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Filosofia
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CAPÍTULO 12 A águia e os estorninhos Galileu e a autonomia da ciência Coautoria de Pablo Rubén Mariconda A distinção entre fato e valor emerge pela primeira vez na cultura ocidental por ocasião da intensa polêmica causada pela recepção e defesa da teoria heliocêntrica de Copérnico Ela comparece ex plicitamente articulada na polêmica teológicocosmológica que se seguiu ao anúncio das descobertas telescópicas de Galileu no Sidereus nuncius 1610 e que antecedeu a condenação do De re volutionibus de Copérnico pela Inquisição romana proibido pelo decreto da Sagrada Congregação do índice de 1616 No devido tempo a distinção entre fato e valor serviu para embasar a concepção de que a ciência é livre de valores a qual se manifesta em graus variados nas práticas e instituições cientí ficas O modo de articulação dessa concepção deriva em parte da reflexão sobre os modos concretos pelos quais ela se tornou manifesta no decorrer dos séculos Ela não se manifestou con cretamente nas práticas e instituições científicas sem conflito Interesses e poderes rivais opuseramse a ela O modo pelo qual ela se tornou manifesta exibe assim as cicatrizes do condito ao mesmo tempo seu modo de manifestação reflete também um ideal de entendimento científico e suas bases racionais As arti culações da ideia refletem portanto as cicatrizes do conflito e o ideal Retornar às fontes da concepção atual de que a ciência é li vre de valores pode ajudarnos a discernir quanto das articulações contemporâneas refletem o ideal racional e quanto elas escon dem de compromissos meramente históricos enganosamente tomados como fazendo parte do ideal racional e que servem tal Hugh Lacey vez para disfarçar que as investigações nas quais os cientistas se engajam atualmente podem não se conformar adequadamente ao ideal racional A ideia de que a ciência é livre de valores cf VAC cap 1 aci ma pode ser considerada como um valor das práticas e das insti tuições científicas com três componentes imparcialidade neu tralidade e autonomia A imparcialidade baseiase na distinção entre os critérios para a avaliação epistêmica de teorias científi cas e os valores e crenças sociais culturais religiosos metafísicos e morais Aneutralidade afirma primeiro neutralidade cognitiva que não se podem extrair de teorias científicas conclusões no do mínio dos valores e segundo neutralidade aplicada que no con texto de aplicação uma teoria bem estabelecida serve em prin cípio aos interesses de todas as perspectivas de valores mais ou menos equitativamente A autonomia referese à carência ou ausência de um papel legítimo para os fatores de fora externos tal como valores sociais crenças religiosas e ideológicas e o tes temunho de autores para as práticas internas da metodologia científica não só com relação à escolha de teorias mas também com relação à determinação das abordagens de pesquisa A auto nomia acarreta portanto que as práticas científicas devem ser conduzidas livres de qualquer interferência de fora externa c nas versões contemporâneas ao mesmo tempo que elas devem ser patrocinadas com os recursos necessários pelas várias insl i tuições públicas e particularestal que os cientistas possam co ri tinuar de qualquer modo que considerem apropriado em seu objetivo de obter e confirmar o entendimento de fenômenos do mundo em conformidade com a imparcialidade e a neutralidade De fora ou externa significa não apropriada em vista dott objetivos positivos da ciência entretanto tal caracterização per manece uma tautologia vazia enquanto não forem especificadaH as influências apropriadas sob a forma de princípios AH lista de interferências externas que devem ser evitadas incluem tipi A Á G U I A E os ESTORNINHOS GALILEU E A AUTONOMIA DA CIÊNCIA camente itens tais como as opiniões religiosas políticas ou ideo lógicas populares ou apressadas EN 5 p 32o 1 as visões valo rativas e seus pressupostos e certas visões metafísicas Esta lista certamente evoca velhos conflitos Não se teria talvez deixado de incluir certos itens simplesmente porque eles foram os aliados da ciência em seus conflitos A metafísica materialista ou as vi sões matematizadas do mundo apresentamse como possíveis candidatos assim como os interesses que são favorecidos pelas aplicações do conhecimento científico Essas três componentes da ideia da ciência como livre de va lores constituem uma parte fundamental do autoentendimento da tradição da ciência moderna desde o século xvii Nesta apre sentação focalizaremos principalmente a autonomia e especial mente a contribuição de Galileu para a análise desse componen te central da concepção seiscentista da ciência O conflito entre Galileu e a Igreja é bem conhecido como um símbolo dos cami nhos trágicos que se podem tomar quando a liberdade de pes quisa científica não é respeitada erros perpetuamse a pesquisa estagna vidas e carreiras criativas são impedidas direitos hu manos são violados o progresso do conhecimento é retardado e quando se consideram os conflitos famosos mais recentes por exemplo o caso Lysenko podese acrescentar aplicações ade quadas são deixadas de lado enquanto alternativas ideologica mente inspiradas adquirem hegemonia com consequências catastróficas na vida social e política O símbolo de Galileu no con flito com a Igreja nutriu a ideia de que a ciência é ou deve ser livre de valores permitindo que essa ideia ganhasse seu lugar como 1 Nesta discussão utilizamos principalmente os seguintes trabalhos de Galileu a carta a Benedetto Castelli de 21 de dezembro de i6i3 a carta à grãduquesa Cristina de Lorena de 1615 O ensaiador i6a3 e o Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo i63a Esses textos serão referidos em suas versões originais publicadas por A Fávaro naEdizioneNazio nnlcdtilc opere di Mileo Galilei usando o expediente de abreviara referência por EN segui da In volume dessa edição indicado por números arábicos 307 Hugh Lacey uma parte reiteradamente afirmada e frequentemente reinter pretada do autoentendimento comum da tradição da ciência moderna Mas quando se discute a liberdade da pesquisa cientí fica Galileu é muito mais do que um símbolo seus argumentos em favor da autonomia da ciência são seminais Galileu não considerou a autonomia da ciência em toda sua generalidade Sua meta era conseguir que a investigação cientí fica fosse livre da interferência específica da Igreja católica exer cida por meio de sua autoridade no ensino de seu sistema legal de condenações e punições pela coerção violenta ou pela ameaça de violência e por inúmeras outras formas de tormento 2 Mais especificamente Galileu visava que as disciplinas científicas ma temáticas se autonomizassem do controle da teologia escolástica e positivamente pretendia conquistar para os cientistas o di reito de investigar de fazer novas descobertas com liberdade de interpretação e de avaliação dos resultados sem estarem obriga dos às autoridades religiosas e o direito de ensinar e defender suas conclusões científicas sem a restrição de ter que esperar pe las interpretações escriturais ou outras doutrinas que caíam sob a autoridade reivindicada pela Igreja Galileu ressentiase pro fundamente com a interferência constante no seu empreendi mento científico tanto das autoridades religiosas como daquelas acadêmicas que sentindose confortáveis em épocas repressi vas preferiam fazer acusações ao invés de engajarse seriamente em controvérsias científicas não só porque seus oponentes não admirassem sua notável capacidade e extraordinária contriltui ção científicas mas também porque ele os desprezava e ridícula rizava enquanto integrantes de escolas que sacrificam a liberda de da pesquisa com a submissão ao princípio de autoridai I 2 Galileu desejava também obter liberdade com relação às restrições da estrutura r ilu iiu rieulo universitários dominantes do sistema científico aristotélico ila autoridade IIOH to tos antigos cf Mariconda 2 0 0 0 i o i i A ÁGUIA E os ESTORNINHOS GALILEU E A AUTONOMIA DA CIÊNCIA o sentido da passagem de 0 ensaiador em que Galileu move a se guinte crítica ao padre jesuíta Orazio Grassi que se disfarçava sob o pseudônimo de Sarsi Talvez acredite Sarsi que bons filósofos se encontrem em qua dras inteiras e dentro de cada recinto dos muros Eu Senhor Sarsi acredito que voem como as águias e não como os estorni nhos E bem verdade que aquelas porque são raras pouco se veem e menos ainda se ouvem e estes que voam em bando en chendo o céu de estridos e de rumores aonde quer que pousem emporcalham o mundo EN 6 p 2867 Este tipo de retórica era celebrado por seus aliados mas cer tamente crioulhe muitos inimigos Contudo essa retórica cujo principal objetivo é chamar a atenção não deve obscurecer o fato de que para Galileu a autonomia da ciência fundamentava se não na autoindulgência mas em argumentos sustentados A estratégia de Galileu é então a de desenvolver um argumento tão efetivo quanto correto ou seja um argumento capaz de per suadir as autoridades religiosas Qualquer argumento efetivo de que a ciência deve estar livre da interferência da Igreja não pode ria permitir que o empreendimento científico estivesse sujeito a restrições por parte de setores opostos à Igreja católica Galileu é levado então a argumentar que a ciência deve estar livre de to das as interferências de fora externas ao mesmo tempo que se obriga a retratála como um valor universal um objeto de valor para qualquer ponto de vista moral ou metafísico razoável 0 argumento de Galileu refinado generalizado e suplemen tado permanece no centro de todas as defesas da autonomia da ciência Para ele podemos dizer a autonomia é necessária por que as práticas científicas contribuem para produzir conheci mento do mundo representado por teorias que manifestam sem pre tio mais alto grau a impareiaÜdade e a neutralidade 1odemos Hugh Lacey reconstruir o argumento de Galileu como estando baseado nas três seguintes suposições i Os empreendimentos científicos possibilitam desco bertas sobre os fenômenos naturais descobertas que são feitas pelo uso dos métodos apropriados da ciência que estão assentados principalmente em observações dos fe nômenos e em inferências corretas envolvendo essas ob servações As questões de valores nada têm a ver com a observação precisa ou a inferência válida Ou seja o méto do da ciência não deve responder cognitivamente às pro postas e às críticas de qualquer ponto de vista valorativo concernente a valores Nem a Igreja nem seus oponen tes nem qualquer ponto de vista baseado em valores têm autoridade no domínio próprio da ciência Os juízos científicos são feitos por especialistas aquelas águias que voam solitárias cientistas com talen to intelectual relevante praticantes do método da ciência que tenham cultivado as virtudes apropriadas para devo tarse a usálo estritamente 3 Os juízos científicos bem estabelecidos isto é aqueles obtidos usando os métodos baseados em observações e inferências corretas que envolvem essas observações não podem contradizer nem fornecer evidências em favor de qualquer assunto no âmbito de competência da autoridade da Igreja Podemos generalizar esta suposição racional mente esses juízos não têm nenhuma implicação nos do mínios da teologia da metafísica e dos valores não forne cem evidências ou argumentos em favor de ou contra qualquer ponto de vista fundamental nesses domínios seja os da Igreja seja os de seus oponentes A Á G U I A E os ESTORNINHOS GALILEU E A AUTONOMIA DA CIÊNCIA Discutiremos agora com algum detalhe cada uma dessas três 3 suposições 1A imparcialidade DOS JUÍZOS C I E N T Í F I C O S Os juízos científicos adequadamente fundamentados derivam de observações frequentemente auxiliadas pelo uso de instrumen tos que estendem a percepção ou de aparatos experimentais que impõem uma interpretação teórica e inferências corretas nas quais essas observações desempenham um papel importante Embora Galileu procurasse articular essa ideia não chegaria a adquirir um entendimento coerente da natureza da inferência científica Ele fala com frequência da ciência natural como en volvendo experiências sensíveis e demonstrações necessárias razões concludentes e demonstrativas EN 7 p 157 e ex periências longas