·
Publicidade e Propaganda ·
Artes
Send your question to AI and receive an answer instantly
Recommended for you
Preview text
O Que é Arte Jorge Coli Coleção Primeiros Passos Nº 46 COLI Jorge O que é Arte 15ª ed Editora Brasiliense São Paulo SP 1995 ISBN 8511010467 INTRODUÇÃO Dizer o que seja a arte é coisa difícil Um semnúmero de tratados de estética debruçouse sobre o problema procurando situálo procurando definir o conceito Mas se buscamos uma resposta clara e definitiva decepcionamonos elas são divergentes contraditórias além de frequentemente se pretenderem exclusivas propondose como solução única Desse ponto de vista a empresa é desencorajadora o esteta francês Étienne Gilson num livro notável Introdução às Artes do Belo diz que não se pode ler uma história das filosofias da arte sem se sentir um desejo irresistível de ir fazer outra coisa tantas e tão diferentes são as concepções sobre a natureza da arte Entretanto se pedirmos a qualquer pessoa que possua um mínimo contacto com a cultura para nos citar alguns exemplos de obras de arte ou de artistas ficaremos certamente satisfeitos Todos sabemos que a Mona Lisa que a Nona Sinfonia de Beethoven que a Divina Comédia que Guernica de Picasso ou o Davi de Michelangelo são indiscutivelmente obras de arte Assim mesmo sem possuirmos uma definição clara e lógica do conceito somos capazes de identificar algumas produções da cultura em que vivemos como sendo arte a palavra cultura é empregada não no sentido de um aprimoramento individual do espírito mas do conjunto complexo dos padrões de comportamento das crenças instituições e outros valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade para darmos a palavra ao Novo Aurélio Além disso a nossa atitude diante da idéia arte é de admiração sabemos que Leonardo ou Dante são gênios e de antemão diante deles predispomonos a tirar o chapéu É possível dizer então que arte são certas manifestações da atividade humana diante das quais nosso sentimento é admirativo isto é nossa cultura possui uma noção que denomina solidamente algumas de suas atividades e as privilegia Portanto podemos ficar tranquilos se não conseguimos saber o que a arte é pelo menos sabemos quais coisas correspondem a essa idéia e como devemos nos comportar diante delas Infelizmente esta tranquilidade não dura se quisermos escapar ao superficial e escavar um pouco mais o problema O Davi de Michelangelo é arte e não se discute Entretanto eu abro um livro consagrado a um artista célebre do nosso século Marcel Duchamp e vejo entre suas obras conservado em museu um aparelho sanitário de louça absolutamente idêntico aos que existem em todos os mictórios masculinos do mundo inteiro Ora esse objeto não corresponde exatamente à idéia que eu faço da arte Para me distrair um pouco discretamente tomo emprestada do meu irmãozinho uma revista em quadrinhos de terror Mais tarde visito um amigo intelectual que possui magnífica biblioteca e nela encontro uma suntuosa edição italiana consagrada a Stan Lee reproduzindo a mesma história em quadrinhos que eu havia lido há pouco num gibizinho barato Meu amigo me ensina que Stan Lee é um grande artista e por sinal a introdução elaborada por um professor da Universidade de Milão confirma seus dizeres Eu nem imaginava que uma história em quadrinhos pudesse ter autor quanto mais que esse autor pudesse ser chamado artista e sua produção obra de arte Coisa parecida acontece com um cartaz publicitário observado na rua cujo desenho original descubro em exposição temporária de um museu Em certa mostra de arte popular deparo com uma colherona de pau tal e qual minha avó há muito tempo usava para fazer sabão de cinza numa fazenda do interior Um amigo meu professor de literatura francesa entusiasmase pelas memórias de Charles de Gaulle e me garante que o célebre estadista é também um grande escritor A arqueologia que desenterrou tantas obras de arte extraordinárias trouxe igualmente à luz inúmeros objetos que são testemunhos históricos dentre eles quais são quais não são obras de arte Estas situações mostramnos assim que se a arte é noção sólida e privilegiada ela possui também limites imprecisos E a questão que há pouco propusemos como saber o que é ou não obra de arte de novo se impõe Já vimos que responder com uma definição que parta da natureza da arte é tarefa vã Mas se não podemos encontrar critérios a partir do interior mesmo da noção de obra de arte talvez possamos descobrilos fora dela Não existiriam em nossa cultura forças que determinem a atribuição do qualificativo arte a um objeto E aí tudo se ilumina como sei que Stan Lee é um artista Porque o professor da Universidade de Milão o afirma Como sei que a colher de pau de minha avó é um objeto de arte Porque a encontrei num museu Para decidir o que é ou não arte nossa cultura possui instrumentos específicos Um deles essencial é o discurso sobre o objeto artístico ao qual reconhecemos competência e autoridade Esse discurso é o que proferem o crítico o historiador da arte o perito o conservador de museu São eles que conferem o estatuto de arte a um objeto Nossa cultura também prevê locais específicos onde a arte pode manifestarse quer dizer locais que também dão estatuto de arte a um objeto Num museu numa galeria sei de antemão que encontrarei obras de arte num cinema de arte filmes que escapam à banalidade dos circuitos normais numa sala de concerto música erudita etc Esses locais garantemme assim o rótulo arte às coisas que apresentam enobrecendoas No caso da arquitetura como é evidentemente impossível transportar uma casa ou uma igreja para um museu possuímos instituições legais que protegem as construções artísticas Quando deparamos com um edifício tombado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional podemos respirar aliviados não há sombra de dúvida estamos diante de uma obra de arte Desse modo para gáudio meu posso despreocuparme pois nossa cultura prevê instrumentos que determinarão por mim o que é ou não arte Para evitar ilusões devo prevenir que como veremos adiante a situação não é assim tão rósea Mas por ora o importante é termos em mente que o estatuto da arte não parte de uma definição abstrata lógica ou teórica do conceito mas de atribuições feitas por instrumentos de nossa cultura dignificando os objetos sobre os quais ela recai A INSTAURAÇÃO DA ARTE E OS MODOS DO DISCURSO A hierarquia dos objetos A arte instalase em nosso mundo por meio do aparato cultural que envolve os objetos o dicurso o local as atitudes de admiração etc Veremos mais adiante como esses instrumentos e a própria noção de arte são específicos de nossa cultura Por ora limitemonos a constatar que eles permitem a manifestação do objeto artístico ou mais ainda dão ao objeto o estatuto de arte a galeria permite que o pintor exponha seus quadros isto é que manifeste sua arte e além disso determina escolhendo um tipo de objeto dentre os inúmeros que nos rodeiam que ele seja artístico Mas esses instrumentos não se limitam a traçar uma linha divisória separando os objetos artísticos e os não artísticos não se contentam em criar uma reserva de arte Eles intervêm por assim dizer na disposição relativa dos objetos artísticos pretendem ensinarnos que tal obra tem mais interesse que outra que tal livro ou filme é melhor que outro que tal sinfonia é mais admirável que outra isto é criam uma hierarquia dos objetos artísticos Não é preciso muito conhecimento para sabermos que Dante é maior ou superior a Casimiro de Abreu que Benedito Calixto é inferior a Leonardo que Bach é o maior de todos os músicos que o Partenon é a mais perfeita obra arquitetural pois tratase de julgamentos correntes que parecem óbvios ou tácitos Isto não quer dizer que tais objetos sejam mais arte que outros Certo crítico poderá afirmar que Benedito Calixto não produziu obras de arte mas estará empregando apenas uma hipérbole Sabemos que Calixto foi pintor que produziu quadros e painéis que exerceu uma atividade artística Portanto quando o crítico nega o caráter artístico de sua produção está dizendo que segundo seus critérios de julgamento a qualidade da obra de Calixto não atinge um nível suficientemente elevado para que possa considerála como uma obra de arte Mas tomando duas obras tidas como artísticas o crítico pode afirmar que segundo certos critérios que podem ser explícitos ou não tal obra é mais bem realizada ou mais rica ou mais profunda que outra A crítica portanto tem o poder não só de atribuir o estatuto de arte a um objeto mas de o classificar numa ordem de excelências segundo critérios próprios Existe mesmo uma noção em nossa cultura que designa a posição máxima de uma obra de arte nessa ordem o conceito de obraprima Esta noção é antiga e ela não possuía exatamente o sentido que assumiu com o tempo Os dicionários nos dirão que obraprima é a obra perfeita a obra capital a produção mais alta de um autor Se consideramos que Os Lusíadas são uma obra perfeita que a Ilíada é uma obra capital que o Ateneu é a melhor obra de Pompéia diremos que nos três casos estamos diante de obrasprimas da literatura Por razões ligeiramente diferentes Os Lusíadas podem não ser essenciais por exemplo para a cultura de um americano na Ilíada talvez encontremos irregularidades de construção dizemos que O Ateneu é a obraprima de um autor Pompéia mas nos três casos estamos diante de obras de qualidade que julgamos excepcional em relação a outras No passado entretanto a obraprima era aquela que coroava o aprendizado de um ofício que testemunhava a competência de seu autor Não se tratava de uma realização forçosamente inovadora original e era com frequência um produto utilitário saído das mãos de um carpinteiro ourives tecelão Os ofícios exercidos em ateliês isto acontece aproximadamente a partir do século XIV constituíam um sistema não apenas de produção e de distribuição de objetos mas também de ensino O ateliê tinha um mestre dono o mais das vezes da matériaprima e dos instrumentos de fabricação que ensinava aos aprendizes Estes começavam crianças e adquiriam todas as técnicas necessárias ao ofício Os ateliês agrupavamse em corporações que os protegiam e estabeleciam regras precisas por exemplo que o proprietário de um ateliê fosse obrigatoriamente um mestre E para que o aprendiz se tornasse mestre devia apresentar em concurso a outros mestres da corporação uma obra inteiramente de sua autoria que pudesse ser considerada perfeita demonstrando assim um domínio de todas as técnicas necessárias era a obra prima Dessa origem que se liga a condições de produção específicas a expressão se generaliza no sentido de denominar a melhor obra o produto mais perfeito no campo das artes São muitas as diferenças que não podemos abordar agora entre o emprego originário e o atual Ressaltemos uma que nos interessa a obra prima no passado era julgada a partir de critérios precisos de fabricação por artesãos que dominavam perfeitamente as técnicas necessárias Hoje os profissionais do discurso sobre a arte possuem critérios mais diversos e menos precisos em seus julgamentos critérios que não são apenas o do saber fazer Os caminhos do discurso Se um carpinteiro aprecia a qualidade de um móvel ele o faz a partir de um saber concreto digamos quase indiscutível Verificará a qualidade da madeira empregada a sua adequação à forma que se exige dela verá se os elementos que constituem os pés os braços o encosto de uma cadeira foram bem talhados e ajustados Admirará uma proeza qualquer de feitura por exemplo a solidez da cadeira repousando sobre pernas delgadas a fineza do entalhe e a delicadeza dos ornamentos No fazer que ele conhece encontra os critérios para julgar o fazer de outrem O crítico entretanto não tem recurso à objetividade do puro domínio técnico Sabemos que a pintura de Leonardo de Watteau ou Prudhon são mal feitas que o material e as técnicas empregadas por desleixo ou vontade experimental não são adequados que certos pigmentos não poderiam ter entrado em contacto entre si que a execução foi apressada e não esperou a camada inferior secar para dispor sobre ela a camada seguinte que se abusou do betume nas sombras E finalmente que o produto uma vez acabado envelheceu mal escurecendo ou transformando as tonalidades originais destruindo o desenho primitivo Mas não são esses os fatores que interessam ao juízo do crítico A Santa Ceia quase em ruína o São João Batista invadido pelas sombras não fazem de Leonardo um mau pintor O bom conhecimento da perspectiva da anatomia da aplicação de luz e sombra são técnicas de um mesmo nível que o manuseio das tintas pois são aprendidas segundo regras e podem ser julgadas com um forte grau de objetividade Mas elas são um meio entre outros para a construção de um quadro e não são nem podem ser uma exigência absoluta Ninguém pensaria em condenar Ingres pelo seu desdém pela anatomia nem Uccello por sua perspectiva pouco ortodoxa nem Botticelli pela ausência de modelado em suas obras Podemos dizer que certo pintor conhece perfeitamente a anatomia mas com isso estamos elogiando apenas um aspecto técnico parcial de sua obra Os discursos que determinam o estatuto da arte e o valor de um objeto artístico são de outra natureza mais complexa mais arbitrária que o julgamento puramente técnico São tantos os fatores em jogo e tão diversos que cada discurso pode tomar seu caminho Questão de afinidade entre a cultura do crítico e a do artista de coincidências ou não com os problemas tratados de conhecimento mais ou menos profundo da questão e mil outros elementos que podem entrar em cena para determinar tal ou qual preferência Dirá um que Wagner é compositor desmedido ou de prolixidade vazia outro invocará seu gênio harmônico a serviço de uma dramaticidade filosófica etc A situação é algo embaraçosa vimos