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Texto de pré-visualização
Memórias de um sargento de milícias Manuel Antônio de Almeida Edição e posfácio de Reginaldo Pinto de Carvalho Coleção Clássicos Globo Coordenação Manuel da Costa Pinto TÍTULOS PUBLICADOS Memórias de um sargento de milícias de Manuel Antônio de Almeida MacárioNoite na taverna de Álvares de Azevedo A Viagem à Lua de Cyrano de Bergerac As aventuras do sr Pickwick de Charles Dickens O bracelete de granadas de Aleksandr Ivánovitch Kuprin Ecce Homo de Eusébio de Matos Pequenas tragédias de Aleksander Sergheievitch Púchkin A capital de Eça de Queirós Infortúnios trágicos da constante Florinda de Gaspar Pires de Rebelo A cartuxa de Parma de Stendhal O Silvano de Anton Tchékhov Contos e novelas de Voltaire A coleção Clássicos Globo traz obras célebres da literatura universal e da língua portuguesa retomando e ampliando um dos projetos editoriais mais marcantes da história recente do Brasil o acervo de traduções constituído nos anos 1930 e 40 pela editora Globo de Porto Alegre que tinha entre seus colaboradores intelectuais como Erico Verissimo e Mario Quintana e ficou conhecida como Globo da rua da Praia Os títulos da coleção Clássicos Globo foram escolhidos a partir desse catálogo Além das traduções revistas e atualizadas de livros pertencentes ao cânone da literatura ocidental a coleção compreende também novas obras em edições críticas e versões feitas por tradutores contemporâneos que dão continuidade a esse legado editorial Manuel Antônio de Almeida Memórias de um sargento de milícias edição e posfácio Reginaldo Pinto de Carvalho Copyright desta edição 2004 by Editora Globo S A Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma seja mecânico ou eletrônico fotocópia gravação etc nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados sem a expressa autorização da editora Indicação editorial Mamede Mustafa Jarouche Revisão Reginaldo Pinto de Carvalho e Maria Sylvia Corrêa Cronologia Reginaldo Pinto de Carvalho Capa Isabel Carballo sobre Rua Direita no Rio de Janeiro detalhe de Johann Moritz Rugendas 18021858 lápis e nanquim sobre papel 20 cm x 299 cm Pinacoteca Municipal Centro Cultural São Paulo Dados Internacionais de Catalogação na Publicação cip Câmara Brasileira do Livro sp Brasil Almeida Manuel Antônio de 18311861 Memórias de um sargento de milícias Manuel Antônio de Almeida edição e posfácio Reginaldo Pinto de Carvalho São Paulo Globo 2013 Clássicos Globo isbn 9788525055521 1 Romance Brasileiro I Carvalho Reginaldo Pinto de II Título III Série 046371 cdd86993 Índice para catálogo sistemático 1 Romances Literatura brasileira 86993 Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S A Av Jaguaré 1485 05346902 São Paulo SP wwwglobolivroscombr Sumário Capa Coleção Clássicos Globo A coleção Folha de rosto Créditos Nota introdutória capítulo i capítulo ii capítulo iii capítulo iv capítulo v capítulo vi capítulo vii capítulo viii capítulo ix capítulo x capítulo xi capítulo xii capítulo xiii capítulo xiv capítulo xv capítulo xvi capítulo xvii capítulo xviii capítulo xix capítulo xx capítulo xxi capítulo xxii capítulo xxiii capítulo xxiv capítulo xxv capítulo xxvi capítulo xxvii capítulo xxviii capítulo xxix capítulo xxx capítulo xxxi capítulo xxxii capítulo xxxiii capítulo xxxiv capítulo xxxv capítulo xxxvi capítulo xxxvii capítulo xxxviii capítulo xxxix capítulo xl capítulo xli capítulo xlii capítulo xliii capítulo xliv capítulo xlv capítulo xlvi capítulo xlvii Posfácio Cronologia Notas Nota introdutória Esta edição tem como textobase os folhetins da Pacotilha suplemento do jornal Correio Mercantil no qual Manuel Antônio de Almeida publicou a primeira versão de seu romance Ainda em vida publicou uma edição em livro que resultou não só da revisão das falhas ocorridas na edição do jornal mas também de alterações mais substanciais como supressão e acréscimo de alguns trechos troca de palavras mudanças estruturais desdobramento de parágrafos inúmeras alterações na pontuação etc Evidentemente por representar a vontade expressa do autor a primeira edição em livro é a que tem servido de base para as dezenas de edições da obra desde sua publicação em dois volumes nos anos de 1854 e 1855 A principal justificativa para levar ao público uma versão que foge a toda uma tradição editorial que já tem um século e meio e que aparentemente contraria a vontade autoral é a de resgatar a versão dos folhetins pelos elementos diferenciadores que ela contém Tais elementos a nosso ver interessam não apenas ao leitor estudioso de nossa literatura bem como aos leitores em geral Como procuraremos demonstrar no Posfácio a revisão que o autor empreendeu no texto dos folhetins para sua publicação em livro foi muito além de uma simples correção de possíveis deslizes e falhas de impressão ou mesmo de aprimoramento estilístico Temos motivos para afirmar que Manuel Antônio de Almeida assumiu uma atitude de autocensura ao preparar seu texto para publicação em livro Essa autocensura foi uma forma de o autor adaptarse às conveniências sociais e políticas de seu tempo Procuramos preservar o texto original salvo na questão ortográfica aspecto em que houve a necessária atualização Também corrigimos a numeração dos capítulos feita de forma corrida e não em duas partes como ocorre no livro Nos folhetins há capítulos com numeração repetida ou pulada As oscilações de certos usos lingüísticos ou recursos de escrita foram mantidas As notas de rodapé1 não pretendem ser exaustivas no registro das variantes mas apenas destacar as alterações mais relevantes principalmente aquelas que atestam a tese da autocensura A revisão feita no texto dos folhetins e a redação adotada no livro refletiram o desejo do autor de preservar um certo decoro evitando por exemplo críticas a elrei e aos costumes de seu tempo Para tanto atenuou as manifestações de lusofobia e mesmo de certas chocarrices mais irreverentes Também na questão do estilo exerceu um policiamento sobre a linguagem original liberando o texto de inúmeras marcas de coloquialidade e da espontaneidade própria do folhetim marcas essas que acentuam o caráter inovador do livro considerado o contexto em que surgiu A leitura desta versão das Memórias de um sargento de milícias não trará nenhum prejuízo em relação àquela que é considerada oficial uma vez que os acréscimos feitos pelo autor para a edição em livro foram insignificantes se comparados aos cortes Informese ainda que tais acréscimos foram devidamente registrados em notas de rodapé Para o estabelecimento do texto desta edição utilizamos cópia dos folhetins da Pacotilha feita a partir de microfilmes obtidos na Fundação Biblioteca Nacional2 R P de C capítulo i Origem nascimento e batizado Era no tempo do Rei Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e Quitanda cortandose mutuamente chamavase nesse tempo O canto dos meirinhos e bem lhe assentava o nome porque era aí o rendezvous3 favorito de todos os que formavam essa classe que gozava então de não pequena consideração Os meirinhos de hoje não são mais do que a sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei esses eram gente temível e temida respeitável e respeitada eram um dos extremos dessa formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento de vida o extremo oposto eram os desembargadores Ora os extremos se tocam e estes tocandose fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates das citações provarás razões principais e finais e toda essa máquina de trejeitos judiciais que se chama4 processo Daí sua influência moral mas tinham ainda outra influência que é justamente o que falta aos de hoje era a influência física Os meirinhos de hoje são homens como quaisquer outros nada têm de imponentes nem no seu semblante nem no seu trajar confundemse com qualquer procurador escrevente de cartório ou contínuo de repartição os meirinhos desse belo tempo não não se confundiam com ninguém eram originais eram tipos particulares nos seus semblantes transluzia um certo ar de majestade forense seus olhares calculados e sagazes significavam chicana trajavam sisuda casaca preta calção e meias da mesma cor sapato afivelado ao lado esquerdo aristocrático espadim e na ilharga direita penduravam um círculo encarnado5 cuja significação ignoramos coroando tudo isto por um grave chapéu armado Colocado sob a importância vantajosa destas condições o meirinho usava e abusava de sua posição Era terrível quando ao voltar uma esquina ou ao sair de manhã de sua casa o cidadão esbarrava com aquela solene figura que desdobrando um papelucho liao ao pobre homem que por mais que se fizesse não tinha remédio por fim de contas senão deixar escapar dos lábios o terrível Doume por citado Oh ninguém sabe que significação fatalíssima e cruel têm estas poucas palavras são elas uma sentença de peregrinação eterna que se pronuncia contra si mesmo querem dizer que se começa uma longa e afadigosa viagem cujo termo bem distante é a caixa da Relação e que se tem de pagar importe de passagem em um semnúmero de barreiras que se encontrarão o advogado o procurador o inquiridor o escrivão o juiz inexoráveis Carontes estavam à porta de mão estendida e ninguém passa sem que lhes tenha deixado não um óbolo porém todo o conteúdo de suas algibeiras e até a última parcela de sua paciência Mas deixemos estas considerações e voltemos à celebrada esquina Quem passasse por aí em qualquer dia útil dessa abençoada época veria sentado em assentos baixos de couro chamadoscadeiras de campanha então usados um grupo mais ou menos numeroso dessa nobre gente conversando pacificamente em tudo sobre que era lícito conversar na vida dos fidalgos nas notícias do Reino e nas astúcias policiais do afamado Vidigal Entre os termos que formavam essa equação meirinhal pregada na esquina havia uma quantidade constante era o LeonardoPataca Chamavam assim a uma rotunda e gordíssima personagem de cabelos brancos e carão avermelhado que era o decano da corporação o mais antigo dos meirinhos que viviam nesse tempo A velhice o tinha tornado moleirão e pachorrento com sua vagareza atrasava o negócio das partes não o procuravam e por isso jamais saía da esquina passava ali os dias sentado na sua cadeira com as pernas estendidas e o queixo apoiado sobre uma grossa bengala que depois dos 606 era a sua infalível companhia Do hábito que tinha de queixarse constantemente de que só pagassem por sua citação a módica quantia de 320 réis lhe viera o apelido que juntavam ao seu nome Contemos a sua história Fora Leonardo algibebe em Lisboa sua pátria aborrecerase porém do negócio e viera ao Brasil Aqui chegando não se sabe por proteção de quem alcançou o emprego de que o vemos empossado e que exercia como dissemos desde tempos remotos Veio com ele no mesmo navio não sei fazer o quê uma certa Maria da hortaliça quitandeira das praças de Lisboa ilhoa7 rochonchuda e bonitota o Leonardo para falar a verdade não era nesse tempo de sua mocidade malapessoado e sobretudo era maganão Ao sair do Tejo estando a Maria encostada à borda do navio o Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela e pisoulhe com tanta força com o pesado tamanco8 no dedo do pé direito que quase lhe arrancou a unha a Maria sorriuse como envergonhada com o gracejo e deulhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão direita que lhe tirou couro e cabelo era isto uma declaração em forma segundo os usos da terra levaram o resto do dia de namoro cerrado ao anoitecer passouse a mesma cena de pisadela e beliscão com a diferença de serem desta vez um pouco mais fortes e no dia seguinte estavam os dois amantes tão extremosos e familiares que pareciam sêlo de muitos anos Quando saltaram em terra começou a Maria a sentir certos enojos foram morar juntos e daí a um mês manifestaramse claramente os efeitos da pisadela e do beliscão oito9 meses depois tiveram um filho Era um formidável menino de quase três palmos de comprido gordo e vermelho cabeludo esperneador e chorão logo depois que nasceu mamou duas horas seguidas sem largar o peito Chegou o dia de batizarse o rapaz foi madrinha a parteira sobre o padrinho houve suas dúvidas o Leonardo queria que fosse o Sr Juiz porém teve de ceder a instâncias da Maria e da comadre que queriam que fosse o barbeiro de defronte que afinal foi adotado Já se sabe que houve nesse dia função os convidados do dono da casa que eram todos dalémmar cantavam ao desafio segundo seus costumes os convidados da comadre que eram todos da terra dançavam o fado de maneira que esteve a festa excelente pela variedade O compadre trouxe a rabeca que é como se sabe o instrumento favorito da gente do ofício A princípio o Leonardo quis que a festa tivesse ares aristocráticos e propôs que se dançasse o ril de três10 Foi aceita a idéia Levantaramse a executar as monótonas viravoltas da apreciada dança uma gorda e baixa matrona mulher de um convidado colega do Leonardo miudinho pequenino e com fumaças de gaiato e o sacristão da Sé sujeito alto magro e com pretensões de elegante O compadre foi quem tocou o ril na rabeca e o afilhadinho deitado no colo da Maria acompanhava cada arcada com um berro e um esperneio Isto fez com que o compadre perdesse muitas vezes o compasso e fosse preciso a recomeçar outras tantas Depois do ril foi desaparecendo a cerimônia e a brincadeira aferventou como se dizia naquele tempo Chegaram uns rapazes de viola e machete o Leonardo instado pelas senhoras decidiuse a romper a parte lírica do divertimento Sentouse num tamborete em um lugar isolado da sala e tomou uma viola Fazia um belo efeito cômico vêlo em trajes do ofício de casaca calção e espadim acompanhando com um monótono zunzum na viola o garganteado de uma modinha pátria Foi nas saudades da terra natal que ele achou inspiração para o seu canto e isto era natural a um bom português que o era ele A modinha era assim Quando estaba em minha terra Acompanhado ou sozinho Cantaba de noite e de dia Ao pé dum copo de binho11 Foi executada com atenção e aplaudida com entusiasmo somente quem não pareceu gostar foi o pequeno que brindou o pai no canto como brindara ao padrinho na rabeca marcandolhes o compasso a guinchos e esperneios À Maria avermelharamselhe os olhos e suspirou O canto do Leonardo foi o derradeiro toque de rebate para esquentarse a brincadeira foi o adeus às cerimônias Tudo daí em diante foi burburinho que depressa passou à gritaria e ainda mais depressa à algazarra e não foi ainda mais adiante porque de vez em quando viamse passar através das rótulas da porta e janelas umas certas figuras que denunciavam que o Vidigal andava perto Quando mais adiante tivermos de tratar desta personagem os que ainda o não conhecem ficáloão conhecendo Saiba agora o leitor que ainda o não adivinhou que o pequeno nascido é a personagem que dá objeto a estas memórias No seguinte capítulo diremos alguma coisa sobre sua infância12 capítulo ii Primeiros infortúnios Passemos por alto sobre os anos que decorreram desde o nascimento e batizado do nosso memorando e vamos encontrálo já na idade de 7 anos Digamos unicamente que durante todo este tempo o menino nunca desmentiu aquilo que anunciara desde que nasceu atormentava a vizinhança com um choro sempre em oitava alta era colérico tinha zanga13 particular da madrinha a quem não podia encarar e era estranhão até não poder mais Logo que pôde andar e falar tornouse um flagelo quebrava e rasgava tudo que lhe vinha à mão Tinha uma paixão decidida pelo chapéu armado do Leonardo se este o deixava por esquecimento em algum lugar ao seu alcance tomavao imediatamente espanava com ele todos os móveis punhalhe dentro tudo que encontrava esfregavao em uma parede e acabava por varrer com ele a casa até que a Maria exasperada pelo que aquilo lhe havia custar aos ouvidos e talvez às costas arrancavalhe das mãos a vítima infeliz Era além de traquinas guloso quando não traquinava comia A Maria não lhe perdoava trazialhe bem maltratada uma certa região do corpo porém ele não se emendava que era também teimoso e as travessuras recomeçavam mal acabava a dor das palmadas Assim chegou aos 7 anos Afinal de contas a Maria sempre era ilhoa e o Leonardo começava a arrependerse seriamente de tudo que tinha feito por ela e com ela E tinha razão porque digamos depressa e sem mais cerimônias havia ele desde certo tempo concebido fundadas suspeitas de que era atraiçoado Alguns meses atrás tinha notado que um certo sargento passavalhe muitas vezes pela porta e enfiava olhares curiosos através das rótulas uma vez recolhendose pareceralhe que o vira encostado à janela Isto porém passou em pouco tempo Depois começou a estranhar que um certo colega seu o procurava em casa para tratar de negócios do oficio sempre em horas desencontradas porém isto também passou em breve Finalmente aconteceulhe por três ou quatro vezes esbarrarse junto de casa com o capitão do navio em que tinha vindo de Lisboa e isto causoulhe sérios cuidados Um dia de manhã entrou sem ser esperado pela porta adentro alguém que estava na sala abriu precipitadamente a janela saltou por ela para a rua e desapareceu À vista disto nada havia a duvidar o pobre homem perdeu como se diz as estribeiras e ficou cego de ciúme Largou apressado em cima de um banco uns autos que trazia embaixo do braço e endireitou para a Maria com os punhos cerrados Grandessíssima E a injúria que ia soltar era tão grande que o engasgou e pôsse a tremer A Maria recuou dois passos e pôsse em guarda pois também não era das que se receava com qualquer coisa Tirate lá ó Leonardo Não chames mais pelo meu nome não chames que senão trancote essa boca com um par de murros Dizem que os da tua raça dão coices depois de mortos e tu destemo mesmo em vida e foi mesmo na cara nas minhas barbas14 Safese daí Não se lembrou você disto quando começou aos namoricos comigo a bordo Isto exasperou o Leonardo a lembrança do amor aumentoulhe a dor da traição e o ciúme e a raiva de que se achava possuído transbordaram em murros sobre a Maria que depois de uma tentativa inútil de resistência desatou a correr a chorar e a gritar Ai ai acuda Sr compadre Sr compadre Porém o compadre ensaboava nesse momento a cara de um freguês e não podia largálo Portanto a Maria pagou caro e por junto todas as contas Encolheuse a choramingar em um canto O menino assistira a toda essa cena com imperturbável sanguefrio enquanto a Maria apanhava e o Leonardo esbravejava ele ocupavase tranqüilamente em rasgar as folhas dos autos que este tinha largado ao entrar e em fazer delas uma grande coleção de cartuchos Quando esmorecida a raiva o Leonardo pôde ver alguma coisa mais do que seu ciúme reparou então na obra meritória em que se ocupava o pequeno Enfurecese de novo suspende15 o menino pelas orelhas fálo dar no ar uma meiavolta ergue o pé direito assentalhe em cheio sobre os glúteos atirandoo sentado a quatro braças de distância És filho de uma pisadela e de um beliscão mereces que um pontapé te acabe a casta Este suportou tudo com coragem de mártir apenas abriu ligeiramente a boca quando foi levantado pelas orelhas mal caiu ergueuse embarafustou pela porta fora e em três pulos estava dentro da loja do padrinho e atracou selhe às pernas O padrinho erguia nesse momento por cima da cabeça do freguês a bacia de barbear que lhe tirara dos queixos Com o choque que sofreu a bacia inclinouse e o freguês sofreu um formidável batismo de água de sabão Ora mestre esta não está má Senhor balbuciou este a culpa é deste endiabrado O que é que tens menino O pequeno nada disse dirigiu apenas os olhos espantados para defronte apontando com a mão trêmula nessa direção O compadre olhou também aplicou a atenção e ouviu então os soluços da Maria Ham resmungou já sei o que há de ser eu bem dizia ora aí está E desculpandose com o freguês saiu da loja e foi acudir ao que se passava Por estas palavras vêse que ele suspeitara alguma coisa e saiba o leitor que suspeitara a verdade Espiar a vida alheia inquirir dos escravos o que se passava no interior das casas era naquele tempo coisa tão comum e enraizada nos costumes que ainda hoje depois de passados tantos anos restam disso vestígios Sentado pois no fundo da loja afiando por disfarce os instrumentos do ofício o compadre presenciara os passeios do sargento por perto da rótula de Leonardo as visitas extemporâneas do colega deste e finalmente os intentos do capitão do navio Por isso contava ele mais dia menos dia com o que acabava de suceder Chegando ao outro lado da rua empurrou a rótula que o menino ao sair deixara cerrada e entrou Dirigiuse ao Leonardo que se conservava ainda em posição hostil Ó compadre disse você perdeu o juízo Não foi o juízo disse o Leonardo em tom dramático foi a honra A Maria vendose protegida pela presença do compadre cobrou ânimo e altanandose disse em tom de zombaria Honra honra de meirinho ora O vulcão de despeito que as lágrimas da Maria tinham apagado um pouco borbotou de novo com este insulto que não ofendia só um homem porém uma classe inteira Injúrias e murros à mistura caíram de novo sobre a Maria das mãos e da boca de Leonardo O compadre que se interpusera levou alguns por descuido afastouse pois a distância conveniente murmurando despeitado por ver frustrados seus esforços de conciliador Honra de meirinho é como fidelidade de ilhoa Enfim serenou a tormenta a Maria sentouse a um canto a chorar e a maldizer a hora em que nascera o dia em que pela primeira vez vira o Leonardo a pisadela o beliscão com que tinha começado o namoro a bordo e tudo mais que a dor dos murros lhe trazia à cabeça O Leonardo depois de um pouco de calma teve um momento de exasperação avermelharamselhe os olhos as faces cerrou os dentes meteu as mãos nos bolsos do calção inchou as bochechas e pôsse a balançar violentamente a perna direita Depois como tomando uma resolução extrema juntou as folhas dispersas dos autos que o menino despedaçara enterrou atravessado na cabeça o chapéu armado agarrou na bengala e saiu batendo com a rótula e exclamando Váse tudo com os diabos Vai vai exclamou a Maria já de novo em segurança pondo as mãos nas cadeiras que o caso não há de ficar assim pôrme as mãos ora vou com isto à justiça Comadre Nada não atendo compadre vou com isto à justiça e apesar de ser ele um meirinhaço muito velhaco há de se haver comigo É melhor não se meter nisto comadre sempre são negócios com a justiça o compadre é seu oficial e ela há de punir pelos seus As ameaças da Maria não passavam de bravatas que lhe arrancava o despeito e portanto com mais quatro razões do compadre cedeu e foi restituída a paz em casa Houve então larga conferência entre os dois no fim da qual o compadre saiu dizendo Ele há de voltar aquilo é gênio há de passar e se não o dito está dito fico com o pequeno A Maria mostrouse satisfeita Tinha ela suas resoluções tomadas ou anteriormente ou naquela ocasião e por isso na conferência que referimos tratara de engodar o compadre e arrancarlhe a promessa de que no caso de algum desarranjo tomaria a si e cuidaria do filho Esse desarranjo ela figurara e o compadre acreditara que só partiria de Leonardo porém o leitor vai ver que o pobre homem era condescendente e que a Maria tinha razão quando falara ironicamente em honra de meirinho Toda esta cena que acabamos de descrever passouse de manhã À tardinha o Leonardo entrou pela loja do compadre aflito e triste O pequeno estremeceu no banco em que se achava sentado lembrandose do passeio aéreo que o pontapé de seu pai lhe fizera dar de manhã O compadre adiantouse e disselhe com um sorriso conciliador O passado passado vamos ela está arrependida doidices de rapariga mas não há de fazer outra O Leonardo nada respondeu pôsse a passear pela loja com as mãos cruzadas para trás e por baixo das abas da casaca porém pelo seu semblante viase que ele estimara as palavras do compadre e que teria sido o primeiro a proferilas16 se ele não o precedesse Vamos até lá disse o compadre e acabese tudo Coitada ela ficou e ainda há de estar muito chorosa Vamos disse o Leonardo Chegando à porta de casa fez uma pequena parada como quem tinha tomado a resolução de não entrar o que ele queria eram algumas súplicas do compadre que pudessem ser ouvidas pela Maria para fazêla acreditar que se ele voltava era arrastado e não por sua vontade O compadre percebeu isto e satisfez o pensamento de Leonardo dizendo Entre homem basta de criançadas o passado passado Entraram A sala estava vazia o Leonardo sentouse junto de uma mesa onde descansou o cotovelo e encostou a cabeça na mão conservando sempre o chapéu armado atravessado na cabeça o que lhe dava um aspecto entre cômico e melancólico Comadre disse o compadre em voz alta tudo está acabado apareça venha cá Ninguém respondeu Há de estar aí a chorar metida em algum canto tornou o compadre e começou a procurar por toda a casa Não era esta muito grande em pouco percorreua toda e ficou tomado do mais cruel desapontamento por não encontrar a Maria Voltou portanto à sala entre consternado e espantado O Leonardo supondo que ele tinha achado a Maria e que sem dúvida a trazia pela mão contrita e humilhada quis fazerse de bom ergueuse meteu as mãos nos bolsos e pôsse de costas para o lugar donde vinha o compadre Ó compadre disse este aproximandose Nada atalhou o Leonardo sem voltarse o dito por não dito mudei de resolução Olhe homem Nada nada está tudo acabado O Leonardo dizendo isto ia dando sempre as costas ao compadre quando se lhe queria pôr de frente Homem escute olhe que a comadre Não quero saber dela está tudo acabado já disse Foise embora homem foise embora gritou o compadre impacientado O Leonardo foi fulminado por estas palavras voltouse então trêmulo Não vendo a Maria desatou a chorar Pois bem disse entre soluços está tudo acabado adeus compadre Mas olhe que o pequeno atalhou este O Leonardo nada respondeu e saiu precipitadamente O compadre compreendeu tudo viu que o Leonardo abandonava o filho uma vez que a mãe o tinha abandonado e fez um gesto como quem queria dizer está bom já agora vá ficaremos com uma carga às costas Ao outro dia sabiase por toda a vizinhança que a moça do Leonardo tinha fugido para Portugal com o capitão de um navio que partira na véspera de noite Ah disse o compadre com um sorriso maligno foram saudades da terra capítulo iii Despedida às travessuras O Leonardo abandonara de uma vez para sempre a casa fatal onde tinha sofrido tamanha infelicidade nem mesmo passara mais por aquelas alturas de maneira que o compadre por muito tempo não lhe pôde pôr a vista em cima O pequeno enquanto se achou novato em casa do padrinho portouse com toda a sisudez e gravidade apenas porém foi tomando mais familiaridade começou a pôr as manguinhas de fora Apesar disto porém captou do padrinho maior afeição que se foi aumentando de dia em dia e que em breve chegou ao extremo da amizade cega e apaixonada Até nas próprias travessuras do endiabrado menino as mais das vezes malignas achava o bom do homem muita graça não havia para ele em todo o bairro rapazinho mais bonito e não se fartava de contar à vizinhança tudo o que ele dizia e fazia que lhe parecia sempre ter muito sal17 às vezes eram verdadeiras ações de menino malcriado que ele achava cheio de espírito e de viveza outras vezes eram ditos que denotavam já muita velhacaria para aquela idade e que ele julgava os mais ingênuos do mundo Era isto muito natural em um homem de uma vida como a sua tinha já 50 e tantos anos nunca tinha tido afeições passara sempre só isolado era verdadeiro partidário do mais decidido celibato Assim à primeira afeição que fora levado a contrair sua alma expandiuse toda inteira e seu amor pelo pequeno subiu ao grau de rematada cegueira Este aproveitandose da imunidade em que se achava por tal motivo fazia tudo quanto lhe vinha à cabeça Umas vezes sentado na loja divertiase em fazer caretas aos fregueses quando estes se estavam barbeando uns enfureciamse outros riam sem querer do que resultava que saíam muitas vezes com a cara cortada com grande prazer do menino e descrédito do compadre Outras vezes escondia em algum canto a mais afiada navalha do padrinho e o freguês levava por muito tempo com a cara cheia de sabão mordendose de impaciência enquanto esta se procurava e ele riase furtiva e malignamente Não parava em casa coisa alguma por muito tempo inteira fazia andar tudo numa poeira pelos quintais atirava pedras aos telhados dos vizinhos sentado à porta da rua bulia18 com quem passava com quem estava pelas janelas de maneira que ninguém por ali gostava dele Mas o padrinho não se dava disto e continuava a quererlhe sempre muito bem Gastava às vezes as noites em fazer castelos no ar a respeito dele sonhavalhe uma grande fortuna e uma elevada posição e tratava de estudar os meios que levassem a esse fim e dizia consigo Pelo ofício do pai ganhase é verdade dinheiro quando se tem jeito porém sempre se há de dizer ora é um meirinho nada por este lado não Pelo meu ofício verdade é que eu arranjeime há neste arranjeime uma história que havemos de contar porém não o quero fazer escravo das meias patacas dos fregueses Seria talvez bom mandálo ao estudo porém para que diabo serve o estudo Verdade é que ele parece ter boa memória e eu podia mais para diante mandálo a Coimbra Sim é verdade eu tenho aquelas patacas estou já velho não tenho filhos nem outros parentes mas também que diabo se fará ele em Coimbra licenciado não é mau ofício letrado era bom sim letrado mas não tenho zanga a quem me lida com papéis e demandas Clérigo um senhor clérigo é muito bom é uma coisa muito séria ganhase muito pode vir um dia a ser cura está dito há de ser clérigo ora se há de ser hei de ter ainda o gostinho de o ver dizer missa de o ver um dia pregar na Sé em presença dElrei19 e então hei de mostrar a toda esta gentalha aqui da vizinhança que não gosta dele que eu tinha muita razão em lhe querer bem Ele está ainda muito pequeno mas vou tratar de o ir desasnando aqui mesmo em casa e quando tiver 12 ou 14 anos há de me entrar para a escola Tendo ruminado por muito tempo esta20 um dia de manhã chamou o pequeno e disselhe Menino venha cá você está ficando um homem tinha ele 9 anos é preciso que aprenda alguma coisa para vir um dia a ser gente de segunda feira em diante estava em quartafeira começarei a ensinarlhe o b a ba Fartese de travessuras por este resto da semana O menino ouviu este discurso com um ar meio admirado meio desgostoso e respondeu Então eu não hei de ir mais ao quintal nem hei de brincar na porta Aos domingos quando voltarmos da missa Ora eu não gosto da missa O padrinho não gostou da resposta não era bom anúncio para quem se destinava a ser padre mas nem por isso perdeu as esperanças O menino tomou bem sentido nestas palavras do padrinho Fartese de travessuras por este resto da semana e acreditou que aquilo era uma licença ampla para fazer tudo quanto de bom e de mau se lembrasse durante o tempo que ainda lhe restava de folga Levou pois todo o dia em uma desenvoltura assustadora o padrinho foi achálo por duas ou três vezes a cavalo em cima do muro que dividia o quintal da casa do vizinho em grande risco de precipitarse Ao anoitecer estando sentado à porta da loja viu ao longe no princípio da rua um acompanhamento alumiado pela luz de lanternas e tochas e ouviu padres a rezarem estremeceu de alegria e pôsse em pé de um salto Era a ViaSacra do Bom Jesus Há bem pouco tempo que existiam ainda em certas ruas desta cidade cruzes negras pregadas pelas paredes de espaço em espaço Às quartasfeiras e em outros dias da semana saía do Bom Jesus e de outras igrejas uma espécie de procissão composta de alguns padres conduzindo cruzes irmãos de algumas irmandades com lanternas e povo em grande quantidade os padres rezavam e o povo acompanhava a reza Em cada cruz parava o acompanhamento ajoelhavamse todos e oravam durante muito tempo Este ato que satisfazia a devoção dos carolas dava pasto e ocasião a quanta sorte de zombaria e de imoralidade lembrava aos rapazes daquela época que são os velhos de hoje que tanto clamam contra o desrespeito dos moços de agora Caminhavam eles em charola atrás da procissão interrompendo a cantoria com ditérios em voz alta ora simplesmente engraçados ora pouco decentes levavam longos fios de barbante em cuja extremidade iam penduradas grossas bolas de cera Se ia por ali ao seu alcance algum infeliz a quem os anos tivessem despido a cabeça dos cabelos colocavamse em distância conveniente e escondidos por trás de um ou de outro arremessavam o projétil que ia bater em cheio sobre a calva do devoto que às vezes ia entretido em suas orações puxavam rapidamente o barbante e ninguém podia saber donde tinha partido o golpe Estas e outras cenas excitavam vozeria e gargalhadas na multidão que muito se divertia com isso Era a isto que naqueles devotos tempos se chamava correr a ViaSacra O menino como já dissemos estremecera de prazer ao ver aproximar se a procissão Desceu sorrateiramente a soleira e sem ser visto pelo padrinho colocouse unido à parede entre as duas portas da loja e levantou se na ponta dos pés para ver mais a seu gosto Vinhase aproximando o acompanhamento e o menino palpitava de prazer Chegou mesmo defronte da porta teve ele então um pensamento que o fez estremecer tornouse a lembrar das palavras do padrinho farte se de travessuras espiou para dentro da loja viuo entretido deu um salto do lugar onde estava misturouse com a multidão e lá foi concorrendo com suas gargalhadas e seus gritos para aumentar a vozeria Era um prazer febril que ele sentia esqueceuse de tudo pulou saltou gritou rezou cantou e só não fez daquilo o que não estava em suas forças Fez camaradagem com dois outros meninos do seu tamanho que também iam no rancho e quando deu acordo de si estava de volta com a ViaSacra na Igreja do Bom Jesus capítulo iv O Leonardo tomando fortuna21 Enquanto o compadre aflito procura por toda a parte o menino sem que ninguém possa darlhe novas dele vamos ver o que é feito do Leonardo e em que novas alhadas está agora metido Lá para as bandas do mangue da Cidade Nova havia ao pé de um charco uma casa coberta de palha da mais feia aparência cuja frente suja e testada enlameada bem denotavam que dentro o asseio não era muito grande Compunhase ela de uma pequena sala um quarto e uma cozinha toda a mobília eram dois ou três assentos de paus de uma forma esquisita de que ainda hoje usam algumas mulheres desse tempo e que se chamavam bancas22 algumas esteiras em um canto e uma enorme caixa de pau que tinha muitos empregos era mesa de jantar cama guardaroupa prateleira etc e uns poucos de alguidares de barro de diversos tamanhos23 Quase sempre estava essa casa fechada o que a rodeava de um certo mistério a pouca luz que ordinariamente havia dentro entrando apenas por algumas frestas ainda mais misteriosa a tornava24 Esta sinistra morada era habitada por uma personagem talhada pelo molde mais detestável era um caboclo velho de cara hedionda imundo e coberto de farrapos Entretanto para a admiração do leitor fiquese sabendo que este homem tinha por ofício dar fortuna Naquele tempo acreditavase muito nestas coisas e uma sorte de respeito supersticioso era tributado aos que exerciam semelhante profissão Já se vê que inesgotável mina não achavam nisso os velhacos25 E não era só a gente do povo que dava crédito a essas feitiçarias contase que muitas pessoas da alta sociedade de então iam às vezes comprar venturas e felicidades pelo cômodo preço da prática de algumas imoralidades e superstições Pois ao nosso amigo Leonardo tinha se encasquetado26 também tomar fortuna e a causa era a contrariedades em uns novos amores que lhe faziam agora andar a cabeça à roda Uma cigana era o objeto deles o Leonardo a vira pouco tempo depois da fuga da Maria e das cinzas ainda quentes de um amor mal pago nasceu outro que também não foi a este respeito melhor aquinhoado mas o homem era romântico como se diz hoje e babão como se dizia naquele tempo não podia passar sem uma paixãozinha Como o ofício rendia e ele andava sempre apatacado não lhe fora difícil conquistar a posse do adorado objeto porém a fidelidade a unidade no gozo dela que era o que sua alma aspirava isso não o pudera conseguir a cigana tinha pouco mais ou menos sido feita no mesmo molde da ilhoa Por toda a parte há sargentos colegas e capitães de navio a rapariga tinhalhe já feito umas poucas e acabava também por fugirlhe de casa Desta vez porém como não eram saudades da pátria a causa desta fugida o Leonardo decidira haver de novo e por todos os meios a posse de sua amada Encontroua com pouco trabalho e empregou o pranto as súplicas as ameaças porém tudo embalde decidiu por isso a buscar com meios sobrenaturais o que os meios humanos lhe não tinham podido dar Entregarase portanto em corpo e alma ao caboclo da casa do mangue o mais afamado de todos os do ofício Tinhase já sujeitado a uma infinidade de provas que começavam sempre por uma contribuição pecuniária e ainda nada havia conseguido tinha sofrido fumigações de ervas sufocantes tragado beberagens de mui enjoativo sabor sabia de cor milhares de orações misteriosas que era obrigado a repetir muitas vezes por dia ia depositar quase todas os dias em lugares determinados quantias e objetos que lhe dizia o caboclo viriam buscar as suas divindades mas as divindades eram ele em pessoa tinha enfim feito outras mil coisas asnáticas ou indecentes e nada ainda havia conseguido a cigana resistia ao sortilégio Decidiuse finalmente a sujeitarse à última prova que foi marcada para a meianoite em ponto na casa que já conhecemos À hora aprazada lá se achou o Leonardo encontrou na porta o nojento nigromante que não consentiu que ele entrasse do modo em que se achava e obrigouo a pôrse primeiro em hábitos de Adão no paraíso cobriuo depois com um manto imundo que trazia e só então lhe franqueou entrada A sala estava com um aparato ridiculamente sinistro uma fileira de alguidares de todos os tamanhos a circulava havia distribuído por esses alguidares ervas líquidos terra areia etc etc27 no meio havia uma pequena fogueira O Leonardo foi obrigado a ajoelharse diante de cada um dos alguidares e a recitar algumas orações que já sabia depois foi orar junto da fogueira Neste momento saíram do quarto duas ou três28 figuras que eram sem dúvida os ajudantes do distribuidor de fortuna e começaram então em roda do Leonardo uma dança sinistra Quando estavam no meio desse ato sentiram bater levemente na porta da parte de fora e uma voz descansada dizer Abra a porta O Vidigal disseram todos a um tempo com expressão de grande susto capítulo v Primeira noite fora de casa O compadre apenas dera por falta do afilhado viuse presa da maior aflição pôsse em alarma toda a vizinhança procurou indagou mas ninguém lhe deu novas nem mandados dele Lembrouse então da Via Sacra e imaginou que o pequeno a teria acompanhado percorreu todas as ruas por onde passara o acompanhamento perguntando aflito a quantos encontrava pelo seu querido afilhado tesouro precioso de suas esperanças chegou sem encontrar vestígio algum até o Bom Jesus onde lhe disseram ter visto três meninos que por se portarem endiabradamente na ocasião da entrada da ViaSacra o sacristão os correra para fora da igreja Foi este o único sinal que pôde colher Vagou depois por muito tempo pela rua e só se recolheu para casa estando já a noite adiantada Ao chegar à porta de casa abriuse o postigo de uma rótula contígua e uma voz de mulher perguntou Então vizinho nada Nada vizinha respondeu o compadre com voz desanimada Ora quando eu lhe digo que aquela criança tem maus bofes Vizinha isto não são coisas que se digam Digolhe e repitolhe que tem maus bofes Pois o que ele fez hoje trepado no muro e enfim Deus permita que não mas aquilo não tem bom fim Oh senhora replicou o compadre muito irritado que tem a senhora com a minha vida e mais das coisas que me pertencem Metase consigo cuide nos seus bilros e na sua renda e deixe a vida alheia E entrou para casa murmurando Um dia faço aqui uma estralada com esta mulher é sempre isto parece um agouro Toda a noite levou o pobre homem acordado a pensar nos meios de achar o pequeno e depois de ter formado mil planos disse consigo Em último lugar vou ter com o major Vidigal E esperou que o dia voltasse para prosseguir em suas pesquisas Entretanto vamos satisfazer ao leitor que há de talvez ter curiosidade de saber onde se meteu o pequeno Com os emigrados de Portugal veio para o Brasil também a praga dos ciganos gente ociosa e de poucos escrúpulos ganharam eles aqui a reputação bem merecida dos mais refinados velhacos que se pode imaginar ninguém que tivesse juízo se metia com eles em negócio porque tinha certeza de levar carolo A poesia de seus costumes e de suas crenças de que muitos escritores29 têm falado se as tinham deixaramna da outra banda do oceano para cá só trouxeram maus hábitos esperteza e velhacaria e se não o nosso Leonardo pode dizer alguma coisa a respeito Eram gente ociosa já o dissemos se não tinham dia sem especial ação não tinham noite sem festa Moravam ordinariamente um pouco arredados das ruas populosas e viviam em plena liberdade As mulheres trajavam com certo luxo relativo aos seus haveres usavam muito de rendas davam preferência a tudo quanto era encarnado e nenhuma delas dispensava pelo menos um cordão de ouro ao pescoço os homens não tinham outra distinção mais do que alguns traços fisionômicos particulares que os faziam conhecidos Os dois meninos com quem o pequeno fugitivo travara amizade pertenciam a uma família dessa gente que morava no largo do Rossio lugar que segundo julgamos perdera há pouco tempo o nome que tinha de Campo dos Ciganos por morarem por ali muitos deles Tinham como dissemos pouco mais ou menos a mesma idade que ele porém acostumados à vida vagabunda conheciam toda a cidade e a percorriam sós sem que isso causasse cuidado a seus pais nunca faltavam a acompanhamento de ViaSacra nem a outra qualquer coisa desse gênero Encontrandose nessa noite como já sabem os leitores com o nosso futuro clérigo a ele se associaram e o carregaram para casa de seus pais onde como de costume havia festa de ciganos e este costume ainda hoje se conserva faziam como dissemos festa todos os dias porém motivavam na sempre com qualquer causa hoje era um batizado amanhã um casamento agora anos disto logo anos daquilo festa deste festa daquele santo Na noite de que tratamos havia um oratório armado e festejavase lá um santo da devoção Pelo caminho o menino teve alguns escrúpulos e quis voltar porém os outros tal pintura lhe fizeram do que ele ia ver se os acompanhasse que decidiuse a seguilos até onde quisessem Chegaram enfim à casa onde já tinha começado a festa Ao lado esquerdo da sala estava o oratório iluminado por algumas pequenas velas de cera sobre uma mesa coberta com uma toalha branca servialhe de docel uma colcha de chita com folhos o chão em roda da mesa estava juncado de manjericão desfolhado30 Em roda da sala estavam colocados assentos de toda a natureza bancos cadeiras etc onde se assentavam os convidados Não eram estes em pequeno número eram ciganos e gente do país traziam toilletes de toda a casta do sofrível para baixo mostravamse alegres e dispostos a aproveitarem bem a noite Os meninos entraram sem que alguém reparasse neles e foram colocarse junto do oratório Daí a pouco começou o fado Todos sabem o que é o fado essa dança tão voluptuosa tão variada que parece filha do mais apurado estudo da arte Uma simples viola serve melhor do que instrumento algum para o efeito O fado tem diversas formas cada qual mais original e mais bonita Ora uma só pessoa homem ou mulher dança no meio da casa por algum tempo fazendo passos os mais dificultosos tomando as mais airosas posições acompanhandose com estalos que dá com os dedos e vai depois pouco e pouco aproximandose de qualquer que lhe agrada faz diante dela algumas negaças e viravoltas engraçadas e finalmente bate palmas junto dela o que quer dizer que a escolheu para substituir o seu lugar Assim corre a roda toda até que todos tenham dançado Outras vezes um homem e uma mulher dançam juntos seguindo com a maior certeza o compasso da música eles acompanham ora com passo lento ora apressado depois repelemse depois juntamse de novo o homem às vezes busca a mulher com passos ligeiros enquanto ela fazendo um pequeno movimento com o corpo e com os braços recua vagarosamente outras vezes é ela quem procura o homem que recua por seu turno até que enfim acompanhamse de novo Parece esta forma de dança representar a história de um namoro ao princípio confiança e intimidade depois negaças escrupulosas depois arrufos de parte a parte e finalmente pazes31 Há também a roda em que dançam muitas pessoas interrompendo certos compassos com palmas e com um sapateado às vezes estrondoso e prolongado às vezes mais brando e mais breve porém sempre igual e a um só tempo Além destas há ainda outras formas de que não falamos A música é diferente para cada uma porém sempre o mais adequada possível e sempre tocada em viola Muitas vezes o tocador canta em certos compassos uma cantiga às vezes extravagante as vezes de pensamento verdadeiramente poético Quando o fado começa custa a acabar termina sempre pela madrugada quando não leva de enfiada dias e noites seguidas e inteiras O menino esquecido de tudo pelo prazer assistiu à festa enquanto pôde depois chegoulhe o sono e reunindose com os companheiros em um canto adormeceram todos embalados pela viola e pelo sapateado Quando amanheceu acordou sarapantado chamou um dos companheiros e pediu que o levasse para casa O padrinho ia saindo para começar nas pesquisas quando esbarrou com ele Menino dos trezentos onde te meteste Fui ver um oratório não diz que eu hei de ser padre O padrinho olhouo por muito tempo e afinal não podendo resistir ao ar de ingenuidade que ele mostrava desatou a rir e levouo para dentro já completamente apaziguado capítulo vi A comadre Cumprenos agora dizer alguma coisa a respeito de uma personagem que representará no correr desta história um importante papel e que o leitor apenas conhece porque nela tocamos de passagem no primeiro capítulo é a comadre a parteira que como dissemos servira de madrinha ao nosso memorando Era a comadre uma mulher baixa excessivamente gorda bonanchona ingênua ou tola até um certo ponto e finória até outro vivia do ofício de parteira que adotara por curiosidade benzia de quebranto todos a conheciam por muito beata e pela mais desabrida papamissas da cidade Era a folhinha mais exata de todas as festas religiosas que aqui se faziam sabia de cor os dias em que se dizia missa em tal ou tal igreja como a hora e até o nome do padre era pontual à ladainha ao terço à novena ao setenário não lhe escapava viasacra procissão nem sermão que ela não assistisse trazia o tempo habilmente distribuído e as horas combinadas de maneira que nunca lhe aconteceu chegar à igreja e achar já a missa no altar De madrugada começava pela missa da Lapa apenas acabava lá a missa ia à das 8 na Sé e daí saindo ainda pilhava a das 9 em Santo Antônio O seu traje habitual era como o de todas as mulheres da sua condição e esfera uma saia de lila preta que se vestia sobre um vestido qualquer um lenço branco muito teso e engomado ao pescoço outro envolvendolhe a cabeça um rosário pendurado no cós da saia um raminho de arruda atrás da orelha tudo isto coberto por uma clássica mantilha preta32 Nos dias dúplices em vez do lenço à cabeça o cabelo era penteado punhalhe um enorme pente cuja altura o rigor da moda elevara a 2 palmos do qual então pendia a mantilha33 Este uso da mantilha parece ser imitado do uso espanhol porém a mantilha espanhola temos ouvido dizer é uma coisa poética que reveste as mulheres de um certo mistério que atrai a tenção a mantilha das nossas mulheres não é34 a coisa mais prosaica que se pode imaginar especialmente quando as que as trazem são baixas e gordas como a comadre A mais brilhante festa religiosa que eram as mais freqüentadas desse tempo tomava um aspecto lúgubre logo que a igreja se enchia daqueles vultos negros que se uniam uns aos outros que se inclinavam cochichando a cada momento Mas a mantilha era o hábito mais conveniente aos costumes daquela época as ações dos outros sendo o principal cuidado de quase todos era muito bom e conveniente ver sem ser visto ora debaixo daquela capa negra passavamse imensos mistérios a mantilha para as mulheres estava na razão das rótulas para as casas eram o observatório da vida alheia Era agitada e acidentada a vida que levava a comadre de parteira beata e curandeira de quebranto não tinha por isso muito tempo de fazer visitas e procurar os conhecidos e amigos Assim não procurava o Leonardo muitas vezes e também tinha nisso razão por causa da zanga particular que lhe tinha o afilhado não sabia notícia deles há muito tempo quando um dia na Sé ouviu entre duas beatas de mantilha a seguinte conversa Pois é o que lhe digo a ilhoazinha35 era da pele do diabo E parecia uma santinha e o Leonardo o que lhe fez Ora desancoua de murros e foi o que fez com que ela abalasse mais depressa com o tal capitão pois olhe não teve razão o Leonardo é um rapagão ganhava boas patacas e tratava dela como de uma senhora E o filho que assim mesmo pequeno era um malcriadão O padrinho tomou conta dele querlhe um bem extraordinário está maluco o diabo do homem diz que o menino há de por força ser padre mas qual padre se ele é um endiabrado Ainda há pouco tempo fugiulhe de casa acompanhou a viasacra e depois foise meter em um fado de ciganos36 Nesta ocasião levantavase a Deus e as duas beatas interromperam a conversa para bater nos peitos Era uma delas a vizinha do compadre que prognosticava mau fim ao menino e com quem ele prometera fazer uma estralada a outra era uma das que tinham estado na função do batizado A comadre apenas ouviu isto foi procurar o compadre não se pense porém que a levara a isso o interesse pelo afilhado não era apenas curiosidade queria saber o caso com todos os menores detalhes isso lhe dava longa matéria para a conversa na igreja e para entreter as parturientes que se confiavam aos seus cuidados Entrou pela loja do compadre e apenas o avistou foilhe dizendo Então com que a tal comadre pregounos o mono Veja o que são doidices fazer aquilo ao Leonardo um homem que não é malarranjado filho do Reino Apertaramlhe as saudades da terra disse o compadre com seu sorriso maligno Apertada se veja ela entre as unhas do diabo Olhem que joiazinha E você mestre ficou com a carga às costas Carga não eu querolhe bem ele é sossegadinho A propósito ele tem andado um pouco morrinhento desconfio cá certa coisa Isso vêse logo e eu cá tenho o remédio disse a comadre chocalhando na mão as contas do rosário Nisto entra o pequeno Não tem que ver repetiu ela apenas o viu é olhado Passouse então uma cena de carinhos da parte da madrinha e repulsas da parte do afilhado esta ficou um tanto despeitada mas o compadre achoulhe graça37 Começou depois um interrogatório minucioso acerca do que tinha sucedido em casa do Leonardo e os dois compadre e comadre desabafaram a seu gosto Depois o compadre narrou mesmo sem ser interrogado todas as gentilezas do afilhado contou suas intenções a respeito dele A comadre não concordou com elas o que nada agradou ao compadre não via o menino com jeito para padre achava melhor metêlo no Trem a aprender um ofício Quanto ao incômodo que sofria o menino a comadre O compadre porém persistiu em seus intentos que tinha muita esperança de ver realizados Quanto ao incômodo que sofria o menino a comadre prometeu pôlo bom em 3 dias benzendoo para livrálo do mau olhado e despediuse prometendo voltar e oferecendose para fazer por ele tudo o que pudesse38 Pelo caminho foi repetindo o que acabara de saber a quanto conhecido encontrou sem escrupulizar muito em acrescentar mais uma ou outra circunstância com que carregava as cores do quadro Voltou depois durante três dias e com rezas e benzeduras conseguiu livrar o pequeno do mal que sofria olhado quebranto ou o quer que seja O compadre apenas viu o menino bom começou a suspeitar que o malefício não partira senão da vizinha que tanto se intrometia com ele e jurou tomar disso séria satisfação39 Entretanto aplicavase a trabalhar na realização de seus intentos e começou por ensinar o abc ao menino porém por primeira contrariedade este empacou no f e nada o fazia passar adiante A comadre continuou a aparecer daí em diante por um motivo que mais tarde se saberá Por agora vamos continuar a contar o que era feito do Leonardo capítulo vii40 O vidigal O som daquela voz que dissera aos nossos distribuidores de fortuna abra a porta lançara entre eles como dissemos o espanto e o medo E não foi sem razão era ela o anúncio de um grande aperto de que por certo não poderiam escapar Nesse tempo ainda não estava organizada a polícia da cidade ou antes estavao de um modo que bem denotava o caráter41 da época O major Vidigal era o rei absoluto o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração era o juiz que julgava e distribuía a pena e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos nas causas que ele julgava não haviam testemunhas nem provas nem razões nem processo ele resumia tudo em si a sua justiça era infalível não havia apelação de sua sentença fazia o que queria e ninguém lhe tomava contas exercia enfim uma espécie de inquirição policial Entretanto façamolhe justiça dados os descontos necessários das idéias do tempo ele em verdade não abusava lá muito de seu poder e o empregava em certos casos muito bem empregado Era ele um homem alto não muito gordo com cara de moleirão tinha o olhar sempre baixo os movimentos lentos e voz descansada e adocicada Apesar deste aspecto de mansidão não se encontraria por certo homem mais apto para aquela profissão exercida pelo modo que acabamos de indicar Uma companhia ordinariamente de granadeiros às vezes de outros soldados que ele escolhia entre os corpos que haviam armados todos de grossos camarões42 comandada pelo major Vidigal fazia toda a ronda da cidade de noite e toda a mais polícia de dia Não havia beco nem travessa rua nem praça onde não se tivesse passado uma façanha artística do Sr major para pilhar um garoto43 ou dar caça a um vagabundo A sua sagacidade era proverbial e por isso só o seu nome incutia um grande terror em todos os que não tinham a consciência muito pura a respeito de falcatruas Se no meio da algazarra de um fado rigoroso em que a decência e os ouvidos dos vizinhos não eram muito respeitados ouviase dizer está aí o Vidigalera como vulgarmente se diz o mesmo que pôr água na fervura 44 serenava tudo em um momento e a brincadeira tomava logo um aspecto sério Quando algum dos patuscos daquele tempo que os havia em grande número que não gozava de grande reputação de ativo e trabalhador era surpreendido de noite de capote sobre os ombros e viola por baixo dele caminhando em busca de súcia por uma voz branda que lhe dizia simplesmente venha cá onde vai era fugir se pudesse porque contava já com uma boa remessa de cadeia ou pelo menos de casa de guarda na Sé e depois o côvado e meio às costas como se dizia então era quase sempre a conseqüência necessária Foi por isso que os nossos nigromantes45 e a sua infeliz vítima puseramse em debandada mal conheceram pela voz quem se achava com eles Quiseram escaparse pelos fundos da casa porém ela estava toda cercada de granadeiros em cujas mãos reluziam os competentes camarões 46 A porta abriuse sem muita resistência e o major Vidigal porque era com efeito ele com os seus granadeiros pilhouos mesmo com a boca na botija47 estava ainda acesa a fogueira e os alguidares dispostos na ordem que indicamos48 Oh disse ele então por aqui dáse fortuna Sr major pelo amor de Deus Eu queria ver como era isso continuem camaradas Eles hesitaram um pouco porém vendo que resistir seria inútil começaram de novo as cerimônias de que os soldados se riam antevendo talvez qual seria o resultado O Leonardo estava corrido de vergonha tanto mais porque o Vidigal o conhecia e procurava cobrirse do melhor modo com a sua imunda capa Ajoelhouse quase arrastado outra vez no mesmo lugar e recomeçou a dança a que o major assistia de braços cruzados e com ar pachorrento Quando eles julgando que já tinham dançado suficientemente tentaram parar o major dizia brandamente continuem E eles continuavam Depois de muito tempo quiseram parar de novo Continuem disse outra vez o major Continuaram por mais meia hora passado esse tempo já muito cansados quiseram parar de novo Ainda não continuem Continuaram por tempos esquecidos já estavam que não podiam de estafados o nosso Leonardo ajoelhado ao pé da fogueira quase que se desfazia em suor quando o major dandose por satisfeito mandou que parassem e sem se alterar disse para os soldados com a sua voz lenta Toca granadeiros A esta voz todos os camarões se ergueram e caindo de rijo sobre as costas daquela honesta gente fizeramna dançar sem querer ainda por algum tempo Pára disse o major depois que os viu bem sovados49 Começou então a fazer a cada um um sermão em que se mostrava muito sentido por ter sido obrigado a chegar àquele excesso e que terminava sempre por esta pergunta Então você em que se ocupa Nenhum deles respondia e ele tornava sorrindo Está bom Chegou a vez do Leonardo Pois homem você um oficial de justiça que devia dar o exemplo Sr major respondeu ele acabrunhado é o diabo daquela rapariga que me obriga a tudo isto já não sei de que meios use Está bom replicou o major você há de ficar bom disto Vamos para a casa da guarda Com esta última decisão o Leonardo desesperou Perdoaria de bom grado as chibatadas que levara contanto que elas ficassem em segredo mas ir para a casa da guarda e de lá talvez para a cadeia isso é que ele não podia tolerar Rogou ao major que o poupasse porém debalde desfez então a vergonha em pragas à maldita cigana que tanto o fazia sofrer A casa da guarda era no largo da Sé era uma espécie de depósito onde se guardavam os presos que se faziam de noite para se lhes dar conveniente destino Já se sabe que os amigos de novidades iam por ali de manhã e sabiam com facilidade tudo que se tinha passado Aí esteve o Leonardo o resto da noite e grande parte da manhã exposto à vestoria dos curiosos Por infelicidade sua passou por acaso um colega e vendoo entrou para falarlhe isto quer dizer que daí a pouco toda a ilustre corporação dos meirinhos da cidade sabia do ocorrido com o Leonardo e já se preparava toda para darlhe uma solene pateada quando o negócio mudou de aspecto e o Leonardo foi mandado para a cadeia Aparentemente os companheiros mostraramse sentidos porém secretamente não deixaram de estimar o contratempo porque o Leonardo era muito afreguesado e enquanto estava ele preso as partes os procuravam capítulo viii50 O arranjeime do compadre Os leitores estarão lembrados que o compadre dissera quando estava a fazer castelos no ar a respeito do afilhado e pensando em darlhe o mesmo ofício que exercia isto é daquele arranjeime cuja explicação prometemos dar Vamos agora cumprir a promessa Se alguém perguntasse ao compadre por seus pais por seus parentes por seu nascimento ele nada poderia responder porque nada sabia a respeito Tudo de que se recordava da sua história reduziase a bem pouco Quando chegara à idade de dar acordo da vida achouse em casa de um barbeiro que dele cuidava porém que nunca lhe dissera se era ou não seu pai ou seu parente nem tão pouco o motivo por que tratava da sua pessoa Também nunca isso lhe dera cuidado nem lhe veio à curiosidade de o indagar Esse homem ensinaralhe o ofício e por inaudito milagre também a ler e a escrever Enquanto foi aprendiz passou em casa do seu mestre em falta de outro nome uma vida que por um lado se parecia com a do fâmulo por outro com a do filho por outro com a do agregado e que afinal não era senão vida de enjeitado que o leitor sem dúvida já adivinhou que ele o era A troco disso davalhe sustento e morada e pagavase do que por ele tinha já feito Quando passou de menino a rapaz e chegou a saber barbear e sangrar sofrivelmente foi obrigado a manterse à sua custa e a pagar a morada com os ganchos que fazia porque o produto do mais trabalho pertencia ainda ao mestre Sujeitouse a isso porém queriam ainda mais exigiam que continuasse a empregarse no serviço doméstico Lavroulhe então nalma um arrepio de dignidade já era oficial e não queria rebaixar o seu oficio Virou mareta fezse duro e safouse de casa sem escrúpulos nem remorsos pois bem sabia que estavam saldas as contas de parte a parte tinhamno criado e ele tinha servido Também não encontrou grande resistência a isso Apenas passou o primeiro ímpeto e teve tempo de reflexionar quase que começou a arrependerse por não saber o meio de achar arranjo Achou se na rua sem saber para onde ir tendo por única fortuna uma bacia de barbear um banco de braço51 um par de navalhas e outro de lancetas na algibeira Verdade é que quem tinha consigo estes trastes estava no uniforme do ofício porém isso não bastava e o pobre rapaz estava em apertos Passou a primeira noite em casa de um colega e no dia seguinte ao amanhecer tomando os seus apetrechos saiu em busca de que fazer e de destino Achou ambas as coisas uma trouxe a outra No Largo do Paço um marujo que estava sentado em uma pedra junto ao mar chamouo para que lhe fizesse a barba mãos à obra que já aquele dia não morria de fome Todo o barbeiro é tagarela e principalmente quando tem pouco que fazer começou portanto a puxar conversa com o freguês Foi a sua salvação e fortuna O navio a que o marujo pertencia viajava para a Costa e ocupavase no comércio de negros era um dos comboios que traziam fornecimento para o Valongo Estava pronto a largar e o faria no dia seguinte se se encontrasse alguém que quisesse ir fazendo as vezes de médico52 Ó mestre disse o marujo no meio da conversa você também não é sangrador Sim eu também sangro Pois olhe você estava bem bom se quisesse ir conosco53 Homem eu da cirurgia não entendo muito Pois já não disse que sabe também sangrar Sim Então já sabe até demais No dia seguinte saiu o nosso homem pela barra fora a fortuna tinhalhe dado o meio cumpria sabêlo aproveitar de oficial de barbeiro tinha dado um salto mortal a médico de navio restava unicamente saber fazer render a nova posição Isso ficou por sua conta Por um feliz acaso logo nos primeiros dias de viagem adoeceram dois marinheiros chamouse o médico ele fez tudo o que sabia sangrou os doentes e em pouco tempo estavam bons perfeitos Com isto ganhou ele imensa reputação e começou a ser estimado Chegaram com feliz viagem ao seu destino tomaram o seu carregamento de gente e voltaram para o Rio Graças à lanceta do nosso homem nem um só negro morreu o que muito contribuiu para aumentar lhe a sólida reputação de entendedor do riscado Poucos dias antes de chegar ao Rio o capitão do navio adoeceu a princípio nem ele nem alguém teve a menor dúvida de que ficaria bom logo depois da primeira sangria porém repentinamente o negócio complicouse e nem com a terceira e quarta se pôde conseguir coisa alguma No fim do quarto dia convenceramse todos e o capitão mesmo de que estava chegada a sua hora Nem por isso porém inculparam o nosso homem Ali não há sangria que o salve diziam chegou a sua vez de dar à costa O capitão teve de fazer suas últimas disposições e como dissemos tendo o médico granjeado grande amizade e confiança foi o escolhido para desempenhálas O capitão chamouo à parte e em segredo lhe fez entrega de uma cinta de couro54 pejada de um bom par de doblas em ouro e prata pedindo que fielmente as fosse entregar apenas chegasse à terra a uma filha sua cuja morada lhe indicou Além deste dinheiro encarregouo também de receber o importe55 daquela viagem e de lhe dar o mesmo destino Eram estas suas únicas e últimas vontades que o encarregava de cumprir declarandolhe que lá do outro mundo o espiaria para ver como cuidava disso Poucas horas depois expirou Desse dia em diante nenhum só doente escapou mais porque o médico já não sangrava tanto andava preocupado distraído e assim levou até chegar à terra Apenas saltou declarou que não se tinha dado bem e que não embarcaria mais Quanto às ordens do capitão ora histórias quem é que lhe havia de vir tomar contas disso Ninguém viu o que se passou ninguém sabia Os únicos que podiam ter desconfiado e fazer alguma coisa eram os marinheiros porém estes partiram em breve de novo56 O compadre decidiuse a instituirse herdeiro do capitão e assim o fez Eis aqui como se explica o arranjeime e como se explicam muitos outros que vão aí pelo mundo capítulo ix O pátio dos bichos Ainda hoje existe no saguão do paço imperial que no tempo em que se passou esta nossa história se chamava palácio delrei uma saleta ou quarto que os gaiatos e o povo com eles denominavam o pátio dos bichos Este apelido lhe fora dado em conseqüência do fim para que ele então servia passavam ali todos os dias do ano três ou quatro oficiais superiores velhos incapazes para a guerra e inúteis na paz que o rei a pretexto57 de seu serviço os tinha ali não sabemos se com mais alguma vantagem de soldo ou se só com mais a honra de serem empregados no real serviço Bem poucas vezes havia ocasião de serem eles chamados por ordem real para qualquer coisa e todo o tempo passavam em santo ócio ora mudos e silenciosos ora conversando sobre coisas do seu tempo e censurando as do que com razão já não supunham seu porque nenhum deles era menor de 60 anos Às vezes acontecia adormecerem todos ao mesmo tempo e então com a ressonância de suas respirações passando pelos narizes atabacados entoavam um quarteto pedaço impagável que os oficiais e soldados que estavam de guarda criados e mais pessoas que passavam vinham apreciar à porta Eram os pobres homens muitas vezes vítimas de caçoadas que naquele tempo de poucas preocupações eram o objeto de estudo de muita gente Às vezes qualquer que os pilhava dormindo chegava à porta e gritava Sr tenentecoronel elrei procura por V S Qualquer deles acordava espantado tomava o chapéu armado punha o cinturão58 acontecendo às vezes com a pressa ficar o chapéu torto ou a espada do lado direito e lá corria a ter com elrei Às vossas ordens real senhor dizia ainda bocejando O rei que percebia o negócio desatava a rir e o mandava embora Quando chegava o pobre homem abaixo ia cada um dos que por ali se achavam indagar o mais seriamente que era possível qual tinha sido o objeto do chamado delrei Faziamlhes destas e doutras mas daí a pouco deixavamse eles enganar de novo Vamos fazer o leitor tomar conhecimento com um desses ativos militares que entra também na nossa história Era velho como seus companheiros porém decerto por ele não é que tinha vindo ao quarto o apelido que lhe davam suas feições quebradas pela idade tinham ainda certa regularidade de contorno que bem denotava que no seu tempo de rapaz não fora a respeito de beleza mal favorecido de seus cabelos que o tempo levara restavam apenas orlandolhe as têmporas e a nuca alguns anéis crespos e prateados sua calva era nobre e imponente Fora valente ganhara por seus feitos as dragonas de tenentecoronel era filho de Portugal e acompanhara elrei na sua vinda ao Brasil Estas qualidades porém não lhe serviam de salvaguarda e sofria como os outros as caçoadas dos gaiatos Assim um dia que uma mulher de mantilha o foi procurar e se pôs com ele a conversar por algum tempo em particular passavam uns e outros e escarravam junto da porta ou deixavam escapar uma ou outra chalaça análoga Amores velhos nunca se esquecem dizia um Bravo gosto do bom gosto dizia outro A mulher de mantilha é nossa conhecida porque nem mais nem menos é a comadre e o negócio que ali a levou também nos interessa pois que se trata da soltura do pobre Leonardo Ouça portanto o leitor a conversa dos dois Sr tenentecoronel disse a comadre ao chegar venho me valer de V S meu compadre Leonardo está na cadeia O Leonardo mas então por quê Ora maluquices E chegandose ao ouvido do velho contoulhe a comadre baixinho a causa da prisão do Leonardo O velho desatou a rir Bem pregado disse Agora eu queria que V S fizesse o favor de falar por ele ao Sr major Vidigal que foi quem o prendeu coitado do homem é uma vergonha mas também ele não se emenda E prosseguindo a comadre contou muito em segredo como já o tinha feito a todos os seus conhecidos toda a história dos infelizes amores do Leonardo com a Maria todas as diabruras do menino que ela deixara e de que o padrinho tomara conta passou depois a relatar todo o ocorrido com a cigana e voltou de novo à história da prisão que contou e recontou vinte vezes sem lhe escapar a mais pequenina circunstância No fim tornou a fazer o seu pedido a que o velho prometeu satisfazer e então saiu ela recebendo no saguão muitos cumprimentos e sorrisos maliciosos Na porta por onde saiu estava encostado um cadete que lhe disse Estimo que fosse feliz no dia do batizado não se esqueça da gente Arrenego foi a única resposta que ela deu e passou Como o velho tenentecoronel conhecia a comadre e o Leonardo e por que se interessava por ele o leitor saberá mais para diante Esse conhecimento era antigo e o Leonardo apenas se achou na cadeia lembrouse da proteção que o velho lhe podia prestar em semelhante aperto mandou por um colega chamar a comadre e a encarregou da missão de ir ter com ele que ela aceitou de bom grado e que desempenhou segundo vimos satisfatoriamente O velho apenas a comadre saiu tomou o chapéu armado pôs a espada à cinta e saiu depois de ter contado aos companheiros o que sucede a quem vai tomar fortuna Um deles que era crédulo até ao entusiasmo a respeito de feitiçarias ficou muito indignado com o caso e prometeu também empenharse pelo Leonardo Já vê pois o leitor que o negócio não estava mal parado e em breve saberá o resultado de tudo isto capítulo x Explicações O velho tenentecoronel apesar de virtuoso e bom não deixava de ter na consciência um sofrível par de pecados desses que se chamam da carne e que não hão de ser levados em conta não de hoje que a idade o tornara inofensivo porém do tempo da sua mocidade o resultado de um deles fora um filho que deixara em Lisboa fruto de um derradeiro amor que tivera aos 36 anos Por castigo em nada havia ele saído ao pai e nem os conselhos nem os cuidados e nem o exemplo deste puderam encaminhálo por boa vereda Aos 20 anos tendo sentado praça era um cadete desordeiro jogador e o mais insubordinado do seu batalhão Bastantes vergonhas custara ao pobre pai que cuidadoso procurava sempre por todos os meios encobrirlhe os defeitos e remediar as gentilezas que fazia já pagando por ele dívidas de jogo já atabafandolhe as desordens e curando com ouro as brechas que ele fazia na cabeça de seus adversários Houve porém uma que as circunstâncias e mesmo a natureza do caso não permitiram que tivesse remédio Poucos dias antes de embarcar para o Brasil em companhia del rei estando o infeliz pai em preparativos de viagem viu entrarlhe pela porta adentro uma mulher velha baixa gorda vermelha vestida segundo o costume das mulheres da baixa classe do país com uma saia de ganga azul por cima de um vestido de chita um lenço branco dobrado triangularmente posto sobre a cabeça e preso embaixo do queixo e uns grossos sapatões nos pés Parecia presa de grande agitação e de raiva seus olhos pequenos e azuis faiscavam de dentro das órbitas afundadas pela idade suas faces estavam rubras e reluzentes seus lábios franzinos e franzidos apertavamse violentamente um contra o outro como prendendo uma torrente de injúrias e tornando mais sensível ainda seu queixo pontudo e um pouco revirado Apenas se achou ela em frente do capitão era este o posto que tinha nesse tempo o velho foise chegando para ele com ar resoluto e enfurecido O capitão recuou instintivamente um passo Ah Sr capitão disse ela por fim pondo as mãos nas cadeiras chegando a boca muito perto do rosto dele e abanando raivosa a cabeça olhe que isto assim não vai direito fazme andar a cabeça à roda põeme os miolos a ferver e eu estouro já viu Mas o que há então mulher Eu não lhe conheço Não quero cá saber de nada Já lhe disse que isto não vai bem e eu estouro Mas por quê o que é que tem É preciso que você diga Não tenho nada que dizer Estouro já lhe disse Sr capitão Pois estoure com trezentos diabos mas ao menos diga pelo que é que estoura Não tenho nada que dizer já lhe disse isto põe a cabeça da gente como uma cebola podre não tem lugar nenhum Irme por lá com ares de santarrão comprar a quitanda59 Quem mulher de Deus Você não se explicará Qual explicar nem meio explicar Pois então por ser cá a gente uma mulher velha que já perdeu os achegos ao mundo e ela uma pobre rapariga tola e bisbilhoteira com vontade de saber de tudo virme cá a mim pregar o mono na bochecha e a ela em lugar ainda mais melindroso Mas quem é que pregou monos a você mais a ela e quem é ela Fazse de novo continuou a mulher exasperandose pois o Sr capitão já não tinha consentido no casamento Que casamento com quem Ai ai ai que cá me anda a cabeça como uma nora solta Pois o Sr capitão não sabe que tem um filho Sim sei respondeu este começando a descobrir o mistério E não sabe que ele é um pedaço de um mariola A isto o capitão podia porém não se animou a responder afirmativamente e perguntou somente E que mais E não sabe também que eu tenho uma filha que trouxe da Madeira a Mariquinhas60 Como se eu nem a conheço Pois é uma rapariga muito capaz e o diabo do tal cadete do seu filho andou por lá a entender com ela muito tempo namoro para cá namoro para lá presentes daqui promessas dacolá e afinal de contas brás E então que lhe parece O capitão foi às nuvens Até lhe prometeu casamento dizendo que o Sr capitão consentia Ora eu bem sei que ela também teve sua culpa mas eu desculpo isso porque também já fui rapariga e sei que quando começa cá o diabo no corpo adeus Mas isto põe a gente tonta porque enfim a rapariga podia vir a fazer fortuna O capitão tinha compreendido tudo e por mais algumas explicações que se seguiram viuse reduzido ao maior aperto Desta vez a diabrura do rapaz era irremediável A mulher tinha toda a razão porém também casar seu filho com a filha de uma quitandeira61 isso não poderia ser além de que nada tinha que deixar ao filho e só com o soldo de cadete ele não poderia sustentar mulher e casa restando além disso a dúvida se ele estaria ou não pelos autos Despediu a velha não sem lhe prometer que providenciaria sobre o caso Olhe veja lá disse ela ao sair se o negócio não se arranja eu estouro O pobre homem ficou nos apuros foi ter com a ofendida e procurou oferecendolhe alguma coisa para seu dote obter que ela se calasse e que desistisse de suas pretensões ela quis a princípio recusar porém a mãe aconselhoua que aceitasse sem dúvida com medo de estourar Deste modo ficou o caso um pouco remediado posto que a consciência do capitão que era de homem de honra não ficara de modo algum satisfeita O tempo porém não dava lugar a mais era chegado o momento de acompanhar a el rei e ele partiu deixando o filho recomendado a quantos amigos tinha Decorreram os anos e quando menos esperava soube ele que se achava no Rio de Janeiro em companhia do Leonardo a tal Mariquinhas que então já era a Maria que os leitores bem conhecem Procurou fazer o que pudesse por ela para satisfazer todos os seus escrúpulos de pai honrado porém quis fazêlo ocultamente Foi ter com a comadre a quem já conhecia e a encarregou de o avisar apenas sentisse que a Maria sofria qualquer necessidade Nunca porém teve ocasião de exercer a sua boa vontade diretamente para com ela Apenas tinha feito ao Leonardo um pequeno favor em ocasião em que este se achava embaraçado por causa de uma irregularidade em uns autos que se lhe atribuía e que a comadre o aconselhou de procurálo mesmo sem o conhecer a título de que era muito bom homem e amigo de servir a todos Eis aqui por que o Leonardo se dirigiu no seu segundo apuro ao velho tenentecoronel por intermédio da comadre e por que este prometeu empenharse por ele o que com efeito tratou de cumprir Como dissemos apenas a comadre saiu ele saiu também e foi tratar de pôr o Leonardo na rua Dirigiuse primeiro à cadeia para colher do próprio Leonardo todas as informações e então pôde ver que as que lhe tinha dado a comadre eram exatíssimas e que ela não deixara escapar a menor circunstância O Leonardo repetiu e confessou tudo o que ele já sabia corrido de embaraço e de vergonha e ao despedirse o velho Sr tenentecoronel disselhe ele VSª já me livrou de uma que não era culpa minha livreme desta também olhe que está comprometida a minha honra O Leonardo esqueciase da teoria da Maria A honra não respondeu o velho o que está comprometido é o seu juízo hão de dizer e eu sou o primeiro que você está doido Fugi de uma ilhoa62 e fui cair numa cigana que duas O velho saiu sorrindose Daí dirigiuse à casa de um seu amigo fidalgo de valimento cujo nome ocultamos por motivos particulares63 para dele obter a soltura do Leonardo Morava ele em uma das ruas mais estreitas da cidade em um sobrado de sacada de rótulas de pau com pequenos postigos que se abriam às furtadelas sem que ninguém de fora pudesse ver quem a eles chegava A poeira amontoada nos cordões da rótula e as paredes encardidas pelo tempo davam à casa um aspecto triste no exterior quanto ao interior andava pelo mesmo conseguinte A sala era pequena e baixa a mobília que a guarnecia era toda de jacarandá e feita no gosto antigo todas as peças eram enormes e pesadas as cadeiras e o canapé de pés arcados e espaldares altíssimos tinham os assentos de couro que era a moda da transição entre o estofo e a palhinha Quem quiser ter idéia exata destes trastes64 procure no consistório de alguma irmandade antiga onde temos visto alguns deles As paredes eram ornadas por uma dúzia de quadros ou antes de caixas de vidro que deixavam ver em seu interior paisagens e flores feitas de conchinhas de todas as cores que não eram totalmente feias porém que não tinham decerto o subido valor que se lhes dava naquele tempo À direita da sala havia sobre uma mesa um enorme oratório no mesmo gosto da mobília Havia finalmente em um canto uma palma benta destas que se distribuem no domingo de ramos e se o leitor agora supuser tudo isto coberto por uma densa camada de poeira terá idéia perfeita do lugar em que foi recebido o velho tenentecoronel que era pouco mais ou menos semelhante em todas as65 ricas de então e por isso nos demoramos em descrevêlo Sem se fazer esperar muito apareceu o dono da casa era um homem já velho e de cara um pouco ingrata vinha de tamancos sem meias em mangas de camisa com um capote de lã xadrez sobre os ombros caixa de rapé e lenço encarnado na mão Em poucas palavras o velho expôslhe o caso e lhe pediu que fosse falar a elrei em favor de Leonardo A princípio opôs ele algumas dúvidas dizendo Homem pois eu hei de ir a palácio por causa de um meirinho El rei há de rirse do meu afilhado Afinal porém teve de ceder a instâncias da amizade e prometeu tudo O velho saiu satisfeito e foi levar a nova ao Leonardo que pulou de contente Poucos dias depois chegou a ordem de soltura e ele foi posto na rua Acreditara que tinha acabado de passar pelo pior dos suplícios porém insuportáveis torturas começaram para ele no dia em que saiu da cadeia a mofa o escárnio o riso dos companheiros seguiuo por muitos dias incessante e martirizador capítulo xi Progressos e atrasos66 Dadas as explicações do capítulo precedente voltemos ao nosso memorando de quem por um pouco nos esquecemos Apressemonos a dar ao leitor uma boa notícia o menino desempacara do f e já se acha no p onde por uma infelicidade empacou de novo O padrinho anda contentíssimo com este progresso e vê clarearse o horizonte de suas esperanças declara positivamente que nunca viu menino de melhor memória do que o afilhado e cada lição que este dá sabida de quatro em quatro dias pelo menos é para ele um triunfo Há porém uma coisa que o entristece no meio de tudo isto o menino tem para a reza e em geral para tudo o quanto diz respeito à religião uma aversão decidida não é capaz de fazer o pelosinal da esquerda para a direita fálo sempre da direita para a esquerda e não foi possível ao padrinho apesar de toda a paciência e boa vontade fazêlo repetir de cor sem errar ao menos a metade do padrenosso em vez de dizer venha a nós o vosso reino diz sempre venha a nós o pão nosso Ir à missa ou ao sermão é para ele o maior de todos os suplícios Isto faz o compadre67 às vezes desesperar e até chega a concordar com a comadre em que o menino não tem jeito para clérigo porém são nuvens passageiras sempre há isto ou aquilo que faz renascer todas as esperanças e o homem caminha animado na sua obra O que ele porém esperava não esperavam todos e ninguém via no menino senão um futuro peralta da primeira grandeza quem mais contava com isso era a vizinha do compadre aquela a quem chamava o agouro do pequeno e a quem atribuía o olhado que este sofrera e de que ficara livre graças à ciência e ao rosário da comadre68 Era a tal vizinha uma dessas mulheres que se chamam de faca e calhau valentona presunçosa e que se gabava de não ter papas na língua era viúva e importunava a todo o mundo com as virtudes do seu defunto Serrazina e amiga de contrariar não perdia ocasião de desmentir o compadre em suas esperanças a respeito do afilhado declarando que não lhe via jeito para coisa nenhuma que não queria para coisa que lhe pertencesse o fim que ele havia ter e que quando ele crescesse o melhor remédio era darlhe com os ossos a bordo de um navio ou pôrlhe o côvado e meio às costas O compadre desesperava com isso por muito tempo conseguiu conterse porém um dia não pôde mais e disparatou com a sujeita Chegando por acaso à porta da loja a vizinha que estava à janela disselhe em tom de zombaria Então vizinho como vai o seu reverendo Um velho que morava defronte e que também se achava à janela desatou a rir com a pergunta O compadre foi às nuvens avermelhouselhe a calva franziu a testa porém fez que não tinha ouvido A vizinha pôsse também a rir percebendo o cavaco do compadre e acrescentou Padre amigo do fado tem que ver quando vai ele outra vez ao campo dos Ciganos O velho defronte redobrou a risada A vizinha continuou Então ele já encarrilha o padrenosso O compadre exasperouse completamente e estudando uma injúria bem grande para responder disse afinal Já já senhora intrometida com a vida alheia já sabe o padre nosso e eu o faço rezar todas as noites um pelo seu defunto marido que está a esta hora dando coices no inferno Hein o que é que você diz senhor raspabarbas de uma figa69 você mete terceiros na conversa disse a vizinha encrespandose olhe que esse de quem você fala nunca foi sangrador como você nem viveu de aparas de cabelos Não se meta comigo que hei de lhe dizer das últimas e pôrlhe os podres na rua Coices no inferno ora dáse um santo homem Coices no inferno por que diga se é capaz Pois agora saiba porque eu cá não tenho papas na língua que o tal seu afilhado das dúzias é um pedaço de um malcriadão muito grande que há de desonrar as barbas de quem o criou E não tem que ver porque ele é de raça de ilhéu e esses é que dão coices depois de mortos70 E você respondeu o compadre enquanto a vizinha tomava fôlego por que se mete com o que não é da sua repartição Ela prosseguiu Hei de me meter não é da sua conta nem venha cá dar regras que eu não preciso de você Mas o que tem você que entender com uma criança inocente que nunca lhe fez mal Tenho muito porque não me deixa parar os telhados com pedras fazme caretas quando me vê na janela e tratame como se eu fosse alguma má raça ilhoa 71 ou mulher de barbeiro Digolhe e repitolhe aquilo tem maus bofes e não há de ter bom fim Está bom senhora respondeu o compadre que tinha bom gênio e que só fora levado àquele excesso pelo amor do afilhado basta de rezingas olhe a vizinhança Ora tomara a vizinhança verse livre do tal diabo O menino chegou nessa ocasião à porta e pondose na ponta dos pés esticando o pescoço e abanando como a vizinha e imitandolhe a voz repetiu Verse livre do tal diabo O compadre achou tanta graça que se deu por vingado e desatou a rir por seu turno Ah disse a vizinha agradece a boa vontade meu diabo em figura de menino tu não tens a culpa a culpa tem quem te dá ousadias A culpa tem quem te dá ousadias repetiu o menino arremedando a O compadre riase a perder A vizinha desesperada bateu com o postigo e recolheuse porém por muito tempo falou em voz alta de maneira que toda a vizinhança ouvia dizendo quanto impropério lhe veio à cabeça contra o compadre e o menino O pequeno encheume as medidas disse o compadre consigo vingoume desta agora faltame aquele velho de defronte que também a acompanhou na risota mas não faltará ocasião Esqueceunos dizer que o compadre apesar de ter sabido pouco se importara com a prisão do Leonardo e referindose à causa da infelicidade desta dissera apenas É bem feito para ele não se deixar arrastar para toda a parte agarrado em quanto rabo de saia lhe aparece Nem foi à cadeia visitálo nem levarlhe o filho para tomar a bênção o que a comadre muito reprovou quando soube O velho tenentecoronel depois de ter posto na rua o Leonardo informado miudamente como sabe o leitor pela comadre do destino da Maria e da existência do filho desta em casa do compadre 72 decidiu tomar o menino sob sua proteção e acreditou que se conseguisse felicitálo lavaria seu filho do pecado de ter desonrado a Maria Por intermédio da comadre mandou oferecer ao compadre seu préstimo em favor do pequeno mandoulhe propor até que o deixasse ir para a sua companhia O compadre porém não esteve por isso de modo nenhum e até se prometeu aceitar para qualquer outra coisa a proteção do tenentecoronel foi a instâncias da comadre Não quero dizia ele que me roubem o gosto de têlo feito gente comecei a minha obra hei de acabála Homem retorquiralhe a comadre você faz mal olhe que o velho é homem de representação veja como ele com duas voltas e meia pôs o Leonardo na rua Nada não hei de dar o gostinho aqui a esta súcia da vizinhança hei de eu mesmo fazer a coisa por minhas mãos Lá se o tenentecoronel quiser fazer alguma coisa por ele aceito mas quanto a tirálo da minha companhia isso nunca Agora já é birra hei de levar a minha avante capítulo xii Entrada para a escola É mister agora passar em silêncio sobre alguns anos da vida do nosso memorando para não cansar o leitor repetindo a história de mil travessuras de menino no gênero das que já se conhecem de que elas constavam exclusivamente foram diabruras de todo o tamanho que exasperaram a vizinha desgostaram a comadre mas que não alteraram em coisa alguma a amizade do compadre pelo afilhado cada vez esta aumentava mais se era possível tornavase mais cega Com ele cresciam as esperanças do belo futuro com que o compadre sonhava para o pequeno e tanto mais que durante este tempo fizera ele alguns progressos lia soletrado sofrivelmente e por inaudito triunfo da paciência do compadre aprendeu a ajudar missa A primeira vez que ele conseguiu praticar com decência e exatidão semelhante ato o padrinho exultou foi um dia de orgulho e de prazer era o primeiro passo no caminho para que ele o destinava E dizem que não tem jeito para padre pensou consigo ora acertei o alvo deilhe com a balda Ele nasceu mesmo para aquilo há de ser um clérigo de truz Vou tratar de metêlo na escola e depois toca Com efeito foi cuidar nisso e falar ao mestre para receber o pequeno morava este em uma casa da rua da Vala pequena e escura Foi ele recebido na sala que era mobiliada por quatro ou cinco longos bancos de pinho sujos já pelo uso uma mesa pequena que pertencia ao mestre e outra maior onde escreviam os discípulos toda cheia de pequenos buracos para os tinteiros nas paredes e no teto haviam penduradas uma porção enorme de gaiolas de todos os tamanhos e feitios dentro das quais pulavam e cantavam passarinhos de diversas qualidades era a paixão predileta do pedagogo Era este um homem todo em proporções infinitesimais baixinho magrinho de carinha estreita e chupada excessivamente calvo usava de óculos tinha pretensões de alatinado73 e dava bolos nos discípulos por dá cá aquela palha por isso era um dos mais acreditados da cidade O compadre entrou acompanhado pelo afilhado que ficou um pouco escabriado à vista do aspecto da escola que ele nunca tinha imaginado Era em um sábado os bancos estavam cheios de meninos vestidos quase todos de jaqueta ou robissões de lila calças de brim escuro e uma enorme pasta de couro ou papelão pendurada por um cordel a tiracolo chegaram os dois exatamente na hora da tabuada cantada era uma espécie de ladainha de números que se usava então nos colégios cantada todos os sábados em uma espécie de cantochão monótono e insuportável mas de que os meninos gostavam muito As vozes dos meninos juntas ao canto dos passarinhos faziam uma algazarra de doer os ouvidos o mestre acostumado àquilo escutava impassível com uma enorme palmatória na mão e o menor erro que algum dos discípulos cometia não lhe escapava no meio de todo o barulho fazia parar o canto chamava o infeliz emendava cantando o erro cometido e cascavalhe pelo menos seis puxados bolos era o regente da orquestra ensinando a marcar o compasso O compadre expôs no meio do ruído o objeto de sua visita e apresentou o pequeno ao mestre Tem muito boa memória soletra já alguma coisa não lhe há de dar muito trabalho disse com orgulho E se mo quiser dar tenho aqui o remédio santa férula disse o mestre brandindo a palmatória O compadre sorriuse querendo dar a entender que tinha percebido o latim É verdade faz santas até às feras disse traduzindo O mestre sorriuse da tradução Mas espero que não há de ser necessária acrescentou o compadre O menino percebeu o que tudo isto queria dizer e mostrou não gostar Segundafeira cá vem e peçolhe que não o poupe disse por fim o compadre despedindose Procurou pelo menino e já o viu na porta da rua prestes a sair pois que ali não se julgava muito bem Então menino sai sem tomar a bênção ao mestre O menino voltou constrangido tomou de longe a bênção e saíram então Na segundafeira voltou o menino armado com a sua competente pasta a tiracolo a sua lousa de escrever e o seu tinteiro de chifre o padrinho o acompanhou até a porta Logo nesse dia portouse de tal maneira que o mestre não se pôde dispensar de lhe dar quatro bolos o que lhe fez perder toda a folia com que entrara declarou desde esse instante guerra viva à escola Ao meiodia veio o padrinho buscálo e a primeira notícia que ele lhe deu foi que não voltaria no dia seguinte nem mesmo aquela tarde Mas você não sabe que é preciso aprender Mas não é preciso apanhar Pois você já apanhou Não foi por nada não senhor foi porque entornei o tinteiro na calça de um menino que estava ao pé de mim o mestre ralhou comigo e eu comecei a rir muito Pois você vaise rir quando o mestre ralha Isto contrariou o mais que era possível o compadre que diabo não diria a maldita vizinha quando soubesse que o menino tinha apanhado logo no primeiro dia de escola Mas não haviam reclamações o que o mestre fazia era bemfeito Custoulhe bem a reduzir o menino a voltar nessa tarde à escola o que só conseguiu com a promessa de que falaria ao mestre para que ele lhe não desse mais Isto porém não era coisa que se fizesse e não foi senão um engodo para arrastar o menino Entrou este desesperado para a escola e por princípio74 queria estar quieto e calado no seu banco o mestre chamouo e pôlo de joelhos a poucos passos de si passado pouco tempo voltouse distraidamente e surpreendeo no momento em que ele erguia a mão para atirarlhe uma bola de papel Chamouo de novo e deu lhe uma dúzia de bolos Já no primeiro dia disse você promete muito O menino resmungando dirigiulhe quanta injúria sabia de cor Quando o padrinho voltou de novo a buscálo achouo de tenção firme e decidida de não se deixar engodar por outra vez e de nunca mais voltar ainda que o rachassem O pobre homem azuou com o caso Ora logo no primeiro dia disse consigo isto é praga daquela maldita mulher mas hei de teimar e vamos ver quem vence capítulo xiii Mudança de vida À custa de muitos trabalhos de muitas fadigas e sobretudo de muita paciência conseguiu o compadre que o menino freqüentasse a escola durante 2 anos e que aprendesse a ler muito mal e escrever ainda pior Em todo este tempo não se passou um só dia em que ele não levasse uma remessa maior ou menor de bolos e apesar da fama de que gozava o seu pedagogo de muito cruel e injusto é preciso confessar que poucas vezes o fora para com ele o menino tinha a bossa da desenvoltura e isto junto com as vontades que lhe fazia o padrinho dava em resultado a mais refinada má criação que se pode imaginar achava ele um prazer suavíssimo em desobedecer a tudo quanto se lhe ordenava se se queria que estivesse sério desatava a rir como um perdido com o maior gosto do mundo se se queria que estivesse quieto parece que uma mola oculta o impelia e fazia com que desse uma idéia pouco mais ou menos aproximada do motocontínuo Nunca uma pasta um tinteiro uma lousa lhe durou mais de 15 dias era tido na escola pelo mais refinado velhaco vendia aos colegas tudo que podia ter algum valor fosse seu ou alheio contanto que lhe caísse nas mãos um lápis uma pena um registo etc tudo lhe fazia conta e o dinheiro que apurava empregava sempre do pior modo que podia Logo no fim dos primeiros cinco dias de escola declarou ao padrinho que já sabia as ruas e não precisava mais de que ele o acompanhasse no primeiro dia em que o padrinho anuiu a que ele fosse sozinho fez logo uma tremenda gazeta tomou depois gosto a esse hábito e em pouco tempo adquiriu entre os companheiros o apelido de gazetamor da escola o que também queria dizer apanhadormor de bolos75 Um dos principais pontos em que ele passava alegremente as manhãs e tardes em que fugia à escola era na igreja da Sé o leitor compreende bem que isto não era de modo algum inclinação religiosa na Sé à missa e mesmo fora disso reuniase gente sobretudo mulheres de mantilha de quem tomara particular zanguinha por causa da semelhança com a madrinha e é isso o que ele queria porque internandose na multidão dos que entravam e saíam passava desapercebido e tinha segurança de que o não achariam com facilidade se o procurassem Pelo hábito de freqüentar a igreja tomara conhecimento e travara estreita amizade com um pequeno sacristão que digamos de passagem era tão boa peça como ele apenas se encontravam limitavamse a trocar olhares significativos enquanto o amigo andava ocupado no serviço da igreja assim porém que se acabavam as missas e que saíam as derradeiras beatas reuniamse os dois e começavam a contar todas as diabruras mais recentes travando o plano de mil outras novas Por complacência ou antes por prova de decidida amizade o companheiro confiava ao nosso gazeador um caniço e faziam juntos o serviço e as maroteiras a mais pequena que faziam era irem de altar em altar escorropichando todas as galhetas o que lhes incendia mais o desejo de traquinar Esta vida durou por muito tempo porém afinal já eram as gazetas tão repetidas que o padrinho se viu forçado a acompanhálo outra vez todos os dias para a escola o que desfez todos os planos que os dois tinham concertado O nosso futuro clérigo tinha muitas vezes pensado em como não lhe seria agradável verse revestido como o seu companheiro de uma batina e uma sobrepeliz e feito também sacristão ter a toda hora à sua disposição quantos caniços quisesse ter por sua e de seu amigo toda a igreja poder nos dias de festa tomando o turíbulo afogar em ondas de fumaça a cara da velha que mais perto lhe ficasse na ocasião da missa Oh isto para ele era um sonho de venturas Vendose privado depois que o padrinho o acompanhava de gozar parte destes prazeres como fazia nos dias de fugida atearamselhe os desejos e começou a confessá los ao padrinho dando a entender que nada havia de que ele agora gostasse tanto como fosse a igreja que ele tinha nascido mesmo para aquilo Isto foi para o padrinho um alegrão porque neste gosto recente do pequeno via ele furo aos seus projetos Eu bem dizia pensava ele consigo não tem dúvida vou adiante o rapaz estáme enchendo as medidas Afinal o menino tomou um dia uma resolução última e propôs ao padrinho que o fizesse sacristão Isso seria muito bom disse ele a fim de acostumarme para quando for padre A princípio a idéia deslumbrou ao padrinho porém mais tarde acudiu lhe a reflexão e assentou que isso seria rebaixar o menino e comprometer a sua dignidade futura Afinal porém tantas foram as rogativas e argumentos do pequeno que se viu obrigado a ceder O menino tinha nisso duas enormes vantagens satisfazia seus desejos e saía da escola poupando assim as remessas diárias de bolos Está bem dissera consigo o padrinho ele já sabe ler alguma coisa e escrever deixoo para fazerlhe a vontade algum tempo na Sé para que também tome mais amor àquela vida e depois apenas o vir com o juízo mais assente hei de ir adiante com a coisa Foi em conseqüência procurar aquele sacristão da Sé que dançara o ril76 na festa do batizado que era nada menos do que o pai do sacristãozinho com que o nosso pequeno travara amizade para arranjar o afilhado que não queria outra igreja que não fosse a Sé Felizmente pôde ele ser admitido com a prática que tivera dos dias de gazeta aprendera pouco mais ou menos todo o cerimonial que é mister a um sacristão acompanhar missa já ele sabia às outras coisas aperfeiçoouse em pouco tempo Em poucos dias aprontouse e em uma bela manhã saiu de casa vestido com a competente batina e sobrepeliz e foi tomar posse do emprego Ao vêlo passar a vizinha dos maus agouros soltou uma exclamação de surpresa a princípio supondo alguma asneira do compadre porém reparando compreendeu o que era e desatou uma gargalhada E que tal Deus vos guarde Sr cura disse fazendo um cumprimento O menino lançoulhe um olhar de revés e respondeu entre dentes Eu sou cura e hei de te curar Era aquilo uma promessa de vingança Ora dáse continuou a vizinha consigo mesma aquilo na igreja é um pecado Chegou o menino à Sé impando de contente parecialhe que aquela batina era um manto real Por fortuna houve logo nesse dia dois batizados e um casamento e ele teve assim ocasião de entrar no pleno exercício de suas funções em que começou revestindose da maior gravidade deste mundo No outro dia porém o negócio começou a mudar de figura e as brejeiradas começaram A primeira foi em uma missa cantada que houve Coube ao pequeno o ficar com uma tocha e ao companheiro o turíbulo ao pé do altar