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Ensinando a transgredir A educação como prática da liberdade bell hooks Tradução de Marcelo Brandão Cipolla mmartinsfontes SÃO PAULO 2013 222 Ensinando a transgredir rão na academia um asilo não buscarão tornála um local de desafio crescimento e intercâmbio dialético Essa é uma das tragédias da educação hoje em dia Um monte de gente não reconhece que ser professor é estar com as pessoas I I A língua Ensinando novos mundosnovas palavras Como o desejo a língua rebenta se recusa a estar con tida dentro de fronteiras Fala a si mesma contra a nossa vontade em palavras e pensamentos que invadem e até violam os espaços mais privados da mente e do corpo Foi no primeiro ano de faculdade que li um poema de Adrien ne Rich chamado The Burning of Paper Instead of Chil dren Queimar papel em vez de crianças Esse poema falando contra a dominação o racismo e a opressão de classe procura ilustrar de modo claro que pôr fim à perse guição política e à tortura de seres vivos é uma questão mais vital que a censura que queimar livros Um verso des se poema que comoveu e perturbou algo dentro de mim Esta é a língua do opressor mas preciso dela para falar com você Nunca o esqueci Talvez não conseguisse es quecêlo nem que tentasse apagálo da memória As pala vras se impõem lançam raízes na nossa memória contra a nossa vontade As palavras desse poema geraram na minha memória uma vida que eu não pude abortar nem mudar Agora quando me pego pensando sobre a língua essas palavras estão ali como se estivessem sempre esperando para me ajudar e me questionar Pegome repetindoas em silêncio com o fervor de uma salmodia Elas me surpreen 223 224 Ensinando a transgredir dem e me sacodem despertando a consciência de um vín culo entre as línguas e a dominação De início resisto à ideia da língua do opressor certa de que esse conceito tem o potencial de enfraquecer aqueles entre nós que estão apenas aprendendo a falar apenas aprendendo a tomar posse da língua como um território onde nos transforma mos em sujeitos Esta é a língua do opressor mas preciso dela para falar com você Palavras de Adrienne Rich En tão quando li essas palavras pela primeira vez e quando as leio agora elas me fazem pensar no inglês padrão em aprender a falar de modo contrário ao vernáculo negro de modo contrário à fala quebrada despedaçada de um povo despossuído e desalojado O inglês padrão não é a fala do exílio É a língua da conquista e da dominação nos Esta dos Unidos é a máscara que oculta a perda de muitos idio mas de todos os sons das diversas comunidades nativas que jamais ouviremos a fala dos guUah o iídiche e tantos outros idiomas esquecidos Refletindo sobre as palavras de Adrienne Rich sei que não é a língua inglesa que me machuca mas o que os opressores fazem com ela como eles a moldam para trans formála num território que limita e define como a tor nam uma arma capaz de envergonhar humilhar colonizar Gloria Anzaldúa nos lembra dessa dor em BorderlandsLa Frontera quando afirma Então se você realmente quiser me machucar fale mal da minha língua Temos pouquís simo conhecimento de como os africanos desalojados es cravizados ou livres que vieram ou foram trazidos contra a vontade para os Estados Unidos se sentiram diante da perda da língua de ter de aprender inglês Somente como mu A língua 225 lher comecei a pensar nesses negros em sua relação com a língua a pensar em seu trauma quando foram obrigados a assistir à perda de sentido da sua língua por força de uma cultura europeia colonizadora onde vozes consideradas es trangeiras não podiam se levantar eram idiomas fora da lei fala de renegados Quando me dou conta de o quanto demorou para os americanos brancos reconhecerem as di versas línguas dos índios norteamericanos para aceitarem que a fala que seus antepassados colonizadores haviam de clarado ser mero grunhido ou algaravia era de fato uma língua é difícil não ouvir sempre no inglês padrão os ruí dos da matança e da conquista Penso agora no sofrimento dos africanos desalojados e sem lar obrigados a habitar num mundo onde viam pessoas iguais a si com a mesma cor de pele e a mesma condição mas sem uma língua co mum para falar uns com os outros que precisavam da lín gua do opressor Esta é a língua do opressor mas preciso dela para falar com você Quando imagino o terror dos afri canos a bordo de navios negreiros nos palanques dos lei lões habitando a arquitetura insólita das fazendas de mo nocultura considero que esse terror ia além do medo da punição e residia também na angústia de ouvir uma