os fatores exteriores instaurando a arte em nossa cultura vimos que eles determinam a hierarquia dos objetos artísticos e nos deparamos com divergências de critérios que nos deixam confusos Poderíamos tentar uma saída para o impasse buscando uma solução estatística se não há unanimidade talvez haja maioria E com efeito pelo menos em certos casos mais notáveis essa maioria parece manifestarse com alguma solidez é raro encontrarmos textos que desqualifiquem Cézanne por exemplo Eisenstein Shakespeare ou Mozart Eles existem sem dúvida mas um consenso geral valoriza extremamente a obra desses artistas Temos que nos desenganar no entanto Não somente porque quando se trata de obras mais polêmicas que não conquistaram a institucionalidade do consenso as disputas mantêmse acerbas qual é o interesse de Gounod ou Massenet Grande dizem os anglosaxões nenhum respondem os franceses Le Brun pode ser um artista admirável ou apenas gerar tédio Blake um doido ou um iluminado genial mas também porque esse consenso não é estável ele evoluí na história Sem dúvida Cézanne é tido hoje em dia como um dos maiores nomes da pintura de todos os tempos Porém não podemos esquecer que o reconhecimento do seu valor foi tardio enquanto viveu o consenso geral recusouse a julgálo positivamente e esse também foi o caso de Van Gogh de Gauguin e dos impressionistas pintores de uma época em que havia justamente um conflito entre os critérios estabelecidos e a obra que eles produziam Poderíamos pensar que somos hoje mais aptos a perceber o valor deles que nossa sensibilidade é mais aberta a Van Gogh e a Cézanne que a do público de seu tempo e teríamos razão Seria entretanto abusivo acreditar que o nosso juízo de hoje determina o reconhecimento definitivo de Cézanne e Van Gogh A crítica amanhã poderá nos mostrar que estávamos enganados e que o interesse dessa pintura afinal de contas não era assim tão grande Absurdo Rafael e Fídias são dois pilares da história da arte Inúmeras gerações de artistas se referiram a eles como mestres Não obstante no começo de nosso século foram assimilados a uma arte convencional a modelos de escola a patronos do academicismo e viram sua estabilidade de grandes gênios abalada ao convencionalismo que representavam preferiu se uma arte mais conforme ao espírito de inovação do tempo um primitivismo mais espontâneo exaltase por exemplo Uccello e a escultura arcaica Foi preciso esperar algum tempo para que novamente eles se reerguessem como faróis embora certamente menos incontestados do que antes Os casos de Guido Reni e do Corrégio são mais radicais Foram pintores de celebridade imensa indiscutível de influência decisiva durante séculos tão admirados quanto Michelangelo Rafael Leonardo e não se pode dizer deles que tenham conhecido apenas fama passageira No entanto hoje sofrem um eclipse brutal Nossa época parece interessarse tão pouco pela ternura do sublime mestre de Parma ou pelo rigor de Guido que quantos somos capazes de lembrar sequer um de seus quadros Melhor a quantos esses nomes dizem alguma coisa Poderíamos multiplicar os exemplos sabemos que o passado que foi tão severo com os impressionistas mostrouse profundamente generoso com pintores como Meissonier Gervex Puvis de Chavannes Chaplin ou Alma Tademma A morte de Meissonier por exemplo causou luto nacional na França Com o tempo no entanto a avaliação crítica inverteuse e esses pintores que se opunham aos impressionistas como técnica e assunto deixa ram de ser exaltados A condenação da posteridade chegou a tal ponto que se tornou difícil ver um quadro deles em museus Estes quando possuíam algum escondiamno envergonhados nas reservas Durante muito tempo essa pintura foi considerada como o próprio exemplo da não arte como alguma coisa Artisticamente irrecuperável Ora há questão de dez ou quinze anos começou a sua reabilitação triunfal Hoje descobrimos nela uma técnica admirável um imaginário surpreendentemente rico por vezes um erotismo extravagante e desmedido E inversamente começam a despontar análises restritivas a Renoir a Monet Em certos casos são setores inteiros da arte que passam por purgatórios do mesmo gênero As catedrais góticas que tanto admiramos hoje a escultura os vitrais e a pintura da Idade Média foram execradas pelos homens da Renascença e dos séculos seguintes até que os românticos e alguns teóricos do século passado como ViolletleDuc interessaramse por eles e demonstraram seu valor O barroco o maneirismo o art nouveau o neoclassicismo entre outros grandes movimentos da história da arte conheceram trajetórias de forte oscilação entre o interesse e o desprezo São tantas as flutuações no tempo dos vários juízos sobre as artes tantos os meandros traçados pelo que os italianos chamam de fortuna critica isto é pelos julgamentos da posteridade que não sabemos mais a que nos ater Por vezes uma obra um autor parecem inabaláveis como Homero e eis que um grande nome da cultura como Valéry ou Gide traduzindo uma corrente de opinião surge para afirmar que a Ilíada é insuportavelmente insuportavelmente entediante Com estes exemplos colhidos um pouco ao acaso já podemos chegar a uma constatação deprimente a autoridade institucional do discurso competente é forte mas inconstante e contraditória e não nos permite segurança no interior do universo das artes A BUSCA DO RIGOR A ideia de estilo Os discursos que determinam o estatuto e o objeto das artes não são unânimes nem constantes Sua segurança enquanto critério de julgamento já pode ser num primeiro tempo questionada eles podem ser contraditórios tanto na atribuição do estatuto da arte quanto na determinação da hierarquia O fato de que certas obras pareçam possuir uma permanência no tempo não retira o caráter institucional da autoridade do discurso foi ele quem exaltou durante séculos Fídias e Rafael foi ainda ele quem lhes promoveu a crítica Além disso a própria ideia de critério aparece como um esquema que perturba nossa aproximação da arte Sabedores de que Calixto é menor do que Leonardo predispomonos sumariamente a exaltar o segundo e a menosprezar o primeiro Entretanto a visão do litoral paulista que Calixto oferece é insubstituível poética e serena ela possui uma sensibilidade própria rica e enriquecedora Entretanto a afirmação de que a Gioconda é uma obra prima serve apenas para consagrala sem que a nossa apreensão da arte e do mundo melhore em alguma coisa A história da arte e a crítica não se contentam porém em determinar com um veredicto sem justificações a qualidade do objeto artístico Elas trazem ligados a esse julgamento o discorrer sobre o objeto o suporte que leva ao julgamento Ora a situação de divergências não é satisfatória para o próprio discurso Nada mais irritante para sua autoridade que a negação por um outro discurso Surge então o desejo de uma objetividade Os discursos sobre as artes parecem com frequência ter a nostalgia do rigor científico a vontade de atingir uma objetividade de análise que lhes garanta as conclusões E na história do discurso na história da crítica na história da história da arte constantemente encontramos esforços para atingir algumas bases sólidas sobre as quais se possa apoiar uma construção rigorosa O instrumento primeiro e mais freqüente desse desejo de rigor é o das categorias de classificações estilísticas Se conseguirmos definir estilos no interior dos quais encaixarmos a totalidade da produção artística começamos a pisar terreno mais seguro E a palavra sobre as artes tentará determinar essas classificações gerais A idéia de estilo está ligada à ideia de recorrência de constantes Numa obra existe um certo número de construções de expressões sistemas plásticos literários musicais que são escolhidos mas sem que esta noção tenha um sentido forçosamente consciente e empregados pelo artista com certa freqüência A idéia de estilo repousa sobre o princípio de uma interrelação de constantes formais no interior da obra de arte Tomemos um filme de Hitchcock Psicose por exemplo Constatamos nele a valorização dos personagens sempre presentes sempre tratados de maneira individualizada são mais freqüentemente um dois três do que grupos numerosos O cineasta filmouos de perto mostrando sobretudo os rostos a parte superior dos corpos Verificamos também que as paisagens são raras e quando existem estão dramatizadas e intimamente ligadas à ação uma casa inquietante um pântano que irá tragar um carro Percebemos que não há momentos de contemplação mas que todas as imagens dependem de uma vontade preponderante de narrar Estes elementos já são suficientes para detectarmos um estilo próprio ao filme subordinado à narração sublinhando o comportamento dos personagens Mas podemos aprofundar mais a análise verificando que certos movimentos de câmera certos tipos de montagem certos efeitos musicais reaparecem com insistência e delineiam com precisão crescente o estilo de Psicose Depois de Psicose vamos ver Suspeita Descobrimos que nele também existem paisagens dramatizadas personagens vistos de perto em tomadas próximas movimentos de câmera que evocam Psicose E na medida em que nos pomos em contacto com outros filmes de Hitchcock percebemos que certos elementos de construção tendem a ser reempregados por exemplo um determinado travelling que começa à distância e se aproxima lentamente de uma janela penetrando numa casa um certo modo de localizar um personagem dominado por um imenso elemento de arquitetura de fotografálo como que aprisionado na teia das sombras projetadas num interior ou no cruzamento dos caminhos entre os túmulos de um cemitério e assim por diante Prestando atenção nos elementos que reaparecem descobrimos o estilo de Hitchcock Do mesmo modo que podemos descobrir uma coerência estilística diferente em Eisenstein Jean Renoir ou Humberto Mauro Isto é verdadeiro em todas as artes há o estilo de Zola de José Lins do Rego de VillaLobos e de Mozart de Portinari ou Pedro Américo Por vezes o artista como acontece com Ingres mantém um mesmo estilo imutável da primeira à última obra na maioria dos casos porém ele transforma modifica suas constantes estilísticas com o correr do tempo ao ouvir a Sagração da Primavera e Petrushka de Stravinsky sentimos que as duas obras têm muita coisa em comum mas que estão bem distantes da Sinfonia em dó ou do Réquiem do mesmo compositor Assim um mesmo criador pode desenvolver em sua produção tendências estilísticas diferentes que se se sucedem no tempo constituem as fases distintas do artista Estas constantes transcendem as obras Quando conhecemos suficientemente o estilo de um autor reconhecemos com facilidade sua produção Não é preciso termos ouvido e memorizado todas as composições de Chopin para sabermos que é dele a peça desconhecida que escutamos no rádio não precisamos num museu ler a etiqueta para descobrirmos que tal obra foi pintada por Matisse ou Rembrandt desde que estejamos familiarizados com o estilo desses artistas O estilo pode até levar à constatação da existência de autores sobre os quais ignoramos tudo são os mestres Se um grupo de obras anônimas apresenta muitas afinidades estilísticas os especialistas criam a hipótese de um autor comum Freqüentemente é um quadro mais importante que agrupa à sua volta outras obras e que dá nome ao autor assim o mestre da Anunciação de Aix o mestre de Flora Outras vezes o mestre é autor de um ciclo assim o mestre dos cassoni Campana ou o mestre da Capela Velha que Mário de Andrade descobriu em Itu distinguindoo do Padre Jesuíno do Monte Carmelo Ou ainda o artista possuía uma característica muito precisa em sua obra como o mestre da candeia Assim as constantes estilísticas permitem mesmo a constituição de autores unicamente a partir das obras Alargando ainda mais o campo do conceito descobrimos que as diversas épocas constroem uma espécie de pano de fundo estilístico comum às obras por diferentes que sejam Não existem artistas mais dessemelhantes que Rossini e Beethoven que David e Goya há neles entretanto alguns elementos comuns que embora difusos são próprios à sua época e os reúnem Eles pertencem à mesma época e não podemos imaginalos fora dela quando vemos uma pintura de Goya e David mesmo sem conhecer seus autores sabemos que elas não poderiam ter sido feitas nem no começo do século XVIII nem no fim do século XIX Mas é também certo que dentro das mesmas épocas segundo afinidades entre produções de diferentes criadores é possível reagrupálas sob denominadores particulares David e Canova são neoclássicos Boucher e Fragonard são rococó Neste esquema simplificado a ideia é sedutora Mas o problema bem mais complexo impede na realidade que as articulações sejam assim tão fáceis Porque a obra de arte não se reduz ao estilo e porque as classificações estilísticas não têm muitas vezes a pureza formal que evocamos acima E também porque no discurso sobre a arte não é raro encontraremse referências à ideia de estilo como se fosse suficiente e formal o que vem ainda mais complicar as coisas Tentaremos ver as limitações a utilidade e os empregos abusivos dessa noção misérias e grandezas da noção de estilo Os estilos Falando de arte referimonos a impressionismo surrealismo romantismo rococó a um estilo cretense helenístico ou egípcio Na maior parte das vezes atribuÍmos a essas palavras um poder excessivo o de encarnarem uma espécie de essência à qual a obra se refere De que estilo é tal pintor Enquanto não colamos uma etiqueta em cima não sossegamos é hiperrealista é abstracionista é impressionista é surrealista Isso nos tranquiliza pois supomos conhecer o essencial sobre a obra supomos saber o que significam as classificações e que a obra corresponde a uma delas Essa atitude pode ser pacificadora mas não é satisfatória Pois as obras são complexas e é de sua natureza escapar às classificações