Por infelicidade a vizinha do compadre a quem o menino prometera curar sem pensar no que fazia colocouse perto do altar junto dos dois Assim que a avistou o novo sacristão disse algumas palavras a seu companheiro dandolhe de olho para a mulher Daí a pouco colocaramse os dois disfarçadamente em distância conveniente e de maneira tal que ela ficasse pouco mais ou menos com um deles atrás e outro adiante Começaram então os dois uma obra meritória enquanto um tendo enchido o turíbulo de incenso e balançandoo convenientemente fazia com que os rolos de fumaça que se desprendiam fossem bater de cheio na cara da pobre mulher o outro com a tocha despejavalhe sobre as costas da mantilha a cada passo plastradas de cera derretida olhando disfarçado para o altar A pobre mulher exasperouse e disselhes não sabemos o quê Estamos te curando respondeu o menino tranqüilamente Ele vendo que não tirava partido quis a devota mudar de lugar e sair porém o aperto era tão grande que o não pôde fazer e teve de aturar o suplício até o fim Acabada a festa dirigiuse ela ao mestre de cerimônias e fez uma enorme queixa que custou aos dois uma tremenda sarabanda Pouco porém se importaram eles com isso uma vez que tinham realizado o seu plano capítulo xiv Nova vingança e seu resultado A sarabanda que o mestre de cerimônias passara aos dois pequenos em razão do que haviam feito à pobre mulher não produziu como dissemos nenhum efeito sobre eles no sentido de os fazer emendar não perdoaram porém a humilhação que sofreram diante da sua vítima e a vingança de que ela tinha gozado na primeira ocasião que tiveram tiraram desforra pregando também uma peça ao mestre de cerimônias Foi o caso assim O mestre de cerimônias era um padre de meiaidade de figura menos má filho da Ilha Terceira porém que se dava por puro Alfacinha tinhase formado em Coimbra por fora era um completo São Francisco de austeridade católica por dentro refinado Sardanapalo que podia por si só fornecer a Bocage assunto para um poema inteiro era pregador que buscava sempre por assunto a honestidade e a pureza corporal em todo o sentido porém interiormente era sensual como um Oriental77 O público ignorava talvez semelhante coisa porém outro tanto não acontecia aos dois meninos que andavam ao fato de tudo o mestre de cerimônias fiado em que pela sua pouca idade dariam eles pouca atenção a certas coisas tinhaos algumas vezes empregado no seu serviço mandando recados a uma certa pessoa que saiba o leitor em segredo era nada menos do que a cigana objeto dos últimos cuidados do Leonardo com quem S Revma vivia a78 certo tempo em estreitas relações salvando é verdade todas as aparências da decência Chegou o dia de uma das primeiras festas da igreja a que elrei tinha por costume assistir79 em que o mestre de cerimônias era sempre o pregador era no sermão desse dia que o homem se empregava muito tempo antes pondo abaixo toda a livraria e fazendo um enorme esforço de inteligência que não era nele coisa muito vigorosa Já se vê pois que ele devia amar o seu sermão e quase rebentou de raiva em um ano em que por doente o não pôde pregar Entendia que elrei e toda a corte80 o ouviam com sumo prazer que o povo se abalava à sua voz enfim aquele sermão anual era o meio por que ele esperava chegar a todos os fins a que contava dever toda a sua elevação futura era o seu talismã Digamos entretanto que era bem mau caminho o tal sermão porque se podia ele demonstrar alguma coisa era a insuficiência do padre para qualquer coisa desta vida exceto para mestre de cerimônias em que ninguém o desbancava Pois foi nesse ponto delicado que os dois meninos buscaram ferilo e o acaso os favoreceu excedendo de muito os seus desejos e esperanças e fazendo a sua vingança completíssima Chegou como dissemos o dia da festa havia três ou quatro dias antes que o mestre de cerimônias não saía de casa empregado em decorar a importante peça Foi o nosso sacristão calouro encarregado de lhe ir avisar da hora em que elrei devia chegar para que ele calculasse a que horas lhe bastava estar na igreja para o sermão81 Chegou à casa da cigana onde o padre costumava estar bateu e apesar de todas as recomendações que costumava ter disse em voz alta O Rev Mestre de cerimônias está aí Fale baixo menino disse a cigana de dentro da rótula O que quer você com o Sr padre Precisava muito falar com ele por causa do sermão de amanhã Entra entra disse o padre que o ouvira Venho dizer a V Revma disse o menino entrando que o rei mandou avisar que82 amanhã às dez horas há de estar na igreja Às dez Uma hora mais tarde do que de costume Melhor tenho mais tempo de estudar está bom gasta que eu esteja lá às onze Justo respondeu o menino sorrindose internamente de alegria e saiu Foi logo dali dar parte ao companheiro de que o seu plano tinha saído completamente aos seus desejos pois o que ele queria era que o padre faltasse ao sermão e por isso encarregado de lhe indicar a hora a trocara e em vez de nove dissera dez Dispuseramse as coisas postouse a música de barbeiros na porta da igreja andou tudo em rebuliço chegou elrei83 às nove horas e começou a festa As festas daquele tempo eram feitas com tanta riqueza e com muito mais propriedade a certos respeitos do que as de hoje tinham entretanto alguns lados cômicos um deles era a música de barbeiros à porta Não havia festa em que se passasse sem isso era coisa reputada quase tão essencial como o sermão o que valia porém é que nada havia mais fácil de arranjarse meia dúzia de aprendizes ou oficiais de barbeiro ordinariamente negros armados este com um pistão desafinado aquele com uma trompa diabolicamente rouca etc formavam uma orquestra desconcertada porém estrondosa que se postava como dissemos à porta das igrejas fazendo as delícias dos que não cabiam ou não queriam estar dentro da igreja A festa seguiu os seus trâmites regulares porém apenas se foi aproximando a hora começou a dar cuidados a tardança do pregador Fez se mais esta cerimônia mais aquela e nada de aparecer o homem esperou se um pouco porém oh elrei não devia esperar84 Despachouse a toda pressa um dos meninos que não entrara na festa para ir procurar o padre ele deu duas voltas pela vizinhança e veio dizendo que o não tinha encontrado Subiram os apuros elrei começava já a franzir o sobrolho85 não havia remédio era preciso um sermão fosse como fosse Estava assistindo à festa um capuchinho italiano que por bondade vendo o aperto geral ofereceuse para improvisar o sermão Mas V Revma não fala a língua de gente objetaramlhe Capisco respondeu este ed la necessitá Depois de alguma perplexidade e muitas desculpas a elrei86 aceitaramse finalmente os bons ofícios do capuchinho e foi ele levado ao púlpito Os meninos triunfantes sorriramse um para o outro Apenas apareceu o pregador ao povo houve um murmúrio geral os gaiatos sorriramse contando já com o partido que dali tirariam para um bom par de risadas algumas velhas prepararamse para uma grande compunção ao aspecto das imensas barbas do pregador outras menos crentes vendo que não era o orador costumado exclamaram despeitadas Arrenego Deus me perdoe Pois aquilo é que prega hoje Apesar porém de tudo isto a atenção foi profunda e geral animando a todos uma grande curiosidade O orador começou falava já a um quarto de hora sem que ninguém ainda tivesse entendido pitada87 e começavam já algumas velhas a protestar que o sermão todo em latim não tinha graça quando de repente viuse abrir a porta do púlpito e aparecer a figura do mestre de cerimônias lavado em suor e vermelho de cólera foi um sussurro geral Ele adiantouse afastou com a mão o pregador italiano que surpreendido parou um instante e entoou com voz rouca e estrondosa o seu per signum crucis Àquela voz conhecida o povo despertou do aborrecimento benzeuse e se dispôs a escutála Nem todos porém foram desta opinião e entenderam que se devia deixar acabar o capuchinho e começaram a murmurar O capuchinho não quis ceder de seu direito e prosseguiu na sua arenga Foi uma verdadeira cena de comédia de que a maioria dos circunstantes riase a não poder mais os dois meninos autores principais da obra nadavam em um mar de rosas Ó mei chari fratelli exclamava por um lado o capuchinho com voz aflautada e meiga la voce del la Providenza Semelhante às trombetas de Jericó rouquejava por outro lado o mestre de cerimônias Piage al cor acrescentava o capuchinho Anunciando o triunfo88 de Satanás prosseguia o mestre de cerimônias E assim levaram por algum tempo os dois acompanhados por um coro de risadas e confusão até que o capuchinho se resolveu a abandonar o posto murmurando despeitado Che bestia per Dio Acabado o sermão desceu do púlpito o mestre de cerimônias já um pouco aplacado por ter conseguido fazerse ouvir porém ainda bastante furioso para vir protestando arrancar uma por uma as quatro orelhas dos dois pequenos de quem desconfiava que partira o que acabava de sofrer Chegou à sacristia que estava cheia de gente e vendo os dois meninos investiu para eles e prendendo a cada um com uma mão pela gola da sobrepeliz Então então dizia com os dentes cerrados a que horas chega el rei89 Eu disse às nove sim senhor pode perguntar à moça que ela bem ouviu Que moça menino que moça disse o padre exasperado por estar tanta gente e ouvir aquilo Aquela moça cigana lá onde V Revma estava ela ouviu eu disse às nove Oh disseram os circunstantes É falso respondeu com força o mestre de cerimônias largando os meninos para evitar novas explicações e dando satisfação aos circunstantes com protestos de ser falso o que os meninos acabavam de dizer Entretanto serenou o alvoroço acabouse a festa e o povo e elrei90 retiraramse O mestre de cerimônias sentado a um canto pensava consigo E que tal não ia perdendo o meu sermão deste ano por causa daquele endiabrado Depois que o maldito menino entrou para esta igreja anda tudo aqui em uma poeira Ainda em cima dizer à vista de tanta gente e até de criados de elrei91 que eu estava em casa da cigana Nada vou dar com ele daqui para fora E com efeito tratou de fazer com que os dois meninos ou pelo menos o mais novo fosse despedido Sem muito custo o conseguiu porque por certo não gozava ele de grandes simpatias Foi esta a pior peça que se lhe podia pregar ele estava como em um paraíso e expeliamno dele e depois a maldita vizinha como não havia ficar satisfeita vendoo despedido e a madrinha que se opusera formalmente à sua entrada para a Sé tudo isto faziao desesperar Não se tinha ele enganado em suas previsões apenas chegou em casa e que se soube pela vizinhança do que se tinha passado a vizinha logo que pilhou de jeito o compadre Então disselhe eu não lhe tenho dito que aquilo tem maus bofes Senhora pelo amor de Deus metase com a sua vida Estou vingada pensava que a minha mantilha nova havia de ficar assim O compadre retirouse para evitar nova desordem A comadre apenas soube também do sucesso veio ter com o compadre para dizerlhe Eu bem lhe digo ele não serve para aquilo é melhor pôlo no trem lá há mais sujeição olhe eu podia arranjar isso com o tenentecoronel O compadre porém não pareceu resolvido a aceitar o conselho capítulo xv Estralada Apesar de tudo quanto havia já sofrido por amores o Leonardo de modo algum queria emendarse enquanto se lembrou da cadeia dos granadeiros e do Vidigal esqueceuse da cigana ou antes só pensava nela para jurar esquecêla quando porém as caçoadas dos companheiros foram cessando começou a renovarse a paixão e teve lugar uma grande luta entre a sua ternura e a sua dignidade em que esta última quase triunfava quando uma descoberta maldita veio transtornar tudo Não sabemos por que meio o Leonardo descobriu um dia que o rival feliz que o pusera fora de combate era o reverendo mestre de cerimônias da Sé Subiulhe com isto o sangue à cabeça Pois um padre dizia ele é preciso que eu salve aquela criatura do inferno onde ela se está metendo já em vida E começou de novo em tentativas em promessas em partidos para com a cigana que a coisa alguma queria dobrarse Um dia que a pilhou de jeito à janela abordoua e começou exabrupto a falarlhe deste modo Você está já em vida no inferno pois logo um padre A cigana interrompeuo Havia muitos meirinhos para escolher mas nenhum me agradou Mas você está cometendo um pecado mortal está deitando sua alma a perder Homem sabe que mais você para pregador não serve não tem jeito eu como estou estou muito bem não me dei bem com os meirinhos eu nasci para coisa melhor Pois então tem alguma coisa que dizer de mim Hei de me ver vingado e bem vingado Ora respondeu a cigana rindose e começou a cantarolar o estribilho de uma modinha O Leonardo compreendeu que falandolhe no inferno e em castigos da outra vida nada arranjava e decidiu darlhe o castigo mesmo nesta vida Retirouse murmurando Faço uma estralada dê no que der Poucos dias depois aconteceu que a cigana fazia anos segundo o costume apenas apareceu este pretexto armouse logo uma função não nos daremos ao trabalho de descrevêla em um dos capítulos antecedentes já viu o leitor o que isso era viola modinhas fado algazarra e estava a festa completa O Leonardo soube logo do que havia e jurou que esse seria o dia da vingança Ser valentão foi em algum tempo ofício no Rio de Janeiro havia homens que viviam disso davam pancada por dinheiro e iam a qualquer parte armar de propósito uma desordem contanto que se lhes pagasse fosse qual fosse o resultado Entre os honestos cidadãos que nisto se ocupavam havia na época desta história um certo ChicoJuca afamadíssimo e temível Seu verdadeiro nome era Francisco e por isso chamaramno a princípio Chico porém tendo acontecido que conseguisse ele pelo seu braço lançar por terra do trono da valentia a um companheiro que era no seu gênero a maior reputação do tempo e a quem chamavam Juca juntaram este apelido ao seu como honra pela vitória e chamaramno daí em diante ChicoJuca Este homem era o desespero do Vidigal tinhalhe já pregado umas poucas porém ainda não tinha sido possível agarrálo os granadeiros conheciamno às léguas porém nunca conseguiram pôrlhe as mãos Tendo levado todo o dia à espreita o Leonardo viu entrar sorrateiramente o mestre de cerimônias pela volta de AveMaria quando ainda não tinha começado a função Ah nem esta noite quer perder Pois há de sairlhe cara a funçanata Saiu dali e foi direito procurar o ChicoJuca que era seu antigo conhecido achouo em uma taverna defronte do Bom Jesus onde ele sempre costumava estar O ChicoJuca era um pardo alto corpulento de olhos avermelhados longa barba cabelo cortado rente trajava sempre jaqueta branca calça muito larga embaixo chinelas pretas e um chapelinho branco muito à banda ordinariamente era afável gracejador cheio de ditérios e chalaças porém nas ocasiões de sarilho como ele chamava era quase feroz Como outros têm o vício da embriaguez outros o do jogo outros o do deboche ele tinha o vício da valentia mesmo quando ninguém lhe pagava bastava que lhe desse na veneta92 armava brigas e só depois que dava pancadas a fartar é que ficava satisfeito com isso muito lucrava não havia taverneiro que lhe não fiasse e não o tratasse muito bem Estava na porta da taverna sentado sobre um saco quando apareceu lhe o Leonardo Olá mestre pataca disse ele apenas o viu pensei que ainda estavas de xilindró tomando fortuna por causa da cigana É mesmo por causa desse diabo que te venho procurar Homem cabeçada e murro velho sei eu dar porém fortuna nunca tive tal habilidade Não se trata de fortuna disselhe o Leonardo baixinho tratase de pancada velha Ui temos dança vaite embora se tu não és capaz de armar um sarilho sempre foste um podre Bem sei eu não sou capaz mas tu tu que és mestre disto Eu então por que diabo e onde queres tu que eu arme esse sarilho Não te hás de arrepender disse o Leonardo batendo significativamente com os dedos no bolso do colete O ChicoJuca entendeu o verso carregou o chapéu um pouco mais para o lado e pôsse a escutálo com curiosidade O Leonardo disse então o que queria tratavase nada menos do que de ir o ChicoJuca nessa mesma noite fosse como fosse à função da cigana e de armar por alta noite uma grande desordem ali preveniuo logo que o Vidigal havia de estar por perto e assim apenas estivesse armada a história era pôrse ao fresco A causa de tudo isto o Leonardo não lhe quis explicar e também ele não teve grande curiosidade de saber tratavase de uma desordem fosse qual fosse o motivo estava sempre pronto Assim depois de se regatear um pouco o preço chegaram os dois a um acordo e ficou tudo tratado Deixando o ChicoJuca o Leonardo foi procurar o Vidigal e deulhe parte do que naquela noite havia em casa da cigana e afiançoulhe que a coisa acabava por força em desordem Portanto cumpria que o Sr major por lá aparecesse para o que desse e viesse Está bem disselhe o Vidigal você quer tirar sua desforra é justo Lá hei de ir e não precisava a sua advertência pois já sabia que havia hoje por lá anos e tinha tenção de aparecer O Leonardo retirouse contente vendo que seu plano saía às mil maravilhas e dispôsse a gozar do resultado pondose à espreita de lugar conveniente Começou a brincadeira Já se tinha cantado meia dúzia de modinhas e dançado por algum tempo a tirana quando o ChicoJuca apareceu e por intermédio de um conhecido ele os tinha em toda a parte foi introduzido na sala e começou a observar o que se passava Havia na sala um quarto cuja porta estava fechada de vez em quando a cigana lá entrava demoravase um pouco e saía daí a pouco tornava a entrar levando consigo alguma das camaradas mais do peito tornava a sair passado pouco tempo entrava ainda levando outra amiga Alguns faziam reparo nisso outros porém não tinham desconfiança alguma Ia a festa continuando e lá pela meianoite quando começava a aferventar foi de repente interrompida Viuse um dos rapazes que tocavam viola parar subitamente e interrompendo o estribilho da modinha que cantava gritar enfurecido Isto passa de mais varro menos essa Sr ChicoJuca nada de graças pesadas com essa moça que é cá coisa minha O ChicoJuca estava com efeito há mais de meia hora a dirigir graçolas das suas a uma moça que ele bem sabia que era lá coisa do rapaz que estava tocando tanto fez que este tendo percebido disse aquelas palavras que acabamos de ouvir Você respinga respondeulhe o ChicoJuca dirigindose para ele O rapaz que não era peco pôsse em pé e replicou Tenho dito nada de graças com ela Mal tinha pronunciado estas palavras quando o ChicoJuca arrancandolhe a viola da mão bateulhe com ela em cheio sobre a cabeça O rapaz reagiu e começou a confusão O ChicoJuca foi acometido por um pouco porém ligeiro e destemido distribuía a cada qual o seu quinhão de cabeçadas e pontapés algumas mulheres meteramse na briga e davam e levavam como qualquer outras porém desfaziamse em algazarra De repente o ChicoJuca embarafustou pela porta fora e desapareceu Era tempo porque não se tinham passado dois minutos e assomou na porta que ele deixara aberta a figura tranqüila do Vidigal rodeada por uma porção de granadeiros O ChicoJuca tinhalhes escapado apesar de o terem visto quando saía porque o major sendo nessa ocasião poucos os soldados não quis mandar seguilo com medo que lhe faltasse gente pois via que dentro da casa o negócio estava feio Entrou pois deixandoo passar Apenas o viram pararam todos aterrados Então que briga é esta disse ele descansadamente Começaram todos a desculparse como podiam e segundo o crédito que mereciam pela sua reputação eralhes distribuída a justiça se era sujeito já conhecido e que não era aquela a primeira em que entrava era posto de lado e um granadeiro tomava conta dele os outros eram mandados embora Neste ínterim a cigana muito perturbada olhava repetidas vezes para a porta do quarto dando sinais da mais viva inquietação Não escapou isto ao Vidigal que no fim de tudo disse a um granadeiro Revista aquele quarto A cigana deu um grito o granadeiro obedeceu e entrou no quarto ouviuse então um pequeno rumor e o Vidigal disse logo cá de fora Traz para cá quem estiver lá dentro No mesmo instante viu aparecer o granadeiro trazendo pelo braço o Rev mestre de cerimônias em ceroulas de meias pretas sapatos de fivela e solidéu à cabeça Apesar dos apuros em que se achavam todos desataram a rir só ele e a cigana choravam de envergonhados Esta última pôsse aos pés do Vidigal mas ele foi inflexível e o Rev foi conduzido com os outros para a casa da guarda na Sé sendolhe apenas permitido pôrse em hábitos mais decentes capítulo xvi Sucesso do plano Para sossegarmos os leitores que estarão sem dúvida com cuidado no mestre de cerimônias apressemonos a dizer que não chegou ele a ir à cadeia o Vidigal quis darlhe apenas uma amostra do pano e depois de o ter exposto na casa da guarda por algumas horas como já acontecera ao Leonardo à vestoria pública o deixou ir embora envergonhado abatido maldizendo a idéia que tivera de ir assistir de dentro do quarto à festa dos anos da sua amásia Quanto ao Leonardo não cabia em si de contente por pouco que a sua vingança não tinha sido completa vira o seu rival como já a ele próprio sucedera preso pelos granadeiros levado à casa da guarda sofrendo aí a vestoria dos curiosos faltara é verdade a sova de camarão e os dias de cadeia porém também ele era simples meirinho e o mestre de cerimônias um sacerdote respeitado e por isso qualquer coisa bastava para ferilo gravemente Além disto o mestre de cerimônias depois de graves meditações sabendo que ficara malvisto de seus companheiros pelo escândalo que dera se bem que fosse certo não estar nenhum deles a tal respeito em circunstâncias de lhe atirar a primeira pedra ouvindo um murmúrio surdo que se levantava contra ele ameaçandoo com a perda do lugar que exercia na Sé decidiuse a abandonar a cigana e assim o fez O Leonardo com isto deuse de todo por satisfeito e renasceramlhe as esperanças de conquistar o antigo posto uma vez que o principal defensor o tinha abandonado A cigana desprezada não quereria sem dúvida ficar por muito tempo devoluta e como ele se achava com requerimento em caixa e contava serviços atrasados era provável que obtivesse favorável despacho porque também ela ainda nem sonhava que tudo o que tinha sucedido pudesse ter sido obra sua Começou pois o sentimental Leonardo a rondar a porta da sua antiga amante se a via na janela ora parava na esquina a dirigirlhe olhares suplicantes passando por junto dela deixava ora escapar um magoadíssimo suspiro ou uma queixa amargurada Todas estas cenas desempenhadas por aquela figura do Leonardo alto corpulento avermelhado vestido de casaca calção e chapéu armado eram tão cômicas que toda a vizinhança se divertiu com elas por alguns dias pois que escondidos e espiando por entre as rótulas das casas todos os moradores daquela altura viam a horas certas o que se passava Alguns imprudentes começaram conversando das janelas a atirar indiretas à cigana esta picouse com isso e foi essa a fortuna do Leonardo Um dia que ele passou deulhe ela de olho que entrasse O Leonardo teve uma sensação inexplicável seu rosto coloriuse em todos os tons desde o vermelho que era sua cor habitual até o roxo enegrecido depois baixou gradualmente até a palidez marmórea caminhando do lugar onde estava até à porta da cigana não sentiu o solo debaixo de seus pés quando deu acordo de si estava com os olhos rasos dágua nos braços da antiga amada que lhe pedia mil perdões que prometia ser dali em diante fiel até à morte se bem que se não esquecia de declarar no meio de tudo que se o recebia de novo em sua casa era porque queria quebrar a castanha na boca daquelas máslínguas da vizinhança que se estavam metendo com a sua vida O pobre homem não cabia em si parecia um viajante que volta aos velhos lares ou um cabodeguerra que acaba de livrar do poder do inimigo uma praça sitiada Enfim reataramse de todo os afrouxados laços entre os dois O Leonardo caiu em dar parte aos seus companheiros que tinha afinal vencido a intrincada demanda custoulhe isto uma tremenda caçoada de todos e sérias repreensões de alguns Mas com coisa alguma se importava naquela ocasião a felicidade o cegava a ponto de não ver aquilo que lhe estava entrando pelos olhos A comadre apenas soube do que havia sucedido foi procurar o Leonardo e começou em um longo sermão a querer persuadilo que tinha dado um passo errado Pois compadre disselhe ela você não se emendou ainda Qual história eu sou doido por estas coisas Mas homem você não se tem dado bem nem com as Ilhoas93 nem com as ciganas para que antes não procura uma filha cá da terra A comadre tinha uma sobrinha que vivia em sua companhia e que lhe pesava sofrivelmente sobre as costas desde há muito nutria por isso uma idéia de que o leitor mais tarde terá conhecimento quando ela se realizar ou antes disso se aperceber pelas palavras da comadre Nada não gosto dessa gente Não tem razão há por aí muita rapariga capaz é verdade que o que elas querem é o toma lá dá cá debaixo do arcocruzeiro É por isso mesmo que eu não gosto Depois de algumas outras tentativas a comadre retirouse um pouco contrariada mas não de todo desanimada ela contava com a cigana para ajudála a realizar o seu plano e o leitor verá para diante que tinha nisso razão Quanto agora ao nosso exsacristão continuava ainda a estar sem destino o que sobremaneira incomodava ao compadre mas que nem por isso o desanimava Coimbra era a sua idéia fixa e nada lha arrancava da cabeça Até o próprio velho tenentecoronel já lhe tinha ido pessoalmente falar por solicitações da comadre porém nada conseguira Exasperado com essa obstinação deixara o negócio de parte e não se importara mais com coisa alguma capítulo xvii D Maria Um dia de procissão foi sempre nesta cidade um dia de grande festa de lufalufa de movimento e de agitação e se ainda é hoje o que os nossos leitores bem sabem na época em que viveram as personagens desta história a coisa subia de ponto enchiamse as ruas de povo especialmente de mulheres de mantilha armavamse as portas das casas penduravamse às janelas magníficas colchas de seda de damasco de todas as cores e armavamse coretos em quase todos os cantos É quase tudo o que ainda hoje se pratica porém em muito maior escala e grandeza porque era feito por fé como dizem as velhas desse bom tempo porém nós diremos porque era feito por moda era tanto do tom enfeitar as janelas e portas em dias de procissão ou concorrer de qualquer outro modo para o brilhantismo das festividades religiosas como ter um vestido de mangas de presunto ou trazer à cabeça um formidável trepamoleque de dois palmos de altura Nesse tempo as procissões eram multiplicadas e cada qual buscava ser mais rica e ostentar maior luxo as da quaresma eram de uma pompa extraordinária especialmente quando elrei94 se dignava acompanhálas obrigando toda a corte a fazer outro tanto a que primava porém entre todas era a chamada procissão dos ourives Ninguém ficava em casa no dia em que ela saía ou na rua ou nas casas dos conhecidos e amigos que tinham a ventura de morar em lugar por onde ela passasse achavam todos meio de vêla Alguns haviam tão devotos que não se contentavam vendoa uma só vez andavam de casa deste para a casa daquele desta rua para aquela até conseguir vêla desfilar de princípio a fim duas quatro e seis vezes sem o que não se davam por satisfeitos A causa principal de tudo isto era supomos nós além talvez de outras o levar esta procissão uma coisa que não tinha nenhuma das outras o leitor há de achála sem dúvida extravagante e ridícula outro tanto nos acontece mas temos obrigação de referila Queremos falar de um grande rancho chamado das Baianas que caminhava adiante da procissão atraindo mais ou tanto como os santos os andores os emblemas sagrados os olhares dos devotos era formado esse rancho por um grande número de negras vestidas à moda da província da Bahia donde lhe vinha o nome e que dançavam nos intervalos dos Deo gratias uma dança lá a seu capricho Para falarmos a verdade a coisa era curiosa e se não a empregassem como primeira parte de uma procissão religiosa certamente seria mais desculpável Todos conhecem o modo por que se vestem as negras da Bahia é um dos modos de trajar mais bonito que temos visto não aconselhamos porém que ninguém o adote um país em que todas as mulheres usassem desse traje especialmente se fosse desses abençoados em que elas são alvas e formosas seria uma terra de perdição e de pecados Procuremos descrevêlo As chamadas Baianas não usavam de vestido traziam somente umas poucas de saias presas à cintura e que chegavam pouco abaixo do meio da perna todas elas ornadas de magníficas rendas da cintura para cima apenas traziam uma finíssima camisa cuja gola e mangas eram também ornadas de renda ao pescoço punham um cordão de ouro ou um colar de corais os mais pobres eram de miçangas ornavam a cabeça com uma espécie de turbante a que davam o nome de trunfas formado por um grande lenço branco muito teso e engomado calçavam umas chinelinhas de salto alto e tão pequenas que apenas continham os dedos dos pés ficando de fora todo o calcanhar e além de tudo isto envolviamse graciosamente em uma capa de pano preto deixando de fora os braços ornados de argolas de metal simulando pulseiras Poucos dias depois dos últimos acontecimentos narrados nos capítulos antecedentes chegou o dia da procissão dos ourives Os nossos costumes nesse tempo a respeito de franqueza e hospitalidade não eram lá muito louváveis nesse dia porém sofriam uma exceção e como dissemos as portas daqueles que moravam nas ruas por onde passava a procissão se abriam a todos os amigos e conhecidos Em virtude disso aconteceu que se achassem reunidos em casa de uma certa D Maria o compadre acompanhado do afilhado ricamente vestido nesse dia com o seu robissão de duraque preto e o seu boné de pêlo de lontra a comadre e a vizinha dos maus agouros D Maria era uma mulher velha muito gorda devia ter sido muito formosa no seu tempo porém dessa formosura só lhe restavam o rosado das faces e alvura dos dentes trajava nesse dia o seu vestido branco de cintura muito curta e mangas de presunto o seu lenço também branco e muito engomado ao pescoço estava penteada de bugres que eram dois grossos cachos caídos sobre as fontes o amarrado do cabelo era feito na coroa da cabeça de maneira que simulava um penacho D Maria tinha bom coração era benfazeja devota e amiga dos pobres porém em compensação destas virtudes tinha um dos piores vícios daquele tempo e daqueles costumes era a mania das demandas Como era rica D Maria alimentava este vício largamente as suas demandas eram o alimento da sua vida acordada pensava nelas dormindo sonhava com elas raras vezes conversava em outra coisa e apenas achava uma tangente caía logo no assunto predileto pelo longo hábito que tinha da matéria entendia do riscado a palmo e não havia procurador que a enganasse sabia todos aqueles termos jurídicos e toda a marcha do processo de modo tal que ninguém lhe levava nisso a palma Essa mania chegava nela à impertinência e aborrecia desesperadamente a quem a ouvia falando nos últimos provarás que lhe tinha feito o seu letrado nos autos da sua demanda de terras nas razões finais que se tinham apresentado na ação que intentava contra um dos testamenteiros de seu pai no depoimento das testemunhas no seu processo por causa da venda das suas casas na citação que mandara fazer a um seu inquilino que lhe havia passado um crédito de 20 doblas e que agora negava a dívida e em mil outras coisas deste gênero Apenas entrara o compadre de quem era antiga amiga e a quem não via a muito tempo começou logo D Maria por darlhe parte que aquela antiga demanda com o testamenteiro de seu pai ainda não estava acabada e por aí ia já prosseguindo conforme seu costume quando o compadre lhe apresentou o afilhado e começou também a contar a sua história Começou o compadre pela história da origem do pequeno remontou à pisadela e ao beliscão com que a Maria e o Leonardo tinham começado o seu namoro na viagem de Lisboa ao Rio de Janeiro o que fez dar a D Maria um bom par de risadas passou em seguida à festa do batizado que descreveu detalhadamente Até aqui era o drama risonho e feliz chegou depois a tragédia contou então todas aquelas histórias da perfídia da Maria os ciúmes do Leonardo a briga final pela qual veio ter o pequeno às suas mãos D Maria ouviu tudo com a maior atenção e só interrompia de vez em quando para lançar uma praga à Maria manifestar compaixão pelo Leonardo e dar alguma risada pelas travessuras do pequeno Quando a conversa estava nesta altura a vizinha dos maus agouros que também já se achava presente porém que até ali estivera distraída percebendo o objeto de que tratavam D Maria e o compadre chegouse também para meter a sua colherada95 já se sabe contra o pequeno Referiu então alguma das suas graçolas acrescentando sempre no fim dirigindose ao compadre O vizinho por mais bem que lhe queira não poderá negar isto O compadre que no meio de tudo tinha sempre pintado o quadro a história do menino com cores muito favoráveis a este não cessando de gabar a sua mansidão boa índole e dourando sempre as suas diabruras com o título de inocências ingenuidades ou coisas de criança começou a dar o cavaco com o desmentido que lhe dava a vizinha a qual não é necessário dizer que pintava tudo com cores negras A comadre interveio também nessa ocasião porém conservando uma posição duvidosa ora era da opinião do compadre ora da opinião da vizinha D Maria que morria por palestra por conversa e sobretudo por novidades tomava o maior interesse pela história e ninguém se lembrava de ter ela vez alguma esquecido por tanto tempo suas demandas O pequeno sentado em um canto ouvia tudo calado O compadre mal se podia conter em respeito a D Maria com as invectivas da vizinha esta julgandose segura na roda em que estava desabafava largamente contra o menino e finalmente terminou dirigindose a D Maria e dizendo na sua frase do costume Então senhora é o que eu digo ou não Tem maus bofes Maus bofes atalhou o compadre já com a calva muito vermelha maus bofes ora esta O pequeno lançou do seu lugar à vizinha um olhar fulminante e que queria pouco mais ou menos dizer Deixate estar que esta não fica sem troco D Maria vendo que o compadre começava a exasperarse foi medianeira e disse dirigindose à vizinha Você temlhe raiva demais realmente a função da cera na mantilha é para dar o cavaco porém bem diz aqui o padrinho qual é a criança que não faz travessuras issto tudo há de passar com a idade Dirigindose depois ao pequeno Venha cá Sr travesso disselhe com bondade venha defenderse do que aqui estão dizendo a seu respeito O menino chegouse com um ar entre vexado e de capadócio96 e colocouse em pé entre a madrinha e a vizinha D Maria fezlhe então algumas perguntas a que ele respondeu com prontidão porém com mau modo A vizinha não se julgou muito em segurança com tão bom vizinho a seu lado e foi querendo levantarse O menino percebendo isto não quis perder ocasião de fazer o quer que fosse de maligno contra ela estendeu a ponta do pé e pisoulhe com toda a força na barra da saia preta que ela conservava tendo tirado a mantilha A vizinha vendolhe o gesto sem entender bem o que era percebeu que ele preparava alguma e quis levantarse rapidamente lá se foram alguns quatro palmos da barra da saia Ah disse o menino fingindose espantado Valhate Deus menino disse a comadre A vizinha contemplava a sua saia rota dizendo para os circunstantes Então é o que eu digo ou não Tem maus bofes O compadre sorriase disfarçadamente por ver aquilo era vingança que o menino tomava do que a vizinha acabava de dizer Ora disse afinal D Maria com ar de quem não estava muito certa no que dizia ele estava descuidado não foi por querer O menino foi sentarse e a conversa prosseguiu Chegouse ao ponto do destino que havia de ter o menino e segundo era costume começou logo grande divergência entre o compadre e a comadre esta não falava senão no Trem97 e aquele não falava senão em Coimbra D Maria solicitada a dar a sua opinião disse Pois olhem se fosse comigo eu havia de pôlo em um cartório e havia de fazer dele um bom procurador de causas Oh não respondeu o compadre perdoeme Sra D Maria perdoe me se lhe ofendo com isso mas eu tenho uma birra dos diabos com as tais demandas Pois olhe não tem razão elas dãome que fazer mas eu já estou acostumada Por exemplo aquela demanda das terras isto tem sido um pratinho muito gostoso98 os herdeiros do meu compadre João Bernardo que ainda não estavam habilitados em juízo mandaramme aqui citar E por aí continuava sem que ninguém soubesse onde pararia quando felizmente teve de interromperse porque a procissão aproximavase e todos correram às janelas Isto deu fim ao negócio Começou a desfilar a procissão que realmente se excetuarmos algumas conseqüências fazia bonito efeito sobretudo vista da casa de D Maria que era e tínhamos esquecido esta circunstância na mesma rua dos Ourives as luzes das tochas refletidas nos galões das armações das portas e nas tabuletas cheias de ouro e prata em obra com que os ourives nesse dia costumavam ornar os intervalos de suas casas davam um aspecto de muita riqueza e luxo se bem que de mau gosto Sobre tudo que levava a procissão o que mais mereceu as honras do agrado dos circunstantes foi o rancho das Baianas que o leitor já conhece e o sacrifício de Abraão que ia representado ao vivo Caminhava adiante um menino com um feixe de lenha aos ombros o qual representava Isaac logo atrás dele um latagão vestido com um costume extravagante com uma enorme espada de pau suspensa sobre a cabeça do menino era Abraão e ainda mais atrás um anjo calcantibus99 suspendendo o furibundo gládio por uma fita de 3 ou 4 varas de comprimento Terminada a procissão retiraramse os convidados Ao sair o compadre com o pequeno D Maria chegouse a ele e disse lhe significativamente Apareça que temos que conversar a respeito do pequeno Já se vê que o menino não era dos mais infelizes pois que se tinha inimigos achava também protetores por toda a parte Para diante os leitores verão o papel que D Maria representará nesta história capítulo xviii Amores Os leitores devem já estar fatigados de ter histórias de travessuras de criança já conhecem suficientemente o que foi o nosso memorando em sua meninice as esperanças que deu e o futuro que prometeu Agora vamos saltar por cima de alguns anos vamos ver realizadas algumas dessas esperanças vamos enfim começar a levantar o véu desse futuro Agora começam histórias se não mais importantes pelo menos um pouco mais sisudas Passaramse portanto depois dos últimos acontecimentos que narramos uns poucos de anos cuja história se resume em muito pouco Eila100 Como sempre acontece a quem tem muito onde escolher ficarse com o pior o pequeno a quem o padrinho queria fazer clérigo mandandoo a Coimbra a quem a madrinha queria fazer artista metendoo no Trem a quem D Maria queria fazer rábula arranjandoo em algum cartório e a quem enfim cada conhecido ou amigo queria dar um destino que julgava o mais conveniente às inclinações que nele descobria o pequeno dizemos tendo tantas coisas boas que escolher escolheu a pior possível nem foi para Coimbra nem entrou para o Trem nem para cartório algum não fez nenhuma destas coisas nem também outra qualquer constituiuse um completo vadio vadiomestre vadiotipo O padrinho desesperava com isso vinte vezes em cada dia por ver frustrado o seu belo sonho de Coimbra porém não se animava mais a contrariar o afilhado e deixavao ir à sua vontade A comadre tinha conseguido o seu fim pelo que diz respeito à sobrinha tanto fizera que o Leonardo pilhando a cigana em nova infidelidade resolveuse não ao toma lá dá cá porém Disso também tirara este vantagem101 pois que começou dessa época a viver sossegado o vento da idade começava a apagarlhe as flamas de ternura D Maria envelhecera sofrivelmente porém não perdera de modo nenhum a sua mania favorita das demandas a última que tivera foi talvez a mais desculpável a mais razoável de todas Teve esta por causa a tutoria de uma sua sobrinha que ficara órfã por morte de um seu irmão Este irmão tinha um compadre que não gozava grande reputação de probidade ora tendo a órfã ficado senhora de alguns mil cruzados que deixara seu pai ainda que este não tivesse feito testamento porém por ser ela filha única e legítima o compadre apresentouse pretendendo ser seu tutor D Maria percebendo o caso apresentouse também e afinal venceu foi nomeada tutora e veiolhe a sobrinha para casa ela estimou isso tanto mais que a sua idade já a fazia precisar ainda não de um apoio porém de uma companhia As mais personagens continuaram no mesmo estado Eis aqui o que se passou Vamos continuar De agora em diante trataremos o nosso memorando pelo seu nome de batismo não nos ocorre se já dissemos que ele tinha o nome do pai mas se o não dissemos fique agora dito E para que se possa conhecer quando falamos do pai e quando do filho daremos a este o nome de Leonardo e acrescentaremos o apelido de pataca já muito vulgarizado nesse tempo quando quisermos tratar daquele Leonardo havia pois chegado à época em que os rapazes começam a notar que o seu coração palpita mais forte e mais apressado em certas ocasiões na presença lá de uma certa pessoa com quem uma vez se encontraram e com quem sem saber por que sonharam umas poucas de noites seguidas de quem começam desde então a lembrarse continuamente e cujo nome se o sabem lhes vem continuamente fazer cócegas nos lábios Já dissemos que D Maria tinha agora em casa sua sobrinha o compadre como a própria D Maria lhe pedira continuou a visitála e nessas visitas conversavam muito em particular sem dúvida sobre o objeto que muito os interessava Leonardo acompanhava sempre o seu padrinho nessas visitas e fazia diabruras pela casa enquanto estava em idade disso e depois que lhes perdeu o gosto sentavase em um canto e adormecia de aborrecimento Disso resultou que detestava ele profundamente as tais visitas e que só se sujeitava a elas obrigado pelo padrinho Em uma das últimas visitas que fizeram a D Maria assim que os viu entrar dirigiuse ao compadre e disselhe muito contente Ora afinal venci a minha campanha veio ontem para o meu poder a menina O tal velhaco do compadre de meu irmão não levou a sua avante Muitos parabéns muitos parabéns respondeu o compadre Leonardo deu pouca atenção a isso há muito tempo que ouvia falar da tal sobrinha sentouse a um canto e começou a bocejar de aborrecido Depois de mais algumas palavras trocadas entre os dois D Maria chamou por sua sobrinha e esta apareceu Leonardo lançoulhe os olhos e a custo conteve o riso Realmente a sobrinha de D Maria não tinha uma figura das mais agradáveis era uma menina já muito desenvolvida para 12 anos que já tinha102 porém tendo perdido as graças de menina ainda não tinha adquirido a beleza de moça era alta magra pálida andava com o queixo enterrado no peito trazia as pálpebras sempre baixas e olhava a furto tinha os braços finos e compridos o cabelo cortado davalhe apenas até o pescoço e como andava mal penteada e trazia a cabeça sempre baixa caía lhe uma grande porção sobre a testa e olhos como uma espécie de viseira Trajava nesse dia um vestido de chita roxa muito comprido sem roda quase nenhuma e de cintura muito curta e trazia ao pescoço um lenço desses chamados de tabaco103 Por mais que o compadre a questionasse apenas murmurou algumas frases ininteligíveis com voz rouca e sumida Mal a deixaram livre desapareceu sem olhar para ninguém Vendoa irse Leonardo tornou a rirse interiormente Quando se retiraram por todo o caminho continuou ele a rirse porém desta vez à sua vontade O padrinho indagou a causa da sua hilaridade e ele respondeu que não se podia lembrar da menina sem rirse Então lembraste dela muito a miúdo porque muito a miúdo te ris Leonardo viu que esta observação era verdadeira Em casa falou ele durante alguns dias umas poucas de vezes na sobrinha da D Maria e apenas o padrinho lhe anunciou que teriam de fazer a visita do costume sem saber por que pulou de contente e ao contrário dos outros dias foi o primeiro a vestirse e darse por pronto Saíram e encaminharamse para a casa de d Maria capítulo xix Domingo de Espírito Santo Era esse dia domingo de Espírito Santo Como todos sabem a festa do Espírito Santo é uma das festas prediletas do povo fluminense Hoje mesmo que se vão perdendo certos hábitos uns bons outros maus ainda essa festa é motivo de grande agitação longe porém está o que agora se passa daquilo que se passava nos tempos a que temos feito remontar os leitores A festa não começava no domingo marcado pela folhinha começava muito antes 9 dias cremos que era para que tivessem lugar as novenas também não tinha lugar em uma só igreja duas temos certeza até porque ainda hoje se passa o mesmo que dela se ocupavam eram a igreja de SantAna e a igreja da Lapa104 O primeiro anúncio da festa eram as folias Aquele que escreve estas memórias ainda em sua infância teve ocasião de ver as folias porém foi já no seu último grau de decadência e tanto que só as crianças como ele davam lhe atenção e achavamlhe prazer os mais se delas se ocupavam era unicamente para lamentar a diferença que faziam das primitivas Hoje se alguma coisa aparece com pretensões de folia é objeto de riso e realmente tudo que agora se vê a esse respeito é extravagantemente ridículo105 O que dantes se passava bemencarado nem por isso estava muito longe de merecer igual censura porém era costume e ninguém vá lá dizer a alguma velha desse tempo que aquilo devia ser por força muito feio que ela dá logo uma risada na cara de quem quer que seja que a tal se atreva e começa logo uma tremenda filípica contra as nossas festas de hoje querendo assim exaltar as de seu tempo Entretanto digamos sempre o que eram as folias desse tempo apesar de que os leitores o saberão pouco mais ou menos Durante os 9 dias que precediam ao Espírito Santo ou mesmo não sabemos se antes disso saíam pelas ruas da cidade um rancho de meninos todos de 9 a 11 anos caprichosamente vestidos à pastora sapatos de cor ordinariamente corde rosa meias brancas calção da cor dos sapatos faixas à cintura camisa branca de longos e caídos colarinhos chapéus de abas largas de palha ou forrados de seda tudo isto enfeitado com grinaldas de flores e com uma quantidade prodigiosa de laços de fita encarnada Cada um destes meninos levava um instrumento pastoril em que tocavam ordinariamente pandeiro e machete106 Caminhavam formando um quadrado no meio do qual ia o chamado imperador do Divino acompanhados por uma música de barbeiros e precedidos e cercados por uma chusma de irmãos de opa levantado107 bandeiras encarnadas isso ainda hoje se vê108 e outros emblemas e tirando esmolas enquanto eles cantavam e tocavam O imperador como dissemos ia no meio ordinariamente era um menino mais pequeno que os outros todos vestido de casaca de veludo verde calção do mesmo meias de seda sapatos afivelados chapéu de pasta e trazendo ao peito um enorme e rutilante emblema do Espírito Santo caminhava pausadamente e com ar grave Realmente confessem os leitores se não era coisa extremamente extravagante verse um imperador todo vestido de veludo e seda percorrendo as ruas cercado por um rancho de pastores tocando e cantando de pandeiro e machete Entretanto apenas se ouvia ao longe a fanhosa música dos barbeiros tudo corria à janela para ver passar a folia os irmãos aproveitavamse do ensejo e iam colhendo esmolas de porta em porta Enquanto caminhava o rancho tocava a música de barbeiros quando parava os pastores acompanhandose com seus instrumentos cantavam as cantigas eram todas pouco mais ou menos no gênero e estilo desta O Divino Espírito Santo É um grande folião Amigo de muita carne Muito vinho e muito pão Eis aqui o que era a folia eis aqui o que o compadre e o afilhado encontraram no caminho A este episódio da folia seguiamse outros de que vamos em breve dar conta aos leitores Por agora porém voltemos aos nossos visitantes Chegaram eles à casa de D Maria e acharam ainda todos à janela porque acabava há pouco de passar a folia D Maria recebeuos com a sua costumada amabilidade Leonardo ao entrar lançou logo os olhos para a sobrinha de D Maria porém sem saber por que não teve desta vez mais vontade de rirse entretanto a menina continuava a ser feia e esquisita nesse dia então estava ainda pior do que nos outros D Maria tinha tido pretensões de asseála vestiralhe um vestido branco muito curto pusera lhe um lenço de seda encarnado ao pescoço e penteoua de bugres Entretanto agora que tendo ela tirado a costumada viseira de cabelos lhe podemos ver o rosto digamos em abono da verdade que se estava nesse dia mais esquisita quanto ao todo podiaselhe notar que não era lá tão feia de cara como a princípio pareceu O caso foi que o Leonardo começou como já dissemos a olhar para ela sem mais vontade de rirse olhou uma duas três quatro muitas vezes enfim sem que nunca satisfizesse ao que ele interiormente chamava curiosidade de apreciar aquela figura A menina por sua parte continuava no seu inalterável silêncio e concentração de olhos baixos e queixo no peito Entretanto quem tivesse hábito de observar certas coisas poderia ter visto algum levantar de pálpebras rápido e algum olhar fugaz dirigido para o lado do Leonardo isso mesmo que não poderia ter visto nem três vezes durante uma hora que durou a visita D Maria e o compadre conversaram segundo o seu costume o Leonardo e a menina já se sabe o que fizeram109 Na ocasião da saída D Maria dirigindose ao compadre disselhe Olhe escute nós hoje vamos ao Campo ver o fogo bem podíamos ir todos juntos que diz Sim podíamos respondeu o compadre eu tinha de ir só com o meu rapaz mas uma vez que me oferece iremos todos juntos E leva a senhora a sua menina não é Oh levo coitada ela nunca viu o fogo no tempo do pai nunca saía Sem pensar o Leonardo estremeceu de contente pareceulhe que desse modo teria mais ocasião de satisfazer a sua convidada110 A menina nem se mexeu pareceulhe aquilo absolutamente indiferente Pois então estamos ajustados acrescentou o compadre e à noite cá as viremos buscar E saíram capítulo xx O fogo no campo À hora determinada vieram os dois padrinho e afilhado buscar D Maria e sua família como haviam tratado era pouco depois de AveMaria e já se encontrava pelas ruas grande multidão de famílias de ranchos de pessoas que se dirigiam uns para o Campo e outros para a Lapa onde como é sabido também se festejava o Divino Leonardo caminhava parecendo completamente alheio ao que se passava em roda dele tropeçava e abalroava nos que encontrava uma idéia única roíalhe o miolo mas se lhe perguntassem que idéia era essa talvez ele mesmo o não soubesse dizer Chegaram enfim mais depressa do que supusera o compadre porque o Leonardo parecia naquela noite ter asas nos pés tão rapidamente caminhara e obrigara o padrinho a caminhar com ele D Maria estava já pronta e os esperava com algumas outras pessoas com quem também tratara ir junta e em um momento puseramse a caminho Formavam todos um grande rancho acompanhado por não pequeno número de negras e negrinhas escravas e crias de D Maria carregando cestos com comida e esteiras D Maria dera o braço ao compadre e o mesmo fizeram as outras senhoras a outros cavalheiros Por gracejo D Maria fez com que o Leonardo acompanhasse a sua sobrinha ele aceitou a incumbência com gosto mas não sem ficar alguma coisa atrapalhado e deu na pobre menina alguns encontrões embaraçado por não saber se lhe daria a esquerda ou a direita finalmente acertou e deulhe a esquerda ficando ela do lado da parede Ofereceulhe o braço porém Luisinha tratemola desde já por seu nome pareceu não entender o oferecimento ou não dar fé dele Contentouse pois o Leonardo em caminhar ao lado dela Assim chegaram ao Campo que estava cheio de gente Nesse tempo ainda se não usavam as barracas de bonecos de sortes de raridades e de teatros como hoje usavamse apenas algumas que serviam de casas de pasto depois de passarem por diante delas D Maria e a sua gente se dirigiram para o império Luisinha estava atônita no meio de todo aquele movimento no meio daquele espetáculo que via pela primeira vez pois era verdade o que dissera D Maria no tempo de seu pai raras ou nenhumas vezes saíra de casa Assim sem o saber parava de vez em quando embasbacada a olhar para qualquer coisa e o Leonardo muitas vezes se vira forçado a puxarlhe pelo braço para obrigála a continuar o caminho Chegaram finalmente ao império que não era nesse tempo no mesmo lugar onde é hoje e sim quase defronte da igreja de SantAna no lugar que é hoje ocupado por uma das extremidades do quartel de fuzileiros Todos sabem o que é o império e por isso o não descreveremos mesmo porque o desse tempo era quase igual ao de hoje111 Lá estava na sua cadeira o imperador que o leitor já viu passeando pela rua no meio de seus foliões Luisinha vendoo pôsse nas pontas dos pés esticou o pescoço e encarouo por muito tempo estática e absorta O Leonardo vendo isto sentiu um não sei quê por dentro contra o menino que atraía a atenção de Luisinha e passoulhe pela mente o desejo louco de voltar atrás 6 ou 7 anos de sua existência e ser também imperador do Divino Nas escadas do império faziase como ainda hoje leilão divertindose muito o povo ali apinhado com as pesadas graçolas do pregoeiro Estiveram aí algum tempo entretidos como os outros os nossos conhecidos e foram depois procurar no meio do Campo um lugar onde pudessem fazer alto para cear e ver o fogo Acharamno não sem alguma dificuldade pois que muitas outras famílias se haviam adiantado e tomado conta das melhores posições Grande parte do Campo estava já coberta daqueles ranchos sentados em esteiras ceando conversando cantando modinhas ao som de violão e viola Fazia gosto passear por entre eles e ouvir aqui a anedota que contava um conviva de bom gosto ali a modinha cantada naquele tom apaixonadamente poético que faz uma das nossas raras originalidades apreciar enfim aquele movimento e animação que geralmente reinavam Era essa a parte permitamnos a expressão verdadeiramente divertida do divertimento Os nossos conhecidos sentaramse pois como os outros em roda de suas esteiras e começaram a cear Leonardo apesar das emoções novas que experimentava desde certo tempo e principalmente naquela noite nem por isso perdeu o apetite e esqueceuse por algum tempo de sua companheira para cuidar unicamente do seu prato No melhor da ceia foram interrompidos pelo ronco de um foguete que subia era o fogo que começava Luisinha estremeceu ergueu a cabeça e pela primeira vez deixou ouvir sua voz exclamando extasiada ao ver cair as lágrimas inflamadas do foguete que aclaravam todo o Campo Olhe olhe olhe Alguns dos circunstantes desataram a rir e o Leonardo que também já se havia rido à custa da menina desta vez deu o cavaco com aquelas risadas e as achou muito fora de tempo Felizmente Luisinha estava por tal maneira extasiada que não deu atenção a coisa alguma e enquanto duraram os foguetes não tirou os olhos do céu Aos foguetes seguiramse como sabem os leitores as rodas Nessa ocasião o êxtase da menina passou a frenesi aplaudia com entusiasmo erguia o pescoço por cima das cabeças da multidão tinha desejos de ter duas ou três varas de comprido para ver tudo a seu gosto Sem saber como unese112 ela ao Leonardo firmase com as mãos sobre os seus ombros para se poder sustentar mais tempo nas pontas dos pés falalhe e comunica lhe a sua admiração O contentamento acabou por familiarizála completamente com ele Quando se atacou a lua a sua admiração foi tão grande que querendo firmarse nos ombros de Leonardo deulhe quase um abraço pelas costas O Leonardo estremeceu por dentro e pediu ao céu que a lua fosse eterna virando o rosto viu sobre seus ombros aquela cabeça de menina iluminada pelo clarão pálido do misto que ardia e ficou também por sua vez extasiado pareceulhe então a cara113 mais linda que jamais vira e admirouse profundamente de que tivesse podido alguma vez rirse dela e achála esquisita Acabado o fogo tudo se pôs em andamento levantaramse as esteiras espalhouse o povo D Maria e sua gente puseramse também em marcha para casa guardando a mesma disposição com que tinham vindo Desta vez porém Luisinha e Leonardo não é dizer que vieram de braço como este último tinha querido quando foram para o Campo foram mais adiante do que isso vieram de mãos dadas muito familiar e ingenuamente Este ingenuamente não sabemos se se poderá com razão aplicar ao Leonardo Conversaram por todo o caminho como se fossem dois conhecidos muito antigos dois irmãos de infância e tão distraídos iam que passaram à porta de casa sem parar e já estavam muito adiante quando os sios de D Maria os fizeram voltar A despedida foi alegre para todos e tristíssima para os dois Entretanto como sempre que se despedia o compadre prometeu voltar e isso serviu de algum alívio especialmente ao Leonardo que mais velhaco 114 tomara tudo o que se acabava de passar mais em grosso capítulo xxi Contrariedades Cremos pelo que temos referido que para nenhum dos leitores será ainda duvidoso que chegara ao Leonardo a hora de começar a pagar o tributo de que ninguém escapa neste mundo se bem que para alguns seja ele fácil e leve e para outros pesado e custoso o rapaz amava É escusado dizer a quem porque todos sabem que era a sobrinha de D Maria Como é que uma figura que a princípio tanto desafiara a sua hilaridade por esquisita e feia lhe viera depois a inspirar amor é lá isso segredo do coração do rapaz que nos não é dado penetrar o fato é que ele a amava e isto nos basta Convém lembrar que se pela sorte de um pai se pode augurar a de um filho o Leonardo em matéria de amor não prometia decerto grande fortuna E com efeito logo depois da noite do fogo no campo em que o negócio começara a tomar vulto principiou a roda a desandarlhe em quase todos os sentidos Luisinha uma vez extinto o entusiasmo que suscitado pelas emoções que experimentara na noite do fogo a acordara da sua apatia voltara de novo a ela e como de tudo esquecida na primeira visita que o compadre e o Leonardo fizeram a D Maria depois desses acontecimentos nem para este último levantara os olhos voltando de novo aos seus hábitos conservarase de cabeça baixa e olhos no chão Ora para quem como o Leonardo levara depois daquela feliz noite a construir esses milhões de castelos de extravagante arquitetura com que sonhamos quando pela primeira vez amamos isso foi já uma contrariedade sem nome a primeira vontade que teve quando foi daquele modo tratado foi desatar a chorar e só o conteve o receio de não poder depois justificar o seu pranto com qualquer pretexto A este primeiro ímpeto sucedeulhe um momento de calma e depois cresceulhe por dentro uma enorme raiva e esteve quase não quase a115 chegarse para a menina desenterrarlhe o queixo do peito e chamála quatro ou cinco vezes de estúrdia e feia Afinal cismou um pouco e murmurou um que me importa que pretendia ser desprezo e que não passou de despeito À primeira visita depois da noite do fogo seguiramse muitas outras em que as coisas se passaram pouco mais ou menos do mesmo modo Um novo sucesso veio porém um dia dar outra cor e andamento aos negócios116 foi o encontro dos dois em casa de D Maria com uma personagem desconhecida para ambos e era um conhecido de D Maria que havia há pouco chegado de uma viagem à Bahia Figure o leitor um homenzinho nascido em dias de maio de pouco mais ou menos 35 anos de idade magro narigudo de olhar vivo e penetrante vestido de calção e meias pretas sapatos de fivela capote e chapéu armado e terá idéia do físico do Sr José Manuel o recémchegado Quanto ao moral se os sinais físicos não falham quem olhasse para a cara do Sr José Manuel assinalavalhe logo um lugar distinto na família dos velhacos de alto quilate E quem tal fizesse não se enganava de modo algum o homem era o que parecia ser Se tinha alguma virtude era a de não enganar pela cara Entre todas as suas boas qualidades tinha uma que infelizmente caracterizava naquele tempo e talvez que ainda hoje positiva e claramente o Fluminense era a maledicência José Manuel era uma crônica viva porém crônica escandalosa não só de todos os seus conhecidos e amigos e das famílias destes mas ainda dos conhecidos e amigos dos seus amigos e conhecidos e de suas famílias Debaixo do mais fúrtil117 pretexto tomava a palavra e enfiava um discurso de duas horas sobre a vida de fulano ou de beltrano Por exemplo conversandose sobre qualquer objeto acontecia falarse suponhamos em D Francisca Brites Conheci muito D Francisca Brites atalhava imediatamente o incansável falador era mulher de João Brites filho bastardo do capitão Sanches em tempo de casada diziam suas coisas dela e a culpa tinha Pedro dAguiar sujeito que não gozava de boa nota principalmente depois que se meteu aí numa alhada de um testamento falso que atribuíram ao Lourenço da Cunha que em abono da verdade era bem capaz disso pois118 era sujeito de mãos limpas Foi até ele quem furtou de casa a filha de D Úrsula que foi moça de Francisco Borges a quem deixou para seguir a Pedro Antunes que por sinal lhe deu bem má vida E também ela não devia esperar outra coisa dele porque homem que se atreveu a fazer o que ele fez a três filhas que tinha é capaz de tudo Ele chegou a pôr pela porta fora com um pau as pobres moças depois de as ter espancado muito Entretanto uma delas foi bem feliz achou aí um capitão de navio que tratou dela as outras não coitadas Se acontecia que alguma pessoa presente que conhecia as tais três moças o interrompia dizendo por exemplo Infelizes por quê elas casaram Casaram sim é verdade retorquia ele tomando novo fôlego porém com que maridos Um tomava moafas de todo o tamanho o outro gastou tudo quanto tinha no jogo Conhecios a ambos muito bem E por aí prosseguia e internavase a perder de vista pela geração toda dos dois maridos e era capaz de gastar nesse trabalho horas inteiras Cremos que com isto temos dado idéia se não cabal ao menos aproximada do caráter deste novo personagem Desde o primeiro dia que o padrinho e o afilhado encontraramse com José Manuel em casa de D Maria nenhum dos dois lhe ficou por certo querendo muito bem e este não querer bem foi crescendo de dia em dia especialmente pela parte do Leonardo E o caso é que ele tinha razão foi o instinto que o avisou de que ali havia um inimigo Tão exagerados eram os afagos de José Manuel para com D Maria e tanto repartia ele esses afagos com Luisinha que entretanto prosseguia no seu ordinário que bem claro se deixou ver que aquilo tinha seu fim e esse fim quase que estava descoberto Afinal o negócio esclareceuse D Maria era como dissemos rica e velha não tinha outro herdeiro além de sua sobrinha se morresse D Maria Luisinha ficaria arranjada e como era muito criança e mostrava ser muito tola era uma esposa muito conveniente a qualquer velhaco119 que se achasse como José Manuel em disponibilidade este pois fazia a corte à velha com intenções na sobrinha Quando Leonardo esclarecido pela sagacidade do padrinho entrou no conhecimento destas coisas ficou fora de si e a idéia mais pacífica que teve foi que podia mui bem quando fosse visitar D Maria munirse de uma das navalhas mais afiadas de seu padrinho e na primeira ocasião oportuna fazer de um só golpe em dois o pescoço de José Manuel Porém teve de aplacar se e ceder às admoestações do padrinho que sabia de todos os seus sentimentos e que os aprovava capítulo xxii Aliança Se o Leonardo se afligira do modo que acabamos de ver pelo contratempo que lhe sobreviera com o aparecimento e intenções de José Manuel o compadre não se incomodara menos com ele Vendo que o afilhado se fazia homem e tendo decididamente abortado aquele seu gigantesco plano de mandálo a Coimbra enxergava ele na sobrinha de D Maria um meio de vida excelente para o seu rapaz Verdade é que se lembrava de que D Maria podia com muito justa razão se as coisas continuassem do mesmo modo quando chegasse o momento do desfecho do negócio recusar sua sobrinha a um rapaz que não se ocupava em coisa nenhuma e que não tinha futuro Por este motivo muitas vezes instava com o afilhado para que ensaiasse na cara de algum freguês tolo entrar no ofício porém este recusavase obstinadamente A comadre quando alguma vez aparecia por casa do compadre não cessava de insistir no seu antigo projeto de fazer o rapaz entrar para o trem uma ocasião em que nisso falou diante dele custoulhe a história uma forte sarabanda o rapaz tomara gosto à vida de vadio e por princípio algum queria deixála E se em outras ocasiões estava ele desse humor agora depois dos últimos acontecimentos quando o amor e o ciúme lhe ocupavam a alma não queria ouvir falar em coisa alguma dessas acreditava que a sua melhor ocupação devia consistir em dar cabo do maldito rival que se lhe antepusera Estavam as coisas neste pé e o pior era que José Manuel parecia adiantarse cada vez mais astuto como era insinuavase destramente no ânimo de D Maria e a cativava com atenções de toda a sorte O compadre começou a banzar sobre o caso e um dia veiolhe uma idéia era preciso pôr a comadre em dia com o que se passava e interessála no negócio ela era bem capaz se quisesse de arcar com José Manuel e pô lo fora de combate gozava boa fama de ter jeito para essas coisas Com efeito mandou chamar a comadre e expôslhe tudo Sim respondeu ela ao ouvir a narração o caso é este pois está de cor o tal sujeito hei de mostrarlhe para quanto presto Já hoje mesmo vou visitar a D Maria Mal sabia José Manuel que tormenta se levantava contra ele Há muito que ele percebera que o Leonardo e seu padrinho o não podiam tragar e mesmo que tinham estes dois segundas tenções porém nunca lhe passara pela mente que seria mister lutar com eles Em breve teve de ver que se enganava pois que eram terríveis seus adversários A comadre foi com efeito como prometera à casa de D Maria e achando lá José Manuel procurou fazerse ostensivamente muito sua camarada se bem que baixinho e de vez em quando soltava perto de D Maria algumas indiretas contra ele Quando José Manuel acabava de contar uma história com todos os detalhes costumados sobre a vida de fulano ou de beltrano120 a comadre murmurava por exemplo Que língua safa E com estas e outras ia assim pondo em relevo sem parecer que tinha tal intenção o caráter do adversário Além da boa qualidade de maldizente José Manuel mentia com um descaro como raras vezes se encontra D Maria amiga de novidades e além disso muito crédula comungava perfeitamente quanta peta lhe queria ele embutir Uma das suas histórias mais comuns era a que ele intitulava o naufrágio dos potes Aconteceralhe na sua última viagem à Bahia e ele a contava pelo modo seguinte Estávamos quase a chegar à Bahia viajava ao lado do meu navio um enorme peru carregado unicamente de potes De repente armase um temporal que parecia vir o mundo abaixo o vento era tão forte que do mar apesar da escuridão viamse contradançar no espaço as telhas arrancadas da cidade alta o mar era tal que muitas vezes vimos passar por cima dos mastros do navio e cair do outro lado sem lhe tocar o peru jogado pelas ondas outras vezes era o nosso navio que lhe passava por cima Com a força dos balanços aconteceu que muitos dos marinheiros do navio saltaram fora porém com tanta felicidade que foram cair dentro do peru Isto durou por algum tempo sem que nem uma só vez as duas embarcações se tocassem apesar de estarem sempre muito perto uma da outra121 Afinal quando já parecia tudo sossegado e começava a limpar o tempo veio uma onda tão forte e em tal direção que as duas embarcações esbarraram com toda a força uma contra a outra Já muito maltratadas pelo temporal que acabavam de suportar não puderam mais resistir e abriramse ambas de meio a meio o navio vazou toda a sua carga e passageiros e o peru toda a sua carregação de potes ficou o mar coalhado deles em tão grande quantidade os havia Os marinheiros e outros passageiros trataram de agarrarse a tábuas caixões e outras coisas para se salvarem porém o único que se salvou fui eu e isso devo à feliz lembrança que tive do pedaço do navio em que tinha ficado dei um salto sobre o pote que havia mais perto Com o meu peso o pote mergulhou e enchendose dágua desapareceu debaixo de meus pés porém isto não teve lugar antes que eu percebendo o que ia acontecer não saltasse imediatamente deste pote para outro A este outro e a todos os mais aconteceu a mesma coisa porém servime do mesmo meio e assim como a força das ondas os impelia para a praia vim de pote em pote até à terra sem o menor acidente Como esta contava José Manuel milhares de histórias Foi também isso um tema de que se serviu a comadre para o desconceituar no ânimo de D Maria sempre é verdade muito sorrateiramente Veremos quais foram os resultados que alcançaram o compadre e o Leonardo com a aliança formada com a comadre contra o concorrente à Luisinha capítulo xxiii Declaração Enquanto a comadre dispunha seu plano de ataque contra José Manuel Leonardo122 ardia em ciúmes em raiva e nada havia que o consolasse em seu desespero nem mesmo as promessas de bom resultado que lhe faziam o padrinho e a madrinha O pobre rapaz via sempre diante de si a detestável figura de seu rival a desconcertarlhe todos os planos a desvanecerlhe todas as esperanças Nas horas de sossego entregavase ele às vezes à construção imaginária de magníficos castelos castelos de nuvens é verdade porém que lhe pareciam por instantes os mais sólidos do mundo de repente surdialhe de um canto o terrível José Manuel com as bochechas inchadas de vento e soprando sobre a construção a arrasava em meio minuto Entretanto o que havia em tudo isto de notável é que Luisinha causa de tantas tormentas ignorava tudo e a tudo continuava indiferente quem sabe mesmo se a pobre menina sabia lá dessas coisas de amor se tinha mesmo a mais leve idéia disso hoje uma menina nas circunstâncias dela estaria mais que muito em dia e tomaria a parte que lhe devia competir ao negócio naquele tempo porém de bons costumes e santidade isso era coisa com que ninguém devia contar Verdade seja também que tinha ela a menos que não fosse muito perspicaz bem poucos motivos para saber do que se passava e nenhuma ocasião de manifestar a sua opinião se a tivesse formado123 Leonardo veio a entender depois de muito meditar que isto constituía um dos principais defeitos de sua posição se a comadre e o compadre conseguissem derrotar a José Manuel e pôlo em estado de não poder mais entrar em combate quem poderia dizer que o triunfo era completo Não havia ainda uma segunda campanha a dar contra a indiferença de Luisinha Daqui concluiu ele que era mister ir já rompendo fogo por esse lado e como lhe pareceu o de mais importância não quis confiar a nenhum dos aliados o seu ataque decidiuse ela mesmo a dálo Devia começar tudo como o sabe de cor e salteado a maioria dos leitores que é sem dúvida nenhuma muito entendida na matéria por uma declaração em forma Mas ah cólicas124 em amor assim como em tudo a primeira saída é o mais difícil Todas as vezes que esta idéia vinha à cabeça do pobre rapaz passavalhe uma nuvem escura por diante dos olhos e banhavaselhe o corpo em suor Muitas semanas levou a pensar nisso a estudar o que havia de dizer a Luisinha quando aparecesse o momento fatal achava com facilidade milhares de coisas que dizer porém mal tinha assentado em que diria isto ou aquilo e já isto ou aquilo lhe não parecia bom Por várias vezes tivera ocasião favorável para desempenhar a sua tarefa pois estivera só com Luisinha porém nessas ocasiões nada havia que pudesse vencer um tremor de pernas que se apoderava dele e que não lhe permitia levantarse do lugar onde estava e um engasgo que lhe sobrevinha e que o impedia de articular uma só palavra Enfim depois de muitas lutas consigo mesmo para vencer o acanhamento tomou um dia que teve ocasião de estar só com Luisinha a resolução de acabar com aquilo e de dizerlhe a primeira coisa que lhe viesse à boca Luisinha estava no vão de uma janela a espiar a rua pela rótula Leonardo aproximouse tremendo pé ante pé parou e ficou imóvel como um estafermo125 atrás dela que entretida para a rua de nada tinha dado fé e esteve assim por longo tempo estava a decidirse se devia falar em pé ou se devia ajoelharse Depois fez um movimento como de quem queria tocar no ombro de Luisinha mas recolheu depressa a mão pareceulhe que por aí não ia bem quis antes puxarlhe pelo vestido e ia já levando a mão quando também se arrependeu Durante todos estes movimentos o pobre rapaz suava a não poder mais Enfim um incidente veio tirálo do aperto Ouvindo passos no corredor entendeu que alguém se aproximava e tomado de terror por se julgar apanhado naquela posição deu repentinamente dois passos para trás e soltou um ah muito engasgado Luisinha voltando se despertada por esse ah deu com ele diante de si e recuando espremeuse de costas contra a rótula veiolhe também outro ah que devia fazer casal com o que soltara o Leonardo porém não lhe passou da garganta e conseguiu apenas fazer uma careta A bulha dos passos cessara sem que ninguém chegasse à sala os dois levaram algum tempo naquela mesma posição até que o Leonardo assentando que aquilo devia acabar de uma vez rompeu o silêncio e com voz trêmula e em tom o mais sem graça desta vida perguntou desenxabidamente A senhora sabe uma coisa E riuse com uma risada forçada pálida e tola Luisinha não respondeu Ele repetiu no mesmo tom Então a senhora sabe ou não sabe E tornou a rirse do mesmo modo Luisinha conservouse muda A senhora bem sabe é porque não quer dizer Nada de resposta Se a senhora não ficasse zangada eu dizia Silêncio Está bom eu digo sempre mas a senhora fica ou não fica zangada Luisinha fez um gesto de quem estava impacientada Pois então eu digo A senhora não sabe eu eu lhe quero muito bem Luisinha fezse da cor de uma cereja e fazendo meiavolta à direita foi dando as costas ao Leonardo e caminhando pelo corredor Era tempo pois alguém se aproximava Leonardo viua irse um pouco estupefato pela resposta que ela lhe dera porém não de todo descontente seu olhar de amante percebera que o que se acabava de passar não tinha sido totalmente desagradável a Luisinha Quando ela desapareceu o rapaz soltou um ah de desabafo e assentouse pois se achava tão fatigado como se tivesse acabado de lutar braço a braço com um gigante capítulo xxiv A comadre em exercício Os leitores devem estar lembrados de que o nosso antigo conhecido de quem por algum tempo nos temos esquecido o Leonardopataca apertara se em laços amorosos com a filha da comadre e que com ela vivia em santa e honesta paz Pois esse viver santo e honesto deu em tempo oportuno o seu resultado Chiquinha era este o nome da filha da comadre achouse de esperanças e pronta a dar à luz Já vêem os leitores que a raça dos Leonardos não se há de extinguir assim com duas razões Leonardopataca não perdia por modo algum aqueles hábitos de ternura com que sempre o conhecemos e nas atuais circunstâncias quando ele via às portas da vida um fruto do seu derradeiro amor crescialhe nalma aquela violenta chama do costume o pobre homem ardia todo por dentro e por fora e desfaziase em carinhos para com sua companheira Chegou finalmente o dia de aparecer o desejado resultado Chiquinha ao amanhecer manifestara os primeiros sintomas Leonardo levantou logo uma poeira em casa andava de dentro para fora pretendendo fazer mil coisas e sem fazer coisa alguma atrapalhado e tonto Mandou chamar logo a comadre que pronta acudiu ao chamado e começaramse a arranjar os preparativos Talvez alguns leitores tenham idéia do mundo infinito de arranjos que naquele tempo se punha em giro em semelhantes ocasiões A primeira coisa a que o LeonardoPataca providenciou foi a que se mandassem dobrar de certo em certo tempo os sinos da Sé126 Esta prática só costumava ter lugar quando a parturiente se achava em perigo porém ele quis prevenir tudo a tempos e a horas Mandouse depois pedir à vizinha pois por um descuido imperdoável não havia em casa um ramo de palha benta a comadre trouxe um par de bentinhos da Senhora do Monte do Carmo que tinham grande reputação de milagrosos e o lançou ao pescoço da Chiquinha Pôs a palha benta ao lado da cabeceira na sala improvisouse um oratório com uma toalha um copo com arruda e uma imagem de Nossa Senhora da Conceição de louça toda enfeitada com cordões de ouro Chiquinha para nada esquecer das regras estabelecidas amarrou à cabeça um lenço branco meteuse embaixo dos lençóis e começou a rezar ao santo de sua devoção A comadre sentouse aos pés da cama em uma banquinha e desunhava também em um grande rosário observando entretanto a Chiquinha e interrompendose a cada instante para dar ordens ao Leonardopataca e responder ao que fora do quarto se dizia Leonardo pataca depois de tudo arranjado quando viu que a única coisa que restava era esperar a natureza como dizia a comadre pôsse em menores quero dizer despiu as calças e o colete ficou em ceroulas e chinela amarrou à cabeça segundo um antigo costume um lenço encarnado e pôsse a passear na sala de um lado para outro com uma cara de fazer dó parecia que era ele e não Chiquinha quem se achava com dores de parto De vez em quando parava à porta do quarto que se achava cerrada lançava para dentro um olhar de curiosidade e medo e abanando a cabeça murmurava Não sirvo para isto estas coisas não se dão com o meu gênio Estou a tremer como se fosse o negócio comigo E realmente a cada gemido forte que partia do quarto o homem estremecia e faziase de mil cores Dentro do quarto a comadre exortava a padecente pouco mais ou menos nestes termos Não vos façais de criança menina isso não é nada é um pau por um olho Não tarda aí um Bendito e estais já livre Estas coisas na minha mão andam depressa Verdade seja que é o primeiro e isto causa seu medo mas não é coisa que valha estares agora tão desanimada é preciso também ajudar a natureza Faze da tua parte que eu te ajudarei São palavras de Jesus Cristo A padecente estava porém a morrer de susto nem se moveu à exortação da comadre talvez julgasse que tudo que havia a fazer de sua parte já ela o tinha feito há bastante tempo Entretanto o tempo ia passando e a pobre rapariga a sofrer já lhe tinha a comadre arranjado de um modo diverso os bentinhos no peito já tinha inclinado mais sobre a cama a palma benta e ainda nada de novo O Leonardopataca começava a impacientar se de vez em quando chegava à porta do quarto e perguntava com voz esmorecida Então Compadre respondia a comadre já lhe disse que não é bom a quem está neste estado estar ouvindo voz de homem esteja calado e espere lá Continuava o tempo a passar a comadre saiu do quarto e veio acender uma nova vela benta a Nossa Senhora e depois de uma breve oração retirouse de novo para o quarto Tirou então do bolso da saia uma fita azul comprida e passoua em roda da cintura de Chiquinha era uma medida de Nossa Senhora do Parto Depois disse com ar de triunfo Ora agora vamos a ver porque isto já não vai do meu agrado Mas a culpa também é sua menina já lhe disse que é preciso ajudar a natureza Passouse ainda algum tempo De repente a comadre gritou para fora Ó compadre dê cá lá uma garrafa O Leonardopataca obedeceu prontamente Ouviuse então dentro do quarto o som que produziria uma boca humana a soprar com toda a força dentro de alguma coisa Era Chiquinha que por ordem da comadre soprava a morrer de cansaço dentro da garrafa que esta mandara vir Com força menina com bem força e Nossa Senhora não desampara os fiéis Ânimo ânimo isto e mais que sucede é uma vez por ano Desde que nossa mãe Eva comeu aquela maldita fruta ficamos nós sujeitas a isto Eu multiplicarei os trabalhos de teu parto São palavras de Jesus Cristo Já se vê que a comadre era forte em história sagrada Ao Leonardopataca tremiamlhe cá fora tanto as pernas que não pudera mais continuar no passeio e achavase sentado a um canto com os dedos nos ouvidos Soprai menina continuava sempre dentro a comadre soprai com Nossa Senhora soprai com S João Batista soprai com os apóstolos Pedro e Paulo soprai com os anjos e serafins da corte celeste com todos os santos do paraíso soprai com o Padre com o Filho e com o Espírito Santo Houve finalmente um instante de silêncio que foi interrompido pelo choro de uma criança Ora lá vai o mau tempo exclamou a comadre bem dizia eu que isto não era mais do que um pau por um olho Ah Sr compadre chegue que é agora a sua vez venha ver a sua pecurrucha É uma pecurrucha exclamou o Leonardopataca fora de si ora isto é de bom agouro porque com o outro que saiu macho não fui feliz Rescendeu então pela casa um agradável cheiro de alfazema a comadre veio à sala apagou as velas que estavam acesas a Nossa Senhora foi depois desatar a fita da cintura da Chiquinha e tirarlhe do pescoço os bentinhos A recémnascida enfraldada encueirada encinteirada entoucada127 passava das mãos de Chiquinha para as do Leonardopataca que não cabia em si de contentamento era uma formosa criancinha em tudo o oposto de seu irmão paterno o nosso amigo Leonardo mansa e risonha O Leonardopataca recorreu imediatamente à folhinha para ver que nome trazia a menina porém como este lhe não agradasse travou logo com Chiquinha uma questão a respeito do nome que se lhe devia dar A comadre aproveitouse disso para dar conta dos últimos arranjos e depois envergou a mantilha e saiu para acudir a outras necessitadas capítulo xxv Trama Como esta cena que acabamos de pintar tinha a comadre muitas outras todos os dias porque era uma das parteiras mais procuradas da cidade gozava grande reputação de muito entendida naquele ramo e ainda nos casos mais graves era sempre a escolhida com os seus milagrosos bentinhos a palma benta a medida de Nossa Senhora a garrafa soprada e com a ajuda de todas as legiões de santos de serafins de anjos e de anjinhos safavase128 ela dos maiores apertos E ninguém lhe fosse lá dar regras que as não ouvia nem do físicomor se nisso se metesse era só olhar para uma mulher de esperanças e dizialhe logo sem grande trabalho o sexo o tamanho do filho que trazia nas entranhas e com uma pontualidade cronométrica o dia e hora em que teria de se ver desembaraçada até às vezes lá por certos sinais que só ela conhecia chegava a dizer qual seria o gênio inclinação do ente que estava para nascer Já se vê que esta vida era trabalhosa e demandava sérios estudos porém a comadre dispunha de uma grande soma de atividade e apesar de gastar muito tempo nos deveres do ofício e na igreja sempre lhe sobrava algum para empregar em outras coisas Como dissemos ela havia tomado a peito a causa dos amores de Leonardo com Luisinha e jurara pôr José Manuel o candidato fora da chapa Presentemente portanto ocupava o seu tempo disponível nesse grave negócio e movia uma intriga surdíssima e constante contra o rival de seu afilhado gozando da intimidade e do crédito de D Maria não perdia junto dela ocasião de desconceituar José Manuel o que eralhe tanto mais fácil quanto ele prestavase a isso e D Maria de espírito demandista e chicaneiro dava o cavaco por um mexericozinho Eis aqui uma das que ela armou ao adversário Todos sabem nesta cidade onde é o Oratório de Pedra mas o que todos talvez não saibam é para que serviu ele antigamente Sem dúvida era ali lugar onde havia algum santo e onde o povo devoto ia rezar Exatamente Mas por que é que hoje não continua essa prática por que apenas se conserva ali sobre a parede aquela espécie de guarita de pedra sem imagem alguma dentro sem luz à noite e diante da qual passam todos irreverentemente sem tirar o chapéu e curvar o joelho Primeiro que tudo extinguiuse isso como se extinguiram milhares de coisas boas daquele bom tempo que já lá vai começaram todos a aborrecerse de achálas boas e acabaram com elas depois houve a respeito do Oratório de Pedra muito boas razões policiais para que ele deixasse de ser o que era O leitor que sem dúvida sabe muito bem de quanto eram nossos pais crentes devotos e tementes a Deus se admirará talvez de ler que houve razões policiais para a extinção de um oratório Entretanto é isso uma verdade e se fosse ainda vivo o nosso amigo Vidigal de quem já tivemos ocasião de falar em alguns capítulos desta historieta poderia dizer quantos garotos pilhou em flagrante delito ali mesmo aos pés do oratório ajoelhado contrito e beato Muitas vezes quando passava a viasacra e que se acendia a lâmpada do oratório o pai de família que morava ali pelas vizinhanças tomava o capote chamava toda a gente de casa filhos filhas escravos e crias e saindo com eles ia fazer oração ajoelhandose com todos os seus entre o povo diante do oratório Mas se acontecia que o incauto devoto se esquecia por exemplo da filha mais velha que se ajoelhara um pouco mais atrás e embebido em suas orações não estava alerta sucedialhe às vezes voltar para casa com a família dizimada a menina aproveitavase do ensejo e sorrateiramente se escapava em companhia de um devoto que se ajoelhara ali perto embrulhado no seu capote e que ainda há dois minutos todos tinham visto entregue fervorosamente às orações era o amante que viera executar129 o plano concertado na véspera ao cair de AveMarias através dos postigos da rótula Outras vezes quando estavam todos os circunstantes entregues à devoção e que a ladainha entoada a compasso enchia aquele circuito de contrição ouviase um grito agudo e doloroso que interrompia o hino corriam todos para o lugar donde ele tinha partido às vezes era mesmo sob as vistas da imagem do oratório130 e achavam um homem estendido no chão com uma ou duas facadas Não contamos ainda no meio destas e de outras com as inocentes caçoadas que a todo o instante da reza praticavam ali os gaiatos como sejam as caroladas nas cabeças dos devotos carecas uma pedra atirada ninguém sabe donde dentro de uma poça de lama que havia ali perto e que caindo respingava todos os fiéis e mil outras desta ordem131 Eis aqui pois porque além de outros motivos dissemos que tinham havido razões policiais para que se acabasse com a piedosa serventia do Oratório de Pedra No tempo porém em que se passavam as cenas que temos narrado ainda o Oratório de Pedra estava no galarim Um ou dois dias depois do nascimento do segundo filho do Leonardopataca correu pela cidade a notícia de um grande escândalo que se passara nesse lugar clássico dos escândalos uma moça que vivia em companhia de sua mãe velha rica e devota indo com ela rezar junto ao Oratório na ocasião da passagem da viasacra fugira tendo levado consigo um pé de meia preta contendo uma boa porção de peças de ouro A notícia corria e falavase muito no caso não porque aquilo fosse naquele tempo coisa que se estranhasse mas sim porque havia um mistério no caso e era que ninguém sabia com quem tinha fugido a moça D Maria como todos estava ansiosa por ver deslindada a questão quando lhe aparece por casa a comadre que a vinha visitar D Maria estava sentada na sua banquinha tendo diante de si uma enorme almofada de renda carregada com umas seis ou sete dúzias de bilros e esmeravase a fazer um largo pegamento A seu lado sentada em uma esteira cercada por uma porção de negrinhas crias de D Maria estava Luisinha também ocupada em fazer renda Quando a comadre entrou D Maria largou imediatamente a almofada do colo tirou do nariz e pôs na testa um par de óculos com que trabalhava de aros de prata mas amarrados com linha em mais de um lugar132 e foi lhe logo falando no caso sucedido A comadre fez sinal que mandasse retirar Luisinha e as mais crianças feito o que sentouse e começou a conversa D Maria abriu a discussão Então que me diz senhora da desgraça da pobre velha Criar a gente uma rapariga com todo o carinho e no fim ter aquele pago Estas raparigas de hoje são endiabradas133 no meu tempo não se viam coisas destas Esta mania de cada um falar bem do seu tempo e mal do dos outros é muito antiga134 Que quer senhora respondeu a comadre pois foi ali nas barbas de todos Não havia um instante que ela tinha chegado com a velha e que se tinham todas duas ajoelhado ao pé de mim Ao pé da comadre Pois a comadre estava lá Estava que antes não estivesse arrenego Mas o diabo senhora acrescentou D Maria é ninguém saber quem foi o maldito que fugiu com ela A comadre interrompeu dando uma risadinha sardônica Tenho perguntado a todos e ninguém sabe dizer com quem foi É porque todos estavam cegos Como Mas não o estava eu por mal de meus pecados que antes estivesse Pois viu e sabe com quem foi disse D Maria remexendose de prazer em cima da banquinha A idéia de poder saber de uma novidade que todos ignoravam encheua de contentamento Mas então quem foi vamos quero saber quem foi o engraçado ladrão de moça e de dinheiro Só lhe direi respondeu a comadre depois de alguma hesitação se me prometerdes guardar todo o segredo que o caso é muito sério Ora bem sabe que eu é o mesmo que cair num poço Apesar de estarem só a comadre inclinouse ao ouvido de D Maria e disselhe o mais baixinho que pôde Foi o nosso grande camarada o hipócrita do José Manuel O que é que diz comadre Vi respondeu esta arregalando com dois dedos os olhos com estes que a terra há de comer Se eles estavam ao pé de mim Ora ora dáse coisa igual135 capítulo xxvi Derrota Aquelas últimas palavras da comadre produziram sobre D Maria o efeito de um raio a velha remexeuse na banquinha tomada do maior desapontamento Ora comadre exclamava a cada momento esta não lembra ao diabo por isso eu sigo a regra antiga de me não fiar nem um nada em tudo que me traz calções Safa que esta pôsme sal na moleira A comadre vendo estas boas disposições aproveitavase delas para fazer melhor o seu papel e respondia Pois também o que se havia de esperar de um sujeito como aquele um homem que não abre a boca que não minta que tem uma língua de Lúcifer Quem contasse com aquilo era mesmo para se perder É verdade senhora nunca vi mentiroso nem maldizente maior Nunca D Maria até então tinha encontrado em José Manuel estas qualidades que agora lhe descobria tanto em relevo Se eu fosse parente da rapariga havia pôr uma demanda ao tal diabo que o havia ensinar Por isso é que ele me não aparecia por cá há tanto tempo andava cuidando nos seus arranjos Mal tinha acabado de pronunciar estas últimas palavras quando se ouviu bater à porta e a voz de José Manuel pedir licença Aí está ele segredo não quero que se saiba que fui eu disse a comadre apressada Ora respondeu D Maria eu cá para isso sou boa José Manuel entrou D Maria que não costumava guardar o que sentia recebeuo friamente a comadre porém fez um agradável cumprimento Seja bem aparecido disse bons olhos o vejam Tenho andado aí ocupado com alguns arranjos Arranjos disse D Maria trocando com a comadre um olhar significativo José Manuel inocente em tudo ficou pasmo sem entender o que queria aquilo dizer entretanto segundo o costume não perdeu ocasião de armar uma peta Sim uns arranjos acrescentou houve um negócio muito sério em que estive metido e que me ia dando bem que fazer sinto não lhe poder contar porque é segredo A comadre fez um gesto como quem queria dizer aí vem uma peta D Maria porém que estava preocupada pela conversa que há pouco tivera entendeu que José Manuel se referia ao roubo da moça e abanando a cabeça disse por entre os dentes Hum entendo A comadre estremeceu temendo que D Maria não desse com a língua nos dentes e que a questão do roubo da moça tivesse de ser averiguada em sua presença porque nesse caso seria ela apanhada em flagrante mentira e estava tudo perdido Começou portanto a provocar a José Manuel a que declarasse qual era o negócio tão sério em que se tivera metido contava ela com algumas das petas costumadas e assim se desviaria a conversa do ponto que ela não queria ver tratado em sua presença Deixemola nesse empenho lutar com as negaças e fingidos mistérios de José Manuel e vamos a outro posto Desde o dia em que Leonardo fizera a sua declaração amorosa uma mudança notável se começou a operar em Luisinha e cada hora se tornava mais sensível a diferença tanto do seu físico como do seu moral Seus contornos começavam a arredondarse seus braços até ali finos e sempre caídos engrossavamse e tornavamse mais ágeis suas faces magras e pálidas enchiamse e tomavam essa cor que só sabe ter o rosto da mulher em certa época da vida a cabeça que ela costumava a trazer habitualmente baixa erguiase agora graciosamente os olhos até aqui amortecidos começavam a despedir lampejos brilhantes falava moviase agitavase A ordem de suas idéias alteravase também o seu mundo interior até então acanhado e estreito escuro despovoado começava a alargar os horizontes a iluminarse a povoarse de milhões de imagens ora risonhas e amenas ora melancólicas sempre porém belas Ela até então indiferente ao que se passava em torno de si e sobre a sua cabeça parecia agora participar da vida de tudo que a cercava gastava horas inteiras a contemplar o céu como se só agora tivesse reparado que ele era azul e belo que se iluminava pelo sol do dia e que se recamava de estrelas à noite Perdia enfim a olhos vistos o acanhamento natural desembaraçavase Tudo isto dava em resultado pelo que diz respeito ao nosso amigo Leonardo um aumento considerável de amor também ele foi o primeiro que deu fé de todas aquelas mudanças em Luisinha Entretanto apesar de lhe crescer o amor nem por isso via ele maior furo aos desejos136 Depois da declaração não se tinha adiantado nem mais uma polegada e a única coisa talvez que lhe alimentava a esperança era um certo rubor súbito que subia às faces de Luisinha quando acontecia raras vezes que se encontrassem os olhares dela com os seus A soma total de todas estas adições era uma raiva que lhe crescia nalma aumentando todos os dias de intensidade contra José Manuel a quem em seus cálculos atribuía todo o seu atraso Dadas estas explicações ao leitor voltemos a dar conta do resto da cena que deixamos suspensa À força de instâncias a comadre conseguiu de José Manuel que contasse qual o negócio de alto segredo em que se tinha achado envolvido Pois bem disse ele finalmente se me prometem todo o segredo eu contarei Ora nem tem que recomendar isso Com a escusa e mistérios que tinha guardado até então José Manuel não fizera mais do que ganhar tempo para imaginar a mentira que havia de pregar a comadre contava com isso mesmo Ele começou Saibam Vms que fui um destes dias chamado a palácio Ui exclamou a comadre Aí está o resultado disse D Maria mas não se pagam na outra vida é mesmo nesta Resultado de quê perguntou José Manuel surpreendido De nada continue José Manuel contou então uma grande história muito encadeada dizendo que elrei o mandara chamar a palácio e depois de cobrilo das maiores honras e obséquios lhe oferecera o comando da polícia da cidade pois que o Vidigal já não satisfazia tão bem o serviço ele porém recusara a pés juntos com o que elrei se mostrara muito zangado e o despedira137 Terminada porém a história ele que era velhaco e a quem nada escapava 138 começou a instar com D Maria para que lhe desse a explicação das palavras duvidosas que há pouco havia dito a seu respeito A comadre assim que viu o negócio neste pé foise pondo ao fresco depois de trocar com D Maria um olhar que queria dizer não me comprometa D Maria a princípio quis sustentar o segredo afinal não se pôde conter e soltou contra José Manuel uma catilinária139 dizendo que toda a cidade estava cheia do horroroso escândalo que ele acabava de praticar roubando uma filhafamília O pobre homem foi às nuvens e jurou e tresjurou que estava inocente em tudo aquilo Nada porém lhe valeu D Maria foi inflexível Protestou de novo que se ela fosse parenta da moça o Sr José Manuel se havia de ver em calças pardas com o negócio e terminou por darlhe a entender que ele era um homem muito perigoso para ser admitido em uma casa de família José Manuel saiu completamente corrido e cismando quem teria sido o autor de semelhante intriga Quanto a D Maria ficou muito satisfeita pois tendo no seu caráter um grande fundo de honestidade julgava ter feito uma boa ação passando uma sarabanda a José Manuel que ficara com efeito como o calculara a comadre perdendo muito no seu conceito capítulo xxvii O mestre de reza Tudo aquilo que ultimamente se passara em casa de D Maria havia posto a andar à roda a cabeça de José Manuel conheceu ele desde então que tinha ali inimigo fosse quem fosse pois aquilo não passava certamente de intriga que lhe tinham armado Restavalhe porém saber quem seria esse inimigo e por mais que desse voltas ao miolo não atinava com coisa alguma Pelo gênero da intriga conheceu ele que a causa da que lhe faziam era seguramente a sua pretensão a respeito de Luisinha que sem dúvida teria sido percebida por esse quem quer que era que o guerreava logo começou a suspeitar que se tinha de haver sem dúvida nenhuma com um rival Na roda que freqüentava a D Maria ninguém viu ele que pudesse ter semelhante pretensão passoulhe muitas vezes pelo espírito a lembrança do moço Leonardo porém achavao muito criança e mesmo incapaz de se meter nessas coisas Como os mais velhacos caem facilmente nas que se lhes armam Quantas vezes estão tocando o inimigo com as mãos e não o vêem e não o sentem Partisse porém donde partisse o golpe que o ferira o caso é que fora dado certeiro e a duas mãos D Maria extremosa em suas afeições como em seus ódios consentiria com imensa dificuldade na reabilitação de José Manuel o negócio era difícil ele porém não esfriou por isso e pôs mãos à obra Por uma singularidade assim como Leonardo tinha achado na comadre uma protetora à sua causa também José Manuel achara um procurador para a sua já se vê que nisso levava vantagem ao seu rival pois desse modo seriam dois a trabalhar de seu lado entretanto que o adversário teria do seu um só sendo por si pouco capaz de fazer coisa que prestasse Vamos já dizer aos leitores que estarão sem dúvida com pressa de saber quem era o procurador de José Manuel Havia no tempo em que se passam estas cenas instituições muito curiosas no Rio de Janeiro algumas eram notáveis por seu fim outras por seus meios Entre essas uma havia de que ainda em nossa infância tivemos ocasião de ver alguns destroços já nesse tempo raros e que hoje completamente desapareceram Era a instituição dos mestres de reza O mestre de reza era tão acatado e venerado naquele tempo como o próprio mestre de escola havia para isso além do respeito ordinariamente tributado aos preceptores uma circunstância muito notável e vem a ser que o mestre de reza era sempre um velho e cego Não eram eles em grande número no Rio de Janeiro e por isso viviam em grande atividade e ganhavam sofrivelmente Andavam pelas casas a ensinar a rezar aos filhos