Octavio A sociedade global Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1996 IANNI Octavio Enigmas da modernidademundo Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2002 JOHNSON Allan G Dicionário de Sociologia guia prático da linguagem sociológica Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1997 KONDER Leandro O futuro da filosofia da práxis o pensamento de Marx no século XXI Rio de Janeiro Paz e Terra 1992 LALLEMENT Michel História das idéias sociológicas Petrópolis Vozes 2003 LEVINE Donald N Visões da tradição sociológica Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1997 MARTINS Carlos Benedito O que é Sociologia São Paulo Brasiliense 1994 MATURANA Humberto A ontologia da realidade Belo Horizonte Ed UFMG 1997 MÉSZAROS István Para além do capital São Paulo Boitempo Ed UNICAMP 2002 MILLS C Wright A imaginação sociológica Rio de Janeiro Zahar Editores 1975 MORIN Edgar Sociologia Portugal Publicações EuropaAmérica 1984 MORIN Edgar Da necessidade de um pensamento complexo In MARTINS Francisco Menezes SILVA Juremir Machado da Orgs Para navegar no século XXI tecnologias do imaginário e cibercultura Porto Alegre EDIPUCRSSulina 2000 MORIN Edgar Ciência com consciência Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1998 QUINTANERO Tânia BARBOSA Maria Lígia de O OLIVEIRA Maria Gardênia de Um toque de clássicos Durkheim Marx e Weber Belo Horizonte Ed UFMG 1995 SANTOS José Vicente dos GUGLIANO Alfredo Alejandro Orgs A sociologia para o século XXI Pelotas Educat 1999 SANTOS Boaventura de Sousa Um discurso sobre as ciências Porto Edições Afrontamento 1993 SANTOS Boaventura de Sousa O Fórum Social Mundial manual de uso São Paulo Cortez 2005 SANTOS Boaventura de Sousa Org A globalização e as ciências sociais São Paulo Cortez 2002 SANTOS Boaventura de Sousa A crítica da razão indolente contra o desperdício da experiência São Paulo Cortez Editora 2000 SOBRAL Fernanda A da Fonseca PORTO Maria Stella Grossi Orgs A 116 contemporaneidade brasileira dilemas e desafios para a imaginação sociológica Santa Cruz do Sul Edunisc 2001 TRINDADE José Damião de Lima História social dos direitos humanos São Paulo Peirópolis 2002 VASCONCELLOS Maria José Esteves de Pensamento sistêmico o novo paradigma da ciência Campinas Papirus 2002 famart GRUPO EDUCACIONAL
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1 TÓPICOS ESPECIAIS DE FILOSOFIA SOCIAL 2 TÓPICOS ESPECIAIS DE FILOSOFIA SOCIAL DÚVIDAS E ORIENTAÇÕES Segunda a Sexta das 0900 as 1800 ATENDIMENTO AO ALUNO editorafamartfamartedubr 3 Sumário A Fundação da Sociologia e o Contexto HistóricoSocial e Intelectual 4 O QUE É SOCIOLOGIA 8 A FUNDAÇÃO DA SOCIOLOGIA Contexto HistóricoSocial 13 A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE MODERNA 13 A FUNDAÇÃO DA SOCIOLOGIA CONTEXTO INTELECTUAL 25 O PENSAMENTO DE MAQUIAVEL E A CIÊNCIA MODERNA 28 O PENSAMENTO SOCIAL ANTERIOR À SOCIOLOGIA 49 THOMAS HOBBES 50 JOHN LOCKE 52 AS TEORIAS SOCIOLÓGICAS CLÁSSICAS COMTE DURKHEIM MARX E ENGELS WEBER 59 COMTE Ordem e Progresso 60 DURKHEIM a Preponderância Progressiva da Solidariedade Orgânica 66 MARX e ENGELS a Concepção Materialista da Sociedade e da História 74 Sociologia e Crise da Modernidade 96 Referências 114 4 4 A Fundação da Sociologia e o Contexto HistóricoSocial e Intelectual A criação da Sociologia pode ser inserida entre os grandes eventos ocorridos no século 19 Ela mudou profundamente o modo do homem entender o mundo e a si próprio O homem descobriuse definitivamente como um ser cuja essência é a sua sociabilidade permanente Obviamente as ações humanas fundamentais têm sempre o sentido da reprodução da vida O que a Sociologia nos permitiu perceber é que não há possibilidade de que a reprodução possa ser um ato individual A vida humana desenvolvese numa estrutura espaçotemporal que passamos a chamar de sociedade Os sociólogos logo descobriram que desenvolver uma ciência da sociedade é uma tarefa extremamente difícil e complexa Uma pergunta repetida até hoje é se a Sociologia pode ser concebida como uma ciência com o mesmo caráter das ciências físicas e naturais Respostas diferentes foram dadas a essa questão pelos autores que fundaram as três grandes teorias da sociedade Comte e Durkheim Marx e Engels e Weber Por isso conhecêlos é uma tarefa urgente para quem quiser tornar se um sociólogo Leia com atenção a opinião de Peter Berger sobre a relação do sociólogo com a sociedade e com o seu objeto de estudo O fascínio da sociologia está no fato de que sua perspectiva nos leva a ver sob nova luz o próprio mundo em que vivemos Isto também constitui uma transformação da consciência Além disso essa transformação é mais relevante do ponto de vista existencial que a de muitas outras disciplinas intelectuais porque é mais difícil de segregar em algum compartimento especial do espírito O astrônomo não vive nas galáxias distantes e fora de seu laboratório o físico nuclear pode comer rir amar e votar sem pensar em partículas atômicas O geólogo só examina rochas em momentos apropriados e o linguista conversa com sua mulher na linguagem de todo o mundo O sociólogo porém vive na sociedade tanto em seu trabalho como fora dele Sua própria vida inevitavelmente convertese em parte de seu campo de estudo Em vista da natureza humana ser o que é os sociólogos também conseguem estabelecer uma separação entre sua atividade profissional e sua vida pessoal em 5 sociedade Mas é uma façanha um tanto difícil de ser realizada em boa fé Berger 1980 p 31 O sociólogo é ao mesmo tempo sujeito e objeto do conhecimento sociológico Ele sofreu ao longo da sua vida um processo de socialização como qualquer outra pessoa incorporando valores conceitos e habilidades além de ocupar lugares sociais determinados Em resumo ele faz parte do seu objeto de estudo de modo que quando um sociólogo emite uma opinião sobre a sociedade ele também está falando de si próprio Mais adequado seria considerarmos que a Sociologia é uma ciência com um caráter específico que não pode ser reduzida às ciências naturais Esse debate esteve presente ao longo de todo o processo de desenvolvimento da Sociologia E nada indica que ele tenha sido superado Atualmente tem se levantado com bastante frequência a tese de que se há um paradigma científico este deve ter como referência às Ciências Sociais pois mesmo os conhecimentos sobre a natureza são conhecimentos sociais Tome como exemplo a seguinte questão por que uma instituição de pesquisa via de regra financia um projeto de pesquisa sobre transgênicos e não sobre agroecologia A Sociologia nasceu num contexto de afirmação da modernidade em que a sociedade industrial capitalista organizada territorialmente em economias nacionais cuja unidade e soberania de cada território é determinada por um poder político e ideológico igualmente nacional Todas as teorias sociológicas foram teorias elaboradas sobre essa sociedade porém não são apenas teorias equidistantes dos problemas que querem explicar constituem aberta ou veladamente propostas de ação Por isso não é surpreendente que Auguste Comte tenha fundado a partir do positivismo que estudaremos mais adiante uma religião da humanidade e Marx e Engels tenham atuado decisivamente na criação do primeiro partido político moderno A Sociologia constitui a base e o fundamento das Ciências Sociais contemporâneas como a Antropologia a Ciência Política a Economia a Geografia a História o Serviço Social a Comunicação Social etc Foi por meio da Sociologia que a pesquisa de temáticas diversas foi possível estabelecendo várias especialidades rural urbana do trabalho de Direito da religião da cultura da 6 política da economia etc O desenvolvimento da divisão do trabalho científico contudo estabeleceu uma outra divisão compondo o que hoje denominamos de Ciências Sociais particulares Além da Sociologia também a Antropologia a Ciência Política a Economia a Geografia a História o Serviço Social a Comunicação Social etc fazem parte desse campo teórico Mesmo que cada ciência tenha um campo particular elas possuem uma identidade e um fundamento comuns a existência social do homem Como Ciências Sociais precisam enfrentar os mesmos problemas metodológicos que caracterizaram a história da Sociologia Estamos vivendo uma nova era de transição social a sociedade industrial nacional tanto na sua versão capitalista como socialista está sendo substituída por uma outra sociedade que provisoriamente vamos designar como informacional global Esta nova sociedade é um produto do desenvolvimento do capitalismo pois foi o mundo do capital que acumulou forças produtivas capazes de gerar uma nova evolução industrial ou informacional Tudo indica que está em desenvolvimento uma nova e prolongada fase de reprodução capitalista Nas últimas décadas duas idéias tomaram conta da intelectualidade mundial De um lado a afirmação taxativa do fim das ideologias e da história como expressão do predomínio definitivo da economia de mercado e do Estado liberal democrático De outro a idéia de crise do paradigma científico da modernidade que atingiu em cheio a Sociologia e as Ciências Sociais É claro que não se pode separar a crise das Ciências Sociais da atual situação de transformação social Um desdobramento da crise das Ciências Sociais revelase na alternativa reconstrução da modernidade ou pósmodernidade A modernidade esgotou suas promessas de emancipação do homem de tal modo que a saída está na descontrução das instituições da modernidade ou ainda é possível reconstruir o projeto da modernidade mediante uma revisão profunda dos seus pressupostos A primeira alternativa marginaliza a Sociologia e as Ciências Sociais a segunda exige uma transformação paradigmática das mesmas a começar pela crítica ao trabalho categoria central da sociabilidade humana A reconstrução requer uma nova concepção de conhecimento fundada na virada linguística razão e verdade constituemse nas relações intersubjetivas protagonizadas pelo diálogo entre sujeitos 7 linguisticamente competentes Nesse sentido trabalho ou linguagem transformase numa questão central para as Ciências Sociais atualmente A crise da Sociologia pode ser entendida também como o descompasso entre a sua capacidade explicativa e a nova realidade social Aprendemos que as categorias de análise sociológica são realidades históricas Por exemplo o sistema de classes burgueses e proletários típico do capitalismo industrial é adequado para explicar as relações de classe do capitalismo globalizado Podemos inclusive por em dúvida a existência de classes sociais Por isso fazer um balanço crítico das conquistas e das fragilidades da Sociologia inclusive os impasses epistemológicos é uma postura mais adequada do que afirmar que ela é uma ciência em extinção Octavio Ianni 1997 p 16 um dos mais eminentes sociólogos brasileiros afirma que o objeto da sociologia desenvolvese continuamente tornandose muitas vezes mais complexo e provocando a recriação das suas configurações conhecidas Em lugar de manterse semelhante modificase todo o tempo Além de que se aperfeiçoam continuamente os recursos metodológicos e teóricos da sociologia o que permite aprimorar os modos de refletir sobre a realidade social e é inegável que esta realidade transfigurase de tempos em tempos ou continuamente Nesse sentido é que a sociologia ingressou na época do globalismo O seu campo de estudos apresenta relações processos e estruturas novos não só desconhecidos mas surpreendentes Simultaneamente as novas relações os novos processos e as novas estruturas de dominação e apropriação envolvendo integração e fragmentação tensões e antagonismos recriam as relações processos e estruturas conhecidos Isto significa que o globalismo confere novos significados às realidades locais nacionais e regionais ao norte e ao sul orientais e ocidentais Por isso ser sociólogo é aceitar o desafio de fazer uma ciência em que não é permitido descuidarse dos destinos da humanidade Mais uma vez vamos nos valer de uma afirmação de Peter Berger 1980 p 34 a perspectiva sociológica mais se assemelha a um demônio que possui uma pessoa que a compele repetidamente às questões que são só suas Por conseguinte um convite à sociologia é um convite a um tipo de paixão muito especial Não existe paixão sem perigos 8 O QUE É SOCIOLOGIA Todos os dias as pessoas em qualquer parte do mundo realizam atos bastante simples necessários à vida consomem alimentos cultivam a terra vão e voltam do trabalho levam os filhos à escola conversam com os amigos fazem exercícios físicos enfrentam o trânsito caótico das metrópoles a vida calma das pequenas cidades São atos tão rotineiros que na maioria das vezes são executados de forma mecânica como se não tivessem consciência de que os estão realizando Por um momento apenas vamos nos colocar como observadores de tais cenas cotidianas Pode ser que a nossa reação fosse de simples registro das pessoas e dos seus atos Assim não perceberíamos nada de diferente no mundo dos homens Pode ser contudo que por alguma razão nos motivássemos a ir além da percepção mais imediata das pessoas e dos seus atos Por exemplo perceber que embora os atos realizados sejam semelhantes ir ao trabalho as pessoas que os realizam são diferentes ou ao contrário que pessoas semelhantes realizam trabalhos diferentes A partir dessa questão inicial podese ir além perguntar o que faz as pessoas serem diferentes ou porque existem trabalhos diferentes Mais ainda As pessoas vão para o trabalho utilizandose de transporte coletivo ou individual Elas estão vestidas de terno e gravata ou um simples macacão Se uma pessoa vai ao trabalho de automóvel e usa terno e gravata podemos ter alguma idéia da sua renda e assim relacionar o tipo de escola que os seus filhos frequentam diferentemente da pessoa que veste um macacão e se utiliza de transporte coletivo A segunda postura que vai além do simples registro dos atos observados indica uma forma de pensar que pode ser identificada como sociológica Pensar sociologicamente significa olhar os fatos humanos considerando as relações que eles mantêm entre si Essas relações não são visíveis a um simples olhar elas só podem ser vistas por meio de um olhar conduzido por regras determinadas Vamos desenvolver mais um exemplo o ato de comer um pedaço de pão Pode ser um ato simples de uma pessoa que precisa saciar a fome Se avançarmos porém 9 na busca das relações envolvidas nesse ato a conclusão será surpreendente A primeira questão para construir a relação da pessoa com a coisa pão pode ser colocada pela pergunta sobre quem é a pessoa A resposta pode ser trabalhador empresário cristão muçulmano universitário analfabeto entre outras As pessoas são diferentes pelo lugar que ocupam no processo de trabalho pela identidade visão de mundo pelo grau de educação etc Se o pão é um produto do trabalho humano podemos perguntar como ocorre a sua produção é um processo artesanal ou industrial No primeiro caso pode ser feito por um trabalhador autônomo no segundo por um trabalhador assalariado de um empresário capitalista A matériaprima a farinha é produzida em pequenos moinhos pelas cooperativas ou por grandes empresas capitalistas globalizadas E o trigo ou o milho Qual o processo técnico adotado Ele produz destruição do meio ambiente As tecnologias empregadas na produção envolvem relações entre países Em que período histórico elas ocorrem na era do globalismo Há outras possibilidades no entanto se o ato de comer um pedaço de pão tem um sentido simbólico um ato religioso por exemplo Pela observação e análise deste ato poderíamos avaliar as ideologias presentes na sociedade e o papel desempenhado por elas na reprodução da vida social Atualmente muitos sociólogos insistem em que devemos considerar a identidade como categoria fundamental para explicarmos os comportamentos humanos Uma análise mais cuidadosa contudo evidencia que a Sociologia nunca negligenciou esse aspecto A diferença é que hoje em razão da revolução informacional e da globalização a identidade gerada tanto pelo trabalho quanto pela Nação por exemplo estão sofrendo um processo profundo de desconstrução Nesse sentido a busca de uma identidade é um objetivo fundamental dos seres humanos no momento atual Enfim podemos a partir de um ato simples estabelecer o conjunto de relações sociais que estão contidas na pessoa e no pão Como se pode depreender do exemplo as relações econômicas políticas e ideológicas de uma determinada época histórica estão contidas em todos os atos humanos Esta é a primeira manifestação da natureza do pensamento sociológico a perspectiva da totalidade As ações humanas não têm condições de existir isoladamente Sempre que alguém realiza uma 10 ação ela repercute sobre outros Se ela aparentemente se dirige para apanhar uma fruta silvestre por exemplo este ato está carregado de um significado universal na medida em que incorpora de alguma forma práticas humanas anteriores Uma ação individual não existe fora da sociedade ou dito de outra forma a sociedade existe em cada ação singular A reflexão feita até agora nos permite expor uma outra característica da Sociologia a existência da sociedade A criação da Sociologia deu visibilidade à dimensão social da condição humana portanto permitiu compreender o homem como ser social O homem existe como ser social e não como um indivíduo que existe em si e para si As implicações deste fato são óbvias os atos de cada indivíduo singular repercutem nos demais indivíduos cada ação realizada por um indivíduo implica em sua responsabilidade social por aquilo que foi feito A sociedade se torna assim o palco fundamental das ações humanas A Sociologia possibilita a compreensão das ações humanas como ações sociais bem como as interações entre as diferentes ações humanas Uma mesma pessoa pode agir como serquetrabalha que faz o pão do nosso exemplo como um sercidadão membro de uma comunidade política como um serqueproduzidéias membro da comunidade científica por exemplo Podemos fazer a seguinte pergunta essas dimensões têm a mesma importância na constituição do ser social ou há dimensões condicionantes das demais O desenvolvimento da Sociologia demonstrou que essa pergunta comporta diferentes respostas que determinaram a formação de diferentes teorias sociológicas Antes de aprofundarmos a problemática das teorias sociológicas cabe ainda a explicitação do papel mais profundo da Sociologia o autoconhecimento ou autoconsciência da sociedade A criação da Sociologia ao mesmo tempo que permitiu afirmar o caráter social da condição humana constituiuse como um conhecimento da sociedade que incide sobre ela exercendo uma ação decisiva na reprodução da sociedade no sentido da conservação ou da transformação das relações sociais vigentes Obviamente antes da criação da Sociologia havia outras formas de pensamento social como é o caso do contratualismo A diferença fundamental é que 11 o contratualismo parte do homem como ser natural o animal racional que pode estabelecer um pacto contrato entre todos criando assim a sociedade civil ou sociedade política enquanto para a Sociologia como vimos anteriormente o ser natural já é um ser social portanto a sociedade existe independentemente do contrato Também a Sociologia é um ato social porque os conceitos elaborados não serão conhecidos e empregados apenas pelo sociólogo O grande sociólogo brasileiro Florestan Fernandes denominou esse fenômeno de a natureza sociológica da Sociologia Esses conceitos serão de alguma forma disseminados para o conjunto da sociedade tendo mais ou menos influência social Mais adiante vamos nos referir aos autores que fundaram a Sociologia e por isso os denominamos de clássicos Muitos outros no entanto escreveram sobre a sociedade elaborando idéias até mesmo originais mas que não foram apropriadas pela sociedade como as idéias dos clássicos Poderíamos formular a seguinte hipótese além da profundidade da análise social feita apelos clássicos ela foi apropriada pelas classes fundamentais da sociedade porque sistematizava os interesses das classes de forma mais coerente A Sociologia constituiuse como um saber produzido segundo o método científico A maneira como fizemos a exposição do nosso exemplo indica como o saber sociológico se constrói A observação regulada das ações humanas é o modo de proceder à construção conceitual da realidade social A racionalidade considerada abstratamente não é capaz de produzir um saber sociológico A tarefa do sociólogo é pesquisar a realidade como ela é Esse saber científico a ciência da sociedade entretanto produz conhecimentos que mostram uma certa singularidade Por que falamos em teorias sociológicas e não em uma teoria sociológica como ocorre na Física na Química e na Biologia Após intensos debates percebemos que qualquer ciência é uma força social ativa é um poder criado pelo homem A ciência referese sempre ao ser mas não podemos eliminar o viraser o futuro Quando fazemos uma afirmação sobre o ser nesta afirmação já estão contidas as possibilidades do viraser Esse dilema é real dele não podemos fugir No caso da Sociologia o problema se amplia pois os conhecimentos produzidos sobre a sociedade envolvem necessariamente pontos de vista diferentes que ao longo da História recente fundamentaram projetos de 12 sociedade cuja expressão mais radical são os movimentos políticos Todo o conhecimento é um ato de criação da realidade investigada no pensamento e como objetividade O que isso significa Que a investigação sociológica não se esgota na compreensão da realidade vivida pelos homens ela também deve permitir ao homem projetarse presentificar o futuro O que a Sociologia não pode é aventurarse exclusivamente na pesquisa do deverser como procederam os pensadores da Utopia e da Cidade do Sol que estudaremos na seção 13 desta Unidade A investigação bemsucedida no entanto exige do observador da vida social uma grande capacidade de imaginação como condição para ultrapassar o mundo das aparências Por isso quando nos referimos à imaginação sociológica conceito criado pelo sociólogo norteamericano C Wright Mills temos de explicitar bem o sentido do termo Imaginação para o sociólogo não é o ato de abstrairse da realidade mas de inserirse tão profundamente quanto possível na realidade Promover a separação entre a consciência e a realidade social é um equívoco metodológico assim como negar que a dimensão criadora do homem se expressa por meio da consciência Assim sendo a imaginação sociológica consiste na postura intelectual em que se busca compreender o contexto social mais amplo e como ele é apreendido pelos indivíduos concretos tendo sempre presente a necessidade de separar as dimensões essenciais das nãoessenciais da vida social Para Wright Mills 1975 p 12 a imaginação sociológica afirma a idéia de que o indivíduo só pode compreender sua própria experiência e avaliar seu próprio destino localizandose dentro de seu período só pode conhecer suas possibilidades na vida tornandose cônscio das possibilidades de todas as pessoas nas mesmas circunstâncias em que ele Sob muitos aspectos é uma lição terrível sob muitos outros magnífica Não conhecemos os limites da capacidade que tem o homem de realizar esforços supremos ou degradarse voluntariamente de agonia ou exultação de brutalidade que traz prazer ou de deleite da razão Mas em nossa época chegamos a saber que os limites da natureza humana são assustadoramente amplos Chegamos a saber que todo o indivíduo vive de uma geração até a seguinte numa determinada sociedade que vive uma biografia que vive dentro de uma sequência histórica E pelo fato de viver contribui por menos 13 que seja para o condicionamento dessa sociedade e para o curso de sua história ao mesmo tempo em que é condicionado pela sociedade e pelo seu processo histórico O sociólogo está proibido de moldar a realidade aos conceitos como se estes fossem a própria verdade Ele deve ser capaz de deixarse surpreender pela realidade investigada Ser sociólogo é exercitar permanentemente a liberdade de investigação que não se resume a fazer o que se quer ou a escolher entre alternativas é também o exercício de refazer as escolhas reavaliar o caminho percorrido e assumir os erros cometidos Enfim ser sociólogo é permitir ser assaltado pela dúvida A FUNDAÇÃO DA SOCIOLOGIA Contexto HistóricoSocial A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE MODERNA A formação da sociedade moderna resulta da completa decomposição das instituições que formavam a sociedade feudal A nova sociedade afirmase pela constituição de um sistema econômico industrial capitalista por um Estado laico não religioso fundado na soberania popular e por uma cultura centrada na idéia de nação ou de uma identidade nacional e na dimensão racional do homem A longa marcha do feudalismo ao capitalismo é marcada por dois momentos importantes a conquista e a exploração da América no século 16 e pela ascensão a afirmação das burguesias nacionais no século 17 São esses processos que estabelecem as condições para o desenvolvimento das revoluções políticas inglesa americana e francesa e da Revolução Industrial inglesa A expansão européia é precedida de um amplo crescimento do comércio e das finanças a partir do século 13 Além disso a invenção da imprensa os avanços na metalurgia na produção de metais e de produtos têxteis a fabricação de canhões e de outras armas de fogo o aprimoramento da construção de caravelas e das técnicas de navegação entre outros fatores ampliam as condições para o desenvolvimento do comércio e das conquistas de novos territórios Nesse momento histórico a acumulação da riqueza vem do comércio e dos metais preciosos ouro prata Como afirma Michel Beaud 1991 p 20 14 Monarcas ávidos de grandezas e de riquezas Estados lutando pela supremacia mercadores e banqueiros encorajados ao enriquecimento são estas as forças que promoverão o comércio as conquistas e as guerras sistematizarão a pilhagem organizarão o tráfico de escravos prenderão vagabundos para obrigálos a trabalhar Os novos territórios conquistados são transformados em colônias que exercerão papel importante na acumulação das riquezas pelas metrópoles Além da apropriação do trabalho dos camponeses a pilhagem dos tesouros encontrados nos lugares e a organização da produção agrícola canadeaçúcar algodão etc são os fundamentos da acumulação chamada de mercantilista A idéia é que a riqueza provém da acumulação de metais preciosos e da capacidade de um território em vender mais e comprar menos Sintetizando a formação de imensas fortunas pelas burguesias bancária e mercantil o fortalecimento do poder dos reis e consequentemente dos Estados nacionais e sobretudo a elaboração de uma nova concepção de mundo que valoriza a riqueza e a acumulação criam as condições necessárias para a emergência de uma nova burguesia vinculada à produção manufatureira Na Europa no século 17 o processo expansionista desenvolverseá principalmente na Holanda na Inglaterra e na França Observase um significativo crescimento do comércio dos bancos da navegação e das atividades de transformação No caso da Holanda desenvolveuse uma rica burguesia vinculada às seguintes atividades de transformação indústria de lanifício em Leiden e indústria de tecidos em Haarlem tingimento e tecelagem da seda depois fiação de seda e corte de diamantes em Amsterdã refinação de açúcar e acabamento de tecidos ingleses cervejaria destilaria preparação do sal de tabaco de cacau trabalho de chumbo em Roterdã polimento de lentes ópticas fabricação de microscópios de pêndulos e instrumentos de navegação estabelecimento de mapas terrestres e marítimos impressões de livros em todas as línguas Beaud 1991 p 37 Também na Inglaterra formase uma burguesia que desenvolveu a produção manufatureira Diz Beaud 1991 p 39 que por volta de 1640 algumas hulheiras produzem de dez a vinte e cinco toneladas por ano contra algumas centenas de 15 toneladas no século anterior Altos fornos fundições com grandes martelos de água fábricas de alúmen e de papel empregam várias centenas de operários mercadores e fabricantes de têxteis fazem trabalhar várias centenas por vezes vários milhares de fiandeiros ou de tecelões a domicílio A burguesia que promove esse desenvolvimento comercial e manufatureiro necessita de encorajamento e de proteção ao mesmo tempo Na França mediante uma forte presença do Estado sobretudo no período de Luís XIV e seu ministro Colbert foram criadas mais de 400 manufaturas São manufaturas coletivas reunindo vários centros artesanais que se beneficiam juntos de privilégios concedidos fábrica de tecidos de Sedan ou de Elbeuf malharia de Troyes manufatura de armas de SaitÉtienne Manufaturas privadas empresas individuais Van Robais em Abbeville ou grandes companhias com sucursais em várias províncias especialmente para as minas para a grande metalurgia Companhia Dallier de la Tour forjas canhões âncoras armas para os lanifícios Manufaturas do rei enfim propriedade do soberano Gobelins Sèvres Aubusson Saintgobain mas também arsenais e fundições de canhões Os privilégios concedidos monopólios de produção ou de venda isenções financiamento têm como contrapartida controles rigorosos normas quantidade Beaud 1991 p 55 Nesse período vigorosa ainda uma política mercantilista A aliança da burguesia com o rei produziu uma forma de Estado absolutista em que será assegurada a riqueza do rei a defesa da produção e das políticas mercantilistas necessárias para garantir a expansão e a defesa do comércio em relação aos concorrentes estrangeiros Na Inglaterra essa aliança foi questionada a partir do confronto entre o rei Carlos I e o Parlamento este representando as novas classes em ascensão A derrubada da Monarquia e a instituição da República sob a direção de Oliver Cromwell fortaleceu as posições da burguesia na economia tanto que a restauração da Monarquia com Carlos II não foi capaz de gerar uma situação de estabilidade política Os confrontos se ampliaram culminando com o triunfo da Revolução Gloriosa em 1688 que estabeleceu definitivamente o poder do Parlamento Os ingleses produziram uma solução intermediária sendo mantido o poder do rei 16 Guilherme I porém submetido ao Parlamento o poder supremo e à Constituição Assim forjouse o Estado moderno na Inglaterra sob a égide da burguesia vinculada à produção ao comércio e às finanças dos profissionais liberais dos comerciantes e dos agricultores enriquecidos É importante sublinhar a situação de profunda exploração das classes trabalhadoras tais como camponeses e artesãos que trabalhavam para negociantes fabricantes mendigos obrigados a trabalhar nas workhouses e o trabalho escravo mantido nas Colônias que foram fundamentais para a produção e a acumulação de riquezas Na verdade o que se verifica nesse momento histórico é uma brutal exploração destes segmentos sociais que protagonizam inúmeras revoltas É o caso por exemplo das chamadas guerras camponesas que proliferaram em toda a Europa Essa situação social também possibilitou o surgimento das primeiras idéias de reforma social cujos exemplos mais importantes nesse período são a Utopia de Thomas Morus texto publicado em 1516 e a Cidade do Sol publicado em 1602 por Tomaso Campanella os quais abordaremos novamente na seção que trata do contexto intelectual em que ocorre a formação da Sociologia O fechamento dos campos enclosures acts pelos grandes proprietários provocou uma enorme migração de camponeses para as cidades Estes campos passaram a ser ocupados pela criação de ovelhas para atender à crescente demanda pela lã A reação dos camponeses logo se fez sentir intensamente reivindicando liberdade democracia parlamentar