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CadCatEnsFis v13n3 p184196 dez1996 184 A EPISTEMOLOGIA DE KUHN Fernanda Ostermann Instituto de Física UFRGS Porto Alegre Rs Resumo Neste trabalho é apresentada a epistemologia proposta por Kuhn a partir de alguns conceitos principais de sua teoria paradigma ciência normal revolução científica incomensurabilidade O modelo kuhniano encara o desenvolvimento científico como uma seqüência de períodos de ciência normal nos quais a comunidade científica adere a um paradigma Estes períodos por sua vez são interrompidos por revoluções científicas marcadas por crisesanomalias no paradigma dominante culminando com sua ruptura A crise é superada quando surge um novo candidato a paradigma Ao comparar o antigo e o novo paradigma Kuhn defende a tese da incomensurabilidade Algumas implicações de suas idéias para o ensino de Ciências são também discutidas I Introdução O trabalho de Thomas Kuhn 1977 1978 é um marco importante na construção de uma imagem contemporânea de ciência Suas idéias sobre o desenvolvimento científico são precursoras a primeira edição de seu primeiro livro A estrutura das revoluções científicas é de 1962 época na qual autores como Lakatos 1989 e Feyerabend 1989 ainda não haviam publicado suas obras principais e Popper 1972 não tinha sido traduzido nos países de língua inglesa Ao propor uma nova visão de ciência Kuhn elabora críticas ao positivismo lógico na filosofia da ciência e à historiografia tradicional Em síntese esta postura epistemológica superada pelo modelo kuhniano acredita entre outras coisas que a produção do conhecimento científico começa com observação neutra se dá por indução é cumulativa e linear e que o conhecimento científico daí obtido é definitivo Ao contrário Kuhn encara a observação como antecedida por teorias e portanto não neutra apontando para a inseparabilidade entre observações e pressupostos teóricos 185 Ostermann F acredita que não há justificativa lógica para o método indutivo e reconhece o caráter construtivo inventivo e não definitivo do conhecimento Esta posição mais tarde configurarseá como o que existe de consenso entre os filósofos contemporâneos da ciência Em verdade nos dias de hoje assistimos a um rico e controvertido debate entre os diferentes modelos de desenvolvimento científico modelos como o de Popper 1972 Lakatos 1989 Feyerabend 1989 Toulmin 1972 Laudan 1977 entre outros mas ao mesmo tempo podemos reconhecer que cada um a seu modo representa uma oposição à postura empiristaindutivista Em particular para Kuhn a ciência segue o seguinte modelo de desenvolvimento uma seqüência de períodos de ciência normal nos quais a comunidade de pesquisadores adere a um paradigma interrompidos por revoluções científicas ciência extraordinária Os episódios extraordinários são marcados por anomalias crises no paradigma dominante culminando com sua ruptura Um possível esquema para o modelo de ciência kuhniano seria o seguinte Fig Erro Argumento de opção desconhecido O modelo kuhniano CadCatEnsFis v13n3 p184196 dez1996 186 A seguir discutiremos os conceitos centrais da teoria de Kuhn apresentados na Fig 1 mais detalhadamente II Paradigma Certamente paradigma é o conceito mais fundamental de sua teoria No entanto após a publicação do Estrutura das revoluções científicas grande polêmica instalouse em torno de seu significado Em 1965 quando é realizado o Seminário Internacional sobre Filosofia da Ciência em Londres evento marcante para a discussão do tema Kuhn recebe várias críticas Masterman 1979 por exemplo constatou a ambigüidade apresentada pela palavra paradigma na sua primeira obra o termo fora utilizado por Kuhn de vinte e duas maneiras diferentes Reconhecendo as confusões induzidas pela apresentação original Kuhn esclarece seu significado no Posfácio 1969 Kuhn 1978 O termo paradigma tem um sentido geral e um sentido restrito O primeiro foi empregado para designar todo o conjunto de compromissos de pesquisas de uma comunidade científica constelação de crenças valores técnicas partilhados pelos membros de uma comunidade determinada A este sentido Kuhn aplicou a expressão matriz disciplinar Disciplinar porque se refere a uma posse comum aos praticantes de