pois as classificações são complexas e nunca se reduzem a uma definição formal e lógica pois a relação entre as obras e os conceitos classificatórios é sobretudo complexa Dissemos que as denominações estilísticas extravasam o domínio da definição formal que inicialmente parecia constituir seu núcleo de base Elas não são lógicas são históricas viveram no tempo e tiveram caminhos e funções diferentes Elas evoluíram e não são forçosamente as mesmas segundo as épocas que as empregam Algumas foram criadas por homens que se reconheciam nelas Breton e Dali diziamse surrealistas Alberti e Masaccio sabiamse homens da Renascença Courbet colocou na entrada de uma das suas exposições uma tabuleta Pavilhão do Realismo Em outros casos a atribuição de um epíteto a um grupo de artistas é exterior a ele os impressionistas os fauve foram assim chamados de maneira pejorativa por jornalistas do tempo embora em seguida tenham assumido por pirraça ou paixão as denominações E ainda há conceitos inventados a posteriori para localizar na história tal ou qual grupo de artistas que evidentemente não suspeitavam da classificação Bernini não sabia que era barroco nem Simone Martini que era gótico Ainda a relação entre os denominadores e as obras nunca se dá da mesma maneira A idéia de romantismo referese a uma renovação das técnicas artísticas na medida em que compreende uma ruptura e uma oposição com um passado clássico mas nos encaminha o que é mais importante a uma visão global do mundo da sensibilidade a uma atitude diante da sociedade enfim a todo um conjunto de elementos que ultrapassa o lado puramente formal a especificidade do fazer artístico Por vezes essa especificidade é reduzida a um mínimo André Breton cujo pensamento constitui um dos eixos capitais do que se chamou movimento surrealista reconhecia que certas técnicas certos procedimentos como a escrita automática que alinha palavras ou expressões tais como aparecem espontaneamente em associações sem controle consciente ao espírito do artista ou o frottage do verbo francês frotter esfregar que consistia em tomar a marca em relevo de uma superfície rugosa a madeira de um velho assoalho por exemplo e com ela organizar um desenho ou um quadro ou como a colagem de objetos diferentes recortes de jornais coisas do uso quotidiano ou recuperadas no lixo etc podiam permitir a manifestação da profundidade inconsciente do artista Para o surrealismo a liberação desse eu profundo era a meta essencial da arte Mas Breton reconhecia também que estas técnicas embora propícias não eram suficientes para a realização de uma obra surrealista Elas poderiam ser utilizadas sem sinceridade visando apenas um efeito sedutor à moda tendo como resultado um produto inautêntico pseudosurrealista Por outro lado esses não eram os únicos meios que o artista podia dispor para obter também a desejada liberação inconsciente Uma obra surrealista não depende portanto de uma definição estilística Num texto intitulado Situação Surrealista do Objeto Breton analisando o problema lembra a sugestão de Man Ray que trabalhava sobretudo com experiências fotográficas do mesmo modo que no cinema costumase projetar antes da película Este é um filme Paramount devia se descobrir incorporado de alguma maneira ao poema ao livro ao desenho à tela à escultura à construção nova que se tem sob os olhos uma marca feita de modo inimitável e indelével alguma coisa como Este é um objeto surrealista A anedota mostra bem que para Breton além do estilo existem outros fatores decisivos para definir o objeto surrealista E eles se fundamentam numa sinceridade profunda num impulso de libertação do inconsciente numa espécie de moral surrealista que escapa ao simples exame exterior dos objetos Nesse sentido talvez o gesto surrealista mais legítimo e trágico tenha sido o suicídio de René Crevel Como o romantismo ou melhor que ele o surrealismo implica uma visão uma atitude diante do homem e da sociedade Se examinamos entretanto a pintura impressionista descobrimos poucas preocupações desse tipo Os impressionistas enquanto artistas tiveram uma atitude corajosa e conseqüente opondose à arte dominante de seu tempo Mas suas obras não repousam sobre uma determinada posição teórica política ou sentimental diante da vida A palavra impressionismo tem hoje uma extensão menor que a adquirida em 1874 ocasião da primeira exposição do grupo muito díspare alias Impressionismo depois do artigo irônico e maldoso de Louis Leroi no Charivari ficou denominando toda arte pouco ortodoxa ou maldita Tanto Gauguin quanto Van Gogh nitidamente distintos em sua pintura de um Renoir ou Monet recebiam a denominação Mas logo se evidenciou a coerência formal de um núcleo mais reduzido Caillebotte Monet Pissarro Sisley uma boa parte da produção de Renoir recusam o desenho que estrutura privilegiam o gesto espontâneo e preferem pintar ao ar livre diante do motivo tomando como preocupação central os efeitos produzidos pelos fenômenos puramente luminosos reflexos transparências fumaças brumas sobre os volumes O assunto do quadro tinha pouca importância o organizador do catálogo da exposição de 1874 desconsolase ao receber a lista dos títulos de Monet eram Entrada de aldeia Saída de aldeia Tarde na aldeia Manhã na aldeia Marinha a não mais acabar E quando ele pinta sua série de Freixos de Montes de feno ou a catedral de Ruão ao meiodia ou no crepúsculo mostra bem que seu interesse reside não na representação das árvores do feno ou da catedral mas nas variações de efeitos luminosos sobre esses volumes que funcionam essencialmente como suportes E assim chegase a um conjunto de práticas artísticas que podem ser usadas como elementos definidores por elas afirmaremos definitivamente que Gaughin e Van Gogh não pertencem ao grupo nem sequer Cézanne ToulouseLautrec ou Degas que constituiriam quando muito o setor das divergências e variações do impressionismo como diz Jean Cassou Percebemos a partir desses exemplos que as classificações não são instrumentos científicos que elas não são exatas que não partem de definições e que agrupam obras ou artistas por razões muito diferentes entre as quais se pode encontrar a idéia de estilo mas não forçosamente e sempre parcialmente O que nos leva a considerar que seu emprego deve ser muito cuidadoso Um dos perigos é o de sua utilização como universais É banal encontrarmos a palavra surrealismo empregada como sinônimo de insólito de estranho de desabitual e mesmo de absurdo como é banal ouvirmos dizer que determinado objeto é barroco porque parece extravagante ou muito ornamentado falase mesmo em uma natureza barroca ou que tal moça é romântica porque possui uma personalidade sentimental ou que tal artista é impressionista unicamente porque pinta de maneira mais ou menos livre Esse emprego descontraído e sem compromisso é evidentemente abusivo apenas apropriado a conversas de salão ou de bar Entretanto o mesmo princípio de universalidade costuma ocorrer com freqüência num discurso que se pretende mais elaborado Bosch passa a ser surrealista Debussy impressionista falase mesmo numa crítica impressionista Virgílio romântico ou pior tentase a todo preço rubricar os artistas com tal ou qual etiqueta Fra Angélico por exemplo é gótico ou renascentista Podemos perguntar se há necessidade de escolher um rótulo qualquer para designar o pintor do convento de São Marcos Pois o importante não é assimilar seu estilo ao que supomos seja o gótico ou a pintura de Renascença mas descobrir o que o artista revela como preocupações como visão qual a sua especificidade entre as artes de seu tempo Lançar mão do metro estilo gótico para medir Fra Angélico e descobrir se ele se encaixa é empobrecer lamentavelmente a nossa percepção de sua obra É suficiente nos debruçarmos sobre o objeto artístico em si mesmo para percebermos a inanidade das classificações pois sua riqueza foge sempre a qualquer determinação D Casmurro é muito mais que um romance realista A Besta Humana não se reduz aos preceitos do naturalismo as obras em sua fecundidade concreta são sempre mais do que nos dizem as pretensas definições E no entanto elas possuem uma singular sedução Estamos diante de produtos que nos escapam que se desenvolvem de modo tão inesperado tão pouco previsível que para os dominar não resistimos à tentação fácil de os classificar E essas classificações passam a ser mais importantes do que as obras Crítica história da arte categorias e sistemas O princípio das classificações baseadas na idéia de estilo deu em particular à história da arte a esperança de um instrumento objetivo e eficaz E aqui é preciso distinguir a função do crítico da do historiador distinção formal porque na maior parte das vezes essas atividades se juntam O Crítico analisa as obras e sua função é eminentemente seletiva De certo modo é o juiz que valoriza ou desvaloriza o objeto artístico É claro que o conhecimento da história das diferentes produções artísticas servelhe para a elaboração de seus critérios Um crítico de cinema freqüentemente conhece os filmes do passado o que lhe permite um jogo de comparações intuitivas ou explícitas capaz de o levar a condenar este ou aquele filme Mas isso além de não ser absolutamente necessário não se confunde com a construção da história dos objetos artísticos no tempo Assim o historiador da arte procura em princípio evitar os julgamentos de valor Taine no fim do século passado lançando as bases de uma abordagem rigorosa desses fenômenos dirá que é necessário colocarse entre parênteses o julgamento para se chegar à compreensão objetiva Entretanto o historiador da arte não consegue evitar inteiramente os critérios seletivos pois o conjunto de objetos que estuda supõe uma escolha Privilegiará um autor que pareça a seus olhos e aos de seus contemporâneos mais importante consagrandolhe um maior número de páginas aprofundando mais a análise Uma história da literatura brasileira dedicará forçosamente várias páginas a Machado um número bem menor a Gonçalves de Magalhães e poderá excluir Teixeira e Souza A seleção feita ou assumida pelo historiador nunca é o fim procurado pois como já dissemos ele busca a compreensão dos fenômenos artísticos Mas se ele trabalha a partir de um corpus um conjunto delimitado de elementos que servirão de objeto de estudo necessariamente selecionado o que pretende antes de tudo é articulálo num conjunto coerente e o compreender A compreensão a suspensão do julgamento denotam o desejo de rigor próximo da ciência Será útil examinarmos alguns esforços feitos na história da arte para se conseguir um rigor maior através da idéia de estilo O primeiro momento dáse com Heinrich Wölfflin 18641945 na virada do século Wölfflin teórico e historiador nascido na Suíça tenta construir uma metodologia rigorosa no interior da história da arte Antes dele Taine preocuparase com as ligações entre as obras e o contexto cultural que as produziu Não é isso que interessa a Wölfflin ele busca um método que focalize a obra de arte exclusivamente na sua especificidade e propõe assim por primeiro as bases de uma análise formal precisa fundamento de uma história autônoma das artes Em 1888 Wölfflin escreve Renascença e Barroco Neste texto aparecem duas novidades essenciais A primeira é a revalorização do barroco que desde o fim do século XVIII era considerado pejorativamente como uma evolução aberrante e decadente da arte da Renascença um derivado estéril que tentava compensar pela extravagância a ausência de seiva criadora Wölfflin decidese por outra interpretação o barroco é uma produção artística nova e total com seus próprios critérios formas e intenções A arte dos séculos XVII e XVIII é diferente da arte da Renascença e deve ser compreendida em si mesma A segunda novidade não menos importante é que para Wölfflin o que determina a autonomia do barroco e sua oposição ao classicismo da Renascença é uma análise minuciosa das constantes formais Pela primeira vez dois períodos distintos da história da arte aparecem claramente caracterizados a partir unicamente de um inventário estilístico Bem mais tarde em 1915 Wölfflin escreverá outro tratado os Princípios Fundamentais da História da Arte que representa o amadurecimento das reflexões desenvolvidas na obra anterior e a tentativa de as teorizar Nele encontramos cinco categorias duplas em oposição que permitiriam caracterizar o classicismo e o barroco São as seguintes 1 o classicismo é linear o barroco pictural 2 o classicismo utiliza planos o barroco a profundidade 3 o classicismo possui uma forma fechada o barroco aberta 4 o classicismo é plural o barroco unitário 5 o classicismo possui uma luz absoluta o barroco relativa Compreenderemos melhor o que Wölfflin quer dizer com cada uma dessas oposições a partir de alguns exemplos facilmente acessíveis Para ilustrar a primeira categoria tomemos o chamado tondo Doni figura 1 tondo em italiano quer dizer circular redondo e é aplicado aos quadros que possuem essa forma a célebre Madona da Cadeira de Rafael que se encontra na Galeria Palatina do Palácio Pitti em Florença é um tondo a Virgem com o Menino e São João Batista de Botticelli que se encontra no Museu de Arte de São Paulo também Doni é o sobrenome do florentino que encomendou o quadro representando a Sagrada Família com São João Batista pintado por Michelangelo na primeira década do século XVI e que se encontra no Museu dos Ofícios de Florença O quadro é um pouco insólito o grupo da Sagrada Família está perto do espectador ocupando o centro da tela atrás isolados por uma espécie de murinho estão São João menino e cinco nus masculinos de adolescentes A estranheza pede uma explicação simbólica e as imagens podem ser tomadas como uma articulação entre a antiguidade clássica os nus e a religião cristã a Sagrada