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Psicologia ·
Psicologia Social
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2 CIÊNCIA E SENSO COMUM A razão é comum a todos mas as pessoas agem como se tivessem uma razão privada HERÁCLITO 21 Ruptura a primeira ruptura epistemológica Afirma Bachelard que a ciência se opõe absolutamente à opinião 1972 14 Em ciência nada é dado tudo se constrói O senso comum o conhecimento vulgar a sociologia espontânea a experiência imediata tudo isto são opiniões formas de conhecimento falso com que é preciso romper para que se torne possível o conhecimento científico racional e válido A ciência constróise pois contra o senso comum e para isso dispõe de três actos epistemológicos fundamentais a ruptura a construção e a constatação Porque essenciais a qualquer prática científica esses actos aplicamse por igual nas ciências naturais e nas ciências sociais São contudo de aplicação mais difícil nestas últimas Por um lado porque as ciências sociais têm por objecto real um objecto que fala que usa a mesma linguagem de base de que se socorre a ciência e que tem uma opinião e julga conhecer o que a ciência se propõe conhecer Como diz Piaget a sociologia tal como a psicologia tem o triste privilégio de tratar de matérias de que todos se julgam competentes 1967 24 33 o irracionalismo da Wille zur Vernunft sobre a nietzschiana Wille zur Macht 1972 247 O êxito da vigilância epistemológica é talvez mais problemático no domínio das ciências sociais mas Bourdieu considera que é possível desde que a comunidade científica se organize de modo a maximizar a comunicação livre entre os cientistas e o controlo cruzado dos resultados das suas investigações Bourdieu Chamboredon Passeron 1968 109 e ss É por isso que a sociologia da sociologia é um instrumento indispensável do método sociológico e que todas as proposições que a sociologia enuncia podem e devem aplicarse ao sujeito que faz ciência 1982a 8 e ss Só esta reflexividade que Gouldner também propõe 1971 481 e ss torna possível o conhecimento sociológico possível mas não se pode esperar de um pensamento de limites que dê acesso a um pensamento sem limites Bourdieu 1982a 22 Do mesmo modo conclui Sedas Nunes para quem o trabalho científico cessa enquanto científico no próprio momento em que deixa de ser ou de estar sujeito a trabalho crítico 1972 107 ainda que nem assim seja possível ingenuamente esperar que mesmo supondo por hipótese realizadas numa sociedade condições ideais para a livre formulação e expressão e para a perfeita igualdade de oportunidades de desenvolvimento de correntes teóricas ligadas a contraditórios pressupostos ideológicos essas correntes se encaminhem facilmente para a resolução e superação dos seus conflitos e para a construção de disciplinas obedientes ao ideal da perfeita objectividade 1972 109 e ss 36 as epistemologias idealistas ou as epistemologias empiristas que durante muito tempo mediram forças no campo epistemológico Mas se interpreta bem o paradigma da ciência moderna também só é compreensível dentro dele Isto é a ruptura epistemológica bachelardiana só é compreensível dentro dum paradigma que se constitui contra o senso comum e recusa as orientações para a vida prática que dele decorrem um paradigma cuja forma de conhecimento procede pela transformação da relação eutu em relação sujeitoobjecto uma relação feita de distância estranhamento mútuo e de subordinação total do objecto ao sujeito um objecto sem criatividade nem responsabilidade um paradigma que pressupõe uma única forma de conhecimento válido o conhecimento científico cuja validade reside na objectividade de que decorre a separação entre teoria e prática entre ciência e ética um paradigma que tende a reduzir o universo dos observáveis ao universo dos quantificáveis e o rigor do conhecimento ao rigor matemático do conhecimento do que resulta a desqualificação cognitiva e social das qualidades que dão sentido à prática ou pelo menos do que nelas não é redutível por via da operacionalização a quantidades um paradigma que desconfia das aparências e das fachadas e procura a verdade nas costas dos objectos assim perdendo de vista a expressividade do face a face das pessoas e das coisas onde no amor ou no ódio se conquista a competência comunicativa um paradigma que assenta na distinção entre o relevante e o irrelevante e se arroga o direito de negligenciar Bachelard o que é irrelevante e portanto de não reconhecer nada do que não quer ou pode conhecer um paradigma que avança pela especialização e pela profissionalização do conhecimento com o que gera uma nova simbiose entre saber e poder onde não cabem os leigos que assim se vêem expropriados de competências cognitivas e desarmados dos poderes que elas conferem um paradigma que se orienta pelos princípios da racionalidade formal ou instrumental irresponsabilizandose da eventual irracionalidade substantiva ou final das orientações ou das aplicações técnicas do conhecimento que produz finalmente um paradigma que produz um discurso que se pretende 37 Por outro lado porque o próprio cientista social sucumbe facilmente à sociologia espontânea confundindo resultados de investigação com opiniões resultantes da sua familiaridade com o universo social Consequentemente a ruptura epistemológica é mais vezes professada do que realizada Bourdieu Chamboredon Passeron 1968 36 e por isso a sociologia é uma ciência que tem como particularidade a dificuldade particular em se tornar uma ciência como as outras Bourdieu 1982a 34 O senso comum é um conhecimento evidente que pensa o que existe tal como existe e cuja função é reconciliar a todo custo a consciência comum consigo própria É pois um pensamento necessariamente conservador e fixista A ciência para se constituir tem de romper com estas evidências e com o código de leitura do real que elas constituem tem nas palavras de Sedas Nunes de inventar um novo código o que significa que recusando e contestando o mundo dos objectos do senso comum ou da ideologia tem de constituir um novo universo conceptual ou seja todo um corpo de novos objectos e de novas relações entre objectos todo um sistema de novos conceitos e de relações entre conceitos 1972 30 No domínio das ciências sociais a ruptura epistemológica obedece a dois princípios básicos o princípio da nãoconsciência e o princípio do primado das relações sociais O primeiro princípio que como dizem Bourdieu Chamboredon e Passeron é a reformulação ao nível da lógica da sociologia do princípio do determinismo metodológico que nenhuma ciência pode negar sem se negar a si própria 1968 38 estabelece que o sentido das acções sociais não pode ser investigado a partir das intenções ou motivações dos agentes que as realizam porque transborda delas Durkheim e reside antes no sistema global de relações sociais em que tais acções têm lugar O princípio do primado das relações sociais tem igualmente a sua origem em Durkheim 1980 e estabelece que os factos sociais se explicam por outros factos sociais e não por factos individuais psicológicos ou naturais da natureza humana ou outra Pelo contrário a eficácia social dos factos individuais ou naturais é determinada pelo sistema de relações sociais e históricas em que se insere O primado social obriga no plano metodológico a um objectivismo provisório Bourdieu Chamboredon Passeron 1968 41 mas a sociologia deve procurar superar a oposição fictícia entre objectivismo e subjectivismo uma vez que a experiência das significações faz parte da significação total da experiência ou por outras palavras a descrição da subjectividade objectivada remete para a descrição da interiorização da objectividade Bourdieu Chamboredon Passeron 1968 20 Qualquer destes princípios é mais fácil de formular do que de cumprir A dificuldade está na pertinácia dos obstáculos epistemológicos que só uma constante vigilância epistemológica consegue superar O conceito de obstáculo epistemológico é fundamental na epistemologia bachelardiana O abandono dos conhecimentos do senso comum é um sacrifício difícil 1972 225 A observação científica é sempre uma observação polémica 1971 16 e por isso a teoria do objectivo é construída contra o objecto 1972 250 ou mais em geral conhecese contra um conhecimento anterior 1972 14 Daí que não seja fácil aos cientistas manter sempre uma relação realista com a sua prática científica a filosofia diurna e cedam por vezes à tentação de aceitar o conforto de ideias vulgares por vezes recobertas de jargão filosófico preconceitos idealistas noções pseudocientíficas enfim um conjunto de erros tenazes que lhes é muitas vezes proposto pelas várias filosofias da ciência em uso a filosofia nocturna dos cientistas Sempre que tal sucede o cientista entra numa relação