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Psicologia ·
Psicologia Social
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Em defesa da Vida Cuidar da Casa Comum Um pouco cansada com as compras deformando o novo saco de tricô Ana subiu no bonde Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar Recostouse então no banco procurando conforto num suspiro de meia satisfação Os filhos de Ana eram bons uma coisa verdadeira e sumarenta Cresciam tomavam banho exigiam para si malcriados instantes cada vez mais completos A cozinha era enfim espaçosa o fogão enguiçado dava estouros O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembravalhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa olhando o calmo horizonte Como um lavrador Ela plantara as sementes que tinha na mão não outras mas essas apenas E cresciam árvores Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz crescia a água enchendo o tanque cresciam seus filhos crescia a mesa com comidas o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome o canto importuno das empregadas do edifício Ana dava a tudo tranqüilamente sua mão pequena e forte sua corrente de vida Certa hora da tarde era mais perigosa Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela Quando nada mais precisava de sua força inquietavase No entanto sentiase mais sólida do que nunca seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos a grande tesoura dando estalidos na fazenda Todo o seu desejo vagamente artístico encaminharase há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos com o tempo seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa a vida podia ser feita pela mão do homem No fundo Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas E isso um lar perplexamente lhe dera Por caminhos tortos viera a cair num destino de mulher com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado O homem com quem casara era um homem verdadeiro os filhos que tivera eram filhos verdadeiros Sua juventude anterior parecialhe estranha como uma doença de vida Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia abolindoa encontrara uma legião de pessoas antes invisíveis que viviam como quem trabalha com persistência continuidade alegria O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável Criara em troca algo enfim compreensível uma vida de adulto Assim ela o quisera e o escolhera Sua precaução reduziase a tomar cuidado na hora perigosa da tarde quando a casa estava vazia sem precisar mais dela o sol alto cada membro da família distribuído nas suas funções Olhando os móveis limpos seu coração se apertava um pouco em espanto Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar cuidando do lar e da família à revelia deles Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do COLÉGIO JESUS MARIA JOSÉ PRÉMÉDIO e ENSINO MÉDIO ALUNO Nº DATA e VISTO DA REVISORA 2017 SÉRIE 3ª TURMA DATA 2017 3º TRIMESTRE COMPONENTE Literatura PROFESSORA Tatiane A Lima DATA e VISTO DO PROFESSOR 2017 INSTRUÇÕES 1 Preencha o cabeçalho e confira toda a atividade Se houver alguma irregularidade fale com o professoraplicador 2 Leia cuidadosamente cada questão para assegurarse de que a compreendeu bem 3 A atividade deverá ser realizada com caneta de tinta azul ou preta 4 Questões a lápis ou rasuradas não darão direito a revisão 5 As questões objetivas rasuradas serão anuladas 6 Não é permitido o uso de corretivos nem a solicitação de material emprestados 7 Quando necessário mesmo que simples mantenha os cálculos AMOR Clarice Lispector Objeto de avaliação da 3ª etapa do PAS Em defesa da Vida Cuidar da Casa Comum colégio exigiamna Assim chegaria a noite com sua tranqüila vibração De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos como se voltassem arrependidos Quanto a ela mesma fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo E alimentava anonimamente a vida Estava bom assim Assim ela o quisera e escolhera O bonde vacilava nos trilhos entrava em ruas largas Logo um vento mais úmido soprava anunciando mais que o fim da tarde o fim da hora instável Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher O bonde se arrastava em seguida estacava Até Humaitá tinha tempo de descansar Foi então que olhou para o homem parado no ponto A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado De pé suas mãos se mantinham avançadas Era um cego O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança Alguma coisa intranqüila estava sucedendo Então ela viu o cego mascava chicles Um homem cego mascava chicles Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar o coração batialhe violento espaçado Inclinada olhava o cego profundamente como se olha o que não nos vê Ele mascava goma na escuridão Sem sofrimento com os olhos abertos O movimento da mastigação faziao parecer sorrir e de repente deixar de sorrir sorrir e deixar de sorrir como se ele a tivesse insultado Ana olhavao E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio Mas continuava a olhálo cada vez mais inclinada o bonde deu uma arrancada súbita jogandoa desprevenida para trás o pesado saco de tricô despencouse do colo ruiu no chão Ana deu um grito o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava o bonde estacou os passageiros olharam assustados Incapaz de se mover para apanhar suas compras Ana se aprumava pálida Uma expressão de rosto há muito não usada ressurgialhe com dificuldade ainda incerta incompreensível O moleque dos jornais ria entregandolhe o volume Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras tentando inutilmente pegar o que acontecia O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor o bonde deu a nova arrancada de partida Poucos instantes depois já não a olhavam mais O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre Mas o mal estava feito A rede de tricô era áspera entre os dedos não íntima como quando a tricotara A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido não sabia o que fazer com as compras no colo E como uma estranha música o mundo recomeçava ao redor O mal estava feito Por quê Teria esquecido de que havia cegos A piedade a sufocava Ana respirava pesadamente Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso tinham um ar mais hostil perecível O mundo se tornara de novo um malestar Vários anos ruíam as gemas amarelas escorriam Expulsa de seus próprios dias parecialhe que as pessoas da rua eram periclitantes que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão e por um momento a falta de sentido deixavaas tão livres que elas não sabiam para onde ir Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente como se pudesse cair do bonde como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram O que chamava de crise viera afinal E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas sofrendo espantada O calor se tornara mais abafado tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução as grades dos esgotos estavam secas o ar empoeirado Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavamna com o vigor que possuíam Junto dela havia uma senhora de azul com um rosto Desviou o olhar depressa Na calçada uma mulher deu um empurrão no filho Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo E o cego Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa Ela apaziguara tão bem a vida cuidara tanto para que esta não explodisse Mantinha tudo em serena compreensão separava uma pessoa das outras as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podiase escolher pelo jornal o filme da noite tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro E um cego mascando goma despedaçava tudo isso E Em defesa da Vida Cuidar da Casa Comum através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce até a boca Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida Na fraqueza em que estava tudo a atingia com um susto desceu do bonde com pernas débeis olhou em torno de si segurando a rede suja de ovo Por um momento não conseguia orientarse Parecia ter saltado no meio da noite Era uma rua comprida com muros altos amarelos Seu coração batia de medo ela procurava inutilmente reconhecer os arredores enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava lhe o rosto Ficou parada olhando o muro Enfim pôde localizarse Andando um pouco mais ao longo de uma sebe atravessou os portões do Jardim Botânico Andava pesadamente pela alameda central entre os coqueiros Não havia ninguém no Jardim Depositou os embrulhos na terra sentouse no banco de um atalho e ali ficou muito tempo A vastidão parecia acalmála o silêncio regulava sua respiração Ela adormecia dentro de si De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho Ao seu redor havia ruídos serenos cheiro de árvores pequenas surpresas entre os cipós Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada Como por um zunido de abelhas e aves Tudo era estranho suave demais grande demais Um movimento leve e íntimo a sobressaltou voltouse rápida Nada parecia se ter movido Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato Seus pêlos eram macios Em novo andar silencioso desapareceu Inquieta olhou em torno Os ramos se balançavam as sombras vacilavam no chão Um pardal ciscava na terra E de repente com mal estar pareceulhe ter caído numa emboscada Faziase no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber Nas árvores as frutas eram pretas doces como mel Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções como pequenos cérebros apodrecidos O banco estava manchado de sucos roxos Com suavidade intensa rumorejavam as águas No tronco da árvore pregavamse as luxuosas patas de uma aranha A crueza do mundo era tranqüila O assassinato era profundo E a morte não era o que pensávamos Ao mesmo tempo que imaginário era um mundo de se comer com os dentes um mundo de volumosas dálias e tulipas Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas o abraço era macio colado Como a repulsa que precedesse uma entrega era fascinante a mulher tinha nojo e era fascinante As árvores estavam carregadas o mundo era tão rico que apodrecia Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome a náusea subiulhe à garganta como se ela estivesse grávida e abandonada A moral do Jardim era outra Agora que o cego a guiara até ele estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante sombrio onde vitóriasrégias boiavam monstruosas As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas mas cor de mau ouro e escarlates A decomposição era profunda perfumada Mas todas as pesadas coisas ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo A brisa se insinuava entre as flores Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno Era quase noite agora e tudo parecia cheio pesado um esquilo voou na sombra Sob os pés a terra estava fofa Ana aspiravaa com delícia Era fascinante e ela sentia nojo Mas quando se lembrou das crianças diante das quais se tornara culpada ergueuse com uma exclamação de dor Agarrou o embrulho avançou pelo atalho obscuro atingiu a alameda Quase corria e via o Jardim em torno de si com sua impersonalidade soberba Sacudiu os portões fechados sacudiaos segurando a madeira áspera O vigia apareceu espantado de não a ter visto Enquanto não chegou à porta do edifício parecia à beira de um desastre Correu com a rede até o elevador sua alma batialhe no peito o que sucedia A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia mas o mundo lhe parecia seu sujo perecível seu Abriu a porta de casa A sala era grande quadrada as maçanetas brilhavam limpas os vidros da janela brilhavam a lâmpada brilhava Em defesa da Vida Cuidar da Casa Comum que nova terra era essa E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceulhe um modo moralmente louco de viver O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu que corria e a abraçava Apertouo com força com espanto Protegiase tremula Porque a vida era periclitante Ela amava o mundo amava o que fora criado amava com nojo Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava avisandoa Abraçou o filho quase a ponto de machucálo Como se soubesse de um mal o cego ou o belo Jardim Botânico agarravase a ele a quem queria acima de tudo Fora atingida pelo demônio da fé A vida é horrível disselhe baixo faminta O que faria se seguisse o chamado do cego Iria sozinha Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela Ela precisava deles Tenho medo disse Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços ouviu o seu choro assustado Mamãe chamou o menino Afastouo olhou aquele rosto seu coração crispou se Não deixe mamãe te esquecer disselhe A criança mal sentiu o abraço se afrouxar escapou e correu até a porta do quarto de onde olhoua mais segura Era o pior olhar que jamais recebera Q sangue subiulhe ao rosto esquentandoo Deixouse cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede De que tinha vergonha Não havia como fugir Os dias que ela forjara haviamse rompido na crosta e a água escapava Estava diante da ostra E não havia como não olhá la De que tinha vergonha É que já não era mais piedade não era só piedade seu coração se enchera com a pior vontade de viver Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos O Jardim Botânico tranqüilo e alto lhe revelava Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta Seria obrigada a beijar um leproso pois nunca seria apenas sua irmã Um cego me levou ao pior de mim mesma pensou espantada Sentiase banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes Ah era mais fácil ser um santo que uma pessoa Por Deus pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas Mas era uma piedade de leão Humilhada sabia que o cego preferiria um amor mais pobre E estremecendo também sabia por quê A vida do Jardim Botânico chamavaa como um lobisomem é chamado pelo luar Oh mas ela amava o cego pensou com os olhos molhados No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja Estou com medo disse sozinha na sala Levantouse e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar Mas a vida arrepiavaa como um frio Ouvia o sino da escola longe e constante O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão onde descobriu a pequena aranha Carregando a jarra para mudar a água havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha Perto da lata de lixo esmagou com o pé a formiga O pequeno assassinato da formiga O mínimo corpo tremia As gotas dágua caíam na água parada do tanque Os besouros de verão O horror dos besouros inexpressivos Ao redor havia uma vida silenciosa lenta insistente Horror horror Andava de um lado para outro na cozinha cortando os bifes mexendo o creme Em torno da cabeça em ronda em torno da luz os mosquitos de uma noite cálida Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim Entre os dois seios escorria o suor A fé a quebrantava o calor do forno ardia nos seus olhos Depois o marido veio vieram os irmãos e suas mulheres vieram os filhos dos irmãos Jantaram com as janelas todas abertas no nono andar Um avião estremecia ameaçando no calor do céu Apesar de ter usado poucos ovos o jantar estava bom Também suas crianças ficaram acordadas brincando no tapete com as outras Era verão seria inútil obrigálas a dormir Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros Depois do jantar enfim a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas Eles rodeavam a mesa a família Cansados do dia felizes em não discordar tão dispostos a não ver defeitos Riamse de tudo com o coração bom e humano As crianças cresciam admiravelmente em torno deles E como a uma borboleta Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu Depois quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas ela era uma mulher bruta que olhava pela janela A cidade estava adormecida e quente O que o cego desencadeara caberia nos seus dias Quantos anos levaria até envelhecer de novo Qualquer movimento seu e Em defesa da Vida Cuidar da Casa Comum pisaria numa das crianças Mas com uma maldade de amante parecia aceitar que da flor saísse o mosquito que as vitóriasrégias boiassem no escuro do lago O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico Se fora um estouro do fogão o fogo já teria pegado em toda a casa pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado O que foi gritou vibrando toda Ele se assustou com o medo da mulher E de repente riu entendendo Não foi nada disse sou um desajeitado Ele parecia cansado com olheiras Mas diante do estranho rosto de Ana espioua com maior atenção Depois atraiua a si em rápido afago Não quero que lhe aconteça nada nunca disse ela Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro respondeu ele sorrindo Ela continuou sem força nos seus braços Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara e na casa toda havia um tom humorístico triste É hora de dormir disse ele é tarde Num gesto que não era seu mas que pareceu natural segurou a mão da mulher levandoa consigo sem olhar para trás afastandoa do perigo de viver Acabarase a vertigem de bondade E se atravessara o amor e o seu inferno penteavase agora diante do espelho por um instante sem nenhum mundo no coração Antes de se deitar como se apagasse uma vela soprou a pequena flama do dia Texto extraído no livro Laços de Família Editora Rocco Rio de Janeiro 1998 pág 19 incluído entre Os cem melhores contos brasileiros do século Editora Objetiva Rio de Janeiro 2000 seleção de Ítalo Moriconi O conto Amor de Clarice Lispector é uma narrativa curta que explora as complexidades e ambiguidades dos relacionamentos humanos no contexto familiar com a história centrada em uma mulher que vive um relacionamento com seu marido demonstrando emoções e sentimentos ambíguos em relação a ele Podese perceber que a história busca mostrar como os personagens enfrentam dificuldades para expressar seus sentimentos com momentos de conexão e compreensão e em outros momentos se sentem distantes um do outro Além disso há enorme profundidade psicológica com a preocupação da escritora na exploração dos pensamentos e emoções dos personagens de forma bastante detalhada e intensa dentro é claro dos limites narrativos de um conto De outro lado a psicologia existencial pode ser compreendida de acordo com Gomes e Castro 2010 p 86 como método baseado na investigação da história de vida de um paciente como em qualquer outro método terapêutico Contudo não busca explicar a história de vida e suas idiossincrasias patológicas Ao contrário compreende esta história de vida como modificações da estrutura total do sernomundo dos pacientes Ainda de acordo com os autores p 86 tal modalidade de terapia não mostra apenas onde quando e até que ponto o paciente falhou em realizar a totalidade de sua humanidade mas tenta fazêlo experienciar isso o mais radicalmente possível O objetivo será alcançado o quanto mais rápido o terapeuta explorar não as estruturas temporais mas as estruturas espaciais do mundo de significação de um paciente O lugar do terapeuta no setting é o plano de uma existência em comum sendo o paciente um parceiro existencial Aqui apenas a título de conhecimento conforme alerta Boris 2008 p 168 em relação aos terapeutas iniciantes e a clínica existencial A possibilidade de tocar e de ser tocado no sentido de sensibilizar e de se envolver com o mundo existencial do paciente gera muitas vezes no psicoterapeuta iniciante temor da relação psicoterapêutica ou encantamento com seu próprio poder encobrindo a sua polaridade oposta ou seja o fato de que pode ser tocado por seus pacientes Assim de forma resumida temse que a clínica existencial tratase de abordagem da Psicologia focada na compreensão da experiência humana em aspectos ligados à existência liberdade responsabilidade e significado Ademais o terapeuta busca explorar as preocupações e conflitos do paciente em um contexto mais amplo de sua existência ao invés de se concentrar apenas em comportamentos específicos Feitas tais considerações sobre o conto e a clínica existencial e retomando ao foco deste trabalho podese afirmar que há relação entre o conto de Clarice Linspector e a abordagem psicológica mencionada A seguir serão analisados alguns pontos comuns Inicialmente inferese do conto que os personagens enfrentam uma angústia existencial que se manifesta através de lutas internas e ambiguidades emocionais É possível notar isso por exemplo quando a protagonista parece sentir uma desconexão entre seus sentimentos e seu relacionamento com o marido ou seja há uma reflexão da angústia enquanto preocupação central da clínica existencial com a natureza da existência humana e as questões de liberdade escolha e responsabilidade Outro ponto de destaque diz respeito ao processo de autodescoberta e questionamento de sentimentos e desejos por parte da protagonista que luta para entender o que está sentindo em relação ao próprio marido