Família ou o paganismo redimido pelo batismo através da figura intermediária de São João ou ainda como outra coisa qualquer Mas isso por ora importa pouco O que nos interessa é a linha instrumento construtor por excelência que define com nitidez os objetos conduz o olhar e limita os volumes Por seu intermédio Michelangelo apreende os corpos no que eles têm de palpável de tátil isto é os contornos e as superfícies Estamos diante de uma visão plástica que isola os objetos fisicamente corporalmente pelo contorno Os braços da Virgem musculosos fortes sobre os quais Wölfflin deixou um texto de profundo lirismo e admiração são perfeitamente recortados e o modelado em pintura o modelado é a aplicação de luz e sombra sobre um objeto de modo a se obter o efeito de volume tem uma precisão metálica As dobras do manto são também definidas pelas linhas com rigor e pelo relevo nítido e vigoroso Opondose ao linear está o pictural Há um quadro no museu Richartz de Colônia pintado em 1630 e portanto mais de cem anos depois do de Michelangelo que nos servirá de perfeita antítese ele representa também uma Sagrada Família à qual foi acrescentada SantAna figura 2 e seu autor é Rubens Sentimos imediatamente entre os dois diferenças consideráveis e uma delas é que esse aspecto plástico tátil que no quadro de Michelangelo atraía nossas mãos diminuiu muito ao caráter palpável dos volumes substituiuse sua aparência puramente visual Os limites lineares deixaram de ser precisos as carnes e os tecidos não refletem mais a luz e passaram a ser o suporte de uma vibração luminosa introduzindo um modelado muito menos definido Os objetos não se encontram mais isolados entre si mas se ligam através de passagens suaves uns aos outros Num caso diz Wölfflin temos objetos corpóreos distintos no outro uma visão na sua totalidade uma aparência flutuante A segunda oposição em planos ou profundidade decorre da primeira Fig 1 Michelangelo Buonarroti A Sagrada Família tondo Doni Cerca de 15045 Galeria dos Ofícios 42 Fig 2 Pieter Paul Rubens A Sagrada Família Fig 3 Rafael Sanzio A Escola de Atenas 150910 Palácio do Vaticano Câmara da Assinatura Roma Fig 4 Pieter Paul Rubens O Rapto das Sabinas 1635 National Gallery Londres Fig5 Jean Louis David As Sabinas179499 Museu do Louvre Paris Tomemos dois outros exemplos A Escola de Atenas de Rafael figura 3 de 1510 certamente o afresco mais célebre da série que lhe foi encomendada por Júlio II para decorar aposentos no palácio do Vaticano e o Rapto das Sabinas um Rubens dos anos 1630 Figura 4 que se encontra na National Gallery de Londres É claro que o contraste mais agudo entre essas duas obras que salta aos olhos numa evidência gritante é a total serenidade de um meditativa calma e a frenética violência do outro Mas além disso no primeiro caso existe uma construção em planos sucessivos num espaço organizado geometricamente com o auxílio de um desenho rigoroso O primeiro segundo e terceiro planos claros e paralelos são reforçados pela própria representação do solo no primeiríssimo plano os motivos quadrados do piso em mármore em seguida os degraus e enfim o plano superior Sobre eles ordenadamente dispõemse os personagens Como entretanto distinguir planos no quadro de Rubens Não conseguimos mais fazer caminhar nosso olhar por etapas ele circula sem repouso pois tudo está ligado e passamos do primeiro plano ao último sem transições A terceira oposição forma fechada e forma aberta ou tectônica e atectônica como Wölfflin também diz referindose a uma estrutura simétrica e sólida repousa sobre a idéia de que os quadros clássicos possuem eixos de construção estáveis e claros verticais e horizontais e que os quadros barrocos preferem o dinamismo das diagonais Mas além disso a forma fechada pressupõe uma suficiência da composição a aberta um extravasamento dos limites físicos da tela isto é num caso a imagem foi feita para ser vista na sua totalidade e no outro como um fragmento No tondo Doni na Escola de Atenas temos não somente essa axialidade equilibrada como também a ideia da suficiência da representação enquanto em Rubens prevalece a impressão de surpreender por um acaso maravilhoso um fragmento do mundo visível Os limites físicos do quadro sua margem sua moldura não contêm mais a cena que transborda para o exterior Num caso a construção pictural é suficiente no outro ela pressupõe o espaço do espectador E nesta categoria Wölfflin introduz também a ideia de que o classicismo mostra os objetos numa permanência atemporal enquanto o barroco procura o instante que passa Na quarta oposição temos multiplicidade e unidade ou como propõe o autor unidade múltipla e unidade indivisível Num caso cada elemento do quadro existe por si e se articula de acordo com a organização clara do todo cada personagem da Escola de Atenas é tratado individualmente dentro de subgrupos dispostos simetricamente inscritos num todo perfeitamente estruturado No Rapto das Sabinas essa vida autônoma dos elementos inexiste as formas guardando sua função diretriz emergem de um fluxo único para o olho não significam nada que possa ser considerado à parte que possa ser destacado do resto A vida de cada uma das partes só existe se subordinada ao conjunto Finalmente a luz absoluta e relativa opõe obras como os exemplos que demos de Michelangelo e Rafael às de Rubens pelo fato de que nos primeiros casos ela é homogênea em todo o quadro e ilumina da mesma maneira todos os detalhes Na pintura de Rubens entretanto ela seleciona privilegiando certas regiões obscurecendo outras à luz abstrata e atemporal do classicismo opõese a dramatização circunstancial do claroescuro Caravaggio foi o grande inventor desses efeitos no começo do século XVII e seus herdeiros são os grandes luministas como La Tour Rembrandt Zurbarán Desse modo por meios exclusivamente formais e ignorando os temas das obras pouco importa a simbologia obscura do tondo Doni ou o episódio do Rapto das Sabinas Wölfflin organiza dois grupos estilísticos opostos No entanto ele é antes de tudo um historiador da arte que pelo seu grande contacto com o objeto artístico sabe que este se acomoda mal em esquemas e em simplificações Suas precauções no utilizar as categorias são exemplares Em primeiro lugar elas não precedem as obras mas são deduzidas de um corpus concreto em segundo ele não perde de vista a história pois longe de serem universais suas categorias aplicamse exclusivamente a dois períodos precisos o da Renascença e o do Barroco Em terceiro elas não são nem absolutamente necessárias nem absolutamente suficientes tal quadro de Rafael a Madonna dellImpanata do palácio Pitti por exemplo ou a Sagrada Família da Pérola do museu do Prado em Madri utiliza uma luz não homogênea mas seletiva e dramatizada não há em Giorgione pintor da Renascença veneziana morto em 1510 o contorno que recorta a superfície metalina dos volumes para não se falar do dinamismo barroco dos quadros do Tintoretto Por outro lado as categorias clássicas poderiam ser aplicadas a David ao seu Rapto das Sabinas de 1799 figura 5 por exemplo mas seria impossível confundir esse quadro com a produção da Renascença o tipo de gesticulação empregada trabalhada em si mesma como poses de ateliê a sua recomposição no conjunto que dá uma impressão de desorganização astuciosa teatralmente organizada a vontade de citação arqueológica são fatores essenciais que o distinguem indubitavelmente do classicismo da Renascença Wölfflin sempre se mostrou um historiador das formas e considerava suas categorias como espécies de pólos que ele mesmo o diz certamente não são os únicos em volta dos quais se situavam mais ou menos próximos os quadros analisados ou os edifícios e as estátuas pois elas se referiam também à escultura e à arquitetura Os exemplos escolhidos por ele se encontravam sempre numa faixa de tempo estreita e seu classicismo e barroco não se dessolidarizam da época que os engendrou Classificaríamos Velasquez Rembrandt o silencioso o calmo o estável Vermeer nessa idéia imprecisa que em nosso quotidiano em nossos batepapos chamamos de barroco Pois Wölfflin em análises magistrais as toma como exemplos privilegiados em oposição ao classicismo Aliás é significativa a impressão de tanta riqueza em suas análises finas completas luminosas ultrapassando de longe os andaimes esqueléticos das cinco oposições Em Wölfflin o discurso é cuidadoso e parte sempre de um exame do concreto Sua tentativa de rigor é eficaz porque baseada num instrumento pobre que não pretende dar conta da multiplicidade da produção artística examinada para isso a flexibilidade da análise dos objetos é mais apta mas que serve de ponto de apoio As precauções de Wölfflin entretanto foram reiteradamente abandonadas e com freqüência encontramos um formalismo categórico que se pretende absoluta chave explicadora Passaremos agora a constatar dois casos de evolução entre os maiores e menores inúmeros que derivam de uma certa forma da atitude wolffliniana DOrs e a categoria do barroco universal Classicismo e classicismo francês Em Wölfflin como vimos as obras secretam as constantes que permitem a ele situálas em campos opostos Mas em muitas outras abordagens o molde é fabricado de antemão o metro é uma abstração e se impõe exteriormente às obras Eugênio dOrs brilhante pensador catalão foi podemos dizer um herdeiro perverso de Wölfflin Em 1928 escreve O Barroco texto célebre no qual sua erudição imensa e sua inteligência propõem a aproximação do conceito independentemente da história querendoo de uma natureza científica classificatória e universal como Lineu havia feito com a zoologia e a botânica o barroco seria um gênero que agrupária fenômenos culturais temporalmente distantes mas possuindo constantes determinadoras comuns Do mesmo modo que felix recobre um gênero zoológico barroco recobre um gênero cultural e artístico Mas se esses fenômenos possuem constantes eles possuem também especificidades que sempre como nas classificações zoológicas e botânicas felix leo o leão felix catus o gato felix tigris o tigre definirão as espécies do barroco E dOrs determina um quadro classificatório que começa na préhistória o barocchus pristinus e prossegue passando pelo barocchus buddhicus pelo barocchus gothicus pelo barocchus romanticus entre outros São vinte e duas categorias ao todo que chegam mesmo a um barocchus finisecularis correspondendo às expressões artísticas do fim do século passado dOrs enumera Wagner Rodin Rimbaud Beardsley Bergson WJames Lautréamont Huysmans o artouveau e a um barocchus postabellicus do pósguerra referindose à de 191418 contemporâneo de seu livro que não se vê associado a exemplo nenhum mas a respeito do qual seríamos tentados de evocar Proust o art déco e o próprio Eugênio dOrs O livro de dOrs pelo seu brilho pela facilidade com que manipula os mais diversos objetos artísticos aproximandoos entre si ou os iluminando de maneira inesperada é de extrema fecundidade Sua leitura permite entrar em contacto com um grande espírito que é ao mesmo tempo um grande escritor Mas é suficiente pensarmos na atitude que consiste em colocar no mesmo saco Lascaux a janela de Tomar os afrescos cretenses Bergson El Greco e Proust para percebermos que se tais aproximações podem engendrar ideias apaixonantes elas só podem ser obra do sujeito que encontra as afinidades e sua pretensão ao instrumento objetivo é um engano Wölfflin historiador das formas concebe duas categorias historicamente situadas em sucessão dOrs toma uma delas e universalizaa brilhantemente sacrificando o rigor A outra categoria o classicismo embora sem um teórico da mesma envergadura que dOrs será também universalizada Até pelo menos o século XVIII ela estava ligada a uma idéia de modelo os clássicos por excelência sendo os antigos isto é os gregos e os romanos justamente a chamada antiguidade clássica Dessa ideia de modelomestre ela passa a significar equilíbrio rigor tranqüilidade racionalidade Pouco a pouco durante os séculos XIX e XX esse sentido afirmase cada vez mais e tem repercussões profundas A França por exemplo constrói uma imagem clássica de si mesma de seu gênio o mais legítimo presente em todos os momentos da história do espírito francês Essa visão é sobretudo cimentada no começo da Terceira República a partir de 1870 momento em que a ideologia do poder é leiga positiva clara científica Descartes fica sendo então um filósofo clássico Le Brun Girardon Mansart Racine artistas clássicos Foi preciso esperar Tapiès com seu admirável livro Classicismo e Barroco confirmado no recente e genial ensaio de Philippe Beaussant intitulado Versalhes Opera para se descobrir que o classicismo francês do século XVII é apenas uma manifestação local e específica de um movimento internacional de arte e civilização que habituamonos a chamar barroco Focillon e o evolucionismo autônomo das formas Para um espírito rigoroso essas universalizações são insatisfatórias E sentindo as dificuldades das categorias um esteta e historiador da arte dos mais importantes do século XX tentou elaborar um sistema dinâmico da evolução das artes Para Wölfflin e dOrs os conceitos são estéticos eles agrupam e nada mais Wölfflin ligase à evolução no tempo porque em tal momento as formas tomam tais constantes e no seguinte outras tantas Mas para ele o barroco não é uma conseqüência do classicismo há uma idéia de sucessão e não de causalidade Focillon em seu livro que se intitula significativamente A Vida das Formas 1934 tenta o seguinte processo evolutivo o classicismo é plenitude e apogeu momento de maturidade onde as formas encontram um equilíbrio perfeito embora fugitivo e passageiro Mas não se trata do classicismo de Wölfflin isto é correspondente à Renascença o conceito é aplicável a todas as épocas artísticas pelo menos como pressuposto possível