uma disciplina particular matriz porque é composta de elementos ordenados de várias espécies cada um deles exigindo uma determinação mais pormenorizada Kuhn 1978 p 226 Os principais tipos de componentes de uma matriz disciplinar são generalizações simbólicas assemelhamse a leis da natureza Algumas vezes são encontradas sob a forma simbólica Por exemplo Fma outras vezes são expressas em palavras a uma ação corresponde uma reação igual e contrária modelos particulares são modelos ontológicos ou heurísticos que fornecem as metáforas e as analogias aceitáveis Por exemplo as moléculas de um gás comportamse como pequenas bolas de bilhar elásticas movendose ao acaso valores compartilhados são valores aos quais os cientistas aderem predições devem ser acuradas predições quantitativas são preferíveis às qualitativas qualquer que seja a margem de erro permissível esta deve ser respeitada regularmente numa área dada Existem também valores que devem ser usados para julgar teorias completas devem ser simples dotadas de coerência interna plausíveis compatíveis com outras teorias disseminadas no momento exemplares este último tipo de paradigma referese ao sentido restrito desta palavra ao qual Kuhn atribuiu grande importância Exemplares são as soluções de problemas encontrados nos laboratórios nos exames no fim dos capítulos dos manuais científicos bem como nas publicações periódicas que ensinam através de exemplos os 187 Ostermann F estudantes durante sua educação científica Descobrindo com ou sem assistência de seu professor uma maneira de encarar um novo problema como se fosse um problema que já encontrou antes o estudante passaria a dominar o conteúdo cognitivo da ciência que segundo Kuhn estaria não nas regras e teorias mas antes nos exemplos compartilhados fornecidos pelos problemas Uma ilustração deste ponto de vista é dada por Kuhn através de uma generalização simbólica a segunda Lei de Newton Fma Kuhn 1978 p 233 Os estudantes aprendem quando confrontados com uma determinada situação experimental a selecionar forças massas e acelerações relevantes Isto ocorre à medida que passam de uma situação problemática a outra e enfrentam o problema de adaptar a forma Fma ao tipo de problema queda livre pêndulo simples giroscópio Uma vez percebida a semelhança e reconhecida a analogia entre dois ou mais problemas distintos o estudante pode estabelecer relações entre os símbolos e aplicálos à natureza segundo maneiras que já tenham demonstrado eficácia A forma Fma funciona como instrumento informando ao futuro cientista que similaridades procurar e sinalizando o contexto dentro do qual a situação deve ser examinada Dessa aplicação resulta a habilidade para ver a semelhança entre uma variedade de situações o que faz com que o estudante passe a conceber as situações problemáticas como um cientista encarandoas a partir do mesmo contexto que os outros membros do seu grupo de especialistas III Ciência normal Ciência normal é a tentativa de forçar a natureza a encaixarse dentro dos limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecidos pelo paradigma ou seja modelar a solução de novos problemas segundo os problemas exemplares A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno na verdade aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma freqüentemente nem são vistos Kuhn 1978 Em vez disso a pesquisa científica normal está dirigida para a articulação daqueles fenômenos e teorias já fornecidos pelo paradigma A ciência normal restringe drasticamente a visão do cientista pois as áreas investigadas são certamente minúsculas Mas essas restrições nascidas da confiança no paradigma revelamse essenciais para o desenvolvimento científico Kuhn 1978 faz uma metáfora que relaciona a ciência normal à resolução de quebracabeças Quebracabeça é uma categoria de problemas que servem para testar a engenhosidade ou habilidade do cientista na resolução de problemas Para ser classificado como quebracabeça um problema deve não só possuir uma solução assegurada mas também obedecer a regras ponto de vista estabelecido concepção prévia que limitam tanto a natureza das soluções aceitáveis como os passos necessários para obtêlas CadCatEnsFis v13n3 p184196 dez1996 188 Uma