e propriedade Ao mesmo tempo as cidades cresceram e os mercados ultrapassaram os limites citadinos Esse processo é extremamente importante pois rompe com a estrutura das corporações que conseguiam atender às demandas locais por produtos artesanais Assim começa a surgir uma nova figura no processo produtivo um intermediário cuja função era fazer com que os produtos chegassem até os consumidores Quando ele passa também a disponibilizar a matériaprima o mestre artesão desempenha apenas as funções de empregador trabalhador e capataz Na verdade este se transforma paulatinamente em um simples produtor de mercadorias Mesmo que ainda fossem donos dos instrumentos de trabalho eles dependiam da matériaprima trazida pelos intermediários e não mais se apropriavam do produto final 17 Leo Huberman na sua magistral obra A História da Riqueza do Homem sintetiza o processo de evolução dos sistemas produtivos que culmina com o domínio do sistema fabril no século 18 Embora o desenvolvimento não seja um processo linear de etapas que se sucedem podese estabelecer as seguintes fases 1 Sistema familiar os membros de uma família produzem artigos para seu consumo e não para a venda O trabalho não se fazia com o objetivo de atender ao mercado Princípio da Idade Média 2 Sistema de corporações produção realizada por mestres artesãos independentes com dois ou três empregados para o mercado pequeno e estável Os trabalhadores eram donos tanto da matériaprima que utilizavam como das ferramentas com que trabalhavam Não vendiam o trabalho mas o produto do trabalho Durante toda a Idade Média 3 Sistema doméstico produção realizada em casa para um mercado em crescimento pelo mestre artesão com ajudantes tal como no sistema de corporações Com uma diferença importante os mestres já não eram independentes tinham ainda a propriedade dos instrumentos de trabalho mas dependiam para a matériaprima de um empreendedor que surgira entre eles e o consumidor Passaram a ser simplesmente tarefeiros assalariados Do século XVI ao XVIII 4 Sistema fabril produção para um mercado cada vez maior e oscilante realizado fora de casa nos edifícios do empregador e sob rigorosa supervisão Os trabalhadores perderam completamente sua independência Não possuem a matéria prima como ocorria no sistema de corporações nem os instrumentos tal como no sistema doméstico A habilidade deixou de ser tão importante como antes devido ao maior uso da máquina O capital tornouse mais necessário do que nunca Do século XX até hoje Huberman 1974 p 125 A Revolução Industrial é um evento que se desenvolve fundamentalmente na Inglaterra A combinação de vários fatores econômicos sociais políticos e culturais fez do território inglês um lugar em que incontáveis decisões de empresários e investidores respaldados por uma nova institucionalidade política fossem comandadas pela busca do lucro máximo De acordo com Hobsbawm 1977a p 47 18 as condições adequadas estavam visivelmente presentes na GrãBretanha onde mais de um século se passara desde que o primeiro rei tinha sido formalmente julgado e executado pelo povo e desde que o lucro privado e o desenvolvimento econômico tinham sido aceitos como os supremos objetivos da política governamental A solução britânica do problema agrário singularmente revolucionária já tinha sido encontrada na prática Uma relativa quantidade de proprietários com espírito comercial já quase monopolizava a terra que era cultivada por arrendatários empregando camponeses sem terra ou pequenos agricultores As atividades agrícolas já estavam predominantemente dirigidas para o mercado as manufaturas de há muito tinhamse disseminado por um interior não feudal A agricultura já estava preparada para levar a termo suas três funções fundamentais numa era de industrialização aumentar a produção e a produtividade de modo a alimentar uma população não agrícola em rápido crescimento fornecer um grande e crescente excedente de recrutas em potencial para as cidades e as indústrias e fornecer um mecanismo para o acúmulo de capital a ser usado nos setores mais modernos da economia Um considerável volume de capital social elevado o caro equipamento geral necessário para toda a economia progredir suavemente já estava sendo criado principalmente na construção de uma frota mercante e de facilidades portuárias e na melhoria das estradas e vias navegáveis A política estava engatada ao lucro A forma principal do capitalismo inglês presente nas atividades de transformação foi o sistema doméstico em que artesãos ou camponeses pobres produzem bens a domicílio para um mercadorfabricante A manufatura reunindo no mesmo espaço muitos trabalhadores não se desenvolveu plenamente na Inglaterra A partir da segunda metade do século 18 contudo desenvolveuse a forma de organização típica da produção capitalista o sistema de fábricas Durante todo o século 18 são geradas na Inglaterra as inovações técnicas que aumentaram significativamente a produção Já no início do século John Lombe furtou os segredos das máquinas italianas de fiar a seda construindo com seu irmão uma fábrica em 1717 Nessa mesma época os Darby melhoraram a produção de ferro fundido com misturas de coque de turfa e de pó de carvão utilizando um potente fole de forja Nas minas são empregadas bombas atmosféricas a vapor para retirar a água 19 Em 1733 o tecelão John Kay inventa uma lançadeira volante cujo uso se generaliza duas décadas depois Em 1749 o relojoeiro Huntsmann fabrica aço fundido No período de 1730 a 1760 a utilização do ferro aumenta em 50 De 1740 a 1770 o consumo de algodão aumenta 117 Em 1764 o tecelão James Hargreaves aperfeiçoa a roca spinning jenny possibilitando fiar vários fios ao mesmo tempo Em 17671770 o cardador Thomas Hights e o penteador Arkwright passam a utilizar a energia da água com o waterframe O fiador e tecelão Compton irá combinar essas duas invenções por meio da mule jenny localizando as fiações próximas às correntes de água James Watt nos anos 60 inventa a máquina a vapor que será usada na indústria a partir de 1775 Em 1785 será construída em Nottingham a primeira fiação a empregar máquinas a vapor Nesse mesmo ano o pastor Cartwright inventa o tear mecânico cujo emprego será generalizado no fim do século Paralelamente o progresso técnico verificase em outras áreas da produção têxtil máquinas de bater de cardar de fiar em quantidade branqueamento tintura etc e em outras indústrias fábricas de papel serraria madeira etc Também a produção do ferro progride intensamente Em 1776 são fabricados os primeiros trilhos de ferro e em 1778 é construído o primeiro navio de ferro Cabe ressaltar também a centralidade do algodão na Revolução Industrial Afirma Eric Hobsbawm que o algodão permitiu a criação de um conjunto bastante amplo de atividades fabris responsáveis por uma expressiva parcela do crescimento econômico da Inglaterra até 1830 Também cabe ressaltar a importância do carvão a principal fonte de energia industrial e importante combustível doméstico na Inglaterra O carvão está na base do desenvolvimento de uma das principais invenções da Revolução Industrial a ferrovia A expansão das ferrovias foi significativa Em 1830 havia poucos quilômetros de ferrovias no mundo em 1840 havia 7 mil quilômetros e em 1850 mais de 37 mil quilômetros Essa expansão explicase pelo fato de que as classes ricas acumulavam renda tão rapidamente em tão grandes quantidades que excediam todas as possibilidades disponíveis de gasto e investimento Hobsbawn 1977a p 62 Esse conjunto de invenções e de técnicas revoluciona a produção gerando 20 uma nova forma de organização a fábrica Ela se generaliza nos séculos seguintes constituindo o núcleo estratégico do desenvolvimento do capitalismo De acordo com Beaud 1991 p 107 a fábrica utiliza uma energia hulha preta para o calor hulha branca para acionar os mecanismos e máquinas É apenas no fim do século que os motores a vapor concebidos e experimentados por Watt entre 1765 e 1775 serão usados para acionar as máquinas haverá cerca de quinhentos em serviço por volta de 1800 Com essa energia é promovido um sistema de máquinas que resulta necessariamente na organização da produção e dos ritmos do trabalho e que implica uma nova disciplina para os trabalhadores que a servem São construídas fiações construções de tijolo de quatro ou cinco andares empregando centenas de operários fábricas de ferro e de fundição reúnem altos fornos e várias forjas A fábrica tornase o espaço institucional privilegiado para a produção capitalista de mercadorias Nela estabelecemse relações entre duas classes importantes o empresário capitalista proprietário dos meios de produção e os trabalhadores assalariados Como se trata de uma forma de produção que visa ao lucro e à acumulação do capital a inovação das técnicas e a permanente ampliação dos mercados constituemse em práticas fundamentais A concorrência ameaça permanentemente cada capitalista individual e as crises periódicas o conjunto dos capitalistas Os trabalhadores também estão sob a constante ameaça do desemprego e da redução dos salários Além disso são submetidos a uma rígida disciplina e a formas de controle cada vez mais científicas Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista reconhecendo o papel revolucionário desempenhado pela burguesia na História moderna assim avaliaram as consequências da hegemonia da burguesia no mundo moderno onde quer que tenha chegado ao poder a burguesia destruiu todas as relações feudais patriarcais idílicas Dilacerou impiedosamente os variegados laços feudais que ligavam o ser humano a seus superiores naturais e não deixou subsistir entre homem e homem outro vínculo que não o interesse nu e cru o insensível pagamento em dinheiro Afogou nas águas gélidas do cálculo egoísta os sagrados frêmitos da exaltação religiosa do entusiasmo cavalheiresco do sentimentalismo pequenoburguês Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca e no lugar das inúmeras liberdades já 21 reconhecidas e duramente conquistadas colocou unicamente a liberdade de comércio sem escrúpulos Transformou em seus trabalhadores assalariados o médico o jurista o padre o poeta o homem de ciência A necessidade de mercados cada vez mais extensos para seus produtos impele a burguesia para todo o globo terrestre Ela deve estabelecerse em toda a parte instalarse em toda a parte criar vínculos em toda a parte Através da exploração do mercado mundial a burguesia deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países Marx Engels 1996 p 68 69 Sintetizando os processos sociais que se desenvolveram entre os séculos 15 e 18 culminaram com a Revolução Industrial o estabelecimento do sistema fabril e as demais instituições da sociedade moderna Uma nova sociedade nasceu urbana industrial e capitalista É claro que essa colossal transformação do mundo não teria sido possível se as novas classes sociais não tivessem desenvolvido uma visão de mundo coerente com seus interesses uma nova cultura e uma igualmente nova forma de Estado Assim as novas classes ligadas ao comércio à produção manufatureira e posteriormente fabril desenvolveram uma visão de mundo uma forma de Estado que genericamente podemos designar como liberal Inicialmente fizemos menção ao primeiro grande acontecimento político ocorrido no século 17 as duas revoluções inglesas que criaram as bases políticas e culturais para o desenvolvimento da Revolução Industrial na Inglaterra e do Estado moderno Posteriormente em 1776 a revolução americana embora não tenha tido a mesma importância ao mesmo tempo que afirmou a independência e a criação dos Estados Unidos da América instituiu uma forma republicana de Estado Esses processos políticos terão como momento culminante a Revolução Francesa Se a Revolução Industrial inglesa como vimos moldou a economia moderna foram os acontecimentos ocorridos na França em 1789 que deram forma à política e à ideologia moderna Foi uma verdadeira revolução social de massa mais radical do que outros processos similares e profundamente ecumênica Conforme Hobsbawm 1977a p 73 seus exércitos partiram para revolucionar o mundo suas 22 idéias de fato o revolucionaram Sua influência direta é universal pois ela forneceu o padrão para todos os movimentos revolucionários subsequentes suas lições interpretadas segundo o gosto de cada um tendo sido incorporadas ao socialismo e ao comunismo modernos A revolução francesa passou por várias fases de avanços e recuos O seu momento mais radical a república jacobina passou para a história como a fase do terror no entanto podese arguir que sem esse momento talvez a restauração ocorrida posteriormente teria sido mais substantiva do ponto de vista social e político Com o fim da república jacobina ocorreram várias alternâncias de regime responsáveis pela manutenção da sociedade burguesa Diretório 17951799 Consulado 17991804 Império 18041814 a restauração da Monarquia Bourbon 18151830 a Monarquia Constitucional 18301848 a República 18481851 e o Império 18521870 A fase dirigida por Napoleão oriundo do próprio movimento jacobino representou o momento das grandes conquistas e da consolidação da revolução É certo que a utopia radical da liberdade igualdade e fraternidade foi substituída pelos símbolos maiores da sociedade burguesa o Código Civil a criação do Banco Nacional a hierarquia do funcionalismo público e a instituição das grandes carreiras da vida pública francesa como o exército o Direito e a educação Ainda de acordo com Hobsbawm 1977a p 94 o regime napoleônico trouxe estabilidade e prosperidade para todos exceto para os 250 mil franceses que não retornaram de suas guerras embora mesmo para os parentes deles tivesse trazido a glória Sem dúvida os britânicos se viam como os lutadores pela causa da liberdade contra a tirania mas em 1815 a maioria dos ingleses era mais pobre do que o fora em 1800 enquanto que a maioria dos franceses era quase que certamente mais rica e ninguém exceto os trabalhadores assalariados cujo número ainda era insignificante tinha perdido os substanciais benefícios econômicos da Revolução A derrota militar sofrida por Napoleão não impediu a continuidade da revolução burguesa Apenas colocou um ponto final na política expansionista francesa impedindo que a França se tornasse a grande potência do mundo lugar que foi ocupado pela Inglaterra que como vimos foi capaz de desenvolver com sucesso 23 uma economia capitalista Este processo de transformação obviamente não se restringiu às mudanças na esfera econômica ele estendeu sua influência aos campos da política e da cultura gerando um novo processo societário Resta ainda considerar dois aspectos socialmente importantes para compreender o processo de surgimento da Sociologia O primeiro diz respeito à emergência da classe operária como sujeito político independente a partir de 1830 na França e na Inglaterra como produto do aprofundamento da industrialização Podemos citar como exemplo o movimento cartista movimento de trabalhadores ocorrido na Inglaterra que reivindicava o voto universal e secreto igualdade dos distritos eleitorais eleição anual do Parlamento pagamento aos parlamentares e abolição da condição de proprietários para ser candidato O segundo se refere à revolução de 1848 Esse processo que ocorreu mais ou menos simultaneamente em todos os principais países europeus assumiu os contornos de uma verdadeira revolução social O objetivo das forças revolucionárias era o estabelecimento de uma república democrática e social capaz de superar as injustiças e as desigualdades profundas geradas pelo desenvolvimento da sociedade burguesa Com a mesma presteza com que os governos conservadores foram derrubados porém as forças sociais que os sustentavam foram capazes de restabelecer a ordem social Na verdade a verdadeira força revolucionária segundo Hobsbawm foram os trabalhadores pobres Estes constituíram a base social da revolução mas pela falta de organização e inexperiência política não conseguiram formular um projeto claro de sociedade Os pequenos proprietários agricultores a baixa classe média os artesãos descontentes e seus portavozes intelectuais foram importantes agentes revolucionários mas também incapazes de constituir uma real alternativa política Nessa revolução a burguesia assumiu a sua condição de classe deixando de ser definitivamente uma força socialmente revolucionária A revolução de 1848 também produziu mudanças Talvez a mais importante foi levar ao fim a crença na virtude das monarquias sustentadas pela imutabilidade das regras divinas e pela rigidez das hierarquias sociais A defesa da nova ordem social precisava de novos instrumentos conceituais e políticos As diferentes teorias sociais 24 pré e pósrevolucionárias fornecerão os meios mais adequados para a defesa da ordem capitalista mas desenvolverão também os meios para a sua superação A criação da Sociologia vale repetir é parte importante juntamente com o pensamento liberal do universo intelectual dessa época Nela se configuram as teorias que sustentam e as que criticam a nova sociedade industrial capitalista A derrota das forças revolucionárias fortaleceu a sociedade burguesa O período que se seguiu foi de intensa expansão econômica sob a ótica liberal até 1875 ano em que tem início uma profunda depressão econômica Na verdade esse período expansivo criou as bases para a segunda Revolução Industrial Eric Hobsbawm 1977a p 312313 sintetizou as transformações ocorridas nesse período da seguinte forma a economia capitalista mudou de quatro formas significativas Em primeiro lugar entramos agora numa nova era tecnológica não mais determinada pelas invenções e métodos da primeira Revolução Industrial uma era de novas fontes de poder eletricidade e petróleo turbinas e motor a explosão de nova maquinaria baseada em novos materiais ferro ligas metais nãoferrosos de indústrias baseadas em novas ciências tais como a indústria em expansão da química orgânica Em segundo lugar entramos também agora cada vez mais na economia de mercado de consumo doméstico iniciada nos estados Unidos desenvolvida na Europa ainda modestamente pela crescente renda das massas mas sobretudo pelo substancial aumento demográfico dos países desenvolvidos De 1870 a 1910 a população da Europa cresceu de 290 para 435 milhões a dos Estados Unidos de 385 para 92 milhões Em outras palavras entramos no período da produção de massa incluindo alguns bens de consumo duráveis Em terceiro lugar e de certa forma este foi o desenvolvimento mais decisivo uma reviravolta paradoxal teve lugar A era do triunfo liberal tinha sido aquela era de facto do monopólio industrial inglês dentro do qual com notáveis exceções os lucros eram assegurados sem muita dificuldade pela competição de pequenas e médias empresas A era pósliberal caracterizavase por uma competição internacional entre economias industriais nacionais rivais a inglesa a alemã a norte americana uma competição acirrada pelas dificuldades que as firmas dentro de cada uma destas economias enfrentavam no período de depressões para fazer lucros 25 adequados A competição levava portanto à concentração econômica controle do mercado e manipulação O mundo entrou no período do imperialismo no sentido maior da palavra que inclui as mudanças na estrutura da organização econômica como por exemplo o capitalismo monopolista mas também em seu sentido menor uma nova integração dos países subdesenvolvidos enquanto dependências em uma economia mundial dominada pelos países desenvolvidos Além da rivalidade que levou as potências a dividir o globo entre reservas formais ou informais para seus próprios negócios entre mercados e exportações de capital tal processo também era devido à crescente não disponibilidade de matériasprimas na maioria dos próprios países desenvolvidos por razões geológicas ou climáticas Numa escala global esta dicotomia entre áreas desenvolvidas e subdesenvolvidas teoricamente complementares embora não nova em si mesma começou a tomar uma forma reconhecidamente moderna O desenvolvimento da nova forma de desenvolvimentodependência iria continuar com apenas breves interrupções até a queda geral na década de 1930 e forma a quarta grande mudança na economia mundial Um novo estado cada vez mais forte e intervencionista e dentro dele um novo tipo de política desenvolveramse a partir de então recebidos com melancolia pelos pensadores antidemocráticos Esse é o mundo que surgiu das grandes revoluções inglesa e francesa A Revolução Industrial inglesa levou ao limite o desenvolvimento de um processo civilizatório capitalista A revolução francesa expôs as contradições sociais geradas pelas sociedades de classes notadamente a sociedade burguesa criando situações políticas em que diferentes projetos históricos foram confrontados Apesar das derrotas sofridas pelos projetos que envolveram o povo a acúmulo produzido pelas lutas sociais revolucionárias desembocará no mais importante evento do século 20 a revolução soviética A FUNDAÇÃO DA SOCIOLOGIA CONTEXTO INTELECTUAL 26 Reconstruímos o contexto históricosocial em que ocorreu a formação da Sociologia Esse conjunto de transformações obviamente não teria ocorrido se paralelamente os homens não tivessem desenvolvido outras formas de pensar o mundo e a sociedade contrapondoas com o pensamento religioso Por isso é fundamental discutir o contexto intelectual em que ocorre a formação da Sociologia Vale lembrar que a Sociologia como um evento do século 19 ao completar o ciclo de formação das ciências pode ser caracterizada como o momento de consolidação do pensamento científico A nossa tarefa agora será recuperar os momentos principais desse processo A ciência moderna estruturase definitivamente no século 19 Porém a sua história iniciase efetivamente no mundo grego Seria fundamental reconstruir esse processo histórico no seu conjunto Nesse sentido precisaríamos nos referir por exemplo aos pensadores présocráticos como Parmênides para quem o caminho que conduz à verdade é aquele que diz que o ser é e que o nãoser não é ou Heráclito que afirma que o mundo é movimento e contradição esse mundo igual para todos nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez foi é e sempre será um fogo eternamente vivo acendendose e apagandose conforme a medida Ainda se poderia designar as idéias de Empédocles às vezes do múltiplo cresce o uno para um único ser outras ao contrário dividese o uno na multiplicidade ou de Anaxágoras todas as outras coisas participam de todas as coisas Serão os filósofos do período socrático no entanto que darão um impulso novo para a criação de um pensamento racional notadamente Sócrates Platão e Aristóteles Sócrates a partir das premissas conhecete a ti mesmo e só sei que nada sei estabelece um método de produção do conhecimento ou de superação da simples opinião mediante sucessivas perguntas É com esse método que Platão na República chega à conclusão de que a cidade justa é aquela que distribui os homens hierarquicamente em classes segundo sua aptidão os dirigentesfilósofos os soldados e os trabalhadores Para Platão há uma diferença fundamental entre o mundo das idéias mundo perfeito do bem absoluto mundo inteligível ao qual se chega pela Filosofia e o mundo sensível das coisas visíveis e das imagens simples cópia do mundo inteligível Nem todos os homens têm acesso ao mundo 27 inteligível apenas aqueles que podem desenvolver a virtude da sabedoria pois na sua alma predomina o elemento racional Aristóteles contrapõese a Platão sobretudo em relação aos dois mundos o inteligível e o sensível O pensamento aristotélico estabelece um ponto de partida a categoria substância Substância é aquilo que existe o ser e sobre ela podemos construir um conhecimento por meio das categorias estabelecidas pela lógica A substância é ato e potência ou seja possui uma potencialidade que se concretiza o ato numa forma determinada De forma simplificada podese dizer que o mundo das idéias é uma expressão inteligível do mundo sensível Para os objetivos desta reflexão no entanto vamos considerar basicamente as mudanças que se iniciam com o Renascimento no século 15 e vão até o século 19 Esse período inicial pode ser caracterizado pela recuperação do pensamento grego sobretudo a contribuição de Aristóteles feita por Santo Tomás de Aquino Até então prevalecia a influência de Platão incorporada pelo pensamento de Santo Agostinho O humanismo renascentista pode ser resumido na seguinte questão a retomada das reflexões sobre o homem e a natureza oscilando entre as perspectivas humana e religiosa O Renascimento abre a possibilidade de construção de um novo processo civilizatório inicia o rompimento com a época medieval e inaugura a era moderna A retomada do pensamento grego é fundamental porque é por meio dele que os homens começam a pensar o mundo a partir do próprio mundo Além dos artistas vários pensadores renascentistas destacaramse Petrarca Nicolau de Cusa Marcílio Ficino Pico de Mirândola Michel de Montaigne Erasmo de Roterdã Lutero Calvino Tomas Morus Leonardo da Vinci Maquiavel Giordano Bruno Tomaso Campanella entre outros O pensamento humanistarenascentista expressa uma grande vontade de renovação religiosa Lutero e Calvino são exemplos importantes segundo eles a salvação do homem está unicamente na fé e na palavra de Deus revelada nas Sagradas Escrituras Calvino leva ao limite as idéias de providência e predestinação A visão radical de Lutero a liberdade de interpretação do texto sagrado e a possibilidade de qualquer homem iluminado poder pregar a palavra de Deus leva a uma grande divisão da Igreja Católica com a criação da Igreja Luterana Consumada 28 a divisão no entanto o próprio Lutero exortou os príncipes a reprimirem os delitos públicos os perjúrios e as blasfêmias manifestadas em nome de Deus Também é importante ressaltar que nesse período surge um pensamento social crítico protagonizado por Tomas Morus e Tomaso Campanella O primeiro imaginou a ilha de Utopia e o segundo a Cidade do Sol formas de organização social fundadas na propriedade comum dos meios de produção Na Utopia o dinheiro seria abolido e com ele os roubos a violência e a pobreza a igualdade possibilitaria o desenvolvimento do nosso o trabalho deixaria de ser uma atividade penosa os homens seriam pacifistas e seria admitido o pluralismo religioso A Cidade do Sol é uma cidade cristã dirigida por um príncipesacerdote denominado Sol e nela as virtudes verdade gratidão justiça fortaleza magnanimidade etc predominariam sobre os vícios Seus habitantes louvam Ptolomeu admiram Copérnico e são inimigos de Aristóteles O PENSAMENTO DE MAQUIAVEL E A CIÊNCIA MODERNA A Ciência moderna começa a se constituir efetivamente a partir das reflexões feitas por Maquiavel 14691527 sobre o Estado e a política As lições elaboradas por Maquiavel em O príncipe 1513 e nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio escritos entre 1513 e 1519 estabelecem uma nova maneira de produzir o conhecimento Maquiavel abandona a idéia de estabelecer as coisas como elas deveriam ser para analisar as coisas como elas são Afirma ele 1998 p 73 Sendo meu intento escrever algo útil para quem me ler pareceme mais conveniente procurar a verdade efetiva da coisa do que uma imaginação sobre ela Muitos imaginaram repúblicas e principados que jamais foram vistos e que nem se soube se existiram de verdade porque há tamanha distância entre como se vive e como se deveria viver que aquele que trocar o que se faz por aquilo que se deveria fazer aprende antes sua ruína do que sua preservação Esta afirmação é confirmada pelo conteúdo dos dois livros citados Na verdade Maquiavel mediante a observação estabelece princípios sobre o homem e a natureza do Estado bem como das ações que levaram certos príncipes a serem vitoriosos e 29 outros derrotados O fato de os homens serem ingratos volúveis simulados e dissimulados fogem dos perigos são ávidos de ganhar determina a necessidade do Estado como instituição capaz de estabelecer alguma ordem entre os homens que obviamente se transformará em desordem considerando as características imutáveis dos homens Também justifica a necessidade do Estado o fato de existirem duas forças em confronto nas sociedades o povo não quer ser comandado nem oprimido pelos grandes enquanto os grandes desejam comandar e oprimir o povo 1998 p 43 A observação detalhada das ações dos grandes homens governantes chefes militares e da sua própria como dirigente da República de Florença lhe permite construir um conjunto de regras necessárias para a conquista e manutenção do poder político Por exemplo uma regra fundamental para o bom governante é considerar que é mais adequado ser temido do que ser amado posto que a condição preferível uma combinação das duas é muito difícil de ser alcançada O temor coloca a questão do uso da crueldade o governante bemsucedido não deve ter o escrúpulo de empreender ações cruéis se elas forem necessárias para manter o poder do Estado Deve no entanto proceder de forma adequada quando houver justificativa conveniente e causa manifesta evitando sempre atentar contra os bens dos outros A violência é portanto intrínseca ao governante e ao Estado Maquiavel emprega duas categorias analíticas para a compreensão das ações políticas virtú e fortuna Considerando que muitos defendem que as ações humanas são governadas pela fortuna e por Deus Maquiavel posicionase da seguinte maneira já que o nosso livrearbítrio não desapareceu julgo possível ser verdade que a fortuna seja árbitro de metade de nossas ações mas que também deixe ao nosso governo a outra metade ou quase 1998 p 119 A fortuna pode ser traduzida como sorte ou mais precisamente como a indeterminação o acaso A virtú representa a ação determinada ou o conhecimento da situação Se fôssemos inteiramente governados pela deusa fortuna pouco teríamos a fazer como somos apenas em parte governados pela fortuna podemos por meio da virtú dominála Maquiavel cita o exemplo dos rios caudalosos que durante as enchentes arrasam tudo o que está próximo Quando volta a calmaria nada impede 30 que os homens construam diques para controlar a fúria das águas na próxima enchente O que isso significa É a efetiva presença da virtú ou seja da capacidade dos homens observarem um fenômeno natural e inventarem estruturas de proteção Assim a fortuna é controlada pela virtú os homens conquistam sua liberdade A política é uma atividade humana desvinculada dos deuses e da ética ela é governada pela capacidade dos homens em conhecer e transformar o mundo O governante vitorioso é aquele que é capaz de desenvolver a virtú transformandose num verdadeiro sujeito do conhecimento e da política Ele precisa conhecer as diferentes forças sociais a capacidade das mesmas em mobilizar recursos para a disputa pelo poder as estratégias políticas tradicionais e novas e principalmente conhecer a si próprio as suas próprias forças Na modernidade o governante é o partido político que tem um plano de ação administrativa programa de governo capaz de expressar os interesses da maioria da população de tal modo que ela o assume como seu hegemonia O método de investigação adotado por Maquiavel o coloca como um dos precursores da Sociologia Gérald Namer identificao como o fundador da Sociologia do conhecimento É claro que as perspectivas são diferentes o governante o povo e contemporaneamente o sociólogo O próprio Maquiavel adverte para esse problema para conhecer bem a natureza dos povos é preciso ser príncipe e para conhecer a natureza dos príncipes é preciso ser povo 1998 p 130 Como há sempre uma oposição na sociedade os conhecimentos são relativos e respondem aos