Send your question to AI and receive an answer instantly
Recommended for you
Preview text
O Que é Arte Jorge Coli Coleção Primeiros Passos Nº 46 COLI Jorge O que é Arte 15ª ed Editora Brasiliense São Paulo SP 1995 ISBN 8511010467 INTRODUÇÃO Dizer o que seja a arte é coisa difícil Um semnúmero de tratados de estética debruçouse sobre o problema procurando situálo procurando definir o conceito Mas se buscamos uma resposta clara e definitiva decepcionamonos elas são divergentes contraditórias além de frequentemente se pretenderem exclusivas propondose como solução única Desse ponto de vista a empresa é desencorajadora o esteta francês Étienne Gilson num livro notável Introdução às Artes do Belo diz que não se pode ler uma história das filosofias da arte sem se sentir um desejo irresistível de ir fazer outra coisa tantas e tão diferentes são as concepções sobre a natureza da arte Entretanto se pedirmos a qualquer pessoa que possua um mínimo contacto com a cultura para nos citar alguns exemplos de obras de arte ou de artistas ficaremos certamente satisfeitos Todos sabemos que a Mona Lisa que a Nona Sinfonia de Beethoven que a Divina Comédia que Guernica de Picasso ou o Davi de Michelangelo são indiscutivelmente obras de arte Assim mesmo sem possuirmos uma definição clara e lógica do conceito somos capazes de identificar algumas produções da cultura em que vivemos como sendo arte a palavra cultura é empregada não no sentido de um aprimoramento individual do espírito mas do conjunto complexo dos padrões de comportamento das crenças instituições e outros valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade para darmos a palavra ao Novo Aurélio Além disso a nossa atitude diante da idéia arte é de admiração sabemos que Leonardo ou Dante são gênios e de antemão diante deles predispomonos a tirar o chapéu É possível dizer então que arte são certas manifestações da atividade humana diante das quais nosso sentimento é admirativo isto é nossa cultura possui uma noção que denomina solidamente algumas de suas atividades e as privilegia Portanto podemos ficar tranquilos se não conseguimos saber o que a arte é pelo menos sabemos quais coisas correspondem a essa idéia e como devemos nos comportar diante delas Infelizmente esta tranquilidade não dura se quisermos escapar ao superficial e escavar um pouco mais o problema O Davi de Michelangelo é arte e não se discute Entretanto eu abro um livro consagrado a um artista célebre do nosso século Marcel Duchamp e vejo entre suas obras conservado em museu um aparelho sanitário de louça absolutamente idêntico aos que existem em todos os mictórios masculinos do mundo inteiro Ora esse objeto não corresponde exatamente à idéia que eu faço da arte Para me distrair um pouco discretamente tomo emprestada do meu irmãozinho uma revista em quadrinhos de terror Mais tarde visito um amigo intelectual que possui magnífica biblioteca e nela encontro uma suntuosa edição italiana consagrada a Stan Lee reproduzindo a mesma história em quadrinhos que eu havia lido há pouco num gibizinho barato Meu amigo me ensina que Stan Lee é um grande artista e por sinal a introdução elaborada por um professor da Universidade de Milão confirma seus dizeres Eu nem imaginava que uma história em quadrinhos pudesse ter autor quanto mais que esse autor pudesse ser chamado artista e sua produção obra de arte Coisa parecida acontece com um cartaz publicitário observado na rua cujo desenho original descubro em exposição temporária de um museu Em certa mostra de arte popular deparo com uma colherona de pau tal e qual minha avó há muito tempo usava para fazer sabão de cinza numa fazenda do interior Um amigo meu professor de literatura francesa entusiasmase pelas memórias de Charles de Gaulle e me garante que o célebre estadista é também um grande escritor A arqueologia que desenterrou tantas obras de arte extraordinárias trouxe igualmente à luz inúmeros objetos que são testemunhos históricos dentre eles quais são quais não são obras de arte Estas situações mostramnos assim que se a arte é noção sólida e privilegiada ela possui também limites imprecisos E a questão que há pouco propusemos como saber o que é ou não obra de arte de novo se impõe Já vimos que responder com uma definição que parta da natureza da arte é tarefa vã Mas se não podemos encontrar critérios a partir do interior mesmo da noção de obra de arte talvez possamos descobrilos fora dela Não existiriam em nossa cultura forças que determinem a atribuição do qualificativo arte a um objeto E aí tudo se ilumina como sei que Stan Lee é um artista Porque o professor da Universidade de Milão o afirma Como sei que a colher de pau de minha avó é um objeto de arte Porque a encontrei num museu Para decidir o que é ou não arte nossa cultura possui instrumentos específicos Um deles essencial é o discurso sobre o objeto artístico ao qual reconhecemos competência e autoridade Esse discurso é o que proferem o crítico o historiador da arte o perito o conservador de museu São eles que conferem o estatuto de arte a um objeto Nossa cultura também prevê locais específicos onde a arte pode manifestarse quer dizer locais que também dão estatuto de arte a um objeto Num museu numa galeria sei de antemão que encontrarei obras de arte num cinema de arte filmes que escapam à banalidade dos circuitos normais numa sala de concerto música erudita etc Esses locais garantemme assim o rótulo arte às coisas que apresentam enobrecendoas No caso da arquitetura como é evidentemente impossível transportar uma casa ou uma igreja para um museu possuímos instituições legais que protegem as construções artísticas Quando deparamos com um edifício tombado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional podemos respirar aliviados não há sombra de dúvida estamos diante de uma obra de arte Desse modo para gáudio meu posso despreocuparme pois nossa cultura prevê instrumentos que determinarão por mim o que é ou não arte Para evitar ilusões devo prevenir que como veremos adiante a situação não é assim tão rósea Mas por ora o importante é termos em mente que o estatuto da arte não parte de uma definição abstrata lógica ou teórica do conceito mas de atribuições feitas por instrumentos de nossa cultura dignificando os objetos sobre os quais ela recai A INSTAURAÇÃO DA ARTE E OS MODOS DO DISCURSO A hierarquia dos objetos A arte instalase em nosso mundo por meio do aparato cultural que envolve os objetos o dicurso o local as atitudes de admiração etc Veremos mais adiante como esses instrumentos e a própria noção de arte são específicos de nossa cultura Por ora limitemonos a constatar que eles permitem a manifestação do objeto artístico ou mais ainda dão ao objeto o estatuto de arte a galeria permite que o pintor exponha seus quadros isto é que manifeste sua arte e além disso determina escolhendo um tipo de objeto dentre os inúmeros que nos rodeiam que ele seja artístico Mas esses instrumentos não se limitam a traçar uma linha divisória separando os objetos artísticos e os não artísticos não se contentam em criar uma reserva de arte Eles intervêm por assim dizer na disposição relativa dos objetos artísticos pretendem ensinarnos que tal obra tem mais interesse que outra que tal livro ou filme é melhor que outro que tal sinfonia é mais admirável que outra isto é criam uma hierarquia dos objetos artísticos Não é preciso muito conhecimento para sabermos que Dante é maior ou superior a Casimiro de Abreu que Benedito Calixto é inferior a Leonardo que Bach é o maior de todos os músicos que o Partenon é a mais perfeita obra arquitetural pois tratase de julgamentos correntes que parecem óbvios ou tácitos Isto não quer dizer que tais objetos sejam mais arte que outros Certo crítico poderá afirmar que Benedito Calixto não produziu obras de arte mas estará empregando apenas uma hipérbole Sabemos que Calixto foi pintor que produziu quadros e painéis que exerceu uma atividade artística Portanto quando o crítico nega o caráter artístico de sua produção está dizendo que segundo seus critérios de julgamento a qualidade da obra de Calixto não atinge um nível suficientemente elevado para que possa considerála como uma obra de arte Mas tomando duas obras tidas como artísticas o crítico pode afirmar que segundo certos critérios que podem ser explícitos ou não tal obra é mais bem realizada ou mais rica ou mais profunda que outra A crítica portanto tem o poder não só de atribuir o estatuto de arte a um objeto mas de o classificar numa ordem de excelências segundo critérios próprios Existe mesmo uma noção em nossa cultura que designa a posição máxima de uma obra de arte nessa ordem o conceito de obraprima Esta noção é antiga e ela não possuía exatamente o sentido que assumiu com o tempo Os dicionários nos dirão que obraprima é a obra perfeita a obra capital a produção mais alta de um autor Se consideramos que Os Lusíadas são uma obra perfeita que a Ilíada é uma obra capital que o Ateneu é a melhor obra de Pompéia diremos que nos três casos estamos diante de obrasprimas da literatura Por razões ligeiramente diferentes Os Lusíadas podem não ser essenciais por exemplo para a cultura de um americano na Ilíada talvez encontremos irregularidades de construção dizemos que O Ateneu é a obraprima de um autor Pompéia mas nos três casos estamos diante de obras de qualidade que julgamos excepcional em relação a outras No passado entretanto a obraprima era aquela que coroava o aprendizado de um ofício que testemunhava a competência de seu autor Não se tratava de uma realização forçosamente inovadora original e era com frequência um produto utilitário saído das mãos de um carpinteiro ourives tecelão Os ofícios exercidos em ateliês isto acontece aproximadamente a partir do século XIV constituíam um sistema não apenas de produção e de distribuição de objetos mas também de ensino O ateliê tinha um mestre dono o mais das vezes da matériaprima e dos instrumentos de fabricação que ensinava aos aprendizes Estes começavam crianças e adquiriam todas as técnicas necessárias ao ofício Os ateliês agrupavamse em corporações que os protegiam e estabeleciam regras precisas por exemplo que o proprietário de um ateliê fosse obrigatoriamente um mestre E para que o aprendiz se tornasse mestre devia apresentar em concurso a outros mestres da corporação uma obra inteiramente de sua autoria que pudesse ser considerada perfeita demonstrando assim um domínio de todas as técnicas necessárias era a obra prima Dessa origem que se liga a condições de produção específicas a expressão se generaliza no sentido de denominar a melhor obra o produto mais perfeito no campo das artes São muitas as diferenças que não podemos abordar agora entre o emprego originário e o atual Ressaltemos uma que nos interessa a obra prima no passado era julgada a partir de critérios precisos de fabricação por artesãos que dominavam perfeitamente as técnicas necessárias Hoje os profissionais do discurso sobre a arte possuem critérios mais diversos e menos precisos em seus julgamentos critérios que não são apenas o do saber fazer Os caminhos do discurso Se um carpinteiro aprecia a qualidade de um móvel ele o faz a partir de um saber concreto digamos quase indiscutível Verificará a qualidade da madeira empregada a sua adequação à forma que se exige dela verá se os elementos que constituem os pés os braços o encosto de uma cadeira foram bem talhados e ajustados Admirará uma proeza qualquer de feitura por exemplo a solidez da cadeira repousando sobre pernas delgadas a fineza do entalhe e a delicadeza dos ornamentos No fazer que ele conhece encontra os critérios para julgar o fazer de outrem O crítico entretanto não tem recurso à objetividade do puro domínio técnico Sabemos que a pintura de Leonardo de Watteau ou Prudhon são mal feitas que o material e as técnicas empregadas por desleixo ou vontade experimental não são adequados que certos pigmentos não poderiam ter entrado em contacto entre si que a execução foi apressada e não esperou a camada inferior secar para dispor sobre ela a camada seguinte que se abusou do betume nas sombras E finalmente que o produto uma vez acabado envelheceu mal escurecendo ou transformando as tonalidades originais destruindo o desenho primitivo Mas não são esses os fatores que interessam ao juízo do crítico A Santa Ceia quase em ruína o São João Batista invadido pelas sombras não fazem de Leonardo um mau pintor O bom conhecimento da perspectiva da anatomia da aplicação de luz e sombra são técnicas de um mesmo nível que o manuseio das tintas pois são aprendidas segundo regras e podem ser julgadas com um forte grau de objetividade Mas elas são um meio entre outros para a construção de um quadro e não são nem podem ser uma exigência absoluta Ninguém pensaria em condenar Ingres pelo seu desdém pela anatomia nem Uccello por sua perspectiva pouco ortodoxa nem Botticelli pela ausência de modelado em suas obras Podemos dizer que certo pintor conhece perfeitamente a anatomia mas com isso estamos elogiando apenas um aspecto técnico parcial de sua obra Os discursos que determinam o estatuto da arte e o valor de um objeto artístico são de outra natureza mais complexa mais arbitrária que o julgamento puramente técnico São tantos os fatores em jogo e tão diversos que cada discurso pode tomar seu caminho Questão de afinidade entre a cultura do crítico e a do artista de coincidências ou não com os problemas tratados de conhecimento mais ou menos profundo da questão e mil outros elementos que podem entrar em cena para determinar tal ou qual preferência Dirá um que Wagner é compositor desmedido ou de prolixidade vazia outro invocará seu gênio harmônico a serviço de uma dramaticidade filosófica etc A situação é algo embaraçosa vimos os fatores exteriores