comunidade científica ao adquirir um paradigma adquire também um critério para a escolha de problemas que enquanto o paradigma for aceito podem ser considerados como dotados de uma solução possível Os problemas tipo quebra cabeça são os únicos que a comunidade admitirá como científicos ou encorajará seus membros a resolver Kuhn 1978 Uma das razões pelas quais a ciência normal parece progredir tão rapidamente é a de que seus praticantes se concentram em problemas que somente a sua falta de habilidade pode impedir de resolver A imagem de ciência normal concebida por Kuhn é a de uma atividade extremamente conservadora na qual há uma adesão estrita e dogmática a um paradigma Zylbersztajn 1991 Mas essa rigidez da ciência normal é para Kuhn condição necessária para o progresso científico Para ele somente quando os cientistas estão livres de analisar criticamente seus fundamentos teóricos conceituais metodológicos instrumentais que utilizam é que podem concentrar esforços nos problemas de pesquisa enfrentados por sua área Ao debater um possível critério de demarcação critério que distinguiria a ciência da pseudociência ou metafísica com Popper Kuhn 1979 coloca que a ciência se diferencia de outras atividades por possuir um período de ciência normal no qual haveria um monismo teórico existência de um único paradigma Segundo Kuhn 1979 É precisamente o abandono do discurso crítico que assinala a transição para uma ciência Alguns exemplos de ciência normal apresentados por Kuhn 1978 são a astronomia durante a Idade Média paradigma ptolomaico a mecânica nos séculos XVIII e XIX paradigma newtoniano a ótica no século XIX paradigma ondulatório a Teoria da Relatividade no século XX paradigma relativístico Kuhn 1978 classifica ainda os problemas que constituem a ciência normal em três tipos 1 Determinação do fato significativo Com a existência de um paradigma fatos empregados na resolução de problemas tornamse merecedores de uma determinação mais precisa numa variedade maior de situações Como exemplos de determinações significativas de fatos Kuhn 1978 cita na Astronomia a posição e a magnitude das estrelas os períodos dos eclipses das estrelas duplas e dos planetas na Física comprimentos de onda e intensidades espectrais condutividades elétricas As tentativas de aumentar a acuidade e extensão do conhecimento científico sobre certos fatos ocupam uma fração significativa da atividade dos cientistas no período de ciência normal A invenção a construção e o aperfeiçoamento de aparelhos são também atividades realizadas para tais fins Os 189 Ostermann F aceleradores de partículas como o existente no Fermilab EUA são um exemplo de até onde os cientistas estão dispostos a ir se um paradigma os assegurar da importância dos fatos que pesquisam 2 Harmonização dos fatos com a teoria Basicamente esta atividade no período de ciência normal consiste da manipulação de teorias levando a predições que possam ser confrontadas diretamente com experiência e do desenvolvimento de equipamentos para a verificação de predições teóricas Na história da ciência temos como ilustração a máquina de Atwood inventada quase um século depois dos Principia para fornecer a primeira demonstração da segunda Lei de Newton Mais recentemente a construção de aceleradores para a detecção de partículas subatômicas como o quarktop previstas teoricamente pelo Modelo Padrão Este tipo de trabalho científico consiste em buscar um acordo cada vez mais estreito entre a natureza e a teoria É interessante observar que a existência de um paradigma coloca o problema a ser resolvido A concepção da aparelhagem capaz de resolver o problema está baseada no próprio paradigma isto é sem os Principia por exemplo as medidas feitas com a máquina de Atwood estariam vazias de significado 3 Articulação da teoria Esta classe de problema na ciência normal é considerada por Kuhn 1978 como a mais importante de todas Consiste no trabalho empreendido para articular a teoria do paradigma resolvendo algumas de suas ambigüidades e permitindo a solução de problemas até então não resolvidos Algumas das experiências que visam à articulação são orientadas para a determinação de constantes físicas A determinação da constante da gravitação