língua que não compreendiam O próprio som do inglês devia aterrorizálos Penso nos negros encontrando uns aos ou tros num espaço distante das diversas culturas e línguas que os distinguiam uns dos outros obrigados pelas cir cunstâncias a achar maneiras de falar entre si num mundo novo onde a negritude ou a cor escura da pele e não a língua se tornariam o espaço da formação de laços Como lembrar como evocar esse terror Como descrever o que 226 Ensinando a transgredir devem ter sentido os africanos cujos laços mais profundos haviam sido sempre forjados no espaço de uma língua co mum mas foram transportados abruptamente para um mundo onde o próprio som de sua língua materna não ti nha sentido Imaginoos ouvindo o inglês falado como a língua do opressor mas também os imagino percebendo que essa lín gua teria de ser adquirida tomada reclamada como espaço de resistência Imagino que foi feliz o momento em que perceberam que a língua do opressor confiscada e falada pelas línguas dos colonizados poderia ser um espaço de formação de laços Nesse reconhecimento residia a com preensão de que a intimidade poderia ser recuperada de que poderia ser formada uma cultura de resistência que possibilitaria o resgate do trauma da escravização Imagino portanto os africanos ouvindo o inglês pela primeira vez como a língua do opressor e depois ouvindoo outra vez como foco potencial de resistência Aprender o inglês aprender a falar a língua estrangeira foi um modo pelo qual os africanos escravizados começaram a recuperar seu poder pessoal dentro de um contexto de dominação De posse de uma língua comum os negros puderam encontrar de novo um modo para construir a comunidade e um meio para criar a solidariedade política necessária para resistir Embora precisassem da língua do opressor para falar uns com os outros eles também reinventaram refizeram essa língua para que ela falasse além das fronteiras da con quista e da dominação Nas bocas dos africanos negros do chamado Novo Mundo o inglês foi alterado transfor mado e se tornou uma fala diferente Os negros escraviza A língua 22 dos pegaram fragmentos do inglês e os transformaram numa contralíngua Juntavam suas palavras de um modo tal que o colonizador teve de repensar o sentido da língua inglesa Embora na cultura contemporânea tenha se torna do comum falar das mensagens de resistência surgidas na música criada pelos escravos particularmente nos spiri tuals falase muito menos sobre a construção gramatical das frases nessas canções Muitas vezes o inglês usado na canção reflete o mundo quebrado despedaçado dos escra vos Quando os escravos cantavam Nobody knows de trouble I see o uso da palavra nobody tem um signi ficado mais rico do que se tivessem usado a locução no one pois o lugar concreto do sofrimento era o corpo ibody do escravo E mesmo quando os negros já emanci pados cantavam os spirituals eles não mudaram a língua a estrutura das orações dos nossos ancestrais Isso porque no uso incorreto das palavras na colocação incorrera das palavras havia um espírito de rebelião que tomava posse da língua como local de resistência Um uso do inglês que rompia com o costume e o sentido padronizados de tal modo que os brancos muitas vezes não conseguissem com preender a fala dos negros transformou o inglês em algo mais que a simples língua do opressor Há uma continuidade ininterrupta entre o inglês frag mentário dos africanos desalojados e escravizados e os di A frase de um spiritual muito conhecido significa ninguém conhece as tribulações que vi Tanto nobody quanto no one significam ninguém mas a autora ressaka a preferência pela primeira palavra que entendida lite ralmente resultaria na tradução nenhum corpo conhece as tribulações que vi NdoT 228 Ensinando a transgredir versos vernáculos que os negros usam hoje Tanto num caso como no outro a ruptura do inglês padrão possibili tou e possibilita a rebehão e a resistência Transformando a língua do opressor criando uma cultura de resistência os negros criaram uma fala íntima que podia dizer muito mais do que as fronteiras do inglês padrão permitiam O poder dessa fala não é simplesmente o de possibilitar a re sistência à supremacia branca mas também o de forjar um espaço para a produção cultural alternativa e para episte mologias alternativas diferentes maneiras de pensar e sa ber que foram cruciais para a criação de uma visão de mundo contrahegemônica É absolutamente essencial que o poder revolucionário do vernáculo negro não seja perdido na cultura contemporânea Esse poder reside na capacidade do vernáculo negro de intervir