instaurando a arte em nossa cultura vimos que eles determinam a hierarquia dos objetos artísticos e nos deparamos com divergências de critérios que nos deixam confusos Poderíamos tentar uma saída para o impasse buscando uma solução estatística se não há unanimidade talvez haja maioria E com efeito pelo menos em certos casos mais notáveis essa maioria parece manifestarse com alguma solidez é raro encontrarmos textos que desqualifiquem Cézanne por exemplo Eisenstein Shakespeare ou Mozart Eles existem sem dúvida mas um consenso geral valoriza extremamente a obra desses artistas Temos que nos desenganar no entanto Não somente porque quando se trata de obras mais polêmicas que não conquistaram a institucionalidade do consenso as disputas mantêmse acerbas qual é o interesse de Gounod ou Massenet Grande dizem os anglosaxões nenhum respondem os franceses Le Brun pode ser um artista admirável ou apenas gerar tédio Blake um doido ou um iluminado genial mas também porque esse consenso não é estável ele evoluí na história Sem dúvida Cézanne é tido hoje em dia como um dos maiores nomes da pintura de todos os tempos Porém não podemos esquecer que o reconhecimento do seu valor foi tardio enquanto viveu o consenso geral recusouse a julgálo positivamente e esse também foi o caso de Van Gogh de Gauguin e dos impressionistas pintores de uma época em que havia justamente um conflito entre os critérios estabelecidos e a obra que eles produziam Poderíamos pensar que somos hoje mais aptos a perceber o valor deles que nossa sensibilidade é mais aberta a Van Gogh e a Cézanne que a do público de seu tempo e teríamos razão Seria entretanto abusivo acreditar que o nosso juízo de hoje determina o reconhecimento definitivo de Cézanne e Van Gogh A crítica amanhã poderá nos mostrar que estávamos enganados e que o interesse dessa pintura afinal de contas não era assim tão grande Absurdo Rafael e Fídias são dois pilares da história da arte Inúmeras gerações de artistas se referiram a eles como mestres Não obstante no começo de nosso século foram assimilados a uma arte convencional a modelos de escola a patronos do academicismo e viram sua estabilidade de grandes gênios abalada ao convencionalismo que representavam preferiu se uma arte mais conforme ao espírito de inovação do tempo um primitivismo mais espontâneo exaltase por exemplo Uccello e a escultura arcaica Foi preciso esperar algum tempo para que novamente eles se reerguessem como faróis embora certamente menos incontestados do que antes Os casos de Guido Reni e do Corrégio são mais radicais Foram pintores de celebridade imensa indiscutível de influência decisiva durante séculos tão admirados quanto Michelangelo Rafael Leonardo e não se pode dizer deles que tenham conhecido apenas fama passageira No entanto hoje sofrem um eclipse brutal Nossa época parece interessarse tão pouco pela ternura do sublime mestre de Parma ou pelo rigor de Guido que quantos somos capazes de lembrar sequer um de seus quadros Melhor a quantos esses nomes dizem alguma coisa Poderíamos multiplicar os exemplos sabemos que o passado que foi tão severo com os impressionistas mostrouse profundamente generoso com pintores como Meissonier Gervex Puvis de Chavannes Chaplin ou Alma Tademma A morte de Meissonier por exemplo causou luto nacional na França Com o tempo no entanto a avaliação crítica inverteuse e esses pintores que se opunham aos impressionistas como técnica e assunto deixa ram de ser exaltados A condenação da posteridade chegou a tal ponto que se tornou difícil ver um quadro deles em museus Estes quando possuíam algum escondiamno envergonhados nas reservas Durante muito tempo essa pintura foi considerada como o próprio exemplo da não arte como alguma coisa Artisticamente irrecuperável Ora há questão de dez ou quinze anos começou a sua reabilitação triunfal Hoje descobrimos nela uma técnica admirável um imaginário surpreendentemente rico por vezes um erotismo extravagante e desmedido E inversamente começam a despontar análises restritivas a Renoir a Monet Em certos casos são setores inteiros da arte que passam por purgatórios do mesmo gênero As catedrais góticas que tanto admiramos hoje a escultura os vitrais e a pintura da Idade Média foram execradas pelos homens da Renascença e dos séculos seguintes até que os românticos e alguns teóricos do século passado como ViolletleDuc interessaramse por eles e demonstraram seu valor O barroco o maneirismo o art nouveau o neoclassicismo entre outros grandes movimentos da história da arte conheceram trajetórias de forte oscilação entre o interesse e o desprezo São tantas as flutuações no tempo dos vários juízos sobre as artes tantos os meandros traçados pelo que os italianos chamam de fortuna critica isto é pelos julgamentos da posteridade que não sabemos mais a que nos ater Por vezes uma obra um autor parecem inabaláveis como Homero e eis que um grande nome da cultura como Valéry ou Gide traduzindo uma corrente de opinião surge para afirmar que a Ilíada é insuportavelmente insuportavelmente entediante Com estes exemplos colhidos um pouco ao acaso já podemos chegar a uma constatação deprimente a autoridade institucional do discurso competente é forte mas inconstante e contraditória e não nos permite segurança no interior do universo das artes A BUSCA DO RIGOR A ideia de estilo Os discursos que determinam o estatuto e o objeto das artes não são unânimes nem constantes Sua segurança enquanto critério de julgamento já pode ser num primeiro tempo questionada eles podem ser contraditórios tanto na atribuição do estatuto da arte quanto na determinação da hierarquia O fato de que certas obras pareçam possuir uma permanência no tempo não retira o caráter institucional da autoridade do discurso foi ele quem exaltou durante séculos Fídias e Rafael foi ainda ele quem lhes promoveu a crítica Além disso a própria ideia de critério aparece como um esquema que perturba nossa aproximação da arte Sabedores de que Calixto é menor do que Leonardo predispomonos sumariamente a exaltar o segundo e a menosprezar o primeiro Entretanto a visão do litoral paulista que Calixto oferece é insubstituível poética e serena ela possui uma sensibilidade própria rica e enriquecedora Entretanto a afirmação de que a Gioconda é uma obra prima serve apenas para consagrala sem que a nossa apreensão da arte e do mundo melhore em alguma coisa A história da arte e a crítica não se contentam porém em determinar com um veredicto sem justificações a qualidade do objeto artístico Elas trazem ligados a esse julgamento o discorrer sobre o objeto o suporte que leva ao julgamento Ora a situação de divergências não é satisfatória para o próprio discurso Nada mais irritante para sua autoridade que a negação por um outro discurso Surge então o desejo de uma objetividade Os discursos sobre as artes parecem com frequência ter a nostalgia do rigor científico a vontade de atingir uma objetividade de análise que lhes garanta as conclusões E na história do discurso na história da crítica na história da história da arte constantemente encontramos esforços para atingir algumas bases sólidas sobre as quais se possa apoiar uma construção rigorosa O instrumento primeiro e mais freqüente desse desejo de rigor é o das categorias de classificações estilísticas Se conseguirmos definir estilos no interior dos quais encaixarmos a totalidade da produção artística começamos a pisar terreno mais seguro E a palavra sobre as artes tentará determinar essas classificações gerais A idéia de estilo está ligada à ideia de recorrência de constantes Numa obra existe um certo número de construções de expressões sistemas plásticos literários musicais que são escolhidos mas sem que esta noção tenha um sentido forçosamente consciente e empregados pelo artista com certa freqüência A idéia de estilo repousa sobre o princípio de uma interrelação de constantes formais no interior da obra de arte Tomemos um filme de Hitchcock Psicose por exemplo Constatamos nele a valorização dos personagens sempre presentes sempre tratados de maneira individualizada são mais freqüentemente um dois três do que grupos numerosos O cineasta filmouos de perto mostrando sobretudo os rostos a parte superior dos corpos Verificamos também que as paisagens são raras e quando existem estão dramatizadas e intimamente ligadas à ação uma casa inquietante um pântano que irá tragar um carro Percebemos que não há momentos de contemplação mas que todas as imagens dependem de uma vontade preponderante de narrar Estes elementos já são suficientes para detectarmos um estilo próprio ao filme subordinado à narração sublinhando o comportamento dos personagens Mas podemos aprofundar mais a análise verificando que certos movimentos de câmera certos tipos de montagem certos efeitos musicais reaparecem com insistência e delineiam com precisão crescente o estilo de Psicose Depois de Psicose vamos ver Suspeita Descobrimos que nele também existem paisagens dramatizadas personagens vistos de perto em tomadas próximas movimentos de câmera que evocam Psicose E na medida em que nos pomos em contacto com outros filmes de Hitchcock percebemos que certos elementos de construção tendem a ser reempregados por exemplo um determinado travelling que começa à distância e se aproxima lentamente de uma janela penetrando numa casa um certo modo de localizar um personagem dominado por um imenso elemento de arquitetura de fotografálo como que aprisionado na teia das sombras projetadas num interior ou no cruzamento dos caminhos entre os túmulos de um cemitério e assim por diante Prestando atenção nos elementos que reaparecem descobrimos o estilo de Hitchcock Do mesmo modo que podemos descobrir uma coerência estilística diferente em Eisenstein Jean Renoir ou Humberto Mauro Isto é verdadeiro em todas as artes há o estilo de Zola de José Lins do Rego de VillaLobos e de Mozart de Portinari ou Pedro Américo Por vezes o artista como acontece com Ingres mantém um mesmo estilo imutável da primeira à última obra na maioria dos casos porém ele transforma modifica suas constantes estilísticas com o correr do tempo ao ouvir a Sagração da Primavera e Petrushka de Stravinsky sentimos que as duas obras têm muita coisa em comum mas que estão bem distantes da Sinfonia em dó ou do Réquiem do mesmo compositor Assim um mesmo criador pode desenvolver em sua produção tendências estilísticas diferentes que se se sucedem no tempo constituem as fases distintas do artista Estas constantes transcendem as obras Quando conhecemos suficientemente o estilo de um autor reconhecemos com facilidade sua produção Não é preciso termos ouvido e memorizado todas as composições de Chopin para sabermos que é dele a peça desconhecida que escutamos no rádio não precisamos num museu ler a etiqueta para descobrirmos que tal obra foi pintada por Matisse ou Rembrandt desde que estejamos familiarizados com o estilo desses artistas O estilo pode até levar à constatação da existência de autores sobre os quais ignoramos tudo são os mestres Se um grupo de obras anônimas apresenta muitas afinidades estilísticas os especialistas criam a hipótese de um autor comum Freqüentemente é um quadro mais importante que agrupa à sua volta outras obras e que dá nome ao autor assim o mestre da Anunciação de Aix o mestre de Flora Outras vezes o mestre é autor de um ciclo assim o mestre dos cassoni Campana ou o mestre da Capela Velha que Mário de Andrade descobriu em Itu distinguindoo do Padre Jesuíno do Monte Carmelo Ou ainda o artista possuía uma característica muito precisa em sua obra como o mestre da candeia Assim as constantes estilísticas permitem mesmo a constituição de autores unicamente a partir das obras Alargando ainda mais o campo do conceito descobrimos que as diversas épocas constroem uma espécie de pano de fundo estilístico comum às obras por diferentes que sejam Não existem artistas mais dessemelhantes que Rossini e Beethoven que David e Goya há neles entretanto alguns elementos comuns que embora difusos são próprios à sua época e os reúnem Eles pertencem à mesma época e não podemos imaginalos fora dela quando vemos uma pintura de Goya e David mesmo sem conhecer seus autores sabemos que elas não poderiam ter sido feitas nem no começo do século XVIII nem no fim do século XIX Mas é também certo que dentro das mesmas épocas segundo afinidades entre produções de diferentes criadores é possível reagrupálas sob denominadores particulares David e Canova são neoclássicos Boucher e Fragonard são rococó Neste esquema simplificado a ideia é sedutora Mas o problema bem mais complexo impede na realidade que as articulações sejam assim tão fáceis Porque a obra de arte não se reduz ao estilo e porque as classificações estilísticas não têm muitas vezes a pureza formal que evocamos acima E também porque no discurso sobre a arte não é raro encontraremse referências à ideia de estilo como se fosse suficiente e formal o que vem ainda mais complicar as coisas Tentaremos ver as limitações a utilidade e os empregos abusivos dessa noção misérias e grandezas da noção de estilo Os estilos Falando de arte referimonos a impressionismo surrealismo romantismo rococó a um estilo cretense helenístico ou egípcio Na maior parte das vezes atribuÍmos a essas palavras um poder excessivo o de encarnarem uma espécie de essência à qual a obra se refere De que estilo é tal pintor Enquanto não colamos uma etiqueta em cima não sossegamos é hiperrealista é abstracionista é impressionista é surrealista Isso nos tranquiliza pois supomos conhecer o essencial sobre a obra supomos saber o que significam as classificações e que a obra corresponde a uma delas Essa atitude pode ser pacificadora mas não é satisfatória Pois as obras são complexas e é de sua natureza escapar às classificações pois as