universal G por Cavendish na última década do século XVIII é um exemplo de articulação do paradigma newtoniano Contudo os esforços para articular um paradigma não estão restritos à determinação de constantes universais Podem também visar a leis quantitativas a Lei de Coulomb sobre a atração elétrica é um exemplo Existe ainda uma terceira espécie de experiência que tem o objetivo de articular um paradigma Freqüentemente um paradigma que foi desenvolvido para um determinado conjunto de problemas é ambíguo na sua aplicação a outros fenômenos estreitamente relacionados Com isso investese na reformulação de teorias adapatandoas à nova área de interesse Este trabalho leva a outras versões fisicamente equivalentes mas mais coerentes do ponto de vista lógico eou mais satisfatórias esteticamente Um exemplo desta atividade é a formulação analítica da mecânica CadCatEnsFis v13n3 p184196 dez1996 190 clássica ou os trabalhos de Euler Lagrage Laplace e Gauss que visavam aperfeiçoar a adequação entre o paradigma de Newton e a observação celeste Kuhn 1978 IV Revoluções Científicas Há períodos nos quais o quebracabeça da ciência normal fracassa em produzir os resultados esperados Os problemas ao invés de serem encarados como quebracabeças passam a ser considerados como anomalias gerando um estado de crise na área de pesquisa o chamado período de ciência extraordinária Mas por que a ciência normal um empreendimento não dirigido para as novidades e que a princípio tende a suprimilas pode ser tão eficaz para provocálas Kuhn 1978 responde a esta questão colocando que a ciência normal por sua rigidez conduz a uma informação detalhada e a uma precisão da integração entre a observação e a teoria que não poderia ser atingida de outra maneira Sem os instrumentos especiais construídos sobretudo para fins previamente estabelecidos os resultados que conduzem às anomalias poderiam não ocorrer Somente sabendose com precisão o que se deveria esperar é que se é capaz de reconhecer que algo saiu errado Quanto maiores forem a precisão e o alcance de um paradigma tanto mais sensível este será como indicador de anomalias e conseqüentemente de uma ocasião para a mudança de paradigma A emergência de novas teorias é geralmente precedida por um período de insegurança profissional pois exige a destruição em larga escala do paradigma e grandes alterações nos problemas e nas técnicas da ciência normal Kuhn 1978 dá três exemplos na história da ciência de crise e emergência de um novo paradigma 1 Fim do século XVI fracasso do paradigma ptolomaico modelo geocêntrico e emergência do paradigma copernicano modelo heliocêntrico 2 Fim do século XVIII substituição do paradigma flogístico Teoria do Flogisto pelo paradigma de Lavoisier teoria sobre a combustão do oxigênio 3 Início do século XX fracasso do paradigma newtoniano mecânica clássica e surgimento do paradigma relativístico Teoria da Relatividade Kuhn 1978 observa nestes três exemplos que a nova teoria surgiu somente após o fracasso caracterizado na atividade normal de resolução de problemas a nova teoria surge uma ou duas décadas depois do início do fracasso a solução para cada um desses exemplos foi antecipada em um período no qual a ciência correspondente não estava em crise Tais antecipações foram ignoradas precisamente por não haver crise Os cientistas não rejeitam paradigmas simplesmente porque se defrontam com anomalias Uma teoria científica após ter atingido o status de paradigma somente 191 Ostermann F é considerada inválida quando existe uma alternativa disponível para substituíla As teorias não são falsificadas por meio de comparação direta com a natureza Decidir rejeitar um paradigma é sempre decidir simultaneamente aceitar outro A transição para um novo paradigma é chamada por Kuhn de revolução científica Uma revolução científica na qual pode surgir uma nova tradição de ciência normal está longe de ser um processo cumulativo obtido através de uma articulação do velho paradigma É antes uma reconstrução da área de estudos a partir de novos princípios que altera algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma bem como muitos de seus métodos e aplicações A emergência de um novo paradigma é para Kuhn repentina no