imaginária com a sua própria prática científica e é dessa relação que decorrem os obstáculos epistemológicos Em La Formation de l Esprit Scientifique Bachelard dá perseguição sem tréguas a um elenco variado de obstáculos e confia no êxito da empresa através de uma autêntica psicanálise do conhecimento científico pois uma descoberta objectiva é imediatamente uma ratificação subjectiva Se o objecto me instrui ele modificame Do objecto reclamo como principal ganho uma modificação espiritual 1972 249 Assim se garante a vitória do racionalismo sobre 35 rigoroso antiliterário sem imagens nem metáforas analogias ou outras figuras da retórica mas que com isso corre o risco de se tornar mesmo quando falha na pretensão um discurso desencantado triste e sem imaginação incomensurável com os discursos normais que circulam na sociedade A epistemologia bachelardiana representa o máximo de consciência possível do paradigma da ciência moderna 1 Como tal ela não representa a consciência real da comunidade científica ou de uma qualquer comunidade científica num qualquer momento dado representa isso sim o campo no interior do qual os conhecimentos e as respostas podem variar sem que haja modificação essencial das estruturas e dos processos existentes L Goldmann 1967 1004 A epistemologia bachelardiana é uma epistemologia de limites dos limites dentro dos quais o paradigma origina gere e resolve crises sem ele próprio entrar em crise Enquanto tal crise não ocorre tais limites têm o duplo efeito de organizar e confirmar o campo cognitivo que definem para dentro e de desorganizar e desclassificar o campo cognitivo que definem para fora No momento porém em que a crise ocorre ou melhor em que o processo histórico de crise se inicia os limites tornamse contraditórios pois as discussões paradigmáticas que então ocorrem tanto partem do que está dentro deles como do que está fora deles De muros intransponíveis transformamse em portas de vaivém e o mesmo sucede à epistemologia que os definiu Para que tal crise ocorra são necessárias nas circunstâncias presentes duas condições A primeira foi avançada por Kuhn 1970 e consiste na acumulação de crises no interior do paradigma quando as soluções que este vai propondo para elas em vez de as resolver geram mais e mais profundas crises A segunda consiste na existência de condições sociais e teóricas que permitam recuperar todo o pensamento que não se deixou pensar pelo paradigma e que foi sobrevivendo em discursos vulgares marginais subculturais tanto lumpendiscursos como discursos hiperelitistas Noutro escrito procurei demonstrar que a primeira condição começa a estar presente Santos 1987 Julgo também que a renovação da reflexão hermenêutica e o vincar das suas virtualidades para congregar no mesmo campo cognitivo discursos tão díspares como o discurso científico o discurso poético e estético o discurso político e religioso é sinal evidente de que a segunda condição está na forja Assim sendo o processo histórico da crise final do paradigma da ciência moderna iniciouse já e iniciouse pela crise da epistemologia que melhor dá conta do paradigma a epistemologia bachelardiana Na actual fase da crise não se recomenda que esta epistemologia seja pura e simplesmente abandonada Pelo contrário ela continua a ser um factor de ordem e de estabilidade em suma um factor de tradição sem o qual não é possível pensar a próxima revolução científica As aquisições desta epistemologia representam um progresso notável no sentido da racionalização do mundo mas têm de ser relativizadas no interior de uma racionalidade envolvente É nestes termos que se concebe o reencontro da ciência com o senso comum Esta concepção pode formularse do seguinte modo uma vez feita a ruptura epistemológica o acto epistemológico mais importante é a ruptura com a ruptura epistemológica O senso comum enquanto conceito filosófico surge no século XVIII e representa o combate ideológico da burguesia emergente contra o irracionalismo do ancien régime 2 Tratase pois de um senso que se pretende natural razoável prudente um senso que é burguês e que por uma dupla implicação se converte em senso médio e em senso universal A valorização filosófica do senso comum esteve pois ligada ao projecto político de ascensão ao poder da burguesia pelo que não surpreende que uma vez ganho o poder o conceito filosófico de senso comum tenha sido correspondentemente desvalorizado como significando um conhecimento superficial e ilusório 1 As epistemologias que sucedem à de Bachelard na mesma vertente do movimento de desdogmatização da ciência são já epistemologias de crise e como tal manifestam a crise da epistemologia São os casos de Kuhn e de Feyerabend 2 A este propósito cfr Nowell Smith 1974 15 e ss 38 39 É contra ele que as ciências sociais nascem no século XIX Mas ao contrário das ciências naturais que sempre recusaram frontalmente o senso comum sobre a natureza as ciências sociais têm tido com ele uma relação muito complexa e ambígua Em primeiro lugar nem todas as correntes teóricas propõem ou acham possível ou desejável a ruptura com o senso comum assim a fenomenologia a etnometodologia ou o interaccionismo simbólico ainda que as correntes dominantes o façam Em segundo lugar as correntes que propõem a ruptura têm várias concepções do senso comum umas salientando a sua positividade outras a sua negatividade Entre as primeiras devem incluirse os conceitos de consciência colectiva de Durkheim ou de opinião pública da ciência política e da ciência da comunicação Entre as segundas que salientam a negatividade o conceito de ideologia espontânea de origem marxista ainda que a evolução recente deste conceito seja de molde a poder pôrse em dúvida se salienta a negatividade ou a positividade o que não deixa de ser significativo e de confirmar a ambiguidade que acima referi Em terceiro lugar não é incomum que uma teoria sociológica erguida contra o senso comum seja considerada pela teoria posterior como não sendo mais do que senso comum ainda que elaborado É este o sentido da crítica de Durkheim a Comte ou de Gouldner a Parsons Se o senso comum é o menor denominador comum daquilo em que um grupo ou um povo colectivamente acredita ele tem por isso uma vocação solidarista e transclassista Numa sociedade de classes como é em geral a sociedade conformada pela ciência moderna tal vocação não pode deixar de assumir um viés conservador e preconceituoso que reconcilia a consciência com a injustiça naturaliza as desigualdades e mistifica o desejo de transformação Porém opôlo por estas razões à ciência como quem opõe as trevas à luz não faz hoje sentido por muitas outras razões Em primeiro lugar porque se é certo que o senso comum é o modo como os grupos ou classes subordinadas vivem a sua subordinação não é menos verdade que como indicam os estudos sobre as subculturas essa vivência longe de ser meramente acomodaticia contém sentidos de resistência que dadas as condições podem desenvolverse e transformarse em armas de luta Dando um exemplo da minha própria investigação é dessa forma que interpreto o senso comum jurídico dos habitantes das favelas do Rio de Janeiro 1974 1977 1980 Em segundo lugar mesmo aceitando que a função principal do senso comum é reconciliar a consciência social com o que existe o mesmo viés conservador tem sido assinalado em muitas teorias científicas e a sua eficácia social porque caucionada pelo paradigma e pelo poder institucional tem sido muito superior A teoria das elites de Pareto ou as teorias funcionalistas serviram e ainda servem de consciência teórica do statu quo e afinal constituíramse ciências cujo objectivo principal é o de conciliar os indivíduos com o que existe a psicologia e a psicanálise Em terceiro lugar não é correcto ter do senso comum ou do que quer que seja uma concepção fixista O seu carácter ilusório superficial ou preconceituoso pode ser mais ou menos acentuado tudo dependendo do conjunto das relações sociais cujo sentido ele procura restituir Uma sociedade democrática com desigualdades sociais pouco acentuadas e com um sistema educativo generalizado e orientado por uma pedagogia de emancipação e solidariedade por certo que produzirá um senso comum diferente do de uma sociedade autoritária mais desigual e mais ignorante Em quarto lugar a oposição ciênciasenso comum não pode equivaler a uma oposição luztrevas não só porque se os preconceitos são as trevas a ciência como hoje se reconhece e se verá adiante nunca se livra totalmente deles como por outro lado a própria ciência vem reconhecendo que há preconceitos e preconceitos e que por isso é simplista avaliálos negativamente Para os efeitos da argumentação que se segue o conceito de preconceito é o mais amplo possível de modo a poder incluir o viés a prénoção