crias e escravos de qualquer o sexo Não tinham um traje especial vestiamse como todos e só o que os distinguia era ver selhes constantemente fora de seus bolsos o cabo de uma tremenda palmatória com que andavam constantemente armados compêndio único por onde ensinavam a seus discípulos Eram eles o terror da criançada das casas porque eram desapiedadamente rigorosos140 Assim que entravam para a lição reuniam em um semicírculo diante de si todos os discípulos puxavam do bolso a tremenda férula colocavamna no chão encostada à cadeira onde se achavam sentados e começava o trabalho Fazia o mestre em voz alta o PeloSinal pausada e vagarosamente no que o acompanhavam em coro todos os discípulos quanto a fazerem os sinais era ele quase sempre logrado como facilmente se concebe porém pelo que toca à repetição das palavras tão prático estava que por maior que fosse o número dos discípulos percebia no meio do coro que havia faltado esta ou aquela voz quando alguém se atrevia a deixarse ficar calado Suspendia então imediatamente o trabalho e o culpado era obsequiado com uma remessa de bolos que de modo nenhum desmentiam a reputação de quem goza a pancada de cego Feito isto recomeçava o trabalho voltandose sempre ao princípio de cada vez que havia um erro ou falta Acabado o PeloSinal que com as diversas interrupções que ordinariamente tinha gastava boa meia hora repetia o mestre sozinho sempre e em voz alta e compassada a oração que lhe aprazia repetiam depois o mesmo os discípulos do primeiro ao último de um modo que nem era falado nem cantado já se sabe interrompidos a cada erro pela competente remessa de bolos Depois de uma oração seguiase outra e assim por diante até terminar a lição pela ladainha cantada Ao sair recebia o mestre uma pequena espórtula do dono da casa D Maria tendo em sua casa um número não pequeno de crias não se dispensava de ter como todos que estavam em suas circunstâncias o seu mestre de reza era este um cego muito afamado pelo seu excessivo rigor para com os discípulos por conseqüência era um dos mais procurados pois nesse tempo para ofícios dessa natureza exigiase antes de tudo essa qualidade Também tinha outro mérito corria a seu respeito a fama de bom arranjador de casamentos José Manuel já antes o tinha posto de mão e agora que se viu em perigo recorreu a ele expôslhe o caso comunicoulhe suas intenções e pediulhe a sua cooperação Fezlhe sentir sobretudo que havia um rival a combater e muito temível pois que não era conhecido O velho começou então a tomar as mais minuciosas informações e depois de calcular por algum tempo disse Já sei com quem me tenho que haver Então com quem é acudiu José Manuel apressado Vá descansado e não se importe com o resto Mas homem olhe que é preciso muito cuidado porque quem quer que é é fino como os trezentos Ora qual histórias desses arranjos entendo eu dormindo e vejo nisso sendo cego melhor do que muitos com seus olhos perfeitos É uma coisa que me põe cá à roda o miolo não poder descobrir quem é que se intromete nos meus negócios olhe que a tal entrega do furto da moça foi de mestre Eu também sou mestre e veremos quem ensina melhor Ficaram os dois nisto e o cego pôs mãos à obra Eis aí pois quem era o procurador de José Manuel Devemos prevenir ao leitor que a causa em semelhantes mãos se não se podia dizer decididamente ganha pelo menos ficava arriscada e o que vale é que do outro lado estava a comadre senão ai do nosso amigo Leonardo O velho começou o seu plano em regra logo na primeira noite que foi dar lição à casa de D Maria começou por fazer cair a conversa a respeito do roubo da moça e deu a entender que sabia do caso e conhecia perfeitamente quem tinha sido o autor dele D Maria disse também que sabia quem era e até o conhecia muito O velho sorriuse deixando apenas escapar em tom de dúvida um significativo Qual D Maria franziu o sobrolho levantou os óculos e exclamou Pois então pensa que eu ando atrasada nestas coisas Ora deixe se Sei quem foi e sei muito e muito bem É um pedaço de um mariola com cara de sonso que só me há de morar em casa se eu algum dia for carcereira É isso tudo mas a Sra D Maria não conhece o homem digolho eu que também ando ao fato deste negócio todo Bem sei bem sei mas olhe que eu também soube de parte muito certa e não há também nada mais fácil do que ver quem está enganado Diga lá o senhor quem foi Oh não isso nunca exclamou apressadamente o velho pondose em pé nada eu cá não quebro segredo de ninguém D Maria remexeuse toda de aflição e por mais que instasse nada pôde arrancar do velho que para fazer melhor o seu papel foise logo retirando dando assim a entender que queria cortar a conversação naquele ponto Quando mais não tivesse conseguido o velho tinha ao menos lançado a dúvida no espírito de D Maria a respeito do fato que era para ela a pedra e escândalo contra José Manuel capítulo xxviii Transtorno Enquanto todas estas coisas se passavam um triste sucesso e da mais alta importância veio alterar a vida de Leonardo ou transtornála mesmo o compadre caiu gravemente enfermo A princípio a moléstia pareceu coisa de pouca monta e a comadre que foi a primeira chamada pretendeu que todo o incômodo desaparecesse dentro de dois dias tomando o doente alguns banhos de alecrim Nada porém se conseguiu com a receita o mal continuou Recorreram então a um boticário conhecido da comadre que exercia não sabemos se com permissão das leis ou sem ela os dois misteres de médico e boticário Era um velho filho do Porto que aqui se viera estabelecer há muitos anos e que ajuntara no oficio boas patacas Apenas chegou e viu o doente declarou que em poucos dias o poria de pé bastava que ele tomasse umas pílulas que lhe ia mandar da sua botica eram um santo remédio segundo dizia mas custavam um bocadinho caro mais141 porém valia a vida de um homem A comadre quando ouviu falar em pílulas franziu a testa Pírolas disse consigo então o negócio é sério e eu que tenho máfé com pírolas ainda não vi uma só pessoa que as tomasse que escapasse E avermelharamselhe imediatamente os olhos O boticário retirouse levando consigo o Leonardo que trouxe as pílulas A comadre olhando para elas abanou a cabeça Ora disse eu pensei que ele lhe mandasse dar alguns banhos cá por mim com alecrim havia de pôlo bom A comadre tinha razão até certo ponto pois que no fim de três dias depois de feitos todos os preparos religiosos o compadre deu a alma a Deus D Maria tinha sido chamada nesse mesmo dia e viera com Luisinha e com todo o seu batalhão de crias tinham vindo também algumas outras pessoas da vizinhança Estavam todos sentados em um grande canapé na varanda e conversavam muito entretidos sobre os objetos mais diversos algumas pessoas achavam mesmo na conversação motivo para boas risadas de repente abriuse a porta do quarto e a comadre saiu de dentro com o lenço nos olhos soluçando desabridamente e repetindo em altos gritos entre os soluços Bem dizia eu que tinha pouca fé nas tais pírolas está para ser o primeiro que eu as veja tomar e que escape Coitado do compadre tão boa criatura nunca me consta que fizesse mal a ninguém Estas palavras da comadre foram o sinal de rebate dado à dor dos que se achavam presentes desatou tudo a chorar e cada qual o mais alto que podia O Leonardo sofreu um grande choque e no meio de seu atordoamento encolheuse em cima do canapé com a cabeça sobre os joelhos chegandose naturalmente sem o querer porque a dor o perturbava o mais perto possível de Luisinha Continuaram os mais no seu coro de pranto dirigidos pela comadre mas não se contentavam só com o pranto e no meio soltavam muitas exclamações todas em honra do defunto Sempre foi muito bom vizinho nunca tive escândalos dele dizia uma Era aquela a vizinha que augurava mau fim ao Leonardo e com quem o compadre brigara por este motivo umas poucas de vezes Boa alma dizia D Maria boa alma havia de ser como ele quem quisesse ter boa alma Eu que lidei com ele dizia a comadre é que sei o que ele valia era uma alma de santo num corpo de pecador Bom amigo Bom cristão E nisto gastaram boas duas horas e talvez fossem adiante se não fosse mister cuidarse nos arranjos do enterro Despediramse algumas pessoas outras ficaram ainda Foi serenando o pranto e daí a pouco D Maria enxugando ainda os olhos explicava detalhadamente a uma outra senhora que se achava junto dela a história genealógica de cada uma das suas crias que se achavam presentes Finalmente retiraramse todos exceto D Maria e a sua gente e a comadre que estava desde que o compadre adoecera tomando conta da casa Aproximouse a noite acenderamse velas junto do defunto fizeramse todos os mais arranjos do costume D Maria e a comadre começaram a conversar porém baixinho Então senhora principiou D Maria este homem não havia morrer assim sem ter feito seu testamento pois ele não havia de querer deixar no mundo o afilhado ao desamparo para os ausentes se gozarem do que a ele lhe custou tanto trabalho Ele a mim respondeu a comadre nunca me falou em semelhante coisa mas enfim como isso são lá negócios de segredo talvez Seria bom procurarse talvez em alguma gaveta por aí se ache é impossível que ele não dispusesse de sua vida bem vezes lhe aconselhei eu semelhante coisa Tem razão D Maria eu acho também que deve haver alguma coisa E foram as duas tratar de procurar o testamento nas gavetas de uma grande cômoda que havia no quarto do defunto Enquanto elas procuravam Luisinha e Leonardo conversavam ou antes cochichavam como se diz vulgarmente O que eles se diziam não posso dizêlo ao leitor porque o não sei sem dúvida a rapariga consolava o rapaz da perda que acabava de sofrer na pessoa do seu amado padrinho Finalmente as duas acharam com efeito um testamento e ficaram com isso muito satisfeitas Voltaram à varanda e surpreenderam os dois no melhor da sua conversa A comadre vendoos sorriuse e D Maria fazendo sem dúvida a respeito do que estavam eles falando o mesmo juízo que nós disse enternecida Ela tem muito bom coração E o dele não é pior respondeu a comadre e acrescentou com intenção estava um bom casal Oh senhora disse D Maria com ingenuidade deixe a menina que ainda é muito cedo para cuidar nisso Também não digo já mas a seu tempo D Maria sorriuse com um sorriso de que a comadre não desgostou Mudaram de conversa Passouse a noite no outro dia saiu o enterro com todas as formalidades do estilo Depois disso tratouse de resolver uma importante questão para a companhia de quem iria o Leonardo A abertura do testamento feita nesse mesmo dia resolveu a questão O compadre havia instituído a Leonardo por seu universal herdeiro A comadre informou de semelhante coisa ao Leonardopataca e este apresentouse para tomar conta de seu filho Não pareceu o rapaz muito satisfeito com a graça não sei como veiolhe à idéia aquele terrível pontapé que o fizera fugir de casa além disso raríssimas vezes vira depois disso a seu pai e estava completamente desacostumado dele Não havia porém outro remédio foi preciso obedecer e acompanhálo para casa onde encontrou sua pequena irmã e quem a pusera no mundo O Leonardopataca começou a cuidar no testamento como homem entendido na matéria e em pouco tempo deu volta a tudo aquilo Cumpre notar que se em vida do compadre corriam boatos que pareciam exagerados a respeito do que ele possuía quando morreu pôde verse que esses boatos tinham ainda ficado muito aquém da verdade pois deixara ele um bom par de mil cruzados em espécie Entregues alguns legados de pouca monta como fossem um crucifixo à comadre um oratório a D Maria e uma caixa de prata para rapé a um velho amigo do compadre 142 etc tudo o mais veio a cair nas mãos do Leonardopataca como herança de seu filho Nos primeiros dias tudo foram flores por casa de Leonardo pataca se bem que para falar a verdade desde a primeira vista não simpatizara muito o moço Leonardo com a cara do objeto dos novos e últimos cuidados de seu pai A comadre assentou que devia substituir ao compadre no amor pelo afilhado e determinouse a vir morar com ele em casa do pai assim ficava também reunida à sua filha e à sua neta O Leonardopataca que era condescendente esteve pelo caso e reuniuse desse modo a família toda Tudo foram flores a princípio como dissemos o moço Leonardo e a comadre continuaram as suas visitas por casa de D Maria e em abono da verdade o rapaz e a rapariga iam pondo as mangas de fora verdade seja que José Manuel trabalhava ajudado do seu cego mestredereza e não perdia também as esperanças Pouco tempo porém durou o sossego em casa de Leonardo pataca Mariquinhas tal era o nome da filha da comadre amante do Leonardopataca143 começou a embirrar com o seu filho adotivo este que como dissemos não simpatizara muito com ela não esteve pelos autos e começou uma balbúrdia de todos os pecados Todos os dias pegavam por qualquer ponta e lá ia tudo pelos ares O Leonardopataca e a comadre faziam o papel de conciliadores mas os dois eram ambos altanadíssimos e muitas vezes o conciliador saía mal servido porque aquele a quem não dava razão se revoltava contra ele Se era por exemplo a comadre e dava razão a Leonardo acudia a filha queixandose de que sua mãe a abandonava para tomar o partido do afilhado se pelo contrário dava razão a Mariquinhas acudia o Leonardo queixandose de que desgraçado era o filho sem mãe pois nunca achava quem lhe desse razão Outro tanto acontecia ao Leonardopataca quando se metia a apaziguar os dois Os negócios assim iam mal pois mais dia menos dia haveria grande barulho em casa capítulo xxix Pior transtorno Um dia o moço Leonardo recolherase para casa muitíssimo zangado de sua vida pois que tendo ido visitar D Maria estivera com ela longo tempo sem que Luisinha lhe tivesse aparecido de maneira que lhe fora forçoso no fim de algumas horas retirarse sem vêla Quem já teve um namoro por menos sério que seja e que levou um logro destes quem se viu obrigado a aturar por muito tempo a conversação de uma velha tendo de concordar com ela em tudo e por tudo para não incorrerlhe no desagrado só com o fim de muitas vezes trocar com alguém um olhar rápido um sorriso disfarçado ou outra coisa assim e que por fim de contas nem isso mesmo conseguiu há de concordar que o Leonardo tinha toda a razão nesse dia de vir para casa vendendo azeite às canadas144 e o desculparia de qualquer mau modo ou arrebatamento que se lhe notasse Há espíritos porém de tal maneira serrazinas que se divertem em aumentar a irritação alheia e que quanto mais enfiado pilham um infeliz tanto mais gostam de atirarlhe alfinetadas e até de preferência escolheu essas ocasiões para isso Mariquinhas a amante do Leonardopataca era de um gênio assim e depois que moravam todos juntos não perdia além das outras uma só ocasião dessas em virtude da antipatia que tinha ao rapaz para fustigar de língua ao pobre Leonardo Este de um gênio colérico e pouco acostumado a ser contrariado ia às nuvens com semelhante coisa e se em ocasiões ordinárias em que estava de bom humor não aturava e havia constantes brigas como dissemos calculese o que não faria nas ocasiões em que estivesse lá azeitado e então por que motivo No dia a que nos referimos vendoo Mariquinhas entrar pela porta adentro de cara amarrada e sem dar Deus te salve a ninguém sorriu se logo com malignidade e concertou a garganta dizendo entre dentes Melhor cara traga o dia de amanhã Leonardo que percebera o que aquilo queria dizer fez um gesto arrebatado sentandose em uma cadeira porém com tanta infelicidade que atirou ao chão uma almofada de renda que se achava junto dele com a queda rebentaramse os fios e uma porção de bilros rolou pela casa Por maior infelicidade ainda a almofada era de Mariquinhas e Mariquinhas tinha grandes ciúmes pela sua almofada Vejam que belo pretexto Levantouse ela do seu lugar já fervendo de raiva pôs as mãos na cadeira e balançando a cabeça à medida que falava exclamou Ora dáse um desaforo de tamanha grandeza vir da rua lá com os seus burros145 todo esfogueteado e de propósito e muito de propósito vir fazerme o que estão vendo só para me desfeitear como se fosse aqui um dono de casa que pudesse desfeitear a qualquer sem quê nem para quê Leonardo ouviu tudo sem interromper procurando sofrear a raiva e enquanto Mariquinhas tomava fôlego respondeu com voz trêmula e entrecortada Senhora não se meta com a minha vida porque eu também não me importo com a sua se estou com os burros Ah bom côvado e meio Atalhou Mariquinhas ah bordo da nau ah major Vidigal Já lhe disse Qual já lhe disse nem meio já lhe disse diabo do namorado sem ventura Estas últimas palavras fizeram o efeito de uma faísca em um barril de pólvora Avançou o Leonardo para Mariquinhas com os punhos cerrados e espumando de raiva Se me diz mais meia palavra percolhe o respeito eu nunca lhe dei confianças e apesar de ser a senhora lá o quer que é de meu pai perco lhe o respeito Você sempre mostra que tem raça de ilhéu disse Mariquinhas empertigandose e sem recuar um passo O Leonardopataca que estava no interior da casa acudiu apressado ao barulho e veio achar os dois ainda em atitude hostil e vendo o filho quase não quase a desfeitear o adorado objeto de seus últimos afetos não trepidou em desbaratar com ele Pedaço de mariola pensas tu que isto aqui é como lá a casa de teu padrinho donde saíste quero aqui muito respeito a todos ao contrário se já uma vez te dei um pontapé que te fiz andar muitos anos por fora dou te agora outro que te ponha longe daqui para sempre Nunca pensei interrompeu Mariquinhas dirigindose ao Leonardo pataca querendo afear mais o caso nunca pensei que na sua companhia eu viesse a sofrer semelhante coisa Não faças caso menina isto é um pedaço de um mariola a quem hei de ensinar por causa de ninguém doulhe eu uma rodada se não por tua causa Por causa dela atalhou o rapaz tinha que ver Ela há de lhe dar bom pago tão bom como lhe deu a cigana Mas nunca lhe hei de dar acudiu Mariquinhas enfurecida com este insulto nunca lhe hei de dar o que lhe deu tua mãe Com estas últimas palavras o Leonardopataca desacoroçoou completamente que dilúvio de amargas recordações não fizeram tão poucas palavras cair sobre sua cabeça Espera saltrapilho146 espera que te ensino exclamou vermelho de cólera espera que te ensino E entrando repentinamente no quarto da sala saiu de lá armado com o espadim do uniforme e investiu para o filho Convém dizer que o espadim ia embainhado Não se ponha a perder por minha causa exclamou Mariquinhas agarrandoo pelas abas de um rodaque de chita que ele trazia vestido Era inútil porém esse medo de Mariquinhas porque o rapaz vendo que o negócio iase tornando feio tendolhe ficado um terror instintivo do pai depois daquele pontapé que nunca mais lhe saíra da memória tinhase posto ao fresco na rua fechando a rótula sobre si Ah maroto disse ainda o Leonardopataca que te havia desancar O Leonardo que fugia por um lado e a comadre que entrava por outro pois estivera ausente durante toda a cena Apenas foi largando a mantilha e que viu os dois atores que tinham ficado em cena ainda nas posições do último quadro tratou logo de indagar qual fora o drama que se acabava de representar Ora foi uma das costumadas do afilhado dos seus amores respondeu Mariquinhas ainda não sossegada Porém ialhe saindo cara desta vez acudiu Leonardopataca Pois deveras atalhou a comadre indignada pois deveras o compadre estava armado de espada para dar no rapaz Olá que levava tão duro como osso Mas então por quê quantas mortes fez ele de uma vez onde é que pôs fogo na casa Triste coisa é um filho sem mãe Aposto que se eu cá estivesse nada havia de suceder Sim respondeu Mariquinhas porque logo havia de tomar as dores por ele segundo é seu costume Aí está muitos filhos têm mãe e entretanto elas servemlhes para isto tomam as dores por outros e deixamnos de banda Qual histórias é que tudo leva seu bocado de mau caminho Oh senhora atalhou Leonardopataca se isto vai assim não há um momento de sossego nesta casa acabada uma começa outra o que não há de dizer esta vizinhança Olhem que isto aqui é casa de um oficial de justiça Mas enfim disse a comadre onde está o rapaz onde é que o enterraram Saiu por ali desencabrestado e tomara que cá não volte Ora está bonito Oh mas isto não pode ser assim correrem com o rapaz de casa para fora Ele não é nenhum desgraçado pois sempre tem o que lhe deixou seu padrinho Essas e outras é que o puseram a perder Sim metamlhe fumaça de rico na cabeça e hão de ver no que dá Coitado disse lamentando a comadre aquele nasceu com má sina E tomando de novo a mantilha saiu com as lágrimas nos olhos em procura de Leonardo Ao sair escoravamna à janela três ou quatro vizinhas Então o que é que fizeram ao moço Que foi isso senhora comadre Ele passou por aqui pondo 10 léguas por hora Deixeme deixeme respondeu a comadre que isto é os meus pecados capítulo xxx Remédio aos males O pobre rapaz saíra como dissemos pela porta fora e caminhando apressadamente olhava de vez em quando para trás pois lhe parecia ver ainda enristado contra ele o espadim com que o ameaçara seu pai que parecia com ele querer acabar a obra que com um pontapé começara Andou a bom andar por largo tempo e foi dar consigo lá para as bandas dos Cajueiros cansado ofegante sentouse sobre uma pedra e quem o visse com ar tristonho e pensativo julgaria talvez que ele cismava na sua posição e no caminho que havia tomar Pois enganavase redondamente quem tal julgasse ele pensava em coisa muito mais agradável pensava em Luisinha verdade seja que pensando nela não podia absterse de ver surgir diante dos olhos o terrível José Manuel e isto explicava certos movimentos de impaciência que de vez em quando se lhe podiam observar Tinha gasto largo tempo nesta meditação quando foi repentinamente acordado por umas poucas de gargalhadas partidas detrás de umas moitas vizinhas Estremeceu da cabeça aos pés pareceulhe que lhe tinham lido os pensamentos que lhe passavam pela mente e que se riam dele Voltouse nada viu guiado por um rumor que ouvia começou a procurar e sem grande trabalho viu atrás de umas moitas um pouco altas uns poucos de rapazes e raparigas que assentados em uma esteira entre os restos de um jantar debruçavamse curiosos sobre dois parceiros que com um baralho de cartas amarrotado e sujo desencabeçavam uma intrincada partida de bisca As gargalhadas que ouvira há pouco tinham sido a conseqüência de um capote que um deles acabava de levar À vista daqueles restos de um jantar que se não parecia ter sido muito delicado parecia ao menos ter sido abundante fezlhe lembrar que saíra de casa na ocasião de pôrse a mesa e o estômago deulhe então umas formidáveis badaladas Quis entretanto voltar porque não se queria meter em festa alheia quando levantando um dos jogadores a cabeça conheceu nele um seu antigo camarada o menino que fora com ele sacristão da Sé Ainda que apesar disso se quisesse retirar já era tarde porque com o movimento que fizera o jogador dando com ele o havia também conhecido Olá Leonardo por que cargadágua vieste parar a estas alturas Pensei que te tinha já o diabo lambido os ossos pois depois daquele maldito dia em que nos vimos em pancas por causa do mestre de cerimônias nunca mais te pus a vista em cima Leonardo chegouse ao rancho e trocados os cumprimentos com o seu antigo camarada foi convidado a servirse de alguma coisa do que ainda havia Quis fazer cerimônia mas não estava em circunstâncias disso uma das moças serviuo e enquanto continuava a bisca comeu ele a barrete fora Escorropicha essa garrafa que aí resta disselhe o amigo e vê se o vinho tem o mesmo gosto daquele que em outro tempo escorropichávamos juntos das galhetas da Sé com desespero de meu pai e furor do mestre de cerimônias Quando Leonardo acabou de comer acabaram também os dois parceiros de jogar e então Leonardo chamou o amigo à parte e perguntou lhe Então que gente é esta com que te achas aqui de súcia É minha gente Tua gente Sim pois não vês aquela moça morena que ali está Sim e então Ora Pois tu casaste Não mas que tem isso Ah estás de moça E tu Eu ora nem te digo morreu meu padrinho Sim ouvi dizer Fui para a casa de meu pai e de repente hoje mesmo brigo lá com a cuja dele ele corre de espada atrás de mim e eu safome Parei ali adiante e as gargalhadas que vocês aqui davam Sei do resto E agora tu não tens para onde ir Homem eu ia ver Ver o quê Ver por aí Por aí onde Nem mesmo eu sei E desataram os dois a rir Quando temos apenas 18 a 20 anos sobre os ombros o que é um peso ainda muito leve desprezamos o passado rimo nos do presente e entregamonos descuidados a essa confiança cega no dia de amanhã que é o melhor apanágio da mocidade Sabes que mais continuou o amigo do Leonardo vem conosco e não te hás de arrepender Mas com vocês para onde Para onde Sem dúvida algum partido melhor queres escolher queres fazer cerimônias Começava a cair a noite Vamos levantar a súcia minha gente disse um dos convivas Sim vamos Nada inda não Vidinha vai cantar uma modinha primeiro Sim sim uma modinha primeiro aquela Se os meus suspiros pudessem Não essa não cante antes aquela Quando as glórias que eu gozei Vamos lá decidam respondeu Vidinha147 Vidinha era uma mulatinha de 18 a 20 anos de altura regular ombros largos peito levantado cintura fina e pés pequeninos tinha os olhos muito pretos e muito vivos os beiços148 grossos e úmidos os dentes alvíssimos tinha a fala um pouco descansada e acompanhava cada frase que proferia com uma risada pouco estridente porém prolongada e sonora e com um certo caído de cabeça para trás talvez gracioso se não tivesse muito de afetado Assentouse finalmente que ela cantaria a modinha Se os meus suspiros pudessem Tomou Vidinha uma viola e cantou acompanhandose em uma toada insípida hoje porém de grande aceitação naquele tempo o seguinte Se os meus suspiros pudessem Aos teus ouvidos chegar Verias que uma paixão Tem poder de assassinar Não são do zelo Os meus queixumes Nem do ciúme Abrasador São das saudades Que me atormentam Na dura ausência De meu amor O Leonardo que talvez hereditariamente tinha queda para aquelas coisas ouviu boquiaberto a modinha e tal impressão lhe causou que depois disso nunca mais tirou os olhos de cima da cantora A modinha foi aplaudida como cumpria Levantaramse então arrumaram tudo o que tinham levado em cestos e puseramse a caminho acompanhando o Leonardo o farrancho149 Chegaram todos depois de longo caminhar e quando já brilhava nos céus um desses luares magníficos que fazem no Rio de Janeiro a uma casa da rua da Vala naqueles tempos uma noite de luar era uma coisa muito aproveitada se bem que não fosse muito rara ninguém ficava dentro de casa os que não saíam a passeio sentavamse em esteiras às portas e ali passavam longas horas em descantes em ceias em conversas e muitos passavam mesmo aí a noite inteira dormindo ao relento Quanto a medo de quer que fosse contra a segurança individual não o tinham pois descansavam tranqüilos na atividade do major Vidigal e quanto a cuidados sanitários e higiênicos isso é invenção moderna das juntas e câmaras que faria dar boas risadas de incredulidade e talvez de escárnio até ao próprio físicomor se aparecesse então Nem mesmo as zamparinas tinham sido capazes despertar semelhantes idéias150 Como os nossos conhecidos já tinham dado um grande passeio adotaram o expediente das esteiras à porta e continuaram assim pela noite em diante a súcia em que haviam gasto o dia pois aquilo que Leonardo vira nos Cajueiros com que também tomara parte era o final de uma patuscada que havia começado ao amanhecer de uma dessas romarias consagradas ao prazer que eram tão comuns e tão estimadas naquele tempo Agora devemos dar ao leitor conhecimento da nova gente no meio da qual se acha o nosso Leonardo Se nos pudéssemos socorrer aqui do amigo José Manuel sem dúvida nos desfolharia ele toda a árvore genealógica dessa família pois o era a quem o amigo do Leonardo chamava a sua gente porém contentemse os leitores com o fato sem indagar as origens Saibam pois que a família era composta de duas irmãs ambas viúvas ou que pelo menos diziam sêlo uma com três filhas e outra com três filhos 151 uma mais velha e outra mais moça passando porém qualquer das duas dos seus quarenta e tantos ambas gordas e excessivamente parecidas Os três filhos da primeira eram três formidáveis rapagões de 20 anos para cima empregados todos no Trem as três filhas da segunda eram três raparigas desempenadas orçando pela mesma idade dos primos e bonitas cada uma no seu gênero uma delas já os leitores conhecem pois é Vidinha a cantora de modinha que era solteira como uma de suas irmãs a última era também solteira porém não como estas duas O amigo do Leonardo que explique o que isso quer dizer e explicando dará também a conhecer o que era ele próprio na família Os mais que se achavam presentes eram amigos pela maior parte vizinhos que se reuniam para aquelas súcias que eram tradicionais na família Quando chegaram à casa o amigo do Leonardo tomou as duas velhas de parte e começou a conversar com elas sem dúvida a respeito do Leonardo pois que olhavam todos três de vez em quando para ele e mesmo quem tivesse o ouvido atilado teria escutado as velhas dizerem Coitado do moço Ora vejam que pai de más entranhas A outro qualquer que tivesse mais idade ou antes falando claro mais juízo e outra educação envergonharseia talvez muito de acharse na posição em que se achava o Leonardo porém ele nem nisso pensava e o que é mais nem mais pensava naquilo que até então lhe não saía da cabeça isto é Luisinha de um lado e José Manuel do outro agora não via senão os olhos negros e brilhantes e os alvos dentes de Vidinha não ouvia senão o eco daquela terna modinha e não pensava mais senão em quem tinha olhos tão lindos e tão lindos dentes e cantava tão bem modinhas Estava pois embebido num êxtase contemplativo No mais pensaria quando lhe restasse tempo Mal se haviam todos sentado em uma larga esteira junto à soleira da porta sobre a calçada o Leonardo propôs logo que se cantasse uma modinha Qual respondeu Vidinha acompanhando este qual da sua costumada risada estou já tão cansada que nem posso Ora ora disseram umas poucas de vozes Além do costume das risadas tinha Vidinha um outro costume e era o de começar sempre tudo que tinha a dizer por um qual muito acentuado respondeu ainda portanto Qual pois se eu também já cantei tudo quanto sei Qual meu Deus nem eu posso mais Ainda não cantou a minha favorita disse um dos presentes Nem a minha disse outro Eu também acrescentou outro ainda não lhe pedi aquela cá do peito Qual meu Deus onde é que isto vai parar Ora mana não se faça de boa Ai criatura disse uma das velhas quereis que vos reze um responso para cantardes uma modinha Leonardo vendo a sua causa advogada por tantas vozes conservouse calado Tentados mais alguns meios e feitas mais algumas negaças Vidinha decidiuse a cantar e tomando a viola cantou segundo a indicação de uma das velhas o seguinte Duros ferros me prenderam No momento de te ver Agora quero quebrálos É tarde não pode ser Este último passo acabou de desorientar completamente o Leonardo ainda bem não tinham expirado as últimas notas do canto e já passando lhe rápido pela mente um turbilhão de idéias admiravase ele de como é que havia podido inclinarse por um só instante a Luisinha menina sensaborona e esquisita quando haviam no mundo mulheres como Vidinha Decididamente estava apaixonado por esta última O leitor não se deve admirar disto pois não temos cessado de repetir lhe que o Leonardo herdara de seu pai aquela grande cópia de amoroso fluido que era a sua principal característica Com esta herança parece porém que tinha ele tido também uma outra e era a de lhe sobrevir sempre uma contrariedade em casos semelhantes José Manuel fora o primeiro vejamos agora quem era ou antes quem eram a segunda Se o leitor pensou no que há pouco dissemos que naquela família haviam três primas e três primos e se agora acrescentarmos que moravam todos juntos deve ter cismado alguma coisa a respeito Três primos e três primas morando na mesma casa todos moços não há nada mais natural um primo para cada prima e está tudo arranjado Cumpre porém ainda observar que o amigo do Leonardo tomara conta de uma das primas e que deste modo vinha a haver três primos para duas primas isto é o excesso de um primo À vista disto o negócio já se torna mais complicado Pois para encurtar razão saibase que haviam dois primos pretendentes a uma só prima e essa era Vidinha a mais bonita de todas saibase mais que um era atendido e outro desprezado logo o amigo Leonardo terá desta vez de lutar com duas contrariedades em vez de uma Mas por ora de nada sabia ele e entregavase tranqüilo às suas emoções sem se lembrar do que qualquer se lembraria que entre primos e primas há assim um certo direito mútuo em negócio de amor que muito prejudica a qualquer pretendente externo Gastaram grande parte da noite ali sentados e trataram de recolherse já muito tarde O amigo do Leonardo a quem daqui em diante trataremos pelo seu próprio nome de Tomás com o apelido da Sé ambos herdados de seu pai declarou que o seu amigo ficava ali por aquela noite por já ser muito tarde quis assim pouparlhe um vexame e mostrou nisto ser bom amigo Agora que o nosso Leonardo está instalado em quartel seguro vamos ocuparnos de mais alguma coisa de importante que havíamos deixado suspensa capítulo xxxi José Manuel triunfa A comadre correra toda a cidade e em parte alguma encontrara o Leonardo enquanto cansavase assim a procurálo estava ele em porto seguro e descansado mirandose nos olhos de Vidinha regalandose a ouvir modinhas como sabem os leitores sem se lembrar do que ia pelo mundo A pobre mulher depois de muito cansada foi ter à casa de D Maria e quando já era noite fechada Quando ela entrava saía o mestredereza que acabava de dar a sua lição às crias de casa A comadre a152 algum tempo que andava já desconfiada do mestredereza combinando o que por aí se dizia do crédito dele com certas coisas que tivera ocasião de presenciar estava quase não quase a concluir que era ele emissário de José Manuel junto à corte de D Maria Não gostou portanto do encontro e doeulhe o cabelo vêlo sair àquela hora pois que de ordinário as lições não se demoravam até tão tarde e para metêlo à bulha disselhe A lição hoje foi comprida devoto as raparigas parece que gostam mais da lambetice do que da reza Não respondeu o velho com sua voz fanhosa elas não vão mal empacam em alguns lugares mas sempre vão indo bem sabe também que sempre trago comigo o santo remédio E afagou o cabo da palmatória com que sempre andava armado Ah então esteve o devoto de conversa gosta também de dar à língua Não desgosto mas também não digo senão aquilo que sei isto é aquilo que ouço os outros gastam o seu tempo a ver e a ouvir eu como não posso senão ouvir emprego a falar o que os mais empregam a ver falo e falo muito mas que quer se me sobra tempo para isso e demais bem sabe que não é trabalho que canse Meus pais eram Algarves e eu não quero desmentir a minha paternidade Então já sei que hoje desenterraramse mortos e enterramse vivos pois eu não posso fazer outro tanto porque vou aqui muito e muito renegada de minha vida Se o devoto como é homem que muito gira por toda esta cidade souber por aí notícias de meu afilhado Leonardo queira vir darme parte pois saiunos ele hoje de casa lá por causa de umas histórias em que tinha razões é verdade e não sei por onde andará dando com os ossos Ora isto fica por minha conta não há nada mais fácil do que dar com ele E aqui terminou esta conversa que tinha lugar na porta da rua e com a qual não ficara a comadre muito contente D Maria que ouvira tudo veio ao encontro da comadre e foilhe logo dizendo antes de darlhe tempo de tirar a mantilha Então já o rapaz não está em casa Senhora aquilo é gênio nasceu com ele e com ele há de ir à sepultura Bem me diziam o que ele era e apesar do seu ar sonso nunca lhe fiz fé Adeus que me está a senhora a pôr culpas em quem não as tem o menino desta vez tem toda a razão Ora histórias da vida isso diz você porque o estima como se fosse sua mãe mas vá com esta que eu lhe digo os rapazes de agora andam de cabeça levantada mas o defunto padrinho Deus lhe fale nalma foi o mesmo que teve culpa de tudo isso com aquelas fumaças de Coimbra que lhe meteu na cabeça Mas senhora de Deus se o bruto do pai até chegou a corrêlo de espada na mão Que tal não faria ele mas que tinha isso o pai não o havia esquartejar por certo que eu bem lhe conheço o gênio aquilo era raiva e havia de passar devia ele sujeitarse pois sempre é seu pai Com a Virgem Santa pois se tudo isso foi por uma coisa de nada por causa de uma almofada de renda Isto é coisa em que se creia E agora para onde é que há de ir aquele coitado Há de estar por aí metido em algum fado de ciganos não se lembra do que ele fez quando o padrinho era vivo Ora criançadas para que falar nisso Este diálogo ia continuando interminável sobre o mesmo assunto quando D Maria mudando repentinamente de conversa disse à comadre Ora é verdade sentese para cá que temos contas que ajustar Contas E muito compridas Começo por dizer acrescentou D Maria que não parecia estar nesta ocasião de muito bom humor começo por dizerlhe mesmo na bochecha que quando for à confissão este ano trate de desobrigarse de um grande pecado que cometeu E eu que já não tenho poucos mas então o que é É um aleive senhora um aleive muito grande que levantou a pessoa que tal não merecia A comadre não precisou de mais nada para conhecer onde é que tudo aquilo ia parar o aleive mais moderno de que a acusava a sua consciência bem sabia ela qual era Começou a ver tudo claro como o dia viu José Manuel justificado completamente aos olhos de D Maria a respeito da história do roubo da moça no Oratório de Pedra e viu também como medianeiro dessa justificação o cego mestredereza Ficou pois visivelmente incomodada volviase de um para outro lado como se estivesse cheia de espinhos a banquinha em que estava sentada e teve um forte acesso de tosse quando D Maria acabou de pronunciar aquelas últimas palavras Tudo quanto me disse a respeito de José Manuel naquela história do roubo da moça continuou D Maria fazendose vermelha o que era nela mau sinal é falso e muito falso Sei isto de parte muito certa Novo acesso de tosse acometeu a comadre Pois olhe prosseguiu D Maria tinhalhe eu dado todo o crédito tanto que havia rompido por um excesso com o pobre do homem mas não caio noutra esta me serviu de emenda A comadre viu que o vento se lhe ia tornando absolutamente contrário compreendeu que D Maria estava muito bem informada e que inútil seria qualquer sustentação que pretendesse fazer de tudo quanto havia avançado isso só serviria para agravarlhe a posição Forjou pois repentinamente um novo plano e disse Não me dá nada de novo senhora sei muito bem de tudo o homem está nesse negócio como Pilatos no Credo Mas lembrese que me havia dito que tinha visto com seus próprios olhos Ah senhora era o diabo por ele nunca vi coisa assim tão parecida Outro dia porém soube de tudo e agora estou arrependida A comadre não sabia de coisa alguma o que queria era apanhar de D Maria o que havia chegado ao seu conhecimento Mandei por isso chamar o pobre homem continuou D Maria que de ofendido que estava com o modo por que eu o tratava custou muito a vir e abrime aqui com ele E uma coisa lhe digo é que a comadre não está bem no negócio ele expôsme certas coisas a que eu enfim não quis dar crédito Pois então a senhora disselhe que eu é que Não fui eu quem lhe disse ele já o sabia e não era possível negar lho Foi então que ele me quis abrir os olhos sobre certas coisas A comadre que via todo o caldo entornado naqueles certas coisas tratava de desviar deles a conversação fazendo que não dera atenção a essas últimas palavras Mas então perguntou por quem foi que soube como tinha sido o negócio quero ver se combina cá com o que sei Ainda há pouco acabou de sair daqui quem me pôs o negócio todo em pratos limpos Ah disse a comadre E mordeu os beiços fazendo um gesto que queria dizer nunca me enganei D Maria prosseguiu contando que tendo falado em semelhante negócio ao mestredereza ele lhe havia negado tudo quanto ela lhe dissera a respeito de José Manuel que muito tempo lutara com o velho para que ele lhe dissesse o que sabia a respeito e em que fundava a denegação que fazia que finalmente depois de grande resistência tinhalhe ele trazido à casa mesmo no dia antecedente o pai da moça que tudo confessara declarando até o nome da pessoa com quem se achava sua filha que ele já sabia e com quem tinha feito as pazes É exatamente o que eu sabia disse a comadre no fim da narração foi tudo assim mesmo Veja senhora a que está sujeita a gente nesta vida a levantar falsos aos mais Agora informemos ao leitor que tudo que se acabava de passar tinha sido com efeito obra do mestredereza Pouco a pouco se tinha instruído do que se passava em casa de D Maria a respeito do seu cliente José Manuel tinha conseguido saber quem tinha armado a intriga indagou também o que se passava em casa do Leonardopataca e como lá se falava um pouco alto a respeito das pretensões do Leonardo combinando umas coisas com outras chegara à conclusão certíssima daquilo que com efeito se passara D Maria pareceu dar crédito ao arrependimento da comadre e começouselhe a aplacar o humor um pouco desabrido em que se achava Voltaram à questão da saída do Leonardo de casa e desta vez já D Maria não se mostrou tão inflexível para com o rapaz Entretanto à comadre não lhe saíram da cabeça aquelas palavras de D Maria abriume os olhos sobre certas coisas e depois que viu D Maria mais apaziguada tentou chamar de novo a conversa para esse ponto e como que pedir explicações Ela previa a significação daquelas palavras sem dúvida nenhuma que se referiam às suas pretensões ou às de seu afilhado sobre Luisinha porém queria saber as cores com que esse negócio tinha sido pintado a D Maria por José Manuel Isso foilhe porém fatal porque soube o que lhe não foi nada agradável que o negócio estava muito mal parado a respeito do seu afilhado e pelo contrário muito adiantado a favor do seu adversário D Maria depois de declarar que José Manuel se tinha queixado da comadre atribuindolhe tudo que se havia passado que não era mais do que uma intriga urdida com o fim de o apartar de sua casa porque tinham sobre ele caído suspeitas que confessava justas acrescentou finalmente que José Manuel completamente justificado graças à intervenção do mestredereza acabara por lhe dar a entender alguma coisa a respeito de Luisinha o que D Maria confessou não lhe ter sido totalmente desagradável porque enfim segundo alegava José Manuel era um homem sisudo e de juízo tinha corrido mundo e não era nenhum criançola esta palavra doeu à comadre que não fosse capaz de tratar bem de uma moça A comadre descoroçoou completamente com estas últimas declarações porém o que fazer na ocasião Ela mesma tinha ainda há pouco confessado o risco que se está a cada momento de se ser injusto para com o próximo e não podia sem risco aventurar pelo menos naquela ocasião alguma coisa contra José Manuel tanto mais que tão mal se havia salvado da primeira intriga que armara Contentouse pois com repetir uma observação que D Maria mesmo lhe havia feito há pouco tempo e disse referindose a Luisinha Gente pois aquela criança já está para essas coisas Sim respondeu D Maria está ainda verdezinha mas também isso não é sangria desatada A comadre respirou pois viu que ainda havia tempo a ganhar capítulo xxxii O agregado Passaramse assim algumas semanas Leonardo depois de acabadas todas as cerimônias foi declarado agregado à casa de Tomás da Sé e aí continuou convenientemente arranjado Ninguém se admire da facilidade com que se faziam semelhantes coisas no tempo em que se passavam os fatos que vamos narrando nada havia mais comum do que ter cada casa um dois e às vezes mais agregados Em certas casas os agregados eram muito úteis porque a família tirava grande proveito de seus serviços e já tivemos ocasião de dar exemplo disso quando contamos a história do finado padrinho de Leonardo outras vezes porém e estas eram em maior número o agregado refinado vadio era uma verdadeira parasita que se prendia à árvore familiar que lhe participava da seiva sem ajudála a dar os frutos e o que é mais ainda chegava mesmo a dar cabo dela E o caso é que apesar de tudo se na primeira hipótese o esmagavam com o peso de mil exigências se lhe batiam a cada passo com os favores na cara se o filho mais velho da casa por exemplo o tomava por seu divertimento e à menor e mais justa queixa saltavamlhe os pais em cima tomando o partido de seu filho no segundo aturavam quanto desconcerto havia com paciência de mártir o agregado tornavase quase rei em casa punha dispunha castigava os escravos ralhava com os filhos intervinha enfim nos mais particulares negócios Em qual dos dois casos estava ou viria estar em breve o nosso amigo Leonardo O leitor que o decida pelo que se vai passar Principiemos por declarar que as duas velhas irmãs tinham concebido desde o primeiro momento uma decidida simpatia por ele e era esse o único ponto por onde o podemos julgar um pouco feliz se a cada passo encontrava contrariedades e antipatias também lhe não faltavam por contrabalanço simpatias e favores Isto já era meio caminho andado para qualquer projeto que ele formasse qualquer intenção que tivesse ou desejo que se lhe despertasse Mas notese que para não falhar a lei das compensações que pesava constantemente sobre ele logo o projeto a intenção e desejo que teve sucedeu ser a respeito de uma coisa que já tinha despertado igual projeto intenção e desejo em duas outras pessoas o que equivale a dizerse como já o fizemos que tinha ele de lutar com duas dificuldades Vidinha era uma rapariga que tinha tanto de bonita como de movediça e leve um soprozinho por brando que fosse a fazia voar outro de igual natureza a fazia revoar e voava e revoava na direção de quantos sopros por ela passassem isto quer dizer em linguagem chã e despida dos trejeitos da retórica que ela era uma formidável namoradeira como hoje se diz para não dizer lambeta como se dizia naquele tempo Portanto não foram de modo algum mal recebidas as primeiras finezas do Leonardo que desta vez se tornou muito mais desembaraçado quer porque já o negócio com Luisinha o tivesse desasnado quer porque agora fosse a paixão mais forte embora esta última hipótese vá de encontro à opinião dos ultraromânticos que põem todos os bofes pela boca pelo tal primeiro amor no exemplo que nos dá o Leonardo aprendam o quanto ele tem de duradouro Se um dos primos de Vidinha que dissemos ser o atendido naquela ocasião teve motivo para levantarse contra o Leonardo como seu rival o outro primo que dissemos ser o desatendido teve dobrada razão para isso porque além do irmão apresentavase o Leonardo como segundo concorrente e o furor de quem se defende contra dois é ou deve ser sem dúvida muito maior do que o de quem se defende contra um Declarouse portanto desde que começaram a aparecer os sintomas do quer que fosse entre Vidinha e o nosso hóspede guerra de dois contra um ou de um contra dois A princípio foi ela surda e muda era guerra de olhares de gestos de desfeitas de más caras de maus modos de uns para com os outros depois seguindo o adiantamento do Leonardo passou a ditérios a chasques a remoques Um dia finalmente desandou em descompostura cerrada em ameaças do tamanho da torre de Babel e foi causa disto ter um dos primos pilhado o feliz Leonardo em flagrante gozo de uma primícia amorosa um abraço que no quintal trocava ele com Vidinha Aí está minha tia dissera enfurecido o rapaz dirigindose à mãe de Vidinha aí está o lucro que se tira de meterse para dentro de casa um par de pernas que não pertence à família Onde é onde é que está pegando fogo disse a velha em tom de escárnio supondo ser alguma asneira do rapaz que era em tudo muito exagerado Fogo replicou este se ali pegar fogo não haverá água que o apague e olhe o que lhe digo se não está pegando fogo estáse ajuntando lenha para isso Vidinha que vinha chegando nessa ocasião tomou a palavra e falou durante meia hora sem interrupção soltando contra os dois primos pois que o outro já tinha também intervindo uma tremenda catilinária em que a palavra qual foi repetida enorme número de vezes Leonardo teve também de defenderse e falou pelos cotovelos As duas velhas acompanharam os quatro seguidas das outras duas moças que metiam também de vez em quando a sua colherada Seria inútil a tentativa de querermos repetir as palavras textuais de cada um dos faladores isso seria coisa pouco mais ou menos semelhante a querer contarse numa tempestade os pingos de chuva que caem Só quem já teve ocasião de assistir pode bem avaliar o que era e talvez ainda é uma dessas brigas no interior de uma família Todos falam a um tempo esforçandose cada um por falar mais alto do que todos os outros ninguém parece atender as desculpas que se apresentam nem as recriminações que se fazem e entretanto de minuto em minuto cada qual tomando mais calor se julga dobradamente ofendido as juras se cruzam as ameaças se chocam não fica no dicionário termozinho de escolha que não saia à frente umas questões trazem outras estas ainda outras recorrese às ofensas passadas presentes e futuras para fazerse carga aos adversários Tudo enfim se diz e nada se consegue a briga dura muitas horas ao termo dos quais os contendores fatigatis sed non saciatis abandonam o campo ficando mais encarniçados uns contra os outros do que o estavam a princípio E se por acaso tocando já em retirada algum ousa ainda soltar uma derradeira imprecação pega de novo a coisa e dura ainda bom pedaço As mais das vezes fica tudo em palavras Desta vez porém não sucedeu assim um dos primos que era esquentadete avançou para o Leonardo depois de lhe ter mandado como batedor uma grande injúria e deulhe dois safanões agarrandoo pela gola da camisa Leonardo que neste mundo só tinha medo do pai reagiu contra o agressor as duas velhas e Vidinha tentando apartálos não faziam mais do que romperlhes a roupa e aumentarlhes a raiva as demais pessoas ocupavamse em bater nas paredes e chamar os vizinhos Lutaram os dois por algum tempo sem que disso resultasse acidente grave para nenhum deles e afinal apartaramse Leonardo apenas se viu livre do seu adversário foi querendo pôrse no andar da rua pesava sobre o infeliz desde criança uma espécie de sina de Judeu Errante As velhas que em todo o barulho tinham tomado o partido dele não consentiram porém nisso alegaram que estavam em sua casa e podiam mandar como quisessem Leonardo insistiu apesar disso e apesar dos rogos de Vidinha porém no momento em que tentava abrir a porta da rua entrou por ela a comadre Ora graças que o encontro senhor doido de pedras O Leonardo recuou dois passos naquele momento assim como lhe aconteceu desde que saiu de casa de seu pai nem lhe passava pela idéia que tivesse no mundo uma madrinha um pai ou qualquer parente que fosse Houve em todos um movimento de admiração e curiosidade pois ninguém na casa conhecia a comadre Tantas coisas havia feito a boa mulher que afinal soubera do ninho a que se acolhera o afilhado e imediatamente para lá se dirigira Tendo entrado e dito aquelas primeiras palavras queria logo depois seguir com uma grande exortação ao sobrinho quando tendo visto as duas velhas assentou que era melhor dirigirse a elas em primeiro lugar Com efeito dirigiuse e entraram as três em conferência capítulo xxxiii Malsinação As três velhas conversaram por largo tempo não porque muitas coisas se tivessem a dizer a respeito do que se acabava de passar porém porque a comadre remontando ao mais remoto passado entendera que para dizer que muito se interessava pela volta do afilhado para casa era mister contar desde sua origem a vida inteira dele a de sua mãe de seu pai e a sua própria que fora mais comprida de todas e porque as duas velhas entenderam que para dizerem que o Leonardo estava ali muito bem e que não consentiriam que ele saísse entenderam ser preciso fazer o que havia feito a comadre contar a sua vida e de toda a família desde as eras primitivas Ora como todas essas histórias contadas de parte a parte eram cheias de episódios já sentimentais e tocantes já alegres aconteceu que entre muita gargalhada correram também algumas lágrimas durante a conversação Não há nada que mais sirva para fazer nascer e firmar a amizade e mesmo a intimidade do que seja o riso e as lágrimas aqueles que se riram e principalmente aqueles que uma vez choraram juntos têm muita facilidade em fazeremse amigos Com efeito no fim da conversa as três velhas estimavamse mutuamente de uma maneira incrível Se esta facilidade de expansão de criação repentina de amizade não fosse acompanhada da grande facilidade153 de rompimentos e das intrigas seria uma das grandes virtudes daquele tempo Porém as simpatias que se criavam em uma hora de conversa transformavamse em ódio num minuto de desavença Enquanto as velhas conversavam os contendores acalmaramse passou a tormenta e se tudo não ficou logo acabado ficou pelo menos esquecido por algum tempo Leonardo achavase já disposto a atender às súplicas de Vidinha e das outras moças que o não queriam por modo algum fora de casa os dois rivais derrotados pareciam resignarse Quando terminou a conferência das três a comadre entendeu que era chegado o momento de começar a pregação ao Leonardo e o fez nestes termos Rapaz dos trezentos demos valhamte os serafins tu tens nessa cabeça pedras em vez de miolos o sol não cobre criatura mais renegada do que tu És um viramundo andas feito um valdevinos sem eira nem beira nem ramo de figueira sem ofício nem benefício sendo pesado a todos nesta vida Se é cá conosco que fala acudiu uma das velhas deixeo estar aonde está que está muito bem Qual senhora pois se vem levantar poeira na casa alheia é um galo de brigas Ora isso é lá coisa entre rapazes e raparigas deixálos que eles se arranjarão redargüiu a velha Ingenuidade infantil das velhas daquele tempo A comadre ia prosseguir porém sendo a cada passo interrompida tomou por seu barato dar a coisa por finda Retirouse ficando convencionado que Leonardo permaneceria onde estava Vidinha ficou contentíssima com semelhante resultado os primos porém fizeram má cara porque tal não esperavam e era isso sobretudo o que os acalmava um pouco Desde porém que viram que tudo ia continuar no mesmo pé renasceulhes o despeito Atiraram algumas indiretas com as quais ia tudo pegando fogo novamente porém contiveramse ainda um deles chamou o outro em particular e começaram também por seu turno a conferenciar porém em segredo Não havia nada mais natural o inimigo era comum juntavamse para atacálo depois que ele fosse derrotado a questão se decidiria então entre os dois Depois desta última conferência serenou tudo definitivamente cada qual recolheuse a seu posto e passaramse muitos dias em santa paz Durante esses dias mais se estreitaram os laços entre o Leonardo e Vidinha É sempre assim que sucede quereis que nos liguemos estreitamente a uma coisa Fazeinos sofrer por ela Os dois tinham sofrido um pelo outro e era isto uma forte razão para se amarem cada vez mais A comadre vinha regularmente ver o afilhado e visitar suas novas amigas Tudo parecia enfim nos seus eixos naturais porém os dois primos tramavam e tramavam largamente Ninguém porém atinava com o que seria Leonardo passava vida completa de vadio metido em casa todo o santo dia sem lhe dar o menor abalo o que se passava lá fora pelo mundo o seu mundo consistia unicamente nos olhos nos sorrisos e nos requebros de Vidinha Um dia forjaram uma patuscada semelhante à que dera origem ao conhecimento do Leonardo com a família Deviam sair de madrugada para fora da cidade e passarem lá o dia Preparouse tudo cestos de comida esteiras e mais arranjos Vidinha mandou encordoar de novo sua viola avisaramse os convivas do costume À hora aprazada partiram Quem estivesse menos distraído pelo prazer da patuscada do que estava qualquer dos suciantes notaria que os dois primos deixavamse de vez em quando ficar atrás e cochichavam como se tramassem uma conspiração Ninguém porém dera atenção a semelhante coisa Chegaram ao lugar determinado ao romper do dia Apenas começavam a prepararse para o almoço viram surdir ninguém soube bem de onde a figura alta magra severa e sarcástica do nosso célebre major Vidigal Correu por todos um sinal de pouco contentamento exceto pelos primos que trocaram entre si um olhar de inteligência e de triunfo Os olhos de Vidinha dirigiramse instintivamente para Leonardo O major Vidigal deixou passar o primeiro momento de surpresa e depois sorrindose disse como costumava com sua voz descansada Não tenham medo de mim que não sou nenhum papacrianças nem eu venho desmanchar prazeres de ninguém Quero só saber quem é aqui o amigo Leonardo Vidinha fez logo cara de choro Leonardo levantouse sem saber como e disse todo trêmulo Sou eu Ora vejam respondeu o Vidigal em tom de mofa eu não sabia Pois meus amigos não se assustem que o caso não foi para tanto um súcio de menos numa patuscada não faz falta nenhuma Este amigo vai conosco Se ele puder voltará em breve mas creio que já não chegará a tempo para acabar a patuscada Qual meu Deus mas por que é então isto que mal é que ele fez Ele não fez nem faz nada mas é mesmo por não fazer nada que isto lhe sucede Leva granadeiro E um dos granadeiros com que viera o major acompanhado foi tratando de conduzir o Leonardo O Vidigal seguiuos tranqüilamente sem alterar o passo e dizendo polidamente Adeus minha gente Vidinha desatou a chorar exclamando Foi malsinação Foi malsinação repetiram todos menos os dois primos A súcia levantouse capítulo xxxiv Triunfo completo de José Manuel Era um sábado de tarde em casa de D Maria havia uma lufalufa imensa 154 andavam as crias e mais escravos de dentro para fora espanavase a sala arrumavamse as cadeiras corriase falavase gritavase A dona da casa trajava fora do ordinário um rico vestido de cassa da Índia bordado a fio de prata de corpinho muito curto e mangas de um volume enorme Seja dito de passagem que a prata do bordado estava já um tanto mareada e o mais do vestido um tanto encardido Trazia ainda D Maria um penteado de desmedida altura um formidável par de rodelas de crisólitas nas orelhas e dez ou doze anéis de diversos tamanhos e feitios nos dedos Luisinha trajava igualmente um vestido que qualquer menos entendido na matéria acharia ser filho legítimo do de sua tia trazia porém demais um toucado de plumas brancas na cabeça e um rosário de ouro na cintura Acabavam de sair as duas assim preparadas do quarto de vestir quando sentiuse rodar uma carruagem e parar na porta da casa Luisinha estremeceu D Maria levou o lenço aos olhos e tirouo em pouco tempo molhado de lágrimas Está aí a carruagem gritou uma das crias que estava de sentinela à janela A carruagem era um formidável um monstruoso maquinismo de couro balançandose pesadamente sobre quatro desmesuradas rodas e bem capaz de servir de armazém onde se guardasse a cômodo dois ou três destes nossos fiacres modernos155 Não parecia coisa muito nova e com mais 10 anos de vida poderia muito bem segundo Nicolau Tolentino156 entrar no número dos restos infelizes do terremoto157 Mal tinha este trem parado à porta quando sentiuse o rodar de outro que veio parar junto dele O que dissemos a respeito dos vestidos de D Maria e sua sobrinha pode perfeitamente aplicarse aos dois trens o segundo parecia filho legítimo do primeiro Do último que chegara apeou se José Manuel e entrou em casa de D Maria por quem foi recebido É inútil observar que a vizinhança estava toda à janela e observava todo aquele movimento extraordinário com olhos regalados pela mais desabrida curiosidade José Manuel trajava casaca de seda preta calções da mesma cor e fazenda trazia meias também pretas e sapatos de entrada baixa ornados com fivelas de prata espadim e chapéu de pasta Acompanhavamno dois amigos do mesmo teor José Manuel estava com um ar entre compungido e triunfante e desfaziase em mesuras para D Maria Depois de tudo isto quer ainda o leitor que lhe declaremos que a sobrinha de D Maria casavase naquela tarde com José Manuel Chegou o momento da partida Luisinha conduzida por D Maria que lhe ia servir de madrinha embarcou no tal pedaço da arca de Noé a que chamamos carruagem José Manuel acompanhado por quem lhe ia servir de padrinho fez outro tanto e partiram depressa para a igreja e fizeram bem em partir depressa porque se se demorassem alguns minutos corriam o risco de serem devorados pelos olhos dos vizinhos Apenas cessou a bulha do rodar das carruagens começaram estes últimos em conversa renhida que se resumia mais ou menos no seguinte Senhora dizia uma sujeita que morava junto de D Maria para outra que morava defronte o tal noivo poderá ser boa coisa mas não dou nada pela cara dele E a noiva respondia a outra arrenego também da lambisgóia E o filho do Leonardo ficou vendo estrelas Por força venceu este outro sujeito porque é um finório de contas Se a velha deixar tudo à sobrinha não é mau arranjo Decerto pois não sabe que o defunto marido dela era um homem que viajava para a Índia E assim continuaram até a volta das carruagens Agora devemos ao leitor algumas explicações a respeito do triunfo de José Manuel Depois das boas obras do mestredereza de que os leitores já foram informados José Manuel reabilitarase completamente junto de D Maria tornara a freqüentar a casa e foi pouco a pouco pondo barro à sua parede Um sucesso inesperado veio ajudálo com a maior eficácia O testamenteiro do finado irmão de D Maria do pai de Luisinha que já tinha tido com D Maria como talvez se lembrem os leitores uma demanda por causa desta última surdiu de repente com uma nova prebenda a respeito de uma pontinha de testamento e D Maria teve de entrar ainda com ele em uma luta judiciária Deuse ainda uma outra circunstância e foi o ter morrido a pouco tempo158 o procurador de D Maria José Manuel que soube disso ofereceuse para ser o procurador da causa Foi aceito e com tanto jeito arranjou tudo que em muito pouco tempo coisa que procurador nenhum teria feito venceu a demanda em favor de D Maria Ora os leitores hão de estar lembrados da mania que tinha D Maria por uma demandazinha atiravase a ela com vontade e tal era o empenho que empregava na mais insignificante questão judiciária que parecia ter em jogo sua vida em tais casos Daqui se poderá concluir a satisfação que teria ela no dia em que se achava vencedora e como se não julgaria obrigada a quem lhe proporcionasse a vitória José Manuel aproveitouse disto e no dia em que veio ler a D Maria a sentença final que resolvia a pendência em seu favor pediulhe a mão da sobrinha que lhe foi prometida Luisinha estava nessa ocasião em um daqueles períodos de abatimento que o isolamento e a falta de um objeto qualquer em que se descarregue uma porção de fluido amatório que lhes ferve no coração159 costumam produzir nos rapazes e principalmente nas raparigas160 que ainda marcham por aquela estrada florida que leva dos 13 aos 25 anos quando as oprime o isolamento Ora como sabem os leitores o Leonardo tinha abandonado a Luisinha e ela aceitou portanto indiferentemente a proposta de sua tia capítulo xxxv Escapula Deixemos agora os noivos gozarem tranqüilos da sua lua de mel deixemos D Maria desfazerse em carinhos e conselhos à sua sobrinha que recebia tudo indiferentemente e em atenções para com José Manuel cuja cabeça se tinha tornado repentinamente uma aritmética completa sendo toda algarismos cálculos multiplicações e voltemos a saber o que foi feito do Leonardo a quem deixamos na ocasião em que fora arrancado pelo Vidigal dos braços do amor e da folia O Vidigal tinhao posto diante de si ao lado de um granadeiro e marchava poucos passos atrás Enquanto caminhavam o granadeiro pretendeu darlhe conversa mas ele a nada respondia parecendo absorto em algum plano Quem estivesse muito atento como estava o esperto Vidigal notaria que algumas vezes o Leonardo parecia ainda que muito ligeiramente apressar o passo que outras vezes parecia demorálo que seu olhar e sua cabeça voltavamse de vez em quando quase imperceptivelmente para a esquerda e para a direita O Vidigal a quem nada disto escapava achava em todas estas ocasiões pretextos para dar sinais de si tossia pisava mais forte arrastava no chão o chapéu de sol com que sempre andava como quem queria dizer ao Leonardo respondendo aos seus pensamentos íntimos que parecia adivinhar Cuidado eu aqui estou E o Leonardo entendia tudo isto às mil maravilhas e contraía os lábios de raiva e de impaciência ele queria fugir porém o maldito major estava alerta Entretanto nem por isso abandonava o seu plano desconfiava que ia para a casa da guarda e pedia interiormente aos seus deuses que alongassem de muitas léguas as ruas que tinha de percorrer Quando via de longe uma esquina dizia consigo É agora quebro por ali fora e bato pernas Porém ao chegar perto da esquina o Vidigal achava alguma coisa que dizer ao granadeiro e passavase a esquina Se lhe aparecia à direita ou à esquerda um corredor aberto pensava consigo Embarafusto por ali adentro e sumome mas no momento em que ia tomar a última decisão parecialhe sentir a mão do Vidigal que o agarrava pela gola da jaqueta e esfriava Não eram os granadeiros que lhe metiam medo nunca em todos os seus planos de fuga contou uma só vez com eles mas nesses casos o Vidigal o cruel major era a quantidade constante de seus cálculos Ah se Deus lhe tivesse dado um olho na nuca para espreitar um momento de distração ao maldito diabo E enquanto tudo isto se passava o pobre rapaz suava ainda mais do que no dia em que fez a primeira declaração de amor a Luisinha só havia na sua vida um transe a que ele assemelhava o em que se achava naquela ocasião era o que se havia passado quando criança naquele meio segundo que ele levara a percorrer o espaço nas asas do tremendo pontapé que lhe dera seu pai Repentinamente uma circunstância veio favorecêlo não sabemos por que causa ouviuse um grande alarido na rua gritos assovios e carreiras Leonardo teve uma espécie de vertigem nessa ocasião em um quarto de segundo esqueceuse de tudo por que tinha passado estava passando e teria de passar e lembrouse outra vez de tudo isso sem lhe escapar o menor detalhe zuniramlhe os ouvidos escureceramselhe os olhos e dando um encontrão no granadeiro que estava perto dele desatou a correr O Vidigal deu um salto e estendeu o braço para o agarrar mas apenas roçoulhe com a ponta dos dedos pelas costas O rapaz tinha calculado bem o Vidigal distraírase com o ruído que se fizera na rua e ele aproveitou a ocasião O Vidigal e os granadeiros soltaramse imediatamente em seu alcance Leonardo embarafustou pelo primeiro corredor que achou aberto os seus perseguidores entraram incontinenti atrás dele e subiram em tropel o primeiro lance de escada apenas o haviam dobrado e subiam o segundo abremse as cortinas de uma cadeirinha que se achava no corredor e Leonardo safase daí e de um pulo ganha a rua Ao entrar tendo dado com aquele refúgio meterase dentro os granadeiros e o Vidigal não haviam reparado em tal com a precipitação em que entraram e isso lhe valeu É impossível descrever o que sentiu o Leonardo quando por entre as cortinas da cadeirinha viu passar o Vidigal e subir a escada Foi uma rápida alternativa de frio e de calor de tremor e de imobilidade de medo e de coragem veiolhe outra vez à lembrança o pontapé paterno era o termo constante de comparação para todos as suas infelicidades Enquanto o Vidigal e os granadeiros varejavam a casa em que haviam entrado Leonardo safavase e em quatro pulos achavase em casa de Vidinha que o recebeu com um abraço exclamando Qual aí está ele Um raio de alegria iluminou todos os semblantes menos o dos dois irmãos rivais que ficaram horrivelmente desapontados As duas velhas tiraram da cabeça as mantilhas que já haviam tomado para dar providências sobre o caso A presença do Leonardo foi uma aura benfazeja que espalhou as nuvens de uma grossa tormenta que tendo começado a roncar quando Leonardo foi preso com aquelas palavras foi malsinação viera desabar de todo em casa e prometia durar muito tempo Vidinha tendo a princípio trocado com os primos algumas indiretas a respeito da prisão de Leonardo julgara conveniente deixarse de panos quentes e fora direito a eles com quatro pedras na mão atribuindolhes o que acabava de suceder Eles denegaram e travaramse com ela de razões A princípio as duas velhas estavam ambas da parte de Vidinha porém tendo esta atirado três ou quatro161 fortes demais aos primos a mãe destes picouse e tomou o partido dos dois filhos a outra velha mãe de Vidinha dáse por muito ofendida com esta parcialidade de sua irmã e reforça ainda mais acompanhada dos que restavam o partido de Vidinha Divididos e extremados assim os dois campos com terríveis campeões de lado a lado fácil é preverse o que teria sucedido se o Leonardo não viesse tão a tempo para acalmar tudo Este tomado pelo prazer de verse livre nem teve ele tempo de fazer recriminações aos seus inimigos já ele sabia com certeza quem fora a causa do que acabava de sofrer pois que o tinha percebido pela conversa que com ele tentara travar o granadeiro O major Vidigal fora às nuvens com o caso nunca um só garoto a quem uma vez tivesse filado162 lhe havia podido escapar e entretanto aquele brejeiro163 vieralhe pôr sal na moleira ofendêlo em sua vaidade de bom policial e degradálo diante dos granadeiros Quem pregava ao major Vidigal um logro fosse qual fosse a sua natureza ficavalhe sob a proteção e tinhamno consigo em todas as ocasiões Se o Leonardo não tivesse fugido e tivesse arranjado soltura por qualquer outro meio o Vidigal era até capaz por fim de contas de vir a ser seu amigo mas tendo lhe feito aquela tinhao por seu inimigo irreconciliável enquanto não lhe desse desforra completa Já se vê pois que as fortunas do Leonardo redundavamlhe sempre em desventuras e era realmente uma desventura de peso naquele tempo ter por inimigo o major Vidigal principalmente quando se tinha como o Leonardo uma vida tão regular e tão lícita Veremos agora o que se passou na casa em que entrara o Vidigal com os granadeiros em procura do Leonardo capítulo xxxvi O Vidigal desapontado O major Vidigal vendose logrado deu urros e como já fizemos sentir aos leitores prometeu a si mesmo tomar séria vingança do brejeiro do Leonardo Ora dizia ele consigo gastar eu meu tempo nesta vida gastar os meus miolos a pensar nos meios de dar caça a quanto vagabundo gira por esta cidade conseguir à custa de muitos dias de fadiga de muitas noites passadas sem pregar olho de muita carreira de muito trabalho fazerme temido respeitado por aqueles que a ninguém temem e respeitam os vadios e peraltas e agora no fim de contas vir um mequetrefezinho pôrme sal na moleira envergonharme diante destes soldados e de toda esta gente Agora não há garoto por aí que em sabendo disto não se esteja a rir de mim e não conte já com a possibilidade de me pregar um segundo mono como este O major tinha razão riamse com efeito dele e os primeiros que tal faziam eram os granadeiros Apesar de que escravos da disciplina empregavam os mais sinceros esforços para coadjuválo e apesar de que também revertia sobre eles alguma glória das façanhas do major não puderam entretanto deixar de achar graça no que acabava de suceder pois conheciam a presunção do Vidigal e repararam na cara desapontada com que ele havia ficado Depois apenas o major pôs pé fora da soleira da casa onde lhe tinha escapado Leonardo uma multidão imensa que tudo havia presenciado desatou a rir estrondosamente Então Sr major dizialhe um dos da turba desta vez passarinho foise embora deixoume as penas na mão Sr major dizia outro procure dentro dos bolsos Dentro da barretina emendava este Atrás da porta replicava aquele E um coro de risadas acompanhava cada um destes irônicos conselhos Lá está o bicho dentro da cadeirinha gritou um repentinamente O Vidigal como que instintivamente correu à cadeirinha e abriulhe as cortinas Nessa ocasião as risadas foram homéricas o major compreendeu então qual fora o meio por que lhe escapara o Leonardo e deixou escapar um ah prolongadíssimo que reunia quanto despeito e quanta vergonha é possível Enfim retirouse acabrunhado mostrando em caricatura a cara que devia trazer Napoleão ao voltar de Waterloo164 Se aqueles rapazes do Trem dizia consigo ao retirarse que me foram levar lá a nota do tal malandro me tivessem avisado que ele era desta laia eu não teria passado por esta imensa vergonha Por estas palavras vêem os leitores que as imputações da Vidinha contra os primos tinham mais que muito fundamento Com efeito o que se acabava de passar não era senão o resultado do ajuste que no dia da grande briga por aquela causa que o leitor bem sabe haviam feito os dois rivais tinham eles malsinado ao Leonardo Tinham ido com o Vidigal e sem precisar mentir armaram ao Leonardo uma cama muito bemfeita era um homem sem ofício nem benefício vivendo à custa alheia enchendo de pernas a casa de duas mulheres velhas a quem não tinha aproveitado a experiência e o que é mais roubando a primos o amor de sua prima O Vidigal havia arregalado os olhos ouvindo a narração e ficara muito agradecido aos dois rapazes pela nova que lhe levaram era mais um pendão que ia juntar aos louros de suas façanhas policiais A primeira tentativa custoulhe porém bem caro Pelo caminho ia o major fazendo pouco mais ou menos as seguintes reflexões Nada lhe seria mais agradável do que mais dia menos dia quando ninguém pensasse em tal acompanhado de uma escolta de granadeiros dirigirse à casa das duas velhas cercála e pilhar o Leonardo sem que lhe pudesse escapar Isto porém repugnava ao seu orgulho ofendido Muitas vezes se tinha é verdade servido desse meio porém fora isso para poder pilhar a capadócios de longa data tidos e havidos como tais e velhos no ofício Não queria pois segundo pensava servirse do mesmo meio para agarrar um recruta no ofício que ainda agora começava Nada tal não faria não havia fazer cerco e o que é mais não queria de modo algum o adjutório dos granadeiros jurara a si mesmo que ele sozinho sem o apoio de ninguém havia de pôr a mão no Leonardo Mergulhado nestas reflexões ia o Vidigal entrando pela casadaguarda para onde se dirigira quando sentiuse agarrado repentinamente pelas pernas e viu a seus pés uma mulher de mantilha que chorava soluçando muito com o lenço no rosto Que é isto senhora deixeme Ora isto hoje é dia de má sina Continuaram os soluços por única resposta Senhora deixame ou não as pernas Eu não gosto de carpideiras entende Soluços ainda Ora não está má esta Se lhe morreu alguém vá chorar na cama que é lugar quente Redobrou o pranto Valhame trezentos diabos Quando é que isto acabará Esta mulher acaba por atirarme no chão Estava já muita gente junta na porta Passando finalmente um pouco de tempo em silêncio quando já o major estava disposto a empregar alguma medida de rigor para verse livre da carpideira esta ergueu a cabeça e tirando o lenço da cara exclamou entre lágrimas Sr major solte solte por quem é a meu afilhado solte solte o pobre rapaz ele é um doido é verdade mas E os soluços lhe embargaram muito a propósito a voz Era a comadre que tendo sabido da prisão do afilhado viera fazer em seu favor ignorando que ele se tivesse evadido aquela alicantina165 A cena produziu o efeito esperado os granadeiros de cada vez que a comadre dizia solte desatavam a rir tendo por boca pequena explicado tudo aos demais circunstantes estes os acompanhavam O major tomou tudo aquilo como um escárnio que o gênio da vadiação e do garotismo lhe fazia era mister que ele para verse livre da comadre que não lhe largava os joelhos declarasse por sua própria boca diante de toda aquela gente que o Leonardo havia fugido Declarouo e fugiu de todos aqueles olhares em cada um dos quais via um insulto A comadre apenas ouviu a declaração foise igualmente pondo ao fresco166 e não pôde também deixar de achar graça no caso capítulo xxxvii Caldo entornado A comadre tendo deixado o major entregue à sua vergonha dirigirase imediatamente para a casa onde se achava Leonardo para felicitálo e contarlhe o desespero em que a sua fuga tinha posto o Vidigal O Leonardo contava com isso e não se admirou do que ela lhe foi dizer Vidinha porém e as duas velhas por entre muita praga e esconjúrio deram grandes risadas à custa do major A comadre segundo seu costume aproveitou o ensejo e depois que se aborreceu de falar no major desenrolou um sermão ao Leonardo no qual algumas exagerações de parte havia grande fundo de justiça e tanto que até a própria Vidinha chegou a darlhe inteira razão quanto a alguns trechos O tema do sermão foi a necessidade de buscar o Leonardo uma ocupação de abandonar a vida que levava gastosa167 sim porém sujeita a outras que tais como a que acabava de suceder a sanção de todas as leis que a pregadora impunha ao seu ouvinte eram as garras do Vidigal Haveis de afinal cairlhe nas unhas dizia ela no fim de cada período e então o côvado e meio te cairá também nas costas Esta idéia do côvado e meio fez brecha no espírito do Leonardo ser soldado era naquele tempo e ainda hoje talvez a pior coisa que podia suceder a um homem Prometeu pois sinceramente emendarse e tratar de ver um arranjo em que estivesse ao abrigo de qualquer capricho policial do Vidigal Achar porém ocupação para quem nunca cuidou nela até certa idade e assim de pé para mão não era das coisas mais fáceis Entretanto o zelo da comadre pôsse em atividade e poucos dias depois entrou ela muito contente e veio participar ao Leonardo que lhe tinha achado um excelente arranjo que o habilitava segundo ela pensava a um grande futuro e o punha perfeitamente a coberto das iras do major era o arranjo de servidor na ucharia real Deixando de parte o substantivo ucharia e atendendo só ao adjetivo real todos os interessados e o próprio Leonardo regalaram os olhos com o achado da comadre Empregado na casa real oh isso não era coisa que se recusasse e então empregado na ucharia essa mina inesgotável tão farta e tão rica A proposta da comadre foi aceita sem uma só reflexão contra da parte de quem quer que fosse Como a comadre pudera arranjar semelhante coisa para o afilhado é isso coisa que pouco nos deve importar Dentro de poucos dias achouse o Leonardo instalado no seu posto muito cheio e contente de si O major que o não perdia de vista soubelhe dos passos e mordeu os beiços de raiva quando o viu tão bem aquartelado só deixando a vida que levava podia o Leonardo cortar ao major pretextos para pôrlhe a unha mais dia menos dia Se ele se emenda dizia pesaroso o major se ele se emenda perco eu a minha vingança Mas e esta esperança alimenta ele não tem cara de quem nasceu para emendas O major tinha razão o Leonardo não parecia ter nascido para emendas Durante os primeiros tempos de serviço tudo correu às mil maravilhas só algum mal intencionado poderia notar em casa de Vidinha uma certa fartura desusada na despensa mas isso não era coisa em que alguém fizesse conta O Leonardo porém parece que recebera de seu pai a fatalidade de lhe provirem sempre os infortúnios dos devaneios do coração Dentro do pátio da ucharia morava um tomalargura em companhia de uma moça que lhe cuidava da casa etc168 A moça era bonita e o toma largura um machacaz talhado pelo molde mais grotesco a moça fazia pena a quem a via nas mãos de tal possuidor O Leonardo cujo coração era compadecido teve como todos pena da moça e apressemonos a dizer a sua pena era tão sincera que não pôde deixar de despertar também a mais sincera gratidão do objeto dela quem pagou o resultado da pena de um e da gratidão da outra foi o tomalargura Vidinha também lá por casa começou a estranhar a assiduidade do novo empregado na sua repartição e a notar o quer que fosse de esmorecimento de sua parte para com ela Um dia o tomalargura tinha saído em serviço ninguém esperava por ele tão cedo eram 11 horas da manhã O Leonardo por um daqueles milhares de escaninhos que existem na ucharia tinha ido ter à casa do tomalargura Ninguém porém pense que foi para maus fins Pelo contrário era para o fim muito louvável de levar à pobre moça uma tigela de caldo do que há pouco fora mandado a elrei Obséquio de empregado da ucharia não há aqui nada de censurável Seria entretanto muito digno de censura que quem recebia tal obséquio não o procurasse pagar com um extremo de civilidade a moça convidou pois ao Leonardo para ajudála a tomar o caldo e que grosseiro seria ele se não aceitasse tão belo oferecimento Aceitou De repente sentese abrir uma porta a moça que tinha na mão a tigela estremece e o caldo entornase O tomalargura que acabava de chegar inesperadamente fora a causa de tudo isto O Leonardo vendo aquilo correu precipitadamente pelo caminho mais curto que encontrou sem dúvida em busca de outro caldo uma vez que o primeiro se tinha entornado O tomalargura correlhe também ao alcance sem dúvida para pedirlhe que trouxesse desta vez quantidade que chegasse para um terceiro O caso foi que daí a pouco ouviuse lá por dentro barulho de pratos quebrados de móveis atirados ao chão gritos alarido viuse depois o Leonardo atravessar o pátio da ucharia à carreira e o tomalargura voltar com os galões da farda arrancados e esta com uma aba de menos No dia seguinte o Leonardo foi despedido da ucharia capítulo xxxviii Ciúmes No dia seguinte já o Vidigal sabia de cor e salteado tudo quanto havia sucedido ao Leonardo e pôsse alerta pois que a ocasião era oportuna O Leonardo entrara para a ucharia com o pé esquerdo a tormenta por que havia passado lá nada foi em comparação da que lhe caiu nas costas quando em casa se soube da causa verdadeira de sua saída É uma grande desgraça concordamos não corresponder a mulher a quem amamos aos nossos afetos porém não achamos também pequena desventura o cairmos nas mãos de uma mulher a quem deu na cabeça querernos bem deveras O Leonardo podia dar a prova desta última verdade Vidinha era ciumenta até não poder mais ora as mulheres têm uma infinidade de maneiras de manifestar este sentimento a uma dálhe para chorar em um canto e choram aí em ar de graça dilúvios de lágrimas isto é altamente cômodo para quem as tem de sofrer Outras recorrem às represálias e nesse caso desbancam incontinenti a quem quer que seja esta maneira de manifestação é seguramente muito agradável para elas próprias Outras não usam da mais leve represália não espremem uma lágrima mas assim por um espaço de oito ou quinze dias desde que desponta a aurora até que cai a noite resmungam um calendário de lamentações em que entram seu pai sua mãe seus parentes e amigos seu compadre sua comadre seu dote seus filhos e filhas e tudo por aí além isso sem cessar um só instante sem um segundo de descanso de maneira a deixar na cabeça do mísero que a escuta uma asuada eterna capaz de fazer amolecer um cérebro de pedra Outras entendem que devem afetar desprezo e pouco caso essas tornamse divertidas e faz gosto vêlas Outras enfim deixamse tomar de um furor desabrido e irreprimível praguejam blasfemam quebram os trastes rompem a roupa espancam os escravos e filhos descompõem os vizinhos esta é a pior de todas as maneiras a mais desesperadora a menos econômica e também a mais infrutífera Vidinha em seus ciúmes gostava desta última manifestação Apenas pois como há pouco dizíamos se verificou a verdadeira causa da saída do Leonardo desabou um temporal que só terá semelhante no que há de preceder ao aniquilamento do globo Depois de gritar chorar maldizer blasfemar ameaçar rasgar quebrar destruir Vidinha parou um instante concentrouse meditou e depois como tomando uma grande resolução Minha mãe disse dirigindose a uma das velhas quero a sua mantilha Filha de Deus acudiu a velha que desatino é esse onde é que ides agora de mantilha Eu cá sei onde vou quero a sua mantilha tenho dito quero a sua mantilha Foram todos reunindose em roda de Vidinha surpreendidos por aquela resolução O Leonardo estava sentado ou antes encolhido a seu canto quedo e silencioso Quero a sua mantilha minha mãe quero e quero Mas para onde ides rapariga Ora meu Deus isso foi coisa que vos fizeram Quero ir à ucharia Jesus Quero ir que me importa que seja a casa do rei Hei de ir hei de procurar o tal tomalargura quero fazerlhe cá duas perguntas e ou o MeninoJesus não é filho da Virgem ou na tal ucharia não fica hoje coisa sobre coisa Que loucura rapariga que desatino Os dois primos riamse interiormente do que se estava passando Não há coisa mais eminentemente prosaica do que uma mulher quando se enfurece Tudo quanto em Vidinha havia de requebro de languidez de voluptuosidade tinha desaparecido estava feia e até repugnante Ninguém houve que a pudesse desviar do seu propósito ela foi tomando a mantilha e dispondose a sair rogos choros nada a pôde conter O Leonardo viu que o caso estava malparado e tendo estado até então calado decidiuse também a pedir a Vidinha que não saísse Foi como se costuma dizer pior a emenda que o soneto Qual responde Vidinha essa agora é que havia de ser bonita Qual pois eu não hei de sair Tinha que ver então por pedido do senhor Ora qual E foi saindo Começava a anoitecer A gente de casa ficou toda na maior aflição ninguém sabia o que se havia de fazer O Leonardo tomou a resolução de acompanhar Vidinha a ver se a detinha em caminho Vidinha caminhava tão depressa que a princípio o Leonardo quase que a perdia de vista finalmente conseguiu alcançála e começou a pedirlhe que voltasse fazendo as maiores promessas de comedirse dali em diante e de lhe não dar mais motivos de desgosto Vidinha porém a nada atendia e caminhava sempre O Leonardo recorreu a ameaças Vidinha redobrou os passos voltou de novo a rogativas Vidinha caminhava sempre Já estavam no largo do Paço Vidinha chegando quase a correr deixou o Leonardo umas poucas de braças atrás de si e entrou muito adiante dele pelo portão da Ucharia adentro e desapareceu O Leonardo parou um instante a resolverse se entraria também ou não Finalmente decidiuse a entrar No momento em que ia transpondo a soleira do portão voltou repentinamente e ia disparando uma carreira uma mão magra mas vigorosa o deteve agarrandoo pela gola da jaqueta era a mão do major Vidigal com quem ele havia esbarrado ao querer entrar e de quem pretendia fugir Vendo que lhe seria inútil qualquer tentativa porque ali perto havia guarda o Leonardo resignouse O major olhou para ele soltando uma risadinha maligna dizendolhe apenas muito pausada e descansadamente Ora vamos O Leonardo entendeu bem a significação daquelas duas palavras e caminhou ao lado do major na direção que este lhe indicava capítulo xxxix Fogo de palha Deixemos o Leonardo seguindo seu destino acompanhado do major Vidigal e vamos ver o que se passou na ucharia depois de sua prisão Vidinha indagou aqui indagou ali e lá entrou como um raio pela casa do tomalargura A moça do caldo achandose nessa ocasião descuidada sofreu um grande susto com a chegada de Vidinha que conhecendo por instinto ser aquela a causa de seus males foi largando a mantilha sobre uma cadeira e investindo para ela Venho aqui disse para lhe dizer mesmo na cara que Vm é uma criatura sem sentimentos A moça não podendo atinar com a significação daquilo ficou pasma e sem saber o que havia de responder Vidinha prosseguiu Não tem sentimentos digolho eu e ninguém me há de desdizer Vamos ver que diabo de história é esta bradou uma voz de estentor Era o tomalargura que achandose em casa naquela ocasião e tendo ouvido as duas primeiras apóstrofes de Vidinha chegava para tomar fé do que se passava Por mais arrogante que fosse a voz do tomalargura e por mais ameaçadora que fosse a sua figura quase hercúlea Vidinha não recuou um passo não desfez uma ruga da testa antes pareceu mostrar que a sua presença ali favorecia suas intenções tanto que dirigindose a ele o foi logo apostrofando também pela seguinte maneira É Vm um homem que eu não sei para que traz barbas nessa cara A surpresa e mesmo também a figura de Vidinha através de cujos traços descompostos pela raiva o tomalargura sujeito prático e experimentado pôde conhecer como boa fazenda desarmaramno um pouco sorriuse169 e respondeu mais mansamente Então menina veio aqui só para dizer coisas assim tão bonitas Quem a trouxe cá Ora quem me havia de trazer respondeu Vidinha em tom de mofa lançando para a terceira personagem desta cena um olhar significativo ora quem me havia de trazer Qual eu vim só ver se podia tomar um caldo A moça do tomalargura empalideceu este regalou os olhos e abanou com a cabeça como quem dizia entendo e quis ficar imediatamente muito zangado com a recordação daquele fato que a humildade de sua companheira e talvez mesmo o seu humor tinha feito esquecer Vidinha porém para dizer aquelas últimas palavras tinha serenado um pouco o seu semblante e ganhara muito em seus encantos desfigurados até então pela raiva além disso ao pronunciar o qual do costume descerrara um ligeiro sorriso deixando ver seus magníficos dentes O tomalargura parecia pertencer talvez à família dos Leonardos enterneceuse imediatamente e não teve ânimo senão de sorrirse e responder em tom desconcertado Ora Ora replicou Vidinha e então ele não diz ora Qual é preciso não ter pinga de vergonha estas duas criaturas nasceram uma para a outra Deus os fez e o Diabo os ajuntou uma toma caldos e o outro diz ora E foi tomando a mantilha e tratando de sair170 Ela tinha esperado achar respostas enérgicas às suas invectivas e neste pressuposto tinha concertado mil planos de ataques de defesa de gritaria de pancadas de prisões etc Nada disto porém tinha sucedido e entretanto sem saber por que ela mesma se sentia um pouco aliviada quase até mesmo satisfeita tanto que saiu dizendo consigo171 Ah pensavam que a coisa havia de ficar assim Disselhes poucas porém boas O coração da mulher é assim parece formado de palha incendeiase com facilidade produz muita fumaça mas em cinco minutos é tudo cinza que o mais leve sopro espalha e desvanece O tomalargura apenas a viu sair em vez de prorromper numa matinada contra sua companheira como ela o esperava pálida e trêmula mostrouse até tranqüilo pretextou um afazer e saiu também imediatamente Andavalhe na cabeça um plano cuja realização faria como se costuma dizer cair a sopa no mel Vidinha tinhao encantado o Leonardo o havia ofendido conquistar ainda que fosse uma diminuta parcela do amor da Vidinha seria ao mesmo tempo vingarse do Leonardo e alcançar o triunfo de um desejo Por mais impossível que lhe parecesse o negócio nem por isso esmoreceu era tenaz e paciente Chegando ao portão da Ucharia indagou da sentinela a direção que Vidinha tinha tomado seguiu por ela e em breve alcançoua acompanhou a de longe para saberlhe da morada e viua entrar em casa capítulo xl Represálias Quando Vidinha chegou à casa achou ainda toda a família no maior susto e confusão pelo desatino que ela acabava de praticar as duas velhas ao vêla entrar lançaramselhe ao pescoço e cobriramna de abraços de beijos e de lágrimas Ela estava ainda porém sob a influência das emoções violentas por que acabava de passar e não pôde corresponder àquelas provas de amizade atirouse sobre uma banquinha e levou algum tempo calada sem dar a menor resposta às mil perguntas que lhe eram dirigidas Esse silêncio mais aumentava a ansiedade da família finalmente resolveuse ela a rompê lo exclamando Pensavam que o caso havia de ficar assim enganaramse Qual eu quero que fiquem sabendo para quanto presto Então rapariga foste fazer alguma asneira Asneira qual fiz o que faz qualquer mulher que tem sangue na guelra E agora venha ele para cá que temos ainda contas a ajustar É verdade e ele que ainda não veio já tinha tempo de chegar pois partiu logo no vosso alcance É verdade acrescentou Vidinha com certo susto na tal cova da Ucharia não entrou ele e quando de lá saí não o vi mais Não lhe vá ter sucedido alguma coisa O major o jurou O major repetiram todas com os sinais do mais visível susto E levantouse de novo em casa a confusão porque como os leitores terão visto apesar dos dissabores que o Leonardo causava àquela família todos ali exceto os dois primos rivais queriamlhe muito e muito bem Falar a qualquer dos dois primos para que o fossem procurar era coisa de que ninguém se lembrava tão certos estavam que eles se haviam recusar Tiveram pois de esperar que chegasse da rua o antigo sacristão da Sé para darem as providências precisas Os leitores terão talvez estranhado que em tudo quanto se tem passado em casa da família de Vidinha não tenhamos falado nesta última personagem temolo feito de propósito para dar assim a entender que em nada disso tem ele tomado parte alguma Causa remota e primordial de todos estes acontecimentos pois foi em conseqüência de sua amizade que o Leonardo se juntou à família por muito feliz se tem dado em que não tenham caído sobre ele inculpações de que com dificuldade se poderia defender homem de tato conservara uma posição absolutamente neutral em todas aquelas lutas Eis aqui pois qual a causa do nosso silêncio sobre ele Infelizmente naquela noite recolheuse mais tarde que de costume e quando chegou já não era tempo de fazer coisa alguma Toda a família passou a noite na maior ansiedade desvanecidas de certa hora em diante as esperanças de ver chegar o Leonardo a cada momento Ninguém duvidava mais que alguma coisa tivesse sucedido ao Leonardo e nos quadros medonhos que cada qual imaginava a figura do major Vidigal aparecia sempre em primeiro plano ninguém também duvidava que no quer que fosse que houvesse sucedido ao Leonardo o major teria por força parte ativa e importante senão principal Assim ao amanhecer do dia seguinte o primeiro lugar onde mandaram saber dele foi na Casa da Guarda Mas com surpresa geral ele não se achava nela nem sabiam notícias suas procurouse em diversos outros pontos e nada de novo nem novas nem mandados Por lembrança de Vidinha foram procurar a comadre e informaramna de todo o ocorrido a pobre mulher que tudo ignorava pôs as mãos na cabeça Aquele rapaz nasceu em mau dia disse ela ou então aquilo é coisa que lhe fizeram do contrário não pode ser E pôsse logo a caminho a procurar o afilhado Na comadre estavam fundadas toda as esperanças ninguém duvidava que apenas ela se pusesse na rua prontamente se saberia o destino do Leonardo Enganaramse todos porque nem a própria comadre foi capaz de dar com ele por tão bom caminho o tinha levado o major Passaram muitos dias na mais completa ignorância a respeito do seu fim e começaram desde então a aparecer suspeitas de que ele próprio teria talvez interesse em ocultarse e de que era essa a causa por que ainda o não haviam descoberto Estas suspeitas tomaram vulto e uma certa indignação começou a aparecer em toda a família contra semelhante proceder A indignação cresceu e tomou repentinamente proporções de ódio intenso até da parte das próprias duas velhas Realmente a ser verdade o que pensavam não haveria ingratidão mais negra do que a do Leonardo para com aquela que tão benignamente o acolhera Nas invectivas a cada momento dirigidas contra ele Vidinha tomava sempre o primeiro lugar e tinha razão para isso além de ter contra ele as razões que tinham todos os outros tinha ainda o despeito do amor ofendido Em certos corações o amor é assim tudo quanto tem de terno de dedicado de fiel desaparece depois de certas provas e transformase num incurável ódio Uma coisa singular notara a Vidinha desde que fora à Ucharia e é que não se passava depois disto um só dia em que ela não visse pelo menos duas vezes o tomalargura Tinhao ela mostrado à família e já todos o conheciam A princípio isso incomodoua e tanto mais que ele não passava uma só vez que lhe não tirasse o chapéu com ar risonho parecialhe semelhante coisa uma prova de desabrida falta de vergonha Mais tarde começou a suspeitar que aquela passagem constante e aqueles cumprimentos deviam por força ter alguma explicação Aconteceu que uma das velhas a mãe de Vidinha confessasse não ter achado o tomalargura malapessoado e esta idéia passou a toda a família Um dia uma das velhas achandose à janela com Vidinha na ocasião em que passava o tomalargura disse entre dentes e como que indiferentemente Se fosse comigo bem sabia eu cá o que havia de fazer Vidinha se bem que não pedisse explicação daquele dito não deixou contudo de darlhe atenção e de cismar nele por algum tempo No dia seguinte a mesma velha chamoua para a janela à hora do dia antecedente e o tomalargura passou como sempre e fez o seu cumprimento A velha disse nessa ocasião como completando o seu pensamento da véspera Ora eu pregava um mono ao tal Leonardo e então este que era bem pregado por ser ao mesmo tempo aos dois a ele e a ela Lendo na intimidade do pensamento da velha com a nossa liberdade de contador de histórias diremos ao leitor que o não tiver adivinhado que aquele ela referiase à moça do caldo Dada esta explicação os menos perspicazes entenderão sem dúvida em que consistia o mono que a velha pregaria ao Leonardo Vidinha que nada tinha de pouco inteligente compreendeu tudo às mil maravilhas e com tanto mais facilidade digamolo aos leitores quanto talvez que o pensamento da velha correspondesse a seus próprios pensamentos Repetiramse depois disto mais algumas indiretas da parte da velha e Vidinha chegou finalmente a explicações Pouparemos aos leitores certos detalhes e diremos que o resultado de tudo aquilo foi verse poucos dias depois o tomalargura em casa de Vidinha fazendo uma visita à família As visitas continuaram e pela vizinhança começou a ouvirse um rumor que tinha tanto de malévolo como de verdadeiro Estavam as coisas neste pé A paz tinha sido restituída à família Não sei quem propôs que se solenizasse o restabelecimento do sossego e as novas venturas com uma súcia para fora da cidade Efetuouse semelhante pensamento Por uma singularidade escolheram para lugar da patuscada os Cajueiros onde a família tinha feito conhecimento com o Leonardo O tomalargura fora convidado nem podia deixar de sêlo porque era ele um dos motivos da festa Infelizmente porém tinha ele um defeito no estado ordinário costumava beber sofrivelmente quando tinha algum motivo de alegria costumava dobrar a dose e quando isto sucedia davalhe para valentão e desordeiro Disto resultou que no meio da súcia na ocasião do jantar deuse por ofendido não sabemos por que e começou por agarrar nas pontas da esteira que servia de mesa e fazer voar sobre a cabeça dos convivas pratos garrafas