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Direito ·
Direito Penal
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Instituto Brasileiro de Ciências Criminais DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Desta edição IBCCRIM Produção Gráfica Planmais Design Ltda Tel 20612797 planmarkeditoraplanmarkcombr INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS IBCCRIM Rua 11 de Agosto 52 2º andar CEP 01018010 São Paulo SP Brasil tel xx 55 11 31111040 troncochave httpwwwibccrimorgbr email monografiaibccrimorgbr Tiragem 4000 exemplares TODOS OS DIREITOS DESTA EDIÇÃO RESERVADOS Exemplar de distribuição restrita e comercialização proibida Impresso no Brasil Printed in Brazil Julho 2014 CIPBRASIL CATALOGAÇÃONAFONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ D848 Lemos Clécio et al Drogas uma nova perspectiva Clécio Lemos Cristiano Avila Marona Jorge Quintas São Paulo IBCCRIM 2014 243 p Monografias 66 Inclui bibliografia ISBN 9788599216385 1 DrogasEntorpecentes 2 Porte de Drogas 3 Política criminal 4 Direito penal I Instituto Brasileiro de Ciências Criminais II Título III Série CDD 3415555 CDU 343575 DIRETORIA DA GESTÃO 20132014 DIRETORIA EXECUTIVA Presidente Mariângela Gama de Magalhães Gomes 1ª VicePresidente Helena Regina Lobo da Costa 2º VicePresidente Cristiano Avila Maronna 1ª Secretária Heloisa Estellita 2º Secretário Pedro Luiz Bueno de Andrade 1º Tesoureiro Fábio Tofic Simantob 2º Tesoureiro Andre Pires de Andrade Kehdi Diretora Nacional das Coordenadorias Regionais e Estaduais Eleonora Rangel Nacif CONSELHO CONSULTIVO Ana Lúcia Menezes Vieira Ana Sofia Schmidt de Oliveira Diogo Rudge Malan Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró Marta Saad OUVIDOR Paulo Sérgio de Oliveira SUPLENTES DA DIRETORIA EXECUTIVA Átila Pimenta Coelho Machado Cecília de Souza Santos Danyelle da Silva Galvão Fernando da Nobrega Cunha Leopoldo Stefanno G L Louveira Matheus Silveira Pupo Renato Stanziola Vieira ASSESSOR DA PRESIDêNCIA Rafael Lira COLéGIO DE ANTIGOS PRESIDENTES E DIRETORES Presidente Marta Saad Membros Alberto Silva Franco Alberto Zacharias Toron Carlos Vico Mañas Luiz Flávio Gomes Marco Antonio R Nahum Maurício Zanoide de Moraes Roberto Podval Sérgio Mazina Martins Sérgio Salomão Shecaira COORDENADORESCHEFES DOS DEPARTAMENTOS Biblioteca Ana Elisa Liberatore S Bechara Boletim Rogério FernandoTaffarello Comunicação e Marketing Cristiano Avila Maronna Convênios José Carlos Abissamra Filho Cursos Paula Lima Hyppolito Oliveira Estudos e Projetos Legislativos Leandro Sarcedo Iniciação Científica Bruno Salles Pereira Ribeiro Mesas de Estudos e Debates Andrea Cristina DAngelo Monografias Fernanda Regina Vilares Núcleo de Pesquisas Bruna Angotti Relações Internacionais Marina Pinhão Coelho Araújo Revista Brasileira de Ciências Criminais Heloisa Estellita Revista Liberdades Alexis Couto de Brito PRESIDENTES DOS GRUPOS DE TRABALHO Amicus Curiae Thiago Bottino Código Penal Renato de Mello Jorge Silveira Cooperação Jurídica Internacional Antenor Madruga Direito Penal Econômico Pierpaolo Cruz Bottini Estudos sobre o Habeas Corpus Pedro Luiz Bueno de Andrade Justiça e Segurança Alessandra Teixeira Política Nacional de Drogas Sérgio Salomão Shecaira Sistema Prisional Fernanda Emy Matsuda PRESIDENTES DAS COMISSÕES ORGANIZADORAS 18º Concurso de Monografias de Ciências Criminais Fernanda Regina Vilares 20º Seminário Internacional Sérgio Salomão Shecaira COMISSÃO ESPECIAL IBCCRIM COIMBRA Presidente Ana Lúcia Menezes Vieira Secretáriogeral Rafael Lira Comissão do 18º Concurso de Monografias de Ciências Criminais Presidente Fernanda Regina Vilares Membros da Comissão Julgadora Ana Gabriela Braga Bruna Angotti Diogo Malan Eduardo SaadDiniz Flávio Antonio da Cruz e Marcel Gonçalves ApresentAção I dealizado e organizado pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais este livro lança olhares multifacetados sobre uma onda mundial de críticas à Política Criminal de Drogas Em maio de 2013 o IBCCRIM com o apoio do Instituto Manoel Pedro Pimentel órgão ligado à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Instituto Basco de Criminologia realizou o Seminário IberoAmericano sobre Drogas contando com representantes brasileiros e da Península Ibérica Três estudiosos estrangeiros somaramse a professores brasileiros advogados e um deputado federal para avaliar a situação atual das drogas no Brasil e na Europa As conclusões das discussões bem como outras contribuições que se somaram aos artigos gestados no Seminário permitiram a elaboração deste livro O livro não contempla somente temas de interesse do público brasileiro e dos profissionais do direito Ele também lança luzes em um processo que está em curso em outros países e que poderá criar uma nova perspectiva de drogas entre nós Concebido de maneira interdisciplinar aponta diferentes caminhos para um processo que se entende irreversível a modificação do sistema de controle das drogas no âmbito mundial Em um momento em que novas iniciativas acontecem nos Estados Unidos e Uruguai importante que avaliemos as experiências do Brasil Portugal e Espanha Ainda que em estágios de desenvolvimento distintos a experiência Iberoamericana se traduz em grande riqueza apesar de todas as suas contradições que o livro revela Da Espanha temos um dos maiores especialistas do assunto Xabier Arana escrevendo sobre Limitaciones legales de la reducción de daños en un contexto prohibicionista De Portugal o Professor da Universidade do Porto Jorge Quintas contribui com Estudos sobre os impactos da descriminalização do consumo de drogas em Portugal Dentre os autores brasileiros muitos abordaram por diferentes visões a política de drogas fazendo a crítica de nosso sistema Foram trazidos artigos de Cristiano Ávila Maronna Paulo Teixeira Maurides de Mello Ribeiro Sergio Salomão Shecaira Renato Watanabe de Morais Ricardo Savignani Alvares Leite e Silvio Eduardo Valente Luciana Boiteux relacionou a evolução do encarceramento a partir da política de drogas assim como Clécio Lemos focou seu olhar para as internações forçadas Maurício Fiore analisou o lugar do Estado na questão das drogas enquanto que Luis Carlos Valois focou a questão processual do direito à prova nos processos de tráfico de drogas Enfim o livro que ora se apresenta é o resultado da atuação dos principais estudiosos do tema no Brasil Portugal e Espanha e pretende ampliar o intenso debate que temos hoje sobre o assunto Esperamos que o atento leitor possa trazer sua crítica e desenvolver novas indagações e problemas com a leitura que fará São Paulo junho de 2014 sumário ApresentAção 7 internAções forçAdAs entre o cAchimbo e A grAde 11 Clécio Lemos os novos rumos dA políticA de drogAs enquAnto o mundo AvAnçA o brAsil corre risco de retroceder 43 Cristiano Avila Maronna estudos sobre os impActos dA descriminAlizAção do consumo de drogAs em portugAl 65 Jorge Quintas drogAs e cárcere repressão às drogAs Aumento dA populAção penitenciáriA brAsileirA e AlternAtivAs 83 Luciana Boiteux o direito à provA violAdo nos processos de tráfico de entorpecentes 105 Luís Carlos Valois umA novA estrAtégiA pArA A políticA de drogAs 131 Paulo Teixeira o lugAr do estAdo nA questão dAs drogAs o pArAdigmA proibicionistA e As AlternAtivAs 137 Maurício Fiore políticA criminAl e redução de dAnos 157 Maurides de Melo Ribeiro breves considerAções sobre A políticA criminAl de drogAs 181 Renato Watanabe de Morais Ricardo Savignani Alvares Leite Sílvio Eduardo Valente reflexões sobre As políticAs de drogAs 235 Sérgio Salomão Shecaira limitAciones legAles de lA reducción de dAños en un contexto prohibicionistA 251 Xabier Arana internAções forçAdAs entre o cAchimbo e A grAde Clécio Lemos Mestre em Direito Penal pela UERJ Professor de Direito Penal e Criminologia na Universidade de Vila Velha Coordenador do IBCCRIM no Espírito Santo Membro do Instituto Carioca de Criminologia ICC Advogado sumário 1 Introdução 2 Droga perigo e criminalidade a defesa social 3 Vício e loucura a ajuda compulsória 4 Biopoder neoliberal entre o cachimbo e a grade 5 Conclusão 6 Referências bibliográficas 1 introdução O Brasil assiste nos últimos anos ao surgimento de práticas e discursos em torno da internação compulsória de dependentes químicos Em termos iniciais tal medida se caracteriza por quatro pontos 1 caráter de Direito Administrativo 2 privação de liberdade sem consentimento 3 contra usuário de droga 4 em locais com fins curativos clínicas ou hospitais Na cidade do Rio de Janeiro desde o ano de 2011 tal prática 12 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA vem sendo utilizada principalmente com crianças e adolescentes moradores de rua sob o argumento de serem usuários de drogas A base normativa está na Resolução 20 da Secretaria Municipal de Assistência Social que dá autorização expressa no art 5º 3º 3º A criança e o adolescente que esteja nitidamente sob a influência do uso de drogas afetando o seu desenvolvimento integral será avaliado por uma equipe multidisciplinar e diagnosticada a necessidade de tratamento para recuperação o mesmo deverá ser mantido abrigado em serviço especializado de forma compulsória A unidade de acolhimento deverá comunicar ao Conselho Tutelar e à Vara da Infância Juventude e Idoso todos os casos de crianças e adolescentes acolhidos O nome dado pela prefeitura foi Protocolo de serviço especializado em abordagem social e sua atuação tem representado a internação forçada de inúmeros menores capturados nas ruas da cidade1 A cidade de São Paulo também se destaca no cenário nacional com uso das internações forçadas Segundo dados oficiais as medidas já se operam sobre jovens e adultos desde 2009 relatando mais de 300 casos concretizados2 Neste o fundamento legal levantado pela autoridade pública tem sido a própria Lei 102162001 Tal norma trata sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais também conhecida como Lei de Reforma Psiquiátrica e em seu art 6º permite a internação psiquiátrica forçada de duas formas a involuntária quando há requerimento de terceiros e a compulsória determinado pela justiça A adesão à internação compulsória de dependentes químicos pelo poder público parece ser crescente principalmente quando se verifica a existência de dois projetos de lei federal acerca do tema 1 Leiase notícia veiculada no site da prefeitura disponível em httpwwwrio rjgov brwebguestexibeconteudoarticleid1858761 Acesso em 13 maio 2013 2 Disponível em httpwwwsaopaulospgovbrspnoticiaslenoticiaphpid225660 Acesso em 10 maio 2013 13 CLéCIO LEMOS O primeiro deles é o PL 766320103 de autoria do Deputado Osmar Terra e propõe a expressa inclusão de autorização das internações forçadas na Lei 113432006 Lei de Tóxicos com a inclusão do art 23A cujo conteúdo é praticamente idêntico ao tratamento do ponto dado pela Lei 102162001 O segundo está em trâmite no Senado PLS 11120104 de autoria do exsenador Demóstenes Torres Seu texto pretende incluir na Lei 113432006 uma autorização para que o juiz de Direito possa compelir o usuário de drogas a um tratamento especializado como forma de substituição da pena de prisão5 Surgem então propostas novas que visam instalar e incentivar o uso das internações forçadas de usuários de drogas em âmbito nacional demandando urgente reflexão da comunidade científica Pesquisando os discursos que pretendem legitimar a internação forçada basicamente podese perceber que eles giram em torno de dois pontos 1 O risco oferecido pelos dependentes químicos à sociedade argumento da defesa social 2 A incapacidade do viciado de se livrar do vício argumento da ajuda compulsória Analisaremos as duas ordens do discurso em itens separados para somente depois propor uma nova leitura do fenômeno 2 droga perigo e criminalidade a defesa social S igmund freud registrou em um de seus textos antropológicos mais marcantes que o malestar é inerente à vida em coletividade Segundo o autor há três motivos a explicar as fontes dessa insatisfação a preponderância da natureza sobre o homem a fragilidade do corpo humano e a insuficiência das normas instituídas para regular os vínculos humanos6 3 Disponível em httpwwwcamaragovbrproposicoesWebprop mostrarintegracodteor 789804filename PL76632010 Acesso em 5 abr 2013 4 Disponível em httpwwwsenadogovbratividademateriadetalhesasppcod mate96509 Acesso em 05 abr 2013 5 Art 47 2º O juiz poderá a qualquer momento encaminhar o acusado para tratamento especializado após ouvida a comissão de que trata o 1º do caput deste artigo 6 Freud Sigmund O malestar na civilização São Paulo Penguin Classics Companhia 14 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Por sua vez freud indica que existem igualmente três caminhos que podem ser identificados como tradicionais formas de inibição do sofrimento ou realização da felicidade poderosas diversões gratificações substitutivas e substâncias inebriantes A primeira seria a satisfação por meio de processos vários de prazer tal como o alcançado por um cientista na produção de uma pesquisa intelectual A segunda seria o caminho das satisfações substitutivas por meio da fantasia aqui se registra o prazer de um adorador por sua religião o gozo com a beleza de uma obra de arte ou o amor de um homem por uma mulher Ao fim a terceira via considerada pelo pai da psicanálise foi justamente o uso de certas substâncias que geram alteração psíquica As ditas substâncias inebriantes operam então uma função de tornar o homem insensível às dores da civilização por um espaço de tempo O serviço dos narcóticos na luta pela felicidade e no afastamento da miséria é tão valorizado como benefício que tanto indivíduos como povos lhe reservaram um sólido lugar em sua economia libidinal A eles se deve não só o ganho imediato de prazer mas também uma parcela muito desejada de independência em relação ao mundo externo Sabese que com ajuda do afastatristeza podemos nos subtrair à pressão da realidade a qualquer momento e encontrar refúgio num mundo próprio que tenha melhores condições de sensibilidade7 Daí a compreensão de que o uso de drogas é algo natural de esperar na constituição de todas as sociedades minimamente complexas Ele se apresenta com relevância tanto na história quanto nos mais diversos povos hoje existentes Por sua vez as políticas proibicionistas de drogas parecem ser uma novidade nas organizações humanas O controle do uso de drogas como política pública tem um percurso de pouco mais de um século apesar de no período inicial sua atuação ter sido de reduzida expressão prática das Letras 2011 p 30 7 Freud Sigmund Op cit p 22 15 CLéCIO LEMOS Tal processo de criminalização inaugurado em volume relevante apenas no século XX partiu basicamente dos EUA vera malaguti nos facilita a compreensão do vetor político a explicar o fenômeno Nos Estados Unidos conflitos econômicos foram transformados em conflitos sociais que se expressaram em conflitos sobre determinadas drogas A primeira lei federal contra a maconha tinha como carga ideológica a sua associação com imigrantes mexicanos que ameaçavam a oferta de mão de obra no período da Depressão O mesmo ocorreu com a migração chinesa na Califórnia desnecessária após a construção das estradas de ferro que foi associada ao ópio No Sul dos Estados Unidos os trabalhadores negros do algodão foram vinculados a cocaína criminalidade e estupro no momento de sua luta por emancipação O medo do negro drogado coincidiu com o auge dos linchamentos e da segregação social legalizada Estes três grupos étnicos disputavam o mercado de trabalho nos Estados Unidos dispostos a trabalhar por menores salários que os brancos8 Somente na década de 1970 as campanhas de lei e ordem forjam a droga como o principal inimigo interno e externo a ser combatido Desde então uma conjunção entre o poder político e a grande mídia de massa produziu o discurso hegemônico da droga transformada em ameaça à ordem social Richard Nixon esteve no comando da maior potência do planeta EUA de 1969 até sua renúncia em 1974 por conta do escândalo de Watergate Durante seu mandato o presidente inaugura a famosa campanha de War on drugs a América estava em guerra declarada contra as drogas Era também uma resposta política dura contra as manifestações estéticas de contracultura iniciadas na década de 1960 O movimento de contestação geralmente relacionado aos hippies popularizou o uso de algumas drogas sobretudo maconha e LSD igualmente como um símbolo de luta contra o pensamento hegemônico ao lado de outras 8 Batista Vera Malaguti Difíceis ganhos fáceis drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro Rio de Janeiro Revan 2003 p 81 16 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA manifestações culturais como a música literatura artes plásticas vestuário e sexualidade salo de carvalho ensina que as campanhas promovidas pelos empresários morais do conservadorismo dariam início ao processo de transnacionalização do controle sobre os entorpecentes9 Há então a construção simbólica de um novo inimigo das nações a ser controlado e eliminado pelo sistema Eis uma das manobras para viabilizar o novo governo de gestão das massas sentencia zaffaroni À medida que se aproximava a queda do muro de Berlim tornou se necessário eleger outro inimigo para justificar a alucinação de uma nova guerra e manter níveis repressivos elevados Para isso reforçouse a guerra contra a droga10 Wacquant indica que a dita guerra contra o narcotráfico foi o principal responsável pelo incremento do sistema prisional norte americano nas últimas décadas em 1975 um em quatro detentos em prisão federal estava preso por violar a legislação sobre entorpecentes vinte anos mais tarde esta taxa atingia 6111 A partir daí a corrente se propagaria pelo mundo assim como o hábito de beber CocaCola12 Já está mais do que provado que o poder ideológico norteamericano não é exercido apenas sobre o setor cultural american way of life mas também fortemente sobre o campo das políticas públicas No Brasil este incremento punitivo se dá a partir da Lei 63681976 que se pôs a estabelecer diretrizes de um fôlego repressivo inovador Aderindo à lógica diferenciadora entre usuário e traficante a lei traz uma série de alterações que se traduzem na elevação substancial do punitivismo em torno das drogas As principais alterações podem ser 9 Carvalho Salo de A política criminal de drogas no Brasil 5 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2010 p 14 10 Zaffaroni Eugenio Raúl O inimigo no direito penal Rio de Janeiro Revan 2007 p 51 11 Wacquant Loïc Punir os pobres a nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos 3 ed rev e ampl 2007 Rio de Janeiro Revan 2003 p 116 12 Pavarini Massimo O encarceramento de massa In Abramovay Pedro Vieira Batista Vera Malaguti org Depois do grande encarceramento Rio de Janeiro Revan 2010 p 311 17 CLéCIO LEMOS assim sintetizadas 1 o tipo penal de tráfico tornase mais abrangente eleva a discricionariedade na punição 2 criase o tipo penal da associação para o tráfico art 14 3 há um grande aumento da pena de prisão prevista antes de 1 a 6 anos depois de 3 a 15 anos 4 surgem causas de aumento de pena que afetam consideravelmente a sanção final aplicada art 18 Mas se já há quase quatro décadas experimentamos esse controle punitivo rigoroso sob o fundamento da defesa da sociedade contra os riscos decorrentes do uso de drogas a novidade agora parece ser a de realizar a mesma privação de liberdade a partir de um campo extrapenal Mesmo argumento nova veste jurídica É certo que criminalização buscava se justificar a partir do suposto perigosismo decorrente da dependência química todavia o controle se fazia mediante tipos penais O Direito Administrativo pelo menos em terras brasileira ainda não havia ousado se inserir no campo das privações de liberdade com fundamento da dependência química A se lembrar a restrição de liberdade administrativa sempre foi exclusiva das ditas prisões militares sanções decorrentes de desvios disciplinares graves praticados por militares O breve resgate de como se procedeu historicamente a criminalização das drogas ao longo do século XX tem muito a nos ensinar principalmente quando visualizamos o fato de que o fundamento sempre foi basicamente o mesmo que agora pretende promover as internações compulsórias repressão com fins de prevenção Mais do que isso a política criminal de drogas em todo mundo ensina algo ainda mais relevante pretender resolver a questão com o uso de restrição de liberdade representa um enorme fiasco É preciso pontuar de forma bem clara que a história da política de criminalização de drogas é também a história de seu fracasso A conclusão evidente mas ao mesmo tempo surpreendente é que a política de guerra às drogas é grande fracasso visto não obter resultado algum na erradicação ou no controle razoável do narcotráfico Por outro lado seu efeito visível é a constante violação dos direitos e garantias fundamentais dos grupos vulneráveis da população13 13 Carvalho Salo de A política criminal de drogas no Brasil 5 ed Rio de Janeiro Lumen 18 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Agora percebase que a mesma lógica de controle associado ao risco social produzido por um usuário pode ser facilmente encontrada na exposição de motivos do citado PL 76632010 Leiase O presente projeto de lei tem por objetivo oferecer proposta para melhorar a estrutura do atendimento aos usuários ou dependentes de drogas e suas famílias e tratar com mais rigor os crimes que envolvam drogas de alto poder de causar dependência Além disso nos arts 10 e 11 do projeto propomos diversos acréscimos na legislação com vistas a melhorar o nível de atenção ao usuário ou dependente de drogas Incluímos os objetivos da atenção que ultrapassam o caráter meramente assistencial caminhando na direção da responsabilização da pessoa pelo dano que produz a si próprio e aqueles que estão mais próximos Explicitamos que é necessário mostrar desaprovação quanto ao uso de drogas como orientação do sistema e tornamos obrigatória a articulação de ações intersetoriais para atingir esses objetivos O mesmo é visto no PLS 1112010 com nítido escopo repressivo de defesa social diante da ameaça que um dependente pode representar O presente projeto de lei é uma resposta ao querer dos especialistas à fracassada despenalização do uso de entorpecentes à dor das famílias e ao resgate da geração que o Brasil pode perder para as drogas A outra parte que trata da popularmente denominada internação compulsória resgata a possibilidade de prisão para o usuário de drogas pois a despenalização foi uma experiência ruim servindo unicamente para potencializar o sofrimento dos próprios viciados e seus familiares Evidentemente o propósito não é levar ao cárcere alguém só por estar fumando crack ou maconha cheirando cocaína usando ecstasy Tomese cuidado com os termos técnicos Juris 2010 p 52 19 CLéCIO LEMOS Vejase que a legitimação da medida de internação compulsória perpetua a lógica de contenção repressiva pelo risco gerado pelo dependente14 Mas devemos resgatar o fato de que o próprio sistema criminal já vinha apresentando uma rejeição por tal argumento numa clara evolução em torno da despenalização do usuário de drogas Urge lembrar que uma das alterações mais significativas operadas pela Lei 113432006 foi justamente a quebra relevante da lógica repressora sobre o usuário Concretamente o crime de porte de drogas para uso próprio sujeitava até então a uma pena de prisão de 6 meses a 2 anos e com a nova lei as penas cabíveis passaram a ser tão somente não detentivas15 Notase que o poder do Estado sobre o usuário sofreu um duro golpe com a modificação da lei Sob nenhum argumento desde 2006 o uso de drogas pode remeter à privação de liberdade Tudo indica que a inserção das internações compulsórias na mecânica de controle estatal também representa uma resposta à nova Lei de Tóxicos Por vezes tal relação nem mesmo é disfarçada como se pode ver na exposição de motivos do PLS 1112010 Para corrigir volta a punição ao usuário não para transformar em tema unicamente de segurança pública uma questão que também é de saúde pública Familiares educadores e o próprio Poder Judiciário ficaram de pés e mãos atados para internar o usuário Se ele quiser se tratar arrumase uma clínica se recusar o tratamento nada se pode fazer além de assistir a autodestruição A criminalização do uso de drogas veio sofrendo críticas progressivas por parte de penalistas ao redor do mundo Mesmo 14 O tom repressivo fica ainda mais claro quando se lê em fartas narrativas que o recolhimento de usuários nas ruas no Rio de Janeiro tem a prática de encaminhar primeiro os detidos à autoridade policial responsável a fim de verificar se há mandado de prisão em aberto contra a pessoa Em vários casos a ação dos agentes das secretarias de saúde efetivamente acabou levando os usuários diretamente para as celas de uma delegacia Leiase em Internação e recolhimento compulsório uma política violadora dos direitos humanos Rio de Janeiro 2013 p 110 15 O atual art 28 da Lei traz três possíveis punições I advertência sobre os efeitos das drogas II prestação de serviços à comunidade III medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo 20 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA aqueles que buscam argumentos apenas dentro da lógica dogmática encontraram fortes subsídios para tal ataque tal como a demonstração de que o uso de drogas não encontra respaldo no princípio fundamental da lesividade A autolesão provocada pelo uso de substâncias entorpecentes foi fortemente contestada como fundamento plausível de incidência penal o critério de lesividade do direito de terceiros é tradicionalmente considerado como pressuposto do bem jurídico penalmente relevante16 Parece claro que se a pena é medida de caráter público e visa condutas nocivas à sociedade não pode recair sobre atos que apenas atingem o próprio agente Basta lembrar que os tipos penais de lesão corporal sempre pressupõem afetação de outrem Além disso o argumento da necessidade de criminalização por conta do risco que representa o usuário para as outras pessoas já vinha sendo descartado O Direito Penal cujo nascimento iluminista representa justamente uma contenção ao poder de punir do Estado já ensinou suficientemente que não pode haver criminalização de atos preparatórios ou qualquer estado interno do indivíduo que ainda não tenha se traduzido num perigo concreto a terceira pessoa Aqui mais uma lição que o penalismo há de deixar para compreensão das internações compulsórias A produção jurídica sobre o sistema de controle do Estado há de se vincular a argumentos de concreta proteção de indivíduos e não de meros riscos hipotéticos A possibilidade de o usuário praticar delitos ou de se tornar violento em decorrência de sua dependência é um fator externo ao fundamento do controle Nem mesmo se pode ter a menor certeza de tais acontecimentos restando como uma contenção de mero risco abstrato um futuro incerto que não pode justificar a restrição de liberdade de um cidadão Ao vincular o uso das internações compulsórias aos argumentos tradicionais que o próprio Direito Penal tem recentemente repelido é de verificar que a nova medida se apresenta como mais do mesmo e não há que se levantar justamente o óbice de que as internações 16 Sobre ofensividade ver DAvila Fabio Roberto Ofensividade em direito penal escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos Porto Alegre Livraria do Advogado 2009 p 99 21 CLéCIO LEMOS não são punitivas pois ao fim são igualmente privação de liberdade contra a vontade do cidadão vulnerando e sujeitando da forma mais repressiva possível o âmbito dos direitos individuais É vestir o lobo com a pele de cordeiro Por força do princípio da Intervenção Mínima ou também chamado de Subsidiariedade é unânime entre os estudiosos de Direito punitivo que as restrições de liberdade devem encontrar resguardo apenas na seara penal pois é justamente ela que assegura uma série de garantias em torno de tão rigorosa coerção Tudo o que difere o Direito Penal das demais áreas do Direito é justamente o seu olhar cauteloso no momento de prender seu complexo de garantias em torno da pena de prisão A lei penal nesse passo é tipicamente reservada às condutas mais nocivas à sociedade pois só assim se justifica ter em suas mãos a exclusiva possibilidade de prisão como ferramenta de controle E lembrese internação é restrição de liberdade seja qual for a tese jurídica encampada Tomando isto como verdade fica fácil perceber que não se pode conceber que o usuário de drogas seja objeto de privação de liberdade pelo caminho administrativo internação compulsória quando a própria lei penal brasileira já tem rejeitado tal medida desde 2006 Se mesmo o setor máximo de controle a ultima ratio do Estado indicou que tal conduta não merece privação de liberdade logicamente não há que se falar em internação forçada por outro ramo do Direito A experiência punitiva revela que a permissão legal para restrição de liberdade é uma medida política que merece toda precaução justamente porque abre um campo de atuação do poder estatal que invariavelmente se exerce de maneira arbitrária e autoritária Em outras palavras em termos de políticas públicas não se consegue implementar um tratamento rigoroso diferenciado para certos setores da população sem que com isso automaticamente se reduzam as garantias de todos os cidadãos perante tal medida17 Mas os estudos de Direito Penal e Criminologia não nos ensinam apenas o grave problema que é autorizar restrição de liberdade sob o 17 Zaffaroni Eugenio Raúl O inimigo no direito penal Rio de Janeiro Revan 2007 p 191 22 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA mero risco possível que é na verdade uma hipótese de antecipação penal Estes saberes nos indicam também que os argumentos legitimantes da prisão tais como prevenção geral e especial ideologias re são tradicionais teorias que nunca se demonstraram concretamente relevantes ou viáveis Logo pretender autorizar a internação compulsória de dependentes químicos mediante o argumento do risco que este indivíduo pode ocasionar tais como o cometimento de crimes patrimoniais para sustentar o seu vício representa o clássico argumento preventivista sob o qual se ancora o sistema penal desde o advento do penalismo ilustrado Já estamos muito bem informados pelas Ciências Criminais que sustentar um sistema repressivo com base na esperança de que se evite o cometimento de delitos só faz incrementar um fundamento de contenção dissociada de riscos reais à sociedade e que tende ao paroxismo18 Afinal de contas é possível fixar limites de contenção ao fundamento das internações compulsórias Qual é o critério que determina se um usuário de substância entorpecente representa risco à sociedade Qual é o momento em que uma pessoa passa a ser considerada dependente química Todas as drogas podem gerar o dito risco social O silêncio esperado sobre estas questões é mais do que eloquente Representa sim que a medida sob o fundamento da prevenção de danos não encontra limites e abre espaço para um controle arbitrário e profundamente seletivo Por tudo considerando que a defesa da internação compulsória por vezes se ancora num tom repressivo e de prevenção fundamentos típicos do setor criminal estamos autorizados ainda a interpretar tal medida como uma forma de preservar o controle sobre os usuários sem as garantias típicas do Direito Penal e do Processo Penal Como já explicado estes dois ramos da dogmática possuem justamente a peculiaridade de oferecer garantias especiais justificáveis pelo alto rigor da medida punitiva de restrição de liberdade 18 Zaffaroni Eugenio Raúl Batista Nilo Alagia Alejandro Slokar Alejandro Direito penal brasileiro primeiro volume Rio de Janeiro Revan 2003 p 119126 23 CLéCIO LEMOS Aliás é útil recordar o exemplo das medidas de segurança Elas não encontram na lei uma limitação temporal máxima ao contrário do que ocorre com as penas19 perdendo tal garantia justamente porque não são consideradas penas É por não se encontrar formalmente no setor de punição penal que as internações de portadores de doença mental que praticaram um injusto penal escorregam da vedação constitucional de penas perpétuas A liberdade condicionada à cessação de periculosidade já permitiu muitas vezes em nosso país o uso de privação de liberdade por vidas inteiras Tudo dentro da legalidade Logo desviar a privação de liberdade dos usuários de drogas do campo penal para o setor administrativo é manter a medida sem as inconvenientes mesmo que precárias proteções que o direito Penal e o Processo Penal oferecem contra o poder do Estado20 O mesmo vale para as crianças e adolescentes internados à força pois a medida viola as garantias oferecidas pelo Estatuto da Lei 80691990 particularmente o indicado no art 106 que restringe a possibilidade de privação de liberdade apenas aos casos de flagrante ou apreensão decretada21 Nestes termos parece que o argumento de defesa social levantado a favor das internações compulsórias não pode prosperar em síntese pelos seguintes motivos 1 a internação compulsória visando defesa social contra o usuário tem exatamente o mesmo fundamento utilizado pela política criminal de Guerra às drogas 2 a história mostrou que a lógica repressiva é ineficaz na redução do uso de entorpecentes 3 a experiência da política criminal de drogas tem promovido estigmatização e violência institucional 4 o risco abstrato de condutas nocivas pelo dependente não justifica sua privação de liberdade 5 se o Direito Penal não autoriza mais a prisão do usuário naturalmente o Direito Administrativo também não pode por força do princípio da subsidiariedade 6 a internação compulsória é uma forma de privação de liberdade sem as garantias do Direito Penal 19 Art 75 O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 30 trinta anos 20 Carvalho Salo de A política criminal de drogas no Brasil 5 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2010 p 293 21 Art 106 Nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente 24 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 3 vício e loucura a ajuda compulsória U m segundo ponto a ser analisado é acerca da internação de dependentes químicos como espécie de ajuda compulsória Este aporte discursivo é reiterado e talvez seja justamente o mais comum entre os que defendem a medida Encontramos tal argumento no corpo de justificação do já comentado Projeto de Lei do Senado 1112010 Vejase O usuário de crack não tem parâmetro com nenhum viciado em outras drogas mesmo as fortes como cocaína e heroína Ele fica igual a um zumbi completamente dominado pelo crack para de estudar para de trabalhar não quer fazer mais nada que não seja fumar as pedras de crack Mesmo assim a família sofre por não poder internálo se ele não quiser e ele não quer porque a única coisa que um viciado em crack quer é fumar mais crack O adolescente cheio de vida vira um molambo em questão de dias E atualmente muito pouco se pode fazer por ele além de lamentar chorar maldizer Nem internar pode só se ele quiser e ele não quer pois tudo o que deseja é fumar pedras não manda mais em si não domina as vontades Querer que um viciado em crack se levante da calçada e em vez da boca de fumo tome o rumo da clínica de recuperação é sonhar que a raríssima exceção se transforme em regra A mesma ideia de perda do autodomínio descontrole psíquico é encontrada amplamente nos discursos políticos Em entrevista concedida ao jornal O Globo o prefeito da cidade do Rio de Janeiro eduardo paes busca fundamentar as internações forçadas da seguinte forma Para o prefeito usuários de crack não têm condições de decidir pela internação Essas pessoas não têm condições de tomar decisão Sempre tive opinião pessoal favorável pela internação compulsória Mas aqui é decisão política do prefeito destacou o Paes que negou estar defendendo a hospicialização ou a prisão dos dependentes22 22 Disponível em httpogloboglobocomriocrackinternacaocompulsoriade adultosdivideopinioes487379 Acesso em 1 ago 2013 25 CLéCIO LEMOS Em longa entrevista concedida ao jornal Folha de SPaulo o famoso Dr dráuzio varela aponta que os argumentos contrários à internação compulsória de dependentes químicos são insensíveis e ideologizados deixando a mensagem de que a medida estatal se justifica pela incapacidade da própria pessoa se conduzir O debate está ideologizado Totalmente É uma questão ideológica e não é hora para isso Estamos numa epidemia quanto mais tempo passa mais gente morre Sempre faço uma pergunta nessas conversas Se fosse sua filha naquela situação você deixaria lá para não interferir no livrearbítrio dela Eu se tivesse uma filha grávida jogada na sarjeta nem que fosse com camisa de força tiraria ela de lá23 Ante tais premissas é possível reconhecer que o argumento e apenas o argumento a ser objeto de análise no presente tópico é de cunho essencialmente médico relativo à área da saúde Em outros termos argumentase que a internação forçada deve se justificar por ser uma medida em defesa da vida do próprio dependente químico que por conta de sua adição já não pode se guiar e encontrar por si só um retorno à vida saudável O interessante é perceber quanto tal legitimação discursiva aproxima o viciado em drogas do rótulo da loucura Notase a esta altura uma nítida confluência de linguagens e concepções O usuário como alguém que não se guia por um senso racional que perde a sanidade esperada perde a capacidade de se conduzir na vida enfim um louco curável Cabe uma análise de como a ideia de tratamento dos loucos e a mecânica das internações se operou na história Sobre essa questão ninguém foi tão longe e perspicaz quanto foucault Em A história da loucura na Idade Clássica o filósofo francês anuncia amplamente que o surgimento dos manicômios e da segregação espacial decorrente da falta de razão loucura só pode ser compreendido mediante um complexo de modificações políticas 23 Disponível em httpwww1folhauolcombrfsppoder90985internacao compulsoriaecaminhoaserpercorridoshtml Acesso em 1º ago 2013 26 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA éticas e econômicas do iluminismo nascente24 O período do grande internamento inaugurado na Europa do século XVII instaura uma preocupação política com a cura no nível discursivo criando uma nova ética acerca da loucura e da sanidade mas cujo mote tem uma ligação intrínseca com a urbanização e o mercantilismo É o que ensina Se o louco aparecia de modo familiar na paisagem humana da Idade Média era como que vindo de um outro mundo Agora ele vai destacarse sobre um fundo formado por um problema de polícia referente à ordem dos indivíduos da cidade Outrora ele era acolhido porque vinha de outro lugar agora será excluído porque vem daqui mesmo e porque seu lugar é entre os pobres os miseráveis os vagabundos25 A clausura passa a ser a chave central do tratamento público dispensado ao insano em descompasso com o método de expulsão que era antes comum aos leprosos A nova ordem determina uma inclusão para excluir A exclusão como meio de tratamento e o tratamento como meio de exclusão A nova visão social do louco é então intensamente produzida por sua objetificação atrás das grades A experiência da loucura passa a ser identificável sob a premissa da cientificidade cuja cura está automaticamente legitimada por agora se enquadrar em um regime médico do campo patológico O que se demonstra é então que a própria internação é o gesto fundador da alienação pois que criador de uma nova visão sobre o louco que produz o louco a partir da era clássica cujo locus adequado só pode ser atrás das grades Tal passo também dependeu da nova ideia instituída de saúde pública a saúde coletiva por excelência o que seria chamado pelo autor de Medicina Social Explica foucault que nos principais países europeus surge uma gestão coletiva da medicina fundamental 24 Foucault Michel A história da loucura na idade clássica São Paulo Perspectiva 2012 p 64 25 Foucault Michel A história da loucura na idade clássica São Paulo Perspectiva 2012 p 63 27 CLéCIO LEMOS para a nova forma de controle demandada pela reestruturação política liberal O controle do corpo é um dos passos iniciais de um domínio inovador promovido a partir do qual o autor desenvolve sua ideia de biopolítica Não apenas ideológico mas igualmente físico é o controle social desenvolvido A estrutura capitalista se investe sobre o corpo Basicamente tal modificação teria se operado de três formas distintas Medicina do Estado na Alemanha Medicina Urbana na França e Medicina da Força de Trabalho na Inglaterra26 De todas estas formas a versão inglesa é a que apresenta uma política de forte segregação e controle social a partir de fundamentações médicas sendo a que acaba predominando a partir de então O saneamento a saúde coletiva e a sanidade passam a ser argumentos que justificam modificações arquitetônicas dos centros urbanos da visão social sobre o doente e do tratamento sobre o louco O biopoder do século XVIII aponta para um Estado cuja preocupação deixa de ser o direito de morte para se fixar na gestão ampla da vida Fazer viver e deixar morrer passa a ser a lógica deste novo tipo de política mediante controles reguladores intensos da população27 A era da governamentalidade se instaura uma política que traz em seu seio o traço da internação que se infiltra espalhando controle Não custa lembrar que no século XVII as ditas casas de internamento chegaram a recolher um em cada cem cidadãos da cidade de Paris28 Percebendo tal perigo já em 1881 o grande machado de Assis registrava em um de suas mais belas ficções as desventuras de um médico muito estudioso e bem intencionado que acabou recolhendo quatro quintos da cidade em seu hospício A Casa Verde instaurou terror porque o velho doutor Bacamarte avançava em seu conceito de loucura cada vez mais abrangente e logo todos tinham alguma alienação identificável Até o dia em que o próprio alienista percebeu 26 Foucault Michel Microfísica do poder 26 ed Rio de Janeiro Graal 2008 p 80 27 Foucault Michel História da sexualidade a vontade de saber 21 ed Rio de Janeiro Graal 2011 p 151 28 Foucault Michel A história da loucura na idade clássica São Paulo Perspectiva 2012 p 48 28 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA que era ele quem deveria se internar29 Por tudo a marca fundamental que nos leva às origens das casas de internação de loucos é de que o ato de internar como vinculado ao discurso médico era em verdade um ato de segregação interessante ao novo modelo político disfarçado de cura A casa dos loucos mais do que segregar alguns poucos inúteis ao trabalho passou a produzir uma nova sensibilidade sobre a pobreza uma nova ética do trabalho e da cidade estruturada para guiar a classe trabalhadora Atesta ricardo genelhu Desafivelase portanto a outra faceta do discurso médico mais uma censitária fiscalizadora controladora e neutralizante qual sendo a da detecção exclusão por inclusão nas instituições totais manicomiais e neutralização dos mentalmente considerados anormais para o mercado de trabalho30 A coação que levou os insanos para trás dos muros também conduziu a miséria para o campo das imoralidades Ao fim há um tom de castigo que se tenta disfarçar mas que está à saciedade expresso nas celas na linguagem e no olhar Bem por isso não é demais afirmar que a internação não girava em torno da cura mas da ética do capital Leiase Antes de ter o sentido médico que lhe atribuímos ou que pelo menos gostamos de supor que tem o internamento foi exigido por razões bem diversas da preocupação com a cura O que o tornou necessário foi um imperativo de trabalho Nossa filantropia bem que gostaria de reconhecer os signos de uma benevolência para com a doença lá onde se nota apenas a condenação da ociosidade31 29 Assis Machado de O alienista Porto Alegre LPM 2012 30 Genelhú Ricardo O médico e o direito penal v1 introdução históricocriminológica Rio de Janeiro Revan 2012 p 196 31 Foucault Michel História da sexualidade a vontade de saber 21 ed Rio de Janeiro Graal 2011 p 64 29 CLéCIO LEMOS A ordem de internação isola os indesejados os elementos perigosos Seu cerne está no poder de polícia que exerce não encontrando nenhuma linha médica a justificála E precisamente por isso o método de restrição de liberdade se multiplicou sobre o território a partir de então repetindo a mesma segregação entre doentes venéreos feiticeiras alquimistas vagabundos delinquentes e outros tantos tipos indesejados32 Na instalação da sociedade disciplinar as instituições de sequestro constituem peça fundamental perfazendo uma rede ampla de panoptismos cadeias asilos hospitais quartéis fábrica escola que visa promover uma nova subjetividade mediante vigilância controle e correção33 Há então uma cumplicidade entre essas figuras o que mostra a insustentabilidade do argumento curativo Não seriam as internações compulsórias de usuários de drogas mais uma cena do mesmo filme O que vemos hoje é o discurso sobre o crack e sobre um suposto quadro de epidemia sendo usado para desqualificar os recursos existentes no âmbito das políticas públicas construídas democraticamente como se estes não dessem conta da situação dos sujeitos que fazem uso do crack embora a rede substitutiva ao modelo manicomial não tenha sido efetivamente consolidada devido ao investimento insuficiente nas políticas públicas de saúde mental O que observamos parece nos apontar na verdade para uma reedição dos manicômios e da lógica do confinamento dos indesejáveis mais uma vez contando com os saberes técnicocientíficos para a legitimação de tais práticas e discursos34 É fértil notar que a já comentada Resolução 20 da Secretaria 32 Anitua Gabriel História dos pensamentos criminológicos Rio de Janeiro Revan 2008 p 243 33 Foucault Michel A verdade e as formas jurídicas 3 ed Rio de Janeiro NAU editora 2002 p 115 34 Souza Alice de Marchi Pereira Lima Isabel Costa Um dejá vu recolhimento e internação compulsória de crianças e adolescentes e a reedição de práticas de controle da pobreza na cidade do Rio de Janeiro In Internação e recolhimento compulsório uma política violadora dos direitos humanos Rio de Janeiro 2013 p 16 30 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Municipal de Assistência Social oficialmente destinada à internação compulsória de menores das ruas do Rio de Janeiro sob o fundamento do vício em tóxicos traz quase imperceptível no seu art 5º uma previsão de que o recolhimento deve se operar mesmo quando não houver indícios de adição agora visando preservar sua integridade física 4º Não obstante o previsto nos 2º e 3º deste artigo a criança e o adolescente acolhidos no período noturno independente de estarem ou não sob a influência do uso de drogas também deverão ser mantidos abrigadosacolhidos de forma compulsória com o objetivo de garantir sua integridade física Se escapam os fundamentos não escapam as prisões Então a suposta epidemia do uso do crack35 e as Cracolândias como locais do absurdo a céu aberto correm para legitimar as internações que já vinham sendo atacadas pelos profissionais da saúde Assim atesta a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e da Cidadania da Alerj em relatório divulgado em junho de 2012 Na contramão desta perspectiva a atual política governamental fortalece a lógica institucionalizante excludente com caráter disciplinar manicomial e de higienização social e portanto inaceitável A história já mostrou que esse modelo sempre esteve a serviço da produção e da manutenção de segregação daqueles considerados diferentes desviantes e por isso perigosos vidas indesejáveis vidas a se deixar morrer36 35 O crack é obtido a partir da mistura da pastabase de coca ou cocaína refinada feita com folhas da planta Erythroxylum coca com bicarbonato de sódio e água Quando aquecido a mais de 100 ºC o composto passa por um processo de decantação em que as substâncias líquidas e sólidas são separadas O resfriamento da porção sólida gera a pedra de crack que concentra os princípios ativos da cocaína O conceito está no site oficial do governo brasileiro disponível em httpwwwbrasilgovbrcrackepossivelvenceradroga composicaoeacaonoorganismo Acesso em 1º ago 2013 36 A citação consta à p 48 O relatório está disponível em httpwwwcrprjorgbr documentos2012relatorioCADQspdf Acesso em 10 ago 2013 31 CLéCIO LEMOS Na mesma linha os profissionais da saúde mental apontam para o aviltamento da lógica de cuidado com o dependente Leiase o publicado no jornal O Globo sobre a decisão da prefeitura do Rio de Janeiro ao implementar as internações compulsórias Já a presidente do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro Vivian Fraga criticou a decisão A ação é contrária a tudo que está escrito conveniado e assinado dentro das políticas de saúde e assistência Ele tomou a decisão à revelia de processos democráticos É uma decisão higienista do prefeito37 Logo as internações compulsórias se anunciam na contramão do movimento antimanicomial que havia encontrando amplo amparo na Lei de Reforma Psiquiátrica 102162001 A desinternação como meta é algo que se encontra de forma relativamente estável na visão mais moderna das ciências envolvidas com saúde mental direcionando a uma diminuição substancial no número de pessoas internadas no país Não por outro motivo o Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro Cedeca firmouse contra as internações compulsórias e nos lembra A partir das conquistas destes movimentos institucionalizadas no SUS no ECA e na lei de Reforma Psiquiátrica uma série de políticas públicas vêm sendo discutidas e deliberadas no âmbito dos conselhos e conferências com a participação da sociedade civil e do poder público No que tange à atenção ao uso de álcool e outras drogas dentro da política de saúde mental são criados dispositivos de base territorial que pressupõem a intersetorialidade um sistema inclusivo e o cuidado em liberdade38 Vejase então que as internações compulsórias de dependentes 37 Disponível em httpogloboglobocomriocrackinternacaocompulsoriade adultosdivideopinioes487379 Acesso em 1º jul 2013 38 Internação e recolhimento compulsório uma política violadora dos direitos humanos Rio de Janeiro 2013 p 15 32 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA químicos encontra forte reação negativa por parte dos profissionais diretamente ligados à Psicologia Assistência Social e aos Direitos Humanos O modelo de internação hospitalização preserva a lógica das instituições totais com uma permanente impossibilidade de o doente agir como pessoa integral como ensina goffman39 Também a ONU tem produzido documentos como reação às práticas de internação forçada em todo o planeta Em um destes documentos podese ler o seguinte A experiência internacional demonstra que a reabilitação e a reintegração de usuários de drogas passam muito mais por intervenções que respeitem os direitos humanos dos usuários e sejam adequadas às suas necessidades sociais e de saúde do que pela sua segregação em centros de tratamento40 Em relatório do chefe do Departamento de Prevenção às Drogas e Saúde do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime ONUDC gilberto guerra resta esclarecido que as Nações Unidas veem as internações compulsórias como medida de forte ineficácia Vários estudos mostram que não há evidências da eficácia dessas medidas que pelo contrário fortalecem o estigma contribuem para o processo de exclusão fragilizam vínculos sociais e aumentam o risco de infecções pelo HIV41 Temos assim fortes indicações dos profissionais diretamente ligados com o tratamento de usuários de drogas de que a restrição de liberdade não é uma boa ferramenta Sua ineficácia está por todos os cantos o que mina qualquer tentativa de insistir na hospitalização forçada sobretudo diante de novos tratamentos mais úteis e que respeitam a liberdade do usuário 39 Goffman Erving Manicômios prisões e conventos São Paulo Perspectiva 2007 p 129 40 Disponível em httpwwwunodcorglpobrazilptfrontpage20130417porquea excecaonaodeveseraregrahtml Acesso em 1 ago 2013 41 Disponível em httpwwwunodcorglpobrazilptfrontpage20130408treating drugdependencefromcoerciontocohesionhtml Acesso em 1º ago 2013 33 CLéCIO LEMOS Dessa maneira parece cair por terra o segundo grande argumento de suporte às internações forçadas de dependentes químicos A restrição de liberdade como ajuda compulsória não pode se sustentar diante do nítido descompasso com as políticas de desintoxicação mais atualizadas assim como não convencem quando vistas no enredo da história das casas de internação Em síntese a internação compulsória de dependentes químicos também não se sustenta com base na suposta proteção do usuário devendo ser rejeitada pelos seguintes motivos 1 a história da medicalização forçada demonstra uma prática higienista contra as classes menos favorecidas representando uma política de segregação social 2 o argumento da cura na verdade esconde uma ação política de gestão das desigualdades sociais que seletivamente serve para re produzir uma punição e uma ética interessante ao poder instituído 3 o entendimento de vanguarda sobre o tratamento tanto de loucos quanto de toxicodependentes preza pela lógica não institucionalizante aderindo ao movimento antimanicomial e ao modelo da nova Lei de Reforma Psiquiátrica 4 a internação compulsória não se mostra eficaz para reduzir o uso de drogas havendo atualmente outras formas de tratamento mais relevantes e que prezam pela autonomia do dependente químico 4 biopoder neoliberal entre o cachimbo e a grade P ara além dos discursos ideologizados parece que a única interpretação possível das internações forçadas de dependentes químicos passa pelo campo da estrutura política Se as políticas de contenção física encontram ao longo da história os mais diversos fundamentos todos já podem ser identificados no nível das justificações que falseiam fluxos de poder implantados em cada seio social Bem por isso com relação às internações compulsórias tentemos mais uma vez escovar a história a contrapelo42 Quadra a esta altura investigar qual funcionalidade a hospitalização forçada vem preencher na estrutura política atual o capitalismo neoliberal brasileiro No esforço de compreender o fenômeno real 42 Benjamin Walter Sobre o conceito de história Obras escolhidas 7 ed São Paulo Brasiliense 1994 v 1 34 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA devemos situálo na conjuntura política e na macroestrutura social43 Por vera Andrade já fomos bem informados de que as políticas de controle não decorrem de transformações unicamente no campo das ideias e sim de transformações no sistema social de forma que as funções declaradas tradicionalmente servem para ocultar exigências e funções latentes44 A bem da verdade os discursos vêm como consequência e não como causa Como já demonstrado os envolvidos com drogas ilícitas viraram objeto de uma dominação política reforçada nas últimas três décadas o Estado neoliberal se instala visando reorganizar um controle que atenda às demandas de uma nova conjuntura socioeconômica programada pelas elites loïc Wacquant indica o surgimento de um Estado Centauro humano com os que estão acima e animal com os que estão abaixo O novo governo da pobreza inventado pelos Estados Unidos para reforçar a normalização da insegurança social confere portanto um significado totalmente novo à noção de aliviar os pobres a contenção punitiva oferece alívio não para os pobres mas sim dos pobres mediante o desaparecimento pela força dos mais problemáticos e o encolhimento do número de pessoas que se beneficiam das políticas sociais por um lado e por outro o crescimento dos calabouços do castelo carcerário45 Um controle agudo das classes baixas é o que dita o ritmo do novo volume de clausura proporcionado pelo Estado neoliberal Nunca esquecendo que a seletividade é um dado estrutural de todos os sistemas de controle46 A mudança do Welfare State para o Estado Neoliberal 43 Baratta Alessandro Criminologia critica e crítica do direito penal 3 ed Rio de Janeiro Revan 2002 p 168 44 Andrade Vera Regina Pereira de A ilusão de segurança jurídica do controle da violência à violência do controle penal 2 ed Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 p 191 45 Wacquant Loïc Apêndice teórico um esboço do Estado neoliberal Discursos sediciosos Rio de Janeiro 1º e 2º sem 2010 ano 15 n 1718 p 143 46 Zaffaroni Eugenio Raúl Batista Nilo Alagia Alejandro Slokar Alejandro Direito penal brasileiro primeiro volume Rio de Janeiro Revan 2003 p 51 35 CLéCIO LEMOS deve então ser compreendida pela inserção do novo paradigma da insegurança decorrente da desregulação econômica e do afastamento do Estado das políticas sociais Como destaca Wacquant a grande artimanha do Neoliberalismo foi tentar transformar a insegurança social real em insegurança penal falsa Daí o grande encarceramento legitimado pela suposta escalada da violência e do perigo47 Desta forma se fixa um modelo eficientista de tolerância zero e segregação da miséria como nunca antes visto A ordem é separar fisicamente os desajustados sociais e a economia nunca produziu tantos desajustados como hoje48 Nesse bojo deve ser lida a nova caminhada em torno das internações compulsórias pois apresentam apenas uma nova face para a continuidade da exclusão dos indesejados consumidores falhos49 A se verificar no citado Protocolo de serviço especializado em abordagem social da prefeitura do Rio de Janeiro o art 1º parágrafo único deixa bem nítido que as internações compulsórias são especificamente direcionadas às populações de rua Para efeitos desta resolução são consideradas pessoas em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento de forma temporária ou permanente bem como as unidades de acolhimento para pernoite ou como moradia provisória vera malaguti batista pôde perceber tal seletividade quando analisou a difícil realidade dos jovens pobres na cidade do Rio de Janeiro apreendidos em função das drogas Havia sempre ali um 47 Wacquant Loïc Punir os pobres a nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos 3 ed rev e ampl 2007 Rio de Janeiro Revan 2003 p 39 48 Dornelles João Ricardo W Conflito e segurança entre pombos e falcões 2 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 p 61 49 Zaffaroni Eugenio Raúl BATISTA Nilo Alagia Alejandro Slokar Alejandro Direito penal brasileiro primeiro volume Rio de Janeiro Revan 2003 p 484 36 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA certo olhar seletivo50 reproduzido nos pareceres e nas decisões judiciais Portanto nada afasta a premissa de que a rede de internação forçada é um confiscar da liberdade que se soma aos mesmos padrões de exclusão do sistema social A visão seletiva do sistema penal para adolescentes infratores e a diferenciação no tratamento dado aos jovens pobres e aos jovens ricos ao lado da aceitação social que existe quanto ao consumo de drogas permitenos afirmar que o problema do sistema não é a droga em si mas o controle específico daquela parcela da juventude considerada perigosa51 A nova onda de internações que aparentemente conta com adesão de amplos seguimentos da sociedade52 indica um reclamo reacionário de grande escala infelizmente instalado na subjetividade de boa parte da sociedade brasileira atual mas ao mesmo tempo projetada e motivada por certos grupos de poder Todo movimento político repressor possui seus empreendedores morais53 mais diretamente interessados que obviamente produzem aceitação no nível discursivo Não há como ignorar a existência de um mercado interessado na questão A realidade das ditas comunidades terapêuticas são uma constante nos debates em torno da internação forçada54 Além disso devese perceber o contexto atual em torno das proximidades dos megaeventos no país indicando uma demanda imediata por encobrir a conflitividade social e a miséria aqui instalada nilo batista é certeiro ao localizar o que há de próprio na nova 50 Batista Vera Malaguti Difíceis ganhos fáceis drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro Rio de Janeiro Revan 2003 p 131 51 Idem ibidem p 135 52 Foi divulgada na mídia nacional uma pesquisa realizada pelo Datafolha segundo a qual 90 da população aprova as internações compulsórias Disponível em httpwww1 folha uolcombrcotidiano103915990apoiaminternacaoinvoluntariadeviciados shtml Acesso em 9 maio 2013 53 Becker Howard Saul Outsiders estudos de sociologia do desvio Rio de Janeiro Zahar 2008 p 158 54 O art 25 da atual lei de tóxicos indica a possibilidade de recursos públicos para unidades privadas a depender de disponibilidade orçamentária Já o PL 76632010 traz a previsão direta de atendimento em rede privada às expensas do poder público vide nova redação do art 23 2º da Lei de Tóxicos 37 CLéCIO LEMOS medida de exclusão que se apresenta no país Este programa como se vê é grosseiramente inconstitucional e ilegal atingindo no coração os avanços do Estatuto da Criança e do Adolescente e a Convenção na qual ele inspirado e restaurando as políticas higienistas autoritárias da primeira República Não obstante a assepsia social das ruas e a detenção imotivada da pobreza urbana foi saudada entusiasticamente pela mídia conservadora Não admira é imenso o pedaço do bolo dos negócios olímpicos e futebolísticos que tocará aos meios de comunicação Estranho é tal Resolução ter obtido apoio em setores do Ministério Público e mesmo do Poder Judiciário55 No mesmo sentido apontam as psicólogas Alice souza e isabel lima reforçando a relação entre a segregação dos pobres e os eventos de interesse de grupos econômicos Presenças que tanto desagradam o olhar daqueles que querem ver e melhor circular num modelo de cidade limpa saudável funcional Todo ano é possível observar a intensificação dessas operações no período imediatamente anterior às comemorações de Ano Novo e Carnaval para mencionar o mais óbvio Mas a preocupação em retirar essa população das ruas e das vistas dos transeuntes é especialmente maior em momentos que antecedem grandes eventos que mobilizam interesses do empresariado e de governantes Assim foi nos meses que precederam acontecimentos como a ECO 92 os jogos Panamericanos de 2007 os Jogos Militares de 2011 a Rio20 em 2012 e assim tem sido na época atual tempos de preparação para a Copa das Confederações de 2013 Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 201656 55 Batista Nilo Merci Loïc Internação e recolhimento compulsório uma política violadora dos direitos humanos Rio de Janeiro 2013 p 20 56 Souza Alice de Marchi Pereira Lima Isabel Costa Um dejá vu recolhimento e internação compulsória de crianças e adolescentes e a reedição de práticas de controle da pobreza na cidade do Rio de Janeiro Internação e recolhimento compulsório uma política violadora dos direitos humanos Rio de Janeiro 2013 p 13 38 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Na estrutura do Brasil neoliberal a hospitalização compulsória representa uma nova ferramenta agora mais simplificada de reforçar os altos índices de segregação já percebidos no campo penal Vale lembrar que desde a instalação do Consenso de Washington o número de pessoas presas no país teve uma elevação superior a quatro vezes ostentando hoje mais de meio milhão atrás das grades57 A nova sociedade de controle58 encontra aliados na estrada da contenção dos inadequados A internação compulsória nestes termos é facilmente compreendida como ferramenta de controle da vida agora redefinida e remodelada Vale lembrar a passagem de Agamben Uma das características essenciais da biopolítica moderna que chegará no nosso século século XX à exasperação é a sua necessidade de redefinir continuamente na vida o limiar que articula e separa aquilo que está dentro daquilo que está fora59 Percebendo todo esse quadro que se desenha aos nossos olhos maria lúcia Karam indica com palavras precisas a realidade das internações O pânico criado em torno do crack serve de pretexto para a concretização do indisfarçável objetivo de limpeza das ruas afastandose das vistas sensíveis dos autointitulados cidadãos de bem e dos tão esperados turistas os incômodos miseráveis que sem condições mínimas de sobrevivência sem amparo sem assistência sem moradia sem formação educacional sem lazer perambulam pelas ruas sem destino e encontram nas drogas crack ou outras um dos poucos alívios para suas privações e sofrimentos60 57 Os dados estão no site do Infopen Disponível em httpwwwinfopengovbr Acesso em 10 abr 2013 58 Deleuze Gilles Post scriptum sobre as sociedades de controle Conversações Rio de Janeiro Editora 34 1992 p 219226 59 Agamben Giorgio Homo sacer o poder soberano e a vida nua 2 ed Belo Horizonte Editora UFMG 2010 p 127 60 A citação se encontra no site do CedecaRJ Disponível em httpcedecarjhotglueme 39 CLéCIO LEMOS A prática higienista de segregação sobre os dependentes químicos no Brasil aflora como neutralização do excedente humano dos antissociais Mais uma vez foucault O internamento seria assim a eliminação espontânea dos associais a era clássica teria neutralizado com segura eficácia tanto mais segura quanto cega aqueles que não sem hesitação nem perigo distribuídos entre as prisões casas de correção hospitais psiquiátricos ou gabinetes de psicanalistas61 Posto isso as vãs que passam à noite recolhendo os pobres estes que insistem em usar drogas que não se vendem em farmácia conduzemnos a uma prática de higienização social readaptada a fim de tornar cada vez mais invisíveis os refugos da estrutura econômica Resta rejeitar a nova modalidade de segregação social dos miseráveis conter esse vetor biopolítico que representa um novo fôlego da mesma exclusão típica dos tempos neoliberais Em resumo a implantação da política de internação compulsória de dependentes químicos no Brasil deve ser repudiada porque representa 1 Reforço da lógica de confinamento típico do Estado Neoliberal 2 Medida de controle social das classes baixas que se avolumam diante da estrutura social profundamente desigual produzida pelo Neoliberalismo 3 Nova demanda emergencial de contenção física dos pobres decorrente dos megaeventos que se aproximam do país principalmente Copa do Mundo e Olimpíadas 5 conclusão P ostos de lado todos os argumentos legitimantes já não podemos respaldar a internação compulsória de dependentes químicos no Brasil Conforme demonstrado não pode convencer o fundamento de relatorio Acesso em 10 jul 2013 61 Foucault Michel A história da loucura na idade clássica São Paulo Perspectiva 2012 p 79 40 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA hospitalização forçada com base na defesa social pelo risco que o dependente químico supostamente representa cometendo condutas violentas e antissociais Em verdade nada prova que o dependente químico representa mais perigo do que uma pessoa não usuária e por isso não se pode justificar uma política de segregação Além disso a se lembrar os supostos crimes que podem ser cometidos por usuários furtos roubos continuam recebendo punição estatal De igual forma não se demonstra relevante o discurso de internação forçada como uma ajuda necessária diante da perda do autocontrole A confluência com o discurso médico só torna ainda mais claro o fato de que as internações são práticas higienistas na linha do positivismo criminológico Por sua vez como visto as práticas de desintoxicação mais encampadas por especialistas de vanguarda tanto da área de saúde mental quanto das ciências sociais são no sentido do cuidado em liberdade É fundamental implicar o agente no tratamento não objetificálo Por tudo resta elucidado que só se consegue compreender a campanha a favor das hospitalizações coercitivas quando se percebe uma nova demanda por ordem típica do Brasil neoliberal agora reforçada pelos grandes eventos que se aproximam do país fazendo circular cifras que não podem dividir o mesmo espaço com a pobreza visível A medida de internação forçada involuntária ou compulsória não pode ser encampada porque somente auxilia uma política de segregação das classes pobres que são expulsas do banquete da nova ordem Tal política vulnera ainda mais as classes desfavorecidas clientela tradicional das segregações sanitárias desde o advento da grande internação do século XVII possibilitando incrementar um sistema excludente desigual perverso e opressor Vale concluir que não é possível aderir a qualquer tentativa de criação de leis com o intento de instaurar tais práticas no Brasil devendo cair por terra os projetos PL 76632010 e PLS 1112010 Creio termos podido aqui atacar todos os seus motivos declarados Resistindo aos discursos de que a internação compulsória deve ser exceção e não regra fica a nossa posição a internação compulsória não deve ser exceção nem regra Ela simplesmente não pode ser 41 CLéCIO LEMOS 6 referências bibliográficas AbrAmovAy Pedro Vieira bAtistA Vera Malaguti coords Depois do grande encarceramento Rio de Janeiro Revan 2010 AgAmben Giorgio Estado de exceção Homo sacer II 2 ed São Paulo Boitempo 2003 Homo Sacer O poder soberano e a vida nua I 2 ed Belo Horizonte Editora UFMG 2004 O que resta de Auschwitz Homo sacer III São Paulo Boitempo Editorial 2008 Althusser Louis O futuro dura muito tempo Os fatos São Paulo Companhia das Letras 1992 AndrAde Vera Regina Pereira de Pelas mãos da criminologia Rio de Janeiro Revan 2013 A ilusão de segurança jurídica do controle da violência à violência do controle penal 2 ed Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 AnituA Gabriel História dos pensamentos criminológicos Rio de Janeiro Revan 2008 Assis Machado de O alienista Porto Alegre LPM 2012 bArAttA Alessandro Criminologia crítica e crítica do direito penal Rio de Janeiro Revan 1997 bAtistA Vera Malaguti O medo na cidade do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Revan 2003 Difíceis ganhos fáceis drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro Rio de Janeiro Revan 2003 bAtistA Nilo merci Loïc In Internação e recolhimento compulsório uma política violadora dos direitos humanos Rio de Janeiro 2013 becker Howard Saul Outsiders estudos de sociologia do desvio Rio de Janeiro Zahar 2008 burgiermAn Denis Russo O fim da guerra a maconha e a criação de um novo sistema para líder com as drogas São Paulo Leya 2011 cArvAlho Salo de A política criminal de drogas no Brasil 5 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2010 Antimanual de criminologia 5 ed São Paulo Saraiva 2013 cArvAlho Thiago Fabres de O direito penal do inimigo e o direito penal do homo sacer da baixada exclusão e vitimação no campo penal brasileiro Discursos Sediciosos Rio de Janeiro RevanICC ano 17 n 1920 2012 costA Jurandir Freire Ética e espelho da cultura 3 ed Rio de Janeiro Rocco 2000 História da psiquiatria no Brasil um corte ideológico 5 ed Rio de Janeiro Garamond 2007 dAvilA Fabio Roberto Ofensividade em direito penal escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos Porto Alegre Livraria do Advogado 2009 deleuze Gilles Postscriptum sobre as sociedades de controle Conversações Rio de Janeiro Editora 34 1992 dornelles João Ricardo W Conflito e segurança entre pombos e falcões 2 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 42 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA FoucAult Michel História da sexualidade a vontade de saber 21 ed Rio de Janeiro Graal 2011 Vigiar e punir 38 ed Petrópolis Vozes 2010 Em defesa da sociedade São Paulo Martins Fontes 2005 O nascimento da biopolítica São Paulo Martins Fontes 2008 A verdade e as formas jurídicas 3 ed Rio de Janeiro NAU 2002 Microfísica do poder 26 ed Rio de Janeiro Graal 2008 O nascimento da clínica 6 ed Rio de Janeiro Forense 2008 A história da loucura na idade clássica São Paulo Perspectiva 2012 Freud Sigmund O malestar na civilização São Paulo Penguin Classics Companhia das Letras 2011 gArlAnd David A cultura do controle crime e ordem social na sociedade contemporânea Rio de Janeiro Revan 2008 giorgi Alessandro de A miséria governada através do sistema penal Rio de Janeiro Revan 2006 genelhú Ricardo O médico e o direito penal v1 introdução históricocriminológica Rio de Janeiro Revan 2012 goFFmAn Erving Manicômios prisões e conventos São Paulo Perspectiva 2007 rusche George kircheimer Otto Punição e estrutura social Rio de Janeiro Revan 2004 sAntos Juarez Cirino dos A criminologia radical 3 ed Curitiba ICPC Lumen Juris 2008 WAcquAnt Loïc Punir os pobres a nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos 3 ed rev e ampl 2007 Rio de Janeiro Revan 2003 Apêndice teórico um esboço do Estado neoliberal Discursos Sediciosos Rio de Janeiro ano 15 n 1718 p 137162 1º e 2º sem 2010 zAFFAroni Eugenio Raúl A palavra dos mortos conferências de criminologia cautelar São Paulo Saraiva 2012 Em busca das penas perdidas 5 ed 2001 Rio de Janeiro Revan 1991 O inimigo no direito penal Rio de Janeiro Instituto Carioca de Criminologia Revan 2007 bAtistA Nilo AlAgiA Alejandro slokAr Alejandro Direito penal brasileiro primeiro volume Rio de Janeiro Revan 2003 os novos rumos dA políticA de drogAs enquAnto o mundo AvAnçA o brAsil corre risco de retroceder Cristiano Avila Maronna Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP 2º VicePresidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Membro da Rede Pense Livre por uma política de drogas que funcione Advogado sumário 1 Considerações introdutórias 2 O ocaso da proibição e a construção de um novo modelo de política de drogas 21 Violência 22 Corrupção 23 Encarceramento em massa 3 A política de drogas brasileira e os riscos de retrocesso que a circundam 4 O admirável mundo novo pósproibição as novas experiências reguladoras 5 À guisa de conclusão 6 Referências bibliográficas 1 considerações introdutórias O movimento por reformas nas políticas de drogas vive um momentum especial A legalização da maconha nos EUA por meio de plebiscitos realizados em novembro de 2012 e muito 44 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA especialmente a aprovação da lei uruguaia que autoriza a produção distribuição e consumo da erva representam o início de uma nova era na qual a proibição dará lugar à regulação Uruguai Washington e Colorado são hoje a grande inspiração para todos aqueles que lutam para construir uma política de drogas justa eficaz e humana A aparente rendição à realidade que tem ditado o tom das conformadas manifestações do governo federal estadunidense bem assim a protocolar reprovação manifestada pela Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes Jife relativamente à inédita iniciativa uruguaia indicam que a mudança de paradigma é inevitável Nesse sentido o avanço de leis que autorizam o uso medicinal da maconha inclusive fora dos EUA como ocorreu na República Checa e em Israel a institucionalização de iniciativas como os clubes sociais canábicos no País Basco na Espanha e os crescentes e inescondíveis sinais de insatisfação de diversas nações com relação ao modelo de controle de drogas vigente no planeta apontam que o ocaso do modelo proibicionista é irreversível Mais e mais pessoas estão se convencendo de que o uso de psicoativos não deve ser tratado como um problema do sistema de justiça criminal Para consolidar esse processo de mudança internacional o papel desempenhado pela América Latina em especial pelo Brasil é estratégico Enquanto grande parte de seus vizinhos deixou de incriminar o porte para consumo pessoal pela via legislativa ou por ordem judicial Argentina Uruguai Chile Peru Equador Colômbia no Brasil a Lei 113432006 tipifica como crime referida conduta ainda que cominando sanções alternativas à prisão substitutivos penais Além disso a lei brasileira não diferencia usuários de traficantes com base em critérios objetivos como por exemplo a quantidade de droga apreendida o que propicia estímulo ao encarceramento em massa em razão do enquadramento de jovens usuários das classes subalternizadas como traficantes O quadro tende a piorar com a perspectiva de aprovação de projeto de lei de autoria do deputado federal osmar terra PMDBRS que está tramitando no Senado Federal 45 Cristiano avila Maronna 2 o ocaso da proibição e a construção de um novo modelo de política de drogas A pós mais de cem anos de vigência o proibicionismo que pretende impor um mundo livre de certas drogas mostrouse um rematado miserável e retumbante fracasso Malgrado o altíssimo investimento financeiro bem como o enorme custo humano e social da war on drugs as drogas ilegais nunca foram tão abundantes tão acessíveis tão baratas e tão potentes como nos dias atuais1 Sob qualquer ângulo a política de drogas proibicionista falhou Jamais viveremos em um drug free world E os danos causados pelo modelo repressivo são ainda mais graves do que o uso problemático de certas substâncias psicoativas entre os quais se destacam a violência a corrupção e o encarceramento em massa2 21 violência S egundo o ideário proibicionista a violência da war on drugs é consequência direta do uso de drogas de modo que o usuário é em última análise o responsável por essa situação grave que compromete a segurança da sociedade em todo o planeta Essa conclusão é falaciosa e não resiste aos fatos Em primeiro lugar é preciso deixar claro que a relação de seres humanos com substâncias psicoativas é ancestral sempre existiu 1 Werb D kerr T nosyk B et al The temporal relationship between drug supply indicators an audit of international government surveillance systems BMJ Open 20133 e 003077 doi101136bmjopen2013 003077 2 gAry S Becker kevin M Murphy no artigo Have We Lost the War on Drugs After more than four decades of a failed experiment the human cost has become too high It is time to consider the decriminalization of drug use and the drug market publicado no Wall Street Journal em 04012012 afirmam The paradox of the war on drugs is that the harder governments push the fight the higher drug prices become to compensate for the greater risks That leads to larger profits for traffickers who avoid being punished This is why larger drug gangs often benefit from a tougher war on drugs especially if the war mainly targets smallfry dealers and not the major drug gangs Moreover to the extent that a more aggressive war on drugs leads dealers to respond with higher levels of violence and corruption an increase in enforcement can exacerbate the costs imposed on society Disponível em httponlinewsjcomnewsarticlesSB100014241278873243740045782 17682305605070 Acesso em 11 dez 2013 46 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA e sempre existirá Tratase da busca por alterações da consciência ordinária de uma constante antropológica3 Jamais houve violência nessa relação até que se optou pelo modelo bélico E a violência é ínsita à guerra No caso brasileiro a violência é um problema grave Segundo o Mapa da Violência 20134 o número de homicídios no Brasil especialmente os praticados com arma de fogo é comparável ao de zonas de guerra Somos o primeiro país no ranking de homicídios por arma de fogo 35 mil por ano e com o maior número de cidades 15 entre as cinquenta mais violentas do globo5 Em 2010 mais de 50 mil pessoas foram vítimas de homicídio taxa de 274 pessoas por 100 mil habitantes As estatísticas mostram que em nosso país está em curso uma guerra contra os pobres as principais vítimas da violência Mostram também que a letalidade da nossa polícia é muito superior à de outros países6 Mostram ainda que a violência no trânsito é uma das maiores do mundo Mostram enfim que o problema da violência no Brasil nada tem a ver com o consumo de drogas ilegais mas com desigualdade e carência de políticas públicas capazes de promover efetivamente a inclusão social dos mais pobres e de garantir a segurança de todos Nesse contexto é urgente a desmilitarização da polícia O modelo de polícia militarizada verdadeiro entulho autoritário é incompatível com o regime democrático e dificulta a consolidação de uma cultura de respeito aos direitos humanos em nossa sociedade Igualmente o uso das Forças Armadas em operações de combate a organizações criminosas que se dedicam ao comércio varejista de drogas ilegais corolário do modelo de combate militarizado próprio 3 hAssemer Winfried Descriminalização dos crimes de drogas Direito penal Fundamentos estrutura política Porto Alegre Sergio Antonio Fabris 2008 p 326 4 httpwwwmapadaviolenciaorgbrindexphp Acesso em 6 dez 2013 5 mAck Daniel Insegurança latina passa pelo controle ineficiente de armas Disponível em httpwww1folhauolcombrfspmundo146965insegurancalatinapassa pelocontroleineficientedearmasshtml Acesso em 15 jan 2014 6 O Conselho de Direitos Humanos da ONU recomendou ao Brasil a extinção da Polícia Militar como forma de combater execuções extrajudiciais Cf Conselho da ONU recomenda fim da Polícia Militar no Brasi Disponível em httpg1globocom mundonoticia201205paisesdaonurecomendamfimdapoliciamilitarnobrasil html Acesso em 11 dez 2013 47 Cristiano avila Maronna do paradigma proibicionista representa opção autoritária de controle social em nome da segurança nacional própria de regimes ditatoriais7 22 corrupção A corrupção também é um problema grave no Brasil Em 2013 o país ficou em 72º lugar entre 177 países segundo o Índice de Percepção de Corrupção IPC8 divulgado pela Transparência Internacional com a nota 42 em uma escala que vai de zero mais corrupto a 100 menos corrupto O ranking é considerado a mais importante avaliação sobre como a corrupção é percebida no setor público de cada país Quando se trata da questão das drogas a corrupção está sempre presente Não por acaso o principal beneficiário da proibição de certas drogas é o crime organizado transnacional cujo potencial corruptor é quase ilimitado Nos EUA durante a Lei Seca Volstead Act o comércio clandestino de bebidas alcoólicas proporcionou vultosos ganhos financeiros para figuras como Al Capone Meyer Lansky e Lucky Luciano entre outros capi mafiosos9 Nesse caso a proibição também não foi capaz de impedir que pessoas ingerissem bebidas alcoólicas mas causou muitos danos sociais como o aumento da corrupção e de problemas de saúde relacionados ao consumo de bebidas alcoólicas produzidas clandestinamente em precárias condições sanitárias No Brasil as organizações criminosas que comandam o negócio das drogas dependem da colaboração de agentes estatais Há inúmeros casos envolvendo corrupção de membros do Ministério Público Executivo Legislativo e Judiciário em todos os âmbitos mas é na polícia que esse problema se torna mais visível 7 bAtistA Nilo Ainda há tempo de salvar as Forças Armadas da cilada da militarização da segurança pública In bAtistA Vera Malaguti org Paz armada Rio de Janeiro Revan 2012 p 4754 8 Disponível em httpcpitransparencyorgcpi2013results Acesso em 11 dez 2013 9 english T J O noturno de Havana como a máfia conquistou Cuba e a perdeu para a revolução Trad Santiago Nazarian Editora Seoman 48 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA O problema da corrupção na polícia existe há muito tempo10 Falando especificamente do Estado de São Paulo no qual a Polícia Judiciária possui um Departamento Estadual de Repressão ao Narcotráfico Denarc a suspeita de vínculos entre policiais e criminosos reaparece de tempos em tempos11 Em 2007 ao ser preso o traficante colombiano Juan Carlos Abadia declarou que a melhor forma de combater o tráfico de drogas em São Paulo seria fechar o Denarc12 Embora cada Estado da Federação tenha sua própria estrutura o quadro não é muito diferente Seria injusto contudo atribuir à polícia a integral responsabilidade pelo malogro da war on drugs Como a repressão penal ao tráfico de drogas está fadada ao fracasso como demonstram os últimos cem anos de proibicionismo buscouse perseguir o lucro advindo dessa atividade criminosa por meio da incriminação da lavagem de dinheiro a partir da Convenção de Viena de 1988 A ideia deu tão certo que o legislador brasileiro influenciado pelo Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro Gafi decidiu suprimir o rol de crimes antecedentes expandindo a incidência do tipo da lavagem a todo e qualquer delito inclusive contravenção penal nos termos do que dispõe a Lei 126832012 Além disso a nova lei ampliou as obrigações de fiscalização impostas a particulares com base na constatação de que sem a colaboração do setor privado o Estado não reúne condições de reprimir a lavagem de dinheiro Esse expansionismo penal desmedido foi objeto de severas críticas por parte dos estudiosos13 e gera problemas graves na aplicação prática do referido diploma 10 Cf mingArdi Guaracy Tiras gansos e trutas São Paulo Scritta 1992 11 MP flagra 18 casos de corrupção policial em investigação sobre facção criminosa de SP grampos mostram relatos de pagamento de propina para que traficantes não sejam autuados em SP httpogloboglobocompaismpflagra18casosdecorrupcao policialeminvestigacaosobrefaccaocriminosadesp10385018 Acesso em 11 dez 2013 Operação prende chefe de inteligência do Denarc em SP Acesso em 11 dez 2013 12 Abadía Para acabar com tráfico basta fechar o Denarc denúncias de ligação com o tráfico de drogas são comuns no departamento da polícia paulista Disponível em httpacervoestadaocombrnoticiasacervoabadiaparaacabarcomtraficobasta fecharodenarc91560htm Acesso em 11 dez 2013 13 Por todos cf Nova lei de lavagem de dinheiro o excesso e a banalização editorial Boletim IBCCRIM 237 ago 2012 49 Cristiano avila Maronna A lavagem de dinheiro representa hoje um dos grandes desafios globais e está intimamente relacionada à corrupção O dinheiro sujo normalmente trilha os conhecidos itinerários dos centros financeiros offshore e de paraísos fiscais e conta com a ativa colaboração dos bancos HSBC Western Union Bank of America JP Morgan Chase Co Citigroup Wachovia entre muitos outros grandes e lucrativos bancos foram acusados pelo governo americano de não cumprir as regras antilavagem de dinheiro14 Curiosamente o negócio da droga gera riqueza nos países consumidores como EUA e membros da Comunidade Europeia e não nos países produtores os quais arcam com as mazelas decorrentes da war on drugs especialmente violência e corrupção Estudo conduzido por Alejandro gavíria e daniel mejía Antidrugs Policies in Colombia Successes Failures and Wrong Turns revelou que menos de 3 do valor gerado pela venda de cocaína fica na Colômbia e que mais de 97 é capitalizado pelas organizações criminosas e pelos bancos que lavam o dinheiro do tráfico em países centrais consumidores15 Os casos da Colômbia e do México são paradigmáticos na medida em que evidenciam o custo social econômico e político suportado por países produtores de drogas ilegais enquanto nos países consumidores especialmente nos EUA e na GrãBretanha os lucros do tráfico de drogas são usufruídos No Brasil a aprovação da Lei Anticorrupção que responsabiliza administrativa e civilmente pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública nacional ou estrangeira Lei 128462013 representa uma evolução nos mecanismos de controle social destinados a coibir práticas corporativas ilegais 14 conroy Bill Banks Are Where the Money Is In The Drug War Disponível em httpnarcospherenarconewscomnotebookbillconroy201212banksarewhere moneydrugwar Acesso em 11 dez 2013 15 Disponível em httpwwwtheguardiancomworld2012jun02westernbanks colombiancocainetrade Acesso em 12 dez 2013 50 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 23 encarceramento em massa O superencarceramento é uma consequência inevitável da war on drugs A seletividade da intervenção penal faz recair sobre as classes subalternizadas a pesada tenaz da repressão A prisão como negócio é a ideia subjacente ao discurso punitivista que prega a privação da liberdade como única sanção adequada ao combate ao crime O fetiche da pena de prisão elevou o país à condição de quarta maior população carcerária do planeta A ausência de critério objetivo previsto em lei capaz de reduzir a larga margem de discricionariedade que caracteriza a classificação jurídica da conduta de alguém flagrado na posse de drogas ilegais confere aos operadores do direito em especial os juízes uma larga margem de discricionariedade que se resolve no mais das vezes pelo critério censitário Essa ausência de critério objetivo transforma os mais pobres em traficantes potenciais ao passo em que os mais ricos tendem a ser enquadrados como usuários Pesquisas revelam o perfil do traficante de drogas no Brasil jovens entre 18 e 28 anos do sexo masculino afrodescendentes com baixa escolaridade sem antecedentes criminais presos em flagrante na via pública com pequena quantidade de droga sem prévio trabalho de inteligência policial16 Muito embora a população brasileira tenha crescido apenas 5 entre 2005 e 2012 no mesmo período a população carcerária cresceu 80 Em 2005 apenas 11 dos presos compunhamse de acusados ou condenados pelo crime de tráfico de drogas contra 25 em 201217 No caso dos menores de dezoito anos em 2002 os adolescentes submetidos a medidas restritivas de liberdade em especial a internação por tráfico de drogas representavam 75 do total 16 boiteux Luciana cAstilho Ela Wiecko Volkmer de vArgAs Beatriz bAtistA Vanessa Oliveira PrAdo Geraldo Luiz Mascarenhas JAPiAssu Carlos Eduardo Adriano Tráfico de drogas e constituição UnBUFRJ 2009 Jesus Maria Gorete Marques de oi Amanda Hildebrand rochA Thiago Thadeu da lAgAttA Pedro Prisão provisória e Lei de Drogas um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo Núcleo de Estudos da Violência da USP 2011 Drogas e prisão provisória Rede de Justiça Criminal 2013 17 custódio Rafael diAs Rafael Drogas e pobreza Folha de S Paulo 01062013 51 Cristiano avila Maronna Em 2011 esse índice chegou a 26618 Para completar o quadro desolador na área penitenciária no lugar de repensar a pena de prisão a fim de que ela seja aplicada como medida de ultima et extrema ratio propõese a privatização de presídios como solução Bem por isso em alentado editorial o Boletim IBCCRIM de junho de 2013 se posicionou contra a ideia de privatização de presídios Quem lucrará então com a lógica atraente do sistema de PPPs utilizado para a administração carcerária O Brasil é hoje o quarto país que mais prende no mundo atrás de EUA Rússia e China Nossos quase 550 mil detentos estão submetidos a graves violações de direitos humanos porque o Estado ao privilegiar o aprisionamento como verdadeira panaceia a todas as questões de segurança pública não tem sido e não será capaz de prover condições mínimas de dignidade A política habitacional reduziuse à construção de presídios na fina ironia de Nilo Batista e nada disso foi capaz de motivar ações transformadoras A privatização dos presídios consolidará a lógica perversa segundo a qual a prisão é um negócio E o business penitenciário tem tudo para ser muito lucrativo embora esteja claro que como política pública seja uma tragédia anunciada O sistema prisional brasileiro e as suas PPPs Boletim IBCCRIM 247 A questão prisional no Brasil continua a representar um grave atentado aos direitos humanos Com a perspectiva de privatização dos presídios será ainda mais difícil quebrar o círculo vicioso que nos levou ao caos penitenciário 3 A política de drogas brasileira e os riscos de retrocesso que a circundam D esde 2006 com a entrada em vigor da Lei 11343 o porte de drogas para consumo pessoal não mais é objeto de pena 18 Triplica parcela de jovens internados por tráfico Folha de S Paulo 13082013 52 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA privativa de liberdade conforme dispõe o art 28 daquele diploma Nada obstante a mudança da lei de drogas implicou o aumento da pena mínima cominada ao tráfico de drogas de três para cinco anos de reclusão com o intuito de impedir a substituição da pena privativa por restritiva de direitos em casos de tráfico de drogas substituição esta que o Supremo Tribunal Federal passou a admitir sob a égide da lei anterior Lei 6368197619 O resultado foi o superencarceramento ver 23 supra Apesar de a nova lei conter previsão expressa vedando a substituição da prisão por penas alternativas a Suprema Corte declaroua inconstitucional20 reafirmando o cânone segundo o qual 19 Sentença penal Condenação Tráfico de entorpecente Crime hediondo Pena privativa de liberdade Substituição por restritiva de direitos Admissibilidade Previsão legal de cumprimento em regime integralmente fechado Irrelevância Distinção entre aplicação e cumprimento de pena HC deferido para restabelecimento da sentença de primeiro grau Interpretação dos arts 12 e 44 do CP e das Leis 63681976 80721990 e 97141998 Precedentes A previsão legal de regime integralmente fechado em caso de crime hediondo para cumprimento de pena privativa de liberdade não impede seja esta substituída por restritiva de direitos HC 84928MG rel Cezar Peluso 1ª T j 270905 vu DJU 11112005 p 29 20 Habeas corpus Tráfico de drogas Art 44 da lei 113432006 impossibilidade de conversão da pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos Declaração incidental de inconstitucionalidade Ofensa à garantia constitucional da individualização da pena inciso XLVI do art 5º da CF1988 Ordem parcialmente concedida 1 O processo de individualização da pena é um caminhar no rumo da personalização da resposta punitiva do Estado desenvolvendose em três momentos individuados e complementares o legislativo o judicial e o executivo Logo a lei comum não tem a força de subtrair do juiz sentenciante o poderdever de impor ao delinqüente a sanção criminal que a ele juiz afigurarse como expressão de um concreto balanceamento ou de uma empírica ponderação de circunstâncias objetivas com protagonizações subjetivas do fatotipo Implicando essa ponderação em concreto a opção jurídicopositiva pela prevalência do razoável sobre o racional ditada pelo permanente esforço do julgador para conciliar segurança jurídica e justiça material 2 No momento sentencial da dosimetria da pena o juiz sentenciante se movimenta com ineliminável discricionariedade entre aplicar a pena de privação ou de restrição da liberdade do condenado e uma outra que já não tenha por objeto esse bem jurídico maior da liberdade física do sentenciado Pelo que é vedado subtrair da instância julgadora a possibilidade de se movimentar com certa discricionariedade nos quadrantes da alternatividade sancionatória 3 As penas restritivas de direitos são em essência uma alternativa aos efeitos certamente traumáticos estigmatizantes e onerosos do cárcere Não é à toa que todas elas são comumente chamadas de penas alternativas pois essa é mesmo a sua natureza constituirse num substitutivo ao encarceramento e suas seqüelas E o fato é que a pena privativa de liberdade corporal não é a única a cumprir a função retributivoressocializadora ou restritivopreventiva da sanção penal As demais penas também são vocacionadas para esse geminado papel 53 Cristiano avila Maronna a definição da resposta estatal é matéria afeta à reserva da jurisdição sendo defeso ao legislador impor restrições apriorísticas desse jaez uma vez que tal raciocínio implicaria ampliação de regras restritivas de direitos de certo modo seguindo a mesma trilha de decisões anteriores como por exemplo a discussão a respeito da compatibilidade entre a hediondez do tráfico e a possibilidade de aplicação do sursis21 Apesar disso a cultura judiciária continua a mesma de modo que são raríssimos os casos de condenação por tráfico de drogas nos quais são aplicados substitutivos penais Vivemos sob a égide do fetiche da prisão e do desprezo por sanção alternativa Como tudo o que está ruim pode piorar surgiu no cenário o Projeto de Lei 76632010 de autoria do deputado federal osmar terra PMDBRS que se aprovado alterará a lei de drogas para pior Entre as medidas propostas pelo deputado terra um ferrenho defensor do proibicionismo com grande influência na área de da retribuiçãoprevençãoressocialização e ninguém melhor do que o juiz natural da causa para saber no caso concreto qual o tipo alternativo de reprimenda é suficiente para castigar e ao mesmo tempo recuperar socialmente o apenado prevenindo comportamentos do gênero 4 No plano dos tratados e convenções internacionais aprovados e promulgados pelo Estado brasileiro é conferido tratamento diferenciado ao tráfico ilícito de entorpecentes que se caracterize pelo seu menor potencial ofensivo Tratamento diferenciado esse para possibilitar alternativas ao encarceramento É o caso da Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas incorporada ao direito interno pelo Decreto 154 de 26 de junho de 1991 Norma supralegal de hierarquia intermediária portanto que autoriza cada Estado soberano a adotar norma comum interna que viabilize a aplicação da pena substitutiva a restritiva de direitos no aludido crime de tráfico ilícito de entorpecentes 5 Ordem parcialmente concedida tão somente para remover o óbice da parte final do art 44 da Lei 113432006 assim como da expressão análoga vedada a conversão em penas restritivas de direitos constante do 4º do art 33 do mesmo diploma legal Declaração incidental de inconstitucionalidade com efeito ex nunc da proibição de substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos determinandose ao Juízo da execução penal que faça a avaliação das condições objetivas e subjetivas da convolação em causa na concreta situação do paciente STF Pleno HC 97256 rel Ayres Britto mv j 01092010 21 Normas penais Interpretações As normas penais restritivas de direitos hão de ser interpretadas de forma teleológica de modo a confirmar que as leis são feitas para os homens devendo ser afastados enfoques ampliativos Suspensão condicional da pena Crime hediondo Compatibilidade A interpretação sistemática dos textos relativos aos crimes hediondos e à suspensão condicional da pena conduz à conclusão sobre a compatibilidade entre ambos STF 1ª T HC 84414 rel Marco Aurélio vu j 14092004 54 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA drogas do governo federal destacamse o financiamento público de comunidades terapêuticas e religiosas a expansão da internação forçada como remédio para a epidemia de crack e o aumento da pena mínima cominada para o tráfico de drogas de cinco para oito anos de reclusão quando o agente exerce o comando individual ou coletivo de organização criminosa Referida propositura não altera nenhum dos graves problemas decorrentes da proibição como a violência a corrupção e o encarceramento em massa nesse caso específico o aumento da pena deve agravar o superencarceramento Após aprovação na Câmara dos Deputados sem que tenha havido debate plural atualmente o projeto tramita no Senado Federal PLC 372013 Fato é que a política de drogas no Brasil tem como foco principal o crack A despeito de existir no Brasil mais de dez milhões de usuários problemáticos de álcool de acordo com o II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas Lenad divulgado em abril de 2013 Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Politicas Públicas do Álcool e Outras Drogas 2013 é no crack que se concentram as atenções da mídia e os esforços governamentais O poder econômico da indústria de bebidas alcoólicas que investe pesadamente em anúncios publicitários e no financiamento de campanhas políticas explica a negligência com esse grave problema de saúde pública A suposta epidemia de uso de crack no Brasil não comprovada pelo Lenad deu azo a uma indevida e ilegal massificação da internação involuntária transformada em pilar central da política de drogas no Brasil contemporâneo A internação forçada para casos de dependência de crack baseiase exclusivamente na estratégia do não uso da abstinência Tratase de modelo de contenção ancorado na ideologia da guerra às drogas A internação gera segregação violência ruptura massificação manipulação espoliação marginalização e exclusão Há também aspectos higienistas e de medicalização dos problemas sociais A iniciativa contraria diretriz consagrada na Lei Antimanicomial segundo a qual o tratamento da pessoa portadora de transtornos 55 Cristiano avila Maronna mentais entre os quais a drogadição deve ocorrer em ambiente terapêutico adequado consentâneo com suas necessidades pelos meios menos invasivos possíveis Nesse sentido paradigmática decisão judicial O pedido foi requerido com base na Lei 1021601 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais Essa lei constituiu as bases da Reforma Psiquiátrica Brasileira tendo tramitado por 11 anos no Congresso A história da Psiquiatria é marcada pelo asilamento e tratamento desumano aos chamados doentes mentais já que a própria existência da doença mental é controvertida na própria Psiquiatria A Lei nº 1021601 pretendeu romper com essa ordem O objetivo foi privilegiar a desospitalização dos internos nos manicômios com a sua extinção progressiva Contudo o art 6º do referido diploma legal manteve a internação psiquiátrica de modo excepcional e sempre mediante laudo médico São 3 as modalidades 1 voluntária 2 involuntária 3 compulsória que é a determinada pelo Poder Judiciário e hipótese dos autos O art 9º por sua vez dispõe que a internação compulsória será determinada de acordo com a legislação vigente e pelo juiz competente Dessa forma devese procurar no ordenamento jurídico outra lei que não a lei nº 1021601 que determine a internação compulsória Atualmente as leis que contém essa autorização são os art 99 da LEP bem como o art 319 VIII do CPP que tratam da aplicação da medida de segurança de internação provisória para a hipótese de uma pessoa semi ou inimputável cometer um ato definido como crime Dizse atualmente pois está tramitando no Senado o PLC 3713 antigo PL 766311 que altera a lei de drogas Lei nº 1134306 e passará a autorizar a internação forçada de usuários de drogas o que leva a uma conclusão óbvia se a lei de drogas irá passar a prever a internação forçada de usuários de drogas logo atualmente não há qualquer dispositivo legal que autorize tal ato Desse modo considerase ilegal qualquer pedido nesse sentido pedido juridicamente impossível pois não há no ordenamento 56 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA jurídico brasileiro qualquer norma que autorize a internação compulsória de um dependente químico que não tenha cometido um crime ou tenha sido interditado para esse fim Assim o pedido de internação compulsória desacompanhado da interdição da pessoa a que se pretende internar não encontra amparo no nosso ordenamento jurídico Ainda que por amor ao debate considerese legalmente possível tal pedido mesmo que acompanhado do pedido de interdição terse ia que equiparar o dependente químico a uma pessoa com transtorno mental e aí sim aplicar a Lei nº 1021601 Todavia entendese impossível tal equiparação eis que o usuário de drogas não possui qualquer doença mental mas sim um transtorno comportamental Esse é o entendimento da Psiquiatria Crítica mais abalizada Visto sob o ângulo da Constituição o deferimento de internações compulsórias de dependentes químicos é ainda mais assustador Violamse a um só tempo os direitos constitucionais da liberdade de locomoção da dignidade da pessoa humana e especialmente da saúde muito embora grande parte das decisões favoráveis utilizem tais argumentos Ao contrário a própria ONU não recomenda a internação forçada equiparandoa à tortura conforme o Relatório da Comissão de Direitos Humanos da ONU datado de em 05 de março de 2013 Cuidados médicos que causam grande sofrimento sem nenhuma razão justificável podem ser considerados um tratamento cruel desumano ou degradante e se há envolvimento do Estado e intenção específica é tortura A institucionalização não consensual imprópria ou desnecessária de indivíduos pode constituir tortura ou maustratos bem como o uso da força para além do que é estritamente necessário grifei No caso em tela o laudo médico produzido pelo próprio Ministério Público fls 2930 é expresso Peter não é portador de uma patologia mental incapacitante mas de uma dependência química que uma vez tratada devolve o estado mental do paciente ás suas funções plenas grifei O relatório do CAPSAD fls 8283 atesta que Peter não aderiu ao tratamento especialmente em razão do contexto familiar em que seu pai é usuário de álcool e conforme relato da própria mãe provoca o seu filho 57 Cristiano avila Maronna Entendese assim que o tratamento forçado de dependentes químicos além de ser inconstitucional e ilegal é também ineficaz Isso porque se não houver o desejo de parar do paciente a cada retorno de uma internação forçada haverá uma recaída No caso em questão é notória a necessidade de tratamento de toda a família No tocante ao tratamento da dependência química as experiências em países europeus que sempre tiveram taxas altíssimas de mortes por abuso de drogas demonstram que é ineficaz uma política baseada exclusivamente em internação cerca de 97 dos internados apresentam recaídas Hughes e Stevens2007 Conforme Internacional Drug Policy Consortium tratamentos que tenham a abstinência total como foco são insuficientes para reduzir o uso de drogas e os danos associados a ele Agências da ONU recomendaram a extinção das internações compulsórias e dos centros de reabilitação por não haver evidências científicas de que estes métodos são eficazes no tratamento de dependentes químicos UNAIDS2012 Especificamente em relação ao crack cujos usuários são marginalizados socialmente e fazem uso simultâneo de mais de uma droga lícita ou ilícita o tratamento é mais complexo Evidências internacionais indicam que para o sucesso do tratamento são necessárias intervenções psicossociais com a participação da comunidade e do meio cultural No entanto essas intervenções só são efetivas quando é estabelecido um vínculo de confiança com o dependente químico que opta voluntariamente pelo tratamento Connolly e Donavan2008 O Poder Judiciário é o guardião natural dos Direitos Humanos Não se pode de modo algum e sob nenhum fundamento admitir qualquer violação de direitos humanos por parte de seu guardião Processo nº8592072012 Revogação de internação compulsória de dependente químico en httpajdorgbrdecisoesver phpidConteudo44 acesso em 110214 Malgrado a complexidade inerente ao consumo de crack que envolve não apenas dependência química mas também e especialmente exclusão social a opção primeira pela internação involuntária e pelo tratamento baseado na abstinência revela a adesão 58 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA ao fracassado modelo de contenção ancorado na ideologia de guerra às drogas A internação à força em instituições totais com características asilares e desprovidas dos recursos necessários à assistência integral tem baixíssima taxa de êxito e representa a medicalização dos problemas sociais produzindo higienismo e dependência institucional A incapacidade do sistema público abre espaço para interesses privados das clínicas particulares e mesmo comunidades terapêuticas e religiosas Além disso a concepção da internação como primeira opção cria dupla exclusão cuidados inadequados e alienação da sociedade ampliando a marginalização e a expoliação de quem deveria ser incluído e cuidado Compreendida a saúde como bem estar biopsicossocial diagnóstico e tratamento devem levar em conta as condições globais da sociedade Compulsória deve ser a cidadania Por isso o tratamento deve buscar a transformação pelo desenvolvimento da autoestima e criatividade do acolhimento e integração da solidariedade e reciprocidade equilíbrio e diversidade Nesse contexto a intervenção mais adequada é a estratégia da redução de danos que prescinde do modelo hospitalocêntrico e baseia o tratamento na humanização com a finalidade de reinserção da pessoa em seu meio social Apenas quando o tratamento extra hospitalar se mostrar insuficiente em casos de extrema e comprovada necessidade deve a internação ser decretada e ainda assim somente pelo tempo mínimo indispensável E basta que o médico psiquiatra determine a internação sendo despicienda a intervenção de qualquer operador do direito Para ter sucesso o tratamento deve ser compreendido como um processo construído em conjunto com a equipe terapêutica a serviço do indivíduo não bastando a mera alegação de necessidade e utilidade para a defesa social ou para a tranquilidade da maioria Abrir no lugar de fechar Cuidar no lugar de excluir Tratar no lugar de isolar Nesse diapasão a estratégia de redução de danos pode ser definida como um conjunto de estratégias que visam minimizar os danos 59 Cristiano avila Maronna causados pelo uso de diferentes drogas sem necessariamente exigir a abstinência do seu uso uma política humanista e pragmática que visa a melhora do quadro geral do cidadão que usa drogas sem que lhe seja exigido o absenteísmo ou imposta a renúncia ao consumo dessas substâncias22 A redução de danos possui assento constitucional tendo em vista que o art 196 da Carta Política dispõe ser a saúde direito de todos e dever do Estado garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos Nesse contexto as intervenções de saúde dirigidas aos usuários e dependentes de álcool e outras drogas devem estar baseadas na melhoria da qualidade de vida das pessoas A redução de danos sociais e à saúde decorrentes do uso de produtos substâncias ou drogas que causem dependência deve desenvolverse por meio de ações de saúde dirigidas a usuários ou a dependentes que não podem não conseguem ou não querem interromper o referido uso tendo como objetivo reduzir os riscos associados sem necessariamente intervir na oferta ou no consumo Apesar de tudo isso ainda hoje a redução de danos por não pautarse pela ideia de abstinência não uso é invariavelmente confundida com a apologia ao crime e o incentivo ao uso de drogas de modo que referida estratégia situase em uma espécie de limbo jurídico uma zona cinzenta entre o legal e o ilegal Na realidade a redução de danos não estimula o consumo de drogas legais ou ilegais mas não ignora o fato incontroverso de que pessoas há que usam drogas legais ou ilegais E que nem todas estas pessoas que usam drogas legais ou ilegais estão dispostas a absterse do seu uso E que em relação a estas pessoas sob a perspectiva da saúde pública é possível informar a respeito da ação e dos efeitos das drogas e ainda como reduzir os riscos de conseqüências negativas advindas do uso de drogas A característica da estratégia de redução de danos abordagem 22 ribeiro Maurides de Melo Políticas Públicas e a questão das drogas O impacto da política de redução de danos na legislação brasileira de drogas Dissertação apresentada ao Departamento de Direito Penal Medicina Legal e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Direito 2011 pp 4849 60 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA pragmática que assume o fato de que drogas ilegais são disponíveis que existem indivíduos que escolhem usálas e que é possível minimizar o risco de sua administração é justamente a compreensão de que a abstinência não é a única meta a ser atingida 4 o admirável mundo novo pósproibição as novas experiências reguladoras D e acordo com o Relatório Anual sobre Drogas 2013 do Escritório da ONU para Drogas e Crime UNODC a maconha é a droga ilegal mais consumida do planeta com cerca de 180 milhões de usuários Não por acaso as experiências reguladoras têm como objeto a maconha que é a droga ilegal menos nociva à saúde menos nociva inclusive do que álcool e tabaco23 substâncias socialmente toleradas e submetidas a regime de controle não proibicionista Desde a experiência holandesa de permitir venda e consumo de maconha em cafés em meados da década de 1970 passando pela prescrição médica da erva nos EUA autorizada em primeiro lugar na Califórnia por ordem do juiz Francis L Young de Orange County em 1988 até os Clubes Sociais Canábicos do País Basco na Espanha na década de 199024 a marijuana é a droga ilegal mais presente em iniciativas inovadoras em termos de política de drogas A aprovação plebiscitária da regulação da venda e do consumo de maconha ocorrida nos EUA em 2012 nos estados de Washington e Colorado e muito especialmente a inédita aprovação legislativa da regulação pelo Uruguai no fim de 2013 representam não apenas o mais contundente desafio à Single Convention de 1961 e seus consectários mas também a perspectiva de mudança no cenário global das políticas de drogas no curto e 23 nutt David et al Development of a rational scale to assess the harm of drugs of potential misuse Lancet 2007 369 104753 24 Alonso Martin Barriuso La prohibicíon de drogas del tabu moral a la desobediência civil In ArAnA Xabier husAk Douglas sheerer Sebastian coords Globalización y drogas políticas sobre drogas derechos humanos y reducción de riesgos Instituto Internacional de Sociología Jurídica de Oñati Dikinson 2003 p 83115 61 Cristiano avila Maronna médio prazos Grosso modo podese dizer que o modelo uruguaio pende para o estatismo enquanto no Colorado e em Washington a regulação baseiase na ideia de livre mercado Nada obstante em cada um dos três modelos há divergências e convergências em relação a diversos aspectos mas o fio condutor que os orienta a todos é a defesa dos direitos humanos e a adoção de estratégias de redução de danos à saúde 5 à guisa de conclusão O consenso em torno do fracasso da proibição é crescente em todo o mundo Proibir pessoas adultas de consumir substâncias psicoativas é ilegítimo porque não compete ao Estado tratar cidadãos com paternalismo Além disso a guerra às drogas provocou males muito mais graves do que o uso problemático de certas substâncias E não há nenhuma base científica para a diferenciação entre drogas legais e ilegais A longevidade do proibicionismo pode ser explicada pelos interesses políticos e econômicos que o sustentam A esse respeito quando o estado da Califórnia realizou plebiscito a respeito da legalização da maconha em 2012 com a vitória do não por uma apertada margem de 54 contra 46 dos que votaram sim os principais financiadores da campanha do não foram sindicatos de policiais e guardas prisionais corporações que se dedicam a construir e gerir presídios privados empresas produtoras de bebidas alcoólicas especialmente cerveja e corporações farmacêuticas A manutenção do consenso a respeito da guerra às drogas tornase cada dia mais difícil como revelou o jornal britânico The Guardian25 o que sugere possibilidade concreta de mudança no rumo da política de drogas global em 2016 quando a Assembleia Geral da ONU irá se reunir em sessão especial para revisar os tratados que embasam o proibicionismo O Brasil apresenta índices de consumo de moderadores de 25 httpwwwtheguardiancompolitics2013nov30undrugspolicysplitleakedpaper print Acesso em 9 jan 2014 62 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA apetite e de drogas prescritas para casos de déficit de atenção e hiperatividade que sugerem abuso mas as nossas autoridades só dão atenção ao crack e à suposta epidemia que estaria transformando nossa juventude em zumbis26 Uma explicação para esse fato reside no poder econômico da indústria farmacêutica e no modo como ela influencia a definição de doenças mentais e a prescrição de drogas psicoativas como tratamento27 Uma política de drogas racional deve unificar o regime jurídico de toda e qualquer substância psicoativa tendo como pilares a defesa da saúde e a redução de danos sem nenhuma ameaça repressiva Com base em prevenção e campanhas de informação a taxa de fumantes diminuiu de 32 para 172 entre 1989 e 2008 no Brasil28 Da mesma forma a lei paulista que proibiu o fumo em ambientes fechados de acordo com o previsto na Convenção Quadro Tabaco foi implementada sem necessidade de uso do direito penal Em relação ao álcool há iniciativas interessantes como a da prefeitura de Diadema em São Paulo que em 2002 determinou o fechamento de bares às 23h como forma de tentar reduzir a violência Em 1999 Diadema ostentava a maior taxa de homicídios do estado 1028 por 100 mil habitantes Em 2011 a taxa de homicídios em Diadema foi de 952 por 100 mil habitantes uma redução de 907429 Tudo isso sem nenhuma necessidade de intervenção penal apenas por meio de medidas administrativas As experiências positivas com a regulação de álcool tabaco e outras drogas devem servir de subsídio para a formulação de um 26 O II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas concluiu existir no Brasil aproximadamente 13 milhão de pessoas que utilizaram cocaína fumada no último ano 2012 cf httpinpadorgbrlenadcocainaecrackresultadospreliminares Acesso em 20 jan 2014 27 Angell Marcia A epidemia de doença mental Revista Piauí edição 59 Disponível em httprevistapiauiestadaocombredicao59questoesmedicofarmacologicasa epidemiadedoencamental Acesso em 8 jan 2014 28 httpplanetasustentavelabrilcombrnoticiasbrasilquedatabagismomenorpessoas baixaescolaridade761466shtml Acesso em 8 jan 2014 29 Dez anos depois de implementar lei de fechamento de bares Diadema reduz homicídios em 90 Agência Brasil httpagenciabrasilebccombrnoticia20120615dez anosdepoisdeimplementarleidefechamentodebaresdiademareduzhomicidios em90 Acesso em 8 jan 2014 63 Cristiano avila Maronna modelo de política de drogas que abranja toda e qualquer substância psicoativa A regulação de toda a cadeia produtiva da produção da comercialização e do consumo diferenciandose cada droga com base em evidências científicas contribuiria para reduzir os danos a consumidores e terceiros e representaria um grande abalo na rentabilidade auferida pelas organizações criminosas A diferenciação da regulação de cada droga com suas particulares características no que diz com os riscos à saúde e potencial de adição custos sociais e econômicos decorrentes do consumo da adição e do tratamento deve ser levada em conta na formulação dessa nova política pública a qual deve partir da premissa de que a maioria dos consumidores de substâncias psicoativas não desenvolve um uso problemático 6 referências bibligráficas Alonso Martin Barriuso La prohibicíon de drogas del tabu moral a la desobediência civil In ArAnA Xabier husAk Douglas sheerer Sebastian coords Globalización y drogas políticas sobre drogas derechos humanos y reducción de riesgos Instituto Internacional de Sociología Jurídica de Oñati Dikinson 2003 p 83115 bAtistA Nilo Ainda há tempo de salvar as Forças Armadas da cilada da militarização da segurança pública In bAtistA Vera Malaguti org Paz armada Rio de Janeiro Revan 2012 boiteux Luciana cAstilho Ela Wiecko Volkmer de vArgAs Beatriz bAtistA Vanessa Oliveira PrAdo Geraldo Luiz Mascarenhas JAPiAssu Carlos Eduardo Adriano Tráfico de drogas e constituição UnBUFRJ 2009 english T J O noturno de Havana como a máfia conquistou Cuba e a perdeu para a revolução Trad Santiago Nazarian Editora Seoman gAry S Becker kevin m Murphy Have We Lost the War on Drugs After more than four decades of a failed experiment the human cost has become too high It is time to consider the decriminalization of drug use and the drug market Wall Street Journal em 04012012 hAssemer Winfried Descriminalização dos crimes de drogas Direito penal Fundamentos estrutura política Porto Alegre Sergio Antonio Fabris 2008 Jesus Maria Gorete Marques de oi Amanda Hildebrand rochA Thiago Thadeu da lAgAttA Pedro Prisão provisória e Lei de Drogas um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo Núcleo de Estudos da Violência da USP 2011 mingArdi Guaracy Tiras gansos e trutas São Paulo Scritta 1992 nutt David et al Development of a rational scale to assess the harm of drugs of potential 64 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA misuse Lancet 2007 369 104753 ribeiro Maurides de Melo Políticas Públicas e a questão das drogas O impacto da política de redução de danos na legislação brasileira de drogas Dissertação apresentada ao Departamento de Direito Penal Medicina Legal e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Direito 2011 Werb D kerr T nosyk B et al The temporal relationship between drug supply indicators an audit of international government surveillance systems BMJ Open 20133 e 003077 doi101136bmjopen2013 003077 estudos sobre os impActos dA descriminAlizAção do consumo de drogAs em portugAl Jorge Quintas Doutorado na escola de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade do Porto Professor auxiliar na Faculdade de Direito da Universidade do Porto sumário 1 O estudo da aplicação das leis 2 O estudo da evolução do consumo de drogas 3 Estudos sobre atitudes e conhecimento da lei 4 Conclusões 5 Referências bibliográficas E m Portugal o consumo de todas as drogas foi descriminalizado pela Lei 302000 de 29 de novembro Desde 01072001 data de entrada em vigor dessa lei os delitos de consumo estão sob alçada de um regime contraordenacional A lei portuguesa da descriminalização do consumo de drogas é assim uma alternativa de regulação legal que afasta a aplicação de sanções penais aos delitos de consumo que estavam pelo menos por via da detenção de substâncias classificados como crime desde 1926 Há contudo uma opção pela manutenção da interdição do consumo que afasta qualquer tipo de legalização do uso ou mesmo formas mais abrangentes de regulação do mercado de drogas Nesse sentido a legislação 66 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA portuguesa mantémse de acordo com as convenções internacionais que não impõem a criminalização do uso de drogas apenas postulam que ele deve ser interdito bAllottA 2003 guerrA mArtins 2003 lourenço mArtins 2003 A Lei 302000 estabelece um regime contraordenacional para o consumo de todas as drogas mas estabelece que o consumidor não pode exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual para o período de 10 dias Após um período de alguma ambiguidade o Acórdão 82008 do Supremo Tribunal de Justiça decidiu não sem alguma polémica que se mantém em vigor o crime de consumo quando a quantidade detetada seja superior ao consumo médio individual durante o período de 10 dias n 2 do art 40º do Declei 1593 de 22 de janeiro apesar de a lei da descriminalização expressamente ter revogado todo o art 40º do Declei 1593 relativo ao crime de consumo excepto quanto ao cultivo Respeitando as limitações das quantidades estabelecidas à maioria dos casos de consumo aplicase uma lei que visa expressamente no seu próprio título a proteção sanitária e social dos consumidores A promoção e decisão do processo contraordenacional é competência de novas entidades administrativas as Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência CDT retirando da alçada dos Tribunais a competência de julgar os atos que configurem o ilícito A lei prevê no seu art17º um sistema de sanções não pecuniárias ou de coimas estas apenas aplicáveis aos não toxicodependentes mas diversos mecanismos de suspensão devem sobreporse ao seu efetivo cumprimento suspensão provisória do processo suspensão de determinação da sanção suspensão da execução da sanção A lei e particularmente as CDT têm uma função protecionista que visa i para os não toxicodependentes convencer dos riscos e da indesejabilidade do uso ii para os toxicodependentes incentivar o tratamento ou promover a redução de riscos e danos quintAs 2006 2011 Os efeitos da lei portuguesa da descriminalização no consumo de drogas podem ser equacionados através de dois tipos de análises i dos papéis do direito no controlo das drogas designadamente dos presumíveis efeitos dissuasivos declaratórios e reabilitativos pressupondo o afastamento de intenções meramente retributivas ou 67 Jorge Quintas punitivas para delitos de consumo de drogas que são na sua essência delitos sem vítima ii das evidências empíricas relacionadas com diversas experiências de regulação legal através de estudos agregados ou de estudos de dissuasão perceptual Na primeira perspetiva esperavase que i os efeitos dissuasivos da ameaça da sanção sofressem alterações relevantes uma vez que as variáveis clássicas da doutrina da dissuasão cf beccAriA 1978 se alteram previsivelmente no sentido da diminuição da severidade designadamente pela remoção da ameaça penal da diminuição da certeza da sanção designadamente pela eventual depreciação do delito pela polícia ainda que a lei não a preveja e do aumento da celeridade da aplicação da lei designadamente pelos mecanismos da lei e pela atuação suposta como mais eficaz das CDT ii os efeitos declaratórios de reforço das normas contra o uso possam diminuir designadamente pela remoção do valor simbólico da criminalização que potencie uma mensagem à sociedade menos efetiva no reforço da norma social contra o uso de drogas iii os efeitos reabilitativos concentrados no caso dos consumos de drogas em cuidados preventivos para o consumidor e particularmente em esforços de alavanca para tratamento do toxicodependente sejam mais bem alcançados no regime atual Uma segunda análise alicerçada na investigação empírica internacional autoriza uma expetativa de diminuta importância da descriminalização do consumo de drogas nos padrões de consumo das populações Os estudos de dissuasão perceptual mostram o peso diminuto que a ameaça de sanção legal exerce na determinação do uso de drogas particularmente em face das outras fontes de influência social bem mais poderosas como as normas internalizadas ou as sanções informais FogliA 1997 mAccoun 1993 PAternoster 1987 PAternoster Piquero 1995 A comparação internacional entre países ou regiões com políticas relativas às drogas diferenciadas indica a ausência de relação clara entre leis ou formas de aplicação das leis e padrões de consumo Boekhout Van solinge 1999 cesoni 2000 cohen kAAl 2001 kilmer 2002 korF 2001 OEDT 2001 OFS 2002 reubAnd 1995 Sénat Canada 2002 A análise concreta dos efeitos de algumas experiências de descriminalização do consumo ainda que limitadas aos derivados de cannabis nos EUA e na Austrália 68 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA mostra que em geral não se verificam alterações significativas nos níveis de consumo das populações eou que as alterações produzidas não podem ser directamente atribuídas à modificação legal Ali christie lenton hAWks sutton hAll AllsoP 1999 chAlouPkA grossmAn tAurus 1998 chAlouPkA PAculA FArrely Johnston brAy 1998 donnelly hAll christie 1998 mAccoun reuter 2001 mAccoun 2003 PAculA chriqui king 2003 reuter mAccoun 1995 single christie 2001 single christie Ali 2000 Para responder à questão empírica fundamental sobre os efeitos de alteração legislativa é necessário avaliar previamente como é que as leis são aplicadas antes e depois da descriminalização do consumo para depois confrontar esses dados com a evolução dos indicadores de consumo Adicionalmente examinase a reacção social informal às alterações produzidas no plano legislativo analisandose o conhecimento da lei e as atitudes das populações sobre a proibição do consumo de drogas sobre a opção de descriminalização e sobre as diversas possibilidades de sancionamento dos atos de consumo Para o efeito diversos trabalhos empíricos alguns dos quais já finalizados quintAs 2006 AgrA 2009 quintAs AgrA 2010 kury quintAs 2010a kury quintAs 2010b quintAs 2011 têm vindo a ser realizados na Escola de Criminologia da FDUP sobre a lei portuguesa da descriminalização do consumo de drogas suas formas de aplicação e seus impactos nas populações 1 o estudo da aplicação das leis A legislação produzida não define a forma como as autoridades responsáveis polícia tribunais e a partir de 2001 também as CDT aplicam as leis define apenas as condições legais em que estas podem ser aplicadas Em primeiro lugar a atividade policial está condicionada por dois aspetos fundamentais de difícil conciliação i a obediência ao princípio da legalidade que obriga todas as polícias a perseguirem todos os ilícitos relacionados com drogas ii o papel proactivo da polícia na descoberta e no registo dessas infrações e consequentemente a inevitabilidade da assunção de poderes discricionários largamente dependentes de fatores extralegais 69 Jorge Quintas Todas as forças policiais têm obrigação legal de perseguir os atos ilegais de que têm conhecimento mas ao mesmo tempo têm de selecionar as infrações a que dão prioridade no contexto das suas funções específicas sendo que essas prioridades só parcialmente são ditadas pela legislação A análise da atuação da justiça no que concerne às infrações às leis dos estupefacientes está por seu turno necessariamente c o n d i c i o n a d a p o r d o i s m o m e n t o s l e g i s l a t ivo s i antes da descriminalização do consumo todas as infrações à legislação dos estupefacientes devem confirmandose indícios de crime e de um agente responsável pela sua prática em princípio resultar na acusação dessa pessoa pelo Ministério Público Esta acusação deve originar a menos que o procedimento criminal possa ser declarado extinto um julgamento em que se estabelece a prova dos factos e o seu enquadramento legal resultando na condenação ou absolvição do réu ii após a descriminalização do consumo os delitos de consumo submetidos a um regime contraordenacional têm a sua apreciação legal deferida às CDT Acresce que a descriminalização do consumo traz para a primeira linha a aplicação de manifestações do princípio de oportunidade na apreciação legal das situações de consumo A suspensão provisória do processo é nos termos da Lei 302000 de 29 de novembro a primeira grande opção de que dispõem as CDT A suspensão provisória do processo é mesmo obrigatória no caso de uma primeira infração de um consumidor não toxicodependente e no caso dos consumidores toxicodependentes a obrigatoriedade é apenas condicionada pela aceitação do consumidor de um tratamento Acresce que nas situações de reincidência a suspensão provisória do processo pode ainda ser aplicada facultativamente Noutras fases processuais as CDT podem optar por suspender quer a determinação quer a execução das sanções Em suma as CDT antes de aplicarem efetivamente qualquer tipo de sanção aos comportamentos de consumo são claramente conduzidas ou em alguns casos obrigadas pela lei a suspender os processos Neste enquadramento devese situar a atuação da polícia e do sistema de justiça português relativamente ao consumo de drogas Na Tabela 1 consta uma síntese dos principais indicadores de aplicação das leis aos delitos de consumo comparando os valores médios anuais na abrangência do regime criminal Lei 1593 e contraordenacional Lei 302000 70 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA tabela 1 Síntese dos valores médios anuais de presumíveis infratores por consumo de drogas registados pela polícia e decisões dos Tribunais e CDT Lei 1593 19932000 Lei 302000 Julho 20012011 Polícia M4955 M6375 Justiça Tribunais M1451 penas 75 multa 8 prisão efetiva Raríssimas medidas terapêuticas CDT M4036 decisões 86 suspensão provisória do processo M2646 não toxicodependente M796 toxicodependente 13 punitivas M523 ano Tribunais lei 1593 M136 penas residuais até 2008 crescem após acordão STJ são já 431 em 2011 fontes Relatório anual 20112010 2009 2008 2007 2006 2005 2004 2003 e 2002 do IDT Relatório anual 2001 do IPDT Sumários de Informação Estatística 1994 do GPCCD MMédia No que respeita à intervenção policial verificase um aumento ligeiro dos presumíveis infratores por consumo de 5 para um pouco mais de 6 mil por ano Este aumento ligeiro da certeza da deteção corresponde a cerca de 2 dos utilizadores de drogas por ano segundo os inquéritos à população geral de bAlsA e col 2001 2007 2013 são cerca de 3 da população de 15 a 64 anos ie cerca de 250 mil pessoas As decisões da justiça mostram contudo uma expansão do seguimento legal das situações de consumo de 15 para cerca de 4 mil por ano cerca de 1 dos utilizadores de drogas por ano Este aumento importante da certeza da aplicação da lei é similar ao netwidening effect sinalizado por Ali christie lenton hawks sutton hall Allsop 1999 na sua análise da Cannabis Expiation Notice no estado da Austrália do Sul Acresce que a multa como resposta preferencial dos Tribunais ao consumo de drogas é substituída pela suspensão provisória do processo nas CDT Instaurase assim um mais extensivo regime de tutela de consumidores geralmente de cannabis 25 mil por ano e de encaminhamento de toxicodependentes para tratamento 800 por 71 Jorge Quintas ano que corresponde a um aumento incomparável dos efeitos terapêuticos em sentido amplo incluindo o efeito de alavanca para tratamento dos toxicodependentes Os factos estabelecidos pela análise da aplicação das leis são em síntese os seguintes i há um aumento ligeiro da probabilidade de ser detetado por atos de consumo ii a aplicação da lei coloca sob efetiva alçada legal um número superior de consumidores de drogas iii instaurase um mais extensivo regime de tutela legal dos consumidores 2 o estudo da evolução do consumo de drogas A evolução do consumo de drogas pode ser avaliada através de indicadores diretos provenientes de inquéritos e de indicadores indiretos provenientes do sistema de saúde dirigidos aos consumos problemáticos e aos danos dos consumos A Tabela 2 sintetiza os principais indicadores portugueses disponíveis tabela 2 Síntese dos indicadores de consumo de drogas e de danos associados ao consumo de drogas Lei 1593 19932000 Lei 302000 Julho 20012011 Inquéritos População Geral 1564 anos em 2001 e 2007 1574 em 2012 Não há 2001 78 PLV 34 PUA 2007 12 PLV 37 PUA 2012 99 PLV 27 PUA Inquéritos ESPAD estudantes de 16 anos 1995 8 PLV 1999 12 PLV 2003 18 PLV 2007 14 PLV 2011 19 PLV Novos utentes em tratamento M8208 M6503 SIDA em toxicodependentes M522 M331 fontes Relatório anual 20112010 2009 2008 2007 2006 2005 2004 2003 e 2002 do IDT Relatório anual 2001 do IPDT Sumários de Informação Estatística 1994 do GPCCD M Média PLV Prevalência ao longo da vida PUA Prevalência no último ano 72 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Para perceber os níveis de consumo de droga na sociedade portuguesa os inquéritos à população em geral são o primeiro instrumento privilegiado Contudo apenas em 2001 ano de entrada em vigor da Lei 302000 foi realizado pela Universidade Nova de Lisboa bAlsA FArinhA urbAno FrAncisco 2003 o primeiro inquérito à população portuguesa sobre consumo de drogas replicado em 2007 bAlsA vitAl urbAno PAscueiro 2008 e em 2012 bAlsA vitAl urbAno 2013 No ano 2001 a experimentação de drogas ilícitas medida pelas taxas de prevalência ao longo da vida é de 78 na população adulta portuguesa tendo subido para 12 em 2007 e decrescido para 99 em 2012 Acresce que este padrão evolutivo se reflete também nas taxas de prevalência no último ano 34 37 e 27 em 2001 2007 e 2012 respetivamente e no último mês 25 25 e 17 em 2001 2007 e 2012 respectivamente e que os consumos de cannabis são responsáveis pela maior parte dos consumos de drogas ilícitas A valoração destes dados particularmente das taxas de prevalência deve ser efetuada no confronto com outros países Os sucessivos relatórios anuais do Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência OEDT procuram confrontar constantemente os indicadores de consumo nos vários países da União Europeia UE e confirmam Portugal como um dos países com níveis de consumo mais baixos de toda a UE Os dados relativos à população em geral são apresentados para situar a dimensão dos consumos de drogas no período após a descriminalização do consumo A possibilidade de comparação diacrónica de dados sobre consumo de droga que se estenda ao período anterior à lei da descriminalização do consumo existe porém somente ao nível das populações escolares Nas populações escolares os mais consagrados e difundidos dados comparativos provêm dos inquéritos European School Survey Project on Alcohol and Other Drugs Espad realizados de 4 em 4 anos com participação portuguesa desde 1995 Os resultados dos sucessivos estudos Espad mostram que em Portugal os consumos de drogas ilícitas aumentam ainda antes da descriminalização do consumo de drogas de 8 para 12 entre 1995 e 1999 e decrescem já após a descriminalização de 18 para 14 entre 2003 e 2007 para posteriormente voltarem a aumentar de 14 para 19 entre 2007 e 2011 Acresce que independentemente da evolução dos indicadores internos 73 Jorge Quintas Portugal continua comparativamente com outros países ocidentais designadamente da Europa a ter níveis gerais de consumo de drogas ilícitas ligeiramente abaixo da média cf Relatórios do OEDT e a apresentar uma tendência entre os vários inquéritos muito similar ao conjunto de países participantes no Espad cf hibell guttormsson Ahlström bAlAkirevA bJArnAson kokkevi krAus 2012 No que respeita aos indicadores de consumo problemáticos o mais simples e direto indicador consiste no número de novas solicitações de tratamento nas instituições públicas especializadas A média de novos pedidos de tratamento durante o período imediatamente anterior à lei da descriminalização 19932000 é de um pouco mais de 8 mil Após a descriminalização do consumo registase pela primeira vez em Portugal um decréscimo de novos utentes para cerca de 65 mil apesar de esses serviços terem integrado o acompanhamento de alcoólicos desde 2008 o que faz com que o decréscimo não seja tão acentuado A tendência é no entanto clara no período que se segue à descriminalização do consumo há menos pessoas a dirigirse aos serviços públicos para procurar ajuda terapêutica por problemas com o uso de drogas ilícitas Relativamente aos danos associados ao consumo destacamse os casos de SIDA notificados em toxicodependentes A média anual de mais de 500 casos por ano notificados nesta população durante a década de 1990 que chegou a ser próxima dos 60 do total de casos notificados em Portugal decresceu a partir do início do século XXI para valores anuais de mais de 300 casos decrescendo também a porcentagem de toxicodependentes para níveis já inferiores aos 50 O número total de casos de SIDA é largamente dependente do número de casos notificados em toxicodependentes e a descriminalização do consumo coincide com um período de diminuição dos toxicodependentes com SIDA que no caso tem consequências diretas no número de casos de SIDA notificados Os factos estabelecidos pela análise da evolução dos consumos de drogas e dos danos relacionados são em síntese os seguintes i o consumo de drogas na população em geral é relativamente estável após a descriminalização do consumo ii o consumo de drogas nas populações escolares aumentou nos períodos anterior e imediatamente após a descriminalização do consumo diminuiu nos anos seguintes e voltou a aumentar nos anos mais recentes 74 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA sendo todas estas oscilações relativamente moderadas iii Portugal mantém em todos estes períodos níveis relativamente modestos de consumo em termos comparativos com os restantes países europeus iv o consumo problemático de drogas está em retração como o comprova a diminuição clara dos novos pedidos de atendimento nas instituições públicas v as consequências do consumo medidas pelos indicadores relativos à epidemia da SIDA são menos gravosas no período que se segue à descriminalização do consumo As oscilações nos níveis de consumo nas populações não devem ser atribuídas diretamente à descriminalização do consumo De igual modo não será de reivindicar para a alteração legislativa a evolução positiva nos consumos problemáticos e na redução nas consequências negativas do consumo de drogas As alterações nesse tipo de indicadores estarão muito mais dependentes da evolução dos padrões de uso de drogas particularmente da heroína e da interferência positiva de medidas de redução de riscos e minimização de danos postas em prática para os consumidores problemáticos Em todo o caso a descriminalização do consumo de drogas i coincide com estabilização ou ligeiro aumento do consumo não anómalo na comparação internacional ii coincide com a diminuição dos consumos problemáticos iii coincide com a diminuição dos danos do consumo Portugal confirma o mais esperado resultado das experiências de descriminalização esta modificação na lei não tem um efeito relevante no consumo de drogas e na toxicodependência 3 estudos sobre atitudes e conhecimento da lei N a escola de Criminologia da Universidade do Porto temos mantido inquéritos às populações sobre drogas e lei de modo a conferir o conhecimento das leis e as atitudes das populações em face de diversos aspetos relacionados com a legislação das drogas Numa primeira fase em 2003 participaram nesses inquéritos estudantes de direito e de psicologia adultos polícias e toxicodependentes N232 e numa segunda fase em 2011 e 2012 apenas estudantes de direito