bem como sua própria identidade dentro do relacionamento Tal processo de busca pela autenticidade e verdade interna está diretamente relacionado com os princípios da clínica existencial que prioriza a autenticidade e a honestidade individuais enquanto parte essencial do crescimento e entendimento pessoais Podese notar também a complexidade e ambiguidades dos relacionamentos humanos marcados no conto por uma mistura de proximidade e distância emocional isso está bastante próximo à abordagem existencial na medida em que reconhece a complexidade das relações humanas e a importância de explorar as dinâmicas emocionais subjacentes em busca de compreensão e crescimento Ademais é possível inferir que os personagens da história parecem buscar significado e propósito em seus relacionamentos e nas suas próprias vidas já que enfrentam questões sobre o sentido de suas emoções o significado de amor e a natureza de suas interações A busca por significado está de acordo com a temática da clínica existencial que enfatiza a importância de encontrar significado e propósito na vida mesmo diante da angústia e incerteza que sempre estarão presentes na existência humana REFERÊNCIAS BORIS Georges Daniel Janja Bloc Versões de sentido um instrumento fenomenológicoexistencial para a supervisão de psicoterapeutas iniciantes Psicologia Clínica online v 20 n 1 p 165180 2008 Disponível em httpsdoiorg101590S010356652008000100011 Acesso em 28 de mar de 2024 GOMES William Barbosa e CASTRO Thiago Gomes de Clínica fenomenológica do método de pesquisa para a prática psicoterapêutica Psicologia Teoria e Pesquisa online v 26 n especial p 8193 2010 Disponível em httpsdoiorg101590S010237722010000500007 Acesso em 28 de mar de 2024
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Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar cuidando do lar e da família à revelia deles Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do COLÉGIO JESUS MARIA JOSÉ PRÉMÉDIO e ENSINO MÉDIO ALUNO Nº DATA e VISTO DA REVISORA 2017 SÉRIE 3ª TURMA DATA 2017 3º TRIMESTRE COMPONENTE Literatura PROFESSORA Tatiane A Lima DATA e VISTO DO PROFESSOR 2017 INSTRUÇÕES 1 Preencha o cabeçalho e confira toda a atividade Se houver alguma irregularidade fale com o professoraplicador 2 Leia cuidadosamente cada questão para assegurarse de que a compreendeu bem 3 A atividade deverá ser realizada com caneta de tinta azul ou preta 4 Questões a lápis ou rasuradas não darão direito a revisão 5 As questões objetivas rasuradas serão anuladas 6 Não é permitido o uso de corretivos nem a solicitação de material emprestados 7 Quando necessário mesmo que simples mantenha os cálculos AMOR Clarice Lispector Objeto de avaliação da 3ª etapa do PAS Em defesa da Vida Cuidar da Casa Comum colégio 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ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar o coração batialhe violento espaçado Inclinada olhava o cego profundamente como se olha o que não nos vê Ele mascava goma na escuridão Sem sofrimento com os olhos abertos O movimento da mastigação faziao parecer sorrir e de repente deixar de sorrir sorrir e deixar de sorrir como se ele a tivesse insultado Ana olhavao E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio Mas continuava a olhálo cada vez mais inclinada o bonde deu uma arrancada súbita jogandoa desprevenida para trás o pesado saco de tricô despencouse do colo ruiu no chão Ana deu um grito o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava o bonde estacou os passageiros olharam assustados Incapaz de se mover para apanhar suas compras Ana se aprumava pálida Uma expressão de rosto há muito não usada ressurgialhe com dificuldade ainda incerta incompreensível O moleque dos jornais ria entregandolhe o volume Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras tentando inutilmente pegar o que acontecia O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor o bonde deu a nova arrancada de partida Poucos instantes depois já não a olhavam mais O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre Mas o mal estava feito A rede de tricô era áspera entre os dedos não íntima como quando a tricotara A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido não sabia o que fazer com as compras no colo E como uma estranha música o mundo recomeçava ao redor O mal estava feito Por quê Teria esquecido de que havia cegos A piedade a sufocava Ana respirava pesadamente Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso tinham um ar mais hostil perecível O mundo se tornara de novo um malestar Vários anos ruíam as gemas amarelas escorriam Expulsa de seus próprios dias parecialhe que as pessoas da rua eram periclitantes que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão e por um momento a falta de sentido deixavaas tão livres que elas não sabiam para onde ir Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente como se pudesse cair do bonde como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram O que chamava de crise viera afinal E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas sofrendo espantada O calor se tornara mais abafado tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução as grades