interesses concretos do povo ou do príncipe Além disso há uma dimensão fundamental a ser observada pelo príncipe que sobrepõe o parecer ser ao ser Essa intransparência se manifesta por exemplo em relação à palavra empenhada para o povo Como ninguém é absolutamente bom novas circunstâncias podem obrigar o príncipe a mudar de posição É nesse momento que deve aparecer uma habilidade inerente ao príncipe saber disfarçar ser um grande simulador e dissimulador Por isso não é necessário que o príncipe efetivamente tenha as qualidades que ele afirma ter como a integridade a humanidade a piedade a fé a bondade a convicção democrática etc mas é indispensável parecer têlas Por isso precisa não se afastar do bem mas entrar no 31 mal se necessário 1998 p 85 Há duas verdades a do príncipe e a do povo Poderíamos julgar apressadamente que este é o pior dos mundos na medida em que ele nos impede de chegar a um conhecimento universal ou ao mundo do bem absoluto Lembremo nos porém de que o príncipe ou o Estado é necessário para instaurar a ordem no mundo dilacerado pelos egoísmos e os conflitos inerentes ao homem Maquiavel sentencia como não há tribunal onde reclamar das ações de todos os homens e principalmente dos príncipes o que conta por fim são os resultados Cuide pois o príncipe de vencer e manter o estado os meios serão sempre julgados honrosos e louvados por todos porque o vulgo está sempre voltado para as aparências e para o resultado das coisas 1998 p 8586 Há várias passagens no entanto em que ele afirma o papel decisivo do povo na política O povo aparece como o ator decisivo para a preservação da liberdade e da República a desunião entre o povo e o Senado de Roma foi a causa da grandeza e da liberdade da República Também quando afirma que um príncipe deve valorizar os grandes ele não se descuida quanto ao papel do povo pois o príncipe não pode se fazer odiar pelo povo Talvez seja inútil o esforço intelectual no sentido de encontrar a verdadeira perspectiva teórica de Maquiavel As suas lições indicam a relatividade das posições políticas As teses de que os fins justificam os meios e da violência como instrumento do Estado transformaram Maquiavel no grande demônio da política num símbolo do mal A própria Igreja Católica se encarregou de elaborar e propagar essa idéia No Concílio de Trento realizado de 1545 a 1561 as obras de Maquiavel foram colocadas no índex dos livros proibidos A partir de então os vocábulos maquiavélico e maquiavelismo adquiriram um sentido pejorativo significando maldade crueldade máfé mentira sacanagem manipulação etc Apesar disso a obra de Maquiavel sobreviveu sendo incorporada definitivamente na formação do pensamento ocidental Uma obra nunca produz unanimidade de pensamento por isso ela só pode se destacar pela sua capacidade de despertar o pensamento crítico É assim que se desenvolve o pensamento de Maquiavel A equação política maquiaveliana não tem solução Mesmo que o povo se torne 32 príncipe ele terá de oprimir aqueles que foram seus opressores A modernidade engendrou novas equações políticas e novas soluções como o Estado democrático de direito que tem oscilado entre uma forma liberal e outra social e o socialismo O Concílio de Trento encerra o movimento renascentista italiano A Igreja Católica por meio da censura e da repressão procura se antepor aos processos sociais políticos e culturais em curso mas não consegue impedir o progresso do pensamento racional Outros pensadores italianos que tiveram problemas com a Igreja foram Giordano Bruno e Tomaso Campanella Este foi preso e condenado à morte salvandose pela sua capacidade de simulação de loucura Giordano Bruno foi denunciado ao Santo Ofício As várias tentativas de convencêlo a renegar suas teses notadamente a sua defesa da revolução copernicana que a seguir estudaremos não surtiram efeito Ele foi julgado e condenado à morte na fogueira sentença executada em fevereiro de 1600 A Revolução Copernicana e a Ciência Moderna Vamos agora analisar o momento decisivo para a constituição da Ciência moderna Na verdade tratase de um processo que apresenta três momentos importantes 1 a revolução astronômica sustentada pelas reflexões de Copérnico Tycho Brahe Kepler e Galileu 2 as contribuições de Bacon e Descartes 3 a formação da Física clássica por Isaac Newton Comecemos pela chamada revolução copernicana o estopim desse processo A obra de Nicolau Copérnico De revolutionibus orbium celestium escrita em 1532 começa a mudar a imagem do mundo produzida pela concepção de Ptolomeu e Aristóteles e sustentada pela Igreja Católica Essa imagem dominante situa a Terra como o centro do universo A Terra é o lugar privilegiado da criação pois foi nela que Deus colocou o homem a sua obra mais importante O que afirma Copérnico A Terra é um corpo celeste como os demais e não ocupa o lugar central no 33 universo Ela está girando em órbitas definidas ao redor do Sol este o verdadeiro centro do universo As principais questões defendidas por Copérnico são o mundo e a Terra são esféricos o movimento dos corpos celestes é uniforme circular e perpétuo a Terra se move em um círculo orbital em torno do seu centro e gira sobre o seu próprio eixo a Terra não está no cento do universo Segundo um texto do próprio Copérnico citado por Reali e Antiseri 1990 p 219 todas as esferas giram em torno do Sol como o seu ponto central Portanto o centro do universo está em torno do Sol O movimento da Terra portanto é suficiente para explicar todas as desigualdades que aparecem no céu Tycho Brahe desenvolveu uma posição crítica ao sistema criado por Copérnico sem negálo totalmente Brahe afirmou que a Terra não ocupa o centro em relação a todos os planetas Para ele o Sol e a Lua giram ao redor da Terra que preside a determinação do tempo porém os demais planetas Mercúrio Vênus Marte Júpiter e Saturno giram em torno do Sol Na verdade estabeleceu uma solução intermediária entre os sistemas de Ptolomeu e Copérnico solução que se mostrou insustentável como irão demonstrar posteriormente Kepler e Galileu Johannes Kepler 1571 1630 assumiu a defesa do sistema copernicano agregando contribuições importantes para o seu desenvolvimento Como matemático sustentava a possibilidade de estabelecer relações entre a ordem do mundo e a sua expressão matemática Assim procedeu a uma revisão da concepção de Copérnico sobre a circularidade e a uniformidade dos movimentos planetários Formulou as seguintes leis as órbitas dos planetas são elipses das quais o Sol ocupa um dos focos a velocidade orbital de cada planeta varia de tal modo que a linha que liga o Sol e o planeta cobre em iguais intervalos de tempo iguais porções de superfície Além disso sustentou que o Sol fundamento das celestes harmonias é a causa determinante do movimento dos planetas o primeiro motor do universo a causa do seu próprio corpo há uma força motriz que se origina do Sol e que provoca os movimentos dos planetas 34 Será Galileu Galilei 15641642 entretanto o grande responsável pela afirmação definitiva do sistema copernicano A contribuição de Galileu foi tão expressiva que podemos considerálo como o verdadeiro fundador da Ciência moderna Ele esteve no centro de um profundo confronto político com a Igreja o que evidencia que a fundação da Ciência além da dimensão intelectual foi também um processo político A condenação de Galileu não foi capaz de impedir o avanço e a consolidação da racionalidade científica como forma de se chegar à verdade Galileu escreveu várias obras Entre elas se destacam Sidereus Nuncius Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo e Discursos e demonstrações matemáticas sobre as duas Nnovas ciências atinentes à mecânica a aos movimentos locais Vamos agora resumir as principais contribuições de Galileu que consolidam a ciência astronômica e propõem duas outras ciências a estática e a dinâmica Em seguida entender a posição de Galileu no processo de formação da Ciência moderna O contexto das reflexões de Galileu tão bem estabelecido por ele próprio é o confronto entre dois sistemas ou dois mundos o aristotélicoptolomaico em que a Terra está no centro e o Sol girando ao seu redor e o copernicano que inverte radicalmente a ordem do mundo a Terra gira ao redor do Sol É importante referir também que o sistema geocêntrico afirmava a divisão do mundo o supralunar constituído pelos céus perfeito incorruptível e imóvel e o sublunar constituído pela Terra imóvel porém considerando que nela existem corpos em constante movimento imperfeitos perecíveis e corruptíveis Utilizandose de uma luneta aperfeiçoada por ele próprio Galileu consegue fazer observações até então impossíveis de realizar E destaca até as estrelas que normalmente não aparecem à nossa vista e aos nossos olhos por sua pequenez e pela fraqueza de nossa vista podem ser vistas por meio deste instrumento Assim ele constata que existiam mais estrelas do que aquelas vistas a olho nu a superfície da Lua era irregular e rugosa o Sol tinha manchas Júpiter possuía satélites e as nebulosas eram amontoados de pequenas estrelas Observando os movimentos da Terra em relação ao sistema ele constata que é falsa a distinção aristotélica dos dois mundos Existe apenas um mundo e portanto apenas uma única física As duas ciências propostas por Galileu a estática e a dinâmica são ciências 35 que tratam do mesmo objeto o mundo físico no entanto elas têm como fundamento a observação e a experiência Galileu expôs numa carta em 1615 a sua posição sobre as possibilidades do conhecimento do mundo físico pareceme que nas disputas sobre problemas naturais não se deveria começar pela autoridade de passagens das Escrituras mas sim pelas sensatas experiências e pelas demonstrações necessárias Podemos concluir que a Ciência não depende da fé Ela é autônoma em relação à religião e por isso não pode ter pretensões de um saber dogmático Para Galileu a Ciência é o conhecimento objetivo das sensações ou das relações quantificáveis e mensuráveis dos corpos que se expressam em linguagem matemática A Matemática e a experimentação se combinam na explicação da realidade Referimos a luneta mas Galileu inventou outros instrumentos que possibilitaram a realização de observações como é o caso do plano inclinado do termômetro e do relógio de água A experiência é uma construção do cientista que se coloca um problema sob a forma de suposições que serão ou não comprovadas pela construção de determinados experimentos Para ele não há outra possibilidade para produzir uma explicação verdadeira da realidade Esse modo de ver e explicar o mundo pôs Galileu em posição de confronto com a Igreja O primeiro processo movido contra ele foi em 1616 O Santo Ofício exigiu que ele abandonasse a idéia de Copérnico determinandolhe sob a ameaça de prisão a não ensinála e não defendêla de nenhum modo nem com a palavra nem com os escritos Com a escolha do cardeal Mafeu Barberini como papa Urbano VIII amigo e admirador de Galileu ele retoma os seus escritos O papa entretanto foi convencido pelos adversários de Galileu de que este era uma ameaça a sua autoridade O inquisidor de Florença proibiu a circulação do Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo Em 1633 ele estava novamente diante do Santo Ofício afirmando que o seu escrito tinha como objetivo demonstrar que o sistema copernicano não era válido Os inquisidores não aceitaram o seu argumento e o condenaram em 22 de junho de 1633 à prisão perpétua e a renunciar as suas idéias Aceitando a condenação de joelhos Galileu assim se pronunciou 36 Abjuro maldigo e detesto os referidos erros e heresias e em geral todo e qualquer outro erro heresia e seita contrárias à Santa Igreja E juro que para o futuro nunca mais direi nem afirmarei por voz ou por escrito coisas tais pelas quais se possa ter de mim semelhante suspeita A prisão perpétua foi transformada em pena de confinamento sendo proibido de encontrar pessoas ou escrever sem autorização Apesar disso Galileu continuou escrevendo e em 1638 foi publicada sua última grande obra dando continuidade às suas reflexões Discursos e demonstrações matemáticas sobre duas novas ciências Morreu em 1642 Em 1992 o Vaticano anunciou a reabilitação de Galileu Analisamos a contribuição de Galileu para a formação da Ciência moderna Vamos agora analisar sucintamente os vários aspectos que fazem de Isaac Newton 16421727 o grande cientista que coloca o último tijolo no processo de formação da Ciência moderna materializada na constituição da Física clássica Newton autor de Philosophiae naturalis principia mathematica é considerado o ponto culminante de muitos esforços e obstáculos para compreender a dinâmica do universo dos princípios da força e dos corpos em movimento Inventou um telescópio por reflexão estudou a luz formulando a teoria corpuscular da luz as cores o cálculo infinitesimal e a mais importante das suas formulações a lei da gravitação universal Procedeu à demonstração matemática da teoria copernicana do universo afirmando que todos os movimentos celestes estão submetidos a uma força de gravitação em direção ao Sol inversamente proporcional ao quadrado das distâncias em relação a ele As regras da Física estabelecidas por Newton podem ser assim resumidas a simplicidade da natureza não se deve admitir mais causas para explicar os fenômenos naturais do que aquelas que são tanto verdadeiras como suficientes para explicálos a uniformidade da natureza aos mesmos efeitos devese atribuir as mesmas causas as qualidades que pertencem a todos os corpos presentes num experimento devem ser consideradas qualidades universais dos corpos Assim a natureza é simples e uniforme e por meio das observações e dos experimentos podese por 37 indução chegar à definição das propriedades fundamentais dos corpos como extensão dureza impenetrabilidade mobilidade inércia e a gravitação universal Em relação ao movimento dos corpos Newton formulou as seguintes leis até hoje vigentes todo o corpo mantém seu estado de repouso ou movimento a não ser que uma força exerça ação sobre ele a mudança de movimento é proporcional à força exercida e ocorre na direção da linha reta segundo a qual ela foi exercida toda a ação gera uma reação igual e contrária os corpos seus movimentos e suas conexões estão todos submetidos a um único princípio a lei da gravidade Temos assim a formulação de um aspecto que torna possível a Ciência a ordem do mundo Essa ordem o sistema do mundo é uma grande máquina em que cada corpo tem um lugar e um movimento em relação a si e a todos caracteriza o princípio da gravitação recíproca Essa ordem explicada pela Ciência só pode ser compreendida na sua essência como criação de um ser inteligente poderoso e perfeito Este ser é Deus o governador de todas as coisas o senhor de tudo ele é eterno infinito onipotente e onisciente Como se vê a ordem do universo pode ser conhecida segundo as regras da observação e da experiência o físico a constata e a explica por intermédio da gravidade Sabe que a gravidade existe objetivamente mas ao indagar sua essência percebe que isto extrapola a experiência Essa questão segundo Newton foge da Física experimental A religião contudo pode produzir uma resposta para a questão das causas últimas É importante destacar também que todos os trabalhos de Newton foram legitimados pela Sociedade Real de Londres para a Promoção dos Conhecimentos Naturais Royal Society importante instituição científica formada pelos filósofos experimentais e reconhecida pelo Estado inglês Newton ocupou a presidência da Sociedade de 1703 até a sua morte Cabe ainda uma referência a Francis Bacon 15611626 O autor de Novum Organun é anterior a Newton Ele não é um cientista é um defensor da Ciência como prática necessária para transformar a vida humana efetivando os valores da 38 fraternidade e do progresso Crítico impiedoso dos filósofos antigos medievais e renascentistas autores de uma filosofia das palavras que deveria ser substituída por uma filosofia das obras Além disso critica a lógica tradicional que é inútil para a pesquisa das ciências O verdadeiro método para a descoberta da verdade não é o aristotélicoescolástico mas aquele que parte dos sentidos e dos casos particulares compondo axiomas que vão gradualmente sendo generalizados O método científico fundamentase na experiência e na indução É da experiência que se pode formular um axioma e deste voltar novamente à experiência Há no entanto uma primeira regra fundamental eliminar da mente os idola ou falsas noções que invadiram o intelecto humano nele lançando profundas raízes e que impedem o acesso à verdade Os ídolos manifestamse de várias formas entre as quais 1 os que penetram no espírito humano pelas doutrinas filosóficas 2 os que decorrem das relações de fala entre os homens 3 os que derivam da singularidade de cada indivíduo e 4 os que advêm dos interesses e da conveniência de cada um A questão dos ídolos antecipa o debate sobre a relação entre Ciência e ideologia ou a questão da neutralidade científica Uma vez superadas as falsas noções podemos por meio da experiência chegar à verdade É nesse momento que se deve promover a união do experimental e do racional exatamente para compreender a estrutura do fenômeno e a lei que o regula Em síntese a formação da ciência moderna tem um fundamento o mundo é uma realidade ordenada e uniforme A tarefa da Ciência é captar as regularidades dos fenômenos estabelecendo as relações entre eles Esse empreendimento só é possível mediante o método experimental ou seja formulamse hipóteses como fez Copérnico e por meio da experiência como fez Galileu concluise pela comprovação ou não das hipóteses A Ciência não deve se ocupar das causas últimas mas apenas das relações causais verificáveis É importante frisar que o confronto entre os sistemas geocêntrico e heliocêntrico constituiuse na expressão 39 intelectual de dois mundos sociais em confronto cujo epílogo foi a Revolução Francesa O Confronto entre Racionalismo e Empirismo A história da Ciência terá ainda novos confrontos importantes A imagem do mundo construída de Copérnico a Newton abre novos confrontos apesar da condenação de Galileu pela Igreja Dois movimentos importantes vão se constituir um deles vai colocar a necessidade de submeter a experiência ao domínio da razão o racionalismo cartesiano o outro vai afirmar a experiência como fundamento e limite do conhecimento o empirismo Vamos analisar resumidamente os argumentos que constituem o racionalismo de René Descartes 15961650 Descartes publicou em 1637 uma obra que se tornou clássica no pensamento ocidental o Discurso do Método para conduzir bem sua razão e procurar a verdade nas ciências A questão que ele analisa referese à validade dos conhecimentos científicos Por isso a problemática do método como condição para buscar a verdade adquire um lugar central na reflexão cartesiana Os conhecimentos adequados devem ser úteis à vida considerando a perspectiva de os homens tornaremse como que senhores e possuidores da natureza Vejamos o procedimento de Descartes para estabelecer um método que é o próprio processo de produção do conhecimento Inspirado na Matemática ele estabelece quatro regras para conduzir a res cogitans no seu propósito de conhecer Na verdade tratase de suspender ou pôr em dúvida todos os conhecimentos existentes São elas Jamais aceitar alguma coisa como verdadeira que não soubesse ser evidentemente como tal isto é de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção dividir cada uma das dificuldades em tantas partes quantas possíveis conduzir por ordem meus pensamentos a começar pelos objetos mais simples e mais fáceis de serem conhecidos para galgar pouco a pouco como que por graus até o conhecimento dos mais complexos fazer em toda a parte enumerações tão completas e revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada ter omitido Descartes 1989 40 p 4445 Além disso Descartes estabeleceu uma moral provisória que define o contexto em que o pensamento deve operar Essa questão é importante pois ela estabelece os limites políticos do conhecimento Nem tudo o que existe será negado São as seguintes as regras morais Obedecer às leis e aos costumes de meu país tendo presente constantemente a religião ser eu o mais firme e o mais resoluto possível em minhas ações procurar sempre vencer a mim próprio do que ao destino e de modificar mais os meus desejos do que a ordem do mundo aplicar toda a minha vida em cultivar a razão avançando o mais que pudesse no conhecimento da verdade segundo o método que me prescrevera Descartes 1989 p 4851 Definidas as regras do método e a moral provisória Descartes começa as suas meditações O método adotado implica rejeitar tudo aquilo que é incerto Os sentidos podem nos levar a enganos ilusões de modo que nada indica que uma coisa realmente exista Mesmo os raciocínios matemáticos podem nos levar a erros Se a existência de qualquer corpo ou pensamento pode ser posta em dúvida então o que pode ser considerado verdadeiro Descartes p 56 responde Concluí que enquanto eu queria pensar que tudo era falso cumpria necessariamente que eu que pensava fosse alguma coisa E notando que esta verdade penso logo existo era tão firme e segura que as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar julguei que podia aceitála sem escrúpulo como o primeiro princípio da Filosofia que procurava Em outro texto Meditações Filosóficas 1996 p 266267 Descartes expressa de outra forma a mesma conclusão Mas há algum não sei qual enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em enganarse sempre Não há pois dúvida alguma de que sou se ele me engana e por mais que me engane não poderá jamais fazer com que eu nada seja enquanto eu pensar ser alguma coisa De sorte que após ter pensado bastante nisto e ter examinado cuidadosamente todas as coisas cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição eu sou eu existo é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu 41 espírito Para ele o processo de instauração da dúvida é um ato de pensar portanto tudo aquilo que pensa existe sendo a proposição penso logo existo absolutamente verdadeira contudo diante do fato de que o ato de pensar não necessita de um lugar nem depende de qualquer coisa material leva Descartes 1989 p 56 a concluir que esse eu isto é a alma pela qual sou o que sou é inteiramente distinta do corpo e inclusive é mais fácil de conhecer do que ele e ainda que o corpo nada fosse a alma não deixaria de ser tudo o que é Há portanto duas substâncias distintas que formam o mundo a res cogitans e a res extensa A dualidade cartesiana da alma e do corpo encontra a sua unidade no homem A alma realidade inextensa comanda o corpo realidade extensa do homem A res extensa é matéria e espaço ao mesmo tempo o que permite concluir que o mundo como uma extensão infinita é constituído pela mesma matéria O conhecimento deixa de estar submetido ao mundo sensível experiência pois a substância racional é dotada de autonomia Como Descartes na sua moral provisória não questiona a Igreja e a religião precisa encontrar uma forma de justificar a existência de Deus O raciocínio é simples o homem como ser que precisa duvidar para demonstrar sua existência é imperfeito Como o homem entretanto tem a idéia do perfeito que não pode ser ele mesmo porque é imperfeito então o perfeito só pode ser Deus Deus existe e é o autor do ser homem imperfeito A existência está compreendida na idéia de Deus porque não poderia existir perfeição sem existência Em síntese Deus criou a res extensa matéria extensa e matematizável e a res cogitans Ele imprimiu as leis da natureza na alma humana as leis inatas de modo que depois de refletir sobre elas não poderíamos duvidar que não fossem exatamente observadas em tudo o que existe ou se faz no mundo Descartes 1989 p 63 É importante compreender a estratégia cartesiana para revelar a verdade sem confrontarse com a Igreja Ele escreve o Discurso do Método em francês e não em latim como era usual Assim ele se dirige para um público mais amplo Sem negar a existência de Deus situa o homem no centro do processo de produção do conhecimento mediante o eu penso que é uma verdade autoevidente O homem ao empreender a sua aventura para conhecer o mundo que é obra de Deus está 42 conhecendo e afirmando a existência do próprio Deus Apesar disso o homem dá um passo decisivo na conquista da sua autonomia que se expressará nos direitos civis institucionalizados pelas revoluções políticas modernas No curso da história das idéias o cartesianismo será criticado por uma corrente de pensamento com grande expressão na Inglaterra o empirismo A palavra empirismo vem do grego empeiria cujo significado é experiência Os principais expoentes dessa corrente são Thomas Hobbes John Locke e David Hume Essa corrente de pensamento levará ao limite a idéia de que o conhecimento se origina da experiência John Locke bastante conhecido como um dos fundadores do liberalismo afirma que o pensamento recebe o material do conhecimento unicamente por meio da experiência Não existem idéias inatas anteriores à experiência Para justificar sua posição ele elabora o seguinte argumento que consta da sua obra Ensaio Acerca do Entendimento Humano 1690 citado por Reali e Antiseri 1990 p 513 Suponhamos portanto que o espírito seja por assim dizer uma folha em branco privada de qualquer escrita e sem nenhuma idéia De qualquer modo virá a ser preenchida De onde provém aquele vasto depósito que a industriosa e ilimitada fantasia do homem traçoulhe com variedade quase infinita De onde procede todo o material da razão e do conhecimento Respondo com uma só palavra da experiência É nela que o nosso conhecimento se baseia e é dela que em última análise ele deriva O grande pensador do empirismo entretanto foi David Hume 17111776 autor de várias obras entre as quais Investigações Acerca do Entendimento Humano 1748 Hume critica o conceito de idéias inatas do racionalismo O conhecimento fundamentase nas impressões dados fornecidos pelos sentidos e nas idéias que são representações produzidas pelas impressões As impressões simples precedem as idéias correspondentes As idéias simples pelo princípio da associação reúnem se em idéias complexas segundo três propriedades 1 semelhança 2 contiguidade no tempo e no espaço e 3 causa e efeito Reafirmase em Hume a experiência como fundamento do conhecimento Hume no entanto desenvolve um certo ceticismo em relação ao sentido das relações entre os dados da experiência Não há nenhum vínculo lógico ou ontológico 43 entre os dados As relações estabelecidas entre os dados decorrem apenas do costume ou do hábito que desenvolvemos com a observação É assim que elaboramos as conclusões cujo ponto de partida é a experiência Diz Hume 1996 p 63 o costume é pois o grande guia da vida humana É o único princípio que torna útil nossa experiência e nos faz esperar no futuro uma série de eventos semelhantes àqueles que aparecerem no passado Sem a influência do costume ignoraríamos completamente toda questão de fato que está fora do alcance dos dados imediatos da memória e dos sentidos Nunca poderíamos saber como ajustar os meios em função dos fins nem como empregar nossas faculdades naturais para a produção de um efeito Seria ao mesmo tempo o fim de toda a ação como também de quase toda especulação O grande questionamento feito por Hume entretanto referese à relação entre causa e efeito Todos os fatos parecem estar submetidos a uma relação de causa e efeito Não se chega ao conhecimento dessa relação por raciocínios prévios ou seja pela razão chegase pela experiência Se observarmos um objeto completamente novo mesmo com um exame minucioso das suas qualidades não é possível estabelecer a relação causa e efeito Como causa e efeito são duas realidades distintas não há entre elas uma conexão necessária e por isso não podem ser concebidos pela razão Mais uma vez surge o costume como elemento que produz alguma inteligibilidade à experiência Afirma Hume 1996 p 64 toda a crença em matéria de fato e de existência real procede unicamente de um objeto presente à memória ou aos sentidos e de uma conjunção costumeira entre esse e algum outro objeto Ou em outras palavras como o espírito tem encontrado em numerosos casos que dois gêneros quaisquer de objetos a chama e o calor a neve e o frio sempre têm estado em conjunção se de novo a chama ou a neve se apresentassem aos sentidos o espírito é levado pelo costume a esperar calor ou frio e a acreditar que esta qualidade existe realmente e que se manifestaria se estivesse mais próxima de nós Essa crença é o resultado necessário de colocar o espírito em determinadas circunstâncias É uma operação da alma tão inevitável como quando nos encontramos em determinada situação para sentir a paixão do amor quando recebemos benefícios ou a de ódio quando nos defrontamos com injustiças Todas essas operações são 44 uma espécie de instinto natural que nenhum raciocínio ou processo do pensamento e do entendimento é capaz de produzir ou impedir Assim a razão perde a sua condição de tribunal onde se produz a verdade A experiência é o único caminho para a verdade ela determina a própria racionalidade Estabelecese assim um grande confronto afinal de onde vem a verdade Uma solução para esse impasse teórico foi elaborada pelo filósofo alemão Imanuel Kant 17241804 O professor de Königsberg conhecido por seus hábitos rigorosos é autor de uma obra ampla e profunda que aborda quase todos os temas discutidos na época Kant é um pensador iluminista que sustenta a necessidade de o homem sair do seu estado de menoridade situação em que se encontra por ser incapaz de usar sua própria inteligência O homem é dotado de liberdade portanto é o autor das suas próprias regras Estas têm origem na primeira regra moral o imperativo categórico e que pode ser assim enunciada age de modo tal que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal A liberdade como fundamento da ação moral não está submetida à experiência ou aos impulsos do mundo sensível ela se impõe por si mesma na autonomia da vontade e da razão Interessanos apenas analisar a proposição de Kant contida na Crítica da Razão Pura 1781 que se expressa na síntese entre o racionalismo e empirismo Essa síntese indica que devemos procurar outro caminho para explicar o conhecimento nem o empirismo em que a razão é passiva diante da realidade sensível nem o idealismo em que conhecer é buscar o mundo inteligível Kant promove uma verdadeira revolução copernicana fazendo os objetos ajustaremse ao nosso conhecimento de modo que possamos estabelecer previamente algum conhecimento sobre eles Em outras palavras em vez de o sujeito girar ao redor do objeto é este que deve girar em torno do sujeito Vamos começar analisando o sujeito com os princípios da sensibilidade e da razão o sujeito do conhecimento Esse sujeito é dotado de estruturas transcendentais sensibilidade e razão que produzem um conhecimento não ligado aos objetos mas com o nosso modo de conhecer os objetos É um conhecimento a priori que o sujeito põe nas coisas no ato de conhecêlas 45 A estética transcendental diz respeito às estruturas da sensibilidade ao modo como o sujeito recebe as sensações e o conhecimento sensível A sensibilidade é a faculdade do sujeito em receber as sensações em ser afetado por elas A intuição é o conhecimento imediato dos objetos ou seja a apreensão dos fenômenos tal com eles se manifestam ou aparecem para o sujeito As intuições empíricas dizem respeito aos conhecimentos que fazem parte das sensações e as intuições puras são as formas a priori que existem no sujeito como modos de funcionamento da