de criminologia e de psicologia N247 No geral o inquérito de 2003 evidenciou uma grande similitude de atitudes nos diferentes grupos apenas os toxicodependentes se destacam por tenderem a ser menos 75 Jorge Quintas proibicionistas mais favoráveis à descriminalização do consumo e por advogarem atitudes das autoridades mais tolerantes em face dos delitos de consumo Em todo o caso só foram usadas amostras similares estudantes de direito e de psicologia participantes em 2003 e 20112 N255 nas análises comparativas que se seguem No que respeita ao conhecimento da lei podemos verificar na Tabela 3 que é largamente minoritária em especial nos inquéritos mais recentes a porcentagem de participantes que reconhecem devidamente a descriminalização como o regime legal em vigor para o consumo de drogas em Portugal Há porcentagens superiores de participantes que julgam que o consumo de drogas é um crime que acham que não é proibido ou mesmo que simplesmente não sabem identificar o regime legal aplicável ao consumo de drogas tabela 3 Perceção do regime legal do consumo de drogas em Portugal 2003 n92 2011 n73 2012 n90 Descriminalização 239 151 100 Crime 391 274 344 Não proibido 196 288 233 Não sabe 174 288 322 Quanto às atitudes em face da legislação cf Tabela 4 verifica se uma tendência moderada pela preferência pela proibição do uso de substâncias ilegais na medida em que as posições médias estão ligeiramente acima do ponto intermédio da escala 4 quando a questão é colocada sem enunciação da substância em causa e quando se considera o haxixe Esta preferência pela proibição é mais extremada quando se evoca diretamente o uso de heroína e por contraste há desacordo com a interdição do álcool Todas estas posições quanto à proibição do uso de substâncias mantêmse estáveis nos vários inquéritos com exceção do álcool que nos mais recentes tende a ser ainda menos considerado como suscetível de ser interdito 76 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA tabela 4 Atitudes em face da legislação relativa ao consumo de drogas 2003 n92 2011 n73 2012 n90 Proibição do consumo de M M M F p Drogas em abstrato 473 422 490 D28464 A453 DA133 000 012 ns Álcool 254 178 199 Haxixe 490 439 507 Heroína 593 529 581 Valor esperado da proibição M M M F p Proibição eficaz 351 289 309 VP12915 A215 VPA58 000 ns ns Proibição legítima 473 485 489 Regime legal M M M F p Crime 364 339 401 RL588 A145 RLA218 ns ns ns Descriminalização 417 366 351 Tipo de Sanção M M M F p Prisão 282 220 299 TS20521 A409 TSA663 000 000 018 Multa 287 341 392 Alternativa de Tratamento 585 510 540 Escala de 1 discordo a 7 concordo A Ano do inquérito D Droga VP valor esperado da proibição RL Regime legal TS Tipo de sanção ns não significativo Considerando o valor esperado da proibição do consumo de drogas verificase que há uma diferença significativa entre a perceção 77 Jorge Quintas da legitimidade em face do juízo sobre a eficácia Os participantes tendem a considerar como legítima a interdição ainda que de forma moderada mas esperam menos que essa interdição seja eficaz para o controlo dos consumos de drogas Estes resultados relativos ao valor da proibição são estáveis nos vários inquéritos Relativamente à opinião sobre o estatuto jurídico do consumo há nos diversos inquéritos uma grande similitude de posições quanto a dever ser considerado um crime ou a dever ser descriminalizado Ambas as possibilidades apresentam valores próximos do ponto intermédio da escala sem diferenças significativas entre as duas possibilidades e sem diferenças significativas nas várias aplicações dos inquéritos As alternativas às sanções que potenciem o tratamento são as medidas preferenciais a aplicar aos consumidores detetados por atos de consumo A multa e de forma ainda mais marcada a pena de prisão são opções sancionatórias para atos de consumo que merecem o desacordo dos participantes em todos os inquéritos Em suma o conhecimento das leis que enquadram os atos de consumo deve ser considerado pobre na medida em que apenas uma pequena parte dos participantes é capaz de identificar corretamente o regime contraordenacional em vigor em Portugal Estes níveis de conhecimento remetem para uma situação de grande incerteza na análise dos possíveis efeitos dissuasivos da lei No que respeita às atitudes há uma preferência moderada pela proibição do uso de drogas embora permaneça uma posição de desconfiança da sua eficácia A dúvida quanto ao melhor estatuto jurídico do consumo consubstanciase numa posição média próxima das alternativas entre crime e descriminalização Em todo o caso é marcada uma preferência por medidas alternativas de tratamento em detrimento das respostas judiciais de multa e especialmente de prisão para atos de consumo 4 conclusões A experiência portuguesa da descriminalização de todas as drogas após 12 anos de aplicação prática pode já ser avaliada nos seus principais méritos e limitações Primeiro 78 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA descriminalizar o consumo de drogas afasta a crítica recorrente ao uso da lei criminal e aos seus mecanismos de aplicação para punir consumidores de drogas É certo que a descriminalização portuguesa tem uma limitação de quantidades disponíveis que coloca ainda alguns consumidores sobre alçada da lei criminal pelo ato de consumo particularmente após a decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 2008 mas na maior parte das situações de consumo o regime aplicável afasta a possibilidade de registo criminal e da aplicação de sanções penais entre as quais a relativamente remota possibilidade de aplicação de penas de prisão Segundo o ato de consumo tem uma resposta do sistema legal que permite constatar a aplicação de um regime legal protecionista do consumidor mais efetivo restaurando uma via de comunicação entre as instâncias do sistema legal e do sistema de saúde As deteções dos consumidores são ligeiramente superiores a tutela legal pelas CDT de um número superior de consumidores e a natureza das medidas aplicadas no âmbito das suspensões provisórias do processo coloca os consumidores de drogas em contacto preferencial com as instâncias do sistema de saúde Terceiro ainda que permaneça uma grande ambiguidade na aceitação comparativa da descriminalização em face da criminalização do consumo de drogas a resposta legal instaurada é consonante com a preferência pública pela manutenção do interdito legal e pela utilização de mecanismos sancionatórios de natureza terapêutica ao consumo Quarto o conhecimento sobre a lei é muito diminuto colocando grande incerteza sobre os efeitos declaratórios da lei e também sobre os efeitos dissuasivos que se pressupõe derivar das leis e da sua aplicação Quinto a descriminalização do consumo realizouse sem interferir decisivamente na evolução dos indicadores de consumo O efeito da lei da descriminalização nos padrões de consumo das populações e particularmente o medo de proporcionar aumentos dos consumos é particularmente relevante no plano das políticas das drogas Ora os dados disponíveis confirmam uma expetativa cientificamente fundada de relativa irrelevância da descriminalização do consumo nos indicadores de consumo de drogas e danos associados 79 Jorge Quintas 5 referências bibliográficas AgrA C 2009 Requiem pour la guerre à la drogue Lexpérimentation portugaise de décriminalisation Déviance Société 33 1 2749 Ali R christie P lenton S hAWks D sutton A hAll W AllsoP S 1999 The Social Impacts of the Cannabis Expiation Notice Scheme in South Australia National Drug Strategy Monograph Series n 34 Canberra Australian Government Publication Service bAllottA D 2003 Princípios gerais de política da droga e incongruências entre ciência e política In vicente D coord Problemas jurídicos da droga e da toxicodependência v I Suplemento da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Coimbra Coimbra Editora bAlsA C FArinhA T urbAno C FrAncisco A 2003 Inquérito nacional ao consumo de substâncias psicoactivas na população portuguesa Lisboa IDT Colecção Estudos Universidades bAlsA C vitAl C urbAno C PAscueiro L 2008 Inquérito nacional ao consumo de substâncias psicoactivas na população geral Portugal 2007 Lisboa IDT Colecção Estudos Universidades bAlsA C vitAl C urbAno C 2013 III Inquérito nacional ao consumo de substâncias psicoactivas na população portuguesa 2012 Resultados preliminares Lisboa SICAD Colecção Estudos Universidades beccAriA C 17661998 Dos delitos e das penas Lisboa Edições da Fundação Gulbenkian boekhout vAn solinge T 1999 Dutch Drug Policy in a European Context Journal of Drug Issues 29 3 511528 cesoni M 2000 LIncrimination de LUsage de Stupéfiants dans Sept Législations Européennes Documents du Groupement de Recherche Psychotropes Politique et Société n 4 chAlouPkA F grossmAn M tAurus J 1998 The Demand for Cocaine and Marijuana on Youth NBER Working Paper n 6411 Cambridge MA National Bureau of Economic Research chAlouPkA F PAculA R FArrely M Johnston J brAy J 1998 Do Higher Cigarette Prices Encourage to Use Marijuana NBER Working Paper n 6939 Cambridge MA National Bureau of Economic 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bAlAkirevA O bJArnAson T kokkevi A krAus L 2012 The 2007 ESPAD Report Substance Use Among Students in 36 European Countries Stockholm CANEMCDDACouncil of Europe Pompidou Group kilmer B 2002 Do Cannabis Possession Laws Influence Cannabis Use Cannabis 2002 Report Technical Report of the International Scientific Conference Cap 8 Brussels Ministry of Public Health of Belgium korF D 2001 Trends and Patterns in Cannabis Use in the Netherlands Paper Presented at the Hearing of the Special Committee on Illegal Drugs Ottawa November 19th kury H quintAs J 2010a Sanktionen oder Hilfe Einstellungen zu Drogentätern Ergebnisse aus Portugal Kriminalistik 64 7 403409 kury H quintAs J 2010b Zur Wirkung von Sanktionen bei Drogenabhängigen Argumente für eine rationale Drogenpolitik Polizei Wissenschaft Zur Veröff Angenommen 32 1 3256 lourenço mArtins A 2003 Direito internacional da droga e da toxicodependência In vicente D coord Problemas jurídicos da droga e da toxicodependência v I Suplemento da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Coimbra Coimbra Editora mAccoun R reuter P 2001 Evaluating Alternative Cannabis Regimes British Journal of Psychiatry 178 123128 mAccoun R 2003 The Varieties of Marijuana Prohibition Do Laws Influence Drug Use Empirical Legal Studies Colloquium Series NorthWestern University School of Law oedt 2001 Relatório anual sobre a evolução do fenómeno da droga na União Europeia 2001 Luxemburgo Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades europeias OFS Office Fédéral de la Santé Publique Division Dépéndance et SIDA 2002 Dépénalisation de la Consommation du Cannabis Les Expériences de lÉtranger Bulletin 4502 Berne OFS PAculA R chriqui J king J 2003 Marijuana Decriminalization What does it Mean in the United States NBER Working Paper 9690 Cambridge MA National Bureau of Economic Research PAternoster R Piquero A 1995 Reconceptualizing Deterrence Journal of Research in Crime and Delinquency 32 3 251286 PAternoster R 1987 The Deterrent 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Nijhoff sénAt cAnAdA 2002 Le Cannabis Positions Pour um Régime de Politique Publique pour le Canada Rapport du Comité Spécial du Sénat sur les Drogues Illicites Ottawa Sénat Canada single E christie P 2001 The Consequences of Cannabis Decriminalization in Australia and the United States Report to the Swiss Federal Office of Public Health Bern SFOPH single E christie P Ali R 2000 The Impact of Cannabis Decriminalisation in Australia and the United States Journal of Public Health Policy 21 2 157186 drogAs e cárcere repressão às drogAs Aumento dA populAção penitenciáriA brAsileirA e AlternAtivAs1 Luciana Boiteux Mestre UERJ e Doutora em Direito USP Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Política de Drogas e Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro Professora Adjunta de Direito Penal sumário 1 Introdução 2 Leis de Drogas no Brasil 3 Encarceramento por delitos de drogas no Brasil 4 Política de drogas e sistema penitenciário 5 Mulheres tráfico e prisão 6 Drogas encarceramento e os custos dessa política 7 Considerações finais 8 Referências bibliográficas 1 introdução A correlação entre a repressão às drogas e o aumento da população penitenciária especialmente a partir da década de 1990 até os dias atuais vem sendo constatada nos Estados Unidos e em diversos 1 Tratase de resumo da conferência apresentada no Seminário Iberoamericano de Política de Drogas do IBCCrim ocorrido em 2013 84 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA países da América Latina em decorrência do registrado aumento do encarceramento de pessoas condenadas por tráfico de drogas No caso do Brasil os dados confirmam que esse fato se deve especialmente à Lei de Drogas de 2006 sendo representativa a presença de pequenos traficantes não violentos primários presos em flagrante sozinhos e desarmados no nosso sistema penitenciário o que será aqui analisado O presente estudo tem por objetivo trazer os resultados das últimas investigações realizadas sobre o tema do encarceramento e drogas no Brasil e pretende responder às seguintes questões qual é a relação entre a política de drogas e o encarceramento no Brasil E quais seriam as propostas para alterar essa realidade Nosso marco teórico é a Criminologia Crítica bArAttA 19972 que identifica na atuação seletiva do direito penal a estratégia de controle social da pobreza e propõe a construção de uma política criminal que seja protetora integral de direitos Portanto nos afastamos do paradigma clássicopositivista por analisarmos o funcionamento real do sistema penal e suas relações com a estrutura sociopolíticoeconômica O trabalho também tem uma base garantista FerrAJoli pois atribui à norma penal e à Constituição o papel de limitecontenção do poder punitivo 2 leis de drogas no brasil A legislação brasileira sobre drogas sofreu direta influência das Convenções das Nações Unidas com forte marca proibicionista que estabelecem como padrão a resposta repressiva ao problema das drogas tanto para usuários como para traficantes Estas foram incorporadas de forma acrítica ao ordenamento jurídico nacional tendo o Brasil se comprometido a combater o tráfico reduzir o consumo e a demanda com todos os meios disponíveis inclusive mediante o mais drásticos de todos o controle penal Para além do comprometimento oficial com o sistema internacional de controle de drogas as estreitas e históricas ligações diplomáticas e comerciais entre o Brasil e os Estados Unidos levaram à adoção de um proibicionismo fortemente influenciado pelo modelo norteamericano 2 bArAttA Alessandro 1997 Defesa dos direitos humanos e política criminal Discursos Sediciosos Rio de Janeiro Revan n 3 p 5769 85 Luciana Boiteux de combate às drogas boiteux 2006a3 Não obstante a obediência à cartilha proibicionista não logrou alcançar resultados positivos eis que cem anos depois das primeiras proibições ainda não se conseguiu equacionar o problema do abuso de substâncias ilícitas embora as penitenciárias estejam cheias de pessoas presas por envolvimento com drogas No Brasil em que pese não seja um país produtor de drogas era considerado originalmente um país de trânsito mas hoje é tido como um país também de alto consumo unodc 20134 Historicamente no Brasil as leis repressivas sobre drogas foram influenciadas pelo discurso médico mais do que por grupos religiosos boiteux 2006a5 como ocorreu nos EUA E foi somente partir do início do século XX que o tema ganhou importância no espaço público nacional de discussão sob uma perspectiva higienista tendo a proibição sido fundada na perspectiva de saúde pública Fiore 20076 O discurso jurídico repressivo portanto foi construído a partir da ideia de que o Estado deveria controlar os desregrados e abusadores de substâncias que não eram aceitas pela sociedade Como os médicos brasileiros detinham a exclusividade no manejo de políticas de saúde pública impuseram o controle médico sobre os que faziam uso de drogas cujo consumo foi tornado ilícito7 Esse 3 boiteux de F rodrigues Luciana 2006a O controle penal sobre as drogas ilícitas o impacto do proibicionismo no direito penal e na sociedade São Paulo Tese de Doutorado Faculdade de Direito da USP 4 united nAtions oFFice For drugs And cRIMES 2013 World Drug Report Disponível em httpwwwunodcorgwdr Acesso em 03 dez 2013 5 morAis Paulo César de Campos sd Mitos e omissões repercussões da legislação sobre entorpecentes na região metropolitana de Belo Horizonte Disponível em httpswww2mppagovbrsistemasgcsubsitesupload60MITOS20E20 OMISSÃESpdf p 8 Acesso em 03 dez 2013 6 Fiore Mauricio 2007 Uso de drogas controvérsias médicas e debate público São Paulo FapespMercado das Letras 7 Para uma discussão mais aprofundada sobre o histórico do controle de drogas no Brasil vide boiteux 2006a Fiore 2007 bAtistA Nilo 1998 Política criminal com derramamento de sangue Discursos Sediciosos ano 3 n 56 12 sem luisi Luiz 1990 A legislação penal brasileira sobre entorpecentes notícia histórica Fascículos de Ciências Penais ano 3 v 3 n 2 abrjun p 157 morAis Paulo César de Campos sd Mitos e omissões repercussões da legislação sobre entorpecentes na região metropolitana de Belo Horizonte Disponível em httpswww2mppagovbr sistemasgcsubsitesupload60MITOS20E20OMISSÃESpdf Acesso em 03 dez 2013 86 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA modelo é denominado por batista 1998 médicopolicial8 A partir das primeiras proibições as leis de drogas brasileiras apresentam variações regulares constantes sendo destacado o movimento legislativo de elaboração de novas leis e normas sobre o tema sempre na tentativa infrutífera de tentar reduzir o consumo de substâncias por meio de normas repressivas na linha do direito penal simbólico9 Atualmente o direito brasileiro prevê como crime tanto a posse de drogas como o tráfico adotando um discurso duplo de diferenciação entre usuário e traficante que para del olmo 1990 pode ser conceituado como modelo médicojurídico tentando estabelecer ideologia de diferenciação que possui como característica principal a distinção entre consumidor e traficante ou seja entre doente e delinquente O primeiro em razão de sua condição social é absorvido pelo discurso médico consolidado pelo modelo médicosanitário em voga desde a década de 1950 que representava o estereótipo da dependência enquanto o traficante é tratado como o criminoso o corruptor da sociedade10 O fato é que a adoção desse modelo internacional e a opção por uma política de drogas extremamente repressiva notadamente em relação ao traficante acarretou um grande aumento dos níveis de encarceramento não só no Brasil como nos EUA e na América Latina11 A grande questão que se coloca nesse momento é que 8 bAtistA Nilo 1998 Política criminal com derramamento de sangue Discursos Sediciosos ano 3 n 56 p 81 12 sem 9 Sobre a análise do grande número de alterações legislativas nas leis de drogas se comparadas a outros crimes no direito brasileiro vide boiteux Luciana e PáduA João Pedro 2013 A desproporcionalidade da lei de drogas os custos humanos e econômicos da atual lei de drogas no Brasil Rio de Janeiro UFRJ e Psicotropicus Este artigo foi originalmente publicado em língua espanhola como capítulo intitulado La desproporción de la Ley de Drogas los costes humanos y económicos de la actual política en Brasil In CORREA Catalina Pérez Org 2012 Justicia desmedida Proporcionalidad y delitos de drogas en America Latina Ciudad de Mexico Fontamara p 71101 10 del olmo Rosa 1990 A face oculta da droga Rio de Janeiro Revan 1990 p 34 11 beWleytAylor D trAce M stevens A 2005 Incarceration of drug offenders Costs and impacts The Beckley Foundation Drug Policy Programme Briefing Paper Seven London The Beckley Foundation Retrieved March 10 2013 from http wwwiprtiefilesincarcerationofdruguserspdf beWleytAylor D hAllAm C Allen R 2009 The incarceration of drug offenders An overview The Beckley Foundation Drug Policy Programme Report Sixteen London Kings College 87 Luciana Boiteux nesses outros países essa opção tem sido revisitada tendo o até o Governo dos EUA se manifestado favoravelmente à redução das altas penas para traficantes e também por alternativas ao encarceramento de usuários naquele país12 enquanto no Brasil a tendência como veremos tem sido pela intensificação do encarceramento como política oficial 3 encarceramento por delitos de drogas no brasil A partir da Constituição 1988 constatase um grande paradoxo na política criminal pois ao mesmo tempo que houve grandes conquistas como o reconhecimento de direitos e garantias individuais inclusive dos presos foram também previstos indicativos repressivos de grande impacto no texto constitucional tal como os crimes hediondos posteriormente definidos pela Lei 8072199013 ao qual o tráfico de drogas foi equiparado expressamente tendo sido vedada a progressão de regime entre outros benefícios e aumentado o prazo para o livramento condicional para tais crimes Essa lei14 impactou fortemente o sistema penitenciário justamente em decorrência do alto crescimento do número de presos por tráfico a partir da década International Centre for Prison Studies Retrieved March 10 2013 from httpwww beckleyfoundationorgpdfBFReport16pdf e metAAl P youngers C eds 2010 Sistemas sobrecargados leyes de drogas y cárceles en América Latina Amsterdan Washington TNIWOLA p 3039 12 Cf httpwwwhuffingtonpostcomernestdruckeranamnestyforprisoners b3957493html Acesso em 3 dez 2013 13 Pela Lei 80721990 os crimes hediondos são os seguintes latrocínio art 157 3º in fine extorsão qualificada art 158 2º extorsão mediante sequestro e qualificada art 159 caput estupro art 213 caput e parágrafo único atentado violento ao pudor art 214 epidemia com morte art 267 1º envenenamento qualificado art 270 cc art 285 todos do Código Penal e genocídio arts 1º a 3º Lei 28891956 Posteriormente em 1994 foram acrescentados o homicídio qualificado e o praticado por grupo de extermínio 14 Na época vários doutrinadores questionaram a constitucionalidade de tal lei em especial quanto à vedação da progressão de regime diante do princípio constitucional da individualização da pena mas a jurisprudência reiteradamente se posicionou de forma contrária e o Supremo Tribunal Federal por maioria consideravaa constitucional Contudo em abril de 2006 finalmente após quinze anos de vigência da lei a nova composição do STF alterou esse entendimento no HC 82959SP que declarou a a inconstitucionalidade do 1º do art 2º por violação do direito à individualização da pena CF art 5º LXVI Vide Informativo STF n 418 de 2006 88 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA de 199015 e significou a divisão ampla entre o sistema aplicável ao consumidor de drogas da classe média que tem dinheiro para pagar pelo seu consumo e o consumidortraficante morador de regiões mais pobres que precisa vender a droga para sustentar suas necessidades de consumo boiteux 2006b demonstrando o caráter seletivo da norma penal Essa divisão foi ainda mais reforçada pela atual Lei de Drogas de 2006 apesar de esta ser uma legislação considerada equilibrada que inovou de forma positiva a política de drogas brasileira passando o foco da política para a prevenção ao uso indevido de drogas embora também trate com destaque da repressão ao tráfico Entre as estratégias de prevenção incorpora a redução de danos e direitos do usuário tratamento voluntário Dentre os maiores destaques da nova Lei está a previsão expressa de princípios como o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana especialmente quanto à sua autonomia e liberdade art 4º I o reconhecimento da diversidade art 4º II a adoção de abordagem multidisciplinar inciso IX além de serem fixadas diretrizes destinadas à prevenção do uso de drogas por meio do fortalecimento da autonomia e da responsabilidade individual em relação ao uso indevido de drogas art 19 III e o reconhecimento de que reconhecimento da redução de riscos como resultados desejáveis das atividades de natureza preventiva inc VI Considerase a previsão legislativa de tais princípios como essencial por refletir uma nova abordagem na linha do proibicionismo moderado especialmente com a adoção da redução de danos como política oficial boiteux 20103416 Com relação ao consumidor uma importante mudança em 2006 foi a despenalização do delito de posse de drogas art 28 e do cultivo 15 Sobre a Lei dos Crimes Hediondos vide boiteux Luciana 2006c Quinze anos da Lei dos Crimes Hediondos reflexões sobre a pena de prisão no Brasil Revista Ultima Ratio Rio de Janeiro Lumen Juris v 1 n 0 p 107133 16 boiteux Luciana 2010 Drogas y prisión la represión contra las drogas y el aumento de la población penitenciaria en Brasil In metAAl P youngers C eds Sistemas sobrecargados leyes de drogas y cárceles en América Latina Amsterdan Washington TNIWOLA p 3039 89 Luciana Boiteux de plantas para uso pessoal art 28 1o17 aos quais hoje somente podem ser aplicadas sanções alternativas não sendo admitida a prisão do usuário em flagrante nem em caso de reincidência devendo ser aplicado o procedimento sumaríssimo da Lei 9099199518 Por outro lado a lei trouxe um aumento significativo da pena mínima para o crime de tráfico de três para cinco anos art 33 sendo bastante criticado este aumento justificado pelo legislador pela necessidade de endurecimento no combate ao tráfico salo de carvalho 2007 critica tal dispositivo pela disparidade entre a quantidade de pena e a inexistência de tipos penais intermediários com graduações proporcionais destacando a zona cinzenta entre o mínimo e o máximo da resposta penal a despeito das várias condutas previstas no art 3319 Assim apesar das significativas diferenças entre as ações típicas e da distinta lesão ao bem jurídico tutelado saúde pública além de não se exigir o propósito de comércio ou fim de lucro a escala penal é única o que pode dar margem a punições injustas e desproporcionadas No entanto a Lei de 2006 previu a possibilidade de redução de pena no caso de acusado primário sem envolvimento com o crime organizado 4o do mesmo artigo Embora este originalmente vedasse a substituição da pena de pequenos traficantes por alternativas a questão acabou sendo levada a julgamento no STF que considerou inconstitucional por violação ao princípio da individualização da pena o dispositivo que vedava a conversão em penas restritivas de direitos20 Outrossim persiste na lei a ausência de uma diferenciação clara entre uso e tráfico Pelos critérios legais esta deve se dar levandose em conta a quantidade natureza ou qualidade da droga além de outros elementos como lugar e outras circunstâncias objetivas além das subjetivas como antecedentes circunstâncias sociais e pessoais 17 Art 28 1o da Lei 113432006 Às mesmas penas submetese quem para seu consumo pessoal semeia cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica 18 Cf boiteux Luciana 2006 A nova lei de drogas e o aumento de pena do tráfico de entorpecentes Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais 167 14 p 89 19 cArvAlho Salo de 2007 A política criminal de drogas no Brasil Rio de Janeiro Lumen Juris p 189 20 STF HC 97256 Posteriormente com base nessa decisão foi publicada a Res 052012 do Senado que suspendeu a expressão vedada a conversão em pena restritiva de direitos na forma do art 52 X da CF1988 90 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA segundo o art 28 2º Com tais critérios extremamente vagos e de difícil aplicação a distinção no caso concreto acaba sendo feita pela primeira autoridade que tem contato com o acusado prevalecendo a visão subjetiva desta sendo excessivamente ampla a discricionariedade concedida ao policial O grande problema e que viola inclusive os princípios constitucionais da legalidade e da proporcionalidade é a ausência na norma de uma distinção legal apriorística o que prejudica sobremaneira a defesa do acusado Assim considerase inconstitucional essa opção legislativa ao deixar propositalmente em aberto tal distinção justamente pela ausência de garantias legais que limitem a intervenção estatal com relação ao usuário boiteux 200921 Diante desse quadro que inclui o aumento da pena mínima do crime de tráfico e o maior tempo de cumprimento para obter transferência de regime e livramento condicional por ser equiparado a hediondo somados à ausência de distinção legal objetiva entre usuário e traficante o resultado é que a Lei de Drogas constitui hoje uma das principais causas do desproporcional crescimento dos níveis de encarceramento no Brasil boiteux 2010 Assim a legislação de drogas brasileira repete e reforça o grande abismo na resposta penal entre usuários e traficantes Para estes mesmo os de pequeno porte ou traficantesusuários pertencentes aos estratos mais desfavorecidos da sociedade a resposta penal é a prisão fechada agravando ainda mais as terríveis condições das superlotadas e infectas prisões brasileiras Em relação aos usuários de drogas que possuem condições de comprar droga sem traficar houve despenalização desde que estes não sejam confundidos com traficantes Mas quem são os encarcerados por drogas Segundo as conclusões da investigação realizada no Rio de Janeiro e em Brasília22 a 21 boiteux Luciana et al 2009 Tráfico de drogas e constituição Brasília Ministério da Justiça 22 boiteux Luciana Wiecko Ela et al 2009 Tráfico de drogas e constituição um estudo jurídicosocial do art 33 da Lei de Drogas e sua adequação aos princípios constitucionais penais Brasília Ministério da JustiçaPNUD A pesquisa citada teve como fonte as sentenças de primeiro grau condenatórias pelo crime de tráfico na cidade do Rio de Janeiro foro central estadual e federal e nas varas especializadas do Distrito Federal no período compreendido entre 07102006 e 31052008 e essa amostra tem condições de permitir a compreensão de como a Lei de Drogas brasileira é aplicada na prática 91 Luciana Boiteux maioria dos condenados por tráfico de drogas 615 responde individualmente ao processo ou seja foram presos sozinhos 664 são primários com relativamente baixas quantidades de droga sendo que os traficantes condenados atuam em sua maioria de forma individual ou pelo menos foram presos nessa situação Os dados são eloquentes no sentido de revelar que à diferença da ideia difundida pelo senso comum a maioria dos traficantes condenados não é por definição integrante de organização criminosa nem atua necessariamente em associação Assim na minoria dos casos em que o acusado não atuou sozinho ou seja em 469 destes foram presas duas pessoas agindo juntas Em 5805 dos casos nessa cidade os condenados por tráfico receberam penas de cinco anos de prisão ou acima do mínimo legal sendo a pena aplicada abaixo do mínimo em 41 dos casos Chama a atenção no Rio de Janeiro a quantidade de processos nos quais o juiz presume que o réu se dedique a atividades criminosas ou integre organizações criminosas com base em meras suspeitas ou seja quando presume a sua culpabilidade para o fim de negar a redução das penas o que foi constatado em cerca de 40 dos casos A conclusão a que se chegou foi que na prática houve uma diferença de interpretação entre os juízes na aplicação da causa especial de redução dificultando a diminuição das penas mesmo no caso de réus primários especialmente na Justiça Estadual23 Por outro lado foi detectado que na Justiça Federal do Rio de Janeiro houve maior redução da pena para os acusados presos como mulas transportadores de drogas na maioria dos casos estrangeiros e muitas delas mulheres enquanto os Juízes Estaduais aplicaram bem menos tal causa boiteux 2009 Diante disso tudo indica que um número significativo de pessoas não tiveram sua pena reduzida pelo fato de alguns juízes terem rejeitado a aplicação da forma privilegiada do 4o do art 33 situação essa altamente questionável do ponto de vista da legalidade e da constitucionalidade Notase no Brasil de forma clara a seletividade da atuação do sistema penal Embora haja diversos graus de importância na hierarquia do tráfico de drogas a atuação das autoridades parece 23 No Brasil a competência das Justiças Estaduais é determinada por exclusão ou seja os casos em que não envolvem situações de interesse federal são julgados pelos juízes estaduais 92 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA estar direcionada às camadas mais desfavorecidas da sociedade que possuem alta representatividade nas prisões brasileiras Destaquese que mesmo nos países centrais é mais fácil para os agentes da lei prenderem os revendedores das ruas ou street dealers que são os varejistas mais numerosos e fáceis de serem alcançados do que os traficantes atacadistas Assim a pergunta por que somente os pequenos e alguns poucos médios traficantes estão presos pode ser respondida no Rio de Janeiro pela atuação seletiva do sistema penal brasileiro que criminaliza a pobreza e os pobres e vulneráveis e a política repressiva de drogas só agrava essa situação Portanto diante de tudo o que foi dito podese concluir que o Brasil segue o modelo de controle penal de drogas inspirado nas convenções internacionais mas sua legislação é caracterizada por um lado pelo enfoque preventivo e humanitário dado ao usuário na linha da despenalização com reconhecimento das políticas de redução de danos consideradas muito avançadas e por outro destaca se o tratamento punitivo exacerbado ao traficante de drogas sujeito a penas altas sem que haja uma distinção legal clara entre essas duas figuras levando a uma maior representatividade dos pequenos varejistas nas prisões brasileiras Assim o sistema brasileiro de controle de drogas atua de forma seletiva e autoritária pois não limita o poder punitivo pelo contrário deixa de estabelecer limites e contornos diferenciadores exatos para as figuras do usuário do pequeno médio e grande traficante e atribui às autoridades no caso concreto ampla margem de discricionariedade o que acarreta uma aplicação injusta da lei A seguir se analisará qual é o impacto desse tipo de política de drogas na realidade do sistema penitenciário brasileiro 4 política de drogas e sistema penitenciário no brasil É alarmante verificarmos o grande crescimento da população carcerária no Brasil tendo triplicado o número relativo de presos entre 1992 e 2012 boiteux e PAduA 201324 24 boiteux Luciana PáduA João Pedro 2013 A desproporcionalidade da lei de drogas 93 Luciana Boiteux Nas tabelas abaixo consta a evolução do número de presos por 100 mil habitantes em nosso país Como se percebe temse mantido um constante e progressivo aumento da população carcerária desde o fim da década de 1990 já tendo o Brasil hoje o quarto contingente penitenciário de todo o mundo só ficando atrás de EUA China e Rússia25 tabela i Brasil número de presos total por 100 mil habitantes26 Ano Total de Presos Presos por 100 milhab 1992 114377 74 1995 148760 92 1997 170602 102 2001 233859 133 2004 336358 183 2007 422590 220 2010 496251 25917 2011 514582 26979 2012 548003 28731 A partir desse quadro verificouse que o tráfico de drogas é hoje o segundo crime com maior representatividade carcerária só os custos humanos e econômicos da atual lei de drogas no Brasil Rio de Janeiro UFRJ e Psicotropicus 25 Fonte httpwwwprisonstudiesorg 26 Fonte International Centre for Prison Studies considerando os dados mais recentes divulgados pelo Infopen Disponível em httpwwwprisonstudiesorginfoworldbrief wpbcountryphpcountry214 World Prison Brief supplied by the International Centre for Prison Studies maintained by Roy Walmsley 94 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA ficando atrás do crime de roubo mas deve superar este em breve eis que aquele possui os maiores percentuais de crescimento por ano27 Em 2012 o Brasil tinha cerca de um quarto de seus presos condenados por tráfico e esse número quase que dobrou com a entrada em vigor da Lei de Drogas em 2006 como se vê abaixo tabela ii População carcerária brasileira total de presos e percentual de condenados por tráfico 2005201228 Ano Presos Total Presos Tráfico 2005 361402 32880 910 2006 383480 47472 1238 2007 422373 65494 1550 2008 451219 77371 1750 2009 473626 91037 1922 2010 496251 106491 2146 2011 514582 125744 2443 2012 548003 138198 2521 Fonte InfopenMinistério da Justiça Aprofundando essa análise na comparação entre os crimes mais representativos no sistema penitenciário brasileiro o que se verifica é que o crescimento do número de presos por tráfico supera de longe o percentual de crescimento em relação aos demais delitos como se vê abaixo 27 boiteux Luciana 2010 Drogas y prisión la represión contra las drogas y el aumento de la población penitenciaria en Brasil In metAAl P youngers C eds Sistemas sobrecargados leyes de drogas y cárceles en América Latina Amsterdan Washington TNIWOLA p 3039 28 As Tabelas foram originalmente publicadas em boiteux 2010 95 Luciana Boiteux tabela iii Presos por crimes no Brasil comparação entre dez2007 e dez2012 Dez2007 Dez2012 Variação Tráfico de drogas 65494 138198 11100 Homicídio29 48761 63066 2933 Furto30 57442 77873 3556 Estupro 9754 12954 3280 Roubo31 120079 148067 2330 Latrocínio 13258 15415 1626 Fonte InfopenMinistério da Justiça Além disso na prática da aplicação das penas a forma de operacionalização seletiva do sistema penal nos crimes de droga acarreta maior representatividade de minorias étnicas e mulheres entre os condenados conforme se verifica também no resto do mundo3229 29 Foram considerados em 2012 tanto os homicídios simples 27410 quanto os qualificados 35656 assim como em 2007 17310 e 31451 respectivamente Fonte Infopen Ministério da Justiça 30 Foram considerados em 2012 tanto os furtos simples 38027 quanto os qualificados 39846 assim como em 2007 26673 e 30769 respectivamente Fonte Infopen Ministério da Justiça 31 Levaramse em consideração nesse item tanto os roubos simples 48572 quanto os qualificados 84527 assim como em 2007 36523 e 83826 respectivamente Fonte Infopen Ministério da Justiça 32 humAn rights WAtch Punishment and Prejudice Racial Disparities in the War on Drugs New York 2000 96 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 5 mulheres tráfico e prisão A população carcerária brasileira total é composta de 64 de presas mulheres3330 Entre 2007 e 2012 segundo o Infopen o crescimento das presas por tráfico de drogas foi de 7711 tendo praticamente dobrado o número de mulheres presas por tráfico nesse período tabela iv Crescimento dos presos por tráfico de drogas por sexo 2007 2012 2007 2012 Variação Masculino 57610 8796 117404 8937 10379 Feminino 7884 1203 13964 1063 7711 Total 65494 131368 10058 Fonte InfopenMinistério da Justiça Deve ser registrado que embora em termos absolutos haja mais homens presos por tráfico de drogas em termos relativos as mulheres estão superrepresentadas entre os condenados por esse crime A análise da questão do gênero no tráfico de drogas é um tema bastante sensível sendo relevante destacar que o aumento desproporcional do encarceramento feminino por crimes ligados a drogas é observado em vários países inclusive nos EUA onde foram realizados estudos específicos sobre o tema3431 Assim o crime de tráfico de drogas ilícitas é o que mais encarcera mulheres sendo o maior percentual das condenadas por tal crime 1063 seguido pelo dos crimes contra a fé pública nos quais 511 apenas são de condenadas do sexo feminino como se verifica da tabela abaixo 33 Fonte Infopen dados mais recentes de dezembro de 2012 34 bushbAskette S R The War on Drugs A War Against Women In cook S dAvies S eds Harsh Punishment International Experiences of Womens Imprisonment Boston Northeastern University Press 1999 97 Luciana Boiteux tabela v Percentual de presos por crime e por sexo 2012 Homens Mulheres Total Tráfico de drogas 117404 8937 13964 1063 131368 Crimes contra a fé pública 4468 9488 241 511 4709 Crimes contra a paz pública 9331 9611 377 388 9708 Crimes contra a pessoa 63071 9742 1665 257 64736 Crimes contra o patrimônio 261780 9768 6195 231 267975 Crimes contra os costumes 21290 9904 214 099 21504 Fonte InfopenMinistério da Justiça Essa questão foi inclusive discutida pelo Conselho Nacional de Justiça sendo destacado quanto a sociedade brasileira desconhece a realidade do encarceramento feminino e que talvez por esse motivo seja omissa frente às precárias condições existentes sendo ainda maior a omissão das autoridades públicas em relação às mulheres privadas de liberdade uma vez que o sistema carcerário nacional é concebido para o encarceramento masculino3532 Nesse sentido apenas 53 das unidades prisionais brasileiras têm exclusividade para mulheres enquanto 47 são alas ou celas femininas em complexos prisionais masculinos36 33 Além disso essas mulheres adicionam a vulnerabilidade de gênero à vulnerabilidade social geral observada em relação à maioria dos presos por tráfico de drogas O perfil geral dessas 35 hAshimoto Érica Akie 2011 Número de mulheres encarceradas cresceu nos últimos 5 anos IBCCRIM São Paulo Disponível em httpwwwibccrimorgbrsitenoticias conteudophpnotid13838 Acesso em 19 nov 2011 36 sAntA ritA Rosangela Peixoto 2006 Mães e crianças atrás das grades em questão o princípio da dignidade da pessoa humana 2006 162 f Dissertação Mestrado em Política Social Universidade de Brasília Brasília 98 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA mulheres presas é bem definido a maioria é não branca está em idade fértil entre 18 e 30 anos com baixa escolaridade A maioria das presas tem ensino fundamental incompleto 11958 tem entre 18 e 24 anos 6521 seguida de grande parcela de mulheres entre 25 e 29 anos 6018 é parda 11438 e cumpre penas de 4 a 8 anos 55353734 No caso das presas por drogas a maioria são mulheres pobres que trabalhavam em bicos mal remunerados e ocupações degradantes eou perigosas É esse o perfil e a cara da maioria das mulheres que o sistema penal alcança ao condenálas pelo crime de tráfico de drogas3835 Esse contexto ainda é mais grave se verificarmos que segundo os dados do Depen 80 das mulheres em situação de prisão são mães Nesse universo que é reduzido se comparado ao de homens mas cada vez mais representativo verificase o despreparo do sistema penitenciário para lidar com a situação destas mulheres presas que vivem em espaços precários com problemas de higiene e acompanhamento médico mesmo diante de importantes normativas internacional e interna que garantem a elas direitos39 36 6 drogas encarceramento e os custos dessa política A ssim no Brasil o grande aumento da população carcerária registrado nos últimos anos vem trazendo graves consequências tanto econômicas em relação ao aumento de gastos penitenciários 37 Hashimoto 2011 38 Cf Andrade Vera Regina Pereira de 2004 Sexo e gênero a mulher e o feminino na criminologia e no sistema de justiça criminal Boletim IBCCRIM São Paulo v11 n137 p 2 abr EspinozA Olga 2004 A mulher encarcerada em face do poder punitivo São Paulo IBCCRIM Frinhani Fernanda de Magalhães Dias Souza Lídio de 2005 Mulheres encarceradas e espaço prisional uma análise de representações sociais Psicologia Teoria e Prática São Paulo 7 1 jun Lemgruber Julita 1999 Cemitério dos vivos análise sociológica de uma prisão de mulheres 2 ed Rio de Janeiro Forense Secretaria Especial De Politicas Para Mulheres 2002 Relatório do Grupo de Trabalho Interministerial sobre a Reorganização e Reformulação do Sistema Prisional Feminino Brasília Soares Bárbara Musumeci Silva Iara Ilgenfritz 2002 Prisioneiras vida e violência atrás das grades Rio de Janeiro Garamond 39 Tais como Regras Mínimas para o Tratamento de Presos da ONU a recente Carta de Bangkok para o tratamento de mulheres presas Princípios e normas previstos na Constituição Federal a Lei de Execução Penal e as Resoluções do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária CNPCP entre outros 99 Luciana Boiteux como humanas já que um maior número de pessoas são submetidas a péssimas condições de vida carcerária Tratase de um custo muito alto arcado pelo Estado brasileiro40 37 que vem demonstrando grandes dificuldades para melhorar as condições de suas prisões o que já levou inclusive a denúncia perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos com relação às terríveis condições da Penitenciária conhecida como Urso Branco no Acre região norte do Brasil onde mais de 100 presos foram assassinados no interior do presídio sob a tutela do Estado entre os anos de 2000 e 2008 A descrição oficial das condições gerais do sistema penitenciário nacional é a seguinte A quase totalidade dos presos é pobre originários da periferia com baixa escolaridade e sem ou com pouca renda No ato da prisão o aparelho policial age sempre com prepotência abuso de poder sonegação de direitos e não raro com violência A CPI ouviu muitas denúncias de flagrantes forjados em especial no que se refere às drogas bem como de maustratos praticados pelos agentes policiais41 38 Em que pese o alto gasto oficial brasileiro este não é suficiente para alterar a situação de superlotação e violência nos presídios brasileiros eis que cada vez se prende mais gente além das graves deficiências de assistência médica social jurídica e educacional na alimentação e no vestuário e dos relatos de descontrole por parte do Estado e de domínio de organizações criminosas no interior de alguns presídios Uma boa parte dos presos não deveria estar nas penitenciárias sendo esse atraso decorrente de ausência ou insuficiência de assistência jurídica o que faz com que muitos fiquem presos mais tempo do que suas penas previam A opção pela pena privativa de liberdade em vez de medidas alternativas e a política repressiva de drogas impactam significativamente este quadro 40 Cf Boiteux e Pádua 2013 o Brasil gastou com seus 548003 presos em 2012 cerca de R 6785 bilhões dos quais R 1626 bilhões somente com os presos por tráfico de drogas considerando o valor mensal aproximado por preso estabelecido como parâmetro pelo Congresso Nacional Vide dados da Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário do Congresso Nacional julho de 2008 que indicou como média nacional o custo mensal por preso de R 103192 hum mil e trinta e um reais e noventa e dois centavos Fonte Relatório da CPI do Sistema Penitenciário Congresso Nacional Brasília 2008 p 367 41 Relatório da CPI cit p 214 100 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Diante das condições insalubres da maioria das prisões e o fato de que a grande maioria dos detentos são pessoas pertencentes às classes mais baixas além da hipótese de que a maioria dos presos por tráfico seja de pequenos traficantes sem nenhuma importância na cadeia comercial de venda das substâncias ilícitas temse que uma grande quantidade de dinheiro que poderia estar sendo mais bem utilizada em investimentos em saúde educação e infraestrutura esteja sendo desperdiçada para prender pessoas que vão sair dali em piores condições do que chegaram conforme apontam diversos estudos sobre o sistema prisional no Brasil e internacionalmente42 39 Ao comparar esse gasto penitenciário com o investimento público em educação no Brasil o contraste é marcante O fato é que se gasta mal cerca de seis vezes mais com um preso do que com um aluno na escola vide boiteux e PáduA 2013 O mesmo ocorre nos EUA onde segundo foi calculado em 1996 o custo de um preso naquele país por ano superava o gasto anual de um estudante em Harvard incluindo ensino moradia e os gastos diários com alimentação43 40 7 considerações finais E ste trabalho teve por objetivo responder a duas perguntas Qual é a relação entre a política de drogas e o encarceramento no Brasil E quais seriam as propostas para alterar essa realidade Diante do exposto podese dizer que a política de drogas brasileira por ser a causa do crescimento no número de presos em nosso país assim como em outros lugares do mundo é diretamente responsável pelo agravamento das condições dos presídios brasileiros Gastase muito e gastase mal para impor condições miseráveis de vida na prisão a grupos vulneráveis 42 Para uma ampla revisão de literatura vide cervini Raul 2002 Os processos de descriminalização 2 ed São Paulo RT para estudos sobre a realidade brasileira cArvAlho Salo coord 2007 Crítica à execução penal 2 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 43 Segundo o economista de Harvard Jeffrey Miron 2008 referente aos custos apurados no início dos anos 1990 Apud The Incarceration of Drug Offenders An Overview The Beckley Foundation Drug Policy Programme Report Sixteen p 12 101 Luciana Boiteux o que demonstra a atuação seletiva do sistema penal e a inutilidade dessa política repressiva de drogas na proteção da saúde pública e na prevenção ao abuso no consumo de substâncias Em relação ao objetivo declarado de reduzir o consumo o proibicionismo falhou mas nunca tivemos tantas pessoas presas especialmente mulheres Mas o que pode ser feito Há que se mudar a política de drogas atual para uma mais humana eficaz e humanitária investir em redução de danos descriminalizar o uso e o cultivo e regular legalizar todo o mercado produtivo das substâncias hoje ilícitas44 41 Ao se descriminalizar a posse estarseá ampliando as possibilidades de prevenção Ao se regulamentar a venda estar seá fiscalizando um consumo que existe de forma descontrolada no mercado ilícito e ainda se gerará impostos para financiar a prevenção Há que se pensar em alternativas sociais e retirar as mulheres e as crianças dos cárceres que só deveriam receber os condenados por crimes violentos Os novos exemplos internacionais recentemente implementados em países como Uruguai podem ser um marco de mudança para a superação do modelo atual repressivo que tem na prisão como pena a sua base simbólica mais forte 8 referências bibliográficas AndrAde Vera Regina Pereira de 2004 Sexo e gênero a mulher e o feminino na criminologia e no sistema de justiça criminal Boletim IBCCRIM São Paulo v11 n137 p 2 abr bArAttA Alessandro 1997 Defesa dos Direitos Humanos e Política Criminal In Discursos sediciosos Rio de Janeiro Revan n 3 p 5769 bAtistA Nilo 1998 Política criminal com derramamento de sangue Discursos Sediciosos Ano 3 n 56 12 sem beWleytAylor D trAce M stevens A 2005 Incarceration of drug offenders Costs and impacts The Beckley Foundation Drug Policy Programme Briefing Paper Seven London The Beckley Foundation Retrieved March 10 2013 from httpwww iprtiefilesincarcerationofdruguserspdf beWleytAylor D hAllAm C Allen R 2009 The incarceration of drug offenders An overview The Beckley Foundation Drug Policy Programme Report Sixteen London Kings College International Centre for Prison Studies Retrieved March 10 44 Por meio da Legalização Controlada vide BOITEUX 2006 102 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 2013 from httpwwwbeckleyfoundationorgpdfBFReport16pdf boiteux Luciana e PáduA João Pedro 2013 A desproporcionalidade da lei de drogas os custos humanos e econômicos da atual lei de drogas no Brasil Rio de Janeiro UFRJ e Psicotropicus boiteux Luciana Wiecko Ela et al 2009 Tráfico de drogas e constituição um estudo jurídicosocial do art 33 da Lei de Drogas e sua adequação aos princípios constitucionais penais Brasília Ministério da JustiçaPNUD boiteux de F rodrigues Luciana Boiteux 2006a O controle penal sobre as drogas ilícitas o impacto do proibicionismo no direito penal e na sociedade São Paulo Tese de Doutorado Faculdade de Direito da USP boiteux Luciana 2006b A nova lei de drogas e o aumento de pena do tráfico de entorpecentes Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais n 167 14 p 89 2006c Quinze anos da Lei dos crimes hediondos reflexões sobre a pena de prisão no Brasil Revista Ultima Ratio v 1 n 0 Rio de Janeiro Lumen Juris p 107133 2010 Drogas y prisión la represión contra las drogas y el aumento de la población penitenciaria en Brasil In metAAl P youngers C eds Sistemas sobrecargados Leyes de drogas y cárceles en América Latina Amsterdan Washington TNIWOLA p 3039 BRASIL COMISSAO PARLAMENTAR DE INQUERITO 2008 Relatório da CPI do Sistema Penitenciário Congresso Nacional Brasília p 367 bushbAskette S R The War on Drugs A War Against Women In cook S dAvies S eds Harsh Punishment International Experiences of Womens Imprisonment Boston Northeastern University Press 1999 cArvAlho Salo de 2007 A política criminal de drogas no Brasil Rio de Janeiro Lumen Juris cArvAlho Salo coord 2007 Crítica à execução penal 2 ed Rio de Janeiro Lumen Juris cervini Raul 2002 Os processos de descriminalização 2 ed São Paulo RT correA Catalina Pérez Org 2012 Justicia desmedida Proporcionalidad y delitos de drogas en America Latina Ciudad de Mexico Fontamara del olmo Rosa 1990 A face oculta da droga Rio de Janeiro Revan 1990 esPinozA Olga 2004 A mulher encarcerada em face do poder punitivo São Paulo IBCCRIM Fiore Mauricio 2007 Uso de Drogas Controvérsias Médicas e Debate Público São Paulo FAPESPMercado das Letras FrinhAni Fernanda de Magalhães Dias souzA Lídio de 2005 Mulheres encarceradas e espaço prisional uma análise de representações sociais Psicologia Teoria e Prática São Paulo 7 1 jun hAshimoto Érica Akie 2011 Número de mulheres encarceradas cresceu nos últimos 5 anos IBCCRIM São Paulo Disponível em httpwwwibccrimorgbrsitenoticias conteudophpnotid13838 Acesso em 19 nov 2011 humAn rights WAtch Punishment and Prejudice Racial Disparities in the War on Drugs New York 2000 lemgruber Julita 1999 Cemitério dos vivos análise sociológica de uma prisão de mulheres 2 ed Rio de Janeiro Forense luisi Luiz 1990 A legislação penal brasileira sobre entorpecentes notícia histórica Fascículos de Ciências Penais Ano 3 v 3 n 2 abrmaijun p 157 metAAl P youngers C Eds 2010 Sistemas sobrecargados Leyes de drogas y cárceles en América Latina Amsterdan Washington TNIWOLA morAis Paulo César de Campos sd Mitos e omissões repercussões da legislação sobre entorpecentes na região metropolitana de Belo Horizonte Disponível em https www2mppagovbrsistemasgcsubsitesupload60MITOS20E20OMISSÃES pdf p 8 Acesso em 03 dez 2013 sAntA ritA Rosangela Peixoto 2006 Mães e crianças atrás das grades em questão o princípio da dignidade da pessoa humana 2006 162 f Dissertação Mestrado em Política Social Universidade de Brasília Brasília secretAriA esPeciAl de PoliticAs PArA mulheres 2002 Relatório do Grupo de Trabalho Interministerial sobre a Reorganização e Reformulação do Sistema Prisional Feminino Brasília SoAres Bárbara Musumeci silvA Iara Ilgenfritz 2002 Prisioneiras vida e violência atrás das grades Rio de Janeiro Garamond UNITED NATIONS OFFICE FOR DRUGS AND CRIMES 2013 World Drug Report Disponível em httpwwwunodcorgwdr Acesso em 03 dez 2013 o direito à provA violAdo nos processos de tráfico de entorpecentes Luís Carlos Valois Mestre e Doutorando em Criminologia na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Membro da Associação de Juízes para Democracia AJD e portavoz da Law Enforcement Against Prohibition LEAP Agentes da Lei Contra a Proibição LEAPBrasil Juiz de Direito sumário 1 Introdução 2 A discricionariedade do poder punitivo 3 Testemunhas do crime de tráfico de substância entorpecente 4 As invasões de domicílio 5 O direito da defesa à prova 6 A prova testemunhal e o contraditório nos processos de tráfico de entorpecentes 7 O juiz de combate ao tráfico 8 Conclusões 9 Referências bibliográficas 1 introdução S endo uma das funções do processo a de garantia do cidadão contra a arbitrariedade do Estado na atividade deste de solução de litígios toda e qualquer evolução do próprio processo deve seguir 106 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA no sentido de manter essa garantia aperfeiçoandoa ou no mínimo restringindo qualquer desvio que ameace a função garantista do processo Tal função não se resume a mais uma das garantias do Estado burguês muito embora a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão não pudesse ter esquecido dessa fundamental proteção notadamente no âmbito penal ao declarar no art 7º que ninguém pode ser acusado preso ou detido senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por esta prescritas É função diretamente ligada à legitimidade do poder jurisdicional nascida muito antes da revolução burguesa quando surge a figura do legislador e a autoridade pública começa a preestabelecer em forma abstrata regras destinadas a servir de critério objetivo e vinculativo para tais decisões afastando assim os temores de julgamentos arbitrários e subjetivos1 Há que se notar que temores de julgamentos arbitrários e subjetivos nunca se dissiparam e a história é recheada de momentos de maiores e menores períodos de arbitrariedade A noção hoje de pósmodernidade e de perda dos vínculos e crenças a respeito da ciência e de um Estado todopoderoso só acrescenta mais receio por parte da população e consequentemente menos legitimidade à ação estatal de solução de litígios Ao mesmo tempo o que se convencionou chamar de pós modernidade2 tem exigido maior humildade de quem se pretende cientista devendose aceitar as limitações não só da ciência como também das funções do Estado entre elas a função jurisdicional 1 ArAúJo Cintra Antônio Carlos de Grinover Ada Pellegrine Dinamarco Cândido R Teoria geral do processo 13 ed 1997 p 23 Os autores citam como marco histórico e fundamental dessa época a Lei das XII Tábuas do ano de 450 aC Grifo no original 2 A pósmodernidade sinaliza para uma mudança de paradigmas científicos que só podem ser alcançados diminuindose a arrogância científica atitude impensável na modernidade ciosa de sua razão intocável Muito menos do que se prendendo a datas e a referências estanques e aceitando mesmo os riscos inerentes ao uso e emprego da expressão pósmodernidade entendese interessante a identificação deste processo de ruptura como modo de se diferenciar e de se designar com clareza o período de transição irrompido no final do século XX que tem como traço principal a superação dos paradigmas erigidos ao longo da modernidade A pósmodernidade tem pois a ver com a crise da modernidade e com a necessidade de revisão da modernidade Bittar Eduardo C B O direito na pósmodernidade e reflexões frankfurtianas 2009 p 105106 107 Luís CarLos VaLois favorecendo avaliações mais abertas de fenômenos antes fechados em dogmáticas impermeáveis Dentro dessa perspectiva pretendemos analisar uma das maiores razões de temor não só na atividade jurisdicional mas na atividade do sistema penal como um todo qual seja o processo de apuração do crime de tráfico ilícito de entorpecentes primeiramente examinando e explicando o porquê desta inicial afirmação demonstrando quanto a discricionariedade do poder repressivo é maior no âmbito do tráfico de entorpecentes Em seguida nosso objetivo é demonstrar que o que se denominou guerra às drogas3 não tem causado apenas prejuízos para a população em si pela ausência de políticas verdadeiramente preventivas mas dentro do limitado âmbito deste trabalho mostrar que a guerra às drogas a discricionariedade relacionada à repressão aos crimes a ela relativos tem prejudicado a racionalidade do processo penal principalmente no que diz respeito às provas e ao contraditório suporte principal do processo em um Estado Democrático de Direito Qualquer guerra por natureza é polarizadora e portanto todos que nela estão envolvidos acabam assumindo um lado sem muita reflexão A guerra às drogas não é diferente com a ressalva de que é uma guerra que tem sido travada no seio de nossa sociedade fazendo com que emoções e sentimentos influam no refletir sobre questão tão séria No processo penal em especial em que antecipadamente reconhecemos com Gustavo Badaró que expressões como prova e verdade também são dotadas de uma grande carga emocional4 o cuidado deve ser redobrado em questões em que o próprio meio social já se demonstra sensível Evitaremos fazer colocações sobre nossa opção política mas é necessário reconhecer como premissa deste trabalho que guerras causam insanidades que guerras não são naturais e que não podemos estudar os instrumentos processuais como se estes estivessem sendo utilizados em uma situação de normalidade social A opção política do legislador é contraditória por si só ao tornar 3 Na literatura criminológica a guerra às drogas moderna com crescente rigor teria tido início no início dos anos 1970 nos EUA durante o governo Nixon Bertram Eva et al Drug war politics the price of denial 1996 p 10 4 bAdAró Gustavo Henrique Righi Ivahy Ônus da prova no processo penal 2003 p 27 108 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA tão rigorosa a pena de conduta tida como crime contra a saúde pública quando na verdade todos sabemos o cuidado com que governos federal estadual e municipal tratam a saúde pública do nosso país O distanciamento entre a Academia e a prática judicial não ajuda a se chegar a respostas racionais e Chaves Camargo resume bem certos aspectos desse afastamento favorecendo uma jurisprudência de interesses distante da realidade social a crença em um sistema perfeito que por si só possa resolver todos os problemas apresentados na ciência jurídica um ensino jurídico pautado pela tecnização carente de uma formação doutrinária e filosófica ampla que possa contribuir para uma postura crítica diante dos institutos jurídicos uma jurisprudência que se pretende fixa vinculante sem respeitar a complexidade e a mutabilidade das relações sociais e a pacificidade dos manuais de direito sempre preocupados em afirmativas categóricas5 Por isso essencial a crítica à jurisprudência que também pretendemos efetivar reconhecendo que às dificuldades acima referidas se soma a imobilidade de um poder judiciário hierarquizado repetidor de jurisprudências tidas como superiores atual a descrição que Nelson Hungria fez de certos juízes como reduzidos ao humilde papel de esponja que só restitui a água que absorve6 Examinaremos igualmente o procedimento de lavratura da prisão em flagrante sua importância para o curso do processo de conhecimento a colheita de provas realizada pela polícia e utilizada pelo Judiciário como fundamentação na sentença penal condenatória Como complemento enfim trabalharemos com a crescente bibliografia norteamericana que tem denunciado as violações de direitos civis no combate às drogas não só porque é costume se imaginar que a política repressiva dos EUA funciona melhor do que a nossa mas também porque o rigor que temos imposto nesse campo deriva muito de imposições feitas por governos norteamericanos7 5 Direitos humanos e direito penal limites da intervenção estatal no estado democrático de direito In Estudos criminais em homenagem a Evandro Lins e Silva 2001 p 76 7778 6 Comentários ao Código Penal 5 ed 1977 v 1 t 1 p 79 7 Há anos os EUA exportam sua política de drogas para os demais países condicionando inclusive contratos comerciais ao rigor da política de drogas da política local do outro país o que começou em 1972 com a criação do Cabinet Committee for International 109 Luís CarLos VaLois 2 A discricionariedade do poder punitivo A discricionariedade dos agentes do Estado neste tema é enorme a começar pela própria tipificação do delito de tráfico de entorpecentes quando o art 33 da Lei 113432006 traz dezoito verbos entre eles condutas que não são necessariamente de tráfico no sentido de tráfego permitindo um amplo enquadramento de qualquer cidadão que tenha em depósito traga consigo ou guarde substância entorpecente como traficante O princípio da legalidade que tem como corolários a clareza e a objetividade do tipo resta no mínimo prejudicado com tamanha abertura do tipo reconhecido pela doutrina como crime de ação múltipla8 carente o nosso país de maiores críticas sobre a opção do legislador o qual poderia sem muito esforço limitar ou dar maior clareza a expressões que estabelecem condutas e penas tão graves Resultado ou não da passionalidade inerente à guerra às drogas essa discricionariedade se reflete nas ruas quando a avaliação da conduta é feita pela polícia Sim pois é o policial que selecionará o futuro flagranteado indiciado e réu do processo criminal fará a avaliação da conduta entre o amplo rol estabelecido atividade esta que como veremos acaba surtindo efeitos em toda persecução criminal Neste campo as preconcepções do policial têm campo livre pois no ambiente de guerra às drogas criado as autoridades policiais podem parar qualquer um revistar quem entender por suspeito Diferentemente dos demais crimes em que o suspeito é quem age ou pratica conduta relacionada ao delito do qual se suspeita no tráfico de drogas qualquer um pode ser suspeito O mais grave é que garantindo à polícia a liberdade para parar interrogar e revistar qualquer um como sói acontecer principalmente nas comunidades pobres há a possibilidade de se facilitar discriminações raciais e étnicas9 além do preconceito já inerente aos Narcotic Control CCINC olmo Rosa Del A face oculta da droga 1990 p 44 8 FrAnco Alberto Silva et al Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial 1997 p 684 9 Nos EUA já há decisões reconhecendo a prejudicialidade dessa discricionaridade policial nos termos acima citados Other courts emphasized that granting police the freedom to stop interrogate and search anyone who consented would likely lead to racial and 110 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA locais onde essas apreensões e detenções são realizadas Selecionado o flagranteado segue para a delegacia de polícia onde o delegado que deveria ser a autoridade superior a avaliar a prisão efetuada sem muito mais elementos a não ser os que foram trazidos pela autoridade da rua acaba ratificando a prisão O Código de Processo Penal determina que ao lavrar o auto de prisão em flagrante resultando das respostas fundada a suspeita contra o conduzido a autoridade mandará recolhêlo à prisão10 art 304 1º portanto em interpretação lógica contrario sensu não havendo fundadas suspeitas a autoridade não deveria recolhêlo à prisão A atividade de avaliar a prisão em flagrante pela autoridade policial por vários motivos entre eles a própria crescente demanda inerente ao estado de guerra resta prejudicada Mas o que se quer ressaltar aqui é a necessidade de fundamentação por parte da autoridade policial na lavratura do auto de prisão em flagrante medida sempre ignorada Quando a Constituição Federal estabeleceu que aos litigantes em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa com os meios e recursos a ela inerente inc LV do art 5º pretendeu não permitir que houvesse no ordenamento jurídico manifestação sem fundamentação ou seja que não permitisse a ampla defesa e o contraditório Assim sendo a atividade do delegado de polícia de extrema importância para o curso do processo penal como um todo a atividade de na letra da lei especificar o porquê entendeu como fundada a suspeita contra o conduzido e a omissão viola garantia constitucional e agrava a discricionariedade da qual estamos falando ethnic discrimination AlexAnder Michelle The New Jim Crow mass incarceration in the age of colorblindness 2012 p 66 A autora refere que o consentimento à revista necessário no sistema norteamericano muitas vezes não é respeitado ou diante das circunstâncias dificilmente pode ser negado por aquele que é alvo da atividade policial No Brasil o preconceito normalmente dissimulado ficou amplamente evidenciado na Ordem de Serviço 8 BPMI8222012 do Comandante da 2ª Cia PM em Campinas São Paulo quando a autoridade policial expressou que as ocorrências focassem em abordagem a transeuntes e em veículos em atitudes suspeita especialmente indivíduos de cor parda ou negra sic Disponível em httpdiariospcombrnoticia detalhe42509PMdaordemparaabordar91negrosepardos92 Acesso em 26 mar 2013 10 Grifo nosso 111 Luís CarLos VaLois Por certo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que o inquérito policial é peça meramente informativa não suscetível de contraditório e sua eventual irregularidade não é motivo para decretação da nulidade da ação penal11 posicionamento evidentemente tomado por razões de política criminal uma vez que a própria Constituição Federal garantiu a todos os procedimentos inclusive aos administrativos como vimos acima o contraditório Todavia a adaptação de um procedimento inquisitório não recepcionado pela Constituição Federal no ordenamento jurídico não pode afastar a possibilidade do exercício da ampla defesa como bem ressalta marta saad quando afirma que nos inquéritos policiais que se iniciam por meio de prisão em flagrante delito o direito de defesa deve ser exercido imediatamente porque o indiciamento é automático nessas hipóteses12 e por esse prisma maior razão em se exigir manifestação da autoridade policial acerca da suspeita contra o conduzido Há inclusive entendimento com o qual concordamos quando utilizamos o argumento contrario sensu acima ao avaliar o art 304 do CPP de que quando a autoridade policial entender pela não suspeita do conduzido esta deve lavrar auto acerca de sua decisão uma vez que a prisão já teria se efetuado na rua Lavratura de auto flagrante tudo quanto houver sido narrado à autoridade policial deverá constar do auto de flagrante que terá de ser lavrado sempre ainda que a autoridade se convença de que a prisão foi arbitrária Nesse último caso como será explicado adiante a autoridade não recolherá preso o conduzido art 304 1º mas a lavratura do auto é indeclinável desde que alguém tenha sido apresentado como preso em flagrante O auto será instrumento hábil para documentar fatos que ocorram a prisão de alguém sua condução até a presença da autoridade sua apresentação como autor do crime etc e que tem relevância jurídica Servirá ele então para que se possa aquilatar a responsabilidade de quem efetuou a prisão art 350 do C Penal e o acerto ou desacerto da autoridade policial13 11 HC 83233RJ rel Min Nelson Jobim 2ª T DJ 19032004 12 O direito de defesa no inquérito policial 2004 p 263 13 tornAghi Hélio Curso de processo penal 1980 p 48 No mesmo sentido e 112 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Mas o que acontece na prática é algo totalmente inverso com autos de prisão em flagrante sem nenhuma fundamentação mas somente trazendo declarações objetivas e sucintas das testemunhas quase sempre exclusivamente policiais situação da qual falaremos logo a seguir sem que se saiba verdadeiramente a forma de atuação policial Embora seja fato notório a qualquer operador do direito um trabalho científico deve fazer afirmações com o máximo de comprovação possível e na semana entre 03032012 e 09032012 quando estivemos no plantão forense da capital no Amazonas14 verificamos que dos 58 autos de comunicação em flagrante nenhum possuía manifestação da autoridade policial informando as razões pela qual considerou o conduzido como autor do delito de tráfico de substância entorpecente havendo quando muito a superficial declaração de que a autoridade policial convicta da situação de flagrante mandou lavrar o auto o que obviamente não se equipara à fundamentação exigida constitucionalmente pois esta como já referido anteriormente deve permitir o exercício da ampla defesa 3 testemunhas do crime de tráfico de entorpecentes N a mesma acima referida verificação empírica que efetivamos foi observado que dos 58 autos de prisão em flagrante 55 tinham exclusivamente como testemunhas policiais entre civis e militares sendo estes a maioria Tal verificação pode ser facilmente comprovada nos sites dos tribunais de justiça Como exemplo avaliando os últimos 100 acórdãos de apelações em crimes de tráfico de entorpecentes 89 faziam referência a testemunhos exclusivamente de policiais15 Sobre essa constatação os operadores de direito também não precisam de maiores comprovações vez que se trata de fato notório O STF tem mantido o posicionamento de que a prova testemunhal exclusivamente formada por policiais é válida16 independentemente apresentando idêntica citação JArdim Afrânio Silva A prisão e sua documentação Disponível em wwwamperjorgbr Acesso em 26 mar 2012 14 O autor é juiz de direito no Estado do Amazonas atualmente titular da Vara de Execuções Penais 15 Avaliação realizada em 26032013 no endereço eletrônico wwwtjspjusbr 16 Ementa Processual penal Penal Testemunha policial Prova Exame I O Supremo 113 Luís CarLos VaLois do delito de que se trata no que é seguido por todas as cortes estaduais Nessa questão outra circunstância normativa é esquecida Tratase da regra do art 304 2º do CPP que estabelece que a falta de testemunhas da infração não impedirá o auto de prisão em flagrante mas nesse caso com o condutor deverão assinálo pelo menos duas pessoas que hajam testemunhado a apresentação do preso à autoridade Ora o legislador pretendeu limitar a conduta de se prender sem testemunhas do fato disciplinando que apenas na falta de testemunhas da infração o auto pode ser lavrado com testemunhas de apresentação Sendo portanto evidente a prevalência que o ordenamento deu às testemunhas do fato não é salutar o posicionamento jurisprudencial de se permitir testemunhas policiais estas que ordinariamente só conhecem a situação criminosa após a noticia criminis ou seja após as verdadeiras testemunhas do fato apresentarem a informação deste à polícia No caso do crime de tráfico de entorpecentes o problema é mais grave uma vez que estamos falando de crime que ocorre necessariamente no meio social com a presença senão participação de diversas pessoas entre estas os próprios consumidores havendo pouca justificativa para não se cumprir a norma que pede seja dada prioridade às testemunhas do fato Por certo por ser a conduta de compra e venda de substância entorpecente uma atividade consensual há dificuldades para a polícia conseguir testemunhas da transação comercial tida como ilícita mas nenhuma dificuldade operacional pode ser justificativa para o não cumprimento da norma notadamente sendo regra de suma importância para a formação de convencimento derradeira no processo penal além de garantia do cidadão contra prisões arbitrárias Ainda que reconheçamos o descrédito do conceito de verdade seja em razão da nova visão científica mais humilde trazida pela pósmodernidade seja pela consciência das limitações do processo Tribunal Federal firmou o entendimento no sentido de que não há irregularidade no fato de o policial que participou das diligências ser ouvido como testemunha Ademais o só fato de a testemunha ser policial não revela suspeição ou impedimento III HC indeferido HC 76557 rel p acórdão Min Carlos Velloso 2ª T j 04081998 114 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA mesmo não é possível abrir mão da busca da verdade que é o único critério aceitável como premissa para uma decisão justa17 devendose privilegiar todas as normas que indiquem para uma maior aproximação da verdade possível no processo O mito de que policias não mentem e são presumidamente idôneos por exercerem função pública de relevante interesse social18 tem sido desfeito pela realidade pelo clima hostil da guerra às drogas e do pânico moral desta derivado Durante a metade do último século historiadores sociais e sociólogos do desvio têm conceituado como pânico moral19 o fenômeno que ajuda a entender tempos em que a paixão domina e produz decisões políticas e comportamentos que de outra forma não teriam sido produzidos A teoria do pânico moral oferece insights sobre o desenvolvimento das políticas contemporâneas acerca do crime e das drogas e sobre os políticos envolvidos em tais temas20 Em um ambiente desse tipo quem está na linha de frente da batalha dificilmente terá a isenção necessária para ser a testemunha que a jurisprudência tem exaltado Formado treinado e agindo em constante tensão tendo o tráfico de entorpecentes como bode expiatório de diversos males sociais o policial não tem a imparcialidade pretendida pela racionalização da interpretação do STF seguida no resto do país 17 bAdAró Gustavo Henrique Righi Ivahi Provas atípicas e provas anômalas inadmissibilidade da substituição da prova testemunhal pela juntada de declarações escritas de quem poderia testemunhar Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrine Grinover 2005 p 343 18 STF RE 86926 rel Min Cordeiro Guerra 2ª T j 04101977 19 O conceito de pânico moral foi forjado pela primeira vez pelo sociólogo Stanley Cohen em 1972 tentando explicar uma reação exagerada das autoridades com relação a uma onda de violência ocorrida em 1964 na Inglaterra tonry Micheal Thinking about crime sense and sensibility in American penal culture 2004 p 85 20 Tradução livre de During the past half century historical sociologists and sociologists of deviance have conceptualized a phenomenon called a moral panic that helps us understand times when public passions take over and produce decisions polices and behaviors that might not otherwise have happened Moral panic theory offers insights into the development of contemporary crime and drug policies and the politics that surround them idem ibidem 115 Luís CarLos VaLois A situação verdadeiramente de guerra tem levado as autoridades públicas a estabelecerem como critério de produtividade policial o número de prisões21 inclusive com a atribuição de prêmios perdendose a noção para o policial de que ele deve servir e não buscar quem encarcerar no seio da comunidade em que trabalha Várias são as questões a serem levantadas sobre tal tema No Brasil a corrupção policial é tema tratado com muita cautela e muitas vezes com medo também muito embora todos saibam ou especulem sobre as gigantescas somas em dinheiro que envolvem o tráfico ilícito de entorpecentes somas cada vez maiores Por outro lado a possibilidade de mentira não se origina só da suposta corrupção que pode atingir promotores juízes e qualquer outro funcionário da justiça ou da polícia Um expolicial de São Francisco nos Estados Unidos escreveu um artigo para o The San Francisco Chronicle onde declara que mentir é comum na cultura policial O perjúrio policial nas audiências para justificar buscas ilegais de drogas é comum Um dos não tão secretos pequenos segredos sujos da justiça criminal é a intencional mentira sob juramento dos oficiais da polícia de entorpecentes disfarçados É uma perversão do sistema americano de justiça que atinge diretamente o Estado de Direito No entanto é a forma rotineira de se fazer negócios nos tribunais de toda a América22 Não há razões para supor que a guerra às drogas faça mais vítimas entre os funcionários estatais dos Estados Unidos do que entre os do Brasil sabendose que tanto lá como cá é difícil a tarefa de reconhecer que há tais mentiras e mais complicado ainda contrariar as afirmações desses policiais seja porque raramente eles vão admitir suas próprias 21 Vide como exemplo wwwsspscgovbr 22 Tradução livre de Police officer perjury in Court to justify illegal dope searches is commonplace One of the dirty little notsosecret secrets of the criminal justice system is undercover narcotics officers intentionally lying under oath It is a perversion of the American justice system that strikes directly at the rule of law Yet it is the routine way of doing business in courtrooms everywhere in America Apud AlexAnder Michelle Why Police Lie Under Oath 2013 p 4 116 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA simulações ou dos colegas seja porque há verdadeiramente um código de silêncio que governa a prática policial Resultado da política de guerra mas com influência no conteúdo probatório dos processos de crime de tráfico de substância entorpecentes inclusive na prova testemunhal no Brasil podemos afirmar que a atividade de invasão de domicílios é uma das que mais causam prejuízos razão pela qual falaremos dela separadamente no próximo item 4 As invasões de domicílio M ais uma vez o STF23 dá respaldo às cortes estaduais em uma séria exceção a uma garantia constitucional que é a inviolabilidade de domicílio inc XI do art 5º da Constituição Federal impondo a interpretação de que sendo o crime de tráfico de entorpecentes um crime permanente a exceção estaria justificada pela própria Constituição que ressalva a possibilidade de invasão em casos de prisão em flagrante Salutar a lição de Antônio magalhães gomes filho de que a exceção constitucional apenas pode ser aplicada aos casos de flagrante próprio não se estendendo às hipóteses previstas pelos incisos III e IV do art 302 do CPP pois caso contrário estarse ia admitindo que o legislador ordinário restringisse o alcance da garantia24 Com efeito apenas quando o agente é surpreendido cometendo a infração ou quando acaba de cometêla situações de flagrante próprio podese considerar como a situação de flagrante permitida como exceção à inviolabilidade de domicílio constitucional pois as demais formas de flagrante quando o agente é perseguido logo após pela autoridade pelo ofendido ou por qualquer pessoa em situação que faça presumir ser autor da infração hipótese do inc III acima referido ou quando o agente é encontrado logo depois com instrumentos armas objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração hipótese do inc IV são construções resultado de 23 RHC 86082 Rel Min Ellen Gracie 2a Turma j 05082008 24 Direito à prova no processo penal 1997 p 121 Grifo no original 117 Luís CarLos VaLois política criminal do legislador O flagrante impróprio e o flagrante presumido as hipóteses dos incs III e IV foram criados com o claro e expresso intento de favorecer a atividade repressora do Estado permitindo o início do inquérito policial a prisão mesmo do indiciado resultado da situação de flagrância mas nunca a violação de uma garantia constitucional Portanto não sendo o caso de flagrante próprio a autoridade não pode invadir domicílios atrás de supostos autores de delitos sem o devido mandado de busca Quando a Constituição Federal estabeleceu que a casa é asilo inviolável do indivíduo ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador salvo em caso de flagrante delito ou desastre ou para prestar socorro ou durante o dia por determinação judicial art 5º XI estava pretendendo equiparar o flagrante ao desastre ou seja pretendia que a quebra da inviolabilidade de domicílio só se desse para evitar um mal maior para salvar uma suposta vítima seja de crime ou de desastre Portanto a construção também do legislador ordinário de que nas infrações permanentes entendese o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência art 303 do CPP só deveria permitir a exceção à inviolabilidade de domicílio quando esta fosse necessária para salvar a vítima o que não acontece nos casos de crimes de tráfico de entorpecentes os quais se constituem como dito em práticas consensuais Por óbvio os crimes de cárcere privado ou sequestro permitiriam a violação da regra constitucional de inviolabilidade de domicílio todavia não em razão da norma do art 303 do CPP mas pela imprescindibilidade de se fazer cessar a ação criminosa e salvar vítimas Justificativa que não se apresenta viável nos casos de tráfico de entorpecentes visto que nada impede que a autoridade policial requeira um mandado de busca e apreensão para em seguida proceder à entrada no domicílio do suspeito Ademais há que se convir que nem seria possível qualquer conduta de tráfico em uma casa vigiada pela polícia sendo a invasão sem mandado totalmente desnecessária uma medida de força condizente apenas com estados de guerra O resultado dessa liberalidade criada pela jurisprudência é fácil de 118 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA perceber Policiais entram nas casas sempre nas periferias pobres do Brasil sem mandado e com base em pouca ou nenhuma suspeita para realizar busca de entorpecentes sendo impossível precisar quantos domicílios foram invadidos e neles não foi encontrada nenhuma substância entorpecente Sim a não ser que queiramos aceitar a possibilidade não muito viável de em todas as invasões de domicílio onde há suspeita de tráfico de entorpecentes a polícia ter encontrado efetivamente alguma substância entorpecente temos que reconhecer que inúmeros lares brasileiros são invadidos ilegalmente principalmente sabendo que essas invasões são precedidas de pouca ou nenhuma investigação às vezes resultado de simples notícia anônima feita à delegacia Não podem ser descartados o erro do policial o equívoco da notícia situações que farão a invasão de domicílio ilegal e estimularão a dissimulação por parte da polícia prejudicando a busca da verdade durante o restante do processo Nos EUA a possibilidade de quebra da inviolabilidade de domicílio também tem sido relativizada pois a jurisprudência tem feito exceções contra pessoas que moram em motor homes25 por exemplo mas as invasões em locais considerados casas comuns ainda necessitam de mandado Contudo a possibilidade de equívocos nunca foi descartada sendo comum exageros policiais mesmo de posse de mandado Na década de 1990 um caso é emblemático a polícia invadiu a casa de Donald Carlson em San Diego usando granadas agindo com base em uma informação prestada por um informante pago de que a casa estava vazia e a garagem estava sendo usada para acondicionar uma grande quantidade de cocaína Resultado Carlson estava na casa e foi atingido seriamente depois considerado inocente mas perdendo um quarto de sua capacidade pulmonar ganhou a indenização de 275 milhões de dólares26 25 grAy James P Why our drug laws have failed and what we can do about it a judicial indictment of the war on drugs 2001 p98 26 Idem p 104105 O autor informa que desde 1971 a jurisprudência americana tem imposto como exigência para a emissão de mandado com base em informação anônima que esta contenha detalhes suficientes baseados na totalidade das circunstâncias requisitos genéricos mas que não deixam de servir de limite ao anonimato p 9798 119 Luís CarLos VaLois Conquanto a obrigatoriedade de mandado de busca não evite tais equívocos até porque o próprio judiciário dificilmente negaria um mandado a uma autoridade policial que indique estar pretendendo realizar uma busca relacionada a crime de tráfico de entorpecentes a exigência de mandado evitaria que policiais quando equivocados em uma invasão fossem obrigados a dissimular apreensão de drogas para evitar possíveis punições funcionais ou mesmo indiciamento pelo crime de abuso de autoridade A exigência de mandado de busca viria em favor da própria atividade policial em favor de sua sinceridade nos depoimentos e em benefício da busca pela verdade tornando a prova do flagrante do inquérito e do futuro processo menos suspeita 5 o direito da defesa à prova D iante de tudo o que foi dito como fica o direito da defesa à prova no processo penal se os fatos testemunhas e o que mais houver sobre a conduta tida como criminosa tudo foi escolhido colhido pela atividade policial discricionária Em se tratando de crime de tráfico de entorpecentes tido pela mídia e pela vulgar concepção moral da sociedade como o pior dos males dele ninguém quer se aproximar ninguém quer se ver envolvido Assim se já é difícil diante de séculos de um poder hierárquico e elitista como tem sido o Poder Judiciário alguém espontaneamente e de boa vontade comparecer a um tribunal mesmo como testemunha quanto mais testemunha de defesa em um processo de tráfico de entorpecentes Um verdadeiro modelo cognitivo de justiça penal pressupõe não apenas que a acusação seja confirmada por provas nulla accusatio sine probatione mas também o reconhecimento de poderes à defesa do acusado no procedimento probatório especialmente o de produzir provas contrárias às da acusação nulla probatio sine defensione A verdade processual nessa ótica não é a verdade extorquida inquisitoriamente mas uma verdade obtida através de provas e desmentidos27 27 mAgAlhães Gomes Filho Direito à prova no processo penal 1997 p 55 Grifado no original 120 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Considerando que numa apreensão de drogas a testemunha de acusação é o policial também quem decide se processa ou não28 a pessoa abordada além de escolher as testemunhas geralmente companheiros de operação a garantia de a defesa ter alguma testemunha para contrariar as provas de acusação acaba sendo uma garantia formal de inviável efetivação na prática Aliás deveria ser comum à própria estrutura do processo penal ser pensada e construída levandose em consideração que não se pode confiar nellattività dufficio della polizia giudiziaria non sempre interessata ad accertare tutti i fatti29 notadamente em se tratando de conduta contra a qual o pânico social invade as instituições como um todo e a polícia mais diretamente Ada pellegrini grinover ao explicar que atualmente todos os ordenamentos consagram o direito à prova ressalva que ele tendo por escopo influir sobre o desenvolvimento e o resultado do processo fica essencialmente subordinado à efetiva possibilidade de se representar ao juiz a realidade do evento posto como fundamento da ação ou da exceção ou seja à possibilidade de a parte servirse das provas30 e portanto no caso de crime específico de que estamos tratando vem a ser um direito deveras obstaculizado para a defesa Pari passu a atividade de polícia judiciária não pode se confundir com a ação repressiva da polícia militar como tem acontecido Se a polícia militar ou a polícia civil têm agido na repressão ao tráfico de entorpecentes a ação de colheita de provas não pode ser viciada pelo intento repressivo Em outras palavras a polícia judiciária na sua atividade de colheita de provas deve estar subordinada aos mesmos princípios de todos os participantes da relação processual ou seja deve estar vinculada à necessidade de busca da verdade não podendo deixar a repressão de que está imbuída prejudicar a imparcialidade necessária Por isso defendemos acima a impossibilidade de se trazer apenas testemunhas policiais para o flagrante formando completamente o conteúdo probatório testemunhal do futuro processo porque depois é praticamente impossível para a defesa 28 In a drug bust the complaining witness is the cop who decide on the spot whether to prosecute or not grAy Mike Drug crazy how we got into this mess and how we can get out 2000 p 189 29 quAglierini Corrado In tema di onere della prova nel processo penale 1998 p 1259 30 Novas tendências do direito processual de acordo com a Constituição de 1988 1990 p 19 121 Luís CarLos VaLois encontrar outras pessoas envolvidas com a conduta que possam trazer aspectos positivos e favoráveis ao réu sendo obrigação da polícia encontrar testemunhas o mais isentas possíveis no momento do fato atitude que poderia vir a favor não só da defesa mas da credibilidade do processo como um todo Em particular a polícia judiciária destinada à investigação dos crimes e a execução dos provimentos jurisdicionais deveria ser separada rigidamente dos outros corpos de polícia e dotada em relação ao Executivo das mesmas garantias de independência que são asseguradas ao Poder Judiciário do qual deveria exclusivamente depender31 Do que defende o professor italiano estamos longe no sistema penal brasileiro e em se tratando da guerra às drogas mais ainda pois o que tem prevalecido são as apreensões as prisões em detrimento de uma verdadeira investigação sobre a origem as estruturas e o funcionamento da rede de tráfico de entorpecentes prova disso são as próprias penitenciárias lotadas de pobres miseráveis que não parecem em nada com o imaginário do real traficante que está efetivamente lucrando Na nossa experiência cotidiana vemos que quando a polícia que faz a repressão não é a mesma que atua na atividade de polícia judiciária esta apenas ratifica os atos da polícia repressiva das ruas normalmente a militar reduzindo a termo os testemunhos dos policiais condutor e testemunhas Aqui não há só injustiça mas a própria estrutura do processo resta prejudicada vez que são esses mesmos policiais que servirão de testemunha forjando um contraditório apenas na forma em evidente prejuízo para a defesa perante o juiz competente para conhecer o fato tido como criminoso 6 A prova testemunhal e o contraditório nos processos de tráfico de entorpecentes S e é crítica comum a todos os processos o fato de que a prova principal tem sido a testemunhal por restrições técnicas que 31 FerrAJoli Luigi Direito e razão teoria do garantismo penal 3 ed 2010 p 709 122 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA infelizmente a polícia brasileira em regra tem32 no caso do crime de tráfico de entorpecentes além de essa regra ser mais comum o privilégio que se dá à prova testemunhal de imensa fragilidade e pouca credibilidade33 vem acrescentar mais prejuízo à busca da verdade pelas razões já demonstradas O que chega para o processo e para a avaliação do magistrado são somente as provas colhidas pela polícia ou seja os depoimentos de policiais colhidos por policiais que agora na fase processual serão revistos sob o manto legitimador do contraditório Se a paridade de armas requisito para um processo justo tem como pressuposto que ambas as partes iniciem o processo em igualdade de condições no processo penal de crime de tráfico de entorpecentes essa paridade é quase inexistente A prova pré configurada no inquérito policial este que praticamente não tem mais nenhuma diligência a não ser a espera do laudo da substância entorpecente que basicamente é a prova do auto de prisão em flagrante conquanto tenha influência na formação do convencimento do juiz faz com que a acusação inicie o processo em clara vantagem Estabelece o art 155 do CPP que o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação ressalvadas as provas cautelares não repetíveis e antecipadas grifei deixando espaço para que ainda que não exclusivamente o juiz tenha o inquérito como elemento formador de sua convicção dando extremo poder no caso do crime que analisamos à atividade policial prévia O que tem acontecido na prática não é que o que foi colhido no inquérito policial sirva de complemento para o contraditório local de formação do convencimento do juiz como também autoriza a jurisprudência34 mas é o contraditório que tem funcionado como 32 loPes Jr Aury Direito processual penal e sua conformidade constitucional 2009 p 640 33 Idem ibidem 34 É como tem entendido a jurisprudência Consoante já decidiu esta Suprema Corte os elementos do inquérito podem influir na formação do livre convencimento do juiz para a decisão da causa quando complementam outros indícios e provas que passam pelo crivo do contraditório em juízo RE 425734 AgrMG de minha relatoria DJ 28102005 5 Recurso parcialmente conhecido e desprovido STF RHC 99057 rel Min Ellen Gracie 2ª T j 06102009 123 Luís CarLos VaLois complemento como legitimação do que foi produzido na polícia Embora seja uma afirmação que foge das características científicas pois dificilmente poderíamos provar tem sido praxe entre os policiais que participam de prisão em flagrante servindo como testemunhas no procedimento informativo guardarem cópias do flagrante para futuramente poderem repetir em juízo o que lá ficou consignado fazendo do depoimento perante o magistrado uma retificação automática do flagrante Pior quando o próprio magistrado toma a atitude de ler os depoimentos para as testemunhas confirmarem o que foi dito fazendo do auto de prisão em flagrante já o início da prova que será legitimada pelo contraditório Neste quadro o conceito de que só podem ser considerados provas no sentido jurídicoprocessual os dados de conhecimento introduzidos no processo na presença do juiz e com a participação das partes em contraditório35 acaba relativizado quando se permite seja considerado prova um simulacro do que está registrado carimbado e certificado pela polícia previamente Aqui conveniente lembrar o que foi dito sobre a dificuldade de reconhecer erros por parte da polícia não só pelo medo de repreensão administrativa ou mesmo penal também pela automatização dos depoimentos Notese que esses policiais testemunhas em processos criminais têm sido arrolados em diversos processos muitos tendo que depor duas ou três vezes em processos diferentes no mesmo dia o que aumenta a possibilidade de automação e diminui a credibilidade do conteúdo do depoimento Errar é humano mentir também é humano esquecer é humano e o policial é humano A carga de trabalho desses agentes públicos não permite um depoimento condizente com a necessidade de formar a convicção do magistrado acerca de um fato ocorrido há meses talvez anos Diferentemente de uma testemunha comum que presenciou um fato criminoso circunstância em regra excepcional na vida da maioria o policial vive presenciando buscando investigando fatos criminosos o que aliado à questão do tempo transcorrido indica 35 mAgAlhães Gomes Filho Provas Lei 11690 de 09062008 In As reformas do processo penal as novas leis de 2008 e os projetos de reforma 2008 p 250 124 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA maiores dificuldades de lembrança acerca do fato O estado emotivo a sugestibilidade ou firmeza da testemunha diante das perguntas que lhe são feitas além de outros fatores como a loquacidade da testemunha ou sua excessiva insegurança36 a serem avaliados pelo juiz na colheita do depoimento diante da rotina pesada do Fórum da carga de audiências do juiz é tarefa árdua e a automatização do depoimento praticamente a obstaculiza 7 o juiz de combate ao tráfico L ídia de Almeida prado37 informa que vários autores já abordaram o fato de que juízes antecipam mentalmente suas decisões e depois procuram a norma que pode servir de fundamento Desde Karl llewellyn passando por recaséns siches Joaquim dualde Jerome frank miguel reale e renato nalini38 há referências à influência de aspectos subjetivos prévios à atividade decisória Tal antecipação mental é natural inerente aos seres humanos Ao juiz caberia mesmo intimamente a procura da decisão mais justa ao caso concreto com a capacidade de colocarse na posição do outro mas não é o que ocorre em muitos casos servindo o arcabouço doutrinário e jurisprudencial para encobrir sentimentos que estão muito distantes da racionalidade necessária à manifestação jurisdicional Para taruffo verdade é que a motivação da sentença é via de regra redigida em um momento sucessivo àquele em que é formulada a decisão mas o bom juiz sabe que deverá justificar as próprias escolhas relativas à valoração das provas e às conclusões sobre os 36 bAdAró Gustavo Henrique Righi Ivahi Provas atípicas e provas anômalas inadmissibilidade da substituição da prova testemunhal pela juntada de declarações escritas de quem poderia testemunhar Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrine Grinover 2005 p 347 37 PrAdo Lídia Reis de Almeida O juiz e a emoção aspectos da lógica da decisão judicial 2003 p 33 38 WArAt e PePê informam também que alguns autores chegam a afirmar que as normas gerais são um conjunto de enunciados metafísicos que cumprem somente a função retórica de justificar as decisões dos juízes Filosofia do direito uma introdução crítica 1996 p 44 125 Luís CarLos VaLois fatos39 ou seja deverá expressar de forma racional a sua opção Por isso a necessidade de fundamentação é a principal garantia das partes contra a discricionariedade do magistrado quando esta se distancia da racionalidade esperada e sopesamento justo das provas O princípio do livre convencimento expresso no art 155 do CPP acima transcrito não pode ser estímulo ao arbítrio e a única garantia das partes é mesmo a necessidade de fundamentação da decisão judicial ainda que muito fique encoberto em retóricas Così ad es il potere del giudice di scegliere discrezionalmente nel materiale probatório acquisito al processo gli elementi che ritiene rilevanti per la decisione può essere giustificato sulla base del principio del libero convincimento La differenza tra um eserciziio tendenzialmente arbitrário e um esercizio ragionevole e controllato di questo potere sta però nella possibilita per le parti di conoscere e discutire prima della decisione le relative scelte del giudice40 O autor italiano ressalva a importância do contraditório na formação de opinião do juiz este que deve permanecer imparcial perante a dialética do processo valorando apenas o que foi trazido aos autos sendo exigência de justiça e também corolário do contraditório que o juiz expresse fundamentadamente os motivos pelos quais optou ou não optou por esta ou aquela prova Por certo não existe um procedimento perfeito em que o legislador possa eficientemente impedir de forma absoluta o arbítrio judicial e o constante aperfeiçoamento do processo é necessário para que estejamos sempre buscando uma forma de melhor aplicar o direito Contudo no que se refere a crime de tráfico de entorpecentes não é necessário repisar o que foi dito as paixões e o estado de comoção criado pela demonização das drogas tidas como ilícitas é agravante que estimula o arbítrio judicial em detrimento da justiça Juízes que se sentem paladinos da justiça órgãos da segurança 39 tAruFFo Michele Uma simples verdade o juiz e a construção dos fatos 2012 p 211 40 tAruFFo Michele La prova dei fatti giuridici 1992 p 409 126 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA pública perdem a imparcialidade imprescindível ao julgamento zaffaroni denomina vulnerabilidade a situação dos juízes policias agentes penitenciários e todos os demais que trabalham no sistema punitivo considerando que diante da policização a burocratização e a criminalização o sistema penal é um complexo aparelho de deteriorização regressiva humana que condiciona falsas identidades e papéis negativos41 e não obstante poucas vezes é adequadamente observada a situação de extrema vulnerabilidade na qual se colocam essas pessoas42 Quando o Judiciário passa a pensar que uma de suas funções é o combate à criminalidade ele se afasta da posição de garantidor de direitos e liberdade para agir como mais uma arma apontada para a população O réu nos processos de tráfico acaba sendo visto como o culpado por todas as mazelas da sociedade e o direito penal que era para ser do fato estrito retorna ao direito do autor e da vingança pública Manifestações como comportamento e a personalidade da ré que se revelou voltada ao delito dedicandose ao narcotráfico43 ou quem a tanto se abale a envolverse com esse tipo de criminalidade deve esperar as consequências severas da lei penal44 são comuns nas sentenças e acórdãos dos juízes e tribunais demonstrando que os réus não estão sendo julgados simples e unicamente pelos fatos que cometeram mas pela conjuntura social e pela própria visão moral do juiz acerca do tráfico de entorpecentes Dessa forma o que fica flagrante de quebra do princípio da individualização da pena e da proporcionalidade este que se demonstra violado já no estabelecimento da sanção pelo legislador ao prever penas para o comércio ilegal de substância entorpecente tão alta quanto as do homicídio demonstra igualmente a instabilidade do magistrado ao julgar crimes dessa natureza fato que obviamente prejudica não só na imposição da pena mas na prévia avaliação da prova 41 zAFFAroni Eugênio Raúl Em busca das penas perdidas a perda de legitimidade do sistema penal 1999 p 143 42 Idem ibidem 43 TJSP 6ª Câm Ap 0001937 4320118260266 rel Des Marco Antonio Marques da Silva j 21032013 44 TJSP 2ª Câm Ap 00059471720098260197 rel Des Antonio Luis Pires Neto j 09052011 127 Luís CarLos VaLois O pânico moral e a vulnerabilidade favorecem um viés tendente à condenação que se manifestará obviamente no sopesamento da prova Fatos incoerentes podem parecer corretos diante de um magistrado tendente à condenação os fatos podem ser substancialmente distorcidos e manipulados mas a narrativa pode parecer muito persuasiva a um público igualmente biased45 Outra questão que queremos ressaltar que tem a ver com o que vimos falando é a criação de varas especializadas em crimes de uso e tráfico de entorpecentes46 que como as varas de combate47 dão ao magistrado como o nome dessas varas indicam o simbolismo a função de combatente o que por certo forma a postura do ser humano juiz Ademais a permanência de um juiz por muito tempo em uma vara de entorpecentes tendo como objeto de julgamento apenas essas condutas poderá fazer com que o magistrado perca o contato com os demais crimes e com a realidade da própria justiça criminal podendo favorecer a desproporcionalidade na aplicação da pena e a má avaliação do conjunto probatório A Lei de Entorpecentes 113432006 traz diversas atribuições e obrigações para o poder público no que se refere à saúde pública e à prevenção de problemas relacionados às drogas medidas que como todos sabemos não saem do papel todavia a competência das varas criminais para julgamento dos crimes de tráfico de entorpecentes resta exclusivamente judicial nos termos da lei e em grande parte repressiva de fato Nos EUA as drug courts foram criadas em 2006 mas embora com algumas diferenças entre os Estados servem todas para oferecer apenas tratamentos alternativos à prisão aos autores de crimes sem violência e viciados48 enquanto as penas mais rigorosas de encarceramento continuam sob a competência das varas comuns estaduais e federais 45 tAruFFo Michele Uma simples verdade o juiz e a construção dos fatos 2012 p 79 46 Encontramos tais órgãos em pelo menos oito Estados Maranhão Pernambuco Piauí Distrito Federal Amazonas Minas Gerais Pará Tocantins 47 No Brasil encontramos as varas de combate ao crime organizado MG SE e varas de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher PE TO 48 They all the drug courts offer nonviolent drug addicts communitybased treatment in lieu of prison benAvie Arthur Drugs Americas holy war New York EUA Routledge 2009 p 101 128 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 8 conclusões T odos sabemos que a guerra às drogas tem feito muito mais vítimas do que apenas os que nela estão envolvidos diretamente O ambiente passional de moralidade irreflexiva que tomou conta da sociedade atinge instituições e instrumentos pensados e criados para situações normais não para guerra O processo penal também é atingido na medida em que seus fundamentos e mecanismos de garantia forjados ao longo da história são relativizados para fazer valer a necessidade de combate em uma guerra que nunca terá fim De nossa exposição limitada o máximo possível à questão processual podemos extrair que uma das medidas importantes a serem tomadas é a separação de atividades policiais no procedimento inquisitorial dandose maior independência à atividade de polícia judiciária Se não acreditamos em uma mudança repentina do perfil passivo que o Brasil tem adotado diante das imposições econômicas e políticas dos Estados Unidos da América pois nossa política criminal como um todo é feita com base em interesses diversos que fogem à simples racionalidade jurídica podemos exaltar estimular que o Poder Judiciário mude sua perspectiva e saia da posição de mais um órgão de combate para exercer a função de garantidor dos direitos individuais do cidadão perante o próprio Estado Como disse certa vez uma mulher defensora dos direitos civis pauline sabin ao legislativo norteamericano sobre a proibição da droga na época da criminalização do álcool eles pensaram que poderiam fazer a proibição tão forte quanto a Constituição mas ao contrário têm feito a Constituição tão fraca quanto a proibição49 e assim a nossa Constituição brasileira já de tão difícil efetivação vai enfraquecendo quando suas garantias se relativizam para adequar a ação governamental à guerra às drogas Do Judiciário se espera que saiba se colocar como último recurso de Justiça mesmo que em meio à guerra declarada não podendo servir como legitimador da justiça da rua realizada em clima hostil e violento Nas salas dos tribunais não pode ecoar o grito de guerra da polícia nem da política proibicionista que na verdade nem 49 grAy Mike Op cit p 70 129 Luís CarLos VaLois política deveria ser considerada uma vez que nunca houve nenhuma discussão séria sobre a proibição e escolha dos entorpecentes a serem proibidos Por isso a crítica à jurisprudência e a lembrança de que à Academia resta a função de apontar as irracionalidades mostrar a história de garantia dos instrumentos legais não podendo deixar o Judiciário confortável no caminho que tem levado de diminuição das garantias e direitos fundamentais 9 referências bibliográficas AlexAnder Michelle The New Jim Crow mass incarceration in the age of colorblindness New York The New Press 2012 Why Police Lie Under Oath New York Times New York EUA p SR4 fev 2013 bAdAró Gustavo Henrique Righi Ivahy Ônus da prova no processo penal São Paulo RT 2003 Provas atípicas e provas anômalas inadmissibilidade da substituição da prova testemunhal pela juntada de declarações escritas de quem poderia testemunhar In Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrine Grinover São Paulo DPJ 2005 cAmArgo Antônio Luis Chaves Direitos humanos e direito penal limites da intervenção estatal no estado democrático de direito In Estudos criminais em homenagem a Evandro Lins e Silva São Paulo Método 2001 benAvie Arthur Drugs Americas holy war New York EUA Routledge 2009 bertrAm Eva et al Drug war politics the price of denial Los Angeles California EUA University of California Press 1996 bittAr Eduardo C B O direito na pósmodernidade e reflexões frankfurtianas Rio de Janeiro Forense Universitária 2009 FerrAJoli Luigi Direito e razão teoria do garantismo penal 3 ed São Paulo RT2010 FrAnco Alberto Silva et al Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial São Paulo RT 1997 grAy James P Why our drug laws have failed and what we can do about it a judicial indictment of the war on drugs Philadelphia EUA Temple University Press 2001 grAy Mike Drug crazy how we got into this mess and how we can get out New York EUA Routledge 2000 grinover Ada Pellegrini Novas tendências do direito processual de acordo com a Constituição de 1988 São Paulo Forense Universitária 1990 hungriA Nelson FrAgoso Heleno Comentários ao Código Penal 5 ed Rio de Janeiro Forense 1977 v 1 t 1 loPes Jr Aury Direito processual penal e sua conformidade constitucional 4 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 v 1 130 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA mAgAlhães gomes Filho Antônio Direito à prova no processo penal São Paulo RT 1997 Provas Lei 11690 de 09062008 In As reformas do processo penal as novas leis de 2008 e os projetos de reforma São Paulo RT 2008 olmo Rosa Del A face oculta da droga Rio de Janeiro Revan 1990 PrAdo Lídia Reis de Almeida O juiz e a emoção aspectos da lógica da decisão judicial Campinas Millennium 2003 quAglierini Corrado In tema di onere della prova nel processo penale Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale Milano Italia Giuffre 1998 sAAd Marta O direito de defesa no inquérito policial São Paulo RT 2004 tonry Micheal Thinking about crime sense and sensibility in American penal culture New York EUA Oxford University Press 2004 tAruFFo Michele La prova dei fatti giuridici In Trattado di diritto civile e commerciale Milano Italia Dott A Giuffrè 1992 v 3 t 2 Uma simples verdade o juiz e a construção dos fatos São Paulo Marcial Pons 2012 tornAghi Hélio Curso de processo penal São Paulo Saraiva 1980 v 2 zAFFAroni Eugênio Raúl Em busca das penas perdidas a perda de legitimidade do sistema penal Rio de Janeiro Revan 1999 umA novA estrAtégiA pArA A políticA de drogAs Paulo Teixeira Mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo USP Formado pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco USP Foi líder da bancada petista na Câmara dos Deputados e atualmente cumpre o seu segundo mandato como Deputado Federal PTSP Advogado sumário 1 Preconceito e violação dos direitos humanos 2 Regulação e redução de danos O que a guerra às drogas trouxe de positivo para a sociedade As grandes somas investidas e as muitas vidas perdidas nessa guerra sem fim deixaram a população mais segura O que ganhamos com a superlotação de presídios A legislação atual com foco exclusivo na repressão enfraqueceu de fato o narcotráfico ou será que o crime organizado tornouse ainda mais poderoso Todas estas questões cujas respostas são mais do que conhecidas levamnos a uma única conclusão a política proibicionista falhou A utopia de um mundo sem drogas não passa mesmo disto uma ilusão Uma ilusão cara e insustentável dos pontos de vista econômico e social Na prática o proibicionismo provocou o oposto do que prega a liberação das drogas Elas estão fartamente disponíveis no contexto de um mercado fortemente armado e violento Custam muito caro para a sociedade como um todo e não apenas para quem as consome 132 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Além de extremamente dispendiosa a atual política sobre drogas centrada no recrudescimento da repressão e na elevação das penas provouse ineficaz Não trouxe segurança e é um desastre em termos de saúde pública A produção de drogas continua firme forte e rentável a oferta e o consumo seguem descontrolados o mercado oferece drogas cada vez mais potentes e perigosas as penitenciárias estão superlotadas de jovens usuários e pequenos varejistas cuja prisão sequer arranha esse mercado Enquanto isso o crime organizado continua a movimentar livremente bilhões de dólares ao redor do mundo Em resumo o proibicionismo é ruim para todos menos para o núcleo econômico do narcotráfico que permanece imune à repressão uma vez que o aparato repressivo do Estado só chega à ponta do negócio a distribuição A polícia não consegue mais do que prender jovens que o narcotráfico contrata para correr todos os riscos em seu lugar eou usuários que vendem para sustentar o próprio vício 1 preconceito e violação dos direitos humanos O Brasil tem hoje a quarta maior população carcerária do mundo com mais de meio milhão de detentos atrás apenas dos Estados Unidos da China e da Rússia A legislação endureceu a pena para os traficantes mesmo para o pequeno varejista e reduziu as possibilidades de progressão de regime O mais grave essa mesma legislação não estabelece critérios objetivos de diferenciação entre usuário e traficante deixando a decisão para o policial no momento da prisão e mais tarde para o juiz que levará em conta a natureza e a quantidade da substância apreendida no local e as condições em que se desenvolveu a ação Tamanho grau de subjetividade traz à tona preconceitos sociais e raciais que acabam por levar à prisão jovens pobres preferencialmente negros sem recursos para pagar advogados Nas cadeias superlotadas o que por si só configura grave violação dos direitos humanos eles conviverão com as ameaças 133 Luiz PauLo Teixeira Ferreira e o assédio permanente das facções criminosas que atuam no interior dos presídios Quando saírem depois de um longo tempo de aprendizado estes jovens que muitas vezes eram apenas usuários estarão aptos a praticar crimes violentos tornandose aí sim perigo concreto para a sociedade Estudo realizado pelas Faculdades de Direito da UFRJ e UnB sob coordenação da pesquisadora luciana boiteux1 traçou o perfil dos condenados por envolvimento com drogas em Brasília e no Rio de Janeiro A pesquisa mostra que dois terços desses condenados eram primários estavam desarmados no momento da prisão e portavam pequenas quantidades de droga O Núcleo de Estudos da Violência NEV da Universidade de São Paulo USP chegou a semelhante conclusão ao analisar sentenças proferidas em São Paulo Segundo a pesquisa2 a maioria dos presos em flagrante por tráfico na capital paulista são pobres com idade entre 18 e 29 anos sem antecedentes criminais também com pequena quantidade de drogas 665 gramas em média O quadro se repete pelo Brasil afora e em muitos outros países Isso significa que estamos prendendo apenas mão de obra barata e de fácil reposição jovens pobres que o crime organizado imediatamente substitui por outros jovens pobres em caso de prisão ou morte E estamos prendendo cada vez mais mulheres O número de condenadas por tráfico quase quadruplicou em apenas cinco anos foram 4068 em 2005 e 15897 em 2011 muitas delas detidas quando levavam drogas para seus companheiros na prisão 1 Tráfico e Constituição um estudo sobre a atuação da Justiça Criminal do Rio de Janeiro e do Distrito Federal no crime de tráfico de drogas Projeto de pesquisa realizado entre março de 2007 e julho de 2009 sob coordenação de Luciana Boiteux com a participação de docentes e discentes das Faculdades de Direito da UFRJ e da UnB Participaram também da pesquisa Ela Wiecko Volkmer de Castilho Beatriz Vargas Vanessa Oliveira Batista Geraldo Luiz Mascarenhas Prado 2 Prisão Provisória e Lei de Drogas Um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo Coordenação Maria Gorete Marques de Jesus Pesquisadores Amanda Hildebrand Oi Pedro Lagatta e Thiago Thadeu da Rocha Consultor Dr Fernando Afonso Salla Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo Open Society Institute 2011 134 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 2 regulação e redução de danos O proibicionismo provoca a estigmatização e a marginalização do usuário uma vez que a repressão é dirigida a ele quando deveria estar focada no combate ao narcotráfico Quanto ao usuário o Estado tem sim o dever de intervir mas não como policial e sim como agente de saúde e de assistência social por meio de ações voltadas para a prevenção ao uso de drogas e a redução de vulnerabilidades que levam ao consumo abusivo Felizmente o debate em torno da regulação e da redução de danos já entrou na agenda política da América Latina O objetivo das políticas que estão sendo implantadas no nosso continente é substituir a criminalização do uso de drogas por uma abordagem de saúde pública buscando a redução de danos associados ao consumo O Uruguai por iniciativa do governo Mujica aprovou no final de 2013 uma legislação inovadora que põe nas mãos do Estado a produção distribuição e venda de maconha Esse monopólio com toda certeza garantirá mais segurança e proteção à saúde do usuário além de reduzir o poderio econômico do narcotráfico A iniciativa do governo uruguaio encontra ecos na Colômbia e na Guatemala Os três países discutem em conjunto a despenalização da produção distribuição e venda de maconha O entendimento é de que a descriminalização de algumas drogas poderia livrar os países da América do Sul e da América Central da violência gerada pela presença de narcotraficantes na região Na Europa Portugal se destaca com uma legislação que estabelece critérios objetivos de distinção entre traficante e usuário O que define este último é o porte de quantidade de droga suficiente para consumo médio individual por um período máximo de 10 dias Mesmo nos Estados Unidos país que mais investe na guerra internacional às drogas a maioria da população apoia a regulação Washington e Colorado foram os primeiros estados a aprovar o uso recreativo da maconha por meio de plebiscito O Brasil que ainda criminaliza a maconha já pratica a regulação de determinados produtos com potencial de danos à saúde 135 Luiz PauLo Teixeira Ferreira No caso do álcool a legislação precisa avançar muito mais no sentido de banir anúncios publicitários e a promoção de eventos culturais e esportivos ligados à bebida A legislação do cigarro ainda que necessite de aperfeiçoamentos é uma boa prática pois proíbe a propaganda a venda para menores de idade e o uso em locais públicos Já a regulação de medicamentos controlados é exemplar Tão eficiente que provocou um paradoxo ficou mais fácil comprar crack do que antibiótico Nossa proposta é que o Brasil passe a regular também a cannabis Entre outras razões porque evitaria a oferta de drogas mais perigosas quebrando o chamado efeito gôndola hoje o usuário que vai comprar maconha encontra a oferta quase ilimitada de cocaína crack e drogas sintéticas como se estivesse num grande supermercado Estamos certos com base em experiências bemsucedidas ao redor do mundo de que a regulação da cannabis pode ajudar a esvaziar o poder do narcotráfico no Brasil que tem em seu poder armamento pesado recursos financeiros quase ilimitados e um exército de jovens recrutados para matar e morrer Defendemos que os recursos públicos desperdiçados nessa guerra inútil sejam investidos na prevenção ao uso e no tratamento do usuário A regulação pela qual lutamos deve se dar dentro de parâmetros rigorosos disponibilidade exclusivamente de cannabis em locais previamente determinados apenas para maiores de 18 anos limitada a uma quantidade máxima por dia e acompanhada sempre de esclarecimentos sobre seus efeitos e eventuais danos O usuário precisa ser informado de que a maconha assim como outras drogas lícitas ou ilícitas pode fazer mal Outro ponto fundamental da nossa proposta a mudança de foco na política sobre drogas não pode de forma alguma favorecer indústrias privadas como ocorre no caso do álcool e do tabaco que só têm a lucrar com a dependência de seus consumidores Ao contrário a regulação da cannabis no Brasil deve promover uma economia não lucrativa com o único objetivo de criar um ambiente de atenção aos consumidores sem drogas pesadas com fornecimento de informações qualificadas e acompanhamento permanente de seu estado de saúde Acima de tudo sem a violência que o proibicionismo tanto alimenta o lugAr do estAdo nA questão dAs drogAs o pArAdigmA proibicionistA e As AlternAtivAs1 Maurício Fiore Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento Cebrap e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos Neip Autor de diversos trabalhos sobre a questão do uso de drogas Antropólogo sumário 1 Primeira premissa proibicionista o consumo de drogas é uma prática prescindível e danosa o que justifica sua proibição pelo Estado 2 Segunda premissa proibicionista a atuação ideal do Estado para combater as drogas é criminalizar sua circulação e seu consumo 3 Crítica às premissas proibicionistas 31 Os potenciais danos individuais e sociais do consumo de drogas não justificam a sua proibição 32 Ao proibir a produção o comércio e o consumo de drogas o Estado potencializa um mercado clandestino e cria novos e graves problemas 4 O fortalecimento das críticas e a modernização do paradigma Guerra contra o tráfico tratamento para o dependente 5 Alguns pressupostos para modelos alternativos 1 Versão atualizada do artigo originalmente publicado na Revista Novos Estudos Cebrap n 92 mar 2012 138 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 51 Valorização do autocuidado e dos controles sociais 52 Descriminalização de fato do consumo e estipulação com critérios objetivos 53 Planejamento de políticas de acordo com as especificidades de cada droga 6 Perspectivas de mudanças no Brasil 7 Referências bibliográficas A guerra mundial contra as drogas nome pelo qual ficou conhecida parte das substâncias psicoativas que alteram a consciência e a percepção completou em 2012 um século Ainda que as resoluções da Primeira Conferência Internacional do Ópio de 1912 realizada em Haia tenham sido praticamente abandonadas nos anos conturbados entre as duas grandes guerras o modelo ali esboçado foi triunfante Defendida patrocinada e sediada pelos euA já sob a coordenação da onu a Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961 implantou globalmente o paradigma probicionista no seu formato atual Os países signatários da Convenção se comprometeram à luta contra o flagelo das drogas e para tanto a punir quem as produzisse vendesse ou consumisse Proibicionismo é uma forma simplificada de classificar o paradigma que rege a atuação dos Estados em relação a determinado conjunto de substâncias Seus desdobramentos entretanto vão muito além das convenções e legislações nacionais O proibicionismo modulou o entendimento contemporâneo de substâncias psicoativas quando estabeleceu os limites arbitrários para usos de drogas legais positivas e ilegais negativas Entre outras consequências a própria produção científica terminou entrincheirada na maior parte das vezes do lado certo da batalha ou seja na luta contra as drogas2 O probicionismo não esgota o fenômeno contemporâneo das drogas mas o marca decisivamente Ainda que escape da ambição deste artigo traçar a genealogia da emergência das drogas como questão contemporânea é preciso ressaltar que não se explica o empreendimento proibicionista 2 Sobre os desdobramentos do proibicionismo ver produção científica contemporânea entre outros lAbAte et al 2008 139 Maurício Fiore por uma única motivação histórica Sua realização se deu numa conjunção de fatores que incluem a radicalização política do puritanismo norteamericano o interesse da nascente indústria médicofarmacêutica pela monopolização da produção de drogas os novos conflitos geopolíticos do século xx e o clamor das elites assustadas com a desordem urbana Além disso sem desconhecer a importância histórica do pioneirismo e do empenho dos euA para tornála universal é preciso notar que somente convergências locais na mesma direção puderam fazer da proibição uma realidade global3 O caso brasileiro nesse sentido é exemplar na medida em que as legislações proibicionistas foram criadas pari passo às norteamericanas e no caso específico da maconha droga já há muito estigmatizada pelas elites locais a perseguição oficializou se primeiro aqui4 Podese dizer que três conjuntos de substâncias eou plantas foram eleitas alvospadrão do paradigma proibicionista papoula ópioheroína cocacocaína e cannabismaconha Ainda que o conceito farmacológico de droga seja muito mais amplo substância que quando administrada ou consumida por um ser vivo modifica uma ou mais de suas funções com exceção daquelas substâncias necessárias para a manutenção da saúde normal é a esse conjunto de substâncias que o termo passou a ser aplicado5 Entre as drogas há as psicoativas ou psicotrópicas que têm como característica principal a ação sobre o funcionamento do cérebro Hoje o termo drogas pode se referir tanto a seu sentido farmacológico muito mais amplo quanto a um conjunto bem mais restrito ainda que flexível de substâncias psicoativas notadamente as ilícitas Do ponto de vista conceitual a Convenção Internacional de 1961 definiu um modelo que permanece vigente e divide as drogas e suas plantas originárias em listas O critério por sua vez seria 3 Entre uma ampla bibliografia sobre a história do proibicionismo nos euA e seus desdobramentos internacionais ver escohotAdo 1998 dAvenPorthines 2001 e rodrigues 2004 4 No Brasil a maconha foi considerada definitivamente ilegal em 1932 cinco anos antes de o mesmo ocorrer nos EUA 5 A polissemia e a ambiguidade do termo drogas são algumas das principais características do debate sobre o tema Em trabalho anterior grafei o termo sempre entre aspas para justamente indicar perigo Para mais detalhes sobre a importância do conceito de drogas ver Fiore 2007 p 6371 140 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA o potencial de abuso e suas aplicações médicas A primeira lista é composta daquelas com alto potencial de abuso e nenhum uso medicinal e como esperado ali estão incluídas entre outras as três drogasalvo do proibicionismo heroína cocaína e maconha As outras listas reúnem drogas com potencial de abuso mas conhecido uso medicinal morfina e anfetaminas por exemplo e precursores substâncias e outros materiais empregados na produção de drogas proibidas6 Diferentemente de muitas outras convenções essas foram seguidas com incrível rigidez pela maior parte dos signatários Independentemente de seus intricados feixes e nuances sustento que o paradigma proibicionista é composto de duas premissas fundamentais 1 o uso dessas drogas é prescindível e intrinsecamente danoso portanto não pode ser permitido 2 a melhor forma de o Estado fazer isso é perseguir e punir seus produtores vendedores e consumidores Assim interessa apresentálas seguindo sua própria lógica mais detalhadamente 1 primeira premissa proibicionista o consumo de drogas é uma prática prescindível e danosa o que justifica sua proibição pelo estado A ingestão de qualquer uma das drogas proscritas é fisiológica e mentalmente danosa Os danos fisiológicos podem ocorrer em curto ou médio prazo Caso seja continuado o consumo dessas drogas encadeia graves consequências podendo levar inclusive à morte seja por deterioração da saúde geral seja por intoxicação acidental overdose Não há padrão quantidade ou nível seguro para o consumo dessas drogas Essas drogas provocam dependência Por ser inicialmente prazeroso seu consumo tem grande chance de levar seus consumidores à repetição ou à substituição por uma substância mais potente numa escalada que culmina com a perda do autocontrole e da capacidade de livre escolha A dependência 6 Anexo al informe estatístico anual Junta Internacional de Fiscalizacion de Estupefacientes Viena 2001 141 Maurício Fiore dessas drogas ainda que possa variar para cada indivíduo é uma patologia associada aos seus efeitos neuroquímicos o que acarreta uma perda gradual de outros interesses uma busca incessante por novas doses e uma dolorosa síndrome de abstinência grande sofrimento psíquico eou fisiológico pela suspensão do consumo Além da dependência elas potencializam outros transtornos mentais graves como depressão psicose e esquizofrenia Crianças e adolescentes são mais vulneráveis ao consumo dessas drogas o que é especialmente grave na incompletude de sua formação intelectual O consumo de drogas gera também graves consequências sociais como o comportamento descontrolado e a deterioração dos laços sociais Na medida em que seus efeitos suspendem o julgamento normal dos indivíduos essas drogas levam a ações inconsequentes e muitas vezes violentas agravadas pela incapacidade que muitos dependentes enfrentam para bancar a compra de novas doses Dado esse conjunto de danos e considerando que o consumo dessas drogas é totalmente prescindível já que elas não têm aplicação médica cabe ao Estado proibilas Para tanto ele goza de legitimidade para perseguir e punir quem as produz vende ou consome 2 segunda premissa proibicionista a atuação ideal do estado para combater as drogas é criminalizar sua circulação e seu consumo C om a legitimidade conferida pela primeira premissa o Estado deve agir em duas frentes impedir a produção e o comércio dessas substâncias e reprimir seus consumidores Com esse objetivo a Convenção da onu obriga os Estados a aplicar duras sanções penais aos produtores e vendedores dessas drogas classificados então como traficantes Para seus consumidores as Convenções pregaram inicialmente a dissuasão via legislação penal Nas últimas décadas no entanto a possibilidade de tratamento passou a ser considerada uma alternativa desde que se inserisse num conjunto de sanções que deixasse clara a proibição da prática 142 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 3 crítica às premissas proibicionistas 31 os potenciais danos individuais e sociais do consumo de drogas não justificam a sua proibição T odas as ações humanas engendram algum potencial de perigo ou dano Locomoção esporte e sexo seriam exemplos de práticas potencialmente danosas mas podese para os fins deste artigo limitálas às que envolvem ingestão voluntária de substâncias há também a poluição e a contaminação que provocam danos irrefutáveis Nesse caso há um campo controverso o do consumo abusivo ou desequilibrado de determinados alimentos considerado um dos mais graves problemas de saúde pública do planeta Limitome neste artigo aos procedimentos de controle estatal no campo das drogas Os protocolos de pesquisa de novas drogas com aplicação médica por exemplo supõem riscos na forma de efeitos colaterais não previsíveis Reconhecese inclusive legalmente que eles irão ocorrer ocasionando complicações graves e até letais No caso das drogas de uso mais geral o Estado se limita a regular a produção e a comercialização não o consumo sendo responsabilidade dos indivíduos obedecer ou não à prescrição médica E há ainda drogas que prescindem de receituário médico disponíveis nos balcões de farmácia para livre comercialização Ali se encontram por exemplo os analgésicos que em muitos países como o Brasil lideram os investimentos do mercado publicitário e estão ao mesmo tempo relacionados a milhares de mortes anuais seja por reações adversas e efeitos colaterais seja por consumo abusivo Mais próximos do objeto de discussão temos as drogas psicoativas com aplicação médica cuja comercialização segue regras mais rígidas de controle de receituário como os ansiolíticos e os antidepressivos Mesmo com fiscalização permanente sabese que há um enorme mercado clandestino dessas substâncias que fazem parte de muitos estoques domésticos Com o grande crescimento do número de diagnósticos de transtornos mentais diversos esses medicamentos ocupam há anos as listas dos mais vendidos o que tem gerado grande debate entre especialistas7 Mais polêmico ainda é o avassalador 7 Para ter uma ideia do volume de vendas desse tipo de medicamento no Brasil o Rivotril ou Clonazepam um benzodiazepinico utilizado como calmante e inibidor de ansiedade 143 Maurício Fiore crescimento do diagnóstico infantil de transtornos como o do déficit de atenção tratados por meio do uso sistemático de estimulantes8 Há também produtos que contêm substâncias psicoativas e não têm aplicação médica oficial São as drogas mais consumidas do planeta as bebidas alcoólicas as bebidas estimulantes café chá e energéticos e o tabaco9 Fora das listas da onu de drogas proscritas sofrem restrições diferentes em cada país mas no geral seu comércio é legal e a decisão sobre compra e consumo é individual para os adultos E finalmente as drogas psicoativas que mesmo ilegais são maciçamente consumidas por milhões de pessoas no mundo Sobre sua comercialização não há controle do Estado que se limita a pedir e de alguma forma obrigar que seus cidadãos se mantenham distantes para que não coloquem a si e à sociedade em risco Todas essas drogas psicoativas têm grande potencial de dano seja fisiológico seja mental Além disso uma parte significativa delas é bastante tóxica gerando grande número de mortes acidentais todos os anos E o que é mais importante os indivíduos podem consumi las de maneira abusiva seja esporádica seja frequentemente o que pode levar tanto a comportamentos perigosos como a quadros graves de dependência Como se vê tanto as drogas psicoativas livremente disponíveis como as controladas ou totalmente ilegais são perigosas Mas por isso podem ser consideradas prescindíveis Definitivamente não O uso desse enorme conjunto de produtos plantas e moléculas tem diversas motivações e parte delas é de indiscutível importância para a humanidade ajudam no enfrentamento de doenças e infecções aliviam a dor apaziguam a ansiedade melhoram o desempenho despertam prazer excitam inspiram reflexões facilitam relações sociais e o que talvez seja uma combinação de cada uma dessas coisas suspendem a forma ordinária de perceber o mundo Por essas é o segundo medicamento mais vendido do Brasil numa lista que inclui analgésicos e anticoncepcionais 8 Atualmente muitos trabalhos têm exposto e criticado esses diagnósticos e prescrições em massa Um bom resumo de trabalhos sobre o tema pode ser lido em Angeli Marcia A epidemia de doença mental Piauí n 59 ago 2011 9 Poderiam ser incluídos nessa lista ainda os solventes e outros inalantes que são produzidos com outras finalidade comerciais têm venda pouco controlada mas são amplamente utilizados sobretudo por jovens como substâncias psicoativas cola éter benzina etc 144 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA e muitas outras razões os seres humanos as procuraram em toda a história e continuarão a fazêlo Como outras experiências e práticas liminares essa alteração é arriscada e por isso mesmo o consumo de substâncias psicoativas foi sempre cercado de controles e interdições sociais O exagero da premissa proibicionista é fazer do Estado cujo motivo primordial de existência é a garantia de liberdades e direitos individuais o promotor dessas interdições por meio da criminalização que impeça adultos disporem de seus corpos e ainda supor como será discutido a seguir que eles com isso deixarão de fazêlo Isso não é o mesmo que advogar por um cenário libertário radical potencialmente inconsequente em que ao indivíduo é dada uma autossuficiência abstrata Sabese que o Estado se constrói em permanente arena de conflitos de interesses e valores alguns antagônicos mas deve haver limites para sua atuação As práticas corporais e a ingestão de substâncias devem ser um desses marcos de autonomia e as interdições tutelares só se justificariam em casos individuais com cuidadoso processo médicojudiciário E se esse é o caso do consumo de algumas substâncias hoje proscritas então o Estado teria por decorrência que estender a interdição para um campo geral das drogas dos alimentos e até de outras práticas tidas como perigosas O braço mais poderoso e portanto perigoso do Estado é a punição e por isso seu uso deve ser sempre considerado um recurso excepcional Os defensores dessa tutela lançam mão de um argumento importante Uma vez dependentes os indivíduos perderiam sua capacidade de livre escolha permanecendo presos à escravidão da compulsão pela droga Porém mesmo que se reconheça que a dependência é um quadro dramático a incapacidade de julgamento é controversa Mais importante essa condição não justifica a supressão do direito de escolha de outros indivíduos Além de a interdição do uso não se sustentar pela existência do abuso ela própria não é capaz no caso das drogas de impedilo É provável que muitos dos que discordam da intromissão indevida do Estado na esfera privada continuem preocupados com o papel do Estado diante das consequências negativas que o uso de muitas dessas drogas atualmente proibidas pode acarretar Mas é justamente a supressão da primeira premissa a punição aos consumidores de drogas que pode ensejar uma atuação não só mais justa como mais 145 Maurício Fiore eficaz Reconhecendo que as drogas continuarão a existir o Estado deve promover outros controles sociais e promover o autocuidado as melhores formas possíveis de prevenção e redução de danos ignoradas pelo proibicionismo 32 Ao proibir a produção o comércio e o consumo de drogas o estado potencializa um mercado clandestino e cria novos problemas S ustentada pela legitimidade concedida pela primeira premissa o Estado centraliza seus esforços para impedir a circulação de drogas e dissuadir seus consumidores Ao naturalizar a proibição como única forma de enfrentar o problema criase uma falácia para sustentála drogas são proibidas porque são ruins e são ruins porque são proibidas Enquanto existirem por essa lógica as leis devem continuar determinando que consumilas é errado e portanto punível No entanto o mesmo século do proibicionismo foi o século do crescimento do consumo de drogas Ainda que não se possa creditar o aumento do consumo de drogas ilegais à proibição devese admitir que ela falhou em seus objetivos seja de erradicálo seja de contê lo O grande equívoco da segunda premissa é que um fenômeno de tamanha complexidade possa ser contido por um marco regulatório tão simplório que divide drogas tão diferentes num esquema binário permitidas e proibidas A produção e o comércio de drogas ilícitas são junto com o tráfico de armas o maior mercado criminoso do mundo Funcionando sem nenhum tipo de regulação o comércio dessas drogas envolve na maior parte das vezes exploração de trabalho inclusive infantil contaminação ecológica corrupção de agentes públicos e o que é mais grave utilização de violência armada para demarcação de interesses e outros conflitos É importante lembrar nesse último ponto que diferentemente do que pregam os defensores da proibição os dados empíricos não relacionam o consumo de drogas à violência mesmo na dinâmica própria do comércio ilegal Países da Europa Ocidental por exemplo têm proporcionalmente mais consumidores de drogas ilegais do que a maior parte dos países da América Latina mas tanto o consumo como o comércio dessas substâncias se dão 146 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA de forma muito menos violenta Ou seja a violência do comércio de drogas responde aos contextos em que ele ocorre e portanto ele acentua a desigualdade internacional e intranacional Como o tráfico é uma atividade de lucro hipertrofiado principalmente no setor de distribuição atacadista da cadeia parte significativa dos ganhos pode ser usada para