observações e demonstrações necessárias EN 5 p 33o aceitando aparentemente que a demonstração tal como articulada nos Segundos analíticos de Aristóteles e desen volvida pelos comentadores é a marca do conhecimento cientí fico apropriado cf Wallace 1993a 1992b a qual se caracteriza pela exigência de que para serem aceitas as teorias cientificai 3 Cabe notar neste ponto que cada uma das três suposições pode ser vista como rcs dendo a uma objeção levantada pelos oponentes de Galileu contra a concessão de aulnno mia aos cientistas e a suas práticas Contudo de modo a antecipar objeções ulteriores que não fazem parte do caso Galileu seria preciso acrescentar os seguintes itens aos Ires miro duzidos por Galileu 4 a condução da investigação científica incluindo a experimrnlal não envolve conduta não ética da parte do cientista Parece razoável supor que Galileu te 111 reconhecido a autoridade da Igreja no questionamento e proibição de condutas não clicas percebidas na ciência 5 as aplicações práticas das descobertas cienlificas servem aos 111 teresses da Igreja ou pelo menos elas não servem mais completamente aos inten que competem com aqueles da Igreja mais geralmente em principio os interessei de lo das as visões valorativas viáveis pode 111 ser igualmente servidos pelas aplicações ricnlltinis Note se que 3 não implica 5 8 l l Hugh Lacey devem ser demonstradas com necessidade e certeza Essa adesão à concepção apodítica de ciência é em parte responsável por não ter Galileu submetido à avaliação empírica o velho princípio platônico do movimento uniforme e circular dos corpos celestes Por outro lado poucos argumentos científicos de Galileu podiam satisfazer esse padrão muito exigente e atingir o estatuto de cer teza talvez seu argumento de que os planetas inferiores Mer cúrio e Vénus circundam o Sol satisfaça esse critério pelo me nos tão bem quanto os melhores argumentos aristotélicos mas não seus argumentos em favor do sistema copernicano completo cf Wallace 1993a McMullin 19781998 Apesar disso ao apre sentar seus argumentos em favor do sistema de Copérnico Galileu mostra geralmente uma consciência sutil de alguns dos critérios não demonstrativos que devem informar a inferência científica correta Para ilustrar citaremos quatro dos critérios que Galileu emprega explicitamente nos seus argumentos i Adequação empírica ou seja concordância com os fenô menos as experiências e os experimentos observados especial mente com os dados empíricos precisos ou quantitativamente exatos e poder preditivo com respeito a esses dados acuratís simas observações EN 5 p 3i3 longas e acuradas observa ções EN 5 p 33o Notese que Galileu enfatizava que o mé todo científico requer investigações que aumentem o alcance dos dados relevantes e disponíveis cf EN 7 p 299846 que o re curso a esses dados supera o testemunho dos escritores EN 6 p 337 e a autoridade de passagens das Escrituras EN 5p 3i6 e torna a opinião do vulgo irrelevante ii Poder explicativo ou seja a capacidade de explicar os fe nômenos cuja observação serve para a obtenção dos dados em píricos a capacidade em suma de identificar as causas dos IV nômenos Enquanto na tradição aristotélica a análise causal está intimamente ligada com a demonstração Galileu em sua prál i ca contentavase com explicações que fossem melhores do que lia A Á G U I A E OS ESTORNINHOS GALILEU E A AUTONOMIA DA CIÊNCIA as produzidas pelas teorias rivais 4 Também reconhecia que as explicações causais envolvem relações lógicas entre os dados e as suposições teóricas fundamentais as quais são mediadas pelas várias hipóteses auxiliares Galileu propõe que tais mediações devem sujeitarse ao seguinte critério iii Limitação do uso de ficções ou seja de hipóteses ad hoc que Galileu chamava infelicíssimas inópias EN 7 p 345 e subterfúgios EN 7 p 346 isto é minimização do uso de hipóteses introduzidas unicamente para manter a adequação empírica em detrimento do poder explicativo Referindose a um crítico que propunha hipóteses ad hoc para oporse às descober tas telescópicas Pareceme que vejo aquele infeliz agricultor que depois de ter todas as suas colheitas destruídas pela tempestade vai com a face abatida e desolada juntando relíquias tão ínfimas que não são suficientes para nutrir nem mesmo um pintinho por um só dia EN 7p3 46 Ao invés de ficções Galileu propunha o uso de hipóteses confirmadas ainda que em parte em virtude da existência de analogias experimentais cf EN 6 p 345 7 p 447 O exemplo mais claro do uso de analogias experimentais por parte de Galileu pode ser encontrado na teoria das marés da Quarta Jornada do Diálogo A analogia entre a barca carregada de água e a Terra e seus oceanos serve claramente ao propósito de fornecer uma confir 4 Galileu sustenta que Copérnico pode explicar o que Ptolomeu pode apenas descrever que Copérnico tem poder explicativo assim como adequação empírica enquanto Ptolomeu tem apenas esta última Kepler complementa este argumento Copérnico pode também explicar por que Ptolomeu embora falso pode ser empiricamente adequado ou seja Copérnico pode explicar que Ptolomeu tem algumas das características presentes em seu sistema cf McMullin 1998 Kepler está introduzindo um critério ulterior proporcionar o poder de in terpretar outras teorias cf VAC p 6o a 18 Hugh Lacey mação empírica parcial da hipótese de que o fluxo e refluxo do mar é primariamente causado pelo movimento do vaso continente cf EN 7 p 4502 Mariconda 1999 Assim também a analogia entre o mecanismo de regulação dos grandes relógios de rodas e o sistema LuaTerra no qual a Lua funciona como contrapeso serve ao propósito de fornecer uma confirmação empírica parcial para a hipótese de que o movimento da Lua em torno da Terra é responsável pelo ciclo mensal das marés cf EN 7 p 4746 Mariconda 1999 iv Simplicidade ou seja preferência por teorias nas quais as partes se encaixam umas com as outras harmoniosamente com um mínimo de suposições ou com suposições mais simples EN 7 p 369 Finocchiaro 1997 p 327 ss Uma parte importante da argumentação de Galileu em favor do sistema copernicano é produzida por uma articulação dos princípios metafísicos da per feita ordenação e harmonia das partes do universo e da simplici dade da natureza Por exemplo na comparação entre o sistema de Copérnico e o sistema de Ptolomeu com vistas a mostrar que o primeiro é mais plausível que o segundo quando se considera o movimento diurno Galileu apoia seu argumento na maior sim plicidade do primeiro sobre o segundo porque 1 o número de corpos que se movem é maior no sistema geoestático que no sis tema geocinético ou seja ao invés de fazer girar todos os corpos do universo basta fazer girar somente a Terra 2 o tamanho dos corpos em movimento é maior no primeiro do que no segundo caso sendo evidente que a esfera das estrelas é incomensurável mente maior do que a Terra 3 as velocidades do movimento diurno são imensamente maiores no primeiro do que no segun do caso fazer girar em 24 horas a imensa circunferência do uni verso ao invés de girar a pequena circunferência terrestre cf EN 7 p 14250 Cabe notar que a simplicidade é muitas vezes to mada como um princípio metodológico isto é como uma regra ou diretiva segundo a qual se deve preferir as hipóteses ou teo A ÁGUIA E os ESTORNINHOS CALILEU E A AUTONOMIA DA CIÊNCIA rias mais simples independentemente se a natureza ou os fenô menos estudados podem ser ditos simples Seu uso apoiase nesse caso em considerações de ordem estética como a ele gância matemática da teoria ou ainda em considerações de or dem epistemológica psicológica como a de maior facilidade de entendimento e de operação com uma teoria que utiliza menos hipóteses ou hipóteses matematicamente mais simples Entre tanto em Galileu o princípio de simplicidade recebe uma for mulação que pode ser chamada de ontológica metafísica pois é tomado como um princípio cosmológico geral acerca das opera ções da própria natureza Ateoria deve ser simples porque a natu reza é simples isto é não faz por muitos meios o que pode fazer com poucos cf EN 7 p 143149 423 Estas breves considera ções são suficientes para indicar o imbricamento que Galileu ope ra entre a perspectiva realista nós não buscamos aquilo que Deus podia fazer mas aquilo que ele fez e a concepção metafísica da simplicidade Ele tem sempre no operar os modos mais fá ceis e simples ou Ele gosta da simplicidade e da facilidade que preside a ordenação real do mundo a verdadeira disposição das partes do universo EN 7 p 5656 Por outro lado uma tal articulação da simplicidade impede evidentemente o uso de hipó teses instrumentalistas cuja introdução visa apenas à adequa ção do cálculo às observações sem restrições concernentes à sim plicidade da representação obtida por meio dessas hipóteses Os quatro critérios de avaliação de teorias científicas que aca bamos de apresentar podem ser tomados como valores cogniti vos cf VAC cap 3 SVF cap 3 5 Eles são distintos dos valores sociais e morais ou das crenças religiosas cf SVF cap 9 Galileu mantinha que uma teoria que satisfaça bem esses critérios valo 5 Evidentemente empregamos a terminologia contemporânea para caracterizar os critérios como valores cognitivos e para atribuirlhes os rótulos usados no texto mas o conteúdo especificado nos quatro critérios decorre dos escritos de Galileu Bis Hugh Lacey res cognitivos é superior a outra que não os satisfaça Mantinha que a teoria copernicana era superior neste sentido às rivais da quele tempo e portanto devia ser aceita De fato estava enga nado a esse respeito a teoria de Kepler era superior em parte como consequência de que Kepler usou argumentos empíricos para refutar o princípio do movimento uniforme e circular dos corpos celestes Fica clara agora a razão pela qual Galileu não aceitava uma interpretação instrumentalista ficcionalista da teoria de Copérnico Embora carecesse de demonstração segun do ele a teoria copernicana era claramente superior a suas rivais com respeito à manifestação de todos os valores cognitivos cita dos acima6 Não obstante Galileu fazia o tipo correto de inferên cia científica a saber o tipo de inferência que produz conclusões abertas à reavaliação à luz de observações adicionais e de novos argumentos baseados em critérios não demonstrativos valores cognitivos Deste modo Galileu antecipou detalhadamente a ideia de imparcialidade aceitamse as teorias se e somente se elas manifestam em alto grau os valores cognitivos e manifestam esses valores em graus mais elevados do que as teorias rivais cf SVF cap 4 10 ainda que Galileu diferentemente de Pascal 1998 não distinguisse claramente entre essa aceitação de teo rias e as demonstrações e assim não reconhecesse claramente que quando teorias são aceitas com base nesses critérios elas não foram demonstradas com certeza mas permanecem em princípio abertas a reavaliações ulteriores 6 Notese que não é claro que a teoria copernicana tinha um poder explicativo superno 10 de suas principais predecessoras muito embora a maior manifestação por ela revelada do itens iii e iv tenha sido vista como sugerindo uma maior manifestação de ii 0 argumi ntu causal a teoria das marés de Galileu em favor do duplo movimento da Terra obteve apoio e foi completamente descartado Os críticos também assinalavam que a teoria de Galileu não manifestava em alto grau outro valor cognitivo importante v conêittincia COIFI a melhor teoria física disponível Mas é óbvio que Galileu respondia que a teoria física eiinaidr rada a saber a filosofia natural de Aristóteles nãoé nem mesmo inter na menti consistente A Á G U I A E os ESTORNINHOS GALILEU E A AUTONOMIA DA CIÊNCIA 2 0 ethos C I E N T Í F I C O E O CULTIVO DAS V I R T U D E S C I E N T Í F I C A S Para Galileu os juízos feitos de acordo com a imparcialidade proporcionam um conhecimento superior dos fenômenos natu rais à luz de critérios que não trazem a marca de compromissos religiosos ou valorativos Esta é uma suposição essencial para seu argumento em favor da autonomia das práticas científicas auto nomia que é necessária para obter e confirmar mais conhecimen tos satisfazendo o teste da imparcialidade 0 argumento pretendia porém legitimar a provisão de liberdade para os pesquisadores como o próprio Galileu e Copérnico Eles merecem a liberdade de falar e ser escutados