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Texto de pré-visualização

I 32 RACHEL DE QUEIROZ I CADEIRA N9 32 PATRONO ULISSES PENNAFORT RACHEL DE QUEIROZ RACHEL DE QUEIROZ filha de Daniel de Queiroz e de Clotilde Franklin de Queiroz nasceu em Fortaleza no dia 17 de novembro de 1910 Tendo os primeiros estudos com professores particulares em sua própria residência iria concluir o Curso Normal no Colégio da Imaculada Conceição em Fortaleza em 1925 Apenas dois anos depois ingressa no jornalismo colaborando nO Ceará de Júlio lbiapina escrevendo a princípio sob o pseudônimo de Rita de Queluz Tornase redatora efetiva desse periódico e passa a escrever em revistas como A Jangada e jornais como O Povo fundado em 1928 de cujo suplemento modernista Maracajá de 1929 é figura destacada assinando textos em prosa e em verso com o nome real Ainda em Fortaleza escreveu e publicou seu primeiro romance que lhe daria renome nacional Transferindose para o Rio de Janeiro ainda em 1930 onde continua a publicar romances dedicouse também ao teatro e à crônica Durante muito tempo militou no jornalismo colaborando nO Jornal na Ultima Hora e no Jornal do Commercio escre vendo para revistas como O Cruzeiro e A Cigarra além de outros periódicos como o Diário de Notícias nos primeiros tempos de Rio Considerada uma das tradutoras mais ativas do pafs já transpôs para o nosso idioma cerca de quarenta obras Há vários dnos passa parte do ano no Rio de Janeiro e outra parte no interior do Ceará na sua fazenda Não me deixes Participou em 1966 da 21a sessão da AssembléiaGeral da ONU onde serviu como dele gado do Brasil na Comissão dos Direitos do Homem E do Conselho Federal de Cultura desde sua fundação em 1967 Tendo sido a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras tomou posse da Cadeira n9 5 no dia 4 de novembro de 1977 Obras publicadas O Quinze 1930 hoje com cerca de 40 edições João Miguel 1932 Caminho de Pedras 1937 As Três Marias 1939 Dôra Doralina 1975 O Galo de Ouro 326 1985 e Memorial de Maria Moura 1992 romance a maioria com várias edições A Donzela e a Moura Torta 1948 100 Crônicas Escolhidas 1958 O Brasileiro Perplexo 1964 O Caçador de Tatu 1967 As Menininhas e Outras Crônicas 1976 e O Jogador de Sinuca e Mais Historinhas 1980 crônicas Lampião 1953 e A Beata Maria do Egito 1959 teatro O Menino Mágico 1969 literatura infantojuvenil Acrescentese que o romance O Galo de Ouro havia sido publicado em folhetins d O Cruzeiro em 1950 O Quinze romance que projetou nacionalmente o nome da escritora cearense foi traduzido no Japão e na Alemanha As Três Marias nos Estados Unidos Dôra Doralina nos Estados Unidos e na França Vários foram os prêmios conquistados pelas suas obras o romance de estréia obteve o Prêmio da Fundação Graça Aranha o quarto romance o Prêmio da Sociedade Felipe d Oliveira A Beata Maria do Egito obteve o Prêmio de Teatro do Instituto Nacional do Livro e o Prêmio Roberto Gomes da Secretaria de Educação do Rio de Janeiro Lampião o Prêmio Saci dO Estado de S Paulo O romance Memorial de Maria Moura conquistou mais de um prêmio Em 1957 Rachel de Queiroz recebeu o prêmioconsagração da Academia Brasileira de Letras para conjunto de obra o Prêmio Machado de Assis Em 1993 a escritora foi agraciada com o Prêmio Camões do Governo de Portugal Quando em 1960 a Livraria José Olympio Editora para comemorar o cinqüentenário da ficcionista fez editar suas primeiras obras sob o título de Quatro Romances o poeta Manuel Bandeira escreveu o hoje famoso Louvado para Rachel de Queiroz incluído no livro Estrela da Vida Inteira Entre as traduções feitas pela escritora e às quais já fizemos referência podemos citar as de Humilhados e Ofendidos Recordações da Casa dos Mortos Os Demônios e Os Irmãos Karamázovi de Dostoiévski O Castelo do Homem sem Alma de Cronin Destino da Carne de Samuel Butler O Morro do Vento Uivante de Emily Bronte e Memórias de Tolstói Em 1970 recebeu o título de Cidadã Carioca outorgado pela Assembléia Legislativa do Estado da Guanabara Ao publicar O Quinze em 1930 foi a escritora saudada por Augusto Frederico Schmidt que afirmou entre outras coisas Não se encontra no pequeno romance que D Rachel de Queiroz acaba de publicar o mínimo abuso A própria paisagem de seca cujo horror podia dar motivo para maior expansão descritiva a própria paisagem vem apenas necessariamente em rápidos e sóbrios painéis tão rápido sóbrios tão ligados com a vida dos personagens com a vida do livro que seria imposslve se destacar um trechozinho qualquer para antologia 328 TANGERINEGIRL De principio a interessou o nome da aeronave não zepelim nem dirigível ou qualquer outra coisa antiquada o grande fuso de metal brilhante chamavase modernissimamente blimp Pequeno como um briquedo independente amável A algumas centenas de metros da sua casa ficava a base aérea dos soldados americanos e o poste de amarração dos dirigíveis E de vez em quando eles deixavam o poste e davam uma volta como pássaros mansos que