a préconcepção o préjúizo a crença irrazóavel a ilusão o erro a distorção o wishful thinking a expectativa irrealista etc O modelo de racionalidade que subjaz ao paradigma da ciência moderna não hesita em lançar todos estes fenómenos na vala comum 40 41 da irracionalidade e de os contabilizar a débito da nossa fraqueza intelectual individual ou colectiva Contudo de muitos lados da hermenêutica à psicologia e à teoria da escolha racional começa hoje a pensarse que o maniqueísmo em que opera este modelo é demasiado simplista para ser ele próprio racional Uma análise mais detalhada dos nossos processos mentais da sua génese e das suas consequências revela que a razão nos prega muitas partidas e nós a ela e que por isso a relação entre racionalidade e irracionalidade é muito mais complexa do que à primeira vista se pode pensar 1 Perguntase pois em que medida é que os preconceitos são úteis em que medida são a manifestação necessária de uma racionalidade subjacente em que medida conduzem à verdade Foucault por exemplo defende a positividade dos erros quando afirma que todas as disciplinas são feitas de erros e de verdades erros que não são resíduos ou corpos estranhos mas que têm funções positivas uma eficácia histórica um papel muitas vezes indissociável do papel das verdades 1971 33 Com muito mais sistematicidade Gadamer critica a hermenêutica do século XIX por ter negligenciado o papel positivo dos preconceitos ou préjúizos em todo o processo da compreensão Os preconceitos são constitutivos do nosso ser e da nossa historicidade e por isso não podem ser levianamente considerados cegos infundados ou negativos São eles que nos capacitam a agir e nos abrem a experiência e por isso a compreensão do nosso estar no mundo não pode de modo nenhum dispensálos Gadamer 1965 Do mesmo modo a investigação sobre a inferência humana ou a escolha racional revelam que uma ilusão pode conduzir à verdade quer porque corrige e neutraliza uma outra ilusão quer porque substitui uma inferência correcta Elster 1985b 160 Elster cita a propósito Albert Hirschman e o seu princípio da mão que esconde retirado da sua longa experiência com a implementação de projectos de desenvolvimento económico nos países do chamado terceiro mundo Espantado com a capacidade dos agentes económicos para explorar e inventar soluções não previstas para problemas não previstos Hirschman chegou à seguinte conclusão A criatividade sur 42 43 prendenos sempre por isso não podemos contar com ela e não ousamos acreditar nela até que aconteça Por outras palavras não podemos conscientemente assumir tarefas cujo sucesso pressupõe que a criatividade ocorra Daí que a única maneira de podermos contar com as nossas capacidades criativas é a de avaliar erradamente a natureza da tarefa considerandoa para nós próprios mais rotineira e menos exigente em criatividade do que será o caso Como subestimamos necessariamente a nossa criatividade é desejável que subestimemos igualmente e na mesma medida as dificuldades das tarefas que enfrentamos de modo a sermos enganados por ambas as avaliações erradas e assim empreendermos as tarefas que doutra maneira não ousaríamos empreender O princípio é suficientemente importante para merecer um nome como estamos aqui sob o desígnio de uma mão escondida ou invisível que beneficamente esconde as dificuldades de nós proponho a mão que esconde Hirschman in Elster 1985b 158 E de modo semelhante se pode interpretar a teoria de Schumpeter sobre o empresário capitalista pois em sua opinião o sistema capitalista funciona tão bem porque cria expectativas irrealistas sobre o êxito e dessa forma inspira muito mais esforço da parte dos empresários do que seria o caso se estes fossem espíritos mais prudentes 1976 No mesmo contexto seria ainda de salientar a análise de Kolakowski sobre os erros felizes de Lenine erros de avaliação da força do movimento revolucionário que em parte foram responsáveis pelo êxito da revolução Kolakowski in Elster 1985b 161 À luz destas considerações forçoso é concluir que caminhamos para uma nova relação entre a ciência e o senso comum uma relação em que qualquer deles é feito do outro e ambos fazem algo de novo Como Antes de responder é preciso ter presente que a caracterização do senso comum é usualmente feita a partir da ciência e que por isso não surpreende que esteja saturada de negatividade ilusão falsidade conservadorismo superficialidade enviesamento etc Se no entanto se fizer um esforço analítico para superar esse etnocentrismo científico a caracterização a que se chega pode ser bem outra e bem mais positiva É desse esforço que resulta uma caracterização alternativa que desenvolvi noutro lugar O senso comum faz coincidir causa e intenção subjazlhe uma visão do mundo assente na acção e no princípio da criatividade e das responsabilidades individuais O senso comum é prático e pragmático reproduzse colado às trajectórias e às experiências de vida de um dado grupo social e nessa correspondência se afirma de confiança e dá segurança O senso comum é transparente e evidente desconfia da opacidade dos objectos tecnológicos e do esoterismo do conhecimento em nome do princípio da igualdade do acesso ao discurso à competência cognitiva e à competência linguística O senso comum é superficial porque desdenha das estruturas que estão para além da consciência mas por isso mesmo é exímio em captar a profundidade horizontal das relações conscientes entre pessoas e entre pessoas e coisas O senso comum é indisciplinar e imetódico não resulta de uma prática especificamente orientada para o produzir reproduzse espontaneamente no suceder quotidiano da vida Por último o senso comum é retórico e metafórico não ensina persuade Santos 1987 56 e ss Esta caracterização alternativa do senso comum procura salientar a positividade do senso comum o seu contributo possível para um projecto de emancipação cultural e social Em que condições Não cabe aqui falar senão das condições teóricas A condição teórica mais importante é que o senso comum só poderá desenvolver em pleno a sua positividade no interior de uma configuração cognitiva em que tanto ele como a ciência moderna se superem a si mesmos para dar lugar a uma outra forma de conhecimento Daí o conceito de dupla ruptura epistemológica uma vez feita a ruptura epistemológica com o senso comum o acto epistemológico mais importante é a ruptura com a ruptura epistemológica 3 Para compreender o alcance da 3 Madureira Pinto refere também a necessidade de uma nova ruptura 1984b 134 mas em sentido muito diferente daquele que é proposto por mim A nova ruptura é segundo Madureira Pinto a ruptura com o senso comum ou as pressuposições espontâneas acerca das condições de observação sociológica Ao dupla ruptura epistemológica deve terse em mente a ideia de Bachelard de que os obstáculos epistemológicos se apresentam sempre aos pares e que por isso se poderá falar de uma lei psicológica da polaridade dos erros 1972 20 Tal como sucede com os obstáculos epistemológicos a dupla ruptura não significa que a segunda ruptura neutralize a primeira e que assim se regresse ao statu quo ante à situação anterior à primeira ruptura Se esse fosse o caso regressarseia ao senso comum e todo o trabalho epistemológico seria em vão Pelo contrário a dupla ruptura procede a um trabalho de transformação tanto do senso comum como da ciência Enquanto a primeira ruptura é imprescindível para constituir a ciência mas deixa o senso comum tal como estava antes dela a segunda ruptura transforma o senso comum com base na ciência constituída e no mesmo processo transforma a ciência Com essa dupla transformação pretendese um senso comum esclarecido e uma ciência prudente ou melhor uma nova configuração do saber que se aproxima da phronesis aristotélica ou seja um saber prático que dá sentido e orientação à existência e cria o hábito de decidir bem Aproximandose embora da phronesis aristotélica a nova configuração do saber distinguese contudo dela A phronesis combina o carácter prático e prudente do senso comum com o carácter segregado e elitista da ciência uma vez que é um saber que só cabe aos mais esclarecidos isto é aos sábios A dupla ruptura epistemológica tem por objecto criar uma forma de conhecimento ou melhor uma configuração de conhecimentos que sendo prática não deixa de ser esclarecida e sendo sábia não deixo de estar democraticamente distribuída Isto que seria utópico no tempo de Aristóteles é possível hoje graças ao desenvolvimento tecnológico da comunicação que a ciência moderna produziu De facto a amplitude e a diversidade das redes de comunicação que é hoje possível contrário a segunda ruptura epistemológica por mim proposta incide sobre o conhecimento científico em si e não sobre o processo da sua