dos esgotos estavam secas o ar empoeirado Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavamna com o vigor que possuíam Junto dela havia uma senhora de azul com um rosto Desviou o olhar depressa Na calçada uma mulher deu um empurrão no filho Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo E o cego Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa Ela apaziguara tão bem a vida cuidara tanto para que esta não explodisse Mantinha tudo em serena compreensão separava uma pessoa das outras as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podiase escolher pelo jornal o filme da noite tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro E um cego mascando goma despedaçava tudo isso E Em defesa da Vida Cuidar da Casa Comum através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce até a boca Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida Na fraqueza em que estava tudo a atingia com um susto desceu do bonde com pernas débeis olhou em torno de si segurando a rede suja de ovo Por um momento não conseguia orientarse Parecia ter saltado no meio da noite Era uma rua comprida com muros altos amarelos Seu coração batia de medo ela procurava inutilmente reconhecer os arredores enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava lhe o rosto Ficou parada olhando o muro Enfim pôde localizarse Andando um pouco mais ao longo de uma sebe atravessou os portões do Jardim Botânico Andava pesadamente pela alameda central entre os coqueiros Não havia ninguém no Jardim Depositou os embrulhos na terra sentouse no banco de um atalho e ali ficou muito tempo A vastidão parecia acalmála o silêncio regulava sua respiração Ela adormecia dentro de si De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho Ao seu redor havia ruídos serenos cheiro de árvores pequenas surpresas entre os cipós Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada Como por um zunido de abelhas e aves Tudo era estranho suave demais grande demais Um movimento leve e íntimo a sobressaltou voltouse rápida Nada parecia se ter movido Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato Seus pêlos eram macios Em novo andar silencioso desapareceu Inquieta olhou em torno Os ramos se balançavam as sombras vacilavam no chão Um pardal ciscava na terra E de repente com mal estar pareceulhe ter caído numa emboscada Faziase no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber Nas árvores as frutas eram pretas doces como mel Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções como pequenos cérebros apodrecidos O banco estava manchado de sucos roxos Com suavidade intensa rumorejavam as águas No tronco da árvore pregavamse as luxuosas patas de uma aranha A crueza do mundo era tranqüila O assassinato era profundo E a morte não era o que pensávamos Ao mesmo tempo que imaginário era um mundo de se comer com os dentes um mundo de volumosas dálias e tulipas Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas o abraço era macio colado Como a repulsa que precedesse uma entrega era fascinante a mulher tinha nojo e era fascinante As árvores estavam carregadas o mundo era tão rico que apodrecia Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome a náusea subiulhe à garganta como se ela estivesse grávida e abandonada A moral do Jardim era outra Agora que o cego a guiara até ele estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante sombrio onde vitóriasrégias boiavam monstruosas As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas mas cor de mau ouro e escarlates A decomposição era profunda perfumada Mas todas as pesadas coisas ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo A brisa se insinuava entre as flores Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno Era quase noite agora e tudo parecia cheio pesado um esquilo voou na sombra Sob os pés a terra estava fofa Ana aspiravaa com delícia Era fascinante e ela sentia nojo Mas quando se lembrou das crianças diante das quais se tornara culpada ergueuse com uma exclamação de dor Agarrou o embrulho avançou pelo atalho obscuro atingiu a alameda Quase corria e via o Jardim em torno de si com sua impersonalidade soberba Sacudiu os portões fechados sacudiaos segurando a madeira áspera O vigia apareceu espantado de não a ter visto Enquanto não chegou à porta do edifício parecia à beira de um desastre Correu com a rede até o elevador sua alma batialhe no peito o que sucedia A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia mas o mundo lhe parecia seu sujo perecível seu Abriu a porta de casa A sala era grande quadrada as maçanetas brilhavam limpas os vidros da janela brilhavam a lâmpada brilhava Em defesa da Vida Cuidar da Casa Comum que nova terra era essa E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceulhe um modo moralmente louco de viver O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu que corria e a abraçava Apertouo com força com espanto Protegiase tremula Porque a vida era periclitante Ela amava o mundo amava o que fora criado amava com nojo Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava avisandoa Abraçou o filho quase a ponto de machucálo Como se soubesse de um mal o cego ou o belo Jardim Botânico