por pessoas entendidas e não excessiva mente conturbadas pelas próprias paixões e interesses EN 5 p 285 não só em vista do objetivo afirmado de produzir juízos imparciais concernentes ao conhecimento dos fenômenos na turais mas também porque com cientistas como eles podese esperar que os farão habitualmente são especialistas EN 7 p 314 ss bem formados que cultivam certas virtudes que Finocchiaro 1997 p 3401 identificou como as virtudes de es pírito aberto e racional open mindedness e rational minded ness Aprimeira virtude a de possuir espírito aberto refere se à disposição de alcançar suas conclusões desinteressadamen te sem dar preferência às suas próprias contribuições EN 5 p 3445 à m z dos melhores argumentos que levam em consi deração toda a evidência relevante disponível aqueles que têm o espírito aberto tomam o cuidado de conhecer as perspectivas e os argumentos de seus oponentes e de responder resolutamente a seus argumentos mais fortes A segunda virtude a de possuir espírito racional referese à atitude e à prática de aceitar uma teoria só depois da avaliação completa dos argumentos pró e con tra copelandoos e pesandoos com a balança do ensaiador EN 7 p 157 para verificar se concordam com a imparcialidade Hugh Lacey Galileu sugere que o cultivo dessas virtudes confere uma van tagem metodológica Finocchiaro 1997 p 339 Essa perspec tiva pode ser claramente extraída daquilo que se pode chamar de argumento da conversão formulado por Galileu em duas opor tunidades a primeira no Acerca da opinião copernicana um texto de 1615 que permaneceria inédito a segunda no Diálogo sóbri os Dois Máximos Sistemas do Mundo de i632 cf EN 7 p 1538 Exposto sumariamente o argumento consiste em apontar para uma assimetria da conversão todos os defensores de Copérnico foram antes defensores de Aristóteles e Ptolomeu nenhum de fensor de Aristóteles e Ptolomeu foi antes defensor de Copérnico ou seja ninguém que se converteu ao copernicanismo retornou depois à posição aristotélicoptolomaica logo as razões em la vor de Copérnico são melhores que as razões em favor de Aris tóteles e Ptolomeu Galileu conferia um peso inegável à assi metria da conversão Com efeito em sua primeira versão ele parece sugerir que o fato de existir tal assimetria proporciona uma base inegável para a aceitação da teoria de Copérnico e os con sultores inquisitoriais responsáveis pela censura no processo de i633 interpretaram a versão do Diálogo embora ela compareça nessa obra no interior de um argumento mais amplo de Sagredo e seja formulada de modo bastante mais hipotético desse modo acusandoo de apresentar como prova de verdade que os pto lomaicos passem aos copernicanos e não ao contrário EN 19 p 37 Finocchiaro 1989 p 222 1997 P 49 Ora o fenômeno da assimetria da conversão é racional me 11 te relevante embora não seja um fenômeno de fundamental im portância Apesar disso ele é um fenômeno digno de explicação Com efeito ele pode ser explicado ou pela superioridade da leo ria de Copérnico a saber que ela manifesta em maior grau OH valores cognitivos com respeito aos dados disponíveis 01 m outros fatores por exemplo ignorância oportunismo autoro moção ou talvez falta de respeito as autoridades 11 1 M 11 c11 A Á C U I A E O S E S T O R N I N H O S G A L I L E U E A A U T O N O M I A D A C I Ê N C I A impiedade etc Em ambos os casos o apelo à assimetria da con versão não elimina a necessidade de que Galileu mostre a supe rioridade racional da teoria de Copérnico E de fato no Diálogo Galileu reconhece claramente isso pois a assimetria da conver são parece então estar embasada em outra assimetria a saber aquela que confere a vantagem metodológica aos copernicanos a qual se articula em torno dos dois seguintes pontos a os coper nicanos entendem a teoria aristotélicoptolomaica e conhecem todas as observações e argumentos que a favorecem mas não vice versa com efeito Salviati apresenta vários fenômenos novos que Simplício toma como fornecendo apoio ulterior a Aristóteles e Ptolomeu uma vez que eles podem ser prontamente explicados no interior dessa teoria b os copernicanos estão familiariza dos com a evidência e os argumentos que contrariam Aristóteles e Ptolomeu assim como com os argumentos levantados por estes últimos contra sua teoria mas em ambos os casos os aristotélico ptolomaicos estão bem menos familiarizados e em alguns itens são completamente ignorantes Isto posto são os copernicanos e não os defensores de Aristó teles e Ptolomeu que estão melhor colocados para fazer as avalia ções comparativas da evidência e dos argumentos a favor e contra os dois lados Segundo Galileu os copernicanos mostram que os argumentos em favor de sua teoria são muito mais convincentes do que aqueles em favor de seus oponentes e que os argumentos contra seus oponentes são devastadores mas o importante é que os defensores da teoria oposta não estão dispostos numa pers pectiva metodológica apropriada para responder ao desafio Além disso Galileu sugere claramente que qualquer pessoa que assuma a perspectiva metodológica do copernicanismo ou seja familiaridade com os dois lados chegará ao mesmo juízo evi dentemente ele sugere que em nenhum caso se chegou seria mente a um juízo contrário e é por isso que se chega à assime tria da conversão t Hugh Lacey Resumindo na controvérsia sobre a teoria de Copérnico fica claro que os seguidores deste último tal como Galileu tinham conquistado a vantagem metodológica inicialmente a maioria deles era de seguidores de Aristóteles e Ptolomeu converteram se quando foram movidos pela força das razões EN 7 p 153 de modo que passaram a ter familiaridade com os dois lados da controvérsia inclusive com os melhores argumentos contra Copérnico Em contraste ninguém depois de ter vindo a co nhecer os detalhes dos argumentos favoráveis a Copérnico converteuse ao outro lado Entre os oponentes de Copérnico aqueles que à incredulidade nas descobertas de Galileu acres centavam algum sentimento alterado EN 5 p 3io ao invés das virtudes de espírito aberto e racional encontramos ignorân cia isto é resistência em apreender os argumentos copernica nos tendência a recorrer dogmaticamente a autores antigos cf EN 6 p 3404 oportunismo e servilidade onde não encontra mos senão sofismas paralogismos e falácias EN 5 p 285 apelo a aparências enganadoras paralogismos e falácias EN 5 p 342 disposição de abandonar totalmente os sentidos e as razões demonstrativas EN 5 p 3i3 e imposição de passagens escriturais mal compreendidas EN 5 p 309 como ameaças com o propósito de dar por terminada a investigação EN 5 p 3n Lembrese aqui da metáfora da águia e dos estorninhos voar como as águias é uma evidente expressão da independência do juízo científico caracterizada pelas virtudes de espírito aberto e racional cuja consequência é que os cientistas não podem per tencer a uma escola não são como os estorninhos que voam em bando submetendose ao princípio de autoridade Uma águia mas não um bando de estorninhos merece auto nomia 0 argumento em favor da autonomia supõe portanto pie os cientistas se tenham tornado participantes do ethos da eu n cia cf Cupani 1998 A certificação formal institucional d e competência n ã o c suficiente para legitimar a autonomia p o i A Á G U I A E OS ESTORNINHOS GALILEU E A AUTONOMIA DA CIÊNCIA que os cientistas qualificados podem subordinar os seus juízos a interesses de fora externos Ninguém tem condições de saber o que Galileu teria achado dos fatos contemporâneos de que cer tos cientistas qualificados participam em pesquisas controladas por autoridades militares classified research pesquisa qua lificada de que certas pesquisas se subordinam a interesses empresariais e de que em geral as instituições da ciência ajus tamse a esses fatos Poremos de lado a especulação sobre esse assunto Basta para nossos propósitos lembrar que o argumen to de Galileu em favor da autonomia depende dos cientistas que rerem fazer juízos imparciais e cultivarem as virtudes geralmente necessárias para assegurar seu sucesso 3 O ARGUMENTO DOS D O I S L I V R O S De acordo com Galileu apesar das muitas aparências em contrá rio seria impossível ocorrer um conflito epistêmico real entre os resultados científicos bem estabelecidos e as verdades religiosas inclusive escriturais Averdade que é tomada por Galileu como sendo uma só aponta para uma harmonia mútua mas não para uma subordinação de um domínio ao outro Sempre que um resultado científico e uma passagem das Es crituras parecem estar em conflito essa aparência de conflito pode ser removida por meio de reinterpretações apropriadas ou o juízo científico foi inadequadamente confirmado demonstrado ou a passagem escriturai foi incorretamente interpretada Até aqui tanto Galileu quanto Bellarmino concordavam Mas uma tensão profunda subsistia Galileu e Bellarmino discordavam acerca de qual das alternativas devia ser aceita na questão do movimento do Sol Bellarmino identificava confirmação adequada com demonstração e a teoria copernicana claramente não satisfa zia nem podia satisfazer esse critério e tampouco as teorias de 3i Hugh Lacey Ptolomeu e Tycho Brahe Apesar disso Bellarmino concordava que a interpretação correta da Escritura devia ser consistente com as verdades demonstradas Aunidade da verdade impunha isso mas a consistência era exigida somente para as verdades demons tradas Para Bellarmino se o melhor resultado científico dispo nível não estava demonstrado vale dizer se não demonstrava a impossibilidade da posição contrária devia ser entendido sob uma interpretação instrumentalista a saber como uma ficção conveniente que permite o cálculo e a predição Entretanto as ficções não têm jurisdição quanto à correção da interpretação es criturai Existe um caminho intermediário entre a demonstra ção e a ficção a saber o da conclusão provável avaliada à luz dos critérios não demonstrativos discutidos acima que foi bem desenvolvida por Pascal quinze anos após o julgamento de Galileu Entretanto quando consideramos as afirmações de Galileu acerca das demonstrações e dos critérios que ele efetivamente costu mava empregar em favor da teoria de Copérnico podemos per ceber que ele se debatia para identificar esse caminho inter mediário Apesar disso Galileu não foi capaz de identificálo e Bellarmino nunca considerou seu possível impacto na interpre tação escriturai7 Em vista disso Galileu introduziu uma nova maneira de expli car por que supostamente os resultados científicos não podem contradizer as verdades teológicas Segundo essa nova maneira as questões de demonstração e probabilidade tornamse geral mente irrelevantes porque o que é agora importante perguntar a respeito de qualquer enunciado usando sua metáfora sugestiva é em qual livro está escrito no livro da natureza ou no livro da revelação cf Blackwell 1991 cap 7 Esses livros ambos de 7 Estas questões são detalhadamente discutidas por McMullin 1998 e Finocchiaro 1980 Obviamente toda essa discussão depende dos diferentes sent idos que são 1atrdm idos a rincão de hipótese ficção ou conjectura provável Pascal 1998 revela uma excelente apreensão do caráter prolialiilistico da inferência cientifica A ÁGUIA E os ESTORNINHOS GALILEU E A AUTONOMIA DA CIÊNCIA autoria divina são escritos em linguagens diferentes Usando em grau significativo categorias incomensuráveis os livros ser vem a fins diferentes e precisam ser lidos de maneira diferen te não podem ser traduzidos um ao outro Portanto nunca po deriam contradizerse A filosofia está escrita neste grandíssimo livro que continua mente nos está aberto diante dos olhos eu digo o universo mas não se pode entender se primeiro não se aprende a entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito Ele está escrito em língua matemática e os caracteres são triângu los círculos e outras figuras geométricas meios sem os quais é impossível entender humanamente qualquer palavra sem estes vagase em vão por um escuro labirinto EN 6 p ziz Alinguagem da ciência a do livro do universo é matemá tica rigorosa e exata A Bíblia o livro da revelação está escrita em linguagem ordinária aberta ao entendimento comum dos homens dos leigos descrevendo aparências e experiências al gumas vezes ambíguas e imprecisas frequentemente metafóri cas Há duas linguagens não há dois mundos distintos ou dois domínios