aquisição e visa precisamente romper com a ruptura ou rupturas com o senso comum em que ele assenta 45 estabelecer deixam no ar a expectativa de um aumento generalizado da competência comunicativa Sucede contudo que entregue à sua própria hegemonia a ciência que cria a expectativa é também quem a frustra Daí a necessidade da dupla ruptura epistemológica que permita destruir a hegemonia da ciência moderna sem perder as expectativas que ela gera A nova configuração do saber é assim a garantia do desejo e o desejo da garantia de que o desenvolvimento tecnológico contribua para o aprofundamento da competência cognitiva e comunicativa e assim se transforme num saber prático e nos ajude a dar sentido e autenticidade à nossa existência É o desejo de Sócrates no Fédon de Platão depois de o filósofo verificar que a investigação das coisas tornada possível pela ciência do seu tempo o deixava sem qualquer orientação A dupla ruptura epistemológica é o modo operatório da hermenêutica da epistemologia Desconstrói a ciência inserindoa numa totalidade que a transcende Uma desconstrução que não é ingénua nem indiscriminada porque se orienta para garantir a emancipação e a criatividade da existência individual e social valores que só a ciência pode realizar mas que não pode realizar enquanto ciência A desconstrução hermenêutica que se realiza na dupla ruptura epistemológica está assim sujeita a alguns topoi de orientação O primeiro topos é que se deve progressivamente atenuar o que Foucault designa por desnivelamento dos discursos Diz ele que se produz regularmente nas sociedades um desnivelamento entre os discursos Os discursos que se dizem na sequência dos dias e das trocas e que passam com o acto em que são pronunciados e os discursos que estão na origem de um certo número de actos novos de palavras que os retomam os transformam ou falam deles em suma discursos que indefinidamente e para além da sua formulação são ditos permanecem ditos e ainda ficam para dizer 1971 24 Os primeiros discursos são os discursos vulgares sem eira nem beira os discursos do senso comum os segundos são os discursos anormais agasalhados de muita roupa os discursos eruditos A dupla ruptura epistemológica sem querer abarcar a totalidade destes discursos pretende que eles se falem que se tornem comensuráveis e nessa medida atenuem o desnivelamento que os separa O segundo topos é que se deve progressivamente superar a dicotomia contemplaçãoacção Esta dicotomia subjaz à filosofia grega e desde então tem dominado o pensamento ocidental atingindo a sua máxima expressão no paradigma da ciência moderna É também nele que as contradições da dicotomia mais claramente se manifestam Por um lado os critérios de verdade do conhecimento científico são interiores ao processo científico e a única acção relevante a este nível é a acção da investigação e da experimentação Qualquer outro tipo de acção nomeadamente a acção social é exterior ao conhecimento constitui tãosó o campo da sua aplicação é em suma tecnologia Mas por outro lado o fosso que assim se cria entre a verdade científica da ciência a ciênciaemsi e a verdade social da ciência a tecnologia é um fosso falso ainda que ideologicamente separadas as duas verdades pertencemse mutuamente No que respeita ao modelo de racionalidade é sabido desde Bacon e Descartes que a ciência moderna pretende conhecer o mundo não para o contemplar mas para o dominar e transformar e neste sentido a sua racionalidade é instrumentalista Bacon 1933 110 Descartes 1984 49 No que respeita às condições de produção do conhecimento científico é hoje mais do que nunca claro que as pretensões de verdade social da ciência são constitutivas do processo de produção da ciência e sobredeterminam por isso as pretensões de verdade científica a tal ponto que não faz hoje sentido distinguir entre ciência pura e ciência aplicada uma questão que será adiante desenvolvida no capítulo sobre a sociologia da ciência Mas a separação ideológica das duas verdades da ciência tem uma eficácia específica Porque a participação interna constitutiva da verdade social da ciência não é epistemologicamente assumida ela exercese sem qualquer controlo público não é submetida ao teste público da crítica dentro e fora da comunidade científica e por isso é facilmente apropriada por quem detém poder político e social para a fazer valer a seu favor Esta ausência de controlo público numa 47 sociedade de classes que aliás se reproduz enquanto tal graças a essa ausência é responsável pela redução da praxis à técnica que caracteriza a crise de degenerescência do paradigma da ciência moderna A superação desta crise não pode ter lugar dentro do paradigma porque ela pressupõe que a pertença mútua da verdade científica e da verdade social da ciência sejam explicitamente assumidas O conceito pragmatista da verdade da ciência o caminho difícil das consequências para as causas aponta nesse sentido Parafraseando William James podemos dizer que a função global da epistemologia pragmática consiste em saber que diferença faz para ti ou para mim em instantes precisos da nossa vida se esta fórmulamundo ou aquela fórmulamundo é verdadeira 1969 45 A ciência é uma incansável criadora de fórmulasmundo e não apenas daquela em que a ciência moderna se especializou Para escolher entre elas não podemos deixar de pensar na reflexão de Ostwald que James cita com aprovação Todas as realidades influenciam a nossa prática e essa influência é o significado delas para nós 1969 44 Esta valorização global da nossa praxis torna possível que a técnica que como já referi é um instrumento indispensável na construção da sociedade comunicativa se converta numa dimensão da prática e não ao contrário como hoje sucede que a prática se converta numa dimensão da técnica O terceiro e último topos que orienta a dupla ruptura epistemológica é que é necessário encontrar um novo equilíbrio entre adaptação e criatividade Não é hoje surpresa para ninguém que o conforto que a sociedade de consumo nos proporcionou a todos os que têm uma procura solvente pois só essa conta tem um preço invisível para além do que está colado às mercadorias a nossa renúncia à liberdade de agir ao fruir com autonomia A produção técnica da natureza e do meio ambiente bem como as tecnologias sociais que se foram acumulando para conformar a níveis cada vez mais fundos o nosso quotidiano criam dependências múltiplas para o indivíduo ou o grupo que tornam difícil a conquista e a preservação da identidade pessoal ou social Daí o privilégio socialmente dado ao poder adaptativo do homem em detrimento do seu poder criativo Constituíramse ciências desenvolveramse tecnologias criaramse instituições para ensinar o homem a exercitar o seu poder adaptativo da psicologia e da sociologia à psicanálise das teorias da escolha racional às teorias da dissonância cognitiva dos hospitais psiquiátricos e do EstadoProvidência às universidades Enquanto a formação das preferências adaptativas se transformou num objecto de investigação importante Elster 1985b 109 e ss a criatividade continua como já em Popper a palmilhar a lama da irracionalidade É necessário pois encontrar um novo equilíbrio entre adaptação e criatividade e isso só será possível no contexto de uma praxis globalmente entendida e servida por uma compreensão da ciência que por privilegiar as consequências obrigue o homem a reflectir sobre os custos e os benefícios entre o que pode fazer e o que lhe pode ser feito Uma prática assim entendida saberá dar à técnica o que é da técnica e à liberdade o que é da liberdade A hermenêutica da epistemologia é o modo mais adequado de propiciar a transição para uma epistemologia pragmática É uma hermenêutica crítica e sociológica porque privilegia por contrapeso a reflexão sobre a verdade social da ciência moderna como meio de questionar um conceito de verdade científica demasiado estreito obcecado pela sua organização metódica e pela sua certeza e pouco ou nada sensível à desorganização e à incerteza por ele provocadas na sociedade e nos indivíduos É com este olhar que se deve analisar a seguir a metodologia das ciências sociais 49 Ruptura primeira ruptura espistemológica Dualismo e Reducionismo Paradigma da Modernidade Cartesiano Ontologia Dualista da Ciência Reencontro Segunda Ruptura Epistemológica Epistemologias do Sul CIÊNCIA E SENSO COMUM CIÊNCIA E SENSO COMUM A primeira ruptura foi a superação do dualismo e do reducionismo presentes no paradigma da modernidade que levou à adoção de uma ontologia dualista da ciência A segunda ruptura por sua vez ocorreu com o reencontro das epistemologias do sul e a emergência da ecologia de saberes e da pluriversalidade que propõem uma nova abordagem para a produção e disseminação do conhecimento científico Ecologia de Saberes e Pluriversalidade