nas fronteiras e limitações do inglês padrão Na cultura popular negra contemporânea o rap se tor nou um dos espaços onde o vernáculo negro é usado de maneira a convidar a cultura dominante a ouvir a escutar e em certa medida a ser transformada Entretanto um dos riscos dessa tentativa de tradução cultural é que ela venha a banalizar o vernáculo negro Quando jovens bran cos imitam essa fala dando a entender que ela é caracterís tica dos ignorantes ou daqueles que só se interessam por divertir os outros ou parecer engraçados o poder subversi vo da fala é ameaçado Nos círculos académicos tanto na esfera do ensino quanto na da produção de textos pouco esforço foi feito para utilizar o vernáculo dos negros ou aliás qualquer outra língua que não o inglês padrão Quando num curso que estava dando sobre escritoras ne A língua 229 gras perguntei a um grupo etnicamente diversificado de alunos por que só ouvíamos o inglês padrão na sala de aula eles ficaram sem palavras por um instante Embora para muitos deles o inglês padrão fosse a segunda ou a ter ceira língua simplesmente não lhes havia ocorrido que era possível dizer algo em outra língua de outra maneira Não admira portanto que continuemos pensando Esta é a língua do opressor mas preciso dela para falar com você r Percebi que corria o risco de perder minha relação com o vernáculo dos negros porque também eu raramente o uso nos ambientes predominantemente brancos onde ge ralmente me encontro tanto como professora quanto na vida social Por isso comecei a trabalhar para integrar em vários contextos o vernáculo negro específico do Sul que eu ouvia e falava na infância O mais difícil foi integrar o vernáculo negro na escrita particularmente para periódi cos académicos Quando comecei a incorporar o vernácu lo negro em ensaios críticos os editores me devolviam o artigo reescrito em inglês padrão O uso do vernáculo sig nifica que a tradução para o inglês padrão pode ser neces sária caso se queira atingir um público mais amplo Na sala de aula encorajo os alunos a usar sua primeira língua e depois traduzila para não sentirem que a educação supe rior vai necessariamente afastálos da língua e da cultura que conhecem mais de perto Não surpreende que quan do os alunos do meu curso de Escritoras Negras começam a usar uma língua e uma fala diferentes os alunos brancos frequentemente reclamam Isso ocorre particularmente quando se usa o vernáculo negro Ele perturba os alunos brancos sobretudo porque estes podem ouvir as palavras 230 Ensinando a transgredir mas não compreendem seu significado Pedagogicamente estimuloos a conceber como um espaço para aprender o momento em que não compreendem o que alguém diz Esse espaço proporciona não somente a oportunidade de ouvir sem dominar sem ter a propriedade da fala nem tomar posse dela pela interpretação mas também a expe riência de ouvir palavras não inglesas Essas lições parecem particularmente cruciais numa sociedade multicultural onde ainda vigora a supremacia branca que usa o inglês padrão como arma para silenciar e censurar June Jordan nos lembra disso em On Cali quando declara Estou falando sobre os problemas majoritários da língua num Estada democrática sobre os problemas de uma moe da corrente que alguém roubou escondeu e depois homoge neizou num inglês oficial capaz de expressar somente mentiras ou não acontecimentos que não envolvem nenhum responsável Se vivêssemos num Estado democrático nossa língua teria de chocarse voar amaldiçoar e cantar em todos os nomes comuns americanos todas as vozes inegáveis e re presentativas de quantas estão aqui Não toleraríamos a lín gua dos poderosos nem por causa disso perderíamos todo o respeito pelas palavras em si mesmas Faríamos com que nossa linguagem se conformasse à verdade de nossos muitos eus e faríamos com que ela nos conduzisse à igualdade de poder que o Estado democrático deve representar O fato de os alunos do curso sobre escritoras negras estarem reprimindo toda a vontade de falar em outros idiomas que não o inglês padrão sem perceber que essa repressão era política é um indício de como nós agimos A língua iiii 231 inconscientemente em cumplicidade com uma cultura de dominação As discussões recentes sobre diversidade e multicultura lismo tendem a ignorar a questão da língua ou diminuir sua importância Os textos feministas críticos voltados para os temas da diferença e da voz fizeram relevantes in tervenções teóricas pedindo que seja reconhecida a prima zia de vozes frequentemente silenciadas censuradas ou mar ginalizadas Esse apelo em favor do reconhecimento