sentido de que pode ocorrer no meio da noite na mente de um homem profundamente imerso na crise Como o indivíduo inventa ou descobre que inventou uma nova maneira de ordenar os dados é uma questão que Kuhn considera não investigável inescrutável em suas palavras e acredita que assim seja permanentemente Em geral segundo este filósofo da ciência os homens que fazem essas invenções fundamentais são jovens ou novos na área em crise isto é menos comprometidos com o velho paradigma Durante o período de transição o antigo paradigma e o novo competem pela preferência dos membros da comunidade científica e os paradigmas rivais apresentam diferentes concepções de mundo Se novas teorias são chamadas para resolver as anomalias presentes na relação entre uma teoria existente e a natureza então a nova teoria bem sucedida deve permitir predições diferentes daquelas derivadas de sua predecessora Essa diferença não poderia ocorrer se as duas teorias fossem logicamente compatíveis É nesse sentido que Kuhn emprega a expressão incomensurabilidade de paradigmas cujo aspecto fundamental é que os proponentes dos paradigmas competidores praticam seus ofícios em mundos diferentes A idéia de incomensurabilidade está relacionada ao fato de que padrões científicos e definições são diferentes para cada paradigma Kuhn 1978 Para sustentar a tese de que as diferenças entre paradigmas sucessivos são ao mesmo tempo necessárias e irreconciliáveis Kuhn dá como exemplo a revolução científica que substitui o paradigma newtoniano pelo relativístico Esta transição ilustra segundo ele com particular clareza a revolução científica como sendo um deslocamento da rede conceitual através da qual os cientistas vêem o mundo Para o autor devemos superar a concepção de que a dinâmica newtoniana pode ser derivada como um caso particular da dinâmica relativista comumente esta é a abordagem dos livros e das aulas nos cursos universitários de Física Kuhn argumenta entre outras coisas que os referentes físicos dos conceitos einsteinianos não são de modo algum idênticos àqueles conceitos newtonianos que levam o mesmo nome a massa newtoniana é conservada a einsteiniana é conversível com a energia CadCatEnsFis v13n3 p184196 dez1996 192 Por tratarse de uma transição entre incomensuráveis a transição entre paradigmas em competição não pode ser feita passo a passo por imposição da lógica e de experiências neutras Por ter esse caráter ela não é e não pode ser determinada simplesmente pelos procedimentos de avaliação característicos da ciência normal pois esses dependem parcialmente de um paradigma determinado e esse paradigma por sua vez está em questão Quando os cientistas participam de um debate sobre a escolha de um paradigma seu papel é necessariamente circular Cada grupo utiliza seu próprio paradigma para argumentar em favor desse mesmo paradigma Se houvesse apenas um conjunto de problemas científicos um único mundo no qual ocuparse deles e um único conjunto de padrões científicos para sua solução a competição entre paradigmas poderia ser resolvida de forma rotineira por exemplo contandose o número de problemas resolvidos por cada um deles Mas na realidade tais condições nunca são satisfeitas completamente Aqueles que propõem os paradigmas em competição estão sempre em desentendimento mesmo que em pequena escala Kuhn 1978 Como então são os cientistas levados a realizar a revolução Embora algumas vezes seja necessário uma geração para que a revolução se realize as comunidades científicas seguidamente têm sido convertidas a novos paradigmas Alguns cientistas especialmente os mais velhos e mais experientes resistem indefinidamente mas a maioria deles pode ser convertida Ocorrerão algumas conversões de cada vez até que morrendo os últimos opositores todos os membros da profissão passarão a orientarse por um único mas agora diferente paradigma1 Assim para Kuhn 1978 a natureza do argumento científico envolve a persuasão e não a prova Cientistas abraçam um paradigma por toda uma sorte de razões que em geral se encontram inteiramente fora da esfera da ciência Kuhn acredita que o cientista que adota um novo paradigma precisa ter fé na sua capacidade de resolver os grandes problemas com que se defronta