classificações são complexas e nunca se reduzem a uma definição formal e lógica pois a relação entre as obras e os conceitos classificatórios é sobretudo complexa Dissemos que as denominações estilísticas extravasam o domínio da definição formal que inicialmente parecia constituir seu núcleo de base Elas não são lógicas são históricas viveram no tempo e tiveram caminhos e funções diferentes Elas evoluíram e não são forçosamente as mesmas segundo as épocas que as empregam Algumas foram criadas por homens que se reconheciam nelas Breton e Dali diziamse surrealistas Alberti e Masaccio sabiamse homens da Renascença Courbet colocou na entrada de uma das suas exposições uma tabuleta Pavilhão do Realismo Em outros casos a atribuição de um epíteto a um grupo de artistas é exterior a ele os impressionistas os fauve foram assim chamados de maneira pejorativa por jornalistas do tempo embora em seguida tenham assumido por pirraça ou paixão as denominações E ainda há conceitos inventados a posteriori para localizar na história tal ou qual grupo de artistas que evidentemente não suspeitavam da classificação Bernini não sabia que era barroco nem Simone Martini que era gótico Ainda a relação entre os denominadores e as obras nunca se dá da mesma maneira A idéia de romantismo referese a uma renovação das técnicas artísticas na medida em que compreende uma ruptura e uma oposição com um passado clássico mas nos encaminha o que é mais importante a uma visão global do mundo da sensibilidade a uma atitude diante da sociedade enfim a todo um conjunto de elementos que ultrapassa o lado puramente formal a especificidade do fazer artístico Por vezes essa especificidade é reduzida a um mínimo André Breton cujo pensamento constitui um dos eixos capitais do que se chamou movimento surrealista reconhecia que certas técnicas certos procedimentos como a escrita automática que alinha palavras ou expressões tais como aparecem espontaneamente em associações sem controle consciente ao espírito do artista ou o frottage do verbo francês frotter esfregar que consistia em tomar a marca em relevo de uma superfície rugosa a madeira de um velho assoalho por exemplo e com ela organizar um desenho ou um quadro ou como a colagem de objetos diferentes recortes de jornais coisas do uso quotidiano ou recuperadas no lixo etc podiam permitir a manifestação da profundidade inconsciente do artista Para o surrealismo a liberação desse eu profundo era a meta essencial da arte Mas Breton reconhecia também que estas técnicas embora propícias não eram suficientes para a realização de uma obra surrealista Elas poderiam ser utilizadas sem sinceridade visando apenas um efeito sedutor à moda tendo como resultado um produto inautêntico pseudosurrealista Por outro lado esses não eram os únicos meios que o artista podia dispor para obter também a desejada liberação inconsciente Uma obra surrealista não depende portanto de uma definição estilística Num texto intitulado Situação Surrealista do Objeto Breton analisando o problema lembra a sugestão de Man Ray que trabalhava sobretudo com experiências fotográficas do mesmo modo que no cinema costumase projetar antes da película Este é um filme Paramount devia se descobrir incorporado de alguma maneira ao poema ao livro ao desenho à tela à escultura à construção nova que se tem sob os olhos uma marca feita de modo inimitável e indelével alguma coisa como Este é um objeto surrealista A anedota mostra bem que para Breton além do estilo existem outros fatores decisivos para definir o objeto surrealista E eles se fundamentam numa sinceridade profunda num impulso de libertação do inconsciente numa espécie de moral surrealista que escapa ao simples exame exterior dos objetos Nesse sentido talvez o gesto surrealista mais legítimo e trágico tenha sido o suicídio de René Crevel Como o romantismo ou melhor que ele o surrealismo implica uma visão uma atitude diante do homem e da sociedade Se examinamos entretanto a pintura impressionista descobrimos poucas preocupações desse tipo Os impressionistas enquanto artistas tiveram uma atitude corajosa e conseqüente opondose à arte dominante de seu tempo Mas suas obras não repousam sobre uma determinada posição teórica política ou sentimental diante da vida A palavra impressionismo tem hoje uma extensão menor que a adquirida em 1874 ocasião da primeira exposição do grupo muito díspare alias Impressionismo depois do artigo irônico e maldoso de Louis Leroi no Charivari ficou denominando toda arte pouco ortodoxa ou maldita Tanto Gauguin quanto Van Gogh nitidamente distintos em sua pintura de um Renoir ou Monet recebiam a denominação Mas logo se evidenciou a coerência formal de um núcleo mais reduzido Caillebotte Monet Pissarro Sisley uma boa parte da produção de Renoir recusam o desenho que estrutura privilegiam o gesto espontâneo e preferem pintar ao ar livre diante do motivo tomando como preocupação central os efeitos produzidos pelos fenômenos puramente luminosos reflexos transparências fumaças brumas sobre os volumes O assunto do quadro tinha pouca importância o organizador do catálogo da exposição de 1874 desconsolase ao receber a lista dos títulos de Monet eram Entrada de aldeia Saída de aldeia Tarde na aldeia Manhã na aldeia Marinha a não mais acabar E quando ele pinta sua série de Freixos de Montes de feno ou a catedral de Ruão ao meiodia ou no crepúsculo mostra bem que seu interesse reside não na representação das árvores do feno ou da catedral mas nas variações de efeitos luminosos sobre esses volumes que funcionam essencialmente como suportes E assim chegase a um conjunto de práticas artísticas que podem ser usadas como elementos definidores por elas afirmaremos definitivamente que Gaughin e Van Gogh não pertencem ao grupo nem sequer Cézanne ToulouseLautrec ou Degas que constituiriam quando muito o setor das divergências e variações do impressionismo como diz Jean Cassou Percebemos a partir desses exemplos que as classificações não são instrumentos científicos que elas não são exatas que não partem de definições e que agrupam obras ou artistas por razões muito diferentes entre as quais se pode encontrar a idéia de estilo mas não forçosamente e sempre parcialmente O que nos leva a considerar que seu emprego deve ser muito cuidadoso Um dos perigos é o de sua utilização como universais É banal encontrarmos a palavra surrealismo empregada como sinônimo de insólito de estranho de desabitual e mesmo de absurdo como é banal ouvirmos dizer que determinado objeto é barroco porque parece extravagante ou muito ornamentado falase mesmo em uma natureza barroca ou que tal moça é romântica porque possui uma personalidade sentimental ou que tal artista é impressionista unicamente porque pinta de maneira mais ou menos livre Esse emprego descontraído e sem compromisso é evidentemente abusivo apenas apropriado a conversas de salão ou de bar Entretanto o mesmo princípio de universalidade costuma ocorrer com freqüência num discurso que se pretende mais elaborado Bosch passa a ser surrealista Debussy impressionista falase mesmo numa crítica impressionista Virgílio romântico ou pior tentase a todo preço rubricar os artistas com tal ou qual etiqueta Fra Angélico por exemplo é gótico ou renascentista Podemos perguntar se há necessidade de escolher um rótulo qualquer para designar o pintor do convento de São Marcos Pois o importante não é assimilar seu estilo ao que supomos seja o gótico ou a pintura de Renascença mas descobrir o que o artista revela como preocupações como visão qual a sua especificidade entre as artes de seu tempo Lançar mão do metro estilo gótico para medir Fra Angélico e descobrir se ele se encaixa é empobrecer lamentavelmente a nossa percepção de sua obra É suficiente nos debruçarmos sobre o objeto artístico em si mesmo para percebermos a inanidade das classificações pois sua riqueza foge sempre a qualquer determinação D Casmurro é muito mais que um romance realista A Besta Humana não se reduz aos preceitos do naturalismo as obras em sua fecundidade concreta são sempre mais do que nos dizem as pretensas definições E no entanto elas possuem uma singular sedução Estamos diante de produtos que nos escapam que se desenvolvem de modo tão inesperado tão pouco previsível que para os dominar não resistimos à tentação fácil de os classificar E essas classificações passam a ser mais importantes do que as obras Crítica história da arte categorias e sistemas O princípio das classificações baseadas na idéia de estilo deu em particular à história da arte a esperança de um instrumento objetivo e eficaz E aqui é preciso distinguir a função do crítico da do historiador distinção formal porque na maior parte das vezes essas atividades se juntam O Crítico analisa as obras e sua função é eminentemente seletiva De certo modo é o juiz que valoriza ou desvaloriza o objeto artístico É claro que o conhecimento da história das diferentes produções artísticas servelhe para a elaboração de seus critérios Um crítico de cinema freqüentemente conhece os filmes do passado o que lhe permite um jogo de comparações intuitivas ou explícitas capaz de o levar a condenar este ou aquele filme Mas isso além de não ser absolutamente necessário não se confunde com a construção da história dos objetos artísticos no tempo Assim o historiador da arte procura em princípio evitar os julgamentos de valor Taine no fim do século passado lançando as bases de uma abordagem rigorosa desses fenômenos dirá que é necessário colocarse entre parênteses o julgamento para se chegar à compreensão objetiva Entretanto o historiador da arte não consegue evitar inteiramente os critérios seletivos pois o conjunto de objetos que estuda supõe uma escolha Privilegiará um autor que pareça a seus olhos e aos de seus contemporâneos mais importante consagrandolhe um maior número de páginas aprofundando mais a análise Uma história da literatura brasileira dedicará forçosamente várias páginas a Machado um número bem menor a Gonçalves de Magalhães e poderá excluir Teixeira e Souza A seleção feita ou assumida pelo historiador nunca é o fim procurado pois como já dissemos ele busca a compreensão dos fenômenos artísticos Mas se ele trabalha a partir de um corpus um conjunto delimitado de elementos que servirão de objeto de estudo necessariamente selecionado o que pretende antes de tudo é articulálo num conjunto coerente e o compreender A compreensão a suspensão do julgamento denotam o desejo de rigor próximo da ciência Será útil examinarmos alguns esforços feitos na história da arte para se conseguir um rigor maior através da idéia de estilo O primeiro momento dáse com Heinrich Wölfflin 18641945 na virada do século Wölfflin teórico e historiador nascido na Suíça tenta construir uma metodologia rigorosa no interior da história da arte Antes dele Taine preocuparase com as ligações entre as obras e o contexto cultural que as produziu Não é isso que interessa a Wölfflin ele busca um método que focalize a obra de arte exclusivamente na sua especificidade e propõe assim por primeiro as bases de uma análise formal precisa fundamento de uma história autônoma das artes Em 1888 Wölfflin escreve Renascença e Barroco Neste texto aparecem duas novidades essenciais A primeira é a revalorização do barroco que desde o fim do século XVIII era considerado pejorativamente como uma evolução aberrante e decadente da arte da Renascença um derivado estéril que tentava compensar pela extravagância a ausência de seiva criadora Wölfflin decidese por outra interpretação o barroco é uma produção artística nova e total com seus próprios critérios formas e intenções A arte dos séculos XVII e XVIII é diferente da arte da Renascença e deve ser compreendida em si mesma A segunda novidade não menos importante é que para Wölfflin o que determina a autonomia do barroco e sua oposição ao classicismo da Renascença é uma análise minuciosa das constantes formais Pela primeira vez dois períodos distintos da história da arte aparecem claramente caracterizados a partir unicamente de um inventário estilístico Bem mais tarde em 1915 Wölfflin escreverá outro tratado os Princípios Fundamentais da História da Arte que representa o amadurecimento das reflexões desenvolvidas na obra anterior e a tentativa de as teorizar Nele encontramos cinco categorias duplas em oposição que permitiriam caracterizar o classicismo e o barroco São as seguintes 1 o classicismo é linear o barroco pictural 2 o classicismo utiliza planos o barroco a profundidade 3 o classicismo possui uma forma fechada o barroco aberta 4 o classicismo é plural o barroco unitário 5 o classicismo possui uma luz absoluta o barroco relativa Compreenderemos melhor o que Wölfflin quer dizer com cada uma dessas oposições a partir de alguns exemplos facilmente acessíveis Para ilustrar a primeira categoria tomemos o chamado tondo Doni figura 1 tondo em italiano quer dizer circular redondo e é aplicado aos quadros que possuem essa forma a célebre Madona da Cadeira de Rafael que se encontra na Galeria Palatina do Palácio Pitti em Florença é um tondo a Virgem com o Menino e São João Batista de Botticelli que se encontra no Museu de Arte de São Paulo também Doni é o sobrenome do florentino que encomendou o quadro representando a Sagrada Família com São João Batista pintado por Michelangelo na primeira década do século XVI e que se encontra no Museu dos Ofícios de Florença O quadro é um pouco insólito o grupo da Sagrada Família está perto do espectador ocupando o centro da tela atrás isolados por uma espécie de murinho estão São João menino e cinco nus masculinos de adolescentes A estranheza pede uma explicação simbólica e as imagens podem ser tomadas como uma articulação entre a antiguidade clássica os nus e a religião cristã a Sagrada Família ou o