e da celebração de vozes diversificadas e consequentemente de línguas e modos de falar diversificados necessariamente rompe a primazia do inglês padrão Quando as defensoras do feminismo começaram a falar sobre o desejo de uma participação diversificada no movimento feminino o pro blema da língua não foi discutido Simplesmente se supôs que o inglês padrão continuaria sendo o veículo principal para a transmissão do pensamento feminista Agora que o público dos textos e discursos feministas se tornou mais diversificado é evidente que temos de mudar as maneiras convencionais de pensar sobre a língua criando espaços onde vozes diversificadas possam falar usando outras pala vras que não as do inglês ou de um vernáculo fragmentá rio Isso significa que numa palestra ou mesmo numa obra escrita haverá fragmentos de fala que talvez não se jam acessíveis a todos os indivíduos A mudança no modo de pensar sobre a língua e sobre como a usamos necessaria mente altera o modo como sabemos o que sabemos Numa palestra em que eu talvez use o vernáculo negro do Sul o dialeto específico da minha região ou em que talve use pensamentos muito abstratos aliados à fala simples c l u 232 Ensinando a transgredir mum respondendo a um público diversificado proponho que não necessariamente tenhamos de ouvir e conhecer tudo o que é dito que não precisemos dominar ou con quistar a narrativa como um todo que possamos conhecer em fiagmentos Proponho que possamos aprender não só com os espaços de fala mas também com os espaços de silêncio que no ato de ouvir pacientemente outra língua possamos subverter a cultura do frenesi e do consumo ca pitalistas que exigem que todos os desejos sejam satisfeitos imediatamente que possamos perturbar o imperialismo cultural segundo o qual só merece ser ouvido aquele que fala em inglês padrão j Adrienne Rich conclui seu poema com a seguinte de claração M w v nAuAíri Estou compondo na máquina de escrever tarde da noite pensando no dia de hoje Como todas nós falamos bem Uma língua é um mapa dos nossos fracassos Frederick Dou glass escrevia num inglês mais castiço que o de Milton As pessoas sofrem muito na pobreza Os métodos existem mas não os usamos Joana que não sabia ler falava alguma forma camponesa do francês Alguns sofrimentos é difícil falar a verdade estes são os Estados Unidos não posso tocar em você agora Nos Estados Unidos só possuímos o tempo pre sente Estou em perigo Estás em perigo A queima de um livro não desperta nenhuma sensação em mim Sei que a queimadura dói Há chamas de napalm em Cantonsville Maryland Sei que a queimadura dói A máquina de escrever está superaquecida minha boca queima não posso tocar em você e esta é a língua do opressor A língua 233 Reconhecer que através da língua nós tocamos uns nos outros parece particularmente difícil numa sociedade que gostaria de nos fazer crer que não há dignidade na expe riência da paixão que sentir profijndamente é marca de inferioridade pois dentro do dualismo do pensamento metafísico ocidental as ideias são sempre mais importan tes que a língua Para curar a cisão entre mente e corpo nós povos marginalizados e oprimidos tentamos resgatar a nós mesmos e às nossas experiências através da língua Procuramos criar um espaço para a intimidade Incapazes de encontrar esse espaço no inglês padrão criamos uma fala vernácula fragmentária despedaçada sem regras Quan do preciso dizer palavras que não se limitam a simples mente espelhar a realidade dominante ou se referir a ela falo o vernáculo negro Aí nesse lugar obrigamos o inglês a fazer o que queremos que ele faça Tomamos a linguagem do opressor e voltamola contra si mesma Fazemos das nossas palavras uma fala contrahegemônica libertando nos por meio da língua
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censura que queimar livros Um verso des se poema que comoveu e perturbou algo dentro de mim Esta é a língua do opressor mas preciso dela para falar com você Nunca o esqueci Talvez não conseguisse es quecêlo nem que tentasse apagálo da memória As pala vras se impõem lançam raízes na nossa memória contra a nossa vontade As palavras desse poema geraram na minha memória uma vida que eu não pude abortar nem mudar Agora quando me pego pensando sobre a língua essas palavras estão ali como se estivessem sempre esperando para me ajudar e me questionar Pegome repetindoas em silêncio com o fervor de uma salmodia Elas me surpreen 223 224 Ensinando a transgredir dem e me sacodem despertando a consciência de um vín culo entre as línguas e a dominação De início resisto à ideia da língua