distintos de fenômenos duas linguagens que frequen temente se aplicam aos mesmos fenômenos mas quando ambas se aplicam refletem interesses distintos Quando as pessoas co muns dizem que o Sol se move pelos céus descrevem o que ob servam sem tentar explicálo não se perguntam se realmente é o Sol ou a Terra que está em movimento e independentemente da resposta correta o que é visto percebido permanece o mesmo Ambas as linguagens podem ser usadas para descrever os fatos a aceitação científica da teoria copernicana não con tradiz o relatório observacional comum de que o Sol se move pelo céu de leste para oeste A Bíblia emprega a linguagem comum corriqueira para relacionar os fenômenos à história sagrada da Hugh Lacey salvação por exemplo na famosa passagem de Josué e a parada do Sol ou às vidas espirituais dos crentes por exemplo em pas sagens dos Salmos acerca do movimento do Sol pelos céus e por isso não discorre sobre as questões científicas por exem plo sobre as explicações de fenômenos comumente observados tal como o movimento do Sol Assim não há necessidade alguma pela qual a Igreja tenha que considerar a questão copernicana em deliberações sobre a interpretação da Bíblia Por outro lado para Galileu a atividade científica e suas descobertas embora não con tribuam para iluminar o sentido da história da salvação não dis cordam com qualquer verdade relevante para a salvação humana que dependa assim da autoridade da Igreja8 O argumento dos dois livros pressupõe que os juízos cientí ficos benfeitos concordam com a imparcialidade isto é que os critérios interpretativos do livro da natureza são distintos daque les da Bíblia e que os juízos científicos são efetivamente feitos de acordo com os métodos próprios da ciência sem nenhuma res trição de fatores de fora externos O caráter técnico da lin guagem da ciência é importante aqui matemática exata abstrata portanto generalizando de tal modo que se aplique mais direta mente ao contexto das teorias científicas contemporâneas l i n guagem é adequada para representar a lei a estrutura a intera ção e o processo subjacentes dos fenômenos naturais Assim a linguagem da ciência não contém nem as categorias de valor nem outras categorias implicadas na experiência humana e nas rela ções sociais A linguagem exigida pela ciência não pode portan to ser empregada normalmente na comunicação comum e care ce dos aspectos necessários para o discurso teológico 9 8 Galileu desenvolve detalhadamente este argumento em suas cartas a Castelli e á grã du quesa Cristina ele é estudado e elaborado por Blackwell 1991 9 0 argumento dos dois livrosé um argumento tanto filosófico como em parti leologu o Ele envolve uma concepção da interpretação das Escrituras 1ssa concepção exegética dilc rentemente dos resultados da ciência galileana pode conflitar com as concepções aceicii A ÁGUIA t os ESTORNINHOS GALILEU E A AUTONOMIA D A CIÊNCIA 0 argumento dos dois livros é facilmente generalizado uma vez que a linguagem da ciência carece das características exigidas por qualquer discurso sobre os valores as teorias científicas não podem ter nenhuma implicação lógica no domínio dos valores isto é a ciência é cognitivamente neutra no domínio de valores 1 0 Assim o argumento dos dois livros generalizase no argumento dos discursos múltiplos o discurso da ciência e os vários dis cursos dos valores onde o discurso da ciência é incomensurável com todos aqueles referentes a valores e assim as teorias cien tíficas não podem servir de base para favorecer um discurso ao invés de outros A ciência não pode resolver as grandes contro vérsias com respeito aos valores Seguese portanto que a auto nomia pressupõe a imparcialidade e neutralidade cognitiva e que de fato a atividade científica é conduzida pelos cientistas que cultivaram o ethos científico Ao mesmo tempo o argumento de Galileu em favor da autonomia implica o reconhecimento de uma certa autonomia de outros discursos os discursos de valor e o discurso teológico 1 1 das quais a Igreja reivindica a autoridade e alguém que adira aos argumentos de Galileu pode ser conduzido a interpretações escriturais que conflitam com as interpretações auto rizadas Além disso a concepção de Galileu é compatível com a ideia de que uma descober ta científica pode ser a ocasião para reconhecer a necessidade de reinterpretar uma passa gem escriturai O conflito não é entre o resultado científico e a passagem em si mas entre o resultado e a interpretação incorreta da passagem Ela é também compatível com o com promisso com uma concepção teológica que proporciona a ocasião de uma nova avaliação da evidência exigida por um resultado científico As generalizações destas considerações para o contexto do argumento dos discursos múltiplos são óbvias 10 Isto é compatível com a ideia de que a linguagem valorativa ordinária pode ser desdobra da para descrever fatos na ciência afastamonos dessa linguagem ordinária 11 No século xvii o argumento dos dois livros não era a única alternativa à posição de Bellarmino Outros principalmente protestantes exploraram as interpretações teológicas e as implicações dos resultados científicos a ciência e a religião interagiam profunda me n te conflitos por exemplo acerca da natureza de Deus faziam parte de disputas cientificas por exemplo a disputa entre Newton e Leibniz sobre o espaço e o tempo Esta opção toi nouse novamente corrente nas discussões recentes sobre a suposta significação teológica das teorias eosmológieas eniliora a corrente principal do pensamento católico lenda a desci 1 volvei o argumento dos dois I i n os lode se supor que seu correlato nos discurso mui l u Hugh Lacey Independentemente do poder de persuasão dos argumentos dos dois livros e dos discursos múltiplos para os filósofos e teólogos eles enfrentam dificuldades Com efeito o argumento dos dois livros pressupõe a que os juízos científicos são normalmente feitos de acordo com a imparcialidade e b que a linguagem da ciência é matemática ou técni ca ou pelo menos uma linguagem que não contém cate gorias valorativas ou outras categorias cuja aplicação não envolve a abstração da experiência humana e das relações sociais uma linguagem em suma capaz de representar os fenômenos em termos de hipóteses da lei da estrutura da interação e do processo subjacentes E a linguagem técnica não sua concordância com a imparcia lidade que assegura serem as teorias científicas cognitivamente neutras Mas a neutralidade cognitiva não implica o outro tipo de neutralidade a neutralidade aplicada em princípio os interesses de todos os pontos de vista de valor razoáveis poderiam ser igualmente satisfeitos por aplicações científicas Lacey argumentou cf VAC cap 5 SlF cap 610 que na aplicação as teorias formuladas na linguagem matemática ou técnica favorecem especialmente aquelas perspectivas de valor que contêm atitudes especificamen te modernas com respeito ao controle dos objetos naturais ou seja podem ser mais prontamente aplicadas para servir aos i n teresses ligados ao controle de objetos naturais entendendo o controle como um valor não subordinado sistematicamente a outros valores sociais tiplos encontrase na ética evolucionista derivai valores a pari ir de resultados cie til if iceis De qualquer modo o apelo superior dos dois livros sobre a posição de Hei lar Iam no mínimo ele expressa um comprouu que pode manter a pa por um longo período Í Í I A ÁGUIA E os ESTORNINHOS GALILEU E A AUTONOMIA DA CIÊNCIA Tais atitudes com respeito ao controle estão porém em ten são entre outras com a perspectiva de valor favorecida pela Igreja católica Isto é particularmente óbvio hoje em conexão com o desenvolvimento da tecnologia médica Mas sem a neutralidade aplicada o argumento em favor da autonomia perde a desejada força universal Galileu não discutiu esses assuntos ligados à apli cação do conhecimento científico mas atualmente não pode mos separar o empreendimento científico de suas aplicações e já no século xvu Bacon identificara o papel central das aplica ções na prática científica e a sua relação com as atitudes moder nas a respeito do controle dos objetos naturais Assim na refle xão sobre a autonomia é preciso salientar não só a ausência de interferências externas mas também a disponibilidade de recur sos materiais e sociais necessários para o engajamento na pes quisa científica A ausência de neutralidade aplicada não fornece razão nem para interferir nos conteúdos dos resultados científi cos nem para imporlhes restrições mas aqueles cujos interes ses não fossem bem servidos poderiam questionar o valor de patrocinar a pesquisa supostamente autônoma que efetivamen te produz resultados sem manifestar a neutralidade aplicada Levantase desse modo a seguinte questão porque aceitar que a linguagem da teoria deve ser matemática ou técnica Uma resposta possível seria porque funciona porque produz resul tados Mas este fato sustenta apenas a autonomia limitada àqur les domínios da investigação dentro dos quais poderíamos espe rar que a neutralidade aplicada se manifestasse Além disso não implica que poderíamos obter resultados apenas desse m o d o Outra resposta afirmada frequentemente por toda a tradição da ciência moderna é que essa linguagem reflete o mundo tal como ele realmente é a lei a estrutura a interação e o processo sul jacentes do mundo são completamente matemáticos e m lodos os detalhes Tratase evidentemente de uma resposta metafísi ca Galileu aludiu a ela Descartes desenvolveu a c m detalhe 17 Hugh Lacey Ambos empregaram o artifício do dualismo mentecorpo para excluir do âmbito da análise matemática fenômenos humanos im portantes A matéria a natureza é matemática a mente a natu reza humana não é Observese que esta resposta metafísica não depende da suposição de imparcialidade e também que a impar cialidade não pressupõe e não implica a aceitação de qualquer perspectiva metafísica Os juízos imparciais podem ser feitos de muitas formas não só no discurso matemático isso é de grande importância nas ciências humanas Além disso a tese de que a natureza abstraída da mente é de caráter profundamente matemático não repre senta um resultado científico aceito de acordo com a imparciali dade Tratase de uma restrição imposta sobre as teorias permi tidas na investigação científica e é uma restrição de origem metafísica E certo que existem contradições entre essa metafí sica e as pressuposições da teologia católica notese contradi ção entre a metafísica e a teologia mas não entre a teologia e os resultados científicos aceitos de acordo com a imparcialidade Além disso a tese não é absolutamente verdadeira Cabe lem brar que Galileu mesmo faz Simplício dizer Essas sutilezas matemáticas são verdadeiras em abstrato mas aplicadas à matéria sensível e física não funcionam quando se chega à matéria as coisas vão em outra direção EN 7 p 229 0 questionamento de Simplício expressa uma preocupação séria o sucesso de Galileu em explicar um âmbito de fenômenos interessantes com um léxico matemático não é suficiente para fundamentar a metafísica 1 2 Podese sugerir cf SVF cap 6 que 1 8 Isso é ainda mais claro quando a metafísica galileana utilizada como reslriçáo na uives tigação da psicologia humana Para uma critica detalhada tio argumento dos dois livros em especial com relação a esse ponto ver 1 acev lli 111 A Á G U I A E O S E S T O R N I N H O S G A U I E U E A A U T O N O M I A I A C I Ê N C I A a aceitação da concepção da natureza escrita na linguagem da matemática está fortemente vinculada a compromissos com for mas modernas de valorar o controle da natureza Se é assim a aquisição de autonomia com relação à autoridade da Igreja esta ria acompanhada por uma nova subordinação da ciência às ideo logias e aos poderes modernos Visto desse modo o argumento dos dois livros equivale a uma defesa da autonomia da ciência com relação à religião mas não com relação às restrições metafísicas Sem um argumento convincente pela metafísica este não é um argumento adequado em favor da liberdade da ciência com relação a todas as interfe rências de fora externas mesmo que a restrição metafísica seja auto imposta pelos próprios cientistas e não imposta por pode res externos Os argumentos ulteriores em favor da autonomia da ciência não obtiveram sucesso em superar essa limitação do argumento de Galileu cf VAC cap 10 9