a compra de armamentos e para corromper setores da burocracia estatal principalmente agentes de segurança O exemplo mais recente e dramático das consequências da guerra às drogas acontece há anos no México extermínios quase diários no enfrentamento entre gangues e destas com o exército cujas vítimas não se restringem aos dois lados evidentemente10 Como muitas outras formas de violência as vítimas e os algozes dessa guerra são oriundos em sua maioria das camadas mais pobres e estigmatizadas de seus países E a atuação das polícias se concentra normalmente em cima do mercado varejista o mais exposto e ocupado pelos que menos lucro têm com esse comércio Os bilhões que o tráfico movimenta no entanto continuam circulando pelos mercados com maneiras diversas de tornar o dinheiro legal Ano após ano medidas de inteligência no combate à lavagem desse capital são anunciadas mas seu impacto no tráfico é pífio Prendendo cotidianamente os varejistas de rua rapidamente repostos num mercado tão dinâmico a polícia faz do tráfico de drogas um dos principais responsáveis pelo alarmante crescimento do encarceramento em diversos países No Brasil entre os cerca de 548 mil presos 138 mil respondem por crimes relacionados às drogas11 E a tendência atual é de que os crimes relacionados às drogas respondam por mais encarceramentos na medida em que seu crescimento entre proporção total de detidos cresceu entre 2006 e 2010 62 contra 85 de outros crimes12 Na medida em que não cumpriam a meta de um mundo livre de drogas para os próximos decênios as diversas Convenções 10 O conflito mexicano tratado como genocídio pelas autoridades é apontado como a causa principal de parte considerável dos 50 mil homicídios nos últimos quatro anos 11 Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça Infopen dados de dezembro de 2012 12 Comunicação oral de Pedro Abramovay exsecretário nacional de Justiça e professor da Fundação Getúlio Vargas em seminário realizado no Cebrap em novembro de 2011 147 Maurício Fiore Internacionais postergavam seus objetivos No último deles o encontro da Comission on Narcotic Drugs cnd em Viena 2009 a nova justificativa tomou contornos oficiais se um mundo sem drogas parece pouco factível num futuro próximo continuar a guerra é o que garante que o consumo não atinja níveis catastróficos Na verdade a Convenção apenas se apropria de uma perspectiva que já era clara para a maior parte dos agentes envolvidos no cotidiano da guerra às drogas que nunca vislumbraram uma vitória definitiva É uma guerra na qual se costuma comemorar vitórias parciais como a prisão de traficantes e a apreensão de drogas que seriam capazes de retirar das ruas o veneno que o inimigo cada vez mais perigoso distribui13 Ignorando que há substituição permanente de função e que apenas uma pequena parte do que circula no mercado é apreendida a polícia exalta mais os procedimentos do que os resultados práticos os preços da cocaína e de sua versão tragável o crack têm permanecido praticamente estáveis em São Paulo há quase duas décadas14 Por fim sob o proibicionismo os consumidores de drogas são conduzidos a um contato estreito com o crime Envoltas por uma áurea marginal que tanto seduz como estigmatiza as drogas tornamse um marcador de coragem e virilidade Demonizadas por campanhas que carregam mais pânico do que informação duas drogas tão diferentes como maconha e cocaína por exemplo misturamse não só no imaginário mas nos locais eou nas pessoas que as vendem Diferentemente do que ocorre com as drogas legais sobre as quais os serviços de saúde podem fornecer informações a respeito de usos mais seguros e assim estimular o autocuidado o consumidor de drogas ilícitas é confrontado com uma única decisão interromper o consumo ou manterse escravo da droga 13 Um oficial da polícia militar paulista quando perguntado pelo repórter da tv Globo em meados de 2011 se a operação contra um ponto conhecido de tráfico não seria como enxugar gelo já que em alguns dias o comércio de drogas funcionaria ali novamente sintetiza em sua resposta o realismo proibicionista Se não enxugássemos o gelo a poça estaria muito maior 14 Além disso a maior parte da população brasileira principalmente os jovens considera fácil obter drogas ilícitas A última pesquisa domiciliar de abrangência nacional realizada pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas Cebrid em 2005 apontou que cerca de 65 dos brasileiros acima de 12 anos consideram fácil obter maconha 51 consideram fácil obter cocaína 148 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 4 o fortalecimento das críticas e a modernização do paradigma guerra contra o tráfico tratamento para o viciado N os últimos anos as críticas ao paradigma proibicionista não apenas se fortaleceram como conseguiram escapar do lugar a que foram estrategicamente relegadas ao longo do século xx um exotismo inconsequente ou fruto do comprometimento pessoal de defender o uso de drogas como positivo15 Abordagens pragmáticas e realistas como a redução de danos conseguiram se distanciar das premissas proibicionistas e alcançar bons resultados com os quais ganharam lentamente credibilidade Guiadas pelo pressuposto de que cabe aos profissionais de saúde a minimização dos danos e não a erradicação das drogas as políticas de redução de danos foram decisivas para recolocar os termos do debate16 principalmente no cuidado com o consumidor Dessa forma o encarceramento de usuáriosdependentes foi sendo mais e mais considerado uma ação estatal anacrônica e desumana Em vez de punilos com prisão o Estado deveria tratálos mesmo que contra sua vontade Essa perspectiva já prevista pelas Convenções configurase hoje como uma espécie de modernização da premissa proibicionista e influenciou no Brasil importantes mudanças na atualização da legislação sobre o tema A Lei de Drogas 11343 promulgada em 2006 endureceu o combate ao tráfico e manteve a criminalização do consumidor o fato de o uso estar incluído no Código Penal é prova disso mas eliminou a pena de prisão para os indivíduos flagrados com drogas para seu próprio uso estipulando penalidades que vão de advertência verbal à prestação de serviços públicos Na outra ponta a lei aumentou a pena mínima de prisão para quem portar drogas destinadas ao tráfico de três para cinco anos17 15 Os crescentes movimentos populares pela mudança da lei de drogas dos quais se destaca a Marcha da Maconha têm tido dois papéis fundamentais desmistificar por meio da ocupação do espaço público o caráter marginal associado às drogas e ao mesmo tempo reivindicar sua existência política para além da apologia do consumo de drogas normalmente utilizado para retirar sua legitimidade 16 O conceito de redução de danos é muito controverso sendo objeto de disputa semântica entre especialistas Para uma discussão mais aprofundada ver Fiore Maurício op cit 17 Equiparado aos demais crimes constitucionalmente hediondos o tráfico de drogas é um dos que mais pena preveem na legislação penal brasileira equiparandose ao homicídio e ao estupro por exemplo 149 Maurício Fiore Chamo a atenção para duas consequências práticas da lei ao não estipular quantidades ou outros critérios objetivos para definir se a droga é destinada para venda ou para o consumo continua sendo conferida à autoridade policial a responsabilidade dessa interpretação e a instauração de inquérito avaliado posteriormente pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário18 Duas pesquisas recentes mostraram que a lei encarcera jovens normalmente pobres primários e que portam pouca quantidade de drogas Além disso uma vez enquadrados como traficantes grande parte deles responde ao processo encarcerados e dificilmente conseguem escapar de condenação19 Em segundo lugar ao aumentar o fosso que divide consumidores e traficantes a lei parece ter aumentado o rigor policial que desde sua promulgação cresceu substancialmente como citado há pouco A mudança da lei inegavelmente importante ao suprimir a pena de prisão de usuários parece encerrar um dilema por quais caminhos conduzir as críticas ao proibicionismo Sua concretização está implícita por exemplo na mais influente confrontação política internacional a Comissão Global de Política de Drogas que reúne líderes políticos importantes20 artistas e especialistas célebres O argumento principal do grupo é que a guerra às drogas é um fracasso com terríveis efeitos colaterais do mercado ilegal de drogas e das violentas e dispendiosas tentativas de combatêlo Seu principal ataque assim se dá à segunda premissa proibicionista a de que as drogas devem ser combatidas penal e militarmente Como essa outras críticas ao proibicionismo não estão direcionadas a sua premissa fundamental a de que o Estado pode e deve interferir na decisão individual de consumir drogas Há sem dúvida um componente tático nessa opção O debate sobre drogas está pautado há mais de um século pelo pânico moral e por um formato belicista no qual questionamentos da primeira premissa o Estado deve realmente proibir o consumo de drogas são normalmente 18 Para determinar se a droga destinavase a consumo pessoal o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida ao local e às condições em que se desenvolveu a ação às circunstâncias sociais e pessoais bem como à conduta e aos antecedentes do agente Lei 11343 art 28 3o 19 Ver boiteux et al 2009 e Núcleo de Estudos da Violência 2011 20 Entre outros três expresidentes Fernando Henrique Cardoso Cesar Gaviria Colômbia e Ernesto Zedillo México o exsecretáriogeral da onu Kofi Annan e o exsecretário de Estado dos euA George Shultz 150 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA interpretados como simpatia interessada ou inconsequente pelo inimigo21 Quando questiona o resultado da guerra a crítica se torna mais palatável e pode angariar mais apoio Caberia uma reflexão sobre os seus limites A manutenção da premissa de que as drogas são ruins a ponto de justificar sua proibição é o esteio mais profundo do paradigma Assemelhandose a muitos outros debates políticos contemporâneos a discussão sobre política de drogas ensejará necessariamente conflitos entre valores morais que no mais das vezes terminam em um estéril polemismo É possível no entanto que mudanças significativas possam ocorrer sem que os limites ao papel do Estado sejam questionados Seguindo a provocação de david husak22 uma das maneiras retóricas de recolocar o papel do Estado na discussão é inverter a pergunta que normalmente é feita aos críticos do proibicionismo Assim em vez de responder passivamente à questão Por que o Estado deve descriminalizar o uso de drogas devese colocar outra Por que o Estado deve proibir o uso de drogas A estratégia de questionar a primeira premissa ainda que politicamente mais delicada pode abalar de maneira mais consistente todo o paradigma A ruína histórica de outro modelo proibicionista é didática Na década de 1920 os euA depois de décadas de pressão de grupos religiosos comunitários e feministas conseguiu reunir apoio político suficiente para uma ambiciosa empreitada extirpar o consumo de álcool do país23 A Lei Seca vigorou durante treze anos e até hoje é o exemplo mais evocado de fracasso por conta de suas consequências aumento de crimes violentos consolidação do crime organizado e envenenamentos por conta da produção clandestina Hoje ela não é considerada um delírio proibicionista apenas por ter fracassado mas porque seu fundamento autoritário o Estado pode em defesa da sociedade proibir que indivíduos comprem álcool legalmente não parece nem um pouco plausível o que torna pouco provável sua reintrodução 21 Profissionais da saúde ligados à redução de danos pesquisadores e líderes de movimentos antiproibicionistas são alvo frequente de ataques que os estereotipam como simpatizantes ou defensores das drogas 22 husAk mArneFFe 2005 p 2627 23 Uma obra recente fundamental para se aprofundar na instituição da Lei Seca é okrent 2010 151 Maurício Fiore 5 Alguns pressupostos para modelos alternativos C omo dito acima defender um modelo alternativo ao proibicionismo não é afastar o Estado do problema mas rediscutir o seu papel para que ele atue com mais eficiência dentro de limites democráticos A luta pela mudança do paradigma deve portanto ser simultânea à construção de legislações e políticas públicas que estabeleçam normas justas promovam práticas menos nocivas e atendam da melhor forma possível aos problemas que o consumo de drogas inexoravelmente causará Apresento de forma bastante resumida alguns sugestões gerais oriundas da literatura e de algumas experiências internacionais 51 valorizar o autocuidado e os controles sociais A alteração sistemática da consciência por meio de substâncias não é uma ação isolada Os indivíduos o fazem em contextos sociais específicos que estão como todos os outros repletos de valores regras e sentidos que tanto incitam quanto estabelecem parâmetros Aos efeitos desordenadores das drogas sempre são postos controles e freios sociais inclusive com aplicação de sanções Num exemplo atual indivíduos e sociedade se equilibram entre estímulos valores e sanções que dizem respeito ao consumo de álcool O Estado nesse caso ausentase da tarefa de regular o mercado e desestimular o uso mas ainda assim a maior parte dos bebedores não pode ser considerada socialmente disfuncional ou dependente crônica Quando se reconhece que é impossível suplantar os problemas que o consumo de drogas inevitavelmente pode causar percebese com mais facilidade que nenhuma medida preventiva será mais eficiente do que o autocuidado e o fortalecimento de laços sociais Há que se evitar também a crença de uma regulamentação onipresente da produção e do comércio de substâncias psicoativas Medidas de controle e desestímulo são fundamentais aumento de preços restrição de pontos de venda limitação de quantidade ofertada controle de dosagem etc mas devem ser levados em conta os padrões de consumo mais comuns para que não se configurem num grande incentivo à hipertrofia do inevitável mercado clandestino 152 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 52 descriminalização de fato do consumo e estipulação com critérios objetivos U ma política justa e eficiente sobre drogas pressupõe no mínimo a descriminalização do consumidor Uma experiência prática que tem sido apontada como modelo é a portuguesa Há uma década uma nova lei manteve a ilegalidade das drogas mas tornou seu porte para consumo uma infração administrativa Caso flagrado com drogas o indivíduo é ouvido por uma junta civil composta de psicólogos médicos e assistentes sociais que de forma compartilhada e sob a perspectiva do cuidado à saúde integral decidem se é o caso de um tratamento ou de sanções mais sérias como multas Em boa parte dos casos envolvendo adultos e drogas como maconha o papel do Estado se encerra temporariamente nesse contato As normas portuguesas estabelecem com mais clareza qual a quantidade que tipifica a posse para uso estimada para dez dias de consumo e os resultados obtidos desde a mudança são positivos como a queda do número de consumidores problemáticos e a diminuição do envolvimento de crianças com drogas24 A maior conquista do modelo no entanto é demonstrar que a supressão da punição não faz com que todos principalmente os jovens corram para o traficante mais próximo em busca de drogas Sua introdução no entanto deve ser adaptada a contextos como o brasileiro caracterizado por grande seletividade penal contra populações vulneráveis Tirar o consumidor da órbita do direito penal por meio de critérios claros para definir o que é porte para consumo e para tráfico é uma mudança menos polêmica e com impactos positivos 53 planejamento de ações de acordo com as especificidades de cada droga O uso recorrente do termo drogas neste artigo pode levar à conclusão equivocada de que se está sugerindo que elas devem ter por parte do Estado tratamento equivalente Sob o proibicionismo um único critério obscuro legalidade x ilegalidade uniformiza substâncias tão diferentes Políticas eficientes devem se basear em dados empíricos sobre os efeitos os riscos potenciais e os padrões 24 Ver greenWAld Gleen 2009 153 Maurício Fiore de consumo de cada uma delas É com base nessa especificidade que grande parte dos críticos do proibicionismo defendem a possibilidade de mudança imediata por exemplo do estatuto jurídico da maconha a droga ilegal mais consumida do planeta Não obstante seu consumo poder acarretar danos e nem todos eles serem plenamente conhecidos a maconha não apresenta toxicidade letal e o padrão de consumo mais comum não é problemático Além disso a manutenção da maconha na lista de plantas proscritas tem dificultado a investigação sobre a sua ampla e bem demonstrada função medicinal25 Outras drogas ilegais e bastante difundidas como a cocaína demandariam modelos mais complexos de regulamentação algo próximo do que atualmente é feito para os medicamentos controlados Nesses casos o desafio seria equilibrar uma política que garantisse mais controle sem crimininalização desestimulando o mercado clandestino26 Não se deve esquecer que cada vez mais substâncias estarão disponíveis demandando novas formas de o Estado lidar com a questão Hoje proibir tem sido a resposta Desafiados por novas substâncias ou formas de alterar consciência no futuro os Estados poderão pagar um preço alto por não ter testado e aprimorado outras alternativas O álcool e o tabaco são outros bons parâmetros para o planejamento da inclusão das drogas ilegais na supervisão estatal O álcool legalizado sofre o mesmo controle de qualidade dos alimentos e seu comércio desde que tributado é livre preços e pontos de venda sendo apenas fiscalizado com pouco rigor o acesso por menores de idade Sua publicidade objeto de investimentos maciços praticamente não sofre restrições27 Portanto é um exemplo de omissão do Estado o que se explica em grande parte pela pressão dos interessados diretos no seu comércio Já o tabaco também legalizado por outro lado vem sendo objeto de recente intervenção estatal sob 25 Ver mAlchierloPes ribeiro 2007 26 Para que cenários futuros de regulação sejam viáveis é importante que não se descartem algumas estruturas de controle já estabelecidas internacionalmente inclusive pela própria Convenção Para uma discussão detalhada e minuciosa de cenários de regulação uma obra fundamental é After the War on Drugs Bluprint for Regulation Londres Transform Drug Policy Foundation 2009 27 Somente as bebidas com mais de treze graus na escala GayLussac sofrem algum tipo de restrição publicitária no Brasil Assim a maior parte dos fermentados como as cervejas e os vinhos além dos ices misturas de refrigerantes e bebidas destiladas não é considerada para fins publicitários bebida alcoólica 154 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA quatro vertentes principais justificada pelos incontestáveis danos epidêmicos gerados pelo seu consumo disseminação de informações e alertas sobre seus danos potenciais veto quase total da publicidade aprimoramento do atendimento aos dependentes e restrição de locais de uso nesse caso com a justificativa de proteger outros indivíduos Independentemente das controvérsias sobre seus exageros tratase de um exemplo duplamente bemsucedido sem adotar as premissas proibicionistas o Brasil viu diminuir em vinte anos a proporção de fumantes em cerca de 50 Outros países também têm alcançado com políticas equivalentes bons resultados28 A regulação dos mercados de álcool e tabaco drogas legais demonstram portanto que a ausência de políticas públicas não diz respeito à legalidade de uma droga Mercados legais podem ser bem tabaco ou mal álcool regulados fora do paradigma proibicionista 6 perspectivas de mudanças no brasil N ão obstante o inegável crescimento das vozes dissonantes e dos movimentos políticos de contestação ao paradigma proibicionista que certamente tem e terá papel decisivo na mudança do modelo o horizonte de mudanças práticas não parece promissor no Brasil Julgando pelo histórico de atuação do Legislativo sobre o tema é improvável que alguma mudança além do aprofundamento do modelo atual possa ocorrer Desde a promulgação da Lei de Drogas em 2006 os projetos que ganharam algum destaque e maior apoio no Congresso previam por exemplo o retorno da pena restritiva de liberdade para consumidores dessa vez sob a forma de tratamento compulsório e com a justificativa de que a lei atual havia eliminado as ferramentas da dissuasão do Estado Outra iniciativa dada a grande repercussão do aumento do consumo de crack pelo país tentou endurecer ainda mais as penas para os traficantes dessa forma específica de cocaína29 28 Nos euA um em cada dois homens fumava na década de 1960 Hoje esse número é inferior a dois em cada dez com viés de queda Ver Chartbook on trends in the health of Americans EUA National Center for Health Statistics 2007 29 Esses projetos ignoram que legislação semelhante aprovada nos euA na década de 1980 é duramente criticada por ter aumentado o processo de encarceramento em massa de nítida seleção socialracial que faz dos euA o maior encarcerador do mundo Sobre esse ponto ver especialmente vAgins Debora J mccurdy Jesselyn Cracks in the system twenty years of the unjust federal crack cocaine law Washington America 155 Maurício Fiore Mudanças significativas dificilmente virão também do atual Executivo federal Ainda que haja vozes dissonantes no interior do governo discursos que apresentem qualquer crítica da proibição são evitados30 e a pauta de atuação tem se concentrado nos investimentos ao combate ao tráfico controle de fronteiras e tratamento de dependentes Nesse último aspecto que mereceria uma discussão específica medidas anunciadas recentemente aumentaram os investimentos no atendimento público aos dependentes mas ao mesmo tempo garantiram o financiamento das comunidades terapêuticas instituições privadas em que normalmente privilegiase a internação como forma de tratamento decisão bastante controversa31 Num livro recente sobre alternativas ao proibicionismo32 o jornalista denis bugierman usou uma metáfora interessante para explicar a inércia dos políticos com relação ao tema eles seriam dependentes das drogas não da ingestão dessas substâncias mas do seu uso eleitoral De fato os políticos esperam não só ganhar votos quando defendem o combate sem trégua às drogas como conseguem tirálos de adversários que ousem propor o debate sobre qualquer outra alternativa Mas se o fazem é também porque encontram forte ressonância e apoio em praticamente todos os segmentos sociais No caso das drogas prevalece uma regra política quanto maior a ambição eleitoral menos se deve mexer no vespeiro Apenas prometa odiar e lutar contra as vespas O alento pode vir da instância máxima do Judiciário que não depende diretamente de votos Estava previsto para 2013 e foi postergado para 2014 o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal com repercussão geral33 sobre a inconstitucionalidade da atual lei Civil Liberties Union 2006 30 Depois de declarar à imprensa que o governo vinha estudando mecanismos para diminuir o encarceramento em massa de pequenos traficantes sugerido por documentos do próprio Ministério da Justiça o exsecretário nacional de Justiça Pedro Abramovay foi desnomeado da Secretaria Nacional de Política sobre Drogas antes de assumir o cargo 31 As comunidades terapêuticas são muitas vezes ligadas a grupos religiosos e exigem a abstinência total durante o isolamento o que é criticado por especialistas Além disso um relatório recente do Conselho Federal de Psicologia apontou problemas graves em muitas comunidades inclusive tortura Ver 4º Relatório Nacional de Inspeção de Direitos Humanos locais de internação para usuários de drogas Brasília Conselho Federal de Psicologia 2011 32 burgiermAn 2011 p 5460 33 Ao apontar a repercussão geral o stF indica que ela deve ser usada como parâmetro norteador de decisões semelhantes em instâncias inferiores 156 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA de drogas que criminaliza a posse de drogas para consumo próprio Se seguirem a decisão de seus colegas da Colômbia e da Argentina e considerarem inconstitucional a punição aos cidadãos que portem droga para consumo os ministros brasileiros serão os responsáveis pelo único mas extremamente relevante questionamento ao paradigma proibicionista que se pode vislumbrar a curto prazo no Brasil 7 referências bibliográficas After the War on Drugs Bluprint for Regulation Londres Transform Drug Policy Foundation 2009 boiteux Luciana et al Relatório de pesquisa tráfico e constituição In Pensando o direito BrasíliaRio de Janeiro Ministério da Justiça 2009 burgiermAn Denis Russo O fim da guerra a maconha e a criação de um novo sistema para lidar com as drogas dAvenPorthines Richard La búsqueda del olvido Madri TurnerFondo de Cultura Económica 2001 escohotAdo Antonio Historia de las drogas Madri Alianza 1998 v 3 Fiore Maurício Uso de drogas controvérsias médicas e debate público Campinas Mercado de LetrasFapesp 2007 greenWAld Gleen Drug Descrminalization in Portugal lessons for creating fair and successful drug policies Nova York Cato Institute 2009 husAk Douglas mArneFFe Peter de The Legalization of Drugs for and against Nova York Cambridge 2005 lAbAte Beatriz Fiore Maurício goulArt Sandra Introdução In lAbAte B et al Drogas e cultura novas perspectivas Salvador EdufbaMinistério da Cultura 2008 mAlchierloPes Renato ribeiro Sidarta Maconha cérebro e saúde Rio de Janeiro Vieira e Lent 2007 okrent Daniel Last Call the rise and tall of Prohibition Nova York Scribner 2010 Prisão provisória e lei de drogas um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo São Paulo Núcleo de Estudos da Violência 2011 rodrigues Thiago Política e drogas nas Américas São Paulo EducFapesp 2004 políticA criminAl e redução de dAnos Maurides de Melo Ribeiro Mestre e Doutor em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade de Direito da USP Professor de Direito Penal e Criminologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie e das Faculdades de Campinas FACAMP Expresidente da Comissão de Política Nacional de Drogas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBCCRIM Expresidente do Conselho Estadual de Entorpecentes do Estado de São Paulo CONENSP sumário 1 Uma introdução necessária 2 A permanente busca de conceitos 3 As políticas criminais sobre drogas 31 Os primórdios da questão 32 A mudança de paradigmas 33 A proibição do consumo as origens do proibicionismo 331 As primeiras medidas 332 A mundialização do proibicionismo 34 O recrudescimento da repressão e o surgimento do tráfico internacional 341 As organizações mafiosas 35 A ONU como a nova guardiã da ordem proibicionista 351 A declaração de guerra às drogas 158 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 4 As estratégias de redução de danos Referências bibliográficas 1 uma introdução necessária A abordagem da questão das drogas sob o ponto de vista estritamente legal representa por si só uma má colocação do tema Mais do que operadores das agências de controle social quem deveria preferencialmente trabalhar a questão das drogas com muito mais atenção e propriedade são os profissionais das áreas de educação saúde sociais e culturais Afinal tratase de um tema complexo que deve ser encarado a partir de um enfoque multidisciplinar ninguém pode dizer que tem respostas prontas e soluções definitivas assim como nenhuma área do conhecimento detém o monopólio do saber nesta matéria E a legislação sobre drogas assim como qualquer outro tema que comporte uma disciplina legal para a mediação dos conflitos sociais dele decorrentes deverá necessariamente surgir após amplo debate das demais áreas científicas e políticosociais com interesse na definição dos parâmetros daquela comunidade e a partir do consenso desses setores definemse os bens que mereçam proteção legal e as salvaguardas normativas que convêm àquela sociedade Inversamente do esperado numa sociedade democrática o que assistimos notadamente na questão das drogas é que o discurso jurídicolegal condiciona o debate preestabelecendo dogmas que terminam por engessar a discussão no campo dos demais atores do processo social no qual o tema se insere 2 A permanente busca de conceitos Q uando se procura entender o fenômeno do uso de substâncias psicotrópicas devese antes de mais nada buscar a eliminação de mitos Assim a primeira indagação que se deve fazer é afinal o que é droga1 As pessoas em geral estão muito acostumadas com a 1 A própria palavra droga não tem um sentido unívoco podendo significar tanto algo de má qualidade quanto um medicamento todavia a expressão tornouse popular 159 Maurides de Melo ribeiro distinção surgida com as políticas proibicionistas entre drogas lícitas e ilícitas o que do ponto de vista da saúde pública que é o bem jurídico que o Estado alega tutelar é de uma irracionalidade a toda prova Essa opção legislativa foi feita a partir de Convenções Internacionais sobre a matéria e reproduzida em nossa lei penal Tal diferenciação não encontra um mínimo de fundamento científico apto a justificála basta recordar que as drogas lícitas álcool e tabaco são hoje consideradas como os principais problemas de saúde pública mundial nesse campo segundo a própria Organização Mundial de Saúde Não obstante isso o fato é que a busca por um conceito razoável sobre drogas impõe um caminho difícil e tormentoso para quem nela se empenha O antropólogo gilberto velho diz que a determinação do conceito de droga é altamente problemática pois dependendo dos critérios utilizados e do próprio investigador podese abarcar desde para designar as substâncias psicoativas e por isso ela será adotada neste trabalho como sinônimo de psicotrópico ou substância psicoativa termos que também serão utilizados por melhor traduzirem o conceito dessas substâncias Ressaltese ademais que a nova Lei 113432006 adotou expressamente o termo drogas para designar o conjunto dessas substâncias ou produtos conforme o parágrafo único de seu art 1º Por outro lado psicoativo é como se deduz da própria palavra aquilo que tem efeitos sobre a atividade psíquica ou mental ou sobre o comportamento Psicotrópico por seu turno define com maior precisão terminológica essas substâncias como sendo aquilo que atua quimicamente sobre o psiquismo a atividade mental o comportamento a percepção etc In houAiss Antonio villAr Mauro de Salles Dicionário Houaiss da língua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001 Preferemse essas designações a outras também comumente encontráveis na literatura jurídica ou pela sua freqüência de uso no caso da palavra droga ou por sua precisão terminológica no caso da expressão substância psicoativa ou da palavra psicotrópico Registrese que são comumente encontráveis no mesmo sentido as designações entorpecente narcótico ou estupefaciente palavras sinônimas que significam aquilo que entorpece que causa torpor que amortece os sentidos e que portanto englobam apenas parte das substâncias psicoativas uma vez que além das estupefacientes temos numa rápida classificação substâncias estimulantes e substâncias alucinógenas Finalmente é também comumente empregada a palavra tóxico que na realidade expressa uma qualidade dessas substâncias e não seu conceito propriamente dito assim toxicidade de uma substância é o seu grau de periculosidade para o indivíduo considerado a proporção concreta entre a dose ativa e a dose letal a aspirina por exemplo pode ser mortal para um ser humano adulto a partir de três gramas In escohotAdo Antonio O livro das drogas usos e abusos preconceitos e desafios São Paulo Dynamis Editorial 1997 p 24 ou como define a artista plástica Yoko Ono munida de fina ironia Tóxico é o segundo copo dágua quando o primeiro me matou a sede In silvA Milton Severiano da Se liga O livro das drogas Rio de Janeiro Record 1997 p 15 160 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA a heroína até o papodeanjo2 Até etimologicamente sua origem é controvertida podendo ter vindo do persa droa que significa odor aromático do hebraico rakab perfume ou do holandês antigo droog substância ou folha seca3 tudo segundo houaiss significando substância ou ingrediente próprios para tintura química e farmácia De qualquer maneira existe um conceito de drogas amplamente aceito pela comunidade científica que é o estabelecido pela Organização Mundial de Saúde OMS Segundo essa definição droga é qualquer substância autoingerida que atua no sistema nervoso central provocando alterações de percepção ou função4 Entretanto verificase que todas as tentativas de definição do conceito de droga inclusive aquelas mais revestidas de cientificidade guardam em si mesmas um préconceito subjetivo expresso em certa demonização da coisa que se pretende definir Por exemplo ao dizer que droga é uma substância que altera percepção ou função orgânica conforme a definição da OMS já há nessa afirmação uma carga anímica negativa que se manifesta na ideia subjacente de que todo indivíduo que tiver qualquer forma de contato com a droga incorrerá necessariamente num processo de transformação Por isso hipócrates5 ponderava desde a antiguidade clássica que droga é na verdade uma coisa nem boa nem ruim apenas uma coisa da natureza em outras palavras a droga é uma substância que se extrai da natureza e que justamente por isso não pode ter uma qualidade intrínseca um valor em si mesmo A qualificação de uma substância como boa ou ruim decorre portanto da relação que temos com 2 silvA Milton Severiano da Op cit 3 seibel Sergio Dario Jr toscAno Alfredo Dependência de drogas São Paulo Atheneu 2001 p 2 4 diAs João Carlos Pinto Izabel Marins Substâncias psicoativas classificações mecanismos de ação e efeitos sobre o organismo In silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves Panorama atual de drogas e dependências São Paulo Atheneu 2006 p 39 5 No chamado Corpus hipocrático encontramos que são drogas as substâncias que atuam esfriando esquentando secando umedecendo contraindo e relaxando ou fazendo dormir Interessante ainda o comentário atribuído a Teofrasto discípulo de Aristóteles a respeito da datura metel Ministrase uma dracma 320 gramas se o paciente deve simplesmente se animar e pensar bem de si mesmo o dobro dessa dose se ele deve delirar e sofrer alucinações o triplo se deve ficar permanentemente louco uma dose quádrupla se o homem deve morrer escohotAdo Antonio Historia general de las drogas Madrid Alianza Editorial 1995 p 140141 161 Maurides de Melo ribeiro ela que pode ser benéfica ou maléfica Digase aliás que a ampla maioria das substâncias que se encaixam na definição de droga dada pela OMS foi introduzida em nosso convívio como fármacos de utilização médica ou terapêutica um exemplo evidente é a morfina opiáceo ainda hoje largamente utilizado por seus reconhecidos e insubstituíveis efeitos analgésicos Portanto para termos uma compreensão de como se construiu a atual política criminal relativa à questão das drogas não poderemos partir de uma perspectiva ôntica necessário será realizar uma digressão histórica para compreender melhor o fenômeno social do uso dessas substâncias e como ele evoluiu até nossos dias 3 As políticas criminais sobre drogas 31 os primórdios da questão H oje não há controvérsias no sentido de que o consumo de substâncias psicoativas acompanha a própria história da humanidade e se caracteriza pelo seu caráter gregário Isto provocou desde as primeiras civilizações o aparecimento de normas e convenções sociais para regular a produção a distribuição e o modo do consumo O Código de Hamurabi punia com pena de morte os donos de tabernas que adulterassem o vinho Entre os incas o consumo de folhas de coca era um privilégio dos nobres ficando o uso pelos servos e soldados condicionado à autorização real6 Boa parte dos alucinógenos como a psilocibina a mescalina e a dimetiltriptamina DMT era consumida dentro de rituais sagrados regulados pelos líderes religiosos de cada comunidade7 6 Esse privilégio pode ser entendido a partir do próprio mito incaico de que foi Manco Capac entidade que mesclava o temporal e o divino pois era um deusimperador quem concedeu o bálsamo de Mama Coca para a humanidade para fazêla capaz de suportar a fome e as fadigas Como a própria autoridade foi quem originariamente concedeu esse dom aos homens ele constitui um privilégio restrito às elites escohotAdo Antonio Historia general de las drogas cit p 122 7 A amanita muscaria que é um dos fungos que nos fornecem algumas das mais antigas representações de substâncias psicoativas utilizadas com caráter religioso é na realidade o mesmo cogumelo de caule branco e capuz vermelho salpicado de pontos brancos que aparece em quase todos os contos de fadas e duendes talvez venha daí a visão de fadas e duendes Sua utilização ritual foi banida pelo cristianismo com a 162 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA A partir das Grandes Navegações século XVI os europeus entraram em contato com um grande número de substâncias psicoativas e as introduziram progressivamente em suas sociedades com finalidades médicas ou recreativas8 Durante o século XIX a Europa e os Estados Unidos conviviam com uma grande variedade de novas drogas com as quais tinham pouca ou nenhuma identificação cultural9 Paulatinamente da expansão europeia à revolução industrial as substâncias psicoativas deixaram de ser consideradas elementos divinatórios e lustrais reguladas por rituais religiosos para se converterem em mercadorias10 O marco definitivo desse processo foram as Guerras do Ópio finalidade de combater cultos pagãos Esse fenômeno foi observado com inúmeros outros psicotrópicos visionários e ajuda a compreender as origens da aversão moral a essas substâncias A Inquisição continuou no período medieval o mesmo combate persecutório a essas seitas agora identificadas com bruxarias e feitiçarias O imaginário popular ficou assim de tal forma impregnado de conceitos depreciativos de ordem moral e religiosa que mesmo já na fase da ilustração esses fungos eram malvistos a ponto de serem definidos na famosa Enciclopédia em trecho redigido por Jacourt como vegetais que só servem para ser lançados de volta ao esterco onde nascem De qualquer sorte cogumelos psilocibinos que contêm a substância pscilocibina cujos efeitos se assemelham aos do LSD são encontráveis em todas as regiões do planeta exceto é claro nos polos e foram utilizados com essas finalidades por inúmeras civilizações In escohotAdo Antonio O livro das drogas usos e abusos preconceitos e desafios cit p 245 8 EscohotAdo Antonio Historia general de las drogas cit 9 musto David F The American disease origins of narcotic control New York Oxford University Press 1987 10 Quando da primeira publicação de O capital Engels ao rebater as críticas dirigidas à teoria do valor proposta por Marx termina por complementála chamando a atenção sobre o seu processo histórico e não meramente lógico Primeiramente os produtores consumiam seus próprios produtos e as comunidades por eles formadas eram autossuficientes No início das trocas de excedentes o valor atribuído tinha relação com o tempo de trabalho agregado ao produto Essas noções vão por assim dizer desmaterializandose à medida que a sociedade vai se tornando mais complexa e passa a promover intercâmbios comerciais entre famílias comunidades cidades países distanciandose cada vez mais do local de produção de origem Dessa maneira os produtos se convertem em mercadorias Finalmente culmina o processo histórico com a transição para o dinheirometal O dinheiro tornouse praticamente a medida decisiva do valor e tanto mais quanto mais variadas se tornaram as mercadorias objeto de comércio quanto mais afastados eram os países donde provinham e quanto menos portanto se podia controlar o tempo de trabalho necessário para produzilas engels Friedrich Aditamento ao Livro Terceiro de O capital In mArx Karl O capital Crítica da economia política Livro Terceiro O processo global da produção capitalista Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1974 v 6 p 10251028 163 Maurides de Melo ribeiro 18391841 a partir das quais os ingleses garantiram o monopólio internacional consolidaram o domínio britânico no Extremo Oriente e implementaram a prática comercial de substâncias psicoativas em larga escala11 A partir do século XIX dentro do contexto sociocultural de cada nação a popularização do consumo desses novos produtos desprovidos de qualquer lastro cultural que funcionasse como mecanismo de controle informal de seu consumo acarretou uma série de desdobramentos e impactos sociais tais como relatos de intoxicações agudas overdoses complicações crônicas à saúde e o desmantelamento de hábitos sociais locais tradicionalmente instituídos12 Essa novidade culminou na elaboração de políticas públicas com o intuito de solucionar os prejuízos causados pela massificação do consumo dessas substâncias Desse modo o consumo de drogas passou a ser considerado como causa de morbidade merecendo ações de saúde como qualquer outra doença Dessa forma as modernas políticas públicas de drogas surgiram para equacionar a nova realidade oriunda do consumo de substâncias psicoativas dentro do contexto sociocultural das nações ocidentais uma vez que a utilização das novas substâncias de forma desenfreada e sem nenhum mecanismo informal de controle social revelouse problemática 32 A mudança de paradigmas D urante o século XIX inúmeros compostos à base de ópio ou cocaína eram vendidos livremente nas boticas e o uso com finalidades recreativas acontecia com relativa normalidade dentro de bares salões e reuniões sociais Na transição para o século XX porém a conjunção de diversos fatores com ênfase ao aspecto moral contribuiu para a criação de um movimento que entendia a proibição do consumo de substâncias psicoativas como a melhor política para sanar os prejuízos clínicos psicológicos e sociais dele derivados 11 PAssetti Edson Das fumeries ao narcotráfico São Paulo Educ 1991 12 escohotAdo Antonio Historia general de las drogas cit 164 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Moralmente o pensamento cristão sempre condenou o consumo de plantas e fungos psicoativos especialmente os outrora vinculados a rituais pagãos como o cânhamo a mandrágora o ópio a amanita muscaria além de outras13 e os vinculava a bruxarias proscrevendoos e perseguindo seus usuários ao longo de toda a Inquisição Durante a Revolução Científica século XIX a obtenção de princípios ativos isolados produziu apresentações mais potentes que as obtidas nas culturas de origem daquelas substâncias aumentando os relatos de acidentes e complicações entre os usuários ocidentais Além disso a ideia de que o consumo de drogas demonizava e induzia seus usuários à violência sempre esteve presente no imaginário cristão ocidental Na Idade Média os cruzados se assustaram com os métodos de guerra de Hassan bin Sabbath e seus soldados usuários de haxixe Passaram a chamálos de haxixins ou assassinos ashishins e o termo se generalizou para denominar todo aquele que é capaz de atos de violência contra a vida humana com requintes de crueldade14 No período colonial das Américas o consumo do cânhamo pelos escravos durante seus rituais religiosos era associado à lascívia e ao descontrole15 No mundo industrializado do século XIX o consumo dessas substâncias entre as classes sociais mais pobres e excluídas como os proletários imigrantes e negros foi cada vez mais relacionado às manifestações de raiva e violência que eclodiam de modo explosivo e desordenado em todo mundo desenvolvido daquele período16 33 A proibição do consumo as origens do proibicionismo A proibição do consumo de drogas como estratégia de política pública estava presente de alguma forma em todas as nações no fim do século XIX Nos Estados Unidos porém essa tendência ganhou um corpo teórico e se transformou em um movimento político estruturado 13 escohotAdo Antonio O livro das drogas usos e abusos preconceitos e desafios cit p 245 14 dóriA Rodrigues Os fumadores de maconha efeitos e males do vício In brAsil Serviço Nacional de Educação Sanitária Maconha coletânia de trabalhos brasileiros Rio de Janeiro Ministério da Saúde 1958 p 23 15 Idem p 8 16 musto David F Op cit 165 Maurides de Melo ribeiro O marco do nascimento do Proibicionismo como sistema político se deu no estado de Ohio a partir de uma aliança entre as igrejas locais católica e protestantes Sob o slogan ao badalar dos sinos das igrejas de Ohio os saloons devem partir o movimento pedia o fim do comércio de álcool por julgálo a causa da degradação moral e física que observavam no país A indústria do álcool crescera rapidamente nos Estados Unidos A descoberta da refrigeração e da pasteurização e o aprimoramento nos meios de transporte ampliaram o campo de circulação dessas mercadorias Novos saloons eram abertos a cada instante Para atrair clientes seus donos ofereciam refeições gratuitas contratavam músicos promoviam o jogo brigas de galo e prostituição Tudo isso se mostrou contrário ao espírito puritano que sempre marcou a sociedade estadunidense17 Em 1869 foi fundado o Partido Proibicionista Surgiram diversas sociedades e ligas como a Sociedade NovaIorquina para Supressão do Vício 1868 a Liga das Senhoras Cristãs pela Sobriedade 1873 e as Ligas Antissaloon 1893 Nas universidades entidades como a Federação Científica pela Sobriedade 1879 foram criadas para estudar o problema e suas soluções sob o ponto de vista acadêmico Editoras e jornais dedicados exclusivamente ao tema abriram uma discussão nacional acerca da necessidade de banir o consumo do álcool do país18 331 As primeiras medidas A s primeiras medidas de controle tinham motivação moral e médica A partir do século XX as nações dentro do espírito sanitarista e do estado assistencial passaram a legislar sobre o tema Em 1906 os Estados Unidos aprovaram a Pure Food and Drug Act que exigia o detalhamento da composição dos medicamentos Nesse mesmo ano o hábito de fumar ópio foi proibido no país ficando o uso restrito ao tratamento das doenças19 17 Idem ibidem 18 ribeiro Maurides de Melo ArAúJo Marcelo Ribeiro Política mundial de drogas ilícitas uma reflexão histórica In silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves op cit p 459 19 escohotAdo Antonio Historia general de las drogas cit 166 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Alguns anos mais tarde o Harrison Narcotics Act 1914 determinou que a cocaína e o ópio fossem utilizados apenas com prescrição médica Progressivamente o uso recreativo foi colocado na ilegalidade e o médico tornouse o profissional responsável pela autorização do consumo de psicotrópicos O movimento atingiria seu ápice em 1920 quando o consumo de álcool foi banido dos Estados Unidos após a aprovação da 18ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos ou Volstead Act20 332 A mundialização do proibicionismo À s vésperas da Primeira Guerra Mundial os Estados Unidos já despontavam como uma das grandes potências econômicas e militares do mundo No fim do século XIX o país recebera um grande contingente de imigrantes chineses que introduziram o hábito de fumar ópio no país21 Preocupados com a difusão desse novo modo de consumo os norteamericanos outrora parceiros do Império Britânico no comércio internacional de ópio passaram a fazer campanhas sistemáticas para abolilo A partir de pressões estadunidenses foram realizados em 1906 e 1911 os Encontros de Xangai com o objetivo de suprimir gradualmente o comércio de ópio Em 1912 e 1914 duas Conferências em Haia voltaram a colocar o tema em questão uma vez que as recomendações de Xangai não surtiram os efeitos esperados especialmente a redução do comércio internacional Com o fim da Primeira Guerra Mundial o tema voltou a ser debatido agora dentro da recémfundada Liga das Nações Genebra Durante toda a década de 1920 encontros realizados no âmbito da Liga determinaram e ratificaram a repressão do comércio de ópio e cocaína estabelecendo cotas destinadas ao uso médico e científico e transferindo para os laboratórios a função de sintetizálas e comercializálas Foi dessa forma que a dose que se comprava livremente nas farmácias mudou de qualidade e tornouse remédio A dose excedente foi para o mercado ilegal22 20 musto David F Op cit 21 Idem One hundred years of heroin Westport Auburn House 2001 22 PAssetti Edson Op cit 167 Maurides de Melo ribeiro 34 o recrudescimento da repressão e o surgimento do tráfico internacional A o longo da primeira metade do século XX os Estados passaram a intervir cada vez mais na sociedade visando o controle das substâncias psicoativas Nas primeiras duas décadas as medidas de controle foram eminentemente de natureza médica e comercial A partir dos anos 1930 porém um aparelho de repressão ao comércio e ao consumo de drogas começou a se estruturar Nessa época segundo as palavras de escohotado23 parte do mundo começou a acolher a ideia de que a dieta farmacológica era uma incumbência do Estado Após o fim da proibição do álcool 1932 o governo estadunidense criou o Federal Bureau on Narcotics FBN comandado durante trinta anos por Harry Aslinger O Bureau tinha a função de reprimir o comércio e o consumo de psicotrópicos Os países europeus também organizaram estruturas semelhantes apesar de menos complexas além de mais permissivas quanto ao uso médico de tais substâncias O consumo de drogas como um problema social tendo a proibição e a repressão como estratégias de Estado adicionou um novo ingrediente à questão o comércio ilegal Os Estados Unidos já haviam observado este fenômeno durante os anos de Lei Seca 19201932 o início da atuação em larga escala das máfias italianas a corrupção e a violência foram argumentos que levaram ao fim da proibição do comércio de álcool no país24 No entanto o mesmo começava a acontecer com as outras substâncias 341 As organizações mafiosas A pesar de vencedoras das Guerras do Ópio contra a China as nações ocidentais que comercializavam o ópio no país não quiseram em nenhum momento que o Império Chinês legalizasse o consumo do produto O status ilegal e portanto a clandestinidade do comércio daí decorrente era o que mais lhe agregava valor25 23 escohotAdo Antonio Historia general de las drogas cit 24 Idem ibidem 25 Esse fenômeno econômico é hoje reafirmado por estudiosos da economia das drogas 168 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Nesse período o ópio era vendido livremente nas farmácias e boticas do Ocidente Com o controle médico e a proibição do uso recreativo o feitiço virouse contra o feiticeiro melhor seria dizer contra o inquisidor organizações clandestinas chinesas mais tarde conhecidas como Tríades passaram a capitanear o comércio ilegal de ópio para a Europa e os Estados Unidos Aos poucos o comércio ilegal de drogas se tornou uma fonte de exploração econômica por parte de sociedades secretas seculares de diversos países As máfias italianas Cosa Nostra Camorra e Ndranghetta notabilizaramse nos Estados Unidos pelo tráfico de bebidas alcoólicas e cocaína No Japão a Yakuza surgiu a partir da tradição feudal baseada na lealdade e devoção dos samurais ao chefe do clã com a degradação daquela cultura milenar passou a atuar fortemente no comércio clandestino das substâncias psicotrópicas provenientes do Oriente Nos anos 1970 e 1980 o fomento do consumo mundial de cocaína culminou no surgimento dos cartéis colombianos sendo Cali e Medellín suas expressões mais conhecidas Inicialmente a serviço dos cartéis colombianos a Máfia Nigeriana adquiriu estrutura e função próprias no comércio internacional de drogas Por fim mais recentemente a Máfia Russa organizada por antigos funcionários do regime comunista passou a dominar uma fatia expressiva das ações econômicas do denominado Leste europeu26 Obviamente o narcotráfico é apenas uma das inúmeras atividades ilícitas realizadas por essas organizações em contrapartida há que se ter em conta que se trata de um de seus mais lucrativos negócios Na maior parte das vezes é impossível separálas frequentemente a compra ilegal de armas é paga com cocaína ou heroína cuja venda acaba por custear outras atividades tais como a prostituição a extorsão e a corrupção de autoridades e políticos A fim de possibilitar a entrada desses capitais no mercado formal uma complexa rede financeira formada por bancos e empresas valendo destacar o economista francês Pierre Kopp que é pesquisador do Laboratório de Economia Pública da Sorbonne e tem como linha de pesquisa o estudo dos mercados relacionados a atividades ilícitas e criminosas para quem o aumento da repressão e portanto do risco leva os revendedores a aumentar o preço koPP Pierre A economia da droga Bauru Edusc 1998 p 58 26 Arbex José tognoli Cláudio J O século do crime São Paulo Boitempo 1996 169 Maurides de Melo ribeiro de fachada começou a se organizar adquirindo ultimamente autonomia como ramo de atividade ilícita Em alguns países as máfias assumiram grande influência política e econômica A partir dos anos 1970 e 1980 o narcotráfico se internacionalizou Inicialmente restritas às suas nações ou colônias de imigrantes em outros países as máfias começaram a se associar em verdadeiras joint ventures funcionando de maneira ágil e profissional bem ao gosto do espírito empresarial capitalista transnacional que se inaugurava27 Além disso o novo avanço liberal conhecido por globalização cuja marca principal fora a abolição das fronteiras nacionais para as transações comerciais e fluxos de capitais facilitou a movimentação financeira das máfias e a lavagem do dinheiro sujo em paraísos fiscais No fim dos anos 1980 as máfias se consolidavam como um dos grupos econômicos e políticos mais poderosos do planeta No limiar do século XXI movimentavam anualmente cerca de trezentos bilhões de dólares quase o dobro de toda a riqueza produzida no Brasil28 35 A onu como a nova guardiã da ordem proibicionista A lgumas décadas se passaram desde a institucionalização do proibicionismo como ideologia hegemônica das políticas públicas de drogas pela Liga das Nações como conduta mundial padrão 1920 até a fundação da Organização das Nações Unidas 1945 na cidade de Nova Iorque EUA Nesse ínterim as tensões políticas que culminaram na Segunda Guerra dominaram o cenário mundial ficando a questão das drogas resumida à política interna das nações e a alguns encontros internacionais Quando a ONU retomou o debate o proibicionismo permaneceu figurando como a ideologia predominante e a repressão como a estratégia central de atuação tendo os Estados Unidos a nova potência mundial como seu principal articulador29 Visando o 27 uPrimny Rodrigo Narcotráfico e poder In ribeiro Maurides M seibel Sérgio D Drogas hegemonia do cinismo São Paulo Fundação Memorial da América Latina 1997 p 155 28 Arbex José tognoli Cláudio J op cit 29 modesto Luiz Sérgio ONU fundamentalismo puritano no mercado In ribeiro 170 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA fortalecimento dessa opção a ONU criou em 1946 a Comissão de Narcóticos CND responsável pela formulação de políticas de drogas que contribuíram para o recrudescimento do sistema de controle internacional dessas substâncias30 Por outro lado o crime organizado e suas repercussões sociais e o crescimento dos movimentos sociais de luta pela cidadania também ganhavam espaço significativo dentro do cenário internacional especialmente a partir dos anos 1970 Nesse período a CND organizou a primeira de uma série de três convenções objetivando o estabelecimento de um programa comum para todos os países membros no tocante às políticas de drogas Realizada em Nova Iorque a Convenção Única sobre Estupefacientes 1961 enfatizou a necessidade de estabelecer regras claras para o controle das substâncias psicoativas e a criação de mecanismos internacionais para fiscalizar a sua implementação pelos signatários do acordo31 Dez anos depois a Comissão de Narcóticos CND realizou a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas 1971 na cidade de Viena escolhida como sede permanente da CND e seus órgãos subordinados Além de ratificar a convenção anterior a segunda convenção preocupouse principalmente com a repressão às novas drogas sintéticas como o LSD disseminadas pela contracultura estadunidense durante os anos 1970 Todas essas foram incluídas na Lista 1 de Substâncias Controladas Além disso o International Narcotics Control Board INCB adquiriu status de órgão fiscalizador das convenções entre os países signatários32 A terceira e última das chamadas ConvençõesIrmãs da ONU foi a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas Viena 1988 Além de ratificar as resoluções aprovadas pelos encontros anteriores a terceira convenção preocupouse com o crescimento do crime Maurides M seibel Sérgio D Drogas hegemonia do cinismo São Paulo Fundação Memorial da América Latina 1997 p 9394 30 FAzey csJ The Commission on Narcotic Drugs and the United Nations International Drug Control Programme politics policies and prospect for change Int J Drug Policy v 14 n 2 p 155169 2003 31 beWleytAylor dr Challenging the UN drug control conventions problems and possibilities Int J Drug Policy v 14 n 2 p 171179 2003 32 Idem loc cit 171 Maurides de Melo ribeiro organizado Nesse sentido a convenção chamou os países signatários a adotarem medidas de combate ao tráfico de drogas e à lavagem de dinheiro Além disso os produtos químicos utilizados na obtenção dos princípios ativos das plantas psicoativas os chamados precursores químicos passaram a sofrer forte controle por parte das nações A terceira convenção marca também um novo acirramento da repressão ao usuário de drogas recomendando aos países signatários a adoção da criminalização do porte e uso de drogas33 As ConvençõesIrmãs da ONU estabeleceram o sistema internacional de controle das drogas reafirmando o proibicionismo como a política a ser seguida por todas as nações A primeira recuperou e detalhou as determinações oriundas da Liga das Nações nos anos 1920 A segunda reafirmou o propósito proibicionista perante os movimentos contraculturais dos anos 1970 A terceira confirmou e fortaleceu a estratégia repressiva como instrumento de combate ao crescimento do crime organizado 351 A declaração de guerra às drogas E m 1998 portanto dez anos após a assinatura da última das convençõesirmãs a Assembleia Geral das Nações Unidas realizou uma Sessão Especial Ungass dedicada à discussão da política mundial de drogas Durante a realização da terceira convenção a defesa de políticas mais pragmáticas e livres de qualquer diretriz mundial já ganhava alguma força Dez anos depois a maior parte dos países europeus ocidentais e o Canadá e a Austrália já as aplicavam concretamente e reivindicavam já naquele momento reconhecimento e maior autonomia de ação Contudo sob o inaferível argumento de que os danos causados pela política desenvolvida pela ONU eram menores do que aqueles causados pelo consumo de drogas mesmo considerando apenas as situações de abuso a Ungass ratificou as ConvençõesIrmãs e colocou ao mundo um desafio que na realidade sob a óptica histórica constituise numa quimera erradicar até 2008 a produção e o consumo de drogas ilícitas do planeta 33 Idem loc cit 172 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Sob o lema Um mundo livre de drogas podemos conseguilo34 foram debatidos como pontoschaves do encontro os precursores químicos os derivados anfetamínicos entre eles o ecstasy a cooperação judicial a lavagem de dinheiro a redução de demanda e a eliminação das plantações com desenvolvimento de culturas alternativas Após cinco anos do estabelecimento da meta de erradicação planetária da produção de drogas ilícitas a ONU realizou em 2003 uma sessão intermediária para discutir o andamento do processo Os resultados parciais foram considerados favoráveis e as estratégias rumo a 2008 mantidas35 4 As estratégias de redução de danos N o plano internacional os anos 1990 foram um marco na política mundial sobre drogas que experimentou uma escalada repressiva A partir da adoção de um modelo proibicionista beligerante assistimos ao abandono das concepções garantísticas dos sistemas penal e processual penal em favor do recrudescimento dos mecanismos de controle social que apesar disso representam opção meramente simbólica Essa nova ordem mundial caracterizada por um totalitarismo penal adota como medidas de combate às agora denominadas organizações criminosas internacionais a complacência com abusos quando não a supressão pura e simples de direitos e garantias constitucionais mundialmente consagrados Mas não só o modelo bélicoproibicionista traz em si mesmo a contradição basta que se tenha em mente que embora sua finalidade declarada seja a tutela da saúde pública termina por criar maiores riscos e danos à saúde física e mental das pessoas que apesar da proibição ainda se disponham a consumir aqueles psicotrópicos rotulados como ilícitos 34 united nAtions orgAnizAtion uno General Assembly Twentieth Special Session Ungass online New York UNO 1999 Disponível em httpwwwunorg ga20special 35 united nAtions oFFice on drugs And crime onodc Commission on Narcotic Drugs documents online Vienna UNODC Disponível em httpwwwunodcorg 173 Maurides de Melo ribeiro Esse paradoxo se demonstra por meio da singela constatação de que é a clandestinidade imposta pelo proibicionismo o vetor determinante na vedação de um efetivo controle de qualidade dessas substâncias o que propicia a adulteração e o desconhecimento de sua toxicidade potencializando os fatores de risco e consequentemente o aumento de morbidades e comorbidades eventualmente relacionadas ao uso dessas substâncias Por outro lado toda rede de produção distribuição e comércio será apropriada pelas máfias e se dará no chamado submundo fato que introduzirá novos fatores de risco e vulnerabilidades O incremento de ações violentas por parte das organizações criminosas é talvez a mais visível consequência do proibicionismo e isso se afirma porque os participantes dessas atividades não dispõem evidentemente de instrumentos formais para a solução dos conflitos inerentes a um comércio ilícito e portanto clandestino A falência do proibicionismo como política de saúde pública para a questão das drogas tornase ainda mais evidente quando examinamos a hipótese de a pessoa que se utiliza dessas substâncias desenvolver uma dependência química visto que como consequência dessa possibilidade ocorrerá a quebra das relações familiares laborais e sociais e a exclusão desses indivíduos provocando novos conflitos desencadeadores de violências e outras vulnerabilidades Devese ter em mente que a pessoa que eventualmente desenvolva uma dependência química será naturalmente resistente à busca de qualquer tipo de ajuda principalmente terapêutica em função do estigma que as acompanha aliado ao fato incontornável de que para obter ajuda deverá confessar a prática de um crime Muito embora seja reconhecida sua ineficácia o proibicionismo punitivo não encontrava oposição de peso até que a situação dos usuários de drogas se viu substancialmente agravada com o advento das epidemias de hepatites e principalmente da Aids nos primórdios dos anos 1980 Pesquisas epidemiológicas constataram que em função da clandestinidade na qual se desenvolve a cena de uso dessas substâncias agregavamse inúmeros fatores predisponentes ao aumento da vulnerabilidade desses indivíduos e propícios à difusão da epidemia Verificouse pelas mesmas pesquisas acadêmicas que um dos principais vetores na transmissão do vírus HIV era a prática 174 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA comum entre os UDIs36 de compartilhamento dos instrumentos utilizados para consumo notadamente seringas e agulhas De posse desses dados epidemiológicos os agentes de saúde pública desenvolveram uma nova abordagem para a questão das drogas que foi denominada estratégias de redução de danos A base da nova ação de política de saúde pública é a de que se a pessoa usa drogas que o faça com os menores riscos e danos possíveis diminuindo sua vulnerabilidade aos diversos fatores predisponentes à sua exclusão social e exposição a morbidades e comorbidades decorrentes da precariedade das cenas de uso Como poderíamos esperar diante da hegemonia do proibicionismo a nova abordagem da questão enfrentou ferrenha resistência e causou grandes polêmicas especialmente em função das medidas preconizadas cujo rol numa visão ligeira e não taxativa contempla ações como trocas e desinfecção de seringas e agulhas terapias de substituição heroínametadona crackcannabis cocaínafolha de coca etc locais de uso seguro tendo como perspectiva a adoção de uma política mais humanista em contraposição ao belicismo proibicionista Essas estratégias foram num primeiro momento refutadas e criminalizadas pelas agências penais já que foram compreendidas como modalidades de auxílio incentivo ou apologia ao uso e comércio de substâncias psicoativas etiquetadas de ilícitas Os agentes de saúde sanitaristas e pesquisadores operadores dessas estratégias sofreram uma perseguição típica da Inquisição com prisões e processos empolgados por uma fúria moral que se julgava superada nos albores do século XXI Em função de sua efetividade e fundamentos baseados em critérios cientificamente comprovados as estratégias de redução de danos granjearam reconhecimento internacional alçando ao estatuto de política pública em inúmeros países incluindo o Brasil ainda que a linha ideológica continue sendo alinhada ao proibicionismo punitivo Apesar desse promissor avanço de políticas alternativas e do evidente fracasso do modelo proibicionista belicista por ocasião da última reunião da Comissão sobre Entorpecentes da ONU 36 Sigla utilizada pela saúde pública para designar usuários de drogas injetáveis 175 Maurides de Melo ribeiro CND realizada em Viena em março de 2009 para avaliação das metas estipuladas em 1998 a saber a erradicação ou o expressivo decréscimo da produção distribuição e consumo de drogas ilícitas até o ano de 2008 contrariando as expectativas de mudanças foi mantida a política mundial proibicionista de guerra às drogas agora adiando a meta quixotesca de erradicação para o ano de 2019 Todavia apesar da manutenção de uma malfadada política que produz mais malefícios que o suposto problema que supostamente visa solucionar ficou evidente a quebra da hegemonia mundial na questão das drogas uma vez que nem os Organismos da própria ONU têm uma posição uniformizada nessa temática Exemplo disso são órgãos da relevância da Organização Mundial de Saúde OMS e Unaids que adotaram sem nenhuma tergiversação as estratégias de redução de danos Por outro lado entre os paísesmembros das Nações Unidas ocorreu uma cisão formandose dois blocos um composto de países europeus e latinoamericanos que propugnavam a adoção de políticas alternativas e mais tolerantes a exemplo das estratégias de redução de danos e outro capitaneado pelos EUA em parceria com China e França que até pela força política desse bloco no concerto das nações determinaram a manutenção da war on drugs como política mundial até o ano de 2019 Mas de todas as demonstrações de descrédito no fracassado proibicionismo punitivo merecem destaque as organizações da sociedade civil que pela primeira vez encampam o tema de forma crítica Marco nessa escalada foi a criação da Comissão Global de Políticas de Drogas que agrupou logo após a decepcionante conclusão adotada pela última reunião da Comissão sobre Entorpecentes da ONU CND realizada em 2009 dignitários e personalidades de destaque mundial com o objetivo de promover a discussão em nível internacional sobre os danos causados pelas drogas e os meios para sua efetiva redução com amparo em bases científicas A importância dessa organização pode ser aquilatada com a verificação de que seus associados são exatamente os mesmos gestores que promoveram política mundial de guerra às drogas e que agora num reconhecimento de sua falência proclamam a urgência de sua revisão 176 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Já sabemos pelos exemplos da história que os modelos de controle total nos levam inexoravelmente ao estado de exceção Não podemos nos olvidar da grave advertência de nils christie37 quando aponta que o maior perigo da criminalidade nas sociedades modernas não é o crime em si mesmo mas sim o de que a luta contra este acabe por conduzir tais sociedades ao totalitarismo referências bibliográficas AndrAde Tarcísio Matos de FriedmAn Samuel R Princípios e práticas de redução de danos interfaces e extensão a outros campos da intervenção e do saber In silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves Panorama atual de drogas e dependências São Paulo Atheneu 2006 ArAúJo Marcelo Ribeiro ribeiro Maurides de Melo Política mundial de drogas ilícitas uma reflexão histórica In silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves Panorama atual de drogas e dependências São Paulo Atheneu 2006 Arbex José tognoli Cláudio J O século do crime São Paulo Boitempo 1996 bArreto João de Deus Lacerda Menna Estudo geral da nova lei de tóxicos Rio de Janeiro Freitas Bastos 1988 bAstos Francisco Inácio mesquitA Fábio Estratégias de redução de danos In seibel Sergio Dario toscAno Jr Alfredo Dependência de drogas São Paulo Atheneu 2001 bAtistA Nilo Política criminal com derramamento de sangue Revista Brasileira de Ciências Criminais São Paulo n 20 1997 beWleytAylor dr Challenging the UN drug control conventions problems and possibilities 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Brasileira de Ciências Criminais São Paulo n 34 2001 A política criminal de drogas no Brasil estudo criminológico e dogmático 3 ed reescr ampl e atual Rio de Janeiro Lumen Juris 2006 177 Maurides de Melo ribeiro cAshmAn J LSD São Paulo Perspectiva 19 christie Nils La industria del control del delito la nueva forma del holocausto Buenos Aires Editores del Puerto 1993 del roio José Luiz Mundialização e criminalidade In ribeiro Maurides M seibel Sérgio D Drogas hegemonia do cinismo São Paulo Fundação Memorial da América Latina 1997 diAs João Carlos Pinto Izabel Marins Substâncias psicoativas classificações mecanismos de ação e efeitos sobre o organismo In silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves Panorama atual de drogas e dependências São Paulo Atheneu 2006 diAs Jorge De Figueiredo Questões fundamentais de direito penal revisitadas São Paulo RT 1999 domAnico Andrea Craqueiros e cracados bemvindo ao mundo dos nóias estudo sobre a implementação de estratégias de redução de danos para usuários de crack nos cinco projetospiloto do Brasil 2006 Tese Doutorado Universidade Federal da Bahia Salvador 2006 donedA Denise gAndolFi Denise O início da redução de danos no Brasil na perspectiva governamental ação local com impacto nacional In silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves Panorama atual de drogas e dependências São Paulo Atheneu 2006 dóriA Rodrigues Os fumadores de maconha efeitos e males do vício In BRASIL Serviço Nacional de Educação Sanitária Maconha coletânia de trabalhos brasileiros Rio de Janeiro Ministério da Saúde 1958 engels Friedrich Aditamento ao Livro Terceiro de O capital In mArx Karl O capital Crítica da economia política Livro Terceiro O processo global da produção capitalista Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1974 v 6 escohotAdo Antonio Historia general de las drogas Madrid Alianza Editorial 1995 O livro das drogas usos e abusos preconceitos e desafios São Paulo Dynamis Editorial 1997 FAzey C S J The Commission on Narcotic Drugs and the United Nations International Drug Control Programme politics policies and prospect for change Int J Drug Policy v 14 n 2 p 155169 2003 FrAnco Alberto Silva Crimes hediondos anotações sistemáticas à Lei 807290 4 ed rev atual e ampl São Paulo RT 2000 stocco Rui coords Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial 7 ed São Paulo RT 2001 gomes Luiz Flávio biAnchini Alice cunhA Rogério Sanches oliveirA Willian Terra Nova Lei de Drogas comentada artigo por artigo Lei 113432006 de 23082006 São Paulo RT 2006 gomes Mariângela Gama de Magalhães Notas sobre a inidoneidade constitucional da criminalização do porte e do comércio de drogas In reAle Jr Miguel coord Drogas aspectos penais e criminológicos Rio de Janeiro Forense 2005 gordon R A assustadora história da medicina Rio de Janeiro Ediouro 1995 greco Filho Vicente Tóxicos prevençãorepressão comentários à Lei n 6368 de 21 de outubro de 1976 6 ed rev e ampl São Paulo Saraiva 1989 178 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA guimArães Marcello Ovídio Lopes coord Nova Lei Antidrogas comentada São Paulo Quartier Latin 2007 hAssemer Winfried Três temas de direito penal Porto Alegre Fundação Escola Superior do Ministério Público 1993 hossne Willian Saad Competência do médico In segre Marco cohen Claudio orgs Bioética São Paulo Edusp 1995 houAiss Antonio villAr Mauro De Salles Dicionário Houaiss da língua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001 hulsmAn Louk A política de drogas na Europa Palestra ministrada no auditório do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBCCrim 06 de novembro de 2003 videocassete São Paulo IBCCrim 2003 hungriA Nelson Comentários ao Código Penal Revista Forense Rio de Janeiro v 9 1958 iglésiAs Francisco Assis Sobre o vício da diamba In BRASIL Serviço Nacional de Educação Sanitária Maconha coletânia de trabalhos brasileiros Rio de Janeiro Ministério da Saúde 1958 kArAm Maria Lúcia Aspectos jurídicos In seibel Sergio Dario toscAno Jr Alfredo Dependência de drogas São Paulo Atheneu 2001 De crimes penas e fantasias Niterói Luam Ed 1991 Drogas processo legislativo In ribeiro Maurides M seibel Sérgio D Drogas hegemonia do cinismo São Paulo Fundação Memorial da América Latina 1997 Política de drogas alternativas à repressão penal Revista Brasileira de Ciências Criminais São Paulo n 47 2004 koPP Pierre A economia da droga Bauru Edusc 1998 leAry Timothy Flashbacks LSD a experiência que abalou o sistema São Paulo Brasiliense 1983 mAcrAe Edward simões José Assis Rodas de fumo o uso da maconha entre camadas médias urbanas Salvador Edufba CetadUFBA 2000 mArlAtt G Alan Redução de danos Porto Alegre Artmed 1999 mesquitA Fábio et al Aids entre usuários de drogas injetáveis na região metropolitana de Santos na década de 1990 In A contribuição dos Estudos Multicêntricos frente à epidemia de HIVAids entre UDI no Brasil 10 anos de pesquisa e redução de danos Brasília Ministério da Saúde 2001 Bastos Francisco Inácio Drogas e Aids estratégias de redução de danos São Paulo Hucitec 1994 militello Vicenzo A descriminalização do uso de drogas a experiência italiana In ribeiro Maurides M seibel Sérgio D Drogas hegemonia do cinismo São Paulo Fundação Memorial da América Latina 1997 minAyo Maria Cecília de Souza deslAndes Suely Ferreira A complexidade das relações entre drogas álcool e violência Cadernos de Saúde Pública periódico online 1998 14 1 11 telas Disponível em httpwwwscielosporg modesto Luiz Sérgio ONU fundamentalismo puritano no mercado In ribeiro Maurides M seibel Sérgio D Drogas hegemonia do cinismo São Paulo Fundação Memorial da América Latina 1997 179 Maurides de Melo ribeiro musto David F The American disease origins of narcotic control New York Oxford University Press 1987 PAssetti Edson Das fumeries ao narcotráfico São Paulo Educ 1991 PereirA José Carlos Problema social e problema de Saúde Pública In Temas Imesc sociedade direito saúde São Paulo Imesc 1984 Pertence Sepúlveda Natureza jurídica da posse de drogas para consumo próprio art 28 Lei n 113432006 Boletim IBCCrim São Paulo ano 15 n 175 p 1090 jun 2007 Pires Álvaro P La línea Marginot en el derecho penal la protección contra el crimen versus la protección contra el príncipe Revista Brasileira de Ciências Criminais São Paulo n 46 2004 reAle Jr Miguel coord Drogas aspectos penais e criminológicos Rio de Janeiro Forense 2005 reghelin Elisangela Melo Redução de danos prevenção ou estímulo ao uso indevido de drogas injetáveis São Paulo RT 2002 ribeiro Maurides de Melo Drogas e redução de danos os direitos das pessoas que usam drogas São Paulo Saraiva 2013 Aspectos legais In silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves Panorama atual de drogas e dependências São Paulo Atheneu 2006 Araújo Marcelo Ribeiro Política mundial de drogas Ilícitas uma reflexão histórica In silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves Panorama atual de drogas e dependências São Paulo Atheneu 2006 rodrigues Luciana Boiteux De Figueiredo Controle penal sobre as drogas ilícitas impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade Tese Doutorado Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo São Paulo 2006 ribeiro Maurides de Melo Justiça terapêutica redução de danos ou proibicionismo dissimulado In seibel Jr Sergio Dario Dependência de drogas São Paulo Atheneu 2010 rosen G Uma história da saúde pública São Paulo Unesp 1994 seibel Sergio Dario Dependência de drogas São Paulo Atheneu 2010 shecAirA Sérgio Salomão Criminologia São Paulo RT 2004 sheerer Sebastian Dominação ideológica versus lazer psicotrópico In ribeiro Maurides M seibel Sérgio D Drogas hegemonia do cinismo São Paulo Fundação Memorial da América Latina 1997 silvA Milton Severiano da Se liga O livro das drogas Rio de Janeiro Record 1997 silvA Pablo Rodrigo Alflen da Aspectos críticos do direito penal na sociedade do risco Revista Brasileira de Ciências Criminais São Paulo n 46 2004 silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves Panorama atual de drogas e dependências São Paulo Atheneu 2006 trigueiros Daniela Piconez hAiek Rita de Cássia Estratégias de redução de danos entre usuários de drogas injetáveis In silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves Panorama atual de drogas e dependências São Paulo Atheneu 2006 united nAtions oFFice on drugs And crime ONODC Commission on Narcotic Drugs 180 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA documents online Vienna UNODC Disponível em httpwwwunodcorg Treaty and Legal Affairs online Vienna UNODC Disponível em httpwww unodcorg United Nations Organization UNO General Assembly Twentieth Special Session UNGASS online New York UNO 1999 Disponível em httpwwwunorg ga20special uPrimny Rodrigo Narcotráfico e poder In ribeiro Maurides M seibel Sérgio D Drogas hegemonia do cinismo São Paulo Fundação Memorial da América Latina 1997 vester Annette Os programas troca de seringas em Amsterdã In bAstos Francisco I mesquitA Fábio mArques Luiz F Troca de seringas ciência debate e saúde pública Brasília Ministério da Saúde 1998 WodAk Alex Redução de danos e programas de trocas de seringas In bAstos Francisco I mesquitA Fábio mArques Luiz Fernando Troca de seringas drogas e Aids ciência debate e saúde pública Brasília Ministério da Saúde 1998 zAFFAroni Eugenio Raul La legislacion Antidroga latino americana sus componentes de derecho penal autoritario Fascículos de Ciências Penais Porto Alegre n esp Drogas Abordagem Interdisciplinar 1990 breves considerAções sobre A políticA criminAl de drogAs Renato Watanabe de Morais Mestrando pelo Departamento de Direito Penal Medicina Forense e Criminologia da USP Coordenadoradjunto do Laboratório de Ciências Criminais do IBCCRIM Membro permanente da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OABSP Ricardo Savignani Alvares Leite Doutorando do Departamento de Direito Civil Área Direito Romano pela USP Monitor do Curso de Metodologia e Orientação da PósGraduação Lato Sensu da Direito GV GVlaw Sílvio Eduardo Valente Mestrando pelo Departamento de Direito Penal Medicina Forense e Criminologia da USP Médico graduado na Faculdade de Medicina da USP Advogado graduado na Faculdade de Direito da USP sumário 1 Introdução 2 Aspectos médicos e sociais 3 Políticas criminais e medidas legais de combate às drogas no âmbito internacional 182 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 31 Classificação das medidas de combate às drogas na doutrina clássica 32 O histórico das drogas e a política de combate no plano internacional 4 Algumas questões criminológicas 41 Do discurso em torno das drogas 42 O Estado brasileiro e seu cidadãoinimigo 5 Conclusões 6 Referências bibliográficas 1 introdução A política de drogas no Brasil tem se pautado pelo foco no aspecto repressivo seguindo a envelhecida pauta norteamericana da war on drugs reconhecidamente fracassada1 Em que pese o fato de a atual Lei de Drogas a Lei 113432006 ter ensaiado abertura ainda embrionária para uma compreensão do usuário de drogas como digno de cuidados médicos e não de sanções penais tal diploma legal foi muito tímido no sentido de uma real descriminalização do consumo de drogas Além disso a falta de melhor delimitação do conceito de tráfico eivado na lei de flagrante subjetividade gerou grave consequência à estrutura carcerária brasileira traduzida pela multiplicação do volume de presos que abarrotam as prisões nacionais De fato as distorções da atual Lei de Drogas respondem por um incremento de aproximadamente sessenta por cento no número de pessoas presas por tráfico de drogas no Brasil entre 2006 e 20112 Para piorar o preconceito ainda cerca o tema começando pela própria conceituação Ainda que o vocábulo droga possua vários significados para o objeto de estudo deste trabalho interessa sua acepção como substância que modifica o comportamento Assim utilizaremos a conceituação da Organização Mundial de Saúde que define droga como qualquer substância autoingerida que atua no 1 Boletim IBCCRIM Editorial out 2012 p 1 2 sAllA Fernando Jesus Maria Gorete de rochA Thiago Thadeu Relato de uma pesquisa sobre a Lei 113432006 Boletim IBCCRIM out 2012 p 10 183 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente sistema nervoso central provocando alterações de percepção ou função3 Interessa referir entretanto que a palavra droga além de ser designação comum a todas as substâncias ou ingredientes aplicados em tinturaria química ou farmácia também é sinônimo de coisa ruim imprestável e também em alguns locais específicos como na Região Nordeste de diabo4 Estes dois últimos significados per se inserem uma pecha negativa ao termo o que pode distorcer um estudo que se quer isento Tal isenção seria muito bemvinda em um momento crucial para a política de drogas em que se discute não apenas a constitucionalidade do art 28 da Lei 113432006 por meio do Recurso Extraordinário 635659 mas também com reflexos jurídicos mais amplos o acolhimento da proposta de descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal no Anteprojeto de Código Penal5 O escopo deste estudo é perscrutar a questão das drogas sob o viés da busca por uma maior lógica na resposta estatal Dentro desta perspectiva surge como alternativa a redução de danos Esta parece ser modernamente a maneira mais racional e mais coerente com uma ideia de Estado Democrático de Direito de lidar com o problema não só como política pública com efeito benéfico à estrutura penal carcerária mas também com o intuito de apartar o Estado do foco hoje sancionador direcionandoo à sua vocação de provedor de assistência à saúde como prevê a Constituição Para embasar esse axioma neste trabalho serão elencados alguns aspectos médicos e sociais relativos ao consumo de drogas introduzindo o conceito de redução de danos Será também tecido um escorço histórico e de direito comparado atinente ao tema Por fim tendo em vista todo o estudo anterior será realizada uma digressão a respeito do fenômeno repressivo que acomete o cenário brasileiro bem como propor alternativa ao tratamento jurídicopolítico sobre os entorpecentes São três visões diferentes acerca do tema mas que se unem pelo propósito único de buscar uma reação racional e condizente com os Direitos Humanos 3 ribeiro Maurides de Melo Políticas públicas e a questão das drogas o impacto da política de redução de danos na legislação brasileira de drogas Dissertação de mestrado em Direito Penal Medicina Forense e Criminologia Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo 2007 p 14 4 Michaelis moderno dicionário da língua portuguesa Acesso em 13 jun 2013 5 Boletim IBCCRIM Editorial out 2012 p 1 184 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 2 Aspectos médicos e sociais A priori podese pensar em várias formas de classificação das drogas A mais usual dependente das políticas proibicionistas e com maiores reflexos em termos jurídicos é a delimitação entre drogas lícitas e ilícitas Cabe aqui observar que nem sempre a ilicitude de uma droga corresponde ao seu potencial deletério quando comparada a uma droga lícita sendo esta conceituação mera opção do legislador O exemplo mais palpável dessa constatação é a comparação entre álcool e tabaco drogas lícitas com a maconha ilícita Ainda que a cannabis não seja isenta de malefícios6 resta patente para a maior parte dos estudiosos que o potencial danoso do álcool e do tabaco são maiores não só em termos de saúde pública7 mas também em relação ao indivíduo que os consome em excesso8 6 Wills Simon Drugs of abuse 2 ed London Pharmaceutical Press 2005 p 73 Em relação à cannabis o autor elenca efeitos agudos e efeitos do uso a longo prazo Os primeiros incluem ansiedade confusão tontura reações de pânico disforia psicose alucinações inadequação psicomotora ataxia prejuízo do julgamento déficit de atenção dificuldade de aprendizado perda de memória taquicardia palpitações hipotensão postural rubor facial tosse irritação de garganta broncoespasmo em pessoas com bronquite asmática dor abdominal retardo de esvaziamento gástrico náusea vômito boca seca aumento de apetite vermelhidão ocular Os de longo prazo são bronquite câncer de cabeça pescoço e pulmão especialmente se consumida com tabaco oligospermia ginecomastia diminuição de libido em ambos os sexos insônia depressão ansiedade flashbacks inadequação social performance mental deficiente dependência síndrome de abstinência A cannabis também tem uso farmacológico ex antiemético 7 ribeiro Maurides de Melo op cit p 13 Nesse sentido também salientam ribeiro Sidarta mAlcherloPes Renato menezes João R L que as drogas consideradas pouco perigosas como o álcool e o cigarro são usadas em doses maiores do que os canabinoides aumentando sua danosidade e que o potencial oncogênico do tabaco é maior do que o da maconha Drogas e neurociências Boletim IBCCRIM out 2012 p 15 8 Quanto ao álcool cf knight Robert G longmore Barry E Clinical neuropsycology of alcoholism East Sussex Lawrence Erlbaum Associates Publishers 1994 p 14 32 os efeitos adversos físicos incluem hepatite alcoólica esteatose hepática cirrose cardiomiopatia coronariopatia gastrite úlcera gástrica e duodenal sangramento gastrintestinal diarreia pancreatite hipogonadismo perda de libido feminização hipoglicemia descalcificação óssea vários tipos de câncer Neurologicamente níveis crescentes de intoxicação alcoólica levam a falta de atenção e de cuidado capacidade reduzida para manejar máquinas e para dirigir automóveis déficit motor e de fala visão dupla perda de memória beligerância perda de consciência coma No caso do tabaco os efeitos deletérios passam por doenças cardiovasculares variados tipos de câncer doenças pulmonares inflamatórias e funcionais disfunção erétil doenças microcirculatórias alterações de vascularização cerebral acidentes vasculares cerebrais entre outros hAustein KnutOlaf groneberg David Tobacco or health 185 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente Ainda nessa linha as drogas podem ser delineadas em relação ao seu potencial de letalidade Exemplo de droga altamente letal é o crack muito consumido atualmente e cuja danosidade se prende não só aos seus rápidos e intensos efeitos neurológicos e metabólicos mas também ao seu potencial de provocar dependência de forma rápida9 Em contraste a maconha e o álcool são menos letais Ressalvese que há inúmeras exceções a essa regra podendo por exemplo o álcool ingerido em excesso por determinado indivíduo ter um efeito letal e esse mesmo indivíduo não ter problemas com o uso não abusivo de crack Isso porque o efeito individual de uma droga vai além da mera previsibilidade dos estudos farmacológicos restando vinculado a variados condicionantes pessoais genéticos sociais psicológicos e circunstanciais O próprio potencial de causar dependência pode ser uma forma de classificar as drogas separandoas entre as que levam a grande risco de adição crack cocaína heroína médio risco anfetaminas álcool tabaco e benzodiazepínicos e as que têm pouco potencial viciante cannabis ecstasy10 Nesse aspecto é importante não confundir a dependência de drogas com seu uso abusivo A dependência se caracteriza pelo uso compulsivo da substância a partir do qual o organismo obtém uma sensação de bemestar ou pelo contrário a falta da droga produz um intenso malestar A drogadição em regra paulatinamente leva à tolerância à substância11 O uso abusivo por sua vez é relacionado com os efeitos psíquicos das drogas que causam incremento de risco individual e problemas de relacionamento social por conta dos efeitos da substância12 Tanto a dependência como o physiological and social damages caused by tobacco smoking Springer Library of Congress 2010 p 67 e ss 9 Wills Simon op cit p 104 10 ribeiro Sidarta mAlcherloPes Renato menezes João R L op cit 2012 p 15 Nesse diapasão porém com foco na letalidade das drogas inserese a classificação do Parlamento britânico que classifica as drogas nos grupos A com alto potencial lesivo cocaína heroína ecstasy e LSD B com médio potencial anfetaminas barbitúricos e codeína e grupo C com baixo potencial de provocar lesões inclui cannabis benzodiazepínicos e esteroides anabolizantes Drug classification making a hash of it Great Britain Science and Technology Committee 2006 p 96 11 Wills Simon op cit 2005 p 4 12 lArAnJeirA Ronaldo et al Usuários de substâncias psicoativas abordagem diagnóstico e tratamento São Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo Associação Médica Brasileira 2003 p 15 186 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA abuso de drogas são situações distintas daquela do usuário eventual de drogas pois nesse caso o risco é mínimo e não há consequências biopsicossociais Também as drogas podem ser classificadas segundo sua forma de ingestão sendo as mais usuais a injetável as inalatórias com e sem queima e a via oral A via injetável passa por uma evidente diminuição inclusive entre a população carcerária o que tem revertido em diminuição da prevalência de Aids entre os presos13 As drogas inalatórias além de provocarem efeito rápido o que satisfaz os usuários são mais baratas Quanto às drogas orais o principal representante da categoria hoje em nosso meio é a metilenodioximetanfetamina MDMA ou ecstasy muito consumida por usuários de classe média em casas noturnas No que concerne aos efeitos das drogas devemse distinguir os efeitos primários dos efeitos secundários14 Efeitos primários são aqueles referidos acima ou seja os que são produzidos pela droga em si no organismo do usuário ou dependente Quanto aos efeitos secundários que elisangela reghelin relaciona ao seu custo social sempre negativo abarcam várias modalidades O efeito secundário relativo aos consumidores se relaciona ao estigma social que essas pessoas carregam já que a sociedade não os vê com bons olhos Tal situação acaba por alijálos de seu meio social encontrando apoio apenas entre outros usuários Em última análise a persistência dessa rotulação negativa pode nos remeter à teoria criminológica do labelling aproach15 Outro efeito secundário é o atinente ao ambiente social no sentido de as consequências ao usuário serem especialmente desfavoráveis quando estes pertencerem a extratos socioeconômicos mais desfavorecidos Sabese que a maior parte das penas relacionadas às drogas recai sobre pessoas mais pobres 13 vArellA Drauzio Estação Carandiru São Paulo Companhia das Letras 2000 p 130 131 O autor comenta que a prevalência de Aids na população da Casa de Detenção de São Paulo caiu de 173 em 1990 para 72 em 1998 o que coincidiu com o aumento do consumo de crack em detrimento do uso de drogas injetáveis 14 reghelin Elisangela Melo Redução de danos prevenção ou estímulo ao uso indevido de drogas injetáveis São Paulo RT 2002 p 4649 15 shecAirA Sérgio Salomão Criminologia 3 ed São Paulo RT 2011 p 287 e ss 187 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente Em relação à justiça penal reghelin associa o combate repressivo às drogas a evidentes violações de direitos fundamentais com notório desrespeito aos princípios da legalidade idoneidade subsidiariedade proporcionalidade e racionalidade16 Ainda nessa linha consequência secundária marcante da atual política de drogas é o efeito no mercado A repressão faz com que o preço das drogas aumente por conta de sua ilicitude o que não ocorre em países onde o consumo de drogas foi descriminalizado17 Por fim percebese um efeito secundário das drogas ao constatar uma flagrante incompatibilidade entre o sistema repressivo ainda a essência da política atual do combate às drogas e os sistemas alternativos de controle do uso de drogas em particular o sistema terapêuticoassistencial e o sistema educativo18 eis que a repressão por certo afasta os usuários da oferta de assistência médica do Estado Nesse sentido o caminho da redução de danos contrapondose ao sistema repressivo encontra sua vertente ética no atual Código de Ética Médica de 2009 A vigente doutrina éticoprofissional da Medicina contempla a autonomia do paciente certamente seguindo os ventos da codificação consumerista de 2002 ainda que a relação médicopaciente não seja propriamente uma relação de consumo Nesse diapasão importa ressaltar que o pacientecliente é o responsável pela tomada de decisões em face de sua saúde após informado19 e o usuário de drogas visto como objeto de assistência à saúde não deve fugir a essa regra Além de ter como substrato o reconhecimento da autonomia do usuário de drogas como senhor de seus destinos a política de redução de danos parte do reconhecimento de que o consumo dessas 16 reghelin Elisangela Melo op cit 2002 p 4849 17 Idem p 49 18 Idem p 48 19 No processo de tomada de decisões profissionais de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais o médico aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas Código de Ética Médica 2009 capítulo I princípios fundamentais art XXI Também a propósito É vedado ao médico deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bemestar bem como exercer sua autoridade para limitálo Código de Ética Médica 2009 capítulo IV direitos humanos art 24 188 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA substâncias remonta à Antiguidade20 Destarte meras legislações repressivas não terão o condão de acabar com seu consumo o que é escancaradamente comprovado pelos pífios resultados dos países sujeitos a essa modalidade de ordenamento Foi exatamente a compreensão da falência da política repressora considerada cara e ineficaz que abriu caminho para o que hoje conhecemos como redução de danos em termos de política pública Porém o conceito de redução de danos tem sua origem na própria abordagem terapêutica individual dos dependentes de drogas inspirado nas próprias estratégias em face de pacientes crônicos e que acabam por envolver também suas famílias de forma colaborativa21 A redução de danos deve der entendida como estratégia para diminuir os danos à saúde advindos das drogas Com esse escopo podem incluir a administração de drogas de maneira mais segura redução dos danos mudança da quantidade utilizada redução da quantidade ou cessação do uso de uma ou mais drogas redução da prevalência22 Ainda que as medidas terapêuticas de redução de danos tenham como ideal final a ausência de consumo de drogas os métodos utilizados se contrapõem a abordagens terapêuticas mais tradicionais que se baseiam unicamente na abstinência23 Nesse sentido ganharam corpo no método de redução de danos alguns princípios que nortearam sua utilização a saber o fato de ter um viés social no combate aos efeitos negativos das drogas ser preventivo dos danos que podem ser causados pelas drogas e não necessariamente do próprio uso das drogas ter um foco pragmático procurando diminuir os efeitos maléficos das drogas para os consumidores e para suas comunidades24 Historicamente talvez o primeiro relato de uma estratégia de redução de danos remonte ao Relatório Rolleston de 1926 no Reino Unido que visava à reinserção dos usuários na comunidade oferecendolhes com esse objetivo técnicas de administração do 20 ribeiro Maurides de Melo op cit p 16 21 mArlAtt G Alan donovAn Dennis M Prevenção da recaída estratégias de manutenção no tratamento de comportamentos aditivos 2 ed Porto Alegre Artmed 2005 p 140 22 Idem ibidem 23 Idem ibidem 24 reghelin Elisangela Melo op cit p 75 189 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente uso de drogas e assistência médica25 Porém o divisor de águas como promotor dos métodos de redução de danos ocorreu com o surgimento da epidemia da Aids na década de 1980 Uma vez confirmada a possibilidade de transmissão dos vírus da Aids e também da hepatite B por meio de compartilhamento de seringas o que é comum entre usuários de drogas injetáveis as autoridades sanitárias da Holanda a partir de 1984 lançaram um projeto de troca de seringas usadas por novas26 A expertise holandesa foi a ponta de lança para vários programas semelhantes na Europa no Canadá e nos Estados Unidos27 No Brasil a política de redução de danos tomou impulso a partir da constatação de um grande aumento dos casos de Aids na cidade de Santos em fins da década de 1980 Por conta disso em 1989 foi lançado o primeiro programa nacional de redução de danos visando à redução da transmissão de doenças infecciosas por meio de drogas injetáveis28 Infelizmente demolido por forças reacionárias o programa santista lançou a semente para uma política de combate às drogas de cunho inovador avessa a medidas repressoras e focada em resultados práticos É exatamente dessa praticidade que emana a eficácia da política de redução de danos Em interessante quadro comparativo evocado por elisangela reghelin baseada em Alex Wodak notamse marcantes diferenças entre as estratégias redutoras de danos e a tradicional abordagem de redução de oferta29 Em síntese Wodak acentua que a redução de danos tem como objetivo reduzir as consequências negativas do consumo sem olvidar que é inevitável algum nível de consumo na sociedade tratase de política mais flexível não focada em metas exclusivamente de abstinência procura integrar os usuários à sociedade e não apartálos dela leva em conta o custobenefício das intervenções procura envolver as populaçõesalvo nas políticas é aberta à multidisciplinaridade afastandose dos instrumentos 25 ribeiro Maurides de Melo op cit p 5051 26 Idem p 51 27 Idem p 52 28 Idem p 54 29 reghelin Elisangela Melo op cit p 7677 cf WodAk Alex croFts Nick Once more unto the breach controlling hepatitis C in injecting drug users Addiction Journal London v 91 n 2 p 181184 fev 1996 190 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA policialrepressivos enfatiza mecanismos de prevenção reservando procedimentos repressivos apenas para tráfico de grande escala inclui as drogas lícitas como objeto de atenção e por fim evita terminologias preconceituosas ou pejorativas no trato da questão Devese ressaltar que a redução de danos não se atém à questão da transmissão de doenças infecciosas por drogas injetáveis Atualmente as condutas redutoras de danos fazem parte do arsenal médico no tocante ao tratamento do dependente de drogas Isso porque em essência a medicina tem utilizado as terapêuticas substitutivas com o intuito de afastar ou minimizar o uso de drogas mais letais trocandoas por substâncias menos lesivas ou estimulando o usuário a ter maior controle sobre seu uso Exemplos dessas atitudes são as substituições do crack e cocaína pela maconha30 da heroína pela metadona31 e o uso controlado de drogas32 Também os projetos educacionais que visam alertar em casas noturnas os riscos a que os usuários de crack se expõem por exemplo em relação à desidratação aguda são parte integrante dessa política As narcossalas disponíveis em alguns países da Europa em que o usuário dispõe de condições confortáveis e seguras para o consumo caminham nessa corrente33 assim como os clubes de consumo de cannabis em Portugal Todas essas modalidades de abordagem no delicado território do relacionamento com o usuário de drogas têm por certo uma natureza terapêutica Procuram desestimular o consumo de drogas preservando o protagonismo do pacienteusuário ou no mínimo fazer com que o consumo ocorra em um ambiente mais seguro e controlável além de evitar danos maiores como o contágio de doenças transmissíveis Nesse sentido a quebra de paradigma que a redução de danos representa tem como essência um olhar mais humanizado sobre o usuário de drogas seja ele dependente ou não Enxergálo não como um pária mas como um ser humano sujeito às vicissitudes da sociedade moderna e que precisa de apoio Apoiar de forma idêntica o usuário de drogas lícitas e ilícitas uma vez que não há base científica de distinção entre elas sendo a separação mera opção legislativa 30 ribeiro Maurides de Melo op cit p 57 31 reghelin Elisangela Melo op cit p 143147 32 Idem p 147149 33 Idem p 153156 191 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente Vivemos em uma sociedade medicalizada34 e portanto drogada Os membros dessa sociedade consomem álcool e tabaco de forma excessiva mesmo sabendo de seus inúmeros malefícios Utilizam medicamentos betabloqueadores para não aparentar ansiedade em público anorexígenos para emagrecer e anabolizantes para ficarem atraentes Usam medicações para disfunção erétil como o sildenafil às vezes sem necessidade35 apenas para fins recreativos Seus filhos se não têm bom desempenho escolar e demonstram comportamento agitado são rotulados como hiperativos e se tornam dependentes de anfetamínicos como a ritalina Enriquecem as economias da indústria farmacêutica consumindo hipnóticos para conciliar o sono e utilizam antidepressivos para ter um falso sabor de felicidade na árdua vida cotidiana Essa mesma sociedade usuária do rol de drogas lícitas acima elencadas hipocritamente demoniza os que utilizam as drogas consideradas ilícitas atentando contra a dignidade dessas pessoas 3 políticas criminais e medidas legais de combate às drogas no âmbito internacional 31 classificação das medidas de combate às drogas na doutrina clássica D e maneira geral tanto no âmbito nacional quanto no internacional a doutrina apresenta uma classificação básica das medidas de combate ao uso de drogas ou como se costumava denominar na literatura especializada à narcomania Importante esclarecer antes de tudo que as referidas medidas visam os dois polos da relação isto é o traficante e o consumidor de drogas Sendo assim as medidas podem ser classificadas como preventivas terapêuticas e repressivas36 34 Nesse sentido no âmbito da saúde feminina conrAd Peter The medicalization of society on the transformation of human conditions into treatable disorders Baltimore The Johns Hopkins University Press 2007 p 11 E na área de saúde mental Antunes Eleonora Haddad et al Psiquiatria loucura e arte fragmentos da história brasileira São Paulo Edusp 2002 p 85 35 loe Meika The rise of the Viagra how the little blue pill changed sex in America New York New York University Press 2004 p 26 36 greco Filho Vicente Tóxicos prevenção repressão 10 ed São Paulo Saraiva 1995 p 25 192 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA As medidas preventivas37 são aquelas que se destinam a evitar o uso de drogas Segundo a doutrina deveriam elas ser consideradas as mais importantes porque se referem ao momento anterior à implantação do vício Quando destinadas ao usuário de entorpecentes tais medidas podem ser de caráter educacional ou seja voltadas à conscientização da população sobre os males do vício ou de caráter social isto é focadas na alteração ou eliminação das condições sociais e econômicas que estimulam o consumo de drogas Ainda sobre as medidas de prevenção no que tange ao consumidor sempre houve na doutrina grande divergência sobre a conveniência e utilidade do recurso às propagandas educativas contra o consumo de drogas Além das críticas que podem ser feitas acerca da efetividade desse instrumento midiático nunca ficou claro se as campanhas educativas esclarecedoras realmente informavam a população sobre as drogas e os seus efeitos ou se visavam apenas à criação de um pânico desinformado Além disso a propaganda dependendo de como é elaborada pode tanto desestimular quanto despertar o interesse da audiência Condições sociais e econômicas precárias sempre foram vistas pela doutrina como causas principais da disseminação do consumo de drogas A alteração dessas condições porém é algo de difícil realização isto é exige medidas cujos resultados só poderiam ser observados em longo prazo Do ponto de vista do fornecedor as medidas preventivas segundo a doutrina clássica consistiriam no controle da produção e distribuição de substâncias que causam dependência física ou psíquica Tais medidas nesse caso envolvem o controle tanto das importações quanto da produção de entorpecentes A eficiente fiscalização dessas duas atividades teria por finalidade garantir que apenas as quantidades necessárias para fins terapêuticos específicos fossem comercializadas no país As medidas terapêuticas38 por sua vez são aquelas que se destinam a tratar os usuários cujo consumo já pode ser classificado como vício pois não mais se encontra sob controle Nesse caso são distinguidas as medidas terapêuticas particularizadas e as gerais 37 Idem p 2530 38 Idem p 3032 193 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente As primeiras são aquelas determinadas por um médico tendo em consideração as particularidades do dependente físico ou psíquico e as características específicas do tipo de droga utilizada e o grau do vício Nesse caso além da superação da crise de abstinência é necessária a busca pelas causas primárias que levaram ao vício normalmente de caráter interno como conflitos de natureza social e psicológica Para tanto é comum a indicação de um acompanhamento psicoterapêutico adequado a cada caso de dependência Porém tal medida traz à luz a problemática do tratamento compulsório tão debatida na atualidade A Organização Mundial da Saúde OMS visando a uma melhor regulamentação dessa medida extrema por ela considerada importante e necessária em alguns casos estabelece limites a ela tendo em vista tratarse de uma forma de coação No quarto princípio do documento Principles of Drug Dependence Treatment publicado em 2008 pelo United Nations Office on Drugs and Crime UNODC assim como os tratamentos médicos em geral o tratamento dos dependentes de drogas seja ele psicoterapêutico ou farmacológico não deve em regra ser forçado a não ser que a situação específica do dependente gere altos riscos a si mesmo ou a terceiros Nesse caso e apenas nessas situações excepcionais o tratamento compulsório pode ser determinado desde que submetido a determinadas condições e um período de tempo previsto em lei As medidas terapêuticas gerais por outro lado apesar de também visarem à reabilitação dos dependentes químicos não levam em consideração as particularidades de cada um e sim têm por objetivo estimular os indivíduos acometidos pelo vício desconhecidos ou ainda não descobertos a procurarem um tratamento Sendo assim incluise no âmbito dessas medidas a criação de estabelecimentos especializados de tratamento ambulatorial internação orientação psicológica entre outros apoios genéricos àqueles dependentes que queiram ajuda para vencer o vício Por fim as medidas repressivas39 são aquelas que têm por fim a punição dos responsáveis pela comercialização ilegal de substâncias que geram dependência física ou psíquica Tratase nesse caso da reação estatal à produção e comercialização de drogas a qual pode ser de natureza penal quando a conduta do agente é tipificada 39 Idem p 3233 194 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA como crime e sancionada com uma pena criminal ou de natureza administrativa quando a conduta do agente consiste em um desvio de autorização relativa à produção manuseio ou distribuição de certas substâncias controladas sendo sancionada com penas de caráter administrativo como por exemplo a cassação da autorização para tais atos 32 o histórico das drogas e a política de combate no plano internacional O uso de substâncias entorpecentes remonta aos primórdios da civilização humana O conhecimento das propriedades medicinais dessas substâncias assim como a capacidade de elas gerarem efeitos alucinógenos muitas vezes vinculados a experiências religiosas pôde ser observado já nas primeiras comunidades humanas Porém apesar desse conhecimento antigo das propriedades das substâncias alucinógenas o seu consumo abusivo já era observado desde o passado mais remoto40 Nas civilizações que antecedem a era cristã são muitos os exemplos de utilização de substâncias alucinógenas Na Grécia e na Ásia Menor por exemplo são diversos os relatos de uso do ópio De fato foram descobertos bottons de barro e de marfim provavelmente do século VII aC em escavações arqueológicas na ilha de Samos cujos formatos são de cápsulas de papoula Em diversos mitos gregos por sua vez é relatado o uso do ópio ou de substâncias opioides o que indica que esta civilização já conhecia as suas propriedades sedativas e hipnóticas Hipócrates por exemplo receitava mecônio uma espécie de suco de papoula aos seus pacientes como narcótico como purgativo ou para a cura da leucorreia Em Roma o ópio também conhecido pela denominação lacrima papaveris também se tornou muito comum na sociedade tanto que nos anos finais do Império assim como já havia ocorrido na Grécia a imagem de uma papoula passou a ser cunhada em uma das faces das moedas em curso Na literatura latina Plínio o Velho e Virgílio já narravam o efeito hipnótico da semente da papoula Médico romano do século 40 gonzAgA João Bernardino Entorpecentes aspectos criminológicos e jurídicopenais São Paulo Max Limonad 1963 p 9 greco Filho Vicente op cit p 35 195 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente I dC Celso prescrevia o uso do ópio como analgésico Galeno médico romano do século II dC também foi um grande entusiasta da substância mas desde logo reconheceu o perigo do uso excessivo tendo em vista o caso de um de seus ilustres pacientes o Imperador Antonino o qual se tornou dependente desse droga41 Essa substância proveniente da papoula não só teve sua utilização disseminada por grande parte das civilizações asiáticas principalmente a China como também alcançou nelas uma importância social e cultural de grande magnitude Após a Inquisição o consumo do ópio tornouse igualmente comum na Europa principalmente entre os membros das monarquias e os artistas em geral como os escritores os pintores entre outros Devido a razões políticas envolvendo conflitos como a Guerra do Ópio entre os países do Oriente e do Ocidente principalmente China Portugal e Inglaterra a exportação do ópio foi proibida já em 1729 pelo Imperador YungCheng mas tal medida não logrou sucesso efetivo42 Em Roma por sua vez além de a utilização de tais substâncias ser uma realidade na vida social passou também a ser uma questão jurídica isto é o direito passou a regular o seu uso Originalmente a utilização de substâncias alucinógenas só era permitida por determinados membros da sociedade no período arcaico e clássico apenas pelos sacerdotes e no período pósclássico pelos imperadores também Além disso à população era permitido o consumo de tais substâncias em determinados momentos do ano normalmente durante festas e comemorações que envolviam rituais religiosos Com o avanço do conhecimento dos efeitos das substâncias psicotrópicas e o refinamento das técnicas alquímicas de misturas de substâncias logo à utilização medicinal e religiosa somouse o seu uso criminoso e maléfico à saúde humana43 Por 41 Sobre essas informações relativas ao uso do ópio e das substâncias opioides nas civilizações antigas e também sobre um breve relato da história do ópio ao longo da história até os dias atuais conferir duArte Danilo Freire Uma breve história do ópio e dos opióides Revista Brasileira de Anestesiologia Rio de Janeiro v 55 n 1 p 135 146 janfev 2005 42 silveirA Renato de Mello Jorge op cit p 27 gonzAgA João Bernardino op cit p 9 43 mommsen Theodor Römisches Strafrecht Leipzig Duncker Humblot 1899 p 635 637 196 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA isso tornouse necessária a punição dos homicídios causados por envenenamento que nada mais é do que o ato de ministrar intencionalmente determinada substância naturalmente danosa à saúde humana ou em uma quantidade que se torna letal Além dessa previsão de caráter penal sancionada pela lex Cornelia de sicaris et veneficiis44 é importante observar que já no âmbito civil a jurisprudência clássica previa consequências jurídicas aos médicos que ministrassem indevidamente substâncias com fins medicinais levando à morte de seus pacientes ainda que sem a intenção de matar45 Já na era cristã entre os árabes o consumo de drogas também se tornou algo disseminado Isso se justificou principalmente devido ao Alcorão pois apesar de vedar expressamente o consumo de bebidas alcoólicas aos muçulmanos não se pronunciava sobre a utilização de outras substâncias Passouse então a interpretar essa omissão como permissão implícita do consumo das substâncias inebriantes e psicotrópicas desde que não alcoólicas Entre os povos da América précolombiana a utilização de substâncias alucinógenas e inebriantes também era algo comum O hábito de mascar folhas de coca por exemplo remonta a tempos que antecedem a própria fundação da civilização Inca tendo nessa sociedade se arraigado de tal maneira que devido à grande proximidade entre a magia a religião e a farmácia atingiu uma 44 bruns Karl Georg mommsen Theodor grAdenWitz Otto Fontes iuris romani leges et negotia v 1 7 ed Tübingen Mohr 1909 p 92 45 Por exemplo os seguintes fragmentos do Digesto Gai 7 ad ed provinc D 9 2 8 pr Idem iuris est si medicamento perperam usus fuerit Sed et qui bene secuerit et dereliquit curationem securus non erit sed culpae reus intellegitur Gaio no livro sétimo da obra Comentários ao Edito Provincial D 9 2 8 pr O direito é o mesmo compete ou a ação de locação ou a ação da lex Aquilia se o medicamento tiver sido incorretamente usado Mas também quem tiver operado bem mas abandona a cura não será isento de responsabilidade mas sim considerase réu de culpa Ulp 5 opin D 50 13 3 Si medicus cui curandos suos oculos qui eis laborabat commiserat periculum amittendorum eorum per adversa medicamenta inferendo compulit ut ei possessiones suas contra fidem bonam aeger venderet civile factum praeses provinciae coerceat remque restitui iubeat Ulpiano no livro quinto da obra Das Opiniões D 50 13 3 Se o médico a quem tinha contratado para curar os seus olhos quem deles padecia levando ao perigo de perdêlos por causa da administração de medicamentos incorretos compeliu o doente para que lhe vendesse contra a boafé as suas posses reprima o fato o presidente da província e ordene que seja restituída a coisa 197 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente posição de importância e necessidade social que não pôde ser afastada apesar de todos os esforços empregados pelos colonizadores espanhóis De fato no sítio arqueológico de Huaca Pietro no norte do Peru folhas de coca foram achadas em tumbas datadas de 2500 a 1800 aC A utilização de tais folhas pelas populações locais era tão disseminada e comum que no ano de 1499 Américo Vespúcio já havia reconhecido tal prática social46 Por volta de três séculos após a descoberta da coca pelos colonizadores europeus esse produto passou a ter notoriedade na Europa porém sob outra forma Inicialmente sob um ponto de vista positivo a coca foi objeto de estudo como substância medicamentosa por Lamarck que constatou seus efeitos positivos à saúde humana Ainda sob essa perspectiva positiva o químico corso Angelo Mariani criou e passou a comercializar um vinho produzido com base na coca que passou a ser denominado elixir Mariani Seu consumo foi disseminado em toda a Europa atingindo inclusive as altas camadas econômicas políticas e culturais da sociedade como por exemplo Júlio Verne Henrik Ibsen Émile Zola Alexandre Dumas Arthur Conan Doyle Auguste Rodin Thomas Edison Robert Louis Stevenson a Rainha Vitória e os Papas Pio X e Leão XIII Entre 1858 e 1860 porém Albert Niemann realizou a primeira purificação da coca criando a substância que hoje se conhece com a denominação cocaína Essa substância assim como originalmente a folha de coca passou também a ser utilizada como componente de uma série de medicamentos elixires e xaropes47 Ainda que como demonstrado acima a manipulação o consumo e a comercialização de substâncias entorpecentes remontem a épocas imemoriais da humanidade o abuso na utilização o vício e o tráfico de drogas tornaramse um problema de caráter internacional principalmente a partir do fim do século XIX O efeito do consumo das drogas na Europa e nos Estados Unidos foi o principal fator para o agravamento das medidas repressivas referentes tanto ao comércio quanto ao consumo das substâncias entorpecentes Além disso a 46 gonzAgA João Bernardino op cit p 9 silveirA Renato de Mello Jorge op cit p 2627 47 silveirA Renato de Mello Jorge op cit p 27 Para mais detalhes sobre o elixir Mariani conferir kArch Steven B A Brief History of Cocaine 2 ed Boca Raton Taylor Francis 2006 p 3142 198 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA equivocada terapêutica o progresso nos meios de comunicação e transporte a elaboração de obras literárias e científicas acerca dessa temática entre outros elementos levaram ao incentivo e à disseminação de atitudes negativas relativas ao uso de diversas substâncias que há milênios já existiam nas diversas sociedades humanas48 O tráfico ilegal de entorpecentes por sua vez é apontado pela doutrina como resultado de dois fatores primordiais que caracterizariam o século XX quais sejam a era de extremos e a sociedade de risco De fato foi durante esse século que a proibição das drogas adquiriu caráter prevalentemente jurídicopenal49 Essa atitude criminalizadora porém não seguiu o paradigma do direito penal mínimo pois ao longo do século ao contrário de a proibição se restringir a apenas algumas substâncias e comportamentos ela passou a abarcar até as tradições culturais e religiosas mais antigas e que não representavam nenhuma espécie de perigo à sociedade como é o caso da cultura de mascar a folha da coca ou de consumir o chá de Santo Daime em rituais indígenas Em suma de uma antiga aceitação passouse ao controle da utilização e ao final a uma posterior proibição quase completa do consumo e comércio de substâncias alteradoras do comportamento50 As primeiras iniciativas internacionais voltadas ao combate ao consumo e tráfico ilegal de entorpecentes remontam ao início do século XX Ainda muito tímido esse movimento teve grande impulso após a Primeira Guerra Mundial 1914 Esse período foi pautado 48 gonzAgA João Bernardino op cit p 910 49 Falase num caráter prevalentemente jurídicopenal pois como visto acima já na Roma antiga foram tomadas medidas de repressão penal e civil à utilização de substâncias medicamentosas e entorpecentes de forma incorreta ou com finalidade dolosa contra a vida Além disso para citar apenas um exemplo nas Ordenações Filipinas em seu Livro V Título LXXXIX Que ninguem tenha em sua caza rosalgar nem o venda nem outro material venenoso já se previa Nenhuma pessoa tenha em sua caza para vender rosalgar branco nem vermelho nem amarello nem solimão nem agua delle nem escamonéa nem opio salvo se fôr Boticario examinado e que tenha licença para ter Botica e usar do Officio E qualquer outra pessoa que tiver em sua caza alguma das ditas cousas para vender perca toda sua fazenda a metade para nossa Camera e a outra para quem o acusar e seja degradado para Africa até nossa mercé E a mesma pena terá quem as ditas cousas trouxer de fóra e as vender a pessoas que não forem Boticarios 50 silveirA Renato de Mello Jorge op cit p 28 199 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente no que tange à questão das drogas por um aumento exponencial na utilização e consequentemente na comercialização de substâncias entorpecentes As principais razões para esse fenômeno são a fuga por parte da grande maioria da população do sofrimento gerado pelos efeitos da guerra tais como a miséria a fome e a dor física e psíquica por meio do recurso a substâncias que alteram a consciência e aliviam a dor o relaxamento das forças morais e do controle interno e internacional o aumento das movimentações e migrações militares e civis entre as nações principalmente as europeias51 A resposta dos países em âmbito internacional ao aumento do tráfico e do consumo de substâncias entorpecentes foi a realização de nove conferências quais sejam a de Xangai em 1909 as de Haia em 1912 1913 e 1914 as de Genebra em 1925 duas 1931 e 1936 e a de Bangcoc em 1931 O principal objetivo dessas conferências internacionais era a busca de soluções para o tráfico ilegal de drogas Além disso nesse mesmo período foram criados no seio da Sociedade das Nações e com base no art 23 c do Pacto que a constituiu órgãos com essa mesma finalidade entre os quais se destaca a Comissão Consultiva do Ópio e de Outras Drogas Nocivas52 Apesar dessa grande mobilização internacional os resultados práticos almejados pelos países não foram alcançados com êxito O comércio ilegal e a superprodução de drogas ao contrário do objetivado foi o que se pôde observar nos anos que se seguiram O fracasso das convenções foi então atribuído ao fato de elas não enfrentarem a raiz do problema isto é por apenas determinar o controle da produção e comercialização de substâncias sem indicar instrumentos e mecanismos para essa limitação proposta53 O período posterior à Primeira Guerra Mundial porém não se caracterizou por um clima de paz união e harmonia entre as nações e sim de crise de nacionalismo Na realidade a prevalência dos interesses pessoais das nações não só se refletiu no fracasso das medidas previstas nas convenções como também nas próprias falhas e restrições que puderam ser observadas nelas como por exemplo a 51 gonzAgA João Bernardino op cit p 1011 52 Idem p 35 53 Idem p 1516 200 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA ausência de participação dos países produtores principais de matérias primas entorpecentes Por trás de uma falsa atmosfera de cooperação e diálogo o que existia na prática era a oposição muitas vezes camuflada dos países que por serem grandes centros manufatureiros de substâncias entorpecentes produtores de matériasprimas ou líderes no comércio de drogas lucravam muito com o tráfico ilegal internacional Por um lado as drogas representavam uma importante fonte de renda para países do Extremo Oriente e da América do Sul por outro lado elas apareciam como um eficaz instrumento de dominação imperialista das grandes potências sobre suas colônias54 Os mecanismos legais de reprimenda ao consumo e à comercialização de drogas atingiram um nível ainda maior a partir do crescimento do movimento de contracultura hippie dos anos 1960 Nesse momento histórico ficou clara a divisão entre as camadas conservadoras da sociedade defensoras dos valores e do estilo de vida tradicionais e os grupos jovens que defendiam o rompimento com a cultura vigente expressa nos novos hábitos roupas gostos musicais e artísticos entre outros A essa nova configuração social foi somado o aumento do poder dos entorpecentes com a criação das novas drogas sintéticas as quais geravam efeitos mais intensos nos seus consumidores55 Nesse novo momento histórico não mais o boicote da aplicação efetiva das normas internacionais e o acobertamento dos interesses políticos e financeiros e sim o combate às drogas passou a ser expressão clara do domínio imperialista das potências do primeiro mundo sobre as nações subdesenvolvidas e em desenvolvimento De fato sob o pretexto de uma luta internacional ou guerra contra as drogas diversos países principalmente da América Central e do Sul sofreram fortes intervenções dos Estados Unidos da América Esse nível de influência internacional diferentemente daquela que houve outrora por exemplo a citada Guerra do Ópio a partir da década de 60 do século XX atinge grau muito elevado Segundo a doutrina isso é resultado da produção social de riscos típica da modernidade e resultante da atual produção social de riqueza Nessa nova configuração atinge e modifica o Direito Penal na medida 54 Idem p 1720 55 silveirA Renato de Mello Jorge op cit p 2829 201 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente em que passa a ser defendida a tutela penal antecipada dos riscos típicos da nova configuração social Sendo assim as drogas passam a ser mais ampla e severamente combatidas pois constituiriam um risco até então visto como incontestável como um verdadeiro fator criminógeno e uma má conduta social não sendo prudente esperar os eventuais danos para coibir o seu uso e a sua comercialização56 Nesse diapasão é que foi elaborada em 1961 a Convenção Única sobre Entorpecentes no âmbito das Nações Unidas Todo o seu conteúdo foi entregue à tutela da Comissão de Entorpecentes do Conselho Econômico e Social da ONU e ao Órgão Internacional de Fiscalização de Entorpecentes É atribuída a essa convenção a atual e predominante linha repressiva em matéria de drogas no mundo a qual já se provou fracassada na busca de seus objetivos57 O principal órgão que na prática possui um papel na aplicação dessa linha repressiva de combate ao tráfico de entorpecentes é a Organização Internacional de Polícia Criminal Interpol criada em Viena em 1923 no Congresso Internacional de Polícia Apesar de não ser uma organização intergovernamental ou estatal é o resultado da cooperação internacional dos inúmeros órgãos policiais nacionais prestando como as polícias dos diversos Estados essencial serviço público A sua participação na estrutura da ONU é fruto de interpretação do art 35 da Convenção Única sobre Entorpecentes pois o seu nome não é expressamente mencionado nesse documento internacional58 A Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961 havia consagrado uma ideia até então predominante na sociedade internacional qual seja a de que o combate ao consumo e ao tráfico de entorpecentes tinha como fundamento a proteção do bem jurídico saúde pública Porém em 1984 a Organização das Nações Unidas emitiu uma Declaração sobre a luta contra o narcotráfico e o uso indevido de drogas a qual em seu preâmbulo altera o entendimento consagrado no documento anterior Nessa declaração da década de 1980 os bens jurídicos protegidos com o combate à comercialização e uso indevido de narcóticos passam a ser dois o bemestar físico e 56 gonzAgA João Bernardino op cit p 2931 57 greco Filho Vicente op cit p 3637 gonzAgA João Bernardino op cit p 2224 58 greco Filho Vicente op cit p 3840 202 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA moral e o desenvolvimento da juventude O que se observa portanto na mudança mencionada é na realidade uma ampliação do âmbito de proteção isto é não mais se deseja abarcar a saúde pública em seu sentido tradicional e sim em seu sentido lato isto é de bem estar e segurança da coletividade as quais são colocadas em risco pelas drogas na medida em que estas são entendidas como um fator criminógeno59 Essa forma de combate às drogas adotado em âmbito internacional porém mostrouse já no fim dos anos 1980 um enorme fracasso no atingimento de seus objetivos De fato a produção e o consumo de entorpecentes só aumentaram no mundo até a década de 80 e 90 do século XX O mencionado fracasso da política criminal internacional de combate às drogas possui diversas razões entre as quais duas são as mais apontadas pela doutrina A primeira consiste na adoção incorreta da política de substituição que nada mais é do que a diminuição do cultivo de entorpecentes mediante o incentivo à produção de outros insumos Como observado em diversas nações sulamericanas e asiáticas a exportação de insumos naturais essenciais para a produção de substâncias entorpecentes é uma das principais fontes de renda A proibição interna de tal cultivo porém acaba apenas por aumentar a lucratividade da atividade e o valor dos insumos ilegais Sendo assim tornase difícil oferecer uma atividade econômica alternativa aos produtores cujos lucros se igualem ou superem aos das matérias primas dos principais entorpecentes da atualidade60 A segunda razão por sua vez diz respeito às falhas no sistema de repressão policial e militar Em primeiro lugar na maior parte dos casos experimentase uma situação de legalidade sem legitimidade isto é existem leis que proíbem o consumo e o tráfico de entorpecentes mas na prática a maior parte da sociedade muitas vezes até dos efetivos policiais e militares reconhece a importância econômica dessas atividades sem as quais a maior parte da população de certos países como por exemplo da Colômbia se veria sem meios de subsistência Em suma a existência de mercados paralelos informais somada à tolerância das autoridades confere 59 silveirA Renato de Mello Jorge op cit p 3435 60 Ambos Kai Control de drogas política y legislación en América Latina EEUU y Europa eficacia y alternativas Bogotá Gustavo Ibañez 1998 p 135139 203 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente à ilegalidade certa legitimidade Em segundo lugar há a extrema corrupção por parte dos agentes públicos que deveriam fiscalizar e punir as condutas ilegais relacionadas às drogas De fato em muitas situações o Estado se torna um observador passivo principalmente pelas razões acima apresentadas Em terceiro existem ainda os problemas organizacionais e operativos Em muitos Estados a falta de cooperação real entre os órgãos oficiais e excessiva politização desses a sobrecarga de trabalho e a falta de motivação por exemplo os baixos salários e de formação todos esses fatores tornam o combate às condutas ilícitas relativas aos entorpecentes um verdadeiro fracasso Em quarto e último lugar temse a política ambivalente dos países consumidores os quais exigem um combate à produção e ao tráfico de drogas nos países da América do Sul e Ásia mas dentro de seus próprios territórios não conseguem conter o consumo das drogas ilegais61 Como visto o entendimento tradicional de cunho penalista repressor permaneceu inalterado até o fim da década de 1980 e início dos anos 1990 O primeiro indicador de mudança ocorreu em 1989 quando penalistas espanhóis em Málaga manifestaramse de forma veemente pela alteração da política até então adotada em âmbito internacional de combate às drogas defendendo em substituição à denominada alternativa despenalizadora A mesma bandeira contra a proibição foi defendida poucos meses depois em Roma na Resolução Política do Congresso Fundacional da Liga Internacional Antiproibicionista e no ano seguinte no Manifesto de Frankfurt62 Apesar dessa mudança de posicionamento no âmbito da doutrina penalista internacional os organismos internacionais permaneceram adotando os antigos ideais penalizador e repressivopenal A necessidade de mudança dos objetivos e métodos das políticas de combate às drogas já havia sido expressa em 1989 na Declaração do Conselho de Ministros da Saúde da União Europeia Nesse documento foi proposta a substituição da meta do abandono total do consumo de drogas assim como da utilização de meios como a configuração das situações de traficância e consumo de entorpecentes como crimes de perigo abstrato direito penal do inimigo em presunção absoluta 61 Idem p 139154 62 silveirA Renato de Mello Jorge op cit p 3536 204 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA iuris et de iure e com antecipação da tutela penal por objetivos intermediários tais como diminuição da mortalidade combate aos métodos de consumo que causam risco de infecção pelo vírus HIV redução da marginalidade etc Por meio da adoção de uma teoria neoliberal do crime o objetivo passa a ser não o da eliminação do consumo de drogas e sim da redução e gestão dos riscos gerados por esse consumo Sendo assim a política criminal relativa ao tema das drogas deve seguir uma vertente utilitária qual seja implantação de uma política de desenvolvimento alternativo efetiva com investimentos em infraestrutura na qualidade da produção legal oferecimento de créditos rurais etc redução de riscos que beneficie o maior número de pessoas possível focando a solução penal apenas nos casos de tráfico ilegal de drogas e de comercialização de entorpecentes como forma de financiamento de atividades criminosas isto é promoção do uso tradicional por exemplo da coca nos países andinos descriminalização e legalização controlada da posse consumo e pequeno tráfico e atuação do direito penal apenas nos casos de tráfico ilegal e de presença do crime organizado63 Além disso a essas medidas deve ser somada ainda a oferta de tratamento aos dependentes químicos a denominada justiça terapêutica Esses temas porém por merecerem maior aprofundamento teórico serão mais bem aprofundados nos capítulos seguintes 4 Algumas questões criminológicas 41 do discurso em torno das drogas C omo já abordado neste trabalho a Organização Mundial da Saúde possui uma definição muito abstrata sobre o que seria droga Não são poucas as substâncias que podem ser encaixadas na ideia de droga caso seja levada à risca a descrição concebida pelo órgão Também como já visto aqui as drogas sempre se fizeram presentes na maioria se não em todas as formas de organização social do ser humano Independentemente da simbologia que os entorpecentes possuíam em cada civilização é correto afirmar que 63 silveirA Renato de Mello Jorge op cit p 35 Ambos Kai op cit p 154165 205 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente o uso de qualquer substância com o intuito de provocar diferentes sensações e reações é algo inerente ao próprio ser humano Observada esta constatação natural concluir que se está diante de um tema que gera grande curiosidade e portanto alta popularidade Esse fator somado à imprecisão conceitual alimentada pelos órgãos internacionais acaba por produzir uma grande quantidade de informações distorcidas e conclusões vagas contribuindo mais para a confusão entre as pessoas do que de fato ao esclarecimento sobre as drogas Assim sendo ressalta rosa del olmo tornase impossível distinguir o que é a exposição de um fato da opinião advinda de um interlocutor e dos sentimentos daqueles que estão envolvidos nesta questão Dentro das discussões acerca de políticas criminais a temática da droga é o mais simbólico bode expiatório64 A confusão tende a aumentar quando outras substâncias que possuem o mesmo ou até maior grau de nocividade não são inclusas no enquadramento de droga O exemplo mais evidente é o álcool que apesar de todos os seus efeitos deletérios tem seu consumo estimulado e encorajado Dessa forma como já aludido mais relevante que a tentativa de definir o que viria a ser droga é o estudo que recai sobre o discurso que se busca construir em seu redor Quando se agrupam inúmeras substâncias cada uma com sua própria característica e histórico numa única categoria facilitase o processo de confusão e separação delas em proibidas e permitidas conforme o interesse daquele que se encontra na detenção do poder Além disso o discurso permite ainda incluir as características do sujeito que se relaciona com a substância seja para consumo ou para venda O rótulo de vilãovítima doentedegenerado será imposto conforme o interlocutor e seu caldo de cultura e de interesses que qualifica o outro e conforme justamente esse que recebe a adjetivação Assim o indivíduo que possui qualquer relação com algo que naquele contexto históricosocial convencionouse taxar proibido passa a ser a personificação a expressão do terror A partir disto várias medidas legais e extralegais são adotadas pelo Estado com o intuito de combater este mal 64 olmo Rosa del A face oculta da droga Rio de Janeiro Revan 1990 p 22 206 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Como é possível deduzir o pensamento até aqui exposto é de extrema utilidade para estabelecer o maniqueísmo necessário para a introjeção de valores que interessam a camadas específicas da sociedade valores que o sistema social dominante necessita para criar consenso em torno dos valores e normas que são funcionais para sua conservação65 olmo66 faz referência ao criminólogo britânico Jock Young67 para tratar da importância dos meios de comunicação na difusão do terror Young vai chamar a mídia de guardiã do consenso pois ela tem a capacidade de hierarquizar os problemas sociais procedendo a uma célere e repentina dramatização de forma a criar pânico moral sobre uma determinada espécie de conduta de forma sistemática ripollés abordando este tema afirma que o malestar social depende de um processo comunicativo de intercâmbio de opiniões e impressões de forma que acaba por realçar a visibilidade social do desajuste e do malestar por ele criado além de conceder a esta disfunção a autonomia e a substantividade necessária para que seja este considerado um verdadeiro problema social A mídia assumirá o papel de delimitar os contornos deste problema com a reiteração de atos similares ou com a aglutinação de fatos que antes não eram claramente conectados inclusive com o reforço constante da exposição de determinados eventos pretéritos Todo este cenário acaba por gerar uma percepção social de que se estaria diante de uma onda desta criminalidade reforçando a relevância do problema Destaca ainda os efeitos deste problema fazendo com que seja uma preocupação comum a todas as classes sociais68 É realizado portanto todo um processo para que essa opinião formatada pelos grandes meios de comunicação graças à capacidade de penetração na sociedade passe a ser entendida como opinião pública sendo assim catalisador de adoção de medidas políticas que atendam como dito aos interesses de poucos 65 Idem p 23 66 Idem ibidem 67 young Jock Mass Media Drugs and Deviance In rock Paul mcintosh Mary Deviance and Social Control Londres Tavistock 1974 p 243 68 riPollés José Luiz Díez A racionalidade das leis penais teoria e prática Trad Luiz Regis Prado São Paulo RT 2005 p 2830 207 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente Sobre a opinião pública diz o jurista espanhol69 A opinião pública assim considerada é um estado de opinião isto é uma interpretação consolidada de certa realidade social e um acordo básico sobre a necessidade e o modo de influir sobre a mesma Isso significa que não tem capacidade por si só para aceder à fase prélegislativa nem mesmo para desencadear a última e decisiva etapa prélegislativa a de ativação das burocracias Contudo esse estado de opinião já prejulga de forma geral os programas de ação que ulteriormente vão ser submetidos à consideração e portanto as opções ou políticas subsequentes A mídia portanto acaba assumindo a função de ampliar ainda que fictamente a incidência de um determinado crime sobre a sociedade além de intensificar os efeitos negativos que esta criminalidade pode vir a gerar É um discurso pautado no terror no medo que é gerado no âmago de cada indivíduo receptor das informações O discurso amedrontador e carregado de imprecisões sobretudo no tocante às drogas gera um cenário de incertezas que intensifica a sensação de insegurança e de medo na sociedade O medo é algo inerente a qualquer animal O homem porém conhece uma espécie de medo em segundo grau um medo social e culturalmente reciclado Uma espécie de medo derivado Este medo acaba por orientar seu comportamento além de reformar a sua percepção do mundo e as expectativas que norteiam suas escolhas Sobre isto afirma bauman70 O medo derivado é uma estrutura mental estável que pode ser mais bem descrita como o sentimento de ser suscetível ao perigo uma sensação de insegurança o mundo está cheio de