copos e tudo o mais Os dois primos quiseram contêlo mas não o conseguiram Vidinha chorava as velhas se maldiziam uns tentavam restabelecer a paz e outros aumentavam a desordem Reinava por conseqüência uma algazarra infernal Quando menos o esperavam viuse surdir dentre as moitas o major Vidigal fechando um círculo de granadeiros que partiam de sua esquerda e de sua direita e que encerravam toda a súcia Segura aquele homem granadeiro disse o major a um dos seus soldados apontando para o tomalargura que se achava em pé cambaleando tendo numa mão um balaio em que viera a farinha e na outra uma garrafa com que ameaçava os circunstantes À ordem do major o granadeiro hesitou toda a família reunindose em um grupo soltou um grito de espanto apontando para o soldado Então replicou o major vendo aquela hesitação O granadeiro deu um passo para o tomalargura Devagar com a louça camarada bradou este lembrese que ainda não ajustamos contas a respeito daquele caldo O tomalargura acabava de reconhecer no granadeiro o nosso amigo Leonardo como toda a família o tinha reconhecido apenas ele apareceu Era com efeito ele capítulo xli O granadeiro Estavam pois as contas ajustadas completamente entre o Leonardo e o TomaLargura haviamse vingado um do outro o último golpe na luta competira dar ao Leonardo ele abençoou o acaso e mesmo o major Vidigal por lhe ter fornecido ocasião de ir arrancar dos lábios de seu rival a taça da ventura Até quase que estimou que lhe tivessem sentado praça e bem dissemos nós que para ele não havia fortuna que não se transformasse em desdita e desdita de que lhe não resultasse fortuna O TomaLargura como dissemos fora levado pelo Leonardo e os leitores familiarizados com o destino que tinham todos os prisioneiros do major Vidigal adivinham já que lhe indicaram o caminho da casa da guarda no largo da Sé O estado em que ele se achava não permitiu porém que o levassem até lá Os vapores que do estômago lhe tinham subido à cabeça foramse pouco a pouco condensando e em meio do caminho pesavamlhe sobre o cérebro como vinte arrobas a cabeça não se podendo manter abandonouse ao tronco que achando o peso excessivo quis apelar para as pernas estas porém não eram mais fortes e curvandose trêmulas e bambas deram com o valentão de ainda há pouco estirado na calçada Os soldados não o puderam levantar porque era como dissemos a princípio de uma corpulência colossal Foi mister pois abandonar a presa o major não teve grande dificuldade nisso primeiro pelo trabalho que daria qualquer outra resolução segundo porque se bem que da última classe sempre era o TomaLargura gente da casa real e nesse tempo tal qualidade trazia consigo não pequenas imunidades O Leonardo tentou ainda alguns meios para que lhe não escapasse assim sem resultado mais estrondoso a primeira presa que fazia pois era isto de mau agouro para o seu futuro militar mas também sua mais bela vingança estava tomada Ficou pois o TomaLargura abandonado na calçada Satisfaçamos agora em poucas palavras a curiosidade que têm sem dúvida os leitores de saber o como chegara o Leonardo à posição em que se achava Agarrado pelo major na porta da Ucharia como se sabe fora por ele em pessoa conduzido a lugar seguro donde só saíra para sentar praça no Regimento Novo Todos os batalhões que havia na cidade tinham uma companhia de granadeiros e havendo uma vaga na companhia do Regimento Novo fora o Leonardo escolhido para preenchêla Sabendo disto o major reclamouo para seu serviço porque era dessas companhias de granadeiros que se tiravam soldados para o serviço policial pois como homem experimentado naquelas coisas pressentira que ele lhe seria um valioso auxiliar Até um certo ponto o major não se enganou com efeito o Leonardo sendo naturalmente astuto e tendo até ali vivido numa rica escola de vadiação e peraltismo deveria conhecer todas as manhas do ofício Havia porém uma circunstância que o impedia de prestar bons serviços e era que com ele próprio com suas próprias façanhas tinha muitas vezes o major de gastar o tempo que lhe era preciso para o demais O poder dos hábitos adquiridos era nele tal que nem mesmo o rigor da disciplina lhe servia de barreira Contemos a primeira diabrura que lhe lembrou praticar depois que vestiu farda e que foi tanto mais sensível quanto a princípio se mostrara ele um soldado por tal maneira sisudo que ia quase adquirindo reputação de rígido Os gaiatos e suciantes da cidade a quem o major Vidigal dava constantemente caça lembraramse de imortalizar as suas façanhas por qualquer meio e inventaram um fado com o seguinte estribilho nas cantigas Papai lêlê seculorum Nesse fado a personagem principal representava o major que figurado morto vinha estenderse amortalhado no meio da sala as demais personagens vinham depois cantarlhe em roda cantigas alusivas que terminavam todos pelo estribilho que acima indicamos O major que disto soubera andava em busca de uma ocasião oportuna para tirar desforra de semelhante gracejo que dava a entender qual era a seu respeito o desejo dos que o tinham inventado Teve um dia denúncia que numa casa do morro da Conceição se preparava para essa noite um rigoroso Papai lêlê dispôs as coisas para pilhar os da roda em flagrante À hora oportuna mandou dois ou três granadeiros adiante cada um por sua vez para examinar que o havia tendo combinado primeiramente um sinal positivo e outro negativo para indicarem uns aos outros se havia ou não ocasião e motivo de dar o assalto estes sinais o granadeiro que devia aproximarse mais da casa comunicaria ao que lhe ficasse imediato este passaria adiante o outro faria o mesmo até chegar ao lugar em que estava o major era um verdadeiro sistema de sentinelas avançadas como se se tratasse de uma grande campanha No caso de ser dado o sinal positivo marchariam todos vagarosamente e se reuniriam para o assalto dado o sinal negativo dispersarseiam em silêncio porque um dos maiores caprichos do major era nunca mostrar que havia sido logrado Ao Leonardo coube a incumbência de ser a vedeta mais próxima ao inimigo e de dar o primeiro sinal Marchou pois adiante e os companheiros postaram se à espera Esperaram por longo tempo e cansaram de esperar finalmente quando já se iam dispondo a contravir as ordens e abandonar o posto para procurar o Leonardo ouviram três vezes seguidas um longo assovio que era o sinal negativo convencionado Em virtude disto dispersaramse exasperados e foram depois reunirse ao major embaixo da ladeira do morro no lugar que dá para a entrada do Aljube Aí reunidos esperaram muito tempo pelo Leonardo sem que ele aparecesse O major principiou a cismar com o caso de novo e repentinamente deu ordem de subir o morro Subiram com efeito e marchando desta vez o major adiante foram ter à casa indicada Com surpresa de todos apenas se foram aproximando viram luzes e ouviram o zumzum das violas e a toada das cantigas Fervia dentro o fado rigoroso Sem necessitar grandes precauções porque todos pareciam entregues à maior segurança cercou o major a casa e apanhou tudo como se costuma dizer com a boca na botija Estavase exatamente no ponto solene da cerimônia Achavase a personagem que representava o Papai amortalhado em um lençol com a cabeça coberta deitado no chão e a chusma em roda a cantar e a dançar Quando o major bateu e foi entrando acompanhado da sua gente ficou tudo gelado de medo o sujeito que se achava amortalhado teve um grande estremeção e ficou depois imóvel como se fosse de pedra representando com mais propriedade do que talvez desejasse o papel de morto Segundo seu costume o major fez continuar por um pouco a brincadeira em sua presença e depois começou a indagação das ocupações de cada um e conforme o que colhia os foi mandando embora ou pondo de parte para lhes dar melhor destino Durante toda esta cena que levou seu tempo o amortalhado deixouse ficar imóvel na mesma posição com a cabeça coberta Corrida toda a roda disselhe o major Olá camarada da mortalha então deveras você quer que o levem daí para a cova Nem um movimento em resposta Ah está morto perdeu a fala é natural Silêncio profundo O major fez sinal a um dos granadeiros que tocou no sujeito com a ponta do camarão172 nem assim porém ele sequer moveuse A um novo sinal do major o granadeiro desandoulhe uma tremenda lambada Ressuscitou com isso o morto e pôsse de um salto em pé Procurou porém evadirse por uma janela conservando sempre a cabeça coberta os granadeiros porém seguraramno e o major disselhe Homem você por estar morto não tenha tanta pressa de ir para o inferno fale primeiro com a gente E tirandolhe o pano da cara acrescentou Ora vamos ver a cara do defunto Um grito de espanto acompanhado de uma gargalhada estrondosa dos granadeiros interrompeu o major Descoberta a cara do morto reconheceu se ser ele o nosso amigo Leonardo capítulo xlii Nova diabrura173 Não sabemos se valeu ao Leonardo ser aquela a primeira ocasião em que incorria em castigo tendo até então guardado a mais rigorosa observância de todos os seus deveres ou se a mesma audácia do fato lhe granjeara mais as simpatias do major o caso foi que além das risadas dos remoques dos camaradas e dos transes da meia hora que estivera amortalhado nada mais lhe sucedeu com espanto de todos e principalmente dele mesmo o major dera daquele modo uma grande prova de desusada benevolência Andou pois o Leonardo por alguns dias cabisbaixo e pensativo como esmagado ao peso de grandes remorsos os camaradas tiravam daquilo um partido imenso para meteremno à bulha e não o deixavam parar um só instante sossegado na companhia Ele ainda não está bem ressuscitado dizia um passando por junto dele Qual dizia outro ele já não é deste mundo Papai lêlê seculorum entoavam outros em coro A nenhuma destas coisas dava ele a menor resposta e tinha nisso bom aviso porque desse modo poupava aos desapiedados camaradas tema para novos remoques Passados aqueles transes tudo foi esquecido e as coisas entraram de novo em seus eixos ordinários Um dia o major anunciou que tinha uma grande e importante diligência a fazer Havia um endiabrado patusco que era o tipo perfeito dos capadócios daquele tempo sobre quem há muitos meses andava o major de olhos abertos sem que entretanto tivesse achado ocasião de pilhálo era sujeitinho cuja ocupação era uma indecifrável adivinhação para muita gente e que entretanto andava sempre mais ou menos apatacado tudo quanto ele possuía de mais importante era um capote em que andava constantemente embuçado e uma viola que jamais deixava gozava reputação de homem muito divertido e não havia festa de qualquer gênero para a qual não fosse convidado e em satisfazer a esses convites gastava todo o seu tempo Ordinariamente amanhecia numa súcia que começara na véspera uns anos por exemplo ao sair daí ia para um jantar de batizado à noite tinha uma ceia de casamento A reputação que gozava de homem divertido e que lhe proporcionava tão belos meios de passar o tempo deviaa a certas habilidades e principalmente a uma na qual não tinha rival tocava viola e cantava muito bem modinhas dançava o fado com grande perfeição falava língua de negro e nela cantava admiravelmente fingiase aleijado de qualquer parte do corpo com muita naturalidade arremedava perfeitamente a fala dos meninos da roça sabia milhares de adivinhações e finalmente e eis aqui o seu mais raro talento sabia fazer com rara perfeição uma variedade infinita de caretas que ninguém era capaz de imitar Era por conseqüência as delícias das espirituosas sociedades em que se achava Quem dava uma súcia em sua casa e queria ter grande roda e boa companhia bastava somente anunciar aos convidados que o Teotônio era este o seu nome se acharia presente Agora quanto à sua ocupação ou meio de vida que para muitos era como dissemos impenetrável segredo o major Vidigal tanto fez que a descobriu em dias designados da semana reuniase no sótão onde ele morava certo número de pessoas que levavam até alta noite aí metidas Teotônio era finalmente o banqueiro de uma certa roda de jogo Nesta conformidade andava o major a querer pilhálo em flagrante e como tentava isso desde muito sem que o pudesse conseguir por ser sempre iludida a sua vigilância pela troca constante que faziam os da roda dos seus dias de reunião resolveu pôr a mão no Teotônio na primeira ocasião e servirse depois dele para a captura dos outros companheiros Como os leitores estarão lembrados o LeonardoVelho isto é o LeonardoPataca vivia com a filha da comadre dela tinha um descendente a cujo nascimento nós os fizemos assistir Pois apesar de haver já passado algum tempo a criança ainda não estava batizada O LeonardoPataca a instâncias da comadre que muito se afligia com aquela demora determinou finalmente o dia que ela se devia fazer cristã Segundo os hábitos imutáveis havia súcia por essa ocasião e segundo a moda foi o Teotônio convidado O major soubera de tudo e era exatamente aí que o esperava e tinha determinado pilhálo Para isso é que dera aos seus soldados o aviso de que acima falamos Era má sina do major ter sempre de andar desmanchando prazeres alheios e infelicidade para nós que escrevemos estas linhas estar caindo na monotonia de repetir quase sempre as mesmas cenas com ligeiras variantes a fidelidade porém com que acompanhamos a época da qual pretendemos esboçar uma parte dos costumes a isso nos obriga Grande parte da vida de um certo círculo naquele tempo consistia quase exclusivamente em todas essas coisas que temos descrito174 À hora ajustada chegou o major à casa do LeonardoPataca como não havia o menor motivo para violências porque tudo corria na mais perfeita paz o major entrou sozinho com prévia permissão do LeonardoPataca e assistiu ao divertimento Quando ele chegou estava exatamente Teotônio em cena com as suas habilidades e tendo esgotado já todas elas ia recorrer à última que era a das caretas É preciso notar que ele não sabia só fazer caretas a capricho sabiaas também fazer imitando pouco mais ou menos esta ou aquela cara conhecida era isso o que fazia morrer de riso aos circunstantes Estavam todos sentados e o Teotônio em pé no meio da sala olhava para um e apresentava uma cara de velho viravase repentinamente para outro e apresentava uma cara de tolo a rirse asnaticamente e assim por muito tempo mostrando de cada vez um tipo novo Finalmente tendo já esgotado toda a sua arte correu a um canto colocouse numa posição que pudesse ser visto por todos ao mesmo tempo e apresentou a sua última careta Todos desataram a rir estrondosamente apontando para o major Acabava de imitar com muita semelhança a cara comprida e chupada do Vidigal175 O major mordeu os beiços percebendo a caçoada do Teotônio e se já tinha boas tenções a seu respeito ainda as formou melhor naquela ocasião As risadas continuaram por muito tempo e ele não podendo afrontá las impassível e não havendo como já fizemos sentir motivo justo para um rompimento achou mais conveniente retirarse e pondose em posição conveniente esperar que a súcia se debandasse para então convidar o Teotônio a ir fazer algumas caretas aos granadeiros na casa da guarda Saiu pois completamente corrido Encontrando os seus granadeiros que tinham ficado a pouca distância dirigiuse ao Leonardo e fezlhe sentir que querendo a todo o custo naquela noite segurar o Teotônio temia que os de casa desconfiassem disso e lhe dessem escapula por qualquer meio eralhe pois mister uma pessoa que o fosse vigiar de perto sem que despertasse suspeitas essa pessoa devia ser o Leonardo Sou malvisto em casa de meu pai replicou este à proposta do major É hoje um bom dia de conciliação Talvez não queiram receberme E sua madrinha que lá se acha Mas a filha que é uma víbora contra mim Víbora ou não há de ir que quando manda a disciplina Não quero que aquele valdevinos ande tomando impunemente a minha cara para original de caretas Os granadeiros que conheciam o Teotônio e lhe sabiam da habilidade compreenderam logo o que tinha sucedido por aquele dito do major e desataram por seu turno a rir O Leonardo por aquele apelo à disciplina com a qual não se achava em muito bom pé de relações desde a noite do papailêlê venceu todas as dificuldades e repugnância que manifestara no desempenho da missão de que o encarregara o major e pôsse a caminho para a casa de seu pai Chegou e bateu assim que de dentro lhe perceberam as cores da farda e barretina houve um grito de medo e por um movimento que parecia combinado o major tinha razão foram repentinamente apagadas todas as velas da sala e começou a reinar uma confusão tal que parecia haverse travado uma luta entre todos O Leonardo viu logo nisso uma primeira contrariedade porém não deixou de achar graça no susto que causara Resolveu então falar da parte de fora para tranqüilizar aos medrosos Bom modo de ser recebido um filho em casa de seu pai Para quartafeira de trevas só lhe faltam as matracas A comadre que ouvira e reconhecera a voz do afilhado desatou a rir exclamando Vejam que logro é o Leonardo tragam as velas gente não há novidade que o cabo da guarda é nosso compadre Aquele brejeiro resmoneou o Leonardo velho sempre há de andar a fazer das suas vejam que susto causou a toda essa gente Ó amigo Teotônio desça que não há novidade À luz da primeira vela que traziam viuse descer por uma porta o Teotônio do forro do quarto da sala onde se havia escondido Apenas pôs o pé em terra fez logo uma careta de medo por tal forma expressiva que houve em todos uma tremenda explosão de hilaridade Começou a surdir gente de diversos cantos da casa e em presença do Leonardo recomeçou a folia Algumas pessoas não deixaram de estranhar e recear a presença do Leonardo naquela ocasião e naqueles trajes logo depois da saída do major porém a comadre a todos tranqüilizou dizendo que ele tendo obtido licença no quartel por não estar de serviço naquele dia viera assistir ao batizado de sua irmã Ele é meio doido repetia ela a todos mas é muito amoroso e nunca se esquece da família Leonardo confirmava esses protestos da comadre e ia entretanto tomando parte na brincadeira uma vez que contra as suas esperanças todos o haviam recebido bem em casa À proporção que se ia esquentando no prazer do fado e das cantigas começou o Leonardo a sentir remorsos pelo papel de judas que ali estava representando quando olhava para o Teotônio que desde que entrara lhe havia feito dar tão boas risadas pungialhe o coração lembrandose que ele próprio o havia de entregar ao major Não poucas vezes lhe passou pela cabeça darlhe escapula avisandoo porém a disciplina o papailêlê vinhamlhe à idéia e hesitava Enquanto era assaltado por estes pensamentos olhava repetidas vezes para o Teotônio que era deles a causa Este que nada tinha de tolo desconfiou da coisa e não sei por que instinto leu o que pensava o Leonardo e pôsse em guarda O Leonardo repentinamente tomou sua resolução Ora adeus disciplina disse consigo hei de dar escapula ao homem seja lá como for E do lugar em que estava acrescentou alto Ah Sr Teotônio quer saber uma coisa Pois se puser o pé daquela porta para fora o major põelhe a unha que para isso está ele à sua espera e para aqui me mandou Ó diabo exclamaram todos Mas nada de sustos tudo se há de arranjar que tenho eu boa vontade disto Mas não te comprometas por causa dele rapaz acrescentou a comadre ao ouvido do Leonardo olha que o major não é de graças e daí te pode vir mal Ora eu tenho pena dele só por aquelas caretas Juntaramse então os dois Leonardo e Teotônio e juntos concertaram o seu plano de modo que este escapasse ao major e que aquele não ficasse comprometido Estava já a noite muito adiantada ordenaram os dois que saíssem ao mesmo tempo muitos convidados e o Leonardo partindo adiante deles foi correndo ter com o major Aí vem o bicho Sr major Cerca cerca disse o major E cada um se dividiu para seu lado O major colouse à porta de um corredor e pôsse de olho alerta Veiose aproximando ao major um vulto assobiando tranqüilamente o estribilho de uma modinha Quando se achou em pequena distância o major deu um salto donde estava e segurouo Um ai franzino se fez ouvir acompanhado de um Me largue Que é isto O major prestou atenção não tendo reconhecido a voz do Teotônio e viu que tinha segurado num pobre corcunda aleijado ainda em cima da perna direita e do braço esquerdo Ora váse para o inferno disse o major sumase daqui sô pobre diabo176 também não sei o que andam fazendo a estas horas pelas ruas estas figuras O aleijado safouse apressadamente livre do susto e lá foi continuando a assobiar o seu estribilho Fezse depois disto o mais profundo silêncio e o major não viu mais passar senão os convidados da patuscada não vendo entre eles o Teotônio Então ardeu com o caso e reunindo os granadeiros disse para Leonardo Ele não saiu Saiu replicou este até de jaqueta branca e chapéu de palha eu o vi tomar ali para a porta onde estava o Sr major De jaqueta branca e chapéu de palha perguntou o major Sim senhor e de calça preta não o peguei porque logo vi que não havia de escapar ao Sr major Ah patife patife resmungou destas nunca levei Era o corcunda o aleijado Ele sabe fazer muito bem de corcunda e de aleijado disse um dos granadeiros já o vi uma vez fazer isso que era mesmo tal e qual Era com efeito o Teotônio o aleijado que o major tinha segurado O Leonardo riase às furtadelas do logro que levara o major Não tardou porém muito tempo que lhe não amargasse aquele prazer vindo o major a saber que tudo aquilo se fizera de combinação com ele capítulo xliii Descoberta Há neste mundo177 uma coisa ainda pior do que um inimigo e é um mau amigo Um dos convidados do Leonardopataca diziase muito amigo do Teotônio e pelo empenho que o Leonardo mostrara em livrálo das garras do major protestara desde logo repartir com ele parte dessa amizade sem que nenhum dos dois ficasse prejudicado Poucos instantes depois desse protesto deu logo a primeira prova de que estava disposto a cumprilo Enquanto se passavam as cenas que acabamos de descrever tinha amanhecido o major e sua gente punhamse em retirada ainda se achavam porém nas imediações do lugar onde se havia feito a tentativa para prender o Teotônio quando o tal amigo a que nos referimos que fora um dos últimos a retirarse encontrando a patrulha e vendo que o Teotônio não ia no meio dela concluiu que os planos haviam surtido bem e que o major ficara desta vez logrado Teve por isso um acesso de alegria e esquecendo a presença do major correu ao Leonardo abraçouo exclamando com arrebatado ímpeto Bravo como esta não fazes duas em toda a tua vida foi limpa ele há de ficarte obrigado disto para sempre e eu com ele porque sou seu amigo e teu também O Leonardo ficou estático diante de semelhante imprudência O major que ia cabisbaixo pensando no logro que acabara de levar voltouse repentinamente a palavra ele proferida pelo terrível amigo abriu luz a seus olhos O Leonardo foi tirado do torpor em que se achava pela voz do major a dizerlhe compassadamente Recolhase preso ao quartel A esta sentença o Leonardo ergueu do fundo dalma tudo quanto podia haver aí de despeito de rancor e lançou em um olhar sobre o imprudente que a havia provocado e que ainda muito senhor de si apertavalhe desapiedadamente a mão que parecia não estar disposto a largar tão cedo Deixemos agora o Leonardo vítima de sua dedicação caminhar preso para o quartel e passemos a outras coisas Há muito tempo que não falamos em D Maria e na sua gente Saibam os leitores que passada a luademel em que tudo foram rosas o nosso José Manuel pusera como se costuma dizer as mangas de fora e tais coisas fez que em poucos meses estava tudo de guerra aberta tinhase ele com sua mulher Luisinha mudado de casa de D Maria e por causa de dote vai dote vem herança daqui herança dali havialhe D Maria proposto uma ação por tal sorte complicada que era de desconfiar que não bastassem para verlhe o fim os dias que restavam de vida à pobre velha Tinhase José Manuel tornado para Luisinha um verdadeiro marido dragão desses que só aquele tempo os conta tão perfeitos que eram um suplício constante para as mulheres Depois que se havia mudado de casa de D Maria nunca mais Luisinha vira o ar da rua senão às furtadelas pelas frestas da rótula então chorava ela aquela liberdade de que gozava outrora aqueles passeios e aquelas palestras à porta em noite de luar aqueles domingos de missa na Sé ao lado de sua tia com o seu rancho de crioulinhas atrás as visitas que recebiam e o Leonardo de quem tinha saudades e tudo aquilo enfim a que não dava nesse tempo muito apreço mas que agora lhe parecia tão belo e tão agradável Tendose casado com José Manuel para seguir a vontade de sua avó178 votava a seu marido uma enorme indiferença que é talvez o pior de todos os ódios Pois a vida de Luisinha depois de casada representava com fidelidade a vida do maior número das moças que então se casavam era por isso que as Vidinhas não eram raras e que poucas famílias haviam que não tivessem a lamentar um desgostozinho no gênero do que sofreu aquela pobre família que indo ao Oratório de Pedra viera dizimada para casa e cuja história serviu de tema às intrigas da comadre quando quis pôr a José Manuel fora do lance Ora é claro que tendo D Maria ficado um pouco séria com a comadre por causa de toda aquela intriga que precedera ao casamento de José Manuel com sua sobrinha hoje que estava com este de candeias às avessas se reatasse agora o laço da amizade que por um pouco afrouxaram sucedia com efeito Um dia as duas encontraramse na missa tornaramse a falar as desgraças do Leonardo que fizeram tema a essa conversação enterneceram a D Maria que por seu turno também referiu à comadre tudo quanto sucedia agora à pobre Luisinha Ai Senhora dizia a comadre referindose a José Manuel parece que me roncava cá o quer que seja quando via aquele maldito arrenego do homem que é um valdevinos às direitas Aquilo há de levar a pobre menina à sepultura Coitada bem criada e malfadada Nunca pensei criatura nunca pensei que sucedesse tal Mas aquilo como era finório que palavrinhas doces que santidade aquela Agora senhora agora sou eu capaz de acreditar naquela história da moça furtada no oratório de pedra ele tem bofes para tal Mas hei de me ver vingada oh se hei de tão certo como estar eu aqui os desembargadores lá estão que me hão de dar esse gosto espero isso em Deus Desta conversa e do mais que se seguiu nasceu a conciliação das duas Quando certas amizades são uma vez interrompidas quando sofreram ainda mesmo um leve estremecimento é difícil que voltem depois ao estado primitivo com outras amizades acontece porém o inverso os estremecimentos aproveitam porque é fácil o restabelecimento da paz e parece que depois disto se tornam mais estreitas A amizade que existia entre D Maria e a comadre era deste último gênero Portanto depois daquela conversa na missa não só voltaram as relações entre as duas ao seu primitivo estado como se tornaram mais que nunca sólidas Daí em diante não houve um só segredo entre as duas que não fosse mutuamente comunicado e elas fizeram pacto de se ajudarem reciprocamente para dar remédio uma aos males da sobrinha outra às diabruras do afilhado O Leonardo como dissemos achavase preso fizera disso ciente à madrinha que se pôs logo em alvoroto não só pelo fato em si como pelo generoso motivo que o havia ocasionado O primeiro passo pois que tiveram a dar as duas D Maria e a comadre em virtude do seu pacto foi tratar de alcançar a soltura do Leonardo e livrálo do mais que sabe Deus lhe estaria preparado Vamos ver como se houveram em semelhante empenho capítulo xliv Empenhos O primeiro passo que deu a comadre foi dirigirse à casa do major a interceder pelo Leonardo o major porém mostrouse inflexível o caso era grave já não era o primeiro a disciplina não podia ser impunemente ofendida mais de uma vez o castigo devia ser infalível e grande A comadre que fora cheia de boas esperanças soube pelo major o que ignorava o que nem mesmo supunha o Leonardo não só ficaria por mais tempo preso como teria de ser chibateado A pobre mulher apenas lhe declarou isto o major caiu de joelhos chorou lamentouse tudo porém debalde Desesperada saiu e com a mantilha caída e toda em desalinho correu voou à casa de D Maria Ao vêla entrar naquele estado D Maria ergueuse da sua banquinha e largou a almofada da renda Que tendes criatura que tendes exclamou Santo Cristo o que é falai Ai Sra D Maria do meu coração que desgraça respondeu a comadre que má sina de rapaz Ora veja o que lhe sucede por ter feito uma boa ação E eu que sofro e que sinto como se fosse meu filho E os soluços a sufocaram Fale senhora replicou D Maria fale que me põe numa aflição Vai apanhar D Maria vai apanhar de chibata ele o Leonardo Meu Deus pobre rapaz ora vejam tudo em que deu é sina coitado aquele rapaz não nasceu em bom dia não comadre isso sou eu capaz de jurar pela salvação da minha alma Mas não falou com o major que lhe disse ele Duro como uma pedra senhora a nada se moveu pedilhe pelas cinco chagas pela Senhora Santíssima tudo embalde tudo em vão Está bom não se aflija comadre ainda há um meio que eu penso que não há de falhar vamos à casa dela que por lá é caminho certo ela dá se muito comigo há de pedir pelo moço Já me tinha lembrado179 disso mas na tribulação em que vinha tornoume a esquecer se com ela não se arranjar alguma coisa está tudo perdido Os leitores estão já curiosos por saber quem é ela e têm razão vamos já satisfazêlos O major era pecador antigo e no seu bom tempo fora daqueles de quem se diz que não deram o seu quinhão ao vigário restava lhe ainda hoje alguma coisa que às vezes lhe recordava o passado essa alguma coisa era a MariaRegalada que morava na Prainha Maria Regalada fora no seu tempo uma mocetona de truz como vulgarmente se diz era de um gênio sobremaneira folgazão vivia em contínua alegria ria se de tudo e de cada vez que se ria faziao por muito tempo e com muito gosto daí é que vinha o apelido regalada que haviam juntado ao seu nome Isto de apelidos era no tempo desta história uma coisa muito comum não estranhem pois os leitores que muitas das personagens que aqui figuram tenham esse apêndice ao seu nome Dizem todos e os poetas juram e tresjuram que o verdadeiro amor é o primeiro temos estudado a matéria e acreditamos hoje que não há que fiar em poetas chegamos por nossas investigações à conclusão de que o verdadeiro amor ou são todos ou é um só e neste caso este não é o primeiro é o último O último é que é o verdadeiro porque é o único que não muda As leitoras que não concordarem com esta doutrina convençam me do contrário se são disso capazes Isto tudo vem para dizermos que MariaRegalada tinha um verdadeiro amor ao major Vidigal o major pagavalho na mesma moeda Ora D Maria era uma das camaradas mais do coração de MariaRegalada Eis aí por que falando dela D Maria e a comadre se mostraram tão esperançadas a respeito da sorte do Leonardo Já naquele tempo e dizem que é defeito do nosso o empenho o compadresco eram uma mola real de todo o movimento social Vai mandar aprontar a cadeirinha disse D Maria a uma de suas escravas Vamos senhora vamos que isto são os meus pecados velhos D Maria aprontouse meteuse na sua cadeirinha a comadre tomou a mantilha e partiram para a Prainha MariaRegalada recebeuas com uma boa risada Que milagre de Santa Engrácia que fortuna que alegrão O que a traz por aqui Isto é grande novidade É novidade sim respondeu D Maria porém triste novidade Com as honras do estilo que não eram muitas naquele tempo foi a comadre apresentada porque não era conhecida de MariaRegalada Primeiro D Maria depois a comadre contaram cada uma por sua parte a história do Leonardo com todos os detalhes e depois de inúmeros rodeios que puseram a arder a paciência da ouvinte e quase a fizeram morrer de curiosidade chegaram finalmente ao ponto importante ao motivo que ali as levara queriam nada menos do que a soltura e perdão do Leonardo e contavam para alcançar semelhante coisa com a influência da Maria Regalada sobre o major Ora disse esta tomando um ar de modéstia eu já não presto para nada isso era bom noutro tempo agora o Sr major as coisas estão mudadas D Maria depois que ele se meteu na polícia nem mais nem ontem quem sabe o que por lá vai Mas enfim D Maria eu não sei dizer que não tenho o coração assim e sempre o tive no meu tempo muita gente se aproveitou disto Eu farei o que puder vou falarlhe talvez que ele me queira atender Há de atender há de respondeu a comadre ele já não está tão velho que se tenha esquecido de todo do tempo de dantes Veremos veremos A Sra comadre sabe lá o que são homens Digame a mim se sei acudiu esta prontamente Mas então atalhou D Maria o negócio requer toda a pressa porque de um instante para outro podem chegar a farda ao corpo do pobre rapaz e depois nem Santo Antônio a tira Não há de haver novidade ainda havemos chegar a tempo com a graça de Deus Para maior segurança vamos todas três daqui à casa do major e cada uma por nosso lado faremos tudo para livrar o moço MariaRegalada vestiuse à pressa tomou a sua mantilha e ao lado da cadeirinha em que ia D Maria partiram para a casa do major capítulo xlv As três em comissão Partiram pois as três para a casa do major que morava então na rua da Misericórdia uma das mais antigas da cidade O major recebeuas de rodaque de chita e tamancos não tendo a princípio suposto o quilate da visita apenas porém reconheceu as três correu apressado à camarinha vizinha e envergou o mais depressa que pôde a farda como o tempo urgia e era uma incivilidade deixar sós as senhoras não completou o uniforme e voltou de novo à sala de farda como se sabe calças de enfiar tamancos e com o lenço de Alcobaça sobre o ombro segundo seu uso A comadre ao vêlo assim apesar da aflição em que se achava mal pôde conter uma risada que lhe veio aos lábios Quanto ao mais os cumprimentos da recepção passaram sem novidade Naquela atropelação a comadre enxergou logo um bom agouro para o resultado do seu negócio Além disso acrescia ainda em seu favor que o major guardava na sua velhice doces recordações de sua mocidade e apenas se via cercado por mulheres se não era em lugar público e em circunstâncias em que a disciplina pudesse ficar lesada tornavase imediatamente um babão como só se poderia encontrar segundo no velho Leonardo Se lhe davam então no fraco se lhe faziam um elogio se lhe faziam uma carícia por mais estupidamente fingida que fosse arrancavam dele tudo quanto queriam ele próprio espontaneamente se oferecia para ir dando o que dele queriam e ainda em cima ficava muito obrigado Contudo ainda que a comadre soubesse já disso com antecipação ou o pressentisse pelas aparências a gravidade do negócio de que se tratava era tal que nem isso bastou para tranqüilizála Dispôsse para o ataque ajudada por suas companheiras que apesar de mais estranhas à sorte do Leonardo nem por isso se ligavam menos à sua causa Houve um momento de perplexidade para decidirse quem seria o orador da comissão O major percebeu isto e teve assim um lampejo de orgulho por ver assim três mulheres confundidas atrapalhadas diante de sua alta pessoa fez um movimento como para animálas arrastando sem querer os tamancos Oh de tamancos e farda não está má esta senhoras donas coisas de velho no meu tempo não fazia eu destas D Maria que o diga acudiu logo a comadre referindose a Maria Regalada e querendo fazer brecha fosse por onde fosse mas não importa o negócio é outro É verdade Sr major o bom tempo já lá foi E Deus perdoe a quem dele tem saudades retorquiu o major rindo se com um rugoso riso de velha sensualidade Sim sim tornou a MariaRegalada mas deixe essas coisas todas para logo Ai criatura acudiu D Maria que até então estivera calada cansada talvez do número prodigioso de mesuras que fizera ao entrar deixai cada um lembrarse do seu tempo isto consola eu cá gosto bem quando acho É como eu respondeu o major em se me tocando cá nas feridas antigas Pois é mesmo por me lembrar destas feridas antigas atalhou a MariaRegalada que venho aqui com estas senhoras donas que o Sr major bem conhece e se não foram elas cá não viera pois o negócio é sério mas enfim sempre conto A comadre achou ocasião bem apanhada e fez com a cabeça um sinal de aprovação Vamos lá ver o que é o tal negócio sério respondeu o major atinando pela presença da comadre pouco mais ou menos com o que era e um sinal duvidoso com a cabeça ou porque se quisesse fazer de bom ou porque realmente não quisesse abrir largas esperanças A interlocutora prosseguiu O seu granadeiro Leonardo é um bom rapaz O major arqueou franzindo as sobrancelhas e repuxou os beiços como quem não concordava in totum com aquilo Não me comece já com coisas Sr major Pois é sim senhor muito bom rapaz e não há razão para ser castigado como está para ser por causa de uma coisa nenhuma que fez isso não é razão não senhor para se mandar tocar de chibata um moço que não é nenhum valdevinos pois o Sr major bem sabe que o padrinho quando morreu deixoulhe alguma coisa que bem lhe podia estar já nas mãos e ele por isso livre da maldita farda a quem sempre tive zanga menos de uma que bem se sabe se o tal pai que tem mas deixemos o pai que não vem nada ao caso Já sei de tudo já sei de tudo atalhou o major Ainda não Sr major observou a comadre ainda não sabe do melhor e é que o que ele praticou naquela ocasião quase que não estava nas mãos dele Bem sabe que um filho na casa de seu pai Mas um filho quando é soldado retorquiu o major com toda a gravidade disciplinar Nem por isso deixa de ser filho tornou D Maria Bem sei mas a lei Ora a lei o que é a lei se o Sr major quiser O major sorriuse com cândida modéstia A discussão foise assim animando porém o major nada de ceder até pelo contrário parecia mais inflexível do que nunca chegou mesmo a pôrse em pé e a falar muito exaltadamente contra o atentado do Leonardo e a necessidade de um severo castigo era engraçado vêlo no bonito uniforme que indicamos de pé fazendo um sermão sobre a disciplina diante daquelas três ouvintes tão incrédulas que resistiam aos mais fortes argumentos Ainda porém não tinham as três esgotado contra ele o seu último recurso puseramno pois em ação Quando mais influído estava o major as três a um só tempo e como de combinação desataram a chorar O major parou encarouas um instante seu semblante foise visivelmente enternecendo enrugando e por fim desatou também a chorar de enternecido Apenas as três se aperceberam deste triunfo carregaram sobre o inimigo Foi então uma algazarra uma choradeira sem nome capaz de mover as pedras O major de enternecido foi passando a atordoado e como que ficou envergonhado das lágrimas que lhe corriam pelas faces enxugouas e procurou reassumir toda a sua antiga gravidade Nada disse desembaraçandose das três e passeando a passos largos pela sala nada que haviam dizer de mim se me vissem aqui nestas choramingas de criança Eu o major o Vidigal a chorar no meio de três mulheres Senhoras donas o caso é grave e não lhe vejo remédio o exemplo a disciplina as leis militares nada não pode ser E deu as costas às três continuando a passear e a fazer ressoar com força os tamancos no assoalho A MariaRegalada disse baixo às duas em cujos semblantes já nem transluzia o mais pequeno vislumbre de esperança Ainda não está tudo perdido E dirigindose ao major acrescentou Bem Sr major águas passadas não moem moinho Qual passadas senhora dona mas bem vê que o caso é grave Seja lá o que for sinto ter perdido meus passos e não servir a quem desejava verdade seja que eu já contava com isso e também não prometi Mas em último lugar quero sempre dizerlhe uma coisa mas há de ser em particular Vamos lá estou pronto Quem tivesse alguma perspicácia conheceria não com grande facilidade que o major estava há muito tempo disposto a ceder porém que queria fazerse rogado A MariaRegalada levou então o major para um canto da sala e disse lhe ao ouvido algumas palavras O major desanuviou o rosto remexeuse todo coçou a cabeça balançou com as pernas mordeu os beiços Ora esta disse em voz baixa à sua interlocutora pois era preciso falar nisto Olhem que o que mulher não fizer nem o diabo faz180 Ora graças que se lhe acabaram os sestros respondeu Maria Regalada em voz alta Sim exclamaram as duas sorrindo de esperança Eu bem dizia que o Sr major tinha bom coração Eu nunca duvidei apesar de tudo mas agora o passado passado o caso era grave como ele dizia e foi um favor Então D Maria quem foi rei sempre teve majestade Majestade qual isso já não é pra181 mim O major atalhou esta explosão de gratidão que levava visos de ir longe Hão de ficar ainda mais contentes comigo não lhes digo por quê mas verão Esta agora é que182 grande veremos o que será Já sei é Há de ser por força Estou quase adivinhando Sabem que mais atalhou o major são horas de uma diligência a que não posso faltar O rapaz está livre de tudo contanto que acrescentou dirigindose a MariaRegalada o dito dito Eu nunca faltei à minha palavra replicou esta Retiraramse as três cheias do maior contentamento e o major saiu depois também para cumprir a sua promessa capítulo xlvi A morte é juiz D Maria dirigiuse imediatamente para casa na sua cadeirinha Ao chegar notou grande rumor e alvoroço e tratou logo de indagar a causa Um escravo de sua sobrinha a esperava com uma carta Apenas a leu D Maria não diremos que se entristeceu porém mostrouse muito atrapalhada Não entrem com a cadeirinha esperem lá que torno a sair E com efeito meteuse de novo nela e mandou que seguissem para casa de sua sobrinha O caso era o seguinte José Manuel entrara para casa em braços tendo sido acometido na rua de um violento ataque apoplético ao voltar do cartório onde tivera uma grave contestação com o procurador de D Maria por causa da demanda que entretinham Luisinha a coitada vendose naqueles apuros sem saber o que fizesse despachara logo portador para casa de sua tia D Maria apenas entrou mandou chamar o licenciado que depois de examinar o doente declarou que era caso perdido Fizeramse entretanto algumas aplicações que não tiveram resultado algum Estás viúva menina disse D Maria alguma coisa compungida com a declaração do médico Luisinha pôsse a chorar mas como choraria por qualquer vivente porque tinha coração terno Estavam presentes algumas pessoas da vizinhança e uma delas disse baixinho à outra vendo o pranto de Luisinha Não são lágrimas de viúva E não eram nós já o dissemos o mundo faz disso as mais das vezes um crime E os antecedentes Porventura ante seu coração fora José Manuel marido de Luisinha Nunca o fora senão ante as conveniências e para as conveniências aquelas lágrimas bastavam Nem o médico nem D Maria se haviam enganado à noitinha José Manuel expirou No dia seguinte fizeramse os preparativos para o enterro A comadre informada de tudo compareceu pesarosa a prestar seus bons ofícios suas consolações Mais tarde disse ela depois de algum tempo de conversação há de vir alguém cumprir dois deveres E limitouse a isso sem mais se explicar183 O enterro saiu acompanhado pela gente da amizade os escravos da casa fizeram uma algazarra tremenda A vizinhança pôsse toda à janela e tudo foi analisado desde as argolas e galões do caixão até o número e qualidades dos convidados e sobre cada um desses pontos apareceram três ou quatro opiniões diversas Naqueles tempos ainda se não usavam os discursos fúnebres nem os necrológios que hoje andam tanto em voga escapamos pois de mais essa José Manuel dorme em paz no seu derradeiro jazigo deixemolo que se outros mortos para nada servem aquele menos do que nenhum184 Como havia prometido a comadre alguém chegou quase ao anoitecer Era o Leonardo Quando ele entrou na sala D Maria não pôde conter um grito de surpresa vinha ele em completo uniforme de sargento da companhia de granadeiros Como olhem o major E então É verdade senhora dona respondeu o Leonardo a ele tudo devo 185 E começou a procurar com os olhos alguma coisa ou alguém que tinha curiosidade de ver deu com o que procurava era Luisinha Há muito que os dois se não viam não puderam pois ocultar o embaraço de que se acharam tomados E foi tanto maior essa emoção que ambos ficaram surpreendidos um do outro Luisinha achou Leonardo um guapo rapagão de bigodes e suíça elegante até onde pode sêlo um soldado de granadeiros com o seu uniforme de sargento bem assente Leonardo achou Luisinha uma moça espigada airosa mesmo os olhos e cabelos pretos e tendo perdido todo aquele acanhamento físico de outrora Além disso seus olhos avermelhados pelas lágrimas seu rosto empalidecido se não verdadeiramente pelos desgostos daquele dia seguramente pelos antecedentes tinham nessa ocasião um toque de beleza melancólica que em regra geral não devia prender muito a atenção de um sargento de granadeiros mas que enterneceu ao sargento Leonardo que apesar de tudo não era um sargento como qualquer E tanto assim que durante a cena muda que se passou quando os dois deram com os olhos um no outro passaram rapidamente pelo pensamento do Leonardo os lances de sua vida de outrora e remontando de fato em fato chegou ele àquela ridícula mas ingênua cena da sua declaração de amor a Luisinha Pareceulhe que tinha então escolhido mal a ocasião e que agora isso teria um lugar muito mais acertado A comadre que dava uma perspicaz atenção a tudo o que se passava como que leu na alma do afilhado aqueles pensamentos todos fez um gesto quase imperceptível de alegria raiavalhe na mente alguma idéia luminosa Começou então a retraçar um antigo plano em cuja execução por muito tempo trabalhava e cujas probabilidades de êxito lhe haviam reaparecido naquilo que se acabava de passar Passada a primeira emoção Luisinha ergueuse e fez ao Leonardo um acanhado cumprimento este correspondeulhe com alguma coisa entre cumprimento paisano e continência militar A comadre rompeu depois disto a conversa procurando entreter D Maria e deixar os dois lá entregues a si Digame disse ela dirigindose a D Maria e aquela sua demanda com o defunto A morte foi desta vez juiz Ele não tem herdeiros era só no mundo Eu não levei a minha avante é verdade porque enfim não posso dizer que venci mas também não perdi Agora sim eu tenho muito gosto de entregar tudo à menina mas não queria que me levassem as coisas senão por minha muito livre vontade Está bem o passado já lá vai Deus é assim escreve direito por linhas tortas E por aí adiante empenharamse na sua conversa Os dois depois de algum tempo de silêncio como já se tinham retirado todas as visitas foram pouco e pouco de palavra em palavra travando diálogo e conversavam no fim de algum tempo tão empenhadamente como a comadre e D Maria com a diferença que a conversa daquelas duas era alta desembaraçada a deles baixa e reservada Não há nada que interrompida mais depressa se reate do que seja a familiaridade em que o coração é interessado Não se estranhe pois que Luisinha e Leonardo a ela se entregassem E querem ver uma extravagância que tantas vezes se repete Depois que se fizera moça e que tomara estado nunca Luisinha tinha tido momentos de tão verdadeiro prazer como aqueles que ali estava gozando com aquela conversa num dia de luto quando acabava de sair o caixão que levara à sepultura aquele que devia ter feito a sua felicidade O Leonardo também por sua vez nunca no meio de todas as vicissitudes de sua vida extravagante tinha tido instantes que tão rápidos lhe corressem e os instantes mais rápidos são os mais venturosos186 do que aqueles em que via o objeto de seus primeiros amores sob o peso do infortúnio em um dia de pranto Pois parece que aquelas mesmas circunstâncias reavivaram o passado a comadre folgava lá no seu lugar com tudo aquilo e parecendo prestar toda a atenção a D Maria não perdia uma só circunstância Finalmente chegou a hora da retirada não da comadre que se ofereceu para fazer companhia à viúva porém de Leonardo a quem esperava o major porque era dia de serviço e apenas tinha ele obtido licença para cumprir o duplo dever de dar os pêsames a D Maria e agradecer o interesse que por ele havia tomado fazendo por intermédio de Maria Regalada que o major não só lhe alcançasse perdão do castigo que lhe era destinado como também o acesso de posto que repentinamente tivera Luisinha involuntariamente estendeu à despedida a mão ao Leonardo que lha apertou com força Ora isto naquele tempo187 era bastante para dar que falar ao mundo inteiro capítulo xlvii Conclusão feliz188 A comadre passou com a viúva e sua tia quase todo o tempo do nojo e acompanhouas à missa do sétimo dia O Leonardo compareceu também nessa ocasião e levou a família à casa depois de acabado o sacrifício Aquele aperto de mão que no dia do enterro de seu marido Luisinha dera ao Leonardo não caíra no chão a D Maria assim como também lhe não escaparam muitas outras coisas consecutivas a essa e o caso é que não lhe parecia extravagante a idéia que lhe andava na mente Muitas vezes quando ao cair da avemaria a boa da velha se sentava a rezar na sua banquinha em um canto da sala entre um padrenosso e uma ave maria189 do seu bendito rosário lhe vinha a idéia de casar de novo a fresca viuvinha que ainda muito moça corria o risco de ficar de um momento para o outro desamparada num mundo em que os Josés Manuéis190 não são difíceis de aparecer especialmente a uma viuvinha apatacada e ao mesmo tempo que lhe vinha esta idéia lembravase também do Leonardo que amara sua sobrinha no tempo da criançada que era apesar de extravagante um bom moço e que além disso não era de todo desarranjado graças à benevolência do padrinho barbeiro que dele se lembrara em sua hora extrema Verdade é que se não sabiam bem as contas que seu pai havia feito a semelhante respeito mas como era coisa que constava de verba testamentária D Maria nada via mais fácil do que propor uma demanda cujo resultado não seria duvidoso Havia porém no meio de tudo isto uma coisa que deitava água na fervura e vinha a ser que o Leonardo era soldado ora soldado naquele tempo era uma coisa de meter medo Quando D Maria chegava a este ponto de suas meditações abandonavaas e continuava o seu rosário A comadre pensava quase exatamente do mesmo modo e só esta única dificuldade se lhe antolhava à realização de seu antigo plano Enquanto estas duas pensavam os outros dois obravam Luisinha e Leonardo travaram pouco a pouco grande namoro e quem quiser ver coisa de andar depressa é namoro de viúva Leonardo no dia do primeiro encontro quis recorrer a uma nova declaração Luisinha porém fez o processo mais sumariamente aceitando a declaração de há tantos anos Viamse os dois muitas vezes sem que os vissem e dispunham seus negócios Infelizmente o mesmo embaraço lhes ocorria um sargento de linha não podia casar Havia um meio talvez simples de remediar tudo e meio muito em voga aquele tempo muito admitido Os dois porém antes de tudo amavamse sinceramente e a idéia de uma união ilegítima a que faltava o caráter de vitaliciedade lhes repugnava por isso que não correspondia de modo algum ao seu amor que tinha para eles a perspectiva de durar um milhão de eternidades Era uma boa inspiração aquela que eles tinham esse meio de que falamos essa caricatura da família que então se usava é seguramente uma das causas que produziu este estado de desmoralização da nossa sociedade onde impera o egoísmo porque tão frouxos são os laços que unem entre si os seus membros Era isso unicamente que demorava aos dois entretanto o Leonardo um dia achou o salvatério e veio comunicar a Luisinha o meio que tudo remediava Podia ele ficar sendo soldado e casar isto é alcançar baixa na tropa de linha e passar para as milícias no mesmo posto A dificuldade porém estava toda em arranjar essa baixa e passagem Luisinha encarregou se por sua parte de vencer este novo embaraço que aparecia Um dia em que estava sua tia a rezar o seu rosário e justamente num daqueles intervalos de padrenosso e avemaria de que acima falamos Luisinha chegouse a ela e comunicoulhe com confiança tudo que havia fazendo preceder a sua narração da seguinte observação que cortava qualquer objeção que ela pudesse opor Por lhe obedecer e lhe fazer o gosto caseime uma vez e não fui feliz quero ver agora se acerto melhor fazendo nova escolha por mim mesmo Em breve porém conheceu a inutilidade de sua precaução porque D Maria confessou que ruminava há tempos a mesma idéia e que naquele mesmo instante nisso pensava Combinaramse pois as duas A bondade do major tinhalhes inspirado a maior confiança e pois a ele lembraramse de recorrer de novo Foram ter com a MariaRegalada que mesmo na véspera lhe tinha mandado dar parte que se mudara da Prainha e lhe oferecia sua nova morada A comadre de tudo inteirada não faltou na comissão que desta vez adquirira mais um eloqüente membro Quando entraram na casa de MariaRegalada a primeira figura que lhes apareceu foi o major e o que é mais o major em hábitos menores de rodaque e tamancos Ah disse a comadre em tom malicioso apenas apareceu Maria Regalada ah isto pelo que vejo vai bem Não se lembram respondeu esta daquele segredo com o qual obtive o perdão do moço Pois era isto A MariaRegalada tinha por muito tempo resistido à vontade do major que queria que ela viesse definitivamente morar em sua companhia não atribuímos essa resistência senão a capricho para não fazermos mau juízo de ninguém O caso é que o major punha naquilo o maior empenho teria lá suas razões O segredo que a MariaRegalada dissera ao major no dia em que fora pedir pelo Leonardo tinha sido a promessa de que se fosse servida cumpriria o gosto do major Está pois tudo explicado Depois disto entraram todos em conferência o major desta vez achou o pedido muito justo em atenção ao fim por que era feito e não pôs dificuldade alguma Com a sua influência tudo alcançou e em uma semana entregou ao Leonardo dois papéis um era a sua baixa da tropa de linha e outro uma carta em que o velho LeonardoPataca chamava seu filho para lhe fazer entrega do que lhe deixara seu padrinho e que se achava religiosamente intacto Isto ensinará aos leitores e a quem escreve esta história a não fazerem maus juízos da probidade de ninguém nem mesmo da probidade de um meirinho daqueles tempos de outrora191 Passado o tempo indispensável do luto o Leonardo em uniforme de Sargento de Milícias recebiase na Sé com a Luisinha assistindo à cerimônia toda a família em peso Daqui para diante começa a aparecer o reverso da medalha de todas essas chocarrices de que até então constou a vida do Sargento vinha a morte do velho LeonardoPataca e mil outras coisas tristes O autor não tem gênio para tratar dessas coisas e por isso dá fim pedindo aos leitores que se esqueçam do seu trabalho não lhe façam carga de seus defeitos porque foi apenas um ensaio Se alguém disser que é mau costume querer o barbeiro novo aprender na barba do freguês tolo ele observara que os leitores e só deles se hão de aproveitar de algum fruto bom que por ventura este ensaio possa dar e que portanto tenham tolerância para quem principia192 FIM Posfácio A autocensura nas Memórias de um sargento de milícias193 Os folhetins das Memórias de um sargento de milícias começaram a sair anonimamente no dia 27 de junho de 1852 e terminaram em 31 de julho do ano seguinte Faziam parte da Pacotilha do nº 73 ao 131 suplemento do Correio Mercantil do Rio de Janeiro jornal especializado em assuntos comerciais Fazendo jus ao nome o suplemento tinha um modo muito curioso de denominar seus assuntos suas partes e mesmo seus leitores estes eram chamados de fregueses o sumário era a fatura as notícias eram as mercadorias etc Havia entre folhetim e Pacotilha uma identificação que ia além do aspecto gráfico Passavase das demais matérias para o texto do romance e deste para aquelas freqüentemente sem nenhuma indicação gráfica principalmente no final do folhetim Além disso irreverência e humor davam o tom a ambos Mantinham também um permanente diálogo em vários números o suplemento faz alusão ao folhetim ora com o propósito de simplesmente anunciar sua publicação ora dando conta de parte de seu enredo O número 95 por exemplo traz um comentário que atribui a ausência de capítulo da obra à falta de inspiração do autor O folhetim por seu turno apropriavase de muitos dos assuntos comentados pelos redatores do jornal entre os quais se incluía o próprio Manuel Antônio de Almeida Críticas ao hábito da maledicência à prática de patuscadas e ao comportamento do clero são alguns exemplos Cabe esclarecer que havia uma diferença de perspectiva entre os dois discursos Festividades religiosas nada piedosas brigas práticas maledicentes ou mesmo desonestas eram mostradas pelo folhetim mais como chocarrices ou mesmo como matéria da visão satírica do autor sem atitude de censura Já a Pacotilha noticiava fatos semelhantes com tom de censura Chegava mesmo a cobrar da polícia ações mais efetivas Como os fatos decorriam indiretamente de reclamações dos leitores ao jornal só cabia tal atitude Quanto à identificação visual tratavase de um recurso prático e eficiente para estimular por meio das peripécias do romance a leitura das outras matérias A suspensão da narrativa em momentos estratégicos obrigava o leitor interessado na continuação da história a voltar a ler o jornal Essa função motivadora está na origem do folhetim Os jornais franceses do início do século xix começaram a perder seus leitores como conseqüência da forte censura imposta por Napoleão à imprensa Como forma de motiválos criouse uma seção de entretenimento denominada feuilleton que ocupava em geral o rodapé da primeira página A princípio era uma designação genérica que servia para abrigar desde crítica teatral resenhas crônicas até receitas culinárias ou de beleza anedotas e charadas A partir de 1836 o proprietário do jornal Le Siécle Émile de Girardin reserva o espaço nobre de seu jornal para a publicação do romance picaresco Lazarillo de Tormes que passa a sair em capítulos diários A partir daí o termo folhetim começa a adquirir um sentido mais restrito designando apenas o romance publicado em partes através da imprensa Os demais assuntos que compunham o primitivo folhetim as variedades vão para páginas internas do jornal e passam a receber nomes específicos exigindo uma adjetivação para o termo genérico ex folhetim literário Os objetivos do empresário foram plenamente atingidos isto é ele passou a vender mais jornais Os concorrentes evidentemente aderiram ao expediente A origem do folhetim portanto ligase a fatores antes de mais nada comerciais A necessidade de atingir um público mais amplo e as condições impostas pelo modo de publicação acabaram por definir já na década de 1840 uma verdadeira fórmula para o folhetim cujos grandes artífices foram Eugène Sue autor de Os mistérios de Paris publicado entre 1841 e 1843 e Alexandre Dumas autor de O conde de Monte Cristo de 1844 cortes marcados pela técnica do suspense muita ação personagens planas conflitos gerados sempre por uma visão maniqueísta da realidade facilidade de recepção etc Exatamente essa facilidade de recepção e também de aquisição é que redime em parte a onda folhetinesca Antonio Candido194 lembra que as dezenas de traduções dos folhetins franceses vieram contribuir para disseminar o hábito da leitura Acresçase a isso mais um aspecto positivo ao lado da literatura de carregação de Féval Soulié Kock e Sue tivemos a boa literatura de Chateaubriand Balzac e Dumas O folhetim teve também o importante papel de servir de balão de ensaio para o escritor Conforme nos informa M Meyer Praticamente toda a ficção em prosa da época passa a ser publicada em folhetim para então depois conforme o sucesso obtido sair em volume195 No Brasil os primeiros folhetins foram introduzidos no século xix no final da década de 30 através da tradução dos autores franceses Só depois surgiram os folhetins nacionais que passaram a imitar servilmente o modelo francês O que se apresentava ao jovem Manuel A de Almeida como modelo era portanto o original francês ou a sua reprodução nacional Para atender ao gosto do público só lhe restava navegar nas mesmas águas das lágrimas fáceis dos enredos melodramáticos do folhetim arquetípico Também para cumprir o papel de estimulador de venda do jornal em cujas páginas publicou seu romance e do qual fazia parte como redator cabialhe seguir a fórmula consagrada por Eugène Sue e Alexandre Dumas e repetida à exaustão pelos epígonos Acrescentese a isso a motivação de todo folhetinista principiante transpor para as páginas do livro o sucesso do jornal Ele preferiu contudo não seguir a receita Nadando contra a maré desautomatizou o modelo vigente tanto do ponto de vista do conteúdo quanto do lingüístico e estilístico Quanto a esse último aspecto encontramos na crítica referente a nosso autor freqüentes alusões a sua atitude antiretoricista Mário de Andrade196 por exemplo vê as Memórias como um livro à margem das literaturas resultado de um reacionarismo temperamental que o põe contra a retórica de seu tempo Darcy Damasceno197 afirma que Almeida levantou contra a retórica a espontaneidade da linguagem afetiva tendo produzido uma obra contrastante com seu tempo pois ia contra os arroubos passionais e a grandiloqüência predominantes Em A Candido encontramos várias referências a essa atitude como esta que é bastante expressiva É quase incrível que em 1852 um carioca de 20 anos conseguisse estrangular a retórica embriagadora a distorção psicológica o culto do sensacional a fim de exprimir uma visão direta da sociedade de sua terra Quando Darcy Damasceno cotejou as edições F e L198 das Memórias e expôs suas conclusões estava dando uma grande contribuição para desfazer a idéia de que o romance era fruto apesar de toda a novidade que trazia de uma escrita inconsciente e descuidada Pretendia revelar ao contrário que a obra era o resultado de uma elaboração estilística exigida pela consciência da adequação do código utilizado ao conteúdo criado Ao retomarmos o referido estudo pretendemos rever suas conclusões e justificar a oportunidade desta edição Para Damasceno a revisão do autor foi o resultado de certo policiamento que teria atendido a três propósitos a correção de deslizes de conteúdo ou de redação b aprimoramento do texto primitivo com base em convicções estilísticas próprias c revisão ditada por uma autocensura por conta de concessão ao modelo estilístico vigente A primeira conclusão não comporta questionamento uma vez que as condições de produção do folhetim favorecem a ocorrência de inúmeras falhas Quanto aos outros dois julgamos que mereçam uma releitura Algumas ocorrências que Damasceno considera aprimoramento estilístico ou desbaste da frondosidade rotunda e pleonástica economia verbal conforme suas palavras realmente o são Outras no entanto que ele assim classifica a nosso ver bem poderiam entrar para o rol daquelas que ele considera acertadamente como perda de carga afetiva e concessão à lógica restrições por conta de uma ética literária prudência no trato das cousas e gentes portuguesas etc Enfim resultariam também de autocensura A nova paragrafação adotada em L atende a uma visão mais dinâmica e ágil da estrutura do texto Nos folhetins os parágrafos são mais concentrados Há que se considerar também as peculiaridades de cada veículo Outros exemplos de revisão estilística plenamente justificável podem ser citados há moderação no uso do que mudanças na ordem dos elementos da frase que contribuem para a melhoria do ritmo pontuação mais adequada etc Damasceno vê como positiva a eliminação de inúmeros circunlóquios retóricos como por exemplo deixemos estas considerações vamos continuar como já dissemos No entanto o próprio estudioso justifica os lembrando que tais circunlóquios na primeira versão eram ditados pela técnica narrativa própria do folhetim Em técnica semelhante a urdidura de racontos eles têm finalidade ora evocatória aludindo a antecedentes dos fatos narrados ora motivadora anunciando episódios futuros No livro que permite uma leitura sem a descontinuidade do folhetim são menos necessários por isso foram parcialmente eliminados Manuel A de Almeida procedeu também a uma considerável substituição lexical Contudo as ocorrências que caracterizam revisão estilística espontânea não constituem a maioria Entre estes casos podem ser citados a troca de ril de três por minuete da corte de alatinado por latinista de conversação por conversa etc Estamos com Damasceno que atribui a troca de ril por minuete troca que ocorre quatro vezes no romance ao imediatismo de compreensão e afinamento emocional e informa que minuete ao contrário de ril era termo vulgarizado pelos espetáculos líricos da sociedade fluminense no século passado Nos outros dois casos os termos latinista e conversa são mais correntes que alatinado e conversação e mais consentâneos com o tom coloquial do romance Esses casos no entanto são raros O que predominou mesmo foram as substituições motivadas pela autocensura do escritor conseqüência das pressões do meio Ainda que tenham sido veladas ou mesmo tácitas e não estejam portanto documentadas é possível enfeixar alguns argumentos que possam sustentar tal ponto de vista Essa autocensura funcionou no conteúdo e na expressão tendo provocado cortes de cenas e comentários e revisão lingüística Os cortes foram ditados em geral por conveniência políticoideológica a revisão por concessões ao modelo retórico vigente O caso mais eloqüente de autocensura quanto ao conteúdo é o corte das referências ao rei Em toda a obra das vinte e tantas menções treze foram riscadas e referência direta permaneceu apenas uma No capítulo Nova vingança e seu resultado a palavra rei ou as variantes elrei ou el rei aparece nada menos do que onze vezes No livro o rei é tirado de cena conseqüentemente todas somem Sua participação embora muda era fundamental Além de aumentar o efeito cômico dava coerência à narrativa pois o clima de expectativa que aí se cria dependia da chegada do rei Uma das menções tinha inclusive um tom irreverente Dizia que elrei começava já a franzir o sobrolho como qualquer mortal No capítulo Derrota lêse José Manuel enfiou uma mentira muito sem sabor que nós poupamos ao leitor como está em L Em F ficamos sabendo de que mentira sem sabor se trata elrei o mandara chamar a palácio e depois de cobrilo das maiores honras e obséquios lhe oferecera o comando da polícia da cidade pois que o Vidigal já não satisfazia tão bem o serviço ele porém recusara a pés juntos com o que elrei se mostrara muito zangado e o despedira Comentando esse corte Damasceno é mais explícito Admissivelmente as providências restritivas que visando a salvaguardar o respeito e acatamento à casa imperial haviam levado à censura dos espetáculos teatrais pela criação do Conservatório Dramático Brasileiro influíram na literatura do tempo impedindo mediante certa ética literária o colocaremse em relevo nos episódios cômicos imorais ou de crueldade ascendentes de Sua Majestade Imperial Não foi Manuel A de Almeida infenso à lusofobia que reinou logo após a Independência Em várias passagens do romance manifestase o tom zombeteiro contra os portugueses A revisão houve por bem eliminar tais manifestações como se pode verificar pelas notas de rodapé Há outros cortes de cenas que o crítico considera pormenores descritivos ou anedóticos sem interesse e de comentários que ele julga considerações sentenciosas dispensáveis que nos parecem também conseqüência de autocensura Alguns foram corretamente eliminados mas outros poderiam muito bem ser mantidos sem prejuízo para a qualidade literária da obra Dos vários casos listados selecionamos dois de cada tipo que ilustram bem o procedimento restritivo No capítulo iv quando Leonardo resolve tomar fortuna em casa do caboclo para solucionar dificuldades amorosas o narrador descreve em minúcias os apetrechos usados pelo nigromante em seu ritual mencionando alguidares ervas líquidos etc que acabaram suprimidos em L Dois capítulos adiante o compadre informa à comadre que o afilhado está morrinhento Quando surge o menino ela diagnostica é olhado A solução vem em seguida Voltou depois durante três dias e com rezas e benzeduras conseguiu grifo do autor livrar o pequeno do mal que sofria olhado quebranto ou o quer que seja A doença do menino e sua cura sumiram da cena em L Nos dois casos o autor houve por bem omitir um conhecimento tão minucioso sobre feitiçaria e crendices ainda que essas práticas fossem apresentadas de modo caricato Para um estudante de medicina não convinha exagerar nesses conhecimentos Também a divulgação de rituais de origem africana e do sincretismo religioso poderia desagradar aos leitores em sua maioria católicos Para Jamil Haddad essa medicina de curandeiro sangrias ervas rezas feitiços denota a formação rueira quase proletária do livro199 Quanto aos comentários um é sobre a semelhança entre a coreografia do fado e o namoro o outro sobre a herança deixada pelo compadre Quando se descreve o fado cap v essa dança voluptuosa como diz o narrador fazse em F a seguinte comparação Parece esta forma de dança representar a história de um namoro ao princípio confiança e intimidade depois negaças escrupulosas depois arrufos de parte a parte e finalmente pazes Quanto à herança cap xxviii ao se discriminarem os bens depois de mencionar um bom par de mil cruzados em espécie lêse em F Entregues alguns legados de pouca monta grifo nosso como fossem um crucifixo à comadre um oratório a D Maria e uma caixa de prata para rapé a um velho amigo do compadre etc Talvez por pudor tenha sido suprimido o primeiro trecho Tinhorão200 cita várias fontes de viajantes estrangeiros onde se descrevem tais danças com expressões como danças lascivas nacionais é o mais indecente figuras variadas e todas muito voluptuosas Quanto ao segundo talvez por respeito religioso afinal considerar os símbolos religiosos como legados de pouca monta e colocálos no mesmo plano que uma caixa de rapé poderia soar irreverente demais aos leitores do livro Ainda a propósito de atitude irreverente reprimida pelo autorrevisor vale a pena fazer mais dois registros ambos no cap xlv que têm também seu lado pitoresco No primeiro MariaRegalada procura o major para interceder por Leonardo e dizlhe ao ouvido algumas palavras O major responde Ora esta pois era preciso falar nisto Olhem que o que mulher não fizer nem o diabo faz A fala suprimido o segmento que grifamos ficou assim Ora esta pois era preciso falar nisto Enfim Talvez por acreditar no que diz o rifão o autor achou melhor não provocar a ira das leitoras ainda que fosse através da fala do major No segundo motivado pelo enterro de José Manuel o narrador faz um comentário em que ironiza machadianamente uma prática de seu próprio tempo e ofende os mortos Naqueles tempos ainda se não usavam os discursos fúnebres nem os necrológios que hoje andam tanto em voga escapamos pois de mais essa José Manuel dorme em paz em seu derradeiro jazigo deixemolo que se outros mortos para nada servem aquele menos do que nenhum O trecho que trata da inutilidade dos mortos foi riscado em L O jogo presentepassado nos sugere a última manifestação de censura temática que registraremos Em vários passos do romance o narrador faz críticas à época que ele vive Mas o cotejo das duas versões revela algumas foram mantidas outras eliminadas ou atenuadas em L Consignaremos três ocorrências que nos pareceram mais expressivas Na primeira cap xxiii após falar da ingenuidade de Luisinha ante os castelos amorosos de Leonardo o narrador comenta quem sabe mesmo se a pobre menina sabia lá dessas cousas de amor se tinha mesmo a mais leve idéia disso hoje uma menina nas circunstâncias dela estaria mais que muito em dia e tomaria a parte que lhe devia competir no negócio naquele tempo porém de bons costumes e santidade grifo do autor isso era cousa com que ninguém devia contar O comentário foi totalmente riscado em L Mais uma vez o autor preferiu poupar suas leitoras mais jovens Na segunda cap xxx um comentário de caráter histórico ele insinua que falta segurança a sua cidade e escarnece de medidas sanitárias que estão sendo tomadas pelas juntas e câmaras Após falar com um certo lirismo incomum nas Memórias sobre os luares magníficos que só fazem no Rio de Janeiro sobre passeios noturnos com descantes e ceias e dizer que muitos dormiam a noite inteira ao relento comenta Quanto a medo do que quer que fosse contra a segurança individual não o tinham pois descansavam tranqüilos na atividade do major Vidigal e quanto a cuidados sanitários e higiênicos isso é invenção moderna das juntas e câmaras que faria dar boas risadas de incredulidade e talvez de escárnio até ao próprio físicomor se aparecesse então Nem mesmo as zamparinas tinham sido capazes de despertar semelhantes idéias O comentário que inclui uma referência à zamparina surto gripal que irrompeu no Rio de Janeiro em fins do século xviii foi totalmente suprimido Na terceira último capítulo depois de se cogitar da união ilegítima entre Leonardo impedido de casar por ser sargento de linha e Luisinha o narrador assume uma atitude moralista raro na obra afirmando esse meio de que falamos essa caricatura da família que então se usava é seguramente uma das causas que produziu este estado de desmoralização da nossa sociedade onde impera o egoísmo porque tão frouxos são os laços que unem entre si os seus membros Na segunda versão foi atenuada a crítica pois a expressão estado de desmoralização mudou para estado moral e o final onde se fala do egoísmo e dos frouxos laços foi cortado A atenuação dessa crítica se representou um recuo do autor pelo menos teve uma conseqüência positiva adensou o clima ficcional da obra conforme C de Lara201 De um modo geral esses cortes e alterações parecem atender ao desejo de não chocar o leitor do livro que não teria pelo menos na expectativa do autor a mesma efemeridade do folhetim igualmente descartável como o jornal em que se insere Ressaltese ainda que o folhetim por ser parte do jornal e por estar inserido em um suplemento composto de matéria e linguagem desabusadas gozava de uma liberdade que o livro não tinha Outros exemplos desse procedimento podem ser localizados nas notas de rodapé desta edição As alterações formais também permitem inferir uma ação censora do autor Excetuados os casos que constituem realmente uma revisão estilística motivada por convicções próprias outros há que autorizam a tese da autocensura ditada pelo uso mais conservador da língua de acordo com o modelo vigente ou mesmo por conveniência políticosocial Na cena do batizado cap i quando a brincadeira aferventou grifo do autor inspirado pelas saudades da terra natal Leonardo canta a seguinte modinha Quando estaba em minha terra Acompanhado ou sozinho Cantaba de noite e de dia Ao pé dum copo de binho Em L as marcas da pronúncia lusitana foram apagadas Para Damasceno a revisão do texto tropeçou na facécia lingüística e deu por bem desfazer o espírito mordaz que motejava da prosódia reinol O uso de maiúscula às vezes revelou um zelo religioso como em cinco chagas Cinco Chagas há ainda o uso de recurso gráfico para ceder a um preceito gramatical assinalar o termo nãovernáculo É o que ocorre em toilletes toilletes202 Em consonância com o tom conversacional do estilo das Memórias é freqüente o uso de expletivos do tipo cá e lá aqui etc que ocorrem no discurso do narrador e com muito mais freqüência nas falas das personagens Talvez por concessão à idéia que se tinha de língua escrita com pouca tolerância à incorporação da oralidade procedeuse a uma discreta moderação no uso de tais partículas Julgamos que não havia razões estilísticas para tais cortes Vejamos alguns exemplos 1 bem diz aqui o padrinho bem diz o mestre 2 podiaselhe notar que não era lá tão feia de cara que não era tão feia de cara 3 É uma cousa que me põe cá à roda que me põe à roda 4 em que estivesse lá azeitado estivesse cheio de razões As revisões sintáticas do tipo restritivo foram também de pouca monta É o que ocorre no seguinte trecho entra seu pai sua mãe seus parentes e amigos seu compadre sua comadre seu dote seus filhos e filhas entram seu pai sua mãe Ao que tudo indica a longa enumeração dos núcleos do sujeito levaram o autor num excesso de zelo gramatical a preferir o plural Mas a posposição do sujeito permitiria a concordância com o núcleo mais próximo tolerando portanto o verbo no singular É muita rica a fraseologia das Memórias Mesmo tendo mantido felizmente dezenas de prolóquios e frasesfeitas o autor achou por bem cortar algumas Para Damasceno foi positiva tal providência pois são frasesfeitas descoloridas ou cediças Permitimonos discordar do eminente estudioso É da natureza de tais estruturas o serem sediças As que foram mantidas também o são Quanto a serem descoloridas o contexto revela o contrário se entendermos o termo não de modo impressionista mas objetivamente Coloridas seriam então expressões que dão vida ao texto pelo humor que traduzem pelo realce que conferem à mensagem pela variedade que as caracteriza Em suma pela adequação que revelam em relação ao assunto da narrativa Os próprios exemplos citados por Damasceno o confirmam 1 era como vulgarmente se diz o mesmo que pôr água na fervura mudavamse repentinamente as cenas 2 pilhouos mesmo com a boca na botija achouos em flagrante delito de nigromancia 3 bastava que lhe desse na veneta armava brigas desse na cabeça As alterações retiraram o tom coloquial dos trechos retirando também seu valor impressivo As expressões novas por sua vez não têm o mesmo efeito de sentido pela sua neutralidade semântica Em 1 se formos buscar o contexto onde se insere o pôr água na fervura veremos que ele é muito mais expressivo que a frase substituta Em 2 além da troca de pilhou por achou em que o primeiro é mais marcado do ponto de vista estilístico a expressão nova confere um tom técnico ao texto que é estranho ao romance Em 3 podese ver uma cumplicidade semântica entre dar na veneta e armar brigas No afã de reprimir seu próprio discurso ocorreu com uma expressão o mesmo que vimos ocorrer com a retirada do rei de todo um capítulo quando a conseqüência foi um vazio narrativo ou mesmo certa incoerência Quando a enciumada Vidinha foi à ucharia tirar satisfações com a moça do caldo ao surgir o tomalargura ela o aborda de modo agressivo Em seguida escreve o narrador cap xxxix A surpresa e mesmo a figura de Vidinha através de cujos traços decompostos pela raiva o tomalargura sujeito prático e experimentado pôde conhecer como boafazenda desarmaramno um pouco sorriuse e respondeu A surpresa e mesmo a figura de Vidinha decomposta pela raiva desarmaramno um pouco e respondeu mais mansamente A segunda versão soa incoerente pois não há motivo para o desarme do tomalargura Já na primeira lá está a causa da mudança de ânimo Vidinha era uma boafazenda Segundo Aulete203 expressão popular que significa mulher bonita atraente Macedo Soares204 a toma como brasileirismo com o significado de coisa ou pessoa bonita bem fornida de carnes O autor quis evitar a metáfora reificadora da figura feminina É possível também que ele visse a expressão como vulgar Contudo nesse tipo de revisão o que mais salta aos olhos ocorre na área da seleção lexical Percebemos ao longo do cotejo cortes e trocas sistemáticas de palavras Palavras como diabo velhaco e brejeiro em vários passos foram retiradas de L A palavra Camarão foi substituída por chibata desnecessariamente já que é termo popular e brasileirismo de boa cepa segundo Damasceno O dicionário Moraes só registra o termo em 1877 na 7 ed Encontramos o vocábulo em M Soares que registra o sentido de chibata e em Rubim205 que define arbusto que cresce nas capoeiras das varas se fazem muitos usos Talvez por lapso o autor deixou de fazer a troca no trecho tocou no sujeito com a ponta do camarão cap xli Quanto a ilhéu ilhoa saloio a Damasceno esclarece Ilhéu devia ser nome genérico aplicado ao português inculto imigrado no Brasil Não apenas o insular O que nos parece é que mais uma vez se atenuou a manifestação lusófoba Ao contrário de ilhéu o saloio tipo rústico e particularizado podia ser alvo de chacota mesmo em Portugal Outros casos de substituição que apenas listaremos caracterizam também o comportamento lingüístico de que estamos falando negócio conversa negócio cousas pesado tamanco ferrado sapatão safavase punhase longe berro guincho zanga ojeriza mono logro beiços lábios encasquetado dado na cabeça trastes móveis murro socos estafermo estátua sérios estudos da parteira sérios cuidados etc Além da própria biografia do autor justificar tais cuidados na revisão das Memórias referimonos a sua origem humilde à necessidade de ascensão social à busca de proteção etc os depoimentos todos escritos após o desaparecimento do escritor e de pouca ou nenhuma repercussão dos contemporâneos também apontam para um Manuel A de Almeida injustiçado ou mesmo perseguido Quanto aos motivos dessa perseguição nós os encontramos em seus escritos jornalísticos nos quais ele manifestou uma visão crítica do momento histórico por ele vivido Os referidos depoimentos embora escassamente aludem também a características de personalidade e conduta que ajudariam a explicar tal fato206 Eis alguns trechos reveladores De F Octaviano 1861 Se a agitação de sua vida não o houvesse desviado da imprensa Almeida podia ter sido o mais ilustre de nossos jornalistas Mas esse infeliz mancebo arcando com a pobreza e tendo de prover a subsistência e futuro de suas irmãs viuse obrigado a deixar a carreira de sua predileção Do Diário do Rio de Janeiro 131261 Leal e dedicado até o heroísmo a sua vida foi um longo e penoso sacrifício uma luta constante e tenaz contra a adversidade Calmo e estóico no meio das maiores contrariedades nem guardava rancor ou despeito aos que recompensaram com a ingratidão os relevantes serviços que lhes prestara De A E Zaluar 1862 No Brasil os únicos homens que sofrem e arcam com as necessidades mais comuns da vida são os homens de talento que nasceram pobres e não querem sacrificar as suas convicções ao interesse de bandos políticos A maior parte dos que estão fora deste grupo seus amigos se ele não morresse matavamno De Quintino Bocaiúva 1863 Pela nossa parte que tão de perto o conhecemos e que lhe fomos irmão só temos um receio é de que nunca se chegue a avaliar devidamente o que valia aquela grande inteligência e sobretudo aquele grande coração que teriam feito de Almeida um tipo se Deus não houvesse preferido fazêlo mártir O recuo da história ao tempo do rei portanto um recuo de aproximadamente quarenta anos já que o tempo do rei compreenderia o período que vai de 1808 a 1821 revela a intenção do autor de evitar a crítica direta a seu próprio tempo A própria determinação prévia de situar os fatos narrados no passado mesmo que próximo já denotava cautela Para Sodré207 esse recuo é um disfarce Diz ele A antecipação histórica aliás poderia ter sido uma saída natural e intencional do autor para fazer crítica e há muita crítica transparente nas páginas do livro e não chocar os criticados Outra questão relevante é a do anonimato do folhetim e o uso de pseudônimo no livro cuja autoria foi atribuída a um brasileiro Tal procedimento dá a entender que convinha ocultar a autoria das Memórias A primeira edição a nomear o autor das Memórias foi a de 1863 impressa pela tipografia do Diário do Rio de Janeiro patrocinada por Quintino Bocaiúva e revista por Machado de Assis Curiosamente o dicionário de Teshcauer já em 1928 na lista de obras que abonam os verbetes cita as Memórias sem autoria expressa O anonimato não seria conseqüência de atitude envergonhada do autor o cotejo entre as edições F e L das Memórias nos revela a consciência do autor em relação a sua obra Talvez fosse melhor falar em prudência 208 Reginaldo Pinto de Carvalho Cronologia209 1831 nasce Manuel Antônio de Almeida em um bairro pobre do Rio de Janeiro no dia 17 de novembro Seus pais eram o tenente Antônio de Almeida e dona Josefina Maria de Almeida um modesto casal de portugueses 18421847 morre seu pai fato que agrava as dificuldades vividas pela sua família cursa o colégio São Pedro de Alcântara 1848 aprovado em exames da Faculdade de Medicina 1849 inicia o curso de medicina primeiras publicações de gênero poético nas revistas Guaraciaba Guaracinga e Harpejos Poéticos 1851 morre sua mãe sendo obrigado a se responsabilizar pela educação de duas irmãs Empregase no Correio Mercantil prestigioso jornal da Corte dirigido por Francisco Otaviano de Almeida Rosa no qual publica ao longo de cinco anos além dos folhetins das Memórias poemas crônicas artigos de crítica literária etcTraduz os folhetins de Gondicar ou o amor do cristão de L Friedel pela Tribuna Católica 1852 inicia a publicação no dia 27 de junho no suplemento dominical A Pacotilha do Correio Mercantil e sob anonimato os folhetins do romance Memórias de um sargento de milícias 1853 conclui a publicação dos folhetins das Memórias de um sargento de milícias no dia 31 de julho 1854 publica pela Tipografia Brasiliense o primeiro volume das Memórias de um sargento de milícias assinado com o pseudônimo Um Brasileiro Publica artigos de crítica literária na seção Revista Bibliográfica do Correio Mercantil 1855 publica o segundo volume das Memórias de um sargento de milícias Conclui o curso de medicina mas jamais exercerá a profissão 1856 desligase do Correio Mercantil 1857 é indicado diretor da Imperial Academia de Música e Ópera Nacional para a qual escreve o libreto Os dois amores ópera em três atos com partitura da professora de música Rafaela Rozwadowski A ópera é levada à cena com direção musical de Antônio Carlos Gomes 1858 nomeado administrador da Tipografia Nacional onde teve como aprendiz de tipógrafo o jovem Machado de Assis Ajuda a fundar o Liceu de Artes e Ofícios onde leciona geometria 1859 após ter sido exonerado da Tipografia Nacional é nomeado 2º oficial da Secretaria dos Negócios da Fazenda onde é encarregado de redigir uma História financeira do Brasil obra que não concluiu A Tipografia Nacional publica a obra de Charles Ribeirolles Brasil pitoresco para cuja tradução colaboram Manuel A de Almeida Machado de Assis e outros 1860 licenciase do cargo e completamente endividado retirase para Nova Friburgo onde inicia a tradução dos folhetins de O rei dos mendigos de Paul Féval para o Diário do Rio de Janeiro 1861 publica o libreto Dois amores Morre vítima de um naufrágio no dia 28 de novembro perto do litoral de Macaé na então província do Rio de Janeiro numa viagem que tinha finalidade política 1O sinal indicará as substituições F referese aos folhetins e L à 1ª edição em livro 2 Consultamos também almeida Manuel A de Memórias de um sargento de milícias Ed críticaTerezinha Marinho Rio de Janeiro inlmec 1969 3 rendezvous lugar de encontro 4Em L o verbo está no pretérito imperfeito talvez para atenuar a crítica Essa mudança de tempo ocorre em outras passagens da obra 5 encarnado branco 6A idade foi reduzida para 50 7 ilhoa saloia 8 tamanco sapatão 9 oito sete 10 ril de três minuete da corte 11 A prosódia lusitana foi eliminada com a troca do v pelo b nas três ocorrências 12 Os dois últimos parágrafos típicos dos folhetins foram substituídos pelo seguinte parágrafo que contém interessante referência a uma prática popular A festa acabou tarde a madrinha foi a última que saiu deitando a bênção ao afilhado e pondolhe no cinteiro um raminho de arruda 13 zanga ojeriza 14O trecho Dizembarbas foi eliminado 15 Este verbo e o próximo foram alterados para o pretérito perfeito o que prejudicou a vivacidade da narrativa 16 proferilas pronunciálas 17 O trecho que lhe parecia sempre ter muito sal foi suprimido 18 bulia entendia 19A referência ao rei foi eliminada 20 Parece ter havido aqui uma falha de revisão Em L acrescentouse a palavra idéia 21O título do capítulo foi simplificado ficando apenas Fortuna 22de uma forma bancas foi eliminado 23 etc e uns poucos tamanhos foi eliminado 24a pouca luz tornava foi eliminado 25velhacos industriosos 26 encasquetado dado na cabeça 27O trecho Uma fileira areia etc etc foi substituído por outro menos explícito no qual se diz cuja significação só conheciam os iniciados nos mistérios do caboclo 28 duas ou três três 29 de que muitos escritores têm falado de que muito se fala 30 o chão desfolhado foi suprimido 31 Parece pazes foi suprimido 32Na edição L talvez para ser mais fiel à descrição acrescentou o trecho junto à renda da qual se pregava uma pequena figa de ouro ou de osso 33punhalhe pendia a mantilha seguro por um enorme pente cravejado de crisólitas 34Para atenuar a crítica à sua época o autor alterou o tempo deste verbo assim como de outros mais adiante Ele preferiu colocálos no pretérito 35 ilhoazinha saloiazinha 36 Ainda há pouco tempo um fado de ciganos foi suprimido 37 A propósito achoulhe graça foi suprimido 38Quanto ao incômodo que pudesse foi suprimido 39 Voltou depois séria satisfação foi suprimido 40Este capítulo é o V da ed L Ao que parece o deslocamento pretendeu evitar a quebra da estrutura narrativa 41 que bem denotava o caráter em harmonia com as tendências e idéias 42 camarões chibatas 43garoto maroto 44 o mesmo que pôr água na fervura mudavamse repentinamente as cenas 45nigromantes mágicos 46 reluziam camarões se viam a arma de que acima falamos 47 pilhouos botija achouos em flagrante delito de nigromancia 48 alguidares indicamos os mais objetos que serviam ao sacrifício 49 que os viu bem sovados de um bom quarto de hora 50 Na edição L este capítulo trocou de posição com o próximo 51 um banco de braço embaixo do braço 52 e o faria de médico foi suprimido 53 para curar a gente a bordo morrese ali que é uma praga foi acrescentado 54 e uma caixa de pau foi acrescentado 55 importe soldada 56 para a Costa foi acrescentado 57 a pretexto tinha ali tinha a seu serviço 58 cinturão talim 59 comprar a quitanda comprar frutas 60 Madeira Lumiar Mariquinhas Mariazinha 61 quitandeira colareja 62 ilhoa saloia 63 cujo nome motivos particulares foi suprimido 64 trastes móveis 65 A revisão do autor introduziu aqui a palavra casas que realmente parece ter faltado 66 O autor preferiu os dois substantivos no singular em L 67Para evitar a repetição da palavra compadre especialmente nos dois primeiros parágrafos o autor recorreu a vários processos de substituição na edição L 68 e a quem atribuía rosário da comadre foi suprimido 69 de uma figa foi suprimido 70 raça de ilhéu depois de mortos má raça 71 Ilhoa saloia 72 e da existência do compadre foi suprimido 73 alatinado latinista 74 Em L acrescentouse a palavra nenhum que o sentido realmente parece exigir 75 apanhadormor de bolos apanhabolosmor 76 ril minuete 77 Oriental sectário de Mafoma 78 O autor oscila em contextos como esse quanto ao uso de a ou há 79 a que elrei assitir foi suprimido 80 elrei e toda a corte todos 81 em que elrei para o sermão do sermão 82 o rei mandou avisar que foi suprimido 83 chegou elrei foi suprimido 84 elrei esperar foi suprimido 85 elrei sobrolho foi suprimido 86 e muitas desculpas a elrei foi suprimido 87 pitada foi suprimido 88 o triunfo a queda 89 chega elrei é o sermão 90 e elrei foi suprimido restabelecendose a concordância do verbo 91 e até de criados de elrei foi surpimido 92 veneta cabeça 93 ilhoas saloias 94 Aqui a referência a elrei foi mantida talvez por implicar respeito 95 percebendo sua colherada chegouse para intervir na conversa 96 de capadócio capadoçal 97 Trem Conceição 98 um pratinho muito gostoso nunca acabar 99calcantibus foi suprimido 100 Todo o parágrafo foi suprimido 101 não ao toma vantagem e arranjouse 102A referência à idade da personagem foi eliminada 103 desses chamados de tabaco encarnado de Alcobaça 104 também não tinha igreja da Lapa foi suprimido 105Hoje se alguma ridículo foi suprimido 106tamboril foi acrescentado 107levantado levando 108 A observação dos parênteses foi suprimida 109 o Leonardo fizeram foi suprimido 110 convidada curiosidade 111 mesmo porque ao de hoje foi suprimido 112 As formas verbais une firma fala e comunica que ocorrem neste parágrafo foram passadas para o imperfeito tirando a vivacidade que o presente confere à narrativa como aqui se pode ver 113 cara rosto 114 mais velhaco foi suprimido 115quase não quase a a ponto de 116 negócios sucessos 117 fúrtil foi corrigido para fútil 118 Foi introduzido aqui o advérbio não que realmente parece estar faltando 119 velhaco esperto 120de fulano ou de beltrano deste ou daquele 121 o mar era tal perto uma da outra foi suprimido 122 A posição da vírgula foi corrigida em L 123 quem sabe tivesse formado foi suprimido 124 ah cólicas foi suprimido 125 estafermo estátua 126 dobrar sinos da Sé dar as nove badaladas no sino grande da Sé 127 e com um molho de figas e meiasluas signos de Salomão e outros preservativos de maus olhados presos ao cinteiro foi acrescentado 128 safava livrava 129era o amante executar foi suprimido 130 A observação entre parênteses foi eliminada 131 como sejam as caroladas desta ordem foi suprimido 132 mas amarrados um lugar foi suprimido 133 Estas raparigas endiabradas foi suprimido 134 Este parágrafo foi suprimido 135 Ora ora dáse coisa igual D Maria ficou por algum tempo muda de estupefação 136 via ele desejos lhe nasciam mais esperanças 137contou então o despedira enfiou então tomando por tema aquelas primeiras palavras que lhe tinham vindo à boca uma mentira muito sem sabor que nós poupamos aos leitores Não foram porém satisfeitas as vistas da comadre que queria desviar a conversa do furto da moça 138 que era velhaco escapava foi suprimido 139 catilinária grande alicantina 140 Eram eles rigorosos foi suprimido 141 mais foi suprimido 142 como fossem do compadre foi suprimido 143 Mariquinhas Chiquinha amante do Leonardopataca foi suprimido 144 nesse dia às canadas de estar ardendo com o que lhe sucedera 145 burros azeites 146 saltrapilho maltrapilho 147 Vidinha uma voz de moça aflautada e lânguida 148 beiços lábios 149Em L a parte que segue foi publicada como outro capítulo com o título Novos amores Em F saiu em outra edição da Pacotilha como continuação 150 Quanto a medo semelhantes idéias foi suprimido 151 Em L o autor inverte a ordem mencionando primeiro filhos e depois filhas uma vez que é essa ordem que se retoma mais adiante 152 a há 153 facilidade dificuldade 154 uma lufalufa imensa um lufalufa imenso 155 e bem capaz fiacres modernos foi suprimido 156 segundo Nicolau Tolentino foi suprimido 157 de que fala o poeta foi acrescentado 158 Deuse ainda a pouco tempo foi suprimido Foram feitas outras alterações no parágrafo 159 que o isolamento no coração foi suprimido 160 rapazes e raparigas moços e moças 161Em L foi acrescentado aqui a palavra ditos que parece estar faltando 162 filado posto a mão 163 brejeiro foi suprimido 164mostrando em Waterloo e ruminando projetos para sua reabilitação 165 aquela alicantina aquela choradeira Houve ainda alteração na ordem das palavras 166 foise igualmente pondo ao fresco tratou de retirarse 167 gastosa gostosa 168 etc foi surprimido 169 o tomalargura sorriuse foi suprimido 170 Dera tudo em fogo de palha foi acrescentado 171 tanto que consigo Deu mais rajadas aos dois explicou quem era mas não disse o que queria Afinal sem nada ter feito saiu dizendo 172 O vocábulo camarão que em passagens anteriores foi trocado por chibata aqui foi mantido 173 Em L o título passou para o plural 174Grande parte temos descrito foi suprimido 175 Em F a parte que segue foi publicada como continuação porém com o título no plural e em outra edição da Pacotilha 176sô pobre diabo foi suprimido 177 Há neste mundo É muito antigo dizerse que há 178 avó D Maria na história D Maria é tia e não avó 179 Esta vírgula é retirada em L 180 Olhem que faz Enfim 181 pra para 182 é foi acrescentado 183 Mais tarde se explicar foi suprimido 184 deixemolo do que nenhum foi suprimido 185 Foi aquilo objeto de geral espanto Ficariam todos muito contentes com a simples soltura do Leonardo e não só ele aparecia solto e livre como até elevado ao posto de sargento o que já não é no exército pouca coisa foi acrescentado formando um novo parágrafo 186 A reflexão dos parênteses foi eliminada 187 tempo foi acrescentado 188 Este capítulo foi praticamente reescrito para a edição L O autor fez cortes acréscimos transposições substituições etc 189 maria foi acrescentado 190os Josés Manéis maridos como José Manuel 191 Este parágrafo foi suprimido 192 Este parágrafo foi substituído por Seguiuse a morte de D Maria a do LeonardoPataca e uma enfiada de acontecimentos tristes que pouparemos aos leitores fazendo aqui ponto final 193As idéias aqui expostas foram desenvolvidas de forma mais completa em CARVALHO Reginaldo P de A linguagem chã contra os trejeitos da retórica A expressão da sátira em Memórias de um sargento de milícias São Paulo FFLCHUSP 1999 Tese de doutoramento 194CANDIDO Antonio Formação da literatura brasileira 2 ed São Paulo Martins Fontes 1964 195MEYER Marlyse Folhetim uma história São Paulo Companhia das Letras 1996 196ANDRADE Mário de Introdução In Memórias de um sargento de milícias Brasília Univ de Brasília 1963 197DAMASCENO Darcy A afetividade lingüística nas Memórias de um sargento de milícias Revista brasileira de filologia vol 2 tomo II Dez 1956 198 F folhetins da Pacotilha L primeira edição em livro 199HADDAD Jamil A Prefácio In ALMEIDA Manuel A Memórias de um sargento de milícias 4 ed São Paulo Melhoramentos 1962 200TINHORÃO José R A música popular no romance brasileiro Belo Horizonte Oficina de livros 1992 201LARA Cecília de Introdução In ALMEIDA Manuel Antônio de Memórias de um sargento de milícias Ed crítica Rio de Janeiro Livros Técnicos e Científicos 1978 202A maioria das edições da obra faz a correção ortográfica dessa palavra assim como de outras 203AULETE Caldas Dicionário contemporâneo da língua portuguesa 4 ed Rio de Janeiro Delta 1958 204SOARES Antônio J Macedo Dicionário brasileiro da língua portuguesa Rio de Janeiro INL 1954 205RUBIM Braz da C Vocabulario brasileiro para servir de complemento aos diccionarios da lingua portuguesa Rio de Janeiro Paula Brito 1853 206Tanto a produção jornalística de Almeida quanto os depoimentos podem ser conferidos em MENDONÇA Bernardo de Manuel Antônio de Almeida Obra dispersa Rio de Janeiro Graphia 1991 207SODRÉ Nélson W História da literatura brasileira 4 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1964 208Sobre essa questão ver JAROUCHE Mamede M Sob o império da letra imprensa e política no tempo das Memórias de um sargento de milícias São Paulo FFLCHUSP 1997 Tese de Doutoramento 209Baseada em rebelo Marques Vida e obra de Manuel Antônio de Almeida Rio de Janeiro inl 1943