ciente apenas de que o paradigma anterior fracassou em alguns deles A crise instaurada pelo antigo paradigma é condição necessária mas não suficiente para que ocorra a conversão É igualmente necessária a existência de fé no candidato a paradigma escolhido embora não precise ser nem racional nem correta Em alguns casos somente considerações estéticas pessoais e inarticuladas fazem alguns cientistas se converterem ao novo paradigma 1 As dificuldades de conversão foram freqüentemente observadas pelos próprios cientistas Planck apud Kuhn 1978 comentou que uma nova verdade científica não triunfa convencendo seus oponentes mas porque seus oponentes finalmente morrem e uma nova geração cresce familiarizada com ela 193 Ostermann F Kuhn é acusado por Popper 1979 Lakatos 1979 entre outros de traçar uma imagem irracional do debate científico Para Lakatos 1979 crise é um conceito psicológico tratase de um pânico contagioso e revolução científica kuhniana é irracional uma questão da psicologia das multidões sendo este modelo por ele considerado uma redução da filosofia da ciência à psicologia ou sociologia dos cientistas Respondendo às críticas Kuhn adota uma posição mais moderada Kuhn 1979 Segundo esta posição existem boas razões compartilhadas pela comunidade científica as quais são aplicadas nos debates científicos Algumas dessas boas razões referemse às qualidades de uma boa teoria precisão consistência simplicidade amplitude de aplicação fecundidade Estas seriam usadas na comparação de teorias rivais No entanto as boas razões funcionam como valores e portanto podem ser aplicadas de maneiras diversas pelos cientistas em casos específicos Quanto à incomensurabilidade Kuhn a encara de uma forma menos problemática sugerindo então que os cientistas ao participarem de debates inter paradigmáticos devam reconhecerse uns aos outros como membros das diferentes comunidades de linguagem e a partir daí tornaremse tradutores O processo de traduções proposto por Kuhn não assegura a conversão pois os cientistas podem concordar quanto à fonte de suas discordâncias e mesmo assim manteremse fiéis às suas teorias já que os valores que eles compartilham podem ser aplicados de forma distinta De qualquer forma Kuhn continua atribuindo um significativo grau de arbitrariedade aos debates envolvendo julgamentos de valor os quais considera elemento importante da prática científica Com respeito à noção explícita ou implícita segundo a qual as mudanças de paradigma levam os cientistas a uma proximidade sempre maior da verdade posicionamento de Popper e Lakatos por exemplo Kuhn acredita que podemos explicar tanto a existência da ciência como seu sucesso sem a necessidade de recorrermos a um objetivo preestabelecido O processo de desenvolvimento científico corresponde à seleção pelo conflito da maneira mais adequada de praticar a ciência seleção realizada no interior da comunidade científica O resultado final de uma seqüência de ciência extraordinária separada por períodos de ciência normal é o conjunto de instrumentos notavelmente ajustados que chamamos de conhecimento científico moderno Kuhn 1978 Estágios sucessivos de desenvolvimento são marcados por um aumento da articulação e especialização do saber científico Para Kuhn todo esse processo pode ter ocorrido como no caso da evolução biológica teoria darwinista sem o benefício de uma verdade científica permanentemente fixada da qual cada estágio do desenvolvimento científico seria um exemplar mais aprimorado CadCatEnsFis v13n3 p184196 dez1996 194 Segundo seus críticos a filosofia kuhniana tende a um relativismo Uma vez concebido o paralelismo que existe na tese da incomensurabilidade é possível concluir que ambos os paradigmas podem estar certos ou seja não se pode provar que um deles está mais próximo da verdade V Conclusão Kuhn e o Ensino de Ciências As idéias kuhnianas representam um importante referencial para o trabalho em sala de aula A visão de ciência transmitida nas aulas e nos livros didáticos as estratégias de ensino utilizadas podem ser fundamentadas no modelo de Kuhn sobre o desenvolvimento científico Adotando essa postura epistemológica estaremos questionando a imagem que cientistas e leigos têm da atividade científica