sensibilidade a saber o espaço e o tempo O espaço é a forma de conhecimento que capta o sentido externo dos fenômenos ou a existência dos mesmos fora do sujeito É a condição da possibilidade dos fenômenos O tempo é a forma do sentido interno a intuição pura que existe no sujeito e para ele próprio O tempo representa a condição formal a priori de todos os fenômenos em geral São eles o espaço e o tempo que ordenam a multiplicidade das sensações Kant considera que a coisa em si é inconhecível O que conhecemos são os fenômenos que são suas formas de manifestação para o sujeito É importante considerar que os fenômenos existem em relação ao sujeito portanto são realidades que não podem ser procuradas no objeto em si Não se trata de afirmar que os fenômenos não existem mas que eles existem somente em relação ao sujeito Passemos agora à Analítica Transcendental que diz respeito a outra fonte do conhecimento o entendimento que permite ao sujeito expressar os fenômenos sob a forma de conceitos O entendimento pode ser representado como uma faculdade de julgar na medida em que seus atos se reduzem a juízos Juízos são as relações estabelecidas entre as várias representações reduzindoas à unidade Para isso é preciso considerar que o pensamento por meio da lógica transcendental elabora categorias sem as quais nenhum fenômeno pode ser pensado A função das categorias é a aplicação sobre os objetos da experiência para produzir conhecimento As categorias operam segundo regras denominadas princípios As categorias são conceitos puros a priori que determinam leis aos fenômenos e a natureza As categorias correspondem às formas lógicas do juízo Por exemplo as categorias da quantidade unidade pluralidade totalidade da qualidade realidade negação 46 limitação da relação substância e acidente causa e efeito ação entre agente e paciente e da modalidade possibilidadeimpossibilidade existêncianão existência necessidadecontingência O eu penso que possibilita a unidade da consciência está presente em todas as representações pois sem ele estas seriam impossíveis O conhecimento resulta da combinação entre sensibilidade e entendimento Não há prioridade entre elas pois sem a sensibilidade o objeto não seria apreendido e sem o entendimento ele não seria pensado A experiência é o limite do conhecimento mas o entendimento pode ir além da experiência e efetivamente o faz instituindo a razão Os conceitos puros racionais são as idéias transcendentais que não têm vínculo com a experiência As idéias da razão são a alma o mundo e Deus Elas têm um sentido normativo podendo ordenar a experiência dandolhe uma maior unidade Também a chamada razão prática ou moral não está condicionada pela experiência Toda vez que se busca referenciála ao mundo sensível perdese a liberdade ou quebrase a autonomia da vontade princípio fundante de todas as leis morais e dos deveres delas decorrentes O imperativo moral não está baseado nas intuições sensíveis mas na razão pura prática por meio da qual a vontade se expressa A revolução intelectual promovida por Kant revela ao homem sua finitude como sujeito da razão pura mas esta própria razão por intermédio das idéias transcendentais o projeta para o infinito Da mesma forma a razão pura prática como esfera incondicionada por meio da lei moral projeta o homem para o infinito para além do mundo sensível Kant referiu que duas coisas tinham especial significação para a sua vida o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim O primeiro aspecto diz respeito ao lugar ocupado no mundo sensível externo e o segundo compreende um mundo infinito só perceptível ao entendimento com o qual diz ele me reconheço em uma conexão não simplesmente acidental como no primeiro caso mas universal e necessária Kant foi um dos pilares do denominado idealismo filosófico Transformouse numa referência intelectual da modernidade construindo argumentos sólidos para o desenvolvimento da Ciência e consequentemente da verdade 47 O outro grande filósofo idealista é Hegel 17701831 Também ele transformouse numa referência para pensar a modernidade inclusive para seus críticos como Marx Kant e Hegel foram e ainda são um divisor de águas do pensamento ocidental Hegel é o pensador da dialética e da História A dialética constitui o conceito fundamental do sistema hegeliano Ela é a alma do procedimento científico pois permite a permanente superação ou a passagem de uma situação para outra a negação da negação O método dialético pressupõe três momentos a tese a antítese e a síntese São os momentos da afirmação do negativo e da síntese superação ou conservaçãosupressão A síntese expressa o momento mais elevado quando nasce o conceito Na Fenomenologia do Espírito Hegel estabelece o processo de formação do Espírito Absoluto momento mais elevado do conhecimento e da própria História Esse movimento iniciase com a consciência certeza sensível percepção e entendimento transformase na autoconsciência dialética do senhor e do escravo libertação da autoconsciência na razão no espírito na religião e finalmente no saber absoluto sistema da Ciência É nesse momento mais elevado que o real se expressa como racional e o racional como real A dialética do Espírito Absoluto não representa apenas um processo de produção do conhecimento mas é a expressão da própria História A História é o movimento da razão em busca da sua autonomia No plano social esse processo se manifesta nos momentos da eticidade família sociedade civil e Estado O Estado é a manifestação do Espírito Absoluto quando o homem tornase cidadão conquistando assim a sua autonomia É portanto o momento mais elevado da vida humana Ser membro de Estado é ser livre Analisamos o longo processo de formação da ciência moderna É neste contexto que a formação da Sociologia adquire sentido Cabe ainda uma referência à contribuição de Montesquieu 16891755 que elaborou um conceito de lei posteriormente incorporado pelo Positivismo No início da sua principal obra Do Espírito das Leis 1748 Montesquieu conceitua lei como as relações necessárias que derivam da natureza das coisas e nesse sentido todos os seres têm as leis a divindade possui suas leis o mundo 48 material possui suas leis as inteligências superiores ao homem possuem suas leis os animais possuem suas leis o homem possui suas leis Montesquieu 1997 p 37 Os homens como seres físicos são governados por leis invariáveis porém como seres inteligentes frequentemente violam as leis divinas e modificam as suas leis que eles mesmos estabeleceram Montesquieu assinala que os homens estão submetidos a quatro leis naturais São elas 1 a fraqueza indica que eles procurariam a paz 2 a necessidade os incitaria a procurar alimentos 3 o prazer levaria à busca da relação entre sexos opostos e 4 o desejo de viver em sociedade Logo que os homens estão em sociedade perdem o sentimento de suas fraquezas a igualdade que existia entre eles desaparece e o estado de guerra começa afirma Montesquieu 1997 p 40 Considerando que existem diferentes povos e nações são necessárias leis que regulem as relações entre eles é o Direito das Gentes Cada sociedade tem um Direito político que regula a relações entre os que governam e os governados e um Direito civil que regula as relações dos cidadãos entre si Sem um governo nenhuma sociedade poderia subsistir A reunião de todas as forças individuais forma o que denominamos Estado Político p 41 Analisando as leis que revela diretamente da natureza do governo constata a existência de três espécies de governo a o republicano b o monárquico e c o despótico O governo republicano é aquele em que o povo possui o poder soberano o monárquico é o governo exercido por uma única pessoa e o despótico é também o governo de uma pessoa que governa segundo sua vontade e seus caprichos desobedecendo às leis vigentes A natureza dos governos indica o que faz o governo ser como é os princípios indicam como eles agem Assim no governo republicano vigora o princípio da virtude na monarquia a honra e no despotismo o medo Este último está destinado à autofagia em função dos conflitos e rebeliões constantes Outra contribuição importante é a necessidade da divisão de poderes Executivo Legislativo e Judiciário como forma de evitar o poder absoluto e a 49 preservação da liberdadeAs leis devem ser adequadas ao povo para o qual foram criadas De acordo com Montesquieu 1997 p 42 devem as leis ser relativas ao físico do país ao clima frio quente ou temperado à qualidade do solo à sua situação ao seu tamanho ao gênero de vida dos povos agricultores caçadores ou pastores devem relacionarse com o grau de liberdade que a constituição pode permitir com a religião dos habitantes suas inclinações riquezas número comércio costumes maneiras Possuem elas enfim relações entre si e com sua origem com os desígnios do legislador e com ordem das coisas sobre as quais são elas estabelecidas Tal é o espírito das leis das relações necessárias inerentes à natureza das coisas A Fundação da Sociologia as Teorias Sociológicas Clássicas O PENSAMENTO SOCIAL ANTERIOR À SOCIOLOGIA Em todos os tempos os homens elaboraram formas de pensamento referentes a sua própria sociabilidade Por exemplo na Antiguidade clássica destacamse os pensadores gregos na Idade Média os pensadores cristãos Na modernidade diversas teorias foram criadas no sentido de compreender as relações sociais Entre elas destacase o contratualismo como uma forma de pensamento social que se propõe a explicar a origem e a necessidade do Estado como espaço fundamental para o estabelecimento de formas permanentes de sociabilidade entre os homens Também foi o contratualismo que forneceu as idéias para as novas classes sociais capacitandoas a empreenderem movimentos revolucionários contra a sociedade feudal O contratualismo fundamentase na tríade estado de natureza contrato Estado sociedade civil sociedade política O ponto de partida é a afirmação de que o homem pode ser concebido a partir de uma condição natural estado de natureza em que ele desfruta enquanto indivíduo de um poder natural liberdade e igualdade absoluto Essa condição natural é um suposto lógico não proveniente da observação vale lembrar que a ciência moderna tem como um dos seus pressupostos a observação Devido aos inconvenientes do estado natural esse homem que não é 50 um animal selvagem mas um ser racional pode chegar à conclusão sobre as causas de tais inconvenientes e procurar uma saída que pode ser por meio da celebração de um contrato pacto do qual participam todos os homens para criar um outro poder mais precisamente um poder civil chamado Estado Pela importância histórica e qualidade teórica vamos considerar três autores dois ingleses e um francês Thomas Hobbes 15881679 e John Locke 16321704 foram contemporâneos das transformações sociais e políticas verificadas na Inglaterra que culminaram com a Revolução Gloriosa em 1688 processo político que instituiu a supremacia do Parlamento sobre a Monarquia ou o triunfo do liberalismo A obra principal de Hobbes é o Leviatã 1651 e a de Locke Dois Tratados sobre o Governo Civil 16791680 No caso de Rousseau 17121778 é notória a sua influência intelectual sobre a Revolução Francesa 1789 Duas obras são importantes Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens 1755 e o Contrato Social 1762 THOMAS HOBBES Thomas Hobbes foi colocado no rol dos pensadores malditos em função de sua concepção do homem como um ser belicoso por natureza e do Estado como algo monstruoso poder absoluto Essa visão preconceituosa impede que se entenda a profundidade das reflexões de Hobbes sobre o homem e o Estado bastante influenciadas pelo seu tempo marcado pela guerra civil inglesa a Revolução Puritana provocou a decapitação do rei Carlos I e introduziu a República e pelo fracionamento do poder político Os argumentos de Hobbes para justificar o Estado são os seguintes os homens são sempre os mesmos em relação a sua natureza Os homens no seu estado natural são iguais quanto às faculdades do corpo e do espírito Se dois homens desejam a mesma coisa ao mesmo tempo em que é impossível ela ser gozada por ambos eles tornamse inimigos E no caminho para seu fim que é principalmente sua própria conservação e às vezes apenas seu deleite esforçamse por se destruir ou subjugar um ao outro De modo que na 51 natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia Primeiro a competição segundo a desconfiança terceiro a glória Com isto se torna manifesto que durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito eles se encontram naquela condição a que se chama guerra e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens Hobbes 1988 p 7475 Assim sendo na condição natural os homens são iguais e livres tendo o direito ou a liberdade de usar todos os recursos disponíveis para preservar a sua vida Se cada homem tem o direito a todas as coisas não há segurança para viver o tempo que a natureza permite a cada homem de modo que a situação de guerra de todos contra todos instaura o medo da morte em todos os homens A saída para esse impasse é instituir um poder comum isto é conferir toda a força e poder a um homem ou a uma assembléia de homens designandoo como representante de suas pessoas considerandose e reconhecendose cada um como autor de todos aos atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar em tudo o que disser respeito à paz e à segurança comuns todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante e suas decisões à sua decisão Isto é mais do que consentimento ou concórdia é uma verdadeira unidade de todos eles numa só e mesma pessoa realizada por um pacto de cada homem com todos os homens de modo que é como se cada homem dissesse a cada homem Cedo e transfiro meu direito de governarme a mim mesmo a este homem ou a esta assembléia de homens com a condição de transferires a ele seu direito autorizando de maneira semelhante todas a suas ações Feito isso à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado em latim civitas É esta geração daquele grande Leviatã ou antes daquele Deus Mortal ao qual devemos abaixo do Deus Imortal nossa paz e defesa Pois graças a esta autoridade que lhes é dada por cada indivíduo no Estado élhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles no sentido da paz em seu próprio país e da ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros É nele que consiste a essência do Estado a qual pode ser assim definida Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão mediante pactos recíprocos uns com os outros foi instituída por cada 52 um como autora de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos da maneira que considerar conveniente para assegurar a paz e a defesa comum Aquele que é portador dessa pessoa se chama soberano e dele se diz que possui poder soberano Todos os restantes são súditos p 106106 O poder proposto por Hobbes é absoluto e indivisível condição para que ele seja soberano Este governa pelo medo que impõe aos súditos única forma de levá los à obediência As leis são instituídas pelo soberano que tem também o poder sobre as armas As leis sem o poder das armas são inócuas Do poder soberano derivam todos os direitos inclusive o direito de propriedade Todas as terras e bens estão sob o controle do soberano O pacto uma vez estabelecido não poderá ser desfeito contudo os súditos estão desobrigados à obediência sempre que o soberano agir contra o princípio da sua instituição preservar a vida dos súditos É importante ressaltar que o soberano se origina do contrato portanto ele não participa do mesmo JOHN LOCKE O contratualismo de Locke segue a mesma lógica contudo apresenta diferenças importantes em relação a Hobbes O estado de natureza é um estado de paz e harmonia em que os indivíduos mediante sua inteligência e força apropriam se dos meios necessários à preservação da vida O trabalho de cada um cria um direito natural de apropriação do esforço despendido na produção de bens Locke define a propriedade como o conjunto dos bens da vida e da liberdade A mudança fundamental é que a propriedade é anterior ao contrato portanto um direito natural Num primeiro momento a propriedade é limitada pelo trabalho ou pelas forças produtivas posteriormente com a ampliação da produção surgem as trocas e a moeda de modo que a propriedade pode ser adquirida pela compra O dinheiro produziu a concentração da propriedade e da riqueza e a distribuição desigual dos bens entre os homens O estado de natureza mesmo sendo uma situação de relativa harmonia apresenta inconvenientes para o usufruto da propriedade de cada um É possível a violação da propriedade pois inexistem leis comuns um juiz imparcial e uma força 53 capaz de impor as sentenças o que possibilita o desenvolvimento de conflitos entre os indivíduos Por isso estabelecese o pacto que resulta do livre consentimento de todos os indivíduos instituindose assim uma sociedade política cuja função é a preservação da propriedade enquanto um direito natural pois o objetivo grande e principal da união dos homens em comunidade colocandose eles sob governo é a preservação da propriedade Locke 1983 p 82 A sociedade política é um corpo político soberano em que o poder Legislativo é o poder supremo a ele se subordinam o poder Executivo e o poder Federativo que trata das relações exteriores Notase a presença na teoria política de Locke da divisão de poderes um dos pilares do Estado moderno O poder Judiciário ainda não está concebido como poder autônomo questão que será teoricamente desenvolvida por Montesquieu porém a teoria afirma a necessidade do juiz imparcial considerando que a sua inexistência é uma das condições para a passagem do estado natural para o estado político Na verdade o poder Judiciário está vinculado ao poder Legislativo porque os legisladores e os juízes têm a mesma função que é estabelecer o Direito leis fixas e iguais para todos O governo se constitui a partir de uma maioria e por uma maioria pode ser dissolvido Cabe uma breve observação sobre a contribuição de Montesquieu especialmente a sua teoria da divisão de poderes como condição para evitar o poder absoluto Os três poderes o Legislativo o Executivo e o Judiciário desempenham funções diferentes sem que um deva se sobrepor aos demais estabelecendo assim um sistema de freios e contrapesos O equilíbrio e a independência entre os poderes não quer dizer que não haja também uma interpenetração entre os mesmos que se manifesta por exemplo no veto do Executivo às leis votadas no Legislativo na ação deste sobre os atos do Executivo na nomeação de membros dos tribunais superiores etc A tese de Montesquieu visa a evitar o abuso do poder colocando em questão a liberdade e o exercício do poder para que não se possa abusar do poder é preciso que pela disposição das coisas o poder freie o poder Montesquieu 1997 p 200 O exercício da liberdade como direito de fazer tudo o que as leis permitem está ligado à instituição de um governo moderado o meiotermo aristotélico Para alguns 54 analistas da obra de Montesquieu a realização da liberdade não supõe apenas uma divisão de poderes mas a distribuição de poderes no sentido de constituir um equilíbrio social Essa forma de interpretação representaria uma retomada da idéia do governo misto construída na Antiguidade Por exemplo para Aristóteles o melhor governo seria resultado da combinação entre democracia e aristocracia na medida em que o governo seria o resultado da combinação entre pobres muitos e ricos poucos Trazendo esta idéia para a modernidade o Estado expressaria uma relação entre classes de modo que o equilíbrio de poderes seria um equilíbrio entre as classes Voltando a Locke cabe uma observação sobre o direito de resistência uma das teses mais importantes desse pensador Segundo ele sempre que os legisladores tentam tirar e destruir a propriedade do povo ou reduzilo à escravidão sob poder arbitrário entra em estado de guerra contra ele que fica assim absolvido de qualquer obediência mais abandonado ao refúgio comum que Deus providenciou para todos os homens contra a força e a violência O que se disse acima a respeito do legislativo em geral também se aplica ao executor supremo que recebendo duplo encargo ter parte no legislativo e exercer a suprema execução da lei age contra um e outro quando se esforça por firmar a própria vontade como lei da sociedade Age também contrariamente ao seu dever quando ou emprega a força o tesouro ou os cargos da sociedade para corromper os representantes e atraílos aos seus próprios fins ou quando alicia abertamente os eleitores e lhes impõe à escolha alguém que ganhou para os seus desígnios por meio de promessas ameaças e solicitações Quem julgará se o príncipe ou o legislativo agem contrariamente ao encargo recebido A isto respondo O povo será o juiz porque quem poderá julgar se o depositário ou o deputado age bem e de acordo com o encargo a ele confiado senão aquele que o nomeia devendo por têlo nomeado ter ainda poder para afastálo quando não agir conforme seu dever Locke 1983 p 121130JEANJACQUES ROUSSEAU O grande contratualista francês constrói uma visão crítica do contrato a partir dos mesmos pressupostos teóricos ou seja da contraposição entre estado de natureza e estado político A diferença é que para Rousseau os problemas humanos iniciamse com a constituição da sociedade civil Para comprovar a tese ele desenvolve uma história hipotética da humanidade Nesta história ele demonstra que a sociedade 55 civil ou política se estabelece no momento em que surge a propriedade privada o primeiro que tendo cercado um terreno atreveuse a dizer Isto é meu e encontrou pessoas bastante simples o suficiente para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil Rousseau 1993 p 181 A partir daí emerge a necessidade de legitimação da nova situação que se estabelece quando o rico proprietário apresenta a proposta de pacto da seguinte forma unamonos para resguardar os fracos da opressão conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse do que lhe pertence Instituamos regulamentos de justiça e paz aos quais todos sejam obrigados a adequarse que não abram exceção a ninguém e reparem de certo modo os caprichos da fortuna submetendo igualmente o poderoso e o fraco a deveres mútuos Em suma em vez de voltarmos nossas forças contra nós mesmos reunamolas em um poder supremo que nos governe segundo leis sábias que proteja e defenda todos os membros da associação rechace os inimigos comuns e nos mantenha numa concórdia eterna Rousseau 1993 p 196197 E conclui criticamente tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis que criaram novos entraves para o fraco e novas forças para o rico destruíram em definitivo a liberdade natural fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade de uma hábil usurpação fizeram um direito irrevogável e para o lucro de alguns ambiciosos sujeitaram daí para a frente todo o gênero humano ao trabalho à servidão e à miséria p 197 Em síntese o contrato que legitima a propriedade privada e a desigualdade é iníquo e injusto percebendose com clareza a diferença com a tese de Locke Como sair desse impasse aparentemente irremediável Voltar ao estado de natureza como querem alguns analistas da obra de Rousseau A resposta é não A análise da sua obra seguinte O Contrato Social revela a solução proposta por Rousseau o homem nasce livre e por toda parte encontrase a ferros O que se crê senhor dos demais não deixa de ser mais escravo do que eles Como adveio esta mudança Ignoroo Que poderá legitimála Creio poder resolver esta questão Rousseau 1987 p 22 O desafio que Rousseau se propõe é estabelecer uma forma de contrato que eleve a liberdade e a igualdade natural à condição política ou seja que na sociedade política o homem mesmo se constituindo como um homem artificial 56 não elimine a sua condição natural de liberdade e de igualdade mas a transforme numa instituição moral e política ampliando portanto o seu alcance Para conseguir esse objetivo as cláusulas do contrato reduzemse a uma só a alienação total de cada associado com todos os seus direitos à comunidade toda porque em primeiro lugar cada um dandose completamente a condição é igual para todos e sendo a condição igual para todos ninguém se interessa por tornála onerosa para os demais p 32 Assim se constitui um corpo político soberano que Rousseau define por meio do conceito de vontade geral Este é o segredo do contrato rousseauniano a instituição da vontade geral não como a simples soma das vontades particulares mas como uma síntese de todas as vontades particulares Criase assim uma força radicalmente nova um poder comum coletivo ao qual cada indivíduo deve submeterse Não há perda de liberdade porque ela se realiza coletivamente O corpo político criado o lugar efetivo de elaboração das leis civis representa a conquista da liberdade moral única a tornar o homem verdadeiramente senhor de si mesmo porque o impulso do puro apetite é escravidão e a obediência à lei que se prescreveu é liberdade p 37 Se os homens criam suas próprias leis numa situação de igualdade e liberdade obedecêlas não significa perder a liberdade mas obedecer a uma deliberação originada deles mesmos A vontade geral ou a soberania é a única força que pode dirigir o Estado de acordo com o bem comum Ela é indivisível porque senão seria apenas uma parte e inalienável Esta característica é fundamental no pensamento de Rousseau Afirma ele que a soberania por ser apenas o exercício da vontade geral não pode jamais se alienar e que o soberano que não é senão um ser coletivo só pode ser representado por si mesmo O poder pode ser transmitido mas não à vontade Se pois o povo promete simplesmente obedecer ele se dissolve por esse ato perde sua qualidade de povo desde que há um senhor não há mais soberano e a partir de então destróise o corpo político p 44 A tese da inalienabilidade da soberania tem consequências profundas sobre o processo legislativo A vontade geral não se representa ou é ela mesma ou é outra Nesse sentido os deputados do povo não são nem podem ser seus representantes 57 não passam de seus comissários nada podendo concluir definitivamente É nula toda lei que o povo diretamente não ratificar e em absoluto não é lei O povo inglês pensa ser livre e muito se engana pois o é somente durante a eleição dos membros do parlamento logo que são eleitos ele é escravo não é nada p 108 O argumento vale também para o governo Esta tese questiona a representação como um dos elementos centrais do Estado moderno e abre espaço para pensar a democracia direta como modo mais legitimo para a elaboração das leis porque institui o povo como o único e o verdadeiro poder soberano Em síntese o contratualismo é a teoria política fundadora do Estado moderno cujo ator principal é o indivíduo Dos autores considerados a contribuição de Locke é de longe a mais significativa tanto que ele é denominado o pai do liberalismo A idéia por ele desenvolvida de que a sociedade política é a instituição criada para assegurar o direito natural de propriedade tornouse o fundamento do chamado Estado Liberal Além disso está presente a necessidade de impor limites ao poder e às funções do Estado O primeiro aspecto materializase no conceito de Estado de direito Constituição governo das leis divisão de poderes etc e o segundo no conceito de Estado mínimo separação entre o político e o econômicopropriedademercado nãointervenção do Estado na economia e no campo social Já a perspectiva desenvolvida por Rousseau ao criticar o contrato firmado sob a ótica dos ricosproprietários traz os pressupostos para a construção de uma sociedade democrática Também se deve considerar como uma questão importante exposta por Rousseau para a teoria política de que o contrato nasce das desigualdades e não o contrário Essas teses serão retomadas no século 19 não mais a partir dos pressupostos contratualistas em que se contrapõe estado de natureza e estado político mas estabelecendose uma nova contraposição entre sociedade civil e sociedade política É o caso das teorias de Hegel e Marx e Engels É importante considerar que o contratualismo é uma teoria afirmativa do Estado como instituição necessária para superar os inconvenientes do estado de natureza Dessa forma o contratualismo não permite pensar uma sociedade sem Estado No limite podese pensar o Estado mínimo neoliberal visto apenas como 58 um mal necessário para garantir os direitos civis e políticos mas jamais interferir na economia no mercado e na questão social O contratualismo fundamentase na dicotomia estado de naturezasociedade política Em outras palavras a sociabilidade humana representada pela sociedade política constituise a partir do contrato O estado natural é um estado em que reina a individualidade absoluta cujos inconvenientes impõem ao homem o desafio de construir relações sociais que tornem a vida humana menos adversa A grande virtude do contratualismo é trazer para o âmbito humano a construção de soluções para os impasses e dilemas evidenciados na condição natural dos homens No século 19 ocorre uma mudança importante na formulação do pensamento político Para esta nova forma de pensar a política o Estado nasce das contradições da sociedade civil de modo que uma nova dicotomia se estabelece sociedade civilsociedade política A sociedade existe independentemente do contrato portanto faz parte da própria condição humana Essa fundamentação é possível em função do desenvolvimento da Ciência como procedimento para buscar a verdade Esta prática está vinculada à observação levada a efeito segundo uma determinada metodologia A observação permitiu uma conclusão os homens estabelecem relações necessárias entre si que decorrem dos atos necessários à produção da sua própria existência Essa nova forma de pensar o Estado e a sociedade pode ser posta numa perspectiva sociológica pois parte da sociedade como um dado da condição humana As maiores expressões teóricas dessa forma de pensar a política e o Estado são George W Hegel 1770 1831 Karl Marx 18181883 e Friedrich Engels 1820 1895 estes últimos compondo uma única corrente teórica o materialismo histórico Hegel pode ser considerado um dos precursores da Sociologia Recuperando a teoria política grega e a dialética Hegel inicia uma nova teoria sobre o Estado transformandoo na instituição na qual o homem se constitui como ser humano pleno universal Diz Hegel nos Princípios de Filosofia do Direito que o o fim racional do homem é a vida no Estado Inwood 1997 p 124 Nesse sentido o Estado expressa o momento mais elevado da história humana ou seja o momento em que o homem que inicia a sua aventura humana como ser sensível elevase à condição de Espírito Absoluto O Estado representa o momento éticopolítico ou simplesmente o momento 59 da eticidade Para chegar ao Estado o homem precisa superar dialeticamente a dimensão da família que expressa o amor e o sentimento e o faz no sentido de constituir a sociedade civil Nesta nova condição o homem se caracteriza pela particularidade os indivíduos pela divisão do trabalho e pelas trocas A sociedade civil constitui um sistema de carências ou necessidades que devem ser supridas pelo trabalho O contrato é o instrumento que regula as relações entre os indivíduos na sociedade civil Nessa dimensão contudo o homem vive dilacerado por ser apenas parte e não todo Esse conflito existencial se resolve com a instituição do Estado que permite ao homem alçarse à condição de ser universal de cidadão em que cada um se reconhece no outro Assim sendo só no Estado os homens são verdadeiramente livres e iguais O que está em questão é a conquista do gênero humano da