paganismo redimido pelo batismo através da figura intermediária de São João ou ainda como outra coisa qualquer Mas isso por ora importa pouco O que nos interessa é a linha instrumento construtor por excelência que define com nitidez os objetos conduz o olhar e limita os volumes Por seu intermédio Michelangelo apreende os corpos no que eles têm de palpável de tátil isto é os contornos e as superfícies Estamos diante de uma visão plástica que isola os objetos fisicamente corporalmente pelo contorno Os braços da Virgem musculosos fortes sobre os quais Wölfflin deixou um texto de profundo lirismo e admiração são perfeitamente recortados e o modelado em pintura o modelado é a aplicação de luz e sombra sobre um objeto de modo a se obter o efeito de volume tem uma precisão metálica As dobras do manto são também definidas pelas linhas com rigor e pelo relevo nítido e vigoroso Opondose ao linear está o pictural Há um quadro no museu Richartz de Colônia pintado em 1630 e portanto mais de cem anos depois do de Michelangelo que nos servirá de perfeita antítese ele representa também uma Sagrada Família à qual foi acrescentada SantAna figura 2 e seu autor é Rubens Sentimos imediatamente entre os dois diferenças consideráveis e uma delas é que esse aspecto plástico tátil que no quadro de Michelangelo atraía nossas mãos diminuiu muito ao caráter palpável dos volumes substituiuse sua aparência puramente visual Os limites lineares deixaram de ser precisos as carnes e os tecidos não refletem mais a luz e passaram a ser o suporte de uma vibração luminosa introduzindo um modelado muito menos definido Os objetos não se encontram mais isolados entre si mas se ligam através de passagens suaves uns aos outros Num caso diz Wölfflin temos objetos corpóreos distintos no outro uma visão na sua totalidade uma aparência flutuante A segunda oposição em planos ou profundidade decorre da primeira Fig 1 Michelangelo Buonarroti A Sagrada Família tondo Doni Cerca de 15045 Galeria dos Ofícios 42 Fig 2 Pieter Paul Rubens A Sagrada Família Fig 3 Rafael Sanzio A Escola de Atenas 150910 Palácio do Vaticano Câmara da Assinatura Roma Fig 4 Pieter Paul Rubens O Rapto das Sabinas 1635 National Gallery Londres Fig5 Jean Louis David As Sabinas179499 Museu do Louvre Paris Tomemos dois outros exemplos A Escola de Atenas de Rafael figura 3 de 1510 certamente o afresco mais célebre da série que lhe foi encomendada por Júlio II para decorar aposentos no palácio do Vaticano e o Rapto das Sabinas um Rubens dos anos 1630 Figura 4 que se encontra na National Gallery de Londres É claro que o contraste mais agudo entre essas duas obras que salta aos olhos numa evidência gritante é a total serenidade de um meditativa calma e a frenética violência do outro Mas além disso no primeiro caso existe uma construção em planos sucessivos num espaço organizado geometricamente com o auxílio de um desenho rigoroso O primeiro segundo e terceiro planos claros e paralelos são reforçados pela própria representação do solo no primeiríssimo plano os motivos quadrados do piso em mármore em seguida os degraus e enfim o plano superior Sobre eles ordenadamente dispõemse os personagens Como entretanto distinguir planos no quadro de Rubens Não conseguimos mais fazer caminhar nosso olhar por etapas ele circula sem repouso pois tudo está ligado e passamos do primeiro plano ao último sem transições A terceira oposição forma fechada e forma aberta ou tectônica e atectônica como Wölfflin também diz referindose a uma estrutura simétrica e sólida repousa sobre a idéia de que os quadros clássicos possuem eixos de construção estáveis e claros verticais e horizontais e que os quadros barrocos preferem o dinamismo das diagonais Mas além disso a forma fechada pressupõe uma suficiência da composição a aberta um extravasamento dos limites físicos da tela isto é num caso a imagem foi feita para ser vista na sua totalidade e no outro como um fragmento No tondo Doni na Escola de Atenas temos não somente essa axialidade equilibrada como também a ideia da suficiência da representação enquanto em Rubens prevalece a impressão de surpreender por um acaso maravilhoso um fragmento do mundo visível Os limites físicos do quadro sua margem sua moldura não contêm mais a cena que transborda para o exterior Num caso a construção pictural é suficiente no outro ela pressupõe o espaço do espectador E nesta categoria Wölfflin introduz também a ideia de que o classicismo mostra os objetos numa permanência atemporal enquanto o barroco procura o instante que passa Na quarta oposição temos multiplicidade e unidade ou como propõe o autor unidade múltipla e unidade indivisível Num caso cada elemento do quadro existe por si e se articula de acordo com a organização clara do todo cada personagem da Escola de Atenas é tratado individualmente dentro de subgrupos dispostos simetricamente inscritos num todo perfeitamente estruturado No Rapto das Sabinas essa vida autônoma dos elementos inexiste as formas guardando sua função diretriz emergem de um fluxo único para o olho não significam nada que possa ser considerado à parte que possa ser destacado do resto A vida de cada uma das partes só existe se subordinada ao conjunto Finalmente a luz absoluta e relativa opõe obras como os exemplos que demos de Michelangelo e Rafael às de Rubens pelo fato de que nos primeiros casos ela é homogênea em todo o quadro e ilumina da mesma maneira todos os detalhes Na pintura de Rubens entretanto ela seleciona privilegiando certas regiões obscurecendo outras à luz abstrata e atemporal do classicismo opõese a dramatização circunstancial do claroescuro Caravaggio foi o grande inventor desses efeitos no começo do século XVII e seus herdeiros são os grandes luministas como La Tour Rembrandt Zurbarán Desse modo por meios exclusivamente formais e ignorando os temas das obras pouco importa a simbologia obscura do tondo Doni ou o episódio do Rapto das Sabinas Wölfflin organiza dois grupos estilísticos opostos No entanto ele é antes de tudo um historiador da arte que pelo seu grande contacto com o objeto artístico sabe que este se acomoda mal em esquemas e em simplificações Suas precauções no utilizar as categorias são exemplares Em primeiro lugar elas não precedem as obras mas são deduzidas de um corpus concreto em segundo ele não perde de vista a história pois longe de serem universais suas categorias aplicamse exclusivamente a dois períodos precisos o da Renascença e o do Barroco Em terceiro elas não são nem absolutamente necessárias nem absolutamente suficientes tal quadro de Rafael a Madonna dellImpanata do palácio Pitti por exemplo ou a Sagrada Família da Pérola do museu do Prado em Madri utiliza uma luz não homogênea mas seletiva e dramatizada não há em Giorgione pintor da Renascença veneziana morto em 1510 o contorno que recorta a superfície metalina dos volumes para não se falar do dinamismo barroco dos quadros do Tintoretto Por outro lado as categorias clássicas poderiam ser aplicadas a David ao seu Rapto das Sabinas de 1799 figura 5 por exemplo mas seria impossível confundir esse quadro com a produção da Renascença o tipo de gesticulação empregada trabalhada em si mesma como poses de ateliê a sua recomposição no conjunto que dá uma impressão de desorganização astuciosa teatralmente organizada a vontade de citação arqueológica são fatores essenciais que o distinguem indubitavelmente do classicismo da Renascença Wölfflin sempre se mostrou um historiador das formas e considerava suas categorias como espécies de pólos que ele mesmo o diz certamente não são os únicos em volta dos quais se situavam mais ou menos próximos os quadros analisados ou os edifícios e as estátuas pois elas se referiam também à escultura e à arquitetura Os exemplos escolhidos por ele se encontravam sempre numa faixa de tempo estreita e seu classicismo e barroco não se dessolidarizam da época que os engendrou Classificaríamos Velasquez Rembrandt o silencioso o calmo o estável Vermeer nessa idéia imprecisa que em nosso quotidiano em nossos batepapos chamamos de barroco Pois Wölfflin em análises magistrais as toma como exemplos privilegiados em oposição ao classicismo Aliás é significativa a impressão de tanta riqueza em suas análises finas completas luminosas ultrapassando de longe os andaimes esqueléticos das cinco oposições Em Wölfflin o discurso é cuidadoso e parte sempre de um exame do concreto Sua tentativa de rigor é eficaz porque baseada num instrumento pobre que não pretende dar conta da multiplicidade da produção artística examinada para isso a flexibilidade da análise dos objetos é mais apta mas que serve de ponto de apoio As precauções de Wölfflin entretanto foram reiteradamente abandonadas e com freqüência encontramos um formalismo categórico que se pretende absoluta chave explicadora Passaremos agora a constatar dois casos de evolução entre os maiores e menores inúmeros que derivam de uma certa forma da atitude wolffliniana DOrs e a categoria do barroco universal Classicismo e classicismo francês Em Wölfflin como vimos as obras secretam as constantes que permitem a ele situálas em campos opostos Mas em muitas outras abordagens o molde é fabricado de antemão o metro é uma abstração e se impõe exteriormente às obras Eugênio dOrs brilhante pensador catalão foi podemos dizer um herdeiro perverso de Wölfflin Em 1928 escreve O Barroco texto célebre no qual sua erudição imensa e sua inteligência propõem a aproximação do conceito independentemente da história querendoo de uma natureza científica classificatória e universal como Lineu havia feito com a zoologia e a botânica o barroco seria um gênero que agrupária fenômenos culturais temporalmente distantes mas possuindo constantes determinadoras comuns Do mesmo modo que felix recobre um gênero zoológico barroco recobre um gênero cultural e artístico Mas se esses fenômenos possuem constantes eles possuem também especificidades que sempre como nas classificações zoológicas e botânicas felix leo o leão felix catus o gato felix tigris o tigre definirão as espécies do barroco E dOrs determina um quadro classificatório que começa na préhistória o barocchus pristinus e prossegue passando pelo barocchus buddhicus pelo barocchus gothicus pelo barocchus romanticus entre outros São vinte e duas categorias ao todo que chegam mesmo a um barocchus finisecularis correspondendo às expressões artísticas do fim do século passado dOrs enumera Wagner Rodin Rimbaud Beardsley Bergson WJames Lautréamont Huysmans o artouveau e a um barocchus postabellicus do pósguerra referindose à de 191418 contemporâneo de seu livro que não se vê associado a exemplo nenhum mas a respeito do qual seríamos tentados de evocar Proust o art déco e o próprio Eugênio dOrs O livro de dOrs pelo seu brilho pela facilidade com que manipula os mais diversos objetos artísticos aproximandoos entre si ou os iluminando de maneira inesperada é de extrema fecundidade Sua leitura permite entrar em contacto com um grande espírito que é ao mesmo tempo um grande escritor Mas é suficiente pensarmos na atitude que consiste em colocar no mesmo saco Lascaux a janela de Tomar os afrescos cretenses Bergson El Greco e Proust para percebermos que se tais aproximações podem engendrar ideias apaixonantes elas só podem ser obra do sujeito que encontra as afinidades e sua pretensão ao instrumento objetivo é um engano Wölfflin historiador das formas concebe duas categorias historicamente situadas em sucessão dOrs toma uma delas e universalizaa brilhantemente sacrificando o rigor A outra categoria o classicismo embora sem um teórico da mesma envergadura que dOrs será também universalizada Até pelo menos o século XVIII ela estava ligada a uma idéia de modelo os clássicos por excelência sendo os antigos isto é os gregos e os romanos justamente a chamada antiguidade clássica Dessa ideia de modelomestre ela passa a significar equilíbrio rigor tranqüilidade racionalidade Pouco a pouco durante os séculos XIX e XX esse sentido afirmase cada vez mais e tem repercussões profundas A França por exemplo constrói uma imagem clássica de si mesma de seu gênio o mais legítimo presente em todos os momentos da história do espírito francês Essa visão é sobretudo cimentada no começo da Terceira República a partir de 1870 momento em que a ideologia do poder é leiga positiva clara científica Descartes fica sendo então um filósofo clássico Le Brun Girardon Mansart Racine artistas clássicos Foi preciso esperar Tapiès com seu admirável livro Classicismo e Barroco confirmado no recente e genial ensaio de Philippe Beaussant intitulado Versalhes Opera para se descobrir que o classicismo francês do século XVII é apenas uma manifestação local e específica de um movimento internacional de arte e civilização que habituamonos a chamar barroco Focillon e o evolucionismo autônomo das formas Para um espírito rigoroso essas universalizações são insatisfatórias E sentindo as dificuldades das categorias um esteta e historiador da arte dos mais importantes do século XX tentou elaborar um sistema dinâmico da evolução das artes Para Wölfflin e dOrs os conceitos são estéticos eles agrupam e nada mais Wölfflin ligase à evolução no tempo porque em tal momento as formas tomam tais constantes e no seguinte outras tantas Mas para ele o barroco não é uma conseqüência do classicismo há uma idéia de sucessão e não de causalidade Focillon em seu livro que se intitula significativamente A Vida das Formas 1934 tenta o seguinte processo evolutivo o classicismo é plenitude e apogeu momento de maturidade onde as formas encontram um equilíbrio perfeito embora fugitivo e passageiro Mas não se trata do classicismo de Wölfflin isto é correspondente à Renascença o conceito é aplicável a todas as épocas artísticas pelo menos como pressuposto possível