perigos que podem se abater sobre nós a qualquer momento com algum ou nenhum aviso e vulnerabilidade no caso de o perigo 69 Idem p 3132 70 bAumAn Zygmunt Medo líquido Trad Carlos Alberto Medeiros Rio de Janeiro Zahar 2008 p 9 208 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA se concretizar haverá pouca ou nenhuma chance de fugir ou se defender com sucesso o pressuposto da vulnerabilidade aos perigos depende mais da falta de confiança nas defesas disponíveis do que do volume ou da natureza das ameaças reais Ainda que não haja ameaça direta se a pessoa interiorizar a insegurança e a vulnerabilidade passará a agir como se defronte do perigo estivesse Para o autor existem três tipos de perigo O primeiro diz respeito ao próprio corpo e suas propriedades O segundo de caráter mais geral diz respeito à durabilidade e confiabilidade na ordem social Por fim o terceiro perigo diz respeito ao lugar da pessoa no mundo Da consciência de quem sofre com o perigo seja qual for o medo derivado é facilmente desacoplado dos perigos que o causam Quem tem medo pode interpretálo a qualquer um desses perigos mesmo sem comprovação da contribuição de cada um deles Dessa forma as reações defensivas podem ser dirigidas para longe do perigo realmente responsável pela suspeita de insegurança71 Porém não se está diante somente de uma intensificação de medos impregnados na sociedade Os próprios riscos de se viver em uma sociedade inserida numa modernidade tardia como a atual cresceram no mesmo ritmo dos avanços tecnológicos Obviamente os seres humanos sempre estiveram suscetíveis a um sem fim de tipos de riscos Porém com o fenômeno recente de intensificação da globalização sobretudo com os grandes avanços nas tecnologias de comunicação e informação aliados ao modelo capitalista de consumo acabam por ampliar o espectro de incidência dos riscos que já existiam além de criar outros com respectivos efeitos podendo ser cada vez mais intensos72 Agora um determinado fato danoso pode trazer consequências para todo o globo 71 Idem p 11 72 Nesse sentido beck Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Trad Sebastião Nascimento 2 ed São Paulo Ed 34 2011 O autor aborda inclusive o que chama de efeito bumerangue Em sua disseminação os riscos apresentam socialmente um efeito bumerangue nem os ricos e poderosos estão seguros diante deles Os anteriormente latentes efeitos colaterais rebatem também sobre os centros de sua produção Os atores da modernização acabam inevitável e bastante concretamente entrando na cirando dos perigos que eles próprios desencadeiam e com os quais lucram p 44 209 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente bauman por sua vez prefere abordar o atual estágio da humanidade sob a perspectiva de que estaríamos vivendo uma modernidade líquida Os fluídos se movem facilmente diferentemente dos sólidos não são facilmente contidos contornam certos obstáculos dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho Essas são as razões para considerar fluidez ou liquidez como metáforas adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase nova de muitas maneiras na história da modernidade73 A atual sociedade caracterizarseia pelo derretimento de tradicionais estruturas que acabam por modificar profundamente os elos que entrelaçam os padrões de comunicação e coordenação entre as políticas de vida conduzidas individualmente de um lado e as ações políticas de coletividades humanas de outro74 Se na modernidade sólida havia uma vinculação entre capital e trabalho com relativa estabilidade agora há um elevado grau de flexibilização desta relação Assim não existe mais a figura do trabalhador que permanece no posto de trabalho por toda sua vida O capitalismo na modernidade líquida faz com que haja um maior fluxo migratório do trabalhador pelos postos de trabalho75 além de exigir um padrão mínimo de consumo para que este possa se entender inserido na sociedade Não estando empregada a pessoa passa a ser vista como descartável Valendose dos pensamentos de Axel honneth é possível afirmar que o ser humano acaba perdendo sua condição de pessoa e passa por um processo de reificação ou seja ele deixa de ser reconhecido como sujeito de direito e passa a ser analisado como mero objeto A reificação pressupõe que nós nem percebamos mais nas outras pessoas as suas características que as tornam propriamente 73 bAumAn Zygmunt Modernidade Líquida Tradução Plínio Dentzien Rio de Janeiro Zahar 2003 p 89 74 Idem p 12 75 Idem p 154 210 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA exemplares do gênero humano tratar alguém como uma coisa significa justamente tomálao como algo despido de quaisquer características ou habilidades humanas76 Em sendo mero objeto pode ser trocado com facilidade ou mesmo excluído do corpo social quando não for mais conveniente sua manutenção Tudo passa a ser volátil não somente as relações de trabalho mas qualquer relação intersubjetiva Todas passam a possuir um curto prazo de validade A vida passa a ser levada como um longo ensaio sobre a morte Pessoas se relacionam por um limitado espaço temporal para nunca mais se comunicarem77 Essa liquidez acaba por atingir também todas as estruturas tradicionais da sociedade desde o Estado chegando até a conceituação de família Ou seja se antes possuíamos uma modernidade de capitalismo dito sólido em que havia um campo de seguranças acerca do futuro hoje há somente elementos fluidos que levam as pessoas a concluir que a única certeza que podem possuir é de que o amanhã já não será o mesmo evento do presente O convívio em sociedade passa a ser permeado por uma constante névoa de incerteza Há assim um esfacelamento das normas morais sociais antes vigentes fazendo com que o agir dos outros ou suas consequências se tornem imprevisíveis Nesse sentido afirma silva sánchez a ausência de uma ética social mínima torna de fato imprevisível a conduta alheia e produz obviamente a angústia que corresponde ao esforço permanente de asseguramento fático das próprias expectativas ou a constante redefinição das mesmas Pois bem as sociedades modernas nas quais durante décadas se foram demolindo os critérios tradicionais de avaliação do bom e do mau não parecem funcionar como instancias autônomas de moralização de criação de uma ética social que redunde na proteção dos bens jurídicos78 76 honneth Axel Observações sobre a reificação Civitas Revista de Ciências Sociais Porto Alegre v8 n1 p 70 77 bAumAn Zygmund op cit 2008 p 13 78 silvA sánchez JesúsMaría A expansão do direito penal aspectos da política criminal nas sociedades pósindustriais Trad Luiz Otavio de Oliveira Rocha 2 ed rev e ampl 211 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente Ora se a aludida moral social de silva sánchez não consegue estabelecer ditames mínimos para a boa convivência entre as pessoas a própria sociedade que ainda que continue buscando por mais modernidade é avessa a riscos por uma lógica de autopreservação passa a demandar respostas mais efetivas por parte do Estado ou seja considerando a forma como o Estado se comunica com seus cidadãos surge uma demanda por mais Direito Ocorre que as duas instâncias que seriam mais aptas para regular a vivência em coletividade o Direito Civil e o Direito Administrativo acabam não conferindo ao menos num plano sensorial a segurança que por eles é esperada seja porque tudo pode acabar se resumindo numa troca de valores financeiros quando da reparação de um dano que podem ser amortizados no futuro seja pela sensação de ineficácia estatal gerada pela burocratização e possibilidade de desvios de conduta dentro do âmbito administrativo79 Assim dado este cenário somado ao simbolismo que o próprio Direito Penal carrega em si de modalidade de vingança porém perpetrada pelo Estado surge a ideia de que ele deve ser utilizado em grande parte das situações cotidianas por ser o único instrumento eficaz de organização civilizacional Isso acaba por deturpar a lógica jurídica do direito penal como ultima ratio além de exigir dele algo do qual ele não é capaz80 Não cabe ao Direito Penal a função de norte moralizante ou mesmo estruturante da sociedade O desejo por mais Direito Penal não se dá somente com as novas criminalizações chamadas de neocriminalizações mas também sobre incriminações que já se fazem historicamente presentes que é o fenômeno da sobrecriminalização81 Este é o caso dos entorpecentes São Paulo RT 2011 p 75 79 Idem p 79 80 Sobre a intervenção do direito penal das relações existentes na sociedade cabe lembrar as palavras de Pierangeli e Zaffaroni quando tratam do princípio da intervenção mínima penal Se a intervenção do sistema penal é efetivamente violenta e sua intervenção pouco apresenta de racional e resulta ainda mais violenta o sistema penal nada mais faria que acrescentar violência àquela que perigosamente já produz o injusto jushumanista a que continuamente somos submetidos Por conseguinte o sistema penal estaria mais acentuando os efeitos gravíssimos que a agressão produz mediante o injusto jushumanista o que resulta num suicídio cf Manual de direito penal brasileiro parte geral 7 ed rev e atual São Paulo RT 2007 v 1 p 75 81 diAs Jorge de Figueiredo AndrAde Manuel da Costa Criminologia o homem delinquente e a sociedade criminógena Coimbra Coimbra Editora 1997 p 435 212 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Encontramos ambos os movimentos nesta área já que observamos um recrudescimento estatal nas leis antidrogas já existentes e também a criação de novos meios e institutos que recaem não somente no tráfico e no consumo de entorpecentes mas em condutas correlatas como a adoção de institutos típicos do direito proveniente da Common Law e a inserção da noção de insider trading no âmbito penal no combate aos delitos econômicos consequência direta entre outras coisas do mercado de estupefacientes82 Como já analisado as primeiras medidas que visavam à restrição do trânsito de substâncias tóxicas remontam do fim do século XIX com a questão do ópio Porém por conta do medo difundido na sociedade muito graças ao discurso preconceituoso e à criação de um tabu em torno das drogas além das já referidas ideias turvas que vagam entre opinião sentimento e dado científico a sociedade manipulada pelos grandes detentores de poder pela visão foucaultiana acaba por protestar por um regime jurídicopenal cada vez mais severo contra aquele que possui alguma relação com as drogas seja usuário ou comerciante rosa del olmo afirma que os vários discursos construídos a respeito das drogas acabaram por permitir a criação de diversos estereótipos que são necessários para legitimar o controle social formal que no caso das drogas tem na normativa jurídica sua máxima expressão83 A criminóloga pautada na doutrina de carlos gonzález zorrilla fala em quatro tipos de estereótipos sendo o último uma contribuição própria84 O primeiro estereótipo seria o estereótipo médico em que o usuário é visto como um doente e a droga como epidemia O problema acaba por se centrar na saúde pública Seria o estereótipo da dependência e é o difundido quando se busca adotar uma política proibicionista de internação compulsória por exemplo em que 82 Admitese inclusive que graças ao dinheiro proveniente do tráfico internacional de drogas vários bancos conseguiram sobreviver à crise econômica que se instaurou no ano de 2008 Cf The Guardian Drug money saved banks in global crisis claims UN advisor Disponível em httpwwwtheguardiancomglobal2009dec13drug moneybankssaveduncfiefclaims Acesso em 11 jun 2013 83 olmo Rosa del op cit p 23 84 Idem p 2425 213 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente se enxerga o usuário como alguém que não possui capacidade de controle sobre sua própria vida e que a droga é uma doença que precisa ser erradicada do país O usuário é visto como um sujeito violento e descontrolado É divulgada uma série de problemas impedimentos e patologias provenientes das drogas O preconceito sobre o tema somente se agrava pois com a incessante ventilação de informações somada ao desconhecimento e ao tabu leva as pessoas a acreditarem que possuem conhecimento específico na matéria85 O segundo tipo é o estereótipo cultural É um dos discursos utilizados pelas grandes mídias em que o consumidor é aquele que se opõe ao consenso da sociedade podendo guardar alguma semelhança com a ideia de subcultura delinquente Entretanto o rótulo a ser posto depende da classe social em que o usuário se encontra Assim os adjetivos ganham uma simbologia diferente em que a palavra drogado fica reservada somente a algumas camadas sociais É um processo semelhante com o que ocorre com a ideia de que aqueles jovens mais abastados são estudantes mas o pobre é desempregado ou mesmo vagabundo O terceiro estereótipo é o moral O consumidor é classificado como viciado e ocioso conforme o caso e a droga é vista como um prazer proibido O convívio em sociedade proporciona um vasto leque de opções para obtenção de prazer e diversão Todavia o sujeito opta pelo fruto proibido ou seja faz uma errada escolha ética e opta pelo prazer errado Este discurso é muito difundido também pela mídia mas encontrase presente na hermenêutica jurídica Como será visto adiante a única plausibilidade jurídica para a repressão penal em matéria de drogas residiria na defesa de uma moral o que num contexto de Estado Democrático de Direito em que se busca preservar ao máximo as liberdades individuais e o livre desenvolvimento do indivíduo mostrase completamente irrazoável Não é possível identificar qualquer bem jurídico com dignidade penal dentro do tema dos entorpecentes Por fim o quarto estereótipo é o do criminoso A droga é enxergada como uma inimiga da sociedade e o traficante como um invasor um conquistador um terrorista É justamente com base 85 giberti Eva Esbozo de fundamentación Estrategias de legitimación Medios de comunicación y los usuários de drogas In cuñArro Mónica org La política criminal de la droga Buenos Aires AdHoc 2010 p 6989 especialmente p 71 214 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA nesse estereótipo que se pauta a teoria do Direito Penal do Inimigo O traficante e também o consumidor é alguém que optou por ser contra a sociedade e portanto não merece nenhuma garantia por parte dela Tratase em verdade de um discurso políticocriminoso já que se recorre ao discurso político para legitimar o discurso jurídico Esse último discurso também pode ser entendido como geopolítico e muito se assemelha à Doutrina da Segurança Nacional muito difundida no continente americano a partir da década de 1960 mas elaborada no seio do Governo estadunidense no contexto de pósSegunda Guerra Mundial em que se procuraram mecanismos inclusive de intervenção em países estrangeiros para conter o avanço do comunismo nas nações entendidas como estratégicas Estáse diante de uma guerra contra a subversão ou seja em prol da manutenção do modelo capitalista de ordem econômica Esta guerra acaba se confundindo com o combate à criminalidade comum já que qualquer criminoso pode ser visto como uma ameaça ao convívio social A segurança nacional legitima o discurso antidrogas por meio de seu alcance moralista bem como o modus operandi das operações Afirma salo de carvalho86 Com a incorporação dos postulados da Doutrina de Segurança Nacional DSN no sistema de seguridade pública a partir do Golpe de 1964 o Brasil passa a dispor de modelo repressivo militarizado centrado na lógica bélica de eliminaçãoneutralização de inimigos A estruturação da política de drogas requeria portanto reformulação ao inimigo interno político subversivo é acrescido o inimigo interno políticocriminal traficante Desde então a lógica bélica vem sendo a tônica no tratamento jurídico em relação às drogas não somente no Brasil mas em toda a América Latina A constante readequação da lógica bélica aos discursos contingenciais permite inclusive afirmar que sua estrutura 86 cArvAlho Salo de A política criminal de drogas no Brasil estudo criminológico e dogmático da Lei 1134306 6 ed São Paulo Saraiva 2013 p 73 215 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente ideal e ideológica permanece inabalada pautando ainda hoje as ações punitivas de intervenção legal judicial e executiva vg criminalização dos crimes hediondos repressão ao crime organizado formulação de políticas penitenciárias diferenciadas87 Sobre a importância da criação de estereótipos afirma olmo88 Os estereótipos servem para organizar e dar sentido ao discurso em termos dos interesses das ideologias dominantes por isso no caso das drogas se oculta o político e econômico dissolvendoo no psiquiátrico e individual Em verdade muito mais danosa que a própria droga é a ignorância que impera sobre este tema que foi transformado em tabu As maiores adversidades surgem da falta de uma percepção de que as drogas sempre fizeram parte da existência humana e que seu consumo é algo que transpõe qualquer tipo de barreira física ou temporal É quase intrínseco ao próprio ser humano A partir do momento que esta concepção for adotada passarseá a discutir o entorpecente de forma mais racional não mais o transformando em destruidor social mas algo que faz parte da vida humana que deve ser estudado debatido e cujos danos devem ser prevenidos ou reduzidos Porém há de se evitar o discurso hipócrita da proibição por como já abordado mal se sabe quais substâncias podem ser enquadradas como drogas ou o porquê de algumas igualmente nocivas não serem entendidas como tais Este cenário de ignorância favorece para silenciar a contraditória história que cada entorpecente traz consigo Cada substância possui um histórico cultural e várias condicionantes estruturais e político econômicas dentro de cada civilização olmo demonstrando como o discurso proibicionista sempre foi pautado em questões mais políticas que racionais valese da pesquisa elaborada por sebastian scheerer89 sobre a criminalização 87 Idem ibidem 88 olmo Rosa del op cit p 25 89 Idem p 26 O trabalho do criminólogo alemão é The Popularity of the Poppy Selective Politization and Criminalization of Opium Use in XIX Century USA Grupo Európeo para el Estúdio de la Desviación y el Control Social Barcelona 912 de 216 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA do ópio O estudioso alemão constata como o consumo do ópio nos Estados Unidos sofreu uma criminalização diferenciada conforme seus distintos modos de consumo De todas as formas fumar comer ou injetar a menos danosa para a saúde já se sabia na época era o fumo Porém este modo foi o primeiro a ser proibido em detrimento da maneira de consumo mais lesiva que é a injeção de heroína Isto se justifica pois havia uma necessidade de deslocar a mão de obra chinesa que começava a ser vista como concorrente aos estadunidenses Ou seja politicamente há a tentativa de difusão do tema dentro de um mesmo discurso universal atemporal e sem vinculação histórica Surge uma fala totalizante como se todo país tivesse a mesma situação em relação às mesmas drogas daquele que expõe a doutrina Esta conjuntura permite após a Segunda Guerra Mundial que os estadunidenses como vencedores da batalha imponham sobre os demais países uma política de drogas que fosse conveniente a suas concepções morais e econômicas sobretudo com o uso da Organização das Nações Unidas e da Organização Mundial da Saúde organizações criadas justamente pelos vitoriosos da Grande Guerra Desta forma a partir da década de 1960 as Nações Unidas elaboram uma série de tratados buscando o combate contra as drogas Neste ponto destacase a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 1988 também conhecida como Convenção de Viena Esta Convenção consagrou a War on Drugs como política de controle do uso e da difusão das drogas ilícitas Seus trabalhos se iniciaram com a constatação de que os tratados anteriores sobre a questão 1961 e 1971 acabaram falhando no intuito de erradicar as drogas do planeta90 leonardo sica identifica três principais características da War on Drugs que acabam por corroborar o que vem sendo discutido até o momento A primeira é a estruturação de um modelo que se pauta na proibição e na repressão Ou seja estáse inserido num sistema setembro 1977 90 sicA Leonardo Funções manifestas e latentes da política de War on Drugs In reAle Junior Miguel coord Drogas aspectos penais e criminológicos Rio de Janeiro Forense 2005 p 12 217 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente maniqueísta em que as drogas devem ser extirpadas do mundo O segundo caractere é a busca pela obtenção de um consenso entre os governos nacionais perceptível pelo estabelecimento de fórmulas que procuram rotular a questão das drogas como um problema mundial uniforme91 Por fim temse o interesse manifesto de harmonização legislativa entre todos os países que assinaram o tratado sendo nada mais que uma decorrência do segundo Não se pode olvidar por óbvio que as ações estadunidenses foram muito além da mera influência política para adoção de normas Não cabe tratar neste momento das operações conjuntas e secretas entre o governo estadunidense e as ditaduras militares instaladas em vários países da América Latina Somente a título exemplificativo cabe citar uma série de documentos que foram vazados no sítio virtual Wikileaks que traz detalhes das operações organizadas pela Drug Enforcement Administration em conjunto com a Polícia Federal brasileira Em território nacional a agência estrangeira realizou prisões deportações ilegais além de torturas participando ativamente da Operação Condor92 42 o estado brasileiro e seu cidadãoinimigo O discurso da War on Drugs é consubstanciado no Brasil através da adoção proibicionista de política pública de combate às drogas Este posicionamento se apresenta na ideia do não uso Não há gradação nem flexibilização quanto à quantidade ou natureza da substância o uso é proibido em qualquer circunstância Esse discurso acaba por legitimar modelos jurídicos como o que se encontra na Lei 113432006 que ainda trata o usuário como criminoso de forma que em comparação à legislação anterior houve somente a retirada da pena privativa de liberdade Esse modelo acaba por gerar por conseguinte o processo de 91 Idem ibidem 92 Opera Mundi Wikileaks relata operações ilegais do DEA com PF brasileira durante ditadura Disponível em httpoperamundiuolcombrconteudonoticias28257 wikileaksrelataoperacoesilegaisdodeacompfbrasileiraduranteditadura shtml Acesso em 22 jun 2013 218 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA demonização das drogas na sociedade brasileira Além de estabelecer um julgamento moral sobre os entorpecentes e sobre quem se relaciona com ele provocando profundas cisões entre os membros de uma mesma sociedade alimenta uma série de violências correlatas ao tráfico O comércio de drogasisoladamente não traz nenhuma ação violenta não somente no sentido físico mas mesmo no sentido psíquico já que quem compra o faz por livre vontade não gerando nenhuma espécie de lesão A questão reside na insistência de manter tanto o tráfico quanto o consumo na categoria de crime e nas suas consequências Primeiramente observase que uma série de recursos estatais que poderia ser destinada a qualquer outra meta social traçada pelo governo acaba por ser realocada para o combate às drogas Ou seja o argumento que aqui se levanta é puramente econômicoutilitarista Num Estado que possui uma Constituição de cunho programático e que detém uma série de objetivos a serem traçados como a valorização da dignidade humana e a erradicação da pobreza os gastos gerados pela War on Drugs somente afastam ainda mais o país do ideal traçado pela Carta de 1988 O segundo ponto é o surgimento de violências colaterais à política proibicionista Surgem embates territoriais entre traficantes o aumento da corrupção dentro do aparato estatal policial lavagem de dinheiro tráfico de armas corrupção de menores e assim por diante Retirando a proibição das drogas derrubase todo o esqueleto fático que mantém essa cadeia criminal Além disso retirando o caráter bélico do tratamento dado pelo aparato estatal abrese a possibilidade de discutir inclusive modelos de polícia que estejam mais alinhavados com um Estado Democrático como por exemplo o modelo de polícia comunitária93 As camadas sociais menos afortunadas acabam por sofrer ainda mais com os efeitos da política bélica adotada pelo Brasil O processo de estigmatização alimentado pelos estereótipos cultural moral e geopolítico contribui para o aumento da vulnerabilidade dos cidadãos mais pobres94 Em um critério diferenciador entre traficante 93 zAccone Orlando serrA Carlos Henrique Aguiar Guerra é paz os paradoxos da política de segurança de confronto humanitário In bAtistA Vera Malaguti org Criminologia de cordel Rio de Janeiro Revan 2012 p 25 94 Neste sentido cabe ressaltar a obra zAFFAroni Eugenio Raúl Em busca das penas perdidas a perda de legitimidade do sistema penal Trad Vânia Romano Pedrosa e 219 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente e usuário poroso como o adotado pela lei brasileira em que não há critérios objetivos as já citadas características do ator acabam sendo um relevante fator para o recrudescimento penal contra o padrão da pessoa jovem negra moradora da periferia dos grandes centros O que é mero porte para consumo em casas de shows de alto padrão pode ser entendido como tráfico de entorpecentes na favela ao lado Quanto à legislação temse o efeito da dobra de legalidade Os principais artigos da atual lei de entorpecentes Lei 113432006 possuem núcleos verbais iguais ou muito próximos Essa falha de técnica legislativa não seria tão grave se houvesse à disposição um critério objetivo para diferenciar o usuário art 28 do traficante art 3395 A vantagem do critério objetivo como o adotado em Portugal96 em que se verifica a quantidade de droga encontrada com a pessoa é que ainda que haja o risco de um traficante ser encaixado como usuário um usuário nunca será taxado erroneamente como traficante Na quantidade acima do estipulado normativamente cabe ao Estado produzir provas de que o tóxico encontrado não se destina ao consumo mas ao comércio A adoção de critérios não Amir Lopes da Conceição 5 ed Rio de Janeiro Revan 2001 em que o autor comenta que um dos fatores deslegitimantes do Direito Penal é justamente a seletividade por ele produzida O pobre não é somente vulnerável do ponto de vista econômico mas também sob a óptica da atuação estatal em que os agentes policiais terão um tratamento diferenciado em relação ao sujeito partindo preconcepções as quais com a mudança do sujeito ou da localidade por exemplo da apreensão do tóxico não existiriam 95 O art 28 da Lei 113432006 que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas estabelece que haverá crime quando o agente adquirir guardar tiver em depósito transportar ou trouxer consigo para consumo pessoal drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar Por sua vez o art 33 do mesmo dispositivo legal que prevê o tráfico de drogas traz a seguinte redação Importar exportar remeter preparar produzir fabricar adquirir vender expor à venda oferecer ter em depósito transportar trazer consigo guardar prescrever ministrar entregar a consumo ou fornecer drogas ainda que gratuitamente sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar Observase portanto identidade dos núcleos verbais componentes do tipo Esta situação acaba por ser mal resolvida na redação do 2º do art 28 Para determinar se a droga destinavase a consumo pessoal o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida ao local e às condições em que se desenvolveu a ação às circunstâncias sociais e pessoais bem como à conduta e aos antecedentes do agente 96 Assim afirma o item 2 do art 2º da Lei 302000 Para efeitos da presente lei a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias 220 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA objetivos como assim procede a lei pátria leva a uma série de injustiças além de consolidar o direito penal de autor No Direito brasileiro esta diferenciação se mostra ainda mais delicada quando se leva em consideração aspectos como a quantidade e o tipo de pena aplicada possibilidade de prisão processual classificação como crime hediondo e assim por diante Há portanto e paradoxalmente também um vazio de legalidade Surge uma questão prática de quem decide se se trata de tráfico ou de porte para consumo Ainda que a lei no art 28 2º fale em juiz é certo que quem realiza o primeiro julgamento é o delegado de polícia que assina os autos e que pode requerer a prisão processual do suspeito Outra consequência é o fenômeno do superencarceramento O Brasil já possui uma população carcerária que ultrapassa mais de 500 mil pessoas e ainda com dados inconclusos uma vez que nem todos os estados possuem um sistema de contagem de detentos eficaz e suficiente É o país com a quarta maior população carcerária perdendo somente para Estados Unidos China e Rússia países cujos sistemas penais não são conhecidos por seus valores democráticos Da população de homens presos cerca de 25 o estão por conta do tráfico de entorpecentes Quando se analisam os dados referentes às mulheres o resultado é hiperdimensionado e mostra que metade delas está reclusa pelos crimes de tráfico nacional ou internacional97 O proibicionismo legitima ainda políticas públicas de viés médicosanitário de internação mesmo sem o consentimento do paciente o que somente contribui para sua estigmatização e sua exclusão social Vale notar que as instituições de internação para viciados apesar de toda a luta antimanicomial ocorrida no Brasil acabam por ter os mesmos fins dos hospitais antes do século XVIII Conforme ensina foucault98 o hospital que funcionava desde a Idade Média na Europa não era concebido de forma alguma para curar Antes do século XVIII o hospital era entendido como uma instituição de assistência mas também de separação e exclusão O 97 Dados do Censo Penitenciário realizado pelo Ministério da Justiça em 2011 retirados de cArvAlho Salo de op cit p 251 98 FoucAult Michel Microfísica do poder Trad e org Roberto Machado Rio de Janeiro Graal 1979 p 100102 221 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente pobre dada sua condição precisa de assistência e como doente é perigoso Assim o hospital deve estar pronto tanto para recolhê lo quanto para proteger os demais do perigo que ele encarna O personagem ideal deste cenário não é doente que precisa de cura mas o pobre que está em vias de morrer Se se pensar na ideia de bauman de que a exclusão da sociedade também é uma das formas de morte a comparação aqui apresentada se mostra ainda mais pertinente99 O traficante de drogas dentro deste contexto é visto como um inimigo da sociedade como aquele que traz e espalha a perdição na sociedade Assim sendo deve ser por ela excluído Afirma zaffaroni100 A essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o Direito lhe nega sua condição de pessoa Ele só é considerado sob o aspecto de ente perigoso ou daninho Por mais que a ideia seja matizada quando se propõe estabelecer a distinção entre cidadãos pessoas e inimigos não pessoas fazse referência a seres humanos que são privados de certos direitos individuais motivo pelo qual deixaram de ser considerados pessoas e esta é a primeira incompatibilidade que a aceitação do hostis no direito apresenta com relação ao princípio do Estado de Direito Assim é possível afirmar que o Direito Penal do Inimigo é o principal arcabouço teóricojurídico de recrudescimento penal contra o comerciante Ignorase o fato de o traficante ser alguém com capacidade de modificar o meio em que vive principalmente quando percebe que não há outro modo de se integrar aos objetivos consumeristas impostos pela sociedade Este fator se torna ainda mais evidente quando se tem em mente que o traficante é um dos maiores interessados no proibicionismo A partir do momento que as drogas passam a ser regulamentadas o traficante volta a ser um excedente social101 Ou seja criase um sistema perverso de exclusão 99 bAumAn Zygmund op cit 2008 p 10 100 zAFFAroni Eugenio Raúl O inimigo no direito penal Trad Sergio Lamarão 3 ed Rio de Janeiro Revan 2011 p 18 101 Neste sentido rAmos Beatriz Vargas Direito ao dissenso In bAtistA Vera Malaguti org Criminologia de cordel Rio de Janeiro Revan 2012 p 19 222 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA do sujeito com a imposição de barreiras às quais ele nunca conseguirá passar dadas as circunstâncias impostas pela própria sociedade e pelo Estado e quando ele consegue encontrar algum modo de subsistência e de aproximação dos valores apregoados é taxado de criminoso e todo um aparato estatal contra ele se volta salo de carvalho trata de três tendências políticocriminais contemporâneas que vão ao sentido da criminalização dos entorpecentes102 A primeira tendência seria o Movimento de Lei e Ordem que muito resumidamente seria uma política que reivindica alta punibilidade às graves ofensas a bens jurídicos coletivos sobretudo contra a pessoa e contra o patrimônio Aqui entendendose que o tráfico de drogas seria um grave crime contra a saúde pública exigese um severo rigor em sua retribuição A segunda política seria a política da Tolerância Zero em que se prega intensa repressão à chamada criminalidade de rua por meio de processos de higienização social a partir de normas penais sancionadoras de pequenos comportamentos individuais Tratase de um pensamento concebido da ideia das janelas quebradas em que os espaços públicos possuiriam um caráter sagrado e que o distúrbio no qual se comprazem as classes pobres é terreno natural do crime103 Combatemse os pequenos delitos cotidianos para que grandes patologias criminais sejam recuadas Desta forma não somente pequenas delinquências são combatidas com maior repressão tanto da polícia quanto do Judiciário mas também os pobres que ocupam praças e terrenos públicos passam a ser perseguidos visando uma higienização visual e espacial e incutir a sensação de que o Estado se faz presente em toda a cidade Por fim carvalho inspirado em maria Karam trata da esquerda punitiva como terceiro movimento de expansão penal sobre as drogas Grupos tradicionalmente atrelados a movimentos sociais passam a demandar a partir de década de 1980 uma maior resposta penal do Estado no intuito de defender seus próprios interesses Eles exigiriam a formulação de regras gerais que fossem condizentes a suas convicções mostrariam desinteresse caso o 102 cArvAlho Salo de op cit p 177 103 shecAirA Sérgio Salomão Criminologia 2 ed São Paulo RT 2008 p 331 223 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente meio penal fosse injusto e optariam pela utilização simbólica do instrumento repressivo104 Neste ponto atestase discordância com o pensamento de carvalho Como já exposto é verdade que buscando defender pautas que dizem respeito somente a seus próprios interesses não importando as consequências de uma resposta penal para o distúrbio social grupos de pressão especializados valendose dos termos de ripollés demandam por uma expansão do direito penal em assuntos determinados Todavia acreditase aqui que a expressão gestores atípicos da moral empregada por silva sánchez pode ser usada para descrever grupos não somente de esquerda mas também de direita e este parece ser o caso neste tópico sobre entorpecentes Além disso há de ser feita uma análise mais detida em relação a cada instituto penal a que se faz referência Tratase de verificação de um racional uso do Direito Penal uma vez que por vezes determinadas condutas que antes sequer imaginavamse possíveis hodiernamente podem vir a receber uma legítima repressão penal Nem todo aumento do Direito Penal deve ser entendido como uma expansão ilegítima105 Todavia não é este o caso aqui A incriminação dos tóxicos sempre esteve muito mais atrelada a uma reação conservadora que realmente a de movimentos de esquerda A estes o tema das drogas quase não lhes diz respeito salvo na ideia justamente contrária de sua descriminalização por se tratar de uma liberdade individual que cabe ao Estado garantir em vez de cercear por meio de seu viés paternalista Ademais não se é possível afirmar que se trata de um movimento de política criminal por lhes faltar um pensamento coeso de atuação estratégica estatal Demandase por expansão do direito penal mas não se trata de um modelo de política que o Estado adota para combater comportamentos indesejados Portanto se o Movimento de Lei 104 cArvAlho Salo de op cit p 180 105 Neste sentido afirmase que Por via de regra os quadros axiológicos não acompanham o ritmo das realizações científicas provocandose assim verdadeiros vazios normativos cujo preenchimento poderá eventualmente ter de contar com o concurso do direito penal diAs Jorge de Figueiredo AndrAde Manuel da Costa op cit p 436 224 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA e Ordem e a Tolerância Zero podem ser sim entendidos como políticas criminais de repressão a qualquer conduta relacionada aos entorpecentes o mesmo não se pode afirmar da dita esquerda punitiva entendendo ser mais apropriado acrescentar a já abordada concepção de direito penal do inimigo em que o Estado deliberadamente exclui uma série de garantias de toda sorte daqueles que não são mais vistos como cidadãos dignos de tanto Temse portanto que A indistinta proteção dos direitos humanos de todos é interpretada por Jakobs como a indistinta proteção a todos que cumpram a obrigação conforme o modelo da sociedade O comportamento perigoso à constituição da sociedade é o momento de diferenciação entre aquele que permanece cidadão e aquele outro que é qualificado como inimigo106 Do ponto de vista dogmáticopenal justificase a criminalização pela tutela do bem jurídico saúde pública Aqui tornase ainda mais evidente a crise gerada pela ausência de critérios suficientes para definir o que seria droga lícita da ilícita Uma vez sendo o intuito a proteção da saúde pública com muito mais razão outras substâncias haveriam de ser proibidas o que não parece de modo algum razoável Nesse sentido interessante notar alguns dados relativos ao álcool107 que é substância legalmente permitida com algumas restrições em quase todos os países do mundo a Tratase da droga mais utilizada entre jovens e menores de idade b é a substância mais associada a comportamentos violentos como agressão física estupro assaltos etc c em 70 dos laudos cadavéricos de mortes violentas consta a presença do álcool d é responsável por 90 das internações hospitalares por dependência Ou seja pelos breves dados aqui apontados observase que o 106 sAAddiniz Eduardo Inimigo e pessoa no direito penal São Paulo LiberArs 2012 p 126 107 mAcFArlAne Aidan et al Que droga é essa 2 ed São Paulo Ed 34 2012 p 111 225 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente álcool possui um efeito muito mais nocivo à sociedade que as demais drogas Ademais quando se trabalha com um percentual de 90 das internações por dependência é possível afirmar que se trata de uma substância que se aproxima muito mais da ideia de epidemia do que as demais drogas que o discurso médicosanitarista tenta fazer parecer Obviamente não se busca em medida alguma advogar pela proibição de todas as substâncias mas somente demonstrar como o discurso se encontra falho O consumo de drogas ou seu porte para tanto é o único caso em que a vítima coincide com o agressor sendo que não cabe ao Direito Penal tutelar autolesão Quanto ao tráfico como já referido não é uma conduta violenta em si de forma que as violências decorrentes dele são resultado de sua própria proibição a despeito dos potenciais danos à saúde individual decorrentes do consumo da droga não é possível estabelecer a integridade física eou psíquica do consumidor como bem jurídico digno de tutela na hipótese Com efeito a pretensão de tutela penal da saúde ou integridade do agente contra sua própria vontade e interesse configuraria paternalismo penal intolerável no âmbito de um Estado Democrático que toma os cidadãos como autorresponsáveis e capazes de eleger os caminhos do próprio desenvolvimento pessoas por uma perspectiva pluralista Bem por isso o modelo moral de abstinência não pode ser juridicamente imposto como concepção correta de vida108 Observase portanto de tudo acima exposto que o modelo dogmático proibicionista possui como fundamentação tão somente critérios morais de uma determinada classe cujos interesses acabam por prevalecer graças a uma complexa relação de poderes que acaba por inviabilizar o aceitamento de políticas não proibicionistas Não é possível admitir um modelo penal cujo bem jurídico tutelado é a moral Um Estado Democrático de Direito irá se distinguir dos demais modelos pela tutela de interesses de minorias sociais e não 108 bechArA Ana Elisa Liberatore Silva Da teoria do bem jurídico como critério de legitimidade do direito penal 464 p Tese LivreDocência em Direito Faculdade de Direito Universidade de São Paulo São Paulo 2010 p 342 226 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA pela prevalência da vontade da minoria numérica que se encontra no poder Um Direito Penal que acolha para si questões de ordem ética será um Direito conservador e obstáculo às transformações sociais de toda natureza109 No que tange a uma política criminal que seja condizente com os postulados democráticos do Direito Penal ainda que isso possa parecer uma contradição em termos louk hulsman110 traça alguns critérios para que seja adotada uma política minimalista Os critérios absolutos podem ser divididos em quatro O primeiro determina que uma política criminal não se deve pautar no desejo de tornar dominante determinado comportamento sob certa moral Desta forma há de buscar um mínimo racional quando do planejamento das medidas a serem tomadas para que o Direito Penal não extrapole sua função de ultima ratio O segundo critério estabelece que não deve sob hipótese alguma a política se servir de um sistema de tratamento de delinquente em potencial ou seja o Direito Penal não pode se antecipar a condutas que nem se há certeza de que podem vir a ser delituosas111 O terceiro critério e este é sensível no que diz respeito à questão penitenciária que assola o país é que não se deve sobrecarregar a capacidade real do sistema administrativo de controle Porém isto não cabe somente à capacidade de contenção de pessoas pelo Estado mas também toda a estruturação do Judiciário Por fim o Direito Penal e as políticas correlatas a ele não podem servir como resposta aos problemas sociais seja lá de qual natureza eles sejam Junto a esses critérios absolutos hulsman ainda traça critérios não absolutos ou contraindicações Destes é válido ressaltar dois a se a conduta fosse típica de grupos socialmente débeis o que é bastante raro dada a seletividade nata do sistema penal além da condição de miséria que a 109 bechArA Ana Elisa Liberatore Silva op cit p 347 110 Apud cArvAlho Salo de op cit p 231 111 Luigi Ferrajoli por sua vez tratará da questão do Direito Penal Mínimo sob o viés de limitação da atuação estatal sob a óptica de seus dez axiomas do garantimso penal O segundo critério de Hulsman pode por exemplo ser visto nos axiomas nulla poena sine crimine nullum crimen sine lege nulla lex poenalis sine necessitate e nulla necessitas sine injuria cf FerrAJoli Luigi Derecho y razón Teoría del garantismo penal Madri Trotta 1995 p 93 227 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente pessoa enfrenta quando da decisão de entrar para o tráfico de entorpecentes e b se o ato apresentasse dificuldade em ser precisamente definido o que parece também relevante uma vez que não há critérios objetivos para a definição de o que viria a ser tráfico e o que viria a ser consumo além da própria definição de o que seria uma substância lícita ou ilegal atualmente determinada por normas administrativas de critérios questionáveis agravando a problemática da norma penal em branco Por fim cabe apontar que alguns autores ainda advogam no sentido de que existiria um direito individual às drogas ou um direito individual de autointoxicação Num Estado Democrático o Estado não poderia ter a prerrogativa de estabelecer o que a cada cidadão é permitido consumir Se as drogas sempre fizeram parte da história humana e se se está diante de uma sociedade cada vez mais plural cada cidadão deveria possuir a prerrogativa de consumir o que desejar112 5 conclusões E mbora se proteste por uma política estatal que não trate a questão dos entorpecentes como crime é certo que se está diante de um desejo que pela atual formatação dos nossos aparelhos políticos e estatais ainda está distante da atual conjuntura Desta forma dentro do sistema que é apresentado as estratégias para o aumento da racionalidade no que tange às drogas se concentram em duas dimensões de um lado num plano dogmático penal crítico cabe ao juiz delimitar o alcance da lei com julgados que impeçam ao máximo a intervenção penal da esfera da vida privada do acusado de outro com a adoção de políticas públicas que visem à prevenção e à redução de danos respeitando a autonomia do usuário e as necessidades de seus dependentes É certo que existem algumas respostas possíveis para a 112 Neste sentido szAsz Thomas Our Right to Drugs New York Syracuse University Press 1996 escohotAdo Antonio Aprendiendo de las drogas Barcelona Anagrama 2006 228 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA problemática das drogas O proibicionismo por tudo que já foi aqui mostrado é uma estratégia falida que acaba por gerar ainda mais danos sociais e atende somente aos interesses de algumas camadas da sociedade que se encontram em núcleos emanadores de poder113 Das saídas não proibicionistas a mais adequada parece a estratégia de normalização114 Há de se adotar medidas que sejam plausíveis conforme o cenário em que a sociedade se encontra bem como de acordo com o ideal de liberdade individual que é garantia mínima de qualquer Estado regido por um ordenamento jurídico democrático Imaginar que algo que sempre foi da natureza do próprio ser humano deixará de existir com adoção de um mecanismo reconhecidamente falho que é o Direito Penal deixa de ser utópico e adentra na categoria da ingenuidade Por outro lado a ingenuidade não é uma característica a ser verificada quando dos entorpecentes Repetese estáse diante de um jogo de poderes com os quais aqueles que buscam uma sociedade materialmente igualitária não podem coadunar Assim o Estado deve adotar medidas realistas que em vez da completa proibição que gera todos os danos já aqui abordados caminhem no sentido de uma despenalização controlada115 de forma que os entorpecentes passem a ser vistos como elementos cotidianos e não com a barreira do preconceito e da ignorância Tratase do que já ocorre hoje com as substâncias lícitas Todos seus efeitos maléficos tanto individualmente quanto 113 São precisas as palavras de Maria Lucia Karam neste sentido O que dita esta decisão política não é como se divulga a proteção dos indivíduos mas sim a obtenção de uma disciplina social que resulte funcional para a manutenção e a reprodução dos valores e interesses dominantes em uma dada formação social Cf Redução de danos ética e lei Os danos da política proibicionista e as alternativas compromissadas com a dignidade do indivíduo In sAmPAio Christiane Moema Alves cAmPos Marcelo Araújo orgs Drogas dignidade e inclusão social a lei e a prática de redução de danos Associação Brasileira de Redutores de Danos 2003 p 4597 p 45 114 Cf de lA cuestA José Luis Es posible la normalización de las drogas Perspectiva jurídicopenal In Drogas Sociedad y Ley avances en drogodependencias Bilbao Universidad de Deusto 2003 115 berAstegi Xabier Arana Drogas legislaciones y alternativas De los discursos de las sentencias sobre el tráfico ilegal de drogas a la necesidad de políticas diferentes San Sebastián Gakoa 2012 p 365 229 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente socialmente são conhecidos mas ainda assim o consumo não se encontra vetado Antes o comércio e uso são regulamentados de forma que os danos mesmo que não totalmente são mais controlados que aqueles gerados pela política atual antidrogas Não se trata de uma plena e irrestrita liberalização mas de uma medida de respeito à autodeterminação de cada indivíduo sem que se ignorem os efeitos negativos que os entorpecentes possam vir a trazer encarando verdadeiramente como questão de saúde pública sem nenhum viés demagógico Uma das questões fundamentais para a adoção da política de normalização é a sua desideologização116 Todos os aspectos morais e religiosos devem ser deixados de lado afastandose ao máximo de um paternalismo penal Em um Estado Democrático de Direito o controle de entorpecentes deve ser feito com pleno respeito aos direitos individuais dos cidadãos de sua personalidade bem como sua privacidade Hão de ser tomadas medidas de forma progressiva para que as drogas sejam encaradas como elementos inerentes a nossa sociedade e não como destruidores de valores tradicionais Devese romper com o tabu gerado em torno dos entorpecentes abrindo para a sociedade um debate racional que busque uma maior harmonização entre seus membros e não o aprofundamento das disparidades sociais Estamos diante de uma sociedade composta de indivíduos capazes de tomar suas próprias decisões inclusive a de autointoxicação Tratase ainda de uma medida de convalidação da soberania estatal em que o Estado adota sua política de drogas conforme seus próprios interesses e suas próprias características culturais e sociais fragmentado do cenário político de interesse dos países capitalistas centrais bem como a retomada de controle sobre as atividades que ocorrem dentro de seu próprio território Impede se em outras palavras o surgimento de estados paralelos que acabam por suprir as lacunas deixadas pelo governo nacional Somase a isto o fato de a retirada do Direito Penal desta matéria gerar um semnúmero de benefícios no sentido de redução de 116 berAstegi Xabier Arana op cit p 375 230 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA seus efeitos secundários como por exemplo a possibilidade de uma melhor educação da população a respeito das drogas o enfraquecimento do crime organizado a redução das violências correlatas advindas do tráfico a lavagem de dinheiro etc Não por outro motivo o primeiro ponto apresentado por Arana berastegi para adoção da política pública moldada na normalização é a constatação de que el control social de las drogas no debe pretender impedir su consumo sino buscar formas de gestión que minimicen sus aspectos negativos y maximicen los positivos117 A política de redução de danos se mostra como um fundamental elemento dentro de uma política normalizadora e abolicionista penal a longo prazo como uma estratégia pragmática e humanista que não visa ao fim do consumo por parte do usuário e sim melhorar sua qualidade de vida A distribuição de flyers sobre um consumo consciente a adoção de terapias de substituição por drogas mais leves e mesmo a distribuição de substâncias diversas que reduzem o risco de overdose118 somente para elencar alguns exemplos apresentamse alternativas muito mais salutares socialmente do que as atuais medidas de internação e de agravamento da exclusão social119 Contribuem ainda com a quebra do paradigma usuário inimigo que paira sobre a questão que impede a adoção de uma política pública que beneficie a todos 6 referências bibliográficas Ambos Kai Control de drogas política y legislación en América Latina EEUU y Europa eficacia y alternativas Bogotá Gustavo Ibañez 1998 Antunes Eleonora Haddad bArbosA Lúcia Helena Siqueira PereirA Lygia Maria de França Psiquiatria loucura e arte fragmentos da história brasileira São Paulo Edusp 2002 bAumAn Zygmunt Medo líquido Trad Carlos Alberto Medeiros Rio de Janeiro Zahar 2008 Modernidade líquida Trad Plínio Dentzien Rio de Janeiro Zahar 2003 beck Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Trad Sebastião 117 Idem p 365 118 mesquitA Fábio A perspectiva da redução de danos Boletim IBCCRIM edição especial out 2012 119 kArAm Maria Lucia op cit p 9497 231 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente Nascimento 2 ed São Paulo Ed 34 2011 bechArA Ana Elisa Liberatore Silva Da teoria do bem jurídico como critério de legitimidade do direito penal 464 p Tese LivreDocência em Direito Faculdade de Direito Universidade de São Paulo São Paulo 2010 berAstegi Xabier Arana Drogas legislaciones y alternativas De los discursos de las sentencias sobre el tráfico ilegal de drogas a la necesidad de políticas diferentes San Sebastián Gakoa 2012 Boletim Ibccrim ano 20 edição especial out 2012 bruns Karl Georg Mommsen Theodor Gradenwitz Otto Fontes iuris romani leges et negotia v 1 7 ed Tübingen Mohr 1909 código de éticA médicA São Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo 2009 cArvAlho Salo de A Política criminal de drogas no Brasil estudo criminológico e dogmático da Lei 1134306 6 ed São Paulo Saraiva 2013 conrAd Peter The medicalization of society on the transformation of human conditions into treatable disorders Baltimore The Johns Hopkins University Press 2007 de lA cuestA José Luis Es posible la normalización de las drogas Perspectiva jurídico penal In Drogas Sociedad y Ley avances en drogodependencias Bilbao Universidad de Deusto 2003 diAs Jorge de Figueiredo Andrade Manuel da Costa Criminologia o homem delinquente e a sociedade criminógena Coimbra Coimbra Editora 1997 duArte Danilo Freire Uma breve história do ópio e dos opioides Revista Brasileira de Anestesiologia Rio de Janeiro v 55 n 1 p 135146 janfev 2005 escohotAdo Antonio Aprendiendo de las drogas Barcelona Anagrama 2006 FerrAJoli Luigi Derecho y razón Teoría del Garantismo Penal Madri Trotta 1995 FoucAult Michel Microfísica do poder Trad e org Roberto Machado Rio de Janeiro Graal 1979 giberti Eva Esbozo de fundamentación Estrategias de legitimación Medios de comunicación y los usuários de drogas In cuñArro Mónica org La política criminal de la droga Buenos Aires AdHoc 2010 gonzAgA João Bernardino Entorpecentes aspectos criminológicos e jurídicopenais São Paulo Max Limonad 1963 greco Filho Vicente Tóxicos prevenção repressão 10 ed São Paulo Saraiva 1995 hAustein KnutOlaf groneberg David Tobacco or health physiological and social damages caused by tobacco smoking Springer Library of Congress 2010 honneth Axel Observações sobre a reificação Civitas Revista de Ciências Sociais Porto Alegre v 8 n 1 kArAm Maria Lucia Redução de danos ética e lei Os danos da política proibicionista e as alternativas compromissadas com a dignidade do indivíduo In sAmPAio Christiane Moema Alves cAmPos Marcelo Araújo orgs Drogas dignidade e inclusão social a lei e a prática de redução de danos Associação Brasileira de Redutores de Danos 2003 kArch Steven B A Brief History of Cocaine 2 ed Boca Raton Taylor Francis 2006 232 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA knight Robert G Longmore Barry E Clinical neuropsychology of alcoholism East Sussex Lawrence Erlbaum Associates Publishers 1994 lArAnJeirA Ronaldo et al Usuários de substâncias psicoativas abordagem diagnóstico e tratamento São Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo Associação Médica Brasileira 2003 loe Meika The rise of the Viagra how the little blue pill changed sex in America New York New York University Press 2004 mAcFArlAne Aidan et al Que droga é essa 2 ed São Paulo Ed 34 2012 mArlAtt G Alan donovAn Denis M Prevenção de recaída estratégias de manutenção no tratamento de comportamentos aditivos 2 ed Porto Alegre Artmed 2005 mesquitA Fábio A perspectiva da redução de danos Boletim IBCCRIM edição especial out 2012 mommsen Theodor Römisches Strafrecht Leipzig Duncker Humblot 1899 Michaelis moderno dicionário da língua portuguesa Disponível em wwwmichaelisuol combr Acesso em 13 jun 2013 PArliAment House Of Commons Drug classification making a hash of it Great Britain Science and Technology Committee 2006 Disponível em wwwbooksgooglecom olmo Rosa del A face oculta da droga Rio de Janeiro Revan 1990 rAmos Beatriz Vargas Direito ao dissenso In bAtistA Vera Malaguti org Criminologia de cordel Rio de Janeiro Revan 2012 reghelin Elisangela Melo Redução de danos prevenção ou estímulo ao uso indevido de drogas injetáveis São Paulo RT 2002 ribeiro Maurides de Melo Políticas públicas e a questão das drogas o impacto da política de redução de danos na legislação brasileira de drogas Dissertação de mestrado em Direito Penal Medicina Forense e Criminologia Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo 2007 ribeiro Sidarta mAlcherloPes Renato menezes João R L Drogas e neurociências Boletim IBCCRIM edição especial out 2012 riPollés José Luiz Díez A racionalidade das leis penais teoria e prática Trad Luiz Regis Prado São Paulo RT 2005 sAAddiniz Eduardo Inimigo e pessoa no direito penal São Paulo LiberArs 2012 sAllA Fernando Jesus Maria Gorete Marques de rochA Thiago Thadeu Relato de uma pesquisa sobre a Lei 113432006 Boletim IBCCRIM edição especial out 2012 shecAirA Sérgio Salomão Criminologia 2 ed São Paulo RT 2008 Criminologia 3 ed São Paulo RT 2011 sicA Leonardo Funções manifestas e latentes da política de War on Drugs In Reale Junior Miguel coord Drogas aspectos penais e criminológicos Rio de Janeiro Forense 2005 silvA sánchez JesúsMaría A expansão do direito penal aspectos da política criminal nas sociedades pósindustriais Trad Luiz Otavio de Oliveira Rocha 2 ed rev e ampl São Paulo RT 2011 silveirA Renato de Mello Jorge Drogas e política criminal entre o direito penal do inimigo 233 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente e o direito penal racional In reAle Júnior Miguel org Drogas aspectos penais e criminológicos Rio de Janeiro Forense 2005 szAsz Thomas Our Right to Drugs New York Syracuse University Press 1996 vArellA Drauzio Estação Carandiru São Paulo Companhia das Letras 2000 Wills Simon Drugs of abuse 2 ed London Pharmaceutical Press 2005 young Jock Mass Media Drugs and Deviance In Rock Paul Mcintosh Mary Deviance and Social Control Londres Tavistock 1974 zAccone Orlando serrA Carlos Henrique Aguiar Guerra é paz os paradoxos da política de segurança de confronto humanitário In Batista Vera Malaguti org Criminologia de cordel Rio de Janeiro Revan 2012 zAFFAroni Eugenio Raúl Em busca das penas perdidas a perda de legitimidade do sistema penal Trad Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição 5 ed Rio de Janeiro Revan 2001 O inimigo no direito penal Trad Sergio Lamarão 3 ed Rio de Janeiro Revan 2011 PierAngeli José Henrique Manual de direito penal brasileiro parte geral Vol 1 7 ed rev e atual São Paulo RT 2007 reflexões sobre As políticAs de drogAs1 Sérgio Salomão Shecaira Professor Titular de Direito Penal da Universidade de São Paulo Expresidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais sumário 1 Premissa 2 Enfoque epistemológico 3 A caminho da normalização 4 Experiências de normalização 5 Nota conclusiva 6 Referências bibliográficas 1 premissa A proibição das drogas é um sistema global de poder estatal Parafraseando durkheim a proibição das drogas é um fato social É uma realidade que existe queiramos reconhecêla ou não mas que traz suas consequências reais e seus efeitos reais Toda a discussão sobre o tratamento políticocriminal das drogas esbarra em normas internacionais muito estritas que dificilmente poderão ser modificadas em um curto prazo Isso cria uma infinidade de 1 O presente artigo foi originalmente preparado como uma conferência proferida no mês de novembro de 2012 no Congresso Internacional da Sociedade Internacional de Defesa Social 236 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA problemas em níveis locais fazendo com que os diferentes países procurem soluções tópicas para as medidas estritamente repressivas e de proibição das drogas Para que se tenha em conta a dimensão do problema basta que comparemos dois dos cinco países que mais encarceram no mundo O Brasil quarto no ranking de encarcerados tem 514000 pessoas presas Dessas 143302 foram processadas por tráfico de drogas Vale dizer mais de 35 dos encarcerados no Brasil cometeram esse crime Os EUA país que mais propala ser o país da liberdade tornouse aquele que tem o maior número de presos do planeta lá a situação é ainda pior especialmente porque também há a fixação de pena privativa de liberdade por porte da droga Os dados são assustadores Dos 2500000 de encarcerados 1600000 cometeram crimes associados a drogas São 64 do total O curioso é que desde os anos 20 do século passado quando começa a existir um sistema internacional de controle das drogas a proibição transcende às ideologias e aos regimes políticos Os nazistas alemães e os fascistas italianos adotaram a proibição da mesma forma que os regimes democráticos da época Na China desde há muito os mandarins os militares os capitalistas e os comunistas adotaram a proibição Os soviéticos com seu rígido sistema punitivo enviavam os traficantes aos Gulags Parece que a volta para o sistema capitalista não mudou a mentalidade punitiva O generais populistas da América Latinha e os intelectuais anticolonialistas da África pensam da mesma maneira quando se fala em repressão às drogas Por quê Por que há de ser assim A proibição das drogas deu a todo tipo de governo em todas as situações possíveis uma verdadeira carta branca para atuação de forças policiais Governos de todo o mundo utilizaram em várias situações possíveis o argumento de combate ao narcotráfico como desculpa para operações secretas que não tinham nenhuma relação com as drogas As unidades de narcóticos da polícia ou do exército podem se dirigir a qualquer lugar de forma legítima e têm liberdade para operações e incursões militares que de outra forma não poderiam ter2 Nixon caiu por erros de uma atuação paraestatal 2 levine Harry G Prohibición global de las drogas las variedades y usos de la prohibición de las drogas en los siglos XX e XXI Globalización y drogas Políticas sobre drogas derechos humanos y reducción de riesgos Madrid Dykinson 2003 p 70 237 Sérgio Salomão Shecaira de suas forças de inteligência No entanto o Czar das drogas nos Estados Unidos sempre teve liberdade e apoio das agências policiais para todo tipo de atuação escusa É muito fácil atribuir toda ordem de problemas sociais da corrupção à fraude da delinquência organizada à criminalidade patrimonial de rua da baixa produtividade à preguiça da falta de política pública à irresponsabilidade ao fenômeno do uso da heroína cocaína ou crack3 O sistema políticocriminal global pensado a partir das Convenções sobre Drogas da ONU proíbe a produção distribuição transporte venda compra e porte de algumas substâncias especificamente elencadas em listas próprias punindo tais condutas com penas prisionais As penas destinadas aos usuários são consideravelmente menores Mas muitos países continuam a enviar usuários ao cárcere como é o caso da maior parte dos Estados norte americanos ou de países muçulmanos Em alguns países até a pena capital é utilizada para o tráfico de substâncias ilícitas4 Três são os documentos básicos que regulam a matéria na esfera internacional Em 1961 a Convenção Única sobre Drogas Narcóticas da Organização das Nações Unidas5 foi assinada e o mundo inteiro se comprometeu a combater o tráfico de drogas Dez anos depois da Convenção Única em 1971 é firmada a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas que tratava de novas drogas psicodélicas produzidas sobretudo no hemisfério norte6 Em 1988 já sob influxo da uma nova onda de proibições temse o alargamento do controle do sistema com a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Drogas Enfim sucessivas ampliações internacionais das proibições e do controle ao tráfico internacional com aumento das punições são levadas a cabo e influenciam as legislações nacionais de diversos países todavia sempre sem sucesso 3 Idem p 71 4 Trinta e dois países continuam a ter pena de morte para crimes ligados ao tráfico de drogas Entre eles podemos destacar China Arábia Saudita Coreia do Sul Coreia do Norte Iraque Indonésia Irã Malásia Índia e Cuba de lA cuestA José Luis The Death penalty and drugs In zAPAtero Luis Arroyo et al org Towards the universal abolition of the death penalty Valencia Tirant Lo Blanch 2010 p 369 5 Convenção Única sobre Drogas Narcóticas Disponível em wwwundocorgbrazilpt convencoeshtml Acesso em jan 2012 6 Disponível em httpwww2mregovbrdaipsicotrC3B3picashtm Acesso em fev 2012 238 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 2 enfoque epistemológico N este passo antes de se detalharem as políticas adotadas e que são referenciais em alguns países é prudente refletir sobre o fundamento epistemológico desta discussão A análise da história da guerra às drogas põe em relevo três grandes movimentos políticocriminais O primeiro deles que é o mais primitivo podese chamar de terror intervencionista Esta estratégia caracterizase por 4 aspectos a o princípio do alienus o fenômeno da droga e seus atores são externos à sociedade de tal sorte que estes atores sociais não são vistos como parte dela7 b o princípio da agonística a ação que se adota em relação ao fenômeno das drogas é bélica A ideia reitora se situa dentro do signo do combate e a luta é contra um inimigo poderoso demandandose a utilização de muitas armas c o princípio da erradicação o combate às drogas tem uma referência hipotética em uma sociedade livre delas e não são admitidas soluções intermediárias Só há o preto e o branco com a impossibilidade de se ter outras matizações d o princípio do vale tudo todos os meios de combate são legítimos e devem ser mobilizados e o cidadão é parte dessa engrenagem podendo e devendo denunciar qualquer notícia que indique um sinal do inimigo8 A conjugação dessas ideias determina uma multiplicidade de pequenas batalhas pautadas pela fúria irracional e paixão visceral compreendem o terrorismo mediático e o envolvimento religioso maniqueísta que oscila entre o olhar divino e o diabólico exacerbam os pânicos morais as declarações ensandecidas por parte dos políticos e por fim a insanidade generalizada dos países que torram milhões em uma guerra de antemão perdida e que a experiência de cada dia está a indicar que é uma política pública cara e totalmente ineficaz O segundo movimento políticocriminal podese chamar de engenharia da química psicotrópica Nesta visão duas são as perspectivas adotadas Uma estratégia dura para o tráfico e uma branda para o consumo Para o tráfico são mantidos os princípios do 7 Uma leitura do Livro de Eugenio Raul Zaffaroni O inimigo no direito penal é totalmente aplicável ao tema 8 AgrA Cândido da Ciencia ética y arte de vivir elementos para un sistema de pensamiento crítico sobre el saber y las políticas de la droga In La seguridad en la sociedad del riesgo un debate abierto Barcelona Atelier 2003 p 201 239 Sérgio Salomão Shecaira terror intervencionista Temse o inimigo como alienus e como em qualquer combate pugnase pela exclusão agonística do traficante9 A segunda visão orientada ao usuário mantém os princípios na forma mas os altera em conteúdo Transmutase o alienus em um enfermo delinquente submetendoo a um tratamento interior por meio dos dispositivos médicolegais amparados pelas regras jurídico penais O princípio da erradicação se desloca do plano geral uma sociedade sem drogas para o individual uma vida sem drogas10 De tal sorte que como disse nancy reagan quando lhe indagaram o que um jovem deveria fazer se um traficante lhe oferecesse drogas respondeu Just say no Tudo passa a ser uma questão de vontade interior Apenas diga não E basta O princípio do vale tudo se dissimula numa linguagem técnica multidisciplinar que valoriza as divisões técnicas de intervenção prevenção tratamento e reeducação Ou seja todos os meios demandam uma prática individual de uma vida sem drogas fazendose um julgamento moral implícito sobre a decisão interior O eventual deslize será reparado pelo saber em que se faz uma reengenharia médica psicológica e principalmente social com o amparo na lei A justiça terapêutica nada mais é que uma manifestação da engenharia da química psicotrópica O terceiro movimento políticocriminal é o da intervenção mediadora Nele buscamse novas identidades em que se abandona o ideário do terror intervencionista bem como o da engenharia química psicotrópica Tal intervenção coincide com as práticas do Estado Democrático de Direito e está pautado por quatro ideias a princípio da imanência o fenômeno da droga e seus atores não são coisas estranhas ou alheias às sociedades atuais Ao contrário expressa um estado imanente ao normal funcionamento das sociedades contemporâneas b princípio da tolerância a sociedade da modernidade líquida é uma sociedade que parte da premissa da alteridade da diversidade entre pessoas grupos de pressão e classes sociais Isso impõe a todos uma atitude menos arrogante de combate às drogas fazendo com que se deva aprender a conviver com esse fenômeno c princípio do mal menor a humildade que há de se ter diante do fenômeno das drogas elimina a irreal busca do seu extermínio obrigando a todos conviverem com a ideia de uma 9 Op cit p 202 10 Idem ibidem 240 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA redução dos riscos e dos danos isto é mitigar os custos sociais e individuais ao mínimo viável princípio da irreversibilidade existem situações de consumo de drogas que são irreversíveis Essas situações exigem soluções humanitárias e éticas que contrariam tabus que dominaram o discurso punitivo do terror intervencionista e que estão a demandar novas atitudes em relação ao viciado que não passe por seu julgamento moral11 mark twain em uma provocativa assertiva aduziu A quem pertence meu corpo E a resposta foi Ele provavelmente é meu e não pertence ao Estado Se eu não o tratar judiciosamente é o Estado que vai morrer Ah não12 No entanto quando os agentes estatais privam pessoas que quando muito estão maltratando o próprio corpo do direito de sua liberdade condenandoos a uma pena grave e que afeta a toda sociedade por certo que se está diante do terror intervencionista Afinal justificar a pena privativa de liberdade para cuidar de quem não se cuida é evidentemente um ato de terror De outra parte levar quem não se cuida a um tratamento obrigatório como se fosse doente é algo típico da engenharia da química psicotrópica Isto é cuidase moralmente daquele que não quer cuidar de seu corpo 3 A caminho da normalização M uitas alternativas dentro do marco estrito do sistema de proibições pautado pelo direito internacional podem ser concebidas para minimizar os problemas acima mencionados A primeira alternativa de política criminal conhecida é a da descriminalização que não é homogênea e tem grandes variantes A palavra tem diferentes acepções mas é usada para identificar a não punição dos usuários de drogas com penas de natureza criminal Há várias formas com que se atingiram esses objetivos Em alguns casos medidas legislativas simplesmente descriminalizaram o uso de certas drogas Em outros países foi resultado de uma longa construção jurisprudencial e o mérito de tais medidas deve ser creditado à 11 Op cit p 203 12 szAsz Thomas S Drugs as property the right we rejected In Should we legalize decriminalize or deregulate New York Prometheus Books 1998 p 185 241 Sérgio Salomão Shecaira atividade dos magistrados Parte da doutrina chama tais políticas de despenalização porquanto o sistema continua a prever algum tipo de reprovação mas isso se opera apenas do âmbito administrativo com a atribuição de multas ou serviços comunitários No Brasil por exemplo se pensarmos a lei vigente temse unicamente uma descarcerização Continuase a ter um processo criminal com as consequências inerentes a uma sentença condenatória mas não se envia o condenado ao cárcere As penas previstas aos usuários são sempre alternativas Dentro de tais políticas despenalizadoras uma das especificidades é a retirada do processo judicial da esfera dos juízes Por esse procedimento chamado pela doutrina criminológica de Diversion um órgão encarregado fora do Poder Judiciário passa a aplicar medidas extrapenais para reprovação de condutas cuja repressão não é suficientemente grave para ser feita pelo sistema de controle judicial Com isso evitamse um processo estigmatizante e as consequências secundárias inerentes ao processo criminal O objetivo de todas essas propostas é o de reduzir danos para usuários e dependentes e impedir os riscos de um envolvimento mais acentuado dos adictos com grupos criminais fornecedores das drogas Com tal política os esforços são concentrados na prevenção e no combate à oferta bem como nos grupos criminais que monopolizam produção comercialização e vendas A segunda proposta alternativa sobre o tema é a chamada legalização13 Este procedimento pode ser entendido tomando por referência aquilo que existe no mundo inteiro com tabaco e álcool salvo em alguns países muçulmanos onde o álcool é geralmente ilegal Na legalização agências governamentais distintas estabelecem 13 A legalização tem sido defendida por muitos autores e organizações neoliberais O Instituto Cato mantém uma discussão muito bem estruturada com a apresentação de reportagens artigos revistas e pesquisas em que a legalização da droga é defendida Vide nesse sentido o site wwwcatoorgpubs Entre muitos trabalhos lá publicados há um substancioso artigo assinado por greenWAld Glenn The Drug Decriminalization in Portugal httpwwwcatoorgpubswtpapersgreenwaldwhitepaperpdf Quem também sistematicamente defende a legalização das drogas é a revista The Economist como o fez entre muitas oportunidades no seu Editorial de 05032009 em http wwweconomistcomnode13237193storyid13237193httpwwweconomistcom node13234157 242 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA regras para a produção o manuseio o comércio de cada substância disciplinando quem pode adquirila ou quem pode comercializála Assim p ex o álcool como droga legal pode ser legalmente vendido em bares para adultos havendo restrição para consumos de menores de idade O mesmo ocorre com remédios que só podem ser adquiridos com um receituário especial prescrito por médico autorizado Na legalização também são disciplinadas as formas de consumo seus horários ou locais O tabaco em muitos países não pode ser utilizado em prédios públicos ou recintos fechados como bares e restaurantes O principal objetivo da legalização é tentar reduzir o uso problemático das drogas e as consequências causadas pela criação de mercados ilegais Em princípio terseia um melhor controle sobre quem consome drogas podendo melhor direcionar as agências de saúde para o tratamento e a prevenção Com o sistema tradicional e inflexível de proibições é muito difícil adotar políticas públicas que permitam reduzir os danos de usuários de drogas ilícitas pesadas substituindoas por drogas menos agressivas ao organismo São comuns na Europa por exemplo políticas destinadas aos usuários de heroína com a oferta de uma substância similar porém menos agressiva que é a metadona Tais políticas necessitam em alguma medida flexibilizar o conceito de proibição estabelecido por regras internacionais e também podem ser implementadas no marco da descriminalização Como muito bem observa José luis de la cuesta não é a mesma coisa propor o acesso legal às drogas e sua legalização O acesso legal se dá quando certas pessoas ou grupo de pessoas podem ter acesso à droga sem incorrer em nenhuma ilegalidade ainda que a população em geral não possa fazêlo A legalização por seu turno total ou controlada com o monopólio estatal das drogas implica um comércio legal das mercadorias14 Em nosso sentir uma mudança radical da estratégia proibicionista parece ser indispensável Isso não significa uma renúncia a toda possibilidade de controle das drogas Ao contrário Significa fazer com que o Estado Democrático de Direito possa exercer 14 Es posible la normalización de las drogas Perspectiva jurídicopenal Drogas sociedad y ley avances en drogodependencias Bilbao Universidad de Deusto 2003 p 21 243 Sérgio Salomão Shecaira seu firme papel indutor para impedir que a saúde das pessoas seja prejudicada A sociedade continuará a exercer sua função de controlar eficazmente a produção o transporte a comercialização e uso das substâncias perigosas No Estado Democrático de Direito tal controle se faz com pleno respeito aos direitos individuais dos cidadãos sua personalidade bem como privacidade Isto pode se dar por uma liberalização progressiva que há de levar a uma redução da intensidade punitiva Junto com imprescindíveis programas gerais de prevenção de riscos e danos o sistema deve caminhar para um controle administrativo das drogas como aquele que já existe com medicamentos Um único regime jurídico pode ser implantado sem se prescindir de medidas mais imediatas como a descriminalização de drogas leves A esse processo se dá o nome de normalização15 Podese sintetizar tal política alternativa ao proibicionismo com quatro metas A primeira é que a política de drogas deve colocar em relevo a prevenção da demanda e a assistência aos consumidores tirando o foco repressivo que é inerente à atual política A segunda característica desta política é gradativamente caminhar para a não punição do comércio de drogas entre adultos Isso se consegue com um controle administrativo da produção e venda de drogas o que vem a ser a terceira meta O quarto objetivo da política de normalização é a de se punir penalmente todos aqueles que ministrarem drogas aos menores de idade ou carecedores de capacidade de decisão autônoma tão somente16 O conceito de normalização com a ideia de submeter as 15 Neste sentido vide de lA cuestA José Luis Es posible la normalización de las drogas Perspectiva jurídicopenal In Drogas Sociedad y Ley avances en drogodependencias Bilbao Universidad de Deusto 2003 p 22 de lA cuestA José LuisLa normalisation des drogues dans un état social et démocratique de droit In cesoni Maria Luisa devresse MarieSofhie orgs La détention de stupéfiants entre criminalisation et décriminalisation Academic Press Fribourg 2010 p 226 Também não se deve deixar de citar o trabalho de soto Susana Posibilidades legales conla actual legislación sobre cannabis análisis de la situación actual y propuestas para su uso normalizado In Cannabis salud legislación y políticas de intervención Madrid Instituto Internacional de Sociología Jurídica de OñatiDykinson 2006 p 1623 assim como ArAnA Xabier Cannabis normalización y legislación Eguzkilore Cuaderno del Instituto Vasco de CriminologíaSan Sebastián n 19 2005 p 131 e ss 16 mArkez Iñaki et al Diversas iniciativas de utilización del cannabis In Cannabis salud legislación y políticas de intervención Madrid Instituto Internacional de Sociología Jurídica de OñatiDykinson 2006 p 165166 244 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA substâncias hoje em dia consideradas ilegais aos mesmos controles e restrições que por exemplo temse com o resto dos medicamentos abarca ainda muitas outras questões do ponto de vista legal como são as perspectivas médica preventiva social etc17 Também não se prescinde do direito penal já que não se abrirá mão do controle regulatório que é inerente ao Estado Dessa maneira assim como o Estado inicia uma persecução penal contra aquele que falsifica um remédio também poderá fazêlo contra aquele que descumpre uma regra administrativa na produção fabrico ou comercialização de substâncias que estão sob seu controle De outra parte a estratégia normalizadora não ignora a importância de medidas diferenciadoras entre drogas leves e pesadas a atuação mais incisiva para a legalização imediata da maconha ou o estabelecimento de um marco mais claro diferenciador entre o tráfico e o uso com o estabelecimento de limites quantitativos para não punição a título de tráfico Sobre esta última questão essencial para um sistema de garantias que não foge ao contexto da ideia de normalização está a central questão de uma política de limites fixos quantitativos de drogas para a identificação diferenciadora entre uso e tráfico Distinguirse entre a posse de estupefacientes para consumo pessoal ou para oferta e tráfico é sem nenhuma sombra de dúvidas um dos problemas mais controvertidos e difíceis de serem solucionados quer para legisladores quer para magistrados e outros operadores do direito Duas são as possibilidades neste ponto De um lado o sistema de modelo flexível De outro o de quantidades limiares Pelo sistema flexível ou discricionário será o juiz da causa encarregado de determinar se a posse de drogas está destinada ao consumo pessoal ou ao tráfico segundo critérios da experiência tais como contexto da apreensão quantidade e natureza da droga forma em que está distribuída existência no local da apreensão de balanças de precisão papéis para embalagens poder aquisitivo da pessoa posse de quantidades de dinheiro em notas pequenas etc18 17 O conceito de normalização é parte dos documentos públicos do País Basco como se pode ver do livro elaborado por Xabier Arana Berastegi e Isabel Germán Mancebo e que se intitula Documento técnico para un debate social sobre el uso normalizado del cannabis Departamento de vivienda y asuntos sociales Vitória 2005 p 78 18 cAldentey Pedro Cannabis y legislaciones comparadas en Europa los consumidores en la onda expansiva del control social Cannabis salud legislación y políticas de 245 Sérgio Salomão Shecaira Já no sistema de quantidades limiares uma quantidade definida de cada substância proibida permitirá pressupor que se destina ao uso pessoal ou ao tráfico19 O sistema de quantidades limiares minimiza essa dose de subjetividade Três são as finalidades desse modelo A primeira finalidade é a de se ter um mecanismo mais seguro de distinção entre posse e oferta Abaixo de uma determinada quantidade fixada por diferentes critérios lei jurisprudência normativas etc temse como certo que tal substância destinase ao uso Acima daquela quantidade é que se analisam os critérios valoradores da identificação de eventual tráfico Com isso reduzse a margem discricionária de interpretação e evidentemente os riscos de injustiça Abaixo daquela quantidade fixada a presunção de uso não admitirá prova em contrário ainda que outros indícios existam de eventual tráfico A segunda finalidade desse sistema é uma melhor proporcionalidade na determinação da pena A proporcionalidade da resposta punitiva é pedra angular do sistema penal no Estado Democrático de Direito permitindo a determinação da pena conforme seja suficiente e necessária para a reprovação da conduta incriminada Assim não só é necessária a identificação da droga seja ela leve ou mais pesada como também sua quantidade Não é razoável a mesma punição penal para quem é acusado de traficar 10 gramas e 10 toneladas de uma mesma droga Da mesma forma drogas com potencialidades de prejuízo diferenciadas ainda que com pesos aproximados não podem ter a mesma resposta penal Vale dizer paralelamente às quantificações limiares farseá uma distinção qualitativa das drogas entre leves ou brandas e pesadas ou duras20 intervenciónMadrid Instituto Internacional de Sociología Jurídica de OñatiDykinson 2006 p 128129 19 zuFFA Grazia Cómo determinar el consumo personal en La legislación sobre drogas In wwwtniorges consulta em 19 set 2012 p 1 20 Em 2010 o Escritório das Nações Unidas contra as Drogas e os Delitos publicou uma declaração em que instava aos países membros para que garantissem a aplicação de sanções proporcionais aos delitos de drogas Essa declaração é uma continuidade ao que já se afirmara em 2007 a Junta Internacional de Fiscalização de Estupefacientes Mesmo no seio da ONU há uma ideia regente segundo a qual é importante limitar penas exacerbadas a não diferenciação de drogas com potencial lesivo distinto bem como evitar apunição exacerbada para pequenos traficantes algo que se obtém com a observância do princípio da proporcionalidade lAi Glória Drogas Crimen y Castigo 246 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA A terceira finalidade é a de propiciar um distanciamento das respostas habituais da justiça penal Isto é pequenas quantidades de drogas podem ser reprovadas na esfera administrativa permitindo um desafogamento do Poder Judiciário e evitando as deletérias consequências naturais inerentes ao processo penal 4 experiências de normalização M uitos são os caminhos já trilhados por países na busca do que denomino intervenção mediadora Poderíamos falar do sistema de coffee shops da Holanda ou dos avanços da venda de cannabis com finalidades terapêuticas em estados americanos como a Califórnia Mas restringirnosemos a uma rápida análise de dois países ambos na Península Ibérica Portugal e Espanha Portugal é o primeiro país do mundo a descriminalizar de direito todas as drogas A Lei 302000 descriminalizou o porte de todas as drogas no país O consumo deixou de ser crime Para os efeitos da lei a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias art 2º da Lei 302000 Com isso em princípio aquele que é visto pela polícia com pequenas quantidades de drogas 25 gramas de folhas de cannabis ou 5 gramas de resina 1 grama de heroína 2 gramas de morfina 2 gramas de cocaína é automaticamente encaminhado para a Comissão de Dissuasão de Toxicodependência Lá responde perante a Comissão transdisciplinar a um processo pela chamada contraordenação É uma espécie de processo administrativo em que não se admite nenhuma pena institucional e que não tramita pelo Judiciário Logo não há antecedentes criminais nem as consequências estigmatizantes do processo penal A polícia ao identificar um usuário com droga abaixo dos limites autorizados para o uso presumido por 10 dias dá um prazo de 72 horas para o comparecimento perante a Comissão de Dissuasão de Toxicodependência Lá chegando a Comissão ouvirá o consumidor e proporcionalidad de las penas por delitos de drogas In wwwtniorges consulta em 20 set 2012 p 5 247 Sérgio Salomão Shecaira reunirá os demais elementos necessários para formar um juízo sobre se a pessoa é toxicodependente ou não art 10 da Lei Também são avaliados outros critérios o lugar do consumo a atitude diante do fato a situação laboral e econômica do envolvido etc Exames médicos de sangue por exemplo ou psicológicos podem ser solicitados caso persista qualquer dúvida Não sendo a pessoa toxicodependente suspendese o processo administrativo por dois anos e impõese uma multa coima ou um trabalho comunitário Fazse um registro interno apenas para controle da atitude do envolvido nos próximos 5 anos Caso a pessoa tenha qualquer tipo de adição ou tenha tido uma recaída de tratamento anterior é encaminhado ao tratamento médico Ele pode ter que assistir a palestras motivacionais ou submeterse a outras formas de tratamento usando eventualmente conforme o caso fármacos Desde os anos 1990 utilizase em Portugal para viciados em heroína a metadona como alternativa de tratamento Ninguém é obrigado a tratarse no país pois não há nenhuma forma de tratamento compulsório Caso um dependente se negue a fazêlo será submetido a uma sanção alternativa de caráter administrativo Em nenhuma hipótese será enviado ao juiz para ser sancionado na esfera penal mesmo que não seja cooperativo Todos os estudos feitos sobre Portugal desde o advento da Lei 302000 mostram um decréscimo do uso de drogas consideradas pesadas o envolvimento espontâneo dos viciados no tratamento que lhes é oferecido a diminuição de doenças como hepatites e Aids bem como uma brutal economia aos cofres públicos daquilo que se gastava com a persecução penal e com cárcere Governo e oposição dão total apoio à lei A resistência inicial foi vencida A oposição conservadora ora no Governo dá o mesmo apoio à lei que o Partido Socialista ora na oposição elaborou Portugal tem ademais os menores índices de consumo de drogas na Europa Quem quer se tratar pode fazêlo no sistema de saúde Apesar de ser o mais completo sistema de descriminalização conhecido há um defeito de monta a porta de trás continua aberta Isto é continua a existir o tráfico e o usuário tem que se abastecer no mercado negro Quem melhor contornou esse problema foi sem nenhuma dúvida o País Vasco comunidade autônoma da Espanha Essa experiência 248 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA praticamente eliminou o mercado negro da maconha nesse local No País Vasco foram criados clubes canábicos organizações sem fins lucrativos legalizadas pelo Governo Vasco que permitem aos associados a compra de produtos canábicos que são produzidos pelas próprias associações Todo clube terá uma pequena plantação destinada aos seus associados Cada associado paga uma taxa anual ao clube e compra os produtos que quiser sempre em pequenas quantidades para seu consumo próprio Há venda de cremes cookies azeites e até diferentes tipos de erva Tudo isso em conformidade com a lei Pequenas quantidades de cannabis não são punidas pelo Estado Espanhol de tal forma que uma jurisprudência garantista construída ao largo de anos permitiu uma descriminalização concreta como resultado da atividade pretoriana A grande vantagem desse sistema é que todos compram uma droga que foi plantada beneficiada comercializada e consumida dentro dos parâmetros legais Não há mercado negro o tráfico da maconha praticamente inexiste não há processos criminais aos usuários com grande economia para o Poder Judiciário o encarceramento diminui Enfim uma economia de escala brutal se atinge com essa política pública simples E como antes se mencionou eliminase a porta de trás da droga Vale dizer o tráfico recebe um duro golpe E o consumo não aumenta por isso pois o trabalho de prevenção continua a existir 5 nota conclusiva A l Capone durante a Lei Seca fez sua fama como um famigerado criminoso chefe de uma poderosa organização criminal em Chicago Toda vez que alguém pensa em crime organizado vem à sua mente como estereótipo a mítica figura do criminoso de origem italiana Crimes em série corrupção de agentes estatais sejam eles policiais ou juízes fraqueza do Estado uma espiral de violência e uma verdadeira anomia estão associados àquele período de proibição do álcool Em 1933 o álcool foi legalizado nos EUA Mas a contrapartida da liberação foi a subsequente proibição da maconha e o desencadeamento de uma grande campanha proibicionista Essa campanha em escala 249 Sérgio Salomão Shecaira mundial principalmente a partir das Convenções sobre Drogas das Nações Unidas em que o sistema de proibições é aperfeiçoado transformou o mundo numa grande Chicago dos anos 1930 Tráfico internacional e seus personagens míticos como Pablo Escobar Carlos Lehder Juan Ochoa Santiago Meza el Pozolero ou the soup maker Fernandinho BeiraMar e Marcinho VP controladores do tráfico em morros cariocas e tantos outros nomes são a versão globalizada de Al Capone que a proibição das Nações Unidas criou na esfera mundial Parece que nada aprendemos com o episódio histórico da Lei Seca Ao contrário globalizamos o fenômeno proibicionista Se quisermos que nossos países continuem a ser democráticos também na questão das drogas devemos reconhecer que a tolerância a preservação da alteridade e do direito de se pensar diferente são princípios intrínsecos ao Estado Democrático de Direito e que devem ser praticados Há de se reconhecer a possibilidade do uso recreativo das drogas e deixar o controle produtivo para o próprio Estado como recentemente propugnou o Presidente do Uruguai Afinal a política criminal da intervenção mediadora é o substrato teórico do caminho normalizador que propugnamos 6 referências bibliográficas AgrA Cândido da Ciencia ética y arte de vivir elementos para un sistema de pensamiento crítico sobre el saber y las políticas de la droga In La seguridad en la sociedad del riesgo un debate abierto Barcelona Atelier 2003 ArAnA Xabier Cannabis normalización y legislación Eguzkilore Cuaderno del Instituto Vasco de Criminología San Sebastián n 19 2005 cAldentey Pedro Cannabis y legislaciones comparadas en Europa los consumidores en la onda expansiva del control social Cannabis salud legislación y políticas de intervenciónMadrid Instituto Internacional de Sociología Jurídica de OñatiDykinson 2006 Convenção Única sobre Drogas Narcóticas Disponível em wwwundocorgbrazilpt convencoeshtml Acesso em jan 2012 de lA cuestA José Luis The Death penalty and drugs In zAPAtero Luis Arroyo et al org Towards the universal abolition of the death penalty Valencia Tirant Lo Blanch 2010 Es posible la normalización de las drogas Perspectiva jurídicopenal Drogas sociedad y ley avances en drogodependencias Bilbao Universidad de Deusto 2003 greenWAld Glenn The Drug Decriminalization in Portugal httpwwwcatoorgpubs wtpapersgreenwaldwhitepaperpdf 250 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA lAi Glória Drogas Crimen y Castigo proporcionalidad de las penas por delitos de drogas In wwwtniorges consulta em 20 set 2012 levine Harry G Prohibición global de las drogas las variedades y usos de la prohibición de las drogas en los siglos XX e XXI Globalización y drogas Políticas sobre drogas derechos humanos y reducción de riesgos Madrid Dykinson 2003 mArkez Iñaki et al Diversas iniciativas de utilización del cannabis In Cannabis salud legislación y políticas de intervención Madrid Instituto Internacional de Sociología Jurídica de OñatiDykinson 2006 soto Susana Posibilidades legales conla actual legislación sobre cannabis análisis de la situación actual y propuestas para su uso normalizado In Cannabis salud legislación y políticas de intervención Madrid Instituto Internacional de Sociología Jurídica de OñatiDykinson 2006 szAsz Thomas S Drugs as property the right we rejected In Should we legalize decriminalize or deregulate New York Prometheus Books 1998 zuFFA Grazia Cómo determinar el consumo personal en La legislación sobre drogas In wwwtniorges consulta em 19 set 2012 limitAciones legAles de lA reducción de dAños en un contexto prohibicionistA Xabier Arana Investigador Doctor del Instituto Vasco de Criminología IVAC KREI de la Universidad del País Vasco UPVEHU Miembro del Grupo Consolidado de Investigación GICCAS de la UPVEHU Magistrado Suplente de la Audiencia Provincial de Álava Profesor invitado del Master sobre Drogodependencias y otras Adicciones IDD sumário Introducción Contradicciones entre la política prohibicionista y la reducción de daños ámbito filosófico Contradicciones entre la política prohibicionista y la reducción de daños ámbito de las prácticas Consideraciones finales introducción L a filosofía de reducir riesgos y evitar daños está interiorizada en mayor o menor medida por gran parte de la población en diferentes campos de nuestras vidas Arana 2013 Las personas que patinan suelen llevar por ejemplo casco rodilleras y coderas Quien 252 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA realiza deportes denominados de riesgo como la escalada generalmente dispone de un equipo donde se incluyen diversos elementos cuerdas clavijas mosquetones para disfrutar de ese tipo de actividad con una mayor seguridad Sin embargo a pesar de intentar reducir riesgos para evitar daños no siempre se consigue la finalidad deseada Esta reflexión también se puede extender al ámbito de los consumos de drogas las personas realizamos diferentes consumos de drogas café alcohol fármacos tabaco cannabis y la mayoría hace un uso responsable es decir se responsabiliza de sus consumos y de las consecuencias de dichos consumos En determinados contextos culturales el desayuno está unido a la ingesta entre otros productos de café o de té Las comidas habitualmente están presentes bebidas alcohólicas de baja graduación vino sidra cerveza Medicamentos incluso los que requieren prescripción médica son habituales en muchos de nuestros domicilios o en el equipaje de viaje cuando nos desplazamos a otros lugares Todo ello evidencia que los seres humanos usamos diferentes drogas con finalidades muy distintas y que una parte importante lo hacemos obteniendo más beneficios que perjuicios Sin embargo los contextos culturales y las políticas en materia de drogas suelen servir para aumentar o disminuir dichos beneficios y perjuicios generalmente basándose más en creencias que en evidencias científicas Recientemente El Semanal 21072013 p12 recogía una noticia donde coincidiendo con el denominado Día Mundial contra la Droga se iban a quemar en Pakistán 128 toneladas de droga y 43000 botellas de licor1 La noticia se acompañaba con una gran fotografía donde se podía ver a dos militares en torno a una gran pirámide compuesta por sacos de heroína y por botellas de licor preparadas para ser incendiadas El mensaje que daba Ban Ki moon Secretario General de Naciones Unidas relacionado con esa conmemoración era En este Día Internacional de la Lucha Contra el Uso Indebido y el Tráfico Ilícito de Drogas apelo a los gobiernos los medios de información y la sociedad civil para que hagan todo lo posible por crear conciencia del daño que causan las drogas ilícitas 1 Puede observarse que la noticia relaciona el término droga con heroína mientras que el término licor se asocia con alcohol 253 Xabier arana y para ayudar a impedir que haya personas que se benefician de su uso httpwwwunorgeseventsdrugabuseday Todo ello en un contexto donde diversos informes científicos han puesto en evidencia que los daños relacionados con las drogas no tienen mucho que ver con que estén prohibidas o no A finales del año 2010 The Lancet recogía una investigación del profesor David Nutt donde analizados los daños tanto a las propias personas consumidoras como a otras personas en torno al alcohol se producían más daños que en relación a otras sustancias hoy en día inmersas en las Listas de los convenios internacionales Unos años antes psiquiatras británicos tras estudiar el daño físico social y la dependencia de diversas drogas llegaron señalaron que el alcohol y el tabaco se encuentran entre las sustancias más dañinas De Benito 2007 No hace mucho tiempo Fernández Cruz 2010 catedrático y jefe del Servicio de Medicina Interna de la Universidad Complutense de Madrid y presidente del Comité Científico de la Fundación Alcohol y Sociedad2 en el ámbito de los consumos de alcohol resaltaba la necesidad de diferenciar entre abuso consumo indebido perjudicial para la salud y consumo moderado con efectos beneficiosos para la salud Para este autor El alcohol a diferencia de las drogas3 admite un consumo responsable que no entraña riesgo para la salud Su consumo responsable sensato y moderado por adultos es perfectamente compatible con una vida saludable A juicio de Fernández Cruz son los hábitos lo que relacionan el consumo de alcohol con el beneficio o con el perjuicio Por este motivo no se debe caer en la fácil discriminación y criminalización del producto en sí sino que hay que educar en el consumo entendiendo éste como moderado y responsable Coincido con este autor en esta última frase en una sociedad democrática no es pertinente discriminar y criminalizar una determinada sustancia porque sí sino que es mucho más adecuado educar en los usos sobre todo en los moderados y responsables En el contexto de la política prohibicionista fuera del uso médico 2 Algunos de los patronos de esta fundación son la Asociación Española del Brandy Bacardí España SA y la Federación Española de Bebidas Espirituosas Codina 2010 3 Nuevamente el término alcohol aparece desligado de las drogas cuando también es una droga El texto firmado por un catedrático en medicina no incluye al alcohol como una droga sino como a diferencia de las drogas 254 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA y del uso científico no es posible ningún uso responsable entre las sustancias incluidas en las Listas de los convenios internacionales en la materia por ejemplo una droga el cannabis o una planta que no es una droga la hoja de coca porque todo consumo realizado por personas adultas es calificado por las autoridades correspondientes como uso indebido y por tanto debe ser perseguido penal yo administrativamente Sin embargo existe constancia de que en determinados contextos culturales llevan miles de años consumiendo tanto derivados del cannabis como hoja de coca de manera moderada y responsable Por tanto esa diferenciación solicitada por Fernández Cruz entre uso moderado y abuso no estaría de más que se extendiera también a otras sustancias recogidas en las Listas de los convenios internacionales en la materia contradicciones entre la política prohibicionista y la reducción de daños ámbito filosófico L os consumos de drogas son una realidad en la mayoría de las culturas desde hace siglos Sin embargo en este proceso histórico se han dado diversas circunstancias que han supuesto cambios significativos en relación con los usos de las drogas Hasta hace unos pocos siglos las poblaciones consumían drogas existentes en su entorno y muy pocas personas usaban drogas de otros contextos culturales Con el avance del capitalismo las drogas como cualquier otro producto se convierten en mercancías y por tanto la producción distribución etc adquieren características de empresa No obstante son empresas legales mientras explotan mercados extranjeros no capitalistas y pasan a ser ilegales en el momento en que intentan crear y explotar un mercado metropolitano Del Olmo 198538 El prohibicionismo moderno en materia de drogas en apenas algo más de un siglo sobre todo en los últimos cincuenta años desde la entrada en vigor de la Convención Única de 1961 se ha convertido en un localismo globalizado donde la política local moralista sobre las drogas de finales del siglo XIX en Estados Unidos en la medida que este país aumenta su influencia a escala global consigue expandirse a todo el planeta Arana 2003 La potente inercia generada en torno a esta concepción del fenómeno de las drogas es todavía hoy día es 255 Xabier arana la tendencia dominante El denominado círculo vicioso del reduccionismo parcialidad exclusión dogmatismo amenaza y aislamiento Acevedo 2010 aplicado al fenómeno social de las drogas aporta elementos fundamentales para comprender la filosofía y la construcción ideológica existente tras el denominado prohibicionismo moderno en materia de drogas a parcialidad políticas diferentes en materia de drogas no en base a evidencias científicas sino como fruto de intereses políticos y económicos que condicionan los diversos campos relacionados con este fenómeno social prevención terapia asistencia reducción de daños y evitación de riesgos b exclusión fruto de la parcialidad se inician procesos de exclusión basados en concepciones moralistas donde se recurre tanto a la intolerancia como al paternalismo En torno a este proceso se consiguen consensos políticos incluso entre ideologías diferentes capaces de cimentar el stutus quo y de potenciar políticas basadas en la represión y en la marginación c dogmatismo que obliga a los Estados firmantes de los convenios internacionales en la materia a seguir las exigencias demandadas por la JIFE aunque las mismas sean contrarias a la evidencia científica y a los Derechos Humanos d amenaza la droga a veces en abstracto a veces en abstracto otras veces su consumo y otras su tráfico aparece descrita en una parte de la literatura científica como una amenaza de la que es preciso defenderse La construcción del problema de la droga convierte a ésta en una amenaza doble la amenaza de la contaminación sobre todo a raíz del VIH y la amenaza del delito Da Agra 2003 La confección de la droga como amenaza también se ha utilizado para fortalecer el establecimiento de una estrategia bélica guerra contra la droga contra un enemigo ficticio unas veces enemigo interior y otras enemigo exterior que ha producido y produce daños reales sobre todo en un sector de los colectivos más vulnerables de la sociedad e aislamiento a pesar de la intención manifestada sobre la necesidad de insertar a las personas drogodependientes en la sociedad el proceso descrito ha posibilitado la separación de un sector significativo de las personas usuarias de drogas consideradas hoy en día ilegales para identificarlas yo analizarlas Por medio de este aislamiento se les han puestos márgenes que han contribuido a su marginación El localismo globalizado de la política en materia de drogas 256 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA caracterizado por estar basado en una concepción puritana y etnocéntrica influenciada por ciertos mitos que no se ajustan a la evidencia científica junto con una fuerte aversión a las sustancias con capacidad de modificar comportamientos y a las personas consumidoras de dichas sustancias en la medida que Estados Unidos va asentando su hegemonía en el ámbito mundial consolida esa política en los organismos internacionales y desde éstos se ponen los medios para su implantación en la mayoría de los países El análisis de este proceso político e histórico es fundamental para poder comprender la formación de dominios de saber a partir de relaciones de fuerza y relaciones políticas en la sociedad en torno al fenómeno social de las drogas contradicciones entre la política prohibicionista y la reducción de daños ámbito de las prácticas U na de las claves del prohibicionismo moderno ha sido la obligación de la abstinencia de las sustancias incluidas en las Listas de los Convenios Internacionales Sólo se admite el uso científico y el uso terapéutico de dichas sustancias Sin embargo en la práctica han existido fuertes restricciones también a los usos científicos y terapéuticos En las negociaciones de la Convención Única sobre Estupefacientes 1961 se produjo un intento para que el cannabis fuera la única sustancia prohibida con el argumento de que según un informe de la Organización Mundial de la Salud OMS nada justifica su uso para fines médicos El Comité de Expertos de la OMS sin embargo opinaba que se debe seguir recomendando la prohibición o la restricción del uso médico de sustancias tales como la cannabis pero sin que dicha prohibición revista carácter obligatorio BewleyTaylor Jelsma 201111 A inicios de la década de los años setenta concretamente en el año 1972 ocurren dos acontecimientos importantes en Estados Unidos relacionados con las drogas Según señala Neuman 199171 ese año fue el presidente Nixon quien por vez primera habló de guerra contra las drogas y dedicó sus mayores ataque contra la marihuana Desde ese año hasta la actualidad la guerra contra la droga con camaleónica capacidad para variar de sustancias y de enemigos por el número de víctimas y por el gran dolor generado 257 Xabier arana es uno de los lastres más obscenos que arrastra la humanidad Sin embargo el mismo año y en el mismo país la Organización Nacional para la Reforma de las Leyes sobre Marihuana requirió de la Oficina de Narcóticos y Drogas Peligrosas con posterioridad se denominó Drug Enforcement Administration DEA la reclasificación de lista del cannabis con el objetivo de que pudiera prescribirse por personal médico de manera legal Se tardaron casi tres lustros para que se diera en 1986 las vistas públicas exigidas legalmente para poderse llevar a cabo la reclasificación Dos años más tarde 1988 el juez competente en la materia declaró que la marihuana reunía todos los requisitos legales para su empleo en terapéutica en Estados Unidos Barturen 1998113 Sin embargo en el año 1992 la DEA se opuso a la reclasificación y por este motivo se impidió la liberalización del uso médico y también de los programas de investigación individual donde se permitía el uso de cannabis en personas con sintomatología sobre la que ningún otro fármaco era eficaz Aunque con anterioridad a las décadas de los años sesenta y setenta ya se habían realizado informes sobre los efectos del consumo de cannabis entre otros IIndian Hemp Drugs Commission 1894 e Informe La Guardia 1944 en estas décadas diversos Estados ponen en marcha comisiones para estudiar este fenómeno Gran Bretaña Informe Wootton 1968 Canadá Informe Le Dain 1972 Estados Unidos Informe Shafer 1972 Holanda Informe Hulsman 1971 e Informe Baan 1972 y Australia Informe Baume 1977 Los resultados de todas estas comisiones coindicen en dos cuestiones la necesidad de regular el cannabis de manera separada del resto de las sustancias denominadas estupefacientes y no recurrir al derecho penal para legislar el uso personal de este tipo de sustancias Todas estas cuestiones relatadas en los párrafos anteriores evidencian que el proceso de investigación y dispensación de cannabis para usos terapéuticos ha sufrido una intromisión de la política prohibicionista en materia de estupefacientes capaz de influir desde un prisma ideológico en el ámbito científico Según los conocimientos científicos actuales los motivos por los que el cannabis se introdujo en las Listas de las denominadas sustancias estupefacientes es decir por potenciar la violencia la comisión de delitos así como la existencia de la llamada teoría de la escalada en virtud la cual existe una causa efecto entre el consumo inicial de cannabis y el posterior consumo de 258 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA otra sustancia heroína cocaína no disponen de base científica Por tanto es necesario quitar esta fuerte losa que pesa excesivamente sobre cualquier investigación en materia de cannabis y tratar a esta sustancia como una alternativa terapéutica potencial más y cualquier posicionamiento al respecto debería basarse como en otros casos en la relación entre toxicidad y eficacia en el control de determinadas patologías o síntomas en ocasiones dependiendo de la incidencia de los cuadros y frecuencia de fracasos terapéuticos con la característica de fármacos de segunda línea Barturen 1998114115 El proceso descrito en el apartado anterior ha supuesto sobre todo desde finales de la década de los años setenta hasta la actualidad que muchas personas consumidoras de las sustancias incluidas en las diferentes Listas de los convenios internacionales en materia de drogas tóxicas estupefacientes y psicotrópicos hayan realizado consumos en situaciones de precariedad y de vulnerabilidad con efectos muy perjudiciales para la salud de las personas consumidoras y para su entorno Es en este contexto donde si sitúan las políticas de reducción de daños en materia de drogas surgidas en torno a personas consumidoras de sustancias sobre todo heroína en situación de clandestinidad y por tanto con más posibilidades de extenderse infecciones VIH hepatitis en el campo de la salud además de una alarma social ampliamente fomentada por los medios de comunicación de esa época La línea dominante en el ámbito terapéutico era tremendamente rígida se basaba en la abstinencia no consumo de ningún tipo de estas sustancias El mero consumo esporádico daba pie a la expulsión del proceso terapéutico por seis meses o más tiempo No se contemplaba otro tipo de alternativas o abstinencia o expulsión del centro No obstante esta propuesta terapéutica no era válida para gran parte de las personas consumidoras de heroína y de otras sustancias en la década de los años ochenta La mayoría de los programas de reducción de daños puestos en práctica en el Estado español han ido acompañados de fuerte polémica Desde los programas de mantenimiento con metadona los programas de intercambio de jeringuillas sobre todo si se iban a llevar a cabo en el interior de las prisiones los testados de sustancias las salas de consumo higiénico o la dispensación terapéutica de heroína Sin embargo todos ellos han demostrado eficacia no sólo 259 Xabier arana en el ámbito de la prevención de la salud pública Por ejemplo los programas de mantenimiento con metadona además de contribuir a la mejora de la salud de un sector de personas consumidoras de heroína también tuvo su importancia en el descenso de los delitos cuya comisión tuvo que ver con el consumo de drogas ilegales por parte del autor fundamentada en la disminución de las oportunidades de delinquir Subijana 200465 Las políticas y los diversos programas de reducción de daños parten de un hecho real la existencia de un sector de personas consumidoras que no quieren dejar de consumir ese tipo de sustancias De igual modo pretende luchar por una mejora en la salud y de las condiciones sociales de estas personas así como por sus derechos y libertades La reducción de daños no es café para todos sino que parte de las necesidades concretas en situaciones específicas sobre todo de las personas consumidoras en situaciones de mayor vulnerabilidad En este proceso los Convenios Internacionales en la materia las legislaciones estatales y las interpretaciones llevadas a cabo en el seno de la JIFE se han convertido en un serio impedimento para que los criterios de salud pública prevalezcan sobre los aspectos dogmáticos y sancionatorios En los fundamentos del Documento marco sobre reducción de daños Conferencia de consenso Grup Igia 20011314 se parte de la existencia de personas que desean consumir drogas y que muchas de las mismas no van a contactar con servicios sanitarios ni con servicios sociales porque no lo van a necesitar La reducción de daños reconoce la libertad individual en la búsqueda del propio bienestar incluyendo el derecho individual al consumo de drogas Por tanto es necesario crear y apoyar los servicios adecuados para que las personas que necesiten ayuda en este campo puedan disponer de ella y terminar con la marginación no únicamente de los usuarios de drogas sino también de aquellos profesionales que elegirían trabajar en esta área Drucker 1995119 El Informe Analítico de El problema de las drogas en las Américas OEA 2013 a desde la propia introducción hace hincapié en enfatizar la necesidad de reducir daños a la salud la seguridad y el bienestar de los individuos y la sociedad El apartado relativo a alternativas legales y regulatorias a la hora de proponer la elaboración y evaluación de las políticas de control de drogas recoge 260 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA entre las cuestiones a tener en cuenta para la evaluación la protección de las personas y las comunidades contra los daños relacionados con las drogas la mitigación del daño a la salud de las personas usuarias y la reducción de las consecuencias negativas en los usuarios y en otros debido a los accidentes causados por intoxicación y delitos conexos a las drogas La filosofía de reducir riesgos para evitar daños en el fenómeno social de las drogas no puede reducirse a la puesta en práctica como mal menor de determinados programas para las personas consumidoras de drogas en diversas situaciones de vulnerabilidad Esta filosofía se tiene que extender a todo el proceso de éste fenómeno como claramente ha puesto de manifiesto Dorn 2002109110 que a su juicio el compromiso de reducir daños para el ambiente ecología para la economía para la sociedad y para las personas individuales debería ser un componente integral de toda política relativa a la producción y tráfico de drogas así como a las políticas sobre su consumo Hace ya tiempo que Henman 1996 puso de manifiesto como las estrategias de la política prohibicionista han servido para aumentar desmesuradamente los daños Una vez más se evidencia que el problema no son las drogas el problema son las leyes que prohíben a las personas lidiar con estos asuntos La criminalización causa más problemas que las drogas en sí mismas Informe de Escenarios para El problema de las drogas en las Américas OEA 2013 b47 Entre los efectos secundarios derivados de la política prohibicionista están el aumento de las personas están encarceladas así como el denominado blanqueo de dinero procedente del tráfico ilícito de este tipo de sustancias Los hechos evidencian que los daños y el sufrimiento creados por la política prohibicionista son reconocidos hasta por el propio presidente Barack Obama y el Fiscal General Eric Holder del país que exportó el prohibicionismo moderno en materia de drogas al resto del mundo En las prisiones de EE UU hay actualmente 22 millones de personas presas y más de la mitad lo está por delitos relacionados con drogas según el censo del año 2010 Saiz 2013 a Mientras que la población de este país ha aumentado una tercera parte desde 1980 la población reclusa se ha incrementado en un 800 La existencia de penas mínimas obligatorias según el tipo de drogas 261 Xabier arana puede suponer entre 5 y 10 años de prisión para este tipo de delitos es uno de los motivos principales para este desproporcional aumento de las personas en prisión y además prácticamente imposibilita el que los jueces puedan aplicar una sanción adaptada a la circunstancias de cada persona presa de cara a su proceso de rehabilitación Quizás por la necesidad de control de los flujos de entradas y salidas de estos centros y por sus evidentes consecuencias económicas Eric Holder se comprometió a realizar una reformas del sistema judicial para que los fiscales no requieran la pena mínima obligatoria en casos de este tipo de delitos cuando las personas no estén en contacto con organizaciones criminales Otra medida que va a ayudar a que disminuyan los delitos en materia de drogas es la reciente comunicación por parte del Departamento de Justicia de EE UU donde se afirma que el Gobierno Federal no se opondrá a la legislación de aquellos Estados que regulan el uso medicinal y recreativo de la marihuana Saiz 2013 b siempre y cuando no se venda a personas menores de edad y no la adquieran sectores diversos relacionados con el crimen organizado Estos criterios han sido trasmitidos por parte del Fiscal General Eric Holder tanto a todos los fiscales federales como a los gobernadores de Colorado y Washington donde actualmente se han dado pasos para una regulación del cannabis con criterios totalmente diferentes a la política prohibicionista Además en otros 18 Estados y en el Distrito de Columbia está regularizado el uso y venta de cannabis para consumo terapéutico Los pasos dados de cara a una regulación como las propuestas en el ámbito de diversos usos del cannabis lúdico y terapéutico dentro de EE UU están creando expectativas en otros Estados de EE UU y del resto del planeta para sentar las bases de una política diferente a la actual en materia de cannabis De llegar a buen puerto este proceso podría suponer una bajada sustancial del porcentaje de personas que están actualmente en prisión La Convención de Viena de 1988 sobre tráfico ilícito de estupefacientes y sustancias psicotrópicas exigió entre otras cuestiones a las partes firmantes la puesta en práctica de legislaciones para afrontar el denominado blanqueo de capitales proveniente del tráfico de drogas uno de las cuestiones capitales de este negocio ilegal El Informe Analítico de El problema de las drogas en las Américas 2013 a5563 hace referencia al 262 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA denominado blanqueo de dinero la evasión de impuestos así como de la regulación financiera y las relaciona con la corrupción y con la alta impunidad La oportunidad de ganar sin pagar ningún tipo de impuesto al Estado grandes cantidades de dinero en poco tiempo requiere de mecanismos para introducir en los circuitos legales esta acumulación de capital negocios utilizados como tapadera paraísos fiscales asesorías especializadas en superar los obstáculos legales y de encubrir el origen de determinadas cantidades de dinero Más que una línea divisoria entre la economía legal y la economía ilegal existen este tipo de prácticas que hacen de vasos comunicantes entre estos dos tipos de economía de manera complementaria Es en este escenario donde se enmarca lo ocurrido en Estados Unidos a finales del año 2012 Con el Hong Kong and Shanghai Banking Coorporation HSBC Tras la correspondiente investigación llevada a cabo por el Departamento de Justicia y posteriormente tras el informe del Senado de Estados Unidos se llegó a la conclusión que el HSBC había permitido que criminales entre ellos algunos relacionados con el narcotráfico mexicano blanqueara dinero procedente de estas prácticas Las autoridades estadounidenses en vez de llevar a cabo una acusación criminal contra la entidad decidieron no presentar cargos criminales y pactar con el banco la imposición de una multa de 1900 millones de dólares El motivo por lo que se optó por la multa fue para evitar males mayores como la desestabilización del sistema financiero global Monge 2012 Muchas de las personas que han observado esta cuestión sospechan que este caso es tan solo la punta del icerberg OEA 2013 b34 consideraciones finales S egún los conocimientos científicos actuales los Convenios Internacionales en los que se cimienta la política prohibicionista sobre las sustancias incluidas en las Listas de estos convenios se han basado entre otras cuestiones en mitos no ciertos en una concepción etnocéntrica del fenómeno social de las drogas y en una terminología ambigua y acientífica Todos estos aspectos han permitido por un lado la criminalización de prácticamente todo el ciclo relacionado con las denominadas drogas tóxicas estupefacientes y sustancias 263 Xabier arana psicotrópicas y la excesiva utilización de un Derecho penal en clave de restricción de derechos y de garantías constitucionales y por otro lado la inclusión de esos principios en los ordenamientos internos de los países firmantes Coincido con romaní 2005100102 en que las políticas de reducción de daños también son un campo de lucha ideológica en el que se dirimen distintas alternativas de control social Para este autor dentro del contexto de las estrategias de control social centradas en la gestión del conflicto constituyen tanto un reto como una posibilidad No estamos hablando sólo de la renovación de prácticas y culturas profesionales aunque las incluye sino también de la oportunidad de contribuir al debate ideológico y político tanto a nivel de las prácticas sociales más cotidianas y concretas como de las más macro acerca de qué tipo de control social queremos impulsar si nos conformamos con la lógica de la contención que tenderá finalmente a la reproducción del actual sistema social o si decidimos aprovechar la ocasión e intervenir en esta transformación de las estrategias de control social para orientarlo hacia otro tipo de mundo un poco más vivible para todos sus habitantes En el actual proceso de globalización con la desregularización existente las casi infinitas posibilidades de desplazar el capital por medio de entidades financieras y otros recursos amparados en el secreto bancario o en otras prácticas opacas el tráfico ilícito de drogas y la introducción en los circuitos legales de los beneficios obtenidos disponen de inmensas oportunidades y mayores recursos para desarrollarse y consolidarse En este contexto la globalización de la política prohibicionista proporciona un buen caldo de cultivo para la globalización de la circulación ilegal financiera del capital globalizado y las sucesivas ilegalidades que genera corrupción control social hacia las personas más vulnerables etc Los Derechos Humanos y los derechos y libertades propios del Estado social y democrático de Derecho deben ser la base referencial en la reducción de riesgos y la evitación de daños y no como actualmente está sucediendo las convenciones internacionales en materia de drogas tóxicas estupefacientes y sustancias psicotrópicas interpretadas dogmáticamente por la JIFE con grandes dosis de autoritarismo y aumento desproporcional de daños en las personas consumidoras sobre todo entre las más vulnerables y en los 264 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA países de cultivo yo producción de este tipo de sustancias Desde esta perspectiva la reducción de daños aplicada al prohibicionismo moderno en materia de drogas con su correspondiente evaluación supone poner en evidencia los efectos nocivos efectos secundarios del régimen prohibicionista y como consecuencia exigir su desmantelamiento porque la actual legislación además de limitar la aplicación de la reducción de daños en el ámbito de la salud pública genera una inercia que crea muchos más daños a las personas a su entorno e incluso al Estado social y democrático de Derecho que los que pretende evitar bibliografía Acevedo G 2010 El modo humano de enfermar Pasado presente y futuro en las Adicciones Donostia Proyecto Hombre 132142 AgrA C da 2003 Ciencia ética y arte de vivir Elementos para un sistema de pensamiento crítico sobre el saber y las políticas de la droga In AgrA C da domínguez JL gArcíA AmAdo JA hebberecht P recAsens A Eds La seguridad en la sociedad del riesgo Un debate abierto Barcelona Atelier 201225 ArAnA X 2003 La globalización de las políticas en materia de drogas como obstáculo para la profundización en la democracia In ArAnA x husAk D N scheerer S Coord Globalización y drogas políticas sobre drogas derechos humanos y reducción de riesgos Madrid Dykinson 117141 ArAnA X 2013 Marco jurídico de la reducción de daños en el campo de las drogas In mArtínez oró D P PAllArés J Eds De riesgos y placeres Manual para entender las drogas Lleida Milenio p 129142 bArturen F 1998 Farmacología e interés terapéutico del cannabis y sus derivados In meAnA J J PAntoJA L Eds Derivados del cannabisdrogas o medicamentos Avances en farmacología de drogodependencias Bilbao Universidad de Deusto 111146 benito E de 2007 El alcohol y el tabaco figuran entre las 10 drogas más dañinas El País Sociedad sábado 24032007 p 43 beWleytAylor D JelsmA M 2011 Cincuenta años de la Convención Única de 1961 sobre Estupefacientes una relectura crítica Serie reforma legislativa en materia de drogas 12 httpwwwtniorgsiteswwwtniorgfilesdownloaddlr12spdf codinA J 2010 Alcohol y sociedad La Vanguardia Opinión miércoles 17112010 p 28 dorn N 2002 El concepto de reducción de daños en el marco internacional en relación con la producción tráfico y uso de drogas Eguzkilore Cuaderno del Instituto Vasco de Criminología 16 105110 drucker E 1995 La política de drogas de Los Estados Unidos Salud pública versus prohibición In de PA ohAre R Newcombe A mAttheWs EC Bbuning y E Drucker La reducción de daños relacionados con las drogas Barcelona Grup Igia 107119 Fernández cruz A 2010 La eterna contradicción sobre el consumo de alcohol La bebida 265 Xabier arana es la única droga para la que se reconoce un consumo responsable El País Sociedad lunes 13122010 gruP igiA 2001 Gestionando las drogas Conferencia de consenso sobre reducción de daños relacionados con las drogas cooperación e interdisciplinariedad Barcelona Grup Igia henmAn A 1996 Reducción o agravación de daño In ArAnA X del olmo R Comp Normas y culturas en la construc ción de la Cuestión Droga Barcelona Hacer 5363 henmAn A 2009 Las contradicciones de las políticas de reducción de riesgos y evitación de daños en el contexto de las convenciones de la ONU In muñAgorri I Dir III Symposium Internacional sobre Reducción de Riesgos Los legados de la Convención de NU Viena 1988 y de la Asamblea General de NU sobre drogas New York 1998 Donostia UPVEHU 1721 mArtín PAllín JA 2000 Impacto social criminológico político y normativo del tráfico de drogas Delitos contra la salud pública y contrabando Consejo General del Poder Judicial 5 117171 monge Y 2012 HSBC pagará la mayor multa en EE UU por lavado de dinero El País Internacional httpinternacionalelpaiscominternacional20121211 actualidad1355259065703559html neumAn E 1991 La legalización de las drogas Buenos Aires Depalma olmo R DEL 1985 La SocioPolítica de las drogas 2ª Caracas Universidad Central de Venezuela orgAnizAción de estAdos AmericAnos 2013 a El problema de las drogas en las Américas Colombia OEA orgAnizAción de estAdos AmericAnos 2013 b Escenarios para el problema de drogas en las Américas 20132025 Colombia OEA romAní O 2005 Globalización antiglobalización y políticas de reducción de daños y riesgos Eguzkilore 19 91103 romAní O 2013 Reducción de daños y control social De qué estamos hablando In mArtínez oró DP PAllArés J Eds De riesgos y placeres Manual para entender las drogas Lleida Ed Milenio p 103116 sAiz E 2013a EE UU vira hacia un enfoque más sanitario de la lucha antidroga El País 12082013 httpsociedadelpaiscomsociedad20130812 actualidad1376323514114163htmlrelrosEP 2013b Vía libre en EE UU para los Estados que regulan la marihuana recreativa El País 29082013 httpsociedadelpaiscomsociedad20130829 actualidad1377806303988501html sePúlvedA M romAní O 2013 Conceptualización y políticas de la gestión del riesgo In mArtínez oró DP PAllArés J Eds De riesgos y placeres Manual para entender las drogas Lleida Ed Milenio p 89102 subiJAnA I 2004 Una visión jurisprudencial de los delitos de tráfico de drogas El marco judicial en el que se inserta la Ley Orgánica 152003 de 25 de noviembre por la que se modifica la Ley Orgánica 101995 de 23 de noviembre del Código Penal Revista del Poder Judicial 74 2º trimestre 6592 266 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA relação das monografias publicadas 1 Uma Pequena História das Medidas de Segurança Rui Carlos Machado Alvim 2 A Condição Estratégica das Normas Juan Félix Marteau 3 Direito Penal Estado e Constituição Maurício Antonio Ribeiro Lopes 4 Conversações Abolicionistas Uma Crítica do Sistema Penal e da Sociedade Punitiva Organizadores Edson Passetti e Roberto B Dias da Silva 5 O Estado e o Crime Organizado Guaracy Mingardi 6 Manipulação Genética e Direito Penal Stella Maris Martinez 7 Criminologia Analítica Conceitos de Psicologia Analítica para uma Hipótese Etiológica em Criminologia Joe Tennyson Velo 8 Corrupção Ilegalidade Intolerável Comissões Parlamentares de Inquérito e a Luta contra a Corrupção no Brasil 19801992 Flávia Schilling 9 Do Gene ao Direito Carlos Maria Romeo Casabona 10 HabeasCorpus Prática Judicial e Controle Social no Brasil 18411920 Andrei Koemer 11 A Posição Jurídica do Recluso na Execução da Pena Privativa de Liberdade Anabela Miranda Rodrigues 12 Crimes Sexuais e Sistema de Justiça Joana Domingues Vargas 13 Informatização da Justiça e Controle Social Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo 14 Policiamento Comunitário e Controle sobre a Polícia A Experiência NorteAmericana Theodomiro Dias Neto 15 Liberdade de Expressão e Direito Penal no Estado Democrático de Direito Tadeu Antonio Dix Silva 16 Correlação entre Acusação e Sentença no Processo Penal Brasileiro Benedito Roberto Garcia Pozzer 267 Xabier arana 17 Os Filhos do Mundo A Face Oculta da Menoridade 19641979 Gutemberg Alexandrino Rodrigues 18 Aspectos JurídicoPenais da Eutanásia Gisele Mendes de Carvalho 19 O Mundo do Crime A Ordem pelo Avesso José Ricardo Ramalho 20 Os Justiçadores e sua Justiça Linchamentos Costume e Conflito Jacqueline Sinhoretto 21 Bem JurídicoPenal Um Debate sobre a Descriminalização Evandro Pelarin 22 Espaço Urbano e Criminalidade Lições de Escola de Chicago Wagner Cinelli de Paula Freitas 23 Ensaios Criminológicos Adolfo Ceretti Alfredo Verde Ernesto Calvanese Gianluigi Ponti Grazia Arena Massimo Pavanini Silvio Ciappi e Vincenzo Ruggiero 24 Princípios Penais Da Legalidade à Culpabilidade Cláudio do Prado Amaral 25 Bacharéis Criminologistas e Juristas Saber Jurídico e Nova Escola Penal no Brasil Marcos César Alvarez 26 Iniciativa Popular Leonardo Barros Souza 27 Cultura do Medo Reflexões sobre Violência Criminal Controle Social e Cidadania no Brasil Débora Regina Pastana 28 Descontinuidade no Envolvimento com o Crime Construção de Identidade Narrativa de ExInfratores Ana Paula Soares da Silva 29 Sortilégio de Saberes Curandeiros e Juízes nos Tribunais Brasileiros 19001990 Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer 30 Controle de Armas Um Estudo Comparativo de Políticas Públicas entre GrãBretanha EUA Canadá Austrália e Brasil Luciano Bueno 31 A Mulher Encarcerada em Face do Poder Punitivo Olga Espinoza 32 Perspectivas de Controle ao Crime Organizado e Crítica à Flexibilização dos Garantias Francis Rafael Beck 268 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 33 Punição Encarceramento e Construção de Identidade Profissional entre Agentes Penitenciários Pedro Rodolfo Bodê de Moraes 34 Sociedade do Risco e Direito Penal Uma Avaliação de Novas Tendências PolíticoCriminais Marta Rodriguez de Assis Machado 35 A Violência do Sistema Penitenciário Brasileiro Contemporâneo O Caso RDD Regime Disciplinar Diferenciado Christiane Russomano Freire 36 Efeitos da Internação sobre a Psicodinâmica de Adolescentes Autores de Ato Infracional Sirlei Fátima Tavares Alves 37 Confisco Penal Alternativa à Prisão e Aplicação aos Delitos Econômicos Alceu Corrêa Junior 38 A Ponderação de Interesses em Matéria de Prova no Processo Penal Fabiana Lemes Zamalloa do Prado 39 O Trabalho Policial Estudo da Polícia Civil no Estado do Rio Grande do Sul Acácia Maria Maduro Hagen 40 História da Justiça Penal no Brasil Pesquisas e Análises Organizador Andrei Koemer 41 Formação da Prova no Jogo Processo Penal O Atuar dos Sujeitos e a Construção da Sentença Natalie Ribeiro Pletsch 42 Flagrante e Prisão Provisória em Casos de Furto Da Presunção de Inocência à Antecipação de Pena Fabiana Costa Oliveira Barreto 43 O Discurso do Telejornalismo de Referência Criminalidade Violenta e Controle Punitivo Marco Antonio Carvalho Natalino 44 Bases Teóricas da Ciência Penal Contemporânea Dogmática Missão do Direito Penal e Polícia Criminal na Sociedade de Risco Cláudio do Prado Amaral 45 A Seletividade do Sistema Penal na Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça O Trancamento da Criminalização Secundária por Decisões em Habeas Corpus Marina Quezado Grosner 46 A Capitalização do Tempo Social na Prisão A Remição no Contexto das Lutas de Temporalização na Pena Privativa de Liberdade Luiz Antônio Bogo Chies 47 Crimes Ambientais à luz do conceito de bem jurídicopenal descriminalização redação típica e inofensividade Guilherme Gouvêa de Figueiredo 269 Xabier arana 48 Um estudo dialógico sobre institucionalização e subjetivação de adolescentes em uma casa de semiliberdade Tatiana Yokoy de Souza 49 Policiando a Polícia A CorregedoriaGeral de Polícia Civil do Rio Grande do Sul 19992004 Saulo Bueno Marimon 50 Repressão Penal da Greve Uma experiência antidemocrática Christiano Fragoso 51 O Caos Ressurgirá da Ordem Marcos Paulo Pedrosa Costa 52 Justiça Restaurativa da Teoria à Prática Raffaella da Porciuncula Pallamolla 53 Lei Cotidiano e Cidade Luís Antônio Francisco de Souza 54 A Recusa das grades Eda Maria Góes 55 O Crime de Tortura e a Justiça Criminal Maria Gorete Marques de Jesus 56 Súmula Vinculante em Matéria Criminal Diogo Tebet 57 Crime e Congresso Nacional uma análise da política criminal aprovada de 1989 a 2006 Marcelo da Silveira Campos 58 DELITO Y POBREzA espacios de intersección entre la política criminal y la política social argentina en la primera década del nuevo siglo Emilio Jorge Ayos 59 Criminalização e Seleção no Sistema Judiciário Penal Oscar Mellim Filho 60 Solidariedade e Gregarismo nas Facções Criminosas Bruno Shimizu 61 Concurso de agentes nos delitos especiais Mariana Tranchesi Ortiz 62 Entre as Leis da Ciência do Estado e de Deus Bruna Angotti 63 A LUTA E A LIDA estudo do controle social do MST nos acampamentos e assentamentos de reforma agrária Franciele Silva Cardoso 64 Entre bens jurídicos e deveres normativos um estudo sobre os fundamentos do Direito Penal contemporâneo Yuri Corrêa da Luz 65 Hassemer e o Direito Penal Brasileiro Direito de Intervenção Sanção Penal e Administrativa Ana Carolina Carlos de Oliveira NORMAS PARA APRESENTAÇÃO E PUBLICAÇÃO DE TEXTOS DE MONOGRAFIAS IBCCRIM As monografias remetidas ao IBCCRIM para análise e eventual publicação deverão ter por tema isolada ou conjuntamente as matérias de Direito Penal Direito Processual Penal Criminologia Política Criminal Sociologia Psicologia Filosofia e correlatas devendo ser redigidas em língua portuguesa ficando a critério do autor o título o enfoque metodológico a abordagem crítica e o posicionamento opinativo As monografias devem obedecer ainda às seguintes exigências 1 As monografias enviadas deverão ser inéditas 2 As referências ou citações de outras obras demandam a indicação explícita dos respectivos autores e fontes As referências bibliográficas deverão ser feitas de acordo com a NBR 60232002 Norma Brasileira da Associação Brasileira de Normas Técnicas ABNT Uma referência bibliográfica básica deve conter sobrenome do autor em letras maiúsculas vírgula nome do autor em letras minúsculas ponto título da obra em itálico ponto número da edição a partir da segunda ponto local dois pontos editora não usar a palavra editora vírgula ano da publicação ponto como no exemplo a seguir NERY JÚNIOR Nelson e NERY Rosa Maria Andrade Código de Processo Civil Comentado 3ª ed São Paulo RT 1999 3 Relação bibliográfica completa das obras citadas ou referidas deverá constar na parte final do texto 4 Os trabalhos deverão ter no mínimo 100 laudas Os parágrafos devem ser justificados Como fonte deve ser empregada o Times New Roman corpo 12 Os parágrafos devem ter entrelinha 15 as margens superior e inferior 25cm e as laterais 30cm O tamanho do papel deve ser A4 5 Os trabalhos deverão ser precedidos de breve Resumo 15 linhas no máximo e de um Sumário do qual deverão constar os itens com até 4 dígitos como no exemplo SUMÁRIO 1 Introdução 2 Responsabilidade civil ambiental legislação 21 Normas clássicas 22 Inovações 221 Dano ecológico 2221 Responsabilidade civil objetiva 6 Todo destaque que se queira dar ao texto impresso deve ser feito com o uso de itálico Não sendo admissíveis o negrito ou a sublinha Citações de textos de outros autores deverão ser feitas entre aspas sem o uso de itálico 7 Não serão devidos direitos autorais ou qualquer remuneração pela publicação em qualquer tipo de mídia papel eletrônica etc O autor receberá gratuitamente 50 exemplares da monografia 8 A monografia terá uma única edição ficando o autor posteriormente liberado para novas edições Os trabalhos que não se ativerem a estas normas serão devolvidos a seus autores que poderão ser remetidos de novo desde que efetuadas as modificações necessárias 9 Serão admitidas monografias resultantes de concursos e títulos acadêmicos inclusive dissertações de mestrado teses de doutorado e concursos relativos a atividade docente Os trabalhos relativos a monografias resultantes de conclusão de cursos de graduação não serão aceitos 10 A seleção dos trabalhos para publicação é de competência do Departamento de Monografias Os trabalhos recebidos para seleção não serão devolvidos 11 Caso a monografia seja aprovada será fixada uma data para publicação por ordem de aprovação após entraremos em contato e enviaremos um contrato padrão que deverá ser devidamente assinado com firma reconhecida e faremos solicitações que entendemos pertinentes 12 Não há custos para o autor e serão publicados aproximadamente 4000 exemplares destes o autor receberá sem custo algum 50 cinquenta A remessa das monografias deve se dar por meio postal para o IBCCRIM ao cuidados do Departamento de Monografias na Rua XI de Agosto 52 1º andar Centro São Paulo SP CEP 01018010 bem como em versão eletrônica para monografiasibccrimorgbr Os trabalhos deverão ser identificados contendo um breve currículo do autor bem como endereço e telefone para contato Produção Gráfica planmais ltda rua dona brígida 754 vila mariana 04111081 são paulo sp tel 11 20612797 planmarkeditoraplanmarkcombr