universalidade da condição humana da humanidade como um todo como unidade O sentimento família não é simplesmente eliminado das relações humanas mas no Estado ele é transformado em sentimento de amor pela pátria por exemplo É claro que nessa nova situação que é resultado de uma superação dialética surge a racionalidade como categoria fundamental da ação política No Estado o indivíduo é subsumido pelo todo como na vontade geral de Rousseau deixa de ser o ator principal Para Hegel a constituição do Estado racional envolve três poderes o monarca cargo hereditário para evitar a instabilidade das eleições o poder executivo ou governamental burocracia judiciário etc poder Legislativo expressa o elemento universal porque é o povo como um todo e não como particulares que está nele representado Marx e Engels elaboram uma teoria crítica do Estado e da sociedade burguesa O ponto de partida é a concepção de Hegel criticadas por eles pelo seu caráter idealista Também incorporam a essa crítica as reflexões dos socialistas franceses e dos economistas ingleses Adam Smith e Ricardo Entendemos porém que o pensamento de Marx e Engels já se situa numa perspectiva sociológica razão pela qual o abordaremos na próxima seção AS TEORIAS SOCIOLÓGICAS CLÁSSICAS COMTE DURKHEIM MARX E ENGELS WEBER 60 Vamos analisar nesta seção o pensamento sociológico formado no século 19 em que Comte Marx e Engels são os precursores Tais reflexões caracterizam profundamente as ações humanas na medida em que afirmam a origem social dos problemas e dos conflitos que marcam a modernidade As soluções preconizadas obviamente decorrem desse caráter social do mundo humano A complexidade desse processo social se estende para a Sociologia que será também um palco das lutas que se travam no seio da sociedade Posteriormente analisaremos as contribuições de Durkheim que segue a mesma linha teórica iniciada por Comte e Weber que elabora uma teoria social inteiramente nova a Sociologia compreensiva Esses autores são considerados clássicos pois foram os responsáveis pela fundação da Sociologia ou mais precisamente criaram as diferentes teorias que compõem a Sociologia A exposição será bastante genérica procurando abordar os aspectos das teorias relativamente consensuais entre os estudiosos Além disso foram empregadas citações dos autores em questão para que cada leitor possa elaborar sua própria interpretação dos mesmos É assim que o conhecimento se desenvolve pela capacidade de apreensão crítica do pensamento constituído COMTE Ordem e Progresso Auguste Comte 17981857 é responsável pela elaboração da primeira reflexão consistente sobre o caráter social do homem como fato empiricamente observável A sociedade humana como dado objetivo pode ser compreendida por uma ciência particular que ele denomina primeiramente de Física Social e posteriormente de Sociologia Esta conclusão está embasada na formulação da lei dos três estados que explicita as formas evolutivas do conhecimento humano o teológico o metafísico e o positivo O estado positivo ou científico representa o momento mais desenvolvido do processo de produção de conhecimentos em que a observação e a experiência predominam sobre a imaginação Os estágios que expressam o desenvolvimento do conhecimento estão relacionados com a história da civilização De acordo com Comte In Moraes Filho 61 1978 a primeira é a época teológica e militar Nesse estado da sociedade todas as idéias teóricas tanto gerais como particulares são de ordem puramente sobrenatural A imaginação domina franca e completamente a observação à qual é interdito qualquer direito de exame Do mesmo modo todas as relações sociais quer particulares quer gerais são franca e completamente militares A sociedade tem como objetivo de atividade única e permanente a conquista De indústria há apenas o indispensável para a existência da espécie humana A escravidão pura e simples dos produtores é a principal instituição A segunda época é a época metafísica e legista Seu caráter geral consiste em não ter nenhum bem acentuado É intermediária e bastarda opera uma transição Sob o aspecto espiritual a observação é sempre dominada pela imaginação mas lhe é permitido modificála em certos limites Estes limites vão sendo sucessivamente recuados até que a observação conquista enfim o direito de exame sobre todos os pontos Sob o aspecto temporal a indústria ganhou maior extensão sem ser ainda predominante Por conseguinte a sociedade não é mais francamente militar nem é ainda francamente industrial quer nos seus elementos quer no seu conjunto A terceira época é a época científica e industrial Todas as idéias teóricas e particulares tornaramse positivas e as idéias gerais tendem a tornarse A observação dominou a imaginação quanto às primeiras e a destronou sem haver ainda hoje tomado seu lugar quanto às segundas No temporal a indústria tornouse predominante Todas as relações particulares estabeleceramse pouco a pouco em bases industriais A sociedade tomada coletivamente tende a organizarse do mesmo modo dandoselhe como objetivo de atividade única e permanente a produção p 145147 A lei dos três estados permite a Comte formular uma teoria sobre a natureza dos conflitos da sociedade humana tendo obviamente a Europa como referência A crise da sociedade decorre da anarquia moral e política que abala o próprio sistema industrial em fase de afirmação Isto significa que sem uma reforma do poder espiritual o predomínio da ciência não haverá desenvolvimento para o estágio social definitivo da espécie humana Para Comte a sociedade está hoje desorganizada tanto no aspecto espiritual quanto no temporal A anarquia espiritual precedeu e engendrou a 62 anarquia temporal O estudo atento da marcha da civilização prova que a reorganização espiritual da sociedade encontrase agora mais preparada do que sua reorganização temporal Deste modo a primeira série de esforços diretos para concluir a época revolucionária deve ter por objetivo reorganizar o poder espiritual enquanto que até o presente a atenção fixouse sempre sobre a reforma de poder temporal p 64 É neste contexto que Comte propõe a fundação da Física Social como campo de conhecimento necessário para compreender as leis que explicam a organização e o funcionamento da sociedade humana Esta ciência particular seria a forma mais evoluída do conhecimento iniciado com a Matemática e seguido respectivamente da Astronomia da Física da Química e da Biologia A afirmação da Física Social exige que se abandone definitivamente a busca das causas e das essências para pesquisar as leis invariáveis isto é as relações constantes que existem entre os fenômenos observados A seguinte afirmação de Comte elucida o objeto e o método da ciência social entendo por Física social a ciência que tem por objeto próprio o estudo dos fenômenos sociais considerados com o mesmo espírito que os fenômenos astronômicos físicos químicos e fisiológicos isto é como submetidos a leis naturais invariáveis cuja descoberta é o objetivo especial de suas pesquisas Propõese assim a explicar diretamente com a maior precisão possível o grande fenômeno do desenvolvimento da espécie humana considerado em todas as suas partes essenciais isto é a descobrir o encadeamento necessário de transformações sucessivas pelo qual o gênero humano partindo de um estado apenas superior ao das sociedades dos grandes macacos foi conduzido gradualmente ao ponto em que se encontra hoje na Europa civilizada O espírito dessa ciência consiste sobretudo em ver no estudo aprofundado do passado a verdadeira explicação do presente e a manifestação geral do futuro p 53 O aspecto metodológico fundamental da ciência social comteana é a objetividade dos fenômenos sociais o que significa que eles como objetos de observação existem independentemente do observador Por isso é possível apreendêlos como constituídos por leis imutáveis como os fenômenos da natureza A diferença é que enquanto na observação destes partese do particular para o geral 63 nos fenômenos sociais partese do geral para o particular Na ciência social o todo precede as partes A fundação da ciência social implica considerar que o seu objeto o social mantém uma posição de especificidade em relação aos demais objetos A história da humanidade é a continuação e o complemento indispensável da história natural do homem Comte mas essa continuidade não quer dizer que não se deve considerar a independência e a superioridade do homem sobre os demais seres Essa superioridade tem como fundamento a perfeição relativa ou a natureza especial da sua organização Considerando as influências que as gerações humanas exercem umas sobre as outras e que o estado da humanidade em cada geração depende imediatamente do estado da geração precedente concluise que o estudo dos fenômenos sociais não pode ser reduzido a um ponto de vista unicamente biológico O positivismo sociológico concebeu duas dimensões para o estudo dos fenômenos sociais a estática e a dinâmica Para Comte esse dualismo científico corresponde com perfeita exatidão no sentido político propriamente dito à dupla noção de ordem e progresso É evidente que o estudo estático do organismo social deve coincidir no fundo com a teoria positiva da ordem a qual com efeito somente pode consistir essencialmente numa justa harmonia permanente entre as diversas condições de existência das sociedades humanas Vêse do mesmo modo e ainda mais sensivelmente que o estudo dinâmico da vida coletiva da humanidade constitui necessariamente a teoria positiva do progresso social que afastandose de qualquer vão pensamento de perfectibilidade absoluta e ilimitada deve naturalmente reduzirse à simples noção do desenvolvimento fundamental 1978 p 105106 A ordem diz respeito ao conjunto de leis puramente estáticas da sociedade organizadas segundo a idéia geral do consensus Todos os fenômenos sociais particulares estabelecem relações necessárias entre si e com o todo de tal modo que não há sociedade em que não se exerce uma ação geral e combinada Há portanto entre as diversas partes que compõem a sociedade uma solidariedade fundamental objetivamente determinada Esta unidade social não quer dizer igualdade ou homogeneidade mas necessariamente diferenças e desigualdades determinadas pela própria natureza do organismo social 64 A sociedade não é o simples somatório de indivíduos A unidade básica da sociedade é a família no entanto os vínculos sociais são de natureza mais complexa que os vínculos familiares As relações domésticas têm um caráter essencialmente moral e afetivo A sociedade pressupõe relações de cooperação ela é composta em primeiro lugar pelas famílias os seus elementos básicos depois pelas classes os seus tecidos e por fim pelas cidades os seus órgãos efetivos A teoria positiva da ordem social considera que sem a separação dos ofícios não existiria entre as diversas famílias uma verdadeira associação mas um simples aglomerado Eis aí o que distingue essencialmente a ordem política fundada na cooperação da ordem puramente doméstica tendo por base a simpatia Comte É a divisão do trabalho o fundamento da sociabilidade moderna a condição para o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da espécie humana Nas palavras de Comte todos os progressos reais que se realizaram ou que poderão operarse na organização social podem ser encarados deste ponto de vista como tendo tido ou devendo ter por último resultado estabelecer melhor distribuição do trabalho A ordem social seria evidentemente perfeita quer sob o aspecto do bemestar particular quer sob o da boa harmonia do conjunto se cada indivíduo ou cada povo pudesse em todos os casos entregarse exclusivamente ao gênero preciso de atividade para a qual fosse mais apropriado seja por suas disposições naturais seja por seus antecedentes seja pelas circunstâncias especiais em que se ache colocado o que considerado sob outro prisma seria exatamente uma perfeita divisão do trabalho 1978 p 123 A divisão do trabalho responsável pela extensão e a complexificação das sociedades humanas pode ser também fator de desintegração social É da própria natureza da especialização do trabalho que os indivíduos e os grupos sociais se coloquem numa perspectiva cada vez mais limitada distantes uns dos outros reforçando o interesse particular em detrimento do interesse geral Essa tendência à dissolução da divisão do trabalho é uma ameaça ao progresso e precisa ser incessantemente combatida por uma ação sempre crescente de governo e sobretudo de governo espiritual Comte Tratase na verdade da incorporação do espírito positivo à existência humana único capaz de produzir o entendimento da 65 verdadeira função social da divisão do trabalho A dinâmica tem como objetivo o estudo do progresso ou do desenvolvimento gradual da humanidade Esse processo evolutivo da sociedade não significa somente a melhoria das condições materiais da vida humana mas também o desenvolvimento das faculdades mais importantes mediante o controle dos apetites físicos e o estímulo dos instintos sociais e das funções intelectuais no sentido de ampliar a influência da razão nas ações humanas A ordem social desenvolvese segundo uma lei necessária no sentido do aumento da diferenciação e da complexidade Esse movimento pode ser considerado a partir das causas modificadoras da sua velocidade a raça o clima e a ação política e dos fatores efetivos de mudança social o tédio o suceder das gerações e o aumento da população Sendo assim superase a ilusão metafísica sobre o aumento da felicidade humana nos diversos estágios da civilização para afirmarse o princípio científico do desenvolvimento contínuo da natureza humana considerada sob todos esses aspectos essenciais seguindo uma harmonia constante e de conformidade com leis invariáveis de evolução Comte A sociedade preconizada pelo positivismo é uma sociedade hierarquizada O poder espiritual deve ficar com os cientistas e o poder temporal com os chefes dos trabalhos industriais empresários capitalistas Esses lugares são ocupados segundo o mérito ou as aptidões naturais de cada indivíduo Entre os cientistas deve ser constituída uma nova classe os especialistas em Física Social responsáveis pela elaboração dos estudos sobre a sociedade Além disso entre os cientistas propriamente ditos e os produtores tende a se formar uma classe intermediária a dos engenheiros cuja destinação especial é organizar as relações entre teoria e prática A concepção social de Comte não pretende a eliminação da relação capital e trabalho da sociedade industrial segundo a proposta dos socialistas nem deixar essa relação ao livre jogo do mercado como propõem os liberais O seu programa trabalhista visa a garantir ao proletário todos os materiais de seu uso exclusivo e contínuo dele próprio ou de sua família e a afirmação da natureza social da propriedade Para isso a propriedade privada deve ser regulada pelo poder espiritual positivista o que significa a sua subordinação às necessidades sociais A crítica 66 comteana voltavase principalmente ao individualismo egoísta responsável pelos abusos cometidos pelos chefes temporais proprietários dos meios de produção Ainda cabe destacar a transformação sofrida pelo pensamento de Comte em 1847 quando proclama o positivismo como a religião da humanidade Os princípios científicos são obviamente postos a serviço da nova religião em que a humanidade ocupa o lugar do deus do cristianismo A religião positivista foi na verdade a tentativa de construir um movimento político cujo objetivo era a reforma moral do homem segundo o princípio viver para outrem A fórmula sagrada do positivismo era o amor por princípio e a ordem por base o progresso por fim DURKHEIM a Preponderância Progressiva da Solidariedade Orgânica Émile Durkheim 18581917 partindo do positivismo comteano produz uma reflexão decisiva para a constituição e a institucionalização da Sociologia como ciência da sociedade É o responsável direto pela criação da disciplina de Sociologia na Universidade de Sorbonne em 1910 Além da elaboração de uma teoria sobre a sociedade industrial Durkheim produz uma importante contribuição sobre o método sociológico isto é sobre o objeto da Sociologia e as regras necessárias para conduzir o processo de investigação dos fatos sociais O objeto da Sociologia é constituído pelos fatos sociais Estes são as manifestações humanas regulares ou não que existem de forma autônoma e independente das manifestações individuais e exercem uma coerção exterior sobre os indivíduos Durkheim leva ao limite o conceito de fato social como núcleo definidor da sociabilidade humana quando afirma que um fato social não pode ser explicado senão por um outro fato social Em outras palavras é o núcleo instituinte da própria condição humana A leitura que se pode fazer dessa tese é que os fatos externos não determinam a natureza da ordem e do movimento da sociedade são apenas condicionantes da vida coletiva Da mesma forma não se pode buscar a causa determinante de um fato social nos estados da consciência individual A sociedade é uma totalidade de fatos que se desenvolvem de acordo com o caráter do meio social interno A origem primária de qualquer processo social de uma certa importância deve 67 ser procurada na constituição do meio social interno afirma Durkheim Como os fatos sociais são realidades objetivas prega a primeira regra do método sociológico que se deve tratálos como coisas no sentido que são realidades desconhecidas que não podem ser naturalmente penetráveis pela inteligência humana mas apenas pela observação e experimentação passando progressivamente dos caracteres mais externos e mais imediatamente acessíveis aos menos visíveis e aos mais profundos Durkheim apud Gianotti 1983 p 76 Para dar conta desse processo exigese que o sociólogo se coloque em relação aos fatos sociais com o mesmo estado de espírito com que se colocam os físicos químicos ou biólogos diante dos seus objetos de investigação Afirma Durkheim o sociólogo ao penetrar no mundo social precisa ter consciência de que penetra no desconhecido é preciso que ele se sinta em presença dos fatos cujas leis lhe são tão insuspeitas como eram as da vida antes da biologia terse constituído é preciso que esteja preparado para fazer descobertas que o surpreenderão e o desconcertarão apud Gianotti 1983 p 77 Outro aspecto decisivo da Sociologia durkheimana referese à necessidade de se eliminarem todas as prenoções ou noções vulgares e julgamentos de valor sobre os fatos sociais Sem esse procedimento metodológico não se pode chegar a resultados objetivos pois se confunde a coisa com a idéia que se faz da coisa adentrandose assim no mundo da imaginação A objetividade e a neutralidade axiológica são as únicas posturas metodológicas possíveis para a produção de conhecimentos científicos A observação dos fatos sociais deve considerar também a existência de duas situações diferentes os fatos normais e os patológicos Levando em conta um tipo social determinado os fatos são normais quando se produzem na média das sociedades desta espécie consideradas numa fase determinada de desenvolvimento O fato patológico ou anormal é aquele que se afasta da média Por exemplo o crime mesmo que seja indesejável é normal para uma sociedade dada considerando seu estágio de desenvolvimento A função do crime e da pena é reforçar os laços sociais baseados nas semelhanças O crime pode tornarse um fato anormal quando atinge taxas exageradas 68 A constituição das espécies sociais está vinculada à distinção entre o normal e o patológico Esta constituição obedece à seguinte regra começarseá por classificar as sociedades segundo o grau de composição que apresentam tomando como base a sociedade perfeitamente simples ou de segmento único no interior destas classes procederseá à distinção das diferentes variedades conforme se produz ou não uma coalescência completa dos segmentos iniciais Durkheim A sociedade de segmento único é a horda Os agregados formados pela repetição de hordas podem ser chamados de sociedade polissegmentárias simples A seguir conforme o grau de complexidade vêm as sociedades polissegmentárias simplesmente e duplamente compostas Exemplo destas últimas são as cidades Para Durkheim a sociedade não é uma simples soma de indivíduos pois o sistema formado pela associação destes representa uma realidade específica que tem as suas características próprias Sem dúvida que nada se pode produzir de coletivo sem que se manifestem consciências particulares mas esta condição necessária não é suficiente É necessário ainda que estas consciências se associem de uma certa maneira é desta combinação que resulta a vida social e por conseguinte é esta combinação que a explica Ao agregaremse ao penetraremse ao fundiremse as almas individuais dão origem a um ser psíquico por assim dizer mas que constitui uma individualidade psíquica de um estilo novo É portanto na natureza desta individualidade e não na das unidades componentes que se deve procurar as causas próximas e determinantes dos fatos que nela se produzem O grupo pensa sente e age de um modo muito diferente do que o fariam os seus membros caso estivessem isolados Portanto se se parte destes últimos não se compreenderá absolutamente nada do que se passa no grupo 1983 p 139 As sociedades ou as espécies sociais podem ser identificadas por duas formas distintas de relações sociais denominadas de solidariedade mecânica e solidariedade orgânica Essas duas formas de solidariedade estão vinculadas entre si de modo que o crescimento de uma implica o decréscimo da outra Diz Durkheim que existem em nós duas consciências uma contém os estados que são pessoais a cada um de nós e que nos caracterizam enquanto os estados que abrangem a outra são comuns a toda a sociedade Durkheim apud Rodrigues 1981 p 75 69 A solidariedade mecânica representa o tipo coletivo que se caracteriza pelo conjunto de crenças e de sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade p 74 Essa consciência coletiva ou comum expressa uma solidariedade sui generis que originada das semelhanças liga o indivíduo diretamente à sociedade de modo que objetos semelhantes produzem sempre efeitos semelhantes A rigor na solidariedade mecânica não existem indivíduos relativamente independentes da sociedade eles são a própria sociedade A solidariedade mecânica se expressa por meio do Direito Penal ou repressivo Isso quer dizer que os conceitos de crime e pena estão relacionados à consciência coletiva na medida em que a preservação das semelhanças é um processo vital para a reprodução da sociedade Para Durkheim os atos que ele o direito penal proíbe e qualifica como crimes são de dois tipos ou bem eles manifestam diretamente uma dessemelhança muito violenta contra o agente que os executou e o tipo coletivo ou então ofendem o órgão da consciência comum Tanto num caso como no outro a autoridade atingida pelo crime que o repele é a mesma ela é um produto das similitudes sociais as mais essenciais e tem por efeito manter a coesão social que resulta dessas similitudes É esta autoridade que o direito penal protege contra todo enfraquecimento exigindo ao mesmo tempo de cada um de nós um mínimo de semelhanças sem as quais o indivíduo seria um ameaça para a unidade do corpo social e nos impondo o respeito ao símbolo que exprime e resume essas semelhanças ao mesmo tempo que lhes garante p 76 A pena precisa ser compreendida sob a ótica da solidariedade mecânica Como reação passional que é ela não serve para recuperar os indivíduos culpados ou para intimidar outros indivíduos para que não cometam atos semelhantes Essa forma aparente da pena não pode esconder sua verdadeira função manter intacta a coesão social mediante a reprodução da consciência comum A solidariedade orgânica expressa relações sociais inteiramente diversas A presença de indivíduos com esferas particulares de ação portanto diferentes origina outra forma de solidariedade que pode ser caracterizada como um sistema de funções diferentes e especiais que unem relações definidas Para que essa solidariedade possa desenvolverse é necessário que a consciência individual não 70 esteja totalmente submetida à consciência comum possibilitando assim o desenvolvimento da divisão do trabalho o verdadeiro substrato social da solidariedade orgânica Nesse caso produzse uma relação de dependência recíproca entre as diversas funções que compõem o todo social De acordo com Durkheim aqui pois a individualidade do todo aumenta ao mesmo tempo em que as partes a sociedade se torna mais capaz de se mover em conjunto ao mesmo tempo que cada um de seus elementos tem mais movimentos próprios Esta solidariedade se assemelha àquela que se observa nos animais superiores Cada órgão com efeito tem sua fisionomia especial sua autonomia e por conseguinte a unidade do organismo é tanto maior quanto a individualização das partes seja mais acentuada p 8384 O direito que expressa a solidariedade orgânica não tem um caráter repressivo É o direito restitutivo ou contratual Direito Civil Comercial Processual Administrativo Constitucional cuja ação consiste apenas no restabelecimento do estado de coisas anterior na renovação das relações afetadas na sua forma normal tanto que o ato incriminado seja recambiado à força à norma de que se desviou quanto seja anulado isto é privado de todo o valor social p 70 A função do direito restitutivo é regular as diferenças sociais produzidas pela divisão do trabalho estabelecendo com clareza os seus respectivos lugares sociais A solidariedade orgânica mesmo produzindo uma totalidade social interdependente não elimina a possibilidade de conflitos ou desequilíbrios Durkheim indica como um dos grandes problemas da sociedade industrial a presença de situações de anomia isto é de ausência de regras capazes de regulamentar as relações entre os diferentes órgãos Na medida em que as sociedades se desenvolvem os mercados tornamse mais extensos os produtores e consumidores estão cada vez mais distantes as máquinas substituem os trabalhadores as relações entre patrões e empregados tornamse mais complexas e as crises econômicas ficam mais densas Essa situação de anomia só pode ser resolvida mediante uma nova regulamentação A anomia decorrente da divisão do trabalho é um processo social extremamente importante se se considerar que uma das características básicas da 71 sociedade moderna é a preponderância progressiva da solidariedade orgânica Afirma Durkheim tratase pois de uma lei histórica que a solidariedade mecânica que inicialmente é a única ou quase perde terreno progressivamente e que a solidariedade orgânica se torna pouco a pouco preponderante p 85 Essa lei histórica pode ser formulada de outra forma a divisão do trabalho varia na razão direta do volume e da densidade das sociedades e se ela progride de uma maneira contínua no decurso do desenvolvimento social é porque as sociedades se tornam regularmente mais densas e muito geralmente mais volumosas Durkheim 1984 p 42 A densidade social expressase pela concentração espacial das populações pela formação e desenvolvimento das cidades e pelo número e rapidez das vias de comunicação e de transmissão O volume referese ao tamanho das populações Em outras palavras a maior densidade e o maior volume implicam o crescimento das interações sociais e consequentemente o crescimento da divisão do trabalho Obviamente para que haja progresso da divisão do trabalho é necessário que tenha ocorrido o desaparecimento ou pelo menos em parte da sociedade segmentar Ainda que Durkheim tenha preconizado que dia virá em que toda a nossa organização social e política terá uma base exclusivamente profissional não se trata de uma indicação no sentido do desaparecimento da solidariedade mecânica e consequentemente do Direito Penal considerando que as duas formas de solidariedade se desenvolvem na razão inversa uma da outra Nesse sentido o que é possível afirmar é a existência de uma tendência à redução da extensão das semelhanças na vida social mas não a sua extinção O desenvolvimento da solidariedade orgânica e a possibilidade da anomia levam à formulação de um diagnóstico da sociedade industrial o estado de anomia jurídica e moral no qual se encontra a vida econômica atualmente Como nada limita a ação das forças econômicas que passaram a desempenhar o papel principal na sociedade moderna o confronto entre elas tornouse inevitável Este conflito permanente é a manifestação de um estado patológico em que o individualismo egoísta e as paixões humanas rompem o equilíbrio da vida social Vale lembrar que este diagnóstico foi elaborado ainda na última década do século 19 72 As consequências danosas produzidas pela sociedade industrial sobre os indivíduos não podem ser explicadas pela divisão do trabalho As críticas que a acusam de reduzir o indivíduo à condição de máquina são equivocadas porque seus autores não percebem que a divisão do trabalho é fonte de sociabilidade e não o contrário Nesse sentido de nada adiantaria dar aos trabalhadores além de conhecimentos técnicos uma cultura geral A crítica de Durkheim dirigese também aos economistas que reduziram a divisão do trabalho a um meio de aumentar o rendimento das forças sociais Compreender a verdadeira natureza da divisão do trabalho significa portanto considerar que os seus efeitos negativos não são uma imposição da sua natureza mas de circunstâncias anormais e excepcionais Conforme Durkheim para que a divisão do trabalho se desenvolva sem provocar tal desastrosa influência sobre a consciência humana não é preciso temperála pelo seu contrário basta que seja ela mesma que nada venha desnaturála de fora Porque normalmente o desempenho de cada função especial exige que o indivíduo não se feche estreitamente mas que se mantenha em relações constantes com as funções vizinhas tome consciência de suas necessidades de mudanças que ocorram etc A divisão do trabalho supõe que o trabalhador longe de ficar curvado sobre sua tarefa não perde de vista seus colaboradores mas age sobre eles e sofre sua ação Não é pois uma máquina que repete movimentos dos quais ele não percebe a direção mas ele sabe que eles tendem para algum lugar para um objetivo que ele concebe mais ou menos distintamente Ele sente que serve para alguma coisa Para isto não é necessário que ele abranja vastas regiões do horizonte social basta que ele perceba o suficiente para compreender que suas ações têm um fim fora delas mesmas 1984 p 101102 Esta situação de guerra social ou de anomia pode ser superada somente com o desenvolvimento de uma moral profissional ainda em estado rudimentar A regulamentação moral ou jurídica depende da existência de um grupo na qual se possa constituir o dito sistema de regras Esse grupo não pode ser o Estado porque a vida econômica constrói cada dia mais a sua autonomia em relação à instituição política O grupo que tem condições de promover essa regulamentação por conhecer bem a natureza e o funcionamento das profissões é a corporação ou o grupo 73 profissional que reúne e organiza todos os agentes de uma mesma indústria em um mesmo corpo É evidente que Durkheim não estava se referindo às corporações da Idade Média As corporações da sociedade moderna teriam a incumbência de organizar todos os membros da profissão dispersos num território determinado Além disso deveriam estabelecer relações com o Estado a quem caberia instituir os princípios gerais da legislação industrial Às corporações caberá a tarefa de diversificar essa legislação segundo as diferentes espécies de indústrias As corporações além das funções profissionais deverão incorporar outras