agarravase a ele a quem queria acima de tudo Fora atingida pelo demônio da fé A vida é horrível disselhe baixo faminta O que faria se seguisse o chamado do cego Iria sozinha Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela Ela precisava deles Tenho medo disse Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços ouviu o seu choro assustado Mamãe chamou o menino Afastouo olhou aquele rosto seu coração crispou se Não deixe mamãe te esquecer disselhe A criança mal sentiu o abraço se afrouxar escapou e correu até a porta do quarto de onde olhoua mais segura Era o pior olhar que jamais recebera Q sangue subiulhe ao rosto esquentandoo Deixouse cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede De que tinha vergonha Não havia como fugir Os dias que ela forjara haviamse rompido na crosta e a água escapava Estava diante da ostra E não havia como não olhá la De que tinha vergonha É que já não era mais piedade não era só piedade seu coração se enchera com a pior vontade de viver Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos O Jardim Botânico tranqüilo e alto lhe revelava Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta Seria obrigada a beijar um leproso pois nunca seria apenas sua irmã Um cego me levou ao pior de mim mesma pensou espantada Sentiase banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes Ah era mais fácil ser um santo que uma pessoa Por Deus pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas Mas era uma piedade de leão Humilhada sabia que o cego preferiria um amor mais pobre E estremecendo também sabia por quê A vida do Jardim Botânico chamavaa como um lobisomem é chamado pelo luar Oh mas ela amava o cego pensou com os olhos molhados No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja Estou com medo disse sozinha na sala Levantouse e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar Mas a vida arrepiavaa como um frio Ouvia o sino da escola longe e constante O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão onde descobriu a pequena aranha Carregando a jarra para mudar a água havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha Perto da lata de lixo esmagou com o pé a formiga O pequeno assassinato da formiga O mínimo corpo tremia As gotas dágua caíam na água parada do tanque Os besouros de verão O horror dos besouros inexpressivos Ao redor havia uma vida silenciosa lenta insistente Horror horror Andava de um lado para outro na cozinha cortando os bifes mexendo o creme Em torno da cabeça em ronda em torno da luz os mosquitos de uma noite cálida Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim Entre os dois seios escorria o suor A fé a quebrantava o calor do forno ardia nos seus olhos Depois o marido veio vieram os irmãos e suas mulheres vieram os filhos dos irmãos Jantaram com as janelas todas abertas no nono andar Um avião estremecia ameaçando no calor do céu Apesar de ter usado poucos ovos o jantar estava bom Também suas crianças ficaram acordadas brincando no tapete com as outras Era verão seria inútil obrigálas a dormir Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros Depois do jantar enfim a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas Eles rodeavam a mesa a família Cansados do dia felizes em não discordar tão dispostos a não ver defeitos Riamse de tudo com o coração bom e humano As crianças cresciam admiravelmente em torno deles E como a uma borboleta Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu Depois quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas ela era uma mulher bruta que olhava pela janela A cidade estava adormecida e quente O que o cego desencadeara caberia nos seus dias Quantos anos levaria até envelhecer de novo Qualquer movimento seu e Em defesa da Vida Cuidar da Casa Comum pisaria numa das crianças Mas com uma maldade de amante parecia aceitar que da flor saísse o mosquito que as vitóriasrégias boiassem no escuro do lago O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico Se fora um estouro do fogão o fogo já teria pegado em toda a casa pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado O que foi gritou vibrando toda Ele se assustou com o medo da mulher E de repente riu entendendo Não foi nada disse sou um desajeitado Ele parecia cansado com olheiras Mas diante do estranho rosto de Ana espioua com maior atenção Depois atraiua a si em rápido afago Não quero que lhe aconteça nada nunca disse ela Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro respondeu ele sorrindo Ela continuou sem força nos seus braços Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara e na casa toda havia um tom humorístico triste É hora de dormir disse ele é tarde Num gesto que não era seu mas que pareceu natural segurou a mão da mulher levandoa consigo sem olhar para trás afastandoa do perigo de viver Acabarase a vertigem de bondade E se atravessara o amor e o seu inferno penteavase agora diante do espelho por um instante sem nenhum mundo no coração Antes de se deitar como se apagasse uma vela soprou a pequena flama do dia Texto extraído no livro Laços de Família Editora Rocco Rio de Janeiro 1998 pág 19 incluído entre Os cem melhores contos brasileiros do século Editora Objetiva