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Texto de pré-visualização
Memórias de um sargento de milícias Manuel Antônio de Almeida Edição e posfácio de Reginaldo Pinto de Carvalho Coleção Clássicos Globo Coordenação Manuel da Costa Pinto TÍTULOS PUBLICADOS Memórias de um sargento de milícias de Manuel Antônio de Almeida MacárioNoite na taverna de Álvares de Azevedo A Viagem à Lua de Cyrano de Bergerac As aventuras do sr Pickwick de Charles Dickens O bracelete de granadas de Aleksandr Ivánovitch Kuprin Ecce Homo de Eusébio de Matos Pequenas tragédias de Aleksander Sergheievitch Púchkin A capital de Eça de Queirós Infortúnios trágicos da constante Florinda de Gaspar Pires de Rebelo A cartuxa de Parma de Stendhal O Silvano de Anton Tchékhov Contos e novelas de Voltaire A coleção Clássicos Globo traz obras célebres da literatura universal e da língua portuguesa retomando e ampliando um dos projetos editoriais mais marcantes da história recente do Brasil o acervo de traduções constituído nos anos 1930 e 40 pela editora Globo de Porto Alegre que tinha entre seus colaboradores intelectuais como Erico Verissimo e Mario Quintana e ficou conhecida como Globo da rua da Praia Os títulos da coleção Clássicos Globo foram escolhidos a partir desse catálogo Além das traduções revistas e atualizadas de livros pertencentes ao cânone da literatura ocidental a coleção compreende também novas obras em edições críticas e versões feitas por tradutores contemporâneos que dão continuidade a esse legado editorial Manuel Antônio de Almeida Memórias de um sargento de milícias edição e posfácio Reginaldo Pinto de Carvalho Copyright desta edição 2004 by Editora Globo S A Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma seja mecânico ou eletrônico fotocópia gravação etc nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados sem a expressa autorização da editora Indicação editorial Mamede Mustafa Jarouche Revisão Reginaldo Pinto de Carvalho e Maria Sylvia Corrêa Cronologia Reginaldo Pinto de Carvalho Capa Isabel Carballo sobre Rua Direita no Rio de Janeiro detalhe de Johann Moritz Rugendas 18021858 lápis e nanquim sobre papel 20 cm x 299 cm Pinacoteca Municipal Centro Cultural São Paulo Dados Internacionais de Catalogação na Publicação cip Câmara Brasileira do Livro sp Brasil Almeida Manuel Antônio de 18311861 Memórias de um sargento de milícias Manuel Antônio de Almeida edição e posfácio Reginaldo Pinto de Carvalho São Paulo Globo 2013 Clássicos Globo isbn 9788525055521 1 Romance Brasileiro I Carvalho Reginaldo Pinto de II Título III Série 046371 cdd86993 Índice para catálogo sistemático 1 Romances Literatura brasileira 86993 Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S A Av Jaguaré 1485 05346902 São Paulo SP wwwglobolivroscombr Sumário Capa Coleção Clássicos Globo A coleção Folha de rosto Créditos Nota introdutória capítulo i capítulo ii capítulo iii capítulo iv capítulo v capítulo vi capítulo vii capítulo viii capítulo ix capítulo x capítulo xi capítulo xii capítulo xiii capítulo xiv capítulo xv capítulo xvi capítulo xvii capítulo xviii capítulo xix capítulo xx capítulo xxi capítulo xxii capítulo xxiii capítulo xxiv capítulo xxv capítulo xxvi capítulo xxvii capítulo xxviii capítulo xxix capítulo xxx capítulo xxxi capítulo xxxii capítulo xxxiii capítulo xxxiv capítulo xxxv capítulo xxxvi capítulo xxxvii capítulo xxxviii capítulo xxxix capítulo xl capítulo xli capítulo xlii capítulo xliii capítulo xliv capítulo xlv capítulo xlvi capítulo xlvii Posfácio Cronologia Notas Nota introdutória Esta edição tem como textobase os folhetins da Pacotilha suplemento do jornal Correio Mercantil no qual Manuel Antônio de Almeida publicou a primeira versão de seu romance Ainda em vida publicou uma edição em livro que resultou não só da revisão das falhas ocorridas na edição do jornal mas também de alterações mais substanciais como supressão e acréscimo de alguns trechos troca de palavras mudanças estruturais desdobramento de parágrafos inúmeras alterações na pontuação etc Evidentemente por representar a vontade expressa do autor a primeira edição em livro é a que tem servido de base para as dezenas de edições da obra desde sua publicação em dois volumes nos anos de 1854 e 1855 A principal justificativa para levar ao público uma versão que foge a toda uma tradição editorial que já tem um século e meio e que aparentemente contraria a vontade autoral é a de resgatar a versão dos folhetins pelos elementos diferenciadores que ela contém Tais elementos a nosso ver interessam não apenas ao leitor estudioso de nossa literatura bem como aos leitores em geral Como procuraremos demonstrar no Posfácio a revisão que o autor empreendeu no texto dos folhetins para sua publicação em livro foi muito além de uma simples correção de possíveis deslizes e falhas de impressão ou mesmo de aprimoramento estilístico Temos motivos para afirmar que Manuel Antônio de Almeida assumiu uma atitude de autocensura ao preparar seu texto para publicação em livro Essa autocensura foi uma forma de o autor adaptarse às conveniências sociais e políticas de seu tempo Procuramos preservar o texto original salvo na questão ortográfica aspecto em que houve a necessária atualização Também corrigimos a numeração dos capítulos feita de forma corrida e não em duas partes como ocorre no livro Nos folhetins há capítulos com numeração repetida ou pulada As oscilações de certos usos lingüísticos ou recursos de escrita foram mantidas As notas de rodapé1 não pretendem ser exaustivas no registro das variantes mas apenas destacar as alterações mais relevantes principalmente aquelas que atestam a tese da autocensura A revisão feita no texto dos folhetins e a redação adotada no livro refletiram o desejo do autor de preservar um certo decoro evitando por exemplo críticas a elrei e aos costumes de seu tempo Para tanto atenuou as manifestações de lusofobia e mesmo de certas chocarrices mais irreverentes Também na questão do estilo exerceu um policiamento sobre a linguagem original liberando o texto de inúmeras marcas de coloquialidade e da espontaneidade própria do folhetim marcas essas que acentuam o caráter inovador do livro considerado o contexto em que surgiu A leitura desta versão das Memórias de um sargento de milícias não trará nenhum prejuízo em relação àquela que é considerada oficial uma vez que os acréscimos feitos pelo autor para a edição em livro foram insignificantes se comparados aos cortes Informese ainda que tais acréscimos foram devidamente registrados em notas de rodapé Para o estabelecimento do texto desta edição utilizamos cópia dos folhetins da Pacotilha feita a partir de microfilmes obtidos na Fundação Biblioteca Nacional2 R P de C capítulo i Origem nascimento e batizado Era no tempo do Rei Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e Quitanda cortandose mutuamente chamavase nesse tempo O canto dos meirinhos e bem lhe assentava o nome porque era aí o rendezvous3 favorito de todos os que formavam essa classe que gozava então de não pequena consideração Os meirinhos de hoje não são mais do que a sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei esses eram gente temível e temida respeitável e respeitada eram um dos extremos dessa formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento de vida o extremo oposto eram os desembargadores Ora os extremos se tocam e estes tocandose fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates das citações provarás razões principais e finais e toda essa máquina de trejeitos judiciais que se chama4 processo Daí sua influência moral mas tinham ainda outra influência que é justamente o que falta aos de hoje era a influência física Os meirinhos de hoje são homens como quaisquer outros nada têm de imponentes nem no seu semblante nem no seu trajar confundemse com qualquer procurador escrevente de cartório ou contínuo de repartição os meirinhos desse belo tempo não não se confundiam com ninguém eram originais eram tipos particulares nos seus semblantes transluzia um certo ar de majestade forense seus olhares calculados e sagazes significavam chicana trajavam sisuda casaca preta calção e meias da mesma cor sapato afivelado ao lado esquerdo aristocrático espadim e na ilharga direita penduravam um círculo encarnado5 cuja significação ignoramos coroando tudo isto por um grave chapéu armado Colocado sob a importância vantajosa destas condições o meirinho usava e abusava de sua posição Era terrível quando ao voltar uma esquina ou ao sair de manhã de sua casa o cidadão esbarrava com aquela solene figura que desdobrando um papelucho liao ao pobre homem que por mais que se fizesse não tinha remédio por fim de contas senão deixar escapar dos lábios o terrível Doume por citado Oh ninguém sabe que significação fatalíssima e cruel têm estas poucas palavras são elas uma sentença de peregrinação eterna que se pronuncia contra si mesmo querem dizer que se começa uma longa e afadigosa viagem cujo termo bem distante é a caixa da Relação e que se tem de pagar importe de passagem em um semnúmero de barreiras que se encontrarão o advogado o procurador o inquiridor o escrivão o juiz inexoráveis Carontes estavam à porta de mão estendida e ninguém passa sem que lhes tenha deixado não um óbolo porém todo o conteúdo de suas algibeiras e até a última parcela de sua paciência Mas deixemos estas considerações e voltemos à celebrada esquina Quem passasse por aí em qualquer dia útil dessa abençoada época veria sentado em assentos baixos de couro chamadoscadeiras de campanha então usados um grupo mais ou menos numeroso dessa nobre gente conversando pacificamente em tudo sobre que era lícito conversar na vida dos fidalgos nas notícias do Reino e nas astúcias policiais do afamado Vidigal Entre os termos que formavam essa equação meirinhal pregada na esquina havia uma quantidade constante era o LeonardoPataca Chamavam assim a uma rotunda e gordíssima personagem de cabelos brancos e carão avermelhado que era o decano da corporação o mais antigo dos meirinhos que viviam nesse tempo A velhice o tinha tornado moleirão e pachorrento com sua vagareza atrasava o negócio das partes não o procuravam e por isso jamais saía da esquina passava ali os dias sentado na sua cadeira com as pernas estendidas e o queixo apoiado sobre uma grossa bengala que depois dos 606 era a sua infalível companhia Do hábito que tinha de queixarse constantemente de que só pagassem por sua citação a módica quantia de 320 réis lhe viera o apelido que juntavam ao seu nome Contemos a sua história Fora Leonardo algibebe em Lisboa sua pátria aborrecerase porém do negócio e viera ao Brasil Aqui chegando não se sabe por proteção de quem alcançou o emprego de que o vemos empossado e que exercia como dissemos desde tempos remotos Veio com ele no mesmo navio não sei fazer o quê uma certa Maria da hortaliça quitandeira das praças de Lisboa ilhoa7 rochonchuda e bonitota o Leonardo para falar a verdade não era nesse tempo de sua mocidade malapessoado e sobretudo era maganão Ao sair do Tejo estando a Maria encostada à borda do navio o Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela e pisoulhe com tanta força com o pesado tamanco8 no dedo do pé direito que quase lhe arrancou a unha a Maria sorriuse como envergonhada com o gracejo e deulhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão direita que lhe tirou couro e cabelo era isto uma declaração em forma segundo os usos da terra levaram o resto do dia de namoro cerrado ao anoitecer passouse a mesma cena de pisadela e beliscão com a diferença de serem desta vez um pouco mais fortes e no dia seguinte estavam os dois amantes tão extremosos e familiares que pareciam sêlo de muitos anos Quando saltaram em terra começou a Maria a sentir certos enojos foram morar juntos e daí a um mês manifestaramse claramente os efeitos da pisadela e do beliscão oito9 meses depois tiveram um filho Era um formidável menino de quase três palmos de comprido gordo e vermelho cabeludo esperneador e chorão logo depois que nasceu mamou duas horas seguidas sem largar o peito Chegou o dia de batizarse o rapaz foi madrinha a parteira sobre o padrinho houve suas dúvidas o Leonardo queria que fosse o Sr Juiz porém teve de ceder a instâncias da Maria e da comadre que queriam que fosse o barbeiro de defronte que afinal foi adotado Já se sabe que houve nesse dia função os convidados do dono da casa que eram todos dalémmar cantavam ao desafio segundo seus costumes os convidados da comadre que eram todos da terra dançavam o fado de maneira que esteve a festa excelente pela variedade O compadre trouxe a rabeca que é como se sabe o instrumento favorito da gente do ofício A princípio o Leonardo quis que a festa tivesse ares aristocráticos e propôs que se dançasse o ril de três10 Foi aceita a idéia Levantaramse a executar as monótonas viravoltas da apreciada dança uma gorda e baixa matrona mulher de um convidado colega do Leonardo miudinho pequenino e com fumaças de gaiato e o sacristão da Sé sujeito alto magro e com pretensões de elegante O compadre foi quem tocou o ril na rabeca e o afilhadinho deitado no colo da Maria acompanhava cada arcada com um berro e um esperneio Isto fez com que o compadre perdesse muitas vezes o compasso e fosse preciso a recomeçar outras tantas Depois do ril foi desaparecendo a cerimônia e a brincadeira aferventou como se dizia naquele tempo Chegaram uns rapazes de viola e machete o Leonardo instado pelas senhoras decidiuse a romper a parte lírica do divertimento Sentouse num tamborete em um lugar isolado da sala e tomou uma viola Fazia um belo efeito cômico vêlo em trajes do ofício de casaca calção e espadim acompanhando com um monótono zunzum na viola o garganteado de uma modinha pátria Foi nas saudades da terra natal que ele achou inspiração para o seu canto e isto era natural a um bom português que o era ele A modinha era assim Quando estaba em minha terra Acompanhado ou sozinho Cantaba de noite e de dia Ao pé dum copo de binho11 Foi executada com atenção e aplaudida com entusiasmo somente quem não pareceu gostar foi o pequeno que brindou o pai no canto como brindara ao padrinho na rabeca marcandolhes o compasso a guinchos e esperneios À Maria avermelharamselhe os olhos e suspirou O canto do Leonardo foi o derradeiro toque de rebate para esquentarse a brincadeira foi o adeus às cerimônias Tudo daí em diante foi burburinho que depressa passou à gritaria e ainda mais depressa à algazarra e não foi ainda mais adiante porque de vez em quando viamse passar através das rótulas da porta e janelas umas certas figuras que denunciavam que o Vidigal andava perto Quando mais adiante tivermos de tratar desta personagem os que ainda o não conhecem ficáloão conhecendo Saiba agora o leitor que ainda o não adivinhou que o pequeno nascido é a personagem que dá objeto a estas memórias No seguinte capítulo diremos alguma coisa sobre sua infância12 capítulo ii Primeiros infortúnios Passemos por alto sobre os anos que decorreram desde o nascimento e batizado do nosso memorando e vamos encontrálo já na idade de 7 anos Digamos unicamente que durante todo este tempo o menino nunca desmentiu aquilo que anunciara desde que nasceu atormentava a vizinhança com um choro sempre em oitava alta era colérico tinha zanga13 particular da madrinha a quem não podia encarar e era estranhão até não poder mais Logo que pôde andar e falar tornouse um flagelo quebrava e rasgava tudo que lhe vinha à mão Tinha uma paixão decidida pelo chapéu armado do Leonardo se este o deixava por esquecimento em algum lugar ao seu alcance tomavao imediatamente espanava com ele todos os móveis punhalhe dentro tudo que encontrava esfregavao em uma parede e acabava por varrer com ele a casa até que a Maria exasperada pelo que aquilo lhe havia custar aos ouvidos e talvez às costas arrancavalhe das mãos a vítima infeliz Era além de traquinas guloso quando não traquinava comia A Maria não lhe perdoava trazialhe bem maltratada uma certa região do corpo porém ele não se emendava que era também teimoso e as travessuras recomeçavam mal acabava a dor das palmadas Assim chegou aos 7 anos Afinal de contas a Maria sempre era ilhoa e o Leonardo começava a arrependerse seriamente de tudo que tinha feito por ela e com ela E tinha razão porque digamos depressa e sem mais cerimônias havia ele desde certo tempo concebido fundadas suspeitas de que era atraiçoado Alguns meses atrás tinha notado que um certo sargento passavalhe muitas vezes pela porta e enfiava olhares curiosos através das rótulas uma vez recolhendose pareceralhe que o vira encostado à janela Isto porém passou em pouco tempo Depois começou a estranhar que um certo colega seu o procurava em casa para tratar de negócios do oficio sempre em horas desencontradas porém isto também passou em breve Finalmente aconteceulhe por três ou quatro vezes esbarrarse junto de casa com o capitão do navio em que tinha vindo de Lisboa e isto causoulhe sérios cuidados Um dia de manhã entrou sem ser esperado pela porta adentro alguém que estava na sala abriu precipitadamente a janela saltou por ela para a rua e desapareceu À vista disto nada havia a duvidar o pobre homem perdeu como se diz as estribeiras e ficou cego de ciúme Largou apressado em cima de um banco uns autos que trazia embaixo do braço e endireitou para a Maria com os punhos cerrados Grandessíssima E a injúria que ia soltar era tão grande que o engasgou e pôsse a tremer A Maria recuou dois passos e pôsse em guarda pois também não era das que se receava com qualquer coisa Tirate lá ó Leonardo Não chames mais pelo meu nome não chames que senão trancote essa boca com um par de murros Dizem que os da tua raça dão coices depois de mortos e tu destemo mesmo em vida e foi mesmo na cara nas minhas barbas14 Safese daí Não se lembrou você disto quando começou aos namoricos comigo a bordo Isto exasperou o Leonardo a lembrança do amor aumentoulhe a dor da traição e o ciúme e a raiva de que se achava possuído transbordaram em murros sobre a Maria que depois de uma tentativa inútil de resistência desatou a correr a chorar e a gritar Ai ai acuda Sr compadre Sr compadre Porém o compadre ensaboava nesse momento a cara de um freguês e não podia largálo Portanto a Maria pagou caro e por junto todas as contas Encolheuse a choramingar em um canto O menino assistira a toda essa cena com imperturbável sanguefrio enquanto a Maria apanhava e o Leonardo esbravejava ele ocupavase tranqüilamente em rasgar as folhas dos autos que este tinha largado ao entrar e em fazer delas uma grande coleção de cartuchos Quando esmorecida a raiva o Leonardo pôde ver alguma coisa mais do que seu ciúme reparou então na obra meritória em que se ocupava o pequeno Enfurecese de novo suspende15 o menino pelas orelhas fálo dar no ar uma meiavolta ergue o pé direito assentalhe em cheio sobre os glúteos atirandoo sentado a quatro braças de distância És filho de uma pisadela e de um beliscão mereces que um pontapé te acabe a casta Este suportou tudo com coragem de mártir apenas abriu ligeiramente a boca quando foi levantado pelas orelhas mal caiu ergueuse embarafustou pela porta fora e em três pulos estava dentro da loja do padrinho e atracou selhe às pernas O padrinho erguia nesse momento por cima da cabeça do freguês a bacia de barbear que lhe tirara dos queixos Com o choque que sofreu a bacia inclinouse e o freguês sofreu um formidável batismo de água de sabão Ora mestre esta não está má Senhor balbuciou este a culpa é deste endiabrado O que é que tens menino O pequeno nada disse dirigiu apenas os olhos espantados para defronte apontando com a mão trêmula nessa direção O compadre olhou também aplicou a atenção e ouviu então os soluços da Maria Ham resmungou já sei o que há de ser eu bem dizia ora aí está E desculpandose com o freguês saiu da loja e foi acudir ao que se passava Por estas palavras vêse que ele suspeitara alguma coisa e saiba o leitor que suspeitara a verdade Espiar a vida alheia inquirir dos escravos o que se passava no interior das casas era naquele tempo coisa tão comum e enraizada nos costumes que ainda hoje depois de passados tantos anos restam disso vestígios Sentado pois no fundo da loja afiando por disfarce os instrumentos do ofício o compadre presenciara os passeios do sargento por perto da rótula de Leonardo as visitas extemporâneas do colega deste e finalmente os intentos do capitão do navio Por isso contava ele mais dia menos dia com o que acabava de suceder Chegando ao outro lado da rua empurrou a rótula que o menino ao sair deixara cerrada e entrou Dirigiuse ao Leonardo que se conservava ainda em posição hostil Ó compadre disse você perdeu o juízo Não foi o juízo disse o Leonardo em tom dramático foi a honra A Maria vendose protegida pela presença do compadre cobrou ânimo e altanandose disse em tom de zombaria Honra honra de meirinho ora O vulcão de despeito que as lágrimas da Maria tinham apagado um pouco borbotou de novo com este insulto que não ofendia só um homem porém uma classe inteira Injúrias e murros à mistura caíram de novo sobre a Maria das mãos e da boca de Leonardo O compadre que se interpusera levou alguns por descuido afastouse pois a distância conveniente murmurando despeitado por ver frustrados seus esforços de conciliador Honra de meirinho é como fidelidade de ilhoa Enfim serenou a tormenta a Maria sentouse a um canto a chorar e a maldizer a hora em que nascera o dia em que pela primeira vez vira o Leonardo a pisadela o beliscão com que tinha começado o namoro a bordo e tudo mais que a dor dos murros lhe trazia à cabeça O Leonardo depois de um pouco de calma teve um momento de exasperação avermelharamselhe os olhos as faces cerrou os dentes meteu as mãos nos bolsos do calção inchou as bochechas e pôsse a balançar violentamente a perna direita Depois como tomando uma resolução extrema juntou as folhas dispersas dos autos que o menino despedaçara enterrou atravessado na cabeça o chapéu armado agarrou na bengala e saiu batendo com a rótula e exclamando Váse tudo com os diabos Vai vai exclamou a Maria já de novo em segurança pondo as mãos nas cadeiras que o caso não há de ficar assim pôrme as mãos ora vou com isto à justiça Comadre Nada não atendo compadre vou com isto à justiça e apesar de ser ele um meirinhaço muito velhaco há de se haver comigo É melhor não se meter nisto comadre sempre são negócios com a justiça o compadre é seu oficial e ela há de punir pelos seus As ameaças da Maria não passavam de bravatas que lhe arrancava o despeito e portanto com mais quatro razões do compadre cedeu e foi restituída a paz em casa Houve então larga conferência entre os dois no fim da qual o compadre saiu dizendo Ele há de voltar aquilo é gênio há de passar e se não o dito está dito fico com o pequeno A Maria mostrouse satisfeita Tinha ela suas resoluções tomadas ou anteriormente ou naquela ocasião e por isso na conferência que referimos tratara de engodar o compadre e arrancarlhe a promessa de que no caso de algum desarranjo tomaria a si e cuidaria do filho Esse desarranjo ela figurara e o compadre acreditara que só partiria de Leonardo porém o leitor vai ver que o pobre homem era condescendente e que a Maria tinha razão quando falara ironicamente em honra de meirinho Toda esta cena que acabamos de descrever passouse de manhã À tardinha o Leonardo entrou pela loja do compadre aflito e triste O pequeno estremeceu no banco em que se achava sentado lembrandose do passeio aéreo que o pontapé de seu pai lhe fizera dar de manhã O compadre adiantouse e disselhe com um sorriso conciliador O passado passado vamos ela está arrependida doidices de rapariga mas não há de fazer outra O Leonardo nada respondeu pôsse a passear pela loja com as mãos cruzadas para trás e por baixo das abas da casaca porém pelo seu semblante viase que ele estimara as palavras do compadre e que teria sido o primeiro a proferilas16 se ele não o precedesse Vamos até lá disse o compadre e acabese tudo Coitada ela ficou e ainda há de estar muito chorosa Vamos disse o Leonardo Chegando à porta de casa fez uma pequena parada como quem tinha tomado a resolução de não entrar o que ele queria eram algumas súplicas do compadre que pudessem ser ouvidas pela Maria para fazêla acreditar que se ele voltava era arrastado e não por sua vontade O compadre percebeu isto e satisfez o pensamento de Leonardo dizendo Entre homem basta de criançadas o passado passado Entraram A sala estava vazia o Leonardo sentouse junto de uma mesa onde descansou o cotovelo e encostou a cabeça na mão conservando sempre o chapéu armado atravessado na cabeça o que lhe dava um aspecto entre cômico e melancólico Comadre disse o compadre em voz alta tudo está acabado apareça venha cá Ninguém respondeu Há de estar aí a chorar metida em algum canto tornou o compadre e começou a procurar por toda a casa Não era esta muito grande em pouco percorreua toda e ficou tomado do mais cruel desapontamento por não encontrar a Maria Voltou portanto à sala entre consternado e espantado O Leonardo supondo que ele tinha achado a Maria e que sem dúvida a trazia pela mão contrita e humilhada quis fazerse de bom ergueuse meteu as mãos nos bolsos e pôsse de costas para o lugar donde vinha o compadre Ó compadre disse este aproximandose Nada atalhou o Leonardo sem voltarse o dito por não dito mudei de resolução Olhe homem Nada nada está tudo acabado O Leonardo dizendo isto ia dando sempre as costas ao compadre quando se lhe queria pôr de frente Homem escute olhe que a comadre Não quero saber dela está tudo acabado já disse Foise embora homem foise embora gritou o compadre impacientado O Leonardo foi fulminado por estas palavras voltouse então trêmulo Não vendo a Maria desatou a chorar Pois bem disse entre soluços está tudo acabado adeus compadre Mas olhe que o pequeno atalhou este O Leonardo nada respondeu e saiu precipitadamente O compadre compreendeu tudo viu que o Leonardo abandonava o filho uma vez que a mãe o tinha abandonado e fez um gesto como quem queria dizer está bom já agora vá ficaremos com uma carga às costas Ao outro dia sabiase por toda a vizinhança que a moça do Leonardo tinha fugido para Portugal com o capitão de um navio que partira na véspera de noite Ah disse o compadre com um sorriso maligno foram saudades da terra capítulo iii Despedida às travessuras O Leonardo abandonara de uma vez para sempre a casa fatal onde tinha sofrido tamanha infelicidade nem mesmo passara mais por aquelas alturas de maneira que o compadre por muito tempo não lhe pôde pôr a vista em cima O pequeno enquanto se achou novato em casa do padrinho portouse com toda a sisudez e gravidade apenas porém foi tomando mais familiaridade começou a pôr as manguinhas de fora Apesar disto porém captou do padrinho maior afeição que se foi aumentando de dia em dia e que em breve chegou ao extremo da amizade cega e apaixonada Até nas próprias travessuras do endiabrado menino as mais das vezes malignas achava o bom do homem muita graça não havia para ele em todo o bairro rapazinho mais bonito e não se fartava de contar à vizinhança tudo o que ele dizia e fazia que lhe parecia sempre ter muito sal17 às vezes eram verdadeiras ações de menino malcriado que ele achava cheio de espírito e de viveza outras vezes eram ditos que denotavam já muita velhacaria para aquela idade e que ele julgava os mais ingênuos do mundo Era isto muito natural em um homem de uma vida como a sua tinha já 50 e tantos anos nunca tinha tido afeições passara sempre só isolado era verdadeiro partidário do mais decidido celibato Assim à primeira afeição que fora levado a contrair sua alma expandiuse toda inteira e seu amor pelo pequeno subiu ao grau de rematada cegueira Este aproveitandose da imunidade em que se achava por tal motivo fazia tudo quanto lhe vinha à cabeça Umas vezes sentado na loja divertiase em fazer caretas aos fregueses quando estes se estavam barbeando uns enfureciamse outros riam sem querer do que resultava que saíam muitas vezes com a cara cortada com grande prazer do menino e descrédito do compadre Outras vezes escondia em algum canto a mais afiada navalha do padrinho e o freguês levava por muito tempo com a cara cheia de sabão mordendose de impaciência enquanto esta se procurava e ele riase furtiva e malignamente Não parava em casa coisa alguma por muito tempo inteira fazia andar tudo numa poeira pelos quintais atirava pedras aos telhados dos vizinhos sentado à porta da rua bulia18 com quem passava com quem estava pelas janelas de maneira que ninguém por ali gostava dele Mas o padrinho não se dava disto e continuava a quererlhe sempre muito bem Gastava às vezes as noites em fazer castelos no ar a respeito dele sonhavalhe uma grande fortuna e uma elevada posição e tratava de estudar os meios que levassem a esse fim e dizia consigo Pelo ofício do pai ganhase é verdade dinheiro quando se tem jeito porém sempre se há de dizer ora é um meirinho nada por este lado não Pelo meu ofício verdade é que eu arranjeime há neste arranjeime uma história que havemos de contar porém não o quero fazer escravo das meias patacas dos fregueses Seria talvez bom mandálo ao estudo porém para que diabo serve o estudo Verdade é que ele parece ter boa memória e eu podia mais para diante mandálo a Coimbra Sim é verdade eu tenho aquelas patacas estou já velho não tenho filhos nem outros parentes mas também que diabo se fará ele em Coimbra licenciado não é mau ofício letrado era bom sim letrado mas não tenho zanga a quem me lida com papéis e demandas Clérigo um senhor clérigo é muito bom é uma coisa muito séria ganhase muito pode vir um dia a ser cura está dito há de ser clérigo ora se há de ser hei de ter ainda o gostinho de o ver dizer missa de o ver um dia pregar na Sé em presença dElrei19 e então hei de mostrar a toda esta gentalha aqui da vizinhança que não gosta dele que eu tinha muita razão em lhe querer bem Ele está ainda muito pequeno mas vou tratar de o ir desasnando aqui mesmo em casa e quando tiver 12 ou 14 anos há de me entrar para a escola Tendo ruminado por muito tempo esta20 um dia de manhã chamou o pequeno e disselhe Menino venha cá você está ficando um homem tinha ele 9 anos é preciso que aprenda alguma coisa para vir um dia a ser gente de segunda feira em diante estava em quartafeira começarei a ensinarlhe o b a ba Fartese de travessuras por este resto da semana O menino ouviu este discurso com um ar meio admirado meio desgostoso e respondeu Então eu não hei de ir mais ao quintal nem hei de brincar na porta Aos domingos quando voltarmos da missa Ora eu não gosto da missa O padrinho não gostou da resposta não era bom anúncio para quem se destinava a ser padre mas nem por isso perdeu as esperanças O menino tomou bem sentido nestas palavras do padrinho Fartese de travessuras por este resto da semana e acreditou que aquilo era uma licença ampla para fazer tudo quanto de bom e de mau se lembrasse durante o tempo que ainda lhe restava de folga Levou pois todo o dia em uma desenvoltura assustadora o padrinho foi achálo por duas ou três vezes a cavalo em cima do muro que dividia o quintal da casa do vizinho em grande risco de precipitarse Ao anoitecer estando sentado à porta da loja viu ao longe no princípio da rua um acompanhamento alumiado pela luz de lanternas e tochas e ouviu padres a rezarem estremeceu de alegria e pôsse em pé de um salto Era a ViaSacra do Bom Jesus Há bem pouco tempo que existiam ainda em certas ruas desta cidade cruzes negras pregadas pelas paredes de espaço em espaço Às quartasfeiras e em outros dias da semana saía do Bom Jesus e de outras igrejas uma espécie de procissão composta de alguns padres conduzindo cruzes irmãos de algumas irmandades com lanternas e povo em grande quantidade os padres rezavam e o povo acompanhava a reza Em cada cruz parava o acompanhamento ajoelhavamse todos e oravam durante muito tempo Este ato que satisfazia a devoção dos carolas dava pasto e ocasião a quanta sorte de zombaria e de imoralidade lembrava aos rapazes daquela época que são os velhos de hoje que tanto clamam contra o desrespeito dos moços de agora Caminhavam eles em charola atrás da procissão interrompendo a cantoria com ditérios em voz alta ora simplesmente engraçados ora pouco decentes levavam longos fios de barbante em cuja extremidade iam penduradas grossas bolas de cera Se ia por ali ao seu alcance algum infeliz a quem os anos tivessem despido a cabeça dos cabelos colocavamse em distância conveniente e escondidos por trás de um ou de outro arremessavam o projétil que ia bater em cheio sobre a calva do devoto que às vezes ia entretido em suas orações puxavam rapidamente o barbante e ninguém podia saber donde tinha partido o golpe Estas e outras cenas excitavam vozeria e gargalhadas na multidão que muito se divertia com isso Era a isto que naqueles devotos tempos se chamava correr a ViaSacra O menino como já dissemos estremecera de prazer ao ver aproximar se a procissão Desceu sorrateiramente a soleira e sem ser visto pelo padrinho colocouse unido à parede entre as duas portas da loja e levantou se na ponta dos pés para ver mais a seu gosto Vinhase aproximando o acompanhamento e o menino palpitava de prazer Chegou mesmo defronte da porta teve ele então um pensamento que o fez estremecer tornouse a lembrar das palavras do padrinho farte se de travessuras espiou para dentro da loja viuo entretido deu um salto do lugar onde estava misturouse com a multidão e lá foi concorrendo com suas gargalhadas e seus gritos para aumentar a vozeria Era um prazer febril que ele sentia esqueceuse de tudo pulou saltou gritou rezou cantou e só não fez daquilo o que não estava em suas forças Fez camaradagem com dois outros meninos do seu tamanho que também iam no rancho e quando deu acordo de si estava de volta com a ViaSacra na Igreja do Bom Jesus capítulo iv O Leonardo tomando fortuna21 Enquanto o compadre aflito procura por toda a parte o menino sem que ninguém possa darlhe novas dele vamos ver o que é feito do Leonardo e em que novas alhadas está agora metido Lá para as bandas do mangue da Cidade Nova havia ao pé de um charco uma casa coberta de palha da mais feia aparência cuja frente suja e testada enlameada bem denotavam que dentro o asseio não era muito grande Compunhase ela de uma pequena sala um quarto e uma cozinha toda a mobília eram dois ou três assentos de paus de uma forma esquisita de que ainda hoje usam algumas mulheres desse tempo e que se chamavam bancas22 algumas esteiras em um canto e uma enorme caixa de pau que tinha muitos empregos era mesa de jantar cama guardaroupa prateleira etc e uns poucos de alguidares de barro de diversos tamanhos23 Quase sempre estava essa casa fechada o que a rodeava de um certo mistério a pouca luz que ordinariamente havia dentro entrando apenas por algumas frestas ainda mais misteriosa a tornava24 Esta sinistra morada era habitada por uma personagem talhada pelo molde mais detestável era um caboclo velho de cara hedionda imundo e coberto de farrapos Entretanto para a admiração do leitor fiquese sabendo que este homem tinha por ofício dar fortuna Naquele tempo acreditavase muito nestas coisas e uma sorte de respeito supersticioso era tributado aos que exerciam semelhante profissão Já se vê que inesgotável mina não achavam nisso os velhacos25 E não era só a gente do povo que dava crédito a essas feitiçarias contase que muitas pessoas da alta sociedade de então iam às vezes comprar venturas e felicidades pelo cômodo preço da prática de algumas imoralidades e superstições Pois ao nosso amigo Leonardo tinha se encasquetado26 também tomar fortuna e a causa era a contrariedades em uns novos amores que lhe faziam agora andar a cabeça à roda Uma cigana era o objeto deles o Leonardo a vira pouco tempo depois da fuga da Maria e das cinzas ainda quentes de um amor mal pago nasceu outro que também não foi a este respeito melhor aquinhoado mas o homem era romântico como se diz hoje e babão como se dizia naquele tempo não podia passar sem uma paixãozinha Como o ofício rendia e ele andava sempre apatacado não lhe fora difícil conquistar a posse do adorado objeto porém a fidelidade a unidade no gozo dela que era o que sua alma aspirava isso não o pudera conseguir a cigana tinha pouco mais ou menos sido feita no mesmo molde da ilhoa Por toda a parte há sargentos colegas e capitães de navio a rapariga tinhalhe já feito umas poucas e acabava também por fugirlhe de casa Desta vez porém como não eram saudades da pátria a causa desta fugida o Leonardo decidira haver de novo e por todos os meios a posse de sua amada Encontroua com pouco trabalho e empregou o pranto as súplicas as ameaças porém tudo embalde decidiu por isso a buscar com meios sobrenaturais o que os meios humanos lhe não tinham podido dar Entregarase portanto em corpo e alma ao caboclo da casa do mangue o mais afamado de todos os do ofício Tinhase já sujeitado a uma infinidade de provas que começavam sempre por uma contribuição pecuniária e ainda nada havia conseguido tinha sofrido fumigações de ervas sufocantes tragado beberagens de mui enjoativo sabor sabia de cor milhares de orações misteriosas que era obrigado a repetir muitas vezes por dia ia depositar quase todas os dias em lugares determinados quantias e objetos que lhe dizia o caboclo viriam buscar as suas divindades mas as divindades eram ele em pessoa tinha enfim feito outras mil coisas asnáticas ou indecentes e nada ainda havia conseguido a cigana resistia ao sortilégio Decidiuse finalmente a sujeitarse à última prova que foi marcada para a meianoite em ponto na casa que já conhecemos À hora aprazada lá se achou o Leonardo encontrou na porta o nojento nigromante que não consentiu que ele entrasse do modo em que se achava e obrigouo a pôrse primeiro em hábitos de Adão no paraíso cobriuo depois com um manto imundo que trazia e só então lhe franqueou entrada A sala estava com um aparato ridiculamente sinistro uma fileira de alguidares de todos os tamanhos a circulava havia distribuído por esses alguidares ervas líquidos terra areia etc etc27 no meio havia uma pequena fogueira O Leonardo foi obrigado a ajoelharse diante de cada um dos alguidares e a recitar algumas orações que já sabia depois foi orar junto da fogueira Neste momento saíram do quarto duas ou três28 figuras que eram sem dúvida os ajudantes do distribuidor de fortuna e começaram então em roda do Leonardo uma dança sinistra Quando estavam no meio desse ato sentiram bater levemente na porta da parte de fora e uma voz descansada dizer Abra a porta O Vidigal disseram todos a um tempo com expressão de grande susto capítulo v Primeira noite fora de casa O compadre apenas dera por falta do afilhado viuse presa da maior aflição pôsse em alarma toda a vizinhança procurou indagou mas ninguém lhe deu novas nem mandados dele Lembrouse então da Via Sacra e imaginou que o pequeno a teria acompanhado percorreu todas as ruas por onde passara o acompanhamento perguntando aflito a quantos encontrava pelo seu querido afilhado tesouro precioso de suas esperanças chegou sem encontrar vestígio algum até o Bom Jesus onde lhe disseram ter visto três meninos que por se portarem endiabradamente na ocasião da entrada da ViaSacra o sacristão os correra para fora da igreja Foi este o único sinal que pôde colher Vagou depois por muito tempo pela rua e só se recolheu para casa estando já a noite adiantada Ao chegar à porta de casa abriuse o postigo de uma rótula contígua e uma voz de mulher perguntou Então vizinho nada Nada vizinha respondeu o compadre com voz desanimada Ora quando eu lhe digo que aquela criança tem maus bofes Vizinha isto não são coisas que se digam Digolhe e repitolhe que tem maus bofes Pois o que ele fez hoje trepado no muro e enfim Deus permita que não mas aquilo não tem bom fim Oh senhora replicou o compadre muito irritado que tem a senhora com a minha vida e mais das coisas que me pertencem Metase consigo cuide nos seus bilros e na sua renda e deixe a vida alheia E entrou para casa murmurando Um dia faço aqui uma estralada com esta mulher é sempre isto parece um agouro Toda a noite levou o pobre homem acordado a pensar nos meios de achar o pequeno e depois de ter formado mil planos disse consigo Em último lugar vou ter com o major Vidigal E esperou que o dia voltasse para prosseguir em suas pesquisas Entretanto vamos satisfazer ao leitor que há de talvez ter curiosidade de saber onde se meteu o pequeno Com os emigrados de Portugal veio para o Brasil também a praga dos ciganos gente ociosa e de poucos escrúpulos ganharam eles aqui a reputação bem merecida dos mais refinados velhacos que se pode imaginar ninguém que tivesse juízo se metia com eles em negócio porque tinha certeza de levar carolo A poesia de seus costumes e de suas crenças de que muitos escritores29 têm falado se as tinham deixaramna da outra banda do oceano para cá só trouxeram maus hábitos esperteza e velhacaria e se não o nosso Leonardo pode dizer alguma coisa a respeito Eram gente ociosa já o dissemos se não tinham dia sem especial ação não tinham noite sem festa Moravam ordinariamente um pouco arredados das ruas populosas e viviam em plena liberdade As mulheres trajavam com certo luxo relativo aos seus haveres usavam muito de rendas davam preferência a tudo quanto era encarnado e nenhuma delas dispensava pelo menos um cordão de ouro ao pescoço os homens não tinham outra distinção mais do que alguns traços fisionômicos particulares que os faziam conhecidos Os dois meninos com quem o pequeno fugitivo travara amizade pertenciam a uma família dessa gente que morava no largo do Rossio lugar que segundo julgamos perdera há pouco tempo o nome que tinha de Campo dos Ciganos por morarem por ali muitos deles Tinham como dissemos pouco mais ou menos a mesma idade que ele porém acostumados à vida vagabunda conheciam toda a cidade e a percorriam sós sem que isso causasse cuidado a seus pais nunca faltavam a acompanhamento de ViaSacra nem a outra qualquer coisa desse gênero Encontrandose nessa noite como já sabem os leitores com o nosso futuro clérigo a ele se associaram e o carregaram para casa de seus pais onde como de costume havia festa de ciganos e este costume ainda hoje se conserva faziam como dissemos festa todos os dias porém motivavam na sempre com qualquer causa hoje era um batizado amanhã um casamento agora anos disto logo anos daquilo festa deste festa daquele santo Na noite de que tratamos havia um oratório armado e festejavase lá um santo da devoção Pelo caminho o menino teve alguns escrúpulos e quis voltar porém os outros tal pintura lhe fizeram do que ele ia ver se os acompanhasse que decidiuse a seguilos até onde quisessem Chegaram enfim à casa onde já tinha começado a festa Ao lado esquerdo da sala estava o oratório iluminado por algumas pequenas velas de cera sobre uma mesa coberta com uma toalha branca servialhe de docel uma colcha de chita com folhos o chão em roda da mesa estava juncado de manjericão desfolhado30 Em roda da sala estavam colocados assentos de toda a natureza bancos cadeiras etc onde se assentavam os convidados Não eram estes em pequeno número eram ciganos e gente do país traziam toilletes de toda a casta do sofrível para baixo mostravamse alegres e dispostos a aproveitarem bem a noite Os meninos entraram sem que alguém reparasse neles e foram colocarse junto do oratório Daí a pouco começou o fado Todos sabem o que é o fado essa dança tão voluptuosa tão variada que parece filha do mais apurado estudo da arte Uma simples viola serve melhor do que instrumento algum para o efeito O fado tem diversas formas cada qual mais original e mais bonita Ora uma só pessoa homem ou mulher dança no meio da casa por algum tempo fazendo passos os mais dificultosos tomando as mais airosas posições acompanhandose com estalos que dá com os dedos e vai depois pouco e pouco aproximandose de qualquer que lhe agrada faz diante dela algumas negaças e viravoltas engraçadas e finalmente bate palmas junto dela o que quer dizer que a escolheu para substituir o seu lugar Assim corre a roda toda até que todos tenham dançado Outras vezes um homem e uma mulher dançam juntos seguindo com a maior certeza o compasso da música eles acompanham ora com passo lento ora apressado depois repelemse depois juntamse de novo o homem às vezes busca a mulher com passos ligeiros enquanto ela fazendo um pequeno movimento com o corpo e com os braços recua vagarosamente outras vezes é ela quem procura o homem que recua por seu turno até que enfim acompanhamse de novo Parece esta forma de dança representar a história de um namoro ao princípio confiança e intimidade depois negaças escrupulosas depois arrufos de parte a parte e finalmente pazes31 Há também a roda em que dançam muitas pessoas interrompendo certos compassos com palmas e com um sapateado às vezes estrondoso e prolongado às vezes mais brando e mais breve porém sempre igual e a um só tempo Além destas há ainda outras formas de que não falamos A música é diferente para cada uma porém sempre o mais adequada possível e sempre tocada em viola Muitas vezes o tocador canta em certos compassos uma cantiga às vezes extravagante as vezes de pensamento verdadeiramente poético Quando o fado começa custa a acabar termina sempre pela madrugada quando não leva de enfiada dias e noites seguidas e inteiras O menino esquecido de tudo pelo prazer assistiu à festa enquanto pôde depois chegoulhe o sono e reunindose com os companheiros em um canto adormeceram todos embalados pela viola e pelo sapateado Quando amanheceu acordou sarapantado chamou um dos companheiros e pediu que o levasse para casa O padrinho ia saindo para começar nas pesquisas quando esbarrou com ele Menino dos trezentos onde te meteste Fui ver um oratório não diz que eu hei de ser padre O padrinho olhouo por muito tempo e afinal não podendo resistir ao ar de ingenuidade que ele mostrava desatou a rir e levouo para dentro já completamente apaziguado capítulo vi A comadre Cumprenos agora dizer alguma coisa a respeito de uma personagem que representará no correr desta história um importante papel e que o leitor apenas conhece porque nela tocamos de passagem no primeiro capítulo é a comadre a parteira que como dissemos servira de madrinha ao nosso memorando Era a comadre uma mulher baixa excessivamente gorda bonanchona ingênua ou tola até um certo ponto e finória até outro vivia do ofício de parteira que adotara por curiosidade benzia de quebranto todos a conheciam por muito beata e pela mais desabrida papamissas da cidade Era a folhinha mais exata de todas as festas religiosas que aqui se faziam sabia de cor os dias em que se dizia missa em tal ou tal igreja como a hora e até o nome do padre era pontual à ladainha ao terço à novena ao setenário não lhe escapava viasacra procissão nem sermão que ela não assistisse trazia o tempo habilmente distribuído e as horas combinadas de maneira que nunca lhe aconteceu chegar à igreja e achar já a missa no altar De madrugada começava pela missa da Lapa apenas acabava lá a missa ia à das 8 na Sé e daí saindo ainda pilhava a das 9 em Santo Antônio O seu traje habitual era como o de todas as mulheres da sua condição e esfera uma saia de lila preta que se vestia sobre um vestido qualquer um lenço branco muito teso e engomado ao pescoço outro envolvendolhe a cabeça um rosário pendurado no cós da saia um raminho de arruda atrás da orelha tudo isto coberto por uma clássica mantilha preta32 Nos dias dúplices em vez do lenço à cabeça o cabelo era penteado punhalhe um enorme pente cuja altura o rigor da moda elevara a 2 palmos do qual então pendia a mantilha33 Este uso da mantilha parece ser imitado do uso espanhol porém a mantilha espanhola temos ouvido dizer é uma coisa poética que reveste as mulheres de um certo mistério que atrai a tenção a mantilha das nossas mulheres não é34 a coisa mais prosaica que se pode imaginar especialmente quando as que as trazem são baixas e gordas como a comadre A mais brilhante festa religiosa que eram as mais freqüentadas desse tempo tomava um aspecto lúgubre logo que a igreja se enchia daqueles vultos negros que se uniam uns aos outros que se inclinavam cochichando a cada momento Mas a mantilha era o hábito mais conveniente aos costumes daquela época as ações dos outros sendo o principal cuidado de quase todos era muito bom e conveniente ver sem ser visto ora debaixo daquela capa negra passavamse imensos mistérios a mantilha para as mulheres estava na razão das rótulas para as casas eram o observatório da vida alheia Era agitada e acidentada a vida que levava a comadre de parteira beata e curandeira de quebranto não tinha por isso muito tempo de fazer visitas e procurar os conhecidos e amigos Assim não procurava o Leonardo muitas vezes e também tinha nisso razão por causa da zanga particular que lhe tinha o afilhado não sabia notícia deles há muito tempo quando um dia na Sé ouviu entre duas beatas de mantilha a seguinte conversa Pois é o que lhe digo a ilhoazinha35 era da pele do diabo E parecia uma santinha e o Leonardo o que lhe fez Ora desancoua de murros e foi o que fez com que ela abalasse mais depressa com o tal capitão pois olhe não teve razão o Leonardo é um rapagão ganhava boas patacas e tratava dela como de uma senhora E o filho que assim mesmo pequeno era um malcriadão O padrinho tomou conta dele querlhe um bem extraordinário está maluco o diabo do homem diz que o menino há de por força ser padre mas qual padre se ele é um endiabrado Ainda há pouco tempo fugiulhe de casa acompanhou a viasacra e depois foise meter em um fado de ciganos36 Nesta ocasião levantavase a Deus e as duas beatas interromperam a conversa para bater nos peitos Era uma delas a vizinha do compadre que prognosticava mau fim ao menino e com quem ele prometera fazer uma estralada a outra era uma das que tinham estado na função do batizado A comadre apenas ouviu isto foi procurar o compadre não se pense porém que a levara a isso o interesse pelo afilhado não era apenas curiosidade queria saber o caso com todos os menores detalhes isso lhe dava longa matéria para a conversa na igreja e para entreter as parturientes que se confiavam aos seus cuidados Entrou pela loja do compadre e apenas o avistou foilhe dizendo Então com que a tal comadre pregounos o mono Veja o que são doidices fazer aquilo ao Leonardo um homem que não é malarranjado filho do Reino Apertaramlhe as saudades da terra disse o compadre com seu sorriso maligno Apertada se veja ela entre as unhas do diabo Olhem que joiazinha E você mestre ficou com a carga às costas Carga não eu querolhe bem ele é sossegadinho A propósito ele tem andado um pouco morrinhento desconfio cá certa coisa Isso vêse logo e eu cá tenho o remédio disse a comadre chocalhando na mão as contas do rosário Nisto entra o pequeno Não tem que ver repetiu ela apenas o viu é olhado Passouse então uma cena de carinhos da parte da madrinha e repulsas da parte do afilhado esta ficou um tanto despeitada mas o compadre achoulhe graça37 Começou depois um interrogatório minucioso acerca do que tinha sucedido em casa do Leonardo e os dois compadre e comadre desabafaram a seu gosto Depois o compadre narrou mesmo sem ser interrogado todas as gentilezas do afilhado contou suas intenções a respeito dele A comadre não concordou com elas o que nada agradou ao compadre não via o menino com jeito para padre achava melhor metêlo no Trem a aprender um ofício Quanto ao incômodo que sofria o menino a comadre O compadre porém persistiu em seus intentos que tinha muita esperança de ver realizados Quanto ao incômodo que sofria o menino a comadre prometeu pôlo bom em 3 dias benzendoo para livrálo do mau olhado e despediuse prometendo voltar e oferecendose para fazer por ele tudo o que pudesse38 Pelo caminho foi repetindo o que acabara de saber a quanto conhecido encontrou sem escrupulizar muito em acrescentar mais uma ou outra circunstância com que carregava as cores do quadro Voltou depois durante três dias e com rezas e benzeduras conseguiu livrar o pequeno do mal que sofria olhado quebranto ou o quer que seja O compadre apenas viu o menino bom começou a suspeitar que o malefício não partira senão da vizinha que tanto se intrometia com ele e jurou tomar disso séria satisfação39 Entretanto aplicavase a trabalhar na realização de seus intentos e começou por ensinar o abc ao menino porém por primeira contrariedade este empacou no f e nada o fazia passar adiante A comadre continuou a aparecer daí em diante por um motivo que mais tarde se saberá Por agora vamos continuar a contar o que era feito do Leonardo capítulo vii40 O vidigal O som daquela voz que dissera aos nossos distribuidores de fortuna abra a porta lançara entre eles como dissemos o espanto e o medo E não foi sem razão era ela o anúncio de um grande aperto de que por certo não poderiam escapar Nesse tempo ainda não estava organizada a polícia da cidade ou antes estavao de um modo que bem denotava o caráter41 da época O major Vidigal era o rei absoluto o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração era o juiz que julgava e distribuía a pena e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos nas causas que ele julgava não haviam testemunhas nem provas nem razões nem processo ele resumia tudo em si a sua justiça era infalível não havia apelação de sua sentença fazia o que queria e ninguém lhe tomava contas exercia enfim uma espécie de inquirição policial Entretanto façamolhe justiça dados os descontos necessários das idéias do tempo ele em verdade não abusava lá muito de seu poder e o empregava em certos casos muito bem empregado Era ele um homem alto não muito gordo com cara de moleirão tinha o olhar sempre baixo os movimentos lentos e voz descansada e adocicada Apesar deste aspecto de mansidão não se encontraria por certo homem mais apto para aquela profissão exercida pelo modo que acabamos de indicar Uma companhia ordinariamente de granadeiros às vezes de outros soldados que ele escolhia entre os corpos que haviam armados todos de grossos camarões42 comandada pelo major Vidigal fazia toda a ronda da cidade de noite e toda a mais polícia de dia Não havia beco nem travessa rua nem praça onde não se tivesse passado uma façanha artística do Sr major para pilhar um garoto43 ou dar caça a um vagabundo A sua sagacidade era proverbial e por isso só o seu nome incutia um grande terror em todos os que não tinham a consciência muito pura a respeito de falcatruas Se no meio da algazarra de um fado rigoroso em que a decência e os ouvidos dos vizinhos não eram muito respeitados ouviase dizer está aí o Vidigalera como vulgarmente se diz o mesmo que pôr água na fervura 44 serenava tudo em um momento e a brincadeira tomava logo um aspecto sério Quando algum dos patuscos daquele tempo que os havia em grande número que não gozava de grande reputação de ativo e trabalhador era surpreendido de noite de capote sobre os ombros e viola por baixo dele caminhando em busca de súcia por uma voz branda que lhe dizia simplesmente venha cá onde vai era fugir se pudesse porque contava já com uma boa remessa de cadeia ou pelo menos de casa de guarda na Sé e depois o côvado e meio às costas como se dizia então era quase sempre a conseqüência necessária Foi por isso que os nossos nigromantes45 e a sua infeliz vítima puseramse em debandada mal conheceram pela voz quem se achava com eles Quiseram escaparse pelos fundos da casa porém ela estava toda cercada de granadeiros em cujas mãos reluziam os competentes camarões 46 A porta abriuse sem muita resistência e o major Vidigal porque era com efeito ele com os seus granadeiros pilhouos mesmo com a boca na botija47 estava ainda acesa a fogueira e os alguidares dispostos na ordem que indicamos48 Oh disse ele então por aqui dáse fortuna Sr major pelo amor de Deus Eu queria ver como era isso continuem camaradas Eles hesitaram um pouco porém vendo que resistir seria inútil começaram de novo as cerimônias de que os soldados se riam antevendo talvez qual seria o resultado O Leonardo estava corrido de vergonha tanto mais porque o Vidigal o conhecia e procurava cobrirse do melhor modo com a sua imunda capa Ajoelhouse quase arrastado outra vez no mesmo lugar e recomeçou a dança a que o major assistia de braços cruzados e com ar pachorrento Quando eles julgando que já tinham dançado suficientemente tentaram parar o major dizia brandamente continuem E eles continuavam Depois de muito tempo quiseram parar de novo Continuem disse outra vez o major Continuaram por mais meia hora passado esse tempo já muito cansados quiseram parar de novo Ainda não continuem Continuaram por tempos esquecidos já estavam que não podiam de estafados o nosso Leonardo ajoelhado ao pé da fogueira quase que se desfazia em suor quando o major dandose por satisfeito mandou que parassem e sem se alterar disse para os soldados com a sua voz lenta Toca granadeiros A esta voz todos os camarões se ergueram e caindo de rijo sobre as costas daquela honesta gente fizeramna dançar sem querer ainda por algum tempo Pára disse o major depois que os viu bem sovados49 Começou então a fazer a cada um um sermão em que se mostrava muito sentido por ter sido obrigado a chegar àquele excesso e que terminava sempre por esta pergunta Então você em que se ocupa Nenhum deles respondia e ele tornava sorrindo Está bom Chegou a vez do Leonardo Pois homem você um oficial de justiça que devia dar o exemplo Sr major respondeu ele acabrunhado é o diabo daquela rapariga que me obriga a tudo isto já não sei de que meios use Está bom replicou o major você há de ficar bom disto Vamos para a casa da guarda Com esta última decisão o Leonardo desesperou Perdoaria de bom grado as chibatadas que levara contanto que elas ficassem em segredo mas ir para a casa da guarda e de lá talvez para a cadeia isso é que ele não podia tolerar Rogou ao major que o poupasse porém debalde desfez então a vergonha em pragas à maldita cigana que tanto o fazia sofrer A casa da guarda era no largo da Sé era uma espécie de depósito onde se guardavam os presos que se faziam de noite para se lhes dar conveniente destino Já se sabe que os amigos de novidades iam por ali de manhã e sabiam com facilidade tudo que se tinha passado Aí esteve o Leonardo o resto da noite e grande parte da manhã exposto à vestoria dos curiosos Por infelicidade sua passou por acaso um colega e vendoo entrou para falarlhe isto quer dizer que daí a pouco toda a ilustre corporação dos meirinhos da cidade sabia do ocorrido com o Leonardo e já se preparava toda para darlhe uma solene pateada quando o negócio mudou de aspecto e o Leonardo foi mandado para a cadeia Aparentemente os companheiros mostraramse sentidos porém secretamente não deixaram de estimar o contratempo porque o Leonardo era muito afreguesado e enquanto estava ele preso as partes os procuravam capítulo viii50 O arranjeime do compadre Os leitores estarão lembrados que o compadre dissera quando estava a fazer castelos no ar a respeito do afilhado e pensando em darlhe o mesmo ofício que exercia isto é daquele arranjeime cuja explicação prometemos dar Vamos agora cumprir a promessa Se alguém perguntasse ao compadre por seus pais por seus parentes por seu nascimento ele nada poderia responder porque nada sabia a respeito Tudo de que se recordava da sua história reduziase a bem pouco Quando chegara à idade de dar acordo da vida achouse em casa de um barbeiro que dele cuidava porém que nunca lhe dissera se era ou não seu pai ou seu parente nem tão pouco o motivo por que tratava da sua pessoa Também nunca isso lhe dera cuidado nem lhe veio à curiosidade de o indagar Esse homem ensinaralhe o ofício e por inaudito milagre também a ler e a escrever Enquanto foi aprendiz passou em casa do seu mestre em falta de outro nome uma vida que por um lado se parecia com a do fâmulo por outro com a do filho por outro com a do agregado e que afinal não era senão vida de enjeitado que o leitor sem dúvida já adivinhou que ele o era A troco disso davalhe sustento e morada e pagavase do que por ele tinha já feito Quando passou de menino a rapaz e chegou a saber barbear e sangrar sofrivelmente foi obrigado a manterse à sua custa e a pagar a morada com os ganchos que fazia porque o produto do mais trabalho pertencia ainda ao mestre Sujeitouse a isso porém queriam ainda mais exigiam que continuasse a empregarse no serviço doméstico Lavroulhe então nalma um arrepio de dignidade já era oficial e não queria rebaixar o seu oficio Virou mareta fezse duro e safouse de casa sem escrúpulos nem remorsos pois bem sabia que estavam saldas as contas de parte a parte tinhamno criado e ele tinha servido Também não encontrou grande resistência a isso Apenas passou o primeiro ímpeto e teve tempo de reflexionar quase que começou a arrependerse por não saber o meio de achar arranjo Achou se na rua sem saber para onde ir tendo por única fortuna uma bacia de barbear um banco de braço51 um par de navalhas e outro de lancetas na algibeira Verdade é que quem tinha consigo estes trastes estava no uniforme do ofício porém isso não bastava e o pobre rapaz estava em apertos Passou a primeira noite em casa de um colega e no dia seguinte ao amanhecer tomando os seus apetrechos saiu em busca de que fazer e de destino Achou ambas as coisas uma trouxe a outra No Largo do Paço um marujo que estava sentado em uma pedra junto ao mar chamouo para que lhe fizesse a barba mãos à obra que já aquele dia não morria de fome Todo o barbeiro é tagarela e principalmente quando tem pouco que fazer começou portanto a puxar conversa com o freguês Foi a sua salvação e fortuna O navio a que o marujo pertencia viajava para a Costa e ocupavase no comércio de negros era um dos comboios que traziam fornecimento para o Valongo Estava pronto a largar e o faria no dia seguinte se se encontrasse alguém que quisesse ir fazendo as vezes de médico52 Ó mestre disse o marujo no meio da conversa você também não é sangrador Sim eu também sangro Pois olhe você estava bem bom se quisesse ir conosco53 Homem eu da cirurgia não entendo muito Pois já não disse que sabe também sangrar Sim Então já sabe até demais No dia seguinte saiu o nosso homem pela barra fora a fortuna tinhalhe dado o meio cumpria sabêlo aproveitar de oficial de barbeiro tinha dado um salto mortal a médico de navio restava unicamente saber fazer render a nova posição Isso ficou por sua conta Por um feliz acaso logo nos primeiros dias de viagem adoeceram dois marinheiros chamouse o médico ele fez tudo o que sabia sangrou os doentes e em pouco tempo estavam bons perfeitos Com isto ganhou ele imensa reputação e começou a ser estimado Chegaram com feliz viagem ao seu destino tomaram o seu carregamento de gente e voltaram para o Rio Graças à lanceta do nosso homem nem um só negro morreu o que muito contribuiu para aumentar lhe a sólida reputação de entendedor do riscado Poucos dias antes de chegar ao Rio o capitão do navio adoeceu a princípio nem ele nem alguém teve a menor dúvida de que ficaria bom logo depois da primeira sangria porém repentinamente o negócio complicouse e nem com a terceira e quarta se pôde conseguir coisa alguma No fim do quarto dia convenceramse todos e o capitão mesmo de que estava chegada a sua hora Nem por isso porém inculparam o nosso homem Ali não há sangria que o salve diziam chegou a sua vez de dar à costa O capitão teve de fazer suas últimas disposições e como dissemos tendo o médico granjeado grande amizade e confiança foi o escolhido para desempenhálas O capitão chamouo à parte e em segredo lhe fez entrega de uma cinta de couro54 pejada de um bom par de doblas em ouro e prata pedindo que fielmente as fosse entregar apenas chegasse à terra a uma filha sua cuja morada lhe indicou Além deste dinheiro encarregouo também de receber o importe55 daquela viagem e de lhe dar o mesmo destino Eram estas suas únicas e últimas vontades que o encarregava de cumprir declarandolhe que lá do outro mundo o espiaria para ver como cuidava disso Poucas horas depois expirou Desse dia em diante nenhum só doente escapou mais porque o médico já não sangrava tanto andava preocupado distraído e assim levou até chegar à terra Apenas saltou declarou que não se tinha dado bem e que não embarcaria mais Quanto às ordens do capitão ora histórias quem é que lhe havia de vir tomar contas disso Ninguém viu o que se passou ninguém sabia Os únicos que podiam ter desconfiado e fazer alguma coisa eram os marinheiros porém estes partiram em breve de novo56 O compadre decidiuse a instituirse herdeiro do capitão e assim o fez Eis aqui como se explica o arranjeime e como se explicam muitos outros que vão aí pelo mundo capítulo ix O pátio dos bichos Ainda hoje existe no saguão do paço imperial que no tempo em que se passou esta nossa história se chamava palácio delrei uma saleta ou quarto que os gaiatos e o povo com eles denominavam o pátio dos bichos Este apelido lhe fora dado em conseqüência do fim para que ele então servia passavam ali todos os dias do ano três ou quatro oficiais superiores velhos incapazes para a guerra e inúteis na paz que o rei a pretexto57 de seu serviço os tinha ali não sabemos se com mais alguma vantagem de soldo ou se só com mais a honra de serem empregados no real serviço Bem poucas vezes havia ocasião de serem eles chamados por ordem real para qualquer coisa e todo o tempo passavam em santo ócio ora mudos e silenciosos ora conversando sobre coisas do seu tempo e censurando as do que com razão já não supunham seu porque nenhum deles era menor de 60 anos Às vezes acontecia adormecerem todos ao mesmo tempo e então com a ressonância de suas respirações passando pelos narizes atabacados entoavam um quarteto pedaço impagável que os oficiais e soldados que estavam de guarda criados e mais pessoas que passavam vinham apreciar à porta Eram os pobres homens muitas vezes vítimas de caçoadas que naquele tempo de poucas preocupações eram o objeto de estudo de muita gente Às vezes qualquer que os pilhava dormindo chegava à porta e gritava Sr tenentecoronel elrei procura por V S Qualquer deles acordava espantado tomava o chapéu armado punha o cinturão58 acontecendo às vezes com a pressa ficar o chapéu torto ou a espada do lado direito e lá corria a ter com elrei Às vossas ordens real senhor dizia ainda bocejando O rei que percebia o negócio desatava a rir e o mandava embora Quando chegava o pobre homem abaixo ia cada um dos que por ali se achavam indagar o mais seriamente que era possível qual tinha sido o objeto do chamado delrei Faziamlhes destas e doutras mas daí a pouco deixavamse eles enganar de novo Vamos fazer o leitor tomar conhecimento com um desses ativos militares que entra também na nossa história Era velho como seus companheiros porém decerto por ele não é que tinha vindo ao quarto o apelido que lhe davam suas feições quebradas pela idade tinham ainda certa regularidade de contorno que bem denotava que no seu tempo de rapaz não fora a respeito de beleza mal favorecido de seus cabelos que o tempo levara restavam apenas orlandolhe as têmporas e a nuca alguns anéis crespos e prateados sua calva era nobre e imponente Fora valente ganhara por seus feitos as dragonas de tenentecoronel era filho de Portugal e acompanhara elrei na sua vinda ao Brasil Estas qualidades porém não lhe serviam de salvaguarda e sofria como os outros as caçoadas dos gaiatos Assim um dia que uma mulher de mantilha o foi procurar e se pôs com ele a conversar por algum tempo em particular passavam uns e outros e escarravam junto da porta ou deixavam escapar uma ou outra chalaça análoga Amores velhos nunca se esquecem dizia um Bravo gosto do bom gosto dizia outro A mulher de mantilha é nossa conhecida porque nem mais nem menos é a comadre e o negócio que ali a levou também nos interessa pois que se trata da soltura do pobre Leonardo Ouça portanto o leitor a conversa dos dois Sr tenentecoronel disse a comadre ao chegar venho me valer de V S meu compadre Leonardo está na cadeia O Leonardo mas então por quê Ora maluquices E chegandose ao ouvido do velho contoulhe a comadre baixinho a causa da prisão do Leonardo O velho desatou a rir Bem pregado disse Agora eu queria que V S fizesse o favor de falar por ele ao Sr major Vidigal que foi quem o prendeu coitado do homem é uma vergonha mas também ele não se emenda E prosseguindo a comadre contou muito em segredo como já o tinha feito a todos os seus conhecidos toda a história dos infelizes amores do Leonardo com a Maria todas as diabruras do menino que ela deixara e de que o padrinho tomara conta passou depois a relatar todo o ocorrido com a cigana e voltou de novo à história da prisão que contou e recontou vinte vezes sem lhe escapar a mais pequenina circunstância No fim tornou a fazer o seu pedido a que o velho prometeu satisfazer e então saiu ela recebendo no saguão muitos cumprimentos e sorrisos maliciosos Na porta por onde saiu estava encostado um cadete que lhe disse Estimo que fosse feliz no dia do batizado não se esqueça da gente Arrenego foi a única resposta que ela deu e passou Como o velho tenentecoronel conhecia a comadre e o Leonardo e por que se interessava por ele o leitor saberá mais para diante Esse conhecimento era antigo e o Leonardo apenas se achou na cadeia lembrouse da proteção que o velho lhe podia prestar em semelhante aperto mandou por um colega chamar a comadre e a encarregou da missão de ir ter com ele que ela aceitou de bom grado e que desempenhou segundo vimos satisfatoriamente O velho apenas a comadre saiu tomou o chapéu armado pôs a espada à cinta e saiu depois de ter contado aos companheiros o que sucede a quem vai tomar fortuna Um deles que era crédulo até ao entusiasmo a respeito de feitiçarias ficou muito indignado com o caso e prometeu também empenharse pelo Leonardo Já vê pois o leitor que o negócio não estava mal parado e em breve saberá o resultado de tudo isto capítulo x Explicações O velho tenentecoronel apesar de virtuoso e bom não deixava de ter na consciência um sofrível par de pecados desses que se chamam da carne e que não hão de ser levados em conta não de hoje que a idade o tornara inofensivo porém do tempo da sua mocidade o resultado de um deles fora um filho que deixara em Lisboa fruto de um derradeiro amor que tivera aos 36 anos Por castigo em nada havia ele saído ao pai e nem os conselhos nem os cuidados e nem o exemplo deste puderam encaminhálo por boa vereda Aos 20 anos tendo sentado praça era um cadete desordeiro jogador e o mais insubordinado do seu batalhão Bastantes vergonhas custara ao pobre pai que cuidadoso procurava sempre por todos os meios encobrirlhe os defeitos e remediar as gentilezas que fazia já pagando por ele dívidas de jogo já atabafandolhe as desordens e curando com ouro as brechas que ele fazia na cabeça de seus adversários Houve porém uma que as circunstâncias e mesmo a natureza do caso não permitiram que tivesse remédio Poucos dias antes de embarcar para o Brasil em companhia del rei estando o infeliz pai em preparativos de viagem viu entrarlhe pela porta adentro uma mulher velha baixa gorda vermelha vestida segundo o costume das mulheres da baixa classe do país com uma saia de ganga azul por cima de um vestido de chita um lenço branco dobrado triangularmente posto sobre a cabeça e preso embaixo do queixo e uns grossos sapatões nos pés Parecia presa de grande agitação e de raiva seus olhos pequenos e azuis faiscavam de dentro das órbitas afundadas pela idade suas faces estavam rubras e reluzentes seus lábios franzinos e franzidos apertavamse violentamente um contra o outro como prendendo uma torrente de injúrias e tornando mais sensível ainda seu queixo pontudo e um pouco revirado Apenas se achou ela em frente do capitão era este o posto que tinha nesse tempo o velho foise chegando para ele com ar resoluto e enfurecido O capitão recuou instintivamente um passo Ah Sr capitão disse ela por fim pondo as mãos nas cadeiras chegando a boca muito perto do rosto dele e abanando raivosa a cabeça olhe que isto assim não vai direito fazme andar a cabeça à roda põeme os miolos a ferver e eu estouro já viu Mas o que há então mulher Eu não lhe conheço Não quero cá saber de nada Já lhe disse que isto não vai bem e eu estouro Mas por quê o que é que tem É preciso que você diga Não tenho nada que dizer Estouro já lhe disse Sr capitão Pois estoure com trezentos diabos mas ao menos diga pelo que é que estoura Não tenho nada que dizer já lhe disse isto põe a cabeça da gente como uma cebola podre não tem lugar nenhum Irme por lá com ares de santarrão comprar a quitanda59 Quem mulher de Deus Você não se explicará Qual explicar nem meio explicar Pois então por ser cá a gente uma mulher velha que já perdeu os achegos ao mundo e ela uma pobre rapariga tola e bisbilhoteira com vontade de saber de tudo virme cá a mim pregar o mono na bochecha e a ela em lugar ainda mais melindroso Mas quem é que pregou monos a você mais a ela e quem é ela Fazse de novo continuou a mulher exasperandose pois o Sr capitão já não tinha consentido no casamento Que casamento com quem Ai ai ai que cá me anda a cabeça como uma nora solta Pois o Sr capitão não sabe que tem um filho Sim sei respondeu este começando a descobrir o mistério E não sabe que ele é um pedaço de um mariola A isto o capitão podia porém não se animou a responder afirmativamente e perguntou somente E que mais E não sabe também que eu tenho uma filha que trouxe da Madeira a Mariquinhas60 Como se eu nem a conheço Pois é uma rapariga muito capaz e o diabo do tal cadete do seu filho andou por lá a entender com ela muito tempo namoro para cá namoro para lá presentes daqui promessas dacolá e afinal de contas brás E então que lhe parece O capitão foi às nuvens Até lhe prometeu casamento dizendo que o Sr capitão consentia Ora eu bem sei que ela também teve sua culpa mas eu desculpo isso porque também já fui rapariga e sei que quando começa cá o diabo no corpo adeus Mas isto põe a gente tonta porque enfim a rapariga podia vir a fazer fortuna O capitão tinha compreendido tudo e por mais algumas explicações que se seguiram viuse reduzido ao maior aperto Desta vez a diabrura do rapaz era irremediável A mulher tinha toda a razão porém também casar seu filho com a filha de uma quitandeira61 isso não poderia ser além de que nada tinha que deixar ao filho e só com o soldo de cadete ele não poderia sustentar mulher e casa restando além disso a dúvida se ele estaria ou não pelos autos Despediu a velha não sem lhe prometer que providenciaria sobre o caso Olhe veja lá disse ela ao sair se o negócio não se arranja eu estouro O pobre homem ficou nos apuros foi ter com a ofendida e procurou oferecendolhe alguma coisa para seu dote obter que ela se calasse e que desistisse de suas pretensões ela quis a princípio recusar porém a mãe aconselhoua que aceitasse sem dúvida com medo de estourar Deste modo ficou o caso um pouco remediado posto que a consciência do capitão que era de homem de honra não ficara de modo algum satisfeita O tempo porém não dava lugar a mais era chegado o momento de acompanhar a el rei e ele partiu deixando o filho recomendado a quantos amigos tinha Decorreram os anos e quando menos esperava soube ele que se achava no Rio de Janeiro em companhia do Leonardo a tal Mariquinhas que então já era a Maria que os leitores bem conhecem Procurou fazer o que pudesse por ela para satisfazer todos os seus escrúpulos de pai honrado porém quis fazêlo ocultamente Foi ter com a comadre a quem já conhecia e a encarregou de o avisar apenas sentisse que a Maria sofria qualquer necessidade Nunca porém teve ocasião de exercer a sua boa vontade diretamente para com ela Apenas tinha feito ao Leonardo um pequeno favor em ocasião em que este se achava embaraçado por causa de uma irregularidade em uns autos que se lhe atribuía e que a comadre o aconselhou de procurálo mesmo sem o conhecer a título de que era muito bom homem e amigo de servir a todos Eis aqui por que o Leonardo se dirigiu no seu segundo apuro ao velho tenentecoronel por intermédio da comadre e por que este prometeu empenharse por ele o que com efeito tratou de cumprir Como dissemos apenas a comadre saiu ele saiu também e foi tratar de pôr o Leonardo na rua Dirigiuse primeiro à cadeia para colher do próprio Leonardo todas as informações e então pôde ver que as que lhe tinha dado a comadre eram exatíssimas e que ela não deixara escapar a menor circunstância O Leonardo repetiu e confessou tudo o que ele já sabia corrido de embaraço e de vergonha e ao despedirse o velho Sr tenentecoronel disselhe ele VSª já me livrou de uma que não era culpa minha livreme desta também olhe que está comprometida a minha honra O Leonardo esqueciase da teoria da Maria A honra não respondeu o velho o que está comprometido é o seu juízo hão de dizer e eu sou o primeiro que você está doido Fugi de uma ilhoa62 e fui cair numa cigana que duas O velho saiu sorrindose Daí dirigiuse à casa de um seu amigo fidalgo de valimento cujo nome ocultamos por motivos particulares63 para dele obter a soltura do Leonardo Morava ele em uma das ruas mais estreitas da cidade em um sobrado de sacada de rótulas de pau com pequenos postigos que se abriam às furtadelas sem que ninguém de fora pudesse ver quem a eles chegava A poeira amontoada nos cordões da rótula e as paredes encardidas pelo tempo davam à casa um aspecto triste no exterior quanto ao interior andava pelo mesmo conseguinte A sala era pequena e baixa a mobília que a guarnecia era toda de jacarandá e feita no gosto antigo todas as peças eram enormes e pesadas as cadeiras e o canapé de pés arcados e espaldares altíssimos tinham os assentos de couro que era a moda da transição entre o estofo e a palhinha Quem quiser ter idéia exata destes trastes64 procure no consistório de alguma irmandade antiga onde temos visto alguns deles As paredes eram ornadas por uma dúzia de quadros ou antes de caixas de vidro que deixavam ver em seu interior paisagens e flores feitas de conchinhas de todas as cores que não eram totalmente feias porém que não tinham decerto o subido valor que se lhes dava naquele tempo À direita da sala havia sobre uma mesa um enorme oratório no mesmo gosto da mobília Havia finalmente em um canto uma palma benta destas que se distribuem no domingo de ramos e se o leitor agora supuser tudo isto coberto por uma densa camada de poeira terá idéia perfeita do lugar em que foi recebido o velho tenentecoronel que era pouco mais ou menos semelhante em todas as65 ricas de então e por isso nos demoramos em descrevêlo Sem se fazer esperar muito apareceu o dono da casa era um homem já velho e de cara um pouco ingrata vinha de tamancos sem meias em mangas de camisa com um capote de lã xadrez sobre os ombros caixa de rapé e lenço encarnado na mão Em poucas palavras o velho expôslhe o caso e lhe pediu que fosse falar a elrei em favor de Leonardo A princípio opôs ele algumas dúvidas dizendo Homem pois eu hei de ir a palácio por causa de um meirinho El rei há de rirse do meu afilhado Afinal porém teve de ceder a instâncias da amizade e prometeu tudo O velho saiu satisfeito e foi levar a nova ao Leonardo que pulou de contente Poucos dias depois chegou a ordem de soltura e ele foi posto na rua Acreditara que tinha acabado de passar pelo pior dos suplícios porém insuportáveis torturas começaram para ele no dia em que saiu da cadeia a mofa o escárnio o riso dos companheiros seguiuo por muitos dias incessante e martirizador capítulo xi Progressos e atrasos66 Dadas as explicações do capítulo precedente voltemos ao nosso memorando de quem por um pouco nos esquecemos Apressemonos a dar ao leitor uma boa notícia o menino desempacara do f e já se acha no p onde por uma infelicidade empacou de novo O padrinho anda contentíssimo com este progresso e vê clarearse o horizonte de suas esperanças declara positivamente que nunca viu menino de melhor memória do que o afilhado e cada lição que este dá sabida de quatro em quatro dias pelo menos é para ele um triunfo Há porém uma coisa que o entristece no meio de tudo isto o menino tem para a reza e em geral para tudo o quanto diz respeito à religião uma aversão decidida não é capaz de fazer o pelosinal da esquerda para a direita fálo sempre da direita para a esquerda e não foi possível ao padrinho apesar de toda a paciência e boa vontade fazêlo repetir de cor sem errar ao menos a metade do padrenosso em vez de dizer venha a nós o vosso reino diz sempre venha a nós o pão nosso Ir à missa ou ao sermão é para ele o maior de todos os suplícios Isto faz o compadre67 às vezes desesperar e até chega a concordar com a comadre em que o menino não tem jeito para clérigo porém são nuvens passageiras sempre há isto ou aquilo que faz renascer todas as esperanças e o homem caminha animado na sua obra O que ele porém esperava não esperavam todos e ninguém via no menino senão um futuro peralta da primeira grandeza quem mais contava com isso era a vizinha do compadre aquela a quem chamava o agouro do pequeno e a quem atribuía o olhado que este sofrera e de que ficara livre graças à ciência e ao rosário da comadre68 Era a tal vizinha uma dessas mulheres que se chamam de faca e calhau valentona presunçosa e que se gabava de não ter papas na língua era viúva e importunava a todo o mundo com as virtudes do seu defunto Serrazina e amiga de contrariar não perdia ocasião de desmentir o compadre em suas esperanças a respeito do afilhado declarando que não lhe via jeito para coisa nenhuma que não queria para coisa que lhe pertencesse o fim que ele havia ter e que quando ele crescesse o melhor remédio era darlhe com os ossos a bordo de um navio ou pôrlhe o côvado e meio às costas O compadre desesperava com isso por muito tempo conseguiu conterse porém um dia não pôde mais e disparatou com a sujeita Chegando por acaso à porta da loja a vizinha que estava à janela disselhe em tom de zombaria Então vizinho como vai o seu reverendo Um velho que morava defronte e que também se achava à janela desatou a rir com a pergunta O compadre foi às nuvens avermelhouselhe a calva franziu a testa porém fez que não tinha ouvido A vizinha pôsse também a rir percebendo o cavaco do compadre e acrescentou Padre amigo do fado tem que ver quando vai ele outra vez ao campo dos Ciganos O velho defronte redobrou a risada A vizinha continuou Então ele já encarrilha o padrenosso O compadre exasperouse completamente e estudando uma injúria bem grande para responder disse afinal Já já senhora intrometida com a vida alheia já sabe o padre nosso e eu o faço rezar todas as noites um pelo seu defunto marido que está a esta hora dando coices no inferno Hein o que é que você diz senhor raspabarbas de uma figa69 você mete terceiros na conversa disse a vizinha encrespandose olhe que esse de quem você fala nunca foi sangrador como você nem viveu de aparas de cabelos Não se meta comigo que hei de lhe dizer das últimas e pôrlhe os podres na rua Coices no inferno ora dáse um santo homem Coices no inferno por que diga se é capaz Pois agora saiba porque eu cá não tenho papas na língua que o tal seu afilhado das dúzias é um pedaço de um malcriadão muito grande que há de desonrar as barbas de quem o criou E não tem que ver porque ele é de raça de ilhéu e esses é que dão coices depois de mortos70 E você respondeu o compadre enquanto a vizinha tomava fôlego por que se mete com o que não é da sua repartição Ela prosseguiu Hei de me meter não é da sua conta nem venha cá dar regras que eu não preciso de você Mas o que tem você que entender com uma criança inocente que nunca lhe fez mal Tenho muito porque não me deixa parar os telhados com pedras fazme caretas quando me vê na janela e tratame como se eu fosse alguma má raça ilhoa 71 ou mulher de barbeiro Digolhe e repitolhe aquilo tem maus bofes e não há de ter bom fim Está bom senhora respondeu o compadre que tinha bom gênio e que só fora levado àquele excesso pelo amor do afilhado basta de rezingas olhe a vizinhança Ora tomara a vizinhança verse livre do tal diabo O menino chegou nessa ocasião à porta e pondose na ponta dos pés esticando o pescoço e abanando como a vizinha e imitandolhe a voz repetiu Verse livre do tal diabo O compadre achou tanta graça que se deu por vingado e desatou a rir por seu turno Ah disse a vizinha agradece a boa vontade meu diabo em figura de menino tu não tens a culpa a culpa tem quem te dá ousadias A culpa tem quem te dá ousadias repetiu o menino arremedando a O compadre riase a perder A vizinha desesperada bateu com o postigo e recolheuse porém por muito tempo falou em voz alta de maneira que toda a vizinhança ouvia dizendo quanto impropério lhe veio à cabeça contra o compadre e o menino O pequeno encheume as medidas disse o compadre consigo vingoume desta agora faltame aquele velho de defronte que também a acompanhou na risota mas não faltará ocasião Esqueceunos dizer que o compadre apesar de ter sabido pouco se importara com a prisão do Leonardo e referindose à causa da infelicidade desta dissera apenas É bem feito para ele não se deixar arrastar para toda a parte agarrado em quanto rabo de saia lhe aparece Nem foi à cadeia visitálo nem levarlhe o filho para tomar a bênção o que a comadre muito reprovou quando soube O velho tenentecoronel depois de ter posto na rua o Leonardo informado miudamente como sabe o leitor pela comadre do destino da Maria e da existência do filho desta em casa do compadre 72 decidiu tomar o menino sob sua proteção e acreditou que se conseguisse felicitálo lavaria seu filho do pecado de ter desonrado a Maria Por intermédio da comadre mandou oferecer ao compadre seu préstimo em favor do pequeno mandoulhe propor até que o deixasse ir para a sua companhia O compadre porém não esteve por isso de modo nenhum e até se prometeu aceitar para qualquer outra coisa a proteção do tenentecoronel foi a instâncias da comadre Não quero dizia ele que me roubem o gosto de têlo feito gente comecei a minha obra hei de acabála Homem retorquiralhe a comadre você faz mal olhe que o velho é homem de representação veja como ele com duas voltas e meia pôs o Leonardo na rua Nada não hei de dar o gostinho aqui a esta súcia da vizinhança hei de eu mesmo fazer a coisa por minhas mãos Lá se o tenentecoronel quiser fazer alguma coisa por ele aceito mas quanto a tirálo da minha companhia isso nunca Agora já é birra hei de levar a minha avante capítulo xii Entrada para a escola É mister agora passar em silêncio sobre alguns anos da vida do nosso memorando para não cansar o leitor repetindo a história de mil travessuras de menino no gênero das que já se conhecem de que elas constavam exclusivamente foram diabruras de todo o tamanho que exasperaram a vizinha desgostaram a comadre mas que não alteraram em coisa alguma a amizade do compadre pelo afilhado cada vez esta aumentava mais se era possível tornavase mais cega Com ele cresciam as esperanças do belo futuro com que o compadre sonhava para o pequeno e tanto mais que durante este tempo fizera ele alguns progressos lia soletrado sofrivelmente e por inaudito triunfo da paciência do compadre aprendeu a ajudar missa A primeira vez que ele conseguiu praticar com decência e exatidão semelhante ato o padrinho exultou foi um dia de orgulho e de prazer era o primeiro passo no caminho para que ele o destinava E dizem que não tem jeito para padre pensou consigo ora acertei o alvo deilhe com a balda Ele nasceu mesmo para aquilo há de ser um clérigo de truz Vou tratar de metêlo na escola e depois toca Com efeito foi cuidar nisso e falar ao mestre para receber o pequeno morava este em uma casa da rua da Vala pequena e escura Foi ele recebido na sala que era mobiliada por quatro ou cinco longos bancos de pinho sujos já pelo uso uma mesa pequena que pertencia ao mestre e outra maior onde escreviam os discípulos toda cheia de pequenos buracos para os tinteiros nas paredes e no teto haviam penduradas uma porção enorme de gaiolas de todos os tamanhos e feitios dentro das quais pulavam e cantavam passarinhos de diversas qualidades era a paixão predileta do pedagogo Era este um homem todo em proporções infinitesimais baixinho magrinho de carinha estreita e chupada excessivamente calvo usava de óculos tinha pretensões de alatinado73 e dava bolos nos discípulos por dá cá aquela palha por isso era um dos mais acreditados da cidade O compadre entrou acompanhado pelo afilhado que ficou um pouco escabriado à vista do aspecto da escola que ele nunca tinha imaginado Era em um sábado os bancos estavam cheios de meninos vestidos quase todos de jaqueta ou robissões de lila calças de brim escuro e uma enorme pasta de couro ou papelão pendurada por um cordel a tiracolo chegaram os dois exatamente na hora da tabuada cantada era uma espécie de ladainha de números que se usava então nos colégios cantada todos os sábados em uma espécie de cantochão monótono e insuportável mas de que os meninos gostavam muito As vozes dos meninos juntas ao canto dos passarinhos faziam uma algazarra de doer os ouvidos o mestre acostumado àquilo escutava impassível com uma enorme palmatória na mão e o menor erro que algum dos discípulos cometia não lhe escapava no meio de todo o barulho fazia parar o canto chamava o infeliz emendava cantando o erro cometido e cascavalhe pelo menos seis puxados bolos era o regente da orquestra ensinando a marcar o compasso O compadre expôs no meio do ruído o objeto de sua visita e apresentou o pequeno ao mestre Tem muito boa memória soletra já alguma coisa não lhe há de dar muito trabalho disse com orgulho E se mo quiser dar tenho aqui o remédio santa férula disse o mestre brandindo a palmatória O compadre sorriuse querendo dar a entender que tinha percebido o latim É verdade faz santas até às feras disse traduzindo O mestre sorriuse da tradução Mas espero que não há de ser necessária acrescentou o compadre O menino percebeu o que tudo isto queria dizer e mostrou não gostar Segundafeira cá vem e peçolhe que não o poupe disse por fim o compadre despedindose Procurou pelo menino e já o viu na porta da rua prestes a sair pois que ali não se julgava muito bem Então menino sai sem tomar a bênção ao mestre O menino voltou constrangido tomou de longe a bênção e saíram então Na segundafeira voltou o menino armado com a sua competente pasta a tiracolo a sua lousa de escrever e o seu tinteiro de chifre o padrinho o acompanhou até a porta Logo nesse dia portouse de tal maneira que o mestre não se pôde dispensar de lhe dar quatro bolos o que lhe fez perder toda a folia com que entrara declarou desde esse instante guerra viva à escola Ao meiodia veio o padrinho buscálo e a primeira notícia que ele lhe deu foi que não voltaria no dia seguinte nem mesmo aquela tarde Mas você não sabe que é preciso aprender Mas não é preciso apanhar Pois você já apanhou Não foi por nada não senhor foi porque entornei o tinteiro na calça de um menino que estava ao pé de mim o mestre ralhou comigo e eu comecei a rir muito Pois você vaise rir quando o mestre ralha Isto contrariou o mais que era possível o compadre que diabo não diria a maldita vizinha quando soubesse que o menino tinha apanhado logo no primeiro dia de escola Mas não haviam reclamações o que o mestre fazia era bemfeito Custoulhe bem a reduzir o menino a voltar nessa tarde à escola o que só conseguiu com a promessa de que falaria ao mestre para que ele lhe não desse mais Isto porém não era coisa que se fizesse e não foi senão um engodo para arrastar o menino Entrou este desesperado para a escola e por princípio74 queria estar quieto e calado no seu banco o mestre chamouo e pôlo de joelhos a poucos passos de si passado pouco tempo voltouse distraidamente e surpreendeo no momento em que ele erguia a mão para atirarlhe uma bola de papel Chamouo de novo e deu lhe uma dúzia de bolos Já no primeiro dia disse você promete muito O menino resmungando dirigiulhe quanta injúria sabia de cor Quando o padrinho voltou de novo a buscálo achouo de tenção firme e decidida de não se deixar engodar por outra vez e de nunca mais voltar ainda que o rachassem O pobre homem azuou com o caso Ora logo no primeiro dia disse consigo isto é praga daquela maldita mulher mas hei de teimar e vamos ver quem vence capítulo xiii Mudança de vida À custa de muitos trabalhos de muitas fadigas e sobretudo de muita paciência conseguiu o compadre que o menino freqüentasse a escola durante 2 anos e que aprendesse a ler muito mal e escrever ainda pior Em todo este tempo não se passou um só dia em que ele não levasse uma remessa maior ou menor de bolos e apesar da fama de que gozava o seu pedagogo de muito cruel e injusto é preciso confessar que poucas vezes o fora para com ele o menino tinha a bossa da desenvoltura e isto junto com as vontades que lhe fazia o padrinho dava em resultado a mais refinada má criação que se pode imaginar achava ele um prazer suavíssimo em desobedecer a tudo quanto se lhe ordenava se se queria que estivesse sério desatava a rir como um perdido com o maior gosto do mundo se se queria que estivesse quieto parece que uma mola oculta o impelia e fazia com que desse uma idéia pouco mais ou menos aproximada do motocontínuo Nunca uma pasta um tinteiro uma lousa lhe durou mais de 15 dias era tido na escola pelo mais refinado velhaco vendia aos colegas tudo que podia ter algum valor fosse seu ou alheio contanto que lhe caísse nas mãos um lápis uma pena um registo etc tudo lhe fazia conta e o dinheiro que apurava empregava sempre do pior modo que podia Logo no fim dos primeiros cinco dias de escola declarou ao padrinho que já sabia as ruas e não precisava mais de que ele o acompanhasse no primeiro dia em que o padrinho anuiu a que ele fosse sozinho fez logo uma tremenda gazeta tomou depois gosto a esse hábito e em pouco tempo adquiriu entre os companheiros o apelido de gazetamor da escola o que também queria dizer apanhadormor de bolos75 Um dos principais pontos em que ele passava alegremente as manhãs e tardes em que fugia à escola era na igreja da Sé o leitor compreende bem que isto não era de modo algum inclinação religiosa na Sé à missa e mesmo fora disso reuniase gente sobretudo mulheres de mantilha de quem tomara particular zanguinha por causa da semelhança com a madrinha e é isso o que ele queria porque internandose na multidão dos que entravam e saíam passava desapercebido e tinha segurança de que o não achariam com facilidade se o procurassem Pelo hábito de freqüentar a igreja tomara conhecimento e travara estreita amizade com um pequeno sacristão que digamos de passagem era tão boa peça como ele apenas se encontravam limitavamse a trocar olhares significativos enquanto o amigo andava ocupado no serviço da igreja assim porém que se acabavam as missas e que saíam as derradeiras beatas reuniamse os dois e começavam a contar todas as diabruras mais recentes travando o plano de mil outras novas Por complacência ou antes por prova de decidida amizade o companheiro confiava ao nosso gazeador um caniço e faziam juntos o serviço e as maroteiras a mais pequena que faziam era irem de altar em altar escorropichando todas as galhetas o que lhes incendia mais o desejo de traquinar Esta vida durou por muito tempo porém afinal já eram as gazetas tão repetidas que o padrinho se viu forçado a acompanhálo outra vez todos os dias para a escola o que desfez todos os planos que os dois tinham concertado O nosso futuro clérigo tinha muitas vezes pensado em como não lhe seria agradável verse revestido como o seu companheiro de uma batina e uma sobrepeliz e feito também sacristão ter a toda hora à sua disposição quantos caniços quisesse ter por sua e de seu amigo toda a igreja poder nos dias de festa tomando o turíbulo afogar em ondas de fumaça a cara da velha que mais perto lhe ficasse na ocasião da missa Oh isto para ele era um sonho de venturas Vendose privado depois que o padrinho o acompanhava de gozar parte destes prazeres como fazia nos dias de fugida atearamselhe os desejos e começou a confessá los ao padrinho dando a entender que nada havia de que ele agora gostasse tanto como fosse a igreja que ele tinha nascido mesmo para aquilo Isto foi para o padrinho um alegrão porque neste gosto recente do pequeno via ele furo aos seus projetos Eu bem dizia pensava ele consigo não tem dúvida vou adiante o rapaz estáme enchendo as medidas Afinal o menino tomou um dia uma resolução última e propôs ao padrinho que o fizesse sacristão Isso seria muito bom disse ele a fim de acostumarme para quando for padre A princípio a idéia deslumbrou ao padrinho porém mais tarde acudiu lhe a reflexão e assentou que isso seria rebaixar o menino e comprometer a sua dignidade futura Afinal porém tantas foram as rogativas e argumentos do pequeno que se viu obrigado a ceder O menino tinha nisso duas enormes vantagens satisfazia seus desejos e saía da escola poupando assim as remessas diárias de bolos Está bem dissera consigo o padrinho ele já sabe ler alguma coisa e escrever deixoo para fazerlhe a vontade algum tempo na Sé para que também tome mais amor àquela vida e depois apenas o vir com o juízo mais assente hei de ir adiante com a coisa Foi em conseqüência procurar aquele sacristão da Sé que dançara o ril76 na festa do batizado que era nada menos do que o pai do sacristãozinho com que o nosso pequeno travara amizade para arranjar o afilhado que não queria outra igreja que não fosse a Sé Felizmente pôde ele ser admitido com a prática que tivera dos dias de gazeta aprendera pouco mais ou menos todo o cerimonial que é mister a um sacristão acompanhar missa já ele sabia às outras coisas aperfeiçoouse em pouco tempo Em poucos dias aprontouse e em uma bela manhã saiu de casa vestido com a competente batina e sobrepeliz e foi tomar posse do emprego Ao vêlo passar a vizinha dos maus agouros soltou uma exclamação de surpresa a princípio supondo alguma asneira do compadre porém reparando compreendeu o que era e desatou uma gargalhada E que tal Deus vos guarde Sr cura disse fazendo um cumprimento O menino lançoulhe um olhar de revés e respondeu entre dentes Eu sou cura e hei de te curar Era aquilo uma promessa de vingança Ora dáse continuou a vizinha consigo mesma aquilo na igreja é um pecado Chegou o menino à Sé impando de contente parecialhe que aquela batina era um manto real Por fortuna houve logo nesse dia dois batizados e um casamento e ele teve assim ocasião de entrar no pleno exercício de suas funções em que começou revestindose da maior gravidade deste mundo No outro dia porém o negócio começou a mudar de figura e as brejeiradas começaram A primeira foi em uma missa cantada que houve Coube ao pequeno o ficar com uma tocha e ao companheiro o turíbulo ao pé do altar