atribuições como funções de assistência e educação Assim concebidas elas estão destinadas a se tornarem a base ou uma das bases essenciais de nossa organização política E conclui Durkheim apud Gianotti 1983 p 20 a crise da qual sofremos não tem uma única causa Para que ela cesse não é suficiente que uma regulamentação qualquer se estabeleça onde é necessária é preciso além do mais que ela seja o que deve ser quer dizer justa Imaginemos com efeito que esteja enfim realizada a condição primordial da justiça ideal suponhamos que os homens entrem na vida de um estado de perfeita igualdade econômica isto é que a riqueza tenha cessado completamente de ser hereditária Os problemas em meio aos quais nos debatemos não estariam resolvidos por isto Com efeito haverá sempre um aparelho econômico e diversos agentes que colaborarão para o seu funcionamento será preciso pois determinar seus direitos e seus deveres e isto para cada tipo de indústria Será preciso que em cada profissão se constitua um corpo de regras que fixe a quantidade de trabalho a justa remuneração dos diferentes funcionários seu dever frente aos outros e frente à comunidade etc Estarseá não menos que atualmente diante de uma tábua rasa Porque a riqueza não se transmitirá mais segundo os mesmos princípios de hoje o estado de anarquia não terá desaparecido pois ele não consiste apenas no fato de as coisas estarem aqui mais do que ali em tais mãos mais do que em outras mas em que a atividade da qual estas coisas são a ocasião ou instrumento não está regulamentada e ela não se regulamentará por encantamento assim que for útil se as forças necessárias para instituir esta regulamentação não forem previamente suscitadas e organizadas 74 MARX e ENGELS a Concepção Materialista da Sociedade e da História Devese a Karl Marx 18181883 e a Friedrich Engels 1820 1895 a elaboração de uma teoria crítica da sociedade moderna que em função da sua radicalidade transformouse no componente fundamental para a formação dos grandes movimentos políticos que povoaram o século 20 As principais revoluções desse século tiveram o materialismo histórico ou a ontologia do ser social como fundamento teórico e político tanto que a dissolução da União Soviética foi anunciada pelos seus opositores ocidentais como a derrota definitiva do pensamento de Marx e Engels e obviamente dos seus seguidores Para compreender qualquer teoria é preciso buscar os seus fundamentos e o contexto social em que eles estão sendo elaborados As reflexões de Marx e Engels ocorrem num momento histórico que se caracteriza pelo triunfo do capitalismo modo de produção que já havia completado seu aparecimento tanto do ponto de vista econômico como políticoideológico sessenta anos antes de 1848 Segundo Eric Hobsbawm os anos de 1789 a 1848 foram dominados por uma dupla revolução a Revolução Industrial iniciada e largamente confinada à Inglaterra e a transformação política associada e largamente confinada à França 1977 p 22 Dessa forma o capitalismo é ao mesmo tempo o contexto e o objeto das investigações de Marx e Engels O ponto de partida da reflexão marxiana é a consideração de que a condição primeira de toda história humana é naturalmente a existência de seres humanos vivos Marx Engels apud Ianni 1982 p 45 Ao estabelecer esse ponto de partida Marx e Engels se contrapõem a concepção idealista da História que afirma o primado da consciência em relação ao mundo sensível O homem não é uma consciência que coloca a si mesma no mundo segundo as diversas formulações do idealismo filosófico Descartes Kant Hegel e que desse modo depende de si própria para se desenvolver ela é o próprio mundo objetivo que se transforma em seu outro estabelecendo uma dualidade indissociável entre sujeito e objeto Ao considerarem os seres humanos vivos Marx e Engels afirmam a realidade 75 material dos homens como parte fundamental da História A produção da vida material não é menos importante do que a produção da consciência É preciso compreendêlas na sua interação e independência uma da outra Esse é o sentido da afirmação de que não é a consciência que determina a vida mas a vida que determina a consciência ou então a consciência jamais pode ser outra coisa que o Ser consciente e o Ser dos homens é o seu processo real de vida As idéias as representações e a consciência são criações humanas O que o materialismo histórico faz é afirmar a relação desse processo criativo com a atividade material e ao comércio material dos homens Vale lembrar a primeira tese marxiana sobre Feuerbach o defeito fundamental de todo o materialismo anterior inclusive o de Feuerbach está em que só concebe o objeto a realidade o ato sensorial sob a forma de objeto objekt ou da percepção mas não como atividade sensorial humana como prática não de modo subjetivo Daí decorre que o lado ativo fosse desenvolvido pelo idealismo por oposição ao materialismo mas só de um modo abstrato já que o idealismo naturalmente não conhece a atividade real sensorial como tal Feuerbach quer objeto sensíveis realmente distintos dos objetos conceituais mas também não concebe a atividade humana como uma atividade objetiva Marx apud Ianni 1982 p 178179 Assim constituise a categoria da práxis como categoria essencialmente humana Isso quer dizer que toda a atividade especificamente humana tem um caráter teleológico isto é ela é produto de escolhas Obviamente os homens não escolhem como querem pois precisam considerar as circunstâncias ou as situações concretas Isso no entanto não impede a afirmação da tese de que são os homens que fazem sua própria história Nem deuses nem determinismo natural os homens são seus próprios criadores A afirmação da existência como um dado objetivo do ser humano implica considerar que é inerente à realidade humana a produção da sua própria existência por meio da práxis A práxis tem como referência ontológica o trabalho que estabelece o relacionamento do homem com a natureza no sentido da realização consciente das suas necessidades materiais É isso que diferencia o homem das formas orgânicas e inorgâncias do ser Como adverte Lukács o trabalho deve ser entendido como a 76 protoforma do ser social O trabalho como ato teleológico determina a especificidade do ser social no sentido de que ele antecipa idealmente o resultado do trabalho O trabalho como atividade humana autogovernada evidenciase pela capacidade do homem em imprimir nos objetos da natureza a forma que melhor atender as suas necessidades Esse processo não existe nos animais porque mesmo que eles produzam a própria existência o fazem de modo espontâneo não criativo O trabalho é também o fundamento da sociabilidade humana ou da práxis social Quer dizer que o ato teleológico do trabalho efetivado pela multiplicidade dos indivíduos é também fonte primária das interações humanas Ora a produção da existência como ato necessário do ser social portanto ineliminável revela a continuidade como processo inerente ao ser social É o que se denomina de historicidade Em outras palavras o ser social ao produzir sua existência produz uma história ou seja uma sucessão de atos humanos temporalmente situados As evidências empíricas revelam que o movimento do ser social tende à complexidade colocando assim uma questão nova a reprodução social Colocar o trabalho é como elemento fundante do ser social não significa deduzir dele as demais categorias da reprodução social Há um texto de Marx talvez o mais citado em que ele afirma que na produção social da própria existência os homens entram em relações determinadas necessárias independentes de sua vontade estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social política e intelectual Não é a consciência dos homens que determina a realidade ao contrário é a realidade social que determina sua consciência Marx apud Ianni 1982 p 8283 Essa afirmação de Marx tem se prestado a muitas interpretações muitas delas responsáveis pela compreensão mecânica sem premeditação da complexa relação entre base e superestrutura Por certo o próprio texto de Marx se presta para isso como qualquer texto que se proponha à formulação sintética de uma idéia A 77 obra de Marx contudo é uma negação permanente a qualquer tipo de reducionismo analítico Uma coisa é afirmar o vínculo necessário entre base e superestrutura como sugere o texto outra é determinar as relações entre ambas tendo em vista a criação da superestrutura A superestrutura é uma instância da vida social em que os desafios da reprodução social se colocam de modo complexo O desenvolvimento histórico tem como consequência o recuo dos limites naturais do homem que implica em que elementos essencialmente sociais passem a determinar a história humana Assim como a divisão do trabalho tornase mais complexa em função do desenvolvimento das forças produtivas também a criação da superestrutura tornase um processo mais complexo exatamente para dar conta da multiplicidade dos problemas postos pela reprodução do ser social O processo de constituição da superestrutura da sociedade burguesa tomado como exemplo torna mais clara a afirmação anterior A constituição do Estado e da ordem jurídica burguesa resultou de inúmeros embates entre teorias de tal modo que em determinada conjuntura uma se tornava hegemônica mas nunca em estado puro Atualmente a idéia e a prática da regulação estatal da vida social perderam terreno para a desregulação e para o livre mercado certamente para administrar a nova divisão do trabalho informacional Para que essas idéias se transformassem em idéias dominantes entretanto elas tiveram de se defrontar e vencer outras idéias não apenas aquelas que expressam os interesses do capital mas também as idéias das classes e movimentos subalternos Nesse plano de confronto ideológico parece que a dimensão ontológica do trabalho desaparece Na verdade não é isso que ocorre é a sua complexificação o aparecer sob outras formas Talvez uma outra afirmação de Marx ajude a esclarecer essa questão as relações jurídicas bem como as formas do Estado não podem ser explicadas por si mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito humano estas relações têm ao contrário suas raízes nas condições materiais de existência em seu conjunto condições estas que Hegel a exemplo dos ingleses e dos franceses do século XVIII compreendia sob o nome de sociedade civil Marx apud Ianni 1982 p 82 78 O Estado e o Direito têm suas raízes na sociedade civil mas não podem ser dela deduzidos Se os considerássemos nessa forma de dedução a simples investigação da sociedade civil seria suficiente para decifrar os enigmas da história humana Sabese no entanto que o conhecimento das raízes não é suficiente para identificar a planta toda Assim também é o ato ontológico de criação da base e da superestrutura como processo que estabelece vínculos necessários e influências recíprocas entre elas Outra dimensão fundante do materialismo histórico de Marx e Engels é a dialética como método de compreensão da realidade mas sobretudo como seu modo de existir A realidade natural e social é dialética porque está fundada em três grandes princípios 1 a transformação da quantidade em qualidade e viceversa 2 a interpenetração dos contrários e 3 a negação da negação O primeiro princípio refere se ao vínculo entre a acumulação de quantidades e às mudanças qualitativas de modo que o salto qualitativo não ocorre sem que haja uma operação quantitativa Por exemplo num determinado país a passagem da qualidade subdesenvolvimento para a qualidade desenvolvimento requer a acumulação e a distribuição de determinadas quantidades de riqueza medidas por meio dos vários indicadores socioeconômicos O segundo princípio evidencia que os diversos aspectos da realidade não existem de forma isolada mas conectados uns aos outros estabelecendose uma interdependência dinâmica entre eles A interpenetração dos contrários indica que os diferentes aspectos da realidade são ao mesmo tempo complementares e contraditórios compondo uma totalidade concreta Esta situação de unidade e luta de contrários pode ser exemplificada por meio do capital e do trabalho assalariado Ambos não existem de forma isolada um não existe sem o outro mas ao mesmo tempo estabelecem relações de oposição pois existem como contrários O terceiro princípio a negação da negação diz respeito ao modo como se resolvem as contradições Se a realidade existe como afirmação tese ela gera o seu contrário a negação antítese Essa dualidade contraditória é superada por uma síntese isto é também uma negação que não significa um retorno à afirmação inicial mas expressa uma situação nova Por exemplo o proletariado é a negação da 79 burguesia já os produtores livres associados da sociedade comunista representam uma negação do proletariado e consequentemente da sociedade burguesa Cabe sublinhar que a síntese não é a conciliação entre os opostos mas a superação dos mesmos processo que tem início com a primeira negação no exemplo o proletariado A dialética como forma de existência da realidade e do pensamento se confunde com o movimento Por isso quando se afirma que a realidade é dialética está se dizendo que a realidade é movimento que se expressa nos princípios discutidos anteriormente Além disso essa realidade em movimento é uma totalidade concreta como esclarece Marx uma síntese de múltiplas determinações isto é unidade da diversidade Do ponto de vista metodológico a realidade só é inteligível se considerada como totalidade constituída como uma unidade de múltiplas contradições em permanente movimento de afirmação e de negação Como vimos o materialismo histórico considera o homem como um ser históricosocial que se constitui como tal por meio do trabalho Na verdade esse agir humano se concretiza em instituições sociais historicamente determinadas sejam elas referentes à organização do trabalho sejam elas voltadas à organização político jurídica e do mundo simbólico Estas constatações não foram elaboradas a priori para servirem de fio condutor para as investigações desenvolvidas por Marx e Engels Ao contrário foi mediante o esforço para compreender a estrutura e o funcionamento da sociedade burguesa que Marx e Engels chegaram a tais conclusões Esta sociedade como a organização histórica mais desenvolvida permite a compreensão das estruturas e relações constitutivas das sociedades menos desenvolvidas não porque sejam idênticas mas porque cada uma representa um estágio particular da história da humanidade Todas as formas econômicas de poder e de cultura são realidades históricas e transitórias Em O Capital Marx analisa em profundidade a gênese e o desenvolvimento das categorias que estruturam a sociedade burguesa ou capitalista bem como as possibilidades de superação De imediato é importante destacar uma idéia central que perpassa a compreensão marxiana do capitalismo o capital é a potência econômica da sociedade burguesa domina tudo A questão é então investigar a origem do capital as suas determinações e as contradições que o envolvem 80 O modo de produção do capital só pode existir quando se generaliza a produção de mercadorias Isso quer dizer que todos os bens produzidos pelo trabalho somente realizam sua utilidade que é satisfazer necessidades humanas mediante a troca Esses bens não são apropriados e consumidos segundo as necessidades mas por meio da troca ou seja se os homens não possuírem mercadorias estão excluídos do processo de troca e por conseguinte impedidos de satisfazerem suas necessidades vitais O processo de produção da existência resumese portanto a um processo de produção de mercadorias Para a instituição do capital duas outras condições são exigidas a existência de homens livres sem qualquer vínculo com os meios de produção e homens que desenvolveram uma acumulação originária dinheiro capaz de se apropriar dos componentes fundamentais para a produção de mercadorias Tratase dos meios de produção instrumentos de trabalho e matériasprimas e da força de trabalho para operar os referidos meios de produção O dinheiro só age como capital se ele se transforma em meios de produção e força de trabalho Observa Marx O capital também é uma relação social de produção É uma relação burguesa de produção relação de produção da sociedade burguesa Os meios de subsistência os instrumentos de trabalho as matériasprimas de que se compõe o capital não foram produzidos e acumulados em condições sociais dadas de conformidade com relações determinadas Não são eles empregados para uma nova produção em condições sociais dadas de acordo com relações sociais determinadas E não é precisamente este caráter social determinado que transforma os produtos destinados à nova produção em capital O capital não consiste apenas de meios de subsistência de instrumentos de trabalho e de matériaprima não se forma somente de produtos materiais compõe se igualmente de valores de troca Todos os produtos de que se constitui são mercadorias O capital não é portanto somente uma soma de produtos materiais é também uma soma de mercadorias de valores de troca de grandezas sociais Marx apud Ianni 1982 p 96 O capital pressupõe a formação de duas classes sociais opostas e complementares a burguesia e o proletariado São sujeitos iguais como proprietários 81 de mercadorias mas diferentes quanto aos objetivos com que atuam no processo de produção Os burgueses têm interesse em produzir para obter lucros o proletariado vende a sua força de trabalho para a obtenção dos meios de subsistência para a manutenção da própria vida Desse modo o processo de produção que ocorre durante uma jornada de trabalho determinada apresenta duas dimensões salários e lucros O salário referese ao tempo necessário para a produção da força de trabalho do qual constam os tempos necessários para a produção de todos os meios de subsistência para a manutenção da vida dos trabalhadores Como explica Marx o valor da força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários para a manutenção do trabalhador Este valor é obviamente determinado pelo custo social médio dos meios de subsistência necessários cuja referência é o mínimo vital a manutenção física dos trabalhadores A conceituação do lucro é um aspecto fundamental da teoria de Marx As idéias desenvolvidas pela economia política tradicional de que o lucro se refere à remuneração do capitalista ou à retribuição do risco inerente ao investimento são criticadas por Marx O lucro fundamentase no valor excedente produzido pela força de trabalho que é apropriado pelo proprietário dos meios de produção A força de trabalho é remunerada pelo seu valor no entanto ela produz um valor maior do que o seu próprio valor que corresponde a uma outra parcela da jornada de trabalho Esse excedente que Marx denomina de maisvalia se produz durante a jornada institucionalizada de trabalho Tratase de um trabalho não pago de modo que a origem do capital fundamentase na apropriação privada do trabalho excedente O processo social de produção capitalista é ao mesmo tempo um processo de reprodução social Se o capitalista utiliza a maisvalia produzida para consumo trata se da reprodução simples Se ele emprega apenas uma parte para o consumo e transforma o restante em dinheiro temse a reprodução ampliada ou a acumulação do capital Neste caso tratase de um processo de conversão da maisvalia em meios de produção e força de trabalho no sentido da ampliação da produção de mercadorias A acumulação capitalista ocorre numa situação de concorrência entre os diversos capitalistas individuais Isto impõe a necessidade dos capitalistas aumentarem a produção da maisvalia O aumento que decorre do prolongamento da 82 jornada de trabalho consiste na maisvaliaabsoluta A produção da maisvalia relativa significa o aumento do trabalho excedente mediante a diminuição do trabalho necessário isto é reduzse valor tempo de trabalho do salário mediante o desenvolvimento das forças produtivas e da organização do trabalho A maisvalia relativa leva à subordinação real do trabalho ao capital O desenvolvimento da produção da maisvalia relativa faz aparecer uma tendência à queda da taxa de lucro que gera uma redução da maisvalia produzida em relação ao capital total Para entender o funcionamento desse processo é necessário acrescentar à análise os conceitos de capital constante o trabalho morto contido nos meios de produção e capital variável o trabalho vivo a força de trabalho A relação entre capital constante e variável é denominada por Marx de composição orgânica do capital A busca da maisvalia relativa produz um aumento da composição orgânica do capital isto é aumenta o valor do capital constante em relação ao capital variável Se o primeiro apenas transfere valor e este último é que produz a maisvalia a sua substituição pelas máquinas tende a retirar do processo de produção trabalho vivo Isso significa que o aumento da composição orgânica do capital tem como consequência a redução da maisvalia ou da taxa de lucro No âmbito do próprio processo de produção capitalista formamse na verdade são criados fatores contrários à queda tendencial da taxa de lucro o aumento do grau de exploração do trabalho assalariado a redução dos salários a baixa de preço dos elementos do capital constante a superpopulação relativa o comércio exterior e o aumento do capital em ações A presença desses fatores não evita que em determinados momentos a queda da taxa de lucro se faça sentir com toda a intensidade sobre a produção capitalista É o momento em que se configura uma situação de crise em que surgem obstáculos que paralisam o processo de acumulação do capital O resultado mais visível é a falência das empresas capitalistas mais frágeis e do aumento do desemprego Como afirma Engels nas crises estoura em explosões violentas a contradição entre a produção social e a apropriação capitalista A circulação da mercadoria fica por um momento paralisada O meio de circulação o dinheiro convertese num obstáculo para a circulação todas as leis da 83 produção e da circulação das mercadorias se viram ao contrário O conflito econômico atinge o seu ponto culminante o modo de produção rebelase contra o modo de distribuição sd p 66 É inegável no entanto que a crise cria condições para a retomada da acumulação em novas bases elevando o patamar de concentração e de centralização do capital Este é portanto o centro de gravidade da produção capitalista a acumulação requer o aumento continuado da maisvalia A efetividade desse processo gera as condições para o surgimento em determinados momentos da crise em que se manifesta a contradição fundamental do capitalismo a apropriação privada e a produção social Como é o trabalho assalariado que produz o capital para que este se reproduza impõese a necessidade de expropriação permanente dos meios de produção de uma parte da sociedade Isso quer dizer que a existência do capital requer a presença permanente de uma classe social destituída da propriedade dos meios de produção O fundamento da luta de classes no capitalismo é a disputa pela maisvalia A reprodução do capital não se resume à manutenção das relações entre capital e trabalho assalariado como condição para a produção da maisvalia Embora seja este o fundamento da reprodução da sociedade capitalista tratase de um processo bem mais complexo Tal processo não seria possível sem a presença do Estado e da ideologia ou de uma cultura A classe que detém o poder material organiza a dominação no plano das idéias as idéias dominantes de uma época sempre foram apenas as idéias da classe dominante e obviamente no plano político jurídico O Estado moderno embora tenha promovido a separação entre a esfera privada e a esfera pública podendo assim apresentarse como expressão de uma vontade geral é uma instituição de classe Esta idéia está presente no conjunto da obra de Marx e Engels Por exemplo no Manifesto do Partido Comunista o poder do Estado moderno nada mais é do que um comitê para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa Marx Engels 1996 p 68 A ação das idéias dominantes e do Estado por meio da regulação e da coerção física não elimina a produção da maisvalia como núcleo gerador do conflito da 84 sociedade capitalista Na verdade a construção da superestrutura é uma forma de reforçar a reprodução dos pressupostos objetivos da acumulação capitalista a mercadoria a propriedade privada o trabalho assalariado e o lucro Estas categorias que expressam interesses particulares revestemse de um caráter universal Esse conflito mais dia menos dia também terá sua expressão no plano políticojurídico com a presença efetiva nesse plano dos sindicatos e sobretudo dos partidos operários Esta forma de compreensão da sociedade burguesa indica também as condições para sua superação Por mais avanços que possam ocorrer inclusive ampliando os direitos dos trabalhadores o capitalismo é incapaz de promover a emancipação do homem A exposição feita anteriormente contém os argumentos estabelecidos por Marx e Engels que justificam essa impossibilidade Daí que o caminho para a emancipação humana passa pela ruptura da sociedade burguesa e das suas instituições fundamentais Essa ruptura será obra do proletariado O desenvolvimento e a globalização da burguesia significam igual situação para o proletariado de modo que estas classes estão indissoluvelmente ligadas desde o nascimento do capitalismo e assim devem permanecer até o seu fim No Manifesto do Partido Comunista Marx e Engels expõem com clareza o papel do proletariado Afirmam que todas as classes que no passado conquistaram o poder procuraram consolidar a posição já adquirida submetendo toda a sociedade às suas condições de apropriação Os proletários não podem se apoderar das forças produtivas sociais a não ser suprimindo o modo de apropriação existente até hoje 1996 p 76 Como o proletariado terá de se apropriar das forças produtivas sociais ou dos meios de produção amplamente socializados pela sociedade burguesa ele não poderá pela própria lógica do processo construir um novo sistema de dominação A tomada do poder político pelo proletariado é uma condição necessária para a superação do capitalismo mas como o poder político repousa numa relação de classes uma vez que estas são destruídas o poder político tornase supérfluo podendo então ser eliminado da vida social É interessante reproduzir uma afirmação feita por Marx contida numa carta 85 escrita a um amigo J Weydemeyer no que a mim se refere não me cabe o mérito de haver descoberto a existência das classes na sociedade moderna nem a luta entre elas Muito antes de mim alguns historiadores burgueses já haviam exposto o desenvolvimento histórico dessa luta de classes e alguns economistas burgueses a sua anatomia econômica O que eu trouxe de novo foi a demonstração de que 1 a existência das classes só se liga a determinadas fases históricas de desenvolvimento da produção 2 a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado 3 esta mesma ditadura não é por si mais que a transição para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes Marx apud Ianni 1982 p 99 As classes portanto são realidades históricas transitórias As classes sociais não estavam presentes na organização social das sociedades primitivas Elas se constituem com o surgimento da propriedade privada dos meios de produção e se modificam na mesma medida em que se transformam as condições objetivas da produção social da existência humana O modo de produção capitalista representa a última forma de sociedade cujas relações sociais são constituídas por classes sociais A ascensão do proletariado ao poder inaugura uma nova era na história humana A fase de transição comandada pelo proletariado é o início do processo de abolição das classes sociais e do Estado De acordo com o Manifesto se na luta contra a burguesia o proletariado é forçado a organizarse como classe se mediante uma revolução tornase a classe dominante e como classe dominante suprime violentamente as antigas relações de produção então suprime também juntamente com essas relações de produção as condições de existência dos antagonismos de classe as classes em geral e com isso sua própria dominação de classe Marx Engels 1996 p 87 A sociedade comunista é genericamente definida por Marx e Engels como a sociedade sem classes e sem Estado A abolição das classes ocorre mediante a socialização dos meios de produção Ainda segundo o Manifesto o que caracteriza o comunismo não é a abolição da propriedade em geral mas a abolição da propriedade burguesa p 80 E conclui o comunismo não priva ninguém do poder de se apropriar dos produtos sociais o que faz é eliminar o poder de subjugar o 86 trabalho alheio por meio dessa apropriação p 82 Assim a propriedade perde o seu caráter de classe pela abolição da apropriação privada baseada nos tempos de trabalho necessário e excedente Instituise uma forma de apropriação baseada nas necessidades humanas de cada um segundo suas capacidades a cada um segundo suas necessidades Este processo repercute também sobre o Estado O raciocínio feito por Marx e Engels é relativamente simples Se o Estado está necessariamente vinculado à existência das classes sociais a abolição destas implica a abolição do próprio Estado Nesse sentido Engels escreve o proletariado toma nas suas mãos o Poder do Estado e começa por converter os meios de produção em propriedade do Estado Mas nesse mesmo ato destróise a si próprio como proletariado destruindo toda a diferença e todo o antagonismo de classes e com isso o Estado como tal O primeiro ato em que o Estado se manifesta efetivamente em nome de toda a sociedade é ao mesmo tempo o seu último ato independente como Estado A intervenção da autoridade do Estado nas relações sociais tornarseá supérflua num campo após outro da vida social e cessará por si mesma O governo sobre as pessoas é substituído pela administração das coisas e pela direção dos processos de produção O Estado não será abolido extinguese sd p 7273 Esta é a utopia possível criada por Marx e Engels Esse projeto que acalentou tantos sonhos propôsse a explicar as relações estabelecidas pelos homens entre si colocando com radicalidade a questão da emancipação humana como realização da liberdade Não há dúvidas de que ele continua vivo e instigandonos à tarefa de construir um novo mundo para os homens MAX WEBER a Racionalização da Civilização Ocidental Max Weber é o fundador de um modo de pensar a vida social profundamente diverso do positivismo e do marxismo A construção do seu método de investigação ocorre num contexto intelectual marcado pelo debate sobre o estatuto das Ciências Humanas ou das ciências do espírito Reconhecendo a autonomia das Ciências Humanas em relação às ciências da natureza Weber incorpora deste debate um conceito básico para a investigação das ações humanas o conceito de compreensão 87 O problema da compreensão é inteiramente diferente da explicação naturalística que procura captar as leis naturais objetivas O objetivo da compreensão é captar o sentido subjetivo presente nas ações humanas De acordo com Weber sentido é o sentido subjetivamente visado a na realidade a num caso historicamente dado por um agente ou b em média e aproximadamente numa quantidade dada de casos pelos agentes ou b num tipo puro conceitualmente construído pelo agente ou pelos agentes concebidos como típicos Não se trata de modo algum de um sentido objetivamente correto ou de um sentido verdadeiro obtido por indagação metafísica Nisso reside a diferença entre as ciências empíricas da ação a Sociologia e a História e todas as ciências dogmáticas a Jurisprudência a Lógica a Ética e a Estética que pretendem investigar em seus