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CAPÍTULO 12 A águia e os estorninhos Galileu e a autonomia da ciência Coautoria de Pablo Rubén Mariconda A distinção entre fato e valor emerge pela primeira vez na cultura ocidental por ocasião da intensa polêmica causada pela recepção e defesa da teoria heliocêntrica de Copérnico Ela comparece ex plicitamente articulada na polêmica teológicocosmológica que se seguiu ao anúncio das descobertas telescópicas de Galileu no Sidereus nuncius 1610 e que antecedeu a condenação do De re volutionibus de Copérnico pela Inquisição romana proibido pelo decreto da Sagrada Congregação do índice de 1616 No devido tempo a distinção entre fato e valor serviu para embasar a concepção de que a ciência é livre de valores a qual se manifesta em graus variados nas práticas e instituições cientí ficas O modo de articulação dessa concepção deriva em parte da reflexão sobre os modos concretos pelos quais ela se tornou manifesta no decorrer dos séculos Ela não se manifestou con cretamente nas práticas e instituições científicas sem conflito Interesses e poderes rivais opuseramse a ela O modo pelo qual ela se tornou manifesta exibe assim as cicatrizes do condito ao mesmo tempo seu modo de manifestação reflete também um ideal de entendimento científico e suas bases racionais As arti culações da ideia refletem portanto as cicatrizes do conflito e o ideal Retornar às fontes da concepção atual de que a ciência é li vre de valores pode ajudarnos a discernir quanto das articulações contemporâneas refletem o ideal racional e quanto elas escon dem de compromissos meramente históricos enganosamente tomados como fazendo parte do ideal racional e que servem tal Hugh Lacey vez para disfarçar que as investigações nas quais os cientistas se engajam atualmente podem não se conformar adequadamente ao ideal racional A ideia de que a ciência é livre de valores cf VAC cap 1 aci ma pode ser considerada como um valor das práticas e das insti tuições científicas com três componentes imparcialidade neu tralidade e autonomia A imparcialidade baseiase na distinção entre os critérios para a avaliação epistêmica de teorias científi cas e os valores e crenças sociais culturais religiosos metafísicos e morais Aneutralidade afirma primeiro neutralidade cognitiva que não se podem extrair de teorias científicas conclusões no do mínio dos valores e segundo neutralidade aplicada que no con texto de aplicação uma teoria bem estabelecida serve em prin cípio aos interesses de todas as perspectivas de valores mais ou menos equitativamente A autonomia referese à carência ou ausência de um papel legítimo para os fatores de fora externos tal como valores sociais crenças religiosas e ideológicas e o tes temunho de autores para as práticas internas da metodologia científica não só com relação à escolha de teorias mas também com relação à determinação das abordagens de pesquisa A auto nomia acarreta portanto que as práticas científicas devem ser conduzidas livres de qualquer interferência de fora externa c nas versões contemporâneas ao mesmo tempo que elas devem ser patrocinadas com os recursos necessários pelas várias insl i tuições públicas e particularestal que os cientistas possam co ri tinuar de qualquer modo que considerem apropriado em seu objetivo de obter e confirmar o entendimento de fenômenos do mundo em conformidade com a imparcialidade e a neutralidade De fora ou externa significa não apropriada em vista dott objetivos positivos da ciência entretanto tal caracterização per manece uma tautologia vazia enquanto não forem especificadaH as influências apropriadas sob a forma de princípios AH lista de interferências externas que devem ser evitadas incluem tipi A Á G U I A E os ESTORNINHOS GALILEU E A AUTONOMIA DA CIÊNCIA camente itens tais como as opiniões religiosas políticas ou ideo lógicas populares ou apressadas EN 5 p 32o 1 as visões valo rativas e seus pressupostos e certas visões metafísicas Esta lista certamente evoca velhos conflitos Não se teria talvez deixado de incluir certos itens simplesmente porque eles foram os aliados da ciência em seus conflitos A metafísica materialista ou as vi sões matematizadas do mundo apresentamse como possíveis candidatos assim como os interesses que são favorecidos pelas aplicações do conhecimento científico Essas três componentes da ideia da ciência como livre de va lores constituem uma parte fundamental do autoentendimento da tradição da ciência moderna desde o século xvii Nesta apre sentação focalizaremos principalmente a autonomia e especial mente a contribuição de Galileu para a análise desse componen te central da concepção seiscentista da ciência O conflito entre Galileu e a Igreja é bem conhecido como um símbolo dos cami nhos trágicos que se podem tomar quando a liberdade de pes quisa científica não é respeitada erros perpetuamse a pesquisa estagna vidas e carreiras criativas são impedidas direitos hu manos são violados o progresso do conhecimento é retardado e quando se consideram os conflitos famosos mais recentes por exemplo o caso Lysenko podese acrescentar aplicações ade quadas são deixadas de lado enquanto alternativas ideologica mente inspiradas adquirem hegemonia com consequências catastróficas na vida social e política O símbolo de Galileu no con flito com a Igreja nutriu a ideia de que a ciência é ou deve ser livre de valores permitindo que essa ideia ganhasse seu lugar como 1 Nesta discussão utilizamos principalmente os seguintes trabalhos de Galileu a carta a Benedetto Castelli de 21 de dezembro de i6i3 a carta à grãduquesa Cristina de Lorena de 1615 O ensaiador i6a3 e o Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo i63a Esses textos serão referidos em suas versões originais publicadas por A Fávaro naEdizioneNazio nnlcdtilc opere di Mileo Galilei usando o expediente de abreviara referência por EN segui da In volume dessa edição indicado por números arábicos 307 Hugh Lacey uma parte reiteradamente afirmada e frequentemente reinter pretada do autoentendimento comum da tradição da ciência moderna Mas quando se discute a liberdade da pesquisa cientí fica Galileu é muito mais do que um símbolo seus argumentos em favor da autonomia da ciência são seminais Galileu não considerou a autonomia da ciência em toda sua generalidade Sua meta era conseguir que a investigação cientí fica fosse livre da interferência específica da Igreja católica exer cida por meio de sua autoridade no ensino de seu sistema legal de condenações e punições pela coerção violenta ou pela ameaça de violência e por inúmeras outras formas de tormento 2 Mais especificamente Galileu visava que as disciplinas científicas ma temáticas se autonomizassem do controle da teologia escolástica e positivamente pretendia conquistar para os cientistas o di reito de investigar de fazer novas descobertas com liberdade de interpretação e de avaliação dos resultados sem estarem obriga dos às autoridades religiosas e o direito de ensinar e defender suas conclusões científicas sem a restrição de ter que esperar pe las interpretações escriturais ou outras doutrinas que caíam sob a autoridade reivindicada pela Igreja Galileu ressentiase pro fundamente com a interferência constante no seu empreendi mento científico tanto das autoridades religiosas como daquelas acadêmicas que sentindose confortáveis em épocas repressi vas preferiam fazer acusações ao invés de engajarse seriamente em controvérsias científicas não só porque seus oponentes não admirassem sua notável capacidade e extraordinária contriltui ção científicas mas também porque ele os desprezava e ridícula rizava enquanto integrantes de escolas que sacrificam a liberda de da pesquisa com a submissão ao princípio de autoridai I 2 Galileu desejava também obter liberdade com relação às restrições da estrutura r ilu iiu rieulo universitários dominantes do sistema científico aristotélico ila autoridade IIOH to tos antigos cf Mariconda 2 0 0 0 i o i i A ÁGUIA E os ESTORNINHOS GALILEU E A AUTONOMIA DA CIÊNCIA o sentido da passagem de 0 ensaiador em que Galileu move a se guinte crítica ao padre jesuíta Orazio Grassi que se disfarçava sob o pseudônimo de Sarsi Talvez acredite Sarsi que bons filósofos se encontrem em qua dras inteiras e dentro de cada recinto dos muros Eu Senhor Sarsi acredito que voem como as águias e não como os estorni nhos E bem verdade que aquelas porque são raras pouco se veem e menos ainda se ouvem e estes que voam em bando en chendo o céu de estridos e de rumores aonde quer que pousem emporcalham o mundo EN 6 p 2867 Este tipo de retórica era celebrado por seus aliados mas cer tamente crioulhe muitos inimigos Contudo essa retórica cujo principal objetivo é chamar a atenção não deve obscurecer o fato de que para Galileu a autonomia da ciência fundamentava se não na autoindulgência mas em argumentos sustentados A estratégia de Galileu é então a de desenvolver um argumento tão efetivo quanto correto ou seja um argumento capaz de per suadir as autoridades religiosas Qualquer argumento efetivo de que a ciência deve estar livre da interferência da Igreja não pode ria permitir que o empreendimento científico estivesse sujeito a restrições por parte de setores opostos à Igreja católica Galileu é levado então a argumentar que a ciência deve estar livre de to das as interferências de fora externas ao mesmo tempo que se obriga a retratála como um valor universal um objeto de valor para qualquer ponto de vista moral ou metafísico razoável 0 argumento de Galileu refinado generalizado e suplemen tado permanece no centro de todas as defesas da autonomia da ciência Para ele podemos dizer a autonomia é necessária por que as práticas científicas contribuem para produzir conheci mento do mundo representado por teorias que manifestam sem pre tio mais alto grau a impareiaÜdade e a neutralidade 1odemos Hugh Lacey reconstruir o argumento de Galileu como estando baseado nas três seguintes suposições i Os empreendimentos científicos possibilitam desco bertas sobre os fenômenos naturais descobertas que são feitas pelo uso dos métodos apropriados da ciência que estão assentados principalmente em observações dos fe nômenos e em inferências corretas envolvendo essas ob servações As questões de valores nada têm a ver com a observação precisa ou a inferência válida Ou seja o méto do da ciência não deve responder cognitivamente às pro postas e às críticas de qualquer ponto de vista valorativo concernente a valores Nem a Igreja nem seus oponen tes nem qualquer ponto de vista baseado em valores têm autoridade no domínio próprio da ciência Os juízos científicos são feitos por especialistas aquelas águias que voam solitárias cientistas com talen to intelectual relevante praticantes do método da ciência que tenham cultivado as virtudes apropriadas para devo tarse a usálo estritamente 3 Os juízos científicos bem estabelecidos isto é aqueles obtidos usando os métodos baseados em observações e inferências corretas que envolvem essas observações não podem contradizer nem fornecer evidências em favor de qualquer assunto no âmbito de competência da autoridade da Igreja Podemos generalizar esta suposição racional mente esses juízos não têm nenhuma implicação nos do mínios da teologia da metafísica e dos valores não forne cem evidências ou argumentos em favor de ou contra qualquer ponto de vista fundamental nesses domínios seja os da Igreja seja os de seus oponentes A Á G U I A E os ESTORNINHOS GALILEU E A AUTONOMIA DA CIÊNCIA Discutiremos agora com algum detalhe cada uma dessas três 3 suposições 1A imparcialidade DOS JUÍZOS C I E N T Í F I C O S Os juízos científicos adequadamente fundamentados derivam de observações frequentemente auxiliadas pelo uso de instrumen tos que estendem a percepção ou de aparatos experimentais que impõem uma interpretação teórica e inferências corretas nas quais essas observações desempenham um papel importante Embora Galileu procurasse articular essa ideia não chegaria a adquirir um entendimento coerente da natureza da inferência científica Ele fala com frequência da ciência natural como en volvendo experiências sensíveis e demonstrações necessárias razões concludentes e demonstrativas EN 7 p 157 e ex periências longas observações e demonstrações