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2 CIÊNCIA E SENSO COMUM A razão é comum a todos mas as pessoas agem como se tivessem uma razão privada HERÁCLITO 21 Ruptura a primeira ruptura epistemológica Afirma Bachelard que a ciência se opõe absolutamente à opinião 1972 14 Em ciência nada é dado tudo se constrói O senso comum o conhecimento vulgar a sociologia espontânea a experiência imediata tudo isto são opiniões formas de conhecimento falso com que é preciso romper para que se torne possível o conhecimento científico racional e válido A ciência constróise pois contra o senso comum e para isso dispõe de três actos epistemológicos fundamentais a ruptura a construção e a constatação Porque essenciais a qualquer prática científica esses actos aplicamse por igual nas ciências naturais e nas ciências sociais São contudo de aplicação mais difícil nestas últimas Por um lado porque as ciências sociais têm por objecto real um objecto que fala que usa a mesma linguagem de base de que se socorre a ciência e que tem uma opinião e julga conhecer o que a ciência se propõe conhecer Como diz Piaget a sociologia tal como a psicologia tem o triste privilégio de tratar de matérias de que todos se julgam competentes 1967 24 33 o irracionalismo da Wille zur Vernunft sobre a nietzschiana Wille zur Macht 1972 247 O êxito da vigilância epistemológica é talvez mais problemático no domínio das ciências sociais mas Bourdieu considera que é possível desde que a comunidade científica se organize de modo a maximizar a comunicação livre entre os cientistas e o controlo cruzado dos resultados das suas investigações Bourdieu Chamboredon Passeron 1968 109 e ss É por isso que a sociologia da sociologia é um instrumento indispensável do método sociológico e que todas as proposições que a sociologia enuncia podem e devem aplicarse ao sujeito que faz ciência 1982a 8 e ss Só esta reflexividade que Gouldner também propõe 1971 481 e ss torna possível o conhecimento sociológico possível mas não se pode esperar de um pensamento de limites que dê acesso a um pensamento sem limites Bourdieu 1982a 22 Do mesmo modo conclui Sedas Nunes para quem o trabalho científico cessa enquanto científico no próprio momento em que deixa de ser ou de estar sujeito a trabalho crítico 1972 107 ainda que nem assim seja possível ingenuamente esperar que mesmo supondo por hipótese realizadas numa sociedade condições ideais para a livre formulação e expressão e para a perfeita igualdade de oportunidades de desenvolvimento de correntes teóricas ligadas a contraditórios pressupostos ideológicos essas correntes se encaminhem facilmente para a resolução e superação dos seus conflitos e para a construção de disciplinas obedientes ao ideal da perfeita objectividade 1972 109 e ss 36 as epistemologias idealistas ou as epistemologias empiristas que durante muito tempo mediram forças no campo epistemológico Mas se interpreta bem o paradigma da ciência moderna também só é compreensível dentro dele Isto é a ruptura epistemológica bachelardiana só é compreensível dentro dum paradigma que se constitui contra o senso comum e recusa as orientações para a vida prática que dele decorrem um paradigma cuja forma de conhecimento procede pela transformação da relação eutu em relação sujeitoobjecto uma relação feita de distância estranhamento mútuo e de subordinação total do objecto ao sujeito um objecto sem criatividade nem responsabilidade um paradigma que pressupõe uma única forma de conhecimento válido o conhecimento científico cuja validade reside na objectividade de que decorre a separação entre teoria e prática entre ciência e ética um paradigma que tende a reduzir o universo dos observáveis ao universo dos quantificáveis e o rigor do conhecimento ao rigor matemático do conhecimento do que resulta a desqualificação cognitiva e social das qualidades que dão sentido à prática ou pelo menos do que nelas não é redutível por via da operacionalização a quantidades um paradigma que desconfia das aparências e das fachadas e procura a verdade nas costas dos objectos assim perdendo de vista a expressividade do face a face das pessoas e das coisas onde no amor ou no ódio se conquista a competência comunicativa um paradigma que assenta na distinção entre o relevante e o irrelevante e se arroga o direito de negligenciar Bachelard o que é irrelevante e portanto de não reconhecer nada do que não quer ou pode conhecer um paradigma que avança pela especialização e pela profissionalização do conhecimento com o que gera uma nova simbiose entre saber e poder onde não cabem os leigos que assim se vêem expropriados de competências cognitivas e desarmados dos poderes que elas conferem um paradigma que se orienta pelos princípios da racionalidade formal ou instrumental irresponsabilizandose da eventual irracionalidade substantiva ou final das orientações ou das aplicações técnicas do conhecimento que produz finalmente um paradigma que produz um discurso que se pretende 37 Por outro lado porque o próprio cientista social sucumbe facilmente à sociologia espontânea confundindo resultados de investigação com opiniões resultantes da sua familiaridade com o universo social Consequentemente a ruptura epistemológica é mais vezes professada do que realizada Bourdieu Chamboredon Passeron 1968 36 e por isso a sociologia é uma ciência que tem como particularidade a dificuldade particular em se tornar uma ciência como as outras Bourdieu 1982a 34 O senso comum é um conhecimento evidente que pensa o que existe tal como existe e cuja função é reconciliar a todo custo a consciência comum consigo própria É pois um pensamento necessariamente conservador e fixista A ciência para se constituir tem de romper com estas evidências e com o código de leitura do real que elas constituem tem nas palavras de Sedas Nunes de inventar um novo código o que significa que recusando e contestando o mundo dos objectos do senso comum ou da ideologia tem de constituir um novo universo conceptual ou seja todo um corpo de novos objectos e de novas relações entre objectos todo um sistema de novos conceitos e de relações entre conceitos 1972 30 No domínio das ciências sociais a ruptura epistemológica obedece a dois princípios básicos o princípio da nãoconsciência e o princípio do primado das relações sociais O primeiro princípio que como dizem Bourdieu Chamboredon e Passeron é a reformulação ao nível da lógica da sociologia do princípio do determinismo metodológico que nenhuma ciência pode negar sem se negar a si própria 1968 38 estabelece que o sentido das acções sociais não pode ser investigado a partir das intenções ou motivações dos agentes que as realizam porque transborda delas Durkheim e reside antes no sistema global de relações sociais em que tais acções têm lugar O princípio do primado das relações sociais tem igualmente a sua origem em Durkheim 1980 e estabelece que os factos sociais se explicam por outros factos sociais e não por factos individuais psicológicos ou naturais da natureza humana ou outra Pelo contrário a eficácia social dos factos individuais ou naturais é determinada pelo sistema de relações sociais e históricas em que se insere O primado social obriga no plano metodológico a um objectivismo provisório Bourdieu Chamboredon Passeron 1968 41 mas a sociologia deve procurar superar a oposição fictícia entre objectivismo e subjectivismo uma vez que a experiência das significações faz parte da significação total da experiência ou por outras palavras a descrição da subjectividade objectivada remete para a descrição da interiorização da objectividade Bourdieu Chamboredon Passeron 1968 20 Qualquer destes princípios é mais fácil de formular do que de cumprir A dificuldade está na pertinácia dos obstáculos epistemológicos que só uma constante vigilância epistemológica consegue superar O conceito de obstáculo epistemológico é fundamental na epistemologia bachelardiana O abandono dos conhecimentos do senso comum é um sacrifício difícil 1972 225 A observação científica é sempre uma observação polémica 1971 16 e por isso a teoria do objectivo é construída contra o objecto 1972 250 ou mais em geral conhecese contra um conhecimento anterior 1972 14 Daí que não seja fácil aos cientistas manter sempre uma relação realista com a sua prática científica a filosofia diurna e cedam por vezes à tentação de aceitar o conforto de ideias vulgares por vezes recobertas de jargão filosófico preconceitos idealistas noções pseudocientíficas enfim um conjunto de erros tenazes que lhes é muitas vezes proposto pelas várias filosofias da ciência em uso a filosofia nocturna dos cientistas Sempre que tal sucede o cientista entra numa relação imaginária com a sua própria prática científica