Rio de Janeiro 2000 seleção de Ítalo Moriconi O conto Amor de Clarice Lispector é uma narrativa curta que explora as complexidades e ambiguidades dos relacionamentos humanos no contexto familiar com a história centrada em uma mulher que vive um relacionamento com seu marido demonstrando emoções e sentimentos ambíguos em relação a ele Podese perceber que a história busca mostrar como os personagens enfrentam dificuldades para expressar seus sentimentos com momentos de conexão e compreensão e em outros momentos se sentem distantes um do outro Além disso há enorme profundidade psicológica com a preocupação da escritora na exploração dos pensamentos e emoções dos personagens de forma bastante detalhada e intensa dentro é claro dos limites narrativos de um conto De outro lado a psicologia existencial pode ser compreendida de acordo com Gomes e Castro 2010 p 86 como método baseado na investigação da história de vida de um paciente como em qualquer outro método terapêutico Contudo não busca explicar a história de vida e suas idiossincrasias patológicas Ao contrário compreende esta história de vida como modificações da estrutura total do sernomundo dos pacientes Ainda de acordo com os autores p 86 tal modalidade de terapia não mostra apenas onde quando e até que ponto o paciente falhou em realizar a totalidade de sua humanidade mas tenta fazêlo experienciar isso o mais radicalmente possível O objetivo será alcançado o quanto mais rápido o terapeuta explorar não as estruturas temporais mas as estruturas espaciais do mundo de significação de um paciente O lugar do terapeuta no setting é o plano de uma existência em comum sendo o paciente um parceiro existencial Aqui apenas a título de conhecimento conforme alerta Boris 2008 p 168 em relação aos terapeutas iniciantes e a clínica existencial A possibilidade de tocar e de ser tocado no sentido de sensibilizar e de se envolver com o mundo existencial do paciente gera muitas vezes no psicoterapeuta iniciante temor da relação psicoterapêutica ou encantamento com seu próprio poder encobrindo a sua polaridade oposta ou seja o fato de que pode ser tocado por seus pacientes Assim de forma resumida temse que a clínica existencial tratase de abordagem da Psicologia focada na compreensão da experiência humana em aspectos ligados à existência liberdade responsabilidade e significado Ademais o terapeuta busca explorar as preocupações e conflitos do paciente em um contexto mais amplo de sua existência ao invés de se concentrar apenas em comportamentos específicos Feitas tais considerações sobre o conto e a clínica existencial e retomando ao foco deste trabalho podese afirmar que há relação entre o conto de Clarice Linspector e a abordagem psicológica mencionada A seguir serão analisados alguns pontos comuns Inicialmente inferese do conto que os personagens enfrentam uma angústia existencial que se manifesta através de lutas internas e ambiguidades emocionais É possível notar isso por exemplo quando a protagonista parece sentir uma desconexão entre seus sentimentos e seu relacionamento com o marido ou seja há uma reflexão da angústia enquanto preocupação central da clínica existencial com a natureza da existência humana e as questões de liberdade escolha e responsabilidade Outro ponto de destaque diz respeito ao processo de autodescoberta e questionamento de sentimentos e desejos por parte da protagonista que luta para entender o que está sentindo em relação ao próprio marido bem como sua própria identidade dentro do relacionamento Tal processo de busca pela autenticidade e verdade interna está diretamente relacionado com os princípios da clínica existencial que prioriza a autenticidade e a honestidade individuais enquanto parte essencial do crescimento e entendimento pessoais Podese notar também a complexidade e ambiguidades dos relacionamentos humanos marcados no conto por uma mistura de proximidade e distância emocional isso está bastante próximo à abordagem existencial na medida em que reconhece a complexidade das relações humanas e a importância de explorar as dinâmicas emocionais subjacentes em busca de compreensão e crescimento Ademais é possível inferir que os personagens da história parecem buscar significado e propósito em seus relacionamentos e nas suas próprias vidas já que enfrentam questões sobre o sentido de suas emoções o significado de amor e a natureza de suas interações A busca por significado está de acordo com a temática da clínica existencial que enfatiza a importância de encontrar significado e propósito na vida mesmo diante da angústia e incerteza que sempre estarão presentes na existência humana REFERÊNCIAS BORIS Georges Daniel Janja Bloc Versões de sentido um instrumento fenomenológicoexistencial para a supervisão de psicoterapeutas iniciantes Psicologia Clínica online v 20 n 1 p 165180 2008 Disponível em httpsdoiorg101590S010356652008000100011 Acesso em 28 de mar de 2024 GOMES William Barbosa e CASTRO Thiago Gomes de Clínica fenomenológica do método de pesquisa para a prática psicoterapêutica Psicologia Teoria e Pesquisa online v 26 n especial p 8193 2010 Disponível em httpsdoiorg101590S010237722010000500007 Acesso em 28 de mar de 2024