necessárias EN 5 p 33o aceitando aparentemente que a demonstração tal como articulada nos Segundos analíticos de Aristóteles e desen volvida pelos comentadores é a marca do conhecimento cientí fico apropriado cf Wallace 1993a 1992b a qual se caracteriza pela exigência de que para serem aceitas as teorias cientificai 3 Cabe notar neste ponto que cada uma das três suposições pode ser vista como rcs dendo a uma objeção levantada pelos oponentes de Galileu contra a concessão de aulnno mia aos cientistas e a suas práticas Contudo de modo a antecipar objeções ulteriores que não fazem parte do caso Galileu seria preciso acrescentar os seguintes itens aos Ires miro duzidos por Galileu 4 a condução da investigação científica incluindo a experimrnlal não envolve conduta não ética da parte do cientista Parece razoável supor que Galileu te 111 reconhecido a autoridade da Igreja no questionamento e proibição de condutas não clicas percebidas na ciência 5 as aplicações práticas das descobertas cienlificas servem aos 111 teresses da Igreja ou pelo menos elas não servem mais completamente aos inten que competem com aqueles da Igreja mais geralmente em principio os interessei de lo das as visões valorativas viáveis pode 111 ser igualmente servidos pelas aplicações ricnlltinis Note se que 3 não implica 5 8 l l Hugh Lacey devem ser demonstradas com necessidade e certeza Essa adesão à concepção apodítica de ciência é em parte responsável por não ter Galileu submetido à avaliação empírica o velho princípio platônico do movimento uniforme e circular dos corpos celestes Por outro lado poucos argumentos científicos de Galileu podiam satisfazer esse padrão muito exigente e atingir o estatuto de cer teza talvez seu argumento de que os planetas inferiores Mer cúrio e Vénus circundam o Sol satisfaça esse critério pelo me nos tão bem quanto os melhores argumentos aristotélicos mas não seus argumentos em favor do sistema copernicano completo cf Wallace 1993a McMullin 19781998 Apesar disso ao apre sentar seus argumentos em favor do sistema de Copérnico Galileu mostra geralmente uma consciência sutil de alguns dos critérios não demonstrativos que devem informar a inferência científica correta Para ilustrar citaremos quatro dos critérios que Galileu emprega explicitamente nos seus argumentos i Adequação empírica ou seja concordância com os fenô menos as experiências e os experimentos observados especial mente com os dados empíricos precisos ou quantitativamente exatos e poder preditivo com respeito a esses dados acuratís simas observações EN 5 p 3i3 longas e acuradas observa ções EN 5 p 33o Notese que Galileu enfatizava que o mé todo científico requer investigações que aumentem o alcance dos dados relevantes e disponíveis cf EN 7 p 299846 que o re curso a esses dados supera o testemunho dos escritores EN 6 p 337 e a autoridade de passagens das Escrituras EN 5p 3i6 e torna a opinião do vulgo irrelevante ii Poder explicativo ou seja a capacidade de explicar os fe nômenos cuja observação serve para a obtenção dos dados em píricos a capacidade em suma de identificar as causas dos IV nômenos Enquanto na tradição aristotélica a análise causal está intimamente ligada com a demonstração Galileu em sua prál i ca contentavase com explicações que fossem melhores do que lia A Á G U I A E OS ESTORNINHOS GALILEU E A AUTONOMIA DA CIÊNCIA as produzidas pelas teorias rivais 4 Também reconhecia que as explicações causais envolvem relações lógicas entre os dados e as suposições teóricas fundamentais as quais são mediadas pelas várias hipóteses auxiliares Galileu propõe que tais mediações devem sujeitarse ao seguinte critério iii Limitação do uso de ficções ou seja de hipóteses ad hoc que Galileu chamava infelicíssimas inópias EN 7 p 345 e subterfúgios EN 7 p 346 isto é minimização do uso de hipóteses introduzidas unicamente para manter a adequação empírica em detrimento do poder explicativo Referindose a um crítico que propunha hipóteses ad hoc para oporse às descober tas telescópicas Pareceme que vejo aquele infeliz agricultor que depois de ter todas as suas colheitas destruídas pela tempestade vai com a face abatida e desolada juntando relíquias tão ínfimas que não são suficientes para nutrir nem mesmo um pintinho por um só dia EN 7p3 46 Ao invés de ficções Galileu propunha o uso de hipóteses confirmadas ainda que em parte em virtude da existência de analogias experimentais cf EN 6 p 345 7 p 447 O exemplo mais claro do uso de analogias experimentais por parte de Galileu pode ser encontrado na teoria das marés da Quarta Jornada do Diálogo A analogia entre a barca carregada de água e a Terra e seus oceanos serve claramente ao propósito de fornecer uma confir 4 Galileu sustenta que Copérnico pode explicar o que Ptolomeu pode apenas descrever que Copérnico tem poder explicativo assim como adequação empírica enquanto Ptolomeu tem apenas esta última Kepler complementa este argumento Copérnico pode também explicar por que Ptolomeu embora falso pode ser empiricamente adequado ou seja Copérnico pode explicar que Ptolomeu tem algumas das características presentes em seu sistema cf McMullin 1998 Kepler está introduzindo um critério ulterior proporcionar o poder de in terpretar outras teorias cf VAC p 6o a 18 Hugh Lacey mação empírica parcial da hipótese de que o fluxo e refluxo do mar é primariamente causado pelo movimento do vaso continente cf EN 7 p 4502 Mariconda 1999 Assim também a analogia entre o mecanismo de regulação dos grandes relógios de rodas e o sistema LuaTerra no qual a Lua funciona como contrapeso serve ao propósito de fornecer uma confirmação empírica parcial para a hipótese de que o movimento da Lua em torno da Terra é responsável pelo ciclo mensal das marés cf EN 7 p 4746 Mariconda 1999 iv Simplicidade ou seja preferência por teorias nas quais as partes se encaixam umas com as outras harmoniosamente com um mínimo de suposições ou com suposições mais simples EN 7 p 369 Finocchiaro 1997 p 327 ss Uma parte importante da argumentação de Galileu em favor do sistema copernicano é produzida por uma articulação dos princípios metafísicos da per feita ordenação e harmonia das partes do universo e da simplici dade da natureza Por exemplo na comparação entre o sistema de Copérnico e o sistema de Ptolomeu com vistas a mostrar que o primeiro é mais plausível que o segundo quando se considera o movimento diurno Galileu apoia seu argumento na maior sim plicidade do primeiro sobre o segundo porque 1 o número de corpos que se movem é maior no sistema geoestático que no sis tema geocinético ou seja ao invés de fazer girar todos os corpos do universo basta fazer girar somente a Terra 2 o tamanho dos corpos em movimento é maior no primeiro do que no segundo caso sendo evidente que a esfera das estrelas é incomensurável mente maior do que a Terra 3 as velocidades do movimento diurno são imensamente maiores no primeiro do que no segun do caso fazer girar em 24 horas a imensa circunferência do uni verso ao invés de girar a pequena circunferência terrestre cf EN 7 p 14250 Cabe notar que a simplicidade é muitas vezes to mada como um princípio metodológico isto é como uma regra ou diretiva segundo a qual se deve preferir as hipóteses ou teo A ÁGUIA E os ESTORNINHOS CALILEU E A AUTONOMIA DA CIÊNCIA rias mais simples independentemente se a natureza ou os fenô menos estudados podem ser ditos simples Seu uso apoiase nesse caso em considerações de ordem estética como a ele gância matemática da teoria ou ainda em considerações de or dem epistemológica psicológica como a de maior facilidade de entendimento e de operação com uma teoria que utiliza menos hipóteses ou hipóteses matematicamente mais simples Entre tanto em Galileu o princípio de simplicidade recebe uma for mulação que pode ser chamada de ontológica metafísica pois é tomado como um princípio cosmológico geral acerca das opera ções da própria natureza Ateoria deve ser simples porque a natu reza é simples isto é não faz por muitos meios o que pode fazer com poucos cf EN 7 p 143149 423 Estas breves considera ções são suficientes para indicar o imbricamento que Galileu ope ra entre a perspectiva realista nós não buscamos aquilo que Deus podia fazer mas aquilo que ele fez e a concepção metafísica da simplicidade Ele tem sempre no operar os modos mais fá ceis e simples ou Ele gosta da simplicidade e da facilidade que preside a ordenação real do mundo a verdadeira disposição das partes do universo EN 7 p 5656 Por outro lado uma tal articulação da simplicidade impede evidentemente o uso de hipó teses instrumentalistas cuja introdução visa apenas à adequa ção do cálculo às observações sem restrições concernentes à sim plicidade da representação obtida por meio dessas hipóteses Os quatro critérios de avaliação de teorias científicas que aca bamos de apresentar podem ser tomados como valores cogniti vos cf VAC cap 3 SVF cap 3 5 Eles são distintos dos valores sociais e morais ou das crenças religiosas cf SVF cap 9 Galileu mantinha que uma teoria que satisfaça bem esses critérios valo 5 Evidentemente empregamos a terminologia contemporânea para caracterizar os critérios como valores cognitivos e para atribuirlhes os rótulos usados no texto mas o conteúdo especificado nos quatro critérios decorre dos escritos de Galileu Bis Hugh Lacey res cognitivos é superior a outra que não os satisfaça Mantinha que a teoria copernicana era superior neste sentido às rivais da quele tempo e portanto devia ser aceita De fato estava enga nado a esse respeito a teoria de Kepler era superior em parte como consequência de que Kepler usou argumentos empíricos para refutar o princípio do movimento uniforme e circular dos corpos celestes Fica clara agora a razão pela qual Galileu não aceitava uma interpretação instrumentalista ficcionalista da teoria de Copérnico Embora carecesse de demonstração segun do ele a teoria copernicana era claramente superior a suas rivais com respeito à manifestação de todos os valores cognitivos cita dos acima6 Não obstante Galileu fazia o tipo correto de inferên cia científica a saber o tipo de inferência que produz conclusões abertas à reavaliação à luz de observações adicionais e de novos argumentos baseados em critérios não demonstrativos valores cognitivos Deste modo Galileu antecipou detalhadamente a ideia de imparcialidade aceitamse as teorias se e somente se elas manifestam em alto grau os valores cognitivos e manifestam esses valores em graus mais elevados do que as teorias rivais cf SVF cap 4 10 ainda que Galileu diferentemente de Pascal 1998 não distinguisse claramente entre essa aceitação de teo rias e as demonstrações e assim não reconhecesse claramente que quando teorias são aceitas com base nesses critérios elas não foram demonstradas com certeza mas permanecem em princípio abertas a reavaliações ulteriores 6 Notese que não é claro que a teoria copernicana tinha um poder explicativo superno 10 de suas principais predecessoras muito embora a maior manifestação por ela revelada do itens iii e iv tenha sido vista como sugerindo uma maior manifestação de ii 0 argumi ntu causal a teoria das marés de Galileu em favor do duplo movimento da Terra obteve apoio e foi completamente descartado Os críticos também assinalavam que a teoria de Galileu não manifestava em alto grau outro valor cognitivo importante v conêittincia COIFI a melhor teoria física disponível Mas é óbvio que Galileu respondia que a teoria física eiinaidr rada a saber a filosofia natural de Aristóteles nãoé nem mesmo inter na menti consistente A Á G U I A E os ESTORNINHOS GALILEU E A AUTONOMIA DA CIÊNCIA 2 0 ethos C I E N T Í F I C O E O CULTIVO DAS V I R T U D E S C I E N T Í F I C A S Para Galileu os juízos feitos de acordo com a imparcialidade proporcionam um conhecimento superior dos fenômenos natu rais à luz de critérios que não trazem a marca de compromissos religiosos ou valorativos Esta é uma suposição essencial para seu argumento em favor da autonomia das práticas científicas auto nomia que é necessária para obter e confirmar mais conhecimen tos satisfazendo o teste da imparcialidade 0 argumento pretendia porém legitimar a provisão de liberdade para os pesquisadores como o próprio Galileu e Copérnico Eles merecem a liberdade de falar e ser escutados por pessoas entendidas e não