e é dessa relação que decorrem os obstáculos epistemológicos Em La Formation de l Esprit Scientifique Bachelard dá perseguição sem tréguas a um elenco variado de obstáculos e confia no êxito da empresa através de uma autêntica psicanálise do conhecimento científico pois uma descoberta objectiva é imediatamente uma ratificação subjectiva Se o objecto me instrui ele modificame Do objecto reclamo como principal ganho uma modificação espiritual 1972 249 Assim se garante a vitória do racionalismo sobre 35 rigoroso antiliterário sem imagens nem metáforas analogias ou outras figuras da retórica mas que com isso corre o risco de se tornar mesmo quando falha na pretensão um discurso desencantado triste e sem imaginação incomensurável com os discursos normais que circulam na sociedade A epistemologia bachelardiana representa o máximo de consciência possível do paradigma da ciência moderna 1 Como tal ela não representa a consciência real da comunidade científica ou de uma qualquer comunidade científica num qualquer momento dado representa isso sim o campo no interior do qual os conhecimentos e as respostas podem variar sem que haja modificação essencial das estruturas e dos processos existentes L Goldmann 1967 1004 A epistemologia bachelardiana é uma epistemologia de limites dos limites dentro dos quais o paradigma origina gere e resolve crises sem ele próprio entrar em crise Enquanto tal crise não ocorre tais limites têm o duplo efeito de organizar e confirmar o campo cognitivo que definem para dentro e de desorganizar e desclassificar o campo cognitivo que definem para fora No momento porém em que a crise ocorre ou melhor em que o processo histórico de crise se inicia os limites tornamse contraditórios pois as discussões paradigmáticas que então ocorrem tanto partem do que está dentro deles como do que está fora deles De muros intransponíveis transformamse em portas de vaivém e o mesmo sucede à epistemologia que os definiu Para que tal crise ocorra são necessárias nas circunstâncias presentes duas condições A primeira foi avançada por Kuhn 1970 e consiste na acumulação de crises no interior do paradigma quando as soluções que este vai propondo para elas em vez de as resolver geram mais e mais profundas crises A segunda consiste na existência de condições sociais e teóricas que permitam recuperar todo o pensamento que não se deixou pensar pelo paradigma e que foi sobrevivendo em discursos vulgares marginais subculturais tanto lumpendiscursos como discursos hiperelitistas Noutro escrito procurei demonstrar que a primeira condição começa a estar presente Santos 1987 Julgo também que a renovação da reflexão hermenêutica e o vincar das suas virtualidades para congregar no mesmo campo cognitivo discursos tão díspares como o discurso científico o discurso poético e estético o discurso político e religioso é sinal evidente de que a segunda condição está na forja Assim sendo o processo histórico da crise final do paradigma da ciência moderna iniciouse já e iniciouse pela crise da epistemologia que melhor dá conta do paradigma a epistemologia bachelardiana Na actual fase da crise não se recomenda que esta epistemologia seja pura e simplesmente abandonada Pelo contrário ela continua a ser um factor de ordem e de estabilidade em suma um factor de tradição sem o qual não é possível pensar a próxima revolução científica As aquisições desta epistemologia representam um progresso notável no sentido da racionalização do mundo mas têm de ser relativizadas no interior de uma racionalidade envolvente É nestes termos que se concebe o reencontro da ciência com o senso comum Esta concepção pode formularse do seguinte modo uma vez feita a ruptura epistemológica o acto epistemológico mais importante é a ruptura com a ruptura epistemológica O senso comum enquanto conceito filosófico surge no século XVIII e representa o combate ideológico da burguesia emergente contra o irracionalismo do ancien régime 2 Tratase pois de um senso que se pretende natural razoável prudente um senso que é burguês e que por uma dupla implicação se converte em senso médio e em senso universal A valorização filosófica do senso comum esteve pois ligada ao projecto político de ascensão ao poder da burguesia pelo que não surpreende que uma vez ganho o poder o conceito filosófico de senso comum tenha sido correspondentemente desvalorizado como significando um conhecimento superficial e ilusório 1 As epistemologias que sucedem à de Bachelard na mesma vertente do movimento de desdogmatização da ciência são já epistemologias de crise e como tal manifestam a crise da epistemologia São os casos de Kuhn e de Feyerabend 2 A este propósito cfr Nowell Smith 1974 15 e ss 38 39 É contra ele que as ciências sociais nascem no século XIX Mas ao contrário das ciências naturais que sempre recusaram frontalmente o senso comum sobre a natureza as ciências sociais têm tido com ele uma relação muito complexa e ambígua Em primeiro lugar nem todas as correntes teóricas propõem ou acham possível ou desejável a ruptura com o senso comum assim a fenomenologia a etnometodologia ou o interaccionismo simbólico ainda que as correntes dominantes o façam Em segundo lugar as correntes que propõem a ruptura têm várias concepções do senso comum umas salientando a sua positividade outras a sua negatividade Entre as primeiras devem incluirse os conceitos de consciência colectiva de Durkheim ou de opinião pública da ciência política e da ciência da comunicação Entre as segundas que salientam a negatividade o conceito de ideologia espontânea de origem marxista ainda que a evolução recente deste conceito seja de molde a poder pôrse em dúvida se salienta a negatividade ou a positividade o que não deixa de ser significativo e de confirmar a ambiguidade que acima referi Em terceiro lugar não é incomum que uma teoria sociológica erguida contra o senso comum seja considerada pela teoria posterior como não sendo mais do que senso comum ainda que elaborado É este o sentido da crítica de Durkheim a Comte ou de Gouldner a Parsons Se o senso comum é o menor denominador comum daquilo em que um grupo ou um povo colectivamente acredita ele tem por isso uma vocação solidarista e transclassista Numa sociedade de classes como é em geral a sociedade conformada pela ciência moderna tal vocação não pode deixar de assumir um viés conservador e preconceituoso que reconcilia a consciência com a injustiça naturaliza as desigualdades e mistifica o desejo de transformação Porém opôlo por estas razões à ciência como quem opõe as trevas à luz não faz hoje sentido por muitas outras razões Em primeiro lugar porque se é certo que o senso comum é o modo como os grupos ou classes subordinadas vivem a sua subordinação não é menos verdade que como indicam os estudos sobre as subculturas essa vivência longe de ser meramente acomodaticia contém sentidos de resistência que dadas as condições podem desenvolverse e transformarse em armas de luta Dando um exemplo da minha própria investigação é dessa forma que interpreto o senso comum jurídico dos habitantes das favelas do Rio de Janeiro 1974 1977 1980 Em segundo lugar mesmo aceitando que a função principal do senso comum é reconciliar a consciência social com o que existe o mesmo viés conservador tem sido assinalado em muitas teorias científicas e a sua eficácia social porque caucionada pelo paradigma e pelo poder institucional tem sido muito superior A teoria das elites de Pareto ou as teorias funcionalistas serviram e ainda servem de consciência teórica do statu quo e afinal constituíramse ciências cujo objectivo principal é o de conciliar os indivíduos com o que existe a psicologia e a psicanálise Em terceiro lugar não é correcto ter do senso comum ou do que quer que seja uma concepção fixista O seu carácter ilusório superficial ou preconceituoso pode ser mais ou menos acentuado tudo dependendo do conjunto das relações sociais cujo sentido ele procura restituir Uma sociedade democrática com desigualdades sociais pouco acentuadas e com um sistema educativo generalizado e orientado por uma pedagogia de emancipação e solidariedade por certo que produzirá um senso comum diferente do de uma sociedade autoritária mais desigual e mais ignorante Em quarto lugar a oposição ciênciasenso comum não pode equivaler a uma oposição luztrevas não só porque se os preconceitos são as trevas a ciência como hoje se reconhece e se verá adiante nunca se livra totalmente deles como por outro lado a própria ciência vem reconhecendo que há preconceitos e preconceitos e que por isso é simplista avaliálos negativamente Para os efeitos da argumentação que se segue o conceito de preconceito é o mais amplo possível de modo a poder incluir o viés a prénoção a préconcepção o préjúizo a crença