objetos o sentido correto e válido 1994 p 4 A especificidade da compreensão weberiana que possibilita a fundação da Sociologia compreensiva não elimina a causalidade Não há contradição em estabelecer uma explicação compreensiva na medida em que esta se refere às relações causais significativas ou de sentido Essa posição que não é outra coisa senão o estabelecimento do controle da investigação pelos procedimentos usuais do trabalho científico visa a conferir maior validade para o método compreensivo A Sociologia compreensiva está centrada no indivíduo Ele é o fundamento da ação social e das interações sociais A compreensão segundo Weber considera o indivíduo isolado e sua atividade como a unidade de base diria em seu átomo se me permitem utilizar de passagem esta comparação imprudente A função de que se revestem outras maneiras de ver as coisas pode muito bem fazer com que o indivíduo seja eventualmente tratado como um complexo de processos psíquicos químicos ou outros Do ponto de vista da sociologia entretanto tudo o que fica aquém do limiar de um comportamento relativo a objetos exteriores ou íntimos suscetível de ser interpretado significativamente só é levado em conta nas mesmas condições dos acontecimentos da natureza estranha à significação isto é como condições ou objetos subjetivos da relatividade desse comportamento Pela mesma razão o indivíduo forma o limite superior pois ele é o único portador de comportamento significativo Nenhum modo divergente de exprimilo poderia dissimulálo Weber 88 apud Freund 1987 p 8485 Em outros termos o indivíduo como sujeito capaz de empreender ações significativas dotadas de sentido deve ser colocado como base da Sociologia compreensiva pois é por meio dele que os conceitos coletivos se tornam inteligíveis Outro aspecto fundamental do método compreensivo é a construção do tipo ideal puro Consiste numa elaboração racional em que o cientista seleciona aspectos considerados relevantes para a compreensão da realidade social O tipo ideal não se confunde com a realidade é apenas um instrumento de aproximação uma espécie de medida que permite a inteligibilidade da realidade Conforme afirma Weber obtémse o tipo ideal acentuando unilateralmente um ou vários pontos de vista e encadeando uma multidão de fenômenos isolados difusos e discretos que se encontram ora em grande número ora em pequeno número até o mínimo possível que se ordenam segundo os anteriores pontos de vista escolhidos unilateralmente para formarem um quadro de pensamento homogêneo p 48 Na construção do tipo ideal colocase a questão dos valores do cientista o que significa que se pode construir uma multiplicidade de tipos ideais sem que se possa chegar a uma conclusão sobre o correto ou o verdadeiro Também não é esta a função do tipo ideal no processo do conhecimento A pesquisa em si no entanto exige rigor científico e neutralidade axiológica O cientista não pode confundirse com o homem de ação Pode apenas uma vez fixados os objetivos a serem alcançados sugerir os meios mais adequados para atingir os objetivos indicar as possíveis consequências da ação empreendida e ajudálo a compreender melhor a importância da ação proposta Em uma palavra não é possível por meio da Ciência definir os fins a serem alcançados na medida em que estes são fundamentados em valores A tarefa do cientista social é compreender as estruturas da sociedade e não assumir a postura de reformador social ou definir qual a sociedade melhor O mundo é constituído por uma infinidade de pontos de vista e de valores que se chocam entre si de modo que não é possível superar esse antagonismo dos valores como advogam certas filosofias da história Essas diferenças que animam as ações humanas notadamente as ações determinadas pela convicção produzem muitas vezes resultados contrários às intenções Assim sendo a dificuldade ou 89 mesmo a despreocupação em prever as consequências associadas à pluralidade dos valores e dos fins últimos revelam a irracionalidade ética do mundo Em certo sentido essa insuperável pluralidade de valores pode ser vista também como uma forma de afirmação da liberdade humana É importante sublinhar que a liberdade não é produto nem produtora do irracionalismo do mundo A tarefa da ciência social é compreender a ação social entendida como o ato humano dotado de sentido para o outro Nem todos os atos humanos podem ser qualificados como ação social Uma ação que se refere a uma expectativa em relação a objetos materiais à oração solitária de um indivíduo à atividade econômica individual são exemplos de ações humanas que não têm um sentido social Para Weber a ação social como toda a ação pode ser determinada 1 de modo racional referente a fins por expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo exterior e de outras pessoas utilizando essas expectativas como condições ou meios para alcançar fins próprios ponderados e perseguidos racionalmente como sucesso 2 de modo racional referente a valores pela crença consciente no valor ético estético religioso ou qualquer que seja sua interpretação absoluto e inerente a determinado comportamento como tal independente do resultado 3 de modo afetivo especialmente emocional por afetos ou estados emocionais atuais 4 de modo tradicional por costume arraigado 1994 p 15 A ação racional referente a valores é aquela em que seu autor age a serviço da convicção tendo em vista o dever a dignidade a beleza as diretivas religiosas a importância de uma causa É um tipo de ação que ocorre segundo mandamentos ou exigências que o agente acredita serem dirigidas a ele desconsiderando as consequências previsíveis Este tipo de ação é irracional considerando a ação referente a fins tanto mais quanto os valores são colocados de forma absoluta É o que Weber denomina também de ética da convicção uma ética absoluta do tudo ou nada A ação racional referente a fins orientase pela definição e avaliação dos fins dos meios e das consequências previsíveis Essa modalidade de ação é também 90 denominada de ética da responsabilidade Segundo Weber a decisão entre fins e consequências concorrentes e incompatíveis por sua vez pode ser orientada racionalmente com referência a valores nesse caso a ação só é racional com referência a fins no que se refere aos meios Ou também o agente sem orientação racional com referência a valores na forma de mandamentos ou exigências pode simplesmente aceitar os fins concorrentes e incompatíveis como necessidades subjetivamente dadas e colocálos numa escala segundo sua urgência conscientemente ponderada orientando sua ação por essa escala de modo que as necessidades possam ser satisfeitas nessa ordem estabelecida princípio da utilidade marginal A orientação racional referente a valores pode portanto estar em relações muito diversas com a orientação racional referente a fins p 16 A ação referente a fins concebida em termos absolutos é essencialmente um casolimite construído As diversas modalidades de ação social são construções de tipos puros Na realidade é pouco frequente que os indivíduos desenvolvam ações exclusivamente em uma ou outra forma Isso não significa que determinadas formas de ação social não sejam características de determinadas sociedades É caso por exemplo da sociedade ocidental que para Weber caracterizase pela presença da racionalidade referente a fins em todas as esferas da vida social O homem ocidental está cada vez mais submetido a um processo de racionalização que tem suas origens no desenvolvimento da Ciência e da diferenciação técnica considerando a busca da eficácia e do rendimento A esse processo de racionalização Weber designou também como desencantamento do mundo ou seja a perda do sentido mágico ou sagrado do mundo O grande esforço intelectual de Weber foi no sentido de responder à indagação sobre a singularidade da civilização ocidental ou seja qual a combinação de fatores a que se pode atribuir o fato de na Civilização Ocidental e somente na Civilização Ocidental haverem aparecido fenômenos culturais dotados como queremos crer de um desenvolvimento universal em seu valor e significado 1997 p 1 A resposta dada a esta questão como vimos é o processo de racionalização que invade todas as esferas da vida ocidental A Ciência as artes a educação o 91 Direito a administração a política e a economia são práticas comandadas pela técnica e pelo cálculo racional o mesmo ocorrendo com a força mais significativa de nossa época o Capitalismo Weber 1997 p 4 É claro que em outras civilizações a racionalização também está presente no entanto ela ficou restrita a certa quantidade de atos incapaz de expandirse para o conjunto da vida social No Ocidente a racionalização se apresenta como uma intelectualização progressiva da vida despoja o mundo de seus encantos e de sua poesia a intelectualização é desencanto Em suma o mundo se torna cada vez mais a obra artificial do homem que o governa quase como se comanda uma máquina Não há pois motivo de espanto ante o impulso formidável da técnica e de seu corolário a especialização graças a uma divisão e uma subdivisão cada vez mais avançadas do trabalho Freund 1987 p 107 Não é objetivo dessa exposição do pensamento de Weber analisar cada uma das expressões ou racionalidades da vida social Cabe ressaltar porém uma questão metodológica importante Para Weber não é adequado estabelecer uma relação causal única e universal entre os fenômenos sociais Tais relações não são dotadas de um caráter necessário mas apenas probabilístico Este aspecto pode ser constatado na sua definição de relação social Assegura Por relação social entendemos o comportamento reciprocamente referido quanto a seu conteúdo de sentido por uma pluralidade de agentes e que se orienta por essa referência A relação social consiste portanto completa e exclusivamente na probabilidade de que se aja socialmente numa forma indicável pelo sentido não importando por enquanto em que se baseia essa probabilidade Weber 1994 p 16 Esta concepção é perfeitamente compreensível pois as ações sociais não são realidades objetivas mas subjetivamente determinadas pelo sentido A ação social e consequentemente a relação social persistem apenas enquanto os agentes lhe atribuírem sentido Um conceito importante da Sociologia compreensiva é o conceito de dominação legítima Enquanto o poder significa a probabilidade de impor a própria vontade numa relação social a dominação referese à probabilidade de conseguir obediência a uma ordem determinada A relação entre mando e obediência está na 92 base do conceito de legitimidade cujo sentido atribuído a essa relação permite conceber formas diferentes de dominação legítima legal racional tradicional carismática As três formas de dominação também constituem tipos puros porém na realidade elas podem coexistir Segundo Weber há três tipos puros de dominação legítima A vigência de sua legitimidade pode ser primordialmente 1 de caráter racional baseada na crença na legitimidade das ordens estatuídas e do direito de mando daqueles que em virtude dessas ordens estão nomeados para exercer a dominação dominação legal ou 2 de caráter tradicional baseada na crença cotidiana na santidade das tradições vigentes desde sempre e na legitimidade daqueles que em virtude dessas tradições representam a autoridade dominação tradicional ou por fim 3 de caráter carismático baseada na veneração extracotidiana da santidade do poder heróico ou do caráter exemplar de uma pessoa e das ordens por esta reveladas ou criadas dominação carismática No caso da dominação baseada em estatutos obedecese à ordem impessoal objetiva e legalmente estatuída e aos superiores por ela determinados em virtude da legalidade formal das suas disposições e dentro do âmbito de vigência destas No caso da dominação tradicional obedecese à pessoa do senhor nomeada pela tradição e vinculada a esta dentro do âmbito de vigência dela em virtude de devoção aos hábitos costumeiros No caso da dominação carismática obedecese ao líder carismaticamente qualificado como tal em virtude da confiança pessoal em revelação heroísmo ou exemplaridade dentro do âmbito da crença nesse carisma Weber 1994 p 141 A dominação legal racional é uma característica da sociedade moderna ocidental Entre os processos que a constituem está o desenvolvimento da racionalidade legal ou seja do Direito moderno que ocupa lugar central nessa forma de dominação Na verdade os homens obedecem a regras abstratas universais e impessoais que são em última instância estabelecidas racionalmente pelo debate público Nesse caso é a ordem jurídica que institui o Estado e não o contrário que detém o monopólio da coação física por parte do quadro administrativo burocracia num determinado território A burocracia se constitui por processos impessoais desde 93 o seu recrutamento até o desempenho das suas funções A dominação tradicional pode ser exemplificada pelo patrimonialismo característica das monarquias européias em que a autoridade é exercida por uma pessoa rei sendo a obediência uma relação estabelecida com esta pessoa Da mesma forma as pessoas que estão próximas ao soberano são servidores recrutados preferencialmente entre os senhores feudais sem que se estabeleça um critério de competência e especialização A personalização é a marca da administração patrimonial Não há como na dominação legal uma separação nítida entre o público e o privado A dominação carismática é exemplificada por meio das figuras do demagogo do profeta do ditador social do herói militar ou do revolucionário Os homens se entregam à obediência a uma pessoa que se acredita predestinada a realizar uma missão A obediência expressa uma relação emocional com os discípulos ou apóstolos baseada na fé Os limites de ação são estabelecidos pela própria autoridade considerando as exigências da sua vocação A dominação carismática é por natureza instável tendo de se renovar continuamente Ela é ao mesmo tempo criação e destruição É inadequado conceber a ação do direito nessa forma de dominação na medida em que ela não reconhece as instituições os regulamentos e os costumes O que vale é a palavra do chefe e esta muda conforme mudam as circunstâncias Cabem ainda dois comentários Um sobre o capitalismo outro sobre o conceito de classe social Para Weber o capitalismo é uma forma de economia que atingiu seu máximo desenvolvimento na sociedade ocidental sendo uma das formas de racionalidade predominante nesta sociedade Há uma multiplicidade de causas que promoveram o desenvolvimento da racionalidade capitalista entre elas estão a ciência as técnicas a divisão do trabalho o Direito moderno e a ética protestante Em relação a esta última as suas análises são bastante ricas Ele consegue demonstrar a contribuição da ética protestante no caso o calvinismo na formação do espírito capitalista Segundo Weber uma ética profissional especificamente burguesa surgiu em seu lugar Consciente de estar na plena graça de Deus e sob sua visível bênção o empreendedor burguês enquanto sua conduta moral fosse sem manchas e não 94 fosse bjetável o uso de sua riqueza podia agir segundo os seus interesses pecuniários e assim devia proceder O poder da ascese religiosa além disso punha à sua disposição trabalhadores sóbrios conscientes e incomparavelmente industriosos que se aferraram ao trabalho como uma finalidade de vida desejada por Deus Davalhe além disso a tranquilizadora garantia de que a desigual distribuição da riqueza deste mundo era obra especial da Divina Providência que com essas diferenças e com a graça particular perseguia seus fins secretos desconhecidos do homem 1997 p 127 Também a conduta racional baseada na idéia de vocação nasceu do espírito da ascese cristã A presença do ascetismo na vida profissional secular contribuiu de forma decisiva para a formação e o desenvolvimento da moderna ordem econômica e técnica ligada à produção em série através da máquinap 130 131 E conclui Weber desde que o ascetismo começou a remodelar o mundo e a nele se desenvolver os bens materiais foram assumindo uma crescente e finalmente uma inexorável força sobre os homens como nunca antes na História Hoje em dia ou definitivamente quem sabe seu espírito religioso safouse da prisão O capitalismo vencedor apoiado numa base mecânica não carece mais de seu abrigo Também o róseo caráter de sua risonha sucessora a Aufklärung parece estar desvanecendo irremediavelmente enquanto a crença religiosa no dever vocacional como um fantasma ronda em torno de nossas vidas Onde a plenitude vocacional não pode ser relacionada diretamente aos mais elevados valores culturais ou onde ao contrário ela também deve ser sentida como uma pressão econômica o indivíduo renuncia a toda a tentativa de justificála No setor de seu mais alto desenvolvimento nos Estados Unidos a procura da riqueza despida de sua roupagem éticoreligosa tende cada vez mais a associarse com paixões puramente mundanas que frequentemente lhe dão o caráter de esporte Ninguém sabe ainda a quem caberá no futuro viver nessa prisão ou se no fim desse tremendo desenvolvimento não surgirão profetas inteiramente novos ou um vigoroso renascimento de velhos pensamentos e idéias ou ainda se nenhuma dessas duas a eventualidade de uma petrificação mecanizada caracterizada por esta convulsiva espécie de autojustificação Nesse caso os últimos homens desse 95 desenvolvimento cultural poderiam ser designados como especialistas sem espírito sensualistas sem coração nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado p 131 As palavras de Weber são bastante eloquentes o espírito capitalista se separa da sua dimensão éticoreligiosa inicial o desencantamento do mundo e em seu lugar se afirma uma racionalidade econômica autônoma dotada de lógica própria Isto pode ser percebido na sua definição de capitalismo como atividade empresarial lucrativa Para que exista capitalismo impõese como premissa mais geral a existência de uma contabilidade racional do capital como norma para todas as grandes empresas lucrativas que se ocupam da satisfação das necessidades cotidianas As premissas dessas empresas por sua vez são as seguintes 1 apropriação dos bens materiais de produção a terra aparelhos instrumentos máquinas etc como propriedade de livre disposição por parte de empresas lucrativas autônomas 2 a liberdade mercantil ou seja a liberdade de mercado em face de toda limitação irracional de intercâmbio 3 técnica racional ou seja contabilizável ao máximo e em consequência mecanizada 4 direito racional ou seja calculável Para que a exploração econômica capitalista se processe racionalmente precisa confiar em que a justiça e a administração seguirão determinadas normas 5 trabalho livre ou seja que existam pessoas não só em seu aspecto jurídico mas também no econômico obrigados a vender livremente sua atividade em um mercado 6 comercialização da economia sob cuja denominação compreendese o uso geral de títulos de valor para os direitos de participação nas empresas e igualmente para os direitos patrimoniais Em resumo a possibilidade de uma orientação exclusiva no que se refere à satisfação das necessidades no sentido mercantil e da rentabilidade Weber apud Iannim 1996 p 115116 A racionalidade capitalista caracteriza portanto a existência de indivíduos que se movem no sentido de maximizar benefícios e minimizar custos sejam eles capitalistas trabalhadores ou genericamente consumidores Na verdade a racionalidade que se afirma como paradigma da civilização ocidental é uma racionalidade instrumental cujo móvel é o cálculo da relação custobenefício Vale lembrar ainda que a racionalidade capitalista não determina as outras formas de 96 racionalidade como a da política do Direito e da cultura É claro que existem relações entre elas no sentido probabilístico Por fim um breve comentário sobre o conceito de classe social concebido por Max Weber À semelhança do que foi exposto anteriormente a existência de classes sociais como grupo econômico não condiciona necessariamente às formas de dominação ou de estratificação segundo o prestígio embora possam haver influências recíprocas Weber distingue classe status e partido como formas diferentes de distribuição de poder segundo a economia o poder e a honra prestígio As classes são definidas como grupos de pessoas que vivenciam igual situação de classe que se caracteriza pela oportunidade de abastecimento de bens posição de vida externa e destino pessoal Nesse sentido podese afirmar a existência das seguintes situações de classe classe proprietária determinada pelas diferenças de propriedade classe aquisitiva que apresenta oportunidades de valorização de bens ou serviços classe social caracterizada pela ocorrência de mudança pessoal e na sucessão de gerações Podem ocorrer associações entre as diversas classes ou dos indivíduos pertencentes às diferentes classes bem como mobilidade entre elas O status referese à distribuição da honra ou do prestígio Esta se refere a uma estimativa específica positiva ou negativa da honraria que pode estar relacionada a uma qualidade partilhada por uma comunidade de indivíduos ou a uma situação de classe e que expressa um estilo de vida Já o partido referese à distribuição ou à aquisição do poder social com vistas a influenciar a ação comunitária que pode ser tanto num clube social como num Estado Analisamos as contribuições dos fundadores da Sociologia os autores clássicos Comte Marx e Engels Durkheim e Weber Foram eles que possibilitaram que a Sociologia se afirmasse como uma das mais importantes formas de conhecimento social Essas teorias constituíramse num momento histórico determinado contudo estenderam a sua influência até hoje momento que definimos como uma nova transição social da sociedade industrial nacional para a sociedade informacional global Sociologia e Crise da Modernidade 97 Estamos vivendo um novo momento histórico de intensas transformações sociais Palavras como pósmodernidade pósindustrial póscapitalista informacional sociedade global sociedade do conhecimento passaram a fazer parte do cotidiano na Sociologia nas demais Ciências Sociais e nos meios de comunicação de massa Elas pretendem indicar as mudanças sociais que estão em curso A discussão mais acirrada coloca em oposição modernidade e pósmodernidade Outro entendimento é de que o projeto da modernidade está em crise mas as soluções estão ainda no próprio paradigma da modernidade A Sociologia no primeiro caso está em questão junto com o projeto da modernidade no segundo ela precisa ser reformulada ou reconstruída Para a análise que se pretende desenvolver nas próximas páginas vamos nos situar na segunda posição Além disso vamos conceber o momento atual de mudança da seguinte forma a humanidade vive um momento de transição social que pode ser genericamente identificado pelos conceitos de sociedade industrial nacional e de sociedade informacional global O primeiro conceito foi elaborado pela própria Sociologia e constitui o seu objeto de análise o segundo ainda está em construção de modo que sobre ele podemos apenas fazer indicações gerais As teorias sociológicas clássicas elaboraram uma compreensão da sociedade industrial nacional em que a ênfase em determinados princípios gerais apontava para a sociedade que atualmente encontrase em formação A constatação da lei histórica da preponderância progressiva da solidariedade orgânica feita por Durkheim indica a possibilidade do processo atual se por globalização entendermos a ampliação da divisão do trabalho mesmo que esta tenha diferenças importantes daquela estabelecida na sociedade industrial Podemos fazer a mesma afirmação sobre a tese de Weber da racionalização da sociedade ocidental e sobre as várias observações feitas por Marx em toda a sua obra sobre a tendência globalizante dos movimentos do capital para viabilizar o processo de acumulação Se esses autores entretanto constataram uma tendência geral de desenvolvimento das sociedades nada nos autoriza a afirmar que as teorias não precisam ser atualizadas Talvez a questão central a ser enfrentada pela Sociologia 98 neste momento possa ser assim expressa além da atualização das teorias diante da nova realidade social há que se enfrentar problemas de natureza epistemológica referentes à teoria do conhecimento Ou seja a transição social comporta duas dimensões articuladas entre si uma societária e outra epistemológica A dimensão societária tem sido amplamente discutida pela Sociologia em todo o mundo Podese assegurar que os conhecimentos que temos sobre a sociedade informacional global foram em grande parte produzidos pela Sociologia mesmo que em muitas universidades os recursos para pesquisa em Ciências Sociais tenham sido bastante reduzidos Este fato não se deve a uma perda de capacidade da Sociologia de explicar o mundo social Podese dizer que a crise do Estado do BemEstar Social e a hegemonia do mercado na promoção do crescimento e da prosperidade foram fatores decisivos para definir um lugar marginal para a Sociologia na sociedade Não é por acaso que hoje se observa um processo de aproximação dos movimentos e instituições sociais com o pensamento sociológico crítico A rigor não há nenhuma novidade nisso pois a Sociologia constituiuse e se desenvolveu no âmbito das lutas sociais da modernidade Vários autores têm produzido reflexões importantes sobre o caráter das transformações sociais atuais Entre eles destacamse Alain Touraine Boaventura de Sousa Santos Manuel Castells Niklas Luhmann Pierre Bourdieu Octavio Ianni Immanuel Wallerstein Anthony Giddens Pierre Lévy John Thompson Zigmunt Bauman Jena Lojkine Ulrich Beck Edgar Morin Michel Maffesoli e Jurgen Habermas Há também um número bastante expressivo de pensadores da Sociologia e de outras áreas do conhecimento com importantes análises sobre o capitalismo atual numa perspectiva marxiana como é o caso de István Mészáros na sua obra Para Além do Capital Esses autores seguindo a posição de Georg Lukács não consideram o marxismo como uma Sociologia na medida em que estão ausentes nele as questões econômicas na análise da sociedade Não vamos discutir a contribuição dos autores Cabe apenas fazer algumas considerações gerais sobre a transição social inspiradas nas contribuições desses autores que representam o universo da Sociologia neste momento histórico Vamos considerar três questões principais que estão no centro dos debates os fundamentos 99 da sociabilidade humana o caráter das transformações sociais e as instituições da modernidade e os problemas epistemológicos postos pela transição social A primeira questão diz respeito ao fundamento da sociabilidade humana Na modernidade as duas principais teorias sociológicas marxismo e positivismo partiram do trabalho como categoria explicativa das sociedades Essa discussão foi feita na unidade anterior quando tratamos dos clássicos da Sociologia Para Marx o trabalho tem uma dimensão constitutiva do ser humano para Durkheim o trabalho é o fundamento da solidariedade orgânica que caracteriza a integração social na sociedade industrial Atualmente vem ocorrendo um questionamento da categoria trabalho Vários autores como Habermas e Luhmann têm sustentado que os processos sociais são processos de comunicação Assim o homem não é prioritariamente um ser que fabrica ferramentas mas um ser que produz linguagem A centralidade da linguagem nos processos sociocomunicativos está fundamentada na chamada virada linguística em que a filosofia da consciência é superada pela filosofia da linguagem As consequências do novo paradigma sobre a teoria sociológica são profundas Por exemplo na perspectiva de Habermas a emancipação humana deslocase do mundo do trabalho para o campo da ação comunicativa na perspectiva da teoria dos sistemas Luhmann sustenta que os sistemas sociais como sistemas autopoiéticos autoreferentes e operacionalmente fechados são formados por comunicações Sociólogos que atuam nas universidades de vários países definem a categoria trabalho como o fundamento da sociabilidade humana Eles compõem um grupo bastante significativo com intensa produção intelectual e vinculação com as lutas sociais É importante destacar que estes autores têm buscado sua fundamentação teórica nas obras do próprio Marx de Georg Lukács principalmente a Ontologia do Ser Social e de Antonio Gramsci Por meio da reelaboração do conceito de sociedade civil como momento da conquista da direção moral e intelectual hegemonia da sociedade Gramsci recoloca a discussão do Estado Em sentido amplo o Estado definese como a sociedade política mais a sociedade civil hegemonia revestida de coerção Já Lukács a partir do conceito de ontologia afirma que as questões presentes na obra de Marx constituem uma discussão sobre um certo tipo de ser 100 ou seja é a condição humana que se revela pelo trabalho o fundamento da sua sociabilidade e historicidade Uma segunda questão referese ao impacto das transformações sociais sobre as instituições clássicas da modernidade a fábrica fordista o EstadoNação a família a escola e a Igreja Todas essas instituições estão sendo redesenhadas pela sociedade informacional global Para detalhar um pouco mais esse processo vamos considerar que está em desenvolvimento uma terceira revolução industrial A diferença entre essa nova revolução e as anteriores é que ela pela criação de tecnologias inteligentes atua sobre o cérebro do homem Por isso Jean Lojkine a denomina de revolução informacional Sob o impacto da revolução informacional a fábrica fordista transformase em pósfordista ou toyotista é uma fábrica flexível descentralizada exige cada vez mais inteligência artificial dispensa trabalhadores e precariza as relações de trabalho Esse novo modelo fabril constitui a megaempresa capitalista globalizada cuja capacidade de acumulação é maior que a grande maioria dos Estados nacionais Outra característica desse novo mundo empresarial é a crescente centralização e concentração de capitais processos de fusões e aquisições de empresas são quase diários Além disso generalizase um processo econômico de financeirização da riqueza O Estado nacional instituição política afirmativa da soberania nacional sofre as consequências do processo de globalização da economia Os governos têm se mostrado incapazes de formular e operacionalizar políticas macroeconômicas de caráter nacional porque se observa a existência de múltiplos centros de decisão descentralização que lhes permite em grande parte uma liberação das amarras impostas pelos territórios nacionais Além disso por decisão política o EstadoNação se afasta da regulação da economia e da questão social deixando que estas se realizem segundo as leis do mercado Obviamente surgem novas estruturas de poder que operam num território supranacional em permanente movimento e mutação Também a ordem jurídica estatal um dos pilares do Estado Democrático de Direito e da soberania nacional sofre profundas transformações Estruturamse novas fontes do Direito vinculadas às grandes empresas e aos mercados globalizados 101 A família patriarcal modelo clássico da sociedade industrial está em crise A escola formal principalmente a universidade deixa de ser a única instituição voltada para a formação profissional e não consegue acompanhar outras formas mais dinâmicas de produção de conhecimentos e informações requeridas para a formação de opinião pública plural e democrática A Igreja em todas as suas vertentes sofre o impacto da crescente racionalização do mundo Igrejas criadas mais recentemente assumiram uma dimensão abertamente mercantil Também tem se colocado com insistência a necessidade de ampliar os conhecimentos sobre os meios de comunicação