do opressor certa de que esse conceito tem o potencial de enfraquecer aqueles entre nós que estão apenas aprendendo a falar apenas aprendendo a tomar posse da língua como um território onde nos transforma mos em sujeitos Esta é a língua do opressor mas preciso dela para falar com você Palavras de Adrienne Rich En tão quando li essas palavras pela primeira vez e quando as leio agora elas me fazem pensar no inglês padrão em aprender a falar de modo contrário ao vernáculo negro de modo contrário à fala quebrada despedaçada de um povo despossuído e desalojado O inglês padrão não é a fala do exílio É a língua da conquista e da dominação nos Esta dos Unidos é a máscara que oculta a perda de muitos idio mas de todos os sons das diversas comunidades nativas que jamais ouviremos a fala dos guUah o iídiche e tantos outros idiomas esquecidos Refletindo sobre as palavras de Adrienne Rich sei que não é a língua inglesa que me machuca mas o que os opressores fazem com ela como eles a moldam para trans formála num território que limita e define como a tor nam uma arma capaz de envergonhar humilhar colonizar Gloria Anzaldúa nos lembra dessa dor em BorderlandsLa Frontera quando afirma Então se você realmente 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lar obrigados a habitar num mundo onde viam pessoas iguais a si com a mesma cor de pele e a mesma condição mas sem uma língua co mum para falar uns com os outros que precisavam da lín gua do opressor Esta é a língua do opressor mas preciso dela para falar com você Quando imagino o terror dos afri canos a bordo de navios negreiros nos palanques dos lei lões habitando a arquitetura insólita das fazendas de mo nocultura considero que esse terror ia além do medo da punição e residia também na angústia de ouvir uma língua que não compreendiam O próprio som do inglês devia aterrorizálos Penso nos negros encontrando uns aos ou tros num espaço distante das diversas culturas e línguas que os distinguiam uns dos outros obrigados pelas cir cunstâncias a achar maneiras de falar entre si num mundo novo onde a negritude ou a cor escura da pele e não a língua se tornariam o espaço da formação de laços Como lembrar como evocar esse terror Como descrever o que 226 Ensinando a transgredir devem ter sentido os africanos cujos laços mais profundos haviam sido sempre forjados no espaço de uma língua co mum mas foram transportados abruptamente para um mundo onde o próprio som de sua língua materna não ti nha sentido Imaginoos ouvindo o inglês falado como a língua do opressor mas também os imagino percebendo que essa lín gua teria de ser adquirida tomada reclamada como espaço de resistência Imagino que foi feliz o momento em que perceberam que a língua do opressor confiscada e falada pelas línguas dos colonizados poderia ser um espaço de formação de laços Nesse reconhecimento residia a com preensão de que a intimidade poderia ser recuperada de que poderia ser formada uma cultura de resistência que possibilitaria o resgate do trauma da escravização Imagino portanto os africanos ouvindo o inglês pela primeira vez como a língua do opressor e depois ouvindoo outra vez como foco potencial de resistência Aprender o inglês aprender a falar a língua estrangeira foi um modo pelo qual os africanos escravizados começaram a recuperar seu poder pessoal dentro de um contexto de dominação De posse de uma língua comum os negros puderam encontrar de novo um modo para construir a comunidade e um meio para criar a solidariedade política necessária para resistir Embora precisassem da língua do opressor para falar uns com os outros eles também reinventaram refizeram essa língua para que ela falasse além das fronteiras da con quista e da dominação Nas bocas dos africanos negros do chamado Novo Mundo o inglês foi alterado transfor mado e se tornou uma fala diferente Os negros escraviza A língua 22 dos pegaram fragmentos do inglês e os transformaram numa contralíngua Juntavam suas palavras de um modo tal que o colonizador teve de repensar o sentido da língua inglesa Embora na cultura contemporânea tenha se torna do comum falar das mensagens de resistência surgidas na música criada pelos escravos particularmente nos spiri tuals falase muito menos sobre a construção gramatical das frases nessas canções Muitas vezes o inglês usado na canção reflete o mundo quebrado despedaçado dos escra vos Quando os escravos cantavam Nobody knows de trouble I see o uso da palavra nobody tem um signi ficado mais rico do que se tivessem usado a locução no one pois o lugar concreto do sofrimento era o corpo