excessiva mente conturbadas pelas próprias paixões e interesses EN 5 p 285 não só em vista do objetivo afirmado de produzir juízos imparciais concernentes ao conhecimento dos fenômenos na turais mas também porque com cientistas como eles podese esperar que os farão habitualmente são especialistas EN 7 p 314 ss bem formados que cultivam certas virtudes que Finocchiaro 1997 p 3401 identificou como as virtudes de es pírito aberto e racional open mindedness e rational minded ness Aprimeira virtude a de possuir espírito aberto refere se à disposição de alcançar suas conclusões desinteressadamen te sem dar preferência às suas próprias contribuições EN 5 p 3445 à m z dos melhores argumentos que levam em consi deração toda a evidência relevante disponível aqueles que têm o espírito aberto tomam o cuidado de conhecer as perspectivas e os argumentos de seus oponentes e de responder resolutamente a seus argumentos mais fortes A segunda virtude a de possuir espírito racional referese à atitude e à prática de aceitar uma teoria só depois da avaliação completa dos argumentos pró e con tra copelandoos e pesandoos com a balança do ensaiador EN 7 p 157 para verificar se concordam com a imparcialidade Hugh Lacey Galileu sugere que o cultivo dessas virtudes confere uma van tagem metodológica Finocchiaro 1997 p 339 Essa perspec tiva pode ser claramente extraída daquilo que se pode chamar de argumento da conversão formulado por Galileu em duas opor tunidades a primeira no Acerca da opinião copernicana um texto de 1615 que permaneceria inédito a segunda no Diálogo sóbri os Dois Máximos Sistemas do Mundo de i632 cf EN 7 p 1538 Exposto sumariamente o argumento consiste em apontar para uma assimetria da conversão todos os defensores de Copérnico foram antes defensores de Aristóteles e Ptolomeu nenhum de fensor de Aristóteles e Ptolomeu foi antes defensor de Copérnico ou seja ninguém que se converteu ao copernicanismo retornou depois à posição aristotélicoptolomaica logo as razões em la vor de Copérnico são melhores que as razões em favor de Aris tóteles e Ptolomeu Galileu conferia um peso inegável à assi metria da conversão Com efeito em sua primeira versão ele parece sugerir que o fato de existir tal assimetria proporciona uma base inegável para a aceitação da teoria de Copérnico e os con sultores inquisitoriais responsáveis pela censura no processo de i633 interpretaram a versão do Diálogo embora ela compareça nessa obra no interior de um argumento mais amplo de Sagredo e seja formulada de modo bastante mais hipotético desse modo acusandoo de apresentar como prova de verdade que os pto lomaicos passem aos copernicanos e não ao contrário EN 19 p 37 Finocchiaro 1989 p 222 1997 P 49 Ora o fenômeno da assimetria da conversão é racional me 11 te relevante embora não seja um fenômeno de fundamental im portância Apesar disso ele é um fenômeno digno de explicação Com efeito ele pode ser explicado ou pela superioridade da leo ria de Copérnico a saber que ela manifesta em maior grau OH valores cognitivos com respeito aos dados disponíveis 01 m outros fatores por exemplo ignorância oportunismo autoro moção ou talvez falta de respeito as autoridades 11 1 M 11 c11 A Á C U I A E O S E S T O R N I N H O S G A L I L E U E A A U T O N O M I A D A C I Ê N C I A impiedade etc Em ambos os casos o apelo à assimetria da con versão não elimina a necessidade de que Galileu mostre a supe rioridade racional da teoria de Copérnico E de fato no Diálogo Galileu reconhece claramente isso pois a assimetria da conver são parece então estar embasada em outra assimetria a saber aquela que confere a vantagem metodológica aos copernicanos a qual se articula em torno dos dois seguintes pontos a os coper nicanos entendem a teoria aristotélicoptolomaica e conhecem todas as observações e argumentos que a favorecem mas não vice versa com efeito Salviati apresenta vários fenômenos novos que Simplício toma como fornecendo apoio ulterior a Aristóteles e Ptolomeu uma vez que eles podem ser prontamente explicados no interior dessa teoria b os copernicanos estão familiariza dos com a evidência e os argumentos que contrariam Aristóteles e Ptolomeu assim como com os argumentos levantados por estes últimos contra sua teoria mas em ambos os casos os aristotélico ptolomaicos estão bem menos familiarizados e em alguns itens são completamente ignorantes Isto posto são os copernicanos e não os defensores de Aristó teles e Ptolomeu que estão melhor colocados para fazer as avalia ções comparativas da evidência e dos argumentos a favor e contra os dois lados Segundo Galileu os copernicanos mostram que os argumentos em favor de sua teoria são muito mais convincentes do que aqueles em favor de seus oponentes e que os argumentos contra seus oponentes são devastadores mas o importante é que os defensores da teoria oposta não estão dispostos numa pers pectiva metodológica apropriada para responder ao desafio Além disso Galileu sugere claramente que qualquer pessoa que assuma a perspectiva metodológica do copernicanismo ou seja familiaridade com os dois lados chegará ao mesmo juízo evi dentemente ele sugere que em nenhum caso se chegou seria mente a um juízo contrário e é por isso que se chega à assime tria da conversão t Hugh Lacey Resumindo na controvérsia sobre a teoria de Copérnico fica claro que os seguidores deste último tal como Galileu tinham conquistado a vantagem metodológica inicialmente a maioria deles era de seguidores de Aristóteles e Ptolomeu converteram se quando foram movidos pela força das razões EN 7 p 153 de modo que passaram a ter familiaridade com os dois lados da controvérsia inclusive com os melhores argumentos contra Copérnico Em contraste ninguém depois de ter vindo a co nhecer os detalhes dos argumentos favoráveis a Copérnico converteuse ao outro lado Entre os oponentes de Copérnico aqueles que à incredulidade nas descobertas de Galileu acres centavam algum sentimento alterado EN 5 p 3io ao invés das virtudes de espírito aberto e racional encontramos ignorân cia isto é resistência em apreender os argumentos copernica nos tendência a recorrer dogmaticamente a autores antigos cf EN 6 p 3404 oportunismo e servilidade onde não encontra mos senão sofismas paralogismos e falácias EN 5 p 285 apelo a aparências enganadoras paralogismos e falácias EN 5 p 342 disposição de abandonar totalmente os sentidos e as razões demonstrativas EN 5 p 3i3 e imposição de passagens escriturais mal compreendidas EN 5 p 309 como ameaças com o propósito de dar por terminada a investigação EN 5 p 3n Lembrese aqui da metáfora da águia e dos estorninhos voar como as águias é uma evidente expressão da independência do juízo científico caracterizada pelas virtudes de espírito aberto e racional cuja consequência é que os cientistas não podem per tencer a uma escola não são como os estorninhos que voam em bando submetendose ao princípio de autoridade Uma águia mas não um bando de estorninhos merece auto nomia 0 argumento em favor da autonomia supõe portanto pie os cientistas se tenham tornado participantes do ethos da eu n cia cf Cupani 1998 A certificação formal institucional d e competência n ã o c suficiente para legitimar a autonomia p o i A Á G U I A E OS ESTORNINHOS GALILEU E A AUTONOMIA DA CIÊNCIA que os cientistas qualificados podem subordinar os seus juízos a interesses de fora externos Ninguém tem condições de saber o que Galileu teria achado dos fatos contemporâneos de que cer tos cientistas qualificados participam em pesquisas controladas por autoridades militares classified research pesquisa qua lificada de que certas pesquisas se subordinam a interesses empresariais e de que em geral as instituições da ciência ajus tamse a esses fatos Poremos de lado a especulação sobre esse assunto Basta para nossos propósitos lembrar que o argumen to de Galileu em favor da autonomia depende dos cientistas que rerem fazer juízos imparciais e cultivarem as virtudes geralmente necessárias para assegurar seu sucesso 3 O ARGUMENTO DOS D O I S L I V R O S De acordo com Galileu apesar das muitas aparências em contrá rio seria impossível ocorrer um conflito epistêmico real entre os resultados científicos bem estabelecidos e as verdades religiosas inclusive escriturais Averdade que é tomada por Galileu como sendo uma só aponta para uma harmonia mútua mas não para uma subordinação de um domínio ao outro Sempre que um resultado científico e uma passagem das Es crituras parecem estar em conflito essa aparência de conflito pode ser removida por meio de reinterpretações apropriadas ou o juízo científico foi inadequadamente confirmado demonstrado ou a passagem escriturai foi incorretamente interpretada Até aqui tanto Galileu quanto Bellarmino concordavam Mas uma tensão profunda subsistia Galileu e Bellarmino discordavam acerca de qual das alternativas devia ser aceita na questão do movimento do Sol Bellarmino identificava confirmação adequada com demonstração e a teoria copernicana claramente não satisfa zia nem podia satisfazer esse critério e tampouco as teorias de 3i Hugh Lacey Ptolomeu e Tycho Brahe Apesar disso Bellarmino concordava que a interpretação correta da Escritura devia ser consistente com as verdades demonstradas Aunidade da verdade impunha isso mas a consistência era exigida somente para as verdades demons tradas Para Bellarmino se o melhor resultado científico dispo nível não estava demonstrado vale dizer se não demonstrava a impossibilidade da posição contrária devia ser entendido sob uma interpretação instrumentalista a saber como uma ficção conveniente que permite o cálculo e a predição Entretanto as ficções não têm jurisdição quanto à correção da interpretação es criturai Existe um caminho intermediário entre a demonstra ção e a ficção a saber o da conclusão provável avaliada à luz dos critérios não demonstrativos discutidos acima que foi bem desenvolvida por Pascal quinze anos após o julgamento de Galileu Entretanto quando consideramos as afirmações de Galileu acerca das demonstrações e dos critérios que ele efetivamente costu mava empregar em favor da teoria de Copérnico podemos per ceber que ele se debatia para identificar esse caminho inter mediário Apesar disso Galileu não foi capaz de identificálo e Bellarmino nunca considerou seu possível impacto na interpre tação escriturai7 Em vista disso Galileu introduziu uma nova maneira de expli car por que supostamente os resultados científicos não podem contradizer as verdades teológicas Segundo essa nova maneira as questões de demonstração e probabilidade tornamse geral mente irrelevantes porque o que é agora importante perguntar a respeito de qualquer enunciado usando sua metáfora sugestiva é em qual livro está escrito no livro da natureza ou no livro da revelação cf Blackwell 1991 cap 7 Esses livros ambos de 7 Estas questões são detalhadamente discutidas por McMullin 1998 e Finocchiaro 1980 Obviamente toda essa discussão depende dos diferentes sent idos que são 1atrdm idos a rincão de hipótese ficção ou conjectura provável Pascal 1998 revela uma excelente apreensão do caráter prolialiilistico da inferência cientifica A ÁGUIA E os ESTORNINHOS GALILEU E A AUTONOMIA DA CIÊNCIA autoria divina são escritos em linguagens diferentes Usando em grau significativo categorias incomensuráveis os livros ser vem a fins diferentes e precisam ser lidos de maneira diferen te não podem ser traduzidos um ao outro Portanto nunca po deriam contradizerse A filosofia está escrita neste grandíssimo livro que continua mente nos está aberto diante dos olhos eu digo o universo mas não se pode entender se primeiro não se aprende a entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito Ele está escrito em língua matemática e os caracteres são triângu los círculos e outras figuras geométricas meios sem os quais é impossível entender humanamente qualquer palavra sem estes vagase em vão por um escuro labirinto EN 6 p ziz Alinguagem da ciência a do livro do universo é matemá tica rigorosa e exata A Bíblia o livro da revelação está escrita em linguagem ordinária aberta ao entendimento comum dos homens dos leigos descrevendo aparências e experiências al gumas vezes ambíguas e imprecisas frequentemente metafóri cas Há duas linguagens não há dois mundos distintos ou dois domínios distintos de fenômenos duas