irrazóavel a ilusão o erro a distorção o wishful thinking a expectativa irrealista etc O modelo de racionalidade que subjaz ao paradigma da ciência moderna não hesita em lançar todos estes fenómenos na vala comum 40 41 da irracionalidade e de os contabilizar a débito da nossa fraqueza intelectual individual ou colectiva Contudo de muitos lados da hermenêutica à psicologia e à teoria da escolha racional começa hoje a pensarse que o maniqueísmo em que opera este modelo é demasiado simplista para ser ele próprio racional Uma análise mais detalhada dos nossos processos mentais da sua génese e das suas consequências revela que a razão nos prega muitas partidas e nós a ela e que por isso a relação entre racionalidade e irracionalidade é muito mais complexa do que à primeira vista se pode pensar 1 Perguntase pois em que medida é que os preconceitos são úteis em que medida são a manifestação necessária de uma racionalidade subjacente em que medida conduzem à verdade Foucault por exemplo defende a positividade dos erros quando afirma que todas as disciplinas são feitas de erros e de verdades erros que não são resíduos ou corpos estranhos mas que têm funções positivas uma eficácia histórica um papel muitas vezes indissociável do papel das verdades 1971 33 Com muito mais sistematicidade Gadamer critica a hermenêutica do século XIX por ter negligenciado o papel positivo dos preconceitos ou préjúizos em todo o processo da compreensão Os preconceitos são constitutivos do nosso ser e da nossa historicidade e por isso não podem ser levianamente considerados cegos infundados ou negativos São eles que nos capacitam a agir e nos abrem a experiência e por isso a compreensão do nosso estar no mundo não pode de modo nenhum dispensálos Gadamer 1965 Do mesmo modo a investigação sobre a inferência humana ou a escolha racional revelam que uma ilusão pode conduzir à verdade quer porque corrige e neutraliza uma outra ilusão quer porque substitui uma inferência correcta Elster 1985b 160 Elster cita a propósito Albert Hirschman e o seu princípio da mão que esconde retirado da sua longa experiência com a implementação de projectos de desenvolvimento económico nos países do chamado terceiro mundo Espantado com a capacidade dos agentes económicos para explorar e inventar soluções não previstas para problemas não previstos Hirschman chegou à seguinte conclusão A criatividade sur 42 43 prendenos sempre por isso não podemos contar com ela e não ousamos acreditar nela até que aconteça Por outras palavras não podemos conscientemente assumir tarefas cujo sucesso pressupõe que a criatividade ocorra Daí que a única maneira de podermos contar com as nossas capacidades criativas é a de avaliar erradamente a natureza da tarefa considerandoa para nós próprios mais rotineira e menos exigente em criatividade do que será o caso Como subestimamos necessariamente a nossa criatividade é desejável que subestimemos igualmente e na mesma medida as dificuldades das tarefas que enfrentamos de modo a sermos enganados por ambas as avaliações erradas e assim empreendermos as tarefas que doutra maneira não ousaríamos empreender O princípio é suficientemente importante para merecer um nome como estamos aqui sob o desígnio de uma mão escondida ou invisível que beneficamente esconde as dificuldades de nós proponho a mão que esconde Hirschman in Elster 1985b 158 E de modo semelhante se pode interpretar a teoria de Schumpeter sobre o empresário capitalista pois em sua opinião o sistema capitalista funciona tão bem porque cria expectativas irrealistas sobre o êxito e dessa forma inspira muito mais esforço da parte dos empresários do que seria o caso se estes fossem espíritos mais prudentes 1976 No mesmo contexto seria ainda de salientar a análise de Kolakowski sobre os erros felizes de Lenine erros de avaliação da força do movimento revolucionário que em parte foram responsáveis pelo êxito da revolução Kolakowski in Elster 1985b 161 À luz destas considerações forçoso é concluir que caminhamos para uma nova relação entre a ciência e o senso comum uma relação em que qualquer deles é feito do outro e ambos fazem algo de novo Como Antes de responder é preciso ter presente que a caracterização do senso comum é usualmente feita a partir da ciência e que por isso não surpreende que esteja saturada de negatividade ilusão falsidade conservadorismo superficialidade enviesamento etc Se no entanto se fizer um esforço analítico para superar esse etnocentrismo científico a caracterização a que se chega pode ser bem outra e bem mais positiva É desse esforço que resulta uma caracterização alternativa que desenvolvi noutro lugar O senso comum faz coincidir causa e intenção subjazlhe uma visão do mundo assente na acção e no princípio da criatividade e das responsabilidades individuais O senso comum é prático e pragmático reproduzse colado às trajectórias e às experiências de vida de um dado grupo social e nessa correspondência se afirma de confiança e dá segurança O senso comum é transparente e evidente desconfia da opacidade dos objectos tecnológicos e do esoterismo do conhecimento em nome do princípio da igualdade do acesso ao discurso à competência cognitiva e à competência linguística O senso comum é superficial porque desdenha das estruturas que estão para além da consciência mas por isso mesmo é exímio em captar a profundidade horizontal das relações conscientes entre pessoas e entre pessoas e coisas O senso comum é indisciplinar e imetódico não resulta de uma prática especificamente orientada para o produzir reproduzse espontaneamente no suceder quotidiano da vida Por último o senso comum é retórico e metafórico não ensina persuade Santos 1987 56 e ss Esta caracterização alternativa do senso comum procura salientar a positividade do senso comum o seu contributo possível para um projecto de emancipação cultural e social Em que condições Não cabe aqui falar senão das condições teóricas A condição teórica mais importante é que o senso comum só poderá desenvolver em pleno a sua positividade no interior de uma configuração cognitiva em que tanto ele como a ciência moderna se superem a si mesmos para dar lugar a uma outra forma de conhecimento Daí o conceito de dupla ruptura epistemológica uma vez feita a ruptura epistemológica com o senso comum o acto epistemológico mais importante é a ruptura com a ruptura epistemológica 3 Para compreender o alcance da 3 Madureira Pinto refere também a necessidade de uma nova ruptura 1984b 134 mas em sentido muito diferente daquele que é proposto por mim A nova ruptura é segundo Madureira Pinto a ruptura com o senso comum ou as pressuposições espontâneas acerca das condições de observação sociológica Ao dupla ruptura epistemológica deve terse em mente a ideia de Bachelard de que os obstáculos epistemológicos se apresentam sempre aos pares e que por isso se poderá falar de uma lei psicológica da polaridade dos erros 1972 20 Tal como sucede com os obstáculos epistemológicos a dupla ruptura não significa que a segunda ruptura neutralize a primeira e que assim se regresse ao statu quo ante à situação anterior à primeira ruptura Se esse fosse o caso regressarseia ao senso comum e todo o trabalho epistemológico seria em vão Pelo contrário a dupla ruptura procede a um trabalho de transformação tanto do senso comum como da ciência Enquanto a primeira ruptura é imprescindível para constituir a ciência mas deixa o senso comum tal como estava antes dela a segunda ruptura transforma o senso comum com base na ciência constituída e no mesmo processo transforma a ciência Com essa dupla transformação pretendese um senso comum esclarecido e uma ciência prudente ou melhor uma nova configuração do saber que se aproxima da phronesis aristotélica ou seja um saber prático que dá sentido e orientação à existência e cria o hábito de decidir bem Aproximandose embora da phronesis aristotélica a nova configuração do saber distinguese contudo dela A phronesis combina o carácter prático e prudente do senso comum com o carácter segregado e elitista da ciência uma vez que é um saber que só cabe aos mais esclarecidos isto é aos sábios A dupla ruptura epistemológica tem por objecto criar uma forma de conhecimento ou melhor uma configuração de conhecimentos que sendo prática não deixa de ser esclarecida e sendo sábia não deixo de estar democraticamente distribuída Isto que seria utópico no tempo de Aristóteles é possível hoje graças ao desenvolvimento tecnológico da comunicação que a ciência moderna produziu De facto a amplitude e a diversidade das redes de comunicação que é hoje possível contrário a segunda ruptura epistemológica por mim proposta incide sobre o conhecimento científico em si e não sobre o processo da sua aquisição e visa precisamente romper com a