de massa cuja capacidade de inserção na vida cotidiana aumentou significativamente Percebese a formação de gigantescos conglomerados empresariais de comunicação que controlam a informação e o lazer de sociedades inteiras São empresas que visam ao lucro e que ao mesmo tempo precisam atender ao requisito da pluralidade segundo princípio liberal da liberdade de informação Essa contradição cada dia mais evidente se resolve pelo predomínio da lógica do mercado sobre o pluralismo Claramente os meios de comunicação de massa deixaram de ser o quarto poder Octavio Ianni emprega com bastante propriedade a expressão príncipe eletrônico para identificar a característica fundamental dos meios de comunicação de massa ou seja o seu papel decisivo na conquista e na manutenção do poder político Há no entanto um problema central não existe nenhum mecanismo capaz de funcionar como contraponto efetivo ao poder dos meios de comunicação que caracteriza uma situação de poder absoluto ou dito de outra forma um poder não democrático ou despótico que rompe com a democracia até mesmo na sua forma liberal Este é um resumo das questões discutidas pela Sociologia sobre o caráter da nova sociedade Do ponto de vista dos grandes modelos societários há uma questão importante em debate a sociedade informacional global é uma sociedade capitalista Os defensores da globalização econômica e da grande empresa privada afirmadas como a única alternativa para o desenvolvimento empregam fartamente a palavra capital também afirmam que o emprego e o lucro são objetivos fundamentais dos grandes investimentos globalizados Se é possível identificar de um lado o capital e do outro o trabalho assalariado configurase ainda a existência de classes sociais 102 obviamente não com as mesmas características do capitalismo industrial Podese assegurar que estamos diante de uma sociedade de tipo capitalista que se desenvolve segundo o princípio do mercado ou do privado em detrimento do Estado ou do público Esta é uma mudança fundamental que decorre da crise e dissolução do socialismo soviético e do Estado do BemEstar Social europeu A força social que comanda a globalização é o capitalismo é ele que desenvolve e se apropria da revolução informacional Obviamente as estatísticas revelam que a grande empresa capitalista global cujas características relacionamos nos parágrafos anteriores vive um momento de acelerada expansão A voracidade do capital na ocupação e transformação dos territórios é inédita É o momento histórico em que a destruição criadora se desenvolve com mais radicalidade e velocidade Por isso as consequências são igualmente trágicas A cada movimento do grande capital globalizado uma parte do EstadoNação é destruída Certamente o objetivo não é destruir o Estado mas reduzir drasticamente seu raio de ação política A redução dos impostos o confinamento da democracia aos limites da representação política o desenvolvimento do Terceiro Setor como forma de enfrentar a questão social estimulando o trabalho voluntário sem custos para a acumulação do capital constituem aspectos da estratégia de reprodução do capitalismo informacional No limite podemos estar vivendo uma situação em que na visão de Alain Touraine a globalização não deve ser entendida apenas como uma mundialização da produção e dos intercâmbios mas sobretudo como uma forma extrema de capitalismo como separação completa entre a economia e outras instituições particularmente sociais e políticas que não podem mais controlála Esta dissolução de fronteiras de todos os tipos acarreta a fragmentação daquilo que se chamava sociedade Touraine 2006 p 239 Ou seja o capital globalizado está destruindo a própria sociedade o lugar onde se desenvolve a vida humana Em outras palavras é a própria destruição da vida humana Destruição ou transformação da vida humana A revolução informacional está deixando o homem cada vez menos natural ou mais artificial As reflexões de Pierre Lévy sobre as tecnologias inteligentes a realidade virtual e o ciberespaço indicam um 103 caminho possível para o novo mundo em construção Alerta este autor a tendência se desenha claramente Nos primeiros decênios do século XXI mais de 80 dos seres humanos terão acesso ao ciberespaço e se servirão dele cotidianamente A maior parte da vida social tomará parte desse meio Os processos de concepção produção e comercialização serão integralmente condicionados por sua imersão no espaço virtual As atividades de pesquisa de aprendizagem e de lazer serão virtuais ou comandadas pela economia virtual O ciberespaço será o epicentro do mercado o lugar da criação e da aquisição de conhecimentos o principal meio da comunicação e da vida social A Internet representa simplesmente o estado de reagrupamento da sociedade que se sucede à cidade física Encontraremos nela quase todas as atividades que encontramos na cidade além de algumas outras completamente novas A principal originalidade da cidade virtual é que ela é única e planetária ainda que ela conte com cinturões protegidos redes especializadas e com bairros reservados intranets e extranets É absurdo opor a sociabilidade e as trocas intelectuais livres e gratuitas às atividades comerciais no ciberespaço tanto quanto seria opôlas na cidade As cidades são necessariamente ao mesmo tempo e no mesmo lugar mercados centros de troca de informações e desenvolvimento da cultura espaços de sociabilidade Ocorre exatamente o mesmo com o ciberespaço As redes se assemelham às estradas e às ruas os computadores e os programas de navegação são equivalentes ao automóvel individual os websites são como lojas escritórios e casas os grupos de discussão e as comunidades virtuais são praças cafés salões agrupamentos por afinidades Os mundos virtuais interativos mais ou menos lúdicos serão as novas obras de arte os cinemas teatros e óperas do século XXI Continuaremos entretanto a nos deslocar fisicamente e a nos encontrar em carne e osso e provavelmente ainda mais do que o fazemos hoje uma vez que os fenômenos de contato de relação e de interconexão de todos os tipos virtuais ou não serão amplificados e acelerados Lévy 2001 p 5152 Pierre Lévy é bastante otimista em relação ao ciberespaço Considera que nenhum outro espaço de comunicação tem um caráter tão transversal e aberto como o ciberespaço pois ele permite uma comunicação do tipo todos para todos Todos os textos se reúnem num hipertexto aberto e em permanente construção Todos as 104 autores se fundem num único autor coletivo múltiplo e contraditório O ciberespaço é um espaço não territorial de modo que os que ocupam muito espaço na Internet não tiram nada dos outros Há sempre mais lugar Haverá lugar para todo o mundo todas as culturas todas as singularidades indefinidamente p 141 Em síntese é a realização da sociedade democrática livre e plural de seres iguais e diferentes É preciso entretanto abordar a seguinte questão como o ciberespaço está sendo criado pelo capitalismo como é possível gerar uma sociedade democrática no sentido defendido por Lévy Vale lembrar que este capitalismo do capital financeiro e da grande empresa privada globalizada apesar do crescimento econômico não tem conseguido promover a inclusão social por meio do emprego Ao contrário os grandes empresários têm sustentado que apenas 20 da população economicamente ativa seriam suficientes para manter o ritmo da economia mundial produzindo todas as mercadorias e serviços e ao mesmo tempo participando ativamente da vida econômica do consumo e do lazer Os 80 restantes seriam os sememprego que não poderiam ser protegidos pelo Estado mínimo Algumas formas de proteção poderiam ser desenvolvidas pelo Terceiro Setor ou setor social assentado na filantropia e voluntariado Dessa forma a sociedade 20 por 80 como é denominada não pode ser desconsiderada na projeção da nova sociedade Podemos supor que a empresa capitalista globalizada geradora da nova sociedade informacional possa recriar as estruturas de desigualdade e exclusão social Por fim cabe destacar também outro aspecto teorizado principalmente por Anthony Giddens e Ulrich Beck a sociedade do risco e a reflexividade Por reflexividade entendese a ação transformadora que as ciências e as técnicas produzem sobre a sociedade diferente do que ocorria nas sociedades pré capitalistas que se caracterizavam por numa relativa imobilidade O conhecimento sistemático sobre a sociedade tornase parte necessária da reprodução do sistema que dele se apropria modificandose e ao mesmo tempo produzindo a necessidade de novos conhecimentos Esse processo ocorre numa perspectiva de certeza e de controle dos efeitos desejados Ocorrem contudo sempre consequências não desejadas que se acredita possam ser superadas por outras intervenções organizadas por novos conhecimentos específicos 105 A sociedade do risco resulta da modernização da sociedade industrial Num primeiro momento os efeitos não desejados são absorvidos pela sociedade de modo que não se tornam um problema porque predomina a certeza de que novos conhecimentos devem produzir situações adequadas Num segundo momento as instituições sociais econômicas sociais políticas ambientais não mais conseguem evitar que os riscos se tornem questões públicas Poderseia alertar que não se trata mais de considerar tais efeitos como colaterais mas produtos do próprio funcionamento do sistema industrial capitalista São exemplos significativos da sociedade do risco as recentes discussões sobre o aquecimento global o fim do trabalho assalariado a incerteza dos mercados financeiros o aumento da violência Neste contexto da sociedade do risco ressalta o debate sobre a crise ambiental A globalização do modo de produção capitalista embora a poluição tenha sido também uma característica do socialismo soviético ampliou de modo significativo a problemática ambiental Não é apenas o aumento das várias modalidades de poluição que preocupa mas as consequências da própria forma de intervenção do homem sobre a natureza Lembremonos que na base do pensamento da modernidade está a idéia do homem como senhor e proprietário da natureza A concepção crítica tem apontado para a insustentabilidade da relação homem e natureza que é determinada pelo modo de vida ocidental centrado no consumo ilimitado e no individualismo Esse modo de vida mostrase incompatível com as condições do planeta sua existência é possível apenas para um grupo bastante reduzido de pessoas e países É importante retomar a argumentação que serve de base para a conceituação da sociedade atual O capitalismo informacional globalizado leva ao limite a contradição entre a acumulação do capital como processo infinito e o ecossistema do planeta Terra que é finito Essa contradição sempre esteve presente na relação capital e natureza mas só agora adquire visibilidade ou publicidade Por isso um dos pontos centrais na investigação sociológica da atualidade é o desenvolvimento sustentável Na verdade esse conceito como qualquer outro precisa ser construído Analisamos sucintamente os desafios que a Sociologia tem enfrentado diante da nova realidade social que precisa ser compreendida Como no entanto as 106 mudanças têm o caráter de uma transição social surgem também problemas de natureza epistemológica ou seja estão em questão também as regras do método sociológico Em outras palavras as possibilidades e os limites do conhecimento sociológico Uma das análises mais importantes sobre as interinfluências entre questões epistemológicas e societárias foi desenvolvida por Boaventura de Sousa Santos Na sua obra Um discurso sobre as ciências ele sustenta que estamos vivendo um momento em que a transição social revela que há também uma transição no paradigma das Ciências Na modernidade o paradigma dominante da racionalidade científica foi determinado pelas Ciências Naturais que se estendeu inclusive para a Sociologia e para as outras Ciências Sociais A observação rigorosa dos fatos deve ser orientada pela Matemática que estabelece um modelo de representação da realidade e do próprio processo de investigação O método científico assentase na redução da complexidade e na quantificação A qualidade inerente aos objetos é relegada a um plano secundário para pesquisar as relações causais existentes entre eles leis transformandoas em relações estatísticas Assim a Ciência propõese a buscar a verdade a partir de três aspectos interligados objetividade estabilidade e simplicidade do mundo O desenvolvimento do conhecimento está deixando à mostra a fragilidade dos fundamentos do paradigma tradicional da Ciência o que determina a sua crise Percebese também a presença de sinais que identificam um novo paradigma Esses sinais podem ser sintetizados nos tópicos seguintes todo o conhecimento científico natural é científicosocial todo o conhecimento é local e total todo o conhecimento é autoconhecimento todo o conhecimento científico visa a constituirse em senso comum Esses tópicos têm como base a tese da crescente perda de sentido e da superação da divisão Ciências Naturais e Ciências Sociais Mais do que isso observa se que essa superação está ocorrendo no sentido da afirmação das Ciências Sociais como novo paradigma da Ciência Um conjunto de questões que hoje estão sendo postas para as Ciências Naturais como o debate sobre a relação sujeito e objeto ou sobre a relação entre parte e todo são por assim dizer constitutivos da Sociologia e das Ciências Sociais 107 Acrescentese o fato de que cada vez mais os estudos sobre a natureza são estudos sobre a sociedade que se organiza e sobredetermina o meio ambiente natural É claro que a Sociologia teria de se reconstruir desfazendose das teorias que são extensões das Ciências Naturais revalorizando as humanidades e as outras formas de saber nãocientífico Por fim diferentemente da Ciência moderna que se afirma pela negação do senso comum a Ciência pósmoderna interage com ele Segundo Boaventura de Sousa Santos deixado a si mesmo o senso comum é conservador e pode legitimar prepotências mas interpenetrado pelo conhecimento científico pode estar na origem de uma nova racionalidade Uma racionalidade feita de racionalidades Para que esta configuração de conhecimento ocorra é necessário inverter a ruptura epistemológica Na ciência moderna a ruptura epistemológica simboliza o salto qualitativo do conhecimento do senso comum para o conhecimento científico na ciência pósmoderna o salto mais importante é o que é dado do conhecimento científico para o conhecimento do senso comum O conhecimento científico pósmoderno só se realiza enquanto tal na medida em que se converte em senso comum 2004 p 9091 A denominação pósmoderna ou pósmodernidade tem um sentido bem preciso para Boaventura Ele identifica duas versões possíveis para o conceito Uma das versões denominada pósmodernismo reconfortante ou de celebração que afirma que a crise é do esgotamento da própria idéia moderna da transformação social do capitalismo esvaziandose assim qualquer possibilidade de atribuir sentido histórico para a vida social a outra com a qual ele se identifica o pósmodernismo inquietante ou de oposição fundamentase na idéia de transição paradigmática Essa posição caracteriza o momento atual pela coincidência de duas crises da regulação e da emancipação social Isso significa que as promessas da modernidade não podem ser realizadas pelo capitalismo e nem pelos mecanismos estabelecidos pelo pensamento moderno o socialismo marxista por exemplo Em outro texto O Fórum Social Mundial Manual de Uso boaventura de Sousa Santos coloca a problemática da produção dos conhecimentos numa perspectiva NorteSul Essa perspectiva de análise foi viabilizada pelo Fórum Social Mundial que ele identifica como uma epistemologia do Sul A rigor esta discussão não é nova na 108 Sociologia Tomandose os conhecimentos sociológicos produzidos no Brasil e na América Latina vêse que os mais significativos que adquiriram força popular foram aqueles que observaram o mundo ocidental da periferia para o centro Dessa perspectiva intelectual surgiu a teoria da dependência nas suas várias versões O Fórum Social Mundial FSM possibilita o estabelecimento de uma Sociologia das ausências e de uma Sociologia das emergências A primeira permite detectar que o não existente é produzido como tal Assim a não existência se manifesta nas monoculturas do saber e do rigor do saber do tempo linear da naturalização das diferenças do universal e do global e dos critérios de produtividade e de eficácia capitalista Estas monoculturas seriam superadas pelo reconhecimento dos múltiplos saberes e das diferenças das múltiplas temporalidades e das produtividades e das várias escalas de desenvolvimento Finalmente afirma uma Sociologia das emergências que deve se ocupar das pesquisas das alternativas que cabem no horizonte das possibilidades concretas Consiste em proceder a uma ampliação simbólica dos saberes práticas e agentes de modo a identificar neles as tendências do futuro o AindaNão sobre as quais é possível intervir para maximizar a probabilidade de esperança em relação à probabilidade da frustração A ampliação simbólica é no fundo uma forma de imaginação sociológica que visa um duplo objetivo por um lado conhecer melhor as condições de possibilidade da esperança por outro definir princípios de acção que promovam a realização dessas condições E conclui a ampliação simbólica operada pela sociologia das emergências consiste em identificar sinais pistas ou traços de possibilidades futuras em tudo o que existe A ciência e a racionalidade hegemônicas descartaram totalmente este tipo de pesquisa ou por considerarem que o futuro está prédeterminado ou por entenderem que ele só pode ser identificado através de indicadores precisos Para elas pistas são algo demasiado vago subjetivo e caótico para constituir um indicador credível Ao centrarse intensamente na componente de pista que a realidade possui a sociologia das emergências amplia simbolicamente as possibilidades de futuro que residem em forma latente nas experiências sociais concretas Santos 2005 p 3133 O Fórum Social Mundial como expressão dos múltiplos movimentos e instituições sociais locais e globais precisa ser compreendido como uma utopia 109 crítica ou seja como crítica radical ao mundo social organizado pela globalização neoliberal Esta é colocada como a única alternativa para o desenvolvimento das sociedades O FSM é a afirmação de uma globalização contrahegemônica que se desenvolve como epistemologia do Sul e como ação política cosmopolita das classes subalternas Outro autor que tem trazido à discussão o paradigma da ciência moderna é Edgar Morin Partindo da crítica ao paradigma tradicional caracterizado pela disciplinaridade pelo reducionismo e pela linearidade introduz a idéia da complexidade O pensamento complexo fundamentase nos seguintes princípios sistêmico relação parte e todo hologramático o todo está em cada parte anel retroativo autoregulação anel recursivo autoprodução e autoorganização auto ecoorganização autonomia e dependência dialogicidade a unidade entre dois princípios e a reintrodução do sujeito que conhece em todo o processo de produção do conhecimento O pensamento complexo não pretende abandonar os princípios da ordem da separabilidade e da lógica clássica mas conceber separação e união ordem e desordem certeza e incerteza numa perspectiva de totalidade Em outras palavras unir é distinguir e contextualizar separar e juntar o todo e as partes A idéia da complexidade exige uma reforma do pensamento e da própria universidade lugar por excelência da produção do conhecimento A universidade deve colocarse na perspectiva institucional como produto e ao mesmo tempo como produtora da sociedade Podese constatar que o pensamento complexo desenvolveuse sob o estímulo das disciplinas e das duas revoluções científicas Segundo Morin 2000 p 3637 a segunda revolução científica mais recente ainda inacabada a revolução sistêmica introduz a organização nas ciências da terra e da ciência ecológica ela se prolongará sem dúvida em revolução de autoorganização na biologia e na sociologia O pensamento complexo é portanto essencialmente aquele que trata com a incerteza e consegue conceber a organização Apto a unir contextualizar globalizar mas ao mesmo tempo a reconhecer o singular o individual e o concreto O pensamento complexo não se reduz nem à ciência nem à filosofia mas permite a comunicação entre elas servindolhes de ponte O modo complexo de pensar não tem utilidade somente nos problemas organizacionais sociais e políticos 110 pois um pensamento que enfrenta a incerteza pode esclarecer as estratégias no nosso mundo incerto o pensamento que une pode iluminar uma ética da religação ou da solidariedade O pensamento da complexidade tem igualmente seus prolongamentos existenciais ao postular a compreensão entre os homens O pensamento sistêmico não se expressa apenas por meio da complexidade Niklas Luhmann partindo da teoria dos sistemas sobretudo da contribuição do biólogo chileno Humberto Maturana pretende estendêla para a Sociologia ainda esterilizada pela vigência das teorias sociológicas clássicas Para isso propõe três rupturas com a idéia humanista que concebe a sociedade como uma relação entre pessoas com a sociedade como território no sentido de conceber as diferenças na sociedade e não entre sociedades com a diferença entre sujeito e objeto do conhecimento Em vez de considerar a sociedade como uma realidade objetiva que pode ser compreendida por um sujeito Luhmann propõe uma teoria dos sistemas sociais fundada na diferença entre sistema e ambiente Os sistemas sociais não são formados por pessoas mas por sistemas de comunicação que se produzem autopoieticamente Segundo ele os desenvolvimentos já esboçados da teoria dos sistemas possibilitam um salto pois eles são capazes de mostrar que as premissas clássicas são inúteis e por que e podem apresentar um design teórico para ocupar o lugar delas ou seja a teoria dos sistemas sociais autoreferenciais e operacionalmente fechados A teoria dos sistemas autopoiéticos exige sobretudo que se determine com exatidão a operação que realiza a autopoiésis do sistema e que através disso reproduz tanto os elementos isto é estas mesmas operações como também a diferença entre sistema e ambiente isto é a forma do sistema Luhmann 1997 p 6970 A sociedade é um sistema que se autoobserva e se autoexplica Não há observadores externos à sociedade Cada subsistema opera como um sistema autopoiético autoreferente e operacionalmente fechado As relações entre sistema e ambiente são explicadas pelo conceito de acoplamento estrutural que permite o estabelecimento de interdependências regulares para atender às demandas de 111 autoprodução do sistema O ambiente contudo mesmo sendo prérequisito para a autopoiése do sistema não intervém na realização O ambiente não contribui para as operações do sistema mas pode irritálo quando aparece no sistema como informação A teoria dos sistemas é uma das mais ousadas projeções da teoria sociológica pois além de questionar a compreensão da sociedade elaborada pela Sociologia clássica introduz a necessidade de uma ruptura epistemológica com o paradigma da ciência moderna do qual a Sociologia é parte integrante De acordo com Luhman 1997 p 48 uma vez que se decida por esse caminho tornase fácil transferir para a sociologia todas as inovações importantes da mais recente teoria dos sistemas Sobretudo produzse um conceito inequívoco da sociedade e com isso uma teoria do sistema social mais amplo a qual sempre fracassou na sociologia vigente com base nas consideráveis diferenças nacionais culturais regionais e políticas Tudo isso pode agora ser tratado como diferenciação social interna por exemplo como diferença na extensão da participação nas vantagens e desvantagens da moderna civilização Decisivo é a sociedade é o sistema social mais amplo de reprodução da comunicação através da comunicação É um sistema autopoiético Ela é um sistema fechado autoreferencial já que não existe nenhuma comunicação entre a sociedade e seu ambiente por exemplo entre a sociedade e pessoas que vivem individualmente Toda a comunicação é uma operação interna à sociedade é produção de sociedade e se expõe como acontecimento empírico não somente à continuação mas também à observação através de outras comunicações Neste sentido a sociedade moderna alcança uma complexidade que lhe permite reproduzir múltiplas autodescrições não passíveis de serem integradas e simultaneamente observar através de descrições das descrições que isto acontece Cabe ainda uma referência breve à teoria da ação comunicativa de Habermas e suas implicações epistemológicas na Sociologia Como já nos referimos a sua reflexão se desenvolve tendo como referência a Filosofia da Linguagem o que significa deslocar toda a problemática humana para este novo paradigma Habermas parte da crítica elaborada pela teoria social crítica da Escola de Frankfurt que analisa o caráter instrumental assumido pela razão sob o capitalismo transformandose 112 numa forma de dominação Para Habermas existem duas racionalidades a razão instrumental que vincula o homem à natureza e a razão comunicativa que permite a reintrodução da perspectiva emancipatória no projeto da modernidade A razão comunicativa se expressa pela da linguagem realidade auto referencial e autosuficiente que permite distinguir o homem como ser social A linguagem é a única coisa que podemos conhecer como realidade visível podemos proceder a uma análise objetiva por intermédio das suas expressões gramaticais A linguagem é também o meio que permite aos homens estabelecerem relações entre si e com o mundo ou seja possibilita o entendimento entre os homens sobre uma determinada situação À ação comunicativa guiada pelo entendimento corresponde o interesse emancipatório ou de uma razão libertadora No novo paradigma o conhecimento não se dá por meio da relação entre sujeito e objeto mas da relação entre sujeitos capazes de produzirem entendimentos sobre o mundo A verdade tornase consensual ela resulta da relação intersubjetiva entre sujeitos falantes e ouvintes participantes de uma comunidade comunicacional A ação comunicativa tem como pano de fundo o mundo da vida horizonte de referência simbólica comum a todos que torna possível o entendimento Ele apresenta dois momentos enquanto suposto do entendimento ele é quase transcendental como expressão empírica ele é o produto da ação comunicativa da tomada de posição e dos acordos produzidos pelos sujeitos Formado por três estruturas permanentes e atemporais cultura personalidade e sociedade o mundo da vida é na verdade o espaço das interações ou da socialização produzidas pelos sujeitos Ele define os limites sempre provisórios sobre o que e como pode haver entendimento A ação comunicativa visa ao entendimento mas para que ele se viabilize é necessário estabelecer o critério da busca do melhor argumento ou seja que as pretensões de validade sejam racionalmente construídas Além disso devese considerar uma situação ideal de fala como possibilidade de criticar um consenso estabelecido Nesse caso é preciso supor uma distribuição simétrica ou igualitária entre os participantes das possibilidades de falar proceder a interpretações explicações justificações permitir proibir fazer promessas etc sem coações a não 113 ser a única coação permitida a da busca do melhor argumento A razão instrumental está ligada ao conhecimento técnico que visa à dominação a emancipação está pois vinculada à racionalidade comunicativa A modernidade produziu a dissociação entre as duas racionalidades e a colonização do mundo da vida pela racionalidade instrumental materializada na organização sistêmica do poder e do dinheiro Esse processo explica o surgimento das patologias sociais na sociedade contemporânea A superação das patologias pode ser alcançada pela afirmação da racionalidade comunicativa que consiste em revigorar a esfera pública mediante o fortalecimento da sociedade civil da neutralização dos efeitos do sistema do poder e do dinheiro sobre o processo decisório e da democratização das instituições econômicas e políticas Esse processo deve ocorrer em consonância com o Estado Democrático de Direito espaço político fundamental para regular as ações comunicativas Além disso Habermas vislumbra a necessidade de estruturas globais de comunicação nãoestatais as ONGs por exemplo para evitar a reprodução do sistema do poder e do dinheiro Buscamos nesta unidade estruturar um quadro geral da Sociologia nos tempos atuais de transição social O objetivo delineado não foi discutir exaustivamente as contribuições dos diferentes sociólogos sobre o mundo atual ou sobre as questões que dizem respeito às condições de produção dos conhecimentos sociológicos Enfatizamos apenas alguns autores aqueles cujas reflexões a nosso juízo são mais instigantes Mais precisamente foram feitas provocações para que cada um faça as suas próprias leituras e chegue as suas próprias conclusões É assim que se produz o pensamento crítico e transformador 114 Referências ADORNO Sergio Org A Sociologia entre a modernidade e a contemporaneidade Porto Alegre Ed UFRGSSBS 1995 ARON Raymond As etapas do pensamento sociológico São Paulo Martins Fontes 2005 BERGER Peter Perspectivas sociológicas uma visão humanística Petrópolis Vozes 1976 CASTELLS Manuel A era da informação economia sociedade e cultura São Paulo Paz e Terra 1999 COSTA Maria Cristina Castilho Sociologia introdução à ciência da sociedade São Paulo Moderna 1987 COULSON Margaret A RIDDEL David S Introdução crítica à Sociologia Rio de Janeiro Zahar Editores 1975 COUTINHO Carlos Nelson Marxismo e Política a dualidade de poderes São Paulo Cortez Editora 1996 CUIN CharlesHenry GRESLE François História da Sociologia São Paulo Ensaio 1996 DOMINGUES José Maurício Teorias sociológicas no século XX Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2001 FERNANDES Florestan Fundamentos empíricos da explicação sociológica São Paulo T A Queiroz 1980a FERNANDES Florestan A natureza sociológica da Sociologia São Paulo Editora Ática 1980b FERREIRA Leila da Costa Org A sociologia no horizonte do século XXI São Paulo Boitempo Editorial 1997 GIDDENS Anthony Em defesa da sociologia São Paulo Ed Unesp 2001 GIDDENS Anthony Sociologia Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2004 GIDDENS Anthony As consequências da modernidade São Paulo Ed Unesp 1991 GIDDENS Anthony TURNER Jonathan Orgs Teoria social hoje São Paulo 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Menezes SILVA Juremir Machado da Orgs Para navegar no século XXI tecnologias do imaginário e cibercultura Porto Alegre EDIPUCRSSulina 2000 MORIN Edgar Ciência com consciência Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1998 QUINTANERO Tânia BARBOSA Maria Lígia de O OLIVEIRA Maria Gardênia de Um toque de clássicos Durkheim Marx e Weber Belo Horizonte Ed UFMG 1995 SANTOS José Vicente dos GUGLIANO Alfredo Alejandro Orgs A sociologia para o século XXI Pelotas Educat 1999 SANTOS Boaventura de Sousa Um discurso sobre as ciências Porto Edições Afrontamento 1993 SANTOS Boaventura de Sousa O Fórum Social Mundial manual de uso São Paulo Cortez 2005 SANTOS Boaventura de Sousa Org A globalização e as ciências sociais São Paulo Cortez 2002 SANTOS Boaventura de Sousa A crítica da razão indolente contra o desperdício da experiência São Paulo Cortez Editora 2000 SOBRAL Fernanda A da Fonseca PORTO Maria Stella Grossi Orgs A 116 contemporaneidade brasileira dilemas e desafios para a imaginação sociológica Santa Cruz 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