Por infelicidade a vizinha do compadre a quem o menino prometera curar sem pensar no que fazia colocouse perto do altar junto dos dois Assim que a avistou o novo sacristão disse algumas palavras a seu companheiro dandolhe de olho para a mulher Daí a pouco colocaramse os dois disfarçadamente em distância conveniente e de maneira tal que ela ficasse pouco mais ou menos com um deles atrás e outro adiante Começaram então os dois uma obra meritória enquanto um tendo enchido o turíbulo de incenso e balançandoo convenientemente fazia com que os rolos de fumaça que se desprendiam fossem bater de cheio na cara da pobre mulher o outro com a tocha despejavalhe sobre as costas da mantilha a cada passo plastradas de cera derretida olhando disfarçado para o altar A pobre mulher exasperouse e disselhes não sabemos o quê Estamos te curando respondeu o menino tranqüilamente Ele vendo que não tirava partido quis a devota mudar de lugar e sair porém o aperto era tão grande que o não pôde fazer e teve de aturar o suplício até o fim Acabada a festa dirigiuse ela ao mestre de cerimônias e fez uma enorme queixa que custou aos dois uma tremenda sarabanda Pouco porém se importaram eles com isso uma vez que tinham realizado o seu plano capítulo xiv Nova vingança e seu resultado A sarabanda que o mestre de cerimônias passara aos dois pequenos em razão do que haviam feito à pobre mulher não produziu como dissemos nenhum efeito sobre eles no sentido de os fazer emendar não perdoaram porém a humilhação que sofreram diante da sua vítima e a vingança de que ela tinha gozado na primeira ocasião que tiveram tiraram desforra pregando também uma peça ao mestre de cerimônias Foi o caso assim O mestre de cerimônias era um padre de meiaidade de figura menos má filho da Ilha Terceira porém que se dava por puro Alfacinha tinhase formado em Coimbra por fora era um completo São Francisco de austeridade católica por dentro refinado Sardanapalo que podia por si só fornecer a Bocage assunto para um poema inteiro era pregador que buscava sempre por assunto a honestidade e a pureza corporal em todo o sentido porém interiormente era sensual como um Oriental77 O público ignorava talvez semelhante coisa porém outro tanto não acontecia aos dois meninos que andavam ao fato de tudo o mestre de cerimônias fiado em que pela sua pouca idade dariam eles pouca atenção a certas coisas tinhaos algumas vezes empregado no seu serviço mandando recados a uma certa pessoa que saiba o leitor em segredo era nada menos do que a cigana objeto dos últimos cuidados do Leonardo com quem S Revma vivia a78 certo tempo em estreitas relações salvando é verdade todas as aparências da decência Chegou o dia de uma das primeiras festas da igreja a que elrei tinha por costume assistir79 em que o mestre de cerimônias era sempre o pregador era no sermão desse dia que o homem se empregava muito tempo antes pondo abaixo toda a livraria e fazendo um enorme esforço de inteligência que não era nele coisa muito vigorosa Já se vê pois que ele devia amar o seu sermão e quase rebentou de raiva em um ano em que por doente o não pôde pregar Entendia que elrei e toda a corte80 o ouviam com sumo prazer que o povo se abalava à sua voz enfim aquele sermão anual era o meio por que ele esperava chegar a todos os fins a que contava dever toda a sua elevação futura era o seu talismã Digamos entretanto que era bem mau caminho o tal sermão porque se podia ele demonstrar alguma coisa era a insuficiência do padre para qualquer coisa desta vida exceto para mestre de cerimônias em que ninguém o desbancava Pois foi nesse ponto delicado que os dois meninos buscaram ferilo e o acaso os favoreceu excedendo de muito os seus desejos e esperanças e fazendo a sua vingança completíssima Chegou como dissemos o dia da festa havia três ou quatro dias antes que o mestre de cerimônias não saía de casa empregado em decorar a importante peça Foi o nosso sacristão calouro encarregado de lhe ir avisar da hora em que elrei devia chegar para que ele calculasse a que horas lhe bastava estar na igreja para o sermão81 Chegou à casa da cigana onde o padre costumava estar bateu e apesar de todas as recomendações que costumava ter disse em voz alta O Rev Mestre de cerimônias está aí Fale baixo menino disse a cigana de dentro da rótula O que quer você com o Sr padre Precisava muito falar com ele por causa do sermão de amanhã Entra entra disse o padre que o ouvira Venho dizer a V Revma disse o menino entrando que o rei mandou avisar que82 amanhã às dez horas há de estar na igreja Às dez Uma hora mais tarde do que de costume Melhor tenho mais tempo de estudar está bom gasta que eu esteja lá às onze Justo respondeu o menino sorrindose internamente de alegria e saiu Foi logo dali dar parte ao companheiro de que o seu plano tinha saído completamente aos seus desejos pois o que ele queria era que o padre faltasse ao sermão e por isso encarregado de lhe indicar a hora a trocara e em vez de nove dissera dez Dispuseramse as coisas postouse a música de barbeiros na porta da igreja andou tudo em rebuliço chegou elrei83 às nove horas e começou a festa As festas daquele tempo eram feitas com tanta riqueza e com muito mais propriedade a certos respeitos do que as de hoje tinham entretanto alguns lados cômicos um deles era a música de barbeiros à porta Não havia festa em que se passasse sem isso era coisa reputada quase tão essencial como o sermão o que valia porém é que nada havia mais fácil de arranjarse meia dúzia de aprendizes ou oficiais de barbeiro ordinariamente negros armados este com um pistão desafinado aquele com uma trompa diabolicamente rouca etc formavam uma orquestra desconcertada porém estrondosa que se postava como dissemos à porta das igrejas fazendo as delícias dos que não cabiam ou não queriam estar dentro da igreja A festa seguiu os seus trâmites regulares porém apenas se foi aproximando a hora começou a dar cuidados a tardança do pregador Fez se mais esta cerimônia mais aquela e nada de aparecer o homem esperou se um pouco porém oh elrei não devia esperar84 Despachouse a toda pressa um dos meninos que não entrara na festa para ir procurar o padre ele deu duas voltas pela vizinhança e veio dizendo que o não tinha encontrado Subiram os apuros elrei começava já a franzir o sobrolho85 não havia remédio era preciso um sermão fosse como fosse Estava assistindo à festa um capuchinho italiano que por bondade vendo o aperto geral ofereceuse para improvisar o sermão Mas V Revma não fala a língua de gente objetaramlhe Capisco respondeu este ed la necessitá Depois de alguma perplexidade e muitas desculpas a elrei86 aceitaramse finalmente os bons ofícios do capuchinho e foi ele levado ao púlpito Os meninos triunfantes sorriramse um para o outro Apenas apareceu o pregador ao povo houve um murmúrio geral os gaiatos sorriramse contando já com o partido que dali tirariam para um bom par de risadas algumas velhas prepararamse para uma grande compunção ao aspecto das imensas barbas do pregador outras menos crentes vendo que não era o orador costumado exclamaram despeitadas Arrenego Deus me perdoe Pois aquilo é que prega hoje Apesar porém de tudo isto a atenção foi profunda e geral animando a todos uma grande curiosidade O orador começou falava já a um quarto de hora sem que ninguém ainda tivesse entendido pitada87 e começavam já algumas velhas a protestar que o sermão todo em latim não tinha graça quando de repente viuse abrir a porta do púlpito e aparecer a figura do mestre de cerimônias lavado em suor e vermelho de cólera foi um sussurro geral Ele adiantouse afastou com a mão o pregador italiano que surpreendido parou um instante e entoou com voz rouca e estrondosa o seu per signum crucis Àquela voz conhecida o povo despertou do aborrecimento benzeuse e se dispôs a escutála Nem todos porém foram desta opinião e entenderam que se devia deixar acabar o capuchinho e começaram a murmurar O capuchinho não quis ceder de seu direito e prosseguiu na sua arenga Foi uma verdadeira cena de comédia de que a maioria dos circunstantes riase a não poder mais os dois meninos autores principais da obra nadavam em um mar de rosas Ó mei chari fratelli exclamava por um lado o capuchinho com voz aflautada e meiga la voce del la Providenza Semelhante às trombetas de Jericó rouquejava por outro lado o mestre de cerimônias Piage al cor acrescentava o capuchinho Anunciando o triunfo88 de Satanás prosseguia o mestre de cerimônias E assim levaram por algum tempo os dois acompanhados por um coro de risadas e confusão até que o capuchinho se resolveu a abandonar o posto murmurando despeitado Che bestia per Dio Acabado o sermão desceu do púlpito o mestre de cerimônias já um pouco aplacado por ter conseguido fazerse ouvir porém ainda bastante furioso para vir protestando arrancar uma por uma as quatro orelhas dos dois pequenos de quem desconfiava que partira o que acabava de sofrer Chegou à sacristia que estava cheia de gente e vendo os dois meninos investiu para eles e prendendo a cada um com uma mão pela gola da sobrepeliz Então então dizia com os dentes cerrados a que horas chega el rei89 Eu disse às nove sim senhor pode perguntar à moça que ela bem ouviu Que moça menino que moça disse o padre exasperado por estar tanta gente e ouvir aquilo Aquela moça cigana lá onde V Revma estava ela ouviu eu disse às nove Oh disseram os circunstantes É falso respondeu com força o mestre de cerimônias largando os meninos para evitar novas explicações e dando satisfação aos circunstantes com protestos de ser falso o que os meninos acabavam de dizer Entretanto serenou o alvoroço acabouse a festa e o povo e elrei90 retiraramse O mestre de cerimônias sentado a um canto pensava consigo E que tal não ia perdendo o meu sermão deste ano por causa daquele endiabrado Depois que o maldito menino entrou para esta igreja anda tudo aqui em uma poeira Ainda em cima dizer à vista de tanta gente e até de criados de elrei91 que eu estava em casa da cigana Nada vou dar com ele daqui para fora E com efeito tratou de fazer com que os dois meninos ou pelo menos o mais novo fosse despedido Sem muito custo o conseguiu porque por certo não gozava ele de grandes simpatias Foi esta a pior peça que se lhe podia pregar ele estava como em um paraíso e expeliamno dele e depois a maldita vizinha como não havia ficar satisfeita vendoo despedido e a madrinha que se opusera formalmente à sua entrada para a Sé tudo isto faziao desesperar Não se tinha ele enganado em suas previsões apenas chegou em casa e que se soube pela vizinhança do que se tinha passado a vizinha logo que pilhou de jeito o compadre Então disselhe eu não lhe tenho dito que aquilo tem maus bofes Senhora pelo amor de Deus metase com a sua vida Estou vingada pensava que a minha mantilha nova havia de ficar assim O compadre retirouse para evitar nova desordem A comadre apenas soube também do sucesso veio ter com o compadre para dizerlhe Eu bem lhe digo ele não serve para aquilo é melhor pôlo no trem lá há mais sujeição olhe eu podia arranjar isso com o tenentecoronel O compadre porém não pareceu resolvido a aceitar o conselho capítulo xv Estralada Apesar de tudo quanto havia já sofrido por amores o Leonardo de modo algum queria emendarse enquanto se lembrou da cadeia dos granadeiros e do Vidigal esqueceuse da cigana ou antes só pensava nela para jurar esquecêla quando porém as caçoadas dos companheiros foram cessando começou a renovarse a paixão e teve lugar uma grande luta entre a sua ternura e a sua dignidade em que esta última quase triunfava quando uma descoberta maldita veio transtornar tudo Não sabemos por que meio o Leonardo descobriu um dia que o rival feliz que o pusera fora de combate era o reverendo mestre de cerimônias da Sé Subiulhe com isto o sangue à cabeça Pois um padre dizia ele é preciso que eu salve aquela criatura do inferno onde ela se está metendo já em vida E começou de novo em tentativas em promessas em partidos para com a cigana que a coisa alguma queria dobrarse Um dia que a pilhou de jeito à janela abordoua e começou exabrupto a falarlhe deste modo Você está já em vida no inferno pois logo um padre A cigana interrompeuo Havia muitos meirinhos para escolher mas nenhum me agradou Mas você está cometendo um pecado mortal está deitando sua alma a perder Homem sabe que mais você para pregador não serve não tem jeito eu como estou estou muito bem não me dei bem com os meirinhos eu nasci para coisa melhor Pois então tem alguma coisa que dizer de mim Hei de me ver vingado e bem vingado Ora respondeu a cigana rindose e começou a cantarolar o estribilho de uma modinha O Leonardo compreendeu que falandolhe no inferno e em castigos da outra vida nada arranjava e decidiu darlhe o castigo mesmo nesta vida Retirouse murmurando Faço uma estralada dê no que der Poucos dias depois aconteceu que a cigana fazia anos segundo o costume apenas apareceu este pretexto armouse logo uma função não nos daremos ao trabalho de descrevêla em um dos capítulos antecedentes já viu o leitor o que isso era viola modinhas fado algazarra e estava a festa completa O Leonardo soube logo do que havia e jurou que esse seria o dia da vingança Ser valentão foi em algum tempo ofício no Rio de Janeiro havia homens que viviam disso davam pancada por dinheiro e iam a qualquer parte armar de propósito uma desordem contanto que se lhes pagasse fosse qual fosse o resultado Entre os honestos cidadãos que nisto se ocupavam havia na época desta história um certo ChicoJuca afamadíssimo e temível Seu verdadeiro nome era Francisco e por isso chamaramno a princípio Chico porém tendo acontecido que conseguisse ele pelo seu braço lançar por terra do trono da valentia a um companheiro que era no seu gênero a maior reputação do tempo e a quem chamavam Juca juntaram este apelido ao seu como honra pela vitória e chamaramno daí em diante ChicoJuca Este homem era o desespero do Vidigal tinhalhe já pregado umas poucas porém ainda não tinha sido possível agarrálo os granadeiros conheciamno às léguas porém nunca conseguiram pôrlhe as mãos Tendo levado todo o dia à espreita o Leonardo viu entrar sorrateiramente o mestre de cerimônias pela volta de AveMaria quando ainda não tinha começado a função Ah nem esta noite quer perder Pois há de sairlhe cara a funçanata Saiu dali e foi direito procurar o ChicoJuca que era seu antigo conhecido achouo em uma taverna defronte do Bom Jesus onde ele sempre costumava estar O ChicoJuca era um pardo alto corpulento de olhos avermelhados longa barba cabelo cortado rente trajava sempre jaqueta branca calça muito larga embaixo chinelas pretas e um chapelinho branco muito à banda ordinariamente era afável gracejador cheio de ditérios e chalaças porém nas ocasiões de sarilho como ele chamava era quase feroz Como outros têm o vício da embriaguez outros o do jogo outros o do deboche ele tinha o vício da valentia mesmo quando ninguém lhe pagava bastava que lhe desse na veneta92 armava brigas e só depois que dava pancadas a fartar é que ficava satisfeito com isso muito lucrava não havia taverneiro que lhe não fiasse e não o tratasse muito bem Estava na porta da taverna sentado sobre um saco quando apareceu lhe o Leonardo Olá mestre pataca disse ele apenas o viu pensei que ainda estavas de xilindró tomando fortuna por causa da cigana É mesmo por causa desse diabo que te venho procurar Homem cabeçada e murro velho sei eu dar porém fortuna nunca tive tal habilidade Não se trata de fortuna disselhe o Leonardo baixinho tratase de pancada velha Ui temos dança vaite embora se tu não és capaz de armar um sarilho sempre foste um podre Bem sei eu não sou capaz mas tu tu que és mestre disto Eu então por que diabo e onde queres tu que eu arme esse sarilho Não te hás de arrepender disse o Leonardo batendo significativamente com os dedos no bolso do colete O ChicoJuca entendeu o verso carregou o chapéu um pouco mais para o lado e pôsse a escutálo com curiosidade O Leonardo disse então o que queria tratavase nada menos do que de ir o ChicoJuca nessa mesma noite fosse como fosse à função da cigana e de armar por alta noite uma grande desordem ali preveniuo logo que o Vidigal havia de estar por perto e assim apenas estivesse armada a história era pôrse ao fresco A causa de tudo isto o Leonardo não lhe quis explicar e também ele não teve grande curiosidade de saber tratavase de uma desordem fosse qual fosse o motivo estava sempre pronto Assim depois de se regatear um pouco o preço chegaram os dois a um acordo e ficou tudo tratado Deixando o ChicoJuca o Leonardo foi procurar o Vidigal e deulhe parte do que naquela noite havia em casa da cigana e afiançoulhe que a coisa acabava por força em desordem Portanto cumpria que o Sr major por lá aparecesse para o que desse e viesse Está bem disselhe o Vidigal você quer tirar sua desforra é justo Lá hei de ir e não precisava a sua advertência pois já sabia que havia hoje por lá anos e tinha tenção de aparecer O Leonardo retirouse contente vendo que seu plano saía às mil maravilhas e dispôsse a gozar do resultado pondose à espreita de lugar conveniente Começou a brincadeira Já se tinha cantado meia dúzia de modinhas e dançado por algum tempo a tirana quando o ChicoJuca apareceu e por intermédio de um conhecido ele os tinha em toda a parte foi introduzido na sala e começou a observar o que se passava Havia na sala um quarto cuja porta estava fechada de vez em quando a cigana lá entrava demoravase um pouco e saía daí a pouco tornava a entrar levando consigo alguma das camaradas mais do peito tornava a sair passado pouco tempo entrava ainda levando outra amiga Alguns faziam reparo nisso outros porém não tinham desconfiança alguma Ia a festa continuando e lá pela meianoite quando começava a aferventar foi de repente interrompida Viuse um dos rapazes que tocavam viola parar subitamente e interrompendo o estribilho da modinha que cantava gritar enfurecido Isto passa de mais varro menos essa Sr ChicoJuca nada de graças pesadas com essa moça que é cá coisa minha O ChicoJuca estava com efeito há mais de meia hora a dirigir graçolas das suas a uma moça que ele bem sabia que era lá coisa do rapaz que estava tocando tanto fez que este tendo percebido disse aquelas palavras que acabamos de ouvir Você respinga respondeulhe o ChicoJuca dirigindose para ele O rapaz que não era peco pôsse em pé e replicou Tenho dito nada de graças com ela Mal tinha pronunciado estas palavras quando o ChicoJuca arrancandolhe a viola da mão bateulhe com ela em cheio sobre a cabeça O rapaz reagiu e começou a confusão O ChicoJuca foi acometido por um pouco porém ligeiro e destemido distribuía a cada qual o seu quinhão de cabeçadas e pontapés algumas mulheres meteramse na briga e davam e levavam como qualquer outras porém desfaziamse em algazarra De repente o ChicoJuca embarafustou pela porta fora e desapareceu Era tempo porque não se tinham passado dois minutos e assomou na porta que ele deixara aberta a figura tranqüila do Vidigal rodeada por uma porção de granadeiros O ChicoJuca tinhalhes escapado apesar de o terem visto quando saía porque o major sendo nessa ocasião poucos os soldados não quis mandar seguilo com medo que lhe faltasse gente pois via que dentro da casa o negócio estava feio Entrou pois deixandoo passar Apenas o viram pararam todos aterrados Então que briga é esta disse ele descansadamente Começaram todos a desculparse como podiam e segundo o crédito que mereciam pela sua reputação eralhes distribuída a justiça se era sujeito já conhecido e que não era aquela a primeira em que entrava era posto de lado e um granadeiro tomava conta dele os outros eram mandados embora Neste ínterim a cigana muito perturbada olhava repetidas vezes para a porta do quarto dando sinais da mais viva inquietação Não escapou isto ao Vidigal que no fim de tudo disse a um granadeiro Revista aquele quarto A cigana deu um grito o granadeiro obedeceu e entrou no quarto ouviuse então um pequeno rumor e o Vidigal disse logo cá de fora Traz para cá quem estiver lá dentro No mesmo instante viu aparecer o granadeiro trazendo pelo braço o Rev mestre de cerimônias em ceroulas de meias pretas sapatos de fivela e solidéu à cabeça Apesar dos apuros em que se achavam todos desataram a rir só ele e a cigana choravam de envergonhados Esta última pôsse aos pés do Vidigal mas ele foi inflexível e o Rev foi conduzido com os outros para a casa da guarda na Sé sendolhe apenas permitido pôrse em hábitos mais decentes capítulo xvi Sucesso do plano Para sossegarmos os leitores que estarão sem dúvida com cuidado no mestre de cerimônias apressemonos a dizer que não chegou ele a ir à cadeia o Vidigal quis darlhe apenas uma amostra do pano e depois de o ter exposto na casa da guarda por algumas horas como já acontecera ao Leonardo à vestoria pública o deixou ir embora envergonhado abatido maldizendo a idéia que tivera de ir assistir de dentro do quarto à festa dos anos da sua amásia Quanto ao Leonardo não cabia em si de contente por pouco que a sua vingança não tinha sido completa vira o seu rival como já a ele próprio sucedera preso pelos granadeiros levado à casa da guarda sofrendo aí a vestoria dos curiosos faltara é verdade a sova de camarão e os dias de cadeia porém também ele era simples meirinho e o mestre de cerimônias um sacerdote respeitado e por isso qualquer coisa bastava para ferilo gravemente Além disto o mestre de cerimônias depois de graves meditações sabendo que ficara malvisto de seus companheiros pelo escândalo que dera se bem que fosse certo não estar nenhum deles a tal respeito em circunstâncias de lhe atirar a primeira pedra ouvindo um murmúrio surdo que se levantava contra ele ameaçandoo com a perda do lugar que exercia na Sé decidiuse a abandonar a cigana e assim o fez O Leonardo com isto deuse de todo por satisfeito e renasceramlhe as esperanças de conquistar o antigo posto uma vez que o principal defensor o tinha abandonado A cigana desprezada não quereria sem dúvida ficar por muito tempo devoluta e como ele se achava com requerimento em caixa e contava serviços atrasados era provável que obtivesse favorável despacho porque também ela ainda nem sonhava que tudo o que tinha sucedido pudesse ter sido obra sua Começou pois o sentimental Leonardo a rondar a porta da sua antiga amante se a via na janela ora parava na esquina a dirigirlhe olhares suplicantes passando por junto dela deixava ora escapar um magoadíssimo suspiro ou uma queixa amargurada Todas estas cenas desempenhadas por aquela figura do Leonardo alto corpulento avermelhado vestido de casaca calção e chapéu armado eram tão cômicas que toda a vizinhança se divertiu com elas por alguns dias pois que escondidos e espiando por entre as rótulas das casas todos os moradores daquela altura viam a horas certas o que se passava Alguns imprudentes começaram conversando das janelas a atirar indiretas à cigana esta picouse com isso e foi essa a fortuna do Leonardo Um dia que ele passou deulhe ela de olho que entrasse O Leonardo teve uma sensação inexplicável seu rosto coloriuse em todos os tons desde o vermelho que era sua cor habitual até o roxo enegrecido depois baixou gradualmente até a palidez marmórea caminhando do lugar onde estava até à porta da cigana não sentiu o solo debaixo de seus pés quando deu acordo de si estava com os olhos rasos dágua nos braços da antiga amada que lhe pedia mil perdões que prometia ser dali em diante fiel até à morte se bem que se não esquecia de declarar no meio de tudo que se o recebia de novo em sua casa era porque queria quebrar a castanha na boca daquelas máslínguas da vizinhança que se estavam metendo com a sua vida O pobre homem não cabia em si parecia um viajante que volta aos velhos lares ou um cabodeguerra que acaba de livrar do poder do inimigo uma praça sitiada Enfim reataramse de todo os afrouxados laços entre os dois O Leonardo caiu em dar parte aos seus companheiros que tinha afinal vencido a intrincada demanda custoulhe isto uma tremenda caçoada de todos e sérias repreensões de alguns Mas com coisa alguma se importava naquela ocasião a felicidade o cegava a ponto de não ver aquilo que lhe estava entrando pelos olhos A comadre apenas soube do que havia sucedido foi procurar o Leonardo e começou em um longo sermão a querer persuadilo que tinha dado um passo errado Pois compadre disselhe ela você não se emendou ainda Qual história eu sou doido por estas coisas Mas homem você não se tem dado bem nem com as Ilhoas93 nem com as ciganas para que antes não procura uma filha cá da terra A comadre tinha uma sobrinha que vivia em sua companhia e que lhe pesava sofrivelmente sobre as costas desde há muito nutria por isso uma idéia de que o leitor mais tarde terá conhecimento quando ela se realizar ou antes disso se aperceber pelas palavras da comadre Nada não gosto dessa gente Não tem razão há por aí muita rapariga capaz é verdade que o que elas querem é o toma lá dá cá debaixo do arcocruzeiro É por isso mesmo que eu não gosto Depois de algumas outras tentativas a comadre retirouse um pouco contrariada mas não de todo desanimada ela contava com a cigana para ajudála a realizar o seu plano e o leitor verá para diante que tinha nisso razão Quanto agora ao nosso exsacristão continuava ainda a estar sem destino o que sobremaneira incomodava ao compadre mas que nem por isso o desanimava Coimbra era a sua idéia fixa e nada lha arrancava da cabeça Até o próprio velho tenentecoronel já lhe tinha ido pessoalmente falar por solicitações da comadre porém nada conseguira Exasperado com essa obstinação deixara o negócio de parte e não se importara mais com coisa alguma capítulo xvii D Maria Um dia de procissão foi sempre nesta cidade um dia de grande festa de lufalufa de movimento e de agitação e se ainda é hoje o que os nossos leitores bem sabem na época em que viveram as personagens desta história a coisa subia de ponto enchiamse as ruas de povo especialmente de mulheres de mantilha armavamse as portas das casas penduravamse às janelas magníficas colchas de seda de damasco de todas as cores e armavamse coretos em quase todos os cantos É quase tudo o que ainda hoje se pratica porém em muito maior escala e grandeza porque era feito por fé como dizem as velhas desse bom tempo porém nós diremos porque era feito por moda era tanto do tom enfeitar as janelas e portas em dias de procissão ou concorrer de qualquer outro modo para o brilhantismo das festividades religiosas como ter um vestido de mangas de presunto ou trazer à cabeça um formidável trepamoleque de dois palmos de altura Nesse tempo as procissões eram multiplicadas e cada qual buscava ser mais rica e ostentar maior luxo as da quaresma eram de uma pompa extraordinária especialmente quando elrei94 se dignava acompanhálas obrigando toda a corte a fazer outro tanto a que primava porém entre todas era a chamada procissão dos ourives Ninguém ficava em casa no dia em que ela saía ou na rua ou nas casas dos conhecidos e amigos que tinham a ventura de morar em lugar por onde ela passasse achavam todos meio de vêla Alguns haviam tão devotos que não se contentavam vendoa uma só vez andavam de casa deste para a casa daquele desta rua para aquela até conseguir vêla desfilar de princípio a fim duas quatro e seis vezes sem o que não se davam por satisfeitos A causa principal de tudo isto era supomos nós além talvez de outras o levar esta procissão uma coisa que não tinha nenhuma das outras o leitor há de achála sem dúvida extravagante e ridícula outro tanto nos acontece mas temos obrigação de referila Queremos falar de um grande rancho chamado das Baianas que caminhava adiante da procissão atraindo mais ou tanto como os santos os andores os emblemas sagrados os olhares dos devotos era formado esse rancho por um grande número de negras vestidas à moda da província da Bahia donde lhe vinha o nome e que dançavam nos intervalos dos Deo gratias uma dança lá a seu capricho Para falarmos a verdade a coisa era curiosa e se não a empregassem como primeira parte de uma procissão religiosa certamente seria mais desculpável Todos conhecem o modo por que se vestem as negras da Bahia é um dos modos de trajar mais bonito que temos visto não aconselhamos porém que ninguém o adote um país em que todas as mulheres usassem desse traje especialmente se fosse desses abençoados em que elas são alvas e formosas seria uma terra de perdição e de pecados Procuremos descrevêlo As chamadas Baianas não usavam de vestido traziam somente umas poucas de saias presas à cintura e que chegavam pouco abaixo do meio da perna todas elas ornadas de magníficas rendas da cintura para cima apenas traziam uma finíssima camisa cuja gola e mangas eram também ornadas de renda ao pescoço punham um cordão de ouro ou um colar de corais os mais pobres eram de miçangas ornavam a cabeça com uma espécie de turbante a que davam o nome de trunfas formado por um grande lenço branco muito teso e engomado calçavam umas chinelinhas de salto alto e tão pequenas que apenas continham os dedos dos pés ficando de fora todo o calcanhar e além de tudo isto envolviamse graciosamente em uma capa de pano preto deixando de fora os braços ornados de argolas de metal simulando pulseiras Poucos dias depois dos últimos acontecimentos narrados nos capítulos antecedentes chegou o dia da procissão dos ourives Os nossos costumes nesse tempo a respeito de franqueza e hospitalidade não eram lá muito louváveis nesse dia porém sofriam uma exceção e como dissemos as portas daqueles que moravam nas ruas por onde passava a procissão se abriam a todos os amigos e conhecidos Em virtude disso aconteceu que se achassem reunidos em casa de uma certa D Maria o compadre acompanhado do afilhado ricamente vestido nesse dia com o seu robissão de duraque preto e o seu boné de pêlo de lontra a comadre e a vizinha dos maus agouros D Maria era uma mulher velha muito gorda devia ter sido muito formosa no seu tempo porém dessa formosura só lhe restavam o rosado das faces e alvura dos dentes trajava nesse dia o seu vestido branco de cintura muito curta e mangas de presunto o seu lenço também branco e muito engomado ao pescoço estava penteada de bugres que eram dois grossos cachos caídos sobre as fontes o amarrado do cabelo era feito na coroa da cabeça de maneira que simulava um penacho D Maria tinha bom coração era benfazeja devota e amiga dos pobres porém em compensação destas virtudes tinha um dos piores vícios daquele tempo e daqueles costumes era a mania das demandas Como era rica D Maria alimentava este vício largamente as suas demandas eram o alimento da sua vida acordada pensava nelas dormindo sonhava com elas raras vezes conversava em outra coisa e apenas achava uma tangente caía logo no assunto predileto pelo longo hábito que tinha da matéria entendia do riscado a palmo e não havia procurador que a enganasse sabia todos aqueles termos jurídicos e toda a marcha do processo de modo tal que ninguém lhe levava nisso a palma Essa mania chegava nela à impertinência e aborrecia desesperadamente a quem a ouvia falando nos últimos provarás que lhe tinha feito o seu letrado nos autos da sua demanda de terras nas razões finais que se tinham apresentado na ação que intentava contra um dos testamenteiros de seu pai no depoimento das testemunhas no seu processo por causa da venda das suas casas na citação que mandara fazer a um seu inquilino que lhe havia passado um crédito de 20 doblas e que agora negava a dívida e em mil outras coisas deste gênero Apenas entrara o compadre de quem era antiga amiga e a quem não via a muito tempo começou logo D Maria por darlhe parte que aquela antiga demanda com o testamenteiro de seu pai ainda não estava acabada e por aí ia já prosseguindo conforme seu costume quando o compadre lhe apresentou o afilhado e começou também a contar a sua história Começou o compadre pela história da origem do pequeno remontou à pisadela e ao beliscão com que a Maria e o Leonardo tinham começado o seu namoro na viagem de Lisboa ao Rio de Janeiro o que fez dar a D Maria um bom par de risadas passou em seguida à festa do batizado que descreveu detalhadamente Até aqui era o drama risonho e feliz chegou depois a tragédia contou então todas aquelas histórias da perfídia da Maria os ciúmes do Leonardo a briga final pela qual veio ter o pequeno às suas mãos D Maria ouviu tudo com a maior atenção e só interrompia de vez em quando para lançar uma praga à Maria manifestar compaixão pelo Leonardo e dar alguma risada pelas travessuras do pequeno Quando a conversa estava nesta altura a vizinha dos maus agouros que também já se achava presente porém que até ali estivera distraída percebendo o objeto de que tratavam D Maria e o compadre chegouse também para meter a sua colherada95 já se sabe contra o pequeno Referiu então alguma das suas graçolas acrescentando sempre no fim dirigindose ao compadre O vizinho por mais bem que lhe queira não poderá negar isto O compadre que no meio de tudo tinha sempre pintado o quadro a história do menino com cores muito favoráveis a este não cessando de gabar a sua mansidão boa índole e dourando sempre as suas diabruras com o título de inocências ingenuidades ou coisas de criança começou a dar o cavaco com o desmentido que lhe dava a vizinha a qual não é necessário dizer que pintava tudo com cores negras A comadre interveio também nessa ocasião porém conservando uma posição duvidosa ora era da opinião do compadre ora da opinião da vizinha D Maria que morria por palestra por conversa e sobretudo por novidades tomava o maior interesse pela história e ninguém se lembrava de ter ela vez alguma esquecido por tanto tempo suas demandas O pequeno sentado em um canto ouvia tudo calado O compadre mal se podia conter em respeito a D Maria com as invectivas da vizinha esta julgandose segura na roda em que estava desabafava largamente contra o menino e finalmente terminou dirigindose a D Maria e dizendo na sua frase do costume Então senhora é o que eu digo ou não Tem maus bofes Maus bofes atalhou o compadre já com a calva muito vermelha maus bofes ora esta O pequeno lançou do seu lugar à vizinha um olhar fulminante e que queria pouco mais ou menos dizer Deixate estar que esta não fica sem troco D Maria vendo que o compadre começava a exasperarse foi medianeira e disse dirigindose à vizinha Você temlhe raiva demais realmente a função da cera na mantilha é para dar o cavaco porém bem diz aqui o padrinho qual é a criança que não faz travessuras issto tudo há de passar com a idade Dirigindose depois ao pequeno Venha cá Sr travesso disselhe com bondade venha defenderse do que aqui estão dizendo a seu respeito O menino chegouse com um ar entre vexado e de capadócio96 e colocouse em pé entre a madrinha e a vizinha D Maria fezlhe então algumas perguntas a que ele respondeu com prontidão porém com mau modo A vizinha não se julgou muito em segurança com tão bom vizinho a seu lado e foi querendo levantarse O menino percebendo isto não quis perder ocasião de fazer o quer que fosse de maligno contra ela estendeu a ponta do pé e pisoulhe com toda a força na barra da saia preta que ela conservava tendo tirado a mantilha A vizinha vendolhe o gesto sem entender bem o que era percebeu que ele preparava alguma e quis levantarse rapidamente lá se foram alguns quatro palmos da barra da saia Ah disse o menino fingindose espantado Valhate Deus menino disse a comadre A vizinha contemplava a sua saia rota dizendo para os circunstantes Então é o que eu digo ou não Tem maus bofes O compadre sorriase disfarçadamente por ver aquilo era vingança que o menino tomava do que a vizinha acabava de dizer Ora disse afinal D Maria com ar de quem não estava muito certa no que dizia ele estava descuidado não foi por querer O menino foi sentarse e a conversa prosseguiu Chegouse ao ponto do destino que havia de ter o menino e segundo era costume começou logo grande divergência entre o compadre e a comadre esta não falava senão no Trem97 e aquele não falava senão em Coimbra D Maria solicitada a dar a sua opinião disse Pois olhem se fosse comigo eu havia de pôlo em um cartório e havia de fazer dele um bom procurador de causas Oh não respondeu o compadre perdoeme Sra D Maria perdoe me se lhe ofendo com isso mas eu tenho uma birra dos diabos com as tais demandas Pois olhe não tem razão elas dãome que fazer mas eu já estou acostumada Por exemplo aquela demanda das terras isto tem sido um pratinho muito gostoso98 os herdeiros do meu compadre João Bernardo que ainda não estavam habilitados em juízo mandaramme aqui citar E por aí continuava sem que ninguém soubesse onde pararia quando felizmente teve de interromperse porque a procissão aproximavase e todos correram às janelas Isto deu fim ao negócio Começou a desfilar a procissão que realmente se excetuarmos algumas conseqüências fazia bonito efeito sobretudo vista da casa de D Maria que era e tínhamos esquecido esta circunstância na mesma rua dos Ourives as luzes das tochas refletidas nos galões das armações das portas e nas tabuletas cheias de ouro e prata em obra com que os ourives nesse dia costumavam ornar os intervalos de suas casas davam um aspecto de muita riqueza e luxo se bem que de mau gosto Sobre tudo que levava a procissão o que mais mereceu as honras do agrado dos circunstantes foi o rancho das Baianas que o leitor já conhece e o sacrifício de Abraão que ia representado ao vivo Caminhava adiante um menino com um feixe de lenha aos ombros o qual representava Isaac logo atrás dele um latagão vestido com um costume extravagante com uma enorme espada de pau suspensa sobre a cabeça do menino era Abraão e ainda mais atrás um anjo calcantibus99 suspendendo o furibundo gládio por uma fita de 3 ou 4 varas de comprimento Terminada a procissão retiraramse os convidados Ao sair o compadre com o pequeno D Maria chegouse a ele e disse lhe significativamente Apareça que temos que conversar a respeito do pequeno Já se vê que o menino não era dos mais infelizes pois que se tinha inimigos achava também protetores por toda a parte Para diante os leitores verão o papel que D Maria representará nesta história capítulo xviii Amores Os leitores devem já estar fatigados de ter histórias de travessuras de criança já conhecem suficientemente o que foi o nosso memorando em sua meninice as esperanças que deu e o futuro que prometeu Agora vamos saltar por cima de alguns anos vamos ver realizadas algumas dessas esperanças vamos enfim começar a levantar o véu desse futuro Agora começam histórias se não mais importantes pelo menos um pouco mais sisudas Passaramse portanto depois dos últimos acontecimentos que narramos uns poucos de anos cuja história se resume em muito pouco Eila100 Como sempre acontece a quem tem muito onde escolher ficarse com o pior o pequeno a quem o padrinho queria fazer clérigo mandandoo a Coimbra a quem a madrinha queria fazer artista metendoo no Trem a quem D Maria queria fazer rábula arranjandoo em algum cartório e a quem enfim cada conhecido ou amigo queria dar um destino que julgava o mais conveniente às inclinações que nele descobria o pequeno dizemos tendo tantas coisas boas que escolher escolheu a pior possível nem foi para Coimbra nem entrou para o Trem nem para cartório algum não fez nenhuma destas coisas nem também outra qualquer constituiuse um completo vadio vadiomestre vadiotipo O padrinho desesperava com isso vinte vezes em cada dia por ver frustrado o seu belo sonho de Coimbra porém não se animava mais a contrariar o afilhado e deixavao ir à sua vontade A comadre tinha conseguido o seu fim pelo que diz respeito à sobrinha tanto fizera que o Leonardo pilhando a cigana em nova infidelidade resolveuse não ao toma lá dá cá porém Disso também tirara este vantagem101 pois que começou dessa época a viver sossegado o vento da idade começava a apagarlhe as flamas de ternura D Maria envelhecera sofrivelmente porém não perdera de modo nenhum a sua mania favorita das demandas a última que tivera foi talvez a mais desculpável a mais razoável de todas Teve esta por causa a tutoria de uma sua sobrinha que ficara órfã por morte de um seu irmão Este irmão tinha um compadre que não gozava grande reputação de probidade ora tendo a órfã ficado senhora de alguns mil cruzados que deixara seu pai ainda que este não tivesse feito testamento porém por ser ela filha única e legítima o compadre apresentouse pretendendo ser seu tutor D Maria percebendo o caso apresentouse também e afinal venceu foi nomeada tutora e veiolhe a sobrinha para casa ela estimou isso tanto mais que a sua idade já a fazia precisar ainda não de um apoio porém de uma companhia As mais personagens continuaram no mesmo estado Eis aqui o que se passou Vamos continuar De agora em diante trataremos o nosso memorando pelo seu nome de batismo não nos ocorre se já dissemos que ele tinha o nome do pai mas se o não dissemos fique agora dito E para que se possa conhecer quando falamos do pai e quando do filho daremos a este o nome de Leonardo e acrescentaremos o apelido de pataca já muito vulgarizado nesse tempo quando quisermos tratar daquele Leonardo havia pois chegado à época em que os rapazes começam a notar que o seu coração palpita mais forte e mais apressado em certas ocasiões na presença lá de uma certa pessoa com quem uma vez se encontraram e com quem sem saber por que sonharam umas poucas de noites seguidas de quem começam desde então a lembrarse continuamente e cujo nome se o sabem lhes vem continuamente fazer cócegas nos lábios Já dissemos que D Maria tinha agora em casa sua sobrinha o compadre como a própria D Maria lhe pedira continuou a visitála e nessas visitas conversavam muito em particular sem dúvida sobre o objeto que muito os interessava Leonardo acompanhava sempre o seu padrinho nessas visitas e fazia diabruras pela casa enquanto estava em idade disso e depois que lhes perdeu o gosto sentavase em um canto e adormecia de aborrecimento Disso resultou que detestava ele profundamente as tais visitas e que só se sujeitava a elas obrigado pelo padrinho Em uma das últimas visitas que fizeram a D Maria assim que os viu entrar dirigiuse ao compadre e disselhe muito contente Ora afinal venci a minha campanha veio ontem para o meu poder a menina O tal velhaco do compadre de meu irmão não levou a sua avante Muitos parabéns muitos parabéns respondeu o compadre Leonardo deu pouca atenção a isso há muito tempo que ouvia falar da tal sobrinha sentouse a um canto e começou a bocejar de aborrecido Depois de mais algumas palavras trocadas entre os dois D Maria chamou por sua sobrinha e esta apareceu Leonardo lançoulhe os olhos e a custo conteve o riso Realmente a sobrinha de D Maria não tinha uma figura das mais agradáveis era uma menina já muito desenvolvida para 12 anos que já tinha102 porém tendo perdido as graças de menina ainda não tinha adquirido a beleza de moça era alta magra pálida andava com o queixo enterrado no peito trazia as pálpebras sempre baixas e olhava a furto tinha os braços finos e compridos o cabelo cortado davalhe apenas até o pescoço e como andava mal penteada e trazia a cabeça sempre baixa caía lhe uma grande porção sobre a testa e olhos como uma espécie de viseira Trajava nesse dia um vestido de chita roxa muito comprido sem roda quase nenhuma e de cintura muito curta e trazia ao pescoço um lenço desses chamados de tabaco103 Por mais que o compadre a questionasse apenas murmurou algumas frases ininteligíveis com voz rouca e sumida Mal a deixaram livre desapareceu sem olhar para ninguém Vendoa irse Leonardo tornou a rirse interiormente Quando se retiraram por todo o caminho continuou ele a rirse porém desta vez à sua vontade O padrinho indagou a causa da sua hilaridade e ele respondeu que não se podia lembrar da menina sem rirse Então lembraste dela muito a miúdo porque muito a miúdo te ris Leonardo viu que esta observação era verdadeira Em casa falou ele durante alguns dias umas poucas de vezes na sobrinha da D Maria e apenas o padrinho lhe anunciou que teriam de fazer a visita do costume sem saber por que pulou de contente e ao contrário dos outros dias foi o primeiro a vestirse e darse por pronto Saíram e encaminharamse para a casa de d Maria capítulo xix Domingo de Espírito Santo Era esse dia domingo de Espírito Santo Como todos sabem a festa do Espírito Santo é uma das festas prediletas do povo fluminense Hoje mesmo que se vão perdendo certos hábitos uns bons outros maus ainda essa festa é motivo de grande agitação longe porém está o que agora se passa daquilo que se passava nos tempos a que temos feito remontar os leitores A festa não começava no domingo marcado pela folhinha começava muito antes 9 dias cremos que era para que tivessem lugar as novenas também não tinha lugar em uma só igreja duas temos certeza até porque ainda hoje se passa o mesmo que dela se ocupavam eram a igreja de SantAna e a igreja da Lapa104 O primeiro anúncio da festa eram as folias Aquele que escreve estas memórias ainda em sua infância teve ocasião de ver as folias porém foi já no seu último grau de decadência e tanto que só as crianças como ele davam lhe atenção e achavamlhe prazer os mais se delas se ocupavam era unicamente para lamentar a diferença que faziam das primitivas Hoje se alguma coisa aparece com pretensões de folia é objeto de riso e realmente tudo que agora se vê a esse respeito é extravagantemente ridículo105 O que dantes se passava bemencarado nem por isso estava muito longe de merecer igual censura porém era costume e ninguém vá lá dizer a alguma velha desse tempo que aquilo devia ser por força muito feio que ela dá logo uma risada na cara de quem quer que seja que a tal se atreva e começa logo uma tremenda filípica contra as nossas festas de hoje querendo assim exaltar as de seu tempo Entretanto digamos sempre o que eram as folias desse tempo apesar de que os leitores o saberão pouco mais ou menos Durante os 9 dias que precediam ao Espírito Santo ou mesmo não sabemos se antes disso saíam pelas ruas da cidade um rancho de meninos todos de 9 a 11 anos caprichosamente vestidos à pastora sapatos de cor ordinariamente corde rosa meias brancas calção da cor dos sapatos faixas à cintura camisa branca de longos e caídos colarinhos chapéus de abas largas de palha ou forrados de seda tudo isto enfeitado com grinaldas de flores e com uma quantidade prodigiosa de laços de fita encarnada Cada um destes meninos levava um instrumento pastoril em que tocavam ordinariamente pandeiro e machete106 Caminhavam formando um quadrado no meio do qual ia o chamado imperador do Divino acompanhados por uma música de barbeiros e precedidos e cercados por uma chusma de irmãos de opa levantado107 bandeiras encarnadas isso ainda hoje se vê108 e outros emblemas e tirando esmolas enquanto eles cantavam e tocavam O imperador como dissemos ia no meio ordinariamente era um menino mais pequeno que os outros todos vestido de casaca de veludo verde calção do mesmo meias de seda sapatos afivelados chapéu de pasta e trazendo ao peito um enorme e rutilante emblema do Espírito Santo caminhava pausadamente e com ar grave Realmente confessem os leitores se não era coisa extremamente extravagante verse um imperador todo vestido de veludo e seda percorrendo as ruas cercado por um rancho de pastores tocando e cantando de pandeiro e machete Entretanto apenas se ouvia ao longe a fanhosa música dos barbeiros tudo corria à janela para ver passar a folia os irmãos aproveitavamse do ensejo e iam colhendo esmolas de porta em porta Enquanto caminhava o rancho tocava a música de barbeiros quando parava os pastores acompanhandose com seus instrumentos cantavam as cantigas eram todas pouco mais ou menos no gênero e estilo desta O Divino Espírito Santo É um grande folião Amigo de muita carne Muito vinho e muito pão Eis aqui o que era a folia eis aqui o que o compadre e o afilhado encontraram no caminho A este episódio da folia seguiamse outros de que vamos em breve dar conta aos leitores Por agora porém voltemos aos nossos visitantes Chegaram eles à casa de D Maria e acharam ainda todos à janela porque acabava há pouco de passar a folia D Maria recebeuos com a sua costumada amabilidade Leonardo ao entrar lançou logo os olhos para a sobrinha de D Maria porém sem saber por que não teve desta vez mais vontade de rirse entretanto a menina continuava a ser feia e esquisita nesse dia então estava ainda pior do que nos outros D Maria tinha tido pretensões de asseála vestiralhe um vestido branco muito curto pusera lhe um lenço de seda encarnado ao pescoço e penteoua de bugres Entretanto agora que tendo ela tirado a costumada viseira de cabelos lhe podemos ver o rosto digamos em abono da verdade que se estava nesse dia mais esquisita quanto ao todo podiaselhe notar que não era lá tão feia de cara como a princípio pareceu O caso foi que o Leonardo começou como já dissemos a olhar para ela sem mais vontade de rirse olhou uma duas três quatro muitas vezes enfim sem que nunca satisfizesse ao que ele interiormente chamava curiosidade de apreciar aquela figura A menina por sua parte continuava no seu inalterável silêncio e concentração de olhos baixos e queixo no peito Entretanto quem tivesse hábito de observar certas coisas poderia ter visto algum levantar de pálpebras rápido e algum olhar fugaz dirigido para o lado do Leonardo isso mesmo que não poderia ter visto nem três vezes durante uma hora que durou a visita D Maria e o compadre conversaram segundo o seu costume o Leonardo e a menina já se sabe o que fizeram109 Na ocasião da saída D Maria dirigindose ao compadre disselhe Olhe escute nós hoje vamos ao Campo ver o fogo bem podíamos ir todos juntos que diz Sim podíamos respondeu o compadre eu tinha de ir só com o meu rapaz mas uma vez que me oferece iremos todos juntos E leva a senhora a sua menina não é Oh levo coitada ela nunca viu o fogo no tempo do pai nunca saía Sem pensar o Leonardo estremeceu de contente pareceulhe que desse modo teria mais ocasião de satisfazer a sua convidada110 A menina nem se mexeu pareceulhe aquilo absolutamente indiferente Pois então estamos ajustados acrescentou o compadre e à noite cá as viremos buscar E saíram capítulo xx O fogo no campo À hora determinada vieram os dois padrinho e afilhado buscar D Maria e sua família como haviam tratado era pouco depois de AveMaria e já se encontrava pelas ruas grande multidão de famílias de ranchos de pessoas que se dirigiam uns para o Campo e outros para a Lapa onde como é sabido também se festejava o Divino Leonardo caminhava parecendo completamente alheio ao que se passava em roda dele tropeçava e abalroava nos que encontrava uma idéia única roíalhe o miolo mas se lhe perguntassem que idéia era essa talvez ele mesmo o não soubesse dizer Chegaram enfim mais depressa do que supusera o compadre porque o Leonardo parecia naquela noite ter asas nos pés tão rapidamente caminhara e obrigara o padrinho a caminhar com ele D Maria estava já pronta e os esperava com algumas outras pessoas com quem também tratara ir junta e em um momento puseramse a caminho Formavam todos um grande rancho acompanhado por não pequeno número de negras e negrinhas escravas e crias de D Maria carregando cestos com comida e esteiras D Maria dera o braço ao compadre e o mesmo fizeram as outras senhoras a outros cavalheiros Por gracejo D Maria fez com que o Leonardo acompanhasse a sua sobrinha ele aceitou a incumbência com gosto mas não sem ficar alguma coisa atrapalhado e deu na pobre menina alguns encontrões embaraçado por não saber se lhe daria a esquerda ou a direita finalmente acertou e deulhe a esquerda ficando ela do lado da parede Ofereceulhe o braço porém Luisinha tratemola desde já por seu nome pareceu não entender o oferecimento ou não dar fé dele Contentouse pois o Leonardo em caminhar ao lado dela Assim chegaram ao Campo que estava cheio de gente Nesse tempo ainda se não usavam as barracas de bonecos de sortes de raridades e de teatros como hoje usavamse apenas algumas que serviam de casas de pasto depois de passarem por diante delas D Maria e a sua gente se dirigiram para o império Luisinha estava atônita no meio de todo aquele movimento no meio daquele espetáculo que via pela primeira vez pois era verdade o que dissera D Maria no tempo de seu pai raras ou nenhumas vezes saíra de casa Assim sem o saber parava de vez em quando embasbacada a olhar para qualquer coisa e o Leonardo muitas vezes se vira forçado a puxarlhe pelo braço para obrigála a continuar o caminho Chegaram finalmente ao império que não era nesse tempo no mesmo lugar onde é hoje e sim quase defronte da igreja de SantAna no lugar que é hoje ocupado por uma das extremidades do quartel de fuzileiros Todos sabem o que é o império e por isso o não descreveremos mesmo porque o desse tempo era quase igual ao de hoje111 Lá estava na sua cadeira o imperador que o leitor já viu passeando pela rua no meio de seus foliões Luisinha vendoo pôsse nas pontas dos pés esticou o pescoço e encarouo por muito tempo estática e absorta O Leonardo vendo isto sentiu um não sei quê por dentro contra o menino que atraía a atenção de Luisinha e passoulhe pela mente o desejo louco de voltar atrás 6 ou 7 anos de sua existência e ser também imperador do Divino Nas escadas do império faziase como ainda hoje leilão divertindose muito o povo ali apinhado com as pesadas graçolas do pregoeiro Estiveram aí algum tempo entretidos como os outros os nossos conhecidos e foram depois procurar no meio do Campo um lugar onde pudessem fazer alto para cear e ver o fogo Acharamno não sem alguma dificuldade pois que muitas outras famílias se haviam adiantado e tomado conta das melhores posições Grande parte do Campo estava já coberta daqueles ranchos sentados em esteiras ceando conversando cantando modinhas ao som de violão e viola Fazia gosto passear por entre eles e ouvir aqui a anedota que contava um conviva de bom gosto ali a modinha cantada naquele tom apaixonadamente poético que faz uma das nossas raras originalidades apreciar enfim aquele movimento e animação que geralmente reinavam Era essa a parte permitamnos a expressão verdadeiramente divertida do divertimento Os nossos conhecidos sentaramse pois como os outros em roda de suas esteiras e começaram a cear Leonardo apesar das emoções novas que experimentava desde certo tempo e principalmente naquela noite nem por isso perdeu o apetite e esqueceuse por algum tempo de sua companheira para cuidar unicamente do seu prato No melhor da ceia foram interrompidos pelo ronco de um foguete que subia era o fogo que começava Luisinha estremeceu ergueu a cabeça e pela primeira vez deixou ouvir sua voz exclamando extasiada ao ver cair as lágrimas inflamadas do foguete que aclaravam todo o Campo Olhe olhe olhe Alguns dos circunstantes desataram a rir e o Leonardo que também já se havia rido à custa da menina desta vez deu o cavaco com aquelas risadas e as achou muito fora de tempo Felizmente Luisinha estava por tal maneira extasiada que não deu atenção a coisa alguma e enquanto duraram os foguetes não tirou os olhos do céu Aos foguetes seguiramse como sabem os leitores as rodas Nessa ocasião o êxtase da menina passou a frenesi aplaudia com entusiasmo erguia o pescoço por cima das cabeças da multidão tinha desejos de ter duas ou três varas de comprido para ver tudo a seu gosto Sem saber como unese112 ela ao Leonardo firmase com as mãos sobre os seus ombros para se poder sustentar mais tempo nas pontas dos pés falalhe e comunica lhe a sua admiração O contentamento acabou por familiarizála completamente com ele Quando se atacou a lua a sua admiração foi tão grande que querendo firmarse nos ombros de Leonardo deulhe quase um abraço pelas costas O Leonardo estremeceu por dentro e pediu ao céu que a lua fosse eterna virando o rosto viu sobre seus ombros aquela cabeça de menina iluminada pelo clarão pálido do misto que ardia e ficou também por sua vez extasiado pareceulhe então a cara113 mais linda que jamais vira e admirouse profundamente de que tivesse podido alguma vez rirse dela e achála esquisita Acabado o fogo tudo se pôs em andamento levantaramse as esteiras espalhouse o povo D Maria e sua gente puseramse também em marcha para casa guardando a mesma disposição com que tinham vindo Desta vez porém Luisinha e Leonardo não é dizer que vieram de braço como este último tinha querido quando foram para o Campo foram mais adiante do que isso vieram de mãos dadas muito familiar e ingenuamente Este ingenuamente não sabemos se se poderá com razão aplicar ao Leonardo Conversaram por todo o caminho como se fossem dois conhecidos muito antigos dois irmãos de infância e tão distraídos iam que passaram à porta de casa sem parar e já estavam muito adiante quando os sios de D Maria os fizeram voltar A despedida foi alegre para todos e tristíssima para os dois Entretanto como sempre que se despedia o compadre prometeu voltar e isso serviu de algum alívio especialmente ao Leonardo que mais velhaco 114 tomara tudo o que se acabava de passar mais em grosso capítulo xxi Contrariedades Cremos pelo que temos referido que para nenhum dos leitores será ainda duvidoso que chegara ao Leonardo a hora de começar a pagar o tributo de que ninguém escapa neste mundo se bem que para alguns seja ele fácil e leve e para outros pesado e custoso o rapaz amava É escusado dizer a quem porque todos sabem que era a sobrinha de D Maria Como é que uma figura que a princípio tanto desafiara a sua hilaridade por esquisita e feia lhe viera depois a inspirar amor é lá isso segredo do coração do rapaz que nos não é dado penetrar o fato é que ele a amava e isto nos basta Convém lembrar que se pela sorte de um pai se pode augurar a de um filho o Leonardo em matéria de amor não prometia decerto grande fortuna E com efeito logo depois da noite do fogo no campo em que o negócio começara a tomar vulto principiou a roda a desandarlhe em quase todos os sentidos Luisinha uma vez extinto o entusiasmo que suscitado pelas emoções que experimentara na noite do fogo a acordara da sua apatia voltara de novo a ela e como de tudo esquecida na primeira visita que o compadre e o Leonardo fizeram a D Maria depois desses acontecimentos nem para este último levantara os olhos voltando de novo aos seus hábitos conservarase de cabeça baixa e olhos no chão Ora para quem como o Leonardo levara depois daquela feliz noite a construir esses milhões de castelos de extravagante arquitetura com que sonhamos quando pela primeira vez amamos isso foi já uma contrariedade sem nome a primeira vontade que teve quando foi daquele modo tratado foi desatar a chorar e só o conteve o receio de não poder depois justificar o seu pranto com qualquer pretexto A este primeiro ímpeto sucedeulhe um momento de calma e depois cresceulhe por dentro uma enorme raiva e esteve quase não quase a115 chegarse para a menina desenterrarlhe o queixo do peito e chamála quatro ou cinco vezes de estúrdia e feia Afinal cismou um pouco e murmurou um que me importa que pretendia ser desprezo e que não passou de despeito À primeira visita depois da noite do fogo seguiramse muitas outras em que as coisas se passaram pouco mais ou menos do mesmo modo Um novo sucesso veio porém um dia dar outra cor e andamento aos negócios116 foi o encontro dos dois em casa de D Maria com uma personagem desconhecida para ambos e era um conhecido de D Maria que havia há pouco chegado de uma viagem à Bahia Figure o leitor um homenzinho nascido em dias de maio de pouco mais ou menos 35 anos de idade magro narigudo de olhar vivo e penetrante vestido de calção e meias pretas sapatos de fivela capote e chapéu armado e terá idéia do físico do Sr José Manuel o recémchegado Quanto ao moral se os sinais físicos não falham quem olhasse para a cara do Sr José Manuel assinalavalhe logo um lugar distinto na família dos velhacos de alto quilate E quem tal fizesse não se enganava de modo algum o homem era o que parecia ser Se tinha alguma virtude era a de não enganar pela cara Entre todas as suas boas qualidades tinha uma que infelizmente caracterizava naquele tempo e talvez que ainda hoje positiva e claramente o Fluminense era a maledicência José Manuel era uma crônica viva porém crônica escandalosa não só de todos os seus conhecidos e amigos e das famílias destes mas ainda dos conhecidos e amigos dos seus amigos e conhecidos e de suas famílias Debaixo do mais fúrtil117 pretexto tomava a palavra e enfiava um discurso de duas horas sobre a vida de fulano ou de beltrano Por exemplo conversandose sobre qualquer objeto acontecia falarse suponhamos em D Francisca Brites Conheci muito D Francisca Brites atalhava imediatamente o incansável falador era mulher de João Brites filho bastardo do capitão Sanches em tempo de casada diziam suas coisas dela e a culpa tinha Pedro dAguiar sujeito que não gozava de boa nota principalmente depois que se meteu aí numa alhada de um testamento falso que atribuíram ao Lourenço da Cunha que em abono da verdade era bem capaz disso pois118 era sujeito de mãos limpas Foi até ele quem furtou de casa a filha de D Úrsula que foi moça de Francisco Borges a quem deixou para seguir a Pedro Antunes que por sinal lhe deu bem má vida E também ela não devia esperar outra coisa dele porque homem que se atreveu a fazer o que ele fez a três filhas que tinha é capaz de tudo Ele chegou a pôr pela porta fora com um pau as pobres moças depois de as ter espancado muito Entretanto uma delas foi bem feliz achou aí um capitão de navio que tratou dela as outras não coitadas Se acontecia que alguma pessoa presente que conhecia as tais três moças o interrompia dizendo por exemplo Infelizes por quê elas casaram Casaram sim é verdade retorquia ele tomando novo fôlego porém com que maridos Um tomava moafas de todo o tamanho o outro gastou tudo quanto tinha no jogo Conhecios a ambos muito bem E por aí prosseguia e internavase a perder de vista pela geração toda dos dois maridos e era capaz de gastar nesse trabalho horas inteiras Cremos que com isto temos dado idéia se não cabal ao menos aproximada do caráter deste novo personagem Desde o primeiro dia que o padrinho e o afilhado encontraramse com José Manuel em casa de D Maria nenhum dos dois lhe ficou por certo querendo muito bem e este não querer bem foi crescendo de dia em dia especialmente pela parte do Leonardo E o caso é que ele tinha razão foi o instinto que o avisou de que ali havia um inimigo Tão exagerados eram os afagos de José Manuel para com D Maria e tanto repartia ele esses afagos com Luisinha que entretanto prosseguia no seu ordinário que bem claro se deixou ver que aquilo tinha seu fim e esse fim quase que estava descoberto Afinal o negócio esclareceuse D Maria era como dissemos rica e velha não tinha outro herdeiro além de sua sobrinha se morresse D Maria Luisinha ficaria arranjada e como era muito criança e mostrava ser muito tola era uma esposa muito conveniente a qualquer velhaco119 que se achasse como José Manuel em disponibilidade este pois fazia a corte à velha com intenções na sobrinha Quando Leonardo esclarecido pela sagacidade do padrinho entrou no conhecimento destas coisas ficou fora de si e a idéia mais pacífica que teve foi que podia mui bem quando fosse visitar D Maria munirse de uma das navalhas mais afiadas de seu padrinho e na primeira ocasião oportuna fazer de um só golpe em dois o pescoço de José Manuel Porém teve de aplacar se e ceder às admoestações do padrinho que sabia de todos os seus sentimentos e que os aprovava capítulo xxii Aliança Se o Leonardo se afligira do modo que acabamos de ver pelo contratempo que lhe sobreviera com o aparecimento e intenções de José Manuel o compadre não se incomodara menos com ele Vendo que o afilhado se fazia homem e tendo decididamente abortado aquele seu gigantesco plano de mandálo a Coimbra enxergava ele na sobrinha de D Maria um meio de vida excelente para o seu rapaz Verdade é que se lembrava de que D Maria podia com muito justa razão se as coisas continuassem do mesmo modo quando chegasse o momento do desfecho do negócio recusar sua sobrinha a um rapaz que não se ocupava em coisa nenhuma e que não tinha futuro Por este motivo muitas vezes instava com o afilhado para que ensaiasse na cara de algum freguês tolo entrar no ofício porém este recusavase obstinadamente A comadre quando alguma vez aparecia por casa do compadre não cessava de insistir no seu antigo projeto de fazer o rapaz entrar para o trem uma ocasião em que nisso falou diante dele custoulhe a história uma forte sarabanda o rapaz tomara gosto à vida de vadio e por princípio algum queria deixála E se em outras ocasiões estava ele desse humor agora depois dos últimos acontecimentos quando o amor e o ciúme lhe ocupavam a alma não queria ouvir falar em coisa alguma dessas acreditava que a sua melhor ocupação devia consistir em dar cabo do maldito rival que se lhe antepusera Estavam as coisas neste pé e o pior era que José Manuel parecia adiantarse cada vez mais astuto como era insinuavase destramente no ânimo de D Maria e a cativava com atenções de toda a sorte O compadre começou a banzar sobre o caso e um dia veiolhe uma idéia era preciso pôr a comadre em dia com o que se passava e interessála no negócio ela era bem capaz se quisesse de arcar com José Manuel e pô lo fora de combate gozava boa fama de ter jeito para essas coisas Com efeito mandou chamar a comadre e expôslhe tudo Sim respondeu ela ao ouvir a narração o caso é este pois está de cor o tal sujeito hei de mostrarlhe para quanto presto Já hoje mesmo vou visitar a D Maria Mal sabia José Manuel que tormenta se levantava contra ele Há muito que ele percebera que o Leonardo e seu padrinho o não podiam tragar e mesmo que tinham estes dois segundas tenções porém nunca lhe passara pela mente que seria mister lutar com eles Em breve teve de ver que se enganava pois que eram terríveis seus adversários A comadre foi com efeito como prometera à casa de D Maria e achando lá José Manuel procurou fazerse ostensivamente muito sua camarada se bem que baixinho e de vez em quando soltava perto de D Maria algumas indiretas contra ele Quando José Manuel acabava de contar uma história com todos os detalhes costumados sobre a vida de fulano ou de beltrano120 a comadre murmurava por exemplo Que língua safa E com estas e outras ia assim pondo em relevo sem parecer que tinha tal intenção o caráter do adversário Além da boa qualidade de maldizente José Manuel mentia com um descaro como raras vezes se encontra D Maria amiga de novidades e além disso muito crédula comungava perfeitamente quanta peta lhe queria ele embutir Uma das suas histórias mais comuns era a que ele intitulava o naufrágio dos potes Aconteceralhe na sua última viagem à Bahia e ele a contava pelo modo seguinte Estávamos quase a chegar à Bahia viajava ao lado do meu navio um enorme peru carregado unicamente de potes De repente armase um temporal que parecia vir o mundo abaixo o vento era tão forte que do mar apesar da escuridão viamse contradançar no espaço as telhas arrancadas da cidade alta o mar era tal que muitas vezes vimos passar por cima dos mastros do navio e cair do outro lado sem lhe tocar o peru jogado pelas ondas outras vezes era o nosso navio que lhe passava por cima Com a força dos balanços aconteceu que muitos dos marinheiros do navio saltaram fora porém com tanta felicidade que foram cair dentro do peru Isto durou por algum tempo sem que nem uma só vez as duas embarcações se tocassem apesar de estarem sempre muito perto uma da outra121 Afinal quando já parecia tudo sossegado e começava a limpar o tempo veio uma onda tão forte e em tal direção que as duas embarcações esbarraram com toda a força uma contra a outra Já muito maltratadas pelo temporal que acabavam de suportar não puderam mais resistir e abriramse ambas de meio a meio o navio vazou toda a sua carga e passageiros e o peru toda a sua carregação de potes ficou o mar coalhado deles em tão grande quantidade os havia Os marinheiros e outros passageiros trataram de agarrarse a tábuas caixões e outras coisas para se salvarem porém o único que se salvou fui eu e isso devo à feliz lembrança que tive do pedaço do navio em que tinha ficado dei um salto sobre o pote que havia mais perto Com o meu peso o pote mergulhou e enchendose dágua desapareceu debaixo de meus pés porém isto não teve lugar antes que eu percebendo o que ia acontecer não saltasse imediatamente deste pote para outro A este outro e a todos os mais aconteceu a mesma coisa porém servime do mesmo meio e assim como a força das ondas os impelia para a praia vim de pote em pote até à terra sem o menor acidente Como esta contava José Manuel milhares de histórias Foi também isso um tema de que se serviu a comadre para o desconceituar no ânimo de D Maria sempre é verdade muito sorrateiramente Veremos quais foram os resultados que alcançaram o compadre e o Leonardo com a aliança formada com a comadre contra o concorrente à Luisinha capítulo xxiii Declaração Enquanto a comadre dispunha seu plano de ataque contra José Manuel Leonardo122 ardia em ciúmes em raiva e nada havia que o consolasse em seu desespero nem mesmo as promessas de bom resultado que lhe faziam o padrinho e a madrinha O pobre rapaz via sempre diante de si a detestável figura de seu rival a desconcertarlhe todos os planos a desvanecerlhe todas as esperanças Nas horas de sossego entregavase ele às vezes à construção imaginária de magníficos castelos castelos de nuvens é verdade porém que lhe pareciam por instantes os mais sólidos do mundo de repente surdialhe de um canto o terrível José Manuel com as bochechas inchadas de vento e soprando sobre a construção a arrasava em meio minuto Entretanto o que havia em tudo isto de notável é que Luisinha causa de tantas tormentas ignorava tudo e a tudo continuava indiferente quem sabe mesmo se a pobre menina sabia lá dessas coisas de amor se tinha mesmo a mais leve idéia disso hoje uma menina nas circunstâncias dela estaria mais que muito em dia e tomaria a parte que lhe devia competir ao negócio naquele tempo porém de bons costumes e santidade isso era coisa com que ninguém devia contar Verdade seja também que tinha ela a menos que não fosse muito perspicaz bem poucos motivos para saber do que se passava e nenhuma ocasião de manifestar a sua opinião se a tivesse formado123 Leonardo veio a entender depois de muito meditar que isto constituía um dos principais defeitos de sua posição se a comadre e o compadre conseguissem derrotar a José Manuel e pôlo em estado de não poder mais entrar em combate quem poderia dizer que o triunfo era completo Não havia ainda uma segunda campanha a dar contra a indiferença de Luisinha Daqui concluiu ele que era mister ir já rompendo fogo por esse lado e como lhe pareceu o de mais importância não quis confiar a nenhum dos aliados o seu ataque decidiuse ela mesmo a dálo Devia começar tudo como o sabe de cor e salteado a maioria dos leitores que é sem dúvida nenhuma muito entendida na matéria por uma declaração em forma Mas ah cólicas124 em amor assim como em tudo a primeira saída é o mais difícil Todas as vezes que esta idéia vinha à cabeça do pobre rapaz passavalhe uma nuvem escura por diante dos olhos e banhavaselhe o corpo em suor Muitas semanas levou a pensar nisso a estudar o que havia de dizer a Luisinha quando aparecesse o momento fatal achava com facilidade milhares de coisas que dizer porém mal tinha assentado em que diria isto ou aquilo e já isto ou aquilo lhe não parecia bom Por várias vezes tivera ocasião favorável para desempenhar a sua tarefa pois estivera só com Luisinha porém nessas ocasiões nada havia que pudesse vencer um tremor de pernas que se apoderava dele e que não lhe permitia levantarse do lugar onde estava e um engasgo que lhe sobrevinha e que o impedia de articular uma só palavra Enfim depois de muitas lutas consigo mesmo para vencer o acanhamento tomou um dia que teve ocasião de estar só com Luisinha a resolução de acabar com aquilo e de dizerlhe a primeira coisa que lhe viesse à boca Luisinha estava no vão de uma janela a espiar a rua pela rótula Leonardo aproximouse tremendo pé ante pé parou e ficou imóvel como um estafermo125 atrás dela que entretida para a rua de nada tinha dado fé e esteve assim por longo tempo estava a decidirse se devia falar em pé ou se devia ajoelharse Depois fez um movimento como de quem queria tocar no ombro de Luisinha mas recolheu depressa a mão pareceulhe que por aí não ia bem quis antes puxarlhe pelo vestido e ia já levando a mão quando também se arrependeu Durante todos estes movimentos o pobre rapaz suava a não poder mais Enfim um incidente veio tirálo do aperto Ouvindo passos no corredor entendeu que alguém se aproximava e tomado de terror por se julgar apanhado naquela posição deu repentinamente dois passos para trás e soltou um ah muito engasgado Luisinha voltando se despertada por esse ah deu com ele diante de si e recuando espremeuse de costas contra a rótula veiolhe também outro ah que devia fazer casal com o que soltara o Leonardo porém não lhe passou da garganta e conseguiu apenas fazer uma careta A bulha dos passos cessara sem que ninguém chegasse à sala os dois levaram algum tempo naquela mesma posição até que o Leonardo assentando que aquilo devia acabar de uma vez rompeu o silêncio e com voz trêmula e em tom o mais sem graça desta vida perguntou desenxabidamente A senhora sabe uma coisa E riuse com uma risada forçada pálida e tola Luisinha não respondeu Ele repetiu no mesmo tom Então a senhora sabe ou não sabe E tornou a rirse do mesmo modo Luisinha conservouse muda A senhora bem sabe é porque não quer dizer Nada de resposta Se a senhora não ficasse zangada eu dizia Silêncio Está bom eu digo sempre mas a senhora fica ou não fica zangada Luisinha fez um gesto de quem estava impacientada Pois então eu digo A senhora não sabe eu eu lhe quero muito bem Luisinha fezse da cor de uma cereja e fazendo meiavolta à direita foi dando as costas ao Leonardo e caminhando pelo corredor Era tempo pois alguém se aproximava Leonardo viua irse um pouco estupefato pela resposta que ela lhe dera porém não de todo descontente seu olhar de amante percebera que o que se acabava de passar não tinha sido totalmente desagradável a Luisinha Quando ela desapareceu o rapaz soltou um ah de desabafo e assentouse pois se achava tão fatigado como se tivesse acabado de lutar braço a braço com um gigante capítulo xxiv A comadre em exercício Os leitores devem estar lembrados de que o nosso antigo conhecido de quem por algum tempo nos temos esquecido o Leonardopataca apertara se em laços amorosos com a filha da comadre e que com ela vivia em santa e honesta paz Pois esse viver santo e honesto deu em tempo oportuno o seu resultado Chiquinha era este o nome da filha da comadre achouse de esperanças e pronta a dar à luz Já vêem os leitores que a raça dos Leonardos não se há de extinguir assim com duas razões Leonardopataca não perdia por modo algum aqueles hábitos de ternura com que sempre o conhecemos e nas atuais circunstâncias quando ele via às portas da vida um fruto do seu derradeiro amor crescialhe nalma aquela violenta chama do costume o pobre homem ardia todo por dentro e por fora e desfaziase em carinhos para com sua companheira Chegou finalmente o dia de aparecer o desejado resultado Chiquinha ao amanhecer manifestara os primeiros sintomas Leonardo levantou logo uma poeira em casa andava de dentro para fora pretendendo fazer mil coisas e sem fazer coisa alguma atrapalhado e tonto Mandou chamar logo a comadre que pronta acudiu ao chamado e começaramse a arranjar os preparativos Talvez alguns leitores tenham idéia do mundo infinito de arranjos que naquele tempo se punha em giro em semelhantes ocasiões A primeira coisa a que o LeonardoPataca providenciou foi a que se mandassem dobrar de certo em certo tempo os sinos da Sé126 Esta prática só costumava ter lugar quando a parturiente se achava em perigo porém ele quis prevenir tudo a tempos e a horas Mandouse depois pedir à vizinha pois por um descuido imperdoável não havia em casa um ramo de palha benta a comadre trouxe um par de bentinhos da Senhora do Monte do Carmo que tinham grande reputação de milagrosos e o lançou ao pescoço da Chiquinha Pôs a palha benta ao lado da cabeceira na sala improvisouse um oratório com uma toalha um copo com arruda e uma imagem de Nossa Senhora da Conceição de louça toda enfeitada com cordões de ouro Chiquinha para nada esquecer das regras estabelecidas amarrou à cabeça um lenço branco meteuse embaixo dos lençóis e começou a rezar ao santo de sua devoção A comadre sentouse aos pés da cama em uma banquinha e desunhava também em um grande rosário observando entretanto a Chiquinha e interrompendose a cada instante para dar ordens ao Leonardopataca e responder ao que fora do quarto se dizia Leonardo pataca depois de tudo arranjado quando viu que a única coisa que restava era esperar a natureza como dizia a comadre pôsse em menores quero dizer despiu as calças e o colete ficou em ceroulas e chinela amarrou à cabeça segundo um antigo costume um lenço encarnado e pôsse a passear na sala de um lado para outro com uma cara de fazer dó parecia que era ele e não Chiquinha quem se achava com dores de parto De vez em quando parava à porta do quarto que se achava cerrada lançava para dentro um olhar de curiosidade e medo e abanando a cabeça murmurava Não sirvo para isto estas coisas não se dão com o meu gênio Estou a tremer como se fosse o negócio comigo E realmente a cada gemido forte que partia do quarto o homem estremecia e faziase de mil cores Dentro do quarto a comadre exortava a padecente pouco mais ou menos nestes termos Não vos façais de criança menina isso não é nada é um pau por um olho Não tarda aí um Bendito e estais já livre Estas coisas na minha mão andam depressa Verdade seja que é o primeiro e isto causa seu medo mas não é coisa que valha estares agora tão desanimada é preciso também ajudar a natureza Faze da tua parte que eu te ajudarei São palavras de Jesus Cristo A padecente estava porém a morrer de susto nem se moveu à exortação da comadre talvez julgasse que tudo que havia a fazer de sua parte já ela o tinha feito há bastante tempo Entretanto o tempo ia passando e a pobre rapariga a sofrer já lhe tinha a comadre arranjado de um modo diverso os bentinhos no peito já tinha inclinado mais sobre a cama a palma benta e ainda nada de novo O Leonardopataca começava a impacientar se de vez em quando chegava à porta do quarto e perguntava com voz esmorecida Então Compadre respondia a comadre já lhe disse que não é bom a quem está neste estado estar ouvindo voz de homem esteja calado e espere lá Continuava o tempo a passar a comadre saiu do quarto e veio acender uma nova vela benta a Nossa Senhora e depois de uma breve oração retirouse de novo para o quarto Tirou então do bolso da saia uma fita azul comprida e passoua em roda da cintura de Chiquinha era uma medida de Nossa Senhora do Parto Depois disse com ar de triunfo Ora agora vamos a ver porque isto já não vai do meu agrado Mas a culpa também é sua menina já lhe disse que é preciso ajudar a natureza Passouse ainda algum tempo De repente a comadre gritou para fora Ó compadre dê cá lá uma garrafa O Leonardopataca obedeceu prontamente Ouviuse então dentro do quarto o som que produziria uma boca humana a soprar com toda a força dentro de alguma coisa Era Chiquinha que por ordem da comadre soprava a morrer de cansaço dentro da garrafa que esta mandara vir Com força menina com bem força e Nossa Senhora não desampara os fiéis Ânimo ânimo isto e mais que sucede é uma vez por ano Desde que nossa mãe Eva comeu aquela maldita fruta ficamos nós sujeitas a isto Eu multiplicarei os trabalhos de teu parto São palavras de Jesus Cristo Já se vê que a comadre era forte em história sagrada Ao Leonardopataca tremiamlhe cá fora tanto as pernas que não pudera mais continuar no passeio e achavase sentado a um canto com os dedos nos ouvidos Soprai menina continuava sempre dentro a comadre soprai com Nossa Senhora soprai com S João Batista soprai com os apóstolos Pedro e Paulo soprai com os anjos e serafins da corte celeste com todos os santos do paraíso soprai com o Padre com o Filho e com o Espírito Santo Houve finalmente um instante de silêncio que foi interrompido pelo choro de uma criança Ora lá vai o mau tempo exclamou a comadre bem dizia eu que isto não era mais do que um pau por um olho Ah Sr compadre chegue que é agora a sua vez venha ver a sua pecurrucha É uma pecurrucha exclamou o Leonardopataca fora de si ora isto é de bom agouro porque com o outro que saiu macho não fui feliz Rescendeu então pela casa um agradável cheiro de alfazema a comadre veio à sala apagou as velas que estavam acesas a Nossa Senhora foi depois desatar a fita da cintura da Chiquinha e tirarlhe do pescoço os bentinhos A recémnascida enfraldada encueirada encinteirada entoucada127 passava das mãos de Chiquinha para as do Leonardopataca que não cabia em si de contentamento era uma formosa criancinha em tudo o oposto de seu irmão paterno o nosso amigo Leonardo mansa e risonha O Leonardopataca recorreu imediatamente à folhinha para ver que nome trazia a menina porém como este lhe não agradasse travou logo com Chiquinha uma questão a respeito do nome que se lhe devia dar A comadre aproveitouse disso para dar conta dos últimos arranjos e depois envergou a mantilha e saiu para acudir a outras necessitadas capítulo xxv Trama Como esta cena que acabamos de pintar tinha a comadre muitas outras todos os dias porque era uma das parteiras mais procuradas da cidade gozava grande reputação de muito entendida naquele ramo e ainda nos casos mais graves era sempre a escolhida com os seus milagrosos bentinhos a palma benta a medida de Nossa Senhora a garrafa soprada e com a ajuda de todas as legiões de santos de serafins de anjos e de anjinhos safavase128 ela dos maiores apertos E ninguém lhe fosse lá dar regras que as não ouvia nem do físicomor se nisso se metesse era só olhar para uma mulher de esperanças e dizialhe logo sem grande trabalho o sexo o tamanho do filho que trazia nas entranhas e com uma pontualidade cronométrica o dia e hora em que teria de se ver desembaraçada até às vezes lá por certos sinais que só ela conhecia chegava a dizer qual seria o gênio inclinação do ente que estava para nascer Já se vê que esta vida era trabalhosa e demandava sérios estudos porém a comadre dispunha de uma grande soma de atividade e apesar de gastar muito tempo nos deveres do ofício e na igreja sempre lhe sobrava algum para empregar em outras coisas Como dissemos ela havia tomado a peito a causa dos amores de Leonardo com Luisinha e jurara pôr José Manuel o candidato fora da chapa Presentemente portanto ocupava o seu tempo disponível nesse grave negócio e movia uma intriga surdíssima e constante contra o rival de seu afilhado gozando da intimidade e do crédito de D Maria não perdia junto dela ocasião de desconceituar José Manuel o que eralhe tanto mais fácil quanto ele prestavase a isso e D Maria de espírito demandista e chicaneiro dava o cavaco por um mexericozinho Eis aqui uma das que ela armou ao adversário Todos sabem nesta cidade onde é o Oratório de Pedra mas o que todos talvez não saibam é para que serviu ele antigamente Sem dúvida era ali lugar onde havia algum santo e onde o povo devoto ia rezar Exatamente Mas por que é que hoje não continua essa prática por que apenas se conserva ali sobre a parede aquela espécie de guarita de pedra sem imagem alguma dentro sem luz à noite e diante da qual passam todos irreverentemente sem tirar o chapéu e curvar o joelho Primeiro que tudo extinguiuse isso como se extinguiram milhares de coisas boas daquele bom tempo que já lá vai começaram todos a aborrecerse de achálas boas e acabaram com elas depois houve a respeito do Oratório de Pedra muito boas razões policiais para que ele deixasse de ser o que era O leitor que sem dúvida sabe muito bem de quanto eram nossos pais crentes devotos e tementes a Deus se admirará talvez de ler que houve razões policiais para a extinção de um oratório Entretanto é isso uma verdade e se fosse ainda vivo o nosso amigo Vidigal de quem já tivemos ocasião de falar em alguns capítulos desta historieta poderia dizer quantos garotos pilhou em flagrante delito ali mesmo aos pés do oratório ajoelhado contrito e beato Muitas vezes quando passava a viasacra e que se acendia a lâmpada do oratório o pai de família que morava ali pelas vizinhanças tomava o capote chamava toda a gente de casa filhos filhas escravos e crias e saindo com eles ia fazer oração ajoelhandose com todos os seus entre o povo diante do oratório Mas se acontecia que o incauto devoto se esquecia por exemplo da filha mais velha que se ajoelhara um pouco mais atrás e embebido em suas orações não estava alerta sucedialhe às vezes voltar para casa com a família dizimada a menina aproveitavase do ensejo e sorrateiramente se escapava em companhia de um devoto que se ajoelhara ali perto embrulhado no seu capote e que ainda há dois minutos todos tinham visto entregue fervorosamente às orações era o amante que viera executar129 o plano concertado na véspera ao cair de AveMarias através dos postigos da rótula Outras vezes quando estavam todos os circunstantes entregues à devoção e que a ladainha entoada a compasso enchia aquele circuito de contrição ouviase um grito agudo e doloroso que interrompia o hino corriam todos para o lugar donde ele tinha partido às vezes era mesmo sob as vistas da imagem do oratório130 e achavam um homem estendido no chão com uma ou duas facadas Não contamos ainda no meio destas e de outras com as inocentes caçoadas que a todo o instante da reza praticavam ali os gaiatos como sejam as caroladas nas cabeças dos devotos carecas uma pedra atirada ninguém sabe donde dentro de uma poça de lama que havia ali perto e que caindo respingava todos os fiéis e mil outras desta ordem131 Eis aqui pois porque além de outros motivos dissemos que tinham havido razões policiais para que se acabasse com a piedosa serventia do Oratório de Pedra No tempo porém em que se passavam as cenas que temos narrado ainda o Oratório de Pedra estava no galarim Um ou dois dias depois do nascimento do segundo filho do Leonardopataca correu pela cidade a notícia de um grande escândalo que se passara nesse lugar clássico dos escândalos uma moça que vivia em companhia de sua mãe velha rica e devota indo com ela rezar junto ao Oratório na ocasião da passagem da viasacra fugira tendo levado consigo um pé de meia preta contendo uma boa porção de peças de ouro A notícia corria e falavase muito no caso não porque aquilo fosse naquele tempo coisa que se estranhasse mas sim porque havia um mistério no caso e era que ninguém sabia com quem tinha fugido a moça D Maria como todos estava ansiosa por ver deslindada a questão quando lhe aparece por casa a comadre que a vinha visitar D Maria estava sentada na sua banquinha tendo diante de si uma enorme almofada de renda carregada com umas seis ou sete dúzias de bilros e esmeravase a fazer um largo pegamento A seu lado sentada em uma esteira cercada por uma porção de negrinhas crias de D Maria estava Luisinha também ocupada em fazer renda Quando a comadre entrou D Maria largou imediatamente a almofada do colo tirou do nariz e pôs na testa um par de óculos com que trabalhava de aros de prata mas amarrados com linha em mais de um lugar132 e foi lhe logo falando no caso sucedido A comadre fez sinal que mandasse retirar Luisinha e as mais crianças feito o que sentouse e começou a conversa D Maria abriu a discussão Então que me diz senhora da desgraça da pobre velha Criar a gente uma rapariga com todo o carinho e no fim ter aquele pago Estas raparigas de hoje são endiabradas133 no meu tempo não se viam coisas destas Esta mania de cada um falar bem do seu tempo e mal do dos outros é muito antiga134 Que quer senhora respondeu a comadre pois foi ali nas barbas de todos Não havia um instante que ela tinha chegado com a velha e que se tinham todas duas ajoelhado ao pé de mim Ao pé da comadre Pois a comadre estava lá Estava que antes não estivesse arrenego Mas o diabo senhora acrescentou D Maria é ninguém saber quem foi o maldito que fugiu com ela A comadre interrompeu dando uma risadinha sardônica Tenho perguntado a todos e ninguém sabe dizer com quem foi É porque todos estavam cegos Como Mas não o estava eu por mal de meus pecados que antes estivesse Pois viu e sabe com quem foi disse D Maria remexendose de prazer em cima da banquinha A idéia de poder saber de uma novidade que todos ignoravam encheua de contentamento Mas então quem foi vamos quero saber quem foi o engraçado ladrão de moça e de dinheiro Só lhe direi respondeu a comadre depois de alguma hesitação se me prometerdes guardar todo o segredo que o caso é muito sério Ora bem sabe que eu é o mesmo que cair num poço Apesar de estarem só a comadre inclinouse ao ouvido de D Maria e disselhe o mais baixinho que pôde Foi o nosso grande camarada o hipócrita do José Manuel O que é que diz comadre Vi respondeu esta arregalando com dois dedos os olhos com estes que a terra há de comer Se eles estavam ao pé de mim Ora ora dáse coisa igual135 capítulo xxvi Derrota Aquelas últimas palavras da comadre produziram sobre D Maria o efeito de um raio a velha remexeuse na banquinha tomada do maior desapontamento Ora comadre exclamava a cada momento esta não lembra ao diabo por isso eu sigo a regra antiga de me não fiar nem um nada em tudo que me traz calções Safa que esta pôsme sal na moleira A comadre vendo estas boas disposições aproveitavase delas para fazer melhor o seu papel e respondia Pois também o que se havia de esperar de um sujeito como aquele um homem que não abre a boca que não minta que tem uma língua de Lúcifer Quem contasse com aquilo era mesmo para se perder É verdade senhora nunca vi mentiroso nem maldizente maior Nunca D Maria até então tinha encontrado em José Manuel estas qualidades que agora lhe descobria tanto em relevo Se eu fosse parente da rapariga havia pôr uma demanda ao tal diabo que o havia ensinar Por isso é que ele me não aparecia por cá há tanto tempo andava cuidando nos seus arranjos Mal tinha acabado de pronunciar estas últimas palavras quando se ouviu bater à porta e a voz de José Manuel pedir licença Aí está ele segredo não quero que se saiba que fui eu disse a comadre apressada Ora respondeu D Maria eu cá para isso sou boa José Manuel entrou D Maria que não costumava guardar o que sentia recebeuo friamente a comadre porém fez um agradável cumprimento Seja bem aparecido disse bons olhos o vejam Tenho andado aí ocupado com alguns arranjos Arranjos disse D Maria trocando com a comadre um olhar significativo José Manuel inocente em tudo ficou pasmo sem entender o que queria aquilo dizer entretanto segundo o costume não perdeu ocasião de armar uma peta Sim uns arranjos acrescentou houve um negócio muito sério em que estive metido e que me ia dando bem que fazer sinto não lhe poder contar porque é segredo A comadre fez um gesto como quem queria dizer aí vem uma peta D Maria porém que estava preocupada pela conversa que há pouco tivera entendeu que José Manuel se referia ao roubo da moça e abanando a cabeça disse por entre os dentes Hum entendo A comadre estremeceu temendo que D Maria não desse com a língua nos dentes e que a questão do roubo da moça tivesse de ser averiguada em sua presença porque nesse caso seria ela apanhada em flagrante mentira e estava tudo perdido Começou portanto a provocar a José Manuel a que declarasse qual era o negócio tão sério em que se tivera metido contava ela com algumas das petas costumadas e assim se desviaria a conversa do ponto que ela não queria ver tratado em sua presença Deixemola nesse empenho lutar com as negaças e fingidos mistérios de José Manuel e vamos a outro posto Desde o dia em que Leonardo fizera a sua declaração amorosa uma mudança notável se começou a operar em Luisinha e cada hora se tornava mais sensível a diferença tanto do seu físico como do seu moral Seus contornos começavam a arredondarse seus braços até ali finos e sempre caídos engrossavamse e tornavamse mais ágeis suas faces magras e pálidas enchiamse e tomavam essa cor que só sabe ter o rosto da mulher em certa época da vida a cabeça que ela costumava a trazer habitualmente baixa erguiase agora graciosamente os olhos até aqui amortecidos começavam a despedir lampejos brilhantes falava moviase agitavase A ordem de suas idéias alteravase também o seu mundo interior até então acanhado e estreito escuro despovoado começava a alargar os horizontes a iluminarse a povoarse de milhões de imagens ora risonhas e amenas ora melancólicas sempre porém belas Ela até então indiferente ao que se passava em torno de si e sobre a sua cabeça parecia agora participar da vida de tudo que a cercava gastava horas inteiras a contemplar o céu como se só agora tivesse reparado que ele era azul e belo que se iluminava pelo sol do dia e que se recamava de estrelas à noite Perdia enfim a olhos vistos o acanhamento natural desembaraçavase Tudo isto dava em resultado pelo que diz respeito ao nosso amigo Leonardo um aumento considerável de amor também ele foi o primeiro que deu fé de todas aquelas mudanças em Luisinha Entretanto apesar de lhe crescer o amor nem por isso via ele maior furo aos desejos136 Depois da declaração não se tinha adiantado nem mais uma polegada e a única coisa talvez que lhe alimentava a esperança era um certo rubor súbito que subia às faces de Luisinha quando acontecia raras vezes que se encontrassem os olhares dela com os seus A soma total de todas estas adições era uma raiva que lhe crescia nalma aumentando todos os dias de intensidade contra José Manuel a quem em seus cálculos atribuía todo o seu atraso Dadas estas explicações ao leitor voltemos a dar conta do resto da cena que deixamos suspensa À força de instâncias a comadre conseguiu de José Manuel que contasse qual o negócio de alto segredo em que se tinha achado envolvido Pois bem disse ele finalmente se me prometem todo o segredo eu contarei Ora nem tem que recomendar isso Com a escusa e mistérios que tinha guardado até então José Manuel não fizera mais do que ganhar tempo para imaginar a mentira que havia de pregar a comadre contava com isso mesmo Ele começou Saibam Vms que fui um destes dias chamado a palácio Ui exclamou a comadre Aí está o resultado disse D Maria mas não se pagam na outra vida é mesmo nesta Resultado de quê perguntou José Manuel surpreendido De nada continue José Manuel contou então uma grande história muito encadeada dizendo que elrei o mandara chamar a palácio e depois de cobrilo das maiores honras e obséquios lhe oferecera o comando da polícia da cidade pois que o Vidigal já não satisfazia tão bem o serviço ele porém recusara a pés juntos com o que elrei se mostrara muito zangado e o despedira137 Terminada porém a história ele que era velhaco e a quem nada escapava 138 começou a instar com D Maria para que lhe desse a explicação das palavras duvidosas que há pouco havia dito a seu respeito A comadre assim que viu o negócio neste pé foise pondo ao fresco depois de trocar com D Maria um olhar que queria dizer não me comprometa D Maria a princípio quis sustentar o segredo afinal não se pôde conter e soltou contra José Manuel uma catilinária139 dizendo que toda a cidade estava cheia do horroroso escândalo que ele acabava de praticar roubando uma filhafamília O pobre homem foi às nuvens e jurou e tresjurou que estava inocente em tudo aquilo Nada porém lhe valeu D Maria foi inflexível Protestou de novo que se ela fosse parenta da moça o Sr José Manuel se havia de ver em calças pardas com o negócio e terminou por darlhe a entender que ele era um homem muito perigoso para ser admitido em uma casa de família José Manuel saiu completamente corrido e cismando quem teria sido o autor de semelhante intriga Quanto a D Maria ficou muito satisfeita pois tendo no seu caráter um grande fundo de honestidade julgava ter feito uma boa ação passando uma sarabanda a José Manuel que ficara com efeito como o calculara a comadre perdendo muito no seu conceito capítulo xxvii O mestre de reza Tudo aquilo que ultimamente se passara em casa de D Maria havia posto a andar à roda a cabeça de José Manuel conheceu ele desde então que tinha ali inimigo fosse quem fosse pois aquilo não passava certamente de intriga que lhe tinham armado Restavalhe porém saber quem seria esse inimigo e por mais que desse voltas ao miolo não atinava com coisa alguma Pelo gênero da intriga conheceu ele que a causa da que lhe faziam era seguramente a sua pretensão a respeito de Luisinha que sem dúvida teria sido percebida por esse quem quer que era que o guerreava logo começou a suspeitar que se tinha de haver sem dúvida nenhuma com um rival Na roda que freqüentava a D Maria ninguém viu ele que pudesse ter semelhante pretensão passoulhe muitas vezes pelo espírito a lembrança do moço Leonardo porém achavao muito criança e mesmo incapaz de se meter nessas coisas Como os mais velhacos caem facilmente nas que se lhes armam Quantas vezes estão tocando o inimigo com as mãos e não o vêem e não o sentem Partisse porém donde partisse o golpe que o ferira o caso é que fora dado certeiro e a duas mãos D Maria extremosa em suas afeições como em seus ódios consentiria com imensa dificuldade na reabilitação de José Manuel o negócio era difícil ele porém não esfriou por isso e pôs mãos à obra Por uma singularidade assim como Leonardo tinha achado na comadre uma protetora à sua causa também José Manuel achara um procurador para a sua já se vê que nisso levava vantagem ao seu rival pois desse modo seriam dois a trabalhar de seu lado entretanto que o adversário teria do seu um só sendo por si pouco capaz de fazer coisa que prestasse Vamos já dizer aos leitores que estarão sem dúvida com pressa de saber quem era o procurador de José Manuel Havia no tempo em que se passam estas cenas instituições muito curiosas no Rio de Janeiro algumas eram notáveis por seu fim outras por seus meios Entre essas uma havia de que ainda em nossa infância tivemos ocasião de ver alguns destroços já nesse tempo raros e que hoje completamente desapareceram Era a instituição dos mestres de reza O mestre de reza era tão acatado e venerado naquele tempo como o próprio mestre de escola havia para isso além do respeito ordinariamente tributado aos preceptores uma circunstância muito notável e vem a ser que o mestre de reza era sempre um velho e cego Não eram eles em grande número no Rio de Janeiro e por isso viviam em grande atividade e ganhavam sofrivelmente Andavam pelas casas a ensinar a rezar aos filhos