ruptura ou rupturas com o senso comum em que ele assenta 45 estabelecer deixam no ar a expectativa de um aumento generalizado da competência comunicativa Sucede contudo que entregue à sua própria hegemonia a ciência que cria a expectativa é também quem a frustra Daí a necessidade da dupla ruptura epistemológica que permita destruir a hegemonia da ciência moderna sem perder as expectativas que ela gera A nova configuração do saber é assim a garantia do desejo e o desejo da garantia de que o desenvolvimento tecnológico contribua para o aprofundamento da competência cognitiva e comunicativa e assim se transforme num saber prático e nos ajude a dar sentido e autenticidade à nossa existência É o desejo de Sócrates no Fédon de Platão depois de o filósofo verificar que a investigação das coisas tornada possível pela ciência do seu tempo o deixava sem qualquer orientação A dupla ruptura epistemológica é o modo operatório da hermenêutica da epistemologia Desconstrói a ciência inserindoa numa totalidade que a transcende Uma desconstrução que não é ingénua nem indiscriminada porque se orienta para garantir a emancipação e a criatividade da existência individual e social valores que só a ciência pode realizar mas que não pode realizar enquanto ciência A desconstrução hermenêutica que se realiza na dupla ruptura epistemológica está assim sujeita a alguns topoi de orientação O primeiro topos é que se deve progressivamente atenuar o que Foucault designa por desnivelamento dos discursos Diz ele que se produz regularmente nas sociedades um desnivelamento entre os discursos Os discursos que se dizem na sequência dos dias e das trocas e que passam com o acto em que são pronunciados e os discursos que estão na origem de um certo número de actos novos de palavras que os retomam os transformam ou falam deles em suma discursos que indefinidamente e para além da sua formulação são ditos permanecem ditos e ainda ficam para dizer 1971 24 Os primeiros discursos são os discursos vulgares sem eira nem beira os discursos do senso comum os segundos são os discursos anormais agasalhados de muita roupa os discursos eruditos A dupla ruptura epistemológica sem querer abarcar a totalidade destes discursos pretende que eles se falem que se tornem comensuráveis e nessa medida atenuem o desnivelamento que os separa O segundo topos é que se deve progressivamente superar a dicotomia contemplaçãoacção Esta dicotomia subjaz à filosofia grega e desde então tem dominado o pensamento ocidental atingindo a sua máxima expressão no paradigma da ciência moderna É também nele que as contradições da dicotomia mais claramente se manifestam Por um lado os critérios de verdade do conhecimento científico são interiores ao processo científico e a única acção relevante a este nível é a acção da investigação e da experimentação Qualquer outro tipo de acção nomeadamente a acção social é exterior ao conhecimento constitui tãosó o campo da sua aplicação é em suma tecnologia Mas por outro lado o fosso que assim se cria entre a verdade científica da ciência a ciênciaemsi e a verdade social da ciência a tecnologia é um fosso falso ainda que ideologicamente separadas as duas verdades pertencemse mutuamente No que respeita ao modelo de racionalidade é sabido desde Bacon e Descartes que a ciência moderna pretende conhecer o mundo não para o contemplar mas para o dominar e transformar e neste sentido a sua racionalidade é instrumentalista Bacon 1933 110 Descartes 1984 49 No que respeita às condições de produção do conhecimento científico é hoje mais do que nunca claro que as pretensões de verdade social da ciência são constitutivas do processo de produção da ciência e sobredeterminam por isso as pretensões de verdade científica a tal ponto que não faz hoje sentido distinguir entre ciência pura e ciência aplicada uma questão que será adiante desenvolvida no capítulo sobre a sociologia da ciência Mas a separação ideológica das duas verdades da ciência tem uma eficácia específica Porque a participação interna constitutiva da verdade social da ciência não é epistemologicamente assumida ela exercese sem qualquer controlo público não é submetida ao teste público da crítica dentro e fora da comunidade científica e por isso é facilmente apropriada por quem detém poder político e social para a fazer valer a seu favor Esta ausência de controlo público numa 47 sociedade de classes que aliás se reproduz enquanto tal graças a essa ausência é responsável pela redução da praxis à técnica que caracteriza a crise de degenerescência do paradigma da ciência moderna A superação desta crise não pode ter lugar dentro do paradigma porque ela pressupõe que a pertença mútua da verdade científica e da verdade social da ciência sejam explicitamente assumidas O conceito pragmatista da verdade da ciência o caminho difícil das consequências para as causas aponta nesse sentido Parafraseando William James podemos dizer que a função global da epistemologia pragmática consiste em saber que diferença faz para ti ou para mim em instantes precisos da nossa vida se esta fórmulamundo ou aquela fórmulamundo é verdadeira 1969 45 A ciência é uma incansável criadora de fórmulasmundo e não apenas daquela em que a ciência moderna se especializou Para escolher entre elas não podemos deixar de pensar na reflexão de Ostwald que James cita com aprovação Todas as realidades influenciam a nossa prática e essa influência é o significado delas para nós 1969 44 Esta valorização global da nossa praxis torna possível que a técnica que como já referi é um instrumento indispensável na construção da sociedade comunicativa se converta numa dimensão da prática e não ao contrário como hoje sucede que a prática se converta numa dimensão da técnica O terceiro e último topos que orienta a dupla ruptura epistemológica é que é necessário encontrar um novo equilíbrio entre adaptação e criatividade Não é hoje surpresa para ninguém que o conforto que a sociedade de consumo nos proporcionou a todos os que têm uma procura solvente pois só essa conta tem um preço invisível para além do que está colado às mercadorias a nossa renúncia à liberdade de agir ao fruir com autonomia A produção técnica da natureza e do meio ambiente bem como as tecnologias sociais que se foram acumulando para conformar a níveis cada vez mais fundos o nosso quotidiano criam dependências múltiplas para o indivíduo ou o grupo que tornam difícil a conquista e a preservação da identidade pessoal ou social Daí o privilégio socialmente dado ao poder adaptativo do homem em detrimento do seu poder criativo Constituíramse ciências desenvolveramse tecnologias criaramse instituições para ensinar o homem a exercitar o seu poder adaptativo da psicologia e da sociologia à psicanálise das teorias da escolha racional às teorias da dissonância cognitiva dos hospitais psiquiátricos e do EstadoProvidência às universidades Enquanto a formação das preferências adaptativas se transformou num objecto de investigação importante Elster 1985b 109 e ss a criatividade continua como já em Popper a palmilhar a lama da irracionalidade É necessário pois encontrar um novo equilíbrio entre adaptação e criatividade e isso só será possível no contexto de uma praxis globalmente entendida e servida por uma compreensão da ciência que por privilegiar as consequências obrigue o homem a reflectir sobre os custos e os benefícios entre o que pode fazer e o que lhe pode ser feito Uma prática assim entendida saberá dar à técnica o que é da técnica e à liberdade o que é da liberdade A hermenêutica da epistemologia é o modo mais adequado de propiciar a transição para uma epistemologia pragmática É uma hermenêutica crítica e sociológica porque privilegia por contrapeso a reflexão sobre a verdade social da ciência moderna como meio de questionar um conceito de verdade científica demasiado estreito obcecado pela sua organização metódica e pela sua certeza e pouco ou nada sensível à desorganização e à incerteza por ele provocadas na sociedade e nos indivíduos É com este olhar que se deve analisar a seguir a metodologia das ciências sociais 49 Ruptura primeira ruptura espistemológica Dualismo e Reducionismo Paradigma da Modernidade Cartesiano Ontologia Dualista da Ciência Reencontro Segunda Ruptura Epistemológica Epistemologias do Sul CIÊNCIA E SENSO COMUM CIÊNCIA E SENSO COMUM A primeira ruptura foi a superação do dualismo e do reducionismo presentes no paradigma da modernidade que levou à adoção de uma ontologia dualista da ciência A segunda ruptura por sua vez ocorreu com o reencontro das epistemologias do sul e a emergência da ecologia de saberes e da pluriversalidade que propõem uma nova abordagem para a produção e disseminação do conhecimento científico Ecologia de Saberes e Pluriversalidade