ibody do escravo E mesmo quando os negros já emanci pados cantavam os spirituals eles não mudaram a língua a estrutura das orações dos nossos ancestrais Isso porque no uso incorreto das palavras na colocação incorrera das palavras havia um espírito de rebelião que tomava posse da língua como local de resistência Um uso do inglês que rompia com o costume e o sentido padronizados de tal modo que os brancos muitas vezes não conseguissem com preender a fala dos negros transformou o inglês em algo mais que a simples língua do opressor Há uma continuidade ininterrupta entre o inglês frag mentário dos africanos desalojados e escravizados e os di A frase de um spiritual muito conhecido significa ninguém conhece as tribulações que vi Tanto nobody quanto no one significam ninguém mas a autora ressaka a preferência pela primeira palavra que entendida lite ralmente resultaria na tradução nenhum corpo conhece as tribulações que vi NdoT 228 Ensinando a transgredir versos vernáculos que os negros usam hoje Tanto num caso como no outro a ruptura do inglês padrão possibili tou e possibilita a rebehão e a resistência Transformando a língua do opressor criando uma cultura de resistência os negros criaram uma fala íntima que podia dizer muito mais do que as fronteiras do inglês padrão permitiam O poder dessa fala não é simplesmente o de possibilitar a re sistência à supremacia branca mas também o de forjar um espaço para a produção cultural alternativa e para episte mologias alternativas diferentes maneiras de pensar e sa ber que foram cruciais para a criação de uma visão de mundo contrahegemônica É absolutamente essencial que o poder revolucionário do vernáculo negro não seja perdido na cultura contemporânea Esse poder reside na capacidade do vernáculo negro de intervir nas fronteiras e limitações do inglês padrão Na cultura popular negra contemporânea o rap se tor nou um dos espaços onde o vernáculo negro é usado de maneira a convidar a cultura dominante a ouvir a escutar e em certa medida a ser transformada Entretanto um dos riscos dessa tentativa de tradução cultural é que ela venha a banalizar o vernáculo negro Quando jovens bran cos imitam essa fala dando a entender que ela é caracterís tica dos ignorantes ou daqueles que só se interessam por divertir os outros ou parecer engraçados o poder subversi vo da fala é ameaçado Nos círculos académicos tanto na esfera do ensino quanto na da produção de textos pouco esforço foi feito para utilizar o vernáculo dos negros ou aliás qualquer outra língua que não o inglês padrão Quando num curso que estava dando sobre escritoras ne A língua 229 gras perguntei a um grupo etnicamente diversificado de alunos por que só ouvíamos o inglês padrão na sala de aula eles ficaram sem palavras por um instante Embora para muitos deles o inglês padrão fosse a segunda ou a ter ceira língua simplesmente não lhes havia ocorrido que era possível dizer algo em outra língua de outra maneira Não admira portanto que continuemos pensando Esta é a língua do opressor mas preciso dela para falar com você r Percebi que corria o risco de perder minha relação com o vernáculo dos negros porque também eu raramente o uso nos ambientes predominantemente brancos onde ge ralmente me encontro tanto como professora quanto na vida social Por isso comecei a trabalhar para integrar em vários contextos o vernáculo negro específico do Sul que eu ouvia e falava na infância O mais difícil foi integrar o vernáculo negro na escrita particularmente para periódi cos académicos Quando comecei a incorporar o vernácu lo negro em ensaios críticos os editores me devolviam o artigo reescrito em inglês padrão O uso do vernáculo sig nifica que a 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particularmente cruciais numa sociedade multicultural onde ainda vigora a supremacia branca que usa o inglês padrão como arma para silenciar e censurar June Jordan nos lembra disso em On Cali quando declara Estou falando sobre os problemas majoritários da língua num Estada democrática sobre os problemas de uma moe da corrente que alguém roubou escondeu e depois homoge neizou num inglês oficial capaz de expressar somente mentiras ou não acontecimentos que não envolvem nenhum responsável Se vivêssemos num Estado democrático nossa língua teria de chocarse voar amaldiçoar e cantar em todos os nomes comuns americanos todas as vozes inegáveis e re presentativas de quantas estão aqui Não toleraríamos a lín gua dos poderosos nem por causa disso perderíamos todo o respeito pelas palavras em si mesmas Faríamos com que nossa