crias e escravos de qualquer o sexo Não tinham um traje especial vestiamse como todos e só o que os distinguia era ver selhes constantemente fora de seus bolsos o cabo de uma tremenda palmatória com que andavam constantemente armados compêndio único por onde ensinavam a seus discípulos Eram eles o terror da criançada das casas porque eram desapiedadamente rigorosos140 Assim que entravam para a lição reuniam em um semicírculo diante de si todos os discípulos puxavam do bolso a tremenda férula colocavamna no chão encostada à cadeira onde se achavam sentados e começava o trabalho Fazia o mestre em voz alta o PeloSinal pausada e vagarosamente no que o acompanhavam em coro todos os discípulos quanto a fazerem os sinais era ele quase sempre logrado como facilmente se concebe porém pelo que toca à repetição das palavras tão prático estava que por maior que fosse o número dos discípulos percebia no meio do coro que havia faltado esta ou aquela voz quando alguém se atrevia a deixarse ficar calado Suspendia então imediatamente o trabalho e o culpado era obsequiado com uma remessa de bolos que de modo nenhum desmentiam a reputação de quem goza a pancada de cego Feito isto recomeçava o trabalho voltandose sempre ao princípio de cada vez que havia um erro ou falta Acabado o PeloSinal que com as diversas interrupções que ordinariamente tinha gastava boa meia hora repetia o mestre sozinho sempre e em voz alta e compassada a oração que lhe aprazia repetiam depois o mesmo os discípulos do primeiro ao último de um modo que nem era falado nem cantado já se sabe interrompidos a cada erro pela competente remessa de bolos Depois de uma oração seguiase outra e assim por diante até terminar a lição pela ladainha cantada Ao sair recebia o mestre uma pequena espórtula do dono da casa D Maria tendo em sua casa um número não pequeno de crias não se dispensava de ter como todos que estavam em suas circunstâncias o seu mestre de reza era este um cego muito afamado pelo seu excessivo rigor para com os discípulos por conseqüência era um dos mais procurados pois nesse tempo para ofícios dessa natureza exigiase antes de tudo essa qualidade Também tinha outro mérito corria a seu respeito a fama de bom arranjador de casamentos José Manuel já antes o tinha posto de mão e agora que se viu em perigo recorreu a ele expôslhe o caso comunicoulhe suas intenções e pediulhe a sua cooperação Fezlhe sentir sobretudo que havia um rival a combater e muito temível pois que não era conhecido O velho começou então a tomar as mais minuciosas informações e depois de calcular por algum tempo disse Já sei com quem me tenho que haver Então com quem é acudiu José Manuel apressado Vá descansado e não se importe com o resto Mas homem olhe que é preciso muito cuidado porque quem quer que é é fino como os trezentos Ora qual histórias desses arranjos entendo eu dormindo e vejo nisso sendo cego melhor do que muitos com seus olhos perfeitos É uma coisa que me põe cá à roda o miolo não poder descobrir quem é que se intromete nos meus negócios olhe que a tal entrega do furto da moça foi de mestre Eu também sou mestre e veremos quem ensina melhor Ficaram os dois nisto e o cego pôs mãos à obra Eis aí pois quem era o procurador de José Manuel Devemos prevenir ao leitor que a causa em semelhantes mãos se não se podia dizer decididamente ganha pelo menos ficava arriscada e o que vale é que do outro lado estava a comadre senão ai do nosso amigo Leonardo O velho começou o seu plano em regra logo na primeira noite que foi dar lição à casa de D Maria começou por fazer cair a conversa a respeito do roubo da moça e deu a entender que sabia do caso e conhecia perfeitamente quem tinha sido o autor dele D Maria disse também que sabia quem era e até o conhecia muito O velho sorriuse deixando apenas escapar em tom de dúvida um significativo Qual D Maria franziu o sobrolho levantou os óculos e exclamou Pois então pensa que eu ando atrasada nestas coisas Ora deixe se Sei quem foi e sei muito e muito bem É um pedaço de um mariola com cara de sonso que só me há de morar em casa se eu algum dia for carcereira É isso tudo mas a Sra D Maria não conhece o homem digolho eu que também ando ao fato deste negócio todo Bem sei bem sei mas olhe que eu também soube de parte muito certa e não há também nada mais fácil do que ver quem está enganado Diga lá o senhor quem foi Oh não isso nunca exclamou apressadamente o velho pondose em pé nada eu cá não quebro segredo de ninguém D Maria remexeuse toda de aflição e por mais que instasse nada pôde arrancar do velho que para fazer melhor o seu papel foise logo retirando dando assim a entender que queria cortar a conversação naquele ponto Quando mais não tivesse conseguido o velho tinha ao menos lançado a dúvida no espírito de D Maria a respeito do fato que era para ela a pedra e escândalo contra José Manuel capítulo xxviii Transtorno Enquanto todas estas coisas se passavam um triste sucesso e da mais alta importância veio alterar a vida de Leonardo ou transtornála mesmo o compadre caiu gravemente enfermo A princípio a moléstia pareceu coisa de pouca monta e a comadre que foi a primeira chamada pretendeu que todo o incômodo desaparecesse dentro de dois dias tomando o doente alguns banhos de alecrim Nada porém se conseguiu com a receita o mal continuou Recorreram então a um boticário conhecido da comadre que exercia não sabemos se com permissão das leis ou sem ela os dois misteres de médico e boticário Era um velho filho do Porto que aqui se viera estabelecer há muitos anos e que ajuntara no oficio boas patacas Apenas chegou e viu o doente declarou que em poucos dias o poria de pé bastava que ele tomasse umas pílulas que lhe ia mandar da sua botica eram um santo remédio segundo dizia mas custavam um bocadinho caro mais141 porém valia a vida de um homem A comadre quando ouviu falar em pílulas franziu a testa Pírolas disse consigo então o negócio é sério e eu que tenho máfé com pírolas ainda não vi uma só pessoa que as tomasse que escapasse E avermelharamselhe imediatamente os olhos O boticário retirouse levando consigo o Leonardo que trouxe as pílulas A comadre olhando para elas abanou a cabeça Ora disse eu pensei que ele lhe mandasse dar alguns banhos cá por mim com alecrim havia de pôlo bom A comadre tinha razão até certo ponto pois que no fim de três dias depois de feitos todos os preparos religiosos o compadre deu a alma a Deus D Maria tinha sido chamada nesse mesmo dia e viera com Luisinha e com todo o seu batalhão de crias tinham vindo também algumas outras pessoas da vizinhança Estavam todos sentados em um grande canapé na varanda e conversavam muito entretidos sobre os objetos mais diversos algumas pessoas achavam mesmo na conversação motivo para boas risadas de repente abriuse a porta do quarto e a comadre saiu de dentro com o lenço nos olhos soluçando desabridamente e repetindo em altos gritos entre os soluços Bem dizia eu que tinha pouca fé nas tais pírolas está para ser o primeiro que eu as veja tomar e que escape Coitado do compadre tão boa criatura nunca me consta que fizesse mal a ninguém Estas palavras da comadre foram o sinal de rebate dado à dor dos que se achavam presentes desatou tudo a chorar e cada qual o mais alto que podia O Leonardo sofreu um grande choque e no meio de seu atordoamento encolheuse em cima do canapé com a cabeça sobre os joelhos chegandose naturalmente sem o querer porque a dor o perturbava o mais perto possível de Luisinha Continuaram os mais no seu coro de pranto dirigidos pela comadre mas não se contentavam só com o pranto e no meio soltavam muitas exclamações todas em honra do defunto Sempre foi muito bom vizinho nunca tive escândalos dele dizia uma Era aquela a vizinha que augurava mau fim ao Leonardo e com quem o compadre brigara por este motivo umas poucas de vezes Boa alma dizia D Maria boa alma havia de ser como ele quem quisesse ter boa alma Eu que lidei com ele dizia a comadre é que sei o que ele valia era uma alma de santo num corpo de pecador Bom amigo Bom cristão E nisto gastaram boas duas horas e talvez fossem adiante se não fosse mister cuidarse nos arranjos do enterro Despediramse algumas pessoas outras ficaram ainda Foi serenando o pranto e daí a pouco D Maria enxugando ainda os olhos explicava detalhadamente a uma outra senhora que se achava junto dela a história genealógica de cada uma das suas crias que se achavam presentes Finalmente retiraramse todos exceto D Maria e a sua gente e a comadre que estava desde que o compadre adoecera tomando conta da casa Aproximouse a noite acenderamse velas junto do defunto fizeramse todos os mais arranjos do costume D Maria e a comadre começaram a conversar porém baixinho Então senhora principiou D Maria este homem não havia morrer assim sem ter feito seu testamento pois ele não havia de querer deixar no mundo o afilhado ao desamparo para os ausentes se gozarem do que a ele lhe custou tanto trabalho Ele a mim respondeu a comadre nunca me falou em semelhante coisa mas enfim como isso são lá negócios de segredo talvez Seria bom procurarse talvez em alguma gaveta por aí se ache é impossível que ele não dispusesse de sua vida bem vezes lhe aconselhei eu semelhante coisa Tem razão D Maria eu acho também que deve haver alguma coisa E foram as duas tratar de procurar o testamento nas gavetas de uma grande cômoda que havia no quarto do defunto Enquanto elas procuravam Luisinha e Leonardo conversavam ou antes cochichavam como se diz vulgarmente O que eles se diziam não posso dizêlo ao leitor porque o não sei sem dúvida a rapariga consolava o rapaz da perda que acabava de sofrer na pessoa do seu amado padrinho Finalmente as duas acharam com efeito um testamento e ficaram com isso muito satisfeitas Voltaram à varanda e surpreenderam os dois no melhor da sua conversa A comadre vendoos sorriuse e D Maria fazendo sem dúvida a respeito do que estavam eles falando o mesmo juízo que nós disse enternecida Ela tem muito bom coração E o dele não é pior respondeu a comadre e acrescentou com intenção estava um bom casal Oh senhora disse D Maria com ingenuidade deixe a menina que ainda é muito cedo para cuidar nisso Também não digo já mas a seu tempo D Maria sorriuse com um sorriso de que a comadre não desgostou Mudaram de conversa Passouse a noite no outro dia saiu o enterro com todas as formalidades do estilo Depois disso tratouse de resolver uma importante questão para a companhia de quem iria o Leonardo A abertura do testamento feita nesse mesmo dia resolveu a questão O compadre havia instituído a Leonardo por seu universal herdeiro A comadre informou de semelhante coisa ao Leonardopataca e este apresentouse para tomar conta de seu filho Não pareceu o rapaz muito satisfeito com a graça não sei como veiolhe à idéia aquele terrível pontapé que o fizera fugir de casa além disso raríssimas vezes vira depois disso a seu pai e estava completamente desacostumado dele Não havia porém outro remédio foi preciso obedecer e acompanhálo para casa onde encontrou sua pequena irmã e quem a pusera no mundo O Leonardopataca começou a cuidar no testamento como homem entendido na matéria e em pouco tempo deu volta a tudo aquilo Cumpre notar que se em vida do compadre corriam boatos que pareciam exagerados a respeito do que ele possuía quando morreu pôde verse que esses boatos tinham ainda ficado muito aquém da verdade pois deixara ele um bom par de mil cruzados em espécie Entregues alguns legados de pouca monta como fossem um crucifixo à comadre um oratório a D Maria e uma caixa de prata para rapé a um velho amigo do compadre 142 etc tudo o mais veio a cair nas mãos do Leonardopataca como herança de seu filho Nos primeiros dias tudo foram flores por casa de Leonardo pataca se bem que para falar a verdade desde a primeira vista não simpatizara muito o moço Leonardo com a cara do objeto dos novos e últimos cuidados de seu pai A comadre assentou que devia substituir ao compadre no amor pelo afilhado e determinouse a vir morar com ele em casa do pai assim ficava também reunida à sua filha e à sua neta O Leonardopataca que era condescendente esteve pelo caso e reuniuse desse modo a família toda Tudo foram flores a princípio como dissemos o moço Leonardo e a comadre continuaram as suas visitas por casa de D Maria e em abono da verdade o rapaz e a rapariga iam pondo as mangas de fora verdade seja que José Manuel trabalhava ajudado do seu cego mestredereza e não perdia também as esperanças Pouco tempo porém durou o sossego em casa de Leonardo pataca Mariquinhas tal era o nome da filha da comadre amante do Leonardopataca143 começou a embirrar com o seu filho adotivo este que como dissemos não simpatizara muito com ela não esteve pelos autos e começou uma balbúrdia de todos os pecados Todos os dias pegavam por qualquer ponta e lá ia tudo pelos ares O Leonardopataca e a comadre faziam o papel de conciliadores mas os dois eram ambos altanadíssimos e muitas vezes o conciliador saía mal servido porque aquele a quem não dava razão se revoltava contra ele Se era por exemplo a comadre e dava razão a Leonardo acudia a filha queixandose de que sua mãe a abandonava para tomar o partido do afilhado se pelo contrário dava razão a Mariquinhas acudia o Leonardo queixandose de que desgraçado era o filho sem mãe pois nunca achava quem lhe desse razão Outro tanto acontecia ao Leonardopataca quando se metia a apaziguar os dois Os negócios assim iam mal pois mais dia menos dia haveria grande barulho em casa capítulo xxix Pior transtorno Um dia o moço Leonardo recolherase para casa muitíssimo zangado de sua vida pois que tendo ido visitar D Maria estivera com ela longo tempo sem que Luisinha lhe tivesse aparecido de maneira que lhe fora forçoso no fim de algumas horas retirarse sem vêla Quem já teve um namoro por menos sério que seja e que levou um logro destes quem se viu obrigado a aturar por muito tempo a conversação de uma velha tendo de concordar com ela em tudo e por tudo para não incorrerlhe no desagrado só com o fim de muitas vezes trocar com alguém um olhar rápido um sorriso disfarçado ou outra coisa assim e que por fim de contas nem isso mesmo conseguiu há de concordar que o Leonardo tinha toda a razão nesse dia de vir para casa vendendo azeite às canadas144 e o desculparia de qualquer mau modo ou arrebatamento que se lhe notasse Há espíritos porém de tal maneira serrazinas que se divertem em aumentar a irritação alheia e que quanto mais enfiado pilham um infeliz tanto mais gostam de atirarlhe alfinetadas e até de preferência escolheu essas ocasiões para isso Mariquinhas a amante do Leonardopataca era de um gênio assim e depois que moravam todos juntos não perdia além das outras uma só ocasião dessas em virtude da antipatia que tinha ao rapaz para fustigar de língua ao pobre Leonardo Este de um gênio colérico e pouco acostumado a ser contrariado ia às nuvens com semelhante coisa e se em ocasiões ordinárias em que estava de bom humor não aturava e havia constantes brigas como dissemos calculese o que não faria nas ocasiões em que estivesse lá azeitado e então por que motivo No dia a que nos referimos vendoo Mariquinhas entrar pela porta adentro de cara amarrada e sem dar Deus te salve a ninguém sorriu se logo com malignidade e concertou a garganta dizendo entre dentes Melhor cara traga o dia de amanhã Leonardo que percebera o que aquilo queria dizer fez um gesto arrebatado sentandose em uma cadeira porém com tanta infelicidade que atirou ao chão uma almofada de renda que se achava junto dele com a queda rebentaramse os fios e uma porção de bilros rolou pela casa Por maior infelicidade ainda a almofada era de Mariquinhas e Mariquinhas tinha grandes ciúmes pela sua almofada Vejam que belo pretexto Levantouse ela do seu lugar já fervendo de raiva pôs as mãos na cadeira e balançando a cabeça à medida que falava exclamou Ora dáse um desaforo de tamanha grandeza vir da rua lá com os seus burros145 todo esfogueteado e de propósito e muito de propósito vir fazerme o que estão vendo só para me desfeitear como se fosse aqui um dono de casa que pudesse desfeitear a qualquer sem quê nem para quê Leonardo ouviu tudo sem interromper procurando sofrear a raiva e enquanto Mariquinhas tomava fôlego respondeu com voz trêmula e entrecortada Senhora não se meta com a minha vida porque eu também não me importo com a sua se estou com os burros Ah bom côvado e meio Atalhou Mariquinhas ah bordo da nau ah major Vidigal Já lhe disse Qual já lhe disse nem meio já lhe disse diabo do namorado sem ventura Estas últimas palavras fizeram o efeito de uma faísca em um barril de pólvora Avançou o Leonardo para Mariquinhas com os punhos cerrados e espumando de raiva Se me diz mais meia palavra percolhe o respeito eu nunca lhe dei confianças e apesar de ser a senhora lá o quer que é de meu pai perco lhe o respeito Você sempre mostra que tem raça de ilhéu disse Mariquinhas empertigandose e sem recuar um passo O Leonardopataca que estava no interior da casa acudiu apressado ao barulho e veio achar os dois ainda em atitude hostil e vendo o filho quase não quase a desfeitear o adorado objeto de seus últimos afetos não trepidou em desbaratar com ele Pedaço de mariola pensas tu que isto aqui é como lá a casa de teu padrinho donde saíste quero aqui muito respeito a todos ao contrário se já uma vez te dei um pontapé que te fiz andar muitos anos por fora dou te agora outro que te ponha longe daqui para sempre Nunca pensei interrompeu Mariquinhas dirigindose ao Leonardo pataca querendo afear mais o caso nunca pensei que na sua companhia eu viesse a sofrer semelhante coisa Não faças caso menina isto é um pedaço de um mariola a quem hei de ensinar por causa de ninguém doulhe eu uma rodada se não por tua causa Por causa dela atalhou o rapaz tinha que ver Ela há de lhe dar bom pago tão bom como lhe deu a cigana Mas nunca lhe hei de dar acudiu Mariquinhas enfurecida com este insulto nunca lhe hei de dar o que lhe deu tua mãe Com estas últimas palavras o Leonardopataca desacoroçoou completamente que dilúvio de amargas recordações não fizeram tão poucas palavras cair sobre sua cabeça Espera saltrapilho146 espera que te ensino exclamou vermelho de cólera espera que te ensino E entrando repentinamente no quarto da sala saiu de lá armado com o espadim do uniforme e investiu para o filho Convém dizer que o espadim ia embainhado Não se ponha a perder por minha causa exclamou Mariquinhas agarrandoo pelas abas de um rodaque de chita que ele trazia vestido Era inútil porém esse medo de Mariquinhas porque o rapaz vendo que o negócio iase tornando feio tendolhe ficado um terror instintivo do pai depois daquele pontapé que nunca mais lhe saíra da memória tinhase posto ao fresco na rua fechando a rótula sobre si Ah maroto disse ainda o Leonardopataca que te havia desancar O Leonardo que fugia por um lado e a comadre que entrava por outro pois estivera ausente durante toda a cena Apenas foi largando a mantilha e que viu os dois atores que tinham ficado em cena ainda nas posições do último quadro tratou logo de indagar qual fora o drama que se acabava de representar Ora foi uma das costumadas do afilhado dos seus amores respondeu Mariquinhas ainda não sossegada Porém ialhe saindo cara desta vez acudiu Leonardopataca Pois deveras atalhou a comadre indignada pois deveras o compadre estava armado de espada para dar no rapaz Olá que levava tão duro como osso Mas então por quê quantas mortes fez ele de uma vez onde é que pôs fogo na casa Triste coisa é um filho sem mãe Aposto que se eu cá estivesse nada havia de suceder Sim respondeu Mariquinhas porque logo havia de tomar as dores por ele segundo é seu costume Aí está muitos filhos têm mãe e entretanto elas servemlhes para isto tomam as dores por outros e deixamnos de banda Qual histórias é que tudo leva seu bocado de mau caminho Oh senhora atalhou Leonardopataca se isto vai assim não há um momento de sossego nesta casa acabada uma começa outra o que não há de dizer esta vizinhança Olhem que isto aqui é casa de um oficial de justiça Mas enfim disse a comadre onde está o rapaz onde é que o enterraram Saiu por ali desencabrestado e tomara que cá não volte Ora está bonito Oh mas isto não pode ser assim correrem com o rapaz de casa para fora Ele não é nenhum desgraçado pois sempre tem o que lhe deixou seu padrinho Essas e outras é que o puseram a perder Sim metamlhe fumaça de rico na cabeça e hão de ver no que dá Coitado disse lamentando a comadre aquele nasceu com má sina E tomando de novo a mantilha saiu com as lágrimas nos olhos em procura de Leonardo Ao sair escoravamna à janela três ou quatro vizinhas Então o que é que fizeram ao moço Que foi isso senhora comadre Ele passou por aqui pondo 10 léguas por hora Deixeme deixeme respondeu a comadre que isto é os meus pecados capítulo xxx Remédio aos males O pobre rapaz saíra como dissemos pela porta fora e caminhando apressadamente olhava de vez em quando para trás pois lhe parecia ver ainda enristado contra ele o espadim com que o ameaçara seu pai que parecia com ele querer acabar a obra que com um pontapé começara Andou a bom andar por largo tempo e foi dar consigo lá para as bandas dos Cajueiros cansado ofegante sentouse sobre uma pedra e quem o visse com ar tristonho e pensativo julgaria talvez que ele cismava na sua posição e no caminho que havia tomar Pois enganavase redondamente quem tal julgasse ele pensava em coisa muito mais agradável pensava em Luisinha verdade seja que pensando nela não podia absterse de ver surgir diante dos olhos o terrível José Manuel e isto explicava certos movimentos de impaciência que de vez em quando se lhe podiam observar Tinha gasto largo tempo nesta meditação quando foi repentinamente acordado por umas poucas de gargalhadas partidas detrás de umas moitas vizinhas Estremeceu da cabeça aos pés pareceulhe que lhe tinham lido os pensamentos que lhe passavam pela mente e que se riam dele Voltouse nada viu guiado por um rumor que ouvia começou a procurar e sem grande trabalho viu atrás de umas moitas um pouco altas uns poucos de rapazes e raparigas que assentados em uma esteira entre os restos de um jantar debruçavamse curiosos sobre dois parceiros que com um baralho de cartas amarrotado e sujo desencabeçavam uma intrincada partida de bisca As gargalhadas que ouvira há pouco tinham sido a conseqüência de um capote que um deles acabava de levar À vista daqueles restos de um jantar que se não parecia ter sido muito delicado parecia ao menos ter sido abundante fezlhe lembrar que saíra de casa na ocasião de pôrse a mesa e o estômago deulhe então umas formidáveis badaladas Quis entretanto voltar porque não se queria meter em festa alheia quando levantando um dos jogadores a cabeça conheceu nele um seu antigo camarada o menino que fora com ele sacristão da Sé Ainda que apesar disso se quisesse retirar já era tarde porque com o movimento que fizera o jogador dando com ele o havia também conhecido Olá Leonardo por que cargadágua vieste parar a estas alturas Pensei que te tinha já o diabo lambido os ossos pois depois daquele maldito dia em que nos vimos em pancas por causa do mestre de cerimônias nunca mais te pus a vista em cima Leonardo chegouse ao rancho e trocados os cumprimentos com o seu antigo camarada foi convidado a servirse de alguma coisa do que ainda havia Quis fazer cerimônia mas não estava em circunstâncias disso uma das moças serviuo e enquanto continuava a bisca comeu ele a barrete fora Escorropicha essa garrafa que aí resta disselhe o amigo e vê se o vinho tem o mesmo gosto daquele que em outro tempo escorropichávamos juntos das galhetas da Sé com desespero de meu pai e furor do mestre de cerimônias Quando Leonardo acabou de comer acabaram também os dois parceiros de jogar e então Leonardo chamou o amigo à parte e perguntou lhe Então que gente é esta com que te achas aqui de súcia É minha gente Tua gente Sim pois não vês aquela moça morena que ali está Sim e então Ora Pois tu casaste Não mas que tem isso Ah estás de moça E tu Eu ora nem te digo morreu meu padrinho Sim ouvi dizer Fui para a casa de meu pai e de repente hoje mesmo brigo lá com a cuja dele ele corre de espada atrás de mim e eu safome Parei ali adiante e as gargalhadas que vocês aqui davam Sei do resto E agora tu não tens para onde ir Homem eu ia ver Ver o quê Ver por aí Por aí onde Nem mesmo eu sei E desataram os dois a rir Quando temos apenas 18 a 20 anos sobre os ombros o que é um peso ainda muito leve desprezamos o passado rimo nos do presente e entregamonos descuidados a essa confiança cega no dia de amanhã que é o melhor apanágio da mocidade Sabes que mais continuou o amigo do Leonardo vem conosco e não te hás de arrepender Mas com vocês para onde Para onde Sem dúvida algum partido melhor queres escolher queres fazer cerimônias Começava a cair a noite Vamos levantar a súcia minha gente disse um dos convivas Sim vamos Nada inda não Vidinha vai cantar uma modinha primeiro Sim sim uma modinha primeiro aquela Se os meus suspiros pudessem Não essa não cante antes aquela Quando as glórias que eu gozei Vamos lá decidam respondeu Vidinha147 Vidinha era uma mulatinha de 18 a 20 anos de altura regular ombros largos peito levantado cintura fina e pés pequeninos tinha os olhos muito pretos e muito vivos os beiços148 grossos e úmidos os dentes alvíssimos tinha a fala um pouco descansada e acompanhava cada frase que proferia com uma risada pouco estridente porém prolongada e sonora e com um certo caído de cabeça para trás talvez gracioso se não tivesse muito de afetado Assentouse finalmente que ela cantaria a modinha Se os meus suspiros pudessem Tomou Vidinha uma viola e cantou acompanhandose em uma toada insípida hoje porém de grande aceitação naquele tempo o seguinte Se os meus suspiros pudessem Aos teus ouvidos chegar Verias que uma paixão Tem poder de assassinar Não são do zelo Os meus queixumes Nem do ciúme Abrasador São das saudades Que me atormentam Na dura ausência De meu amor O Leonardo que talvez hereditariamente tinha queda para aquelas coisas ouviu boquiaberto a modinha e tal impressão lhe causou que depois disso nunca mais tirou os olhos de cima da cantora A modinha foi aplaudida como cumpria Levantaramse então arrumaram tudo o que tinham levado em cestos e puseramse a caminho acompanhando o Leonardo o farrancho149 Chegaram todos depois de longo caminhar e quando já brilhava nos céus um desses luares magníficos que fazem no Rio de Janeiro a uma casa da rua da Vala naqueles tempos uma noite de luar era uma coisa muito aproveitada se bem que não fosse muito rara ninguém ficava dentro de casa os que não saíam a passeio sentavamse em esteiras às portas e ali passavam longas horas em descantes em ceias em conversas e muitos passavam mesmo aí a noite inteira dormindo ao relento Quanto a medo de quer que fosse contra a segurança individual não o tinham pois descansavam tranqüilos na atividade do major Vidigal e quanto a cuidados sanitários e higiênicos isso é invenção moderna das juntas e câmaras que faria dar boas risadas de incredulidade e talvez de escárnio até ao próprio físicomor se aparecesse então Nem mesmo as zamparinas tinham sido capazes despertar semelhantes idéias150 Como os nossos conhecidos já tinham dado um grande passeio adotaram o expediente das esteiras à porta e continuaram assim pela noite em diante a súcia em que haviam gasto o dia pois aquilo que Leonardo vira nos Cajueiros com que também tomara parte era o final de uma patuscada que havia começado ao amanhecer de uma dessas romarias consagradas ao prazer que eram tão comuns e tão estimadas naquele tempo Agora devemos dar ao leitor conhecimento da nova gente no meio da qual se acha o nosso Leonardo Se nos pudéssemos socorrer aqui do amigo José Manuel sem dúvida nos desfolharia ele toda a árvore genealógica dessa família pois o era a quem o amigo do Leonardo chamava a sua gente porém contentemse os leitores com o fato sem indagar as origens Saibam pois que a família era composta de duas irmãs ambas viúvas ou que pelo menos diziam sêlo uma com três filhas e outra com três filhos 151 uma mais velha e outra mais moça passando porém qualquer das duas dos seus quarenta e tantos ambas gordas e excessivamente parecidas Os três filhos da primeira eram três formidáveis rapagões de 20 anos para cima empregados todos no Trem as três filhas da segunda eram três raparigas desempenadas orçando pela mesma idade dos primos e bonitas cada uma no seu gênero uma delas já os leitores conhecem pois é Vidinha a cantora de modinha que era solteira como uma de suas irmãs a última era também solteira porém não como estas duas O amigo do Leonardo que explique o que isso quer dizer e explicando dará também a conhecer o que era ele próprio na família Os mais que se achavam presentes eram amigos pela maior parte vizinhos que se reuniam para aquelas súcias que eram tradicionais na família Quando chegaram à casa o amigo do Leonardo tomou as duas velhas de parte e começou a conversar com elas sem dúvida a respeito do Leonardo pois que olhavam todos três de vez em quando para ele e mesmo quem tivesse o ouvido atilado teria escutado as velhas dizerem Coitado do moço Ora vejam que pai de más entranhas A outro qualquer que tivesse mais idade ou antes falando claro mais juízo e outra educação envergonharseia talvez muito de acharse na posição em que se achava o Leonardo porém ele nem nisso pensava e o que é mais nem mais pensava naquilo que até então lhe não saía da cabeça isto é Luisinha de um lado e José Manuel do outro agora não via senão os olhos negros e brilhantes e os alvos dentes de Vidinha não ouvia senão o eco daquela terna modinha e não pensava mais senão em quem tinha olhos tão lindos e tão lindos dentes e cantava tão bem modinhas Estava pois embebido num êxtase contemplativo No mais pensaria quando lhe restasse tempo Mal se haviam todos sentado em uma larga esteira junto à soleira da porta sobre a calçada o Leonardo propôs logo que se cantasse uma modinha Qual respondeu Vidinha acompanhando este qual da sua costumada risada estou já tão cansada que nem posso Ora ora disseram umas poucas de vozes Além do costume das risadas tinha Vidinha um outro costume e era o de começar sempre tudo que tinha a dizer por um qual muito acentuado respondeu ainda portanto Qual pois se eu também já cantei tudo quanto sei Qual meu Deus nem eu posso mais Ainda não cantou a minha favorita disse um dos presentes Nem a minha disse outro Eu também acrescentou outro ainda não lhe pedi aquela cá do peito Qual meu Deus onde é que isto vai parar Ora mana não se faça de boa Ai criatura disse uma das velhas quereis que vos reze um responso para cantardes uma modinha Leonardo vendo a sua causa advogada por tantas vozes conservouse calado Tentados mais alguns meios e feitas mais algumas negaças Vidinha decidiuse a cantar e tomando a viola cantou segundo a indicação de uma das velhas o seguinte Duros ferros me prenderam No momento de te ver Agora quero quebrálos É tarde não pode ser Este último passo acabou de desorientar completamente o Leonardo ainda bem não tinham expirado as últimas notas do canto e já passando lhe rápido pela mente um turbilhão de idéias admiravase ele de como é que havia podido inclinarse por um só instante a Luisinha menina sensaborona e esquisita quando haviam no mundo mulheres como Vidinha Decididamente estava apaixonado por esta última O leitor não se deve admirar disto pois não temos cessado de repetir lhe que o Leonardo herdara de seu pai aquela grande cópia de amoroso fluido que era a sua principal característica Com esta herança parece porém que tinha ele tido também uma outra e era a de lhe sobrevir sempre uma contrariedade em casos semelhantes José Manuel fora o primeiro vejamos agora quem era ou antes quem eram a segunda Se o leitor pensou no que há pouco dissemos que naquela família haviam três primas e três primos e se agora acrescentarmos que moravam todos juntos deve ter cismado alguma coisa a respeito Três primos e três primas morando na mesma casa todos moços não há nada mais natural um primo para cada prima e está tudo arranjado Cumpre porém ainda observar que o amigo do Leonardo tomara conta de uma das primas e que deste modo vinha a haver três primos para duas primas isto é o excesso de um primo À vista disto o negócio já se torna mais complicado Pois para encurtar razão saibase que haviam dois primos pretendentes a uma só prima e essa era Vidinha a mais bonita de todas saibase mais que um era atendido e outro desprezado logo o amigo Leonardo terá desta vez de lutar com duas contrariedades em vez de uma Mas por ora de nada sabia ele e entregavase tranqüilo às suas emoções sem se lembrar do que qualquer se lembraria que entre primos e primas há assim um certo direito mútuo em negócio de amor que muito prejudica a qualquer pretendente externo Gastaram grande parte da noite ali sentados e trataram de recolherse já muito tarde O amigo do Leonardo a quem daqui em diante trataremos pelo seu próprio nome de Tomás com o apelido da Sé ambos herdados de seu pai declarou que o seu amigo ficava ali por aquela noite por já ser muito tarde quis assim pouparlhe um vexame e mostrou nisto ser bom amigo Agora que o nosso Leonardo está instalado em quartel seguro vamos ocuparnos de mais alguma coisa de importante que havíamos deixado suspensa capítulo xxxi José Manuel triunfa A comadre correra toda a cidade e em parte alguma encontrara o Leonardo enquanto cansavase assim a procurálo estava ele em porto seguro e descansado mirandose nos olhos de Vidinha regalandose a ouvir modinhas como sabem os leitores sem se lembrar do que ia pelo mundo A pobre mulher depois de muito cansada foi ter à casa de D Maria e quando já era noite fechada Quando ela entrava saía o mestredereza que acabava de dar a sua lição às crias de casa A comadre a152 algum tempo que andava já desconfiada do mestredereza combinando o que por aí se dizia do crédito dele com certas coisas que tivera ocasião de presenciar estava quase não quase a concluir que era ele emissário de José Manuel junto à corte de D Maria Não gostou portanto do encontro e doeulhe o cabelo vêlo sair àquela hora pois que de ordinário as lições não se demoravam até tão tarde e para metêlo à bulha disselhe A lição hoje foi comprida devoto as raparigas parece que gostam mais da lambetice do que da reza Não respondeu o velho com sua voz fanhosa elas não vão mal empacam em alguns lugares mas sempre vão indo bem sabe também que sempre trago comigo o santo remédio E afagou o cabo da palmatória com que sempre andava armado Ah então esteve o devoto de conversa gosta também de dar à língua Não desgosto mas também não digo senão aquilo que sei isto é aquilo que ouço os outros gastam o seu tempo a ver e a ouvir eu como não posso senão ouvir emprego a falar o que os mais empregam a ver falo e falo muito mas que quer se me sobra tempo para isso e demais bem sabe que não é trabalho que canse Meus pais eram Algarves e eu não quero desmentir a minha paternidade Então já sei que hoje desenterraramse mortos e enterramse vivos pois eu não posso fazer outro tanto porque vou aqui muito e muito renegada de minha vida Se o devoto como é homem que muito gira por toda esta cidade souber por aí notícias de meu afilhado Leonardo queira vir darme parte pois saiunos ele hoje de casa lá por causa de umas histórias em que tinha razões é verdade e não sei por onde andará dando com os ossos Ora isto fica por minha conta não há nada mais fácil do que dar com ele E aqui terminou esta conversa que tinha lugar na porta da rua e com a qual não ficara a comadre muito contente D Maria que ouvira tudo veio ao encontro da comadre e foilhe logo dizendo antes de darlhe tempo de tirar a mantilha Então já o rapaz não está em casa Senhora aquilo é gênio nasceu com ele e com ele há de ir à sepultura Bem me diziam o que ele era e apesar do seu ar sonso nunca lhe fiz fé Adeus que me está a senhora a pôr culpas em quem não as tem o menino desta vez tem toda a razão Ora histórias da vida isso diz você porque o estima como se fosse sua mãe mas vá com esta que eu lhe digo os rapazes de agora andam de cabeça levantada mas o defunto padrinho Deus lhe fale nalma foi o mesmo que teve culpa de tudo isso com aquelas fumaças de Coimbra que lhe meteu na cabeça Mas senhora de Deus se o bruto do pai até chegou a corrêlo de espada na mão Que tal não faria ele mas que tinha isso o pai não o havia esquartejar por certo que eu bem lhe conheço o gênio aquilo era raiva e havia de passar devia ele sujeitarse pois sempre é seu pai Com a Virgem Santa pois se tudo isso foi por uma coisa de nada por causa de uma almofada de renda Isto é coisa em que se creia E agora para onde é que há de ir aquele coitado Há de estar por aí metido em algum fado de ciganos não se lembra do que ele fez quando o padrinho era vivo Ora criançadas para que falar nisso Este diálogo ia continuando interminável sobre o mesmo assunto quando D Maria mudando repentinamente de conversa disse à comadre Ora é verdade sentese para cá que temos contas que ajustar Contas E muito compridas Começo por dizer acrescentou D Maria que não parecia estar nesta ocasião de muito bom humor começo por dizerlhe mesmo na bochecha que quando for à confissão este ano trate de desobrigarse de um grande pecado que cometeu E eu que já não tenho poucos mas então o que é É um aleive senhora um aleive muito grande que levantou a pessoa que tal não merecia A comadre não precisou de mais nada para conhecer onde é que tudo aquilo ia parar o aleive mais moderno de que a acusava a sua consciência bem sabia ela qual era Começou a ver tudo claro como o dia viu José Manuel justificado completamente aos olhos de D Maria a respeito da história do roubo da moça no Oratório de Pedra e viu também como medianeiro dessa justificação o cego mestredereza Ficou pois visivelmente incomodada volviase de um para outro lado como se estivesse cheia de espinhos a banquinha em que estava sentada e teve um forte acesso de tosse quando D Maria acabou de pronunciar aquelas últimas palavras Tudo quanto me disse a respeito de José Manuel naquela história do roubo da moça continuou D Maria fazendose vermelha o que era nela mau sinal é falso e muito falso Sei isto de parte muito certa Novo acesso de tosse acometeu a comadre Pois olhe prosseguiu D Maria tinhalhe eu dado todo o crédito tanto que havia rompido por um excesso com o pobre do homem mas não caio noutra esta me serviu de emenda A comadre viu que o vento se lhe ia tornando absolutamente contrário compreendeu que D Maria estava muito bem informada e que inútil seria qualquer sustentação que pretendesse fazer de tudo quanto havia avançado isso só serviria para agravarlhe a posição Forjou pois repentinamente um novo plano e disse Não me dá nada de novo senhora sei muito bem de tudo o homem está nesse negócio como Pilatos no Credo Mas lembrese que me havia dito que tinha visto com seus próprios olhos Ah senhora era o diabo por ele nunca vi coisa assim tão parecida Outro dia porém soube de tudo e agora estou arrependida A comadre não sabia de coisa alguma o que queria era apanhar de D Maria o que havia chegado ao seu conhecimento Mandei por isso chamar o pobre homem continuou D Maria que de ofendido que estava com o modo por que eu o tratava custou muito a vir e abrime aqui com ele E uma coisa lhe digo é que a comadre não está bem no negócio ele expôsme certas coisas a que eu enfim não quis dar crédito Pois então a senhora disselhe que eu é que Não fui eu quem lhe disse ele já o sabia e não era possível negar lho Foi então que ele me quis abrir os olhos sobre certas coisas A comadre que via todo o caldo entornado naqueles certas coisas tratava de desviar deles a conversação fazendo que não dera atenção a essas últimas palavras Mas então perguntou por quem foi que soube como tinha sido o negócio quero ver se combina cá com o que sei Ainda há pouco acabou de sair daqui quem me pôs o negócio todo em pratos limpos Ah disse a comadre E mordeu os beiços fazendo um gesto que queria dizer nunca me enganei D Maria prosseguiu contando que tendo falado em semelhante negócio ao mestredereza ele lhe havia negado tudo quanto ela lhe dissera a respeito de José Manuel que muito tempo lutara com o velho para que ele lhe dissesse o que sabia a respeito e em que fundava a denegação que fazia que finalmente depois de grande resistência tinhalhe ele trazido à casa mesmo no dia antecedente o pai da moça que tudo confessara declarando até o nome da pessoa com quem se achava sua filha que ele já sabia e com quem tinha feito as pazes É exatamente o que eu sabia disse a comadre no fim da narração foi tudo assim mesmo Veja senhora a que está sujeita a gente nesta vida a levantar falsos aos mais Agora informemos ao leitor que tudo que se acabava de passar tinha sido com efeito obra do mestredereza Pouco a pouco se tinha instruído do que se passava em casa de D Maria a respeito do seu cliente José Manuel tinha conseguido saber quem tinha armado a intriga indagou também o que se passava em casa do Leonardopataca e como lá se falava um pouco alto a respeito das pretensões do Leonardo combinando umas coisas com outras chegara à conclusão certíssima daquilo que com efeito se passara D Maria pareceu dar crédito ao arrependimento da comadre e começouselhe a aplacar o humor um pouco desabrido em que se achava Voltaram à questão da saída do Leonardo de casa e desta vez já D Maria não se mostrou tão inflexível para com o rapaz Entretanto à comadre não lhe saíram da cabeça aquelas palavras de D Maria abriume os olhos sobre certas coisas e depois que viu D Maria mais apaziguada tentou chamar de novo a conversa para esse ponto e como que pedir explicações Ela previa a significação daquelas palavras sem dúvida nenhuma que se referiam às suas pretensões ou às de seu afilhado sobre Luisinha porém queria saber as cores com que esse negócio tinha sido pintado a D Maria por José Manuel Isso foilhe porém fatal porque soube o que lhe não foi nada agradável que o negócio estava muito mal parado a respeito do seu afilhado e pelo contrário muito adiantado a favor do seu adversário D Maria depois de declarar que José Manuel se tinha queixado da comadre atribuindolhe tudo que se havia passado que não era mais do que uma intriga urdida com o fim de o apartar de sua casa porque tinham sobre ele caído suspeitas que confessava justas acrescentou finalmente que José Manuel completamente justificado graças à intervenção do mestredereza acabara por lhe dar a entender alguma coisa a respeito de Luisinha o que D Maria confessou não lhe ter sido totalmente desagradável porque enfim segundo alegava José Manuel era um homem sisudo e de juízo tinha corrido mundo e não era nenhum criançola esta palavra doeu à comadre que não fosse capaz de tratar bem de uma moça A comadre descoroçoou completamente com estas últimas declarações porém o que fazer na ocasião Ela mesma tinha ainda há pouco confessado o risco que se está a cada momento de se ser injusto para com o próximo e não podia sem risco aventurar pelo menos naquela ocasião alguma coisa contra José Manuel tanto mais que tão mal se havia salvado da primeira intriga que armara Contentouse pois com repetir uma observação que D Maria mesmo lhe havia feito há pouco tempo e disse referindose a Luisinha Gente pois aquela criança já está para essas coisas Sim respondeu D Maria está ainda verdezinha mas também isso não é sangria desatada A comadre respirou pois viu que ainda havia tempo a ganhar capítulo xxxii O agregado Passaramse assim algumas semanas Leonardo depois de acabadas todas as cerimônias foi declarado agregado à casa de Tomás da Sé e aí continuou convenientemente arranjado Ninguém se admire da facilidade com que se faziam semelhantes coisas no tempo em que se passavam os fatos que vamos narrando nada havia mais comum do que ter cada casa um dois e às vezes mais agregados Em certas casas os agregados eram muito úteis porque a família tirava grande proveito de seus serviços e já tivemos ocasião de dar exemplo disso quando contamos a história do finado padrinho de Leonardo outras vezes porém e estas eram em maior número o agregado refinado vadio era uma verdadeira parasita que se prendia à árvore familiar que lhe participava da seiva sem ajudála a dar os frutos e o que é mais ainda chegava mesmo a dar cabo dela E o caso é que apesar de tudo se na primeira hipótese o esmagavam com o peso de mil exigências se lhe batiam a cada passo com os favores na cara se o filho mais velho da casa por exemplo o tomava por seu divertimento e à menor e mais justa queixa saltavamlhe os pais em cima tomando o partido de seu filho no segundo aturavam quanto desconcerto havia com paciência de mártir o agregado tornavase quase rei em casa punha dispunha castigava os escravos ralhava com os filhos intervinha enfim nos mais particulares negócios Em qual dos dois casos estava ou viria estar em breve o nosso amigo Leonardo O leitor que o decida pelo que se vai passar Principiemos por declarar que as duas velhas irmãs tinham concebido desde o primeiro momento uma decidida simpatia por ele e era esse o único ponto por onde o podemos julgar um pouco feliz se a cada passo encontrava contrariedades e antipatias também lhe não faltavam por contrabalanço simpatias e favores Isto já era meio caminho andado para qualquer projeto que ele formasse qualquer intenção que tivesse ou desejo que se lhe despertasse Mas notese que para não falhar a lei das compensações que pesava constantemente sobre ele logo o projeto a intenção e desejo que teve sucedeu ser a respeito de uma coisa que já tinha despertado igual projeto intenção e desejo em duas outras pessoas o que equivale a dizerse como já o fizemos que tinha ele de lutar com duas dificuldades Vidinha era uma rapariga que tinha tanto de bonita como de movediça e leve um soprozinho por brando que fosse a fazia voar outro de igual natureza a fazia revoar e voava e revoava na direção de quantos sopros por ela passassem isto quer dizer em linguagem chã e despida dos trejeitos da retórica que ela era uma formidável namoradeira como hoje se diz para não dizer lambeta como se dizia naquele tempo Portanto não foram de modo algum mal recebidas as primeiras finezas do Leonardo que desta vez se tornou muito mais desembaraçado quer porque já o negócio com Luisinha o tivesse desasnado quer porque agora fosse a paixão mais forte embora esta última hipótese vá de encontro à opinião dos ultraromânticos que põem todos os bofes pela boca pelo tal primeiro amor no exemplo que nos dá o Leonardo aprendam o quanto ele tem de duradouro Se um dos primos de Vidinha que dissemos ser o atendido naquela ocasião teve motivo para levantarse contra o Leonardo como seu rival o outro primo que dissemos ser o desatendido teve dobrada razão para isso porque além do irmão apresentavase o Leonardo como segundo concorrente e o furor de quem se defende contra dois é ou deve ser sem dúvida muito maior do que o de quem se defende contra um Declarouse portanto desde que começaram a aparecer os sintomas do quer que fosse entre Vidinha e o nosso hóspede guerra de dois contra um ou de um contra dois A princípio foi ela surda e muda era guerra de olhares de gestos de desfeitas de más caras de maus modos de uns para com os outros depois seguindo o adiantamento do Leonardo passou a ditérios a chasques a remoques Um dia finalmente desandou em descompostura cerrada em ameaças do tamanho da torre de Babel e foi causa disto ter um dos primos pilhado o feliz Leonardo em flagrante gozo de uma primícia amorosa um abraço que no quintal trocava ele com Vidinha Aí está minha tia dissera enfurecido o rapaz dirigindose à mãe de Vidinha aí está o lucro que se tira de meterse para dentro de casa um par de pernas que não pertence à família Onde é onde é que está pegando fogo disse a velha em tom de escárnio supondo ser alguma asneira do rapaz que era em tudo muito exagerado Fogo replicou este se ali pegar fogo não haverá água que o apague e olhe o que lhe digo se não está pegando fogo estáse ajuntando lenha para isso Vidinha que vinha chegando nessa ocasião tomou a palavra e falou durante meia hora sem interrupção soltando contra os dois primos pois que o outro já tinha também intervindo uma tremenda catilinária em que a palavra qual foi repetida enorme número de vezes Leonardo teve também de defenderse e falou pelos cotovelos As duas velhas acompanharam os quatro seguidas das outras duas moças que metiam também de vez em quando a sua colherada Seria inútil a tentativa de querermos repetir as palavras textuais de cada um dos faladores isso seria coisa pouco mais ou menos semelhante a querer contarse numa tempestade os pingos de chuva que caem Só quem já teve ocasião de assistir pode bem avaliar o que era e talvez ainda é uma dessas brigas no interior de uma família Todos falam a um tempo esforçandose cada um por falar mais alto do que todos os outros ninguém parece atender as desculpas que se apresentam nem as recriminações que se fazem e entretanto de minuto em minuto cada qual tomando mais calor se julga dobradamente ofendido as juras se cruzam as ameaças se chocam não fica no dicionário termozinho de escolha que não saia à frente umas questões trazem outras estas ainda outras recorrese às ofensas passadas presentes e futuras para fazerse carga aos adversários Tudo enfim se diz e nada se consegue a briga dura muitas horas ao termo dos quais os contendores fatigatis sed non saciatis abandonam o campo ficando mais encarniçados uns contra os outros do que o estavam a princípio E se por acaso tocando já em retirada algum ousa ainda soltar uma derradeira imprecação pega de novo a coisa e dura ainda bom pedaço As mais das vezes fica tudo em palavras Desta vez porém não sucedeu assim um dos primos que era esquentadete avançou para o Leonardo depois de lhe ter mandado como batedor uma grande injúria e deulhe dois safanões agarrandoo pela gola da camisa Leonardo que neste mundo só tinha medo do pai reagiu contra o agressor as duas velhas e Vidinha tentando apartálos não faziam mais do que romperlhes a roupa e aumentarlhes a raiva as demais pessoas ocupavamse em bater nas paredes e chamar os vizinhos Lutaram os dois por algum tempo sem que disso resultasse acidente grave para nenhum deles e afinal apartaramse Leonardo apenas se viu livre do seu adversário foi querendo pôrse no andar da rua pesava sobre o infeliz desde criança uma espécie de sina de Judeu Errante As velhas que em todo o barulho tinham tomado o partido dele não consentiram porém nisso alegaram que estavam em sua casa e podiam mandar como quisessem Leonardo insistiu apesar disso e apesar dos rogos de Vidinha porém no momento em que tentava abrir a porta da rua entrou por ela a comadre Ora graças que o encontro senhor doido de pedras O Leonardo recuou dois passos naquele momento assim como lhe aconteceu desde que saiu de casa de seu pai nem lhe passava pela idéia que tivesse no mundo uma madrinha um pai ou qualquer parente que fosse Houve em todos um movimento de admiração e curiosidade pois ninguém na casa conhecia a comadre Tantas coisas havia feito a boa mulher que afinal soubera do ninho a que se acolhera o afilhado e imediatamente para lá se dirigira Tendo entrado e dito aquelas primeiras palavras queria logo depois seguir com uma grande exortação ao sobrinho quando tendo visto as duas velhas assentou que era melhor dirigirse a elas em primeiro lugar Com efeito dirigiuse e entraram as três em conferência capítulo xxxiii Malsinação As três velhas conversaram por largo tempo não porque muitas coisas se tivessem a dizer a respeito do que se acabava de passar porém porque a comadre remontando ao mais remoto passado entendera que para dizer que muito se interessava pela volta do afilhado para casa era mister contar desde sua origem a vida inteira dele a de sua mãe de seu pai e a sua própria que fora mais comprida de todas e porque as duas velhas entenderam que para dizerem que o Leonardo estava ali muito bem e que não consentiriam que ele saísse entenderam ser preciso fazer o que havia feito a comadre contar a sua vida e de toda a família desde as eras primitivas Ora como todas essas histórias contadas de parte a parte eram cheias de episódios já sentimentais e tocantes já alegres aconteceu que entre muita gargalhada correram também algumas lágrimas durante a conversação Não há nada que mais sirva para fazer nascer e firmar a amizade e mesmo a intimidade do que seja o riso e as lágrimas aqueles que se riram e principalmente aqueles que uma vez choraram juntos têm muita facilidade em fazeremse amigos Com efeito no fim da conversa as três velhas estimavamse mutuamente de uma maneira incrível Se esta facilidade de expansão de criação repentina de amizade não fosse acompanhada da grande facilidade153 de rompimentos e das intrigas seria uma das grandes virtudes daquele tempo Porém as simpatias que se criavam em uma hora de conversa transformavamse em ódio num minuto de desavença Enquanto as velhas conversavam os contendores acalmaramse passou a tormenta e se tudo não ficou logo acabado ficou pelo menos esquecido por algum tempo Leonardo achavase já disposto a atender às súplicas de Vidinha e das outras moças que o não queriam por modo algum fora de casa os dois rivais derrotados pareciam resignarse Quando terminou a conferência das três a comadre entendeu que era chegado o momento de começar a pregação ao Leonardo e o fez nestes termos Rapaz dos trezentos demos valhamte os serafins tu tens nessa cabeça pedras em vez de miolos o sol não cobre criatura mais renegada do que tu És um viramundo andas feito um valdevinos sem eira nem beira nem ramo de figueira sem ofício nem benefício sendo pesado a todos nesta vida Se é cá conosco que fala acudiu uma das velhas deixeo estar aonde está que está muito bem Qual senhora pois se vem levantar poeira na casa alheia é um galo de brigas Ora isso é lá coisa entre rapazes e raparigas deixálos que eles se arranjarão redargüiu a velha Ingenuidade infantil das velhas daquele tempo A comadre ia prosseguir porém sendo a cada passo interrompida tomou por seu barato dar a coisa por finda Retirouse ficando convencionado que Leonardo permaneceria onde estava Vidinha ficou contentíssima com semelhante resultado os primos porém fizeram má cara porque tal não esperavam e era isso sobretudo o que os acalmava um pouco Desde porém que viram que tudo ia continuar no mesmo pé renasceulhes o despeito Atiraram algumas indiretas com as quais ia tudo pegando fogo novamente porém contiveramse ainda um deles chamou o outro em particular e começaram também por seu turno a conferenciar porém em segredo Não havia nada mais natural o inimigo era comum juntavamse para atacálo depois que ele fosse derrotado a questão se decidiria então entre os dois Depois desta última conferência serenou tudo definitivamente cada qual recolheuse a seu posto e passaramse muitos dias em santa paz Durante esses dias mais se estreitaram os laços entre o Leonardo e Vidinha É sempre assim que sucede quereis que nos liguemos estreitamente a uma coisa Fazeinos sofrer por ela Os dois tinham sofrido um pelo outro e era isto uma forte razão para se amarem cada vez mais A comadre vinha regularmente ver o afilhado e visitar suas novas amigas Tudo parecia enfim nos seus eixos naturais porém os dois primos tramavam e tramavam largamente Ninguém porém atinava com o que seria Leonardo passava vida completa de vadio metido em casa todo o santo dia sem lhe dar o menor abalo o que se passava lá fora pelo mundo o seu mundo consistia unicamente nos olhos nos sorrisos e nos requebros de Vidinha Um dia forjaram uma patuscada semelhante à que dera origem ao conhecimento do Leonardo com a família Deviam sair de madrugada para fora da cidade e passarem lá o dia Preparouse tudo cestos de comida esteiras e mais arranjos Vidinha mandou encordoar de novo sua viola avisaramse os convivas do costume À hora aprazada partiram Quem estivesse menos distraído pelo prazer da patuscada do que estava qualquer dos suciantes notaria que os dois primos deixavamse de vez em quando ficar atrás e cochichavam como se tramassem uma conspiração Ninguém porém dera atenção a semelhante coisa Chegaram ao lugar determinado ao romper do dia Apenas começavam a prepararse para o almoço viram surdir ninguém soube bem de onde a figura alta magra severa e sarcástica do nosso célebre major Vidigal Correu por todos um sinal de pouco contentamento exceto pelos primos que trocaram entre si um olhar de inteligência e de triunfo Os olhos de Vidinha dirigiramse instintivamente para Leonardo O major Vidigal deixou passar o primeiro momento de surpresa e depois sorrindose disse como costumava com sua voz descansada Não tenham medo de mim que não sou nenhum papacrianças nem eu venho desmanchar prazeres de ninguém Quero só saber quem é aqui o amigo Leonardo Vidinha fez logo cara de choro Leonardo levantouse sem saber como e disse todo trêmulo Sou eu Ora vejam respondeu o Vidigal em tom de mofa eu não sabia Pois meus amigos não se assustem que o caso não foi para tanto um súcio de menos numa patuscada não faz falta nenhuma Este amigo vai conosco Se ele puder voltará em breve mas creio que já não chegará a tempo para acabar a patuscada Qual meu Deus mas por que é então isto que mal é que ele fez Ele não fez nem faz nada mas é mesmo por não fazer nada que isto lhe sucede Leva granadeiro E um dos granadeiros com que viera o major acompanhado foi tratando de conduzir o Leonardo O Vidigal seguiuos tranqüilamente sem alterar o passo e dizendo polidamente Adeus minha gente Vidinha desatou a chorar exclamando Foi malsinação Foi malsinação repetiram todos menos os dois primos A súcia levantouse capítulo xxxiv Triunfo completo de José Manuel Era um sábado de tarde em casa de D Maria havia uma lufalufa imensa 154 andavam as crias e mais escravos de dentro para fora espanavase a sala arrumavamse as cadeiras corriase falavase gritavase A dona da casa trajava fora do ordinário um rico vestido de cassa da Índia bordado a fio de prata de corpinho muito curto e mangas de um volume enorme Seja dito de passagem que a prata do bordado estava já um tanto mareada e o mais do vestido um tanto encardido Trazia ainda D Maria um penteado de desmedida altura um formidável par de rodelas de crisólitas nas orelhas e dez ou doze anéis de diversos tamanhos e feitios nos dedos Luisinha trajava igualmente um vestido que qualquer menos entendido na matéria acharia ser filho legítimo do de sua tia trazia porém demais um toucado de plumas brancas na cabeça e um rosário de ouro na cintura Acabavam de sair as duas assim preparadas do quarto de vestir quando sentiuse rodar uma carruagem e parar na porta da casa Luisinha estremeceu D Maria levou o lenço aos olhos e tirouo em pouco tempo molhado de lágrimas Está aí a carruagem gritou uma das crias que estava de sentinela à janela A carruagem era um formidável um monstruoso maquinismo de couro balançandose pesadamente sobre quatro desmesuradas rodas e bem capaz de servir de armazém onde se guardasse a cômodo dois ou três destes nossos fiacres modernos155 Não parecia coisa muito nova e com mais 10 anos de vida poderia muito bem segundo Nicolau Tolentino156 entrar no número dos restos infelizes do terremoto157 Mal tinha este trem parado à porta quando sentiuse o rodar de outro que veio parar junto dele O que dissemos a respeito dos vestidos de D Maria e sua sobrinha pode perfeitamente aplicarse aos dois trens o segundo parecia filho legítimo do primeiro Do último que chegara apeou se José Manuel e entrou em casa de D Maria por quem foi recebido É inútil observar que a vizinhança estava toda à janela e observava todo aquele movimento extraordinário com olhos regalados pela mais desabrida curiosidade José Manuel trajava casaca de seda preta calções da mesma cor e fazenda trazia meias também pretas e sapatos de entrada baixa ornados com fivelas de prata espadim e chapéu de pasta Acompanhavamno dois amigos do mesmo teor José Manuel estava com um ar entre compungido e triunfante e desfaziase em mesuras para D Maria Depois de tudo isto quer ainda o leitor que lhe declaremos que a sobrinha de D Maria casavase naquela tarde com José Manuel Chegou o momento da partida Luisinha conduzida por D Maria que lhe ia servir de madrinha embarcou no tal pedaço da arca de Noé a que chamamos carruagem José Manuel acompanhado por quem lhe ia servir de padrinho fez outro tanto e partiram depressa para a igreja e fizeram bem em partir depressa porque se se demorassem alguns minutos corriam o risco de serem devorados pelos olhos dos vizinhos Apenas cessou a bulha do rodar das carruagens começaram estes últimos em conversa renhida que se resumia mais ou menos no seguinte Senhora dizia uma sujeita que morava junto de D Maria para outra que morava defronte o tal noivo poderá ser boa coisa mas não dou nada pela cara dele E a noiva respondia a outra arrenego também da lambisgóia E o filho do Leonardo ficou vendo estrelas Por força venceu este outro sujeito porque é um finório de contas Se a velha deixar tudo à sobrinha não é mau arranjo Decerto pois não sabe que o defunto marido dela era um homem que viajava para a Índia E assim continuaram até a volta das carruagens Agora devemos ao leitor algumas explicações a respeito do triunfo de José Manuel Depois das boas obras do mestredereza de que os leitores já foram informados José Manuel reabilitarase completamente junto de D Maria tornara a freqüentar a casa e foi pouco a pouco pondo barro à sua parede Um sucesso inesperado veio ajudálo com a maior eficácia O testamenteiro do finado irmão de D Maria do pai de Luisinha que já tinha tido com D Maria como talvez se lembrem os leitores uma demanda por causa desta última surdiu de repente com uma nova prebenda a respeito de uma pontinha de testamento e D Maria teve de entrar ainda com ele em uma luta judiciária Deuse ainda uma outra circunstância e foi o ter morrido a pouco tempo158 o procurador de D Maria José Manuel que soube disso ofereceuse para ser o procurador da causa Foi aceito e com tanto jeito arranjou tudo que em muito pouco tempo coisa que procurador nenhum teria feito venceu a demanda em favor de D Maria Ora os leitores hão de estar lembrados da mania que tinha D Maria por uma demandazinha atiravase a ela com vontade e tal era o empenho que empregava na mais insignificante questão judiciária que parecia ter em jogo sua vida em tais casos Daqui se poderá concluir a satisfação que teria ela no dia em que se achava vencedora e como se não julgaria obrigada a quem lhe proporcionasse a vitória José Manuel aproveitouse disto e no dia em que veio ler a D Maria a sentença final que resolvia a pendência em seu favor pediulhe a mão da sobrinha que lhe foi prometida Luisinha estava nessa ocasião em um daqueles períodos de abatimento que o isolamento e a falta de um objeto qualquer em que se descarregue uma porção de fluido amatório que lhes ferve no coração159 costumam produzir nos rapazes e principalmente nas raparigas160 que ainda marcham por aquela estrada florida que leva dos 13 aos 25 anos quando as oprime o isolamento Ora como sabem os leitores o Leonardo tinha abandonado a Luisinha e ela aceitou portanto indiferentemente a proposta de sua tia capítulo xxxv Escapula Deixemos agora os noivos gozarem tranqüilos da sua lua de mel deixemos D Maria desfazerse em carinhos e conselhos à sua sobrinha que recebia tudo indiferentemente e em atenções para com José Manuel cuja cabeça se tinha tornado repentinamente uma aritmética completa sendo toda algarismos cálculos multiplicações e voltemos a saber o que foi feito do Leonardo a quem deixamos na ocasião em que fora arrancado pelo Vidigal dos braços do amor e da folia O Vidigal tinhao posto diante de si ao lado de um granadeiro e marchava poucos passos atrás Enquanto caminhavam o granadeiro pretendeu darlhe conversa mas ele a nada respondia parecendo absorto em algum plano Quem estivesse muito atento como estava o esperto Vidigal notaria que algumas vezes o Leonardo parecia ainda que muito ligeiramente apressar o passo que outras vezes parecia demorálo que seu olhar e sua cabeça voltavamse de vez em quando quase imperceptivelmente para a esquerda e para a direita O Vidigal a quem nada disto escapava achava em todas estas ocasiões pretextos para dar sinais de si tossia pisava mais forte arrastava no chão o chapéu de sol com que sempre andava como quem queria dizer ao Leonardo respondendo aos seus pensamentos íntimos que parecia adivinhar Cuidado eu aqui estou E o Leonardo entendia tudo isto às mil maravilhas e contraía os lábios de raiva e de impaciência ele queria fugir porém o maldito major estava alerta Entretanto nem por isso abandonava o seu plano desconfiava que ia para a casa da guarda e pedia interiormente aos seus deuses que alongassem de muitas léguas as ruas que tinha de percorrer Quando via de longe uma esquina dizia consigo É agora quebro por ali fora e bato pernas Porém ao chegar perto da esquina o Vidigal achava alguma coisa que dizer ao granadeiro e passavase a esquina Se lhe aparecia à direita ou à esquerda um corredor aberto pensava consigo Embarafusto por ali adentro e sumome mas no momento em que ia tomar a última decisão parecialhe sentir a mão do Vidigal que o agarrava pela gola da jaqueta e esfriava Não eram os granadeiros que lhe metiam medo nunca em todos os seus planos de fuga contou uma só vez com eles mas nesses casos o Vidigal o cruel major era a quantidade constante de seus cálculos Ah se Deus lhe tivesse dado um olho na nuca para espreitar um momento de distração ao maldito diabo E enquanto tudo isto se passava o pobre rapaz suava ainda mais do que no dia em que fez a primeira declaração de amor a Luisinha só havia na sua vida um transe a que ele assemelhava o em que se achava naquela ocasião era o que se havia passado quando criança naquele meio segundo que ele levara a percorrer o espaço nas asas do tremendo pontapé que lhe dera seu pai Repentinamente uma circunstância veio favorecêlo não sabemos por que causa ouviuse um grande alarido na rua gritos assovios e carreiras Leonardo teve uma espécie de vertigem nessa ocasião em um quarto de segundo esqueceuse de tudo por que tinha passado estava passando e teria de passar e lembrouse outra vez de tudo isso sem lhe escapar o menor detalhe zuniramlhe os ouvidos escureceramselhe os olhos e dando um encontrão no granadeiro que estava perto dele desatou a correr O Vidigal deu um salto e estendeu o braço para o agarrar mas apenas roçoulhe com a ponta dos dedos pelas costas O rapaz tinha calculado bem o Vidigal distraírase com o ruído que se fizera na rua e ele aproveitou a ocasião O Vidigal e os granadeiros soltaramse imediatamente em seu alcance Leonardo embarafustou pelo primeiro corredor que achou aberto os seus perseguidores entraram incontinenti atrás dele e subiram em tropel o primeiro lance de escada apenas o haviam dobrado e subiam o segundo abremse as cortinas de uma cadeirinha que se achava no corredor e Leonardo safase daí e de um pulo ganha a rua Ao entrar tendo dado com aquele refúgio meterase dentro os granadeiros e o Vidigal não haviam reparado em tal com a precipitação em que entraram e isso lhe valeu É impossível descrever o que sentiu o Leonardo quando por entre as cortinas da cadeirinha viu passar o Vidigal e subir a escada Foi uma rápida alternativa de frio e de calor de tremor e de imobilidade de medo e de coragem veiolhe outra vez à lembrança o pontapé paterno era o termo constante de comparação para todos as suas infelicidades Enquanto o Vidigal e os granadeiros varejavam a casa em que haviam entrado Leonardo safavase e em quatro pulos achavase em casa de Vidinha que o recebeu com um abraço exclamando Qual aí está ele Um raio de alegria iluminou todos os semblantes menos o dos dois irmãos rivais que ficaram horrivelmente desapontados As duas velhas tiraram da cabeça as mantilhas que já haviam tomado para dar providências sobre o caso A presença do Leonardo foi uma aura benfazeja que espalhou as nuvens de uma grossa tormenta que tendo começado a roncar quando Leonardo foi preso com aquelas palavras foi malsinação viera desabar de todo em casa e prometia durar muito tempo Vidinha tendo a princípio trocado com os primos algumas indiretas a respeito da prisão de Leonardo julgara conveniente deixarse de panos quentes e fora direito a eles com quatro pedras na mão atribuindolhes o que acabava de suceder Eles denegaram e travaramse com ela de razões A princípio as duas velhas estavam ambas da parte de Vidinha porém tendo esta atirado três ou quatro161 fortes demais aos primos a mãe destes picouse e tomou o partido dos dois filhos a outra velha mãe de Vidinha dáse por muito ofendida com esta parcialidade de sua irmã e reforça ainda mais acompanhada dos que restavam o partido de Vidinha Divididos e extremados assim os dois campos com terríveis campeões de lado a lado fácil é preverse o que teria sucedido se o Leonardo não viesse tão a tempo para acalmar tudo Este tomado pelo prazer de verse livre nem teve ele tempo de fazer recriminações aos seus inimigos já ele sabia com certeza quem fora a causa do que acabava de sofrer pois que o tinha percebido pela conversa que com ele tentara travar o granadeiro O major Vidigal fora às nuvens com o caso nunca um só garoto a quem uma vez tivesse filado162 lhe havia podido escapar e entretanto aquele brejeiro163 vieralhe pôr sal na moleira ofendêlo em sua vaidade de bom policial e degradálo diante dos granadeiros Quem pregava ao major Vidigal um logro fosse qual fosse a sua natureza ficavalhe sob a proteção e tinhamno consigo em todas as ocasiões Se o Leonardo não tivesse fugido e tivesse arranjado soltura por qualquer outro meio o Vidigal era até capaz por fim de contas de vir a ser seu amigo mas tendo lhe feito aquela tinhao por seu inimigo irreconciliável enquanto não lhe desse desforra completa Já se vê pois que as fortunas do Leonardo redundavamlhe sempre em desventuras e era realmente uma desventura de peso naquele tempo ter por inimigo o major Vidigal principalmente quando se tinha como o Leonardo uma vida tão regular e tão lícita Veremos agora o que se passou na casa em que entrara o Vidigal com os granadeiros em procura do Leonardo capítulo xxxvi O Vidigal desapontado O major Vidigal vendose logrado deu urros e como já fizemos sentir aos leitores prometeu a si mesmo tomar séria vingança do brejeiro do Leonardo Ora dizia ele consigo gastar eu meu tempo nesta vida gastar os meus miolos a pensar nos meios de dar caça a quanto vagabundo gira por esta cidade conseguir à custa de muitos dias de fadiga de muitas noites passadas sem pregar olho de muita carreira de muito trabalho fazerme temido respeitado por aqueles que a ninguém temem e respeitam os vadios e peraltas e agora no fim de contas vir um mequetrefezinho pôrme sal na moleira envergonharme diante destes soldados e de toda esta gente Agora não há garoto por aí que em sabendo disto não se esteja a rir de mim e não conte já com a possibilidade de me pregar um segundo mono como este O major tinha razão riamse com efeito dele e os primeiros que tal faziam eram os granadeiros Apesar de que escravos da disciplina empregavam os mais sinceros esforços para coadjuválo e apesar de que também revertia sobre eles alguma glória das façanhas do major não puderam entretanto deixar de achar graça no que acabava de suceder pois conheciam a presunção do Vidigal e repararam na cara desapontada com que ele havia ficado Depois apenas o major pôs pé fora da soleira da casa onde lhe tinha escapado Leonardo uma multidão imensa que tudo havia presenciado desatou a rir estrondosamente Então Sr major dizialhe um dos da turba desta vez passarinho foise embora deixoume as penas na mão Sr major dizia outro procure dentro dos bolsos Dentro da barretina emendava este Atrás da porta replicava aquele E um coro de risadas acompanhava cada um destes irônicos conselhos Lá está o bicho dentro da cadeirinha gritou um repentinamente O Vidigal como que instintivamente correu à cadeirinha e abriulhe as cortinas Nessa ocasião as risadas foram homéricas o major compreendeu então qual fora o meio por que lhe escapara o Leonardo e deixou escapar um ah prolongadíssimo que reunia quanto despeito e quanta vergonha é possível Enfim retirouse acabrunhado mostrando em caricatura a cara que devia trazer Napoleão ao voltar de Waterloo164 Se aqueles rapazes do Trem dizia consigo ao retirarse que me foram levar lá a nota do tal malandro me tivessem avisado que ele era desta laia eu não teria passado por esta imensa vergonha Por estas palavras vêem os leitores que as imputações da Vidinha contra os primos tinham mais que muito fundamento Com efeito o que se acabava de passar não era senão o resultado do ajuste que no dia da grande briga por aquela causa que o leitor bem sabe haviam feito os dois rivais tinham eles malsinado ao Leonardo Tinham ido com o Vidigal e sem precisar mentir armaram ao Leonardo uma cama muito bemfeita era um homem sem ofício nem benefício vivendo à custa alheia enchendo de pernas a casa de duas mulheres velhas a quem não tinha aproveitado a experiência e o que é mais roubando a primos o amor de sua prima O Vidigal havia arregalado os olhos ouvindo a narração e ficara muito agradecido aos dois rapazes pela nova que lhe levaram era mais um pendão que ia juntar aos louros de suas façanhas policiais A primeira tentativa custoulhe porém bem caro Pelo caminho ia o major fazendo pouco mais ou menos as seguintes reflexões Nada lhe seria mais agradável do que mais dia menos dia quando ninguém pensasse em tal acompanhado de uma escolta de granadeiros dirigirse à casa das duas velhas cercála e pilhar o Leonardo sem que lhe pudesse escapar Isto porém repugnava ao seu orgulho ofendido Muitas vezes se tinha é verdade servido desse meio porém fora isso para poder pilhar a capadócios de longa data tidos e havidos como tais e velhos no ofício Não queria pois segundo pensava servirse do mesmo meio para agarrar um recruta no ofício que ainda agora começava Nada tal não faria não havia fazer cerco e o que é mais não queria de modo algum o adjutório dos granadeiros jurara a si mesmo que ele sozinho sem o apoio de ninguém havia de pôr a mão no Leonardo Mergulhado nestas reflexões ia o Vidigal entrando pela casadaguarda para onde se dirigira quando sentiuse agarrado repentinamente pelas pernas e viu a seus pés uma mulher de mantilha que chorava soluçando muito com o lenço no rosto Que é isto senhora deixeme Ora isto hoje é dia de má sina Continuaram os soluços por única resposta Senhora deixame ou não as pernas Eu não gosto de carpideiras entende Soluços ainda Ora não está má esta Se lhe morreu alguém vá chorar na cama que é lugar quente Redobrou o pranto Valhame trezentos diabos Quando é que isto acabará Esta mulher acaba por atirarme no chão Estava já muita gente junta na porta Passando finalmente um pouco de tempo em silêncio quando já o major estava disposto a empregar alguma medida de rigor para verse livre da carpideira esta ergueu a cabeça e tirando o lenço da cara exclamou entre lágrimas Sr major solte solte por quem é a meu afilhado solte solte o pobre rapaz ele é um doido é verdade mas E os soluços lhe embargaram muito a propósito a voz Era a comadre que tendo sabido da prisão do afilhado viera fazer em seu favor ignorando que ele se tivesse evadido aquela alicantina165 A cena produziu o efeito esperado os granadeiros de cada vez que a comadre dizia solte desatavam a rir tendo por boca pequena explicado tudo aos demais circunstantes estes os acompanhavam O major tomou tudo aquilo como um escárnio que o gênio da vadiação e do garotismo lhe fazia era mister que ele para verse livre da comadre que não lhe largava os joelhos declarasse por sua própria boca diante de toda aquela gente que o Leonardo havia fugido Declarouo e fugiu de todos aqueles olhares em cada um dos quais via um insulto A comadre apenas ouviu a declaração foise igualmente pondo ao fresco166 e não pôde também deixar de achar graça no caso capítulo xxxvii Caldo entornado A comadre tendo deixado o major entregue à sua vergonha dirigirase imediatamente para a casa onde se achava Leonardo para felicitálo e contarlhe o desespero em que a sua fuga tinha posto o Vidigal O Leonardo contava com isso e não se admirou do que ela lhe foi dizer Vidinha porém e as duas velhas por entre muita praga e esconjúrio deram grandes risadas à custa do major A comadre segundo seu costume aproveitou o ensejo e depois que se aborreceu de falar no major desenrolou um sermão ao Leonardo no qual algumas exagerações de parte havia grande fundo de justiça e tanto que até a própria Vidinha chegou a darlhe inteira razão quanto a alguns trechos O tema do sermão foi a necessidade de buscar o Leonardo uma ocupação de abandonar a vida que levava gastosa167 sim porém sujeita a outras que tais como a que acabava de suceder a sanção de todas as leis que a pregadora impunha ao seu ouvinte eram as garras do Vidigal Haveis de afinal cairlhe nas unhas dizia ela no fim de cada período e então o côvado e meio te cairá também nas costas Esta idéia do côvado e meio fez brecha no espírito do Leonardo ser soldado era naquele tempo e ainda hoje talvez a pior coisa que podia suceder a um homem Prometeu pois sinceramente emendarse e tratar de ver um arranjo em que estivesse ao abrigo de qualquer capricho policial do Vidigal Achar porém ocupação para quem nunca cuidou nela até certa idade e assim de pé para mão não era das coisas mais fáceis Entretanto o zelo da comadre pôsse em atividade e poucos dias depois entrou ela muito contente e veio participar ao Leonardo que lhe tinha achado um excelente arranjo que o habilitava segundo ela pensava a um grande futuro e o punha perfeitamente a coberto das iras do major era o arranjo de servidor na ucharia real Deixando de parte o substantivo ucharia e atendendo só ao adjetivo real todos os interessados e o próprio Leonardo regalaram os olhos com o achado da comadre Empregado na casa real oh isso não era coisa que se recusasse e então empregado na ucharia essa mina inesgotável tão farta e tão rica A proposta da comadre foi aceita sem uma só reflexão contra da parte de quem quer que fosse Como a comadre pudera arranjar semelhante coisa para o afilhado é isso coisa que pouco nos deve importar Dentro de poucos dias achouse o Leonardo instalado no seu posto muito cheio e contente de si O major que o não perdia de vista soubelhe dos passos e mordeu os beiços de raiva quando o viu tão bem aquartelado só deixando a vida que levava podia o Leonardo cortar ao major pretextos para pôrlhe a unha mais dia menos dia Se ele se emenda dizia pesaroso o major se ele se emenda perco eu a minha vingança Mas e esta esperança alimenta ele não tem cara de quem nasceu para emendas O major tinha razão o Leonardo não parecia ter nascido para emendas Durante os primeiros tempos de serviço tudo correu às mil maravilhas só algum mal intencionado poderia notar em casa de Vidinha uma certa fartura desusada na despensa mas isso não era coisa em que alguém fizesse conta O Leonardo porém parece que recebera de seu pai a fatalidade de lhe provirem sempre os infortúnios dos devaneios do coração Dentro do pátio da ucharia morava um tomalargura em companhia de uma moça que lhe cuidava da casa etc168 A moça era bonita e o toma largura um machacaz talhado pelo molde mais grotesco a moça fazia pena a quem a via nas mãos de tal possuidor O Leonardo cujo coração era compadecido teve como todos pena da moça e apressemonos a dizer a sua pena era tão sincera que não pôde deixar de despertar também a mais sincera gratidão do objeto dela quem pagou o resultado da pena de um e da gratidão da outra foi o tomalargura Vidinha também lá por casa começou a estranhar a assiduidade do novo empregado na sua repartição e a notar o quer que fosse de esmorecimento de sua parte para com ela Um dia o tomalargura tinha saído em serviço ninguém esperava por ele tão cedo eram 11 horas da manhã O Leonardo por um daqueles milhares de escaninhos que existem na ucharia tinha ido ter à casa do tomalargura Ninguém porém pense que foi para maus fins Pelo contrário era para o fim muito louvável de levar à pobre moça uma tigela de caldo do que há pouco fora mandado a elrei Obséquio de empregado da ucharia não há aqui nada de censurável Seria entretanto muito digno de censura que quem recebia tal obséquio não o procurasse pagar com um extremo de civilidade a moça convidou pois ao Leonardo para ajudála a tomar o caldo e que grosseiro seria ele se não aceitasse tão belo oferecimento Aceitou De repente sentese abrir uma porta a moça que tinha na mão a tigela estremece e o caldo entornase O tomalargura que acabava de chegar inesperadamente fora a causa de tudo isto O Leonardo vendo aquilo correu precipitadamente pelo caminho mais curto que encontrou sem dúvida em busca de outro caldo uma vez que o primeiro se tinha entornado O tomalargura correlhe também ao alcance sem dúvida para pedirlhe que trouxesse desta vez quantidade que chegasse para um terceiro O caso foi que daí a pouco ouviuse lá por dentro barulho de pratos quebrados de móveis atirados ao chão gritos alarido viuse depois o Leonardo atravessar o pátio da ucharia à carreira e o tomalargura voltar com os galões da farda arrancados e esta com uma aba de menos No dia seguinte o Leonardo foi despedido da ucharia capítulo xxxviii Ciúmes No dia seguinte já o Vidigal sabia de cor e salteado tudo quanto havia sucedido ao Leonardo e pôsse alerta pois que a ocasião era oportuna O Leonardo entrara para a ucharia com o pé esquerdo a tormenta por que havia passado lá nada foi em comparação da que lhe caiu nas costas quando em casa se soube da causa verdadeira de sua saída É uma grande desgraça concordamos não corresponder a mulher a quem amamos aos nossos afetos porém não achamos também pequena desventura o cairmos nas mãos de uma mulher a quem deu na cabeça querernos bem deveras O Leonardo podia dar a prova desta última verdade Vidinha era ciumenta até não poder mais ora as mulheres têm uma infinidade de maneiras de manifestar este sentimento a uma dálhe para chorar em um canto e choram aí em ar de graça dilúvios de lágrimas isto é altamente cômodo para quem as tem de sofrer Outras recorrem às represálias e nesse caso desbancam incontinenti a quem quer que seja esta maneira de manifestação é seguramente muito agradável para elas próprias Outras não usam da mais leve represália não espremem uma lágrima mas assim por um espaço de oito ou quinze dias desde que desponta a aurora até que cai a noite resmungam um calendário de lamentações em que entram seu pai sua mãe seus parentes e amigos seu compadre sua comadre seu dote seus filhos e filhas e tudo por aí além isso sem cessar um só instante sem um segundo de descanso de maneira a deixar na cabeça do mísero que a escuta uma asuada eterna capaz de fazer amolecer um cérebro de pedra Outras entendem que devem afetar desprezo e pouco caso essas tornamse divertidas e faz gosto vêlas Outras enfim deixamse tomar de um furor desabrido e irreprimível praguejam blasfemam quebram os trastes rompem a roupa espancam os escravos e filhos descompõem os vizinhos esta é a pior de todas as maneiras a mais desesperadora a menos econômica e também a mais infrutífera Vidinha em seus ciúmes gostava desta última manifestação Apenas pois como há pouco dizíamos se verificou a verdadeira causa da saída do Leonardo desabou um temporal que só terá semelhante no que há de preceder ao aniquilamento do globo Depois de gritar chorar maldizer blasfemar ameaçar rasgar quebrar destruir Vidinha parou um instante concentrouse meditou e depois como tomando uma grande resolução Minha mãe disse dirigindose a uma das velhas quero a sua mantilha Filha de Deus acudiu a velha que desatino é esse onde é que ides agora de mantilha Eu cá sei onde vou quero a sua mantilha tenho dito quero a sua mantilha Foram todos reunindose em roda de Vidinha surpreendidos por aquela resolução O Leonardo estava sentado ou antes encolhido a seu canto quedo e silencioso Quero a sua mantilha minha mãe quero e quero Mas para onde ides rapariga Ora meu Deus isso foi coisa que vos fizeram Quero ir à ucharia Jesus Quero ir que me importa que seja a casa do rei Hei de ir hei de procurar o tal tomalargura quero fazerlhe cá duas perguntas e ou o MeninoJesus não é filho da Virgem ou na tal ucharia não fica hoje coisa sobre coisa Que loucura rapariga que desatino Os dois primos riamse interiormente do que se estava passando Não há coisa mais eminentemente prosaica do que uma mulher quando se enfurece Tudo quanto em Vidinha havia de requebro de languidez de voluptuosidade tinha desaparecido estava feia e até repugnante Ninguém houve que a pudesse desviar do seu propósito ela foi tomando a mantilha e dispondose a sair rogos choros nada a pôde conter O Leonardo viu que o caso estava malparado e tendo estado até então calado decidiuse também a pedir a Vidinha que não saísse Foi como se costuma dizer pior a emenda que o soneto Qual responde Vidinha essa agora é que havia de ser bonita Qual pois eu não hei de sair Tinha que ver então por pedido do senhor Ora qual E foi saindo Começava a anoitecer A gente de casa ficou toda na maior aflição ninguém sabia o que se havia de fazer O Leonardo tomou a resolução de acompanhar Vidinha a ver se a detinha em caminho Vidinha caminhava tão depressa que a princípio o Leonardo quase que a perdia de vista finalmente conseguiu alcançála e começou a pedirlhe que voltasse fazendo as maiores promessas de comedirse dali em diante e de lhe não dar mais motivos de desgosto Vidinha porém a nada atendia e caminhava sempre O Leonardo recorreu a ameaças Vidinha redobrou os passos voltou de novo a rogativas Vidinha caminhava sempre Já estavam no largo do Paço Vidinha chegando quase a correr deixou o Leonardo umas poucas de braças atrás de si e entrou muito adiante dele pelo portão da Ucharia adentro e desapareceu O Leonardo parou um instante a resolverse se entraria também ou não Finalmente decidiuse a entrar No momento em que ia transpondo a soleira do portão voltou repentinamente e ia disparando uma carreira uma mão magra mas vigorosa o deteve agarrandoo pela gola da jaqueta era a mão do major Vidigal com quem ele havia esbarrado ao querer entrar e de quem pretendia fugir Vendo que lhe seria inútil qualquer tentativa porque ali perto havia guarda o Leonardo resignouse O major olhou para ele soltando uma risadinha maligna dizendolhe apenas muito pausada e descansadamente Ora vamos O Leonardo entendeu bem a significação daquelas duas palavras e caminhou ao lado do major na direção que este lhe indicava capítulo xxxix Fogo de palha Deixemos o Leonardo seguindo seu destino acompanhado do major Vidigal e vamos ver o que se passou na ucharia depois de sua prisão Vidinha indagou aqui indagou ali e lá entrou como um raio pela casa do tomalargura A moça do caldo achandose nessa ocasião descuidada sofreu um grande susto com a chegada de Vidinha que conhecendo por instinto ser aquela a causa de seus males foi largando a mantilha sobre uma cadeira e investindo para ela Venho aqui disse para lhe dizer mesmo na cara que Vm é uma criatura sem sentimentos A moça não podendo atinar com a significação daquilo ficou pasma e sem saber o que havia de responder Vidinha prosseguiu Não tem sentimentos digolho eu e ninguém me há de desdizer Vamos ver que diabo de história é esta bradou uma voz de estentor Era o tomalargura que achandose em casa naquela ocasião e tendo ouvido as duas primeiras apóstrofes de Vidinha chegava para tomar fé do que se passava Por mais arrogante que fosse a voz do tomalargura e por mais ameaçadora que fosse a sua figura quase hercúlea Vidinha não recuou um passo não desfez uma ruga da testa antes pareceu mostrar que a sua presença ali favorecia suas intenções tanto que dirigindose a ele o foi logo apostrofando também pela seguinte maneira É Vm um homem que eu não sei para que traz barbas nessa cara A surpresa e mesmo também a figura de Vidinha através de cujos traços descompostos pela raiva o tomalargura sujeito prático e experimentado pôde conhecer como boa fazenda desarmaramno um pouco sorriuse169 e respondeu mais mansamente Então menina veio aqui só para dizer coisas assim tão bonitas Quem a trouxe cá Ora quem me havia de trazer respondeu Vidinha em tom de mofa lançando para a terceira personagem desta cena um olhar significativo ora quem me havia de trazer Qual eu vim só ver se podia tomar um caldo A moça do tomalargura empalideceu este regalou os olhos e abanou com a cabeça como quem dizia entendo e quis ficar imediatamente muito zangado com a recordação daquele fato que a humildade de sua companheira e talvez mesmo o seu humor tinha feito esquecer Vidinha porém para dizer aquelas últimas palavras tinha serenado um pouco o seu semblante e ganhara muito em seus encantos desfigurados até então pela raiva além disso ao pronunciar o qual do costume descerrara um ligeiro sorriso deixando ver seus magníficos dentes O tomalargura parecia pertencer talvez à família dos Leonardos enterneceuse imediatamente e não teve ânimo senão de sorrirse e responder em tom desconcertado Ora Ora replicou Vidinha e então ele não diz ora Qual é preciso não ter pinga de vergonha estas duas criaturas nasceram uma para a outra Deus os fez e o Diabo os ajuntou uma toma caldos e o outro diz ora E foi tomando a mantilha e tratando de sair170 Ela tinha esperado achar respostas enérgicas às suas invectivas e neste pressuposto tinha concertado mil planos de ataques de defesa de gritaria de pancadas de prisões etc Nada disto porém tinha sucedido e entretanto sem saber por que ela mesma se sentia um pouco aliviada quase até mesmo satisfeita tanto que saiu dizendo consigo171 Ah pensavam que a coisa havia de ficar assim Disselhes poucas porém boas O coração da mulher é assim parece formado de palha incendeiase com facilidade produz muita fumaça mas em cinco minutos é tudo cinza que o mais leve sopro espalha e desvanece O tomalargura apenas a viu sair em vez de prorromper numa matinada contra sua companheira como ela o esperava pálida e trêmula mostrouse até tranqüilo pretextou um afazer e saiu também imediatamente Andavalhe na cabeça um plano cuja realização faria como se costuma dizer cair a sopa no mel Vidinha tinhao encantado o Leonardo o havia ofendido conquistar ainda que fosse uma diminuta parcela do amor da Vidinha seria ao mesmo tempo vingarse do Leonardo e alcançar o triunfo de um desejo Por mais impossível que lhe parecesse o negócio nem por isso esmoreceu era tenaz e paciente Chegando ao portão da Ucharia indagou da sentinela a direção que Vidinha tinha tomado seguiu por ela e em breve alcançoua acompanhou a de longe para saberlhe da morada e viua entrar em casa capítulo xl Represálias Quando Vidinha chegou à casa achou ainda toda a família no maior susto e confusão pelo desatino que ela acabava de praticar as duas velhas ao vêla entrar lançaramselhe ao pescoço e cobriramna de abraços de beijos e de lágrimas Ela estava ainda porém sob a influência das emoções violentas por que acabava de passar e não pôde corresponder àquelas provas de amizade atirouse sobre uma banquinha e levou algum tempo calada sem dar a menor resposta às mil perguntas que lhe eram dirigidas Esse silêncio mais aumentava a ansiedade da família finalmente resolveuse ela a rompê lo exclamando Pensavam que o caso havia de ficar assim enganaramse Qual eu quero que fiquem sabendo para quanto presto Então rapariga foste fazer alguma asneira Asneira qual fiz o que faz qualquer mulher que tem sangue na guelra E agora venha ele para cá que temos ainda contas a ajustar É verdade e ele que ainda não veio já tinha tempo de chegar pois partiu logo no vosso alcance É verdade acrescentou Vidinha com certo susto na tal cova da Ucharia não entrou ele e quando de lá saí não o vi mais Não lhe vá ter sucedido alguma coisa O major o jurou O major repetiram todas com os sinais do mais visível susto E levantouse de novo em casa a confusão porque como os leitores terão visto apesar dos dissabores que o Leonardo causava àquela família todos ali exceto os dois primos rivais queriamlhe muito e muito bem Falar a qualquer dos dois primos para que o fossem procurar era coisa de que ninguém se lembrava tão certos estavam que eles se haviam recusar Tiveram pois de esperar que chegasse da rua o antigo sacristão da Sé para darem as providências precisas Os leitores terão talvez estranhado que em tudo quanto se tem passado em casa da família de Vidinha não tenhamos falado nesta última personagem temolo feito de propósito para dar assim a entender que em nada disso tem ele tomado parte alguma Causa remota e primordial de todos estes acontecimentos pois foi em conseqüência de sua amizade que o Leonardo se juntou à família por muito feliz se tem dado em que não tenham caído sobre ele inculpações de que com dificuldade se poderia defender homem de tato conservara uma posição absolutamente neutral em todas aquelas lutas Eis aqui pois qual a causa do nosso silêncio sobre ele Infelizmente naquela noite recolheuse mais tarde que de costume e quando chegou já não era tempo de fazer coisa alguma Toda a família passou a noite na maior ansiedade desvanecidas de certa hora em diante as esperanças de ver chegar o Leonardo a cada momento Ninguém duvidava mais que alguma coisa tivesse sucedido ao Leonardo e nos quadros medonhos que cada qual imaginava a figura do major Vidigal aparecia sempre em primeiro plano ninguém também duvidava que no quer que fosse que houvesse sucedido ao Leonardo o major teria por força parte ativa e importante senão principal Assim ao amanhecer do dia seguinte o primeiro lugar onde mandaram saber dele foi na Casa da Guarda Mas com surpresa geral ele não se achava nela nem sabiam notícias suas procurouse em diversos outros pontos e nada de novo nem novas nem mandados Por lembrança de Vidinha foram procurar a comadre e informaramna de todo o ocorrido a pobre mulher que tudo ignorava pôs as mãos na cabeça Aquele rapaz nasceu em mau dia disse ela ou então aquilo é coisa que lhe fizeram do contrário não pode ser E pôsse logo a caminho a procurar o afilhado Na comadre estavam fundadas toda as esperanças ninguém duvidava que apenas ela se pusesse na rua prontamente se saberia o destino do Leonardo Enganaramse todos porque nem a própria comadre foi capaz de dar com ele por tão bom caminho o tinha levado o major Passaram muitos dias na mais completa ignorância a respeito do seu fim e começaram desde então a aparecer suspeitas de que ele próprio teria talvez interesse em ocultarse e de que era essa a causa por que ainda o não haviam descoberto Estas suspeitas tomaram vulto e uma certa indignação começou a aparecer em toda a família contra semelhante proceder A indignação cresceu e tomou repentinamente proporções de ódio intenso até da parte das próprias duas velhas Realmente a ser verdade o que pensavam não haveria ingratidão mais negra do que a do Leonardo para com aquela que tão benignamente o acolhera Nas invectivas a cada momento dirigidas contra ele Vidinha tomava sempre o primeiro lugar e tinha razão para isso além de ter contra ele as razões que tinham todos os outros tinha ainda o despeito do amor ofendido Em certos corações o amor é assim tudo quanto tem de terno de dedicado de fiel desaparece depois de certas provas e transformase num incurável ódio Uma coisa singular notara a Vidinha desde que fora à Ucharia e é que não se passava depois disto um só dia em que ela não visse pelo menos duas vezes o tomalargura Tinhao ela mostrado à família e já todos o conheciam A princípio isso incomodoua e tanto mais que ele não passava uma só vez que lhe não tirasse o chapéu com ar risonho parecialhe semelhante coisa uma prova de desabrida falta de vergonha Mais tarde começou a suspeitar que aquela passagem constante e aqueles cumprimentos deviam por força ter alguma explicação Aconteceu que uma das velhas a mãe de Vidinha confessasse não ter achado o tomalargura malapessoado e esta idéia passou a toda a família Um dia uma das velhas achandose à janela com Vidinha na ocasião em que passava o tomalargura disse entre dentes e como que indiferentemente Se fosse comigo bem sabia eu cá o que havia de fazer Vidinha se bem que não pedisse explicação daquele dito não deixou contudo de darlhe atenção e de cismar nele por algum tempo No dia seguinte a mesma velha chamoua para a janela à hora do dia antecedente e o tomalargura passou como sempre e fez o seu cumprimento A velha disse nessa ocasião como completando o seu pensamento da véspera Ora eu pregava um mono ao tal Leonardo e então este que era bem pregado por ser ao mesmo tempo aos dois a ele e a ela Lendo na intimidade do pensamento da velha com a nossa liberdade de contador de histórias diremos ao leitor que o não tiver adivinhado que aquele ela referiase à moça do caldo Dada esta explicação os menos perspicazes entenderão sem dúvida em que consistia o mono que a velha pregaria ao Leonardo Vidinha que nada tinha de pouco inteligente compreendeu tudo às mil maravilhas e com tanto mais facilidade digamolo aos leitores quanto talvez que o pensamento da velha correspondesse a seus próprios pensamentos Repetiramse depois disto mais algumas indiretas da parte da velha e Vidinha chegou finalmente a explicações Pouparemos aos leitores certos detalhes e diremos que o resultado de tudo aquilo foi verse poucos dias depois o tomalargura em casa de Vidinha fazendo uma visita à família As visitas continuaram e pela vizinhança começou a ouvirse um rumor que tinha tanto de malévolo como de verdadeiro Estavam as coisas neste pé A paz tinha sido restituída à família Não sei quem propôs que se solenizasse o restabelecimento do sossego e as novas venturas com uma súcia para fora da cidade Efetuouse semelhante pensamento Por uma singularidade escolheram para lugar da patuscada os Cajueiros onde a família tinha feito conhecimento com o Leonardo O tomalargura fora convidado nem podia deixar de sêlo porque era ele um dos motivos da festa Infelizmente porém tinha ele um defeito no estado ordinário costumava beber sofrivelmente quando tinha algum motivo de alegria costumava dobrar a dose e quando isto sucedia davalhe para valentão e desordeiro Disto resultou que no meio da súcia na ocasião do jantar deuse por ofendido não sabemos por que e começou por agarrar nas pontas da esteira que servia de mesa e fazer voar sobre a cabeça dos convivas pratos garrafas