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Instituto Brasileiro de Ciências Criminais DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Desta edição IBCCRIM Produção Gráfica Planmais Design Ltda Tel 20612797 planmarkeditoraplanmarkcombr INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS IBCCRIM Rua 11 de Agosto 52 2º andar CEP 01018010 São Paulo SP Brasil tel xx 55 11 31111040 troncochave httpwwwibccrimorgbr email monografiaibccrimorgbr Tiragem 4000 exemplares TODOS OS DIREITOS DESTA EDIÇÃO RESERVADOS Exemplar de distribuição restrita e comercialização proibida Impresso no Brasil Printed in Brazil Julho 2014 CIPBRASIL CATALOGAÇÃONAFONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ D848 Lemos Clécio et al Drogas uma nova perspectiva Clécio Lemos Cristiano Avila Marona Jorge Quintas São Paulo IBCCRIM 2014 243 p Monografias 66 Inclui bibliografia ISBN 9788599216385 1 DrogasEntorpecentes 2 Porte de Drogas 3 Política criminal 4 Direito penal I Instituto Brasileiro de Ciências Criminais II Título III Série CDD 3415555 CDU 343575 DIRETORIA DA GESTÃO 20132014 DIRETORIA EXECUTIVA Presidente Mariângela Gama de Magalhães Gomes 1ª VicePresidente Helena Regina Lobo da Costa 2º VicePresidente Cristiano Avila Maronna 1ª Secretária Heloisa Estellita 2º Secretário Pedro Luiz Bueno de Andrade 1º Tesoureiro Fábio Tofic Simantob 2º Tesoureiro Andre Pires de Andrade Kehdi Diretora Nacional das Coordenadorias Regionais e Estaduais Eleonora Rangel Nacif CONSELHO CONSULTIVO Ana Lúcia Menezes Vieira Ana Sofia Schmidt de Oliveira Diogo Rudge Malan Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró Marta Saad OUVIDOR Paulo Sérgio de Oliveira SUPLENTES DA DIRETORIA EXECUTIVA Átila Pimenta Coelho Machado Cecília de Souza Santos Danyelle da Silva Galvão Fernando da Nobrega Cunha Leopoldo Stefanno G L Louveira Matheus Silveira Pupo Renato Stanziola Vieira ASSESSOR DA PRESIDêNCIA Rafael Lira COLéGIO DE ANTIGOS PRESIDENTES E DIRETORES Presidente Marta Saad Membros Alberto Silva Franco Alberto Zacharias Toron Carlos Vico Mañas Luiz Flávio Gomes Marco Antonio R Nahum Maurício Zanoide de Moraes Roberto Podval Sérgio Mazina Martins Sérgio Salomão Shecaira COORDENADORESCHEFES DOS DEPARTAMENTOS Biblioteca Ana Elisa Liberatore S Bechara Boletim Rogério FernandoTaffarello Comunicação e Marketing Cristiano Avila Maronna Convênios José Carlos Abissamra Filho Cursos Paula Lima Hyppolito Oliveira Estudos e Projetos Legislativos Leandro Sarcedo Iniciação Científica Bruno Salles Pereira Ribeiro Mesas de Estudos e Debates Andrea Cristina DAngelo Monografias Fernanda Regina Vilares Núcleo de Pesquisas Bruna Angotti Relações Internacionais Marina Pinhão Coelho Araújo Revista Brasileira de Ciências Criminais Heloisa Estellita Revista Liberdades Alexis Couto de Brito PRESIDENTES DOS GRUPOS DE TRABALHO Amicus Curiae Thiago Bottino Código Penal Renato de Mello Jorge Silveira Cooperação Jurídica Internacional Antenor Madruga Direito Penal Econômico Pierpaolo Cruz Bottini Estudos sobre o Habeas Corpus Pedro Luiz Bueno de Andrade Justiça e Segurança Alessandra Teixeira Política Nacional de Drogas Sérgio Salomão Shecaira Sistema Prisional Fernanda Emy Matsuda PRESIDENTES DAS COMISSÕES ORGANIZADORAS 18º Concurso de Monografias de Ciências Criminais Fernanda Regina Vilares 20º Seminário Internacional Sérgio Salomão Shecaira COMISSÃO ESPECIAL IBCCRIM COIMBRA Presidente Ana Lúcia Menezes Vieira Secretáriogeral Rafael Lira Comissão do 18º Concurso de Monografias de Ciências Criminais Presidente Fernanda Regina Vilares Membros da Comissão Julgadora Ana Gabriela Braga Bruna Angotti Diogo Malan Eduardo SaadDiniz Flávio Antonio da Cruz e Marcel Gonçalves ApresentAção I dealizado e organizado pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais este livro lança olhares multifacetados sobre uma onda mundial de críticas à Política Criminal de Drogas Em maio de 2013 o IBCCRIM com o apoio do Instituto Manoel Pedro Pimentel órgão ligado à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Instituto Basco de Criminologia realizou o Seminário IberoAmericano sobre Drogas contando com representantes brasileiros e da Península Ibérica Três estudiosos estrangeiros somaramse a professores brasileiros advogados e um deputado federal para avaliar a situação atual das drogas no Brasil e na Europa As conclusões das discussões bem como outras contribuições que se somaram aos artigos gestados no Seminário permitiram a elaboração deste livro O livro não contempla somente temas de interesse do público brasileiro e dos profissionais do direito Ele também lança luzes em um processo que está em curso em outros países e que poderá criar uma nova perspectiva de drogas entre nós Concebido de maneira interdisciplinar aponta diferentes caminhos para um processo que se entende irreversível a modificação do sistema de controle das drogas no âmbito mundial Em um momento em que novas iniciativas acontecem nos Estados Unidos e Uruguai importante que avaliemos as experiências do Brasil Portugal e Espanha Ainda que em estágios de desenvolvimento distintos a experiência Iberoamericana se traduz em grande riqueza apesar de todas as suas contradições que o livro revela Da Espanha temos um dos maiores especialistas do assunto Xabier Arana escrevendo sobre Limitaciones legales de la reducción de daños en un contexto prohibicionista De Portugal o Professor da Universidade do Porto Jorge Quintas contribui com Estudos sobre os impactos da descriminalização do consumo de drogas em Portugal Dentre os autores brasileiros muitos abordaram por diferentes visões a política de drogas fazendo a crítica de nosso sistema Foram trazidos artigos de Cristiano Ávila Maronna Paulo Teixeira Maurides de Mello Ribeiro Sergio Salomão Shecaira Renato Watanabe de Morais Ricardo Savignani Alvares Leite e Silvio Eduardo Valente Luciana Boiteux relacionou a evolução do encarceramento a partir da política de drogas assim como Clécio Lemos focou seu olhar para as internações forçadas Maurício Fiore analisou o lugar do Estado na questão das drogas enquanto que Luis Carlos Valois focou a questão processual do direito à prova nos processos de tráfico de drogas Enfim o livro que ora se apresenta é o resultado da atuação dos principais estudiosos do tema no Brasil Portugal e Espanha e pretende ampliar o intenso debate que temos hoje sobre o assunto Esperamos que o atento leitor possa trazer sua crítica e desenvolver novas indagações e problemas com a leitura que fará São Paulo junho de 2014 sumário ApresentAção 7 internAções forçAdAs entre o cAchimbo e A grAde 11 Clécio Lemos os novos rumos dA políticA de drogAs enquAnto o mundo AvAnçA o brAsil corre risco de retroceder 43 Cristiano Avila Maronna estudos sobre os impActos dA descriminAlizAção do consumo de drogAs em portugAl 65 Jorge Quintas drogAs e cárcere repressão às drogAs Aumento dA populAção penitenciáriA brAsileirA e AlternAtivAs 83 Luciana Boiteux o direito à provA violAdo nos processos de tráfico de entorpecentes 105 Luís Carlos Valois umA novA estrAtégiA pArA A políticA de drogAs 131 Paulo Teixeira o lugAr do estAdo nA questão dAs drogAs o pArAdigmA proibicionistA e As AlternAtivAs 137 Maurício Fiore políticA criminAl e redução de dAnos 157 Maurides de Melo Ribeiro breves considerAções sobre A políticA criminAl de drogAs 181 Renato Watanabe de Morais Ricardo Savignani Alvares Leite Sílvio Eduardo Valente reflexões sobre As políticAs de drogAs 235 Sérgio Salomão Shecaira limitAciones legAles de lA reducción de dAños en un contexto prohibicionistA 251 Xabier Arana internAções forçAdAs entre o cAchimbo e A grAde Clécio Lemos Mestre em Direito Penal pela UERJ Professor de Direito Penal e Criminologia na Universidade de Vila Velha Coordenador do IBCCRIM no Espírito Santo Membro do Instituto Carioca de Criminologia ICC Advogado sumário 1 Introdução 2 Droga perigo e criminalidade a defesa social 3 Vício e loucura a ajuda compulsória 4 Biopoder neoliberal entre o cachimbo e a grade 5 Conclusão 6 Referências bibliográficas 1 introdução O Brasil assiste nos últimos anos ao surgimento de práticas e discursos em torno da internação compulsória de dependentes químicos Em termos iniciais tal medida se caracteriza por quatro pontos 1 caráter de Direito Administrativo 2 privação de liberdade sem consentimento 3 contra usuário de droga 4 em locais com fins curativos clínicas ou hospitais Na cidade do Rio de Janeiro desde o ano de 2011 tal prática 12 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA vem sendo utilizada principalmente com crianças e adolescentes moradores de rua sob o argumento de serem usuários de drogas A base normativa está na Resolução 20 da Secretaria Municipal de Assistência Social que dá autorização expressa no art 5º 3º 3º A criança e o adolescente que esteja nitidamente sob a influência do uso de drogas afetando o seu desenvolvimento integral será avaliado por uma equipe multidisciplinar e diagnosticada a necessidade de tratamento para recuperação o mesmo deverá ser mantido abrigado em serviço especializado de forma compulsória A unidade de acolhimento deverá comunicar ao Conselho Tutelar e à Vara da Infância Juventude e Idoso todos os casos de crianças e adolescentes acolhidos O nome dado pela prefeitura foi Protocolo de serviço especializado em abordagem social e sua atuação tem representado a internação forçada de inúmeros menores capturados nas ruas da cidade1 A cidade de São Paulo também se destaca no cenário nacional com uso das internações forçadas Segundo dados oficiais as medidas já se operam sobre jovens e adultos desde 2009 relatando mais de 300 casos concretizados2 Neste o fundamento legal levantado pela autoridade pública tem sido a própria Lei 102162001 Tal norma trata sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais também conhecida como Lei de Reforma Psiquiátrica e em seu art 6º permite a internação psiquiátrica forçada de duas formas a involuntária quando há requerimento de terceiros e a compulsória determinado pela justiça A adesão à internação compulsória de dependentes químicos pelo poder público parece ser crescente principalmente quando se verifica a existência de dois projetos de lei federal acerca do tema 1 Leiase notícia veiculada no site da prefeitura disponível em httpwwwrio rjgov brwebguestexibeconteudoarticleid1858761 Acesso em 13 maio 2013 2 Disponível em httpwwwsaopaulospgovbrspnoticiaslenoticiaphpid225660 Acesso em 10 maio 2013 13 CLéCIO LEMOS O primeiro deles é o PL 766320103 de autoria do Deputado Osmar Terra e propõe a expressa inclusão de autorização das internações forçadas na Lei 113432006 Lei de Tóxicos com a inclusão do art 23A cujo conteúdo é praticamente idêntico ao tratamento do ponto dado pela Lei 102162001 O segundo está em trâmite no Senado PLS 11120104 de autoria do exsenador Demóstenes Torres Seu texto pretende incluir na Lei 113432006 uma autorização para que o juiz de Direito possa compelir o usuário de drogas a um tratamento especializado como forma de substituição da pena de prisão5 Surgem então propostas novas que visam instalar e incentivar o uso das internações forçadas de usuários de drogas em âmbito nacional demandando urgente reflexão da comunidade científica Pesquisando os discursos que pretendem legitimar a internação forçada basicamente podese perceber que eles giram em torno de dois pontos 1 O risco oferecido pelos dependentes químicos à sociedade argumento da defesa social 2 A incapacidade do viciado de se livrar do vício argumento da ajuda compulsória Analisaremos as duas ordens do discurso em itens separados para somente depois propor uma nova leitura do fenômeno 2 droga perigo e criminalidade a defesa social S igmund freud registrou em um de seus textos antropológicos mais marcantes que o malestar é inerente à vida em coletividade Segundo o autor há três motivos a explicar as fontes dessa insatisfação a preponderância da natureza sobre o homem a fragilidade do corpo humano e a insuficiência das normas instituídas para regular os vínculos humanos6 3 Disponível em httpwwwcamaragovbrproposicoesWebprop mostrarintegracodteor 789804filename PL76632010 Acesso em 5 abr 2013 4 Disponível em httpwwwsenadogovbratividademateriadetalhesasppcod mate96509 Acesso em 05 abr 2013 5 Art 47 2º O juiz poderá a qualquer momento encaminhar o acusado para tratamento especializado após ouvida a comissão de que trata o 1º do caput deste artigo 6 Freud Sigmund O malestar na civilização São Paulo Penguin Classics Companhia 14 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Por sua vez freud indica que existem igualmente três caminhos que podem ser identificados como tradicionais formas de inibição do sofrimento ou realização da felicidade poderosas diversões gratificações substitutivas e substâncias inebriantes A primeira seria a satisfação por meio de processos vários de prazer tal como o alcançado por um cientista na produção de uma pesquisa intelectual A segunda seria o caminho das satisfações substitutivas por meio da fantasia aqui se registra o prazer de um adorador por sua religião o gozo com a beleza de uma obra de arte ou o amor de um homem por uma mulher Ao fim a terceira via considerada pelo pai da psicanálise foi justamente o uso de certas substâncias que geram alteração psíquica As ditas substâncias inebriantes operam então uma função de tornar o homem insensível às dores da civilização por um espaço de tempo O serviço dos narcóticos na luta pela felicidade e no afastamento da miséria é tão valorizado como benefício que tanto indivíduos como povos lhe reservaram um sólido lugar em sua economia libidinal A eles se deve não só o ganho imediato de prazer mas também uma parcela muito desejada de independência em relação ao mundo externo Sabese que com ajuda do afastatristeza podemos nos subtrair à pressão da realidade a qualquer momento e encontrar refúgio num mundo próprio que tenha melhores condições de sensibilidade7 Daí a compreensão de que o uso de drogas é algo natural de esperar na constituição de todas as sociedades minimamente complexas Ele se apresenta com relevância tanto na história quanto nos mais diversos povos hoje existentes Por sua vez as políticas proibicionistas de drogas parecem ser uma novidade nas organizações humanas O controle do uso de drogas como política pública tem um percurso de pouco mais de um século apesar de no período inicial sua atuação ter sido de reduzida expressão prática das Letras 2011 p 30 7 Freud Sigmund Op cit p 22 15 CLéCIO LEMOS Tal processo de criminalização inaugurado em volume relevante apenas no século XX partiu basicamente dos EUA vera malaguti nos facilita a compreensão do vetor político a explicar o fenômeno Nos Estados Unidos conflitos econômicos foram transformados em conflitos sociais que se expressaram em conflitos sobre determinadas drogas A primeira lei federal contra a maconha tinha como carga ideológica a sua associação com imigrantes mexicanos que ameaçavam a oferta de mão de obra no período da Depressão O mesmo ocorreu com a migração chinesa na Califórnia desnecessária após a construção das estradas de ferro que foi associada ao ópio No Sul dos Estados Unidos os trabalhadores negros do algodão foram vinculados a cocaína criminalidade e estupro no momento de sua luta por emancipação O medo do negro drogado coincidiu com o auge dos linchamentos e da segregação social legalizada Estes três grupos étnicos disputavam o mercado de trabalho nos Estados Unidos dispostos a trabalhar por menores salários que os brancos8 Somente na década de 1970 as campanhas de lei e ordem forjam a droga como o principal inimigo interno e externo a ser combatido Desde então uma conjunção entre o poder político e a grande mídia de massa produziu o discurso hegemônico da droga transformada em ameaça à ordem social Richard Nixon esteve no comando da maior potência do planeta EUA de 1969 até sua renúncia em 1974 por conta do escândalo de Watergate Durante seu mandato o presidente inaugura a famosa campanha de War on drugs a América estava em guerra declarada contra as drogas Era também uma resposta política dura contra as manifestações estéticas de contracultura iniciadas na década de 1960 O movimento de contestação geralmente relacionado aos hippies popularizou o uso de algumas drogas sobretudo maconha e LSD igualmente como um símbolo de luta contra o pensamento hegemônico ao lado de outras 8 Batista Vera Malaguti Difíceis ganhos fáceis drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro Rio de Janeiro Revan 2003 p 81 16 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA manifestações culturais como a música literatura artes plásticas vestuário e sexualidade salo de carvalho ensina que as campanhas promovidas pelos empresários morais do conservadorismo dariam início ao processo de transnacionalização do controle sobre os entorpecentes9 Há então a construção simbólica de um novo inimigo das nações a ser controlado e eliminado pelo sistema Eis uma das manobras para viabilizar o novo governo de gestão das massas sentencia zaffaroni À medida que se aproximava a queda do muro de Berlim tornou se necessário eleger outro inimigo para justificar a alucinação de uma nova guerra e manter níveis repressivos elevados Para isso reforçouse a guerra contra a droga10 Wacquant indica que a dita guerra contra o narcotráfico foi o principal responsável pelo incremento do sistema prisional norte americano nas últimas décadas em 1975 um em quatro detentos em prisão federal estava preso por violar a legislação sobre entorpecentes vinte anos mais tarde esta taxa atingia 6111 A partir daí a corrente se propagaria pelo mundo assim como o hábito de beber CocaCola12 Já está mais do que provado que o poder ideológico norteamericano não é exercido apenas sobre o setor cultural american way of life mas também fortemente sobre o campo das políticas públicas No Brasil este incremento punitivo se dá a partir da Lei 63681976 que se pôs a estabelecer diretrizes de um fôlego repressivo inovador Aderindo à lógica diferenciadora entre usuário e traficante a lei traz uma série de alterações que se traduzem na elevação substancial do punitivismo em torno das drogas As principais alterações podem ser 9 Carvalho Salo de A política criminal de drogas no Brasil 5 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2010 p 14 10 Zaffaroni Eugenio Raúl O inimigo no direito penal Rio de Janeiro Revan 2007 p 51 11 Wacquant Loïc Punir os pobres a nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos 3 ed rev e ampl 2007 Rio de Janeiro Revan 2003 p 116 12 Pavarini Massimo O encarceramento de massa In Abramovay Pedro Vieira Batista Vera Malaguti org Depois do grande encarceramento Rio de Janeiro Revan 2010 p 311 17 CLéCIO LEMOS assim sintetizadas 1 o tipo penal de tráfico tornase mais abrangente eleva a discricionariedade na punição 2 criase o tipo penal da associação para o tráfico art 14 3 há um grande aumento da pena de prisão prevista antes de 1 a 6 anos depois de 3 a 15 anos 4 surgem causas de aumento de pena que afetam consideravelmente a sanção final aplicada art 18 Mas se já há quase quatro décadas experimentamos esse controle punitivo rigoroso sob o fundamento da defesa da sociedade contra os riscos decorrentes do uso de drogas a novidade agora parece ser a de realizar a mesma privação de liberdade a partir de um campo extrapenal Mesmo argumento nova veste jurídica É certo que criminalização buscava se justificar a partir do suposto perigosismo decorrente da dependência química todavia o controle se fazia mediante tipos penais O Direito Administrativo pelo menos em terras brasileira ainda não havia ousado se inserir no campo das privações de liberdade com fundamento da dependência química A se lembrar a restrição de liberdade administrativa sempre foi exclusiva das ditas prisões militares sanções decorrentes de desvios disciplinares graves praticados por militares O breve resgate de como se procedeu historicamente a criminalização das drogas ao longo do século XX tem muito a nos ensinar principalmente quando visualizamos o fato de que o fundamento sempre foi basicamente o mesmo que agora pretende promover as internações compulsórias repressão com fins de prevenção Mais do que isso a política criminal de drogas em todo mundo ensina algo ainda mais relevante pretender resolver a questão com o uso de restrição de liberdade representa um enorme fiasco É preciso pontuar de forma bem clara que a história da política de criminalização de drogas é também a história de seu fracasso A conclusão evidente mas ao mesmo tempo surpreendente é que a política de guerra às drogas é grande fracasso visto não obter resultado algum na erradicação ou no controle razoável do narcotráfico Por outro lado seu efeito visível é a constante violação dos direitos e garantias fundamentais dos grupos vulneráveis da população13 13 Carvalho Salo de A política criminal de drogas no Brasil 5 ed Rio de Janeiro Lumen 18 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Agora percebase que a mesma lógica de controle associado ao risco social produzido por um usuário pode ser facilmente encontrada na exposição de motivos do citado PL 76632010 Leiase O presente projeto de lei tem por objetivo oferecer proposta para melhorar a estrutura do atendimento aos usuários ou dependentes de drogas e suas famílias e tratar com mais rigor os crimes que envolvam drogas de alto poder de causar dependência Além disso nos arts 10 e 11 do projeto propomos diversos acréscimos na legislação com vistas a melhorar o nível de atenção ao usuário ou dependente de drogas Incluímos os objetivos da atenção que ultrapassam o caráter meramente assistencial caminhando na direção da responsabilização da pessoa pelo dano que produz a si próprio e aqueles que estão mais próximos Explicitamos que é necessário mostrar desaprovação quanto ao uso de drogas como orientação do sistema e tornamos obrigatória a articulação de ações intersetoriais para atingir esses objetivos O mesmo é visto no PLS 1112010 com nítido escopo repressivo de defesa social diante da ameaça que um dependente pode representar O presente projeto de lei é uma resposta ao querer dos especialistas à fracassada despenalização do uso de entorpecentes à dor das famílias e ao resgate da geração que o Brasil pode perder para as drogas A outra parte que trata da popularmente denominada internação compulsória resgata a possibilidade de prisão para o usuário de drogas pois a despenalização foi uma experiência ruim servindo unicamente para potencializar o sofrimento dos próprios viciados e seus familiares Evidentemente o propósito não é levar ao cárcere alguém só por estar fumando crack ou maconha cheirando cocaína usando ecstasy Tomese cuidado com os termos técnicos Juris 2010 p 52 19 CLéCIO LEMOS Vejase que a legitimação da medida de internação compulsória perpetua a lógica de contenção repressiva pelo risco gerado pelo dependente14 Mas devemos resgatar o fato de que o próprio sistema criminal já vinha apresentando uma rejeição por tal argumento numa clara evolução em torno da despenalização do usuário de drogas Urge lembrar que uma das alterações mais significativas operadas pela Lei 113432006 foi justamente a quebra relevante da lógica repressora sobre o usuário Concretamente o crime de porte de drogas para uso próprio sujeitava até então a uma pena de prisão de 6 meses a 2 anos e com a nova lei as penas cabíveis passaram a ser tão somente não detentivas15 Notase que o poder do Estado sobre o usuário sofreu um duro golpe com a modificação da lei Sob nenhum argumento desde 2006 o uso de drogas pode remeter à privação de liberdade Tudo indica que a inserção das internações compulsórias na mecânica de controle estatal também representa uma resposta à nova Lei de Tóxicos Por vezes tal relação nem mesmo é disfarçada como se pode ver na exposição de motivos do PLS 1112010 Para corrigir volta a punição ao usuário não para transformar em tema unicamente de segurança pública uma questão que também é de saúde pública Familiares educadores e o próprio Poder Judiciário ficaram de pés e mãos atados para internar o usuário Se ele quiser se tratar arrumase uma clínica se recusar o tratamento nada se pode fazer além de assistir a autodestruição A criminalização do uso de drogas veio sofrendo críticas progressivas por parte de penalistas ao redor do mundo Mesmo 14 O tom repressivo fica ainda mais claro quando se lê em fartas narrativas que o recolhimento de usuários nas ruas no Rio de Janeiro tem a prática de encaminhar primeiro os detidos à autoridade policial responsável a fim de verificar se há mandado de prisão em aberto contra a pessoa Em vários casos a ação dos agentes das secretarias de saúde efetivamente acabou levando os usuários diretamente para as celas de uma delegacia Leiase em Internação e recolhimento compulsório uma política violadora dos direitos humanos Rio de Janeiro 2013 p 110 15 O atual art 28 da Lei traz três possíveis punições I advertência sobre os efeitos das drogas II prestação de serviços à comunidade III medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo 20 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA aqueles que buscam argumentos apenas dentro da lógica dogmática encontraram fortes subsídios para tal ataque tal como a demonstração de que o uso de drogas não encontra respaldo no princípio fundamental da lesividade A autolesão provocada pelo uso de substâncias entorpecentes foi fortemente contestada como fundamento plausível de incidência penal o critério de lesividade do direito de terceiros é tradicionalmente considerado como pressuposto do bem jurídico penalmente relevante16 Parece claro que se a pena é medida de caráter público e visa condutas nocivas à sociedade não pode recair sobre atos que apenas atingem o próprio agente Basta lembrar que os tipos penais de lesão corporal sempre pressupõem afetação de outrem Além disso o argumento da necessidade de criminalização por conta do risco que representa o usuário para as outras pessoas já vinha sendo descartado O Direito Penal cujo nascimento iluminista representa justamente uma contenção ao poder de punir do Estado já ensinou suficientemente que não pode haver criminalização de atos preparatórios ou qualquer estado interno do indivíduo que ainda não tenha se traduzido num perigo concreto a terceira pessoa Aqui mais uma lição que o penalismo há de deixar para compreensão das internações compulsórias A produção jurídica sobre o sistema de controle do Estado há de se vincular a argumentos de concreta proteção de indivíduos e não de meros riscos hipotéticos A possibilidade de o usuário praticar delitos ou de se tornar violento em decorrência de sua dependência é um fator externo ao fundamento do controle Nem mesmo se pode ter a menor certeza de tais acontecimentos restando como uma contenção de mero risco abstrato um futuro incerto que não pode justificar a restrição de liberdade de um cidadão Ao vincular o uso das internações compulsórias aos argumentos tradicionais que o próprio Direito Penal tem recentemente repelido é de verificar que a nova medida se apresenta como mais do mesmo e não há que se levantar justamente o óbice de que as internações 16 Sobre ofensividade ver DAvila Fabio Roberto Ofensividade em direito penal escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos Porto Alegre Livraria do Advogado 2009 p 99 21 CLéCIO LEMOS não são punitivas pois ao fim são igualmente privação de liberdade contra a vontade do cidadão vulnerando e sujeitando da forma mais repressiva possível o âmbito dos direitos individuais É vestir o lobo com a pele de cordeiro Por força do princípio da Intervenção Mínima ou também chamado de Subsidiariedade é unânime entre os estudiosos de Direito punitivo que as restrições de liberdade devem encontrar resguardo apenas na seara penal pois é justamente ela que assegura uma série de garantias em torno de tão rigorosa coerção Tudo o que difere o Direito Penal das demais áreas do Direito é justamente o seu olhar cauteloso no momento de prender seu complexo de garantias em torno da pena de prisão A lei penal nesse passo é tipicamente reservada às condutas mais nocivas à sociedade pois só assim se justifica ter em suas mãos a exclusiva possibilidade de prisão como ferramenta de controle E lembrese internação é restrição de liberdade seja qual for a tese jurídica encampada Tomando isto como verdade fica fácil perceber que não se pode conceber que o usuário de drogas seja objeto de privação de liberdade pelo caminho administrativo internação compulsória quando a própria lei penal brasileira já tem rejeitado tal medida desde 2006 Se mesmo o setor máximo de controle a ultima ratio do Estado indicou que tal conduta não merece privação de liberdade logicamente não há que se falar em internação forçada por outro ramo do Direito A experiência punitiva revela que a permissão legal para restrição de liberdade é uma medida política que merece toda precaução justamente porque abre um campo de atuação do poder estatal que invariavelmente se exerce de maneira arbitrária e autoritária Em outras palavras em termos de políticas públicas não se consegue implementar um tratamento rigoroso diferenciado para certos setores da população sem que com isso automaticamente se reduzam as garantias de todos os cidadãos perante tal medida17 Mas os estudos de Direito Penal e Criminologia não nos ensinam apenas o grave problema que é autorizar restrição de liberdade sob o 17 Zaffaroni Eugenio Raúl O inimigo no direito penal Rio de Janeiro Revan 2007 p 191 22 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA mero risco possível que é na verdade uma hipótese de antecipação penal Estes saberes nos indicam também que os argumentos legitimantes da prisão tais como prevenção geral e especial ideologias re são tradicionais teorias que nunca se demonstraram concretamente relevantes ou viáveis Logo pretender autorizar a internação compulsória de dependentes químicos mediante o argumento do risco que este indivíduo pode ocasionar tais como o cometimento de crimes patrimoniais para sustentar o seu vício representa o clássico argumento preventivista sob o qual se ancora o sistema penal desde o advento do penalismo ilustrado Já estamos muito bem informados pelas Ciências Criminais que sustentar um sistema repressivo com base na esperança de que se evite o cometimento de delitos só faz incrementar um fundamento de contenção dissociada de riscos reais à sociedade e que tende ao paroxismo18 Afinal de contas é possível fixar limites de contenção ao fundamento das internações compulsórias Qual é o critério que determina se um usuário de substância entorpecente representa risco à sociedade Qual é o momento em que uma pessoa passa a ser considerada dependente química Todas as drogas podem gerar o dito risco social O silêncio esperado sobre estas questões é mais do que eloquente Representa sim que a medida sob o fundamento da prevenção de danos não encontra limites e abre espaço para um controle arbitrário e profundamente seletivo Por tudo considerando que a defesa da internação compulsória por vezes se ancora num tom repressivo e de prevenção fundamentos típicos do setor criminal estamos autorizados ainda a interpretar tal medida como uma forma de preservar o controle sobre os usuários sem as garantias típicas do Direito Penal e do Processo Penal Como já explicado estes dois ramos da dogmática possuem justamente a peculiaridade de oferecer garantias especiais justificáveis pelo alto rigor da medida punitiva de restrição de liberdade 18 Zaffaroni Eugenio Raúl Batista Nilo Alagia Alejandro Slokar Alejandro Direito penal brasileiro primeiro volume Rio de Janeiro Revan 2003 p 119126 23 CLéCIO LEMOS Aliás é útil recordar o exemplo das medidas de segurança Elas não encontram na lei uma limitação temporal máxima ao contrário do que ocorre com as penas19 perdendo tal garantia justamente porque não são consideradas penas É por não se encontrar formalmente no setor de punição penal que as internações de portadores de doença mental que praticaram um injusto penal escorregam da vedação constitucional de penas perpétuas A liberdade condicionada à cessação de periculosidade já permitiu muitas vezes em nosso país o uso de privação de liberdade por vidas inteiras Tudo dentro da legalidade Logo desviar a privação de liberdade dos usuários de drogas do campo penal para o setor administrativo é manter a medida sem as inconvenientes mesmo que precárias proteções que o direito Penal e o Processo Penal oferecem contra o poder do Estado20 O mesmo vale para as crianças e adolescentes internados à força pois a medida viola as garantias oferecidas pelo Estatuto da Lei 80691990 particularmente o indicado no art 106 que restringe a possibilidade de privação de liberdade apenas aos casos de flagrante ou apreensão decretada21 Nestes termos parece que o argumento de defesa social levantado a favor das internações compulsórias não pode prosperar em síntese pelos seguintes motivos 1 a internação compulsória visando defesa social contra o usuário tem exatamente o mesmo fundamento utilizado pela política criminal de Guerra às drogas 2 a história mostrou que a lógica repressiva é ineficaz na redução do uso de entorpecentes 3 a experiência da política criminal de drogas tem promovido estigmatização e violência institucional 4 o risco abstrato de condutas nocivas pelo dependente não justifica sua privação de liberdade 5 se o Direito Penal não autoriza mais a prisão do usuário naturalmente o Direito Administrativo também não pode por força do princípio da subsidiariedade 6 a internação compulsória é uma forma de privação de liberdade sem as garantias do Direito Penal 19 Art 75 O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 30 trinta anos 20 Carvalho Salo de A política criminal de drogas no Brasil 5 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2010 p 293 21 Art 106 Nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente 24 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 3 vício e loucura a ajuda compulsória U m segundo ponto a ser analisado é acerca da internação de dependentes químicos como espécie de ajuda compulsória Este aporte discursivo é reiterado e talvez seja justamente o mais comum entre os que defendem a medida Encontramos tal argumento no corpo de justificação do já comentado Projeto de Lei do Senado 1112010 Vejase O usuário de crack não tem parâmetro com nenhum viciado em outras drogas mesmo as fortes como cocaína e heroína Ele fica igual a um zumbi completamente dominado pelo crack para de estudar para de trabalhar não quer fazer mais nada que não seja fumar as pedras de crack Mesmo assim a família sofre por não poder internálo se ele não quiser e ele não quer porque a única coisa que um viciado em crack quer é fumar mais crack O adolescente cheio de vida vira um molambo em questão de dias E atualmente muito pouco se pode fazer por ele além de lamentar chorar maldizer Nem internar pode só se ele quiser e ele não quer pois tudo o que deseja é fumar pedras não manda mais em si não domina as vontades Querer que um viciado em crack se levante da calçada e em vez da boca de fumo tome o rumo da clínica de recuperação é sonhar que a raríssima exceção se transforme em regra A mesma ideia de perda do autodomínio descontrole psíquico é encontrada amplamente nos discursos políticos Em entrevista concedida ao jornal O Globo o prefeito da cidade do Rio de Janeiro eduardo paes busca fundamentar as internações forçadas da seguinte forma Para o prefeito usuários de crack não têm condições de decidir pela internação Essas pessoas não têm condições de tomar decisão Sempre tive opinião pessoal favorável pela internação compulsória Mas aqui é decisão política do prefeito destacou o Paes que negou estar defendendo a hospicialização ou a prisão dos dependentes22 22 Disponível em httpogloboglobocomriocrackinternacaocompulsoriade adultosdivideopinioes487379 Acesso em 1 ago 2013 25 CLéCIO LEMOS Em longa entrevista concedida ao jornal Folha de SPaulo o famoso Dr dráuzio varela aponta que os argumentos contrários à internação compulsória de dependentes químicos são insensíveis e ideologizados deixando a mensagem de que a medida estatal se justifica pela incapacidade da própria pessoa se conduzir O debate está ideologizado Totalmente É uma questão ideológica e não é hora para isso Estamos numa epidemia quanto mais tempo passa mais gente morre Sempre faço uma pergunta nessas conversas Se fosse sua filha naquela situação você deixaria lá para não interferir no livrearbítrio dela Eu se tivesse uma filha grávida jogada na sarjeta nem que fosse com camisa de força tiraria ela de lá23 Ante tais premissas é possível reconhecer que o argumento e apenas o argumento a ser objeto de análise no presente tópico é de cunho essencialmente médico relativo à área da saúde Em outros termos argumentase que a internação forçada deve se justificar por ser uma medida em defesa da vida do próprio dependente químico que por conta de sua adição já não pode se guiar e encontrar por si só um retorno à vida saudável O interessante é perceber quanto tal legitimação discursiva aproxima o viciado em drogas do rótulo da loucura Notase a esta altura uma nítida confluência de linguagens e concepções O usuário como alguém que não se guia por um senso racional que perde a sanidade esperada perde a capacidade de se conduzir na vida enfim um louco curável Cabe uma análise de como a ideia de tratamento dos loucos e a mecânica das internações se operou na história Sobre essa questão ninguém foi tão longe e perspicaz quanto foucault Em A história da loucura na Idade Clássica o filósofo francês anuncia amplamente que o surgimento dos manicômios e da segregação espacial decorrente da falta de razão loucura só pode ser compreendido mediante um complexo de modificações políticas 23 Disponível em httpwww1folhauolcombrfsppoder90985internacao compulsoriaecaminhoaserpercorridoshtml Acesso em 1º ago 2013 26 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA éticas e econômicas do iluminismo nascente24 O período do grande internamento inaugurado na Europa do século XVII instaura uma preocupação política com a cura no nível discursivo criando uma nova ética acerca da loucura e da sanidade mas cujo mote tem uma ligação intrínseca com a urbanização e o mercantilismo É o que ensina Se o louco aparecia de modo familiar na paisagem humana da Idade Média era como que vindo de um outro mundo Agora ele vai destacarse sobre um fundo formado por um problema de polícia referente à ordem dos indivíduos da cidade Outrora ele era acolhido porque vinha de outro lugar agora será excluído porque vem daqui mesmo e porque seu lugar é entre os pobres os miseráveis os vagabundos25 A clausura passa a ser a chave central do tratamento público dispensado ao insano em descompasso com o método de expulsão que era antes comum aos leprosos A nova ordem determina uma inclusão para excluir A exclusão como meio de tratamento e o tratamento como meio de exclusão A nova visão social do louco é então intensamente produzida por sua objetificação atrás das grades A experiência da loucura passa a ser identificável sob a premissa da cientificidade cuja cura está automaticamente legitimada por agora se enquadrar em um regime médico do campo patológico O que se demonstra é então que a própria internação é o gesto fundador da alienação pois que criador de uma nova visão sobre o louco que produz o louco a partir da era clássica cujo locus adequado só pode ser atrás das grades Tal passo também dependeu da nova ideia instituída de saúde pública a saúde coletiva por excelência o que seria chamado pelo autor de Medicina Social Explica foucault que nos principais países europeus surge uma gestão coletiva da medicina fundamental 24 Foucault Michel A história da loucura na idade clássica São Paulo Perspectiva 2012 p 64 25 Foucault Michel A história da loucura na idade clássica São Paulo Perspectiva 2012 p 63 27 CLéCIO LEMOS para a nova forma de controle demandada pela reestruturação política liberal O controle do corpo é um dos passos iniciais de um domínio inovador promovido a partir do qual o autor desenvolve sua ideia de biopolítica Não apenas ideológico mas igualmente físico é o controle social desenvolvido A estrutura capitalista se investe sobre o corpo Basicamente tal modificação teria se operado de três formas distintas Medicina do Estado na Alemanha Medicina Urbana na França e Medicina da Força de Trabalho na Inglaterra26 De todas estas formas a versão inglesa é a que apresenta uma política de forte segregação e controle social a partir de fundamentações médicas sendo a que acaba predominando a partir de então O saneamento a saúde coletiva e a sanidade passam a ser argumentos que justificam modificações arquitetônicas dos centros urbanos da visão social sobre o doente e do tratamento sobre o louco O biopoder do século XVIII aponta para um Estado cuja preocupação deixa de ser o direito de morte para se fixar na gestão ampla da vida Fazer viver e deixar morrer passa a ser a lógica deste novo tipo de política mediante controles reguladores intensos da população27 A era da governamentalidade se instaura uma política que traz em seu seio o traço da internação que se infiltra espalhando controle Não custa lembrar que no século XVII as ditas casas de internamento chegaram a recolher um em cada cem cidadãos da cidade de Paris28 Percebendo tal perigo já em 1881 o grande machado de Assis registrava em um de suas mais belas ficções as desventuras de um médico muito estudioso e bem intencionado que acabou recolhendo quatro quintos da cidade em seu hospício A Casa Verde instaurou terror porque o velho doutor Bacamarte avançava em seu conceito de loucura cada vez mais abrangente e logo todos tinham alguma alienação identificável Até o dia em que o próprio alienista percebeu 26 Foucault Michel Microfísica do poder 26 ed Rio de Janeiro Graal 2008 p 80 27 Foucault Michel História da sexualidade a vontade de saber 21 ed Rio de Janeiro Graal 2011 p 151 28 Foucault Michel A história da loucura na idade clássica São Paulo Perspectiva 2012 p 48 28 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA que era ele quem deveria se internar29 Por tudo a marca fundamental que nos leva às origens das casas de internação de loucos é de que o ato de internar como vinculado ao discurso médico era em verdade um ato de segregação interessante ao novo modelo político disfarçado de cura A casa dos loucos mais do que segregar alguns poucos inúteis ao trabalho passou a produzir uma nova sensibilidade sobre a pobreza uma nova ética do trabalho e da cidade estruturada para guiar a classe trabalhadora Atesta ricardo genelhu Desafivelase portanto a outra faceta do discurso médico mais uma censitária fiscalizadora controladora e neutralizante qual sendo a da detecção exclusão por inclusão nas instituições totais manicomiais e neutralização dos mentalmente considerados anormais para o mercado de trabalho30 A coação que levou os insanos para trás dos muros também conduziu a miséria para o campo das imoralidades Ao fim há um tom de castigo que se tenta disfarçar mas que está à saciedade expresso nas celas na linguagem e no olhar Bem por isso não é demais afirmar que a internação não girava em torno da cura mas da ética do capital Leiase Antes de ter o sentido médico que lhe atribuímos ou que pelo menos gostamos de supor que tem o internamento foi exigido por razões bem diversas da preocupação com a cura O que o tornou necessário foi um imperativo de trabalho Nossa filantropia bem que gostaria de reconhecer os signos de uma benevolência para com a doença lá onde se nota apenas a condenação da ociosidade31 29 Assis Machado de O alienista Porto Alegre LPM 2012 30 Genelhú Ricardo O médico e o direito penal v1 introdução históricocriminológica Rio de Janeiro Revan 2012 p 196 31 Foucault Michel História da sexualidade a vontade de saber 21 ed Rio de Janeiro Graal 2011 p 64 29 CLéCIO LEMOS A ordem de internação isola os indesejados os elementos perigosos Seu cerne está no poder de polícia que exerce não encontrando nenhuma linha médica a justificála E precisamente por isso o método de restrição de liberdade se multiplicou sobre o território a partir de então repetindo a mesma segregação entre doentes venéreos feiticeiras alquimistas vagabundos delinquentes e outros tantos tipos indesejados32 Na instalação da sociedade disciplinar as instituições de sequestro constituem peça fundamental perfazendo uma rede ampla de panoptismos cadeias asilos hospitais quartéis fábrica escola que visa promover uma nova subjetividade mediante vigilância controle e correção33 Há então uma cumplicidade entre essas figuras o que mostra a insustentabilidade do argumento curativo Não seriam as internações compulsórias de usuários de drogas mais uma cena do mesmo filme O que vemos hoje é o discurso sobre o crack e sobre um suposto quadro de epidemia sendo usado para desqualificar os recursos existentes no âmbito das políticas públicas construídas democraticamente como se estes não dessem conta da situação dos sujeitos que fazem uso do crack embora a rede substitutiva ao modelo manicomial não tenha sido efetivamente consolidada devido ao investimento insuficiente nas políticas públicas de saúde mental O que observamos parece nos apontar na verdade para uma reedição dos manicômios e da lógica do confinamento dos indesejáveis mais uma vez contando com os saberes técnicocientíficos para a legitimação de tais práticas e discursos34 É fértil notar que a já comentada Resolução 20 da Secretaria 32 Anitua Gabriel História dos pensamentos criminológicos Rio de Janeiro Revan 2008 p 243 33 Foucault Michel A verdade e as formas jurídicas 3 ed Rio de Janeiro NAU editora 2002 p 115 34 Souza Alice de Marchi Pereira Lima Isabel Costa Um dejá vu recolhimento e internação compulsória de crianças e adolescentes e a reedição de práticas de controle da pobreza na cidade do Rio de Janeiro In Internação e recolhimento compulsório uma política violadora dos direitos humanos Rio de Janeiro 2013 p 16 30 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Municipal de Assistência Social oficialmente destinada à internação compulsória de menores das ruas do Rio de Janeiro sob o fundamento do vício em tóxicos traz quase imperceptível no seu art 5º uma previsão de que o recolhimento deve se operar mesmo quando não houver indícios de adição agora visando preservar sua integridade física 4º Não obstante o previsto nos 2º e 3º deste artigo a criança e o adolescente acolhidos no período noturno independente de estarem ou não sob a influência do uso de drogas também deverão ser mantidos abrigadosacolhidos de forma compulsória com o objetivo de garantir sua integridade física Se escapam os fundamentos não escapam as prisões Então a suposta epidemia do uso do crack35 e as Cracolândias como locais do absurdo a céu aberto correm para legitimar as internações que já vinham sendo atacadas pelos profissionais da saúde Assim atesta a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e da Cidadania da Alerj em relatório divulgado em junho de 2012 Na contramão desta perspectiva a atual política governamental fortalece a lógica institucionalizante excludente com caráter disciplinar manicomial e de higienização social e portanto inaceitável A história já mostrou que esse modelo sempre esteve a serviço da produção e da manutenção de segregação daqueles considerados diferentes desviantes e por isso perigosos vidas indesejáveis vidas a se deixar morrer36 35 O crack é obtido a partir da mistura da pastabase de coca ou cocaína refinada feita com folhas da planta Erythroxylum coca com bicarbonato de sódio e água Quando aquecido a mais de 100 ºC o composto passa por um processo de decantação em que as substâncias líquidas e sólidas são separadas O resfriamento da porção sólida gera a pedra de crack que concentra os princípios ativos da cocaína O conceito está no site oficial do governo brasileiro disponível em httpwwwbrasilgovbrcrackepossivelvenceradroga composicaoeacaonoorganismo Acesso em 1º ago 2013 36 A citação consta à p 48 O relatório está disponível em httpwwwcrprjorgbr documentos2012relatorioCADQspdf Acesso em 10 ago 2013 31 CLéCIO LEMOS Na mesma linha os profissionais da saúde mental apontam para o aviltamento da lógica de cuidado com o dependente Leiase o publicado no jornal O Globo sobre a decisão da prefeitura do Rio de Janeiro ao implementar as internações compulsórias Já a presidente do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro Vivian Fraga criticou a decisão A ação é contrária a tudo que está escrito conveniado e assinado dentro das políticas de saúde e assistência Ele tomou a decisão à revelia de processos democráticos É uma decisão higienista do prefeito37 Logo as internações compulsórias se anunciam na contramão do movimento antimanicomial que havia encontrando amplo amparo na Lei de Reforma Psiquiátrica 102162001 A desinternação como meta é algo que se encontra de forma relativamente estável na visão mais moderna das ciências envolvidas com saúde mental direcionando a uma diminuição substancial no número de pessoas internadas no país Não por outro motivo o Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro Cedeca firmouse contra as internações compulsórias e nos lembra A partir das conquistas destes movimentos institucionalizadas no SUS no ECA e na lei de Reforma Psiquiátrica uma série de políticas públicas vêm sendo discutidas e deliberadas no âmbito dos conselhos e conferências com a participação da sociedade civil e do poder público No que tange à atenção ao uso de álcool e outras drogas dentro da política de saúde mental são criados dispositivos de base territorial que pressupõem a intersetorialidade um sistema inclusivo e o cuidado em liberdade38 Vejase então que as internações compulsórias de dependentes 37 Disponível em httpogloboglobocomriocrackinternacaocompulsoriade adultosdivideopinioes487379 Acesso em 1º jul 2013 38 Internação e recolhimento compulsório uma política violadora dos direitos humanos Rio de Janeiro 2013 p 15 32 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA químicos encontra forte reação negativa por parte dos profissionais diretamente ligados à Psicologia Assistência Social e aos Direitos Humanos O modelo de internação hospitalização preserva a lógica das instituições totais com uma permanente impossibilidade de o doente agir como pessoa integral como ensina goffman39 Também a ONU tem produzido documentos como reação às práticas de internação forçada em todo o planeta Em um destes documentos podese ler o seguinte A experiência internacional demonstra que a reabilitação e a reintegração de usuários de drogas passam muito mais por intervenções que respeitem os direitos humanos dos usuários e sejam adequadas às suas necessidades sociais e de saúde do que pela sua segregação em centros de tratamento40 Em relatório do chefe do Departamento de Prevenção às Drogas e Saúde do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime ONUDC gilberto guerra resta esclarecido que as Nações Unidas veem as internações compulsórias como medida de forte ineficácia Vários estudos mostram que não há evidências da eficácia dessas medidas que pelo contrário fortalecem o estigma contribuem para o processo de exclusão fragilizam vínculos sociais e aumentam o risco de infecções pelo HIV41 Temos assim fortes indicações dos profissionais diretamente ligados com o tratamento de usuários de drogas de que a restrição de liberdade não é uma boa ferramenta Sua ineficácia está por todos os cantos o que mina qualquer tentativa de insistir na hospitalização forçada sobretudo diante de novos tratamentos mais úteis e que respeitam a liberdade do usuário 39 Goffman Erving Manicômios prisões e conventos São Paulo Perspectiva 2007 p 129 40 Disponível em httpwwwunodcorglpobrazilptfrontpage20130417porquea excecaonaodeveseraregrahtml Acesso em 1 ago 2013 41 Disponível em httpwwwunodcorglpobrazilptfrontpage20130408treating drugdependencefromcoerciontocohesionhtml Acesso em 1º ago 2013 33 CLéCIO LEMOS Dessa maneira parece cair por terra o segundo grande argumento de suporte às internações forçadas de dependentes químicos A restrição de liberdade como ajuda compulsória não pode se sustentar diante do nítido descompasso com as políticas de desintoxicação mais atualizadas assim como não convencem quando vistas no enredo da história das casas de internação Em síntese a internação compulsória de dependentes químicos também não se sustenta com base na suposta proteção do usuário devendo ser rejeitada pelos seguintes motivos 1 a história da medicalização forçada demonstra uma prática higienista contra as classes menos favorecidas representando uma política de segregação social 2 o argumento da cura na verdade esconde uma ação política de gestão das desigualdades sociais que seletivamente serve para re produzir uma punição e uma ética interessante ao poder instituído 3 o entendimento de vanguarda sobre o tratamento tanto de loucos quanto de toxicodependentes preza pela lógica não institucionalizante aderindo ao movimento antimanicomial e ao modelo da nova Lei de Reforma Psiquiátrica 4 a internação compulsória não se mostra eficaz para reduzir o uso de drogas havendo atualmente outras formas de tratamento mais relevantes e que prezam pela autonomia do dependente químico 4 biopoder neoliberal entre o cachimbo e a grade P ara além dos discursos ideologizados parece que a única interpretação possível das internações forçadas de dependentes químicos passa pelo campo da estrutura política Se as políticas de contenção física encontram ao longo da história os mais diversos fundamentos todos já podem ser identificados no nível das justificações que falseiam fluxos de poder implantados em cada seio social Bem por isso com relação às internações compulsórias tentemos mais uma vez escovar a história a contrapelo42 Quadra a esta altura investigar qual funcionalidade a hospitalização forçada vem preencher na estrutura política atual o capitalismo neoliberal brasileiro No esforço de compreender o fenômeno real 42 Benjamin Walter Sobre o conceito de história Obras escolhidas 7 ed São Paulo Brasiliense 1994 v 1 34 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA devemos situálo na conjuntura política e na macroestrutura social43 Por vera Andrade já fomos bem informados de que as políticas de controle não decorrem de transformações unicamente no campo das ideias e sim de transformações no sistema social de forma que as funções declaradas tradicionalmente servem para ocultar exigências e funções latentes44 A bem da verdade os discursos vêm como consequência e não como causa Como já demonstrado os envolvidos com drogas ilícitas viraram objeto de uma dominação política reforçada nas últimas três décadas o Estado neoliberal se instala visando reorganizar um controle que atenda às demandas de uma nova conjuntura socioeconômica programada pelas elites loïc Wacquant indica o surgimento de um Estado Centauro humano com os que estão acima e animal com os que estão abaixo O novo governo da pobreza inventado pelos Estados Unidos para reforçar a normalização da insegurança social confere portanto um significado totalmente novo à noção de aliviar os pobres a contenção punitiva oferece alívio não para os pobres mas sim dos pobres mediante o desaparecimento pela força dos mais problemáticos e o encolhimento do número de pessoas que se beneficiam das políticas sociais por um lado e por outro o crescimento dos calabouços do castelo carcerário45 Um controle agudo das classes baixas é o que dita o ritmo do novo volume de clausura proporcionado pelo Estado neoliberal Nunca esquecendo que a seletividade é um dado estrutural de todos os sistemas de controle46 A mudança do Welfare State para o Estado Neoliberal 43 Baratta Alessandro Criminologia critica e crítica do direito penal 3 ed Rio de Janeiro Revan 2002 p 168 44 Andrade Vera Regina Pereira de A ilusão de segurança jurídica do controle da violência à violência do controle penal 2 ed Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 p 191 45 Wacquant Loïc Apêndice teórico um esboço do Estado neoliberal Discursos sediciosos Rio de Janeiro 1º e 2º sem 2010 ano 15 n 1718 p 143 46 Zaffaroni Eugenio Raúl Batista Nilo Alagia Alejandro Slokar Alejandro Direito penal brasileiro primeiro volume Rio de Janeiro Revan 2003 p 51 35 CLéCIO LEMOS deve então ser compreendida pela inserção do novo paradigma da insegurança decorrente da desregulação econômica e do afastamento do Estado das políticas sociais Como destaca Wacquant a grande artimanha do Neoliberalismo foi tentar transformar a insegurança social real em insegurança penal falsa Daí o grande encarceramento legitimado pela suposta escalada da violência e do perigo47 Desta forma se fixa um modelo eficientista de tolerância zero e segregação da miséria como nunca antes visto A ordem é separar fisicamente os desajustados sociais e a economia nunca produziu tantos desajustados como hoje48 Nesse bojo deve ser lida a nova caminhada em torno das internações compulsórias pois apresentam apenas uma nova face para a continuidade da exclusão dos indesejados consumidores falhos49 A se verificar no citado Protocolo de serviço especializado em abordagem social da prefeitura do Rio de Janeiro o art 1º parágrafo único deixa bem nítido que as internações compulsórias são especificamente direcionadas às populações de rua Para efeitos desta resolução são consideradas pessoas em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento de forma temporária ou permanente bem como as unidades de acolhimento para pernoite ou como moradia provisória vera malaguti batista pôde perceber tal seletividade quando analisou a difícil realidade dos jovens pobres na cidade do Rio de Janeiro apreendidos em função das drogas Havia sempre ali um 47 Wacquant Loïc Punir os pobres a nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos 3 ed rev e ampl 2007 Rio de Janeiro Revan 2003 p 39 48 Dornelles João Ricardo W Conflito e segurança entre pombos e falcões 2 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 p 61 49 Zaffaroni Eugenio Raúl BATISTA Nilo Alagia Alejandro Slokar Alejandro Direito penal brasileiro primeiro volume Rio de Janeiro Revan 2003 p 484 36 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA certo olhar seletivo50 reproduzido nos pareceres e nas decisões judiciais Portanto nada afasta a premissa de que a rede de internação forçada é um confiscar da liberdade que se soma aos mesmos padrões de exclusão do sistema social A visão seletiva do sistema penal para adolescentes infratores e a diferenciação no tratamento dado aos jovens pobres e aos jovens ricos ao lado da aceitação social que existe quanto ao consumo de drogas permitenos afirmar que o problema do sistema não é a droga em si mas o controle específico daquela parcela da juventude considerada perigosa51 A nova onda de internações que aparentemente conta com adesão de amplos seguimentos da sociedade52 indica um reclamo reacionário de grande escala infelizmente instalado na subjetividade de boa parte da sociedade brasileira atual mas ao mesmo tempo projetada e motivada por certos grupos de poder Todo movimento político repressor possui seus empreendedores morais53 mais diretamente interessados que obviamente produzem aceitação no nível discursivo Não há como ignorar a existência de um mercado interessado na questão A realidade das ditas comunidades terapêuticas são uma constante nos debates em torno da internação forçada54 Além disso devese perceber o contexto atual em torno das proximidades dos megaeventos no país indicando uma demanda imediata por encobrir a conflitividade social e a miséria aqui instalada nilo batista é certeiro ao localizar o que há de próprio na nova 50 Batista Vera Malaguti Difíceis ganhos fáceis drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro Rio de Janeiro Revan 2003 p 131 51 Idem ibidem p 135 52 Foi divulgada na mídia nacional uma pesquisa realizada pelo Datafolha segundo a qual 90 da população aprova as internações compulsórias Disponível em httpwww1 folha uolcombrcotidiano103915990apoiaminternacaoinvoluntariadeviciados shtml Acesso em 9 maio 2013 53 Becker Howard Saul Outsiders estudos de sociologia do desvio Rio de Janeiro Zahar 2008 p 158 54 O art 25 da atual lei de tóxicos indica a possibilidade de recursos públicos para unidades privadas a depender de disponibilidade orçamentária Já o PL 76632010 traz a previsão direta de atendimento em rede privada às expensas do poder público vide nova redação do art 23 2º da Lei de Tóxicos 37 CLéCIO LEMOS medida de exclusão que se apresenta no país Este programa como se vê é grosseiramente inconstitucional e ilegal atingindo no coração os avanços do Estatuto da Criança e do Adolescente e a Convenção na qual ele inspirado e restaurando as políticas higienistas autoritárias da primeira República Não obstante a assepsia social das ruas e a detenção imotivada da pobreza urbana foi saudada entusiasticamente pela mídia conservadora Não admira é imenso o pedaço do bolo dos negócios olímpicos e futebolísticos que tocará aos meios de comunicação Estranho é tal Resolução ter obtido apoio em setores do Ministério Público e mesmo do Poder Judiciário55 No mesmo sentido apontam as psicólogas Alice souza e isabel lima reforçando a relação entre a segregação dos pobres e os eventos de interesse de grupos econômicos Presenças que tanto desagradam o olhar daqueles que querem ver e melhor circular num modelo de cidade limpa saudável funcional Todo ano é possível observar a intensificação dessas operações no período imediatamente anterior às comemorações de Ano Novo e Carnaval para mencionar o mais óbvio Mas a preocupação em retirar essa população das ruas e das vistas dos transeuntes é especialmente maior em momentos que antecedem grandes eventos que mobilizam interesses do empresariado e de governantes Assim foi nos meses que precederam acontecimentos como a ECO 92 os jogos Panamericanos de 2007 os Jogos Militares de 2011 a Rio20 em 2012 e assim tem sido na época atual tempos de preparação para a Copa das Confederações de 2013 Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 201656 55 Batista Nilo Merci Loïc Internação e recolhimento compulsório uma política violadora dos direitos humanos Rio de Janeiro 2013 p 20 56 Souza Alice de Marchi Pereira Lima Isabel Costa Um dejá vu recolhimento e internação compulsória de crianças e adolescentes e a reedição de práticas de controle da pobreza na cidade do Rio de Janeiro Internação e recolhimento compulsório uma política violadora dos direitos humanos Rio de Janeiro 2013 p 13 38 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Na estrutura do Brasil neoliberal a hospitalização compulsória representa uma nova ferramenta agora mais simplificada de reforçar os altos índices de segregação já percebidos no campo penal Vale lembrar que desde a instalação do Consenso de Washington o número de pessoas presas no país teve uma elevação superior a quatro vezes ostentando hoje mais de meio milhão atrás das grades57 A nova sociedade de controle58 encontra aliados na estrada da contenção dos inadequados A internação compulsória nestes termos é facilmente compreendida como ferramenta de controle da vida agora redefinida e remodelada Vale lembrar a passagem de Agamben Uma das características essenciais da biopolítica moderna que chegará no nosso século século XX à exasperação é a sua necessidade de redefinir continuamente na vida o limiar que articula e separa aquilo que está dentro daquilo que está fora59 Percebendo todo esse quadro que se desenha aos nossos olhos maria lúcia Karam indica com palavras precisas a realidade das internações O pânico criado em torno do crack serve de pretexto para a concretização do indisfarçável objetivo de limpeza das ruas afastandose das vistas sensíveis dos autointitulados cidadãos de bem e dos tão esperados turistas os incômodos miseráveis que sem condições mínimas de sobrevivência sem amparo sem assistência sem moradia sem formação educacional sem lazer perambulam pelas ruas sem destino e encontram nas drogas crack ou outras um dos poucos alívios para suas privações e sofrimentos60 57 Os dados estão no site do Infopen Disponível em httpwwwinfopengovbr Acesso em 10 abr 2013 58 Deleuze Gilles Post scriptum sobre as sociedades de controle Conversações Rio de Janeiro Editora 34 1992 p 219226 59 Agamben Giorgio Homo sacer o poder soberano e a vida nua 2 ed Belo Horizonte Editora UFMG 2010 p 127 60 A citação se encontra no site do CedecaRJ Disponível em httpcedecarjhotglueme 39 CLéCIO LEMOS A prática higienista de segregação sobre os dependentes químicos no Brasil aflora como neutralização do excedente humano dos antissociais Mais uma vez foucault O internamento seria assim a eliminação espontânea dos associais a era clássica teria neutralizado com segura eficácia tanto mais segura quanto cega aqueles que não sem hesitação nem perigo distribuídos entre as prisões casas de correção hospitais psiquiátricos ou gabinetes de psicanalistas61 Posto isso as vãs que passam à noite recolhendo os pobres estes que insistem em usar drogas que não se vendem em farmácia conduzemnos a uma prática de higienização social readaptada a fim de tornar cada vez mais invisíveis os refugos da estrutura econômica Resta rejeitar a nova modalidade de segregação social dos miseráveis conter esse vetor biopolítico que representa um novo fôlego da mesma exclusão típica dos tempos neoliberais Em resumo a implantação da política de internação compulsória de dependentes químicos no Brasil deve ser repudiada porque representa 1 Reforço da lógica de confinamento típico do Estado Neoliberal 2 Medida de controle social das classes baixas que se avolumam diante da estrutura social profundamente desigual produzida pelo Neoliberalismo 3 Nova demanda emergencial de contenção física dos pobres decorrente dos megaeventos que se aproximam do país principalmente Copa do Mundo e Olimpíadas 5 conclusão P ostos de lado todos os argumentos legitimantes já não podemos respaldar a internação compulsória de dependentes químicos no Brasil Conforme demonstrado não pode convencer o fundamento de relatorio Acesso em 10 jul 2013 61 Foucault Michel A história da loucura na idade clássica São Paulo Perspectiva 2012 p 79 40 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA hospitalização forçada com base na defesa social pelo risco que o dependente químico supostamente representa cometendo condutas violentas e antissociais Em verdade nada prova que o dependente químico representa mais perigo do que uma pessoa não usuária e por isso não se pode justificar uma política de segregação Além disso a se lembrar os supostos crimes que podem ser cometidos por usuários furtos roubos continuam recebendo punição estatal De igual forma não se demonstra relevante o discurso de internação forçada como uma ajuda necessária diante da perda do autocontrole A confluência com o discurso médico só torna ainda mais claro o fato de que as internações são práticas higienistas na linha do positivismo criminológico Por sua vez como visto as práticas de desintoxicação mais encampadas por especialistas de vanguarda tanto da área de saúde mental quanto das ciências sociais são no sentido do cuidado em liberdade É fundamental implicar o agente no tratamento não objetificálo Por tudo resta elucidado que só se consegue compreender a campanha a favor das hospitalizações coercitivas quando se percebe uma nova demanda por ordem típica do Brasil neoliberal agora reforçada pelos grandes eventos que se aproximam do país fazendo circular cifras que não podem dividir o mesmo espaço com a pobreza visível A medida de internação forçada involuntária ou compulsória não pode ser encampada porque somente auxilia uma política de segregação das classes pobres que são expulsas do banquete da nova ordem Tal política vulnera ainda mais as classes desfavorecidas clientela tradicional das segregações sanitárias desde o advento da grande internação do século XVII possibilitando incrementar um sistema excludente desigual perverso e opressor Vale concluir que não é possível aderir a qualquer tentativa de criação de leis com o intento de instaurar tais práticas no Brasil devendo cair por terra os projetos PL 76632010 e PLS 1112010 Creio termos podido aqui atacar todos os seus motivos declarados Resistindo aos discursos de que a internação compulsória deve ser exceção e não regra fica a nossa posição a internação compulsória não deve ser exceção nem regra Ela simplesmente não pode ser 41 CLéCIO LEMOS 6 referências bibliográficas AbrAmovAy Pedro Vieira bAtistA Vera Malaguti coords Depois do grande encarceramento Rio de Janeiro Revan 2010 AgAmben Giorgio Estado de exceção Homo sacer II 2 ed São Paulo Boitempo 2003 Homo Sacer O poder soberano e a vida nua I 2 ed Belo Horizonte Editora UFMG 2004 O que resta de Auschwitz Homo sacer III São Paulo Boitempo Editorial 2008 Althusser Louis O futuro dura muito tempo Os fatos São Paulo Companhia das Letras 1992 AndrAde Vera Regina Pereira de Pelas mãos da criminologia Rio de Janeiro Revan 2013 A ilusão de segurança jurídica do controle da violência à violência do controle penal 2 ed Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 AnituA Gabriel História dos pensamentos criminológicos Rio de Janeiro Revan 2008 Assis Machado de O alienista Porto Alegre LPM 2012 bArAttA Alessandro Criminologia crítica e crítica do direito penal Rio de Janeiro Revan 1997 bAtistA Vera Malaguti O medo na cidade do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Revan 2003 Difíceis ganhos fáceis drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro Rio de Janeiro Revan 2003 bAtistA Nilo merci Loïc In Internação e recolhimento compulsório uma política violadora dos direitos humanos Rio de Janeiro 2013 becker Howard Saul Outsiders estudos de sociologia do desvio Rio de Janeiro Zahar 2008 burgiermAn Denis Russo O fim da guerra a maconha e a criação de um novo sistema para líder com as drogas São Paulo Leya 2011 cArvAlho Salo de A política criminal de drogas no Brasil 5 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2010 Antimanual de criminologia 5 ed São Paulo Saraiva 2013 cArvAlho Thiago Fabres de O direito penal do inimigo e o direito penal do homo sacer da baixada exclusão e vitimação no campo penal brasileiro Discursos Sediciosos Rio de Janeiro RevanICC ano 17 n 1920 2012 costA Jurandir Freire Ética e espelho da cultura 3 ed Rio de Janeiro Rocco 2000 História da psiquiatria no Brasil um corte ideológico 5 ed Rio de Janeiro Garamond 2007 dAvilA Fabio Roberto Ofensividade em direito penal escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos Porto Alegre Livraria do Advogado 2009 deleuze Gilles Postscriptum sobre as sociedades de controle Conversações Rio de Janeiro Editora 34 1992 dornelles João Ricardo W Conflito e segurança entre pombos e falcões 2 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 42 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA FoucAult Michel História da sexualidade a vontade de saber 21 ed Rio de Janeiro Graal 2011 Vigiar e punir 38 ed Petrópolis Vozes 2010 Em defesa da sociedade São Paulo Martins Fontes 2005 O nascimento da biopolítica São Paulo Martins Fontes 2008 A verdade e as formas jurídicas 3 ed Rio de Janeiro NAU 2002 Microfísica do poder 26 ed Rio de Janeiro Graal 2008 O nascimento da clínica 6 ed Rio de Janeiro Forense 2008 A história da loucura na idade clássica São Paulo Perspectiva 2012 Freud Sigmund O malestar na civilização São Paulo Penguin Classics Companhia das Letras 2011 gArlAnd David A cultura do controle crime e ordem social na sociedade contemporânea Rio de Janeiro Revan 2008 giorgi Alessandro de A miséria governada através do sistema penal Rio de Janeiro Revan 2006 genelhú Ricardo O médico e o direito penal v1 introdução históricocriminológica Rio de Janeiro Revan 2012 goFFmAn Erving Manicômios prisões e conventos São Paulo Perspectiva 2007 rusche George kircheimer Otto Punição e estrutura social Rio de Janeiro Revan 2004 sAntos Juarez Cirino dos A criminologia radical 3 ed Curitiba ICPC Lumen Juris 2008 WAcquAnt Loïc Punir os pobres a nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos 3 ed rev e ampl 2007 Rio de Janeiro Revan 2003 Apêndice teórico um esboço do Estado neoliberal Discursos Sediciosos Rio de Janeiro ano 15 n 1718 p 137162 1º e 2º sem 2010 zAFFAroni Eugenio Raúl A palavra dos mortos conferências de criminologia cautelar São Paulo Saraiva 2012 Em busca das penas perdidas 5 ed 2001 Rio de Janeiro Revan 1991 O inimigo no direito penal Rio de Janeiro Instituto Carioca de Criminologia Revan 2007 bAtistA Nilo AlAgiA Alejandro slokAr Alejandro Direito penal brasileiro primeiro volume Rio de Janeiro Revan 2003 os novos rumos dA políticA de drogAs enquAnto o mundo AvAnçA o brAsil corre risco de retroceder Cristiano Avila Maronna Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP 2º VicePresidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Membro da Rede Pense Livre por uma política de drogas que funcione Advogado sumário 1 Considerações introdutórias 2 O ocaso da proibição e a construção de um novo modelo de política de drogas 21 Violência 22 Corrupção 23 Encarceramento em massa 3 A política de drogas brasileira e os riscos de retrocesso que a circundam 4 O admirável mundo novo pósproibição as novas experiências reguladoras 5 À guisa de conclusão 6 Referências bibliográficas 1 considerações introdutórias O movimento por reformas nas políticas de drogas vive um momentum especial A legalização da maconha nos EUA por meio de plebiscitos realizados em novembro de 2012 e muito 44 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA especialmente a aprovação da lei uruguaia que autoriza a produção distribuição e consumo da erva representam o início de uma nova era na qual a proibição dará lugar à regulação Uruguai Washington e Colorado são hoje a grande inspiração para todos aqueles que lutam para construir uma política de drogas justa eficaz e humana A aparente rendição à realidade que tem ditado o tom das conformadas manifestações do governo federal estadunidense bem assim a protocolar reprovação manifestada pela Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes Jife relativamente à inédita iniciativa uruguaia indicam que a mudança de paradigma é inevitável Nesse sentido o avanço de leis que autorizam o uso medicinal da maconha inclusive fora dos EUA como ocorreu na República Checa e em Israel a institucionalização de iniciativas como os clubes sociais canábicos no País Basco na Espanha e os crescentes e inescondíveis sinais de insatisfação de diversas nações com relação ao modelo de controle de drogas vigente no planeta apontam que o ocaso do modelo proibicionista é irreversível Mais e mais pessoas estão se convencendo de que o uso de psicoativos não deve ser tratado como um problema do sistema de justiça criminal Para consolidar esse processo de mudança internacional o papel desempenhado pela América Latina em especial pelo Brasil é estratégico Enquanto grande parte de seus vizinhos deixou de incriminar o porte para consumo pessoal pela via legislativa ou por ordem judicial Argentina Uruguai Chile Peru Equador Colômbia no Brasil a Lei 113432006 tipifica como crime referida conduta ainda que cominando sanções alternativas à prisão substitutivos penais Além disso a lei brasileira não diferencia usuários de traficantes com base em critérios objetivos como por exemplo a quantidade de droga apreendida o que propicia estímulo ao encarceramento em massa em razão do enquadramento de jovens usuários das classes subalternizadas como traficantes O quadro tende a piorar com a perspectiva de aprovação de projeto de lei de autoria do deputado federal osmar terra PMDBRS que está tramitando no Senado Federal 45 Cristiano avila Maronna 2 o ocaso da proibição e a construção de um novo modelo de política de drogas A pós mais de cem anos de vigência o proibicionismo que pretende impor um mundo livre de certas drogas mostrouse um rematado miserável e retumbante fracasso Malgrado o altíssimo investimento financeiro bem como o enorme custo humano e social da war on drugs as drogas ilegais nunca foram tão abundantes tão acessíveis tão baratas e tão potentes como nos dias atuais1 Sob qualquer ângulo a política de drogas proibicionista falhou Jamais viveremos em um drug free world E os danos causados pelo modelo repressivo são ainda mais graves do que o uso problemático de certas substâncias psicoativas entre os quais se destacam a violência a corrupção e o encarceramento em massa2 21 violência S egundo o ideário proibicionista a violência da war on drugs é consequência direta do uso de drogas de modo que o usuário é em última análise o responsável por essa situação grave que compromete a segurança da sociedade em todo o planeta Essa conclusão é falaciosa e não resiste aos fatos Em primeiro lugar é preciso deixar claro que a relação de seres humanos com substâncias psicoativas é ancestral sempre existiu 1 Werb D kerr T nosyk B et al The temporal relationship between drug supply indicators an audit of international government surveillance systems BMJ Open 20133 e 003077 doi101136bmjopen2013 003077 2 gAry S Becker kevin M Murphy no artigo Have We Lost the War on Drugs After more than four decades of a failed experiment the human cost has become too high It is time to consider the decriminalization of drug use and the drug market publicado no Wall Street Journal em 04012012 afirmam The paradox of the war on drugs is that the harder governments push the fight the higher drug prices become to compensate for the greater risks That leads to larger profits for traffickers who avoid being punished This is why larger drug gangs often benefit from a tougher war on drugs especially if the war mainly targets smallfry dealers and not the major drug gangs Moreover to the extent that a more aggressive war on drugs leads dealers to respond with higher levels of violence and corruption an increase in enforcement can exacerbate the costs imposed on society Disponível em httponlinewsjcomnewsarticlesSB100014241278873243740045782 17682305605070 Acesso em 11 dez 2013 46 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA e sempre existirá Tratase da busca por alterações da consciência ordinária de uma constante antropológica3 Jamais houve violência nessa relação até que se optou pelo modelo bélico E a violência é ínsita à guerra No caso brasileiro a violência é um problema grave Segundo o Mapa da Violência 20134 o número de homicídios no Brasil especialmente os praticados com arma de fogo é comparável ao de zonas de guerra Somos o primeiro país no ranking de homicídios por arma de fogo 35 mil por ano e com o maior número de cidades 15 entre as cinquenta mais violentas do globo5 Em 2010 mais de 50 mil pessoas foram vítimas de homicídio taxa de 274 pessoas por 100 mil habitantes As estatísticas mostram que em nosso país está em curso uma guerra contra os pobres as principais vítimas da violência Mostram também que a letalidade da nossa polícia é muito superior à de outros países6 Mostram ainda que a violência no trânsito é uma das maiores do mundo Mostram enfim que o problema da violência no Brasil nada tem a ver com o consumo de drogas ilegais mas com desigualdade e carência de políticas públicas capazes de promover efetivamente a inclusão social dos mais pobres e de garantir a segurança de todos Nesse contexto é urgente a desmilitarização da polícia O modelo de polícia militarizada verdadeiro entulho autoritário é incompatível com o regime democrático e dificulta a consolidação de uma cultura de respeito aos direitos humanos em nossa sociedade Igualmente o uso das Forças Armadas em operações de combate a organizações criminosas que se dedicam ao comércio varejista de drogas ilegais corolário do modelo de combate militarizado próprio 3 hAssemer Winfried Descriminalização dos crimes de drogas Direito penal Fundamentos estrutura política Porto Alegre Sergio Antonio Fabris 2008 p 326 4 httpwwwmapadaviolenciaorgbrindexphp Acesso em 6 dez 2013 5 mAck Daniel Insegurança latina passa pelo controle ineficiente de armas Disponível em httpwww1folhauolcombrfspmundo146965insegurancalatinapassa pelocontroleineficientedearmasshtml Acesso em 15 jan 2014 6 O Conselho de Direitos Humanos da ONU recomendou ao Brasil a extinção da Polícia Militar como forma de combater execuções extrajudiciais Cf Conselho da ONU recomenda fim da Polícia Militar no Brasi Disponível em httpg1globocom mundonoticia201205paisesdaonurecomendamfimdapoliciamilitarnobrasil html Acesso em 11 dez 2013 47 Cristiano avila Maronna do paradigma proibicionista representa opção autoritária de controle social em nome da segurança nacional própria de regimes ditatoriais7 22 corrupção A corrupção também é um problema grave no Brasil Em 2013 o país ficou em 72º lugar entre 177 países segundo o Índice de Percepção de Corrupção IPC8 divulgado pela Transparência Internacional com a nota 42 em uma escala que vai de zero mais corrupto a 100 menos corrupto O ranking é considerado a mais importante avaliação sobre como a corrupção é percebida no setor público de cada país Quando se trata da questão das drogas a corrupção está sempre presente Não por acaso o principal beneficiário da proibição de certas drogas é o crime organizado transnacional cujo potencial corruptor é quase ilimitado Nos EUA durante a Lei Seca Volstead Act o comércio clandestino de bebidas alcoólicas proporcionou vultosos ganhos financeiros para figuras como Al Capone Meyer Lansky e Lucky Luciano entre outros capi mafiosos9 Nesse caso a proibição também não foi capaz de impedir que pessoas ingerissem bebidas alcoólicas mas causou muitos danos sociais como o aumento da corrupção e de problemas de saúde relacionados ao consumo de bebidas alcoólicas produzidas clandestinamente em precárias condições sanitárias No Brasil as organizações criminosas que comandam o negócio das drogas dependem da colaboração de agentes estatais Há inúmeros casos envolvendo corrupção de membros do Ministério Público Executivo Legislativo e Judiciário em todos os âmbitos mas é na polícia que esse problema se torna mais visível 7 bAtistA Nilo Ainda há tempo de salvar as Forças Armadas da cilada da militarização da segurança pública In bAtistA Vera Malaguti org Paz armada Rio de Janeiro Revan 2012 p 4754 8 Disponível em httpcpitransparencyorgcpi2013results Acesso em 11 dez 2013 9 english T J O noturno de Havana como a máfia conquistou Cuba e a perdeu para a revolução Trad Santiago Nazarian Editora Seoman 48 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA O problema da corrupção na polícia existe há muito tempo10 Falando especificamente do Estado de São Paulo no qual a Polícia Judiciária possui um Departamento Estadual de Repressão ao Narcotráfico Denarc a suspeita de vínculos entre policiais e criminosos reaparece de tempos em tempos11 Em 2007 ao ser preso o traficante colombiano Juan Carlos Abadia declarou que a melhor forma de combater o tráfico de drogas em São Paulo seria fechar o Denarc12 Embora cada Estado da Federação tenha sua própria estrutura o quadro não é muito diferente Seria injusto contudo atribuir à polícia a integral responsabilidade pelo malogro da war on drugs Como a repressão penal ao tráfico de drogas está fadada ao fracasso como demonstram os últimos cem anos de proibicionismo buscouse perseguir o lucro advindo dessa atividade criminosa por meio da incriminação da lavagem de dinheiro a partir da Convenção de Viena de 1988 A ideia deu tão certo que o legislador brasileiro influenciado pelo Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro Gafi decidiu suprimir o rol de crimes antecedentes expandindo a incidência do tipo da lavagem a todo e qualquer delito inclusive contravenção penal nos termos do que dispõe a Lei 126832012 Além disso a nova lei ampliou as obrigações de fiscalização impostas a particulares com base na constatação de que sem a colaboração do setor privado o Estado não reúne condições de reprimir a lavagem de dinheiro Esse expansionismo penal desmedido foi objeto de severas críticas por parte dos estudiosos13 e gera problemas graves na aplicação prática do referido diploma 10 Cf mingArdi Guaracy Tiras gansos e trutas São Paulo Scritta 1992 11 MP flagra 18 casos de corrupção policial em investigação sobre facção criminosa de SP grampos mostram relatos de pagamento de propina para que traficantes não sejam autuados em SP httpogloboglobocompaismpflagra18casosdecorrupcao policialeminvestigacaosobrefaccaocriminosadesp10385018 Acesso em 11 dez 2013 Operação prende chefe de inteligência do Denarc em SP Acesso em 11 dez 2013 12 Abadía Para acabar com tráfico basta fechar o Denarc denúncias de ligação com o tráfico de drogas são comuns no departamento da polícia paulista Disponível em httpacervoestadaocombrnoticiasacervoabadiaparaacabarcomtraficobasta fecharodenarc91560htm Acesso em 11 dez 2013 13 Por todos cf Nova lei de lavagem de dinheiro o excesso e a banalização editorial Boletim IBCCRIM 237 ago 2012 49 Cristiano avila Maronna A lavagem de dinheiro representa hoje um dos grandes desafios globais e está intimamente relacionada à corrupção O dinheiro sujo normalmente trilha os conhecidos itinerários dos centros financeiros offshore e de paraísos fiscais e conta com a ativa colaboração dos bancos HSBC Western Union Bank of America JP Morgan Chase Co Citigroup Wachovia entre muitos outros grandes e lucrativos bancos foram acusados pelo governo americano de não cumprir as regras antilavagem de dinheiro14 Curiosamente o negócio da droga gera riqueza nos países consumidores como EUA e membros da Comunidade Europeia e não nos países produtores os quais arcam com as mazelas decorrentes da war on drugs especialmente violência e corrupção Estudo conduzido por Alejandro gavíria e daniel mejía Antidrugs Policies in Colombia Successes Failures and Wrong Turns revelou que menos de 3 do valor gerado pela venda de cocaína fica na Colômbia e que mais de 97 é capitalizado pelas organizações criminosas e pelos bancos que lavam o dinheiro do tráfico em países centrais consumidores15 Os casos da Colômbia e do México são paradigmáticos na medida em que evidenciam o custo social econômico e político suportado por países produtores de drogas ilegais enquanto nos países consumidores especialmente nos EUA e na GrãBretanha os lucros do tráfico de drogas são usufruídos No Brasil a aprovação da Lei Anticorrupção que responsabiliza administrativa e civilmente pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública nacional ou estrangeira Lei 128462013 representa uma evolução nos mecanismos de controle social destinados a coibir práticas corporativas ilegais 14 conroy Bill Banks Are Where the Money Is In The Drug War Disponível em httpnarcospherenarconewscomnotebookbillconroy201212banksarewhere moneydrugwar Acesso em 11 dez 2013 15 Disponível em httpwwwtheguardiancomworld2012jun02westernbanks colombiancocainetrade Acesso em 12 dez 2013 50 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 23 encarceramento em massa O superencarceramento é uma consequência inevitável da war on drugs A seletividade da intervenção penal faz recair sobre as classes subalternizadas a pesada tenaz da repressão A prisão como negócio é a ideia subjacente ao discurso punitivista que prega a privação da liberdade como única sanção adequada ao combate ao crime O fetiche da pena de prisão elevou o país à condição de quarta maior população carcerária do planeta A ausência de critério objetivo previsto em lei capaz de reduzir a larga margem de discricionariedade que caracteriza a classificação jurídica da conduta de alguém flagrado na posse de drogas ilegais confere aos operadores do direito em especial os juízes uma larga margem de discricionariedade que se resolve no mais das vezes pelo critério censitário Essa ausência de critério objetivo transforma os mais pobres em traficantes potenciais ao passo em que os mais ricos tendem a ser enquadrados como usuários Pesquisas revelam o perfil do traficante de drogas no Brasil jovens entre 18 e 28 anos do sexo masculino afrodescendentes com baixa escolaridade sem antecedentes criminais presos em flagrante na via pública com pequena quantidade de droga sem prévio trabalho de inteligência policial16 Muito embora a população brasileira tenha crescido apenas 5 entre 2005 e 2012 no mesmo período a população carcerária cresceu 80 Em 2005 apenas 11 dos presos compunhamse de acusados ou condenados pelo crime de tráfico de drogas contra 25 em 201217 No caso dos menores de dezoito anos em 2002 os adolescentes submetidos a medidas restritivas de liberdade em especial a internação por tráfico de drogas representavam 75 do total 16 boiteux Luciana cAstilho Ela Wiecko Volkmer de vArgAs Beatriz bAtistA Vanessa Oliveira PrAdo Geraldo Luiz Mascarenhas JAPiAssu Carlos Eduardo Adriano Tráfico de drogas e constituição UnBUFRJ 2009 Jesus Maria Gorete Marques de oi Amanda Hildebrand rochA Thiago Thadeu da lAgAttA Pedro Prisão provisória e Lei de Drogas um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo Núcleo de Estudos da Violência da USP 2011 Drogas e prisão provisória Rede de Justiça Criminal 2013 17 custódio Rafael diAs Rafael Drogas e pobreza Folha de S Paulo 01062013 51 Cristiano avila Maronna Em 2011 esse índice chegou a 26618 Para completar o quadro desolador na área penitenciária no lugar de repensar a pena de prisão a fim de que ela seja aplicada como medida de ultima et extrema ratio propõese a privatização de presídios como solução Bem por isso em alentado editorial o Boletim IBCCRIM de junho de 2013 se posicionou contra a ideia de privatização de presídios Quem lucrará então com a lógica atraente do sistema de PPPs utilizado para a administração carcerária O Brasil é hoje o quarto país que mais prende no mundo atrás de EUA Rússia e China Nossos quase 550 mil detentos estão submetidos a graves violações de direitos humanos porque o Estado ao privilegiar o aprisionamento como verdadeira panaceia a todas as questões de segurança pública não tem sido e não será capaz de prover condições mínimas de dignidade A política habitacional reduziuse à construção de presídios na fina ironia de Nilo Batista e nada disso foi capaz de motivar ações transformadoras A privatização dos presídios consolidará a lógica perversa segundo a qual a prisão é um negócio E o business penitenciário tem tudo para ser muito lucrativo embora esteja claro que como política pública seja uma tragédia anunciada O sistema prisional brasileiro e as suas PPPs Boletim IBCCRIM 247 A questão prisional no Brasil continua a representar um grave atentado aos direitos humanos Com a perspectiva de privatização dos presídios será ainda mais difícil quebrar o círculo vicioso que nos levou ao caos penitenciário 3 A política de drogas brasileira e os riscos de retrocesso que a circundam D esde 2006 com a entrada em vigor da Lei 11343 o porte de drogas para consumo pessoal não mais é objeto de pena 18 Triplica parcela de jovens internados por tráfico Folha de S Paulo 13082013 52 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA privativa de liberdade conforme dispõe o art 28 daquele diploma Nada obstante a mudança da lei de drogas implicou o aumento da pena mínima cominada ao tráfico de drogas de três para cinco anos de reclusão com o intuito de impedir a substituição da pena privativa por restritiva de direitos em casos de tráfico de drogas substituição esta que o Supremo Tribunal Federal passou a admitir sob a égide da lei anterior Lei 6368197619 O resultado foi o superencarceramento ver 23 supra Apesar de a nova lei conter previsão expressa vedando a substituição da prisão por penas alternativas a Suprema Corte declaroua inconstitucional20 reafirmando o cânone segundo o qual 19 Sentença penal Condenação Tráfico de entorpecente Crime hediondo Pena privativa de liberdade Substituição por restritiva de direitos Admissibilidade Previsão legal de cumprimento em regime integralmente fechado Irrelevância Distinção entre aplicação e cumprimento de pena HC deferido para restabelecimento da sentença de primeiro grau Interpretação dos arts 12 e 44 do CP e das Leis 63681976 80721990 e 97141998 Precedentes A previsão legal de regime integralmente fechado em caso de crime hediondo para cumprimento de pena privativa de liberdade não impede seja esta substituída por restritiva de direitos HC 84928MG rel Cezar Peluso 1ª T j 270905 vu DJU 11112005 p 29 20 Habeas corpus Tráfico de drogas Art 44 da lei 113432006 impossibilidade de conversão da pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos Declaração incidental de inconstitucionalidade Ofensa à garantia constitucional da individualização da pena inciso XLVI do art 5º da CF1988 Ordem parcialmente concedida 1 O processo de individualização da pena é um caminhar no rumo da personalização da resposta punitiva do Estado desenvolvendose em três momentos individuados e complementares o legislativo o judicial e o executivo Logo a lei comum não tem a força de subtrair do juiz sentenciante o poderdever de impor ao delinqüente a sanção criminal que a ele juiz afigurarse como expressão de um concreto balanceamento ou de uma empírica ponderação de circunstâncias objetivas com protagonizações subjetivas do fatotipo Implicando essa ponderação em concreto a opção jurídicopositiva pela prevalência do razoável sobre o racional ditada pelo permanente esforço do julgador para conciliar segurança jurídica e justiça material 2 No momento sentencial da dosimetria da pena o juiz sentenciante se movimenta com ineliminável discricionariedade entre aplicar a pena de privação ou de restrição da liberdade do condenado e uma outra que já não tenha por objeto esse bem jurídico maior da liberdade física do sentenciado Pelo que é vedado subtrair da instância julgadora a possibilidade de se movimentar com certa discricionariedade nos quadrantes da alternatividade sancionatória 3 As penas restritivas de direitos são em essência uma alternativa aos efeitos certamente traumáticos estigmatizantes e onerosos do cárcere Não é à toa que todas elas são comumente chamadas de penas alternativas pois essa é mesmo a sua natureza constituirse num substitutivo ao encarceramento e suas seqüelas E o fato é que a pena privativa de liberdade corporal não é a única a cumprir a função retributivoressocializadora ou restritivopreventiva da sanção penal As demais penas também são vocacionadas para esse geminado papel 53 Cristiano avila Maronna a definição da resposta estatal é matéria afeta à reserva da jurisdição sendo defeso ao legislador impor restrições apriorísticas desse jaez uma vez que tal raciocínio implicaria ampliação de regras restritivas de direitos de certo modo seguindo a mesma trilha de decisões anteriores como por exemplo a discussão a respeito da compatibilidade entre a hediondez do tráfico e a possibilidade de aplicação do sursis21 Apesar disso a cultura judiciária continua a mesma de modo que são raríssimos os casos de condenação por tráfico de drogas nos quais são aplicados substitutivos penais Vivemos sob a égide do fetiche da prisão e do desprezo por sanção alternativa Como tudo o que está ruim pode piorar surgiu no cenário o Projeto de Lei 76632010 de autoria do deputado federal osmar terra PMDBRS que se aprovado alterará a lei de drogas para pior Entre as medidas propostas pelo deputado terra um ferrenho defensor do proibicionismo com grande influência na área de da retribuiçãoprevençãoressocialização e ninguém melhor do que o juiz natural da causa para saber no caso concreto qual o tipo alternativo de reprimenda é suficiente para castigar e ao mesmo tempo recuperar socialmente o apenado prevenindo comportamentos do gênero 4 No plano dos tratados e convenções internacionais aprovados e promulgados pelo Estado brasileiro é conferido tratamento diferenciado ao tráfico ilícito de entorpecentes que se caracterize pelo seu menor potencial ofensivo Tratamento diferenciado esse para possibilitar alternativas ao encarceramento É o caso da Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas incorporada ao direito interno pelo Decreto 154 de 26 de junho de 1991 Norma supralegal de hierarquia intermediária portanto que autoriza cada Estado soberano a adotar norma comum interna que viabilize a aplicação da pena substitutiva a restritiva de direitos no aludido crime de tráfico ilícito de entorpecentes 5 Ordem parcialmente concedida tão somente para remover o óbice da parte final do art 44 da Lei 113432006 assim como da expressão análoga vedada a conversão em penas restritivas de direitos constante do 4º do art 33 do mesmo diploma legal Declaração incidental de inconstitucionalidade com efeito ex nunc da proibição de substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos determinandose ao Juízo da execução penal que faça a avaliação das condições objetivas e subjetivas da convolação em causa na concreta situação do paciente STF Pleno HC 97256 rel Ayres Britto mv j 01092010 21 Normas penais Interpretações As normas penais restritivas de direitos hão de ser interpretadas de forma teleológica de modo a confirmar que as leis são feitas para os homens devendo ser afastados enfoques ampliativos Suspensão condicional da pena Crime hediondo Compatibilidade A interpretação sistemática dos textos relativos aos crimes hediondos e à suspensão condicional da pena conduz à conclusão sobre a compatibilidade entre ambos STF 1ª T HC 84414 rel Marco Aurélio vu j 14092004 54 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA drogas do governo federal destacamse o financiamento público de comunidades terapêuticas e religiosas a expansão da internação forçada como remédio para a epidemia de crack e o aumento da pena mínima cominada para o tráfico de drogas de cinco para oito anos de reclusão quando o agente exerce o comando individual ou coletivo de organização criminosa Referida propositura não altera nenhum dos graves problemas decorrentes da proibição como a violência a corrupção e o encarceramento em massa nesse caso específico o aumento da pena deve agravar o superencarceramento Após aprovação na Câmara dos Deputados sem que tenha havido debate plural atualmente o projeto tramita no Senado Federal PLC 372013 Fato é que a política de drogas no Brasil tem como foco principal o crack A despeito de existir no Brasil mais de dez milhões de usuários problemáticos de álcool de acordo com o II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas Lenad divulgado em abril de 2013 Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Politicas Públicas do Álcool e Outras Drogas 2013 é no crack que se concentram as atenções da mídia e os esforços governamentais O poder econômico da indústria de bebidas alcoólicas que investe pesadamente em anúncios publicitários e no financiamento de campanhas políticas explica a negligência com esse grave problema de saúde pública A suposta epidemia de uso de crack no Brasil não comprovada pelo Lenad deu azo a uma indevida e ilegal massificação da internação involuntária transformada em pilar central da política de drogas no Brasil contemporâneo A internação forçada para casos de dependência de crack baseiase exclusivamente na estratégia do não uso da abstinência Tratase de modelo de contenção ancorado na ideologia da guerra às drogas A internação gera segregação violência ruptura massificação manipulação espoliação marginalização e exclusão Há também aspectos higienistas e de medicalização dos problemas sociais A iniciativa contraria diretriz consagrada na Lei Antimanicomial segundo a qual o tratamento da pessoa portadora de transtornos 55 Cristiano avila Maronna mentais entre os quais a drogadição deve ocorrer em ambiente terapêutico adequado consentâneo com suas necessidades pelos meios menos invasivos possíveis Nesse sentido paradigmática decisão judicial O pedido foi requerido com base na Lei 1021601 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais Essa lei constituiu as bases da Reforma Psiquiátrica Brasileira tendo tramitado por 11 anos no Congresso A história da Psiquiatria é marcada pelo asilamento e tratamento desumano aos chamados doentes mentais já que a própria existência da doença mental é controvertida na própria Psiquiatria A Lei nº 1021601 pretendeu romper com essa ordem O objetivo foi privilegiar a desospitalização dos internos nos manicômios com a sua extinção progressiva Contudo o art 6º do referido diploma legal manteve a internação psiquiátrica de modo excepcional e sempre mediante laudo médico São 3 as modalidades 1 voluntária 2 involuntária 3 compulsória que é a determinada pelo Poder Judiciário e hipótese dos autos O art 9º por sua vez dispõe que a internação compulsória será determinada de acordo com a legislação vigente e pelo juiz competente Dessa forma devese procurar no ordenamento jurídico outra lei que não a lei nº 1021601 que determine a internação compulsória Atualmente as leis que contém essa autorização são os art 99 da LEP bem como o art 319 VIII do CPP que tratam da aplicação da medida de segurança de internação provisória para a hipótese de uma pessoa semi ou inimputável cometer um ato definido como crime Dizse atualmente pois está tramitando no Senado o PLC 3713 antigo PL 766311 que altera a lei de drogas Lei nº 1134306 e passará a autorizar a internação forçada de usuários de drogas o que leva a uma conclusão óbvia se a lei de drogas irá passar a prever a internação forçada de usuários de drogas logo atualmente não há qualquer dispositivo legal que autorize tal ato Desse modo considerase ilegal qualquer pedido nesse sentido pedido juridicamente impossível pois não há no ordenamento 56 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA jurídico brasileiro qualquer norma que autorize a internação compulsória de um dependente químico que não tenha cometido um crime ou tenha sido interditado para esse fim Assim o pedido de internação compulsória desacompanhado da interdição da pessoa a que se pretende internar não encontra amparo no nosso ordenamento jurídico Ainda que por amor ao debate considerese legalmente possível tal pedido mesmo que acompanhado do pedido de interdição terse ia que equiparar o dependente químico a uma pessoa com transtorno mental e aí sim aplicar a Lei nº 1021601 Todavia entendese impossível tal equiparação eis que o usuário de drogas não possui qualquer doença mental mas sim um transtorno comportamental Esse é o entendimento da Psiquiatria Crítica mais abalizada Visto sob o ângulo da Constituição o deferimento de internações compulsórias de dependentes químicos é ainda mais assustador Violamse a um só tempo os direitos constitucionais da liberdade de locomoção da dignidade da pessoa humana e especialmente da saúde muito embora grande parte das decisões favoráveis utilizem tais argumentos Ao contrário a própria ONU não recomenda a internação forçada equiparandoa à tortura conforme o Relatório da Comissão de Direitos Humanos da ONU datado de em 05 de março de 2013 Cuidados médicos que causam grande sofrimento sem nenhuma razão justificável podem ser considerados um tratamento cruel desumano ou degradante e se há envolvimento do Estado e intenção específica é tortura A institucionalização não consensual imprópria ou desnecessária de indivíduos pode constituir tortura ou maustratos bem como o uso da força para além do que é estritamente necessário grifei No caso em tela o laudo médico produzido pelo próprio Ministério Público fls 2930 é expresso Peter não é portador de uma patologia mental incapacitante mas de uma dependência química que uma vez tratada devolve o estado mental do paciente ás suas funções plenas grifei O relatório do CAPSAD fls 8283 atesta que Peter não aderiu ao tratamento especialmente em razão do contexto familiar em que seu pai é usuário de álcool e conforme relato da própria mãe provoca o seu filho 57 Cristiano avila Maronna Entendese assim que o tratamento forçado de dependentes químicos além de ser inconstitucional e ilegal é também ineficaz Isso porque se não houver o desejo de parar do paciente a cada retorno de uma internação forçada haverá uma recaída No caso em questão é notória a necessidade de tratamento de toda a família No tocante ao tratamento da dependência química as experiências em países europeus que sempre tiveram taxas altíssimas de mortes por abuso de drogas demonstram que é ineficaz uma política baseada exclusivamente em internação cerca de 97 dos internados apresentam recaídas Hughes e Stevens2007 Conforme Internacional Drug Policy Consortium tratamentos que tenham a abstinência total como foco são insuficientes para reduzir o uso de drogas e os danos associados a ele Agências da ONU recomendaram a extinção das internações compulsórias e dos centros de reabilitação por não haver evidências científicas de que estes métodos são eficazes no tratamento de dependentes químicos UNAIDS2012 Especificamente em relação ao crack cujos usuários são marginalizados socialmente e fazem uso simultâneo de mais de uma droga lícita ou ilícita o tratamento é mais complexo Evidências internacionais indicam que para o sucesso do tratamento são necessárias intervenções psicossociais com a participação da comunidade e do meio cultural No entanto essas intervenções só são efetivas quando é estabelecido um vínculo de confiança com o dependente químico que opta voluntariamente pelo tratamento Connolly e Donavan2008 O Poder Judiciário é o guardião natural dos Direitos Humanos Não se pode de modo algum e sob nenhum fundamento admitir qualquer violação de direitos humanos por parte de seu guardião Processo nº8592072012 Revogação de internação compulsória de dependente químico en httpajdorgbrdecisoesver phpidConteudo44 acesso em 110214 Malgrado a complexidade inerente ao consumo de crack que envolve não apenas dependência química mas também e especialmente exclusão social a opção primeira pela internação involuntária e pelo tratamento baseado na abstinência revela a adesão 58 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA ao fracassado modelo de contenção ancorado na ideologia de guerra às drogas A internação à força em instituições totais com características asilares e desprovidas dos recursos necessários à assistência integral tem baixíssima taxa de êxito e representa a medicalização dos problemas sociais produzindo higienismo e dependência institucional A incapacidade do sistema público abre espaço para interesses privados das clínicas particulares e mesmo comunidades terapêuticas e religiosas Além disso a concepção da internação como primeira opção cria dupla exclusão cuidados inadequados e alienação da sociedade ampliando a marginalização e a expoliação de quem deveria ser incluído e cuidado Compreendida a saúde como bem estar biopsicossocial diagnóstico e tratamento devem levar em conta as condições globais da sociedade Compulsória deve ser a cidadania Por isso o tratamento deve buscar a transformação pelo desenvolvimento da autoestima e criatividade do acolhimento e integração da solidariedade e reciprocidade equilíbrio e diversidade Nesse contexto a intervenção mais adequada é a estratégia da redução de danos que prescinde do modelo hospitalocêntrico e baseia o tratamento na humanização com a finalidade de reinserção da pessoa em seu meio social Apenas quando o tratamento extra hospitalar se mostrar insuficiente em casos de extrema e comprovada necessidade deve a internação ser decretada e ainda assim somente pelo tempo mínimo indispensável E basta que o médico psiquiatra determine a internação sendo despicienda a intervenção de qualquer operador do direito Para ter sucesso o tratamento deve ser compreendido como um processo construído em conjunto com a equipe terapêutica a serviço do indivíduo não bastando a mera alegação de necessidade e utilidade para a defesa social ou para a tranquilidade da maioria Abrir no lugar de fechar Cuidar no lugar de excluir Tratar no lugar de isolar Nesse diapasão a estratégia de redução de danos pode ser definida como um conjunto de estratégias que visam minimizar os danos 59 Cristiano avila Maronna causados pelo uso de diferentes drogas sem necessariamente exigir a abstinência do seu uso uma política humanista e pragmática que visa a melhora do quadro geral do cidadão que usa drogas sem que lhe seja exigido o absenteísmo ou imposta a renúncia ao consumo dessas substâncias22 A redução de danos possui assento constitucional tendo em vista que o art 196 da Carta Política dispõe ser a saúde direito de todos e dever do Estado garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos Nesse contexto as intervenções de saúde dirigidas aos usuários e dependentes de álcool e outras drogas devem estar baseadas na melhoria da qualidade de vida das pessoas A redução de danos sociais e à saúde decorrentes do uso de produtos substâncias ou drogas que causem dependência deve desenvolverse por meio de ações de saúde dirigidas a usuários ou a dependentes que não podem não conseguem ou não querem interromper o referido uso tendo como objetivo reduzir os riscos associados sem necessariamente intervir na oferta ou no consumo Apesar de tudo isso ainda hoje a redução de danos por não pautarse pela ideia de abstinência não uso é invariavelmente confundida com a apologia ao crime e o incentivo ao uso de drogas de modo que referida estratégia situase em uma espécie de limbo jurídico uma zona cinzenta entre o legal e o ilegal Na realidade a redução de danos não estimula o consumo de drogas legais ou ilegais mas não ignora o fato incontroverso de que pessoas há que usam drogas legais ou ilegais E que nem todas estas pessoas que usam drogas legais ou ilegais estão dispostas a absterse do seu uso E que em relação a estas pessoas sob a perspectiva da saúde pública é possível informar a respeito da ação e dos efeitos das drogas e ainda como reduzir os riscos de conseqüências negativas advindas do uso de drogas A característica da estratégia de redução de danos abordagem 22 ribeiro Maurides de Melo Políticas Públicas e a questão das drogas O impacto da política de redução de danos na legislação brasileira de drogas Dissertação apresentada ao Departamento de Direito Penal Medicina Legal e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Direito 2011 pp 4849 60 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA pragmática que assume o fato de que drogas ilegais são disponíveis que existem indivíduos que escolhem usálas e que é possível minimizar o risco de sua administração é justamente a compreensão de que a abstinência não é a única meta a ser atingida 4 o admirável mundo novo pósproibição as novas experiências reguladoras D e acordo com o Relatório Anual sobre Drogas 2013 do Escritório da ONU para Drogas e Crime UNODC a maconha é a droga ilegal mais consumida do planeta com cerca de 180 milhões de usuários Não por acaso as experiências reguladoras têm como objeto a maconha que é a droga ilegal menos nociva à saúde menos nociva inclusive do que álcool e tabaco23 substâncias socialmente toleradas e submetidas a regime de controle não proibicionista Desde a experiência holandesa de permitir venda e consumo de maconha em cafés em meados da década de 1970 passando pela prescrição médica da erva nos EUA autorizada em primeiro lugar na Califórnia por ordem do juiz Francis L Young de Orange County em 1988 até os Clubes Sociais Canábicos do País Basco na Espanha na década de 199024 a marijuana é a droga ilegal mais presente em iniciativas inovadoras em termos de política de drogas A aprovação plebiscitária da regulação da venda e do consumo de maconha ocorrida nos EUA em 2012 nos estados de Washington e Colorado e muito especialmente a inédita aprovação legislativa da regulação pelo Uruguai no fim de 2013 representam não apenas o mais contundente desafio à Single Convention de 1961 e seus consectários mas também a perspectiva de mudança no cenário global das políticas de drogas no curto e 23 nutt David et al Development of a rational scale to assess the harm of drugs of potential misuse Lancet 2007 369 104753 24 Alonso Martin Barriuso La prohibicíon de drogas del tabu moral a la desobediência civil In ArAnA Xabier husAk Douglas sheerer Sebastian coords Globalización y drogas políticas sobre drogas derechos humanos y reducción de riesgos Instituto Internacional de Sociología Jurídica de Oñati Dikinson 2003 p 83115 61 Cristiano avila Maronna médio prazos Grosso modo podese dizer que o modelo uruguaio pende para o estatismo enquanto no Colorado e em Washington a regulação baseiase na ideia de livre mercado Nada obstante em cada um dos três modelos há divergências e convergências em relação a diversos aspectos mas o fio condutor que os orienta a todos é a defesa dos direitos humanos e a adoção de estratégias de redução de danos à saúde 5 à guisa de conclusão O consenso em torno do fracasso da proibição é crescente em todo o mundo Proibir pessoas adultas de consumir substâncias psicoativas é ilegítimo porque não compete ao Estado tratar cidadãos com paternalismo Além disso a guerra às drogas provocou males muito mais graves do que o uso problemático de certas substâncias E não há nenhuma base científica para a diferenciação entre drogas legais e ilegais A longevidade do proibicionismo pode ser explicada pelos interesses políticos e econômicos que o sustentam A esse respeito quando o estado da Califórnia realizou plebiscito a respeito da legalização da maconha em 2012 com a vitória do não por uma apertada margem de 54 contra 46 dos que votaram sim os principais financiadores da campanha do não foram sindicatos de policiais e guardas prisionais corporações que se dedicam a construir e gerir presídios privados empresas produtoras de bebidas alcoólicas especialmente cerveja e corporações farmacêuticas A manutenção do consenso a respeito da guerra às drogas tornase cada dia mais difícil como revelou o jornal britânico The Guardian25 o que sugere possibilidade concreta de mudança no rumo da política de drogas global em 2016 quando a Assembleia Geral da ONU irá se reunir em sessão especial para revisar os tratados que embasam o proibicionismo O Brasil apresenta índices de consumo de moderadores de 25 httpwwwtheguardiancompolitics2013nov30undrugspolicysplitleakedpaper print Acesso em 9 jan 2014 62 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA apetite e de drogas prescritas para casos de déficit de atenção e hiperatividade que sugerem abuso mas as nossas autoridades só dão atenção ao crack e à suposta epidemia que estaria transformando nossa juventude em zumbis26 Uma explicação para esse fato reside no poder econômico da indústria farmacêutica e no modo como ela influencia a definição de doenças mentais e a prescrição de drogas psicoativas como tratamento27 Uma política de drogas racional deve unificar o regime jurídico de toda e qualquer substância psicoativa tendo como pilares a defesa da saúde e a redução de danos sem nenhuma ameaça repressiva Com base em prevenção e campanhas de informação a taxa de fumantes diminuiu de 32 para 172 entre 1989 e 2008 no Brasil28 Da mesma forma a lei paulista que proibiu o fumo em ambientes fechados de acordo com o previsto na Convenção Quadro Tabaco foi implementada sem necessidade de uso do direito penal Em relação ao álcool há iniciativas interessantes como a da prefeitura de Diadema em São Paulo que em 2002 determinou o fechamento de bares às 23h como forma de tentar reduzir a violência Em 1999 Diadema ostentava a maior taxa de homicídios do estado 1028 por 100 mil habitantes Em 2011 a taxa de homicídios em Diadema foi de 952 por 100 mil habitantes uma redução de 907429 Tudo isso sem nenhuma necessidade de intervenção penal apenas por meio de medidas administrativas As experiências positivas com a regulação de álcool tabaco e outras drogas devem servir de subsídio para a formulação de um 26 O II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas concluiu existir no Brasil aproximadamente 13 milhão de pessoas que utilizaram cocaína fumada no último ano 2012 cf httpinpadorgbrlenadcocainaecrackresultadospreliminares Acesso em 20 jan 2014 27 Angell Marcia A epidemia de doença mental Revista Piauí edição 59 Disponível em httprevistapiauiestadaocombredicao59questoesmedicofarmacologicasa epidemiadedoencamental Acesso em 8 jan 2014 28 httpplanetasustentavelabrilcombrnoticiasbrasilquedatabagismomenorpessoas baixaescolaridade761466shtml Acesso em 8 jan 2014 29 Dez anos depois de implementar lei de fechamento de bares Diadema reduz homicídios em 90 Agência Brasil httpagenciabrasilebccombrnoticia20120615dez anosdepoisdeimplementarleidefechamentodebaresdiademareduzhomicidios em90 Acesso em 8 jan 2014 63 Cristiano avila Maronna modelo de política de drogas que abranja toda e qualquer substância psicoativa A regulação de toda a cadeia produtiva da produção da comercialização e do consumo diferenciandose cada droga com base em evidências científicas contribuiria para reduzir os danos a consumidores e terceiros e representaria um grande abalo na rentabilidade auferida pelas organizações criminosas A diferenciação da regulação de cada droga com suas particulares características no que diz com os riscos à saúde e potencial de adição custos sociais e econômicos decorrentes do consumo da adição e do tratamento deve ser levada em conta na formulação dessa nova política pública a qual deve partir da premissa de que a maioria dos consumidores de substâncias psicoativas não desenvolve um uso problemático 6 referências bibligráficas Alonso Martin Barriuso La prohibicíon de drogas del tabu moral a la desobediência civil In ArAnA Xabier husAk Douglas sheerer Sebastian coords Globalización y drogas políticas sobre drogas derechos humanos y reducción de riesgos Instituto Internacional de Sociología Jurídica de Oñati Dikinson 2003 p 83115 bAtistA Nilo Ainda há tempo de salvar as Forças Armadas da cilada da militarização da segurança pública In bAtistA Vera Malaguti org Paz armada Rio de Janeiro Revan 2012 boiteux Luciana cAstilho Ela Wiecko Volkmer de vArgAs Beatriz bAtistA Vanessa Oliveira PrAdo Geraldo Luiz Mascarenhas JAPiAssu Carlos Eduardo Adriano Tráfico de drogas e constituição UnBUFRJ 2009 english T J O noturno de Havana como a máfia conquistou Cuba e a perdeu para a revolução Trad Santiago Nazarian Editora Seoman gAry S Becker kevin m Murphy Have We Lost the War on Drugs After more than four decades of a failed experiment the human cost has become too high It is time to consider the decriminalization of drug use and the drug market Wall Street Journal em 04012012 hAssemer Winfried Descriminalização dos crimes de drogas Direito penal Fundamentos estrutura política Porto Alegre Sergio Antonio Fabris 2008 Jesus Maria Gorete Marques de oi Amanda Hildebrand rochA Thiago Thadeu da lAgAttA Pedro Prisão provisória e Lei de Drogas um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo Núcleo de Estudos da Violência da USP 2011 mingArdi Guaracy Tiras gansos e trutas São Paulo Scritta 1992 nutt David et al Development of a rational scale to assess the harm of drugs of potential 64 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA misuse Lancet 2007 369 104753 ribeiro Maurides de Melo Políticas Públicas e a questão das drogas O impacto da política de redução de danos na legislação brasileira de drogas Dissertação apresentada ao Departamento de Direito Penal Medicina Legal e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Direito 2011 Werb D kerr T nosyk B et al The temporal relationship between drug supply indicators an audit of international government surveillance systems BMJ Open 20133 e 003077 doi101136bmjopen2013 003077 estudos sobre os impActos dA descriminAlizAção do consumo de drogAs em portugAl Jorge Quintas Doutorado na escola de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade do Porto Professor auxiliar na Faculdade de Direito da Universidade do Porto sumário 1 O estudo da aplicação das leis 2 O estudo da evolução do consumo de drogas 3 Estudos sobre atitudes e conhecimento da lei 4 Conclusões 5 Referências bibliográficas E m Portugal o consumo de todas as drogas foi descriminalizado pela Lei 302000 de 29 de novembro Desde 01072001 data de entrada em vigor dessa lei os delitos de consumo estão sob alçada de um regime contraordenacional A lei portuguesa da descriminalização do consumo de drogas é assim uma alternativa de regulação legal que afasta a aplicação de sanções penais aos delitos de consumo que estavam pelo menos por via da detenção de substâncias classificados como crime desde 1926 Há contudo uma opção pela manutenção da interdição do consumo que afasta qualquer tipo de legalização do uso ou mesmo formas mais abrangentes de regulação do mercado de drogas Nesse sentido a legislação 66 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA portuguesa mantémse de acordo com as convenções internacionais que não impõem a criminalização do uso de drogas apenas postulam que ele deve ser interdito bAllottA 2003 guerrA mArtins 2003 lourenço mArtins 2003 A Lei 302000 estabelece um regime contraordenacional para o consumo de todas as drogas mas estabelece que o consumidor não pode exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual para o período de 10 dias Após um período de alguma ambiguidade o Acórdão 82008 do Supremo Tribunal de Justiça decidiu não sem alguma polémica que se mantém em vigor o crime de consumo quando a quantidade detetada seja superior ao consumo médio individual durante o período de 10 dias n 2 do art 40º do Declei 1593 de 22 de janeiro apesar de a lei da descriminalização expressamente ter revogado todo o art 40º do Declei 1593 relativo ao crime de consumo excepto quanto ao cultivo Respeitando as limitações das quantidades estabelecidas à maioria dos casos de consumo aplicase uma lei que visa expressamente no seu próprio título a proteção sanitária e social dos consumidores A promoção e decisão do processo contraordenacional é competência de novas entidades administrativas as Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência CDT retirando da alçada dos Tribunais a competência de julgar os atos que configurem o ilícito A lei prevê no seu art17º um sistema de sanções não pecuniárias ou de coimas estas apenas aplicáveis aos não toxicodependentes mas diversos mecanismos de suspensão devem sobreporse ao seu efetivo cumprimento suspensão provisória do processo suspensão de determinação da sanção suspensão da execução da sanção A lei e particularmente as CDT têm uma função protecionista que visa i para os não toxicodependentes convencer dos riscos e da indesejabilidade do uso ii para os toxicodependentes incentivar o tratamento ou promover a redução de riscos e danos quintAs 2006 2011 Os efeitos da lei portuguesa da descriminalização no consumo de drogas podem ser equacionados através de dois tipos de análises i dos papéis do direito no controlo das drogas designadamente dos presumíveis efeitos dissuasivos declaratórios e reabilitativos pressupondo o afastamento de intenções meramente retributivas ou 67 Jorge Quintas punitivas para delitos de consumo de drogas que são na sua essência delitos sem vítima ii das evidências empíricas relacionadas com diversas experiências de regulação legal através de estudos agregados ou de estudos de dissuasão perceptual Na primeira perspetiva esperavase que i os efeitos dissuasivos da ameaça da sanção sofressem alterações relevantes uma vez que as variáveis clássicas da doutrina da dissuasão cf beccAriA 1978 se alteram previsivelmente no sentido da diminuição da severidade designadamente pela remoção da ameaça penal da diminuição da certeza da sanção designadamente pela eventual depreciação do delito pela polícia ainda que a lei não a preveja e do aumento da celeridade da aplicação da lei designadamente pelos mecanismos da lei e pela atuação suposta como mais eficaz das CDT ii os efeitos declaratórios de reforço das normas contra o uso possam diminuir designadamente pela remoção do valor simbólico da criminalização que potencie uma mensagem à sociedade menos efetiva no reforço da norma social contra o uso de drogas iii os efeitos reabilitativos concentrados no caso dos consumos de drogas em cuidados preventivos para o consumidor e particularmente em esforços de alavanca para tratamento do toxicodependente sejam mais bem alcançados no regime atual Uma segunda análise alicerçada na investigação empírica internacional autoriza uma expetativa de diminuta importância da descriminalização do consumo de drogas nos padrões de consumo das populações Os estudos de dissuasão perceptual mostram o peso diminuto que a ameaça de sanção legal exerce na determinação do uso de drogas particularmente em face das outras fontes de influência social bem mais poderosas como as normas internalizadas ou as sanções informais FogliA 1997 mAccoun 1993 PAternoster 1987 PAternoster Piquero 1995 A comparação internacional entre países ou regiões com políticas relativas às drogas diferenciadas indica a ausência de relação clara entre leis ou formas de aplicação das leis e padrões de consumo Boekhout Van solinge 1999 cesoni 2000 cohen kAAl 2001 kilmer 2002 korF 2001 OEDT 2001 OFS 2002 reubAnd 1995 Sénat Canada 2002 A análise concreta dos efeitos de algumas experiências de descriminalização do consumo ainda que limitadas aos derivados de cannabis nos EUA e na Austrália 68 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA mostra que em geral não se verificam alterações significativas nos níveis de consumo das populações eou que as alterações produzidas não podem ser directamente atribuídas à modificação legal Ali christie lenton hAWks sutton hAll AllsoP 1999 chAlouPkA grossmAn tAurus 1998 chAlouPkA PAculA FArrely Johnston brAy 1998 donnelly hAll christie 1998 mAccoun reuter 2001 mAccoun 2003 PAculA chriqui king 2003 reuter mAccoun 1995 single christie 2001 single christie Ali 2000 Para responder à questão empírica fundamental sobre os efeitos de alteração legislativa é necessário avaliar previamente como é que as leis são aplicadas antes e depois da descriminalização do consumo para depois confrontar esses dados com a evolução dos indicadores de consumo Adicionalmente examinase a reacção social informal às alterações produzidas no plano legislativo analisandose o conhecimento da lei e as atitudes das populações sobre a proibição do consumo de drogas sobre a opção de descriminalização e sobre as diversas possibilidades de sancionamento dos atos de consumo Para o efeito diversos trabalhos empíricos alguns dos quais já finalizados quintAs 2006 AgrA 2009 quintAs AgrA 2010 kury quintAs 2010a kury quintAs 2010b quintAs 2011 têm vindo a ser realizados na Escola de Criminologia da FDUP sobre a lei portuguesa da descriminalização do consumo de drogas suas formas de aplicação e seus impactos nas populações 1 o estudo da aplicação das leis A legislação produzida não define a forma como as autoridades responsáveis polícia tribunais e a partir de 2001 também as CDT aplicam as leis define apenas as condições legais em que estas podem ser aplicadas Em primeiro lugar a atividade policial está condicionada por dois aspetos fundamentais de difícil conciliação i a obediência ao princípio da legalidade que obriga todas as polícias a perseguirem todos os ilícitos relacionados com drogas ii o papel proactivo da polícia na descoberta e no registo dessas infrações e consequentemente a inevitabilidade da assunção de poderes discricionários largamente dependentes de fatores extralegais 69 Jorge Quintas Todas as forças policiais têm obrigação legal de perseguir os atos ilegais de que têm conhecimento mas ao mesmo tempo têm de selecionar as infrações a que dão prioridade no contexto das suas funções específicas sendo que essas prioridades só parcialmente são ditadas pela legislação A análise da atuação da justiça no que concerne às infrações às leis dos estupefacientes está por seu turno necessariamente c o n d i c i o n a d a p o r d o i s m o m e n t o s l e g i s l a t ivo s i antes da descriminalização do consumo todas as infrações à legislação dos estupefacientes devem confirmandose indícios de crime e de um agente responsável pela sua prática em princípio resultar na acusação dessa pessoa pelo Ministério Público Esta acusação deve originar a menos que o procedimento criminal possa ser declarado extinto um julgamento em que se estabelece a prova dos factos e o seu enquadramento legal resultando na condenação ou absolvição do réu ii após a descriminalização do consumo os delitos de consumo submetidos a um regime contraordenacional têm a sua apreciação legal deferida às CDT Acresce que a descriminalização do consumo traz para a primeira linha a aplicação de manifestações do princípio de oportunidade na apreciação legal das situações de consumo A suspensão provisória do processo é nos termos da Lei 302000 de 29 de novembro a primeira grande opção de que dispõem as CDT A suspensão provisória do processo é mesmo obrigatória no caso de uma primeira infração de um consumidor não toxicodependente e no caso dos consumidores toxicodependentes a obrigatoriedade é apenas condicionada pela aceitação do consumidor de um tratamento Acresce que nas situações de reincidência a suspensão provisória do processo pode ainda ser aplicada facultativamente Noutras fases processuais as CDT podem optar por suspender quer a determinação quer a execução das sanções Em suma as CDT antes de aplicarem efetivamente qualquer tipo de sanção aos comportamentos de consumo são claramente conduzidas ou em alguns casos obrigadas pela lei a suspender os processos Neste enquadramento devese situar a atuação da polícia e do sistema de justiça português relativamente ao consumo de drogas Na Tabela 1 consta uma síntese dos principais indicadores de aplicação das leis aos delitos de consumo comparando os valores médios anuais na abrangência do regime criminal Lei 1593 e contraordenacional Lei 302000 70 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA tabela 1 Síntese dos valores médios anuais de presumíveis infratores por consumo de drogas registados pela polícia e decisões dos Tribunais e CDT Lei 1593 19932000 Lei 302000 Julho 20012011 Polícia M4955 M6375 Justiça Tribunais M1451 penas 75 multa 8 prisão efetiva Raríssimas medidas terapêuticas CDT M4036 decisões 86 suspensão provisória do processo M2646 não toxicodependente M796 toxicodependente 13 punitivas M523 ano Tribunais lei 1593 M136 penas residuais até 2008 crescem após acordão STJ são já 431 em 2011 fontes Relatório anual 20112010 2009 2008 2007 2006 2005 2004 2003 e 2002 do IDT Relatório anual 2001 do IPDT Sumários de Informação Estatística 1994 do GPCCD MMédia No que respeita à intervenção policial verificase um aumento ligeiro dos presumíveis infratores por consumo de 5 para um pouco mais de 6 mil por ano Este aumento ligeiro da certeza da deteção corresponde a cerca de 2 dos utilizadores de drogas por ano segundo os inquéritos à população geral de bAlsA e col 2001 2007 2013 são cerca de 3 da população de 15 a 64 anos ie cerca de 250 mil pessoas As decisões da justiça mostram contudo uma expansão do seguimento legal das situações de consumo de 15 para cerca de 4 mil por ano cerca de 1 dos utilizadores de drogas por ano Este aumento importante da certeza da aplicação da lei é similar ao netwidening effect sinalizado por Ali christie lenton hawks sutton hall Allsop 1999 na sua análise da Cannabis Expiation Notice no estado da Austrália do Sul Acresce que a multa como resposta preferencial dos Tribunais ao consumo de drogas é substituída pela suspensão provisória do processo nas CDT Instaurase assim um mais extensivo regime de tutela de consumidores geralmente de cannabis 25 mil por ano e de encaminhamento de toxicodependentes para tratamento 800 por 71 Jorge Quintas ano que corresponde a um aumento incomparável dos efeitos terapêuticos em sentido amplo incluindo o efeito de alavanca para tratamento dos toxicodependentes Os factos estabelecidos pela análise da aplicação das leis são em síntese os seguintes i há um aumento ligeiro da probabilidade de ser detetado por atos de consumo ii a aplicação da lei coloca sob efetiva alçada legal um número superior de consumidores de drogas iii instaurase um mais extensivo regime de tutela legal dos consumidores 2 o estudo da evolução do consumo de drogas A evolução do consumo de drogas pode ser avaliada através de indicadores diretos provenientes de inquéritos e de indicadores indiretos provenientes do sistema de saúde dirigidos aos consumos problemáticos e aos danos dos consumos A Tabela 2 sintetiza os principais indicadores portugueses disponíveis tabela 2 Síntese dos indicadores de consumo de drogas e de danos associados ao consumo de drogas Lei 1593 19932000 Lei 302000 Julho 20012011 Inquéritos População Geral 1564 anos em 2001 e 2007 1574 em 2012 Não há 2001 78 PLV 34 PUA 2007 12 PLV 37 PUA 2012 99 PLV 27 PUA Inquéritos ESPAD estudantes de 16 anos 1995 8 PLV 1999 12 PLV 2003 18 PLV 2007 14 PLV 2011 19 PLV Novos utentes em tratamento M8208 M6503 SIDA em toxicodependentes M522 M331 fontes Relatório anual 20112010 2009 2008 2007 2006 2005 2004 2003 e 2002 do IDT Relatório anual 2001 do IPDT Sumários de Informação Estatística 1994 do GPCCD M Média PLV Prevalência ao longo da vida PUA Prevalência no último ano 72 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Para perceber os níveis de consumo de droga na sociedade portuguesa os inquéritos à população em geral são o primeiro instrumento privilegiado Contudo apenas em 2001 ano de entrada em vigor da Lei 302000 foi realizado pela Universidade Nova de Lisboa bAlsA FArinhA urbAno FrAncisco 2003 o primeiro inquérito à população portuguesa sobre consumo de drogas replicado em 2007 bAlsA vitAl urbAno PAscueiro 2008 e em 2012 bAlsA vitAl urbAno 2013 No ano 2001 a experimentação de drogas ilícitas medida pelas taxas de prevalência ao longo da vida é de 78 na população adulta portuguesa tendo subido para 12 em 2007 e decrescido para 99 em 2012 Acresce que este padrão evolutivo se reflete também nas taxas de prevalência no último ano 34 37 e 27 em 2001 2007 e 2012 respetivamente e no último mês 25 25 e 17 em 2001 2007 e 2012 respectivamente e que os consumos de cannabis são responsáveis pela maior parte dos consumos de drogas ilícitas A valoração destes dados particularmente das taxas de prevalência deve ser efetuada no confronto com outros países Os sucessivos relatórios anuais do Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência OEDT procuram confrontar constantemente os indicadores de consumo nos vários países da União Europeia UE e confirmam Portugal como um dos países com níveis de consumo mais baixos de toda a UE Os dados relativos à população em geral são apresentados para situar a dimensão dos consumos de drogas no período após a descriminalização do consumo A possibilidade de comparação diacrónica de dados sobre consumo de droga que se estenda ao período anterior à lei da descriminalização do consumo existe porém somente ao nível das populações escolares Nas populações escolares os mais consagrados e difundidos dados comparativos provêm dos inquéritos European School Survey Project on Alcohol and Other Drugs Espad realizados de 4 em 4 anos com participação portuguesa desde 1995 Os resultados dos sucessivos estudos Espad mostram que em Portugal os consumos de drogas ilícitas aumentam ainda antes da descriminalização do consumo de drogas de 8 para 12 entre 1995 e 1999 e decrescem já após a descriminalização de 18 para 14 entre 2003 e 2007 para posteriormente voltarem a aumentar de 14 para 19 entre 2007 e 2011 Acresce que independentemente da evolução dos indicadores internos 73 Jorge Quintas Portugal continua comparativamente com outros países ocidentais designadamente da Europa a ter níveis gerais de consumo de drogas ilícitas ligeiramente abaixo da média cf Relatórios do OEDT e a apresentar uma tendência entre os vários inquéritos muito similar ao conjunto de países participantes no Espad cf hibell guttormsson Ahlström bAlAkirevA bJArnAson kokkevi krAus 2012 No que respeita aos indicadores de consumo problemáticos o mais simples e direto indicador consiste no número de novas solicitações de tratamento nas instituições públicas especializadas A média de novos pedidos de tratamento durante o período imediatamente anterior à lei da descriminalização 19932000 é de um pouco mais de 8 mil Após a descriminalização do consumo registase pela primeira vez em Portugal um decréscimo de novos utentes para cerca de 65 mil apesar de esses serviços terem integrado o acompanhamento de alcoólicos desde 2008 o que faz com que o decréscimo não seja tão acentuado A tendência é no entanto clara no período que se segue à descriminalização do consumo há menos pessoas a dirigirse aos serviços públicos para procurar ajuda terapêutica por problemas com o uso de drogas ilícitas Relativamente aos danos associados ao consumo destacamse os casos de SIDA notificados em toxicodependentes A média anual de mais de 500 casos por ano notificados nesta população durante a década de 1990 que chegou a ser próxima dos 60 do total de casos notificados em Portugal decresceu a partir do início do século XXI para valores anuais de mais de 300 casos decrescendo também a porcentagem de toxicodependentes para níveis já inferiores aos 50 O número total de casos de SIDA é largamente dependente do número de casos notificados em toxicodependentes e a descriminalização do consumo coincide com um período de diminuição dos toxicodependentes com SIDA que no caso tem consequências diretas no número de casos de SIDA notificados Os factos estabelecidos pela análise da evolução dos consumos de drogas e dos danos relacionados são em síntese os seguintes i o consumo de drogas na população em geral é relativamente estável após a descriminalização do consumo ii o consumo de drogas nas populações escolares aumentou nos períodos anterior e imediatamente após a descriminalização do consumo diminuiu nos anos seguintes e voltou a aumentar nos anos mais recentes 74 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA sendo todas estas oscilações relativamente moderadas iii Portugal mantém em todos estes períodos níveis relativamente modestos de consumo em termos comparativos com os restantes países europeus iv o consumo problemático de drogas está em retração como o comprova a diminuição clara dos novos pedidos de atendimento nas instituições públicas v as consequências do consumo medidas pelos indicadores relativos à epidemia da SIDA são menos gravosas no período que se segue à descriminalização do consumo As oscilações nos níveis de consumo nas populações não devem ser atribuídas diretamente à descriminalização do consumo De igual modo não será de reivindicar para a alteração legislativa a evolução positiva nos consumos problemáticos e na redução nas consequências negativas do consumo de drogas As alterações nesse tipo de indicadores estarão muito mais dependentes da evolução dos padrões de uso de drogas particularmente da heroína e da interferência positiva de medidas de redução de riscos e minimização de danos postas em prática para os consumidores problemáticos Em todo o caso a descriminalização do consumo de drogas i coincide com estabilização ou ligeiro aumento do consumo não anómalo na comparação internacional ii coincide com a diminuição dos consumos problemáticos iii coincide com a diminuição dos danos do consumo Portugal confirma o mais esperado resultado das experiências de descriminalização esta modificação na lei não tem um efeito relevante no consumo de drogas e na toxicodependência 3 estudos sobre atitudes e conhecimento da lei N a escola de Criminologia da Universidade do Porto temos mantido inquéritos às populações sobre drogas e lei de modo a conferir o conhecimento das leis e as atitudes das populações em face de diversos aspetos relacionados com a legislação das drogas Numa primeira fase em 2003 participaram nesses inquéritos estudantes de direito e de psicologia adultos polícias e toxicodependentes N232 e numa segunda fase em 2011 e 2012 apenas estudantes de direito de criminologia e de psicologia N247 No geral o inquérito de 2003 evidenciou uma grande similitude de atitudes nos diferentes grupos apenas os toxicodependentes se destacam por tenderem a ser menos 75 Jorge Quintas proibicionistas mais favoráveis à descriminalização do consumo e por advogarem atitudes das autoridades mais tolerantes em face dos delitos de consumo Em todo o caso só foram usadas amostras similares estudantes de direito e de psicologia participantes em 2003 e 20112 N255 nas análises comparativas que se seguem No que respeita ao conhecimento da lei podemos verificar na Tabela 3 que é largamente minoritária em especial nos inquéritos mais recentes a porcentagem de participantes que reconhecem devidamente a descriminalização como o regime legal em vigor para o consumo de drogas em Portugal Há porcentagens superiores de participantes que julgam que o consumo de drogas é um crime que acham que não é proibido ou mesmo que simplesmente não sabem identificar o regime