linguagem se conformasse à verdade de nossos muitos eus e faríamos com que ela nos conduzisse à igualdade de poder que o Estado democrático deve representar O fato de os alunos do curso sobre escritoras negras estarem reprimindo toda a vontade de falar em outros idiomas que não o inglês padrão sem perceber que essa repressão era política é um indício de como nós agimos A língua iiii 231 inconscientemente em cumplicidade com uma cultura de dominação As discussões recentes sobre diversidade e multicultura lismo tendem a ignorar a questão da língua ou diminuir sua importância Os textos feministas críticos voltados para os temas da diferença e da voz fizeram relevantes in tervenções teóricas pedindo que seja reconhecida a prima zia de vozes frequentemente silenciadas censuradas ou mar ginalizadas Esse apelo em favor do reconhecimento e da celebração de vozes diversificadas e consequentemente de línguas e modos de falar diversificados necessariamente rompe a primazia do inglês padrão Quando as defensoras do feminismo começaram a falar sobre o desejo de uma participação diversificada no movimento feminino o pro blema da língua não foi discutido Simplesmente se supôs que o inglês padrão continuaria sendo o veículo principal para a transmissão do pensamento feminista Agora que o público dos textos e discursos feministas se tornou mais diversificado é evidente que temos de mudar as maneiras convencionais de pensar sobre a língua criando espaços onde vozes diversificadas possam falar usando outras pala vras que não as do inglês ou de um vernáculo fragmentá rio Isso significa que numa palestra ou mesmo numa obra escrita haverá fragmentos de fala que talvez não se jam acessíveis a todos os indivíduos A mudança no modo de pensar sobre a língua e sobre como a usamos necessaria mente altera o modo como sabemos o que sabemos Numa palestra em que eu talvez use o vernáculo negro do Sul o dialeto específico da minha região ou em que talve use pensamentos muito abstratos aliados à fala simples c l u 232 Ensinando a transgredir mum respondendo a um público diversificado proponho que não necessariamente tenhamos de ouvir e conhecer tudo o que é dito que não precisemos dominar ou con quistar a narrativa como um todo que possamos conhecer em fiagmentos Proponho que possamos aprender não só com os espaços de fala mas também com os espaços de silêncio que no ato de ouvir pacientemente outra língua possamos subverter a cultura do frenesi e do consumo ca pitalistas que exigem que todos os desejos sejam satisfeitos imediatamente que possamos perturbar o imperialismo cultural segundo o qual só merece ser ouvido aquele que fala em inglês padrão j Adrienne Rich conclui seu poema com a seguinte de claração M w v nAuAíri Estou compondo na máquina de escrever tarde da noite pensando no dia de hoje Como todas nós falamos bem Uma língua é um mapa dos nossos fracassos Frederick Dou glass escrevia num inglês mais castiço que o de Milton As pessoas sofrem muito na pobreza Os métodos existem mas não os usamos Joana que não sabia ler falava alguma forma camponesa do francês Alguns sofrimentos é difícil falar a verdade estes são os Estados Unidos não posso tocar em você agora Nos Estados Unidos só possuímos o tempo pre sente Estou em perigo Estás em perigo A queima de um livro não desperta nenhuma sensação em mim Sei que a queimadura dói Há chamas de napalm em Cantonsville Maryland Sei que a queimadura dói A máquina de escrever está superaquecida minha boca queima não posso tocar em você e esta é a língua do opressor A língua 233 Reconhecer que através da língua nós tocamos uns nos outros parece particularmente difícil numa sociedade que gostaria de nos fazer crer que não há dignidade na expe riência da paixão que sentir profijndamente é marca de inferioridade pois dentro do dualismo do pensamento metafísico ocidental as ideias são sempre mais importan tes que a língua Para curar a cisão entre mente e corpo nós povos marginalizados e oprimidos tentamos resgatar a nós mesmos e às nossas experiências através da língua Procuramos criar um espaço para a intimidade Incapazes de encontrar esse espaço no inglês padrão criamos uma fala vernácula fragmentária despedaçada sem regras Quan do preciso dizer palavras que não se limitam a simples mente espelhar a realidade dominante ou se referir a ela falo o vernáculo negro Aí nesse lugar obrigamos o inglês a fazer o que queremos que ele faça Tomamos a linguagem do opressor e voltamola contra si mesma Fazemos das nossas palavras uma fala contrahegemônica libertando nos por meio da língua