copos e tudo o mais Os dois primos quiseram contêlo mas não o conseguiram Vidinha chorava as velhas se maldiziam uns tentavam restabelecer a paz e outros aumentavam a desordem Reinava por conseqüência uma algazarra infernal Quando menos o esperavam viuse surdir dentre as moitas o major Vidigal fechando um círculo de granadeiros que partiam de sua esquerda e de sua direita e que encerravam toda a súcia Segura aquele homem granadeiro disse o major a um dos seus soldados apontando para o tomalargura que se achava em pé cambaleando tendo numa mão um balaio em que viera a farinha e na outra uma garrafa com que ameaçava os circunstantes À ordem do major o granadeiro hesitou toda a família reunindose em um grupo soltou um grito de espanto apontando para o soldado Então replicou o major vendo aquela hesitação O granadeiro deu um passo para o tomalargura Devagar com a louça camarada bradou este lembrese que ainda não ajustamos contas a respeito daquele caldo O tomalargura acabava de reconhecer no granadeiro o nosso amigo Leonardo como toda a família o tinha reconhecido apenas ele apareceu Era com efeito ele capítulo xli O granadeiro Estavam pois as contas ajustadas completamente entre o Leonardo e o TomaLargura haviamse vingado um do outro o último golpe na luta competira dar ao Leonardo ele abençoou o acaso e mesmo o major Vidigal por lhe ter fornecido ocasião de ir arrancar dos lábios de seu rival a taça da ventura Até quase que estimou que lhe tivessem sentado praça e bem dissemos nós que para ele não havia fortuna que não se transformasse em desdita e desdita de que lhe não resultasse fortuna O TomaLargura como dissemos fora levado pelo Leonardo e os leitores familiarizados com o destino que tinham todos os prisioneiros do major Vidigal adivinham já que lhe indicaram o caminho da casa da guarda no largo da Sé O estado em que ele se achava não permitiu porém que o levassem até lá Os vapores que do estômago lhe tinham subido à cabeça foramse pouco a pouco condensando e em meio do caminho pesavamlhe sobre o cérebro como vinte arrobas a cabeça não se podendo manter abandonouse ao tronco que achando o peso excessivo quis apelar para as pernas estas porém não eram mais fortes e curvandose trêmulas e bambas deram com o valentão de ainda há pouco estirado na calçada Os soldados não o puderam levantar porque era como dissemos a princípio de uma corpulência colossal Foi mister pois abandonar a presa o major não teve grande dificuldade nisso primeiro pelo trabalho que daria qualquer outra resolução segundo porque se bem que da última classe sempre era o TomaLargura gente da casa real e nesse tempo tal qualidade trazia consigo não pequenas imunidades O Leonardo tentou ainda alguns meios para que lhe não escapasse assim sem resultado mais estrondoso a primeira presa que fazia pois era isto de mau agouro para o seu futuro militar mas também sua mais bela vingança estava tomada Ficou pois o TomaLargura abandonado na calçada Satisfaçamos agora em poucas palavras a curiosidade que têm sem dúvida os leitores de saber o como chegara o Leonardo à posição em que se achava Agarrado pelo major na porta da Ucharia como se sabe fora por ele em pessoa conduzido a lugar seguro donde só saíra para sentar praça no Regimento Novo Todos os batalhões que havia na cidade tinham uma companhia de granadeiros e havendo uma vaga na companhia do Regimento Novo fora o Leonardo escolhido para preenchêla Sabendo disto o major reclamouo para seu serviço porque era dessas companhias de granadeiros que se tiravam soldados para o serviço policial pois como homem experimentado naquelas coisas pressentira que ele lhe seria um valioso auxiliar Até um certo ponto o major não se enganou com efeito o Leonardo sendo naturalmente astuto e tendo até ali vivido numa rica escola de vadiação e peraltismo deveria conhecer todas as manhas do ofício Havia porém uma circunstância que o impedia de prestar bons serviços e era que com ele próprio com suas próprias façanhas tinha muitas vezes o major de gastar o tempo que lhe era preciso para o demais O poder dos hábitos adquiridos era nele tal que nem mesmo o rigor da disciplina lhe servia de barreira Contemos a primeira diabrura que lhe lembrou praticar depois que vestiu farda e que foi tanto mais sensível quanto a princípio se mostrara ele um soldado por tal maneira sisudo que ia quase adquirindo reputação de rígido Os gaiatos e suciantes da cidade a quem o major Vidigal dava constantemente caça lembraramse de imortalizar as suas façanhas por qualquer meio e inventaram um fado com o seguinte estribilho nas cantigas Papai lêlê seculorum Nesse fado a personagem principal representava o major que figurado morto vinha estenderse amortalhado no meio da sala as demais personagens vinham depois cantarlhe em roda cantigas alusivas que terminavam todos pelo estribilho que acima indicamos O major que disto soubera andava em busca de uma ocasião oportuna para tirar desforra de semelhante gracejo que dava a entender qual era a seu respeito o desejo dos que o tinham inventado Teve um dia denúncia que numa casa do morro da Conceição se preparava para essa noite um rigoroso Papai lêlê dispôs as coisas para pilhar os da roda em flagrante À hora oportuna mandou dois ou três granadeiros adiante cada um por sua vez para examinar que o havia tendo combinado primeiramente um sinal positivo e outro negativo para indicarem uns aos outros se havia ou não ocasião e motivo de dar o assalto estes sinais o granadeiro que devia aproximarse mais da casa comunicaria ao que lhe ficasse imediato este passaria adiante o outro faria o mesmo até chegar ao lugar em que estava o major era um verdadeiro sistema de sentinelas avançadas como se se tratasse de uma grande campanha No caso de ser dado o sinal positivo marchariam todos vagarosamente e se reuniriam para o assalto dado o sinal negativo dispersarseiam em silêncio porque um dos maiores caprichos do major era nunca mostrar que havia sido logrado Ao Leonardo coube a incumbência de ser a vedeta mais próxima ao inimigo e de dar o primeiro sinal Marchou pois adiante e os companheiros postaram se à espera Esperaram por longo tempo e cansaram de esperar finalmente quando já se iam dispondo a contravir as ordens e abandonar o posto para procurar o Leonardo ouviram três vezes seguidas um longo assovio que era o sinal negativo convencionado Em virtude disto dispersaramse exasperados e foram depois reunirse ao major embaixo da ladeira do morro no lugar que dá para a entrada do Aljube Aí reunidos esperaram muito tempo pelo Leonardo sem que ele aparecesse O major principiou a cismar com o caso de novo e repentinamente deu ordem de subir o morro Subiram com efeito e marchando desta vez o major adiante foram ter à casa indicada Com surpresa de todos apenas se foram aproximando viram luzes e ouviram o zumzum das violas e a toada das cantigas Fervia dentro o fado rigoroso Sem necessitar grandes precauções porque todos pareciam entregues à maior segurança cercou o major a casa e apanhou tudo como se costuma dizer com a boca na botija Estavase exatamente no ponto solene da cerimônia Achavase a personagem que representava o Papai amortalhado em um lençol com a cabeça coberta deitado no chão e a chusma em roda a cantar e a dançar Quando o major bateu e foi entrando acompanhado da sua gente ficou tudo gelado de medo o sujeito que se achava amortalhado teve um grande estremeção e ficou depois imóvel como se fosse de pedra representando com mais propriedade do que talvez desejasse o papel de morto Segundo seu costume o major fez continuar por um pouco a brincadeira em sua presença e depois começou a indagação das ocupações de cada um e conforme o que colhia os foi mandando embora ou pondo de parte para lhes dar melhor destino Durante toda esta cena que levou seu tempo o amortalhado deixouse ficar imóvel na mesma posição com a cabeça coberta Corrida toda a roda disselhe o major Olá camarada da mortalha então deveras você quer que o levem daí para a cova Nem um movimento em resposta Ah está morto perdeu a fala é natural Silêncio profundo O major fez sinal a um dos granadeiros que tocou no sujeito com a ponta do camarão172 nem assim porém ele sequer moveuse A um novo sinal do major o granadeiro desandoulhe uma tremenda lambada Ressuscitou com isso o morto e pôsse de um salto em pé Procurou porém evadirse por uma janela conservando sempre a cabeça coberta os granadeiros porém seguraramno e o major disselhe Homem você por estar morto não tenha tanta pressa de ir para o inferno fale primeiro com a gente E tirandolhe o pano da cara acrescentou Ora vamos ver a cara do defunto Um grito de espanto acompanhado de uma gargalhada estrondosa dos granadeiros interrompeu o major Descoberta a cara do morto reconheceu se ser ele o nosso amigo Leonardo capítulo xlii Nova diabrura173 Não sabemos se valeu ao Leonardo ser aquela a primeira ocasião em que incorria em castigo tendo até então guardado a mais rigorosa observância de todos os seus deveres ou se a mesma audácia do fato lhe granjeara mais as simpatias do major o caso foi que além das risadas dos remoques dos camaradas e dos transes da meia hora que estivera amortalhado nada mais lhe sucedeu com espanto de todos e principalmente dele mesmo o major dera daquele modo uma grande prova de desusada benevolência Andou pois o Leonardo por alguns dias cabisbaixo e pensativo como esmagado ao peso de grandes remorsos os camaradas tiravam daquilo um partido imenso para meteremno à bulha e não o deixavam parar um só instante sossegado na companhia Ele ainda não está bem ressuscitado dizia um passando por junto dele Qual dizia outro ele já não é deste mundo Papai lêlê seculorum entoavam outros em coro A nenhuma destas coisas dava ele a menor resposta e tinha nisso bom aviso porque desse modo poupava aos desapiedados camaradas tema para novos remoques Passados aqueles transes tudo foi esquecido e as coisas entraram de novo em seus eixos ordinários Um dia o major anunciou que tinha uma grande e importante diligência a fazer Havia um endiabrado patusco que era o tipo perfeito dos capadócios daquele tempo sobre quem há muitos meses andava o major de olhos abertos sem que entretanto tivesse achado ocasião de pilhálo era sujeitinho cuja ocupação era uma indecifrável adivinhação para muita gente e que entretanto andava sempre mais ou menos apatacado tudo quanto ele possuía de mais importante era um capote em que andava constantemente embuçado e uma viola que jamais deixava gozava reputação de homem muito divertido e não havia festa de qualquer gênero para a qual não fosse convidado e em satisfazer a esses convites gastava todo o seu tempo Ordinariamente amanhecia numa súcia que começara na véspera uns anos por exemplo ao sair daí ia para um jantar de batizado à noite tinha uma ceia de casamento A reputação que gozava de homem divertido e que lhe proporcionava tão belos meios de passar o tempo deviaa a certas habilidades e principalmente a uma na qual não tinha rival tocava viola e cantava muito bem modinhas dançava o fado com grande perfeição falava língua de negro e nela cantava admiravelmente fingiase aleijado de qualquer parte do corpo com muita naturalidade arremedava perfeitamente a fala dos meninos da roça sabia milhares de adivinhações e finalmente e eis aqui o seu mais raro talento sabia fazer com rara perfeição uma variedade infinita de caretas que ninguém era capaz de imitar Era por conseqüência as delícias das espirituosas sociedades em que se achava Quem dava uma súcia em sua casa e queria ter grande roda e boa companhia bastava somente anunciar aos convidados que o Teotônio era este o seu nome se acharia presente Agora quanto à sua ocupação ou meio de vida que para muitos era como dissemos impenetrável segredo o major Vidigal tanto fez que a descobriu em dias designados da semana reuniase no sótão onde ele morava certo número de pessoas que levavam até alta noite aí metidas Teotônio era finalmente o banqueiro de uma certa roda de jogo Nesta conformidade andava o major a querer pilhálo em flagrante e como tentava isso desde muito sem que o pudesse conseguir por ser sempre iludida a sua vigilância pela troca constante que faziam os da roda dos seus dias de reunião resolveu pôr a mão no Teotônio na primeira ocasião e servirse depois dele para a captura dos outros companheiros Como os leitores estarão lembrados o LeonardoVelho isto é o LeonardoPataca vivia com a filha da comadre dela tinha um descendente a cujo nascimento nós os fizemos assistir Pois apesar de haver já passado algum tempo a criança ainda não estava batizada O LeonardoPataca a instâncias da comadre que muito se afligia com aquela demora determinou finalmente o dia que ela se devia fazer cristã Segundo os hábitos imutáveis havia súcia por essa ocasião e segundo a moda foi o Teotônio convidado O major soubera de tudo e era exatamente aí que o esperava e tinha determinado pilhálo Para isso é que dera aos seus soldados o aviso de que acima falamos Era má sina do major ter sempre de andar desmanchando prazeres alheios e infelicidade para nós que escrevemos estas linhas estar caindo na monotonia de repetir quase sempre as mesmas cenas com ligeiras variantes a fidelidade porém com que acompanhamos a época da qual pretendemos esboçar uma parte dos costumes a isso nos obriga Grande parte da vida de um certo círculo naquele tempo consistia quase exclusivamente em todas essas coisas que temos descrito174 À hora ajustada chegou o major à casa do LeonardoPataca como não havia o menor motivo para violências porque tudo corria na mais perfeita paz o major entrou sozinho com prévia permissão do LeonardoPataca e assistiu ao divertimento Quando ele chegou estava exatamente Teotônio em cena com as suas habilidades e tendo esgotado já todas elas ia recorrer à última que era a das caretas É preciso notar que ele não sabia só fazer caretas a capricho sabiaas também fazer imitando pouco mais ou menos esta ou aquela cara conhecida era isso o que fazia morrer de riso aos circunstantes Estavam todos sentados e o Teotônio em pé no meio da sala olhava para um e apresentava uma cara de velho viravase repentinamente para outro e apresentava uma cara de tolo a rirse asnaticamente e assim por muito tempo mostrando de cada vez um tipo novo Finalmente tendo já esgotado toda a sua arte correu a um canto colocouse numa posição que pudesse ser visto por todos ao mesmo tempo e apresentou a sua última careta Todos desataram a rir estrondosamente apontando para o major Acabava de imitar com muita semelhança a cara comprida e chupada do Vidigal175 O major mordeu os beiços percebendo a caçoada do Teotônio e se já tinha boas tenções a seu respeito ainda as formou melhor naquela ocasião As risadas continuaram por muito tempo e ele não podendo afrontá las impassível e não havendo como já fizemos sentir motivo justo para um rompimento achou mais conveniente retirarse e pondose em posição conveniente esperar que a súcia se debandasse para então convidar o Teotônio a ir fazer algumas caretas aos granadeiros na casa da guarda Saiu pois completamente corrido Encontrando os seus granadeiros que tinham ficado a pouca distância dirigiuse ao Leonardo e fezlhe sentir que querendo a todo o custo naquela noite segurar o Teotônio temia que os de casa desconfiassem disso e lhe dessem escapula por qualquer meio eralhe pois mister uma pessoa que o fosse vigiar de perto sem que despertasse suspeitas essa pessoa devia ser o Leonardo Sou malvisto em casa de meu pai replicou este à proposta do major É hoje um bom dia de conciliação Talvez não queiram receberme E sua madrinha que lá se acha Mas a filha que é uma víbora contra mim Víbora ou não há de ir que quando manda a disciplina Não quero que aquele valdevinos ande tomando impunemente a minha cara para original de caretas Os granadeiros que conheciam o Teotônio e lhe sabiam da habilidade compreenderam logo o que tinha sucedido por aquele dito do major e desataram por seu turno a rir O Leonardo por aquele apelo à disciplina com a qual não se achava em muito bom pé de relações desde a noite do papailêlê venceu todas as dificuldades e repugnância que manifestara no desempenho da missão de que o encarregara o major e pôsse a caminho para a casa de seu pai Chegou e bateu assim que de dentro lhe perceberam as cores da farda e barretina houve um grito de medo e por um movimento que parecia combinado o major tinha razão foram repentinamente apagadas todas as velas da sala e começou a reinar uma confusão tal que parecia haverse travado uma luta entre todos O Leonardo viu logo nisso uma primeira contrariedade porém não deixou de achar graça no susto que causara Resolveu então falar da parte de fora para tranqüilizar aos medrosos Bom modo de ser recebido um filho em casa de seu pai Para quartafeira de trevas só lhe faltam as matracas A comadre que ouvira e reconhecera a voz do afilhado desatou a rir exclamando Vejam que logro é o Leonardo tragam as velas gente não há novidade que o cabo da guarda é nosso compadre Aquele brejeiro resmoneou o Leonardo velho sempre há de andar a fazer das suas vejam que susto causou a toda essa gente Ó amigo Teotônio desça que não há novidade À luz da primeira vela que traziam viuse descer por uma porta o Teotônio do forro do quarto da sala onde se havia escondido Apenas pôs o pé em terra fez logo uma careta de medo por tal forma expressiva que houve em todos uma tremenda explosão de hilaridade Começou a surdir gente de diversos cantos da casa e em presença do Leonardo recomeçou a folia Algumas pessoas não deixaram de estranhar e recear a presença do Leonardo naquela ocasião e naqueles trajes logo depois da saída do major porém a comadre a todos tranqüilizou dizendo que ele tendo obtido licença no quartel por não estar de serviço naquele dia viera assistir ao batizado de sua irmã Ele é meio doido repetia ela a todos mas é muito amoroso e nunca se esquece da família Leonardo confirmava esses protestos da comadre e ia entretanto tomando parte na brincadeira uma vez que contra as suas esperanças todos o haviam recebido bem em casa À proporção que se ia esquentando no prazer do fado e das cantigas começou o Leonardo a sentir remorsos pelo papel de judas que ali estava representando quando olhava para o Teotônio que desde que entrara lhe havia feito dar tão boas risadas pungialhe o coração lembrandose que ele próprio o havia de entregar ao major Não poucas vezes lhe passou pela cabeça darlhe escapula avisandoo porém a disciplina o papailêlê vinhamlhe à idéia e hesitava Enquanto era assaltado por estes pensamentos olhava repetidas vezes para o Teotônio que era deles a causa Este que nada tinha de tolo desconfiou da coisa e não sei por que instinto leu o que pensava o Leonardo e pôsse em guarda O Leonardo repentinamente tomou sua resolução Ora adeus disciplina disse consigo hei de dar escapula ao homem seja lá como for E do lugar em que estava acrescentou alto Ah Sr Teotônio quer saber uma coisa Pois se puser o pé daquela porta para fora o major põelhe a unha que para isso está ele à sua espera e para aqui me mandou Ó diabo exclamaram todos Mas nada de sustos tudo se há de arranjar que tenho eu boa vontade disto Mas não te comprometas por causa dele rapaz acrescentou a comadre ao ouvido do Leonardo olha que o major não é de graças e daí te pode vir mal Ora eu tenho pena dele só por aquelas caretas Juntaramse então os dois Leonardo e Teotônio e juntos concertaram o seu plano de modo que este escapasse ao major e que aquele não ficasse comprometido Estava já a noite muito adiantada ordenaram os dois que saíssem ao mesmo tempo muitos convidados e o Leonardo partindo adiante deles foi correndo ter com o major Aí vem o bicho Sr major Cerca cerca disse o major E cada um se dividiu para seu lado O major colouse à porta de um corredor e pôsse de olho alerta Veiose aproximando ao major um vulto assobiando tranqüilamente o estribilho de uma modinha Quando se achou em pequena distância o major deu um salto donde estava e segurouo Um ai franzino se fez ouvir acompanhado de um Me largue Que é isto O major prestou atenção não tendo reconhecido a voz do Teotônio e viu que tinha segurado num pobre corcunda aleijado ainda em cima da perna direita e do braço esquerdo Ora váse para o inferno disse o major sumase daqui sô pobre diabo176 também não sei o que andam fazendo a estas horas pelas ruas estas figuras O aleijado safouse apressadamente livre do susto e lá foi continuando a assobiar o seu estribilho Fezse depois disto o mais profundo silêncio e o major não viu mais passar senão os convidados da patuscada não vendo entre eles o Teotônio Então ardeu com o caso e reunindo os granadeiros disse para Leonardo Ele não saiu Saiu replicou este até de jaqueta branca e chapéu de palha eu o vi tomar ali para a porta onde estava o Sr major De jaqueta branca e chapéu de palha perguntou o major Sim senhor e de calça preta não o peguei porque logo vi que não havia de escapar ao Sr major Ah patife patife resmungou destas nunca levei Era o corcunda o aleijado Ele sabe fazer muito bem de corcunda e de aleijado disse um dos granadeiros já o vi uma vez fazer isso que era mesmo tal e qual Era com efeito o Teotônio o aleijado que o major tinha segurado O Leonardo riase às furtadelas do logro que levara o major Não tardou porém muito tempo que lhe não amargasse aquele prazer vindo o major a saber que tudo aquilo se fizera de combinação com ele capítulo xliii Descoberta Há neste mundo177 uma coisa ainda pior do que um inimigo e é um mau amigo Um dos convidados do Leonardopataca diziase muito amigo do Teotônio e pelo empenho que o Leonardo mostrara em livrálo das garras do major protestara desde logo repartir com ele parte dessa amizade sem que nenhum dos dois ficasse prejudicado Poucos instantes depois desse protesto deu logo a primeira prova de que estava disposto a cumprilo Enquanto se passavam as cenas que acabamos de descrever tinha amanhecido o major e sua gente punhamse em retirada ainda se achavam porém nas imediações do lugar onde se havia feito a tentativa para prender o Teotônio quando o tal amigo a que nos referimos que fora um dos últimos a retirarse encontrando a patrulha e vendo que o Teotônio não ia no meio dela concluiu que os planos haviam surtido bem e que o major ficara desta vez logrado Teve por isso um acesso de alegria e esquecendo a presença do major correu ao Leonardo abraçouo exclamando com arrebatado ímpeto Bravo como esta não fazes duas em toda a tua vida foi limpa ele há de ficarte obrigado disto para sempre e eu com ele porque sou seu amigo e teu também O Leonardo ficou estático diante de semelhante imprudência O major que ia cabisbaixo pensando no logro que acabara de levar voltouse repentinamente a palavra ele proferida pelo terrível amigo abriu luz a seus olhos O Leonardo foi tirado do torpor em que se achava pela voz do major a dizerlhe compassadamente Recolhase preso ao quartel A esta sentença o Leonardo ergueu do fundo dalma tudo quanto podia haver aí de despeito de rancor e lançou em um olhar sobre o imprudente que a havia provocado e que ainda muito senhor de si apertavalhe desapiedadamente a mão que parecia não estar disposto a largar tão cedo Deixemos agora o Leonardo vítima de sua dedicação caminhar preso para o quartel e passemos a outras coisas Há muito tempo que não falamos em D Maria e na sua gente Saibam os leitores que passada a luademel em que tudo foram rosas o nosso José Manuel pusera como se costuma dizer as mangas de fora e tais coisas fez que em poucos meses estava tudo de guerra aberta tinhase ele com sua mulher Luisinha mudado de casa de D Maria e por causa de dote vai dote vem herança daqui herança dali havialhe D Maria proposto uma ação por tal sorte complicada que era de desconfiar que não bastassem para verlhe o fim os dias que restavam de vida à pobre velha Tinhase José Manuel tornado para Luisinha um verdadeiro marido dragão desses que só aquele tempo os conta tão perfeitos que eram um suplício constante para as mulheres Depois que se havia mudado de casa de D Maria nunca mais Luisinha vira o ar da rua senão às furtadelas pelas frestas da rótula então chorava ela aquela liberdade de que gozava outrora aqueles passeios e aquelas palestras à porta em noite de luar aqueles domingos de missa na Sé ao lado de sua tia com o seu rancho de crioulinhas atrás as visitas que recebiam e o Leonardo de quem tinha saudades e tudo aquilo enfim a que não dava nesse tempo muito apreço mas que agora lhe parecia tão belo e tão agradável Tendose casado com José Manuel para seguir a vontade de sua avó178 votava a seu marido uma enorme indiferença que é talvez o pior de todos os ódios Pois a vida de Luisinha depois de casada representava com fidelidade a vida do maior número das moças que então se casavam era por isso que as Vidinhas não eram raras e que poucas famílias haviam que não tivessem a lamentar um desgostozinho no gênero do que sofreu aquela pobre família que indo ao Oratório de Pedra viera dizimada para casa e cuja história serviu de tema às intrigas da comadre quando quis pôr a José Manuel fora do lance Ora é claro que tendo D Maria ficado um pouco séria com a comadre por causa de toda aquela intriga que precedera ao casamento de José Manuel com sua sobrinha hoje que estava com este de candeias às avessas se reatasse agora o laço da amizade que por um pouco afrouxaram sucedia com efeito Um dia as duas encontraramse na missa tornaramse a falar as desgraças do Leonardo que fizeram tema a essa conversação enterneceram a D Maria que por seu turno também referiu à comadre tudo quanto sucedia agora à pobre Luisinha Ai Senhora dizia a comadre referindose a José Manuel parece que me roncava cá o quer que seja quando via aquele maldito arrenego do homem que é um valdevinos às direitas Aquilo há de levar a pobre menina à sepultura Coitada bem criada e malfadada Nunca pensei criatura nunca pensei que sucedesse tal Mas aquilo como era finório que palavrinhas doces que santidade aquela Agora senhora agora sou eu capaz de acreditar naquela história da moça furtada no oratório de pedra ele tem bofes para tal Mas hei de me ver vingada oh se hei de tão certo como estar eu aqui os desembargadores lá estão que me hão de dar esse gosto espero isso em Deus Desta conversa e do mais que se seguiu nasceu a conciliação das duas Quando certas amizades são uma vez interrompidas quando sofreram ainda mesmo um leve estremecimento é difícil que voltem depois ao estado primitivo com outras amizades acontece porém o inverso os estremecimentos aproveitam porque é fácil o restabelecimento da paz e parece que depois disto se tornam mais estreitas A amizade que existia entre D Maria e a comadre era deste último gênero Portanto depois daquela conversa na missa não só voltaram as relações entre as duas ao seu primitivo estado como se tornaram mais que nunca sólidas Daí em diante não houve um só segredo entre as duas que não fosse mutuamente comunicado e elas fizeram pacto de se ajudarem reciprocamente para dar remédio uma aos males da sobrinha outra às diabruras do afilhado O Leonardo como dissemos achavase preso fizera disso ciente à madrinha que se pôs logo em alvoroto não só pelo fato em si como pelo generoso motivo que o havia ocasionado O primeiro passo pois que tiveram a dar as duas D Maria e a comadre em virtude do seu pacto foi tratar de alcançar a soltura do Leonardo e livrálo do mais que sabe Deus lhe estaria preparado Vamos ver como se houveram em semelhante empenho capítulo xliv Empenhos O primeiro passo que deu a comadre foi dirigirse à casa do major a interceder pelo Leonardo o major porém mostrouse inflexível o caso era grave já não era o primeiro a disciplina não podia ser impunemente ofendida mais de uma vez o castigo devia ser infalível e grande A comadre que fora cheia de boas esperanças soube pelo major o que ignorava o que nem mesmo supunha o Leonardo não só ficaria por mais tempo preso como teria de ser chibateado A pobre mulher apenas lhe declarou isto o major caiu de joelhos chorou lamentouse tudo porém debalde Desesperada saiu e com a mantilha caída e toda em desalinho correu voou à casa de D Maria Ao vêla entrar naquele estado D Maria ergueuse da sua banquinha e largou a almofada da renda Que tendes criatura que tendes exclamou Santo Cristo o que é falai Ai Sra D Maria do meu coração que desgraça respondeu a comadre que má sina de rapaz Ora veja o que lhe sucede por ter feito uma boa ação E eu que sofro e que sinto como se fosse meu filho E os soluços a sufocaram Fale senhora replicou D Maria fale que me põe numa aflição Vai apanhar D Maria vai apanhar de chibata ele o Leonardo Meu Deus pobre rapaz ora vejam tudo em que deu é sina coitado aquele rapaz não nasceu em bom dia não comadre isso sou eu capaz de jurar pela salvação da minha alma Mas não falou com o major que lhe disse ele Duro como uma pedra senhora a nada se moveu pedilhe pelas cinco chagas pela Senhora Santíssima tudo embalde tudo em vão Está bom não se aflija comadre ainda há um meio que eu penso que não há de falhar vamos à casa dela que por lá é caminho certo ela dá se muito comigo há de pedir pelo moço Já me tinha lembrado179 disso mas na tribulação em que vinha tornoume a esquecer se com ela não se arranjar alguma coisa está tudo perdido Os leitores estão já curiosos por saber quem é ela e têm razão vamos já satisfazêlos O major era pecador antigo e no seu bom tempo fora daqueles de quem se diz que não deram o seu quinhão ao vigário restava lhe ainda hoje alguma coisa que às vezes lhe recordava o passado essa alguma coisa era a MariaRegalada que morava na Prainha Maria Regalada fora no seu tempo uma mocetona de truz como vulgarmente se diz era de um gênio sobremaneira folgazão vivia em contínua alegria ria se de tudo e de cada vez que se ria faziao por muito tempo e com muito gosto daí é que vinha o apelido regalada que haviam juntado ao seu nome Isto de apelidos era no tempo desta história uma coisa muito comum não estranhem pois os leitores que muitas das personagens que aqui figuram tenham esse apêndice ao seu nome Dizem todos e os poetas juram e tresjuram que o verdadeiro amor é o primeiro temos estudado a matéria e acreditamos hoje que não há que fiar em poetas chegamos por nossas investigações à conclusão de que o verdadeiro amor ou são todos ou é um só e neste caso este não é o primeiro é o último O último é que é o verdadeiro porque é o único que não muda As leitoras que não concordarem com esta doutrina convençam me do contrário se são disso capazes Isto tudo vem para dizermos que MariaRegalada tinha um verdadeiro amor ao major Vidigal o major pagavalho na mesma moeda Ora D Maria era uma das camaradas mais do coração de MariaRegalada Eis aí por que falando dela D Maria e a comadre se mostraram tão esperançadas a respeito da sorte do Leonardo Já naquele tempo e dizem que é defeito do nosso o empenho o compadresco eram uma mola real de todo o movimento social Vai mandar aprontar a cadeirinha disse D Maria a uma de suas escravas Vamos senhora vamos que isto são os meus pecados velhos D Maria aprontouse meteuse na sua cadeirinha a comadre tomou a mantilha e partiram para a Prainha MariaRegalada recebeuas com uma boa risada Que milagre de Santa Engrácia que fortuna que alegrão O que a traz por aqui Isto é grande novidade É novidade sim respondeu D Maria porém triste novidade Com as honras do estilo que não eram muitas naquele tempo foi a comadre apresentada porque não era conhecida de MariaRegalada Primeiro D Maria depois a comadre contaram cada uma por sua parte a história do Leonardo com todos os detalhes e depois de inúmeros rodeios que puseram a arder a paciência da ouvinte e quase a fizeram morrer de curiosidade chegaram finalmente ao ponto importante ao motivo que ali as levara queriam nada menos do que a soltura e perdão do Leonardo e contavam para alcançar semelhante coisa com a influência da Maria Regalada sobre o major Ora disse esta tomando um ar de modéstia eu já não presto para nada isso era bom noutro tempo agora o Sr major as coisas estão mudadas D Maria depois que ele se meteu na polícia nem mais nem ontem quem sabe o que por lá vai Mas enfim D Maria eu não sei dizer que não tenho o coração assim e sempre o tive no meu tempo muita gente se aproveitou disto Eu farei o que puder vou falarlhe talvez que ele me queira atender Há de atender há de respondeu a comadre ele já não está tão velho que se tenha esquecido de todo do tempo de dantes Veremos veremos A Sra comadre sabe lá o que são homens Digame a mim se sei acudiu esta prontamente Mas então atalhou D Maria o negócio requer toda a pressa porque de um instante para outro podem chegar a farda ao corpo do pobre rapaz e depois nem Santo Antônio a tira Não há de haver novidade ainda havemos chegar a tempo com a graça de Deus Para maior segurança vamos todas três daqui à casa do major e cada uma por nosso lado faremos tudo para livrar o moço MariaRegalada vestiuse à pressa tomou a sua mantilha e ao lado da cadeirinha em que ia D Maria partiram para a casa do major capítulo xlv As três em comissão Partiram pois as três para a casa do major que morava então na rua da Misericórdia uma das mais antigas da cidade O major recebeuas de rodaque de chita e tamancos não tendo a princípio suposto o quilate da visita apenas porém reconheceu as três correu apressado à camarinha vizinha e envergou o mais depressa que pôde a farda como o tempo urgia e era uma incivilidade deixar sós as senhoras não completou o uniforme e voltou de novo à sala de farda como se sabe calças de enfiar tamancos e com o lenço de Alcobaça sobre o ombro segundo seu uso A comadre ao vêlo assim apesar da aflição em que se achava mal pôde conter uma risada que lhe veio aos lábios Quanto ao mais os cumprimentos da recepção passaram sem novidade Naquela atropelação a comadre enxergou logo um bom agouro para o resultado do seu negócio Além disso acrescia ainda em seu favor que o major guardava na sua velhice doces recordações de sua mocidade e apenas se via cercado por mulheres se não era em lugar público e em circunstâncias em que a disciplina pudesse ficar lesada tornavase imediatamente um babão como só se poderia encontrar segundo no velho Leonardo Se lhe davam então no fraco se lhe faziam um elogio se lhe faziam uma carícia por mais estupidamente fingida que fosse arrancavam dele tudo quanto queriam ele próprio espontaneamente se oferecia para ir dando o que dele queriam e ainda em cima ficava muito obrigado Contudo ainda que a comadre soubesse já disso com antecipação ou o pressentisse pelas aparências a gravidade do negócio de que se tratava era tal que nem isso bastou para tranqüilizála Dispôsse para o ataque ajudada por suas companheiras que apesar de mais estranhas à sorte do Leonardo nem por isso se ligavam menos à sua causa Houve um momento de perplexidade para decidirse quem seria o orador da comissão O major percebeu isto e teve assim um lampejo de orgulho por ver assim três mulheres confundidas atrapalhadas diante de sua alta pessoa fez um movimento como para animálas arrastando sem querer os tamancos Oh de tamancos e farda não está má esta senhoras donas coisas de velho no meu tempo não fazia eu destas D Maria que o diga acudiu logo a comadre referindose a Maria Regalada e querendo fazer brecha fosse por onde fosse mas não importa o negócio é outro É verdade Sr major o bom tempo já lá foi E Deus perdoe a quem dele tem saudades retorquiu o major rindo se com um rugoso riso de velha sensualidade Sim sim tornou a MariaRegalada mas deixe essas coisas todas para logo Ai criatura acudiu D Maria que até então estivera calada cansada talvez do número prodigioso de mesuras que fizera ao entrar deixai cada um lembrarse do seu tempo isto consola eu cá gosto bem quando acho É como eu respondeu o major em se me tocando cá nas feridas antigas Pois é mesmo por me lembrar destas feridas antigas atalhou a MariaRegalada que venho aqui com estas senhoras donas que o Sr major bem conhece e se não foram elas cá não viera pois o negócio é sério mas enfim sempre conto A comadre achou ocasião bem apanhada e fez com a cabeça um sinal de aprovação Vamos lá ver o que é o tal negócio sério respondeu o major atinando pela presença da comadre pouco mais ou menos com o que era e um sinal duvidoso com a cabeça ou porque se quisesse fazer de bom ou porque realmente não quisesse abrir largas esperanças A interlocutora prosseguiu O seu granadeiro Leonardo é um bom rapaz O major arqueou franzindo as sobrancelhas e repuxou os beiços como quem não concordava in totum com aquilo Não me comece já com coisas Sr major Pois é sim senhor muito bom rapaz e não há razão para ser castigado como está para ser por causa de uma coisa nenhuma que fez isso não é razão não senhor para se mandar tocar de chibata um moço que não é nenhum valdevinos pois o Sr major bem sabe que o padrinho quando morreu deixoulhe alguma coisa que bem lhe podia estar já nas mãos e ele por isso livre da maldita farda a quem sempre tive zanga menos de uma que bem se sabe se o tal pai que tem mas deixemos o pai que não vem nada ao caso Já sei de tudo já sei de tudo atalhou o major Ainda não Sr major observou a comadre ainda não sabe do melhor e é que o que ele praticou naquela ocasião quase que não estava nas mãos dele Bem sabe que um filho na casa de seu pai Mas um filho quando é soldado retorquiu o major com toda a gravidade disciplinar Nem por isso deixa de ser filho tornou D Maria Bem sei mas a lei Ora a lei o que é a lei se o Sr major quiser O major sorriuse com cândida modéstia A discussão foise assim animando porém o major nada de ceder até pelo contrário parecia mais inflexível do que nunca chegou mesmo a pôrse em pé e a falar muito exaltadamente contra o atentado do Leonardo e a necessidade de um severo castigo era engraçado vêlo no bonito uniforme que indicamos de pé fazendo um sermão sobre a disciplina diante daquelas três ouvintes tão incrédulas que resistiam aos mais fortes argumentos Ainda porém não tinham as três esgotado contra ele o seu último recurso puseramno pois em ação Quando mais influído estava o major as três a um só tempo e como de combinação desataram a chorar O major parou encarouas um instante seu semblante foise visivelmente enternecendo enrugando e por fim desatou também a chorar de enternecido Apenas as três se aperceberam deste triunfo carregaram sobre o inimigo Foi então uma algazarra uma choradeira sem nome capaz de mover as pedras O major de enternecido foi passando a atordoado e como que ficou envergonhado das lágrimas que lhe corriam pelas faces enxugouas e procurou reassumir toda a sua antiga gravidade Nada disse desembaraçandose das três e passeando a passos largos pela sala nada que haviam dizer de mim se me vissem aqui nestas choramingas de criança Eu o major o Vidigal a chorar no meio de três mulheres Senhoras donas o caso é grave e não lhe vejo remédio o exemplo a disciplina as leis militares nada não pode ser E deu as costas às três continuando a passear e a fazer ressoar com força os tamancos no assoalho A MariaRegalada disse baixo às duas em cujos semblantes já nem transluzia o mais pequeno vislumbre de esperança Ainda não está tudo perdido E dirigindose ao major acrescentou Bem Sr major águas passadas não moem moinho Qual passadas senhora dona mas bem vê que o caso é grave Seja lá o que for sinto ter perdido meus passos e não servir a quem desejava verdade seja que eu já contava com isso e também não prometi Mas em último lugar quero sempre dizerlhe uma coisa mas há de ser em particular Vamos lá estou pronto Quem tivesse alguma perspicácia conheceria não com grande facilidade que o major estava há muito tempo disposto a ceder porém que queria fazerse rogado A MariaRegalada levou então o major para um canto da sala e disse lhe ao ouvido algumas palavras O major desanuviou o rosto remexeuse todo coçou a cabeça balançou com as pernas mordeu os beiços Ora esta disse em voz baixa à sua interlocutora pois era preciso falar nisto Olhem que o que mulher não fizer nem o diabo faz180 Ora graças que se lhe acabaram os sestros respondeu Maria Regalada em voz alta Sim exclamaram as duas sorrindo de esperança Eu bem dizia que o Sr major tinha bom coração Eu nunca duvidei apesar de tudo mas agora o passado passado o caso era grave como ele dizia e foi um favor Então D Maria quem foi rei sempre teve majestade Majestade qual isso já não é pra181 mim O major atalhou esta explosão de gratidão que levava visos de ir longe Hão de ficar ainda mais contentes comigo não lhes digo por quê mas verão Esta agora é que182 grande veremos o que será Já sei é Há de ser por força Estou quase adivinhando Sabem que mais atalhou o major são horas de uma diligência a que não posso faltar O rapaz está livre de tudo contanto que acrescentou dirigindose a MariaRegalada o dito dito Eu nunca faltei à minha palavra replicou esta Retiraramse as três cheias do maior contentamento e o major saiu depois também para cumprir a sua promessa capítulo xlvi A morte é juiz D Maria dirigiuse imediatamente para casa na sua cadeirinha Ao chegar notou grande rumor e alvoroço e tratou logo de indagar a causa Um escravo de sua sobrinha a esperava com uma carta Apenas a leu D Maria não diremos que se entristeceu porém mostrouse muito atrapalhada Não entrem com a cadeirinha esperem lá que torno a sair E com efeito meteuse de novo nela e mandou que seguissem para casa de sua sobrinha O caso era o seguinte José Manuel entrara para casa em braços tendo sido acometido na rua de um violento ataque apoplético ao voltar do cartório onde tivera uma grave contestação com o procurador de D Maria por causa da demanda que entretinham Luisinha a coitada vendose naqueles apuros sem saber o que fizesse despachara logo portador para casa de sua tia D Maria apenas entrou mandou chamar o licenciado que depois de examinar o doente declarou que era caso perdido Fizeramse entretanto algumas aplicações que não tiveram resultado algum Estás viúva menina disse D Maria alguma coisa compungida com a declaração do médico Luisinha pôsse a chorar mas como choraria por qualquer vivente porque tinha coração terno Estavam presentes algumas pessoas da vizinhança e uma delas disse baixinho à outra vendo o pranto de Luisinha Não são lágrimas de viúva E não eram nós já o dissemos o mundo faz disso as mais das vezes um crime E os antecedentes Porventura ante seu coração fora José Manuel marido de Luisinha Nunca o fora senão ante as conveniências e para as conveniências aquelas lágrimas bastavam Nem o médico nem D Maria se haviam enganado à noitinha José Manuel expirou No dia seguinte fizeramse os preparativos para o enterro A comadre informada de tudo compareceu pesarosa a prestar seus bons ofícios suas consolações Mais tarde disse ela depois de algum tempo de conversação há de vir alguém cumprir dois deveres E limitouse a isso sem mais se explicar183 O enterro saiu acompanhado pela gente da amizade os escravos da casa fizeram uma algazarra tremenda A vizinhança pôsse toda à janela e tudo foi analisado desde as argolas e galões do caixão até o número e qualidades dos convidados e sobre cada um desses pontos apareceram três ou quatro opiniões diversas Naqueles tempos ainda se não usavam os discursos fúnebres nem os necrológios que hoje andam tanto em voga escapamos pois de mais essa José Manuel dorme em paz no seu derradeiro jazigo deixemolo que se outros mortos para nada servem aquele menos do que nenhum184 Como havia prometido a comadre alguém chegou quase ao anoitecer Era o Leonardo Quando ele entrou na sala D Maria não pôde conter um grito de surpresa vinha ele em completo uniforme de sargento da companhia de granadeiros Como olhem o major E então É verdade senhora dona respondeu o Leonardo a ele tudo devo 185 E começou a procurar com os olhos alguma coisa ou alguém que tinha curiosidade de ver deu com o que procurava era Luisinha Há muito que os dois se não viam não puderam pois ocultar o embaraço de que se acharam tomados E foi tanto maior essa emoção que ambos ficaram surpreendidos um do outro Luisinha achou Leonardo um guapo rapagão de bigodes e suíça elegante até onde pode sêlo um soldado de granadeiros com o seu uniforme de sargento bem assente Leonardo achou Luisinha uma moça espigada airosa mesmo os olhos e cabelos pretos e tendo perdido todo aquele acanhamento físico de outrora Além disso seus olhos avermelhados pelas lágrimas seu rosto empalidecido se não verdadeiramente pelos desgostos daquele dia seguramente pelos antecedentes tinham nessa ocasião um toque de beleza melancólica que em regra geral não devia prender muito a atenção de um sargento de granadeiros mas que enterneceu ao sargento Leonardo que apesar de tudo não era um sargento como qualquer E tanto assim que durante a cena muda que se passou quando os dois deram com os olhos um no outro passaram rapidamente pelo pensamento do Leonardo os lances de sua vida de outrora e remontando de fato em fato chegou ele àquela ridícula mas ingênua cena da sua declaração de amor a Luisinha Pareceulhe que tinha então escolhido mal a ocasião e que agora isso teria um lugar muito mais acertado A comadre que dava uma perspicaz atenção a tudo o que se passava como que leu na alma do afilhado aqueles pensamentos todos fez um gesto quase imperceptível de alegria raiavalhe na mente alguma idéia luminosa Começou então a retraçar um antigo plano em cuja execução por muito tempo trabalhava e cujas probabilidades de êxito lhe haviam reaparecido naquilo que se acabava de passar Passada a primeira emoção Luisinha ergueuse e fez ao Leonardo um acanhado cumprimento este correspondeulhe com alguma coisa entre cumprimento paisano e continência militar A comadre rompeu depois disto a conversa procurando entreter D Maria e deixar os dois lá entregues a si Digame disse ela dirigindose a D Maria e aquela sua demanda com o defunto A morte foi desta vez juiz Ele não tem herdeiros era só no mundo Eu não levei a minha avante é verdade porque enfim não posso dizer que venci mas também não perdi Agora sim eu tenho muito gosto de entregar tudo à menina mas não queria que me levassem as coisas senão por minha muito livre vontade Está bem o passado já lá vai Deus é assim escreve direito por linhas tortas E por aí adiante empenharamse na sua conversa Os dois depois de algum tempo de silêncio como já se tinham retirado todas as visitas foram pouco e pouco de palavra em palavra travando diálogo e conversavam no fim de algum tempo tão empenhadamente como a comadre e D Maria com a diferença que a conversa daquelas duas era alta desembaraçada a deles baixa e reservada Não há nada que interrompida mais depressa se reate do que seja a familiaridade em que o coração é interessado Não se estranhe pois que Luisinha e Leonardo a ela se entregassem E querem ver uma extravagância que tantas vezes se repete Depois que se fizera moça e que tomara estado nunca Luisinha tinha tido momentos de tão verdadeiro prazer como aqueles que ali estava gozando com aquela conversa num dia de luto quando acabava de sair o caixão que levara à sepultura aquele que devia ter feito a sua felicidade O Leonardo também por sua vez nunca no meio de todas as vicissitudes de sua vida extravagante tinha tido instantes que tão rápidos lhe corressem e os instantes mais rápidos são os mais venturosos186 do que aqueles em que via o objeto de seus primeiros amores sob o peso do infortúnio em um dia de pranto Pois parece que aquelas mesmas circunstâncias reavivaram o passado a comadre folgava lá no seu lugar com tudo aquilo e parecendo prestar toda a atenção a D Maria não perdia uma só circunstância Finalmente chegou a hora da retirada não da comadre que se ofereceu para fazer companhia à viúva porém de Leonardo a quem esperava o major porque era dia de serviço e apenas tinha ele obtido licença para cumprir o duplo dever de dar os pêsames a D Maria e agradecer o interesse que por ele havia tomado fazendo por intermédio de Maria Regalada que o major não só lhe alcançasse perdão do castigo que lhe era destinado como também o acesso de posto que repentinamente tivera Luisinha involuntariamente estendeu à despedida a mão ao Leonardo que lha apertou com força Ora isto naquele tempo187 era bastante para dar que falar ao mundo inteiro capítulo xlvii Conclusão feliz188 A comadre passou com a viúva e sua tia quase todo o tempo do nojo e acompanhouas à missa do sétimo dia O Leonardo compareceu também nessa ocasião e levou a família à casa depois de acabado o sacrifício Aquele aperto de mão que no dia do enterro de seu marido Luisinha dera ao Leonardo não caíra no chão a D Maria assim como também lhe não escaparam muitas outras coisas consecutivas a essa e o caso é que não lhe parecia extravagante a idéia que lhe andava na mente Muitas vezes quando ao cair da avemaria a boa da velha se sentava a rezar na sua banquinha em um canto da sala entre um padrenosso e uma ave maria189 do seu bendito rosário lhe vinha a idéia de casar de novo a fresca viuvinha que ainda muito moça corria o risco de ficar de um momento para o outro desamparada num mundo em que os Josés Manuéis190 não são difíceis de aparecer especialmente a uma viuvinha apatacada e ao mesmo tempo que lhe vinha esta idéia lembravase também do Leonardo que amara sua sobrinha no tempo da criançada que era apesar de extravagante um bom moço e que além disso não era de todo desarranjado graças à benevolência do padrinho barbeiro que dele se lembrara em sua hora extrema Verdade é que se não sabiam bem as contas que seu pai havia feito a semelhante respeito mas como era coisa que constava de verba testamentária D Maria nada via mais fácil do que propor uma demanda cujo resultado não seria duvidoso Havia porém no meio de tudo isto uma coisa que deitava água na fervura e vinha a ser que o Leonardo era soldado ora soldado naquele tempo era uma coisa de meter medo Quando D Maria chegava a este ponto de suas meditações abandonavaas e continuava o seu rosário A comadre pensava quase exatamente do mesmo modo e só esta única dificuldade se lhe antolhava à realização de seu antigo plano Enquanto estas duas pensavam os outros dois obravam Luisinha e Leonardo travaram pouco a pouco grande namoro e quem quiser ver coisa de andar depressa é namoro de viúva Leonardo no dia do primeiro encontro quis recorrer a uma nova declaração Luisinha porém fez o processo mais sumariamente aceitando a declaração de há tantos anos Viamse os dois muitas vezes sem que os vissem e dispunham seus negócios Infelizmente o mesmo embaraço lhes ocorria um sargento de linha não podia casar Havia um meio talvez simples de remediar tudo e meio muito em voga aquele tempo muito admitido Os dois porém antes de tudo amavamse sinceramente e a idéia de uma união ilegítima a que faltava o caráter de vitaliciedade lhes repugnava por isso que não correspondia de modo algum ao seu amor que tinha para eles a perspectiva de durar um milhão de eternidades Era uma boa inspiração aquela que eles tinham esse meio de que falamos essa caricatura da família que então se usava é seguramente uma das causas que produziu este estado de desmoralização da nossa sociedade onde impera o egoísmo porque tão frouxos são os laços que unem entre si os seus membros Era isso unicamente que demorava aos dois entretanto o Leonardo um dia achou o salvatério e veio comunicar a Luisinha o meio que tudo remediava Podia ele ficar sendo soldado e casar isto é alcançar baixa na tropa de linha e passar para as milícias no mesmo posto A dificuldade porém estava toda em arranjar essa baixa e passagem Luisinha encarregou se por sua parte de vencer este novo embaraço que aparecia Um dia em que estava sua tia a rezar o seu rosário e justamente num daqueles intervalos de padrenosso e avemaria de que acima falamos Luisinha chegouse a ela e comunicoulhe com confiança tudo que havia fazendo preceder a sua narração da seguinte observação que cortava qualquer objeção que ela pudesse opor Por lhe obedecer e lhe fazer o gosto caseime uma vez e não fui feliz quero ver agora se acerto melhor fazendo nova escolha por mim mesmo Em breve porém conheceu a inutilidade de sua precaução porque D Maria confessou que ruminava há tempos a mesma idéia e que naquele mesmo instante nisso pensava Combinaramse pois as duas A bondade do major tinhalhes inspirado a maior confiança e pois a ele lembraramse de recorrer de novo Foram ter com a MariaRegalada que mesmo na véspera lhe tinha mandado dar parte que se mudara da Prainha e lhe oferecia sua nova morada A comadre de tudo inteirada não faltou na comissão que desta vez adquirira mais um eloqüente membro Quando entraram na casa de MariaRegalada a primeira figura que lhes apareceu foi o major e o que é mais o major em hábitos menores de rodaque e tamancos Ah disse a comadre em tom malicioso apenas apareceu Maria Regalada ah isto pelo que vejo vai bem Não se lembram respondeu esta daquele segredo com o qual obtive o perdão do moço Pois era isto A MariaRegalada tinha por muito tempo resistido à vontade do major que queria que ela viesse definitivamente morar em sua companhia não atribuímos essa resistência senão a capricho para não fazermos mau juízo de ninguém O caso é que o major punha naquilo o maior empenho teria lá suas razões O segredo que a MariaRegalada dissera ao major no dia em que fora pedir pelo Leonardo tinha sido a promessa de que se fosse servida cumpriria o gosto do major Está pois tudo explicado Depois disto entraram todos em conferência o major desta vez achou o pedido muito justo em atenção ao fim por que era feito e não pôs dificuldade alguma Com a sua influência tudo alcançou e em uma semana entregou ao Leonardo dois papéis um era a sua baixa da tropa de linha e outro uma carta em que o velho LeonardoPataca chamava seu filho para lhe fazer entrega do que lhe deixara seu padrinho e que se achava religiosamente intacto Isto ensinará aos leitores e a quem escreve esta história a não fazerem maus juízos da probidade de ninguém nem mesmo da probidade de um meirinho daqueles tempos de outrora191 Passado o tempo indispensável do luto o Leonardo em uniforme de Sargento de Milícias recebiase na Sé com a Luisinha assistindo à cerimônia toda a família em peso Daqui para diante começa a aparecer o reverso da medalha de todas essas chocarrices de que até então constou a vida do Sargento vinha a morte do velho LeonardoPataca e mil outras coisas tristes O autor não tem gênio para tratar dessas coisas e por isso dá fim pedindo aos leitores que se esqueçam do seu trabalho não lhe façam carga de seus defeitos porque foi apenas um ensaio Se alguém disser que é mau costume querer o barbeiro novo aprender na barba do freguês tolo ele observara que os leitores e só deles se hão de aproveitar de algum fruto bom que por ventura este ensaio possa dar e que portanto tenham tolerância para quem principia192 FIM Posfácio A autocensura nas Memórias de um sargento de milícias193 Os folhetins das Memórias de um sargento de milícias começaram a sair anonimamente no dia 27 de junho de 1852 e terminaram em 31 de julho do ano seguinte Faziam parte da Pacotilha do nº 73 ao 131 suplemento do Correio Mercantil do Rio de Janeiro jornal especializado em assuntos comerciais Fazendo jus ao nome o suplemento tinha um modo muito curioso de denominar seus assuntos suas partes e mesmo seus leitores estes eram chamados de fregueses o sumário era a fatura as notícias eram as mercadorias etc Havia entre folhetim e Pacotilha uma identificação que ia além do aspecto gráfico Passavase das demais matérias para o texto do romance e deste para aquelas freqüentemente sem nenhuma indicação gráfica principalmente no final do folhetim Além disso irreverência e humor davam o tom a ambos Mantinham também um permanente diálogo em vários números o suplemento faz alusão ao folhetim ora com o propósito de simplesmente anunciar sua publicação ora dando conta de parte de seu enredo O número 95 por exemplo traz um comentário que atribui a ausência de capítulo da obra à falta de inspiração do autor O folhetim por seu turno apropriavase de muitos dos assuntos comentados pelos redatores do jornal entre os quais se incluía o próprio Manuel Antônio de Almeida Críticas ao hábito da maledicência à prática de patuscadas e ao comportamento do clero são alguns exemplos Cabe esclarecer que havia uma diferença de perspectiva entre os dois discursos Festividades religiosas nada piedosas brigas práticas maledicentes ou mesmo desonestas eram mostradas pelo folhetim mais como chocarrices ou mesmo como matéria da visão satírica do autor sem atitude de censura Já a Pacotilha noticiava fatos semelhantes com tom de censura Chegava mesmo a cobrar da polícia ações mais efetivas Como os fatos decorriam indiretamente de reclamações dos leitores ao jornal só cabia tal atitude Quanto à identificação visual tratavase de um recurso prático e eficiente para estimular por meio das peripécias do romance a leitura das outras matérias A suspensão da narrativa em momentos estratégicos obrigava o leitor interessado na continuação da história a voltar a ler o jornal Essa função motivadora está na origem do folhetim Os jornais franceses do início do século xix começaram a perder seus leitores como conseqüência da forte censura imposta por Napoleão à imprensa Como forma de motiválos criouse uma seção de entretenimento denominada feuilleton que ocupava em geral o rodapé da primeira página A princípio era uma designação genérica que servia para abrigar desde crítica teatral resenhas crônicas até receitas culinárias ou de beleza anedotas e charadas A partir de 1836 o proprietário do jornal Le Siécle Émile de Girardin reserva o espaço nobre de seu jornal para a publicação do romance picaresco Lazarillo de Tormes que passa a sair em capítulos diários A partir daí o termo folhetim começa a adquirir um sentido mais restrito designando apenas o romance publicado em partes através da imprensa Os demais assuntos que compunham o primitivo folhetim as variedades vão para páginas internas do jornal e passam a receber nomes específicos exigindo uma adjetivação para o termo genérico ex folhetim literário Os objetivos do empresário foram plenamente atingidos isto é ele passou a vender mais jornais Os concorrentes evidentemente aderiram ao expediente A origem do folhetim portanto ligase a fatores antes de mais nada comerciais A necessidade de atingir um público mais amplo e as condições impostas pelo modo de publicação acabaram por definir já na década de 1840 uma verdadeira fórmula para o folhetim cujos grandes artífices foram Eugène Sue autor de Os mistérios de Paris publicado entre 1841 e 1843 e Alexandre Dumas autor de O conde de Monte Cristo de 1844 cortes marcados pela técnica do suspense muita ação personagens planas conflitos gerados sempre por uma visão maniqueísta da realidade facilidade de recepção etc Exatamente essa facilidade de recepção e também de aquisição é que redime em parte a onda folhetinesca Antonio Candido194 lembra que as dezenas de traduções dos folhetins franceses vieram contribuir para disseminar o hábito da leitura Acresçase a isso mais um aspecto positivo ao lado da literatura de carregação de Féval Soulié Kock e Sue tivemos a boa literatura de Chateaubriand Balzac e Dumas O folhetim teve também o importante papel de servir de balão de ensaio para o escritor Conforme nos informa M Meyer Praticamente toda a ficção em prosa da época passa a ser publicada em folhetim para então depois conforme o sucesso obtido sair em volume195 No Brasil os primeiros folhetins foram introduzidos no século xix no final da década de 30 através da tradução dos autores franceses Só depois surgiram os folhetins nacionais que passaram a imitar servilmente o modelo francês O que se apresentava ao jovem Manuel A de Almeida como modelo era portanto o original francês ou a sua reprodução nacional Para atender ao gosto do público só lhe restava navegar nas mesmas águas das lágrimas fáceis dos enredos melodramáticos do folhetim arquetípico Também para cumprir o papel de estimulador de venda do jornal em cujas páginas publicou seu romance e do qual fazia parte como redator cabialhe seguir a fórmula consagrada por Eugène Sue e Alexandre Dumas e repetida à exaustão pelos epígonos Acrescentese a isso a motivação de todo folhetinista principiante transpor para as páginas do livro o sucesso do jornal Ele preferiu contudo não seguir a receita Nadando contra a maré desautomatizou o modelo vigente tanto do ponto de vista do conteúdo quanto do lingüístico e estilístico Quanto a esse último aspecto encontramos na crítica referente a nosso autor freqüentes alusões a sua atitude antiretoricista Mário de Andrade196 por exemplo vê as Memórias como um livro à margem das literaturas resultado de um reacionarismo temperamental que o põe contra a retórica de seu tempo Darcy Damasceno197 afirma que Almeida levantou contra a retórica a espontaneidade da linguagem afetiva tendo produzido uma obra contrastante com seu tempo pois ia contra os arroubos passionais e a grandiloqüência predominantes Em A Candido encontramos várias referências a essa atitude como esta que é bastante expressiva É quase incrível que em 1852 um carioca de 20 anos conseguisse estrangular a retórica embriagadora a distorção psicológica o culto do sensacional a fim de exprimir uma visão direta da sociedade de sua terra Quando Darcy Damasceno cotejou as edições F e L198 das Memórias e expôs suas conclusões estava dando uma grande contribuição para desfazer a idéia de que o romance era fruto apesar de toda a novidade que trazia de uma escrita inconsciente e descuidada Pretendia revelar ao contrário que a obra era o resultado de uma elaboração estilística exigida pela consciência da adequação do código utilizado ao conteúdo criado Ao retomarmos o referido estudo pretendemos rever suas conclusões e justificar a oportunidade desta edição Para Damasceno a revisão do autor foi o resultado de certo policiamento que teria atendido a três propósitos a correção de deslizes de conteúdo ou de redação b aprimoramento do texto primitivo com base em convicções estilísticas próprias c revisão ditada por uma autocensura por conta de concessão ao modelo estilístico vigente A primeira conclusão não comporta questionamento uma vez que as condições de produção do folhetim favorecem a ocorrência de inúmeras falhas Quanto aos outros dois julgamos que mereçam uma releitura Algumas ocorrências que Damasceno considera aprimoramento estilístico ou desbaste da frondosidade rotunda e pleonástica economia verbal conforme suas palavras realmente o são Outras no entanto que ele assim classifica a nosso ver bem poderiam entrar para o rol daquelas que ele considera acertadamente como perda de carga afetiva e concessão à lógica restrições por conta de uma ética literária prudência no trato das cousas e gentes portuguesas etc Enfim resultariam também de autocensura A nova paragrafação adotada em L atende a uma visão mais dinâmica e ágil da estrutura do texto Nos folhetins os parágrafos são mais concentrados Há que se considerar também as peculiaridades de cada veículo Outros exemplos de revisão estilística plenamente justificável podem ser citados há moderação no uso do que mudanças na ordem dos elementos da frase que contribuem para a melhoria do ritmo pontuação mais adequada etc Damasceno vê como positiva a eliminação de inúmeros circunlóquios retóricos como por exemplo deixemos estas considerações vamos continuar como já dissemos No entanto o próprio estudioso justifica os lembrando que tais circunlóquios na primeira versão eram ditados pela técnica narrativa própria do folhetim Em técnica semelhante a urdidura de racontos eles têm finalidade ora evocatória aludindo a antecedentes dos fatos narrados ora motivadora anunciando episódios futuros No livro que permite uma leitura sem a descontinuidade do folhetim são menos necessários por isso foram parcialmente eliminados Manuel A de Almeida procedeu também a uma considerável substituição lexical Contudo as ocorrências que caracterizam revisão estilística espontânea não constituem a maioria Entre estes casos podem ser citados a troca de ril de três por minuete da corte de alatinado por latinista de conversação por conversa etc Estamos com Damasceno que atribui a troca de ril por minuete troca que ocorre quatro vezes no romance ao imediatismo de compreensão e afinamento emocional e informa que minuete ao contrário de ril era termo vulgarizado pelos espetáculos líricos da sociedade fluminense no século passado Nos outros dois casos os termos latinista e conversa são mais correntes que alatinado e conversação e mais consentâneos com o tom coloquial do romance Esses casos no entanto são raros O que predominou mesmo foram as substituições motivadas pela autocensura do escritor conseqüência das pressões do meio Ainda que tenham sido veladas ou mesmo tácitas e não estejam portanto documentadas é possível enfeixar alguns argumentos que possam sustentar tal ponto de vista Essa autocensura funcionou no conteúdo e na expressão tendo provocado cortes de cenas e comentários e revisão lingüística Os cortes foram ditados em geral por conveniência políticoideológica a revisão por concessões ao modelo retórico vigente O caso mais eloqüente de autocensura quanto ao conteúdo é o corte das referências ao rei Em toda a obra das vinte e tantas menções treze foram riscadas e referência direta permaneceu apenas uma No capítulo Nova vingança e seu resultado a palavra rei ou as variantes elrei ou el rei aparece nada menos do que onze vezes No livro o rei é tirado de cena conseqüentemente todas somem Sua participação embora muda era fundamental Além de aumentar o efeito cômico dava coerência à narrativa pois o clima de expectativa que aí se cria dependia da chegada do rei Uma das menções tinha inclusive um tom irreverente Dizia que elrei começava já a franzir o sobrolho como qualquer mortal No capítulo Derrota lêse José Manuel enfiou uma mentira muito sem sabor que nós poupamos ao leitor como está em L Em F ficamos sabendo de que mentira sem sabor se trata elrei o mandara chamar a palácio e depois de cobrilo das maiores honras e obséquios lhe oferecera o comando da polícia da cidade pois que o Vidigal já não satisfazia tão bem o serviço ele porém recusara a pés juntos com o que elrei se mostrara muito zangado e o despedira Comentando esse corte Damasceno é mais explícito Admissivelmente as providências restritivas que visando a salvaguardar o respeito e acatamento à casa imperial haviam levado à censura dos espetáculos teatrais pela criação do Conservatório Dramático Brasileiro influíram na literatura do tempo impedindo mediante certa ética literária o colocaremse em relevo nos episódios cômicos imorais ou de crueldade ascendentes de Sua Majestade Imperial Não foi Manuel A de Almeida infenso à lusofobia que reinou logo após a Independência Em várias passagens do romance manifestase o tom zombeteiro contra os portugueses A revisão houve por bem eliminar tais manifestações como se pode verificar pelas notas de rodapé Há outros cortes de cenas que o crítico considera pormenores descritivos ou anedóticos sem interesse e de comentários que ele julga considerações sentenciosas dispensáveis que nos parecem também conseqüência de autocensura Alguns foram corretamente eliminados mas outros poderiam muito bem ser mantidos sem prejuízo para a qualidade literária da obra Dos vários casos listados selecionamos dois de cada tipo que ilustram bem o procedimento restritivo No capítulo iv quando Leonardo resolve tomar fortuna em casa do caboclo para solucionar dificuldades amorosas o narrador descreve em minúcias os apetrechos usados pelo nigromante em seu ritual mencionando alguidares ervas líquidos etc que acabaram suprimidos em L Dois capítulos adiante o compadre informa à comadre que o afilhado está morrinhento Quando surge o menino ela diagnostica é olhado A solução vem em seguida Voltou depois durante três dias e com rezas e benzeduras conseguiu grifo do autor livrar o pequeno do mal que sofria olhado quebranto ou o quer que seja A doença do menino e sua cura sumiram da cena em L Nos dois casos o autor houve por bem omitir um conhecimento tão minucioso sobre feitiçaria e crendices ainda que essas práticas fossem apresentadas de modo caricato Para um estudante de medicina não convinha exagerar nesses conhecimentos Também a divulgação de rituais de origem africana e do sincretismo religioso poderia desagradar aos leitores em sua maioria católicos Para Jamil Haddad essa medicina de curandeiro sangrias ervas rezas feitiços denota a formação rueira quase proletária do livro199 Quanto aos comentários um é sobre a semelhança entre a coreografia do fado e o namoro o outro sobre a herança deixada pelo compadre Quando se descreve o fado cap v essa dança voluptuosa como diz o narrador fazse em F a seguinte comparação Parece esta forma de dança representar a história de um namoro ao princípio confiança e intimidade depois negaças escrupulosas depois arrufos de parte a parte e finalmente pazes Quanto à herança cap xxviii ao se discriminarem os bens depois de mencionar um bom par de mil cruzados em espécie lêse em F Entregues alguns legados de pouca monta grifo nosso como fossem um crucifixo à comadre um oratório a D Maria e uma caixa de prata para rapé a um velho amigo do compadre etc Talvez por pudor tenha sido suprimido o primeiro trecho Tinhorão200 cita várias fontes de viajantes estrangeiros onde se descrevem tais danças com expressões como danças lascivas nacionais é o mais indecente figuras variadas e todas muito voluptuosas Quanto ao segundo talvez por respeito religioso afinal considerar os símbolos religiosos como legados de pouca monta e colocálos no mesmo plano que uma caixa de rapé poderia soar irreverente demais aos leitores do livro Ainda a propósito de atitude irreverente reprimida pelo autorrevisor vale a pena fazer mais dois registros ambos no cap xlv que têm também seu lado pitoresco No primeiro MariaRegalada procura o major para interceder por Leonardo e dizlhe ao ouvido algumas palavras O major responde Ora esta pois era preciso falar nisto Olhem que o que mulher não fizer nem o diabo faz A fala suprimido o segmento que grifamos ficou assim Ora esta pois era preciso falar nisto Enfim Talvez por acreditar no que diz o rifão o autor achou melhor não provocar a ira das leitoras ainda que fosse através da fala do major No segundo motivado pelo enterro de José Manuel o narrador faz um comentário em que ironiza machadianamente uma prática de seu próprio tempo e ofende os mortos Naqueles tempos ainda se não usavam os discursos fúnebres nem os necrológios que hoje andam tanto em voga escapamos pois de mais essa José Manuel dorme em paz em seu derradeiro jazigo deixemolo que se outros mortos para nada servem aquele menos do que nenhum O trecho que trata da inutilidade dos mortos foi riscado em L O jogo presentepassado nos sugere a última manifestação de censura temática que registraremos Em vários passos do romance o narrador faz críticas à época que ele vive Mas o cotejo das duas versões revela algumas foram mantidas outras eliminadas ou atenuadas em L Consignaremos três ocorrências que nos pareceram mais expressivas Na primeira cap xxiii após falar da ingenuidade de Luisinha ante os castelos amorosos de Leonardo o narrador comenta quem sabe mesmo se a pobre menina sabia lá dessas cousas de amor se tinha mesmo a mais leve idéia disso hoje uma menina nas circunstâncias dela estaria mais que muito em dia e tomaria a parte que lhe devia competir no negócio naquele tempo porém de bons costumes e santidade grifo do autor isso era cousa com que ninguém devia contar O comentário foi totalmente riscado em L Mais uma vez o autor preferiu poupar suas leitoras mais jovens Na segunda cap xxx um comentário de caráter histórico ele insinua que falta segurança a sua cidade e escarnece de medidas sanitárias que estão sendo tomadas pelas juntas e câmaras Após falar com um certo lirismo incomum nas Memórias sobre os luares magníficos que só fazem no Rio de Janeiro sobre passeios noturnos com descantes e ceias e dizer que muitos dormiam a noite inteira ao relento comenta Quanto a medo do que quer que fosse contra a segurança individual não o tinham pois descansavam tranqüilos na atividade do major Vidigal e quanto a cuidados sanitários e higiênicos isso é invenção moderna das juntas e câmaras que faria dar boas risadas de incredulidade e talvez de escárnio até ao próprio físicomor se aparecesse então Nem mesmo as zamparinas tinham sido capazes de despertar semelhantes idéias O comentário que inclui uma referência à zamparina surto gripal que irrompeu no Rio de Janeiro em fins do século xviii foi totalmente suprimido Na terceira último capítulo depois de se cogitar da união ilegítima entre Leonardo impedido de casar por ser sargento de linha e Luisinha o narrador assume uma atitude moralista raro na obra afirmando esse meio de que falamos essa caricatura da família que então se usava é seguramente uma das causas que produziu este estado de desmoralização da nossa sociedade onde impera o egoísmo porque tão frouxos são os laços que unem entre si os seus membros Na segunda versão foi atenuada a crítica pois a expressão estado de desmoralização mudou para estado moral e o final onde se fala do egoísmo e dos frouxos laços foi cortado A atenuação dessa crítica se representou um recuo do autor pelo menos teve uma conseqüência positiva adensou o clima ficcional da obra conforme C de Lara201 De um modo geral esses cortes e alterações parecem atender ao desejo de não chocar o leitor do livro que não teria pelo menos na expectativa do autor a mesma efemeridade do folhetim igualmente descartável como o jornal em que se insere Ressaltese ainda que o folhetim por ser parte do jornal e por estar inserido em um suplemento composto de matéria e linguagem desabusadas gozava de uma liberdade que o livro não tinha Outros exemplos desse procedimento podem ser localizados nas notas de rodapé desta edição As alterações formais também permitem inferir uma ação censora do autor Excetuados os casos que constituem realmente uma revisão estilística motivada por convicções próprias outros há que autorizam a tese da autocensura ditada pelo uso mais conservador da língua de acordo com o modelo vigente ou mesmo por conveniência políticosocial Na cena do batizado cap i quando a brincadeira aferventou grifo do autor inspirado pelas saudades da terra natal Leonardo canta a seguinte modinha Quando estaba em minha terra Acompanhado ou sozinho Cantaba de noite e de dia Ao pé dum copo de binho Em L as marcas da pronúncia lusitana foram apagadas Para Damasceno a revisão do texto tropeçou na facécia lingüística e deu por bem desfazer o espírito mordaz que motejava da prosódia reinol O uso de maiúscula às vezes revelou um zelo religioso como em cinco chagas Cinco Chagas há ainda o uso de recurso gráfico para ceder a um preceito gramatical assinalar o termo nãovernáculo É o que ocorre em toilletes toilletes202 Em consonância com o tom conversacional do estilo das Memórias é freqüente o uso de expletivos do tipo cá e lá aqui etc que ocorrem no discurso do narrador e com muito mais freqüência nas falas das personagens Talvez por concessão à idéia que se tinha de língua escrita com pouca tolerância à incorporação da oralidade procedeuse a uma discreta moderação no uso de tais partículas Julgamos que não havia razões estilísticas para tais cortes Vejamos alguns exemplos 1 bem diz aqui o padrinho bem diz o mestre 2 podiaselhe notar que não era lá tão feia de cara que não era tão feia de cara 3 É uma cousa que me põe cá à roda que me põe à roda 4 em que estivesse lá azeitado estivesse cheio de razões As revisões sintáticas do tipo restritivo foram também de pouca monta É o que ocorre no seguinte trecho entra seu pai sua mãe seus parentes e amigos seu compadre sua comadre seu dote seus filhos e filhas entram seu pai sua mãe Ao que tudo indica a longa enumeração dos núcleos do sujeito levaram o autor num excesso de zelo gramatical a preferir o plural Mas a posposição do sujeito permitiria a concordância com o núcleo mais próximo tolerando portanto o verbo no singular É muita rica a fraseologia das Memórias Mesmo tendo mantido felizmente dezenas de prolóquios e frasesfeitas o autor achou por bem cortar algumas Para Damasceno foi positiva tal providência pois são frasesfeitas descoloridas ou cediças Permitimonos discordar do eminente estudioso É da natureza de tais estruturas o serem sediças As que foram mantidas também o são Quanto a serem descoloridas o contexto revela o contrário se entendermos o termo não de modo impressionista mas objetivamente Coloridas seriam então expressões que dão vida ao texto pelo humor que traduzem pelo realce que conferem à mensagem pela variedade que as caracteriza Em suma pela adequação que revelam em relação ao assunto da narrativa Os próprios exemplos citados por Damasceno o confirmam 1 era como vulgarmente se diz o mesmo que pôr água na fervura mudavamse repentinamente as cenas 2 pilhouos mesmo com a boca na botija achouos em flagrante delito de nigromancia 3 bastava que lhe desse na veneta armava brigas desse na cabeça As alterações retiraram o tom coloquial dos trechos retirando também seu valor impressivo As expressões novas por sua vez não têm o mesmo efeito de sentido pela sua neutralidade semântica Em 1 se formos buscar o contexto onde se insere o pôr água na fervura veremos que ele é muito mais expressivo que a frase substituta Em 2 além da troca de pilhou por achou em que o primeiro é mais marcado do ponto de vista estilístico a expressão nova confere um tom técnico ao texto que é estranho ao romance Em 3 podese ver uma cumplicidade semântica entre dar na veneta e armar brigas No afã de reprimir seu próprio discurso ocorreu com uma expressão o mesmo que vimos ocorrer com a retirada do rei de todo um capítulo quando a conseqüência foi um vazio narrativo ou mesmo certa incoerência Quando a enciumada Vidinha foi à ucharia tirar satisfações com a moça do caldo ao surgir o tomalargura ela o aborda de modo agressivo Em seguida escreve o narrador cap xxxix A surpresa e mesmo a figura de Vidinha através de cujos traços decompostos pela raiva o tomalargura sujeito prático e experimentado pôde conhecer como boafazenda desarmaramno um pouco sorriuse e respondeu A surpresa e mesmo a figura de Vidinha decomposta pela raiva desarmaramno um pouco e respondeu mais mansamente A segunda versão soa incoerente pois não há motivo para o desarme do tomalargura Já na primeira lá está a causa da mudança de ânimo Vidinha era uma boafazenda Segundo Aulete203 expressão popular que significa mulher bonita atraente Macedo Soares204 a toma como brasileirismo com o significado de coisa ou pessoa bonita bem fornida de carnes O autor quis evitar a metáfora reificadora da figura feminina É possível também que ele visse a expressão como vulgar Contudo nesse tipo de revisão o que mais salta aos olhos ocorre na área da seleção lexical Percebemos ao longo do cotejo cortes e trocas sistemáticas de palavras Palavras como diabo velhaco e brejeiro em vários passos foram retiradas de L A palavra Camarão foi substituída por chibata desnecessariamente já que é termo popular e brasileirismo de boa cepa segundo Damasceno O dicionário Moraes só registra o termo em 1877 na 7 ed Encontramos o vocábulo em M Soares que registra o sentido de chibata e em Rubim205 que define arbusto que cresce nas capoeiras das varas se fazem muitos usos Talvez por lapso o autor deixou de fazer a troca no trecho tocou no sujeito com a ponta do camarão cap xli Quanto a ilhéu ilhoa saloio a Damasceno esclarece Ilhéu devia ser nome genérico aplicado ao português inculto imigrado no Brasil Não apenas o insular O que nos parece é que mais uma vez se atenuou a manifestação lusófoba Ao contrário de ilhéu o saloio tipo rústico e particularizado podia ser alvo de chacota mesmo em Portugal Outros casos de substituição que apenas listaremos caracterizam também o comportamento lingüístico de que estamos falando negócio conversa negócio cousas pesado tamanco ferrado sapatão safavase punhase longe berro guincho zanga ojeriza mono logro beiços lábios encasquetado dado na cabeça trastes móveis murro socos estafermo estátua sérios estudos da parteira sérios cuidados etc Além da própria biografia do autor justificar tais cuidados na revisão das Memórias referimonos a sua origem humilde à necessidade de ascensão social à busca de proteção etc os depoimentos todos escritos após o desaparecimento do escritor e de pouca ou nenhuma repercussão dos contemporâneos também apontam para um Manuel A de Almeida injustiçado ou mesmo perseguido Quanto aos motivos dessa perseguição nós os encontramos em seus escritos jornalísticos nos quais ele manifestou uma visão crítica do momento histórico por ele vivido Os referidos depoimentos embora escassamente aludem também a características de personalidade e conduta que ajudariam a explicar tal fato206 Eis alguns trechos reveladores De F Octaviano 1861 Se a agitação de sua vida não o houvesse desviado da imprensa Almeida podia ter sido o mais ilustre de nossos jornalistas Mas esse infeliz mancebo arcando com a pobreza e tendo de prover a subsistência e futuro de suas irmãs viuse obrigado a deixar a carreira de sua predileção Do Diário do Rio de Janeiro 131261 Leal e dedicado até o heroísmo a sua vida foi um longo e penoso sacrifício uma luta constante e tenaz contra a adversidade Calmo e estóico no meio das maiores contrariedades nem guardava rancor ou despeito aos que recompensaram com a ingratidão os relevantes serviços que lhes prestara De A E Zaluar 1862 No Brasil os únicos homens que sofrem e arcam com as necessidades mais comuns da vida são os homens de talento que nasceram pobres e não querem sacrificar as suas convicções ao interesse de bandos políticos A maior parte dos que estão fora deste grupo seus amigos se ele não morresse matavamno De Quintino Bocaiúva 1863 Pela nossa parte que tão de perto o conhecemos e que lhe fomos irmão só temos um receio é de que nunca se chegue a avaliar devidamente o que valia aquela grande inteligência e sobretudo aquele grande coração que teriam feito de Almeida um tipo se Deus não houvesse preferido fazêlo mártir O recuo da história ao tempo do rei portanto um recuo de aproximadamente quarenta anos já que o tempo do rei compreenderia o período que vai de 1808 a 1821 revela a intenção do autor de evitar a crítica direta a seu próprio tempo A própria determinação prévia de situar os fatos narrados no passado mesmo que próximo já denotava cautela Para Sodré207 esse recuo é um disfarce Diz ele A antecipação histórica aliás poderia ter sido uma saída natural e intencional do autor para fazer crítica e há muita crítica transparente nas páginas do livro e não chocar os criticados Outra questão relevante é a do anonimato do folhetim e o uso de pseudônimo no livro cuja autoria foi atribuída a um brasileiro Tal procedimento dá a entender que convinha ocultar a autoria das Memórias A primeira edição a nomear o autor das Memórias foi a de 1863 impressa pela tipografia do Diário do Rio de Janeiro patrocinada por Quintino Bocaiúva e revista por Machado de Assis Curiosamente o dicionário de Teshcauer já em 1928 na lista de obras que abonam os verbetes cita as Memórias sem autoria expressa O anonimato não seria conseqüência de atitude envergonhada do autor o cotejo entre as edições F e L das Memórias nos revela a consciência do autor em relação a sua obra Talvez fosse melhor falar em prudência 208 Reginaldo Pinto de Carvalho Cronologia209 1831 nasce Manuel Antônio de Almeida em um bairro pobre do Rio de Janeiro no dia 17 de novembro Seus pais eram o tenente Antônio de Almeida e dona Josefina Maria de Almeida um modesto casal de portugueses 18421847 morre seu pai fato que agrava as dificuldades vividas pela sua família cursa o colégio São Pedro de Alcântara 1848 aprovado em exames da Faculdade de Medicina 1849 inicia o curso de medicina primeiras publicações de gênero poético nas revistas Guaraciaba Guaracinga e Harpejos Poéticos 1851 morre sua mãe sendo obrigado a se responsabilizar pela educação de duas irmãs Empregase no Correio Mercantil prestigioso jornal da Corte dirigido por Francisco Otaviano de Almeida Rosa no qual publica ao longo de cinco anos além dos folhetins das Memórias poemas crônicas artigos de crítica literária etcTraduz os folhetins de Gondicar ou o amor do cristão de L Friedel pela Tribuna Católica 1852 inicia a publicação no dia 27 de junho no suplemento dominical A Pacotilha do Correio Mercantil e sob anonimato os folhetins do romance Memórias de um sargento de milícias 1853 conclui a publicação dos folhetins das Memórias de um sargento de milícias no dia 31 de julho 1854 publica pela Tipografia Brasiliense o primeiro volume das Memórias de um sargento de milícias assinado com o pseudônimo Um Brasileiro Publica artigos de crítica literária na seção Revista Bibliográfica do Correio Mercantil 1855 publica o segundo volume das Memórias de um sargento de milícias Conclui o curso de medicina mas jamais exercerá a profissão 1856 desligase do Correio Mercantil 1857 é indicado diretor da Imperial Academia de Música e Ópera Nacional para a qual escreve o libreto Os dois amores ópera em três atos com partitura da professora de música Rafaela Rozwadowski A ópera é levada à cena com direção musical de Antônio Carlos Gomes 1858 nomeado administrador da Tipografia Nacional onde teve como aprendiz de tipógrafo o jovem Machado de Assis Ajuda a fundar o Liceu de Artes e Ofícios onde leciona geometria 1859 após ter sido exonerado da Tipografia Nacional é nomeado 2º oficial da Secretaria dos Negócios da Fazenda onde é encarregado de redigir uma História financeira do Brasil obra que não concluiu A Tipografia Nacional publica a obra de Charles Ribeirolles Brasil pitoresco para cuja tradução colaboram Manuel A de Almeida Machado de Assis e outros 1860 licenciase do cargo e completamente endividado retirase para Nova Friburgo onde inicia a tradução dos folhetins de O rei dos mendigos de Paul Féval para o Diário do Rio de Janeiro 1861 publica o libreto Dois amores Morre vítima de um naufrágio no dia 28 de novembro perto do litoral de Macaé na então província do Rio de Janeiro numa viagem que tinha finalidade política 1O sinal indicará as substituições F referese aos folhetins e L à 1ª edição em livro 2 Consultamos também almeida Manuel A de Memórias de um sargento de milícias Ed críticaTerezinha Marinho Rio de Janeiro inlmec 1969 3 rendezvous lugar de encontro 4Em L o verbo está no pretérito imperfeito talvez para atenuar a crítica Essa mudança de tempo ocorre em outras passagens da obra 5 encarnado branco 6A idade foi reduzida para 50 7 ilhoa saloia 8 tamanco sapatão 9 oito sete 10 ril de três minuete da corte 11 A prosódia lusitana foi eliminada com a troca do v pelo b nas três ocorrências 12 Os dois últimos parágrafos típicos dos folhetins foram substituídos pelo seguinte parágrafo que contém interessante referência a uma prática popular A festa acabou tarde a madrinha foi a última que saiu deitando a bênção ao afilhado e pondolhe no cinteiro um raminho de arruda 13 zanga ojeriza 14O trecho Dizembarbas foi eliminado 15 Este verbo e o próximo foram alterados para o pretérito perfeito o que prejudicou a vivacidade da narrativa 16 proferilas pronunciálas 17 O trecho que lhe parecia sempre ter muito sal foi suprimido 18 bulia entendia 19A referência ao rei foi eliminada 20 Parece ter havido aqui uma falha de revisão Em L acrescentouse a palavra idéia 21O título do capítulo foi simplificado ficando apenas Fortuna 22de uma forma bancas foi eliminado 23 etc e uns poucos tamanhos foi eliminado 24a pouca luz tornava foi eliminado 25velhacos industriosos 26 encasquetado dado na cabeça 27O trecho Uma fileira areia etc etc foi substituído por outro menos explícito no qual se diz cuja significação só conheciam os iniciados nos mistérios do caboclo 28 duas ou três três 29 de que muitos escritores têm falado de que muito se fala 30 o chão desfolhado foi suprimido 31 Parece pazes foi suprimido 32Na edição L talvez para ser mais fiel à descrição acrescentou o trecho junto à renda da qual se pregava uma pequena figa de ouro ou de osso 33punhalhe pendia a mantilha seguro por um enorme pente cravejado de crisólitas 34Para atenuar a crítica à sua época o autor alterou o tempo deste verbo assim como de outros mais adiante Ele preferiu colocálos no pretérito 35 ilhoazinha saloiazinha 36 Ainda há pouco tempo um fado de ciganos foi suprimido 37 A propósito achoulhe graça foi suprimido 38Quanto ao incômodo que pudesse foi suprimido 39 Voltou depois séria satisfação foi suprimido 40Este capítulo é o V da ed L Ao que parece o deslocamento pretendeu evitar a quebra da estrutura narrativa 41 que bem denotava o caráter em harmonia com as tendências e idéias 42 camarões chibatas 43garoto maroto 44 o mesmo que pôr água na fervura mudavamse repentinamente as cenas 45nigromantes mágicos 46 reluziam camarões se viam a arma de que acima falamos 47 pilhouos botija achouos em flagrante delito de nigromancia 48 alguidares indicamos os mais objetos que serviam ao sacrifício 49 que os viu bem sovados de um bom quarto de hora 50 Na edição L este capítulo trocou de posição com o próximo 51 um banco de braço embaixo do braço 52 e o faria de médico foi suprimido 53 para curar a gente a bordo morrese ali que é uma praga foi acrescentado 54 e uma caixa de pau foi acrescentado 55 importe soldada 56 para a Costa foi acrescentado 57 a pretexto tinha ali tinha a seu serviço 58 cinturão talim 59 comprar a quitanda comprar frutas 60 Madeira Lumiar Mariquinhas Mariazinha 61 quitandeira colareja 62 ilhoa saloia 63 cujo nome motivos particulares foi suprimido 64 trastes móveis 65 A revisão do autor introduziu aqui a palavra casas que realmente parece ter faltado 66 O autor preferiu os dois substantivos no singular em L 67Para evitar a repetição da palavra compadre especialmente nos dois primeiros parágrafos o autor recorreu a vários processos de substituição na edição L 68 e a quem atribuía rosário da comadre foi suprimido 69 de uma figa foi suprimido 70 raça de ilhéu depois de mortos má raça 71 Ilhoa saloia 72 e da existência do compadre foi suprimido 73 alatinado latinista 74 Em L acrescentouse a palavra nenhum que o sentido realmente parece exigir 75 apanhadormor de bolos apanhabolosmor 76 ril minuete 77 Oriental sectário de Mafoma 78 O autor oscila em contextos como esse quanto ao uso de a ou há 79 a que elrei assitir foi suprimido 80 elrei e toda a corte todos 81 em que elrei para o sermão do sermão 82 o rei mandou avisar que foi suprimido 83 chegou elrei foi suprimido 84 elrei esperar foi suprimido 85 elrei sobrolho foi suprimido 86 e muitas desculpas a elrei foi suprimido 87 pitada foi suprimido 88 o triunfo a queda 89 chega elrei é o sermão 90 e elrei foi suprimido restabelecendose a concordância do verbo 91 e até de criados de elrei foi surpimido 92 veneta cabeça 93 ilhoas saloias 94 Aqui a referência a elrei foi mantida talvez por implicar respeito 95 percebendo sua colherada chegouse para intervir na conversa 96 de capadócio capadoçal 97 Trem Conceição 98 um pratinho muito gostoso nunca acabar 99calcantibus foi suprimido 100 Todo o parágrafo foi suprimido 101 não ao toma vantagem e arranjouse 102A referência à idade da personagem foi eliminada 103 desses chamados de tabaco encarnado de Alcobaça 104 também não tinha igreja da Lapa foi suprimido 105Hoje se alguma ridículo foi suprimido 106tamboril foi acrescentado 107levantado levando 108 A observação dos parênteses foi suprimida 109 o Leonardo fizeram foi suprimido 110 convidada curiosidade 111 mesmo porque ao de hoje foi suprimido 112 As formas verbais une firma fala e comunica que ocorrem neste parágrafo foram passadas para o imperfeito tirando a vivacidade que o presente confere à narrativa como aqui se pode ver 113 cara rosto 114 mais velhaco foi suprimido 115quase não quase a a ponto de 116 negócios sucessos 117 fúrtil foi corrigido para fútil 118 Foi introduzido aqui o advérbio não que realmente parece estar faltando 119 velhaco esperto 120de fulano ou de beltrano deste ou daquele 121 o mar era tal perto uma da outra foi suprimido 122 A posição da vírgula foi corrigida em L 123 quem sabe tivesse formado foi suprimido 124 ah cólicas foi suprimido 125 estafermo estátua 126 dobrar sinos da Sé dar as nove badaladas no sino grande da Sé 127 e com um molho de figas e meiasluas signos de Salomão e outros preservativos de maus olhados presos ao cinteiro foi acrescentado 128 safava livrava 129era o amante executar foi suprimido 130 A observação entre parênteses foi eliminada 131 como sejam as caroladas desta ordem foi suprimido 132 mas amarrados um lugar foi suprimido 133 Estas raparigas endiabradas foi suprimido 134 Este parágrafo foi suprimido 135 Ora ora dáse coisa igual D Maria ficou por algum tempo muda de estupefação 136 via ele desejos lhe nasciam mais esperanças 137contou então o despedira enfiou então tomando por tema aquelas primeiras palavras que lhe tinham vindo à boca uma mentira muito sem sabor que nós poupamos aos leitores Não foram porém satisfeitas as vistas da comadre que queria desviar a conversa do furto da moça 138 que era velhaco escapava foi suprimido 139 catilinária grande alicantina 140 Eram eles rigorosos foi suprimido 141 mais foi suprimido 142 como fossem do compadre foi suprimido 143 Mariquinhas Chiquinha amante do Leonardopataca foi suprimido 144 nesse dia às canadas de estar ardendo com o que lhe sucedera 145 burros azeites 146 saltrapilho maltrapilho 147 Vidinha uma voz de moça aflautada e lânguida 148 beiços lábios 149Em L a parte que segue foi publicada como outro capítulo com o título Novos amores Em F saiu em outra edição da Pacotilha como continuação 150 Quanto a medo semelhantes idéias foi suprimido 151 Em L o autor inverte a ordem mencionando primeiro filhos e depois filhas uma vez que é essa ordem que se retoma mais adiante 152 a há 153 facilidade dificuldade 154 uma lufalufa imensa um lufalufa imenso 155 e bem capaz fiacres modernos foi suprimido 156 segundo Nicolau Tolentino foi suprimido 157 de que fala o poeta foi acrescentado 158 Deuse ainda a pouco tempo foi suprimido Foram feitas outras alterações no parágrafo 159 que o isolamento no coração foi suprimido 160 rapazes e raparigas moços e moças 161Em L foi acrescentado aqui a palavra ditos que parece estar faltando 162 filado posto a mão 163 brejeiro foi suprimido 164mostrando em Waterloo e ruminando projetos para sua reabilitação 165 aquela alicantina aquela choradeira Houve ainda alteração na ordem das palavras 166 foise igualmente pondo ao fresco tratou de retirarse 167 gastosa gostosa 168 etc foi surprimido 169 o tomalargura sorriuse foi suprimido 170 Dera tudo em fogo de palha foi acrescentado 171 tanto que consigo Deu mais rajadas aos dois explicou quem era mas não disse o que queria Afinal sem nada ter feito saiu dizendo 172 O vocábulo camarão que em passagens anteriores foi trocado por chibata aqui foi mantido 173 Em L o título passou para o plural 174Grande parte temos descrito foi suprimido 175 Em F a parte que segue foi publicada como continuação porém com o título no plural e em outra edição da Pacotilha 176sô pobre diabo foi suprimido 177 Há neste mundo É muito antigo dizerse que há 178 avó D Maria na história D Maria é tia e não avó 179 Esta vírgula é retirada em L 180 Olhem que faz Enfim 181 pra para 182 é foi acrescentado 183 Mais tarde se explicar foi suprimido 184 deixemolo do que nenhum foi suprimido 185 Foi aquilo objeto de geral espanto Ficariam todos muito contentes com a simples soltura do Leonardo e não só ele aparecia solto e livre como até elevado ao posto de sargento o que já não é no exército pouca coisa foi acrescentado formando um novo parágrafo 186 A reflexão dos parênteses foi eliminada 187 tempo foi acrescentado 188 Este capítulo foi praticamente reescrito para a edição L O autor fez cortes acréscimos transposições substituições etc 189 maria foi acrescentado 190os Josés Manéis maridos como José Manuel 191 Este parágrafo foi suprimido 192 Este parágrafo foi substituído por Seguiuse a morte de D Maria a do LeonardoPataca e uma enfiada de acontecimentos tristes que pouparemos aos leitores fazendo aqui ponto final 193As idéias aqui expostas foram desenvolvidas de forma mais completa em CARVALHO Reginaldo P de A linguagem chã contra os trejeitos da retórica A expressão da sátira em Memórias de um sargento de milícias São Paulo FFLCHUSP 1999 Tese de doutoramento 194CANDIDO Antonio Formação da literatura brasileira 2 ed São Paulo Martins Fontes 1964 195MEYER Marlyse Folhetim uma história São Paulo Companhia das Letras 1996 196ANDRADE Mário de Introdução In Memórias de um sargento de milícias Brasília Univ de Brasília 1963 197DAMASCENO Darcy A afetividade lingüística nas Memórias de um sargento de milícias Revista brasileira de filologia vol 2 tomo II Dez 1956 198 F folhetins da Pacotilha L primeira edição em livro 199HADDAD Jamil A Prefácio In ALMEIDA Manuel A Memórias de um sargento de milícias 4 ed São Paulo Melhoramentos 1962 200TINHORÃO José R A música popular no romance brasileiro Belo Horizonte Oficina de livros 1992 201LARA Cecília de Introdução In ALMEIDA Manuel Antônio de Memórias de um sargento de milícias Ed crítica Rio de Janeiro Livros Técnicos e Científicos 1978 202A maioria das edições da obra faz a correção ortográfica dessa palavra assim como de outras 203AULETE Caldas Dicionário contemporâneo da língua portuguesa 4 ed Rio de Janeiro Delta 1958 204SOARES Antônio J Macedo Dicionário brasileiro da língua portuguesa Rio de Janeiro INL 1954 205RUBIM Braz da C Vocabulario brasileiro para servir de complemento aos diccionarios da lingua portuguesa Rio de Janeiro Paula Brito 1853 206Tanto a produção jornalística de Almeida quanto os depoimentos podem ser conferidos em MENDONÇA Bernardo de Manuel Antônio de Almeida Obra dispersa Rio de Janeiro Graphia 1991 207SODRÉ Nélson W História da literatura brasileira 4 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1964 208Sobre essa questão ver JAROUCHE Mamede M Sob o império da letra imprensa e política no tempo das Memórias de um sargento de milícias São Paulo FFLCHUSP 1997 Tese de Doutoramento 209Baseada em rebelo Marques Vida e obra de Manuel Antônio de Almeida Rio de Janeiro inl 1943