legal aplicável ao consumo de drogas tabela 3 Perceção do regime legal do consumo de drogas em Portugal 2003 n92 2011 n73 2012 n90 Descriminalização 239 151 100 Crime 391 274 344 Não proibido 196 288 233 Não sabe 174 288 322 Quanto às atitudes em face da legislação cf Tabela 4 verifica se uma tendência moderada pela preferência pela proibição do uso de substâncias ilegais na medida em que as posições médias estão ligeiramente acima do ponto intermédio da escala 4 quando a questão é colocada sem enunciação da substância em causa e quando se considera o haxixe Esta preferência pela proibição é mais extremada quando se evoca diretamente o uso de heroína e por contraste há desacordo com a interdição do álcool Todas estas posições quanto à proibição do uso de substâncias mantêmse estáveis nos vários inquéritos com exceção do álcool que nos mais recentes tende a ser ainda menos considerado como suscetível de ser interdito 76 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA tabela 4 Atitudes em face da legislação relativa ao consumo de drogas 2003 n92 2011 n73 2012 n90 Proibição do consumo de M M M F p Drogas em abstrato 473 422 490 D28464 A453 DA133 000 012 ns Álcool 254 178 199 Haxixe 490 439 507 Heroína 593 529 581 Valor esperado da proibição M M M F p Proibição eficaz 351 289 309 VP12915 A215 VPA58 000 ns ns Proibição legítima 473 485 489 Regime legal M M M F p Crime 364 339 401 RL588 A145 RLA218 ns ns ns Descriminalização 417 366 351 Tipo de Sanção M M M F p Prisão 282 220 299 TS20521 A409 TSA663 000 000 018 Multa 287 341 392 Alternativa de Tratamento 585 510 540 Escala de 1 discordo a 7 concordo A Ano do inquérito D Droga VP valor esperado da proibição RL Regime legal TS Tipo de sanção ns não significativo Considerando o valor esperado da proibição do consumo de drogas verificase que há uma diferença significativa entre a perceção 77 Jorge Quintas da legitimidade em face do juízo sobre a eficácia Os participantes tendem a considerar como legítima a interdição ainda que de forma moderada mas esperam menos que essa interdição seja eficaz para o controlo dos consumos de drogas Estes resultados relativos ao valor da proibição são estáveis nos vários inquéritos Relativamente à opinião sobre o estatuto jurídico do consumo há nos diversos inquéritos uma grande similitude de posições quanto a dever ser considerado um crime ou a dever ser descriminalizado Ambas as possibilidades apresentam valores próximos do ponto intermédio da escala sem diferenças significativas entre as duas possibilidades e sem diferenças significativas nas várias aplicações dos inquéritos As alternativas às sanções que potenciem o tratamento são as medidas preferenciais a aplicar aos consumidores detetados por atos de consumo A multa e de forma ainda mais marcada a pena de prisão são opções sancionatórias para atos de consumo que merecem o desacordo dos participantes em todos os inquéritos Em suma o conhecimento das leis que enquadram os atos de consumo deve ser considerado pobre na medida em que apenas uma pequena parte dos participantes é capaz de identificar corretamente o regime contraordenacional em vigor em Portugal Estes níveis de conhecimento remetem para uma situação de grande incerteza na análise dos possíveis efeitos dissuasivos da lei No que respeita às atitudes há uma preferência moderada pela proibição do uso de drogas embora permaneça uma posição de desconfiança da sua eficácia A dúvida quanto ao melhor estatuto jurídico do consumo consubstanciase numa posição média próxima das alternativas entre crime e descriminalização Em todo o caso é marcada uma preferência por medidas alternativas de tratamento em detrimento das respostas judiciais de multa e especialmente de prisão para atos de consumo 4 conclusões A experiência portuguesa da descriminalização de todas as drogas após 12 anos de aplicação prática pode já ser avaliada nos seus principais méritos e limitações Primeiro 78 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA descriminalizar o consumo de drogas afasta a crítica recorrente ao uso da lei criminal e aos seus mecanismos de aplicação para punir consumidores de drogas É certo que a descriminalização portuguesa tem uma limitação de quantidades disponíveis que coloca ainda alguns consumidores sobre alçada da lei criminal pelo ato de consumo particularmente após a decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 2008 mas na maior parte das situações de consumo o regime aplicável afasta a possibilidade de registo criminal e da aplicação de sanções penais entre as quais a relativamente remota possibilidade de aplicação de penas de prisão Segundo o ato de consumo tem uma resposta do sistema legal que permite constatar a aplicação de um regime legal protecionista do consumidor mais efetivo restaurando uma via de comunicação entre as instâncias do sistema legal e do sistema de saúde As deteções dos consumidores são ligeiramente superiores a tutela legal pelas CDT de um número superior de consumidores e a natureza das medidas aplicadas no âmbito das suspensões provisórias do processo coloca os consumidores de drogas em contacto preferencial com as instâncias do sistema de saúde Terceiro ainda que permaneça uma grande ambiguidade na aceitação comparativa da descriminalização em face da criminalização do consumo de drogas a resposta legal instaurada é consonante com a preferência pública pela manutenção do interdito legal e pela utilização de mecanismos sancionatórios de natureza terapêutica ao consumo Quarto o conhecimento sobre a lei é muito diminuto colocando grande incerteza sobre os efeitos declaratórios da lei e também sobre os efeitos dissuasivos que se pressupõe derivar das leis e da sua aplicação Quinto a descriminalização do consumo realizouse sem interferir decisivamente na evolução dos indicadores de consumo O efeito da lei da descriminalização nos padrões de consumo das populações e particularmente o medo de proporcionar aumentos dos consumos é particularmente relevante no plano das políticas das drogas Ora os dados disponíveis confirmam uma expetativa cientificamente fundada de relativa irrelevância da descriminalização do consumo nos indicadores de consumo de drogas e danos associados 79 Jorge Quintas 5 referências bibliográficas AgrA C 2009 Requiem pour la guerre à la drogue Lexpérimentation portugaise de décriminalisation Déviance Société 33 1 2749 Ali R christie P lenton S hAWks D sutton A hAll W AllsoP S 1999 The Social Impacts of the Cannabis Expiation Notice Scheme in South Australia National Drug Strategy Monograph Series n 34 Canberra Australian Government Publication Service bAllottA D 2003 Princípios gerais de política da droga e incongruências entre ciência e política In vicente D coord Problemas jurídicos da droga e da toxicodependência v I Suplemento da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Coimbra Coimbra Editora bAlsA C FArinhA T urbAno C FrAncisco A 2003 Inquérito nacional ao consumo de substâncias psicoactivas na população portuguesa Lisboa IDT Colecção Estudos Universidades bAlsA C vitAl C urbAno C PAscueiro L 2008 Inquérito nacional ao consumo de substâncias psicoactivas na população geral Portugal 2007 Lisboa IDT Colecção Estudos Universidades bAlsA C vitAl C urbAno C 2013 III Inquérito nacional ao consumo de substâncias psicoactivas na população portuguesa 2012 Resultados preliminares Lisboa SICAD Colecção Estudos Universidades beccAriA C 17661998 Dos delitos e das penas Lisboa Edições da Fundação Gulbenkian boekhout vAn solinge T 1999 Dutch Drug Policy in a European Context Journal of Drug Issues 29 3 511528 cesoni M 2000 LIncrimination de LUsage de Stupéfiants dans Sept Législations Européennes Documents du Groupement de Recherche Psychotropes Politique et Société n 4 chAlouPkA F grossmAn M tAurus J 1998 The Demand for Cocaine and Marijuana on Youth NBER Working Paper n 6411 Cambridge MA National Bureau of Economic Research chAlouPkA F PAculA R FArrely M Johnston J brAy J 1998 Do Higher Cigarette Prices Encourage to Use Marijuana NBER Working Paper n 6939 Cambridge MA National Bureau of Economic Research cohen P kAAl H 2001 The Irrelevance of Drug Policy Patterns and Careers of Experienced Cannabis Use in the Populations of Amsterdam San Francisco and Bremem Amsterdam Cedro University of Amsterdam donnelly N hAll W christie P 1998 Effects of the Cannabis Expiation Notice Scheme on Levels and Patterns of Cannabis Use in South Australia Evidence from the National Drug Strategy Household Surveys 19851995 National Drug Strategy Monograph Series n 37 Canberra Commonwealth Department of Health and Aged Care FogliA W 1997 Perceptual Deterrence and the Mediating Effect of Internalized Norms Among InnerCity Teenagers Journal of Reseach in Crime and Delinquency 34 4 414442 guerrA mArtins A 2003 Direito internacional da droga e da toxicodependência In vicente D coord Problemas jurídicos da droga e da toxicodependência v I Suplemento da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Coimbra 80 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Coimbra Editora hibell B guttormsson U Ahlström S bAlAkirevA O bJArnAson T kokkevi A krAus L 2012 The 2007 ESPAD Report Substance Use Among Students in 36 European Countries Stockholm CANEMCDDACouncil of Europe Pompidou Group kilmer B 2002 Do Cannabis Possession Laws Influence Cannabis Use Cannabis 2002 Report Technical Report of the International Scientific Conference Cap 8 Brussels Ministry of Public Health of Belgium korF D 2001 Trends and Patterns in Cannabis Use in the Netherlands Paper Presented at the Hearing of the Special Committee on Illegal Drugs Ottawa November 19th kury H quintAs J 2010a Sanktionen oder Hilfe Einstellungen zu Drogentätern Ergebnisse aus Portugal Kriminalistik 64 7 403409 kury H quintAs J 2010b Zur Wirkung von Sanktionen bei Drogenabhängigen Argumente für eine rationale Drogenpolitik Polizei Wissenschaft Zur Veröff Angenommen 32 1 3256 lourenço mArtins A 2003 Direito internacional da droga e da toxicodependência In vicente D coord Problemas jurídicos da droga e da toxicodependência v I Suplemento da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Coimbra Coimbra Editora mAccoun R reuter P 2001 Evaluating Alternative Cannabis Regimes British Journal of Psychiatry 178 123128 mAccoun R 2003 The Varieties of Marijuana Prohibition Do Laws Influence Drug Use Empirical Legal Studies Colloquium Series NorthWestern University School of Law oedt 2001 Relatório anual sobre a evolução do fenómeno da droga na União Europeia 2001 Luxemburgo Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades europeias OFS Office Fédéral de la Santé Publique Division Dépéndance et SIDA 2002 Dépénalisation de la Consommation du Cannabis Les Expériences de lÉtranger Bulletin 4502 Berne OFS PAculA R chriqui J king J 2003 Marijuana Decriminalization What does it Mean in the United States NBER Working Paper 9690 Cambridge MA National Bureau of Economic Research PAternoster R Piquero A 1995 Reconceptualizing Deterrence Journal of Research in Crime and Delinquency 32 3 251286 PAternoster R 1987 The Deterrent 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Nijhoff sénAt cAnAdA 2002 Le Cannabis Positions Pour um Régime de Politique Publique pour le Canada Rapport du Comité Spécial du Sénat sur les Drogues Illicites Ottawa Sénat Canada single E christie P 2001 The Consequences of Cannabis Decriminalization in Australia and the United States Report to the Swiss Federal Office of Public Health Bern SFOPH single E christie P Ali R 2000 The Impact of Cannabis Decriminalisation in Australia and the United States Journal of Public Health Policy 21 2 157186 drogAs e cárcere repressão às drogAs Aumento dA populAção penitenciáriA brAsileirA e AlternAtivAs1 Luciana Boiteux Mestre UERJ e Doutora em Direito USP Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Política de Drogas e Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro Professora Adjunta de Direito Penal sumário 1 Introdução 2 Leis de Drogas no Brasil 3 Encarceramento por delitos de drogas no Brasil 4 Política de drogas e sistema penitenciário 5 Mulheres tráfico e prisão 6 Drogas encarceramento e os custos dessa política 7 Considerações finais 8 Referências bibliográficas 1 introdução A correlação entre a repressão às drogas e o aumento da população penitenciária especialmente a partir da década de 1990 até os dias atuais vem sendo constatada nos Estados Unidos e em diversos 1 Tratase de resumo da conferência apresentada no Seminário Iberoamericano de Política de Drogas do IBCCrim ocorrido em 2013 84 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA países da América Latina em decorrência do registrado aumento do encarceramento de pessoas condenadas por tráfico de drogas No caso do Brasil os dados confirmam que esse fato se deve especialmente à Lei de Drogas de 2006 sendo representativa a presença de pequenos traficantes não violentos primários presos em flagrante sozinhos e desarmados no nosso sistema penitenciário o que será aqui analisado O presente estudo tem por objetivo trazer os resultados das últimas investigações realizadas sobre o tema do encarceramento e drogas no Brasil e pretende responder às seguintes questões qual é a relação entre a política de drogas e o encarceramento no Brasil E quais seriam as propostas para alterar essa realidade Nosso marco teórico é a Criminologia Crítica bArAttA 19972 que identifica na atuação seletiva do direito penal a estratégia de controle social da pobreza e propõe a construção de uma política criminal que seja protetora integral de direitos Portanto nos afastamos do paradigma clássicopositivista por analisarmos o funcionamento real do sistema penal e suas relações com a estrutura sociopolíticoeconômica O trabalho também tem uma base garantista FerrAJoli pois atribui à norma penal e à Constituição o papel de limitecontenção do poder punitivo 2 leis de drogas no brasil A legislação brasileira sobre drogas sofreu direta influência das Convenções das Nações Unidas com forte marca proibicionista que estabelecem como padrão a resposta repressiva ao problema das drogas tanto para usuários como para traficantes Estas foram incorporadas de forma acrítica ao ordenamento jurídico nacional tendo o Brasil se comprometido a combater o tráfico reduzir o consumo e a demanda com todos os meios disponíveis inclusive mediante o mais drásticos de todos o controle penal Para além do comprometimento oficial com o sistema internacional de controle de drogas as estreitas e históricas ligações diplomáticas e comerciais entre o Brasil e os Estados Unidos levaram à adoção de um proibicionismo fortemente influenciado pelo modelo norteamericano 2 bArAttA Alessandro 1997 Defesa dos direitos humanos e política criminal Discursos Sediciosos Rio de Janeiro Revan n 3 p 5769 85 Luciana Boiteux de combate às drogas boiteux 2006a3 Não obstante a obediência à cartilha proibicionista não logrou alcançar resultados positivos eis que cem anos depois das primeiras proibições ainda não se conseguiu equacionar o problema do abuso de substâncias ilícitas embora as penitenciárias estejam cheias de pessoas presas por envolvimento com drogas No Brasil em que pese não seja um país produtor de drogas era considerado originalmente um país de trânsito mas hoje é tido como um país também de alto consumo unodc 20134 Historicamente no Brasil as leis repressivas sobre drogas foram influenciadas pelo discurso médico mais do que por grupos religiosos boiteux 2006a5 como ocorreu nos EUA E foi somente partir do início do século XX que o tema ganhou importância no espaço público nacional de discussão sob uma perspectiva higienista tendo a proibição sido fundada na perspectiva de saúde pública Fiore 20076 O discurso jurídico repressivo portanto foi construído a partir da ideia de que o Estado deveria controlar os desregrados e abusadores de substâncias que não eram aceitas pela sociedade Como os médicos brasileiros detinham a exclusividade no manejo de políticas de saúde pública impuseram o controle médico sobre os que faziam uso de drogas cujo consumo foi tornado ilícito7 Esse 3 boiteux de F rodrigues Luciana 2006a O controle penal sobre as drogas ilícitas o impacto do proibicionismo no direito penal e na sociedade São Paulo Tese de Doutorado Faculdade de Direito da USP 4 united nAtions oFFice For drugs And cRIMES 2013 World Drug Report Disponível em httpwwwunodcorgwdr Acesso em 03 dez 2013 5 morAis Paulo César de Campos sd Mitos e omissões repercussões da legislação sobre entorpecentes na região metropolitana de Belo Horizonte Disponível em httpswww2mppagovbrsistemasgcsubsitesupload60MITOS20E20 OMISSÃESpdf p 8 Acesso em 03 dez 2013 6 Fiore Mauricio 2007 Uso de drogas controvérsias médicas e debate público São Paulo FapespMercado das Letras 7 Para uma discussão mais aprofundada sobre o histórico do controle de drogas no Brasil vide boiteux 2006a Fiore 2007 bAtistA Nilo 1998 Política criminal com derramamento de sangue Discursos Sediciosos ano 3 n 56 12 sem luisi Luiz 1990 A legislação penal brasileira sobre entorpecentes notícia histórica Fascículos de Ciências Penais ano 3 v 3 n 2 abrjun p 157 morAis Paulo César de Campos sd Mitos e omissões repercussões da legislação sobre entorpecentes na região metropolitana de Belo Horizonte Disponível em httpswww2mppagovbr sistemasgcsubsitesupload60MITOS20E20OMISSÃESpdf Acesso em 03 dez 2013 86 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA modelo é denominado por batista 1998 médicopolicial8 A partir das primeiras proibições as leis de drogas brasileiras apresentam variações regulares constantes sendo destacado o movimento legislativo de elaboração de novas leis e normas sobre o tema sempre na tentativa infrutífera de tentar reduzir o consumo de substâncias por meio de normas repressivas na linha do direito penal simbólico9 Atualmente o direito brasileiro prevê como crime tanto a posse de drogas como o tráfico adotando um discurso duplo de diferenciação entre usuário e traficante que para del olmo 1990 pode ser conceituado como modelo médicojurídico tentando estabelecer ideologia de diferenciação que possui como característica principal a distinção entre consumidor e traficante ou seja entre doente e delinquente O primeiro em razão de sua condição social é absorvido pelo discurso médico consolidado pelo modelo médicosanitário em voga desde a década de 1950 que representava o estereótipo da dependência enquanto o traficante é tratado como o criminoso o corruptor da sociedade10 O fato é que a adoção desse modelo internacional e a opção por uma política de drogas extremamente repressiva notadamente em relação ao traficante acarretou um grande aumento dos níveis de encarceramento não só no Brasil como nos EUA e na América Latina11 A grande questão que se coloca nesse momento é que 8 bAtistA Nilo 1998 Política criminal com derramamento de sangue Discursos Sediciosos ano 3 n 56 p 81 12 sem 9 Sobre a análise do grande número de alterações legislativas nas leis de drogas se comparadas a outros crimes no direito brasileiro vide boiteux Luciana e PáduA João Pedro 2013 A desproporcionalidade da lei de drogas os custos humanos e econômicos da atual lei de drogas no Brasil Rio de Janeiro UFRJ e Psicotropicus Este artigo foi originalmente publicado em língua espanhola como capítulo intitulado La desproporción de la Ley de Drogas los costes humanos y económicos de la actual política en Brasil In CORREA Catalina Pérez Org 2012 Justicia desmedida Proporcionalidad y delitos de drogas en America Latina Ciudad de Mexico Fontamara p 71101 10 del olmo Rosa 1990 A face oculta da droga Rio de Janeiro Revan 1990 p 34 11 beWleytAylor D trAce M stevens A 2005 Incarceration of drug offenders Costs and impacts The Beckley Foundation Drug Policy Programme Briefing Paper Seven London The Beckley Foundation Retrieved March 10 2013 from http wwwiprtiefilesincarcerationofdruguserspdf beWleytAylor D hAllAm C Allen R 2009 The incarceration of drug offenders An overview The Beckley Foundation Drug Policy Programme Report Sixteen London Kings College 87 Luciana Boiteux nesses outros países essa opção tem sido revisitada tendo o até o Governo dos EUA se manifestado favoravelmente à redução das altas penas para traficantes e também por alternativas ao encarceramento de usuários naquele país12 enquanto no Brasil a tendência como veremos tem sido pela intensificação do encarceramento como política oficial 3 encarceramento por delitos de drogas no brasil A partir da Constituição 1988 constatase um grande paradoxo na política criminal pois ao mesmo tempo que houve grandes conquistas como o reconhecimento de direitos e garantias individuais inclusive dos presos foram também previstos indicativos repressivos de grande impacto no texto constitucional tal como os crimes hediondos posteriormente definidos pela Lei 8072199013 ao qual o tráfico de drogas foi equiparado expressamente tendo sido vedada a progressão de regime entre outros benefícios e aumentado o prazo para o livramento condicional para tais crimes Essa lei14 impactou fortemente o sistema penitenciário justamente em decorrência do alto crescimento do número de presos por tráfico a partir da década International Centre for Prison Studies Retrieved March 10 2013 from httpwww beckleyfoundationorgpdfBFReport16pdf e metAAl P youngers C eds 2010 Sistemas sobrecargados leyes de drogas y cárceles en América Latina Amsterdan Washington TNIWOLA p 3039 12 Cf httpwwwhuffingtonpostcomernestdruckeranamnestyforprisoners b3957493html Acesso em 3 dez 2013 13 Pela Lei 80721990 os crimes hediondos são os seguintes latrocínio art 157 3º in fine extorsão qualificada art 158 2º extorsão mediante sequestro e qualificada art 159 caput estupro art 213 caput e parágrafo único atentado violento ao pudor art 214 epidemia com morte art 267 1º envenenamento qualificado art 270 cc art 285 todos do Código Penal e genocídio arts 1º a 3º Lei 28891956 Posteriormente em 1994 foram acrescentados o homicídio qualificado e o praticado por grupo de extermínio 14 Na época vários doutrinadores questionaram a constitucionalidade de tal lei em especial quanto à vedação da progressão de regime diante do princípio constitucional da individualização da pena mas a jurisprudência reiteradamente se posicionou de forma contrária e o Supremo Tribunal Federal por maioria consideravaa constitucional Contudo em abril de 2006 finalmente após quinze anos de vigência da lei a nova composição do STF alterou esse entendimento no HC 82959SP que declarou a a inconstitucionalidade do 1º do art 2º por violação do direito à individualização da pena CF art 5º LXVI Vide Informativo STF n 418 de 2006 88 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA de 199015 e significou a divisão ampla entre o sistema aplicável ao consumidor de drogas da classe média que tem dinheiro para pagar pelo seu consumo e o consumidortraficante morador de regiões mais pobres que precisa vender a droga para sustentar suas necessidades de consumo boiteux 2006b demonstrando o caráter seletivo da norma penal Essa divisão foi ainda mais reforçada pela atual Lei de Drogas de 2006 apesar de esta ser uma legislação considerada equilibrada que inovou de forma positiva a política de drogas brasileira passando o foco da política para a prevenção ao uso indevido de drogas embora também trate com destaque da repressão ao tráfico Entre as estratégias de prevenção incorpora a redução de danos e direitos do usuário tratamento voluntário Dentre os maiores destaques da nova Lei está a previsão expressa de princípios como o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana especialmente quanto à sua autonomia e liberdade art 4º I o reconhecimento da diversidade art 4º II a adoção de abordagem multidisciplinar inciso IX além de serem fixadas diretrizes destinadas à prevenção do uso de drogas por meio do fortalecimento da autonomia e da responsabilidade individual em relação ao uso indevido de drogas art 19 III e o reconhecimento de que reconhecimento da redução de riscos como resultados desejáveis das atividades de natureza preventiva inc VI Considerase a previsão legislativa de tais princípios como essencial por refletir uma nova abordagem na linha do proibicionismo moderado especialmente com a adoção da redução de danos como política oficial boiteux 20103416 Com relação ao consumidor uma importante mudança em 2006 foi a despenalização do delito de posse de drogas art 28 e do cultivo 15 Sobre a Lei dos Crimes Hediondos vide boiteux Luciana 2006c Quinze anos da Lei dos Crimes Hediondos reflexões sobre a pena de prisão no Brasil Revista Ultima Ratio Rio de Janeiro Lumen Juris v 1 n 0 p 107133 16 boiteux Luciana 2010 Drogas y prisión la represión contra las drogas y el aumento de la población penitenciaria en Brasil In metAAl P youngers C eds Sistemas sobrecargados leyes de drogas y cárceles en América Latina Amsterdan Washington TNIWOLA p 3039 89 Luciana Boiteux de plantas para uso pessoal art 28 1o17 aos quais hoje somente podem ser aplicadas sanções alternativas não sendo admitida a prisão do usuário em flagrante nem em caso de reincidência devendo ser aplicado o procedimento sumaríssimo da Lei 9099199518 Por outro lado a lei trouxe um aumento significativo da pena mínima para o crime de tráfico de três para cinco anos art 33 sendo bastante criticado este aumento justificado pelo legislador pela necessidade de endurecimento no combate ao tráfico salo de carvalho 2007 critica tal dispositivo pela disparidade entre a quantidade de pena e a inexistência de tipos penais intermediários com graduações proporcionais destacando a zona cinzenta entre o mínimo e o máximo da resposta penal a despeito das várias condutas previstas no art 3319 Assim apesar das significativas diferenças entre as ações típicas e da distinta lesão ao bem jurídico tutelado saúde pública além de não se exigir o propósito de comércio ou fim de lucro a escala penal é única o que pode dar margem a punições injustas e desproporcionadas No entanto a Lei de 2006 previu a possibilidade de redução de pena no caso de acusado primário sem envolvimento com o crime organizado 4o do mesmo artigo Embora este originalmente vedasse a substituição da pena de pequenos traficantes por alternativas a questão acabou sendo levada a julgamento no STF que considerou inconstitucional por violação ao princípio da individualização da pena o dispositivo que vedava a conversão em penas restritivas de direitos20 Outrossim persiste na lei a ausência de uma diferenciação clara entre uso e tráfico Pelos critérios legais esta deve se dar levandose em conta a quantidade natureza ou qualidade da droga além de outros elementos como lugar e outras circunstâncias objetivas além das subjetivas como antecedentes circunstâncias sociais e pessoais 17 Art 28 1o da Lei 113432006 Às mesmas penas submetese quem para seu consumo pessoal semeia cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica 18 Cf boiteux Luciana 2006 A nova lei de drogas e o aumento de pena do tráfico de entorpecentes Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais 167 14 p 89 19 cArvAlho Salo de 2007 A política criminal de drogas no Brasil Rio de Janeiro Lumen Juris p 189 20 STF HC 97256 Posteriormente com base nessa decisão foi publicada a Res 052012 do Senado que suspendeu a expressão vedada a conversão em pena restritiva de direitos na forma do art 52 X da CF1988 90 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA segundo o art 28 2º Com tais critérios extremamente vagos e de difícil aplicação a distinção no caso concreto acaba sendo feita pela primeira autoridade que tem contato com o acusado prevalecendo a visão subjetiva desta sendo excessivamente ampla a discricionariedade concedida ao policial O grande problema e que viola inclusive os princípios constitucionais da legalidade e da proporcionalidade é a ausência na norma de uma distinção legal apriorística o que prejudica sobremaneira a defesa do acusado Assim considerase inconstitucional essa opção legislativa ao deixar propositalmente em aberto tal distinção justamente pela ausência de garantias legais que limitem a intervenção estatal com relação ao usuário boiteux 200921 Diante desse quadro que inclui o aumento da pena mínima do crime de tráfico e o maior tempo de cumprimento para obter transferência de regime e livramento condicional por ser equiparado a hediondo somados à ausência de distinção legal objetiva entre usuário e traficante o resultado é que a Lei de Drogas constitui hoje uma das principais causas do desproporcional crescimento dos níveis de encarceramento no Brasil boiteux 2010 Assim a legislação de drogas brasileira repete e reforça o grande abismo na resposta penal entre usuários e traficantes Para estes mesmo os de pequeno porte ou traficantesusuários pertencentes aos estratos mais desfavorecidos da sociedade a resposta penal é a prisão fechada agravando ainda mais as terríveis condições das superlotadas e infectas prisões brasileiras Em relação aos usuários de drogas que possuem condições de comprar droga sem traficar houve despenalização desde que estes não sejam confundidos com traficantes Mas quem são os encarcerados por drogas Segundo as conclusões da investigação realizada no Rio de Janeiro e em Brasília22 a 21 boiteux Luciana et al 2009 Tráfico de drogas e constituição Brasília Ministério da Justiça 22 boiteux Luciana Wiecko Ela et al 2009 Tráfico de drogas e constituição um estudo jurídicosocial do art 33 da Lei de Drogas e sua adequação aos princípios constitucionais penais Brasília Ministério da JustiçaPNUD A pesquisa citada teve como fonte as sentenças de primeiro grau condenatórias pelo crime de tráfico na cidade do Rio de Janeiro foro central estadual e federal e nas varas especializadas do Distrito Federal no período compreendido entre 07102006 e 31052008 e essa amostra tem condições de permitir a compreensão de como a Lei de Drogas brasileira é aplicada na prática 91 Luciana Boiteux maioria dos condenados por tráfico de drogas 615 responde individualmente ao processo ou seja foram presos sozinhos 664 são primários com relativamente baixas quantidades de droga sendo que os traficantes condenados atuam em sua maioria de forma individual ou pelo menos foram presos nessa situação Os dados são eloquentes no sentido de revelar que à diferença da ideia difundida pelo senso comum a maioria dos traficantes condenados não é por definição integrante de organização criminosa nem atua necessariamente em associação Assim na minoria dos casos em que o acusado não atuou sozinho ou seja em 469 destes foram presas duas pessoas agindo juntas Em 5805 dos casos nessa cidade os condenados por tráfico receberam penas de cinco anos de prisão ou acima do mínimo legal sendo a pena aplicada abaixo do mínimo em 41 dos casos Chama a atenção no Rio de Janeiro a quantidade de processos nos quais o juiz presume que o réu se dedique a atividades criminosas ou integre organizações criminosas com base em meras suspeitas ou seja quando presume a sua culpabilidade para o fim de negar a redução das penas o que foi constatado em cerca de 40 dos casos A conclusão a que se chegou foi que na prática houve uma diferença de interpretação entre os juízes na aplicação da causa especial de redução dificultando a diminuição das penas mesmo no caso de réus primários especialmente na Justiça Estadual23 Por outro lado foi detectado que na Justiça Federal do Rio de Janeiro houve maior redução da pena para os acusados presos como mulas transportadores de drogas na maioria dos casos estrangeiros e muitas delas mulheres enquanto os Juízes Estaduais aplicaram bem menos tal causa boiteux 2009 Diante disso tudo indica que um número significativo de pessoas não tiveram sua pena reduzida pelo fato de alguns juízes terem rejeitado a aplicação da forma privilegiada do 4o do art 33 situação essa altamente questionável do ponto de vista da legalidade e da constitucionalidade Notase no Brasil de forma clara a seletividade da atuação do sistema penal Embora haja diversos graus de importância na hierarquia do tráfico de drogas a atuação das autoridades parece 23 No Brasil a competência das Justiças Estaduais é determinada por exclusão ou seja os casos em que não envolvem situações de interesse federal são julgados pelos juízes estaduais 92 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA estar direcionada às camadas mais desfavorecidas da sociedade que possuem alta representatividade nas prisões brasileiras Destaquese que mesmo nos países centrais é mais fácil para os agentes da lei prenderem os revendedores das ruas ou street dealers que são os varejistas mais numerosos e fáceis de serem alcançados do que os traficantes atacadistas Assim a pergunta por que somente os pequenos e alguns poucos médios traficantes estão presos pode ser respondida no Rio de Janeiro pela atuação seletiva do sistema penal brasileiro que criminaliza a pobreza e os pobres e vulneráveis e a política repressiva de drogas só agrava essa situação Portanto diante de tudo o que foi dito podese concluir que o Brasil segue o modelo de controle penal de drogas inspirado nas convenções internacionais mas sua legislação é caracterizada por um lado pelo enfoque preventivo e humanitário dado ao usuário na linha da despenalização com reconhecimento das políticas de redução de danos consideradas muito avançadas e por outro destaca se o tratamento punitivo exacerbado ao traficante de drogas sujeito a penas altas sem que haja uma distinção legal clara entre essas duas figuras levando a uma maior representatividade dos pequenos varejistas nas prisões brasileiras Assim o sistema brasileiro de controle de drogas atua de forma seletiva e autoritária pois não limita o poder punitivo pelo contrário deixa de estabelecer limites e contornos diferenciadores exatos para as figuras do usuário do pequeno médio e grande traficante e atribui às autoridades no caso concreto ampla margem de discricionariedade o que acarreta uma aplicação injusta da lei A seguir se analisará qual é o impacto desse tipo de política de drogas na realidade do sistema penitenciário brasileiro 4 política de drogas e sistema penitenciário no brasil É alarmante verificarmos o grande crescimento da população carcerária no Brasil tendo triplicado o número relativo de presos entre 1992 e 2012 boiteux e PAduA 201324 24 boiteux Luciana PáduA João Pedro 2013 A desproporcionalidade da lei de drogas 93 Luciana Boiteux Nas tabelas abaixo consta a evolução do número de presos por 100 mil habitantes em nosso país Como se percebe temse mantido um constante e progressivo aumento da população carcerária desde o fim da década de 1990 já tendo o Brasil hoje o quarto contingente penitenciário de todo o mundo só ficando atrás de EUA China e Rússia25 tabela i Brasil número de presos total por 100 mil habitantes26 Ano Total de Presos Presos por 100 milhab 1992 114377 74 1995 148760 92 1997 170602 102 2001 233859 133 2004 336358 183 2007 422590 220 2010 496251 25917 2011 514582 26979 2012 548003 28731 A partir desse quadro verificouse que o tráfico de drogas é hoje o segundo crime com maior representatividade carcerária só os custos humanos e econômicos da atual lei de drogas no Brasil Rio de Janeiro UFRJ e Psicotropicus 25 Fonte httpwwwprisonstudiesorg 26 Fonte International Centre for Prison Studies considerando os dados mais recentes divulgados pelo Infopen Disponível em httpwwwprisonstudiesorginfoworldbrief wpbcountryphpcountry214 World Prison Brief supplied by the International Centre for Prison Studies maintained by Roy Walmsley 94 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA ficando atrás do crime de roubo mas deve superar este em breve eis que aquele possui os maiores percentuais de crescimento por ano27 Em 2012 o Brasil tinha cerca de um quarto de seus presos condenados por tráfico e esse número quase que dobrou com a entrada em vigor da Lei de Drogas em 2006 como se vê abaixo tabela ii População carcerária brasileira total de presos e percentual de condenados por tráfico 2005201228 Ano Presos Total Presos Tráfico 2005 361402 32880 910 2006 383480 47472 1238 2007 422373 65494 1550 2008 451219 77371 1750 2009 473626 91037 1922 2010 496251 106491 2146 2011 514582 125744 2443 2012 548003 138198 2521 Fonte InfopenMinistério da Justiça Aprofundando essa análise na comparação entre os crimes mais representativos no sistema penitenciário brasileiro o que se verifica é que o crescimento do número de presos por tráfico supera de longe o percentual de crescimento em relação aos demais delitos como se vê abaixo 27 boiteux Luciana 2010 Drogas y prisión la represión contra las drogas y el aumento de la población penitenciaria en Brasil In metAAl P youngers C eds Sistemas sobrecargados leyes de drogas y cárceles en América Latina Amsterdan Washington TNIWOLA p 3039 28 As Tabelas foram originalmente publicadas em boiteux 2010 95 Luciana Boiteux tabela iii Presos por crimes no Brasil comparação entre dez2007 e dez2012 Dez2007 Dez2012 Variação Tráfico de drogas 65494 138198 11100 Homicídio29 48761 63066 2933 Furto30 57442 77873 3556 Estupro 9754 12954 3280 Roubo31 120079 148067 2330 Latrocínio 13258 15415 1626 Fonte InfopenMinistério da Justiça Além disso na prática da aplicação das penas a forma de operacionalização seletiva do sistema penal nos crimes de droga acarreta maior representatividade de minorias étnicas e mulheres entre os condenados conforme se verifica também no resto do mundo3229 29 Foram considerados em 2012 tanto os homicídios simples 27410 quanto os qualificados 35656 assim como em 2007 17310 e 31451 respectivamente Fonte Infopen Ministério da Justiça 30 Foram considerados em 2012 tanto os furtos simples 38027 quanto os qualificados 39846 assim como em 2007 26673 e 30769 respectivamente Fonte Infopen Ministério da Justiça 31 Levaramse em consideração nesse item tanto os roubos simples 48572 quanto os qualificados 84527 assim como em 2007 36523 e 83826 respectivamente Fonte Infopen Ministério da Justiça 32 humAn rights WAtch Punishment and Prejudice Racial Disparities in the War on Drugs New York 2000 96 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 5 mulheres tráfico e prisão A população carcerária brasileira total é composta de 64 de presas mulheres3330 Entre 2007 e 2012 segundo o Infopen o crescimento das presas por tráfico de drogas foi de 7711 tendo praticamente dobrado o número de mulheres presas por tráfico nesse período tabela iv Crescimento dos presos por tráfico de drogas por sexo 2007 2012 2007 2012 Variação Masculino 57610 8796 117404 8937 10379 Feminino 7884 1203 13964 1063 7711 Total 65494 131368 10058 Fonte InfopenMinistério da Justiça Deve ser registrado que embora em termos absolutos haja mais homens presos por tráfico de drogas em termos relativos as mulheres estão superrepresentadas entre os condenados por esse crime A análise da questão do gênero no tráfico de drogas é um tema bastante sensível sendo relevante destacar que o aumento desproporcional do encarceramento feminino por crimes ligados a drogas é observado em vários países inclusive nos EUA onde foram realizados estudos específicos sobre o tema3431 Assim o crime de tráfico de drogas ilícitas é o que mais encarcera mulheres sendo o maior percentual das condenadas por tal crime 1063 seguido pelo dos crimes contra a fé pública nos quais 511 apenas são de condenadas do sexo feminino como se verifica da tabela abaixo 33 Fonte Infopen dados mais recentes de dezembro de 2012 34 bushbAskette S R The War on Drugs A War Against Women In cook S dAvies S eds Harsh Punishment International Experiences of Womens Imprisonment Boston Northeastern University Press 1999 97 Luciana Boiteux tabela v Percentual de presos por crime e por sexo 2012 Homens Mulheres Total Tráfico de drogas 117404 8937 13964 1063 131368 Crimes contra a fé pública 4468 9488 241 511 4709 Crimes contra a paz pública 9331 9611 377 388 9708 Crimes contra a pessoa 63071 9742 1665 257 64736 Crimes contra o patrimônio 261780 9768 6195 231 267975 Crimes contra os costumes 21290 9904 214 099 21504 Fonte InfopenMinistério da Justiça Essa questão foi inclusive discutida pelo Conselho Nacional de Justiça sendo destacado quanto a sociedade brasileira desconhece a realidade do encarceramento feminino e que talvez por esse motivo seja omissa frente às precárias condições existentes sendo ainda maior a omissão das autoridades públicas em relação às mulheres privadas de liberdade uma vez que o sistema carcerário nacional é concebido para o encarceramento masculino3532 Nesse sentido apenas 53 das unidades prisionais brasileiras têm exclusividade para mulheres enquanto 47 são alas ou celas femininas em complexos prisionais masculinos36 33 Além disso essas mulheres adicionam a vulnerabilidade de gênero à vulnerabilidade social geral observada em relação à maioria dos presos por tráfico de drogas O perfil geral dessas 35 hAshimoto Érica Akie 2011 Número de mulheres encarceradas cresceu nos últimos 5 anos IBCCRIM São Paulo Disponível em httpwwwibccrimorgbrsitenoticias conteudophpnotid13838 Acesso em 19 nov 2011 36 sAntA ritA Rosangela Peixoto 2006 Mães e crianças atrás das grades em questão o princípio da dignidade da pessoa humana 2006 162 f Dissertação Mestrado em Política Social Universidade de Brasília Brasília 98 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA mulheres presas é bem definido a maioria é não branca está em idade fértil entre 18 e 30 anos com baixa escolaridade A maioria das presas tem ensino fundamental incompleto 11958 tem entre 18 e 24 anos 6521 seguida de grande parcela de mulheres entre 25 e 29 anos 6018 é parda 11438 e cumpre penas de 4 a 8 anos 55353734 No caso das presas por drogas a maioria são mulheres pobres que trabalhavam em bicos mal remunerados e ocupações degradantes eou perigosas É esse o perfil e a cara da maioria das mulheres que o sistema penal alcança ao condenálas pelo crime de tráfico de drogas3835 Esse contexto ainda é mais grave se verificarmos que segundo os dados do Depen 80 das mulheres em situação de prisão são mães Nesse universo que é reduzido se comparado ao de homens mas cada vez mais representativo verificase o despreparo do sistema penitenciário para lidar com a situação destas mulheres presas que vivem em espaços precários com problemas de higiene e acompanhamento médico mesmo diante de importantes normativas internacional e interna que garantem a elas direitos39 36 6 drogas encarceramento e os custos dessa política A ssim no Brasil o grande aumento da população carcerária registrado nos últimos anos vem trazendo graves consequências tanto econômicas em relação ao aumento de gastos penitenciários 37 Hashimoto 2011 38 Cf Andrade Vera Regina Pereira de 2004 Sexo e gênero a mulher e o feminino na criminologia e no sistema de justiça criminal Boletim IBCCRIM São Paulo v11 n137 p 2 abr EspinozA Olga 2004 A mulher encarcerada em face do poder punitivo São Paulo IBCCRIM Frinhani Fernanda de Magalhães Dias Souza Lídio de 2005 Mulheres encarceradas e espaço prisional uma análise de representações sociais Psicologia Teoria e Prática São Paulo 7 1 jun Lemgruber Julita 1999 Cemitério dos vivos análise sociológica de uma prisão de mulheres 2 ed Rio de Janeiro Forense Secretaria Especial De Politicas Para Mulheres 2002 Relatório do Grupo de Trabalho Interministerial sobre a Reorganização e Reformulação do Sistema Prisional Feminino Brasília Soares Bárbara Musumeci Silva Iara Ilgenfritz 2002 Prisioneiras vida e violência atrás das grades Rio de Janeiro Garamond 39 Tais como Regras Mínimas para o Tratamento de Presos da ONU a recente Carta de Bangkok para o tratamento de mulheres presas Princípios e normas previstos na Constituição Federal a Lei de Execução Penal e as Resoluções do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária CNPCP entre outros 99 Luciana Boiteux como humanas já que um maior número de pessoas são submetidas a péssimas condições de vida carcerária Tratase de um custo muito alto arcado pelo Estado brasileiro40 37 que vem demonstrando grandes dificuldades para melhorar as condições de suas prisões o que já levou inclusive a denúncia perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos com relação às terríveis condições da Penitenciária conhecida como Urso Branco no Acre região norte do Brasil onde mais de 100 presos foram assassinados no interior do presídio sob a tutela do Estado entre os anos de 2000 e 2008 A descrição oficial das condições gerais do sistema penitenciário nacional é a seguinte A quase totalidade dos presos é pobre originários da periferia com baixa escolaridade e sem ou com pouca renda No ato da prisão o aparelho policial age sempre com prepotência abuso de poder sonegação de direitos e não raro com violência A CPI ouviu muitas denúncias de flagrantes forjados em especial no que se refere às drogas bem como de maustratos praticados pelos agentes policiais41 38 Em que pese o alto gasto oficial brasileiro este não é suficiente para alterar a situação de superlotação e violência nos presídios brasileiros eis que cada vez se prende mais gente além das graves deficiências de assistência médica social jurídica e educacional na alimentação e no vestuário e dos relatos de descontrole por parte do Estado e de domínio de organizações criminosas no interior de alguns presídios Uma boa parte dos presos não deveria estar nas penitenciárias sendo esse atraso decorrente de ausência ou insuficiência de assistência jurídica o que faz com que muitos fiquem presos mais tempo do que suas penas previam A opção pela pena privativa de liberdade em vez de medidas alternativas e a política repressiva de drogas impactam significativamente este quadro 40 Cf Boiteux e Pádua 2013 o Brasil gastou com seus 548003 presos em 2012 cerca de R 6785 bilhões dos quais R 1626 bilhões somente com os presos por tráfico de drogas considerando o valor mensal aproximado por preso estabelecido como parâmetro pelo Congresso Nacional Vide dados da Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário do Congresso Nacional julho de 2008 que indicou como média nacional o custo mensal por preso de R 103192 hum mil e trinta e um reais e noventa e dois centavos Fonte Relatório da CPI do Sistema Penitenciário Congresso Nacional Brasília 2008 p 367 41 Relatório da CPI cit p 214 100 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Diante das condições insalubres da maioria das prisões e o fato de que a grande maioria dos detentos são pessoas pertencentes às classes mais baixas além da hipótese de que a maioria dos presos por tráfico seja de pequenos traficantes sem nenhuma importância na cadeia comercial de venda das substâncias ilícitas temse que uma grande quantidade de dinheiro que poderia estar sendo mais bem utilizada em investimentos em saúde educação e infraestrutura esteja sendo desperdiçada para prender pessoas que vão sair dali em piores condições do que chegaram conforme apontam diversos estudos sobre o sistema prisional no Brasil e internacionalmente42 39 Ao comparar esse gasto penitenciário com o investimento público em educação no Brasil o contraste é marcante O fato é que se gasta mal cerca de seis vezes mais com um preso do que com um aluno na escola vide boiteux e PáduA 2013 O mesmo ocorre nos EUA onde segundo foi calculado em 1996 o custo de um preso naquele país por ano superava o gasto anual de um estudante em Harvard incluindo ensino moradia e os gastos diários com alimentação43 40 7 considerações finais E ste trabalho teve por objetivo responder a duas perguntas Qual é a relação entre a política de drogas e o encarceramento no Brasil E quais seriam as propostas para alterar essa realidade Diante do exposto podese dizer que a política de drogas brasileira por ser a causa do crescimento no número de presos em nosso país assim como em outros lugares do mundo é diretamente responsável pelo agravamento das condições dos presídios brasileiros Gastase muito e gastase mal para impor condições miseráveis de vida na prisão a grupos vulneráveis 42 Para uma ampla revisão de literatura vide cervini Raul 2002 Os processos de descriminalização 2 ed São Paulo RT para estudos sobre a realidade brasileira cArvAlho Salo coord 2007 Crítica à execução penal 2 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 43 Segundo o economista de Harvard Jeffrey Miron 2008 referente aos custos apurados no início dos anos 1990 Apud The Incarceration of Drug Offenders An Overview The Beckley Foundation Drug Policy Programme Report Sixteen p 12 101 Luciana Boiteux o que demonstra a atuação seletiva do sistema penal e a inutilidade dessa política repressiva de drogas na proteção da saúde pública e na prevenção ao abuso no consumo de substâncias Em relação ao objetivo declarado de reduzir o consumo o proibicionismo falhou mas nunca tivemos tantas pessoas presas especialmente mulheres Mas o que pode ser feito Há que se mudar a política de drogas atual para uma mais humana eficaz e humanitária investir em redução de danos descriminalizar o uso e o cultivo e regular legalizar todo o mercado produtivo das substâncias hoje ilícitas44 41 Ao se descriminalizar a posse estarseá ampliando as possibilidades de prevenção Ao se regulamentar a venda estar seá fiscalizando um consumo que existe de forma descontrolada no mercado ilícito e ainda se gerará impostos para financiar a prevenção Há que se pensar em alternativas sociais e retirar as mulheres e as crianças dos cárceres que só deveriam receber os condenados por crimes violentos Os novos exemplos internacionais recentemente implementados em países como Uruguai podem ser um marco de mudança para a superação do modelo atual repressivo que tem na prisão como pena a sua base simbólica mais forte 8 referências bibliográficas AndrAde Vera Regina Pereira de 2004 Sexo e gênero a mulher e o feminino na criminologia e no sistema de justiça criminal Boletim IBCCRIM São Paulo v11 n137 p 2 abr bArAttA Alessandro 1997 Defesa dos Direitos Humanos e Política Criminal In Discursos sediciosos Rio de Janeiro Revan n 3 p 5769 bAtistA Nilo 1998 Política criminal com derramamento de sangue Discursos Sediciosos Ano 3 n 56 12 sem beWleytAylor D trAce M stevens A 2005 Incarceration of drug offenders Costs and impacts The Beckley Foundation Drug Policy Programme Briefing Paper Seven London The Beckley Foundation Retrieved March 10 2013 from httpwww iprtiefilesincarcerationofdruguserspdf beWleytAylor D hAllAm C Allen R 2009 The incarceration of drug offenders An overview The Beckley Foundation Drug Policy Programme Report Sixteen London Kings College International Centre for Prison Studies Retrieved March 10 44 Por meio da Legalização Controlada vide BOITEUX 2006 102 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 2013 from httpwwwbeckleyfoundationorgpdfBFReport16pdf boiteux Luciana e PáduA João Pedro 2013 A desproporcionalidade da lei de drogas os custos humanos e econômicos da atual lei de drogas no Brasil Rio de Janeiro UFRJ e Psicotropicus boiteux Luciana Wiecko Ela et al 2009 Tráfico de drogas e constituição um estudo jurídicosocial do art 33 da Lei de Drogas e sua adequação aos princípios constitucionais penais Brasília Ministério da JustiçaPNUD boiteux de F rodrigues Luciana Boiteux 2006a O controle penal sobre as drogas ilícitas o impacto do proibicionismo no direito penal e na sociedade São Paulo Tese de Doutorado Faculdade de Direito da USP boiteux Luciana 2006b A nova lei de drogas e o aumento de pena do tráfico de entorpecentes Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais n 167 14 p 89 2006c Quinze anos da Lei dos crimes hediondos reflexões sobre a pena de prisão no Brasil Revista Ultima Ratio v 1 n 0 Rio de Janeiro Lumen Juris p 107133 2010 Drogas y prisión la represión contra las drogas y el aumento de la población penitenciaria en Brasil In metAAl P youngers C eds Sistemas sobrecargados Leyes de drogas y cárceles en América Latina Amsterdan Washington TNIWOLA p 3039 BRASIL COMISSAO PARLAMENTAR DE INQUERITO 2008 Relatório da CPI do Sistema Penitenciário Congresso Nacional Brasília p 367 bushbAskette S R The War on Drugs A War Against Women In cook S dAvies S eds Harsh Punishment International Experiences of Womens Imprisonment Boston Northeastern University Press 1999 cArvAlho Salo de 2007 A política criminal de drogas no Brasil Rio de Janeiro Lumen Juris cArvAlho Salo coord 2007 Crítica à execução penal 2 ed Rio de Janeiro Lumen Juris cervini Raul 2002 Os processos de descriminalização 2 ed São Paulo RT correA Catalina Pérez Org 2012 Justicia desmedida Proporcionalidad y delitos de drogas en America Latina Ciudad de Mexico Fontamara del olmo Rosa 1990 A face oculta da droga Rio de Janeiro Revan 1990 esPinozA Olga 2004 A mulher encarcerada em face do poder punitivo São Paulo IBCCRIM Fiore Mauricio 2007 Uso de Drogas Controvérsias Médicas e Debate Público São Paulo FAPESPMercado das Letras FrinhAni Fernanda de Magalhães Dias souzA Lídio de 2005 Mulheres encarceradas e espaço prisional uma análise de representações sociais Psicologia Teoria e Prática São Paulo 7 1 jun hAshimoto Érica Akie 2011 Número de mulheres encarceradas cresceu nos últimos 5 anos IBCCRIM São Paulo Disponível em httpwwwibccrimorgbrsitenoticias conteudophpnotid13838 Acesso em 19 nov 2011 humAn rights WAtch Punishment and Prejudice Racial Disparities in the War on Drugs New York 2000 lemgruber Julita 1999 Cemitério dos vivos análise sociológica de uma prisão de mulheres 2 ed Rio de Janeiro Forense luisi Luiz 1990 A legislação penal brasileira sobre entorpecentes notícia histórica Fascículos de Ciências Penais Ano 3 v 3 n 2 abrmaijun p 157 metAAl P youngers C Eds 2010 Sistemas sobrecargados Leyes de drogas y cárceles en América Latina Amsterdan Washington TNIWOLA morAis Paulo César de Campos sd Mitos e omissões repercussões da legislação sobre entorpecentes na região metropolitana de Belo Horizonte Disponível em https www2mppagovbrsistemasgcsubsitesupload60MITOS20E20OMISSÃES pdf p 8 Acesso em 03 dez 2013 sAntA ritA Rosangela Peixoto 2006 Mães e crianças atrás das grades em questão o princípio da dignidade da pessoa humana 2006 162 f Dissertação Mestrado em Política Social Universidade de Brasília Brasília secretAriA esPeciAl de PoliticAs PArA mulheres 2002 Relatório do Grupo de Trabalho Interministerial sobre a Reorganização e Reformulação do Sistema Prisional Feminino Brasília SoAres Bárbara Musumeci silvA Iara Ilgenfritz 2002 Prisioneiras vida e violência atrás das grades Rio de Janeiro Garamond UNITED NATIONS OFFICE FOR DRUGS AND CRIMES 2013 World Drug Report Disponível em httpwwwunodcorgwdr Acesso em 03 dez 2013 o direito à provA violAdo nos processos de tráfico de entorpecentes Luís Carlos Valois Mestre e Doutorando em Criminologia na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Membro da Associação de Juízes para Democracia AJD e portavoz da Law Enforcement Against Prohibition LEAP Agentes da Lei Contra a Proibição LEAPBrasil Juiz de Direito sumário 1 Introdução 2 A discricionariedade do poder punitivo 3 Testemunhas do crime de tráfico de substância entorpecente 4 As invasões de domicílio 5 O direito da defesa à prova 6 A prova testemunhal e o contraditório nos processos de tráfico de entorpecentes 7 O juiz de combate ao tráfico 8 Conclusões 9 Referências bibliográficas 1 introdução S endo uma das funções do processo a de garantia do cidadão contra a arbitrariedade do Estado na atividade deste de solução de litígios toda e qualquer evolução do próprio processo deve seguir 106 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA no sentido de manter essa garantia aperfeiçoandoa ou no mínimo restringindo qualquer desvio que ameace a função garantista do processo Tal função não se resume a mais uma das garantias do Estado burguês muito embora a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão não pudesse ter esquecido dessa fundamental proteção notadamente no âmbito penal ao declarar no art 7º que ninguém pode ser acusado preso ou detido senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por esta prescritas É função diretamente ligada à legitimidade do poder jurisdicional nascida muito antes da revolução burguesa quando surge a figura do legislador e a autoridade pública começa a preestabelecer em forma abstrata regras destinadas a servir de critério objetivo e vinculativo para tais decisões afastando assim os temores de julgamentos arbitrários e subjetivos1 Há que se notar que temores de julgamentos arbitrários e subjetivos nunca se dissiparam e a história é recheada de momentos de maiores e menores períodos de arbitrariedade A noção hoje de pósmodernidade e de perda dos vínculos e crenças a respeito da ciência e de um Estado todopoderoso só acrescenta mais receio por parte da população e consequentemente menos legitimidade à ação estatal de solução de litígios Ao mesmo tempo o que se convencionou chamar de pós modernidade2 tem exigido maior humildade de quem se pretende cientista devendose aceitar as limitações não só da ciência como também das funções do Estado entre elas a função jurisdicional 1 ArAúJo Cintra Antônio Carlos de Grinover Ada Pellegrine Dinamarco Cândido R Teoria geral do processo 13 ed 1997 p 23 Os autores citam como marco histórico e fundamental dessa época a Lei das XII Tábuas do ano de 450 aC Grifo no original 2 A pósmodernidade sinaliza para uma mudança de paradigmas científicos que só podem ser alcançados diminuindose a arrogância científica atitude impensável na modernidade ciosa de sua razão intocável Muito menos do que se prendendo a datas e a referências estanques e aceitando mesmo os riscos inerentes ao uso e emprego da expressão pósmodernidade entendese interessante a identificação deste processo de ruptura como modo de se diferenciar e de se designar com clareza o período de transição irrompido no final do século XX que tem como traço principal a superação dos paradigmas erigidos ao longo da modernidade A pósmodernidade tem pois a ver com a crise da modernidade e com a necessidade de revisão da modernidade Bittar Eduardo C B O direito na pósmodernidade e reflexões frankfurtianas 2009 p 105106 107 Luís CarLos VaLois favorecendo avaliações mais abertas de fenômenos antes fechados em dogmáticas impermeáveis Dentro dessa perspectiva pretendemos analisar uma das maiores razões de temor não só na atividade jurisdicional mas na atividade do sistema penal como um todo qual seja o processo de apuração do crime de tráfico ilícito de entorpecentes primeiramente examinando e explicando o porquê desta inicial afirmação demonstrando quanto a discricionariedade do poder repressivo é maior no âmbito do tráfico de entorpecentes Em seguida nosso objetivo é demonstrar que o que se denominou guerra às drogas3 não tem causado apenas prejuízos para a população em si pela ausência de políticas verdadeiramente preventivas mas dentro do limitado âmbito deste trabalho mostrar que a guerra às drogas a discricionariedade relacionada à repressão aos crimes a ela relativos tem prejudicado a racionalidade do processo penal principalmente no que diz respeito às provas e ao contraditório suporte principal do processo em um Estado Democrático de Direito Qualquer guerra por natureza é polarizadora e portanto todos que nela estão envolvidos acabam assumindo um lado sem muita reflexão A guerra às drogas não é diferente com a ressalva de que é uma guerra que tem sido travada no seio de nossa sociedade fazendo com que emoções e sentimentos influam no refletir sobre questão tão séria No processo penal em especial em que antecipadamente reconhecemos com Gustavo Badaró que expressões como prova e verdade também são dotadas de uma grande carga emocional4 o cuidado deve ser redobrado em questões em que o próprio meio social já se demonstra sensível Evitaremos fazer colocações sobre nossa opção política mas é necessário reconhecer como premissa deste trabalho que guerras causam insanidades que guerras não são naturais e que não podemos estudar os instrumentos processuais como se estes estivessem sendo utilizados em uma situação de normalidade social A opção política do legislador é contraditória por si só ao tornar 3 Na literatura criminológica a guerra às drogas moderna com crescente rigor teria tido início no início dos anos 1970 nos EUA durante o governo Nixon Bertram Eva et al Drug war politics the price of denial 1996 p 10 4 bAdAró Gustavo Henrique Righi Ivahy Ônus da prova no processo penal 2003 p 27 108 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA tão rigorosa a pena de conduta tida como crime contra a saúde pública quando na verdade todos sabemos o cuidado com que governos federal estadual e municipal tratam a saúde pública do nosso país O distanciamento entre a Academia e a prática judicial não ajuda a se chegar a respostas racionais e Chaves Camargo resume bem certos aspectos desse afastamento favorecendo uma jurisprudência de interesses distante da realidade social a crença em um sistema perfeito que por si só possa resolver todos os problemas apresentados na ciência jurídica um ensino jurídico pautado pela tecnização carente de uma formação doutrinária e filosófica ampla que possa contribuir para uma postura crítica diante dos institutos jurídicos uma jurisprudência que se pretende fixa vinculante sem respeitar a complexidade e a mutabilidade das relações sociais e a pacificidade dos manuais de direito sempre preocupados em afirmativas categóricas5 Por isso essencial a crítica à jurisprudência que também pretendemos efetivar reconhecendo que às dificuldades acima referidas se soma a imobilidade de um poder judiciário hierarquizado repetidor de jurisprudências tidas como superiores atual a descrição que Nelson Hungria fez de certos juízes como reduzidos ao humilde papel de esponja que só restitui a água que absorve6 Examinaremos igualmente o procedimento de lavratura da prisão em flagrante sua importância para o curso do processo de conhecimento a colheita de provas realizada pela polícia e utilizada pelo Judiciário como fundamentação na sentença penal condenatória Como complemento enfim trabalharemos com a crescente bibliografia norteamericana que tem denunciado as violações de direitos civis no combate às drogas não só porque é costume se imaginar que a política repressiva dos EUA funciona melhor do que a nossa mas também porque o rigor que temos imposto nesse campo deriva muito de imposições feitas por governos norteamericanos7 5 Direitos humanos e direito penal limites da intervenção estatal no estado democrático de direito In Estudos criminais em homenagem a Evandro Lins e Silva 2001 p 76 7778 6 Comentários ao Código Penal 5 ed 1977 v 1 t 1 p 79 7 Há anos os EUA exportam sua política de drogas para os demais países condicionando inclusive contratos comerciais ao rigor da política de drogas da política local do outro país o que começou em 1972 com a criação do Cabinet Committee for International 109 Luís CarLos VaLois 2 A discricionariedade do poder punitivo A discricionariedade dos agentes do Estado neste tema é enorme a começar pela própria tipificação do delito de tráfico de entorpecentes quando o art 33 da Lei 113432006 traz dezoito verbos entre eles condutas que não são necessariamente de tráfico no sentido de tráfego permitindo um amplo enquadramento de qualquer cidadão que tenha em depósito traga consigo ou guarde substância entorpecente como traficante O princípio da legalidade que tem como corolários a clareza e a objetividade do tipo resta no mínimo prejudicado com tamanha abertura do tipo reconhecido pela doutrina como crime de ação múltipla8 carente o nosso país de maiores críticas sobre a opção do legislador o qual poderia sem muito esforço limitar ou dar maior clareza a expressões que estabelecem condutas e penas tão graves Resultado ou não da passionalidade inerente à guerra às drogas essa discricionariedade se reflete nas ruas quando a avaliação da conduta é feita pela polícia Sim pois é o policial que selecionará o futuro flagranteado indiciado e réu do processo criminal fará a avaliação da conduta entre o amplo rol estabelecido atividade esta que como veremos acaba surtindo efeitos em toda persecução criminal Neste campo as preconcepções do policial têm campo livre pois no ambiente de guerra às drogas criado as autoridades policiais podem parar qualquer um revistar quem entender por suspeito Diferentemente dos demais crimes em que o suspeito é quem age ou pratica conduta relacionada ao delito do qual se suspeita no tráfico de drogas qualquer um pode ser suspeito O mais grave é que garantindo à polícia a liberdade para parar interrogar e revistar qualquer um como sói acontecer principalmente nas comunidades pobres há a possibilidade de se facilitar discriminações raciais e étnicas9 além do preconceito já inerente aos Narcotic Control CCINC olmo Rosa Del A face oculta da droga 1990 p 44 8 FrAnco Alberto Silva et al Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial 1997 p 684 9 Nos EUA já há decisões reconhecendo a prejudicialidade dessa discricionaridade policial nos termos acima citados Other courts emphasized that granting police the freedom to stop interrogate and search anyone who consented would likely lead to racial and 110 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA locais onde essas apreensões e detenções são realizadas Selecionado o flagranteado segue para a delegacia de polícia onde o delegado que deveria ser a autoridade superior a avaliar a prisão efetuada sem muito mais elementos a não ser os que foram trazidos pela autoridade da rua acaba ratificando a prisão O Código de Processo Penal determina que ao lavrar o auto de prisão em flagrante resultando das respostas fundada a suspeita contra o conduzido a autoridade mandará recolhêlo à prisão10 art 304 1º portanto em interpretação lógica contrario sensu não havendo fundadas suspeitas a autoridade não deveria recolhêlo à prisão A atividade de avaliar a prisão em flagrante pela autoridade policial por vários motivos entre eles a própria crescente demanda inerente ao estado de guerra resta prejudicada Mas o que se quer ressaltar aqui é a necessidade de fundamentação por parte da autoridade policial na lavratura do auto de prisão em flagrante medida sempre ignorada Quando a Constituição Federal estabeleceu que aos litigantes em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa com os meios e recursos a ela inerente inc LV do art 5º pretendeu não permitir que houvesse no ordenamento jurídico manifestação sem fundamentação ou seja que não permitisse a ampla defesa e o contraditório Assim sendo a atividade do delegado de polícia de extrema importância para o curso do processo penal como um todo a atividade de na letra da lei especificar o porquê entendeu como fundada a suspeita contra o conduzido e a omissão viola garantia constitucional e agrava a discricionariedade da qual estamos falando ethnic discrimination AlexAnder Michelle The New Jim Crow mass incarceration in the age of colorblindness 2012 p 66 A autora refere que o consentimento à revista necessário no sistema norteamericano muitas vezes não é respeitado ou diante das circunstâncias dificilmente pode ser negado por aquele que é alvo da atividade policial No Brasil o preconceito normalmente dissimulado ficou amplamente evidenciado na Ordem de Serviço 8 BPMI8222012 do Comandante da 2ª Cia PM em Campinas São Paulo quando a autoridade policial expressou que as ocorrências focassem em abordagem a transeuntes e em veículos em atitudes suspeita especialmente indivíduos de cor parda ou negra sic Disponível em httpdiariospcombrnoticia detalhe42509PMdaordemparaabordar91negrosepardos92 Acesso em 26 mar 2013 10 Grifo nosso 111 Luís CarLos VaLois Por certo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que o inquérito policial é peça meramente informativa não suscetível de contraditório e sua eventual irregularidade não é motivo para decretação da nulidade da ação penal11 posicionamento evidentemente tomado por razões de política criminal uma vez que a própria Constituição Federal garantiu a todos os procedimentos inclusive aos administrativos como vimos acima o contraditório Todavia a adaptação de um procedimento inquisitório não recepcionado pela Constituição Federal no ordenamento jurídico não pode afastar a possibilidade do exercício da ampla defesa como bem ressalta marta saad quando afirma que nos inquéritos policiais que se iniciam por meio de prisão em flagrante delito o direito de defesa deve ser exercido imediatamente porque o indiciamento é automático nessas hipóteses12 e por esse prisma maior razão em se exigir manifestação da autoridade policial acerca da suspeita contra o conduzido Há inclusive entendimento com o qual concordamos quando utilizamos o argumento contrario sensu acima ao avaliar o art 304 do CPP de que quando a autoridade policial entender pela não suspeita do conduzido esta deve lavrar auto acerca de sua decisão uma vez que a prisão já teria se efetuado na rua Lavratura de auto flagrante tudo quanto houver sido narrado à autoridade policial deverá constar do auto de flagrante que terá de ser lavrado sempre ainda que a autoridade se convença de que a prisão foi arbitrária Nesse último caso como será explicado adiante a autoridade não recolherá preso o conduzido art 304 1º mas a lavratura do auto é indeclinável desde que alguém tenha sido apresentado como preso em flagrante O auto será instrumento hábil para documentar fatos que ocorram a prisão de alguém sua condução até a presença da autoridade sua apresentação como autor do crime etc e que tem relevância jurídica Servirá ele então para que se possa aquilatar a responsabilidade de quem efetuou a prisão art 350 do C Penal e o acerto ou desacerto da autoridade policial13 11 HC 83233RJ rel Min Nelson Jobim 2ª T DJ 19032004 12 O direito de defesa no inquérito policial 2004 p 263 13 tornAghi Hélio Curso de processo penal 1980 p 48 No mesmo sentido e 112 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Mas o que acontece na prática é algo totalmente inverso com autos de prisão em flagrante sem nenhuma fundamentação mas somente trazendo declarações objetivas e sucintas das testemunhas quase sempre exclusivamente policiais situação da qual falaremos logo a seguir sem que se saiba verdadeiramente a forma de atuação policial Embora seja fato notório a qualquer operador do direito um trabalho científico deve fazer afirmações com o máximo de comprovação possível e na semana entre 03032012 e 09032012 quando estivemos no plantão forense da capital no Amazonas14 verificamos que dos 58 autos de comunicação em flagrante nenhum possuía manifestação da autoridade policial informando as razões pela qual considerou o conduzido como autor do delito de tráfico de substância entorpecente havendo quando muito a superficial declaração de que a autoridade policial convicta da situação de flagrante mandou lavrar o auto o que obviamente não se equipara à fundamentação exigida constitucionalmente pois esta como já referido anteriormente deve permitir o exercício da ampla defesa 3 testemunhas do crime de tráfico de entorpecentes N a mesma acima referida verificação empírica que efetivamos foi observado que dos 58 autos de prisão em flagrante 55 tinham exclusivamente como testemunhas policiais entre civis e militares sendo estes a maioria Tal verificação pode ser facilmente comprovada nos sites dos tribunais de justiça Como exemplo avaliando os últimos 100 acórdãos de apelações em crimes de tráfico de entorpecentes 89 faziam referência a testemunhos exclusivamente de policiais15 Sobre essa constatação os operadores de direito também não precisam de maiores comprovações vez que se trata de fato notório O STF tem mantido o posicionamento de que a prova testemunhal exclusivamente formada por policiais é válida16 independentemente apresentando idêntica citação JArdim Afrânio Silva A prisão e sua documentação Disponível em wwwamperjorgbr Acesso em 26 mar 2012 14 O autor é juiz de direito no Estado do Amazonas atualmente titular da Vara de Execuções Penais 15 Avaliação realizada em 26032013 no endereço eletrônico wwwtjspjusbr 16 Ementa Processual penal Penal Testemunha policial Prova Exame I O Supremo 113 Luís CarLos VaLois do delito de que se trata no que é seguido por todas as cortes estaduais Nessa questão outra circunstância normativa é esquecida Tratase da regra do art 304 2º do CPP que estabelece que a falta de testemunhas da infração não impedirá o auto de prisão em flagrante mas nesse caso com o condutor deverão assinálo pelo menos duas pessoas que hajam testemunhado a apresentação do preso à autoridade Ora o legislador pretendeu limitar a conduta de se prender sem testemunhas do fato disciplinando que apenas na falta de testemunhas da infração o auto pode ser lavrado com testemunhas de apresentação Sendo portanto evidente a prevalência que o ordenamento deu às testemunhas do fato não é salutar o posicionamento jurisprudencial de se permitir testemunhas policiais estas que ordinariamente só conhecem a situação criminosa após a noticia criminis ou seja após as verdadeiras testemunhas do fato apresentarem a informação deste à polícia No caso do crime de tráfico de entorpecentes o problema é mais grave uma vez que estamos falando de crime que ocorre necessariamente no meio social com a presença senão participação de diversas pessoas entre estas os próprios consumidores havendo pouca justificativa para não se cumprir a norma que pede seja dada prioridade às testemunhas do fato Por certo por ser a conduta de compra e venda de substância entorpecente uma atividade consensual há dificuldades para a polícia conseguir testemunhas da transação comercial tida como ilícita mas nenhuma dificuldade operacional pode ser justificativa para o não cumprimento da norma notadamente sendo regra de suma importância para a formação de convencimento derradeira no processo penal além de garantia do cidadão contra prisões arbitrárias Ainda que reconheçamos o descrédito do conceito de verdade seja em razão da nova visão científica mais humilde trazida pela pósmodernidade seja pela consciência das limitações do processo Tribunal Federal firmou o entendimento no sentido de que não há irregularidade no fato de o policial que participou das diligências ser ouvido como testemunha Ademais o só fato de a testemunha ser policial não revela suspeição ou impedimento III HC indeferido HC 76557 rel p acórdão Min Carlos Velloso 2ª T j 04081998 114 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA mesmo não é possível abrir mão da busca da verdade que é o único critério aceitável como premissa para uma decisão justa17 devendose privilegiar todas as normas que indiquem para uma maior aproximação da verdade possível no processo O mito de que policias não mentem e são presumidamente idôneos por exercerem função pública de relevante interesse social18 tem sido desfeito pela realidade pelo clima hostil da guerra às drogas e do pânico moral desta derivado Durante a metade do último século historiadores sociais e sociólogos do desvio têm conceituado como pânico moral19 o fenômeno que ajuda a entender tempos em que a paixão domina e produz decisões políticas e comportamentos que de outra forma não teriam sido produzidos A teoria do pânico moral oferece insights sobre o desenvolvimento das políticas contemporâneas acerca do crime e das drogas e sobre os políticos envolvidos em tais temas20 Em um ambiente desse tipo quem está na linha de frente da batalha dificilmente terá a isenção necessária para ser a testemunha que a jurisprudência tem exaltado Formado treinado e agindo em constante tensão tendo o tráfico de entorpecentes como bode expiatório de diversos males sociais o policial não tem a imparcialidade pretendida pela racionalização da interpretação do STF seguida no resto do país 17 bAdAró Gustavo Henrique Righi Ivahi Provas atípicas e provas anômalas inadmissibilidade da substituição da prova testemunhal pela juntada de declarações escritas de quem poderia testemunhar Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrine Grinover 2005 p 343 18 STF RE 86926 rel Min Cordeiro Guerra 2ª T j 04101977 19 O conceito de pânico moral foi forjado pela primeira vez pelo sociólogo Stanley Cohen em 1972 tentando explicar uma reação exagerada das autoridades com relação a uma onda de violência ocorrida em 1964 na Inglaterra tonry Micheal Thinking about crime sense and sensibility in American penal culture 2004 p 85 20 Tradução livre de During the past half century historical sociologists and sociologists of deviance have conceptualized a phenomenon called a moral panic that helps us understand times when public passions take over and produce decisions polices and behaviors that might not otherwise have happened Moral panic theory offers insights into the development of contemporary crime and drug policies and the politics that surround them idem ibidem 115 Luís CarLos VaLois A situação verdadeiramente de guerra tem levado as autoridades públicas a estabelecerem como critério de produtividade policial o número de prisões21 inclusive com a atribuição de prêmios perdendose a noção para o policial de que ele deve servir e não buscar quem encarcerar no seio da comunidade em que trabalha Várias são as questões a serem levantadas sobre tal tema No Brasil a corrupção policial é tema tratado com muita cautela e muitas vezes com medo também muito embora todos saibam ou especulem sobre as gigantescas somas em dinheiro que envolvem o tráfico ilícito de entorpecentes somas cada vez maiores Por outro lado a possibilidade de mentira não se origina só da suposta corrupção que pode atingir promotores juízes e qualquer outro funcionário da justiça ou da polícia Um expolicial de São Francisco nos Estados Unidos escreveu um artigo para o The San Francisco Chronicle onde declara que mentir é comum na cultura policial O perjúrio policial nas audiências para justificar buscas ilegais de drogas é comum Um dos não tão secretos pequenos segredos sujos da justiça criminal é a intencional mentira sob juramento dos oficiais da polícia de entorpecentes disfarçados É uma perversão do sistema americano de justiça que atinge diretamente o Estado de Direito No entanto é a forma rotineira de se fazer negócios nos tribunais de toda a América22 Não há razões para supor que a guerra às drogas faça mais vítimas entre os funcionários estatais dos Estados Unidos do que entre os do Brasil sabendose que tanto lá como cá é difícil a tarefa de reconhecer que há tais mentiras e mais complicado ainda contrariar as afirmações desses policiais seja porque raramente eles vão admitir suas próprias 21 Vide como exemplo wwwsspscgovbr 22 Tradução livre de Police officer perjury in Court to justify illegal dope searches is commonplace One of the dirty little notsosecret secrets of the criminal justice system is undercover narcotics officers intentionally lying under oath It is a perversion of the American justice system that strikes directly at the rule of law Yet it is the routine way of doing business in courtrooms everywhere in America Apud AlexAnder Michelle Why Police Lie Under Oath 2013 p 4 116 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA simulações ou dos colegas seja porque há verdadeiramente um código de silêncio que governa a prática policial Resultado da política de guerra mas com influência no conteúdo probatório dos processos de crime de tráfico de substância entorpecentes inclusive na prova testemunhal no Brasil podemos afirmar que a atividade de invasão de domicílios é uma das que mais causam prejuízos razão pela qual falaremos dela separadamente no próximo item 4 As invasões de domicílio M ais uma vez o STF23 dá respaldo às cortes estaduais em uma séria exceção a uma garantia constitucional que é a inviolabilidade de domicílio inc XI do art 5º da Constituição Federal impondo a interpretação de que sendo o crime de tráfico de entorpecentes um crime permanente a exceção estaria justificada pela própria Constituição que ressalva a possibilidade de invasão em casos de prisão em flagrante Salutar a lição de Antônio magalhães gomes filho de que a exceção constitucional apenas pode ser aplicada aos casos de flagrante próprio não se estendendo às hipóteses previstas pelos incisos III e IV do art 302 do CPP pois caso contrário estarse ia admitindo que o legislador ordinário restringisse o alcance da garantia24 Com efeito apenas quando o agente é surpreendido cometendo a infração ou quando acaba de cometêla situações de flagrante próprio podese considerar como a situação de flagrante permitida como exceção à inviolabilidade de domicílio constitucional pois as demais formas de flagrante quando o agente é perseguido logo após pela autoridade pelo ofendido ou por qualquer pessoa em situação que faça presumir ser autor da infração hipótese do inc III acima referido ou quando o agente é encontrado logo depois com instrumentos armas objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração hipótese do inc IV são construções resultado de 23 RHC 86082 Rel Min Ellen Gracie 2a Turma j 05082008 24 Direito à prova no processo penal 1997 p 121 Grifo no original 117 Luís CarLos VaLois política criminal do legislador O flagrante impróprio e o flagrante presumido as hipóteses dos incs III e IV foram criados com o claro e expresso intento de favorecer a atividade repressora do Estado permitindo o início do inquérito policial a prisão mesmo do indiciado resultado da situação de flagrância mas nunca a violação de uma garantia constitucional Portanto não sendo o caso de flagrante próprio a autoridade não pode invadir domicílios atrás de supostos autores de delitos sem o devido mandado de busca Quando a Constituição Federal estabeleceu que a casa é asilo inviolável do indivíduo ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador salvo em caso de flagrante delito ou desastre ou para prestar socorro ou durante o dia por determinação judicial art 5º XI estava pretendendo equiparar o flagrante ao desastre ou seja pretendia que a quebra da inviolabilidade de domicílio só se desse para evitar um mal maior para salvar uma suposta vítima seja de crime ou de desastre Portanto a construção também do legislador ordinário de que nas infrações permanentes entendese o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência art 303 do CPP só deveria permitir a exceção à inviolabilidade de domicílio quando esta fosse necessária para salvar a vítima o que não acontece nos casos de crimes de tráfico de entorpecentes os quais se constituem como dito em práticas consensuais Por óbvio os crimes de cárcere privado ou sequestro permitiriam a violação da regra constitucional de inviolabilidade de domicílio todavia não em razão da norma do art 303 do CPP mas pela imprescindibilidade de se fazer cessar a ação criminosa e salvar vítimas Justificativa que não se apresenta viável nos casos de tráfico de entorpecentes visto que nada impede que a autoridade policial requeira um mandado de busca e apreensão para em seguida proceder à entrada no domicílio do suspeito Ademais há que se convir que nem seria possível qualquer conduta de tráfico em uma casa vigiada pela polícia sendo a invasão sem mandado totalmente desnecessária uma medida de força condizente apenas com estados de guerra O resultado dessa liberalidade criada pela jurisprudência é fácil de 118 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA perceber Policiais entram nas casas sempre nas periferias pobres do Brasil sem mandado e com base em pouca ou nenhuma suspeita para realizar busca de entorpecentes sendo impossível precisar quantos domicílios foram invadidos e neles não foi encontrada nenhuma substância entorpecente Sim a não ser que queiramos aceitar a possibilidade não muito viável de em todas as invasões de domicílio onde há suspeita de tráfico de entorpecentes a polícia ter encontrado efetivamente alguma substância entorpecente temos que reconhecer que inúmeros lares brasileiros são invadidos ilegalmente principalmente sabendo que essas invasões são precedidas de pouca ou nenhuma investigação às vezes resultado de simples notícia anônima feita à delegacia Não podem ser descartados o erro do policial o equívoco da notícia situações que farão a invasão de domicílio ilegal e estimularão a dissimulação por parte da polícia prejudicando a busca da verdade durante o restante do processo Nos EUA a possibilidade de quebra da inviolabilidade de domicílio também tem sido relativizada pois a jurisprudência tem feito exceções contra pessoas que moram em motor homes25 por exemplo mas as invasões em locais considerados casas comuns ainda necessitam de mandado Contudo a possibilidade de equívocos nunca foi descartada sendo comum exageros policiais mesmo de posse de mandado Na década de 1990 um caso é emblemático a polícia invadiu a casa de Donald Carlson em San Diego usando granadas agindo com base em uma informação prestada por um informante pago de que a casa estava vazia e a garagem estava sendo usada para acondicionar uma grande quantidade de cocaína Resultado Carlson estava na casa e foi atingido seriamente depois considerado inocente mas perdendo um quarto de sua capacidade pulmonar ganhou a indenização de 275 milhões de dólares26 25 grAy James P Why our drug laws have failed and what we can do about it a judicial indictment of the war on drugs 2001 p98 26 Idem p 104105 O autor informa que desde 1971 a jurisprudência americana tem imposto como exigência para a emissão de mandado com base em informação anônima que esta contenha detalhes suficientes baseados na totalidade das circunstâncias requisitos genéricos mas que não deixam de servir de limite ao anonimato p 9798 119 Luís CarLos VaLois Conquanto a obrigatoriedade de mandado de busca não evite tais equívocos até porque o próprio judiciário dificilmente negaria um mandado a uma autoridade policial que indique estar pretendendo realizar uma busca relacionada a crime de tráfico de entorpecentes a exigência de mandado evitaria que policiais quando equivocados em uma invasão fossem obrigados a dissimular apreensão de drogas para evitar possíveis punições funcionais ou mesmo indiciamento pelo crime de abuso de autoridade A exigência de mandado de busca viria em favor da própria atividade policial em favor de sua sinceridade nos depoimentos e em benefício da busca pela verdade tornando a prova do flagrante do inquérito e do futuro processo menos suspeita 5 o direito da defesa à prova D iante de tudo o que foi dito como fica o direito da defesa à prova no processo penal se os fatos testemunhas e o que mais houver sobre a conduta tida como criminosa tudo foi escolhido colhido pela atividade policial discricionária Em se tratando de crime de tráfico de entorpecentes tido pela mídia e pela vulgar concepção moral da sociedade como o pior dos males dele ninguém quer se aproximar ninguém quer se ver envolvido Assim se já é difícil diante de séculos de um poder hierárquico e elitista como tem sido o Poder Judiciário alguém espontaneamente e de boa vontade comparecer a um tribunal mesmo como testemunha quanto mais testemunha de defesa em um processo de tráfico de entorpecentes Um verdadeiro modelo cognitivo de justiça penal pressupõe não apenas que a acusação seja confirmada por provas nulla accusatio sine probatione mas também o reconhecimento de poderes à defesa do acusado no procedimento probatório especialmente o de produzir provas contrárias às da acusação nulla probatio sine defensione A verdade processual nessa ótica não é a verdade extorquida inquisitoriamente mas uma verdade obtida através de provas e desmentidos27 27 mAgAlhães Gomes Filho Direito à prova no processo penal 1997 p 55 Grifado no original 120 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Considerando que numa apreensão de drogas a testemunha de acusação é o policial também quem decide se processa ou não28 a pessoa abordada além de escolher as testemunhas geralmente companheiros de operação a garantia de a defesa ter alguma testemunha para contrariar as provas de acusação acaba sendo uma garantia formal de inviável efetivação na prática Aliás deveria ser comum à própria estrutura do processo penal ser pensada e construída levandose em consideração que não se pode confiar nellattività dufficio della polizia giudiziaria non sempre interessata ad accertare tutti i fatti29 notadamente em se tratando de conduta contra a qual o pânico social invade as instituições como um todo e a polícia mais diretamente Ada pellegrini grinover ao explicar que atualmente todos os ordenamentos consagram o direito à prova ressalva que ele tendo por escopo influir sobre o desenvolvimento e o resultado do processo fica essencialmente subordinado à efetiva possibilidade de se representar ao juiz a realidade do evento posto como fundamento da ação ou da exceção ou seja à possibilidade de a parte servirse das provas30 e portanto no caso de crime específico de que estamos tratando vem a ser um direito deveras obstaculizado para a defesa Pari passu a atividade de polícia judiciária não pode se confundir com a ação repressiva da polícia militar como tem acontecido Se a polícia militar ou a polícia civil têm agido na repressão ao tráfico de entorpecentes a ação de colheita de provas não pode ser viciada pelo intento repressivo Em outras palavras a polícia judiciária na sua atividade de colheita de provas deve estar subordinada aos mesmos princípios de todos os participantes da relação processual ou seja deve estar vinculada à necessidade de busca da verdade não podendo deixar a repressão de que está imbuída prejudicar a imparcialidade necessária Por isso defendemos acima a impossibilidade de se trazer apenas testemunhas policiais para o flagrante formando completamente o conteúdo probatório testemunhal do futuro processo porque depois é praticamente impossível para a defesa 28 In a drug bust the complaining witness is the cop who decide on the spot whether to prosecute or not grAy Mike Drug crazy how we got into this mess and how we can get out 2000 p 189 29 quAglierini Corrado In tema di onere della prova nel processo penale 1998 p 1259 30 Novas tendências do direito processual de acordo com a Constituição de 1988 1990 p 19 121 Luís CarLos VaLois encontrar outras pessoas envolvidas com a conduta que possam trazer aspectos positivos e favoráveis ao réu sendo obrigação da polícia encontrar testemunhas o mais isentas possíveis no momento do fato atitude que poderia vir a favor não só da defesa mas da credibilidade do processo como um todo Em particular a polícia judiciária destinada à investigação dos crimes e a execução dos provimentos jurisdicionais deveria ser separada rigidamente dos outros corpos de polícia e dotada em relação ao Executivo das mesmas garantias de independência que são asseguradas ao Poder Judiciário do qual deveria exclusivamente depender31 Do que defende o professor italiano estamos longe no sistema penal brasileiro e em se tratando da guerra às drogas mais ainda pois o que tem prevalecido são as apreensões as prisões em detrimento de uma verdadeira investigação sobre a origem as estruturas e o funcionamento da rede de tráfico de entorpecentes prova disso são as próprias penitenciárias lotadas de pobres miseráveis que não parecem em nada com o imaginário do real traficante que está efetivamente lucrando Na nossa experiência cotidiana vemos que quando a polícia que faz a repressão não é a mesma que atua na atividade de polícia judiciária esta apenas ratifica os atos da polícia repressiva das ruas normalmente a militar reduzindo a termo os testemunhos dos policiais condutor e testemunhas Aqui não há só injustiça mas a própria estrutura do processo resta prejudicada vez que são esses mesmos policiais que servirão de testemunha forjando um contraditório apenas na forma em evidente prejuízo para a defesa perante o juiz competente para conhecer o fato tido como criminoso 6 A prova testemunhal e o contraditório nos processos de tráfico de entorpecentes S e é crítica comum a todos os processos o fato de que a prova principal tem sido a testemunhal por restrições técnicas que 31 FerrAJoli Luigi Direito e razão teoria do garantismo penal 3 ed 2010 p 709 122 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA infelizmente a polícia brasileira em regra tem32 no caso do crime de tráfico de entorpecentes além de essa regra ser mais comum o privilégio que se dá à prova testemunhal de imensa fragilidade e pouca credibilidade33 vem acrescentar mais prejuízo à busca da verdade pelas razões já demonstradas O que chega para o processo e para a avaliação do magistrado são somente as provas colhidas pela polícia ou seja os depoimentos de policiais colhidos por policiais que agora na fase processual serão revistos sob o manto legitimador do contraditório Se a paridade de armas requisito para um processo justo tem como pressuposto que ambas as partes iniciem o processo em igualdade de condições no processo penal de crime de tráfico de entorpecentes essa paridade é quase inexistente A prova pré configurada no inquérito policial este que praticamente não tem mais nenhuma diligência a não ser a espera do laudo da substância entorpecente que basicamente é a prova do auto de prisão em flagrante conquanto tenha influência na formação do convencimento do juiz faz com que a acusação inicie o processo em clara vantagem Estabelece o art 155 do CPP que o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação ressalvadas as provas cautelares não repetíveis e antecipadas grifei deixando espaço para que ainda que não exclusivamente o juiz tenha o inquérito como elemento formador de sua convicção dando extremo poder no caso do crime que analisamos à atividade policial prévia O que tem acontecido na prática não é que o que foi colhido no inquérito policial sirva de complemento para o contraditório local de formação do convencimento do juiz como também autoriza a jurisprudência34 mas é o contraditório que tem funcionado como 32 loPes Jr Aury Direito processual penal e sua conformidade constitucional 2009 p 640 33 Idem ibidem 34 É como tem entendido a jurisprudência Consoante já decidiu esta Suprema Corte os elementos do inquérito podem influir na formação do livre convencimento do juiz para a decisão da causa quando complementam outros indícios e provas que passam pelo crivo do contraditório em juízo RE 425734 AgrMG de minha relatoria DJ 28102005 5 Recurso parcialmente conhecido e desprovido STF RHC 99057 rel Min Ellen Gracie 2ª T j 06102009 123 Luís CarLos VaLois complemento como legitimação do que foi produzido na polícia Embora seja uma afirmação que foge das características científicas pois dificilmente poderíamos provar tem sido praxe entre os policiais que participam de prisão em flagrante servindo como testemunhas no procedimento informativo guardarem cópias do flagrante para futuramente poderem repetir em juízo o que lá ficou consignado fazendo do depoimento perante o magistrado uma retificação automática do flagrante Pior quando o próprio magistrado toma a atitude de ler os depoimentos para as testemunhas confirmarem o que foi dito fazendo do auto de prisão em flagrante já o início da prova que será legitimada pelo contraditório Neste quadro o conceito de que só podem ser considerados provas no sentido jurídicoprocessual os dados de conhecimento introduzidos no processo na presença do juiz e com a participação das partes em contraditório35 acaba relativizado quando se permite seja considerado prova um simulacro do que está registrado carimbado e certificado pela polícia previamente Aqui conveniente lembrar o que foi dito sobre a dificuldade de reconhecer erros por parte da polícia não só pelo medo de repreensão administrativa ou mesmo penal também pela automatização dos depoimentos Notese que esses policiais testemunhas em processos criminais têm sido arrolados em diversos processos muitos tendo que depor duas ou três vezes em processos diferentes no mesmo dia o que aumenta a possibilidade de automação e diminui a credibilidade do conteúdo do depoimento Errar é humano mentir também é humano esquecer é humano e o policial é humano A carga de trabalho desses agentes públicos não permite um depoimento condizente com a necessidade de formar a convicção do magistrado acerca de um fato ocorrido há meses talvez anos Diferentemente de uma testemunha comum que presenciou um fato criminoso circunstância em regra excepcional na vida da maioria o policial vive presenciando buscando investigando fatos criminosos o que aliado à questão do tempo transcorrido indica 35 mAgAlhães Gomes Filho Provas Lei 11690 de 09062008 In As reformas do processo penal as novas leis de 2008 e os projetos de reforma 2008 p 250 124 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA maiores dificuldades de lembrança acerca do fato O estado emotivo a sugestibilidade ou firmeza da testemunha diante das perguntas que lhe são feitas além de outros fatores como a loquacidade da testemunha ou sua excessiva insegurança36 a serem avaliados pelo juiz na colheita do depoimento diante da rotina pesada do Fórum da carga de audiências do juiz é tarefa árdua e a automatização do depoimento praticamente a obstaculiza 7 o juiz de combate ao tráfico L ídia de Almeida prado37 informa que vários autores já abordaram o fato de que juízes antecipam mentalmente suas decisões e depois procuram a norma que pode servir de fundamento Desde Karl llewellyn passando por recaséns siches Joaquim dualde Jerome frank miguel reale e renato nalini38 há referências à influência de aspectos subjetivos prévios à atividade decisória Tal antecipação mental é natural inerente aos seres humanos Ao juiz caberia mesmo intimamente a procura da decisão mais justa ao caso concreto com a capacidade de colocarse na posição do outro mas não é o que ocorre em muitos casos servindo o arcabouço doutrinário e jurisprudencial para encobrir sentimentos que estão muito distantes da racionalidade necessária à manifestação jurisdicional Para taruffo verdade é que a motivação da sentença é via de regra redigida em um momento sucessivo àquele em que é formulada a decisão mas o bom juiz sabe que deverá justificar as próprias escolhas relativas à valoração das provas e às conclusões sobre os 36 bAdAró Gustavo Henrique Righi Ivahi Provas atípicas e provas anômalas inadmissibilidade da substituição da prova testemunhal pela juntada de declarações escritas de quem poderia testemunhar Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrine Grinover 2005 p 347 37 PrAdo Lídia Reis de Almeida O juiz e a emoção aspectos da lógica da decisão judicial 2003 p 33 38 WArAt e PePê informam também que alguns autores chegam a afirmar que as normas gerais são um conjunto de enunciados metafísicos que cumprem somente a função retórica de justificar as decisões dos juízes Filosofia do direito uma introdução crítica 1996 p 44 125 Luís CarLos VaLois fatos39 ou seja deverá expressar de forma racional a sua opção Por isso a necessidade de fundamentação é a principal garantia das partes contra a discricionariedade do magistrado quando esta se distancia da racionalidade esperada e sopesamento justo das provas O princípio do livre convencimento expresso no art 155 do CPP acima transcrito não pode ser estímulo ao arbítrio e a única garantia das partes é mesmo a necessidade de fundamentação da decisão judicial ainda que muito fique encoberto em retóricas Così ad es il potere del giudice di scegliere discrezionalmente nel materiale probatório acquisito al processo gli elementi che ritiene rilevanti per la decisione può essere giustificato sulla base del principio del libero convincimento La differenza tra um eserciziio tendenzialmente arbitrário e um esercizio ragionevole e controllato di questo potere sta però nella possibilita per le parti di conoscere e discutire prima della decisione le relative scelte del giudice40 O autor italiano ressalva a importância do contraditório na formação de opinião do juiz este que deve permanecer imparcial perante a dialética do processo valorando apenas o que foi trazido aos autos sendo exigência de justiça e também corolário do contraditório que o juiz expresse fundamentadamente os motivos pelos quais optou ou não optou por esta ou aquela prova Por certo não existe um procedimento perfeito em que o legislador possa eficientemente impedir de forma absoluta o arbítrio judicial e o constante aperfeiçoamento do processo é necessário para que estejamos sempre buscando uma forma de melhor aplicar o direito Contudo no que se refere a crime de tráfico de entorpecentes não é necessário repisar o que foi dito as paixões e o estado de comoção criado pela demonização das drogas tidas como ilícitas é agravante que estimula o arbítrio judicial em detrimento da justiça Juízes que se sentem paladinos da justiça órgãos da segurança 39 tAruFFo Michele Uma simples verdade o juiz e a construção dos fatos 2012 p 211 40 tAruFFo Michele La prova dei fatti giuridici 1992 p 409 126 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA pública perdem a imparcialidade imprescindível ao julgamento zaffaroni denomina vulnerabilidade a situação dos juízes policias agentes penitenciários e todos os demais que trabalham no sistema punitivo considerando que diante da policização a burocratização e a criminalização o sistema penal é um complexo aparelho de deteriorização regressiva humana que condiciona falsas identidades e papéis negativos41 e não obstante poucas vezes é adequadamente observada a situação de extrema vulnerabilidade na qual se colocam essas pessoas42 Quando o Judiciário passa a pensar que uma de suas funções é o combate à criminalidade ele se afasta da posição de garantidor de direitos e liberdade para agir como mais uma arma apontada para a população O réu nos processos de tráfico acaba sendo visto como o culpado por todas as mazelas da sociedade e o direito penal que era para ser do fato estrito retorna ao direito do autor e da vingança pública Manifestações como comportamento e a personalidade da ré que se revelou voltada ao delito dedicandose ao narcotráfico43 ou quem a tanto se abale a envolverse com esse tipo de criminalidade deve esperar as consequências severas da lei penal44 são comuns nas sentenças e acórdãos dos juízes e tribunais demonstrando que os réus não estão sendo julgados simples e unicamente pelos fatos que cometeram mas pela conjuntura social e pela própria visão moral do juiz acerca do tráfico de entorpecentes Dessa forma o que fica flagrante de quebra do princípio da individualização da pena e da proporcionalidade este que se demonstra violado já no estabelecimento da sanção pelo legislador ao prever penas para o comércio ilegal de substância entorpecente tão alta quanto as do homicídio demonstra igualmente a instabilidade do magistrado ao julgar crimes dessa natureza fato que obviamente prejudica não só na imposição da pena mas na prévia avaliação da prova 41 zAFFAroni Eugênio Raúl Em busca das penas perdidas a perda de legitimidade do sistema penal 1999 p 143 42 Idem ibidem 43 TJSP 6ª Câm Ap 0001937 4320118260266 rel Des Marco Antonio Marques da Silva j 21032013 44 TJSP 2ª Câm Ap 00059471720098260197 rel Des Antonio Luis Pires Neto j 09052011 127 Luís CarLos VaLois O pânico moral e a vulnerabilidade favorecem um viés tendente à condenação que se manifestará obviamente no sopesamento da prova Fatos incoerentes podem parecer corretos diante de um magistrado tendente à condenação os fatos podem ser substancialmente distorcidos e manipulados mas a narrativa pode parecer muito persuasiva a um público igualmente biased45 Outra questão que queremos ressaltar que tem a ver com o que vimos falando é a criação de varas especializadas em crimes de uso e tráfico de entorpecentes46 que como as varas de combate47 dão ao magistrado como o nome dessas varas indicam o simbolismo a função de combatente o que por certo forma a postura do ser humano juiz Ademais a permanência de um juiz por muito tempo em uma vara de entorpecentes tendo como objeto de julgamento apenas essas condutas poderá fazer com que o magistrado perca o contato com os demais crimes e com a realidade da própria justiça criminal podendo favorecer a desproporcionalidade na aplicação da pena e a má avaliação do conjunto probatório A Lei de Entorpecentes 113432006 traz diversas atribuições e obrigações para o poder público no que se refere à saúde pública e à prevenção de problemas relacionados às drogas medidas que como todos sabemos não saem do papel todavia a competência das varas criminais para julgamento dos crimes de tráfico de entorpecentes resta exclusivamente judicial nos termos da lei e em grande parte repressiva de fato Nos EUA as drug courts foram criadas em 2006 mas embora com algumas diferenças entre os Estados servem todas para oferecer apenas tratamentos alternativos à prisão aos autores de crimes sem violência e viciados48 enquanto as penas mais rigorosas de encarceramento continuam sob a competência das varas comuns estaduais e federais 45 tAruFFo Michele Uma simples verdade o juiz e a construção dos fatos 2012 p 79 46 Encontramos tais órgãos em pelo menos oito Estados Maranhão Pernambuco Piauí Distrito Federal Amazonas Minas Gerais Pará Tocantins 47 No Brasil encontramos as varas de combate ao crime organizado MG SE e varas de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher PE TO 48 They all the drug courts offer nonviolent drug addicts communitybased treatment in lieu of prison benAvie Arthur Drugs Americas holy war New York EUA Routledge 2009 p 101 128 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 8 conclusões T odos sabemos que a guerra às drogas tem feito muito mais vítimas do que apenas os que nela estão envolvidos diretamente O ambiente passional de moralidade irreflexiva que tomou conta da sociedade atinge instituições e instrumentos pensados e criados para situações normais não para guerra O processo penal também é atingido na medida em que seus fundamentos e mecanismos de garantia forjados ao longo da história são relativizados para fazer valer a necessidade de combate em uma guerra que nunca terá fim De nossa exposição limitada o máximo possível à questão processual podemos extrair que uma das medidas importantes a serem tomadas é a separação de atividades policiais no procedimento inquisitorial dandose maior independência à atividade de polícia judiciária Se não acreditamos em uma mudança repentina do perfil passivo que o Brasil tem adotado diante das imposições econômicas e políticas dos Estados Unidos da América pois nossa política criminal como um todo é feita com base em interesses diversos que fogem à simples racionalidade jurídica podemos exaltar estimular que o Poder Judiciário mude sua perspectiva e saia da posição de mais um órgão de combate para exercer a função de garantidor dos direitos individuais do cidadão perante o próprio Estado Como disse certa vez uma mulher defensora dos direitos civis pauline sabin ao legislativo norteamericano sobre a proibição da droga na época da criminalização do álcool eles pensaram que poderiam fazer a proibição tão forte quanto a Constituição mas ao contrário têm feito a Constituição tão fraca quanto a proibição49 e assim a nossa Constituição brasileira já de tão difícil efetivação vai enfraquecendo quando suas garantias se relativizam para adequar a ação governamental à guerra às drogas Do Judiciário se espera que saiba se colocar como último recurso de Justiça mesmo que em meio à guerra declarada não podendo servir como legitimador da justiça da rua realizada em clima hostil e violento Nas salas dos tribunais não pode ecoar o grito de guerra da polícia nem da política proibicionista que na verdade nem 49 grAy Mike Op cit p 70 129 Luís CarLos VaLois política deveria ser considerada uma vez que nunca houve nenhuma discussão séria sobre a proibição e escolha dos entorpecentes a serem proibidos Por isso a crítica à jurisprudência e a lembrança de que à Academia resta a função de apontar as irracionalidades mostrar a história de garantia dos instrumentos legais não podendo deixar o Judiciário confortável no caminho que tem levado de diminuição das garantias e direitos fundamentais 9 referências bibliográficas AlexAnder Michelle The New Jim Crow mass incarceration in the age of colorblindness New York The New Press 2012 Why Police Lie Under Oath New York Times New York EUA p SR4 fev 2013 bAdAró Gustavo Henrique Righi Ivahy Ônus da prova no processo penal São Paulo RT 2003 Provas atípicas e provas anômalas inadmissibilidade da substituição da prova testemunhal pela juntada de declarações escritas de quem poderia testemunhar In Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrine Grinover São Paulo DPJ 2005 cAmArgo Antônio Luis Chaves Direitos humanos e direito penal limites da intervenção estatal no estado democrático de direito In Estudos criminais em homenagem a Evandro Lins e Silva São Paulo Método 2001 benAvie Arthur Drugs Americas holy war New York EUA Routledge 2009 bertrAm Eva et al Drug war politics the price of denial Los Angeles California EUA University of California Press 1996 bittAr Eduardo C B O direito na pósmodernidade e reflexões frankfurtianas Rio de Janeiro Forense Universitária 2009 FerrAJoli Luigi Direito e razão teoria do garantismo penal 3 ed São Paulo RT2010 FrAnco Alberto Silva et al Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial São Paulo RT 1997 grAy James P Why our drug laws have failed and what we can do about it a judicial indictment of the war on drugs Philadelphia EUA Temple University Press 2001 grAy Mike Drug crazy how we got into this mess and how we can get out New York EUA Routledge 2000 grinover Ada Pellegrini Novas tendências do direito processual de acordo com a Constituição de 1988 São Paulo Forense Universitária 1990 hungriA Nelson FrAgoso Heleno Comentários ao Código Penal 5 ed Rio de Janeiro Forense 1977 v 1 t 1 loPes Jr Aury Direito processual penal e sua conformidade constitucional 4 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 v 1 130 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA mAgAlhães gomes Filho Antônio Direito à prova no processo penal São Paulo RT 1997 Provas Lei 11690 de 09062008 In As reformas do processo penal as novas leis de 2008 e os projetos de reforma São Paulo RT 2008 olmo Rosa Del A face oculta da droga Rio de Janeiro Revan 1990 PrAdo Lídia Reis de Almeida O juiz e a emoção aspectos da lógica da decisão judicial Campinas Millennium 2003 quAglierini Corrado In tema di onere della prova nel processo penale Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale Milano Italia Giuffre 1998 sAAd Marta O direito de defesa no inquérito policial São Paulo RT 2004 tonry Micheal Thinking about crime sense and sensibility in American penal culture New York EUA Oxford University Press 2004 tAruFFo Michele La prova dei fatti giuridici In Trattado di diritto civile e commerciale Milano Italia Dott A Giuffrè 1992 v 3 t 2 Uma simples verdade o juiz e a construção dos fatos São Paulo Marcial Pons 2012 tornAghi Hélio Curso de processo penal São Paulo Saraiva 1980 v 2 zAFFAroni Eugênio Raúl Em busca das penas perdidas a perda de legitimidade do sistema penal Rio de Janeiro Revan 1999 umA novA estrAtégiA pArA A políticA de drogAs Paulo Teixeira Mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo USP Formado pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco USP Foi líder da bancada petista na Câmara dos Deputados e atualmente cumpre o seu segundo mandato como Deputado Federal PTSP Advogado sumário 1 Preconceito e violação dos direitos humanos 2 Regulação e redução de danos O que a guerra às drogas trouxe de positivo para a sociedade As grandes somas investidas e as muitas vidas perdidas nessa guerra sem fim deixaram a população mais segura O que ganhamos com a superlotação de presídios A legislação atual com foco exclusivo na repressão enfraqueceu de fato o narcotráfico ou será que o crime organizado tornouse ainda mais poderoso Todas estas questões cujas respostas são mais do que conhecidas levamnos a uma única conclusão a política proibicionista falhou A utopia de um mundo sem drogas não passa mesmo disto uma ilusão Uma ilusão cara e insustentável dos pontos de vista econômico e social Na prática o proibicionismo provocou o oposto do que prega a liberação das drogas Elas estão fartamente disponíveis no contexto de um mercado fortemente armado e violento Custam muito caro para a sociedade como um todo e não apenas para quem as consome 132 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Além de extremamente dispendiosa a atual política sobre drogas centrada no recrudescimento da repressão e na elevação das penas provouse ineficaz Não trouxe segurança e é um desastre em termos de saúde pública A produção de drogas continua firme forte e rentável a oferta e o consumo seguem descontrolados o mercado oferece drogas cada vez mais potentes e perigosas as penitenciárias estão superlotadas de jovens usuários e pequenos varejistas cuja prisão sequer arranha esse mercado Enquanto isso o crime organizado continua a movimentar livremente bilhões de dólares ao redor do mundo Em resumo o proibicionismo é ruim para todos menos para o núcleo econômico do narcotráfico que permanece imune à repressão uma vez que o aparato repressivo do Estado só chega à ponta do negócio a distribuição A polícia não consegue mais do que prender jovens que o narcotráfico contrata para correr todos os riscos em seu lugar eou usuários que vendem para sustentar o próprio vício 1 preconceito e violação dos direitos humanos O Brasil tem hoje a quarta maior população carcerária do mundo com mais de meio milhão de detentos atrás apenas dos Estados Unidos da China e da Rússia A legislação endureceu a pena para os traficantes mesmo para o pequeno varejista e reduziu as possibilidades de progressão de regime O mais grave essa mesma legislação não estabelece critérios objetivos de diferenciação entre usuário e traficante deixando a decisão para o policial no momento da prisão e mais tarde para o juiz que levará em conta a natureza e a quantidade da substância apreendida no local e as condições em que se desenvolveu a ação Tamanho grau de subjetividade traz à tona preconceitos sociais e raciais que acabam por levar à prisão jovens pobres preferencialmente negros sem recursos para pagar advogados Nas cadeias superlotadas o que por si só configura grave violação dos direitos humanos eles conviverão com as ameaças 133 Luiz PauLo Teixeira Ferreira e o assédio permanente das facções criminosas que atuam no interior dos presídios Quando saírem depois de um longo tempo de aprendizado estes jovens que muitas vezes eram apenas usuários estarão aptos a praticar crimes violentos tornandose aí sim perigo concreto para a sociedade Estudo realizado pelas Faculdades de Direito da UFRJ e UnB sob coordenação da pesquisadora luciana boiteux1 traçou o perfil dos condenados por envolvimento com drogas em Brasília e no Rio de Janeiro A pesquisa mostra que dois terços desses condenados eram primários estavam desarmados no momento da prisão e portavam pequenas quantidades de droga O Núcleo de Estudos da Violência NEV da Universidade de São Paulo USP chegou a semelhante conclusão ao analisar sentenças proferidas em São Paulo Segundo a pesquisa2 a maioria dos presos em flagrante por tráfico na capital paulista são pobres com idade entre 18 e 29 anos sem antecedentes criminais também com pequena quantidade de drogas 665 gramas em média O quadro se repete pelo Brasil afora e em muitos outros países Isso significa que estamos prendendo apenas mão de obra barata e de fácil reposição jovens pobres que o crime organizado imediatamente substitui por outros jovens pobres em caso de prisão ou morte E estamos prendendo cada vez mais mulheres O número de condenadas por tráfico quase quadruplicou em apenas cinco anos foram 4068 em 2005 e 15897 em 2011 muitas delas detidas quando levavam drogas para seus companheiros na prisão 1 Tráfico e Constituição um estudo sobre a atuação da Justiça Criminal do Rio de Janeiro e do Distrito Federal no crime de tráfico de drogas Projeto de pesquisa realizado entre março de 2007 e julho de 2009 sob coordenação de Luciana Boiteux com a participação de docentes e discentes das Faculdades de Direito da UFRJ e da UnB Participaram também da pesquisa Ela Wiecko Volkmer de Castilho Beatriz Vargas Vanessa Oliveira Batista Geraldo Luiz Mascarenhas Prado 2 Prisão Provisória e Lei de Drogas Um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo Coordenação Maria Gorete Marques de Jesus Pesquisadores Amanda Hildebrand Oi Pedro Lagatta e Thiago Thadeu da Rocha Consultor Dr Fernando Afonso Salla Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo Open Society Institute 2011 134 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 2 regulação e redução de danos O proibicionismo provoca a estigmatização e a marginalização do usuário uma vez que a repressão é dirigida a ele quando deveria estar focada no combate ao narcotráfico Quanto ao usuário o Estado tem sim o dever de intervir mas não como policial e sim como agente de saúde e de assistência social por meio de ações voltadas para a prevenção ao uso de drogas e a redução de vulnerabilidades que levam ao consumo abusivo Felizmente o debate em torno da regulação e da redução de danos já entrou na agenda política da América Latina O objetivo das políticas que estão sendo implantadas no nosso continente é substituir a criminalização do uso de drogas por uma abordagem de saúde pública buscando a redução de danos associados ao consumo O Uruguai por iniciativa do governo Mujica aprovou no final de 2013 uma legislação inovadora que põe nas mãos do Estado a produção distribuição e venda de maconha Esse monopólio com toda certeza garantirá mais segurança e proteção à saúde do usuário além de reduzir o poderio econômico do narcotráfico A iniciativa do governo uruguaio encontra ecos na Colômbia e na Guatemala Os três países discutem em conjunto a despenalização da produção distribuição e venda de maconha O entendimento é de que a descriminalização de algumas drogas poderia livrar os países da América do Sul e da América Central da violência gerada pela presença de narcotraficantes na região Na Europa Portugal se destaca com uma legislação que estabelece critérios objetivos de distinção entre traficante e usuário O que define este último é o porte de quantidade de droga suficiente para consumo médio individual por um período máximo de 10 dias Mesmo nos Estados Unidos país que mais investe na guerra internacional às drogas a maioria da população apoia a regulação Washington e Colorado foram os primeiros estados a aprovar o uso recreativo da maconha por meio de plebiscito O Brasil que ainda criminaliza a maconha já pratica a regulação de determinados produtos com potencial de danos à saúde 135 Luiz PauLo Teixeira Ferreira No caso do álcool a legislação precisa avançar muito mais no sentido de banir anúncios publicitários e a promoção de eventos culturais e esportivos ligados à bebida A legislação do cigarro ainda que necessite de aperfeiçoamentos é uma boa prática pois proíbe a propaganda a venda para menores de idade e o uso em locais públicos Já a regulação de medicamentos controlados é exemplar Tão eficiente que provocou um paradoxo ficou mais fácil comprar crack do que antibiótico Nossa proposta é que o Brasil passe a regular também a cannabis Entre outras razões porque evitaria a oferta de drogas mais perigosas quebrando o chamado efeito gôndola hoje o usuário que vai comprar maconha encontra a oferta quase ilimitada de cocaína crack e drogas sintéticas como se estivesse num grande supermercado Estamos certos com base em experiências bemsucedidas ao redor do mundo de que a regulação da cannabis pode ajudar a esvaziar o poder do narcotráfico no Brasil que tem em seu poder armamento pesado recursos financeiros quase ilimitados e um exército de jovens recrutados para matar e morrer Defendemos que os recursos públicos desperdiçados nessa guerra inútil sejam investidos na prevenção ao uso e no tratamento do usuário A regulação pela qual lutamos deve se dar dentro de parâmetros rigorosos disponibilidade exclusivamente de cannabis em locais previamente determinados apenas para maiores de 18 anos limitada a uma quantidade máxima por dia e acompanhada sempre de esclarecimentos sobre seus efeitos e eventuais danos O usuário precisa ser informado de que a maconha assim como outras drogas lícitas ou ilícitas pode fazer mal Outro ponto fundamental da nossa proposta a mudança de foco na política sobre drogas não pode de forma alguma favorecer indústrias privadas como ocorre no caso do álcool e do tabaco que só têm a lucrar com a dependência de seus consumidores Ao contrário a regulação da cannabis no Brasil deve promover uma economia não lucrativa com o único objetivo de criar um ambiente de atenção aos consumidores sem drogas pesadas com fornecimento de informações qualificadas e acompanhamento permanente de seu estado de saúde Acima de tudo sem a violência que o proibicionismo tanto alimenta o lugAr do estAdo nA questão dAs drogAs o pArAdigmA proibicionistA e As AlternAtivAs1 Maurício Fiore Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento Cebrap e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos Neip Autor de diversos trabalhos sobre a questão do uso de drogas Antropólogo sumário 1 Primeira premissa proibicionista o consumo de drogas é uma prática prescindível e danosa o que justifica sua proibição pelo Estado 2 Segunda premissa proibicionista a atuação ideal do Estado para combater as drogas é criminalizar sua circulação e seu consumo 3 Crítica às premissas proibicionistas 31 Os potenciais danos individuais e sociais do consumo de drogas não justificam a sua proibição 32 Ao proibir a produção o comércio e o consumo de drogas o Estado potencializa um mercado clandestino e cria novos e graves problemas 4 O fortalecimento das críticas e a modernização do paradigma Guerra contra o tráfico tratamento para o dependente 5 Alguns pressupostos para modelos alternativos 1 Versão atualizada do artigo originalmente publicado na Revista Novos Estudos Cebrap n 92 mar 2012 138 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 51 Valorização do autocuidado e dos controles sociais 52 Descriminalização de fato do consumo e estipulação com critérios objetivos 53 Planejamento de políticas de acordo com as especificidades de cada droga 6 Perspectivas de mudanças no Brasil 7 Referências bibliográficas A guerra mundial contra as drogas nome pelo qual ficou conhecida parte das substâncias psicoativas que alteram a consciência e a percepção completou em 2012 um século Ainda que as resoluções da Primeira Conferência Internacional do Ópio de 1912 realizada em Haia tenham sido praticamente abandonadas nos anos conturbados entre as duas grandes guerras o modelo ali esboçado foi triunfante Defendida patrocinada e sediada pelos euA já sob a coordenação da onu a Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961 implantou globalmente o paradigma probicionista no seu formato atual Os países signatários da Convenção se comprometeram à luta contra o flagelo das drogas e para tanto a punir quem as produzisse vendesse ou consumisse Proibicionismo é uma forma simplificada de classificar o paradigma que rege a atuação dos Estados em relação a determinado conjunto de substâncias Seus desdobramentos entretanto vão muito além das convenções e legislações nacionais O proibicionismo modulou o entendimento contemporâneo de substâncias psicoativas quando estabeleceu os limites arbitrários para usos de drogas legais positivas e ilegais negativas Entre outras consequências a própria produção científica terminou entrincheirada na maior parte das vezes do lado certo da batalha ou seja na luta contra as drogas2 O probicionismo não esgota o fenômeno contemporâneo das drogas mas o marca decisivamente Ainda que escape da ambição deste artigo traçar a genealogia da emergência das drogas como questão contemporânea é preciso ressaltar que não se explica o empreendimento proibicionista 2 Sobre os desdobramentos do proibicionismo ver produção científica contemporânea entre outros lAbAte et al 2008 139 Maurício Fiore por uma única motivação histórica Sua realização se deu numa conjunção de fatores que incluem a radicalização política do puritanismo norteamericano o interesse da nascente indústria médicofarmacêutica pela monopolização da produção de drogas os novos conflitos geopolíticos do século xx e o clamor das elites assustadas com a desordem urbana Além disso sem desconhecer a importância histórica do pioneirismo e do empenho dos euA para tornála universal é preciso notar que somente convergências locais na mesma direção puderam fazer da proibição uma realidade global3 O caso brasileiro nesse sentido é exemplar na medida em que as legislações proibicionistas foram criadas pari passo às norteamericanas e no caso específico da maconha droga já há muito estigmatizada pelas elites locais a perseguição oficializou se primeiro aqui4 Podese dizer que três conjuntos de substâncias eou plantas foram eleitas alvospadrão do paradigma proibicionista papoula ópioheroína cocacocaína e cannabismaconha Ainda que o conceito farmacológico de droga seja muito mais amplo substância que quando administrada ou consumida por um ser vivo modifica uma ou mais de suas funções com exceção daquelas substâncias necessárias para a manutenção da saúde normal é a esse conjunto de substâncias que o termo passou a ser aplicado5 Entre as drogas há as psicoativas ou psicotrópicas que têm como característica principal a ação sobre o funcionamento do cérebro Hoje o termo drogas pode se referir tanto a seu sentido farmacológico muito mais amplo quanto a um conjunto bem mais restrito ainda que flexível de substâncias psicoativas notadamente as ilícitas Do ponto de vista conceitual a Convenção Internacional de 1961 definiu um modelo que permanece vigente e divide as drogas e suas plantas originárias em listas O critério por sua vez seria 3 Entre uma ampla bibliografia sobre a história do proibicionismo nos euA e seus desdobramentos internacionais ver escohotAdo 1998 dAvenPorthines 2001 e rodrigues 2004 4 No Brasil a maconha foi considerada definitivamente ilegal em 1932 cinco anos antes de o mesmo ocorrer nos EUA 5 A polissemia e a ambiguidade do termo drogas são algumas das principais características do debate sobre o tema Em trabalho anterior grafei o termo sempre entre aspas para justamente indicar perigo Para mais detalhes sobre a importância do conceito de drogas ver Fiore 2007 p 6371 140 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA o potencial de abuso e suas aplicações médicas A primeira lista é composta daquelas com alto potencial de abuso e nenhum uso medicinal e como esperado ali estão incluídas entre outras as três drogasalvo do proibicionismo heroína cocaína e maconha As outras listas reúnem drogas com potencial de abuso mas conhecido uso medicinal morfina e anfetaminas por exemplo e precursores substâncias e outros materiais empregados na produção de drogas proibidas6 Diferentemente de muitas outras convenções essas foram seguidas com incrível rigidez pela maior parte dos signatários Independentemente de seus intricados feixes e nuances sustento que o paradigma proibicionista é composto de duas premissas fundamentais 1 o uso dessas drogas é prescindível e intrinsecamente danoso portanto não pode ser permitido 2 a melhor forma de o Estado fazer isso é perseguir e punir seus produtores vendedores e consumidores Assim interessa apresentálas seguindo sua própria lógica mais detalhadamente 1 primeira premissa proibicionista o consumo de drogas é uma prática prescindível e danosa o que justifica sua proibição pelo estado A ingestão de qualquer uma das drogas proscritas é fisiológica e mentalmente danosa Os danos fisiológicos podem ocorrer em curto ou médio prazo Caso seja continuado o consumo dessas drogas encadeia graves consequências podendo levar inclusive à morte seja por deterioração da saúde geral seja por intoxicação acidental overdose Não há padrão quantidade ou nível seguro para o consumo dessas drogas Essas drogas provocam dependência Por ser inicialmente prazeroso seu consumo tem grande chance de levar seus consumidores à repetição ou à substituição por uma substância mais potente numa escalada que culmina com a perda do autocontrole e da capacidade de livre escolha A dependência 6 Anexo al informe estatístico anual Junta Internacional de Fiscalizacion de Estupefacientes Viena 2001 141 Maurício Fiore dessas drogas ainda que possa variar para cada indivíduo é uma patologia associada aos seus efeitos neuroquímicos o que acarreta uma perda gradual de outros interesses uma busca incessante por novas doses e uma dolorosa síndrome de abstinência grande sofrimento psíquico eou fisiológico pela suspensão do consumo Além da dependência elas potencializam outros transtornos mentais graves como depressão psicose e esquizofrenia Crianças e adolescentes são mais vulneráveis ao consumo dessas drogas o que é especialmente grave na incompletude de sua formação intelectual O consumo de drogas gera também graves consequências sociais como o comportamento descontrolado e a deterioração dos laços sociais Na medida em que seus efeitos suspendem o julgamento normal dos indivíduos essas drogas levam a ações inconsequentes e muitas vezes violentas agravadas pela incapacidade que muitos dependentes enfrentam para bancar a compra de novas doses Dado esse conjunto de danos e considerando que o consumo dessas drogas é totalmente prescindível já que elas não têm aplicação médica cabe ao Estado proibilas Para tanto ele goza de legitimidade para perseguir e punir quem as produz vende ou consome 2 segunda premissa proibicionista a atuação ideal do estado para combater as drogas é criminalizar sua circulação e seu consumo C om a legitimidade conferida pela primeira premissa o Estado deve agir em duas frentes impedir a produção e o comércio dessas substâncias e reprimir seus consumidores Com esse objetivo a Convenção da onu obriga os Estados a aplicar duras sanções penais aos produtores e vendedores dessas drogas classificados então como traficantes Para seus consumidores as Convenções pregaram inicialmente a dissuasão via legislação penal Nas últimas décadas no entanto a possibilidade de tratamento passou a ser considerada uma alternativa desde que se inserisse num conjunto de sanções que deixasse clara a proibição da prática 142 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 3 crítica às premissas proibicionistas 31 os potenciais danos individuais e sociais do consumo de drogas não justificam a sua proibição T odas as ações humanas engendram algum potencial de perigo ou dano Locomoção esporte e sexo seriam exemplos de práticas potencialmente danosas mas podese para os fins deste artigo limitálas às que envolvem ingestão voluntária de substâncias há também a poluição e a contaminação que provocam danos irrefutáveis Nesse caso há um campo controverso o do consumo abusivo ou desequilibrado de determinados alimentos considerado um dos mais graves problemas de saúde pública do planeta Limitome neste artigo aos procedimentos de controle estatal no campo das drogas Os protocolos de pesquisa de novas drogas com aplicação médica por exemplo supõem riscos na forma de efeitos colaterais não previsíveis Reconhecese inclusive legalmente que eles irão ocorrer ocasionando complicações graves e até letais No caso das drogas de uso mais geral o Estado se limita a regular a produção e a comercialização não o consumo sendo responsabilidade dos indivíduos obedecer ou não à prescrição médica E há ainda drogas que prescindem de receituário médico disponíveis nos balcões de farmácia para livre comercialização Ali se encontram por exemplo os analgésicos que em muitos países como o Brasil lideram os investimentos do mercado publicitário e estão ao mesmo tempo relacionados a milhares de mortes anuais seja por reações adversas e efeitos colaterais seja por consumo abusivo Mais próximos do objeto de discussão temos as drogas psicoativas com aplicação médica cuja comercialização segue regras mais rígidas de controle de receituário como os ansiolíticos e os antidepressivos Mesmo com fiscalização permanente sabese que há um enorme mercado clandestino dessas substâncias que fazem parte de muitos estoques domésticos Com o grande crescimento do número de diagnósticos de transtornos mentais diversos esses medicamentos ocupam há anos as listas dos mais vendidos o que tem gerado grande debate entre especialistas7 Mais polêmico ainda é o avassalador 7 Para ter uma ideia do volume de vendas desse tipo de medicamento no Brasil o Rivotril ou Clonazepam um benzodiazepinico utilizado como calmante e inibidor de ansiedade 143 Maurício Fiore crescimento do diagnóstico infantil de transtornos como o do déficit de atenção tratados por meio do uso sistemático de estimulantes8 Há também produtos que contêm substâncias psicoativas e não têm aplicação médica oficial São as drogas mais consumidas do planeta as bebidas alcoólicas as bebidas estimulantes café chá e energéticos e o tabaco9 Fora das listas da onu de drogas proscritas sofrem restrições diferentes em cada país mas no geral seu comércio é legal e a decisão sobre compra e consumo é individual para os adultos E finalmente as drogas psicoativas que mesmo ilegais são maciçamente consumidas por milhões de pessoas no mundo Sobre sua comercialização não há controle do Estado que se limita a pedir e de alguma forma obrigar que seus cidadãos se mantenham distantes para que não coloquem a si e à sociedade em risco Todas essas drogas psicoativas têm grande potencial de dano seja fisiológico seja mental Além disso uma parte significativa delas é bastante tóxica gerando grande número de mortes acidentais todos os anos E o que é mais importante os indivíduos podem consumi las de maneira abusiva seja esporádica seja frequentemente o que pode levar tanto a comportamentos perigosos como a quadros graves de dependência Como se vê tanto as drogas psicoativas livremente disponíveis como as controladas ou totalmente ilegais são perigosas Mas por isso podem ser consideradas prescindíveis Definitivamente não O uso desse enorme conjunto de produtos plantas e moléculas tem diversas motivações e parte delas é de indiscutível importância para a humanidade ajudam no enfrentamento de doenças e infecções aliviam a dor apaziguam a ansiedade melhoram o desempenho despertam prazer excitam inspiram reflexões facilitam relações sociais e o que talvez seja uma combinação de cada uma dessas coisas suspendem a forma ordinária de perceber o mundo Por essas é o segundo medicamento mais vendido do Brasil numa lista que inclui analgésicos e anticoncepcionais 8 Atualmente muitos trabalhos têm exposto e criticado esses diagnósticos e prescrições em massa Um bom resumo de trabalhos sobre o tema pode ser lido em Angeli Marcia A epidemia de doença mental Piauí n 59 ago 2011 9 Poderiam ser incluídos nessa lista ainda os solventes e outros inalantes que são produzidos com outras finalidade comerciais têm venda pouco controlada mas são amplamente utilizados sobretudo por jovens como substâncias psicoativas cola éter benzina etc 144 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA e muitas outras razões os seres humanos as procuraram em toda a história e continuarão a fazêlo Como outras experiências e práticas liminares essa alteração é arriscada e por isso mesmo o consumo de substâncias psicoativas foi sempre cercado de controles e interdições sociais O exagero da premissa proibicionista é fazer do Estado cujo motivo primordial de existência é a garantia de liberdades e direitos individuais o promotor dessas interdições por meio da criminalização que impeça adultos disporem de seus corpos e ainda supor como será discutido a seguir que eles com isso deixarão de fazêlo Isso não é o mesmo que advogar por um cenário libertário radical potencialmente inconsequente em que ao indivíduo é dada uma autossuficiência abstrata Sabese que o Estado se constrói em permanente arena de conflitos de interesses e valores alguns antagônicos mas deve haver limites para sua atuação As práticas corporais e a ingestão de substâncias devem ser um desses marcos de autonomia e as interdições tutelares só se justificariam em casos individuais com cuidadoso processo médicojudiciário E se esse é o caso do consumo de algumas substâncias hoje proscritas então o Estado teria por decorrência que estender a interdição para um campo geral das drogas dos alimentos e até de outras práticas tidas como perigosas O braço mais poderoso e portanto perigoso do Estado é a punição e por isso seu uso deve ser sempre considerado um recurso excepcional Os defensores dessa tutela lançam mão de um argumento importante Uma vez dependentes os indivíduos perderiam sua capacidade de livre escolha permanecendo presos à escravidão da compulsão pela droga Porém mesmo que se reconheça que a dependência é um quadro dramático a incapacidade de julgamento é controversa Mais importante essa condição não justifica a supressão do direito de escolha de outros indivíduos Além de a interdição do uso não se sustentar pela existência do abuso ela própria não é capaz no caso das drogas de impedilo É provável que muitos dos que discordam da intromissão indevida do Estado na esfera privada continuem preocupados com o papel do Estado diante das consequências negativas que o uso de muitas dessas drogas atualmente proibidas pode acarretar Mas é justamente a supressão da primeira premissa a punição aos consumidores de drogas que pode ensejar uma atuação não só mais justa como mais 145 Maurício Fiore eficaz Reconhecendo que as drogas continuarão a existir o Estado deve promover outros controles sociais e promover o autocuidado as melhores formas possíveis de prevenção e redução de danos ignoradas pelo proibicionismo 32 Ao proibir a produção o comércio e o consumo de drogas o estado potencializa um mercado clandestino e cria novos problemas S ustentada pela legitimidade concedida pela primeira premissa o Estado centraliza seus esforços para impedir a circulação de drogas e dissuadir seus consumidores Ao naturalizar a proibição como única forma de enfrentar o problema criase uma falácia para sustentála drogas são proibidas porque são ruins e são ruins porque são proibidas Enquanto existirem por essa lógica as leis devem continuar determinando que consumilas é errado e portanto punível No entanto o mesmo século do proibicionismo foi o século do crescimento do consumo de drogas Ainda que não se possa creditar o aumento do consumo de drogas ilegais à proibição devese admitir que ela falhou em seus objetivos seja de erradicálo seja de contê lo O grande equívoco da segunda premissa é que um fenômeno de tamanha complexidade possa ser contido por um marco regulatório tão simplório que divide drogas tão diferentes num esquema binário permitidas e proibidas A produção e o comércio de drogas ilícitas são junto com o tráfico de armas o maior mercado criminoso do mundo Funcionando sem nenhum tipo de regulação o comércio dessas drogas envolve na maior parte das vezes exploração de trabalho inclusive infantil contaminação ecológica corrupção de agentes públicos e o que é mais grave utilização de violência armada para demarcação de interesses e outros conflitos É importante lembrar nesse último ponto que diferentemente do que pregam os defensores da proibição os dados empíricos não relacionam o consumo de drogas à violência mesmo na dinâmica própria do comércio ilegal Países da Europa Ocidental por exemplo têm proporcionalmente mais consumidores de drogas ilegais do que a maior parte dos países da América Latina mas tanto o consumo como o comércio dessas substâncias se dão 146 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA de forma muito menos violenta Ou seja a violência do comércio de drogas responde aos contextos em que ele ocorre e portanto ele acentua a desigualdade internacional e intranacional Como o tráfico é uma atividade de lucro hipertrofiado principalmente no setor de distribuição atacadista da cadeia parte significativa dos ganhos pode ser usada para a compra de armamentos e para