que disfarça a existência e o significado das revoluções no campo da ciência O desenvolvimento científico em geral é visto como sendo basicamente cumulativo e linear consistindo em um processo freqüentemente comparado à adição de tijolos em uma construção Nesta concepção a ciência teria alcançado seu estado atual através de uma série de descobertas e invenções individuais as quais uma vez reunidas constituiriam a coleção moderna dos conhecimentos científicos Mas não é assim que a ciência se desenvolve Segundo o modelo kuhniano muitos dos problemas da ciência normal contemporânea passaram a existir somente depois da revolução científica mais recente Em relação a uma estratégia baseada na filosofia de Kuhn Zylbersztajn 1991 propõe que os alunos de disciplinas científicas sejam encarados como cientistas kuhnianos Os passos instrucionais delineados nesta estratégia são 1 Elevação do nível de consciência conceitual os alunos nesta etapa devem conscientizarse de suas concepções alternativas 2 Introdução de anomalias o objetivo principal deste passo instrucional é criar uma sensação de desconforto e insatisfação com as concepções existentes através do conflito entre estas e o pensamento científico Demonstrações experimentos argumentos teóricos podem ser aplicados É o equivalente instrucional ao período de ciência extraordinária no modelo de Kuhn 3 Apresentação da nova teoria nesta etapa os alunos recebem um novo conjunto de idéias que irão acomodar as anomalias O professor faz então o papel de um cientista tentando converter outros a um novo paradigma 4 Articulação conceitual tratase do equivalente instrucional aos quebra cabeças da ciência normal Neste estágio esforços são dirigidos para a interpretação de situações experimentais ou teóricas e à resolução de problemas 195 Ostermann F Esta monografia pretende ser apenas uma introdução às idéias de Kuhn A importância de sua teoria para o campo da filosofia da ciência é imensa e portanto não pode ser aqui esgotada Além disso nos últimos anos a pesquisa em ensino de Ciências tem buscado em sua concepção de desenvolvimento científico uma fundamentação mais atualizada Dentre as muitas implicações trazidas pelo seu modelo podemos destacar A problematização do conhecimento e conseqüentemente o questionamento sobre a visão de ciência tão difundida nos livros e nas aulas o ensino do método científico como uma seqüência rígida de passos que começa com uma observação e culmina em uma descoberta A busca do paralelismo muitas vezes encontrado outras vezes não entre a história da ciência e as concepções das crianças acerca dos fenômenos físicos A busca da correspondência entre epistemologia e aprendizagem no sentido de se utilizar sua teoria para entender algumas questões sobre a dinâmica da mudança conceitual e inspirar possíveis metodologias de ensino VI Referências Bibliográficas FEYRABEND P Contra o método Rio de Janeiro Francisco Alves 1989 KUHN TS A estrutura das revoluções científicas São Paulo Perspectiva 1978 A tensão essencial Lisboa Edições 70 1977 Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa In LAKATOS I MUSGRAVE A A crítica e o desenvolvimento do conhecimento São Paulo Cultrix 1979 Reflexões sobre os meus críticos In LAKATOS I MUSGRAVE A A crítica e o desenvolvimento do conhecimento São Paulo Cultrix 1979 LAKATOS I La Metodologia de los Programas de investigación científica Madrid Alianza 1989 O falseamento e a metodologia dos programas de investigação científica In LAKATOS I MUSGRAVE A A crítica e o desenvolvimento do conhecimento São Paulo Cultrix 1979 LAUDAN L Progress and its Problems Berkeley University of California Press 1977 CadCatEnsFis v13n3 p184196 dez1996 196 MASTERMAN M A natureza de um paradigma In LAKATOS I MUSGRAVE A A crítica e o desenvolvimento do conhecimento São Paulo Cultrix 1979 POPPER K A lógica da pesquisa científica São Paulo Cultrix 1972 A ciência normal e seus perigos In LAKATOS I MUSGRAVE A A crítica e o desenvolvimento do conhecimento São Paulo Cultrix 1979 TOULMIN S Human understanding Oxford Claredon Press 1972 ZYLBERZTAJN A Revoluções científicas e ciência normal na sala de aula In MOREIRA M A AXT R Tópicos em Ensino de Ciência Porto Alegre Sagra 1991