linguagens que frequen temente se aplicam aos mesmos fenômenos mas quando ambas se aplicam refletem interesses distintos Quando as pessoas co muns dizem que o Sol se move pelos céus descrevem o que ob servam sem tentar explicálo não se perguntam se realmente é o Sol ou a Terra que está em movimento e independentemente da resposta correta o que é visto percebido permanece o mesmo Ambas as linguagens podem ser usadas para descrever os fatos a aceitação científica da teoria copernicana não con tradiz o relatório observacional comum de que o Sol se move pelo céu de leste para oeste A Bíblia emprega a linguagem comum corriqueira para relacionar os fenômenos à história sagrada da Hugh Lacey salvação por exemplo na famosa passagem de Josué e a parada do Sol ou às vidas espirituais dos crentes por exemplo em pas sagens dos Salmos acerca do movimento do Sol pelos céus e por isso não discorre sobre as questões científicas por exem plo sobre as explicações de fenômenos comumente observados tal como o movimento do Sol Assim não há necessidade alguma pela qual a Igreja tenha que considerar a questão copernicana em deliberações sobre a interpretação da Bíblia Por outro lado para Galileu a atividade científica e suas descobertas embora não con tribuam para iluminar o sentido da história da salvação não dis cordam com qualquer verdade relevante para a salvação humana que dependa assim da autoridade da Igreja8 O argumento dos dois livros pressupõe que os juízos cientí ficos benfeitos concordam com a imparcialidade isto é que os critérios interpretativos do livro da natureza são distintos daque les da Bíblia e que os juízos científicos são efetivamente feitos de acordo com os métodos próprios da ciência sem nenhuma res trição de fatores de fora externos O caráter técnico da lin guagem da ciência é importante aqui matemática exata abstrata portanto generalizando de tal modo que se aplique mais direta mente ao contexto das teorias científicas contemporâneas l i n guagem é adequada para representar a lei a estrutura a intera ção e o processo subjacentes dos fenômenos naturais Assim a linguagem da ciência não contém nem as categorias de valor nem outras categorias implicadas na experiência humana e nas rela ções sociais A linguagem exigida pela ciência não pode portan to ser empregada normalmente na comunicação comum e care ce dos aspectos necessários para o discurso teológico 9 8 Galileu desenvolve detalhadamente este argumento em suas cartas a Castelli e á grã du quesa Cristina ele é estudado e elaborado por Blackwell 1991 9 0 argumento dos dois livrosé um argumento tanto filosófico como em parti leologu o Ele envolve uma concepção da interpretação das Escrituras 1ssa concepção exegética dilc rentemente dos resultados da ciência galileana pode conflitar com as concepções aceicii A ÁGUIA t os ESTORNINHOS GALILEU E A AUTONOMIA D A CIÊNCIA 0 argumento dos dois livros é facilmente generalizado uma vez que a linguagem da ciência carece das características exigidas por qualquer discurso sobre os valores as teorias científicas não podem ter nenhuma implicação lógica no domínio dos valores isto é a ciência é cognitivamente neutra no domínio de valores 1 0 Assim o argumento dos dois livros generalizase no argumento dos discursos múltiplos o discurso da ciência e os vários dis cursos dos valores onde o discurso da ciência é incomensurável com todos aqueles referentes a valores e assim as teorias cien tíficas não podem servir de base para favorecer um discurso ao invés de outros A ciência não pode resolver as grandes contro vérsias com respeito aos valores Seguese portanto que a auto nomia pressupõe a imparcialidade e neutralidade cognitiva e que de fato a atividade científica é conduzida pelos cientistas que cultivaram o ethos científico Ao mesmo tempo o argumento de Galileu em favor da autonomia implica o reconhecimento de uma certa autonomia de outros discursos os discursos de valor e o discurso teológico 1 1 das quais a Igreja reivindica a autoridade e alguém que adira aos argumentos de Galileu pode ser conduzido a interpretações escriturais que conflitam com as interpretações auto rizadas Além disso a concepção de Galileu é compatível com a ideia de que uma descober ta científica pode ser a ocasião para reconhecer a necessidade de reinterpretar uma passa gem escriturai O conflito não é entre o resultado científico e a passagem em si mas entre o resultado e a interpretação incorreta da passagem Ela é também compatível com o com promisso com uma concepção teológica que proporciona a ocasião de uma nova avaliação da evidência exigida por um resultado científico As generalizações destas considerações para o contexto do argumento dos discursos múltiplos são óbvias 10 Isto é compatível com a ideia de que a linguagem valorativa ordinária pode ser desdobra da para descrever fatos na ciência afastamonos dessa linguagem ordinária 11 No século xvii o argumento dos dois livros não era a única alternativa à posição de Bellarmino Outros principalmente protestantes exploraram as interpretações teológicas e as implicações dos resultados científicos a ciência e a religião interagiam profunda me n te conflitos por exemplo acerca da natureza de Deus faziam parte de disputas cientificas por exemplo a disputa entre Newton e Leibniz sobre o espaço e o tempo Esta opção toi nouse novamente corrente nas discussões recentes sobre a suposta significação teológica das teorias eosmológieas eniliora a corrente principal do pensamento católico lenda a desci 1 volvei o argumento dos dois I i n os lode se supor que seu correlato nos discurso mui l u Hugh Lacey Independentemente do poder de persuasão dos argumentos dos dois livros e dos discursos múltiplos para os filósofos e teólogos eles enfrentam dificuldades Com efeito o argumento dos dois livros pressupõe a que os juízos científicos são normalmente feitos de acordo com a imparcialidade e b que a linguagem da ciência é matemática ou técni ca ou pelo menos uma linguagem que não contém cate gorias valorativas ou outras categorias cuja aplicação não envolve a abstração da experiência humana e das relações sociais uma linguagem em suma capaz de representar os fenômenos em termos de hipóteses da lei da estrutura da interação e do processo subjacentes E a linguagem técnica não sua concordância com a imparcia lidade que assegura serem as teorias científicas cognitivamente neutras Mas a neutralidade cognitiva não implica o outro tipo de neutralidade a neutralidade aplicada em princípio os interesses de todos os pontos de vista de valor razoáveis poderiam ser igualmente satisfeitos por aplicações científicas Lacey argumentou cf VAC cap 5 SlF cap 610 que na aplicação as teorias formuladas na linguagem matemática ou técnica favorecem especialmente aquelas perspectivas de valor que contêm atitudes especificamen te modernas com respeito ao controle dos objetos naturais ou seja podem ser mais prontamente aplicadas para servir aos i n teresses ligados ao controle de objetos naturais entendendo o controle como um valor não subordinado sistematicamente a outros valores sociais tiplos encontrase na ética evolucionista derivai valores a pari ir de resultados cie til if iceis De qualquer modo o apelo superior dos dois livros sobre a posição de Hei lar Iam no mínimo ele expressa um comprouu que pode manter a pa por um longo período Í Í I A ÁGUIA E os ESTORNINHOS GALILEU E A AUTONOMIA DA CIÊNCIA Tais atitudes com respeito ao controle estão porém em ten são entre outras com a perspectiva de valor favorecida pela Igreja católica Isto é particularmente óbvio hoje em conexão com o desenvolvimento da tecnologia médica Mas sem a neutralidade aplicada o argumento em favor da autonomia perde a desejada força universal Galileu não discutiu esses assuntos ligados à apli cação do conhecimento científico mas atualmente não pode mos separar o empreendimento científico de suas aplicações e já no século xvu Bacon identificara o papel central das aplica ções na prática científica e a sua relação com as atitudes moder nas a respeito do controle dos objetos naturais Assim na refle xão sobre a autonomia é preciso salientar não só a ausência de interferências externas mas também a disponibilidade de recur sos materiais e sociais necessários para o engajamento na pes quisa científica A ausência de neutralidade aplicada não fornece razão nem para interferir nos conteúdos dos resultados científi cos nem para imporlhes restrições mas aqueles cujos interes ses não fossem bem servidos poderiam questionar o valor de patrocinar a pesquisa supostamente autônoma que efetivamen te produz resultados sem manifestar a neutralidade aplicada Levantase desse modo a seguinte questão porque aceitar que a linguagem da teoria deve ser matemática ou técnica Uma resposta possível seria porque funciona porque produz resul tados Mas este fato sustenta apenas a autonomia limitada àqur les domínios da investigação dentro dos quais poderíamos espe rar que a neutralidade aplicada se manifestasse Além disso não implica que poderíamos obter resultados apenas desse m o d o Outra resposta afirmada frequentemente por toda a tradição da ciência moderna é que essa linguagem reflete o mundo tal como ele realmente é a lei a estrutura a interação e o processo sul jacentes do mundo são completamente matemáticos e m lodos os detalhes Tratase evidentemente de uma resposta metafísi ca Galileu aludiu a ela Descartes desenvolveu a c m detalhe 17 Hugh Lacey Ambos empregaram o artifício do dualismo mentecorpo para excluir do âmbito da análise matemática fenômenos humanos im portantes A matéria a natureza é matemática a mente a natu reza humana não é Observese que esta resposta metafísica não depende da suposição de imparcialidade e também que a impar cialidade não pressupõe e não implica a aceitação de qualquer perspectiva metafísica Os juízos imparciais podem ser feitos de muitas formas não só no discurso matemático isso é de grande importância nas ciências humanas Além disso a tese de que a natureza abstraída da mente é de caráter profundamente matemático não repre senta um resultado científico aceito de acordo com a imparciali dade Tratase de uma restrição imposta sobre as teorias permi tidas na investigação científica e é uma restrição de origem metafísica E certo que existem contradições entre essa metafí sica e as pressuposições da teologia católica notese contradi ção entre a metafísica e a teologia mas não entre a teologia e os resultados científicos aceitos de acordo com a imparcialidade Além disso a tese não é absolutamente verdadeira Cabe lem brar que Galileu mesmo faz Simplício dizer Essas sutilezas matemáticas são verdadeiras em abstrato mas aplicadas à matéria sensível e física não funcionam quando se chega à matéria as coisas vão em outra direção EN 7 p 229 0 questionamento de Simplício expressa uma preocupação séria o sucesso de Galileu em explicar um âmbito de fenômenos interessantes com um léxico matemático não é suficiente para fundamentar a metafísica 1 2 Podese sugerir cf SVF cap 6 que 1 8 Isso é ainda mais claro quando a metafísica galileana utilizada como reslriçáo na uives tigação da psicologia humana Para uma critica detalhada tio argumento dos dois livros em especial com relação a esse ponto ver 1 acev lli 111 A Á G U I A E O S E S T O R N I N H O S G A U I E U E A A U T O N O M I A I A C I Ê N C I A a aceitação da concepção da natureza escrita na linguagem da matemática está fortemente vinculada a compromissos com for mas modernas de valorar o controle da natureza Se é assim a aquisição de autonomia com relação à autoridade da Igreja esta ria acompanhada por uma nova subordinação da ciência às ideo logias e aos poderes modernos Visto desse modo o argumento dos dois livros equivale a uma defesa da autonomia da ciência com relação à religião mas não com relação às restrições metafísicas Sem um argumento convincente pela metafísica este não é um argumento adequado em favor da liberdade da ciência com relação a todas as interfe rências de fora externas mesmo que a restrição metafísica seja auto imposta pelos próprios cientistas e não imposta por pode res externos Os argumentos ulteriores em favor da autonomia da ciência não obtiveram sucesso em superar essa limitação do argumento de Galileu cf VAC cap 10 9