corromper setores da burocracia estatal principalmente agentes de segurança O exemplo mais recente e dramático das consequências da guerra às drogas acontece há anos no México extermínios quase diários no enfrentamento entre gangues e destas com o exército cujas vítimas não se restringem aos dois lados evidentemente10 Como muitas outras formas de violência as vítimas e os algozes dessa guerra são oriundos em sua maioria das camadas mais pobres e estigmatizadas de seus países E a atuação das polícias se concentra normalmente em cima do mercado varejista o mais exposto e ocupado pelos que menos lucro têm com esse comércio Os bilhões que o tráfico movimenta no entanto continuam circulando pelos mercados com maneiras diversas de tornar o dinheiro legal Ano após ano medidas de inteligência no combate à lavagem desse capital são anunciadas mas seu impacto no tráfico é pífio Prendendo cotidianamente os varejistas de rua rapidamente repostos num mercado tão dinâmico a polícia faz do tráfico de drogas um dos principais responsáveis pelo alarmante crescimento do encarceramento em diversos países No Brasil entre os cerca de 548 mil presos 138 mil respondem por crimes relacionados às drogas11 E a tendência atual é de que os crimes relacionados às drogas respondam por mais encarceramentos na medida em que seu crescimento entre proporção total de detidos cresceu entre 2006 e 2010 62 contra 85 de outros crimes12 Na medida em que não cumpriam a meta de um mundo livre de drogas para os próximos decênios as diversas Convenções 10 O conflito mexicano tratado como genocídio pelas autoridades é apontado como a causa principal de parte considerável dos 50 mil homicídios nos últimos quatro anos 11 Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça Infopen dados de dezembro de 2012 12 Comunicação oral de Pedro Abramovay exsecretário nacional de Justiça e professor da Fundação Getúlio Vargas em seminário realizado no Cebrap em novembro de 2011 147 Maurício Fiore Internacionais postergavam seus objetivos No último deles o encontro da Comission on Narcotic Drugs cnd em Viena 2009 a nova justificativa tomou contornos oficiais se um mundo sem drogas parece pouco factível num futuro próximo continuar a guerra é o que garante que o consumo não atinja níveis catastróficos Na verdade a Convenção apenas se apropria de uma perspectiva que já era clara para a maior parte dos agentes envolvidos no cotidiano da guerra às drogas que nunca vislumbraram uma vitória definitiva É uma guerra na qual se costuma comemorar vitórias parciais como a prisão de traficantes e a apreensão de drogas que seriam capazes de retirar das ruas o veneno que o inimigo cada vez mais perigoso distribui13 Ignorando que há substituição permanente de função e que apenas uma pequena parte do que circula no mercado é apreendida a polícia exalta mais os procedimentos do que os resultados práticos os preços da cocaína e de sua versão tragável o crack têm permanecido praticamente estáveis em São Paulo há quase duas décadas14 Por fim sob o proibicionismo os consumidores de drogas são conduzidos a um contato estreito com o crime Envoltas por uma áurea marginal que tanto seduz como estigmatiza as drogas tornamse um marcador de coragem e virilidade Demonizadas por campanhas que carregam mais pânico do que informação duas drogas tão diferentes como maconha e cocaína por exemplo misturamse não só no imaginário mas nos locais eou nas pessoas que as vendem Diferentemente do que ocorre com as drogas legais sobre as quais os serviços de saúde podem fornecer informações a respeito de usos mais seguros e assim estimular o autocuidado o consumidor de drogas ilícitas é confrontado com uma única decisão interromper o consumo ou manterse escravo da droga 13 Um oficial da polícia militar paulista quando perguntado pelo repórter da tv Globo em meados de 2011 se a operação contra um ponto conhecido de tráfico não seria como enxugar gelo já que em alguns dias o comércio de drogas funcionaria ali novamente sintetiza em sua resposta o realismo proibicionista Se não enxugássemos o gelo a poça estaria muito maior 14 Além disso a maior parte da população brasileira principalmente os jovens considera fácil obter drogas ilícitas A última pesquisa domiciliar de abrangência nacional realizada pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas Cebrid em 2005 apontou que cerca de 65 dos brasileiros acima de 12 anos consideram fácil obter maconha 51 consideram fácil obter cocaína 148 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 4 o fortalecimento das críticas e a modernização do paradigma guerra contra o tráfico tratamento para o viciado N os últimos anos as críticas ao paradigma proibicionista não apenas se fortaleceram como conseguiram escapar do lugar a que foram estrategicamente relegadas ao longo do século xx um exotismo inconsequente ou fruto do comprometimento pessoal de defender o uso de drogas como positivo15 Abordagens pragmáticas e realistas como a redução de danos conseguiram se distanciar das premissas proibicionistas e alcançar bons resultados com os quais ganharam lentamente credibilidade Guiadas pelo pressuposto de que cabe aos profissionais de saúde a minimização dos danos e não a erradicação das drogas as políticas de redução de danos foram decisivas para recolocar os termos do debate16 principalmente no cuidado com o consumidor Dessa forma o encarceramento de usuáriosdependentes foi sendo mais e mais considerado uma ação estatal anacrônica e desumana Em vez de punilos com prisão o Estado deveria tratálos mesmo que contra sua vontade Essa perspectiva já prevista pelas Convenções configurase hoje como uma espécie de modernização da premissa proibicionista e influenciou no Brasil importantes mudanças na atualização da legislação sobre o tema A Lei de Drogas 11343 promulgada em 2006 endureceu o combate ao tráfico e manteve a criminalização do consumidor o fato de o uso estar incluído no Código Penal é prova disso mas eliminou a pena de prisão para os indivíduos flagrados com drogas para seu próprio uso estipulando penalidades que vão de advertência verbal à prestação de serviços públicos Na outra ponta a lei aumentou a pena mínima de prisão para quem portar drogas destinadas ao tráfico de três para cinco anos17 15 Os crescentes movimentos populares pela mudança da lei de drogas dos quais se destaca a Marcha da Maconha têm tido dois papéis fundamentais desmistificar por meio da ocupação do espaço público o caráter marginal associado às drogas e ao mesmo tempo reivindicar sua existência política para além da apologia do consumo de drogas normalmente utilizado para retirar sua legitimidade 16 O conceito de redução de danos é muito controverso sendo objeto de disputa semântica entre especialistas Para uma discussão mais aprofundada ver Fiore Maurício op cit 17 Equiparado aos demais crimes constitucionalmente hediondos o tráfico de drogas é um dos que mais pena preveem na legislação penal brasileira equiparandose ao homicídio e ao estupro por exemplo 149 Maurício Fiore Chamo a atenção para duas consequências práticas da lei ao não estipular quantidades ou outros critérios objetivos para definir se a droga é destinada para venda ou para o consumo continua sendo conferida à autoridade policial a responsabilidade dessa interpretação e a instauração de inquérito avaliado posteriormente pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário18 Duas pesquisas recentes mostraram que a lei encarcera jovens normalmente pobres primários e que portam pouca quantidade de drogas Além disso uma vez enquadrados como traficantes grande parte deles responde ao processo encarcerados e dificilmente conseguem escapar de condenação19 Em segundo lugar ao aumentar o fosso que divide consumidores e traficantes a lei parece ter aumentado o rigor policial que desde sua promulgação cresceu substancialmente como citado há pouco A mudança da lei inegavelmente importante ao suprimir a pena de prisão de usuários parece encerrar um dilema por quais caminhos conduzir as críticas ao proibicionismo Sua concretização está implícita por exemplo na mais influente confrontação política internacional a Comissão Global de Política de Drogas que reúne líderes políticos importantes20 artistas e especialistas célebres O argumento principal do grupo é que a guerra às drogas é um fracasso com terríveis efeitos colaterais do mercado ilegal de drogas e das violentas e dispendiosas tentativas de combatêlo Seu principal ataque assim se dá à segunda premissa proibicionista a de que as drogas devem ser combatidas penal e militarmente Como essa outras críticas ao proibicionismo não estão direcionadas a sua premissa fundamental a de que o Estado pode e deve interferir na decisão individual de consumir drogas Há sem dúvida um componente tático nessa opção O debate sobre drogas está pautado há mais de um século pelo pânico moral e por um formato belicista no qual questionamentos da primeira premissa o Estado deve realmente proibir o consumo de drogas são normalmente 18 Para determinar se a droga destinavase a consumo pessoal o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida ao local e às condições em que se desenvolveu a ação às circunstâncias sociais e pessoais bem como à conduta e aos antecedentes do agente Lei 11343 art 28 3o 19 Ver boiteux et al 2009 e Núcleo de Estudos da Violência 2011 20 Entre outros três expresidentes Fernando Henrique Cardoso Cesar Gaviria Colômbia e Ernesto Zedillo México o exsecretáriogeral da onu Kofi Annan e o exsecretário de Estado dos euA George Shultz 150 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA interpretados como simpatia interessada ou inconsequente pelo inimigo21 Quando questiona o resultado da guerra a crítica se torna mais palatável e pode angariar mais apoio Caberia uma reflexão sobre os seus limites A manutenção da premissa de que as drogas são ruins a ponto de justificar sua proibição é o esteio mais profundo do paradigma Assemelhandose a muitos outros debates políticos contemporâneos a discussão sobre política de drogas ensejará necessariamente conflitos entre valores morais que no mais das vezes terminam em um estéril polemismo É possível no entanto que mudanças significativas possam ocorrer sem que os limites ao papel do Estado sejam questionados Seguindo a provocação de david husak22 uma das maneiras retóricas de recolocar o papel do Estado na discussão é inverter a pergunta que normalmente é feita aos críticos do proibicionismo Assim em vez de responder passivamente à questão Por que o Estado deve descriminalizar o uso de drogas devese colocar outra Por que o Estado deve proibir o uso de drogas A estratégia de questionar a primeira premissa ainda que politicamente mais delicada pode abalar de maneira mais consistente todo o paradigma A ruína histórica de outro modelo proibicionista é didática Na década de 1920 os euA depois de décadas de pressão de grupos religiosos comunitários e feministas conseguiu reunir apoio político suficiente para uma ambiciosa empreitada extirpar o consumo de álcool do país23 A Lei Seca vigorou durante treze anos e até hoje é o exemplo mais evocado de fracasso por conta de suas consequências aumento de crimes violentos consolidação do crime organizado e envenenamentos por conta da produção clandestina Hoje ela não é considerada um delírio proibicionista apenas por ter fracassado mas porque seu fundamento autoritário o Estado pode em defesa da sociedade proibir que indivíduos comprem álcool legalmente não parece nem um pouco plausível o que torna pouco provável sua reintrodução 21 Profissionais da saúde ligados à redução de danos pesquisadores e líderes de movimentos antiproibicionistas são alvo frequente de ataques que os estereotipam como simpatizantes ou defensores das drogas 22 husAk mArneFFe 2005 p 2627 23 Uma obra recente fundamental para se aprofundar na instituição da Lei Seca é okrent 2010 151 Maurício Fiore 5 Alguns pressupostos para modelos alternativos C omo dito acima defender um modelo alternativo ao proibicionismo não é afastar o Estado do problema mas rediscutir o seu papel para que ele atue com mais eficiência dentro de limites democráticos A luta pela mudança do paradigma deve portanto ser simultânea à construção de legislações e políticas públicas que estabeleçam normas justas promovam práticas menos nocivas e atendam da melhor forma possível aos problemas que o consumo de drogas inexoravelmente causará Apresento de forma bastante resumida alguns sugestões gerais oriundas da literatura e de algumas experiências internacionais 51 valorizar o autocuidado e os controles sociais A alteração sistemática da consciência por meio de substâncias não é uma ação isolada Os indivíduos o fazem em contextos sociais específicos que estão como todos os outros repletos de valores regras e sentidos que tanto incitam quanto estabelecem parâmetros Aos efeitos desordenadores das drogas sempre são postos controles e freios sociais inclusive com aplicação de sanções Num exemplo atual indivíduos e sociedade se equilibram entre estímulos valores e sanções que dizem respeito ao consumo de álcool O Estado nesse caso ausentase da tarefa de regular o mercado e desestimular o uso mas ainda assim a maior parte dos bebedores não pode ser considerada socialmente disfuncional ou dependente crônica Quando se reconhece que é impossível suplantar os problemas que o consumo de drogas inevitavelmente pode causar percebese com mais facilidade que nenhuma medida preventiva será mais eficiente do que o autocuidado e o fortalecimento de laços sociais Há que se evitar também a crença de uma regulamentação onipresente da produção e do comércio de substâncias psicoativas Medidas de controle e desestímulo são fundamentais aumento de preços restrição de pontos de venda limitação de quantidade ofertada controle de dosagem etc mas devem ser levados em conta os padrões de consumo mais comuns para que não se configurem num grande incentivo à hipertrofia do inevitável mercado clandestino 152 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 52 descriminalização de fato do consumo e estipulação com critérios objetivos U ma política justa e eficiente sobre drogas pressupõe no mínimo a descriminalização do consumidor Uma experiência prática que tem sido apontada como modelo é a portuguesa Há uma década uma nova lei manteve a ilegalidade das drogas mas tornou seu porte para consumo uma infração administrativa Caso flagrado com drogas o indivíduo é ouvido por uma junta civil composta de psicólogos médicos e assistentes sociais que de forma compartilhada e sob a perspectiva do cuidado à saúde integral decidem se é o caso de um tratamento ou de sanções mais sérias como multas Em boa parte dos casos envolvendo adultos e drogas como maconha o papel do Estado se encerra temporariamente nesse contato As normas portuguesas estabelecem com mais clareza qual a quantidade que tipifica a posse para uso estimada para dez dias de consumo e os resultados obtidos desde a mudança são positivos como a queda do número de consumidores problemáticos e a diminuição do envolvimento de crianças com drogas24 A maior conquista do modelo no entanto é demonstrar que a supressão da punição não faz com que todos principalmente os jovens corram para o traficante mais próximo em busca de drogas Sua introdução no entanto deve ser adaptada a contextos como o brasileiro caracterizado por grande seletividade penal contra populações vulneráveis Tirar o consumidor da órbita do direito penal por meio de critérios claros para definir o que é porte para consumo e para tráfico é uma mudança menos polêmica e com impactos positivos 53 planejamento de ações de acordo com as especificidades de cada droga O uso recorrente do termo drogas neste artigo pode levar à conclusão equivocada de que se está sugerindo que elas devem ter por parte do Estado tratamento equivalente Sob o proibicionismo um único critério obscuro legalidade x ilegalidade uniformiza substâncias tão diferentes Políticas eficientes devem se basear em dados empíricos sobre os efeitos os riscos potenciais e os padrões 24 Ver greenWAld Gleen 2009 153 Maurício Fiore de consumo de cada uma delas É com base nessa especificidade que grande parte dos críticos do proibicionismo defendem a possibilidade de mudança imediata por exemplo do estatuto jurídico da maconha a droga ilegal mais consumida do planeta Não obstante seu consumo poder acarretar danos e nem todos eles serem plenamente conhecidos a maconha não apresenta toxicidade letal e o padrão de consumo mais comum não é problemático Além disso a manutenção da maconha na lista de plantas proscritas tem dificultado a investigação sobre a sua ampla e bem demonstrada função medicinal25 Outras drogas ilegais e bastante difundidas como a cocaína demandariam modelos mais complexos de regulamentação algo próximo do que atualmente é feito para os medicamentos controlados Nesses casos o desafio seria equilibrar uma política que garantisse mais controle sem crimininalização desestimulando o mercado clandestino26 Não se deve esquecer que cada vez mais substâncias estarão disponíveis demandando novas formas de o Estado lidar com a questão Hoje proibir tem sido a resposta Desafiados por novas substâncias ou formas de alterar consciência no futuro os Estados poderão pagar um preço alto por não ter testado e aprimorado outras alternativas O álcool e o tabaco são outros bons parâmetros para o planejamento da inclusão das drogas ilegais na supervisão estatal O álcool legalizado sofre o mesmo controle de qualidade dos alimentos e seu comércio desde que tributado é livre preços e pontos de venda sendo apenas fiscalizado com pouco rigor o acesso por menores de idade Sua publicidade objeto de investimentos maciços praticamente não sofre restrições27 Portanto é um exemplo de omissão do Estado o que se explica em grande parte pela pressão dos interessados diretos no seu comércio Já o tabaco também legalizado por outro lado vem sendo objeto de recente intervenção estatal sob 25 Ver mAlchierloPes ribeiro 2007 26 Para que cenários futuros de regulação sejam viáveis é importante que não se descartem algumas estruturas de controle já estabelecidas internacionalmente inclusive pela própria Convenção Para uma discussão detalhada e minuciosa de cenários de regulação uma obra fundamental é After the War on Drugs Bluprint for Regulation Londres Transform Drug Policy Foundation 2009 27 Somente as bebidas com mais de treze graus na escala GayLussac sofrem algum tipo de restrição publicitária no Brasil Assim a maior parte dos fermentados como as cervejas e os vinhos além dos ices misturas de refrigerantes e bebidas destiladas não é considerada para fins publicitários bebida alcoólica 154 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA quatro vertentes principais justificada pelos incontestáveis danos epidêmicos gerados pelo seu consumo disseminação de informações e alertas sobre seus danos potenciais veto quase total da publicidade aprimoramento do atendimento aos dependentes e restrição de locais de uso nesse caso com a justificativa de proteger outros indivíduos Independentemente das controvérsias sobre seus exageros tratase de um exemplo duplamente bemsucedido sem adotar as premissas proibicionistas o Brasil viu diminuir em vinte anos a proporção de fumantes em cerca de 50 Outros países também têm alcançado com políticas equivalentes bons resultados28 A regulação dos mercados de álcool e tabaco drogas legais demonstram portanto que a ausência de políticas públicas não diz respeito à legalidade de uma droga Mercados legais podem ser bem tabaco ou mal álcool regulados fora do paradigma proibicionista 6 perspectivas de mudanças no brasil N ão obstante o inegável crescimento das vozes dissonantes e dos movimentos políticos de contestação ao paradigma proibicionista que certamente tem e terá papel decisivo na mudança do modelo o horizonte de mudanças práticas não parece promissor no Brasil Julgando pelo histórico de atuação do Legislativo sobre o tema é improvável que alguma mudança além do aprofundamento do modelo atual possa ocorrer Desde a promulgação da Lei de Drogas em 2006 os projetos que ganharam algum destaque e maior apoio no Congresso previam por exemplo o retorno da pena restritiva de liberdade para consumidores dessa vez sob a forma de tratamento compulsório e com a justificativa de que a lei atual havia eliminado as ferramentas da dissuasão do Estado Outra iniciativa dada a grande repercussão do aumento do consumo de crack pelo país tentou endurecer ainda mais as penas para os traficantes dessa forma específica de cocaína29 28 Nos euA um em cada dois homens fumava na década de 1960 Hoje esse número é inferior a dois em cada dez com viés de queda Ver Chartbook on trends in the health of Americans EUA National Center for Health Statistics 2007 29 Esses projetos ignoram que legislação semelhante aprovada nos euA na década de 1980 é duramente criticada por ter aumentado o processo de encarceramento em massa de nítida seleção socialracial que faz dos euA o maior encarcerador do mundo Sobre esse ponto ver especialmente vAgins Debora J mccurdy Jesselyn Cracks in the system twenty years of the unjust federal crack cocaine law Washington America 155 Maurício Fiore Mudanças significativas dificilmente virão também do atual Executivo federal Ainda que haja vozes dissonantes no interior do governo discursos que apresentem qualquer crítica da proibição são evitados30 e a pauta de atuação tem se concentrado nos investimentos ao combate ao tráfico controle de fronteiras e tratamento de dependentes Nesse último aspecto que mereceria uma discussão específica medidas anunciadas recentemente aumentaram os investimentos no atendimento público aos dependentes mas ao mesmo tempo garantiram o financiamento das comunidades terapêuticas instituições privadas em que normalmente privilegiase a internação como forma de tratamento decisão bastante controversa31 Num livro recente sobre alternativas ao proibicionismo32 o jornalista denis bugierman usou uma metáfora interessante para explicar a inércia dos políticos com relação ao tema eles seriam dependentes das drogas não da ingestão dessas substâncias mas do seu uso eleitoral De fato os políticos esperam não só ganhar votos quando defendem o combate sem trégua às drogas como conseguem tirálos de adversários que ousem propor o debate sobre qualquer outra alternativa Mas se o fazem é também porque encontram forte ressonância e apoio em praticamente todos os segmentos sociais No caso das drogas prevalece uma regra política quanto maior a ambição eleitoral menos se deve mexer no vespeiro Apenas prometa odiar e lutar contra as vespas O alento pode vir da instância máxima do Judiciário que não depende diretamente de votos Estava previsto para 2013 e foi postergado para 2014 o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal com repercussão geral33 sobre a inconstitucionalidade da atual lei Civil Liberties Union 2006 30 Depois de declarar à imprensa que o governo vinha estudando mecanismos para diminuir o encarceramento em massa de pequenos traficantes sugerido por documentos do próprio Ministério da Justiça o exsecretário nacional de Justiça Pedro Abramovay foi desnomeado da Secretaria Nacional de Política sobre Drogas antes de assumir o cargo 31 As comunidades terapêuticas são muitas vezes ligadas a grupos religiosos e exigem a abstinência total durante o isolamento o que é criticado por especialistas Além disso um relatório recente do Conselho Federal de Psicologia apontou problemas graves em muitas comunidades inclusive tortura Ver 4º Relatório Nacional de Inspeção de Direitos Humanos locais de internação para usuários de drogas Brasília Conselho Federal de Psicologia 2011 32 burgiermAn 2011 p 5460 33 Ao apontar a repercussão geral o stF indica que ela deve ser usada como parâmetro norteador de decisões semelhantes em instâncias inferiores 156 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA de drogas que criminaliza a posse de drogas para consumo próprio Se seguirem a decisão de seus colegas da Colômbia e da Argentina e considerarem inconstitucional a punição aos cidadãos que portem droga para consumo os ministros brasileiros serão os responsáveis pelo único mas extremamente relevante questionamento ao paradigma proibicionista que se pode vislumbrar a curto prazo no Brasil 7 referências bibliográficas After the War on Drugs Bluprint for Regulation Londres Transform Drug Policy Foundation 2009 boiteux Luciana et al Relatório de pesquisa tráfico e constituição In Pensando o direito BrasíliaRio de Janeiro Ministério da Justiça 2009 burgiermAn Denis Russo O fim da guerra a maconha e a criação de um novo sistema para lidar com as drogas dAvenPorthines Richard La búsqueda del olvido Madri TurnerFondo de Cultura Económica 2001 escohotAdo Antonio Historia de las drogas Madri Alianza 1998 v 3 Fiore Maurício Uso de drogas controvérsias médicas e debate público Campinas Mercado de LetrasFapesp 2007 greenWAld Gleen Drug Descrminalization in Portugal lessons for creating fair and successful drug policies Nova York Cato Institute 2009 husAk Douglas mArneFFe Peter de The Legalization of Drugs for and against Nova York Cambridge 2005 lAbAte Beatriz Fiore Maurício goulArt Sandra Introdução In lAbAte B et al Drogas e cultura novas perspectivas Salvador EdufbaMinistério da Cultura 2008 mAlchierloPes Renato ribeiro Sidarta Maconha cérebro e saúde Rio de Janeiro Vieira e Lent 2007 okrent Daniel Last Call the rise and tall of Prohibition Nova York Scribner 2010 Prisão provisória e lei de drogas um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo São Paulo Núcleo de Estudos da Violência 2011 rodrigues Thiago Política e drogas nas Américas São Paulo EducFapesp 2004 políticA criminAl e redução de dAnos Maurides de Melo Ribeiro Mestre e Doutor em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade de Direito da USP Professor de Direito Penal e Criminologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie e das Faculdades de Campinas FACAMP Expresidente da Comissão de Política Nacional de Drogas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBCCRIM Expresidente do Conselho Estadual de Entorpecentes do Estado de São Paulo CONENSP sumário 1 Uma introdução necessária 2 A permanente busca de conceitos 3 As políticas criminais sobre drogas 31 Os primórdios da questão 32 A mudança de paradigmas 33 A proibição do consumo as origens do proibicionismo 331 As primeiras medidas 332 A mundialização do proibicionismo 34 O recrudescimento da repressão e o surgimento do tráfico internacional 341 As organizações mafiosas 35 A ONU como a nova guardiã da ordem proibicionista 351 A declaração de guerra às drogas 158 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 4 As estratégias de redução de danos Referências bibliográficas 1 uma introdução necessária A abordagem da questão das drogas sob o ponto de vista estritamente legal representa por si só uma má colocação do tema Mais do que operadores das agências de controle social quem deveria preferencialmente trabalhar a questão das drogas com muito mais atenção e propriedade são os profissionais das áreas de educação saúde sociais e culturais Afinal tratase de um tema complexo que deve ser encarado a partir de um enfoque multidisciplinar ninguém pode dizer que tem respostas prontas e soluções definitivas assim como nenhuma área do conhecimento detém o monopólio do saber nesta matéria E a legislação sobre drogas assim como qualquer outro tema que comporte uma disciplina legal para a mediação dos conflitos sociais dele decorrentes deverá necessariamente surgir após amplo debate das demais áreas científicas e políticosociais com interesse na definição dos parâmetros daquela comunidade e a partir do consenso desses setores definemse os bens que mereçam proteção legal e as salvaguardas normativas que convêm àquela sociedade Inversamente do esperado numa sociedade democrática o que assistimos notadamente na questão das drogas é que o discurso jurídicolegal condiciona o debate preestabelecendo dogmas que terminam por engessar a discussão no campo dos demais atores do processo social no qual o tema se insere 2 A permanente busca de conceitos Q uando se procura entender o fenômeno do uso de substâncias psicotrópicas devese antes de mais nada buscar a eliminação de mitos Assim a primeira indagação que se deve fazer é afinal o que é droga1 As pessoas em geral estão muito acostumadas com a 1 A própria palavra droga não tem um sentido unívoco podendo significar tanto algo de má qualidade quanto um medicamento todavia a expressão tornouse popular 159 Maurides de Melo ribeiro distinção surgida com as políticas proibicionistas entre drogas lícitas e ilícitas o que do ponto de vista da saúde pública que é o bem jurídico que o Estado alega tutelar é de uma irracionalidade a toda prova Essa opção legislativa foi feita a partir de Convenções Internacionais sobre a matéria e reproduzida em nossa lei penal Tal diferenciação não encontra um mínimo de fundamento científico apto a justificála basta recordar que as drogas lícitas álcool e tabaco são hoje consideradas como os principais problemas de saúde pública mundial nesse campo segundo a própria Organização Mundial de Saúde Não obstante isso o fato é que a busca por um conceito razoável sobre drogas impõe um caminho difícil e tormentoso para quem nela se empenha O antropólogo gilberto velho diz que a determinação do conceito de droga é altamente problemática pois dependendo dos critérios utilizados e do próprio investigador podese abarcar desde para designar as substâncias psicoativas e por isso ela será adotada neste trabalho como sinônimo de psicotrópico ou substância psicoativa termos que também serão utilizados por melhor traduzirem o conceito dessas substâncias Ressaltese ademais que a nova Lei 113432006 adotou expressamente o termo drogas para designar o conjunto dessas substâncias ou produtos conforme o parágrafo único de seu art 1º Por outro lado psicoativo é como se deduz da própria palavra aquilo que tem efeitos sobre a atividade psíquica ou mental ou sobre o comportamento Psicotrópico por seu turno define com maior precisão terminológica essas substâncias como sendo aquilo que atua quimicamente sobre o psiquismo a atividade mental o comportamento a percepção etc In houAiss Antonio villAr Mauro de Salles Dicionário Houaiss da língua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001 Preferemse essas designações a outras também comumente encontráveis na literatura jurídica ou pela sua freqüência de uso no caso da palavra droga ou por sua precisão terminológica no caso da expressão substância psicoativa ou da palavra psicotrópico Registrese que são comumente encontráveis no mesmo sentido as designações entorpecente narcótico ou estupefaciente palavras sinônimas que significam aquilo que entorpece que causa torpor que amortece os sentidos e que portanto englobam apenas parte das substâncias psicoativas uma vez que além das estupefacientes temos numa rápida classificação substâncias estimulantes e substâncias alucinógenas Finalmente é também comumente empregada a palavra tóxico que na realidade expressa uma qualidade dessas substâncias e não seu conceito propriamente dito assim toxicidade de uma substância é o seu grau de periculosidade para o indivíduo considerado a proporção concreta entre a dose ativa e a dose letal a aspirina por exemplo pode ser mortal para um ser humano adulto a partir de três gramas In escohotAdo Antonio O livro das drogas usos e abusos preconceitos e desafios São Paulo Dynamis Editorial 1997 p 24 ou como define a artista plástica Yoko Ono munida de fina ironia Tóxico é o segundo copo dágua quando o primeiro me matou a sede In silvA Milton Severiano da Se liga O livro das drogas Rio de Janeiro Record 1997 p 15 160 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA a heroína até o papodeanjo2 Até etimologicamente sua origem é controvertida podendo ter vindo do persa droa que significa odor aromático do hebraico rakab perfume ou do holandês antigo droog substância ou folha seca3 tudo segundo houaiss significando substância ou ingrediente próprios para tintura química e farmácia De qualquer maneira existe um conceito de drogas amplamente aceito pela comunidade científica que é o estabelecido pela Organização Mundial de Saúde OMS Segundo essa definição droga é qualquer substância autoingerida que atua no sistema nervoso central provocando alterações de percepção ou função4 Entretanto verificase que todas as tentativas de definição do conceito de droga inclusive aquelas mais revestidas de cientificidade guardam em si mesmas um préconceito subjetivo expresso em certa demonização da coisa que se pretende definir Por exemplo ao dizer que droga é uma substância que altera percepção ou função orgânica conforme a definição da OMS já há nessa afirmação uma carga anímica negativa que se manifesta na ideia subjacente de que todo indivíduo que tiver qualquer forma de contato com a droga incorrerá necessariamente num processo de transformação Por isso hipócrates5 ponderava desde a antiguidade clássica que droga é na verdade uma coisa nem boa nem ruim apenas uma coisa da natureza em outras palavras a droga é uma substância que se extrai da natureza e que justamente por isso não pode ter uma qualidade intrínseca um valor em si mesmo A qualificação de uma substância como boa ou ruim decorre portanto da relação que temos com 2 silvA Milton Severiano da Op cit 3 seibel Sergio Dario Jr toscAno Alfredo Dependência de drogas São Paulo Atheneu 2001 p 2 4 diAs João Carlos Pinto Izabel Marins Substâncias psicoativas classificações mecanismos de ação e efeitos sobre o organismo In silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves Panorama atual de drogas e dependências São Paulo Atheneu 2006 p 39 5 No chamado Corpus hipocrático encontramos que são drogas as substâncias que atuam esfriando esquentando secando umedecendo contraindo e relaxando ou fazendo dormir Interessante ainda o comentário atribuído a Teofrasto discípulo de Aristóteles a respeito da datura metel Ministrase uma dracma 320 gramas se o paciente deve simplesmente se animar e pensar bem de si mesmo o dobro dessa dose se ele deve delirar e sofrer alucinações o triplo se deve ficar permanentemente louco uma dose quádrupla se o homem deve morrer escohotAdo Antonio Historia general de las drogas Madrid Alianza Editorial 1995 p 140141 161 Maurides de Melo ribeiro ela que pode ser benéfica ou maléfica Digase aliás que a ampla maioria das substâncias que se encaixam na definição de droga dada pela OMS foi introduzida em nosso convívio como fármacos de utilização médica ou terapêutica um exemplo evidente é a morfina opiáceo ainda hoje largamente utilizado por seus reconhecidos e insubstituíveis efeitos analgésicos Portanto para termos uma compreensão de como se construiu a atual política criminal relativa à questão das drogas não poderemos partir de uma perspectiva ôntica necessário será realizar uma digressão histórica para compreender melhor o fenômeno social do uso dessas substâncias e como ele evoluiu até nossos dias 3 As políticas criminais sobre drogas 31 os primórdios da questão H oje não há controvérsias no sentido de que o consumo de substâncias psicoativas acompanha a própria história da humanidade e se caracteriza pelo seu caráter gregário Isto provocou desde as primeiras civilizações o aparecimento de normas e convenções sociais para regular a produção a distribuição e o modo do consumo O Código de Hamurabi punia com pena de morte os donos de tabernas que adulterassem o vinho Entre os incas o consumo de folhas de coca era um privilégio dos nobres ficando o uso pelos servos e soldados condicionado à autorização real6 Boa parte dos alucinógenos como a psilocibina a mescalina e a dimetiltriptamina DMT era consumida dentro de rituais sagrados regulados pelos líderes religiosos de cada comunidade7 6 Esse privilégio pode ser entendido a partir do próprio mito incaico de que foi Manco Capac entidade que mesclava o temporal e o divino pois era um deusimperador quem concedeu o bálsamo de Mama Coca para a humanidade para fazêla capaz de suportar a fome e as fadigas Como a própria autoridade foi quem originariamente concedeu esse dom aos homens ele constitui um privilégio restrito às elites escohotAdo Antonio Historia general de las drogas cit p 122 7 A amanita muscaria que é um dos fungos que nos fornecem algumas das mais antigas representações de substâncias psicoativas utilizadas com caráter religioso é na realidade o mesmo cogumelo de caule branco e capuz vermelho salpicado de pontos brancos que aparece em quase todos os contos de fadas e duendes talvez venha daí a visão de fadas e duendes Sua utilização ritual foi banida pelo cristianismo com a 162 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA A partir das Grandes Navegações século XVI os europeus entraram em contato com um grande número de substâncias psicoativas e as introduziram progressivamente em suas sociedades com finalidades médicas ou recreativas8 Durante o século XIX a Europa e os Estados Unidos conviviam com uma grande variedade de novas drogas com as quais tinham pouca ou nenhuma identificação cultural9 Paulatinamente da expansão europeia à revolução industrial as substâncias psicoativas deixaram de ser consideradas elementos divinatórios e lustrais reguladas por rituais religiosos para se converterem em mercadorias10 O marco definitivo desse processo foram as Guerras do Ópio finalidade de combater cultos pagãos Esse fenômeno foi observado com inúmeros outros psicotrópicos visionários e ajuda a compreender as origens da aversão moral a essas substâncias A Inquisição continuou no período medieval o mesmo combate persecutório a essas seitas agora identificadas com bruxarias e feitiçarias O imaginário popular ficou assim de tal forma impregnado de conceitos depreciativos de ordem moral e religiosa que mesmo já na fase da ilustração esses fungos eram malvistos a ponto de serem definidos na famosa Enciclopédia em trecho redigido por Jacourt como vegetais que só servem para ser lançados de volta ao esterco onde nascem De qualquer sorte cogumelos psilocibinos que contêm a substância pscilocibina cujos efeitos se assemelham aos do LSD são encontráveis em todas as regiões do planeta exceto é claro nos polos e foram utilizados com essas finalidades por inúmeras civilizações In escohotAdo Antonio O livro das drogas usos e abusos preconceitos e desafios cit p 245 8 EscohotAdo Antonio Historia general de las drogas cit 9 musto David F The American disease origins of narcotic control New York Oxford University Press 1987 10 Quando da primeira publicação de O capital Engels ao rebater as críticas dirigidas à teoria do valor proposta por Marx termina por complementála chamando a atenção sobre o seu processo histórico e não meramente lógico Primeiramente os produtores consumiam seus próprios produtos e as comunidades por eles formadas eram autossuficientes No início das trocas de excedentes o valor atribuído tinha relação com o tempo de trabalho agregado ao produto Essas noções vão por assim dizer desmaterializandose à medida que a sociedade vai se tornando mais complexa e passa a promover intercâmbios comerciais entre famílias comunidades cidades países distanciandose cada vez mais do local de produção de origem Dessa maneira os produtos se convertem em mercadorias Finalmente culmina o processo histórico com a transição para o dinheirometal O dinheiro tornouse praticamente a medida decisiva do valor e tanto mais quanto mais variadas se tornaram as mercadorias objeto de comércio quanto mais afastados eram os países donde provinham e quanto menos portanto se podia controlar o tempo de trabalho necessário para produzilas engels Friedrich Aditamento ao Livro Terceiro de O capital In mArx Karl O capital Crítica da economia política Livro Terceiro O processo global da produção capitalista Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1974 v 6 p 10251028 163 Maurides de Melo ribeiro 18391841 a partir das quais os ingleses garantiram o monopólio internacional consolidaram o domínio britânico no Extremo Oriente e implementaram a prática comercial de substâncias psicoativas em larga escala11 A partir do século XIX dentro do contexto sociocultural de cada nação a popularização do consumo desses novos produtos desprovidos de qualquer lastro cultural que funcionasse como mecanismo de controle informal de seu consumo acarretou uma série de desdobramentos e impactos sociais tais como relatos de intoxicações agudas overdoses complicações crônicas à saúde e o desmantelamento de hábitos sociais locais tradicionalmente instituídos12 Essa novidade culminou na elaboração de políticas públicas com o intuito de solucionar os prejuízos causados pela massificação do consumo dessas substâncias Desse modo o consumo de drogas passou a ser considerado como causa de morbidade merecendo ações de saúde como qualquer outra doença Dessa forma as modernas políticas públicas de drogas surgiram para equacionar a nova realidade oriunda do consumo de substâncias psicoativas dentro do contexto sociocultural das nações ocidentais uma vez que a utilização das novas substâncias de forma desenfreada e sem nenhum mecanismo informal de controle social revelouse problemática 32 A mudança de paradigmas D urante o século XIX inúmeros compostos à base de ópio ou cocaína eram vendidos livremente nas boticas e o uso com finalidades recreativas acontecia com relativa normalidade dentro de bares salões e reuniões sociais Na transição para o século XX porém a conjunção de diversos fatores com ênfase ao aspecto moral contribuiu para a criação de um movimento que entendia a proibição do consumo de substâncias psicoativas como a melhor política para sanar os prejuízos clínicos psicológicos e sociais dele derivados 11 PAssetti Edson Das fumeries ao narcotráfico São Paulo Educ 1991 12 escohotAdo Antonio Historia general de las drogas cit 164 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Moralmente o pensamento cristão sempre condenou o consumo de plantas e fungos psicoativos especialmente os outrora vinculados a rituais pagãos como o cânhamo a mandrágora o ópio a amanita muscaria além de outras13 e os vinculava a bruxarias proscrevendoos e perseguindo seus usuários ao longo de toda a Inquisição Durante a Revolução Científica século XIX a obtenção de princípios ativos isolados produziu apresentações mais potentes que as obtidas nas culturas de origem daquelas substâncias aumentando os relatos de acidentes e complicações entre os usuários ocidentais Além disso a ideia de que o consumo de drogas demonizava e induzia seus usuários à violência sempre esteve presente no imaginário cristão ocidental Na Idade Média os cruzados se assustaram com os métodos de guerra de Hassan bin Sabbath e seus soldados usuários de haxixe Passaram a chamálos de haxixins ou assassinos ashishins e o termo se generalizou para denominar todo aquele que é capaz de atos de violência contra a vida humana com requintes de crueldade14 No período colonial das Américas o consumo do cânhamo pelos escravos durante seus rituais religiosos era associado à lascívia e ao descontrole15 No mundo industrializado do século XIX o consumo dessas substâncias entre as classes sociais mais pobres e excluídas como os proletários imigrantes e negros foi cada vez mais relacionado às manifestações de raiva e violência que eclodiam de modo explosivo e desordenado em todo mundo desenvolvido daquele período16 33 A proibição do consumo as origens do proibicionismo A proibição do consumo de drogas como estratégia de política pública estava presente de alguma forma em todas as nações no fim do século XIX Nos Estados Unidos porém essa tendência ganhou um corpo teórico e se transformou em um movimento político estruturado 13 escohotAdo Antonio O livro das drogas usos e abusos preconceitos e desafios cit p 245 14 dóriA Rodrigues Os fumadores de maconha efeitos e males do vício In brAsil Serviço Nacional de Educação Sanitária Maconha coletânia de trabalhos brasileiros Rio de Janeiro Ministério da Saúde 1958 p 23 15 Idem p 8 16 musto David F Op cit 165 Maurides de Melo ribeiro O marco do nascimento do Proibicionismo como sistema político se deu no estado de Ohio a partir de uma aliança entre as igrejas locais católica e protestantes Sob o slogan ao badalar dos sinos das igrejas de Ohio os saloons devem partir o movimento pedia o fim do comércio de álcool por julgálo a causa da degradação moral e física que observavam no país A indústria do álcool crescera rapidamente nos Estados Unidos A descoberta da refrigeração e da pasteurização e o aprimoramento nos meios de transporte ampliaram o campo de circulação dessas mercadorias Novos saloons eram abertos a cada instante Para atrair clientes seus donos ofereciam refeições gratuitas contratavam músicos promoviam o jogo brigas de galo e prostituição Tudo isso se mostrou contrário ao espírito puritano que sempre marcou a sociedade estadunidense17 Em 1869 foi fundado o Partido Proibicionista Surgiram diversas sociedades e ligas como a Sociedade NovaIorquina para Supressão do Vício 1868 a Liga das Senhoras Cristãs pela Sobriedade 1873 e as Ligas Antissaloon 1893 Nas universidades entidades como a Federação Científica pela Sobriedade 1879 foram criadas para estudar o problema e suas soluções sob o ponto de vista acadêmico Editoras e jornais dedicados exclusivamente ao tema abriram uma discussão nacional acerca da necessidade de banir o consumo do álcool do país18 331 As primeiras medidas A s primeiras medidas de controle tinham motivação moral e médica A partir do século XX as nações dentro do espírito sanitarista e do estado assistencial passaram a legislar sobre o tema Em 1906 os Estados Unidos aprovaram a Pure Food and Drug Act que exigia o detalhamento da composição dos medicamentos Nesse mesmo ano o hábito de fumar ópio foi proibido no país ficando o uso restrito ao tratamento das doenças19 17 Idem ibidem 18 ribeiro Maurides de Melo ArAúJo Marcelo Ribeiro Política mundial de drogas ilícitas uma reflexão histórica In silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves op cit p 459 19 escohotAdo Antonio Historia general de las drogas cit 166 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Alguns anos mais tarde o Harrison Narcotics Act 1914 determinou que a cocaína e o ópio fossem utilizados apenas com prescrição médica Progressivamente o uso recreativo foi colocado na ilegalidade e o médico tornouse o profissional responsável pela autorização do consumo de psicotrópicos O movimento atingiria seu ápice em 1920 quando o consumo de álcool foi banido dos Estados Unidos após a aprovação da 18ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos ou Volstead Act20 332 A mundialização do proibicionismo À s vésperas da Primeira Guerra Mundial os Estados Unidos já despontavam como uma das grandes potências econômicas e militares do mundo No fim do século XIX o país recebera um grande contingente de imigrantes chineses que introduziram o hábito de fumar ópio no país21 Preocupados com a difusão desse novo modo de consumo os norteamericanos outrora parceiros do Império Britânico no comércio internacional de ópio passaram a fazer campanhas sistemáticas para abolilo A partir de pressões estadunidenses foram realizados em 1906 e 1911 os Encontros de Xangai com o objetivo de suprimir gradualmente o comércio de ópio Em 1912 e 1914 duas Conferências em Haia voltaram a colocar o tema em questão uma vez que as recomendações de Xangai não surtiram os efeitos esperados especialmente a redução do comércio internacional Com o fim da Primeira Guerra Mundial o tema voltou a ser debatido agora dentro da recémfundada Liga das Nações Genebra Durante toda a década de 1920 encontros realizados no âmbito da Liga determinaram e ratificaram a repressão do comércio de ópio e cocaína estabelecendo cotas destinadas ao uso médico e científico e transferindo para os laboratórios a função de sintetizálas e comercializálas Foi dessa forma que a dose que se comprava livremente nas farmácias mudou de qualidade e tornouse remédio A dose excedente foi para o mercado ilegal22 20 musto David F Op cit 21 Idem One hundred years of heroin Westport Auburn House 2001 22 PAssetti Edson Op cit 167 Maurides de Melo ribeiro 34 o recrudescimento da repressão e o surgimento do tráfico internacional A o longo da primeira metade do século XX os Estados passaram a intervir cada vez mais na sociedade visando o controle das substâncias psicoativas Nas primeiras duas décadas as medidas de controle foram eminentemente de natureza médica e comercial A partir dos anos 1930 porém um aparelho de repressão ao comércio e ao consumo de drogas começou a se estruturar Nessa época segundo as palavras de escohotado23 parte do mundo começou a acolher a ideia de que a dieta farmacológica era uma incumbência do Estado Após o fim da proibição do álcool 1932 o governo estadunidense criou o Federal Bureau on Narcotics FBN comandado durante trinta anos por Harry Aslinger O Bureau tinha a função de reprimir o comércio e o consumo de psicotrópicos Os países europeus também organizaram estruturas semelhantes apesar de menos complexas além de mais permissivas quanto ao uso médico de tais substâncias O consumo de drogas como um problema social tendo a proibição e a repressão como estratégias de Estado adicionou um novo ingrediente à questão o comércio ilegal Os Estados Unidos já haviam observado este fenômeno durante os anos de Lei Seca 19201932 o início da atuação em larga escala das máfias italianas a corrupção e a violência foram argumentos que levaram ao fim da proibição do comércio de álcool no país24 No entanto o mesmo começava a acontecer com as outras substâncias 341 As organizações mafiosas A pesar de vencedoras das Guerras do Ópio contra a China as nações ocidentais que comercializavam o ópio no país não quiseram em nenhum momento que o Império Chinês legalizasse o consumo do produto O status ilegal e portanto a clandestinidade do comércio daí decorrente era o que mais lhe agregava valor25 23 escohotAdo Antonio Historia general de las drogas cit 24 Idem ibidem 25 Esse fenômeno econômico é hoje reafirmado por estudiosos da economia das drogas 168 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Nesse período o ópio era vendido livremente nas farmácias e boticas do Ocidente Com o controle médico e a proibição do uso recreativo o feitiço virouse contra o feiticeiro melhor seria dizer contra o inquisidor organizações clandestinas chinesas mais tarde conhecidas como Tríades passaram a capitanear o comércio ilegal de ópio para a Europa e os Estados Unidos Aos poucos o comércio ilegal de drogas se tornou uma fonte de exploração econômica por parte de sociedades secretas seculares de diversos países As máfias italianas Cosa Nostra Camorra e Ndranghetta notabilizaramse nos Estados Unidos pelo tráfico de bebidas alcoólicas e cocaína No Japão a Yakuza surgiu a partir da tradição feudal baseada na lealdade e devoção dos samurais ao chefe do clã com a degradação daquela cultura milenar passou a atuar fortemente no comércio clandestino das substâncias psicotrópicas provenientes do Oriente Nos anos 1970 e 1980 o fomento do consumo mundial de cocaína culminou no surgimento dos cartéis colombianos sendo Cali e Medellín suas expressões mais conhecidas Inicialmente a serviço dos cartéis colombianos a Máfia Nigeriana adquiriu estrutura e função próprias no comércio internacional de drogas Por fim mais recentemente a Máfia Russa organizada por antigos funcionários do regime comunista passou a dominar uma fatia expressiva das ações econômicas do denominado Leste europeu26 Obviamente o narcotráfico é apenas uma das inúmeras atividades ilícitas realizadas por essas organizações em contrapartida há que se ter em conta que se trata de um de seus mais lucrativos negócios Na maior parte das vezes é impossível separálas frequentemente a compra ilegal de armas é paga com cocaína ou heroína cuja venda acaba por custear outras atividades tais como a prostituição a extorsão e a corrupção de autoridades e políticos A fim de possibilitar a entrada desses capitais no mercado formal uma complexa rede financeira formada por bancos e empresas valendo destacar o economista francês Pierre Kopp que é pesquisador do Laboratório de Economia Pública da Sorbonne e tem como linha de pesquisa o estudo dos mercados relacionados a atividades ilícitas e criminosas para quem o aumento da repressão e portanto do risco leva os revendedores a aumentar o preço koPP Pierre A economia da droga Bauru Edusc 1998 p 58 26 Arbex José tognoli Cláudio J O século do crime São Paulo Boitempo 1996 169 Maurides de Melo ribeiro de fachada começou a se organizar adquirindo ultimamente autonomia como ramo de atividade ilícita Em alguns países as máfias assumiram grande influência política e econômica A partir dos anos 1970 e 1980 o narcotráfico se internacionalizou Inicialmente restritas às suas nações ou colônias de imigrantes em outros países as máfias começaram a se associar em verdadeiras joint ventures funcionando de maneira ágil e profissional bem ao gosto do espírito empresarial capitalista transnacional que se inaugurava27 Além disso o novo avanço liberal conhecido por globalização cuja marca principal fora a abolição das fronteiras nacionais para as transações comerciais e fluxos de capitais facilitou a movimentação financeira das máfias e a lavagem do dinheiro sujo em paraísos fiscais No fim dos anos 1980 as máfias se consolidavam como um dos grupos econômicos e políticos mais poderosos do planeta No limiar do século XXI movimentavam anualmente cerca de trezentos bilhões de dólares quase o dobro de toda a riqueza produzida no Brasil28 35 A onu como a nova guardiã da ordem proibicionista A lgumas décadas se passaram desde a institucionalização do proibicionismo como ideologia hegemônica das políticas públicas de drogas pela Liga das Nações como conduta mundial padrão 1920 até a fundação da Organização das Nações Unidas 1945 na cidade de Nova Iorque EUA Nesse ínterim as tensões políticas que culminaram na Segunda Guerra dominaram o cenário mundial ficando a questão das drogas resumida à política interna das nações e a alguns encontros internacionais Quando a ONU retomou o debate o proibicionismo permaneceu figurando como a ideologia predominante e a repressão como a estratégia central de atuação tendo os Estados Unidos a nova potência mundial como seu principal articulador29 Visando o 27 uPrimny Rodrigo Narcotráfico e poder In ribeiro Maurides M seibel Sérgio D Drogas hegemonia do cinismo São Paulo Fundação Memorial da América Latina 1997 p 155 28 Arbex José tognoli Cláudio J op cit 29 modesto Luiz Sérgio ONU fundamentalismo puritano no mercado In ribeiro 170 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA fortalecimento dessa opção a ONU criou em 1946 a Comissão de Narcóticos CND responsável pela formulação de políticas de drogas que contribuíram para o recrudescimento do sistema de controle internacional dessas substâncias30 Por outro lado o crime organizado e suas repercussões sociais e o crescimento dos movimentos sociais de luta pela cidadania também ganhavam espaço significativo dentro do cenário internacional especialmente a partir dos anos 1970 Nesse período a CND organizou a primeira de uma série de três convenções objetivando o estabelecimento de um programa comum para todos os países membros no tocante às políticas de drogas Realizada em Nova Iorque a Convenção Única sobre Estupefacientes 1961 enfatizou a necessidade de estabelecer regras claras para o controle das substâncias psicoativas e a criação de mecanismos internacionais para fiscalizar a sua implementação pelos signatários do acordo31 Dez anos depois a Comissão de Narcóticos CND realizou a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas 1971 na cidade de Viena escolhida como sede permanente da CND e seus órgãos subordinados Além de ratificar a convenção anterior a segunda convenção preocupouse principalmente com a repressão às novas drogas sintéticas como o LSD disseminadas pela contracultura estadunidense durante os anos 1970 Todas essas foram incluídas na Lista 1 de Substâncias Controladas Além disso o International Narcotics Control Board INCB adquiriu status de órgão fiscalizador das convenções entre os países signatários32 A terceira e última das chamadas ConvençõesIrmãs da ONU foi a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas Viena 1988 Além de ratificar as resoluções aprovadas pelos encontros anteriores a terceira convenção preocupouse com o crescimento do crime Maurides M seibel Sérgio D Drogas hegemonia do cinismo São Paulo Fundação Memorial da América Latina 1997 p 9394 30 FAzey csJ The Commission on Narcotic Drugs and the United Nations International Drug Control Programme politics policies and prospect for change Int J Drug Policy v 14 n 2 p 155169 2003 31 beWleytAylor dr Challenging the UN drug control conventions problems and possibilities Int J Drug Policy v 14 n 2 p 171179 2003 32 Idem loc cit 171 Maurides de Melo ribeiro organizado Nesse sentido a convenção chamou os países signatários a adotarem medidas de combate ao tráfico de drogas e à lavagem de dinheiro Além disso os produtos químicos utilizados na obtenção dos princípios ativos das plantas psicoativas os chamados precursores químicos passaram a sofrer forte controle por parte das nações A terceira convenção marca também um novo acirramento da repressão ao usuário de drogas recomendando aos países signatários a adoção da criminalização do porte e uso de drogas33 As ConvençõesIrmãs da ONU estabeleceram o sistema internacional de controle das drogas reafirmando o proibicionismo como a política a ser seguida por todas as nações A primeira recuperou e detalhou as determinações oriundas da Liga das Nações nos anos 1920 A segunda reafirmou o propósito proibicionista perante os movimentos contraculturais dos anos 1970 A terceira confirmou e fortaleceu a estratégia repressiva como instrumento de combate ao crescimento do crime organizado 351 A declaração de guerra às drogas E m 1998 portanto dez anos após a assinatura da última das convençõesirmãs a Assembleia Geral das Nações Unidas realizou uma Sessão Especial Ungass dedicada à discussão da política mundial de drogas Durante a realização da terceira convenção a defesa de políticas mais pragmáticas e livres de qualquer diretriz mundial já ganhava alguma força Dez anos depois a maior parte dos países europeus ocidentais e o Canadá e a Austrália já as aplicavam concretamente e reivindicavam já naquele momento reconhecimento e maior autonomia de ação Contudo sob o inaferível argumento de que os danos causados pela política desenvolvida pela ONU eram menores do que aqueles causados pelo consumo de drogas mesmo considerando apenas as situações de abuso a Ungass ratificou as ConvençõesIrmãs e colocou ao mundo um desafio que na realidade sob a óptica histórica constituise numa quimera erradicar até 2008 a produção e o consumo de drogas ilícitas do planeta 33 Idem loc cit 172 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Sob o lema Um mundo livre de drogas podemos conseguilo34 foram debatidos como pontoschaves do encontro os precursores químicos os derivados anfetamínicos entre eles o ecstasy a cooperação judicial a lavagem de dinheiro a redução de demanda e a eliminação das plantações com desenvolvimento de culturas alternativas Após cinco anos do estabelecimento da meta de erradicação planetária da produção de drogas ilícitas a ONU realizou em 2003 uma sessão intermediária para discutir o andamento do processo Os resultados parciais foram considerados favoráveis e as estratégias rumo a 2008 mantidas35 4 As estratégias de redução de danos N o plano internacional os anos 1990 foram um marco na política mundial sobre drogas que experimentou uma escalada repressiva A partir da adoção de um modelo proibicionista beligerante assistimos ao abandono das concepções garantísticas dos sistemas penal e processual penal em favor do recrudescimento dos mecanismos de controle social que apesar disso representam opção meramente simbólica Essa nova ordem mundial caracterizada por um totalitarismo penal adota como medidas de combate às agora denominadas organizações criminosas internacionais a complacência com abusos quando não a supressão pura e simples de direitos e garantias constitucionais mundialmente consagrados Mas não só o modelo bélicoproibicionista traz em si mesmo a contradição basta que se tenha em mente que embora sua finalidade declarada seja a tutela da saúde pública termina por criar maiores riscos e danos à saúde física e mental das pessoas que apesar da proibição ainda se disponham a consumir aqueles psicotrópicos rotulados como ilícitos 34 united nAtions orgAnizAtion uno General Assembly Twentieth Special Session Ungass online New York UNO 1999 Disponível em httpwwwunorg ga20special 35 united nAtions oFFice on drugs And crime onodc Commission on Narcotic Drugs documents online Vienna UNODC Disponível em httpwwwunodcorg 173 Maurides de Melo ribeiro Esse paradoxo se demonstra por meio da singela constatação de que é a clandestinidade imposta pelo proibicionismo o vetor determinante na vedação de um efetivo controle de qualidade dessas substâncias o que propicia a adulteração e o desconhecimento de sua toxicidade potencializando os fatores de risco e consequentemente o aumento de morbidades e comorbidades eventualmente relacionadas ao uso dessas substâncias Por outro lado toda rede de produção distribuição e comércio será apropriada pelas máfias e se dará no chamado submundo fato que introduzirá novos fatores de risco e vulnerabilidades O incremento de ações violentas por parte das organizações criminosas é talvez a mais visível consequência do proibicionismo e isso se afirma porque os participantes dessas atividades não dispõem evidentemente de instrumentos formais para a solução dos conflitos inerentes a um comércio ilícito e portanto clandestino A falência do proibicionismo como política de saúde pública para a questão das drogas tornase ainda mais evidente quando examinamos a hipótese de a pessoa que se utiliza dessas substâncias desenvolver uma dependência química visto que como consequência dessa possibilidade ocorrerá a quebra das relações familiares laborais e sociais e a exclusão desses indivíduos provocando novos conflitos desencadeadores de violências e outras vulnerabilidades Devese ter em mente que a pessoa que eventualmente desenvolva uma dependência química será naturalmente resistente à busca de qualquer tipo de ajuda principalmente terapêutica em função do estigma que as acompanha aliado ao fato incontornável de que para obter ajuda deverá confessar a prática de um crime Muito embora seja reconhecida sua ineficácia o proibicionismo punitivo não encontrava oposição de peso até que a situação dos usuários de drogas se viu substancialmente agravada com o advento das epidemias de hepatites e principalmente da Aids nos primórdios dos anos 1980 Pesquisas epidemiológicas constataram que em função da clandestinidade na qual se desenvolve a cena de uso dessas substâncias agregavamse inúmeros fatores predisponentes ao aumento da vulnerabilidade desses indivíduos e propícios à difusão da epidemia Verificouse pelas mesmas pesquisas acadêmicas que um dos principais vetores na transmissão do vírus HIV era a prática 174 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA comum entre os UDIs36 de compartilhamento dos instrumentos utilizados para consumo notadamente seringas e agulhas De posse desses dados epidemiológicos os agentes de saúde pública desenvolveram uma nova abordagem para a questão das drogas que foi denominada estratégias de redução de danos A base da nova ação de política de saúde pública é a de que se a pessoa usa drogas que o faça com os menores riscos e danos possíveis diminuindo sua vulnerabilidade aos diversos fatores predisponentes à sua exclusão social e exposição a morbidades e comorbidades decorrentes da precariedade das cenas de uso Como poderíamos esperar diante da hegemonia do proibicionismo a nova abordagem da questão enfrentou ferrenha resistência e causou grandes polêmicas especialmente em função das medidas preconizadas cujo rol numa visão ligeira e não taxativa contempla ações como trocas e desinfecção de seringas e agulhas terapias de substituição heroínametadona crackcannabis cocaínafolha de coca etc locais de uso seguro tendo como perspectiva a adoção de uma política mais humanista em contraposição ao belicismo proibicionista Essas estratégias foram num primeiro momento refutadas e criminalizadas pelas agências penais já que foram compreendidas como modalidades de auxílio incentivo ou apologia ao uso e comércio de substâncias psicoativas etiquetadas de ilícitas Os agentes de saúde sanitaristas e pesquisadores operadores dessas estratégias sofreram uma perseguição típica da Inquisição com prisões e processos empolgados por uma fúria moral que se julgava superada nos albores do século XXI Em função de sua efetividade e fundamentos baseados em critérios cientificamente comprovados as estratégias de redução de danos granjearam reconhecimento internacional alçando ao estatuto de política pública em inúmeros países incluindo o Brasil ainda que a linha ideológica continue sendo alinhada ao proibicionismo punitivo Apesar desse promissor avanço de políticas alternativas e do evidente fracasso do modelo proibicionista belicista por ocasião da última reunião da Comissão sobre Entorpecentes da ONU 36 Sigla utilizada pela saúde pública para designar usuários de drogas injetáveis 175 Maurides de Melo ribeiro CND realizada em Viena em março de 2009 para avaliação das metas estipuladas em 1998 a saber a erradicação ou o expressivo decréscimo da produção distribuição e consumo de drogas ilícitas até o ano de 2008 contrariando as expectativas de mudanças foi mantida a política mundial proibicionista de guerra às drogas agora adiando a meta quixotesca de erradicação para o ano de 2019 Todavia apesar da manutenção de uma malfadada política que produz mais malefícios que o suposto problema que supostamente visa solucionar ficou evidente a quebra da hegemonia mundial na questão das drogas uma vez que nem os Organismos da própria ONU têm uma posição uniformizada nessa temática Exemplo disso são órgãos da relevância da Organização Mundial de Saúde OMS e Unaids que adotaram sem nenhuma tergiversação as estratégias de redução de danos Por outro lado entre os paísesmembros das Nações Unidas ocorreu uma cisão formandose dois blocos um composto de países europeus e latinoamericanos que propugnavam a adoção de políticas alternativas e mais tolerantes a exemplo das estratégias de redução de danos e outro capitaneado pelos EUA em parceria com China e França que até pela força política desse bloco no concerto das nações determinaram a manutenção da war on drugs como política mundial até o ano de 2019 Mas de todas as demonstrações de descrédito no fracassado proibicionismo punitivo merecem destaque as organizações da sociedade civil que pela primeira vez encampam o tema de forma crítica Marco nessa escalada foi a criação da Comissão Global de Políticas de Drogas que agrupou logo após a decepcionante conclusão adotada pela última reunião da Comissão sobre Entorpecentes da ONU CND realizada em 2009 dignitários e personalidades de destaque mundial com o objetivo de promover a discussão em nível internacional sobre os danos causados pelas drogas e os meios para sua efetiva redução com amparo em bases científicas A importância dessa organização pode ser aquilatada com a verificação de que seus associados são exatamente os mesmos gestores que promoveram política mundial de guerra às drogas e que agora num reconhecimento de sua falência proclamam a urgência de sua revisão 176 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Já sabemos pelos exemplos da história que os modelos de controle total nos levam inexoravelmente ao estado de exceção Não podemos nos olvidar da grave advertência de nils christie37 quando aponta que o maior perigo da criminalidade nas sociedades modernas não é o crime em si mesmo mas sim o de que a luta contra este acabe por conduzir tais sociedades ao totalitarismo referências bibliográficas AndrAde Tarcísio Matos de FriedmAn Samuel R Princípios e práticas de redução de danos interfaces e extensão a outros campos da intervenção e do saber In silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves Panorama atual de drogas e dependências São Paulo Atheneu 2006 ArAúJo Marcelo Ribeiro ribeiro Maurides de Melo Política mundial de drogas ilícitas uma reflexão histórica In silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves Panorama atual de drogas e dependências São Paulo Atheneu 2006 Arbex José tognoli Cláudio J O século do crime São Paulo Boitempo 1996 bArreto João de Deus Lacerda Menna Estudo geral da nova lei de tóxicos Rio de Janeiro Freitas Bastos 1988 bAstos Francisco Inácio mesquitA Fábio Estratégias de redução de danos In seibel Sergio Dario toscAno Jr Alfredo Dependência de drogas São Paulo Atheneu 2001 bAtistA Nilo Política criminal com derramamento de sangue Revista Brasileira de Ciências Criminais São Paulo n 20 1997 beWleytAylor dr Challenging the UN drug control conventions problems and possibilities Int J Drug Policy v 14 n 2 p 171179 2003 bobbio Norberto Teoria do ordenamento jurídico 7 ed Brasília UnB 1995 bodstein Regina Cele de A Cidadania e modernidade emergência da questão social na agenda pública online Cadernos de Saúde Pública 1997 v 13 n 2 Disponível em httpwwwscielobr bueno Regina Estratégias de redução de danos em Santos In bAstos Francisco I mesquitA Fábio mArques Luiz Fernando Troca de seringas drogas e Aids ciência debate e saúde pública Brasília Ministério da Saúde 1998 buning Ernst Vinte e cinco anos de redução de danos a experiência de Amsterdã In silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves Panorama atual de drogas e dependências São Paulo Atheneu 2006 cAllegAri André Luís Nova lei de drogas da combinação de leis Lex Tertia fato praticado sob a vigência da Lei 636876 e aplicação da nova lei 1134306 Boletim IBCCRIM São Paulo ano 14 n 170 p 6 jan 2007 cArvAlho Salo A atual política brasileira de drogas os efeitos do processo eleitoral de 1998 Revista Brasileira de Ciências Criminais São Paulo n 34 2001 A política criminal de drogas no Brasil estudo criminológico e dogmático 3 ed reescr ampl e atual Rio de Janeiro Lumen Juris 2006 177 Maurides de Melo ribeiro cAshmAn J LSD São Paulo Perspectiva 19 christie Nils La industria del control del delito la nueva forma del holocausto Buenos Aires Editores del Puerto 1993 del roio José Luiz Mundialização e criminalidade In ribeiro Maurides M seibel Sérgio D Drogas hegemonia do cinismo São Paulo Fundação Memorial da América Latina 1997 diAs João Carlos Pinto Izabel Marins Substâncias psicoativas classificações mecanismos de ação e efeitos sobre o organismo In silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves Panorama atual de drogas e dependências São Paulo Atheneu 2006 diAs Jorge De Figueiredo Questões fundamentais de direito penal revisitadas São Paulo RT 1999 domAnico Andrea Craqueiros e cracados bemvindo ao mundo dos nóias estudo sobre a implementação de estratégias de redução de danos para usuários de crack nos cinco projetospiloto do Brasil 2006 Tese Doutorado Universidade Federal da Bahia Salvador 2006 donedA Denise gAndolFi Denise O início da redução de danos no Brasil na perspectiva governamental ação local com impacto nacional In silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves Panorama atual de drogas e dependências São Paulo Atheneu 2006 dóriA Rodrigues Os fumadores de maconha efeitos e males do vício In BRASIL Serviço Nacional de Educação Sanitária Maconha coletânia de trabalhos brasileiros Rio de Janeiro Ministério da Saúde 1958 engels Friedrich Aditamento ao Livro Terceiro de O capital In mArx Karl O capital Crítica da economia política Livro Terceiro O processo global da produção capitalista Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1974 v 6 escohotAdo Antonio Historia general de las drogas Madrid Alianza Editorial 1995 O livro das drogas usos e abusos preconceitos e desafios São Paulo Dynamis Editorial 1997 FAzey C S J The Commission on Narcotic Drugs and the United Nations International Drug Control Programme politics policies and prospect for change Int J Drug Policy v 14 n 2 p 155169 2003 FrAnco Alberto Silva Crimes hediondos anotações sistemáticas à Lei 807290 4 ed rev atual e ampl São Paulo RT 2000 stocco Rui coords Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial 7 ed São Paulo RT 2001 gomes Luiz Flávio biAnchini Alice cunhA Rogério Sanches oliveirA Willian Terra Nova Lei de Drogas comentada artigo por artigo Lei 113432006 de 23082006 São Paulo RT 2006 gomes Mariângela Gama de Magalhães Notas sobre a inidoneidade constitucional da criminalização do porte e do comércio de drogas In reAle Jr Miguel coord Drogas aspectos penais e criminológicos Rio de Janeiro Forense 2005 gordon R A assustadora história da medicina Rio de Janeiro Ediouro 1995 greco Filho Vicente Tóxicos prevençãorepressão comentários à Lei n 6368 de 21 de outubro de 1976 6 ed rev e ampl São Paulo Saraiva 1989 178 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA guimArães Marcello Ovídio Lopes coord Nova Lei Antidrogas comentada São Paulo Quartier Latin 2007 hAssemer Winfried Três temas de direito penal Porto Alegre Fundação Escola Superior do Ministério Público 1993 hossne Willian Saad Competência do médico In segre Marco cohen Claudio orgs Bioética São Paulo Edusp 1995 houAiss Antonio villAr Mauro De Salles Dicionário Houaiss da língua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001 hulsmAn Louk A política de drogas na Europa Palestra ministrada no auditório do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBCCrim 06 de novembro de 2003 videocassete São Paulo IBCCrim 2003 hungriA Nelson Comentários ao Código Penal Revista Forense Rio de Janeiro v 9 1958 iglésiAs Francisco Assis Sobre o vício da diamba In BRASIL Serviço Nacional de Educação Sanitária Maconha coletânia de trabalhos brasileiros Rio de Janeiro Ministério da Saúde 1958 kArAm Maria Lúcia Aspectos jurídicos In seibel Sergio Dario toscAno Jr Alfredo Dependência de drogas São Paulo Atheneu 2001 De crimes penas e fantasias Niterói Luam Ed 1991 Drogas processo legislativo In ribeiro Maurides M seibel Sérgio D Drogas hegemonia do cinismo São Paulo Fundação Memorial da América Latina 1997 Política de drogas alternativas à repressão penal Revista Brasileira de Ciências Criminais São Paulo n 47 2004 koPP Pierre A economia da droga Bauru Edusc 1998 leAry Timothy Flashbacks LSD a experiência que abalou o sistema São Paulo Brasiliense 1983 mAcrAe Edward simões José Assis Rodas de fumo o uso da maconha entre camadas médias urbanas Salvador Edufba CetadUFBA 2000 mArlAtt G Alan Redução de danos Porto Alegre Artmed 1999 mesquitA Fábio et al Aids entre usuários de drogas injetáveis na região metropolitana de Santos na década de 1990 In A contribuição dos Estudos Multicêntricos frente à epidemia de HIVAids entre UDI no Brasil 10 anos de pesquisa e redução de danos Brasília Ministério da Saúde 2001 Bastos Francisco Inácio Drogas e Aids estratégias de redução de danos São Paulo Hucitec 1994 militello Vicenzo A descriminalização do uso de drogas a experiência italiana In ribeiro Maurides M seibel Sérgio D Drogas hegemonia do cinismo São Paulo Fundação Memorial da América Latina 1997 minAyo Maria Cecília de Souza deslAndes Suely Ferreira A complexidade das relações entre drogas álcool e violência Cadernos de Saúde Pública periódico online 1998 14 1 11 telas Disponível em httpwwwscielosporg modesto Luiz Sérgio ONU fundamentalismo puritano no mercado In ribeiro Maurides M seibel Sérgio D Drogas hegemonia do cinismo São Paulo Fundação Memorial da América Latina 1997 179 Maurides de Melo ribeiro musto David F The American disease origins of narcotic control New York Oxford University Press 1987 PAssetti Edson Das fumeries ao narcotráfico São Paulo Educ 1991 PereirA José Carlos Problema social e problema de Saúde Pública In Temas Imesc sociedade direito saúde São Paulo Imesc 1984 Pertence Sepúlveda Natureza jurídica da posse de drogas para consumo próprio art 28 Lei n 113432006 Boletim IBCCrim São Paulo ano 15 n 175 p 1090 jun 2007 Pires Álvaro P La línea Marginot en el derecho penal la protección contra el crimen versus la protección contra el príncipe Revista Brasileira de Ciências Criminais São Paulo n 46 2004 reAle Jr Miguel coord Drogas aspectos penais e criminológicos Rio de Janeiro Forense 2005 reghelin Elisangela Melo Redução de danos prevenção ou estímulo ao uso indevido de drogas injetáveis São Paulo RT 2002 ribeiro Maurides de Melo Drogas e redução de danos os direitos das pessoas que usam drogas São Paulo Saraiva 2013 Aspectos legais In silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves Panorama atual de drogas e dependências São Paulo Atheneu 2006 Araújo Marcelo Ribeiro Política mundial de drogas Ilícitas uma reflexão histórica In silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves Panorama atual de drogas e dependências São Paulo Atheneu 2006 rodrigues Luciana Boiteux De Figueiredo Controle penal sobre as drogas ilícitas impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade Tese Doutorado Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo São Paulo 2006 ribeiro Maurides de Melo Justiça terapêutica redução de danos ou proibicionismo dissimulado In seibel Jr Sergio Dario Dependência de drogas São Paulo Atheneu 2010 rosen G Uma história da saúde pública São Paulo Unesp 1994 seibel Sergio Dario Dependência de drogas São Paulo Atheneu 2010 shecAirA Sérgio Salomão Criminologia São Paulo RT 2004 sheerer Sebastian Dominação ideológica versus lazer psicotrópico In ribeiro Maurides M seibel Sérgio D Drogas hegemonia do cinismo São Paulo Fundação Memorial da América Latina 1997 silvA Milton Severiano da Se liga O livro das drogas Rio de Janeiro Record 1997 silvA Pablo Rodrigo Alflen da Aspectos críticos do direito penal na sociedade do risco Revista Brasileira de Ciências Criminais São Paulo n 46 2004 silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves Panorama atual de drogas e dependências São Paulo Atheneu 2006 trigueiros Daniela Piconez hAiek Rita de Cássia Estratégias de redução de danos entre usuários de drogas injetáveis In silveirA Dartiu Xavier da moreirA Fernanda Gonçalves Panorama atual de drogas e dependências São Paulo Atheneu 2006 united nAtions oFFice on drugs And crime ONODC Commission on Narcotic Drugs 180 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA documents online Vienna UNODC Disponível em httpwwwunodcorg Treaty and Legal Affairs online Vienna UNODC Disponível em httpwww unodcorg United Nations Organization UNO General Assembly Twentieth Special Session UNGASS online New York UNO 1999 Disponível em httpwwwunorg ga20special uPrimny Rodrigo Narcotráfico e poder In ribeiro Maurides M seibel Sérgio D Drogas hegemonia do cinismo São Paulo Fundação Memorial da América Latina 1997 vester Annette Os programas troca de seringas em Amsterdã In bAstos Francisco I mesquitA Fábio mArques Luiz F Troca de seringas ciência debate e saúde pública Brasília Ministério da Saúde 1998 WodAk Alex Redução de danos e programas de trocas de seringas In bAstos Francisco I mesquitA Fábio mArques Luiz Fernando Troca de seringas drogas e Aids ciência debate e saúde pública Brasília Ministério da Saúde 1998 zAFFAroni Eugenio Raul La legislacion Antidroga latino americana sus componentes de derecho penal autoritario Fascículos de Ciências Penais Porto Alegre n esp Drogas Abordagem Interdisciplinar 1990 breves considerAções sobre A políticA criminAl de drogAs Renato Watanabe de Morais Mestrando pelo Departamento de Direito Penal Medicina Forense e Criminologia da USP Coordenadoradjunto do Laboratório de Ciências Criminais do IBCCRIM Membro permanente da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OABSP Ricardo Savignani Alvares Leite Doutorando do Departamento de Direito Civil Área Direito Romano pela USP Monitor do Curso de Metodologia e Orientação da PósGraduação Lato Sensu da Direito GV GVlaw Sílvio Eduardo Valente Mestrando pelo Departamento de Direito Penal Medicina Forense e Criminologia da USP Médico graduado na Faculdade de Medicina da USP Advogado graduado na Faculdade de Direito da USP sumário 1 Introdução 2 Aspectos médicos e sociais 3 Políticas criminais e medidas legais de combate às drogas no âmbito internacional 182 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 31 Classificação das medidas de combate às drogas na doutrina clássica 32 O histórico das drogas e a política de combate no plano internacional 4 Algumas questões criminológicas 41 Do discurso em torno das drogas 42 O Estado brasileiro e seu cidadãoinimigo 5 Conclusões 6 Referências bibliográficas 1 introdução A política de drogas no Brasil tem se pautado pelo foco no aspecto repressivo seguindo a envelhecida pauta norteamericana da war on drugs reconhecidamente fracassada1 Em que pese o fato de a atual Lei de Drogas a Lei 113432006 ter ensaiado abertura ainda embrionária para uma compreensão do usuário de drogas como digno de cuidados médicos e não de sanções penais tal diploma legal foi muito tímido no sentido de uma real descriminalização do consumo de drogas Além disso a falta de melhor delimitação do conceito de tráfico eivado na lei de flagrante subjetividade gerou grave consequência à estrutura carcerária brasileira traduzida pela multiplicação do volume de presos que abarrotam as prisões nacionais De fato as distorções da atual Lei de Drogas respondem por um incremento de aproximadamente sessenta por cento no número de pessoas presas por tráfico de drogas no Brasil entre 2006 e 20112 Para piorar o preconceito ainda cerca o tema começando pela própria conceituação Ainda que o vocábulo droga possua vários significados para o objeto de estudo deste trabalho interessa sua acepção como substância que modifica o comportamento Assim utilizaremos a conceituação da Organização Mundial de Saúde que define droga como qualquer substância autoingerida que atua no 1 Boletim IBCCRIM Editorial out 2012 p 1 2 sAllA Fernando Jesus Maria Gorete de rochA Thiago Thadeu Relato de uma pesquisa sobre a Lei 113432006 Boletim IBCCRIM out 2012 p 10 183 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente sistema nervoso central provocando alterações de percepção ou função3 Interessa referir entretanto que a palavra droga além de ser designação comum a todas as substâncias ou ingredientes aplicados em tinturaria química ou farmácia também é sinônimo de coisa ruim imprestável e também em alguns locais específicos como na Região Nordeste de diabo4 Estes dois últimos significados per se inserem uma pecha negativa ao termo o que pode distorcer um estudo que se quer isento Tal isenção seria muito bemvinda em um momento crucial para a política de drogas em que se discute não apenas a constitucionalidade do art 28 da Lei 113432006 por meio do Recurso Extraordinário 635659 mas também com reflexos jurídicos mais amplos o acolhimento da proposta de descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal no Anteprojeto de Código Penal5 O escopo deste estudo é perscrutar a questão das drogas sob o viés da busca por uma maior lógica na resposta estatal Dentro desta perspectiva surge como alternativa a redução de danos Esta parece ser modernamente a maneira mais racional e mais coerente com uma ideia de Estado Democrático de Direito de lidar com o problema não só como política pública com efeito benéfico à estrutura penal carcerária mas também com o intuito de apartar o Estado do foco hoje sancionador direcionandoo à sua vocação de provedor de assistência à saúde como prevê a Constituição Para embasar esse axioma neste trabalho serão elencados alguns aspectos médicos e sociais relativos ao consumo de drogas introduzindo o conceito de redução de danos Será também tecido um escorço histórico e de direito comparado atinente ao tema Por fim tendo em vista todo o estudo anterior será realizada uma digressão a respeito do fenômeno repressivo que acomete o cenário brasileiro bem como propor alternativa ao tratamento jurídicopolítico sobre os entorpecentes São três visões diferentes acerca do tema mas que se unem pelo propósito único de buscar uma reação racional e condizente com os Direitos Humanos 3 ribeiro Maurides de Melo Políticas públicas e a questão das drogas o impacto da política de redução de danos na legislação brasileira de drogas Dissertação de mestrado em Direito Penal Medicina Forense e Criminologia Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo 2007 p 14 4 Michaelis moderno dicionário da língua portuguesa Acesso em 13 jun 2013 5 Boletim IBCCRIM Editorial out 2012 p 1 184 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 2 Aspectos médicos e sociais A priori podese pensar em várias formas de classificação das drogas A mais usual dependente das políticas proibicionistas e com maiores reflexos em termos jurídicos é a delimitação entre drogas lícitas e ilícitas Cabe aqui observar que nem sempre a ilicitude de uma droga corresponde ao seu potencial deletério quando comparada a uma droga lícita sendo esta conceituação mera opção do legislador O exemplo mais palpável dessa constatação é a comparação entre álcool e tabaco drogas lícitas com a maconha ilícita Ainda que a cannabis não seja isenta de malefícios6 resta patente para a maior parte dos estudiosos que o potencial danoso do álcool e do tabaco são maiores não só em termos de saúde pública7 mas também em relação ao indivíduo que os consome em excesso8 6 Wills Simon Drugs of abuse 2 ed London Pharmaceutical Press 2005 p 73 Em relação à cannabis o autor elenca efeitos agudos e efeitos do uso a longo prazo Os primeiros incluem ansiedade confusão tontura reações de pânico disforia psicose alucinações inadequação psicomotora ataxia prejuízo do julgamento déficit de atenção dificuldade de aprendizado perda de memória taquicardia palpitações hipotensão postural rubor facial tosse irritação de garganta broncoespasmo em pessoas com bronquite asmática dor abdominal retardo de esvaziamento gástrico náusea vômito boca seca aumento de apetite vermelhidão ocular Os de longo prazo são bronquite câncer de cabeça pescoço e pulmão especialmente se consumida com tabaco oligospermia ginecomastia diminuição de libido em ambos os sexos insônia depressão ansiedade flashbacks inadequação social performance mental deficiente dependência síndrome de abstinência A cannabis também tem uso farmacológico ex antiemético 7 ribeiro Maurides de Melo op cit p 13 Nesse sentido também salientam ribeiro Sidarta mAlcherloPes Renato menezes João R L que as drogas consideradas pouco perigosas como o álcool e o cigarro são usadas em doses maiores do que os canabinoides aumentando sua danosidade e que o potencial oncogênico do tabaco é maior do que o da maconha Drogas e neurociências Boletim IBCCRIM out 2012 p 15 8 Quanto ao álcool cf knight Robert G longmore Barry E Clinical neuropsycology of alcoholism East Sussex Lawrence Erlbaum Associates Publishers 1994 p 14 32 os efeitos adversos físicos incluem hepatite alcoólica esteatose hepática cirrose cardiomiopatia coronariopatia gastrite úlcera gástrica e duodenal sangramento gastrintestinal diarreia pancreatite hipogonadismo perda de libido feminização hipoglicemia descalcificação óssea vários tipos de câncer Neurologicamente níveis crescentes de intoxicação alcoólica levam a falta de atenção e de cuidado capacidade reduzida para manejar máquinas e para dirigir automóveis déficit motor e de fala visão dupla perda de memória beligerância perda de consciência coma No caso do tabaco os efeitos deletérios passam por doenças cardiovasculares variados tipos de câncer doenças pulmonares inflamatórias e funcionais disfunção erétil doenças microcirculatórias alterações de vascularização cerebral acidentes vasculares cerebrais entre outros hAustein KnutOlaf groneberg David Tobacco or health 185 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente Ainda nessa linha as drogas podem ser delineadas em relação ao seu potencial de letalidade Exemplo de droga altamente letal é o crack muito consumido atualmente e cuja danosidade se prende não só aos seus rápidos e intensos efeitos neurológicos e metabólicos mas também ao seu potencial de provocar dependência de forma rápida9 Em contraste a maconha e o álcool são menos letais Ressalvese que há inúmeras exceções a essa regra podendo por exemplo o álcool ingerido em excesso por determinado indivíduo ter um efeito letal e esse mesmo indivíduo não ter problemas com o uso não abusivo de crack Isso porque o efeito individual de uma droga vai além da mera previsibilidade dos estudos farmacológicos restando vinculado a variados condicionantes pessoais genéticos sociais psicológicos e circunstanciais O próprio potencial de causar dependência pode ser uma forma de classificar as drogas separandoas entre as que levam a grande risco de adição crack cocaína heroína médio risco anfetaminas álcool tabaco e benzodiazepínicos e as que têm pouco potencial viciante cannabis ecstasy10 Nesse aspecto é importante não confundir a dependência de drogas com seu uso abusivo A dependência se caracteriza pelo uso compulsivo da substância a partir do qual o organismo obtém uma sensação de bemestar ou pelo contrário a falta da droga produz um intenso malestar A drogadição em regra paulatinamente leva à tolerância à substância11 O uso abusivo por sua vez é relacionado com os efeitos psíquicos das drogas que causam incremento de risco individual e problemas de relacionamento social por conta dos efeitos da substância12 Tanto a dependência como o physiological and social damages caused by tobacco smoking Springer Library of Congress 2010 p 67 e ss 9 Wills Simon op cit p 104 10 ribeiro Sidarta mAlcherloPes Renato menezes João R L op cit 2012 p 15 Nesse diapasão porém com foco na letalidade das drogas inserese a classificação do Parlamento britânico que classifica as drogas nos grupos A com alto potencial lesivo cocaína heroína ecstasy e LSD B com médio potencial anfetaminas barbitúricos e codeína e grupo C com baixo potencial de provocar lesões inclui cannabis benzodiazepínicos e esteroides anabolizantes Drug classification making a hash of it Great Britain Science and Technology Committee 2006 p 96 11 Wills Simon op cit 2005 p 4 12 lArAnJeirA Ronaldo et al Usuários de substâncias psicoativas abordagem diagnóstico e tratamento São Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo Associação Médica Brasileira 2003 p 15 186 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA abuso de drogas são situações distintas daquela do usuário eventual de drogas pois nesse caso o risco é mínimo e não há consequências biopsicossociais Também as drogas podem ser classificadas segundo sua forma de ingestão sendo as mais usuais a injetável as inalatórias com e sem queima e a via oral A via injetável passa por uma evidente diminuição inclusive entre a população carcerária o que tem revertido em diminuição da prevalência de Aids entre os presos13 As drogas inalatórias além de provocarem efeito rápido o que satisfaz os usuários são mais baratas Quanto às drogas orais o principal representante da categoria hoje em nosso meio é a metilenodioximetanfetamina MDMA ou ecstasy muito consumida por usuários de classe média em casas noturnas No que concerne aos efeitos das drogas devemse distinguir os efeitos primários dos efeitos secundários14 Efeitos primários são aqueles referidos acima ou seja os que são produzidos pela droga em si no organismo do usuário ou dependente Quanto aos efeitos secundários que elisangela reghelin relaciona ao seu custo social sempre negativo abarcam várias modalidades O efeito secundário relativo aos consumidores se relaciona ao estigma social que essas pessoas carregam já que a sociedade não os vê com bons olhos Tal situação acaba por alijálos de seu meio social encontrando apoio apenas entre outros usuários Em última análise a persistência dessa rotulação negativa pode nos remeter à teoria criminológica do labelling aproach15 Outro efeito secundário é o atinente ao ambiente social no sentido de as consequências ao usuário serem especialmente desfavoráveis quando estes pertencerem a extratos socioeconômicos mais desfavorecidos Sabese que a maior parte das penas relacionadas às drogas recai sobre pessoas mais pobres 13 vArellA Drauzio Estação Carandiru São Paulo Companhia das Letras 2000 p 130 131 O autor comenta que a prevalência de Aids na população da Casa de Detenção de São Paulo caiu de 173 em 1990 para 72 em 1998 o que coincidiu com o aumento do consumo de crack em detrimento do uso de drogas injetáveis 14 reghelin Elisangela Melo Redução de danos prevenção ou estímulo ao uso indevido de drogas injetáveis São Paulo RT 2002 p 4649 15 shecAirA Sérgio Salomão Criminologia 3 ed São Paulo RT 2011 p 287 e ss 187 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente Em relação à justiça penal reghelin associa o combate repressivo às drogas a evidentes violações de direitos fundamentais com notório desrespeito aos princípios da legalidade idoneidade subsidiariedade proporcionalidade e racionalidade16 Ainda nessa linha consequência secundária marcante da atual política de drogas é o efeito no mercado A repressão faz com que o preço das drogas aumente por conta de sua ilicitude o que não ocorre em países onde o consumo de drogas foi descriminalizado17 Por fim percebese um efeito secundário das drogas ao constatar uma flagrante incompatibilidade entre o sistema repressivo ainda a essência da política atual do combate às drogas e os sistemas alternativos de controle do uso de drogas em particular o sistema terapêuticoassistencial e o sistema educativo18 eis que a repressão por certo afasta os usuários da oferta de assistência médica do Estado Nesse sentido o caminho da redução de danos contrapondose ao sistema repressivo encontra sua vertente ética no atual Código de Ética Médica de 2009 A vigente doutrina éticoprofissional da Medicina contempla a autonomia do paciente certamente seguindo os ventos da codificação consumerista de 2002 ainda que a relação médicopaciente não seja propriamente uma relação de consumo Nesse diapasão importa ressaltar que o pacientecliente é o responsável pela tomada de decisões em face de sua saúde após informado19 e o usuário de drogas visto como objeto de assistência à saúde não deve fugir a essa regra Além de ter como substrato o reconhecimento da autonomia do usuário de drogas como senhor de seus destinos a política de redução de danos parte do reconhecimento de que o consumo dessas 16 reghelin Elisangela Melo op cit 2002 p 4849 17 Idem p 49 18 Idem p 48 19 No processo de tomada de decisões profissionais de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais o médico aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas Código de Ética Médica 2009 capítulo I princípios fundamentais art XXI Também a propósito É vedado ao médico deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bemestar bem como exercer sua autoridade para limitálo Código de Ética Médica 2009 capítulo IV direitos humanos art 24 188 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA substâncias remonta à Antiguidade20 Destarte meras legislações repressivas não terão o condão de acabar com seu consumo o que é escancaradamente comprovado pelos pífios resultados dos países sujeitos a essa modalidade de ordenamento Foi exatamente a compreensão da falência da política repressora considerada cara e ineficaz que abriu caminho para o que hoje conhecemos como redução de danos em termos de política pública Porém o conceito de redução de danos tem sua origem na própria abordagem terapêutica individual dos dependentes de drogas inspirado nas próprias estratégias em face de pacientes crônicos e que acabam por envolver também suas famílias de forma colaborativa21 A redução de danos deve der entendida como estratégia para diminuir os danos à saúde advindos das drogas Com esse escopo podem incluir a administração de drogas de maneira mais segura redução dos danos mudança da quantidade utilizada redução da quantidade ou cessação do uso de uma ou mais drogas redução da prevalência22 Ainda que as medidas terapêuticas de redução de danos tenham como ideal final a ausência de consumo de drogas os métodos utilizados se contrapõem a abordagens terapêuticas mais tradicionais que se baseiam unicamente na abstinência23 Nesse sentido ganharam corpo no método de redução de danos alguns princípios que nortearam sua utilização a saber o fato de ter um viés social no combate aos efeitos negativos das drogas ser preventivo dos danos que podem ser causados pelas drogas e não necessariamente do próprio uso das drogas ter um foco pragmático procurando diminuir os efeitos maléficos das drogas para os consumidores e para suas comunidades24 Historicamente talvez o primeiro relato de uma estratégia de redução de danos remonte ao Relatório Rolleston de 1926 no Reino Unido que visava à reinserção dos usuários na comunidade oferecendolhes com esse objetivo técnicas de administração do 20 ribeiro Maurides de Melo op cit p 16 21 mArlAtt G Alan donovAn Dennis M Prevenção da recaída estratégias de manutenção no tratamento de comportamentos aditivos 2 ed Porto Alegre Artmed 2005 p 140 22 Idem ibidem 23 Idem ibidem 24 reghelin Elisangela Melo op cit p 75 189 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente uso de drogas e assistência médica25 Porém o divisor de águas como promotor dos métodos de redução de danos ocorreu com o surgimento da epidemia da Aids na década de 1980 Uma vez confirmada a possibilidade de transmissão dos vírus da Aids e também da hepatite B por meio de compartilhamento de seringas o que é comum entre usuários de drogas injetáveis as autoridades sanitárias da Holanda a partir de 1984 lançaram um projeto de troca de seringas usadas por novas26 A expertise holandesa foi a ponta de lança para vários programas semelhantes na Europa no Canadá e nos Estados Unidos27 No Brasil a política de redução de danos tomou impulso a partir da constatação de um grande aumento dos casos de Aids na cidade de Santos em fins da década de 1980 Por conta disso em 1989 foi lançado o primeiro programa nacional de redução de danos visando à redução da transmissão de doenças infecciosas por meio de drogas injetáveis28 Infelizmente demolido por forças reacionárias o programa santista lançou a semente para uma política de combate às drogas de cunho inovador avessa a medidas repressoras e focada em resultados práticos É exatamente dessa praticidade que emana a eficácia da política de redução de danos Em interessante quadro comparativo evocado por elisangela reghelin baseada em Alex Wodak notamse marcantes diferenças entre as estratégias redutoras de danos e a tradicional abordagem de redução de oferta29 Em síntese Wodak acentua que a redução de danos tem como objetivo reduzir as consequências negativas do consumo sem olvidar que é inevitável algum nível de consumo na sociedade tratase de política mais flexível não focada em metas exclusivamente de abstinência procura integrar os usuários à sociedade e não apartálos dela leva em conta o custobenefício das intervenções procura envolver as populaçõesalvo nas políticas é aberta à multidisciplinaridade afastandose dos instrumentos 25 ribeiro Maurides de Melo op cit p 5051 26 Idem p 51 27 Idem p 52 28 Idem p 54 29 reghelin Elisangela Melo op cit p 7677 cf WodAk Alex croFts Nick Once more unto the breach controlling hepatitis C in injecting drug users Addiction Journal London v 91 n 2 p 181184 fev 1996 190 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA policialrepressivos enfatiza mecanismos de prevenção reservando procedimentos repressivos apenas para tráfico de grande escala inclui as drogas lícitas como objeto de atenção e por fim evita terminologias preconceituosas ou pejorativas no trato da questão Devese ressaltar que a redução de danos não se atém à questão da transmissão de doenças infecciosas por drogas injetáveis Atualmente as condutas redutoras de danos fazem parte do arsenal médico no tocante ao tratamento do dependente de drogas Isso porque em essência a medicina tem utilizado as terapêuticas substitutivas com o intuito de afastar ou minimizar o uso de drogas mais letais trocandoas por substâncias menos lesivas ou estimulando o usuário a ter maior controle sobre seu uso Exemplos dessas atitudes são as substituições do crack e cocaína pela maconha30 da heroína pela metadona31 e o uso controlado de drogas32 Também os projetos educacionais que visam alertar em casas noturnas os riscos a que os usuários de crack se expõem por exemplo em relação à desidratação aguda são parte integrante dessa política As narcossalas disponíveis em alguns países da Europa em que o usuário dispõe de condições confortáveis e seguras para o consumo caminham nessa corrente33 assim como os clubes de consumo de cannabis em Portugal Todas essas modalidades de abordagem no delicado território do relacionamento com o usuário de drogas têm por certo uma natureza terapêutica Procuram desestimular o consumo de drogas preservando o protagonismo do pacienteusuário ou no mínimo fazer com que o consumo ocorra em um ambiente mais seguro e controlável além de evitar danos maiores como o contágio de doenças transmissíveis Nesse sentido a quebra de paradigma que a redução de danos representa tem como essência um olhar mais humanizado sobre o usuário de drogas seja ele dependente ou não Enxergálo não como um pária mas como um ser humano sujeito às vicissitudes da sociedade moderna e que precisa de apoio Apoiar de forma idêntica o usuário de drogas lícitas e ilícitas uma vez que não há base científica de distinção entre elas sendo a separação mera opção legislativa 30 ribeiro Maurides de Melo op cit p 57 31 reghelin Elisangela Melo op cit p 143147 32 Idem p 147149 33 Idem p 153156 191 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente Vivemos em uma sociedade medicalizada34 e portanto drogada Os membros dessa sociedade consomem álcool e tabaco de forma excessiva mesmo sabendo de seus inúmeros malefícios Utilizam medicamentos betabloqueadores para não aparentar ansiedade em público anorexígenos para emagrecer e anabolizantes para ficarem atraentes Usam medicações para disfunção erétil como o sildenafil às vezes sem necessidade35 apenas para fins recreativos Seus filhos se não têm bom desempenho escolar e demonstram comportamento agitado são rotulados como hiperativos e se tornam dependentes de anfetamínicos como a ritalina Enriquecem as economias da indústria farmacêutica consumindo hipnóticos para conciliar o sono e utilizam antidepressivos para ter um falso sabor de felicidade na árdua vida cotidiana Essa mesma sociedade usuária do rol de drogas lícitas acima elencadas hipocritamente demoniza os que utilizam as drogas consideradas ilícitas atentando contra a dignidade dessas pessoas 3 políticas criminais e medidas legais de combate às drogas no âmbito internacional 31 classificação das medidas de combate às drogas na doutrina clássica D e maneira geral tanto no âmbito nacional quanto no internacional a doutrina apresenta uma classificação básica das medidas de combate ao uso de drogas ou como se costumava denominar na literatura especializada à narcomania Importante esclarecer antes de tudo que as referidas medidas visam os dois polos da relação isto é o traficante e o consumidor de drogas Sendo assim as medidas podem ser classificadas como preventivas terapêuticas e repressivas36 34 Nesse sentido no âmbito da saúde feminina conrAd Peter The medicalization of society on the transformation of human conditions into treatable disorders Baltimore The Johns Hopkins University Press 2007 p 11 E na área de saúde mental Antunes Eleonora Haddad et al Psiquiatria loucura e arte fragmentos da história brasileira São Paulo Edusp 2002 p 85 35 loe Meika The rise of the Viagra how the little blue pill changed sex in America New York New York University Press 2004 p 26 36 greco Filho Vicente Tóxicos prevenção repressão 10 ed São Paulo Saraiva 1995 p 25 192 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA As medidas preventivas37 são aquelas que se destinam a evitar o uso de drogas Segundo a doutrina deveriam elas ser consideradas as mais importantes porque se referem ao momento anterior à implantação do vício Quando destinadas ao usuário de entorpecentes tais medidas podem ser de caráter educacional ou seja voltadas à conscientização da população sobre os males do vício ou de caráter social isto é focadas na alteração ou eliminação das condições sociais e econômicas que estimulam o consumo de drogas Ainda sobre as medidas de prevenção no que tange ao consumidor sempre houve na doutrina grande divergência sobre a conveniência e utilidade do recurso às propagandas educativas contra o consumo de drogas Além das críticas que podem ser feitas acerca da efetividade desse instrumento midiático nunca ficou claro se as campanhas educativas esclarecedoras realmente informavam a população sobre as drogas e os seus efeitos ou se visavam apenas à criação de um pânico desinformado Além disso a propaganda dependendo de como é elaborada pode tanto desestimular quanto despertar o interesse da audiência Condições sociais e econômicas precárias sempre foram vistas pela doutrina como causas principais da disseminação do consumo de drogas A alteração dessas condições porém é algo de difícil realização isto é exige medidas cujos resultados só poderiam ser observados em longo prazo Do ponto de vista do fornecedor as medidas preventivas segundo a doutrina clássica consistiriam no controle da produção e distribuição de substâncias que causam dependência física ou psíquica Tais medidas nesse caso envolvem o controle tanto das importações quanto da produção de entorpecentes A eficiente fiscalização dessas duas atividades teria por finalidade garantir que apenas as quantidades necessárias para fins terapêuticos específicos fossem comercializadas no país As medidas terapêuticas38 por sua vez são aquelas que se destinam a tratar os usuários cujo consumo já pode ser classificado como vício pois não mais se encontra sob controle Nesse caso são distinguidas as medidas terapêuticas particularizadas e as gerais 37 Idem p 2530 38 Idem p 3032 193 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente As primeiras são aquelas determinadas por um médico tendo em consideração as particularidades do dependente físico ou psíquico e as características específicas do tipo de droga utilizada e o grau do vício Nesse caso além da superação da crise de abstinência é necessária a busca pelas causas primárias que levaram ao vício normalmente de caráter interno como conflitos de natureza social e psicológica Para tanto é comum a indicação de um acompanhamento psicoterapêutico adequado a cada caso de dependência Porém tal medida traz à luz a problemática do tratamento compulsório tão debatida na atualidade A Organização Mundial da Saúde OMS visando a uma melhor regulamentação dessa medida extrema por ela considerada importante e necessária em alguns casos estabelece limites a ela tendo em vista tratarse de uma forma de coação No quarto princípio do documento Principles of Drug Dependence Treatment publicado em 2008 pelo United Nations Office on Drugs and Crime UNODC assim como os tratamentos médicos em geral o tratamento dos dependentes de drogas seja ele psicoterapêutico ou farmacológico não deve em regra ser forçado a não ser que a situação específica do dependente gere altos riscos a si mesmo ou a terceiros Nesse caso e apenas nessas situações excepcionais o tratamento compulsório pode ser determinado desde que submetido a determinadas condições e um período de tempo previsto em lei As medidas terapêuticas gerais por outro lado apesar de também visarem à reabilitação dos dependentes químicos não levam em consideração as particularidades de cada um e sim têm por objetivo estimular os indivíduos acometidos pelo vício desconhecidos ou ainda não descobertos a procurarem um tratamento Sendo assim incluise no âmbito dessas medidas a criação de estabelecimentos especializados de tratamento ambulatorial internação orientação psicológica entre outros apoios genéricos àqueles dependentes que queiram ajuda para vencer o vício Por fim as medidas repressivas39 são aquelas que têm por fim a punição dos responsáveis pela comercialização ilegal de substâncias que geram dependência física ou psíquica Tratase nesse caso da reação estatal à produção e comercialização de drogas a qual pode ser de natureza penal quando a conduta do agente é tipificada 39 Idem p 3233 194 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA como crime e sancionada com uma pena criminal ou de natureza administrativa quando a conduta do agente consiste em um desvio de autorização relativa à produção manuseio ou distribuição de certas substâncias controladas sendo sancionada com penas de caráter administrativo como por exemplo a cassação da autorização para tais atos 32 o histórico das drogas e a política de combate no plano internacional O uso de substâncias entorpecentes remonta aos primórdios da civilização humana O conhecimento das propriedades medicinais dessas substâncias assim como a capacidade de elas gerarem efeitos alucinógenos muitas vezes vinculados a experiências religiosas pôde ser observado já nas primeiras comunidades humanas Porém apesar desse conhecimento antigo das propriedades das substâncias alucinógenas o seu consumo abusivo já era observado desde o passado mais remoto40 Nas civilizações que antecedem a era cristã são muitos os exemplos de utilização de substâncias alucinógenas Na Grécia e na Ásia Menor por exemplo são diversos os relatos de uso do ópio De fato foram descobertos bottons de barro e de marfim provavelmente do século VII aC em escavações arqueológicas na ilha de Samos cujos formatos são de cápsulas de papoula Em diversos mitos gregos por sua vez é relatado o uso do ópio ou de substâncias opioides o que indica que esta civilização já conhecia as suas propriedades sedativas e hipnóticas Hipócrates por exemplo receitava mecônio uma espécie de suco de papoula aos seus pacientes como narcótico como purgativo ou para a cura da leucorreia Em Roma o ópio também conhecido pela denominação lacrima papaveris também se tornou muito comum na sociedade tanto que nos anos finais do Império assim como já havia ocorrido na Grécia a imagem de uma papoula passou a ser cunhada em uma das faces das moedas em curso Na literatura latina Plínio o Velho e Virgílio já narravam o efeito hipnótico da semente da papoula Médico romano do século 40 gonzAgA João Bernardino Entorpecentes aspectos criminológicos e jurídicopenais São Paulo Max Limonad 1963 p 9 greco Filho Vicente op cit p 35 195 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente I dC Celso prescrevia o uso do ópio como analgésico Galeno médico romano do século II dC também foi um grande entusiasta da substância mas desde logo reconheceu o perigo do uso excessivo tendo em vista o caso de um de seus ilustres pacientes o Imperador Antonino o qual se tornou dependente desse droga41 Essa substância proveniente da papoula não só teve sua utilização disseminada por grande parte das civilizações asiáticas principalmente a China como também alcançou nelas uma importância social e cultural de grande magnitude Após a Inquisição o consumo do ópio tornouse igualmente comum na Europa principalmente entre os membros das monarquias e os artistas em geral como os escritores os pintores entre outros Devido a razões políticas envolvendo conflitos como a Guerra do Ópio entre os países do Oriente e do Ocidente principalmente China Portugal e Inglaterra a exportação do ópio foi proibida já em 1729 pelo Imperador YungCheng mas tal medida não logrou sucesso efetivo42 Em Roma por sua vez além de a utilização de tais substâncias ser uma realidade na vida social passou também a ser uma questão jurídica isto é o direito passou a regular o seu uso Originalmente a utilização de substâncias alucinógenas só era permitida por determinados membros da sociedade no período arcaico e clássico apenas pelos sacerdotes e no período pósclássico pelos imperadores também Além disso à população era permitido o consumo de tais substâncias em determinados momentos do ano normalmente durante festas e comemorações que envolviam rituais religiosos Com o avanço do conhecimento dos efeitos das substâncias psicotrópicas e o refinamento das técnicas alquímicas de misturas de substâncias logo à utilização medicinal e religiosa somouse o seu uso criminoso e maléfico à saúde humana43 Por 41 Sobre essas informações relativas ao uso do ópio e das substâncias opioides nas civilizações antigas e também sobre um breve relato da história do ópio ao longo da história até os dias atuais conferir duArte Danilo Freire Uma breve história do ópio e dos opióides Revista Brasileira de Anestesiologia Rio de Janeiro v 55 n 1 p 135 146 janfev 2005 42 silveirA Renato de Mello Jorge op cit p 27 gonzAgA João Bernardino op cit p 9 43 mommsen Theodor Römisches Strafrecht Leipzig Duncker Humblot 1899 p 635 637 196 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA isso tornouse necessária a punição dos homicídios causados por envenenamento que nada mais é do que o ato de ministrar intencionalmente determinada substância naturalmente danosa à saúde humana ou em uma quantidade que se torna letal Além dessa previsão de caráter penal sancionada pela lex Cornelia de sicaris et veneficiis44 é importante observar que já no âmbito civil a jurisprudência clássica previa consequências jurídicas aos médicos que ministrassem indevidamente substâncias com fins medicinais levando à morte de seus pacientes ainda que sem a intenção de matar45 Já na era cristã entre os árabes o consumo de drogas também se tornou algo disseminado Isso se justificou principalmente devido ao Alcorão pois apesar de vedar expressamente o consumo de bebidas alcoólicas aos muçulmanos não se pronunciava sobre a utilização de outras substâncias Passouse então a interpretar essa omissão como permissão implícita do consumo das substâncias inebriantes e psicotrópicas desde que não alcoólicas Entre os povos da América précolombiana a utilização de substâncias alucinógenas e inebriantes também era algo comum O hábito de mascar folhas de coca por exemplo remonta a tempos que antecedem a própria fundação da civilização Inca tendo nessa sociedade se arraigado de tal maneira que devido à grande proximidade entre a magia a religião e a farmácia atingiu uma 44 bruns Karl Georg mommsen Theodor grAdenWitz Otto Fontes iuris romani leges et negotia v 1 7 ed Tübingen Mohr 1909 p 92 45 Por exemplo os seguintes fragmentos do Digesto Gai 7 ad ed provinc D 9 2 8 pr Idem iuris est si medicamento perperam usus fuerit Sed et qui bene secuerit et dereliquit curationem securus non erit sed culpae reus intellegitur Gaio no livro sétimo da obra Comentários ao Edito Provincial D 9 2 8 pr O direito é o mesmo compete ou a ação de locação ou a ação da lex Aquilia se o medicamento tiver sido incorretamente usado Mas também quem tiver operado bem mas abandona a cura não será isento de responsabilidade mas sim considerase réu de culpa Ulp 5 opin D 50 13 3 Si medicus cui curandos suos oculos qui eis laborabat commiserat periculum amittendorum eorum per adversa medicamenta inferendo compulit ut ei possessiones suas contra fidem bonam aeger venderet civile factum praeses provinciae coerceat remque restitui iubeat Ulpiano no livro quinto da obra Das Opiniões D 50 13 3 Se o médico a quem tinha contratado para curar os seus olhos quem deles padecia levando ao perigo de perdêlos por causa da administração de medicamentos incorretos compeliu o doente para que lhe vendesse contra a boafé as suas posses reprima o fato o presidente da província e ordene que seja restituída a coisa 197 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente posição de importância e necessidade social que não pôde ser afastada apesar de todos os esforços empregados pelos colonizadores espanhóis De fato no sítio arqueológico de Huaca Pietro no norte do Peru folhas de coca foram achadas em tumbas datadas de 2500 a 1800 aC A utilização de tais folhas pelas populações locais era tão disseminada e comum que no ano de 1499 Américo Vespúcio já havia reconhecido tal prática social46 Por volta de três séculos após a descoberta da coca pelos colonizadores europeus esse produto passou a ter notoriedade na Europa porém sob outra forma Inicialmente sob um ponto de vista positivo a coca foi objeto de estudo como substância medicamentosa por Lamarck que constatou seus efeitos positivos à saúde humana Ainda sob essa perspectiva positiva o químico corso Angelo Mariani criou e passou a comercializar um vinho produzido com base na coca que passou a ser denominado elixir Mariani Seu consumo foi disseminado em toda a Europa atingindo inclusive as altas camadas econômicas políticas e culturais da sociedade como por exemplo Júlio Verne Henrik Ibsen Émile Zola Alexandre Dumas Arthur Conan Doyle Auguste Rodin Thomas Edison Robert Louis Stevenson a Rainha Vitória e os Papas Pio X e Leão XIII Entre 1858 e 1860 porém Albert Niemann realizou a primeira purificação da coca criando a substância que hoje se conhece com a denominação cocaína Essa substância assim como originalmente a folha de coca passou também a ser utilizada como componente de uma série de medicamentos elixires e xaropes47 Ainda que como demonstrado acima a manipulação o consumo e a comercialização de substâncias entorpecentes remontem a épocas imemoriais da humanidade o abuso na utilização o vício e o tráfico de drogas tornaramse um problema de caráter internacional principalmente a partir do fim do século XIX O efeito do consumo das drogas na Europa e nos Estados Unidos foi o principal fator para o agravamento das medidas repressivas referentes tanto ao comércio quanto ao consumo das substâncias entorpecentes Além disso a 46 gonzAgA João Bernardino op cit p 9 silveirA Renato de Mello Jorge op cit p 2627 47 silveirA Renato de Mello Jorge op cit p 27 Para mais detalhes sobre o elixir Mariani conferir kArch Steven B A Brief History of Cocaine 2 ed Boca Raton Taylor Francis 2006 p 3142 198 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA equivocada terapêutica o progresso nos meios de comunicação e transporte a elaboração de obras literárias e científicas acerca dessa temática entre outros elementos levaram ao incentivo e à disseminação de atitudes negativas relativas ao uso de diversas substâncias que há milênios já existiam nas diversas sociedades humanas48 O tráfico ilegal de entorpecentes por sua vez é apontado pela doutrina como resultado de dois fatores primordiais que caracterizariam o século XX quais sejam a era de extremos e a sociedade de risco De fato foi durante esse século que a proibição das drogas adquiriu caráter prevalentemente jurídicopenal49 Essa atitude criminalizadora porém não seguiu o paradigma do direito penal mínimo pois ao longo do século ao contrário de a proibição se restringir a apenas algumas substâncias e comportamentos ela passou a abarcar até as tradições culturais e religiosas mais antigas e que não representavam nenhuma espécie de perigo à sociedade como é o caso da cultura de mascar a folha da coca ou de consumir o chá de Santo Daime em rituais indígenas Em suma de uma antiga aceitação passouse ao controle da utilização e ao final a uma posterior proibição quase completa do consumo e comércio de substâncias alteradoras do comportamento50 As primeiras iniciativas internacionais voltadas ao combate ao consumo e tráfico ilegal de entorpecentes remontam ao início do século XX Ainda muito tímido esse movimento teve grande impulso após a Primeira Guerra Mundial 1914 Esse período foi pautado 48 gonzAgA João Bernardino op cit p 910 49 Falase num caráter prevalentemente jurídicopenal pois como visto acima já na Roma antiga foram tomadas medidas de repressão penal e civil à utilização de substâncias medicamentosas e entorpecentes de forma incorreta ou com finalidade dolosa contra a vida Além disso para citar apenas um exemplo nas Ordenações Filipinas em seu Livro V Título LXXXIX Que ninguem tenha em sua caza rosalgar nem o venda nem outro material venenoso já se previa Nenhuma pessoa tenha em sua caza para vender rosalgar branco nem vermelho nem amarello nem solimão nem agua delle nem escamonéa nem opio salvo se fôr Boticario examinado e que tenha licença para ter Botica e usar do Officio E qualquer outra pessoa que tiver em sua caza alguma das ditas cousas para vender perca toda sua fazenda a metade para nossa Camera e a outra para quem o acusar e seja degradado para Africa até nossa mercé E a mesma pena terá quem as ditas cousas trouxer de fóra e as vender a pessoas que não forem Boticarios 50 silveirA Renato de Mello Jorge op cit p 28 199 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente no que tange à questão das drogas por um aumento exponencial na utilização e consequentemente na comercialização de substâncias entorpecentes As principais razões para esse fenômeno são a fuga por parte da grande maioria da população do sofrimento gerado pelos efeitos da guerra tais como a miséria a fome e a dor física e psíquica por meio do recurso a substâncias que alteram a consciência e aliviam a dor o relaxamento das forças morais e do controle interno e internacional o aumento das movimentações e migrações militares e civis entre as nações principalmente as europeias51 A resposta dos países em âmbito internacional ao aumento do tráfico e do consumo de substâncias entorpecentes foi a realização de nove conferências quais sejam a de Xangai em 1909 as de Haia em 1912 1913 e 1914 as de Genebra em 1925 duas 1931 e 1936 e a de Bangcoc em 1931 O principal objetivo dessas conferências internacionais era a busca de soluções para o tráfico ilegal de drogas Além disso nesse mesmo período foram criados no seio da Sociedade das Nações e com base no art 23 c do Pacto que a constituiu órgãos com essa mesma finalidade entre os quais se destaca a Comissão Consultiva do Ópio e de Outras Drogas Nocivas52 Apesar dessa grande mobilização internacional os resultados práticos almejados pelos países não foram alcançados com êxito O comércio ilegal e a superprodução de drogas ao contrário do objetivado foi o que se pôde observar nos anos que se seguiram O fracasso das convenções foi então atribuído ao fato de elas não enfrentarem a raiz do problema isto é por apenas determinar o controle da produção e comercialização de substâncias sem indicar instrumentos e mecanismos para essa limitação proposta53 O período posterior à Primeira Guerra Mundial porém não se caracterizou por um clima de paz união e harmonia entre as nações e sim de crise de nacionalismo Na realidade a prevalência dos interesses pessoais das nações não só se refletiu no fracasso das medidas previstas nas convenções como também nas próprias falhas e restrições que puderam ser observadas nelas como por exemplo a 51 gonzAgA João Bernardino op cit p 1011 52 Idem p 35 53 Idem p 1516 200 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA ausência de participação dos países produtores principais de matérias primas entorpecentes Por trás de uma falsa atmosfera de cooperação e diálogo o que existia na prática era a oposição muitas vezes camuflada dos países que por serem grandes centros manufatureiros de substâncias entorpecentes produtores de matériasprimas ou líderes no comércio de drogas lucravam muito com o tráfico ilegal internacional Por um lado as drogas representavam uma importante fonte de renda para países do Extremo Oriente e da América do Sul por outro lado elas apareciam como um eficaz instrumento de dominação imperialista das grandes potências sobre suas colônias54 Os mecanismos legais de reprimenda ao consumo e à comercialização de drogas atingiram um nível ainda maior a partir do crescimento do movimento de contracultura hippie dos anos 1960 Nesse momento histórico ficou clara a divisão entre as camadas conservadoras da sociedade defensoras dos valores e do estilo de vida tradicionais e os grupos jovens que defendiam o rompimento com a cultura vigente expressa nos novos hábitos roupas gostos musicais e artísticos entre outros A essa nova configuração social foi somado o aumento do poder dos entorpecentes com a criação das novas drogas sintéticas as quais geravam efeitos mais intensos nos seus consumidores55 Nesse novo momento histórico não mais o boicote da aplicação efetiva das normas internacionais e o acobertamento dos interesses políticos e financeiros e sim o combate às drogas passou a ser expressão clara do domínio imperialista das potências do primeiro mundo sobre as nações subdesenvolvidas e em desenvolvimento De fato sob o pretexto de uma luta internacional ou guerra contra as drogas diversos países principalmente da América Central e do Sul sofreram fortes intervenções dos Estados Unidos da América Esse nível de influência internacional diferentemente daquela que houve outrora por exemplo a citada Guerra do Ópio a partir da década de 60 do século XX atinge grau muito elevado Segundo a doutrina isso é resultado da produção social de riscos típica da modernidade e resultante da atual produção social de riqueza Nessa nova configuração atinge e modifica o Direito Penal na medida 54 Idem p 1720 55 silveirA Renato de Mello Jorge op cit p 2829 201 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente em que passa a ser defendida a tutela penal antecipada dos riscos típicos da nova configuração social Sendo assim as drogas passam a ser mais ampla e severamente combatidas pois constituiriam um risco até então visto como incontestável como um verdadeiro fator criminógeno e uma má conduta social não sendo prudente esperar os eventuais danos para coibir o seu uso e a sua comercialização56 Nesse diapasão é que foi elaborada em 1961 a Convenção Única sobre Entorpecentes no âmbito das Nações Unidas Todo o seu conteúdo foi entregue à tutela da Comissão de Entorpecentes do Conselho Econômico e Social da ONU e ao Órgão Internacional de Fiscalização de Entorpecentes É atribuída a essa convenção a atual e predominante linha repressiva em matéria de drogas no mundo a qual já se provou fracassada na busca de seus objetivos57 O principal órgão que na prática possui um papel na aplicação dessa linha repressiva de combate ao tráfico de entorpecentes é a Organização Internacional de Polícia Criminal Interpol criada em Viena em 1923 no Congresso Internacional de Polícia Apesar de não ser uma organização intergovernamental ou estatal é o resultado da cooperação internacional dos inúmeros órgãos policiais nacionais prestando como as polícias dos diversos Estados essencial serviço público A sua participação na estrutura da ONU é fruto de interpretação do art 35 da Convenção Única sobre Entorpecentes pois o seu nome não é expressamente mencionado nesse documento internacional58 A Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961 havia consagrado uma ideia até então predominante na sociedade internacional qual seja a de que o combate ao consumo e ao tráfico de entorpecentes tinha como fundamento a proteção do bem jurídico saúde pública Porém em 1984 a Organização das Nações Unidas emitiu uma Declaração sobre a luta contra o narcotráfico e o uso indevido de drogas a qual em seu preâmbulo altera o entendimento consagrado no documento anterior Nessa declaração da década de 1980 os bens jurídicos protegidos com o combate à comercialização e uso indevido de narcóticos passam a ser dois o bemestar físico e 56 gonzAgA João Bernardino op cit p 2931 57 greco Filho Vicente op cit p 3637 gonzAgA João Bernardino op cit p 2224 58 greco Filho Vicente op cit p 3840 202 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA moral e o desenvolvimento da juventude O que se observa portanto na mudança mencionada é na realidade uma ampliação do âmbito de proteção isto é não mais se deseja abarcar a saúde pública em seu sentido tradicional e sim em seu sentido lato isto é de bem estar e segurança da coletividade as quais são colocadas em risco pelas drogas na medida em que estas são entendidas como um fator criminógeno59 Essa forma de combate às drogas adotado em âmbito internacional porém mostrouse já no fim dos anos 1980 um enorme fracasso no atingimento de seus objetivos De fato a produção e o consumo de entorpecentes só aumentaram no mundo até a década de 80 e 90 do século XX O mencionado fracasso da política criminal internacional de combate às drogas possui diversas razões entre as quais duas são as mais apontadas pela doutrina A primeira consiste na adoção incorreta da política de substituição que nada mais é do que a diminuição do cultivo de entorpecentes mediante o incentivo à produção de outros insumos Como observado em diversas nações sulamericanas e asiáticas a exportação de insumos naturais essenciais para a produção de substâncias entorpecentes é uma das principais fontes de renda A proibição interna de tal cultivo porém acaba apenas por aumentar a lucratividade da atividade e o valor dos insumos ilegais Sendo assim tornase difícil oferecer uma atividade econômica alternativa aos produtores cujos lucros se igualem ou superem aos das matérias primas dos principais entorpecentes da atualidade60 A segunda razão por sua vez diz respeito às falhas no sistema de repressão policial e militar Em primeiro lugar na maior parte dos casos experimentase uma situação de legalidade sem legitimidade isto é existem leis que proíbem o consumo e o tráfico de entorpecentes mas na prática a maior parte da sociedade muitas vezes até dos efetivos policiais e militares reconhece a importância econômica dessas atividades sem as quais a maior parte da população de certos países como por exemplo da Colômbia se veria sem meios de subsistência Em suma a existência de mercados paralelos informais somada à tolerância das autoridades confere 59 silveirA Renato de Mello Jorge op cit p 3435 60 Ambos Kai Control de drogas política y legislación en América Latina EEUU y Europa eficacia y alternativas Bogotá Gustavo Ibañez 1998 p 135139 203 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente à ilegalidade certa legitimidade Em segundo lugar há a extrema corrupção por parte dos agentes públicos que deveriam fiscalizar e punir as condutas ilegais relacionadas às drogas De fato em muitas situações o Estado se torna um observador passivo principalmente pelas razões acima apresentadas Em terceiro existem ainda os problemas organizacionais e operativos Em muitos Estados a falta de cooperação real entre os órgãos oficiais e excessiva politização desses a sobrecarga de trabalho e a falta de motivação por exemplo os baixos salários e de formação todos esses fatores tornam o combate às condutas ilícitas relativas aos entorpecentes um verdadeiro fracasso Em quarto e último lugar temse a política ambivalente dos países consumidores os quais exigem um combate à produção e ao tráfico de drogas nos países da América do Sul e Ásia mas dentro de seus próprios territórios não conseguem conter o consumo das drogas ilegais61 Como visto o entendimento tradicional de cunho penalista repressor permaneceu inalterado até o fim da década de 1980 e início dos anos 1990 O primeiro indicador de mudança ocorreu em 1989 quando penalistas espanhóis em Málaga manifestaramse de forma veemente pela alteração da política até então adotada em âmbito internacional de combate às drogas defendendo em substituição à denominada alternativa despenalizadora A mesma bandeira contra a proibição foi defendida poucos meses depois em Roma na Resolução Política do Congresso Fundacional da Liga Internacional Antiproibicionista e no ano seguinte no Manifesto de Frankfurt62 Apesar dessa mudança de posicionamento no âmbito da doutrina penalista internacional os organismos internacionais permaneceram adotando os antigos ideais penalizador e repressivopenal A necessidade de mudança dos objetivos e métodos das políticas de combate às drogas já havia sido expressa em 1989 na Declaração do Conselho de Ministros da Saúde da União Europeia Nesse documento foi proposta a substituição da meta do abandono total do consumo de drogas assim como da utilização de meios como a configuração das situações de traficância e consumo de entorpecentes como crimes de perigo abstrato direito penal do inimigo em presunção absoluta 61 Idem p 139154 62 silveirA Renato de Mello Jorge op cit p 3536 204 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA iuris et de iure e com antecipação da tutela penal por objetivos intermediários tais como diminuição da mortalidade combate aos métodos de consumo que causam risco de infecção pelo vírus HIV redução da marginalidade etc Por meio da adoção de uma teoria neoliberal do crime o objetivo passa a ser não o da eliminação do consumo de drogas e sim da redução e gestão dos riscos gerados por esse consumo Sendo assim a política criminal relativa ao tema das drogas deve seguir uma vertente utilitária qual seja implantação de uma política de desenvolvimento alternativo efetiva com investimentos em infraestrutura na qualidade da produção legal oferecimento de créditos rurais etc redução de riscos que beneficie o maior número de pessoas possível focando a solução penal apenas nos casos de tráfico ilegal de drogas e de comercialização de entorpecentes como forma de financiamento de atividades criminosas isto é promoção do uso tradicional por exemplo da coca nos países andinos descriminalização e legalização controlada da posse consumo e pequeno tráfico e atuação do direito penal apenas nos casos de tráfico ilegal e de presença do crime organizado63 Além disso a essas medidas deve ser somada ainda a oferta de tratamento aos dependentes químicos a denominada justiça terapêutica Esses temas porém por merecerem maior aprofundamento teórico serão mais bem aprofundados nos capítulos seguintes 4 Algumas questões criminológicas 41 do discurso em torno das drogas C omo já abordado neste trabalho a Organização Mundial da Saúde possui uma definição muito abstrata sobre o que seria droga Não são poucas as substâncias que podem ser encaixadas na ideia de droga caso seja levada à risca a descrição concebida pelo órgão Também como já visto aqui as drogas sempre se fizeram presentes na maioria se não em todas as formas de organização social do ser humano Independentemente da simbologia que os entorpecentes possuíam em cada civilização é correto afirmar que 63 silveirA Renato de Mello Jorge op cit p 35 Ambos Kai op cit p 154165 205 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente o uso de qualquer substância com o intuito de provocar diferentes sensações e reações é algo inerente ao próprio ser humano Observada esta constatação natural concluir que se está diante de um tema que gera grande curiosidade e portanto alta popularidade Esse fator somado à imprecisão conceitual alimentada pelos órgãos internacionais acaba por produzir uma grande quantidade de informações distorcidas e conclusões vagas contribuindo mais para a confusão entre as pessoas do que de fato ao esclarecimento sobre as drogas Assim sendo ressalta rosa del olmo tornase impossível distinguir o que é a exposição de um fato da opinião advinda de um interlocutor e dos sentimentos daqueles que estão envolvidos nesta questão Dentro das discussões acerca de políticas criminais a temática da droga é o mais simbólico bode expiatório64 A confusão tende a aumentar quando outras substâncias que possuem o mesmo ou até maior grau de nocividade não são inclusas no enquadramento de droga O exemplo mais evidente é o álcool que apesar de todos os seus efeitos deletérios tem seu consumo estimulado e encorajado Dessa forma como já aludido mais relevante que a tentativa de definir o que viria a ser droga é o estudo que recai sobre o discurso que se busca construir em seu redor Quando se agrupam inúmeras substâncias cada uma com sua própria característica e histórico numa única categoria facilitase o processo de confusão e separação delas em proibidas e permitidas conforme o interesse daquele que se encontra na detenção do poder Além disso o discurso permite ainda incluir as características do sujeito que se relaciona com a substância seja para consumo ou para venda O rótulo de vilãovítima doentedegenerado será imposto conforme o interlocutor e seu caldo de cultura e de interesses que qualifica o outro e conforme justamente esse que recebe a adjetivação Assim o indivíduo que possui qualquer relação com algo que naquele contexto históricosocial convencionouse taxar proibido passa a ser a personificação a expressão do terror A partir disto várias medidas legais e extralegais são adotadas pelo Estado com o intuito de combater este mal 64 olmo Rosa del A face oculta da droga Rio de Janeiro Revan 1990 p 22 206 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Como é possível deduzir o pensamento até aqui exposto é de extrema utilidade para estabelecer o maniqueísmo necessário para a introjeção de valores que interessam a camadas específicas da sociedade valores que o sistema social dominante necessita para criar consenso em torno dos valores e normas que são funcionais para sua conservação65 olmo66 faz referência ao criminólogo britânico Jock Young67 para tratar da importância dos meios de comunicação na difusão do terror Young vai chamar a mídia de guardiã do consenso pois ela tem a capacidade de hierarquizar os problemas sociais procedendo a uma célere e repentina dramatização de forma a criar pânico moral sobre uma determinada espécie de conduta de forma sistemática ripollés abordando este tema afirma que o malestar social depende de um processo comunicativo de intercâmbio de opiniões e impressões de forma que acaba por realçar a visibilidade social do desajuste e do malestar por ele criado além de conceder a esta disfunção a autonomia e a substantividade necessária para que seja este considerado um verdadeiro problema social A mídia assumirá o papel de delimitar os contornos deste problema com a reiteração de atos similares ou com a aglutinação de fatos que antes não eram claramente conectados inclusive com o reforço constante da exposição de determinados eventos pretéritos Todo este cenário acaba por gerar uma percepção social de que se estaria diante de uma onda desta criminalidade reforçando a relevância do problema Destaca ainda os efeitos deste problema fazendo com que seja uma preocupação comum a todas as classes sociais68 É realizado portanto todo um processo para que essa opinião formatada pelos grandes meios de comunicação graças à capacidade de penetração na sociedade passe a ser entendida como opinião pública sendo assim catalisador de adoção de medidas políticas que atendam como dito aos interesses de poucos 65 Idem p 23 66 Idem ibidem 67 young Jock Mass Media Drugs and Deviance In rock Paul mcintosh Mary Deviance and Social Control Londres Tavistock 1974 p 243 68 riPollés José Luiz Díez A racionalidade das leis penais teoria e prática Trad Luiz Regis Prado São Paulo RT 2005 p 2830 207 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente Sobre a opinião pública diz o jurista espanhol69 A opinião pública assim considerada é um estado de opinião isto é uma interpretação consolidada de certa realidade social e um acordo básico sobre a necessidade e o modo de influir sobre a mesma Isso significa que não tem capacidade por si só para aceder à fase prélegislativa nem mesmo para desencadear a última e decisiva etapa prélegislativa a de ativação das burocracias Contudo esse estado de opinião já prejulga de forma geral os programas de ação que ulteriormente vão ser submetidos à consideração e portanto as opções ou políticas subsequentes A mídia portanto acaba assumindo a função de ampliar ainda que fictamente a incidência de um determinado crime sobre a sociedade além de intensificar os efeitos negativos que esta criminalidade pode vir a gerar É um discurso pautado no terror no medo que é gerado no âmago de cada indivíduo receptor das informações O discurso amedrontador e carregado de imprecisões sobretudo no tocante às drogas gera um cenário de incertezas que intensifica a sensação de insegurança e de medo na sociedade O medo é algo inerente a qualquer animal O homem porém conhece uma espécie de medo em segundo grau um medo social e culturalmente reciclado Uma espécie de medo derivado Este medo acaba por orientar seu comportamento além de reformar a sua percepção do mundo e as expectativas que norteiam suas escolhas Sobre isto afirma bauman70 O medo derivado é uma estrutura mental estável que pode ser mais bem descrita como o sentimento de ser suscetível ao perigo uma sensação de insegurança o mundo está cheio de perigos que podem se abater sobre nós a qualquer momento com algum ou nenhum aviso e vulnerabilidade no caso de o perigo 69 Idem p 3132 70 bAumAn Zygmunt Medo líquido Trad Carlos Alberto Medeiros Rio de Janeiro Zahar 2008 p 9 208 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA se concretizar haverá pouca ou nenhuma chance de fugir ou se defender com sucesso o pressuposto da vulnerabilidade aos perigos depende mais da falta de confiança nas defesas disponíveis do que do volume ou da natureza das ameaças reais Ainda que não haja ameaça direta se a pessoa interiorizar a insegurança e a vulnerabilidade passará a agir como se defronte do perigo estivesse Para o autor existem três tipos de perigo O primeiro diz respeito ao próprio corpo e suas propriedades O segundo de caráter mais geral diz respeito à durabilidade e confiabilidade na ordem social Por fim o terceiro perigo diz respeito ao lugar da pessoa no mundo Da consciência de quem sofre com o perigo seja qual for o medo derivado é facilmente desacoplado dos perigos que o causam Quem tem medo pode interpretálo a qualquer um desses perigos mesmo sem comprovação da contribuição de cada um deles Dessa forma as reações defensivas podem ser dirigidas para longe do perigo realmente responsável pela suspeita de insegurança71 Porém não se está diante somente de uma intensificação de medos impregnados na sociedade Os próprios riscos de se viver em uma sociedade inserida numa modernidade tardia como a atual cresceram no mesmo ritmo dos avanços tecnológicos Obviamente os seres humanos sempre estiveram suscetíveis a um sem fim de tipos de riscos Porém com o fenômeno recente de intensificação da globalização sobretudo com os grandes avanços nas tecnologias de comunicação e informação aliados ao modelo capitalista de consumo acabam por ampliar o espectro de incidência dos riscos que já existiam além de criar outros com respectivos efeitos podendo ser cada vez mais intensos72 Agora um determinado fato danoso pode trazer consequências para todo o globo 71 Idem p 11 72 Nesse sentido beck Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Trad Sebastião Nascimento 2 ed São Paulo Ed 34 2011 O autor aborda inclusive o que chama de efeito bumerangue Em sua disseminação os riscos apresentam socialmente um efeito bumerangue nem os ricos e poderosos estão seguros diante deles Os anteriormente latentes efeitos colaterais rebatem também sobre os centros de sua produção Os atores da modernização acabam inevitável e bastante concretamente entrando na cirando dos perigos que eles próprios desencadeiam e com os quais lucram p 44 209 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente bauman por sua vez prefere abordar o atual estágio da humanidade sob a perspectiva de que estaríamos vivendo uma modernidade líquida Os fluídos se movem facilmente diferentemente dos sólidos não são facilmente contidos contornam certos obstáculos dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho Essas são as razões para considerar fluidez ou liquidez como metáforas adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase nova de muitas maneiras na história da modernidade73 A atual sociedade caracterizarseia pelo derretimento de tradicionais estruturas que acabam por modificar profundamente os elos que entrelaçam os padrões de comunicação e coordenação entre as políticas de vida conduzidas individualmente de um lado e as ações políticas de coletividades humanas de outro74 Se na modernidade sólida havia uma vinculação entre capital e trabalho com relativa estabilidade agora há um elevado grau de flexibilização desta relação Assim não existe mais a figura do trabalhador que permanece no posto de trabalho por toda sua vida O capitalismo na modernidade líquida faz com que haja um maior fluxo migratório do trabalhador pelos postos de trabalho75 além de exigir um padrão mínimo de consumo para que este possa se entender inserido na sociedade Não estando empregada a pessoa passa a ser vista como descartável Valendose dos pensamentos de Axel honneth é possível afirmar que o ser humano acaba perdendo sua condição de pessoa e passa por um processo de reificação ou seja ele deixa de ser reconhecido como sujeito de direito e passa a ser analisado como mero objeto A reificação pressupõe que nós nem percebamos mais nas outras pessoas as suas características que as tornam propriamente 73 bAumAn Zygmunt Modernidade Líquida Tradução Plínio Dentzien Rio de Janeiro Zahar 2003 p 89 74 Idem p 12 75 Idem p 154 210 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA exemplares do gênero humano tratar alguém como uma coisa significa justamente tomálao como algo despido de quaisquer características ou habilidades humanas76 Em sendo mero objeto pode ser trocado com facilidade ou mesmo excluído do corpo social quando não for mais conveniente sua manutenção Tudo passa a ser volátil não somente as relações de trabalho mas qualquer relação intersubjetiva Todas passam a possuir um curto prazo de validade A vida passa a ser levada como um longo ensaio sobre a morte Pessoas se relacionam por um limitado espaço temporal para nunca mais se comunicarem77 Essa liquidez acaba por atingir também todas as estruturas tradicionais da sociedade desde o Estado chegando até a conceituação de família Ou seja se antes possuíamos uma modernidade de capitalismo dito sólido em que havia um campo de seguranças acerca do futuro hoje há somente elementos fluidos que levam as pessoas a concluir que a única certeza que podem possuir é de que o amanhã já não será o mesmo evento do presente O convívio em sociedade passa a ser permeado por uma constante névoa de incerteza Há assim um esfacelamento das normas morais sociais antes vigentes fazendo com que o agir dos outros ou suas consequências se tornem imprevisíveis Nesse sentido afirma silva sánchez a ausência de uma ética social mínima torna de fato imprevisível a conduta alheia e produz obviamente a angústia que corresponde ao esforço permanente de asseguramento fático das próprias expectativas ou a constante redefinição das mesmas Pois bem as sociedades modernas nas quais durante décadas se foram demolindo os critérios tradicionais de avaliação do bom e do mau não parecem funcionar como instancias autônomas de moralização de criação de uma ética social que redunde na proteção dos bens jurídicos78 76 honneth Axel Observações sobre a reificação Civitas Revista de Ciências Sociais Porto Alegre v8 n1 p 70 77 bAumAn Zygmund op cit 2008 p 13 78 silvA sánchez JesúsMaría A expansão do direito penal aspectos da política criminal nas sociedades pósindustriais Trad Luiz Otavio de Oliveira Rocha 2 ed rev e ampl 211 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente Ora se a aludida moral social de silva sánchez não consegue estabelecer ditames mínimos para a boa convivência entre as pessoas a própria sociedade que ainda que continue buscando por mais modernidade é avessa a riscos por uma lógica de autopreservação passa a demandar respostas mais efetivas por parte do Estado ou seja considerando a forma como o Estado se comunica com seus cidadãos surge uma demanda por mais Direito Ocorre que as duas instâncias que seriam mais aptas para regular a vivência em coletividade o Direito Civil e o Direito Administrativo acabam não conferindo ao menos num plano sensorial a segurança que por eles é esperada seja porque tudo pode acabar se resumindo numa troca de valores financeiros quando da reparação de um dano que podem ser amortizados no futuro seja pela sensação de ineficácia estatal gerada pela burocratização e possibilidade de desvios de conduta dentro do âmbito administrativo79 Assim dado este cenário somado ao simbolismo que o próprio Direito Penal carrega em si de modalidade de vingança porém perpetrada pelo Estado surge a ideia de que ele deve ser utilizado em grande parte das situações cotidianas por ser o único instrumento eficaz de organização civilizacional Isso acaba por deturpar a lógica jurídica do direito penal como ultima ratio além de exigir dele algo do qual ele não é capaz80 Não cabe ao Direito Penal a função de norte moralizante ou mesmo estruturante da sociedade O desejo por mais Direito Penal não se dá somente com as novas criminalizações chamadas de neocriminalizações mas também sobre incriminações que já se fazem historicamente presentes que é o fenômeno da sobrecriminalização81 Este é o caso dos entorpecentes São Paulo RT 2011 p 75 79 Idem p 79 80 Sobre a intervenção do direito penal das relações existentes na sociedade cabe lembrar as palavras de Pierangeli e Zaffaroni quando tratam do princípio da intervenção mínima penal Se a intervenção do sistema penal é efetivamente violenta e sua intervenção pouco apresenta de racional e resulta ainda mais violenta o sistema penal nada mais faria que acrescentar violência àquela que perigosamente já produz o injusto jushumanista a que continuamente somos submetidos Por conseguinte o sistema penal estaria mais acentuando os efeitos gravíssimos que a agressão produz mediante o injusto jushumanista o que resulta num suicídio cf Manual de direito penal brasileiro parte geral 7 ed rev e atual São Paulo RT 2007 v 1 p 75 81 diAs Jorge de Figueiredo AndrAde Manuel da Costa Criminologia o homem delinquente e a sociedade criminógena Coimbra Coimbra Editora 1997 p 435 212 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA Encontramos ambos os movimentos nesta área já que observamos um recrudescimento estatal nas leis antidrogas já existentes e também a criação de novos meios e institutos que recaem não somente no tráfico e no consumo de entorpecentes mas em condutas correlatas como a adoção de institutos típicos do direito proveniente da Common Law e a inserção da noção de insider trading no âmbito penal no combate aos delitos econômicos consequência direta entre outras coisas do mercado de estupefacientes82 Como já analisado as primeiras medidas que visavam à restrição do trânsito de substâncias tóxicas remontam do fim do século XIX com a questão do ópio Porém por conta do medo difundido na sociedade muito graças ao discurso preconceituoso e à criação de um tabu em torno das drogas além das já referidas ideias turvas que vagam entre opinião sentimento e dado científico a sociedade manipulada pelos grandes detentores de poder pela visão foucaultiana acaba por protestar por um regime jurídicopenal cada vez mais severo contra aquele que possui alguma relação com as drogas seja usuário ou comerciante rosa del olmo afirma que os vários discursos construídos a respeito das drogas acabaram por permitir a criação de diversos estereótipos que são necessários para legitimar o controle social formal que no caso das drogas tem na normativa jurídica sua máxima expressão83 A criminóloga pautada na doutrina de carlos gonzález zorrilla fala em quatro tipos de estereótipos sendo o último uma contribuição própria84 O primeiro estereótipo seria o estereótipo médico em que o usuário é visto como um doente e a droga como epidemia O problema acaba por se centrar na saúde pública Seria o estereótipo da dependência e é o difundido quando se busca adotar uma política proibicionista de internação compulsória por exemplo em que 82 Admitese inclusive que graças ao dinheiro proveniente do tráfico internacional de drogas vários bancos conseguiram sobreviver à crise econômica que se instaurou no ano de 2008 Cf The Guardian Drug money saved banks in global crisis claims UN advisor Disponível em httpwwwtheguardiancomglobal2009dec13drug moneybankssaveduncfiefclaims Acesso em 11 jun 2013 83 olmo Rosa del op cit p 23 84 Idem p 2425 213 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente se enxerga o usuário como alguém que não possui capacidade de controle sobre sua própria vida e que a droga é uma doença que precisa ser erradicada do país O usuário é visto como um sujeito violento e descontrolado É divulgada uma série de problemas impedimentos e patologias provenientes das drogas O preconceito sobre o tema somente se agrava pois com a incessante ventilação de informações somada ao desconhecimento e ao tabu leva as pessoas a acreditarem que possuem conhecimento específico na matéria85 O segundo tipo é o estereótipo cultural É um dos discursos utilizados pelas grandes mídias em que o consumidor é aquele que se opõe ao consenso da sociedade podendo guardar alguma semelhança com a ideia de subcultura delinquente Entretanto o rótulo a ser posto depende da classe social em que o usuário se encontra Assim os adjetivos ganham uma simbologia diferente em que a palavra drogado fica reservada somente a algumas camadas sociais É um processo semelhante com o que ocorre com a ideia de que aqueles jovens mais abastados são estudantes mas o pobre é desempregado ou mesmo vagabundo O terceiro estereótipo é o moral O consumidor é classificado como viciado e ocioso conforme o caso e a droga é vista como um prazer proibido O convívio em sociedade proporciona um vasto leque de opções para obtenção de prazer e diversão Todavia o sujeito opta pelo fruto proibido ou seja faz uma errada escolha ética e opta pelo prazer errado Este discurso é muito difundido também pela mídia mas encontrase presente na hermenêutica jurídica Como será visto adiante a única plausibilidade jurídica para a repressão penal em matéria de drogas residiria na defesa de uma moral o que num contexto de Estado Democrático de Direito em que se busca preservar ao máximo as liberdades individuais e o livre desenvolvimento do indivíduo mostrase completamente irrazoável Não é possível identificar qualquer bem jurídico com dignidade penal dentro do tema dos entorpecentes Por fim o quarto estereótipo é o do criminoso A droga é enxergada como uma inimiga da sociedade e o traficante como um invasor um conquistador um terrorista É justamente com base 85 giberti Eva Esbozo de fundamentación Estrategias de legitimación Medios de comunicación y los usuários de drogas In cuñArro Mónica org La política criminal de la droga Buenos Aires AdHoc 2010 p 6989 especialmente p 71 214 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA nesse estereótipo que se pauta a teoria do Direito Penal do Inimigo O traficante e também o consumidor é alguém que optou por ser contra a sociedade e portanto não merece nenhuma garantia por parte dela Tratase em verdade de um discurso políticocriminoso já que se recorre ao discurso político para legitimar o discurso jurídico Esse último discurso também pode ser entendido como geopolítico e muito se assemelha à Doutrina da Segurança Nacional muito difundida no continente americano a partir da década de 1960 mas elaborada no seio do Governo estadunidense no contexto de pósSegunda Guerra Mundial em que se procuraram mecanismos inclusive de intervenção em países estrangeiros para conter o avanço do comunismo nas nações entendidas como estratégicas Estáse diante de uma guerra contra a subversão ou seja em prol da manutenção do modelo capitalista de ordem econômica Esta guerra acaba se confundindo com o combate à criminalidade comum já que qualquer criminoso pode ser visto como uma ameaça ao convívio social A segurança nacional legitima o discurso antidrogas por meio de seu alcance moralista bem como o modus operandi das operações Afirma salo de carvalho86 Com a incorporação dos postulados da Doutrina de Segurança Nacional DSN no sistema de seguridade pública a partir do Golpe de 1964 o Brasil passa a dispor de modelo repressivo militarizado centrado na lógica bélica de eliminaçãoneutralização de inimigos A estruturação da política de drogas requeria portanto reformulação ao inimigo interno político subversivo é acrescido o inimigo interno políticocriminal traficante Desde então a lógica bélica vem sendo a tônica no tratamento jurídico em relação às drogas não somente no Brasil mas em toda a América Latina A constante readequação da lógica bélica aos discursos contingenciais permite inclusive afirmar que sua estrutura 86 cArvAlho Salo de A política criminal de drogas no Brasil estudo criminológico e dogmático da Lei 1134306 6 ed São Paulo Saraiva 2013 p 73 215 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente ideal e ideológica permanece inabalada pautando ainda hoje as ações punitivas de intervenção legal judicial e executiva vg criminalização dos crimes hediondos repressão ao crime organizado formulação de políticas penitenciárias diferenciadas87 Sobre a importância da criação de estereótipos afirma olmo88 Os estereótipos servem para organizar e dar sentido ao discurso em termos dos interesses das ideologias dominantes por isso no caso das drogas se oculta o político e econômico dissolvendoo no psiquiátrico e individual Em verdade muito mais danosa que a própria droga é a ignorância que impera sobre este tema que foi transformado em tabu As maiores adversidades surgem da falta de uma percepção de que as drogas sempre fizeram parte da existência humana e que seu consumo é algo que transpõe qualquer tipo de barreira física ou temporal É quase intrínseco ao próprio ser humano A partir do momento que esta concepção for adotada passarseá a discutir o entorpecente de forma mais racional não mais o transformando em destruidor social mas algo que faz parte da vida humana que deve ser estudado debatido e cujos danos devem ser prevenidos ou reduzidos Porém há de se evitar o discurso hipócrita da proibição por como já abordado mal se sabe quais substâncias podem ser enquadradas como drogas ou o porquê de algumas igualmente nocivas não serem entendidas como tais Este cenário de ignorância favorece para silenciar a contraditória história que cada entorpecente traz consigo Cada substância possui um histórico cultural e várias condicionantes estruturais e político econômicas dentro de cada civilização olmo demonstrando como o discurso proibicionista sempre foi pautado em questões mais políticas que racionais valese da pesquisa elaborada por sebastian scheerer89 sobre a criminalização 87 Idem ibidem 88 olmo Rosa del op cit p 25 89 Idem p 26 O trabalho do criminólogo alemão é The Popularity of the Poppy Selective Politization and Criminalization of Opium Use in XIX Century USA Grupo Európeo para el Estúdio de la Desviación y el Control Social Barcelona 912 de 216 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA do ópio O estudioso alemão constata como o consumo do ópio nos Estados Unidos sofreu uma criminalização diferenciada conforme seus distintos modos de consumo De todas as formas fumar comer ou injetar a menos danosa para a saúde já se sabia na época era o fumo Porém este modo foi o primeiro a ser proibido em detrimento da maneira de consumo mais lesiva que é a injeção de heroína Isto se justifica pois havia uma necessidade de deslocar a mão de obra chinesa que começava a ser vista como concorrente aos estadunidenses Ou seja politicamente há a tentativa de difusão do tema dentro de um mesmo discurso universal atemporal e sem vinculação histórica Surge uma fala totalizante como se todo país tivesse a mesma situação em relação às mesmas drogas daquele que expõe a doutrina Esta conjuntura permite após a Segunda Guerra Mundial que os estadunidenses como vencedores da batalha imponham sobre os demais países uma política de drogas que fosse conveniente a suas concepções morais e econômicas sobretudo com o uso da Organização das Nações Unidas e da Organização Mundial da Saúde organizações criadas justamente pelos vitoriosos da Grande Guerra Desta forma a partir da década de 1960 as Nações Unidas elaboram uma série de tratados buscando o combate contra as drogas Neste ponto destacase a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 1988 também conhecida como Convenção de Viena Esta Convenção consagrou a War on Drugs como política de controle do uso e da difusão das drogas ilícitas Seus trabalhos se iniciaram com a constatação de que os tratados anteriores sobre a questão 1961 e 1971 acabaram falhando no intuito de erradicar as drogas do planeta90 leonardo sica identifica três principais características da War on Drugs que acabam por corroborar o que vem sendo discutido até o momento A primeira é a estruturação de um modelo que se pauta na proibição e na repressão Ou seja estáse inserido num sistema setembro 1977 90 sicA Leonardo Funções manifestas e latentes da política de War on Drugs In reAle Junior Miguel coord Drogas aspectos penais e criminológicos Rio de Janeiro Forense 2005 p 12 217 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente maniqueísta em que as drogas devem ser extirpadas do mundo O segundo caractere é a busca pela obtenção de um consenso entre os governos nacionais perceptível pelo estabelecimento de fórmulas que procuram rotular a questão das drogas como um problema mundial uniforme91 Por fim temse o interesse manifesto de harmonização legislativa entre todos os países que assinaram o tratado sendo nada mais que uma decorrência do segundo Não se pode olvidar por óbvio que as ações estadunidenses foram muito além da mera influência política para adoção de normas Não cabe tratar neste momento das operações conjuntas e secretas entre o governo estadunidense e as ditaduras militares instaladas em vários países da América Latina Somente a título exemplificativo cabe citar uma série de documentos que foram vazados no sítio virtual Wikileaks que traz detalhes das operações organizadas pela Drug Enforcement Administration em conjunto com a Polícia Federal brasileira Em território nacional a agência estrangeira realizou prisões deportações ilegais além de torturas participando ativamente da Operação Condor92 42 o estado brasileiro e seu cidadãoinimigo O discurso da War on Drugs é consubstanciado no Brasil através da adoção proibicionista de política pública de combate às drogas Este posicionamento se apresenta na ideia do não uso Não há gradação nem flexibilização quanto à quantidade ou natureza da substância o uso é proibido em qualquer circunstância Esse discurso acaba por legitimar modelos jurídicos como o que se encontra na Lei 113432006 que ainda trata o usuário como criminoso de forma que em comparação à legislação anterior houve somente a retirada da pena privativa de liberdade Esse modelo acaba por gerar por conseguinte o processo de 91 Idem ibidem 92 Opera Mundi Wikileaks relata operações ilegais do DEA com PF brasileira durante ditadura Disponível em httpoperamundiuolcombrconteudonoticias28257 wikileaksrelataoperacoesilegaisdodeacompfbrasileiraduranteditadura shtml Acesso em 22 jun 2013 218 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA demonização das drogas na sociedade brasileira Além de estabelecer um julgamento moral sobre os entorpecentes e sobre quem se relaciona com ele provocando profundas cisões entre os membros de uma mesma sociedade alimenta uma série de violências correlatas ao tráfico O comércio de drogasisoladamente não traz nenhuma ação violenta não somente no sentido físico mas mesmo no sentido psíquico já que quem compra o faz por livre vontade não gerando nenhuma espécie de lesão A questão reside na insistência de manter tanto o tráfico quanto o consumo na categoria de crime e nas suas consequências Primeiramente observase que uma série de recursos estatais que poderia ser destinada a qualquer outra meta social traçada pelo governo acaba por ser realocada para o combate às drogas Ou seja o argumento que aqui se levanta é puramente econômicoutilitarista Num Estado que possui uma Constituição de cunho programático e que detém uma série de objetivos a serem traçados como a valorização da dignidade humana e a erradicação da pobreza os gastos gerados pela War on Drugs somente afastam ainda mais o país do ideal traçado pela Carta de 1988 O segundo ponto é o surgimento de violências colaterais à política proibicionista Surgem embates territoriais entre traficantes o aumento da corrupção dentro do aparato estatal policial lavagem de dinheiro tráfico de armas corrupção de menores e assim por diante Retirando a proibição das drogas derrubase todo o esqueleto fático que mantém essa cadeia criminal Além disso retirando o caráter bélico do tratamento dado pelo aparato estatal abrese a possibilidade de discutir inclusive modelos de polícia que estejam mais alinhavados com um Estado Democrático como por exemplo o modelo de polícia comunitária93 As camadas sociais menos afortunadas acabam por sofrer ainda mais com os efeitos da política bélica adotada pelo Brasil O processo de estigmatização alimentado pelos estereótipos cultural moral e geopolítico contribui para o aumento da vulnerabilidade dos cidadãos mais pobres94 Em um critério diferenciador entre traficante 93 zAccone Orlando serrA Carlos Henrique Aguiar Guerra é paz os paradoxos da política de segurança de confronto humanitário In bAtistA Vera Malaguti org Criminologia de cordel Rio de Janeiro Revan 2012 p 25 94 Neste sentido cabe ressaltar a obra zAFFAroni Eugenio Raúl Em busca das penas perdidas a perda de legitimidade do sistema penal Trad Vânia Romano Pedrosa e 219 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente e usuário poroso como o adotado pela lei brasileira em que não há critérios objetivos as já citadas características do ator acabam sendo um relevante fator para o recrudescimento penal contra o padrão da pessoa jovem negra moradora da periferia dos grandes centros O que é mero porte para consumo em casas de shows de alto padrão pode ser entendido como tráfico de entorpecentes na favela ao lado Quanto à legislação temse o efeito da dobra de legalidade Os principais artigos da atual lei de entorpecentes Lei 113432006 possuem núcleos verbais iguais ou muito próximos Essa falha de técnica legislativa não seria tão grave se houvesse à disposição um critério objetivo para diferenciar o usuário art 28 do traficante art 3395 A vantagem do critério objetivo como o adotado em Portugal96 em que se verifica a quantidade de droga encontrada com a pessoa é que ainda que haja o risco de um traficante ser encaixado como usuário um usuário nunca será taxado erroneamente como traficante Na quantidade acima do estipulado normativamente cabe ao Estado produzir provas de que o tóxico encontrado não se destina ao consumo mas ao comércio A adoção de critérios não Amir Lopes da Conceição 5 ed Rio de Janeiro Revan 2001 em que o autor comenta que um dos fatores deslegitimantes do Direito Penal é justamente a seletividade por ele produzida O pobre não é somente vulnerável do ponto de vista econômico mas também sob a óptica da atuação estatal em que os agentes policiais terão um tratamento diferenciado em relação ao sujeito partindo preconcepções as quais com a mudança do sujeito ou da localidade por exemplo da apreensão do tóxico não existiriam 95 O art 28 da Lei 113432006 que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas estabelece que haverá crime quando o agente adquirir guardar tiver em depósito transportar ou trouxer consigo para consumo pessoal drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar Por sua vez o art 33 do mesmo dispositivo legal que prevê o tráfico de drogas traz a seguinte redação Importar exportar remeter preparar produzir fabricar adquirir vender expor à venda oferecer ter em depósito transportar trazer consigo guardar prescrever ministrar entregar a consumo ou fornecer drogas ainda que gratuitamente sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar Observase portanto identidade dos núcleos verbais componentes do tipo Esta situação acaba por ser mal resolvida na redação do 2º do art 28 Para determinar se a droga destinavase a consumo pessoal o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida ao local e às condições em que se desenvolveu a ação às circunstâncias sociais e pessoais bem como à conduta e aos antecedentes do agente 96 Assim afirma o item 2 do art 2º da Lei 302000 Para efeitos da presente lei a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias 220 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA objetivos como assim procede a lei pátria leva a uma série de injustiças além de consolidar o direito penal de autor No Direito brasileiro esta diferenciação se mostra ainda mais delicada quando se leva em consideração aspectos como a quantidade e o tipo de pena aplicada possibilidade de prisão processual classificação como crime hediondo e assim por diante Há portanto e paradoxalmente também um vazio de legalidade Surge uma questão prática de quem decide se se trata de tráfico ou de porte para consumo Ainda que a lei no art 28 2º fale em juiz é certo que quem realiza o primeiro julgamento é o delegado de polícia que assina os autos e que pode requerer a prisão processual do suspeito Outra consequência é o fenômeno do superencarceramento O Brasil já possui uma população carcerária que ultrapassa mais de 500 mil pessoas e ainda com dados inconclusos uma vez que nem todos os estados possuem um sistema de contagem de detentos eficaz e suficiente É o país com a quarta maior população carcerária perdendo somente para Estados Unidos China e Rússia países cujos sistemas penais não são conhecidos por seus valores democráticos Da população de homens presos cerca de 25 o estão por conta do tráfico de entorpecentes Quando se analisam os dados referentes às mulheres o resultado é hiperdimensionado e mostra que metade delas está reclusa pelos crimes de tráfico nacional ou internacional97 O proibicionismo legitima ainda políticas públicas de viés médicosanitário de internação mesmo sem o consentimento do paciente o que somente contribui para sua estigmatização e sua exclusão social Vale notar que as instituições de internação para viciados apesar de toda a luta antimanicomial ocorrida no Brasil acabam por ter os mesmos fins dos hospitais antes do século XVIII Conforme ensina foucault98 o hospital que funcionava desde a Idade Média na Europa não era concebido de forma alguma para curar Antes do século XVIII o hospital era entendido como uma instituição de assistência mas também de separação e exclusão O 97 Dados do Censo Penitenciário realizado pelo Ministério da Justiça em 2011 retirados de cArvAlho Salo de op cit p 251 98 FoucAult Michel Microfísica do poder Trad e org Roberto Machado Rio de Janeiro Graal 1979 p 100102 221 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente pobre dada sua condição precisa de assistência e como doente é perigoso Assim o hospital deve estar pronto tanto para recolhê lo quanto para proteger os demais do perigo que ele encarna O personagem ideal deste cenário não é doente que precisa de cura mas o pobre que está em vias de morrer Se se pensar na ideia de bauman de que a exclusão da sociedade também é uma das formas de morte a comparação aqui apresentada se mostra ainda mais pertinente99 O traficante de drogas dentro deste contexto é visto como um inimigo da sociedade como aquele que traz e espalha a perdição na sociedade Assim sendo deve ser por ela excluído Afirma zaffaroni100 A essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o Direito lhe nega sua condição de pessoa Ele só é considerado sob o aspecto de ente perigoso ou daninho Por mais que a ideia seja matizada quando se propõe estabelecer a distinção entre cidadãos pessoas e inimigos não pessoas fazse referência a seres humanos que são privados de certos direitos individuais motivo pelo qual deixaram de ser considerados pessoas e esta é a primeira incompatibilidade que a aceitação do hostis no direito apresenta com relação ao princípio do Estado de Direito Assim é possível afirmar que o Direito Penal do Inimigo é o principal arcabouço teóricojurídico de recrudescimento penal contra o comerciante Ignorase o fato de o traficante ser alguém com capacidade de modificar o meio em que vive principalmente quando percebe que não há outro modo de se integrar aos objetivos consumeristas impostos pela sociedade Este fator se torna ainda mais evidente quando se tem em mente que o traficante é um dos maiores interessados no proibicionismo A partir do momento que as drogas passam a ser regulamentadas o traficante volta a ser um excedente social101 Ou seja criase um sistema perverso de exclusão 99 bAumAn Zygmund op cit 2008 p 10 100 zAFFAroni Eugenio Raúl O inimigo no direito penal Trad Sergio Lamarão 3 ed Rio de Janeiro Revan 2011 p 18 101 Neste sentido rAmos Beatriz Vargas Direito ao dissenso In bAtistA Vera Malaguti org Criminologia de cordel Rio de Janeiro Revan 2012 p 19 222 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA do sujeito com a imposição de barreiras às quais ele nunca conseguirá passar dadas as circunstâncias impostas pela própria sociedade e pelo Estado e quando ele consegue encontrar algum modo de subsistência e de aproximação dos valores apregoados é taxado de criminoso e todo um aparato estatal contra ele se volta salo de carvalho trata de três tendências políticocriminais contemporâneas que vão ao sentido da criminalização dos entorpecentes102 A primeira tendência seria o Movimento de Lei e Ordem que muito resumidamente seria uma política que reivindica alta punibilidade às graves ofensas a bens jurídicos coletivos sobretudo contra a pessoa e contra o patrimônio Aqui entendendose que o tráfico de drogas seria um grave crime contra a saúde pública exigese um severo rigor em sua retribuição A segunda política seria a política da Tolerância Zero em que se prega intensa repressão à chamada criminalidade de rua por meio de processos de higienização social a partir de normas penais sancionadoras de pequenos comportamentos individuais Tratase de um pensamento concebido da ideia das janelas quebradas em que os espaços públicos possuiriam um caráter sagrado e que o distúrbio no qual se comprazem as classes pobres é terreno natural do crime103 Combatemse os pequenos delitos cotidianos para que grandes patologias criminais sejam recuadas Desta forma não somente pequenas delinquências são combatidas com maior repressão tanto da polícia quanto do Judiciário mas também os pobres que ocupam praças e terrenos públicos passam a ser perseguidos visando uma higienização visual e espacial e incutir a sensação de que o Estado se faz presente em toda a cidade Por fim carvalho inspirado em maria Karam trata da esquerda punitiva como terceiro movimento de expansão penal sobre as drogas Grupos tradicionalmente atrelados a movimentos sociais passam a demandar a partir de década de 1980 uma maior resposta penal do Estado no intuito de defender seus próprios interesses Eles exigiriam a formulação de regras gerais que fossem condizentes a suas convicções mostrariam desinteresse caso o 102 cArvAlho Salo de op cit p 177 103 shecAirA Sérgio Salomão Criminologia 2 ed São Paulo RT 2008 p 331 223 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente meio penal fosse injusto e optariam pela utilização simbólica do instrumento repressivo104 Neste ponto atestase discordância com o pensamento de carvalho Como já exposto é verdade que buscando defender pautas que dizem respeito somente a seus próprios interesses não importando as consequências de uma resposta penal para o distúrbio social grupos de pressão especializados valendose dos termos de ripollés demandam por uma expansão do direito penal em assuntos determinados Todavia acreditase aqui que a expressão gestores atípicos da moral empregada por silva sánchez pode ser usada para descrever grupos não somente de esquerda mas também de direita e este parece ser o caso neste tópico sobre entorpecentes Além disso há de ser feita uma análise mais detida em relação a cada instituto penal a que se faz referência Tratase de verificação de um racional uso do Direito Penal uma vez que por vezes determinadas condutas que antes sequer imaginavamse possíveis hodiernamente podem vir a receber uma legítima repressão penal Nem todo aumento do Direito Penal deve ser entendido como uma expansão ilegítima105 Todavia não é este o caso aqui A incriminação dos tóxicos sempre esteve muito mais atrelada a uma reação conservadora que realmente a de movimentos de esquerda A estes o tema das drogas quase não lhes diz respeito salvo na ideia justamente contrária de sua descriminalização por se tratar de uma liberdade individual que cabe ao Estado garantir em vez de cercear por meio de seu viés paternalista Ademais não se é possível afirmar que se trata de um movimento de política criminal por lhes faltar um pensamento coeso de atuação estratégica estatal Demandase por expansão do direito penal mas não se trata de um modelo de política que o Estado adota para combater comportamentos indesejados Portanto se o Movimento de Lei 104 cArvAlho Salo de op cit p 180 105 Neste sentido afirmase que Por via de regra os quadros axiológicos não acompanham o ritmo das realizações científicas provocandose assim verdadeiros vazios normativos cujo preenchimento poderá eventualmente ter de contar com o concurso do direito penal diAs Jorge de Figueiredo AndrAde Manuel da Costa op cit p 436 224 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA e Ordem e a Tolerância Zero podem ser sim entendidos como políticas criminais de repressão a qualquer conduta relacionada aos entorpecentes o mesmo não se pode afirmar da dita esquerda punitiva entendendo ser mais apropriado acrescentar a já abordada concepção de direito penal do inimigo em que o Estado deliberadamente exclui uma série de garantias de toda sorte daqueles que não são mais vistos como cidadãos dignos de tanto Temse portanto que A indistinta proteção dos direitos humanos de todos é interpretada por Jakobs como a indistinta proteção a todos que cumpram a obrigação conforme o modelo da sociedade O comportamento perigoso à constituição da sociedade é o momento de diferenciação entre aquele que permanece cidadão e aquele outro que é qualificado como inimigo106 Do ponto de vista dogmáticopenal justificase a criminalização pela tutela do bem jurídico saúde pública Aqui tornase ainda mais evidente a crise gerada pela ausência de critérios suficientes para definir o que seria droga lícita da ilícita Uma vez sendo o intuito a proteção da saúde pública com muito mais razão outras substâncias haveriam de ser proibidas o que não parece de modo algum razoável Nesse sentido interessante notar alguns dados relativos ao álcool107 que é substância legalmente permitida com algumas restrições em quase todos os países do mundo a Tratase da droga mais utilizada entre jovens e menores de idade b é a substância mais associada a comportamentos violentos como agressão física estupro assaltos etc c em 70 dos laudos cadavéricos de mortes violentas consta a presença do álcool d é responsável por 90 das internações hospitalares por dependência Ou seja pelos breves dados aqui apontados observase que o 106 sAAddiniz Eduardo Inimigo e pessoa no direito penal São Paulo LiberArs 2012 p 126 107 mAcFArlAne Aidan et al Que droga é essa 2 ed São Paulo Ed 34 2012 p 111 225 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente álcool possui um efeito muito mais nocivo à sociedade que as demais drogas Ademais quando se trabalha com um percentual de 90 das internações por dependência é possível afirmar que se trata de uma substância que se aproxima muito mais da ideia de epidemia do que as demais drogas que o discurso médicosanitarista tenta fazer parecer Obviamente não se busca em medida alguma advogar pela proibição de todas as substâncias mas somente demonstrar como o discurso se encontra falho O consumo de drogas ou seu porte para tanto é o único caso em que a vítima coincide com o agressor sendo que não cabe ao Direito Penal tutelar autolesão Quanto ao tráfico como já referido não é uma conduta violenta em si de forma que as violências decorrentes dele são resultado de sua própria proibição a despeito dos potenciais danos à saúde individual decorrentes do consumo da droga não é possível estabelecer a integridade física eou psíquica do consumidor como bem jurídico digno de tutela na hipótese Com efeito a pretensão de tutela penal da saúde ou integridade do agente contra sua própria vontade e interesse configuraria paternalismo penal intolerável no âmbito de um Estado Democrático que toma os cidadãos como autorresponsáveis e capazes de eleger os caminhos do próprio desenvolvimento pessoas por uma perspectiva pluralista Bem por isso o modelo moral de abstinência não pode ser juridicamente imposto como concepção correta de vida108 Observase portanto de tudo acima exposto que o modelo dogmático proibicionista possui como fundamentação tão somente critérios morais de uma determinada classe cujos interesses acabam por prevalecer graças a uma complexa relação de poderes que acaba por inviabilizar o aceitamento de políticas não proibicionistas Não é possível admitir um modelo penal cujo bem jurídico tutelado é a moral Um Estado Democrático de Direito irá se distinguir dos demais modelos pela tutela de interesses de minorias sociais e não 108 bechArA Ana Elisa Liberatore Silva Da teoria do bem jurídico como critério de legitimidade do direito penal 464 p Tese LivreDocência em Direito Faculdade de Direito Universidade de São Paulo São Paulo 2010 p 342 226 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA pela prevalência da vontade da minoria numérica que se encontra no poder Um Direito Penal que acolha para si questões de ordem ética será um Direito conservador e obstáculo às transformações sociais de toda natureza109 No que tange a uma política criminal que seja condizente com os postulados democráticos do Direito Penal ainda que isso possa parecer uma contradição em termos louk hulsman110 traça alguns critérios para que seja adotada uma política minimalista Os critérios absolutos podem ser divididos em quatro O primeiro determina que uma política criminal não se deve pautar no desejo de tornar dominante determinado comportamento sob certa moral Desta forma há de buscar um mínimo racional quando do planejamento das medidas a serem tomadas para que o Direito Penal não extrapole sua função de ultima ratio O segundo critério estabelece que não deve sob hipótese alguma a política se servir de um sistema de tratamento de delinquente em potencial ou seja o Direito Penal não pode se antecipar a condutas que nem se há certeza de que podem vir a ser delituosas111 O terceiro critério e este é sensível no que diz respeito à questão penitenciária que assola o país é que não se deve sobrecarregar a capacidade real do sistema administrativo de controle Porém isto não cabe somente à capacidade de contenção de pessoas pelo Estado mas também toda a estruturação do Judiciário Por fim o Direito Penal e as políticas correlatas a ele não podem servir como resposta aos problemas sociais seja lá de qual natureza eles sejam Junto a esses critérios absolutos hulsman ainda traça critérios não absolutos ou contraindicações Destes é válido ressaltar dois a se a conduta fosse típica de grupos socialmente débeis o que é bastante raro dada a seletividade nata do sistema penal além da condição de miséria que a 109 bechArA Ana Elisa Liberatore Silva op cit p 347 110 Apud cArvAlho Salo de op cit p 231 111 Luigi Ferrajoli por sua vez tratará da questão do Direito Penal Mínimo sob o viés de limitação da atuação estatal sob a óptica de seus dez axiomas do garantimso penal O segundo critério de Hulsman pode por exemplo ser visto nos axiomas nulla poena sine crimine nullum crimen sine lege nulla lex poenalis sine necessitate e nulla necessitas sine injuria cf FerrAJoli Luigi Derecho y razón Teoría del garantismo penal Madri Trotta 1995 p 93 227 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente pessoa enfrenta quando da decisão de entrar para o tráfico de entorpecentes e b se o ato apresentasse dificuldade em ser precisamente definido o que parece também relevante uma vez que não há critérios objetivos para a definição de o que viria a ser tráfico e o que viria a ser consumo além da própria definição de o que seria uma substância lícita ou ilegal atualmente determinada por normas administrativas de critérios questionáveis agravando a problemática da norma penal em branco Por fim cabe apontar que alguns autores ainda advogam no sentido de que existiria um direito individual às drogas ou um direito individual de autointoxicação Num Estado Democrático o Estado não poderia ter a prerrogativa de estabelecer o que a cada cidadão é permitido consumir Se as drogas sempre fizeram parte da história humana e se se está diante de uma sociedade cada vez mais plural cada cidadão deveria possuir a prerrogativa de consumir o que desejar112 5 conclusões E mbora se proteste por uma política estatal que não trate a questão dos entorpecentes como crime é certo que se está diante de um desejo que pela atual formatação dos nossos aparelhos políticos e estatais ainda está distante da atual conjuntura Desta forma dentro do sistema que é apresentado as estratégias para o aumento da racionalidade no que tange às drogas se concentram em duas dimensões de um lado num plano dogmático penal crítico cabe ao juiz delimitar o alcance da lei com julgados que impeçam ao máximo a intervenção penal da esfera da vida privada do acusado de outro com a adoção de políticas públicas que visem à prevenção e à redução de danos respeitando a autonomia do usuário e as necessidades de seus dependentes É certo que existem algumas respostas possíveis para a 112 Neste sentido szAsz Thomas Our Right to Drugs New York Syracuse University Press 1996 escohotAdo Antonio Aprendiendo de las drogas Barcelona Anagrama 2006 228 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA problemática das drogas O proibicionismo por tudo que já foi aqui mostrado é uma estratégia falida que acaba por gerar ainda mais danos sociais e atende somente aos interesses de algumas camadas da sociedade que se encontram em núcleos emanadores de poder113 Das saídas não proibicionistas a mais adequada parece a estratégia de normalização114 Há de se adotar medidas que sejam plausíveis conforme o cenário em que a sociedade se encontra bem como de acordo com o ideal de liberdade individual que é garantia mínima de qualquer Estado regido por um ordenamento jurídico democrático Imaginar que algo que sempre foi da natureza do próprio ser humano deixará de existir com adoção de um mecanismo reconhecidamente falho que é o Direito Penal deixa de ser utópico e adentra na categoria da ingenuidade Por outro lado a ingenuidade não é uma característica a ser verificada quando dos entorpecentes Repetese estáse diante de um jogo de poderes com os quais aqueles que buscam uma sociedade materialmente igualitária não podem coadunar Assim o Estado deve adotar medidas realistas que em vez da completa proibição que gera todos os danos já aqui abordados caminhem no sentido de uma despenalização controlada115 de forma que os entorpecentes passem a ser vistos como elementos cotidianos e não com a barreira do preconceito e da ignorância Tratase do que já ocorre hoje com as substâncias lícitas Todos seus efeitos maléficos tanto individualmente quanto 113 São precisas as palavras de Maria Lucia Karam neste sentido O que dita esta decisão política não é como se divulga a proteção dos indivíduos mas sim a obtenção de uma disciplina social que resulte funcional para a manutenção e a reprodução dos valores e interesses dominantes em uma dada formação social Cf Redução de danos ética e lei Os danos da política proibicionista e as alternativas compromissadas com a dignidade do indivíduo In sAmPAio Christiane Moema Alves cAmPos Marcelo Araújo orgs Drogas dignidade e inclusão social a lei e a prática de redução de danos Associação Brasileira de Redutores de Danos 2003 p 4597 p 45 114 Cf de lA cuestA José Luis Es posible la normalización de las drogas Perspectiva jurídicopenal In Drogas Sociedad y Ley avances en drogodependencias Bilbao Universidad de Deusto 2003 115 berAstegi Xabier Arana Drogas legislaciones y alternativas De los discursos de las sentencias sobre el tráfico ilegal de drogas a la necesidad de políticas diferentes San Sebastián Gakoa 2012 p 365 229 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente socialmente são conhecidos mas ainda assim o consumo não se encontra vetado Antes o comércio e uso são regulamentados de forma que os danos mesmo que não totalmente são mais controlados que aqueles gerados pela política atual antidrogas Não se trata de uma plena e irrestrita liberalização mas de uma medida de respeito à autodeterminação de cada indivíduo sem que se ignorem os efeitos negativos que os entorpecentes possam vir a trazer encarando verdadeiramente como questão de saúde pública sem nenhum viés demagógico Uma das questões fundamentais para a adoção da política de normalização é a sua desideologização116 Todos os aspectos morais e religiosos devem ser deixados de lado afastandose ao máximo de um paternalismo penal Em um Estado Democrático de Direito o controle de entorpecentes deve ser feito com pleno respeito aos direitos individuais dos cidadãos de sua personalidade bem como sua privacidade Hão de ser tomadas medidas de forma progressiva para que as drogas sejam encaradas como elementos inerentes a nossa sociedade e não como destruidores de valores tradicionais Devese romper com o tabu gerado em torno dos entorpecentes abrindo para a sociedade um debate racional que busque uma maior harmonização entre seus membros e não o aprofundamento das disparidades sociais Estamos diante de uma sociedade composta de indivíduos capazes de tomar suas próprias decisões inclusive a de autointoxicação Tratase ainda de uma medida de convalidação da soberania estatal em que o Estado adota sua política de drogas conforme seus próprios interesses e suas próprias características culturais e sociais fragmentado do cenário político de interesse dos países capitalistas centrais bem como a retomada de controle sobre as atividades que ocorrem dentro de seu próprio território Impede se em outras palavras o surgimento de estados paralelos que acabam por suprir as lacunas deixadas pelo governo nacional Somase a isto o fato de a retirada do Direito Penal desta matéria gerar um semnúmero de benefícios no sentido de redução de 116 berAstegi Xabier Arana op cit p 375 230 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA seus efeitos secundários como por exemplo a possibilidade de uma melhor educação da população a respeito das drogas o enfraquecimento do crime organizado a redução das violências correlatas advindas do tráfico a lavagem de dinheiro etc Não por outro motivo o primeiro ponto apresentado por Arana berastegi para adoção da política pública moldada na normalização é a constatação de que el control social de las drogas no debe pretender impedir su consumo sino buscar formas de gestión que minimicen sus aspectos negativos y maximicen los positivos117 A política de redução de danos se mostra como um fundamental elemento dentro de uma política normalizadora e abolicionista penal a longo prazo como uma estratégia pragmática e humanista que não visa ao fim do consumo por parte do usuário e sim melhorar sua qualidade de vida A distribuição de flyers sobre um consumo consciente a adoção de terapias de substituição por drogas mais leves e mesmo a distribuição de substâncias diversas que reduzem o risco de overdose118 somente para elencar alguns exemplos apresentamse alternativas muito mais salutares socialmente do que as atuais medidas de internação e de agravamento da exclusão social119 Contribuem ainda com a quebra do paradigma usuário inimigo que paira sobre a questão que impede a adoção de uma política pública que beneficie a todos 6 referências bibliográficas Ambos Kai Control de drogas política y legislación en América Latina EEUU y Europa eficacia y alternativas Bogotá Gustavo Ibañez 1998 Antunes Eleonora Haddad bArbosA Lúcia Helena Siqueira PereirA Lygia Maria de França Psiquiatria loucura e arte fragmentos da história brasileira São Paulo Edusp 2002 bAumAn Zygmunt Medo líquido Trad Carlos Alberto Medeiros Rio de Janeiro Zahar 2008 Modernidade líquida Trad Plínio Dentzien Rio de Janeiro Zahar 2003 beck Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Trad Sebastião 117 Idem p 365 118 mesquitA Fábio A perspectiva da redução de danos Boletim IBCCRIM edição especial out 2012 119 kArAm Maria Lucia op cit p 9497 231 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente Nascimento 2 ed São Paulo Ed 34 2011 bechArA Ana Elisa Liberatore Silva Da teoria do bem jurídico como critério de legitimidade do direito penal 464 p Tese LivreDocência em Direito Faculdade de Direito Universidade de São Paulo São Paulo 2010 berAstegi Xabier Arana Drogas legislaciones y alternativas De los discursos de las sentencias sobre el tráfico ilegal de drogas a la necesidad de políticas diferentes San Sebastián Gakoa 2012 Boletim Ibccrim ano 20 edição especial out 2012 bruns Karl Georg Mommsen Theodor Gradenwitz Otto Fontes iuris romani leges et negotia v 1 7 ed Tübingen Mohr 1909 código de éticA médicA São Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo 2009 cArvAlho Salo de A Política criminal de drogas no Brasil estudo criminológico e dogmático da Lei 1134306 6 ed São Paulo Saraiva 2013 conrAd Peter The medicalization of society on the transformation of human conditions into treatable disorders Baltimore The Johns Hopkins University Press 2007 de lA cuestA José Luis Es posible la normalización de las drogas Perspectiva jurídico penal In Drogas Sociedad y Ley avances en drogodependencias Bilbao Universidad de Deusto 2003 diAs Jorge de Figueiredo Andrade Manuel da Costa Criminologia o homem delinquente e a sociedade criminógena Coimbra Coimbra Editora 1997 duArte Danilo Freire Uma breve história do ópio e dos opioides Revista Brasileira de Anestesiologia Rio de Janeiro v 55 n 1 p 135146 janfev 2005 escohotAdo Antonio Aprendiendo de las drogas Barcelona Anagrama 2006 FerrAJoli Luigi Derecho y razón Teoría del Garantismo Penal Madri Trotta 1995 FoucAult Michel Microfísica do poder Trad e org Roberto Machado Rio de Janeiro Graal 1979 giberti Eva Esbozo de fundamentación Estrategias de legitimación Medios de comunicación y los usuários de drogas In cuñArro Mónica org La política criminal de la droga Buenos Aires AdHoc 2010 gonzAgA João Bernardino Entorpecentes aspectos criminológicos e jurídicopenais São Paulo Max Limonad 1963 greco Filho Vicente Tóxicos prevenção repressão 10 ed São Paulo Saraiva 1995 hAustein KnutOlaf groneberg David Tobacco or health physiological and social damages caused by tobacco smoking Springer Library of Congress 2010 honneth Axel Observações sobre a reificação Civitas Revista de Ciências Sociais Porto Alegre v 8 n 1 kArAm Maria Lucia Redução de danos ética e lei Os danos da política proibicionista e as alternativas compromissadas com a dignidade do indivíduo In sAmPAio Christiane Moema Alves cAmPos Marcelo Araújo orgs Drogas dignidade e inclusão social a lei e a prática de redução de danos Associação Brasileira de Redutores de Danos 2003 kArch Steven B A Brief History of Cocaine 2 ed Boca Raton Taylor Francis 2006 232 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA knight Robert G Longmore Barry E Clinical neuropsychology of alcoholism East Sussex Lawrence Erlbaum Associates Publishers 1994 lArAnJeirA Ronaldo et al Usuários de substâncias psicoativas abordagem diagnóstico e tratamento São Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo Associação Médica Brasileira 2003 loe Meika The rise of the Viagra how the little blue pill changed sex in America New York New York University Press 2004 mAcFArlAne Aidan et al Que droga é essa 2 ed São Paulo Ed 34 2012 mArlAtt G Alan donovAn Denis M Prevenção de recaída estratégias de manutenção no tratamento de comportamentos aditivos 2 ed Porto Alegre Artmed 2005 mesquitA Fábio A perspectiva da redução de danos Boletim IBCCRIM edição especial out 2012 mommsen Theodor Römisches Strafrecht Leipzig Duncker Humblot 1899 Michaelis moderno dicionário da língua portuguesa Disponível em wwwmichaelisuol combr Acesso em 13 jun 2013 PArliAment House Of Commons Drug classification making a hash of it Great Britain Science and Technology Committee 2006 Disponível em wwwbooksgooglecom olmo Rosa del A face oculta da droga Rio de Janeiro Revan 1990 rAmos Beatriz Vargas Direito ao dissenso In bAtistA Vera Malaguti org Criminologia de cordel Rio de Janeiro Revan 2012 reghelin Elisangela Melo Redução de danos prevenção ou estímulo ao uso indevido de drogas injetáveis São Paulo RT 2002 ribeiro Maurides de Melo Políticas públicas e a questão das drogas o impacto da política de redução de danos na legislação brasileira de drogas Dissertação de mestrado em Direito Penal Medicina Forense e Criminologia Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo 2007 ribeiro Sidarta mAlcherloPes Renato menezes João R L Drogas e neurociências Boletim IBCCRIM edição especial out 2012 riPollés José Luiz Díez A racionalidade das leis penais teoria e prática Trad Luiz Regis Prado São Paulo RT 2005 sAAddiniz Eduardo Inimigo e pessoa no direito penal São Paulo LiberArs 2012 sAllA Fernando Jesus Maria Gorete Marques de rochA Thiago Thadeu Relato de uma pesquisa sobre a Lei 113432006 Boletim IBCCRIM edição especial out 2012 shecAirA Sérgio Salomão Criminologia 2 ed São Paulo RT 2008 Criminologia 3 ed São Paulo RT 2011 sicA Leonardo Funções manifestas e latentes da política de War on Drugs In Reale Junior Miguel coord Drogas aspectos penais e criminológicos Rio de Janeiro Forense 2005 silvA sánchez JesúsMaría A expansão do direito penal aspectos da política criminal nas sociedades pósindustriais Trad Luiz Otavio de Oliveira Rocha 2 ed rev e ampl São Paulo RT 2011 silveirA Renato de Mello Jorge Drogas e política criminal entre o direito penal do inimigo 233 Renato Watanabe de MoRais RicaRdo savignani alvaRes leite e sÍlvio eduaRdo valente e o direito penal racional In reAle Júnior Miguel org Drogas aspectos penais e criminológicos Rio de Janeiro Forense 2005 szAsz Thomas Our Right to Drugs New York Syracuse University Press 1996 vArellA Drauzio Estação Carandiru São Paulo Companhia das Letras 2000 Wills Simon Drugs of abuse 2 ed London Pharmaceutical Press 2005 young Jock Mass Media Drugs and Deviance In Rock Paul Mcintosh Mary Deviance and Social Control Londres Tavistock 1974 zAccone Orlando serrA Carlos Henrique Aguiar Guerra é paz os paradoxos da política de segurança de confronto humanitário In Batista Vera Malaguti org Criminologia de cordel Rio de Janeiro Revan 2012 zAFFAroni Eugenio Raúl Em busca das penas perdidas a perda de legitimidade do sistema penal Trad Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição 5 ed Rio de Janeiro Revan 2001 O inimigo no direito penal Trad Sergio Lamarão 3 ed Rio de Janeiro Revan 2011 PierAngeli José Henrique Manual de direito penal brasileiro parte geral Vol 1 7 ed rev e atual São Paulo RT 2007 reflexões sobre As políticAs de drogAs1 Sérgio Salomão Shecaira Professor Titular de Direito Penal da Universidade de São Paulo Expresidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais sumário 1 Premissa 2 Enfoque epistemológico 3 A caminho da normalização 4 Experiências de normalização 5 Nota conclusiva 6 Referências bibliográficas 1 premissa A proibição das drogas é um sistema global de poder estatal Parafraseando durkheim a proibição das drogas é um fato social É uma realidade que existe queiramos reconhecêla ou não mas que traz suas consequências reais e seus efeitos reais Toda a discussão sobre o tratamento políticocriminal das drogas esbarra em normas internacionais muito estritas que dificilmente poderão ser modificadas em um curto prazo Isso cria uma infinidade de 1 O presente artigo foi originalmente preparado como uma conferência proferida no mês de novembro de 2012 no Congresso Internacional da Sociedade Internacional de Defesa Social 236 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA problemas em níveis locais fazendo com que os diferentes países procurem soluções tópicas para as medidas estritamente repressivas e de proibição das drogas Para que se tenha em conta a dimensão do problema basta que comparemos dois dos cinco países que mais encarceram no mundo O Brasil quarto no ranking de encarcerados tem 514000 pessoas presas Dessas 143302 foram processadas por tráfico de drogas Vale dizer mais de 35 dos encarcerados no Brasil cometeram esse crime Os EUA país que mais propala ser o país da liberdade tornouse aquele que tem o maior número de presos do planeta lá a situação é ainda pior especialmente porque também há a fixação de pena privativa de liberdade por porte da droga Os dados são assustadores Dos 2500000 de encarcerados 1600000 cometeram crimes associados a drogas São 64 do total O curioso é que desde os anos 20 do século passado quando começa a existir um sistema internacional de controle das drogas a proibição transcende às ideologias e aos regimes políticos Os nazistas alemães e os fascistas italianos adotaram a proibição da mesma forma que os regimes democráticos da época Na China desde há muito os mandarins os militares os capitalistas e os comunistas adotaram a proibição Os soviéticos com seu rígido sistema punitivo enviavam os traficantes aos Gulags Parece que a volta para o sistema capitalista não mudou a mentalidade punitiva O generais populistas da América Latinha e os intelectuais anticolonialistas da África pensam da mesma maneira quando se fala em repressão às drogas Por quê Por que há de ser assim A proibição das drogas deu a todo tipo de governo em todas as situações possíveis uma verdadeira carta branca para atuação de forças policiais Governos de todo o mundo utilizaram em várias situações possíveis o argumento de combate ao narcotráfico como desculpa para operações secretas que não tinham nenhuma relação com as drogas As unidades de narcóticos da polícia ou do exército podem se dirigir a qualquer lugar de forma legítima e têm liberdade para operações e incursões militares que de outra forma não poderiam ter2 Nixon caiu por erros de uma atuação paraestatal 2 levine Harry G Prohibición global de las drogas las variedades y usos de la prohibición de las drogas en los siglos XX e XXI Globalización y drogas Políticas sobre drogas derechos humanos y reducción de riesgos Madrid Dykinson 2003 p 70 237 Sérgio Salomão Shecaira de suas forças de inteligência No entanto o Czar das drogas nos Estados Unidos sempre teve liberdade e apoio das agências policiais para todo tipo de atuação escusa É muito fácil atribuir toda ordem de problemas sociais da corrupção à fraude da delinquência organizada à criminalidade patrimonial de rua da baixa produtividade à preguiça da falta de política pública à irresponsabilidade ao fenômeno do uso da heroína cocaína ou crack3 O sistema políticocriminal global pensado a partir das Convenções sobre Drogas da ONU proíbe a produção distribuição transporte venda compra e porte de algumas substâncias especificamente elencadas em listas próprias punindo tais condutas com penas prisionais As penas destinadas aos usuários são consideravelmente menores Mas muitos países continuam a enviar usuários ao cárcere como é o caso da maior parte dos Estados norte americanos ou de países muçulmanos Em alguns países até a pena capital é utilizada para o tráfico de substâncias ilícitas4 Três são os documentos básicos que regulam a matéria na esfera internacional Em 1961 a Convenção Única sobre Drogas Narcóticas da Organização das Nações Unidas5 foi assinada e o mundo inteiro se comprometeu a combater o tráfico de drogas Dez anos depois da Convenção Única em 1971 é firmada a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas que tratava de novas drogas psicodélicas produzidas sobretudo no hemisfério norte6 Em 1988 já sob influxo da uma nova onda de proibições temse o alargamento do controle do sistema com a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Drogas Enfim sucessivas ampliações internacionais das proibições e do controle ao tráfico internacional com aumento das punições são levadas a cabo e influenciam as legislações nacionais de diversos países todavia sempre sem sucesso 3 Idem p 71 4 Trinta e dois países continuam a ter pena de morte para crimes ligados ao tráfico de drogas Entre eles podemos destacar China Arábia Saudita Coreia do Sul Coreia do Norte Iraque Indonésia Irã Malásia Índia e Cuba de lA cuestA José Luis The Death penalty and drugs In zAPAtero Luis Arroyo et al org Towards the universal abolition of the death penalty Valencia Tirant Lo Blanch 2010 p 369 5 Convenção Única sobre Drogas Narcóticas Disponível em wwwundocorgbrazilpt convencoeshtml Acesso em jan 2012 6 Disponível em httpwww2mregovbrdaipsicotrC3B3picashtm Acesso em fev 2012 238 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 2 enfoque epistemológico N este passo antes de se detalharem as políticas adotadas e que são referenciais em alguns países é prudente refletir sobre o fundamento epistemológico desta discussão A análise da história da guerra às drogas põe em relevo três grandes movimentos políticocriminais O primeiro deles que é o mais primitivo podese chamar de terror intervencionista Esta estratégia caracterizase por 4 aspectos a o princípio do alienus o fenômeno da droga e seus atores são externos à sociedade de tal sorte que estes atores sociais não são vistos como parte dela7 b o princípio da agonística a ação que se adota em relação ao fenômeno das drogas é bélica A ideia reitora se situa dentro do signo do combate e a luta é contra um inimigo poderoso demandandose a utilização de muitas armas c o princípio da erradicação o combate às drogas tem uma referência hipotética em uma sociedade livre delas e não são admitidas soluções intermediárias Só há o preto e o branco com a impossibilidade de se ter outras matizações d o princípio do vale tudo todos os meios de combate são legítimos e devem ser mobilizados e o cidadão é parte dessa engrenagem podendo e devendo denunciar qualquer notícia que indique um sinal do inimigo8 A conjugação dessas ideias determina uma multiplicidade de pequenas batalhas pautadas pela fúria irracional e paixão visceral compreendem o terrorismo mediático e o envolvimento religioso maniqueísta que oscila entre o olhar divino e o diabólico exacerbam os pânicos morais as declarações ensandecidas por parte dos políticos e por fim a insanidade generalizada dos países que torram milhões em uma guerra de antemão perdida e que a experiência de cada dia está a indicar que é uma política pública cara e totalmente ineficaz O segundo movimento políticocriminal podese chamar de engenharia da química psicotrópica Nesta visão duas são as perspectivas adotadas Uma estratégia dura para o tráfico e uma branda para o consumo Para o tráfico são mantidos os princípios do 7 Uma leitura do Livro de Eugenio Raul Zaffaroni O inimigo no direito penal é totalmente aplicável ao tema 8 AgrA Cândido da Ciencia ética y arte de vivir elementos para un sistema de pensamiento crítico sobre el saber y las políticas de la droga In La seguridad en la sociedad del riesgo un debate abierto Barcelona Atelier 2003 p 201 239 Sérgio Salomão Shecaira terror intervencionista Temse o inimigo como alienus e como em qualquer combate pugnase pela exclusão agonística do traficante9 A segunda visão orientada ao usuário mantém os princípios na forma mas os altera em conteúdo Transmutase o alienus em um enfermo delinquente submetendoo a um tratamento interior por meio dos dispositivos médicolegais amparados pelas regras jurídico penais O princípio da erradicação se desloca do plano geral uma sociedade sem drogas para o individual uma vida sem drogas10 De tal sorte que como disse nancy reagan quando lhe indagaram o que um jovem deveria fazer se um traficante lhe oferecesse drogas respondeu Just say no Tudo passa a ser uma questão de vontade interior Apenas diga não E basta O princípio do vale tudo se dissimula numa linguagem técnica multidisciplinar que valoriza as divisões técnicas de intervenção prevenção tratamento e reeducação Ou seja todos os meios demandam uma prática individual de uma vida sem drogas fazendose um julgamento moral implícito sobre a decisão interior O eventual deslize será reparado pelo saber em que se faz uma reengenharia médica psicológica e principalmente social com o amparo na lei A justiça terapêutica nada mais é que uma manifestação da engenharia da química psicotrópica O terceiro movimento políticocriminal é o da intervenção mediadora Nele buscamse novas identidades em que se abandona o ideário do terror intervencionista bem como o da engenharia química psicotrópica Tal intervenção coincide com as práticas do Estado Democrático de Direito e está pautado por quatro ideias a princípio da imanência o fenômeno da droga e seus atores não são coisas estranhas ou alheias às sociedades atuais Ao contrário expressa um estado imanente ao normal funcionamento das sociedades contemporâneas b princípio da tolerância a sociedade da modernidade líquida é uma sociedade que parte da premissa da alteridade da diversidade entre pessoas grupos de pressão e classes sociais Isso impõe a todos uma atitude menos arrogante de combate às drogas fazendo com que se deva aprender a conviver com esse fenômeno c princípio do mal menor a humildade que há de se ter diante do fenômeno das drogas elimina a irreal busca do seu extermínio obrigando a todos conviverem com a ideia de uma 9 Op cit p 202 10 Idem ibidem 240 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA redução dos riscos e dos danos isto é mitigar os custos sociais e individuais ao mínimo viável princípio da irreversibilidade existem situações de consumo de drogas que são irreversíveis Essas situações exigem soluções humanitárias e éticas que contrariam tabus que dominaram o discurso punitivo do terror intervencionista e que estão a demandar novas atitudes em relação ao viciado que não passe por seu julgamento moral11 mark twain em uma provocativa assertiva aduziu A quem pertence meu corpo E a resposta foi Ele provavelmente é meu e não pertence ao Estado Se eu não o tratar judiciosamente é o Estado que vai morrer Ah não12 No entanto quando os agentes estatais privam pessoas que quando muito estão maltratando o próprio corpo do direito de sua liberdade condenandoos a uma pena grave e que afeta a toda sociedade por certo que se está diante do terror intervencionista Afinal justificar a pena privativa de liberdade para cuidar de quem não se cuida é evidentemente um ato de terror De outra parte levar quem não se cuida a um tratamento obrigatório como se fosse doente é algo típico da engenharia da química psicotrópica Isto é cuidase moralmente daquele que não quer cuidar de seu corpo 3 A caminho da normalização M uitas alternativas dentro do marco estrito do sistema de proibições pautado pelo direito internacional podem ser concebidas para minimizar os problemas acima mencionados A primeira alternativa de política criminal conhecida é a da descriminalização que não é homogênea e tem grandes variantes A palavra tem diferentes acepções mas é usada para identificar a não punição dos usuários de drogas com penas de natureza criminal Há várias formas com que se atingiram esses objetivos Em alguns casos medidas legislativas simplesmente descriminalizaram o uso de certas drogas Em outros países foi resultado de uma longa construção jurisprudencial e o mérito de tais medidas deve ser creditado à 11 Op cit p 203 12 szAsz Thomas S Drugs as property the right we rejected In Should we legalize decriminalize or deregulate New York Prometheus Books 1998 p 185 241 Sérgio Salomão Shecaira atividade dos magistrados Parte da doutrina chama tais políticas de despenalização porquanto o sistema continua a prever algum tipo de reprovação mas isso se opera apenas do âmbito administrativo com a atribuição de multas ou serviços comunitários No Brasil por exemplo se pensarmos a lei vigente temse unicamente uma descarcerização Continuase a ter um processo criminal com as consequências inerentes a uma sentença condenatória mas não se envia o condenado ao cárcere As penas previstas aos usuários são sempre alternativas Dentro de tais políticas despenalizadoras uma das especificidades é a retirada do processo judicial da esfera dos juízes Por esse procedimento chamado pela doutrina criminológica de Diversion um órgão encarregado fora do Poder Judiciário passa a aplicar medidas extrapenais para reprovação de condutas cuja repressão não é suficientemente grave para ser feita pelo sistema de controle judicial Com isso evitamse um processo estigmatizante e as consequências secundárias inerentes ao processo criminal O objetivo de todas essas propostas é o de reduzir danos para usuários e dependentes e impedir os riscos de um envolvimento mais acentuado dos adictos com grupos criminais fornecedores das drogas Com tal política os esforços são concentrados na prevenção e no combate à oferta bem como nos grupos criminais que monopolizam produção comercialização e vendas A segunda proposta alternativa sobre o tema é a chamada legalização13 Este procedimento pode ser entendido tomando por referência aquilo que existe no mundo inteiro com tabaco e álcool salvo em alguns países muçulmanos onde o álcool é geralmente ilegal Na legalização agências governamentais distintas estabelecem 13 A legalização tem sido defendida por muitos autores e organizações neoliberais O Instituto Cato mantém uma discussão muito bem estruturada com a apresentação de reportagens artigos revistas e pesquisas em que a legalização da droga é defendida Vide nesse sentido o site wwwcatoorgpubs Entre muitos trabalhos lá publicados há um substancioso artigo assinado por greenWAld Glenn The Drug Decriminalization in Portugal httpwwwcatoorgpubswtpapersgreenwaldwhitepaperpdf Quem também sistematicamente defende a legalização das drogas é a revista The Economist como o fez entre muitas oportunidades no seu Editorial de 05032009 em http wwweconomistcomnode13237193storyid13237193httpwwweconomistcom node13234157 242 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA regras para a produção o manuseio o comércio de cada substância disciplinando quem pode adquirila ou quem pode comercializála Assim p ex o álcool como droga legal pode ser legalmente vendido em bares para adultos havendo restrição para consumos de menores de idade O mesmo ocorre com remédios que só podem ser adquiridos com um receituário especial prescrito por médico autorizado Na legalização também são disciplinadas as formas de consumo seus horários ou locais O tabaco em muitos países não pode ser utilizado em prédios públicos ou recintos fechados como bares e restaurantes O principal objetivo da legalização é tentar reduzir o uso problemático das drogas e as consequências causadas pela criação de mercados ilegais Em princípio terseia um melhor controle sobre quem consome drogas podendo melhor direcionar as agências de saúde para o tratamento e a prevenção Com o sistema tradicional e inflexível de proibições é muito difícil adotar políticas públicas que permitam reduzir os danos de usuários de drogas ilícitas pesadas substituindoas por drogas menos agressivas ao organismo São comuns na Europa por exemplo políticas destinadas aos usuários de heroína com a oferta de uma substância similar porém menos agressiva que é a metadona Tais políticas necessitam em alguma medida flexibilizar o conceito de proibição estabelecido por regras internacionais e também podem ser implementadas no marco da descriminalização Como muito bem observa José luis de la cuesta não é a mesma coisa propor o acesso legal às drogas e sua legalização O acesso legal se dá quando certas pessoas ou grupo de pessoas podem ter acesso à droga sem incorrer em nenhuma ilegalidade ainda que a população em geral não possa fazêlo A legalização por seu turno total ou controlada com o monopólio estatal das drogas implica um comércio legal das mercadorias14 Em nosso sentir uma mudança radical da estratégia proibicionista parece ser indispensável Isso não significa uma renúncia a toda possibilidade de controle das drogas Ao contrário Significa fazer com que o Estado Democrático de Direito possa exercer 14 Es posible la normalización de las drogas Perspectiva jurídicopenal Drogas sociedad y ley avances en drogodependencias Bilbao Universidad de Deusto 2003 p 21 243 Sérgio Salomão Shecaira seu firme papel indutor para impedir que a saúde das pessoas seja prejudicada A sociedade continuará a exercer sua função de controlar eficazmente a produção o transporte a comercialização e uso das substâncias perigosas No Estado Democrático de Direito tal controle se faz com pleno respeito aos direitos individuais dos cidadãos sua personalidade bem como privacidade Isto pode se dar por uma liberalização progressiva que há de levar a uma redução da intensidade punitiva Junto com imprescindíveis programas gerais de prevenção de riscos e danos o sistema deve caminhar para um controle administrativo das drogas como aquele que já existe com medicamentos Um único regime jurídico pode ser implantado sem se prescindir de medidas mais imediatas como a descriminalização de drogas leves A esse processo se dá o nome de normalização15 Podese sintetizar tal política alternativa ao proibicionismo com quatro metas A primeira é que a política de drogas deve colocar em relevo a prevenção da demanda e a assistência aos consumidores tirando o foco repressivo que é inerente à atual política A segunda característica desta política é gradativamente caminhar para a não punição do comércio de drogas entre adultos Isso se consegue com um controle administrativo da produção e venda de drogas o que vem a ser a terceira meta O quarto objetivo da política de normalização é a de se punir penalmente todos aqueles que ministrarem drogas aos menores de idade ou carecedores de capacidade de decisão autônoma tão somente16 O conceito de normalização com a ideia de submeter as 15 Neste sentido vide de lA cuestA José Luis Es posible la normalización de las drogas Perspectiva jurídicopenal In Drogas Sociedad y Ley avances en drogodependencias Bilbao Universidad de Deusto 2003 p 22 de lA cuestA José LuisLa normalisation des drogues dans un état social et démocratique de droit In cesoni Maria Luisa devresse MarieSofhie orgs La détention de stupéfiants entre criminalisation et décriminalisation Academic Press Fribourg 2010 p 226 Também não se deve deixar de citar o trabalho de soto Susana Posibilidades legales conla actual legislación sobre cannabis análisis de la situación actual y propuestas para su uso normalizado In Cannabis salud legislación y políticas de intervención Madrid Instituto Internacional de Sociología Jurídica de OñatiDykinson 2006 p 1623 assim como ArAnA Xabier Cannabis normalización y legislación Eguzkilore Cuaderno del Instituto Vasco de CriminologíaSan Sebastián n 19 2005 p 131 e ss 16 mArkez Iñaki et al Diversas iniciativas de utilización del cannabis In Cannabis salud legislación y políticas de intervención Madrid Instituto Internacional de Sociología Jurídica de OñatiDykinson 2006 p 165166 244 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA substâncias hoje em dia consideradas ilegais aos mesmos controles e restrições que por exemplo temse com o resto dos medicamentos abarca ainda muitas outras questões do ponto de vista legal como são as perspectivas médica preventiva social etc17 Também não se prescinde do direito penal já que não se abrirá mão do controle regulatório que é inerente ao Estado Dessa maneira assim como o Estado inicia uma persecução penal contra aquele que falsifica um remédio também poderá fazêlo contra aquele que descumpre uma regra administrativa na produção fabrico ou comercialização de substâncias que estão sob seu controle De outra parte a estratégia normalizadora não ignora a importância de medidas diferenciadoras entre drogas leves e pesadas a atuação mais incisiva para a legalização imediata da maconha ou o estabelecimento de um marco mais claro diferenciador entre o tráfico e o uso com o estabelecimento de limites quantitativos para não punição a título de tráfico Sobre esta última questão essencial para um sistema de garantias que não foge ao contexto da ideia de normalização está a central questão de uma política de limites fixos quantitativos de drogas para a identificação diferenciadora entre uso e tráfico Distinguirse entre a posse de estupefacientes para consumo pessoal ou para oferta e tráfico é sem nenhuma sombra de dúvidas um dos problemas mais controvertidos e difíceis de serem solucionados quer para legisladores quer para magistrados e outros operadores do direito Duas são as possibilidades neste ponto De um lado o sistema de modelo flexível De outro o de quantidades limiares Pelo sistema flexível ou discricionário será o juiz da causa encarregado de determinar se a posse de drogas está destinada ao consumo pessoal ou ao tráfico segundo critérios da experiência tais como contexto da apreensão quantidade e natureza da droga forma em que está distribuída existência no local da apreensão de balanças de precisão papéis para embalagens poder aquisitivo da pessoa posse de quantidades de dinheiro em notas pequenas etc18 17 O conceito de normalização é parte dos documentos públicos do País Basco como se pode ver do livro elaborado por Xabier Arana Berastegi e Isabel Germán Mancebo e que se intitula Documento técnico para un debate social sobre el uso normalizado del cannabis Departamento de vivienda y asuntos sociales Vitória 2005 p 78 18 cAldentey Pedro Cannabis y legislaciones comparadas en Europa los consumidores en la onda expansiva del control social Cannabis salud legislación y políticas de 245 Sérgio Salomão Shecaira Já no sistema de quantidades limiares uma quantidade definida de cada substância proibida permitirá pressupor que se destina ao uso pessoal ou ao tráfico19 O sistema de quantidades limiares minimiza essa dose de subjetividade Três são as finalidades desse modelo A primeira finalidade é a de se ter um mecanismo mais seguro de distinção entre posse e oferta Abaixo de uma determinada quantidade fixada por diferentes critérios lei jurisprudência normativas etc temse como certo que tal substância destinase ao uso Acima daquela quantidade é que se analisam os critérios valoradores da identificação de eventual tráfico Com isso reduzse a margem discricionária de interpretação e evidentemente os riscos de injustiça Abaixo daquela quantidade fixada a presunção de uso não admitirá prova em contrário ainda que outros indícios existam de eventual tráfico A segunda finalidade desse sistema é uma melhor proporcionalidade na determinação da pena A proporcionalidade da resposta punitiva é pedra angular do sistema penal no Estado Democrático de Direito permitindo a determinação da pena conforme seja suficiente e necessária para a reprovação da conduta incriminada Assim não só é necessária a identificação da droga seja ela leve ou mais pesada como também sua quantidade Não é razoável a mesma punição penal para quem é acusado de traficar 10 gramas e 10 toneladas de uma mesma droga Da mesma forma drogas com potencialidades de prejuízo diferenciadas ainda que com pesos aproximados não podem ter a mesma resposta penal Vale dizer paralelamente às quantificações limiares farseá uma distinção qualitativa das drogas entre leves ou brandas e pesadas ou duras20 intervenciónMadrid Instituto Internacional de Sociología Jurídica de OñatiDykinson 2006 p 128129 19 zuFFA Grazia Cómo determinar el consumo personal en La legislación sobre drogas In wwwtniorges consulta em 19 set 2012 p 1 20 Em 2010 o Escritório das Nações Unidas contra as Drogas e os Delitos publicou uma declaração em que instava aos países membros para que garantissem a aplicação de sanções proporcionais aos delitos de drogas Essa declaração é uma continuidade ao que já se afirmara em 2007 a Junta Internacional de Fiscalização de Estupefacientes Mesmo no seio da ONU há uma ideia regente segundo a qual é importante limitar penas exacerbadas a não diferenciação de drogas com potencial lesivo distinto bem como evitar apunição exacerbada para pequenos traficantes algo que se obtém com a observância do princípio da proporcionalidade lAi Glória Drogas Crimen y Castigo 246 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA A terceira finalidade é a de propiciar um distanciamento das respostas habituais da justiça penal Isto é pequenas quantidades de drogas podem ser reprovadas na esfera administrativa permitindo um desafogamento do Poder Judiciário e evitando as deletérias consequências naturais inerentes ao processo penal 4 experiências de normalização M uitos são os caminhos já trilhados por países na busca do que denomino intervenção mediadora Poderíamos falar do sistema de coffee shops da Holanda ou dos avanços da venda de cannabis com finalidades terapêuticas em estados americanos como a Califórnia Mas restringirnosemos a uma rápida análise de dois países ambos na Península Ibérica Portugal e Espanha Portugal é o primeiro país do mundo a descriminalizar de direito todas as drogas A Lei 302000 descriminalizou o porte de todas as drogas no país O consumo deixou de ser crime Para os efeitos da lei a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias art 2º da Lei 302000 Com isso em princípio aquele que é visto pela polícia com pequenas quantidades de drogas 25 gramas de folhas de cannabis ou 5 gramas de resina 1 grama de heroína 2 gramas de morfina 2 gramas de cocaína é automaticamente encaminhado para a Comissão de Dissuasão de Toxicodependência Lá responde perante a Comissão transdisciplinar a um processo pela chamada contraordenação É uma espécie de processo administrativo em que não se admite nenhuma pena institucional e que não tramita pelo Judiciário Logo não há antecedentes criminais nem as consequências estigmatizantes do processo penal A polícia ao identificar um usuário com droga abaixo dos limites autorizados para o uso presumido por 10 dias dá um prazo de 72 horas para o comparecimento perante a Comissão de Dissuasão de Toxicodependência Lá chegando a Comissão ouvirá o consumidor e proporcionalidad de las penas por delitos de drogas In wwwtniorges consulta em 20 set 2012 p 5 247 Sérgio Salomão Shecaira reunirá os demais elementos necessários para formar um juízo sobre se a pessoa é toxicodependente ou não art 10 da Lei Também são avaliados outros critérios o lugar do consumo a atitude diante do fato a situação laboral e econômica do envolvido etc Exames médicos de sangue por exemplo ou psicológicos podem ser solicitados caso persista qualquer dúvida Não sendo a pessoa toxicodependente suspendese o processo administrativo por dois anos e impõese uma multa coima ou um trabalho comunitário Fazse um registro interno apenas para controle da atitude do envolvido nos próximos 5 anos Caso a pessoa tenha qualquer tipo de adição ou tenha tido uma recaída de tratamento anterior é encaminhado ao tratamento médico Ele pode ter que assistir a palestras motivacionais ou submeterse a outras formas de tratamento usando eventualmente conforme o caso fármacos Desde os anos 1990 utilizase em Portugal para viciados em heroína a metadona como alternativa de tratamento Ninguém é obrigado a tratarse no país pois não há nenhuma forma de tratamento compulsório Caso um dependente se negue a fazêlo será submetido a uma sanção alternativa de caráter administrativo Em nenhuma hipótese será enviado ao juiz para ser sancionado na esfera penal mesmo que não seja cooperativo Todos os estudos feitos sobre Portugal desde o advento da Lei 302000 mostram um decréscimo do uso de drogas consideradas pesadas o envolvimento espontâneo dos viciados no tratamento que lhes é oferecido a diminuição de doenças como hepatites e Aids bem como uma brutal economia aos cofres públicos daquilo que se gastava com a persecução penal e com cárcere Governo e oposição dão total apoio à lei A resistência inicial foi vencida A oposição conservadora ora no Governo dá o mesmo apoio à lei que o Partido Socialista ora na oposição elaborou Portugal tem ademais os menores índices de consumo de drogas na Europa Quem quer se tratar pode fazêlo no sistema de saúde Apesar de ser o mais completo sistema de descriminalização conhecido há um defeito de monta a porta de trás continua aberta Isto é continua a existir o tráfico e o usuário tem que se abastecer no mercado negro Quem melhor contornou esse problema foi sem nenhuma dúvida o País Vasco comunidade autônoma da Espanha Essa experiência 248 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA praticamente eliminou o mercado negro da maconha nesse local No País Vasco foram criados clubes canábicos organizações sem fins lucrativos legalizadas pelo Governo Vasco que permitem aos associados a compra de produtos canábicos que são produzidos pelas próprias associações Todo clube terá uma pequena plantação destinada aos seus associados Cada associado paga uma taxa anual ao clube e compra os produtos que quiser sempre em pequenas quantidades para seu consumo próprio Há venda de cremes cookies azeites e até diferentes tipos de erva Tudo isso em conformidade com a lei Pequenas quantidades de cannabis não são punidas pelo Estado Espanhol de tal forma que uma jurisprudência garantista construída ao largo de anos permitiu uma descriminalização concreta como resultado da atividade pretoriana A grande vantagem desse sistema é que todos compram uma droga que foi plantada beneficiada comercializada e consumida dentro dos parâmetros legais Não há mercado negro o tráfico da maconha praticamente inexiste não há processos criminais aos usuários com grande economia para o Poder Judiciário o encarceramento diminui Enfim uma economia de escala brutal se atinge com essa política pública simples E como antes se mencionou eliminase a porta de trás da droga Vale dizer o tráfico recebe um duro golpe E o consumo não aumenta por isso pois o trabalho de prevenção continua a existir 5 nota conclusiva A l Capone durante a Lei Seca fez sua fama como um famigerado criminoso chefe de uma poderosa organização criminal em Chicago Toda vez que alguém pensa em crime organizado vem à sua mente como estereótipo a mítica figura do criminoso de origem italiana Crimes em série corrupção de agentes estatais sejam eles policiais ou juízes fraqueza do Estado uma espiral de violência e uma verdadeira anomia estão associados àquele período de proibição do álcool Em 1933 o álcool foi legalizado nos EUA Mas a contrapartida da liberação foi a subsequente proibição da maconha e o desencadeamento de uma grande campanha proibicionista Essa campanha em escala 249 Sérgio Salomão Shecaira mundial principalmente a partir das Convenções sobre Drogas das Nações Unidas em que o sistema de proibições é aperfeiçoado transformou o mundo numa grande Chicago dos anos 1930 Tráfico internacional e seus personagens míticos como Pablo Escobar Carlos Lehder Juan Ochoa Santiago Meza el Pozolero ou the soup maker Fernandinho BeiraMar e Marcinho VP controladores do tráfico em morros cariocas e tantos outros nomes são a versão globalizada de Al Capone que a proibição das Nações Unidas criou na esfera mundial Parece que nada aprendemos com o episódio histórico da Lei Seca Ao contrário globalizamos o fenômeno proibicionista Se quisermos que nossos países continuem a ser democráticos também na questão das drogas devemos reconhecer que a tolerância a preservação da alteridade e do direito de se pensar diferente são princípios intrínsecos ao Estado Democrático de Direito e que devem ser praticados Há de se reconhecer a possibilidade do uso recreativo das drogas e deixar o controle produtivo para o próprio Estado como recentemente propugnou o Presidente do Uruguai Afinal a política criminal da intervenção mediadora é o substrato teórico do caminho normalizador que propugnamos 6 referências bibliográficas AgrA Cândido da Ciencia ética y arte de vivir elementos para un sistema de pensamiento crítico sobre el saber y las políticas de la droga In La seguridad en la sociedad del riesgo un debate abierto Barcelona Atelier 2003 ArAnA Xabier Cannabis normalización y legislación Eguzkilore Cuaderno del Instituto Vasco de Criminología San Sebastián n 19 2005 cAldentey Pedro Cannabis y legislaciones comparadas en Europa los consumidores en la onda expansiva del control social Cannabis salud legislación y políticas de intervenciónMadrid Instituto Internacional de Sociología Jurídica de OñatiDykinson 2006 Convenção Única sobre Drogas Narcóticas Disponível em wwwundocorgbrazilpt convencoeshtml Acesso em jan 2012 de lA cuestA José Luis The Death penalty and drugs In zAPAtero Luis Arroyo et al org Towards the universal abolition of the death penalty Valencia Tirant Lo Blanch 2010 Es posible la normalización de las drogas Perspectiva jurídicopenal Drogas sociedad y ley avances en drogodependencias Bilbao Universidad de Deusto 2003 greenWAld Glenn The Drug Decriminalization in Portugal httpwwwcatoorgpubs wtpapersgreenwaldwhitepaperpdf 250 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA lAi Glória Drogas Crimen y Castigo proporcionalidad de las penas por delitos de drogas In wwwtniorges consulta em 20 set 2012 levine Harry G Prohibición global de las drogas las variedades y usos de la prohibición de las drogas en los siglos XX e XXI Globalización y drogas Políticas sobre drogas derechos humanos y reducción de riesgos Madrid Dykinson 2003 mArkez Iñaki et al Diversas iniciativas de utilización del cannabis In Cannabis salud legislación y políticas de intervención Madrid Instituto Internacional de Sociología Jurídica de OñatiDykinson 2006 soto Susana Posibilidades legales conla actual legislación sobre cannabis análisis de la situación actual y propuestas para su uso normalizado In Cannabis salud legislación y políticas de intervención Madrid Instituto Internacional de Sociología Jurídica de OñatiDykinson 2006 szAsz Thomas S Drugs as property the right we rejected In Should we legalize decriminalize or deregulate New York Prometheus Books 1998 zuFFA Grazia Cómo determinar el consumo personal en La legislación sobre drogas In wwwtniorges consulta em 19 set 2012 limitAciones legAles de lA reducción de dAños en un contexto prohibicionistA Xabier Arana Investigador Doctor del Instituto Vasco de Criminología IVAC KREI de la Universidad del País Vasco UPVEHU Miembro del Grupo Consolidado de Investigación GICCAS de la UPVEHU Magistrado Suplente de la Audiencia Provincial de Álava Profesor invitado del Master sobre Drogodependencias y otras Adicciones IDD sumário Introducción Contradicciones entre la política prohibicionista y la reducción de daños ámbito filosófico Contradicciones entre la política prohibicionista y la reducción de daños ámbito de las prácticas Consideraciones finales introducción L a filosofía de reducir riesgos y evitar daños está interiorizada en mayor o menor medida por gran parte de la población en diferentes campos de nuestras vidas Arana 2013 Las personas que patinan suelen llevar por ejemplo casco rodilleras y coderas Quien 252 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA realiza deportes denominados de riesgo como la escalada generalmente dispone de un equipo donde se incluyen diversos elementos cuerdas clavijas mosquetones para disfrutar de ese tipo de actividad con una mayor seguridad Sin embargo a pesar de intentar reducir riesgos para evitar daños no siempre se consigue la finalidad deseada Esta reflexión también se puede extender al ámbito de los consumos de drogas las personas realizamos diferentes consumos de drogas café alcohol fármacos tabaco cannabis y la mayoría hace un uso responsable es decir se responsabiliza de sus consumos y de las consecuencias de dichos consumos En determinados contextos culturales el desayuno está unido a la ingesta entre otros productos de café o de té Las comidas habitualmente están presentes bebidas alcohólicas de baja graduación vino sidra cerveza Medicamentos incluso los que requieren prescripción médica son habituales en muchos de nuestros domicilios o en el equipaje de viaje cuando nos desplazamos a otros lugares Todo ello evidencia que los seres humanos usamos diferentes drogas con finalidades muy distintas y que una parte importante lo hacemos obteniendo más beneficios que perjuicios Sin embargo los contextos culturales y las políticas en materia de drogas suelen servir para aumentar o disminuir dichos beneficios y perjuicios generalmente basándose más en creencias que en evidencias científicas Recientemente El Semanal 21072013 p12 recogía una noticia donde coincidiendo con el denominado Día Mundial contra la Droga se iban a quemar en Pakistán 128 toneladas de droga y 43000 botellas de licor1 La noticia se acompañaba con una gran fotografía donde se podía ver a dos militares en torno a una gran pirámide compuesta por sacos de heroína y por botellas de licor preparadas para ser incendiadas El mensaje que daba Ban Ki moon Secretario General de Naciones Unidas relacionado con esa conmemoración era En este Día Internacional de la Lucha Contra el Uso Indebido y el Tráfico Ilícito de Drogas apelo a los gobiernos los medios de información y la sociedad civil para que hagan todo lo posible por crear conciencia del daño que causan las drogas ilícitas 1 Puede observarse que la noticia relaciona el término droga con heroína mientras que el término licor se asocia con alcohol 253 Xabier arana y para ayudar a impedir que haya personas que se benefician de su uso httpwwwunorgeseventsdrugabuseday Todo ello en un contexto donde diversos informes científicos han puesto en evidencia que los daños relacionados con las drogas no tienen mucho que ver con que estén prohibidas o no A finales del año 2010 The Lancet recogía una investigación del profesor David Nutt donde analizados los daños tanto a las propias personas consumidoras como a otras personas en torno al alcohol se producían más daños que en relación a otras sustancias hoy en día inmersas en las Listas de los convenios internacionales Unos años antes psiquiatras británicos tras estudiar el daño físico social y la dependencia de diversas drogas llegaron señalaron que el alcohol y el tabaco se encuentran entre las sustancias más dañinas De Benito 2007 No hace mucho tiempo Fernández Cruz 2010 catedrático y jefe del Servicio de Medicina Interna de la Universidad Complutense de Madrid y presidente del Comité Científico de la Fundación Alcohol y Sociedad2 en el ámbito de los consumos de alcohol resaltaba la necesidad de diferenciar entre abuso consumo indebido perjudicial para la salud y consumo moderado con efectos beneficiosos para la salud Para este autor El alcohol a diferencia de las drogas3 admite un consumo responsable que no entraña riesgo para la salud Su consumo responsable sensato y moderado por adultos es perfectamente compatible con una vida saludable A juicio de Fernández Cruz son los hábitos lo que relacionan el consumo de alcohol con el beneficio o con el perjuicio Por este motivo no se debe caer en la fácil discriminación y criminalización del producto en sí sino que hay que educar en el consumo entendiendo éste como moderado y responsable Coincido con este autor en esta última frase en una sociedad democrática no es pertinente discriminar y criminalizar una determinada sustancia porque sí sino que es mucho más adecuado educar en los usos sobre todo en los moderados y responsables En el contexto de la política prohibicionista fuera del uso médico 2 Algunos de los patronos de esta fundación son la Asociación Española del Brandy Bacardí España SA y la Federación Española de Bebidas Espirituosas Codina 2010 3 Nuevamente el término alcohol aparece desligado de las drogas cuando también es una droga El texto firmado por un catedrático en medicina no incluye al alcohol como una droga sino como a diferencia de las drogas 254 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA y del uso científico no es posible ningún uso responsable entre las sustancias incluidas en las Listas de los convenios internacionales en la materia por ejemplo una droga el cannabis o una planta que no es una droga la hoja de coca porque todo consumo realizado por personas adultas es calificado por las autoridades correspondientes como uso indebido y por tanto debe ser perseguido penal yo administrativamente Sin embargo existe constancia de que en determinados contextos culturales llevan miles de años consumiendo tanto derivados del cannabis como hoja de coca de manera moderada y responsable Por tanto esa diferenciación solicitada por Fernández Cruz entre uso moderado y abuso no estaría de más que se extendiera también a otras sustancias recogidas en las Listas de los convenios internacionales en la materia contradicciones entre la política prohibicionista y la reducción de daños ámbito filosófico L os consumos de drogas son una realidad en la mayoría de las culturas desde hace siglos Sin embargo en este proceso histórico se han dado diversas circunstancias que han supuesto cambios significativos en relación con los usos de las drogas Hasta hace unos pocos siglos las poblaciones consumían drogas existentes en su entorno y muy pocas personas usaban drogas de otros contextos culturales Con el avance del capitalismo las drogas como cualquier otro producto se convierten en mercancías y por tanto la producción distribución etc adquieren características de empresa No obstante son empresas legales mientras explotan mercados extranjeros no capitalistas y pasan a ser ilegales en el momento en que intentan crear y explotar un mercado metropolitano Del Olmo 198538 El prohibicionismo moderno en materia de drogas en apenas algo más de un siglo sobre todo en los últimos cincuenta años desde la entrada en vigor de la Convención Única de 1961 se ha convertido en un localismo globalizado donde la política local moralista sobre las drogas de finales del siglo XIX en Estados Unidos en la medida que este país aumenta su influencia a escala global consigue expandirse a todo el planeta Arana 2003 La potente inercia generada en torno a esta concepción del fenómeno de las drogas es todavía hoy día es 255 Xabier arana la tendencia dominante El denominado círculo vicioso del reduccionismo parcialidad exclusión dogmatismo amenaza y aislamiento Acevedo 2010 aplicado al fenómeno social de las drogas aporta elementos fundamentales para comprender la filosofía y la construcción ideológica existente tras el denominado prohibicionismo moderno en materia de drogas a parcialidad políticas diferentes en materia de drogas no en base a evidencias científicas sino como fruto de intereses políticos y económicos que condicionan los diversos campos relacionados con este fenómeno social prevención terapia asistencia reducción de daños y evitación de riesgos b exclusión fruto de la parcialidad se inician procesos de exclusión basados en concepciones moralistas donde se recurre tanto a la intolerancia como al paternalismo En torno a este proceso se consiguen consensos políticos incluso entre ideologías diferentes capaces de cimentar el stutus quo y de potenciar políticas basadas en la represión y en la marginación c dogmatismo que obliga a los Estados firmantes de los convenios internacionales en la materia a seguir las exigencias demandadas por la JIFE aunque las mismas sean contrarias a la evidencia científica y a los Derechos Humanos d amenaza la droga a veces en abstracto a veces en abstracto otras veces su consumo y otras su tráfico aparece descrita en una parte de la literatura científica como una amenaza de la que es preciso defenderse La construcción del problema de la droga convierte a ésta en una amenaza doble la amenaza de la contaminación sobre todo a raíz del VIH y la amenaza del delito Da Agra 2003 La confección de la droga como amenaza también se ha utilizado para fortalecer el establecimiento de una estrategia bélica guerra contra la droga contra un enemigo ficticio unas veces enemigo interior y otras enemigo exterior que ha producido y produce daños reales sobre todo en un sector de los colectivos más vulnerables de la sociedad e aislamiento a pesar de la intención manifestada sobre la necesidad de insertar a las personas drogodependientes en la sociedad el proceso descrito ha posibilitado la separación de un sector significativo de las personas usuarias de drogas consideradas hoy en día ilegales para identificarlas yo analizarlas Por medio de este aislamiento se les han puestos márgenes que han contribuido a su marginación El localismo globalizado de la política en materia de drogas 256 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA caracterizado por estar basado en una concepción puritana y etnocéntrica influenciada por ciertos mitos que no se ajustan a la evidencia científica junto con una fuerte aversión a las sustancias con capacidad de modificar comportamientos y a las personas consumidoras de dichas sustancias en la medida que Estados Unidos va asentando su hegemonía en el ámbito mundial consolida esa política en los organismos internacionales y desde éstos se ponen los medios para su implantación en la mayoría de los países El análisis de este proceso político e histórico es fundamental para poder comprender la formación de dominios de saber a partir de relaciones de fuerza y relaciones políticas en la sociedad en torno al fenómeno social de las drogas contradicciones entre la política prohibicionista y la reducción de daños ámbito de las prácticas U na de las claves del prohibicionismo moderno ha sido la obligación de la abstinencia de las sustancias incluidas en las Listas de los Convenios Internacionales Sólo se admite el uso científico y el uso terapéutico de dichas sustancias Sin embargo en la práctica han existido fuertes restricciones también a los usos científicos y terapéuticos En las negociaciones de la Convención Única sobre Estupefacientes 1961 se produjo un intento para que el cannabis fuera la única sustancia prohibida con el argumento de que según un informe de la Organización Mundial de la Salud OMS nada justifica su uso para fines médicos El Comité de Expertos de la OMS sin embargo opinaba que se debe seguir recomendando la prohibición o la restricción del uso médico de sustancias tales como la cannabis pero sin que dicha prohibición revista carácter obligatorio BewleyTaylor Jelsma 201111 A inicios de la década de los años setenta concretamente en el año 1972 ocurren dos acontecimientos importantes en Estados Unidos relacionados con las drogas Según señala Neuman 199171 ese año fue el presidente Nixon quien por vez primera habló de guerra contra las drogas y dedicó sus mayores ataque contra la marihuana Desde ese año hasta la actualidad la guerra contra la droga con camaleónica capacidad para variar de sustancias y de enemigos por el número de víctimas y por el gran dolor generado 257 Xabier arana es uno de los lastres más obscenos que arrastra la humanidad Sin embargo el mismo año y en el mismo país la Organización Nacional para la Reforma de las Leyes sobre Marihuana requirió de la Oficina de Narcóticos y Drogas Peligrosas con posterioridad se denominó Drug Enforcement Administration DEA la reclasificación de lista del cannabis con el objetivo de que pudiera prescribirse por personal médico de manera legal Se tardaron casi tres lustros para que se diera en 1986 las vistas públicas exigidas legalmente para poderse llevar a cabo la reclasificación Dos años más tarde 1988 el juez competente en la materia declaró que la marihuana reunía todos los requisitos legales para su empleo en terapéutica en Estados Unidos Barturen 1998113 Sin embargo en el año 1992 la DEA se opuso a la reclasificación y por este motivo se impidió la liberalización del uso médico y también de los programas de investigación individual donde se permitía el uso de cannabis en personas con sintomatología sobre la que ningún otro fármaco era eficaz Aunque con anterioridad a las décadas de los años sesenta y setenta ya se habían realizado informes sobre los efectos del consumo de cannabis entre otros IIndian Hemp Drugs Commission 1894 e Informe La Guardia 1944 en estas décadas diversos Estados ponen en marcha comisiones para estudiar este fenómeno Gran Bretaña Informe Wootton 1968 Canadá Informe Le Dain 1972 Estados Unidos Informe Shafer 1972 Holanda Informe Hulsman 1971 e Informe Baan 1972 y Australia Informe Baume 1977 Los resultados de todas estas comisiones coindicen en dos cuestiones la necesidad de regular el cannabis de manera separada del resto de las sustancias denominadas estupefacientes y no recurrir al derecho penal para legislar el uso personal de este tipo de sustancias Todas estas cuestiones relatadas en los párrafos anteriores evidencian que el proceso de investigación y dispensación de cannabis para usos terapéuticos ha sufrido una intromisión de la política prohibicionista en materia de estupefacientes capaz de influir desde un prisma ideológico en el ámbito científico Según los conocimientos científicos actuales los motivos por los que el cannabis se introdujo en las Listas de las denominadas sustancias estupefacientes es decir por potenciar la violencia la comisión de delitos así como la existencia de la llamada teoría de la escalada en virtud la cual existe una causa efecto entre el consumo inicial de cannabis y el posterior consumo de 258 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA otra sustancia heroína cocaína no disponen de base científica Por tanto es necesario quitar esta fuerte losa que pesa excesivamente sobre cualquier investigación en materia de cannabis y tratar a esta sustancia como una alternativa terapéutica potencial más y cualquier posicionamiento al respecto debería basarse como en otros casos en la relación entre toxicidad y eficacia en el control de determinadas patologías o síntomas en ocasiones dependiendo de la incidencia de los cuadros y frecuencia de fracasos terapéuticos con la característica de fármacos de segunda línea Barturen 1998114115 El proceso descrito en el apartado anterior ha supuesto sobre todo desde finales de la década de los años setenta hasta la actualidad que muchas personas consumidoras de las sustancias incluidas en las diferentes Listas de los convenios internacionales en materia de drogas tóxicas estupefacientes y psicotrópicos hayan realizado consumos en situaciones de precariedad y de vulnerabilidad con efectos muy perjudiciales para la salud de las personas consumidoras y para su entorno Es en este contexto donde si sitúan las políticas de reducción de daños en materia de drogas surgidas en torno a personas consumidoras de sustancias sobre todo heroína en situación de clandestinidad y por tanto con más posibilidades de extenderse infecciones VIH hepatitis en el campo de la salud además de una alarma social ampliamente fomentada por los medios de comunicación de esa época La línea dominante en el ámbito terapéutico era tremendamente rígida se basaba en la abstinencia no consumo de ningún tipo de estas sustancias El mero consumo esporádico daba pie a la expulsión del proceso terapéutico por seis meses o más tiempo No se contemplaba otro tipo de alternativas o abstinencia o expulsión del centro No obstante esta propuesta terapéutica no era válida para gran parte de las personas consumidoras de heroína y de otras sustancias en la década de los años ochenta La mayoría de los programas de reducción de daños puestos en práctica en el Estado español han ido acompañados de fuerte polémica Desde los programas de mantenimiento con metadona los programas de intercambio de jeringuillas sobre todo si se iban a llevar a cabo en el interior de las prisiones los testados de sustancias las salas de consumo higiénico o la dispensación terapéutica de heroína Sin embargo todos ellos han demostrado eficacia no sólo 259 Xabier arana en el ámbito de la prevención de la salud pública Por ejemplo los programas de mantenimiento con metadona además de contribuir a la mejora de la salud de un sector de personas consumidoras de heroína también tuvo su importancia en el descenso de los delitos cuya comisión tuvo que ver con el consumo de drogas ilegales por parte del autor fundamentada en la disminución de las oportunidades de delinquir Subijana 200465 Las políticas y los diversos programas de reducción de daños parten de un hecho real la existencia de un sector de personas consumidoras que no quieren dejar de consumir ese tipo de sustancias De igual modo pretende luchar por una mejora en la salud y de las condiciones sociales de estas personas así como por sus derechos y libertades La reducción de daños no es café para todos sino que parte de las necesidades concretas en situaciones específicas sobre todo de las personas consumidoras en situaciones de mayor vulnerabilidad En este proceso los Convenios Internacionales en la materia las legislaciones estatales y las interpretaciones llevadas a cabo en el seno de la JIFE se han convertido en un serio impedimento para que los criterios de salud pública prevalezcan sobre los aspectos dogmáticos y sancionatorios En los fundamentos del Documento marco sobre reducción de daños Conferencia de consenso Grup Igia 20011314 se parte de la existencia de personas que desean consumir drogas y que muchas de las mismas no van a contactar con servicios sanitarios ni con servicios sociales porque no lo van a necesitar La reducción de daños reconoce la libertad individual en la búsqueda del propio bienestar incluyendo el derecho individual al consumo de drogas Por tanto es necesario crear y apoyar los servicios adecuados para que las personas que necesiten ayuda en este campo puedan disponer de ella y terminar con la marginación no únicamente de los usuarios de drogas sino también de aquellos profesionales que elegirían trabajar en esta área Drucker 1995119 El Informe Analítico de El problema de las drogas en las Américas OEA 2013 a desde la propia introducción hace hincapié en enfatizar la necesidad de reducir daños a la salud la seguridad y el bienestar de los individuos y la sociedad El apartado relativo a alternativas legales y regulatorias a la hora de proponer la elaboración y evaluación de las políticas de control de drogas recoge 260 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA entre las cuestiones a tener en cuenta para la evaluación la protección de las personas y las comunidades contra los daños relacionados con las drogas la mitigación del daño a la salud de las personas usuarias y la reducción de las consecuencias negativas en los usuarios y en otros debido a los accidentes causados por intoxicación y delitos conexos a las drogas La filosofía de reducir riesgos para evitar daños en el fenómeno social de las drogas no puede reducirse a la puesta en práctica como mal menor de determinados programas para las personas consumidoras de drogas en diversas situaciones de vulnerabilidad Esta filosofía se tiene que extender a todo el proceso de éste fenómeno como claramente ha puesto de manifiesto Dorn 2002109110 que a su juicio el compromiso de reducir daños para el ambiente ecología para la economía para la sociedad y para las personas individuales debería ser un componente integral de toda política relativa a la producción y tráfico de drogas así como a las políticas sobre su consumo Hace ya tiempo que Henman 1996 puso de manifiesto como las estrategias de la política prohibicionista han servido para aumentar desmesuradamente los daños Una vez más se evidencia que el problema no son las drogas el problema son las leyes que prohíben a las personas lidiar con estos asuntos La criminalización causa más problemas que las drogas en sí mismas Informe de Escenarios para El problema de las drogas en las Américas OEA 2013 b47 Entre los efectos secundarios derivados de la política prohibicionista están el aumento de las personas están encarceladas así como el denominado blanqueo de dinero procedente del tráfico ilícito de este tipo de sustancias Los hechos evidencian que los daños y el sufrimiento creados por la política prohibicionista son reconocidos hasta por el propio presidente Barack Obama y el Fiscal General Eric Holder del país que exportó el prohibicionismo moderno en materia de drogas al resto del mundo En las prisiones de EE UU hay actualmente 22 millones de personas presas y más de la mitad lo está por delitos relacionados con drogas según el censo del año 2010 Saiz 2013 a Mientras que la población de este país ha aumentado una tercera parte desde 1980 la población reclusa se ha incrementado en un 800 La existencia de penas mínimas obligatorias según el tipo de drogas 261 Xabier arana puede suponer entre 5 y 10 años de prisión para este tipo de delitos es uno de los motivos principales para este desproporcional aumento de las personas en prisión y además prácticamente imposibilita el que los jueces puedan aplicar una sanción adaptada a la circunstancias de cada persona presa de cara a su proceso de rehabilitación Quizás por la necesidad de control de los flujos de entradas y salidas de estos centros y por sus evidentes consecuencias económicas Eric Holder se comprometió a realizar una reformas del sistema judicial para que los fiscales no requieran la pena mínima obligatoria en casos de este tipo de delitos cuando las personas no estén en contacto con organizaciones criminales Otra medida que va a ayudar a que disminuyan los delitos en materia de drogas es la reciente comunicación por parte del Departamento de Justicia de EE UU donde se afirma que el Gobierno Federal no se opondrá a la legislación de aquellos Estados que regulan el uso medicinal y recreativo de la marihuana Saiz 2013 b siempre y cuando no se venda a personas menores de edad y no la adquieran sectores diversos relacionados con el crimen organizado Estos criterios han sido trasmitidos por parte del Fiscal General Eric Holder tanto a todos los fiscales federales como a los gobernadores de Colorado y Washington donde actualmente se han dado pasos para una regulación del cannabis con criterios totalmente diferentes a la política prohibicionista Además en otros 18 Estados y en el Distrito de Columbia está regularizado el uso y venta de cannabis para consumo terapéutico Los pasos dados de cara a una regulación como las propuestas en el ámbito de diversos usos del cannabis lúdico y terapéutico dentro de EE UU están creando expectativas en otros Estados de EE UU y del resto del planeta para sentar las bases de una política diferente a la actual en materia de cannabis De llegar a buen puerto este proceso podría suponer una bajada sustancial del porcentaje de personas que están actualmente en prisión La Convención de Viena de 1988 sobre tráfico ilícito de estupefacientes y sustancias psicotrópicas exigió entre otras cuestiones a las partes firmantes la puesta en práctica de legislaciones para afrontar el denominado blanqueo de capitales proveniente del tráfico de drogas uno de las cuestiones capitales de este negocio ilegal El Informe Analítico de El problema de las drogas en las Américas 2013 a5563 hace referencia al 262 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA denominado blanqueo de dinero la evasión de impuestos así como de la regulación financiera y las relaciona con la corrupción y con la alta impunidad La oportunidad de ganar sin pagar ningún tipo de impuesto al Estado grandes cantidades de dinero en poco tiempo requiere de mecanismos para introducir en los circuitos legales esta acumulación de capital negocios utilizados como tapadera paraísos fiscales asesorías especializadas en superar los obstáculos legales y de encubrir el origen de determinadas cantidades de dinero Más que una línea divisoria entre la economía legal y la economía ilegal existen este tipo de prácticas que hacen de vasos comunicantes entre estos dos tipos de economía de manera complementaria Es en este escenario donde se enmarca lo ocurrido en Estados Unidos a finales del año 2012 Con el Hong Kong and Shanghai Banking Coorporation HSBC Tras la correspondiente investigación llevada a cabo por el Departamento de Justicia y posteriormente tras el informe del Senado de Estados Unidos se llegó a la conclusión que el HSBC había permitido que criminales entre ellos algunos relacionados con el narcotráfico mexicano blanqueara dinero procedente de estas prácticas Las autoridades estadounidenses en vez de llevar a cabo una acusación criminal contra la entidad decidieron no presentar cargos criminales y pactar con el banco la imposición de una multa de 1900 millones de dólares El motivo por lo que se optó por la multa fue para evitar males mayores como la desestabilización del sistema financiero global Monge 2012 Muchas de las personas que han observado esta cuestión sospechan que este caso es tan solo la punta del icerberg OEA 2013 b34 consideraciones finales S egún los conocimientos científicos actuales los Convenios Internacionales en los que se cimienta la política prohibicionista sobre las sustancias incluidas en las Listas de estos convenios se han basado entre otras cuestiones en mitos no ciertos en una concepción etnocéntrica del fenómeno social de las drogas y en una terminología ambigua y acientífica Todos estos aspectos han permitido por un lado la criminalización de prácticamente todo el ciclo relacionado con las denominadas drogas tóxicas estupefacientes y sustancias 263 Xabier arana psicotrópicas y la excesiva utilización de un Derecho penal en clave de restricción de derechos y de garantías constitucionales y por otro lado la inclusión de esos principios en los ordenamientos internos de los países firmantes Coincido con romaní 2005100102 en que las políticas de reducción de daños también son un campo de lucha ideológica en el que se dirimen distintas alternativas de control social Para este autor dentro del contexto de las estrategias de control social centradas en la gestión del conflicto constituyen tanto un reto como una posibilidad No estamos hablando sólo de la renovación de prácticas y culturas profesionales aunque las incluye sino también de la oportunidad de contribuir al debate ideológico y político tanto a nivel de las prácticas sociales más cotidianas y concretas como de las más macro acerca de qué tipo de control social queremos impulsar si nos conformamos con la lógica de la contención que tenderá finalmente a la reproducción del actual sistema social o si decidimos aprovechar la ocasión e intervenir en esta transformación de las estrategias de control social para orientarlo hacia otro tipo de mundo un poco más vivible para todos sus habitantes En el actual proceso de globalización con la desregularización existente las casi infinitas posibilidades de desplazar el capital por medio de entidades financieras y otros recursos amparados en el secreto bancario o en otras prácticas opacas el tráfico ilícito de drogas y la introducción en los circuitos legales de los beneficios obtenidos disponen de inmensas oportunidades y mayores recursos para desarrollarse y consolidarse En este contexto la globalización de la política prohibicionista proporciona un buen caldo de cultivo para la globalización de la circulación ilegal financiera del capital globalizado y las sucesivas ilegalidades que genera corrupción control social hacia las personas más vulnerables etc Los Derechos Humanos y los derechos y libertades propios del Estado social y democrático de Derecho deben ser la base referencial en la reducción de riesgos y la evitación de daños y no como actualmente está sucediendo las convenciones internacionales en materia de drogas tóxicas estupefacientes y sustancias psicotrópicas interpretadas dogmáticamente por la JIFE con grandes dosis de autoritarismo y aumento desproporcional de daños en las personas consumidoras sobre todo entre las más vulnerables y en los 264 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA países de cultivo yo producción de este tipo de sustancias Desde esta perspectiva la reducción de daños aplicada al prohibicionismo moderno en materia de drogas con su correspondiente evaluación supone poner en evidencia los efectos nocivos efectos secundarios del régimen prohibicionista y como consecuencia exigir su desmantelamiento porque la actual legislación además de limitar la aplicación de la reducción de daños en el ámbito de la salud pública genera una inercia que crea muchos más daños a las personas a su entorno e incluso al Estado social y democrático de Derecho que los que pretende evitar bibliografía Acevedo G 2010 El modo humano de enfermar Pasado presente y futuro en las Adicciones Donostia Proyecto Hombre 132142 AgrA C da 2003 Ciencia ética y arte de vivir Elementos para un sistema de pensamiento crítico sobre el saber y las políticas de la droga In AgrA C da domínguez JL gArcíA AmAdo JA hebberecht P recAsens A Eds La seguridad en la sociedad del riesgo Un debate abierto Barcelona Atelier 201225 ArAnA X 2003 La globalización de las políticas en materia de drogas como obstáculo para la profundización en la democracia In ArAnA x husAk D N scheerer S Coord Globalización y drogas políticas sobre drogas derechos humanos y reducción de riesgos Madrid Dykinson 117141 ArAnA X 2013 Marco jurídico de la reducción de daños en el campo de las drogas In mArtínez oró D P PAllArés J Eds De riesgos y placeres Manual para entender las drogas Lleida Milenio p 129142 bArturen F 1998 Farmacología e interés terapéutico del cannabis y sus derivados In meAnA J J PAntoJA L Eds Derivados del cannabisdrogas o medicamentos Avances en farmacología de drogodependencias Bilbao Universidad de Deusto 111146 benito E de 2007 El alcohol y el tabaco figuran entre las 10 drogas más dañinas El País Sociedad sábado 24032007 p 43 beWleytAylor D JelsmA M 2011 Cincuenta años de la Convención Única de 1961 sobre Estupefacientes una relectura crítica Serie reforma legislativa en materia de drogas 12 httpwwwtniorgsiteswwwtniorgfilesdownloaddlr12spdf codinA J 2010 Alcohol y sociedad La Vanguardia Opinión miércoles 17112010 p 28 dorn N 2002 El concepto de reducción de daños en el marco internacional en relación con la producción tráfico y uso de drogas Eguzkilore Cuaderno del Instituto Vasco de Criminología 16 105110 drucker E 1995 La política de drogas de Los Estados Unidos Salud pública versus prohibición In de PA ohAre R Newcombe A mAttheWs EC Bbuning y E Drucker La reducción de daños relacionados con las drogas Barcelona Grup Igia 107119 Fernández cruz A 2010 La eterna contradicción sobre el consumo de alcohol La bebida 265 Xabier arana es la única droga para la que se reconoce un consumo responsable El País Sociedad lunes 13122010 gruP igiA 2001 Gestionando las drogas Conferencia de consenso sobre reducción de daños relacionados con las drogas cooperación e interdisciplinariedad Barcelona Grup Igia henmAn A 1996 Reducción o agravación de daño In ArAnA X del olmo R Comp Normas y culturas en la construc ción de la Cuestión Droga Barcelona Hacer 5363 henmAn A 2009 Las contradicciones de las políticas de reducción de riesgos y evitación de daños en el contexto de las convenciones de la ONU In muñAgorri I Dir III Symposium Internacional sobre Reducción de Riesgos Los legados de la Convención de NU Viena 1988 y de la Asamblea General de NU sobre drogas New York 1998 Donostia UPVEHU 1721 mArtín PAllín JA 2000 Impacto social criminológico político y normativo del tráfico de drogas Delitos contra la salud pública y contrabando Consejo General del Poder Judicial 5 117171 monge Y 2012 HSBC pagará la mayor multa en EE UU por lavado de dinero El País Internacional httpinternacionalelpaiscominternacional20121211 actualidad1355259065703559html neumAn E 1991 La legalización de las drogas Buenos Aires Depalma olmo R DEL 1985 La SocioPolítica de las drogas 2ª Caracas Universidad Central de Venezuela orgAnizAción de estAdos AmericAnos 2013 a El problema de las drogas en las Américas Colombia OEA orgAnizAción de estAdos AmericAnos 2013 b Escenarios para el problema de drogas en las Américas 20132025 Colombia OEA romAní O 2005 Globalización antiglobalización y políticas de reducción de daños y riesgos Eguzkilore 19 91103 romAní O 2013 Reducción de daños y control social De qué estamos hablando In mArtínez oró DP PAllArés J Eds De riesgos y placeres Manual para entender las drogas Lleida Ed Milenio p 103116 sAiz E 2013a EE UU vira hacia un enfoque más sanitario de la lucha antidroga El País 12082013 httpsociedadelpaiscomsociedad20130812 actualidad1376323514114163htmlrelrosEP 2013b Vía libre en EE UU para los Estados que regulan la marihuana recreativa El País 29082013 httpsociedadelpaiscomsociedad20130829 actualidad1377806303988501html sePúlvedA M romAní O 2013 Conceptualización y políticas de la gestión del riesgo In mArtínez oró DP PAllArés J Eds De riesgos y placeres Manual para entender las drogas Lleida Ed Milenio p 89102 subiJAnA I 2004 Una visión jurisprudencial de los delitos de tráfico de drogas El marco judicial en el que se inserta la Ley Orgánica 152003 de 25 de noviembre por la que se modifica la Ley Orgánica 101995 de 23 de noviembre del Código Penal Revista del Poder Judicial 74 2º trimestre 6592 266 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA relação das monografias publicadas 1 Uma Pequena História das Medidas de Segurança Rui Carlos Machado Alvim 2 A Condição Estratégica das Normas Juan Félix Marteau 3 Direito Penal Estado e Constituição Maurício Antonio Ribeiro Lopes 4 Conversações Abolicionistas Uma Crítica do Sistema Penal e da Sociedade Punitiva Organizadores Edson Passetti e Roberto B Dias da Silva 5 O Estado e o Crime Organizado Guaracy Mingardi 6 Manipulação Genética e Direito Penal Stella Maris Martinez 7 Criminologia Analítica Conceitos de Psicologia Analítica para uma Hipótese Etiológica em Criminologia Joe Tennyson Velo 8 Corrupção Ilegalidade Intolerável Comissões Parlamentares de Inquérito e a Luta contra a Corrupção no Brasil 19801992 Flávia Schilling 9 Do Gene ao Direito Carlos Maria Romeo Casabona 10 HabeasCorpus Prática Judicial e Controle Social no Brasil 18411920 Andrei Koemer 11 A Posição Jurídica do Recluso na Execução da Pena Privativa de Liberdade Anabela Miranda Rodrigues 12 Crimes Sexuais e Sistema de Justiça Joana Domingues Vargas 13 Informatização da Justiça e Controle Social Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo 14 Policiamento Comunitário e Controle sobre a Polícia A Experiência NorteAmericana Theodomiro Dias Neto 15 Liberdade de Expressão e Direito Penal no Estado Democrático de Direito Tadeu Antonio Dix Silva 16 Correlação entre Acusação e Sentença no Processo Penal Brasileiro Benedito Roberto Garcia Pozzer 267 Xabier arana 17 Os Filhos do Mundo A Face Oculta da Menoridade 19641979 Gutemberg Alexandrino Rodrigues 18 Aspectos JurídicoPenais da Eutanásia Gisele Mendes de Carvalho 19 O Mundo do Crime A Ordem pelo Avesso José Ricardo Ramalho 20 Os Justiçadores e sua Justiça Linchamentos Costume e Conflito Jacqueline Sinhoretto 21 Bem JurídicoPenal Um Debate sobre a Descriminalização Evandro Pelarin 22 Espaço Urbano e Criminalidade Lições de Escola de Chicago Wagner Cinelli de Paula Freitas 23 Ensaios Criminológicos Adolfo Ceretti Alfredo Verde Ernesto Calvanese Gianluigi Ponti Grazia Arena Massimo Pavanini Silvio Ciappi e Vincenzo Ruggiero 24 Princípios Penais Da Legalidade à Culpabilidade Cláudio do Prado Amaral 25 Bacharéis Criminologistas e Juristas Saber Jurídico e Nova Escola Penal no Brasil Marcos César Alvarez 26 Iniciativa Popular Leonardo Barros Souza 27 Cultura do Medo Reflexões sobre Violência Criminal Controle Social e Cidadania no Brasil Débora Regina Pastana 28 Descontinuidade no Envolvimento com o Crime Construção de Identidade Narrativa de ExInfratores Ana Paula Soares da Silva 29 Sortilégio de Saberes Curandeiros e Juízes nos Tribunais Brasileiros 19001990 Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer 30 Controle de Armas Um Estudo Comparativo de Políticas Públicas entre GrãBretanha EUA Canadá Austrália e Brasil Luciano Bueno 31 A Mulher Encarcerada em Face do Poder Punitivo Olga Espinoza 32 Perspectivas de Controle ao Crime Organizado e Crítica à Flexibilização dos Garantias Francis Rafael Beck 268 DROGAS UMA NOVA PERSPECTIVA 33 Punição Encarceramento e Construção de Identidade Profissional entre Agentes Penitenciários Pedro Rodolfo Bodê de Moraes 34 Sociedade do Risco e Direito Penal Uma Avaliação de Novas Tendências PolíticoCriminais Marta Rodriguez de Assis Machado 35 A Violência do Sistema Penitenciário Brasileiro Contemporâneo O Caso RDD Regime Disciplinar Diferenciado Christiane Russomano Freire 36 Efeitos da Internação sobre a Psicodinâmica de Adolescentes Autores de Ato Infracional Sirlei Fátima Tavares Alves 37 Confisco Penal Alternativa à Prisão e Aplicação aos Delitos Econômicos Alceu Corrêa Junior 38 A Ponderação de Interesses em Matéria de Prova no Processo Penal Fabiana Lemes Zamalloa do Prado 39 O Trabalho Policial Estudo da Polícia Civil no Estado do Rio Grande do Sul Acácia Maria Maduro Hagen 40 História da Justiça Penal no Brasil Pesquisas e Análises Organizador Andrei Koemer 41 Formação da Prova no Jogo Processo Penal O Atuar dos Sujeitos e a Construção da Sentença Natalie Ribeiro Pletsch 42 Flagrante e Prisão Provisória em Casos de Furto Da Presunção de Inocência à Antecipação de Pena Fabiana Costa Oliveira Barreto 43 O Discurso do Telejornalismo de Referência Criminalidade Violenta e Controle Punitivo Marco Antonio Carvalho Natalino 44 Bases Teóricas da Ciência Penal Contemporânea Dogmática Missão do Direito Penal e Polícia Criminal na Sociedade de Risco Cláudio do Prado Amaral 45 A Seletividade do Sistema Penal na Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça O Trancamento da Criminalização Secundária por Decisões em Habeas Corpus Marina Quezado Grosner 46 A Capitalização do Tempo Social na Prisão A Remição no Contexto das Lutas de Temporalização na Pena Privativa de Liberdade Luiz Antônio Bogo Chies 47 Crimes Ambientais à luz do conceito de bem jurídicopenal descriminalização redação típica e inofensividade Guilherme Gouvêa de Figueiredo 269 Xabier arana 48 Um estudo dialógico sobre institucionalização e subjetivação de adolescentes em uma casa de semiliberdade Tatiana Yokoy de Souza 49 Policiando a Polícia A CorregedoriaGeral de Polícia Civil do Rio Grande do Sul 19992004 Saulo Bueno Marimon 50 Repressão Penal da Greve Uma experiência antidemocrática Christiano Fragoso 51 O Caos Ressurgirá da Ordem Marcos Paulo Pedrosa Costa 52 Justiça Restaurativa da Teoria à Prática Raffaella da Porciuncula Pallamolla 53 Lei Cotidiano e Cidade Luís Antônio Francisco de Souza 54 A Recusa das grades Eda Maria Góes 55 O Crime de Tortura e a Justiça Criminal Maria Gorete Marques de Jesus 56 Súmula Vinculante em Matéria Criminal Diogo Tebet 57 Crime e Congresso Nacional uma análise da política criminal aprovada de 1989 a 2006 Marcelo da Silveira Campos 58 DELITO Y POBREzA espacios de intersección entre la política criminal y la política social argentina en la primera década del nuevo siglo Emilio Jorge Ayos 59 Criminalização e Seleção no Sistema Judiciário Penal Oscar Mellim Filho 60 Solidariedade e Gregarismo nas Facções Criminosas Bruno Shimizu 61 Concurso de agentes nos delitos especiais Mariana Tranchesi Ortiz 62 Entre as Leis da Ciência do Estado e de Deus Bruna Angotti 63 A LUTA E A LIDA estudo do controle social do MST nos acampamentos e assentamentos de reforma agrária Franciele Silva Cardoso 64 Entre bens jurídicos e deveres normativos um estudo sobre os fundamentos do Direito Penal contemporâneo Yuri Corrêa da Luz 65 Hassemer e o Direito Penal Brasileiro Direito de Intervenção Sanção Penal e Administrativa Ana Carolina Carlos de Oliveira NORMAS PARA APRESENTAÇÃO E PUBLICAÇÃO DE TEXTOS DE MONOGRAFIAS IBCCRIM As monografias remetidas ao IBCCRIM para análise e eventual publicação deverão ter por tema isolada ou conjuntamente as matérias de Direito Penal Direito Processual Penal Criminologia Política Criminal Sociologia Psicologia Filosofia e correlatas devendo ser redigidas em língua portuguesa ficando a critério do autor o título o enfoque metodológico a abordagem crítica e o posicionamento opinativo As monografias devem obedecer ainda às seguintes exigências 1 As monografias enviadas deverão ser inéditas 2 As referências ou citações de outras obras demandam a indicação explícita dos respectivos autores e fontes As referências bibliográficas deverão ser feitas de acordo com a NBR 60232002 Norma Brasileira da Associação Brasileira de Normas Técnicas ABNT Uma referência bibliográfica básica deve conter sobrenome do autor em letras maiúsculas vírgula nome do autor em letras minúsculas ponto título da obra em itálico ponto número da edição a partir da segunda ponto local dois pontos editora não usar a palavra editora vírgula ano da publicação ponto como no exemplo a seguir NERY JÚNIOR Nelson e NERY Rosa Maria Andrade Código de Processo Civil Comentado 3ª ed São Paulo RT 1999 3 Relação bibliográfica completa das obras citadas ou referidas deverá constar na parte final do texto 4 Os trabalhos deverão ter no mínimo 100 laudas Os parágrafos devem ser justificados Como fonte deve ser empregada o Times New Roman corpo 12 Os parágrafos devem ter entrelinha 15 as margens superior e inferior 25cm e as laterais 30cm O tamanho do papel deve ser A4 5 Os trabalhos deverão ser precedidos de breve Resumo 15 linhas no máximo e de um Sumário do qual deverão constar os itens com até 4 dígitos como no exemplo SUMÁRIO 1 Introdução 2 Responsabilidade civil ambiental legislação 21 Normas clássicas 22 Inovações 221 Dano ecológico 2221 Responsabilidade civil objetiva 6 Todo destaque que se queira dar ao texto impresso deve ser feito com o uso de itálico Não sendo admissíveis o negrito ou a sublinha Citações de textos de outros autores deverão ser feitas entre aspas sem o uso de itálico 7 Não serão devidos direitos autorais ou qualquer remuneração pela publicação em qualquer tipo de mídia papel eletrônica etc O autor receberá gratuitamente 50 exemplares da monografia 8 A monografia terá uma única edição ficando o autor posteriormente liberado para novas edições Os trabalhos que não se ativerem a estas normas serão devolvidos a seus autores que poderão ser remetidos de novo desde que efetuadas as modificações necessárias 9 Serão admitidas monografias resultantes de concursos e títulos acadêmicos inclusive dissertações de mestrado teses de doutorado e concursos relativos a atividade docente Os trabalhos relativos a monografias resultantes de conclusão de cursos de graduação não serão aceitos 10 A seleção dos trabalhos para publicação é de competência do Departamento de Monografias Os trabalhos recebidos para seleção não serão devolvidos 11 Caso a monografia seja aprovada será fixada uma data para publicação por ordem de aprovação após entraremos em contato e enviaremos um contrato padrão que deverá ser devidamente assinado com firma reconhecida e faremos solicitações que entendemos pertinentes 12 Não há custos para o autor e serão publicados aproximadamente 4000 exemplares destes o autor receberá sem custo algum 50 cinquenta A remessa das monografias deve se dar por meio postal para o IBCCRIM ao cuidados do Departamento de Monografias na Rua XI de Agosto 52 1º andar Centro São Paulo SP CEP 01018010 bem como em versão eletrônica para monografiasibccrimorgbr Os trabalhos deverão ser identificados contendo um breve currículo do autor bem como endereço e telefone para contato Produção Gráfica planmais ltda rua dona brígida 754 vila mariana 04111081 são paulo sp tel 11 20612797 planmarkeditoraplanmarkcombr