abandonassem o poleiro num ensaio de vôo Assim de começo aos olhos da menina o blimp existia como uma coisa em si como um animal de vida própria fascinavaa como prodígio mecânico que era e principalmente ela o achava lindo todo feito de prata igual a uma jóia librandose majestosamente pouco abaixo das nuvens Tinha coisas de ídolo evocavalhe um pouco o gênio escravo de Aladin Não pensara nunca em andar dentro dele não pensara sequer que pudesse alguém andar dentro dele Ninguém pensa em calvagar uma águia nadar nas costas de um golfinho e no entanto o olhar fascinado acompanha tanto quanto pode águia e golfinho numa admiração gratuita pois parece que é mesmo uma das virtudes da beleza essa renúncia de nós próprios que nos impõe em troca de sua contemplação pura e simples Os olhos da menina prendiamse portanto ao blimp sem nenhum desejo particular sem a sombra de uma reivindicação Verdade que via lá dentro umas cabecinhas espiando mas tão minúsculas que não davam impressão de realidade faziam parte da pintura eram elemento decorativo obrigatório como as grandes letras U S Navy gravadas no bójo de prata Ou talvez lembrassem aqueles perfis recortados em folhas que fazem de chofer nos automóveis de brinquedo O seu primeiro contacto com a tripulação do dirigível começou de maneira puramente ocasional Acabara o café da manhã a menina tirara a mesa e fôra à porta que dá para o laranjal sacudir da toalha as migalhas de pão Lá de cima um tripulante avistou aquele pano branco tremulando entre as árvores espalhadas e a areia e o seu coração solitário comoveuse Vivia naquela base como um frade no seu convento sozinho entre soldados e ii exortações patrióticas E ali estava juntinho ao oitão da casa de telhado vermelho sacudindo um pano entre a mancha verde das laranjeiras uma mocinha de cabelo ruivo O marinheiro agitouse todo com aquêle adeus Várias vêzes já sobrevoara aquela casa vira gente em baixo entrando e saindo e pensara quão distante vivem os homens quão indiferentes passam entre si cada um trancado na sua vida Ele estava sempre voando por cima dos outros vendoos espiandoos e se alguns erguiam os olhos nenhum pensava no navegador que ia dentro queriam só ver a beleza prateada vogando pelo céu Mas agora aquela menina tinha para êle um pensamento agitava no ar um pano como uma bandeira decerto era bonita ô sol lhe tirava fulgurações de fogo de cabelo e a silhueta esguia se recortava claramente no fundo verdeeareia Seu coração atirou se para a menina num grande impulso agradecido debruçouse à janela agitou os braços gritou Amigo Amigo embora soubesse que o vento a distância o ruído do motor não deixariam ouvir nada Ficou incerto se ela lhe vira os gestos e quis corresponder de modo mais tangível Gostaria de lhe atirar uma flor uma oferenda Mas que podia haver dentro de um dirigível da Marinha que servisse para ser oferecido a uma pequena O objeto mais delicado que encontrou foi uma grande caneca de louça branca pesada como uma bala de canhão na qual em breve lhe iriam servir o café E foi aquela caneca que o navegante atirou atirou não deixou cair a uma distância prudente da figurinha iluminada lá embaixo deixoua cair num gesto delicado procurando abrandar a fôrça da gravidade a fim de que o objeto não chegasse sibilante como um projétil mas suavemente como uma dádiva A menina que sacudia a toalha erguera realmente os olhos ao ouvir o motor do blimp Viu os braços do rapaz se agitarem lá em cima Depois viu aquela coisa branca fender o ar e cair na areia teve um susto pensou numa brincadeira de mau gôsto uma pilhéria rude de soldado estrangeiro Mas quando viu a caneca branca pousada no chão intacta teve uma confusa intuição do impulso que a mandara apanhoua leu gravadas no fundo as mesmas letras que havia no corpo do dirigível U S Navy Enquanto isso o blimp em lugar de ir para longe dava mais uma volta lenta sôbre a casa e o pomar Então a mocinha tornou a erguer os olhos e deliberadamente dessa vez acenou com a toalha sorrindo e agitando a cabeça O blimp fêz mais duas voltas 330 e lentamente se afastou e a menina teve a impressão de que êle levava saudades Lá de cima o tripulante pensava também não em saudades que êle não sabia português mas em qualquer coisa pungente e doce porque apesar de não falar nossa língua Idade americano também tem coração Foi assim que se estabeleceu aquêle rito matinal Diàriamente passava o blimp e diàriamente a menina o esperava não mais levou a toalha branca e às vezes nem sequer agitava os braços deixavase estar imóvel mancha clara na terra banhada de sol Era uma espécie de namoro de gavião com gazela ele fero soldado cortando os ares ela pequena medrosa lá embaixo vendoo passar com os olhos fascinados Já agora os presentes trazidos de propósito da base não eram mais a grosseira caneca improvisada caíam do céu números do Life e do Time um gorro de marinheiro e certo dia o tripulante tirou do bôlso o seu lenço de seda vegetal perfumado com essência sintética de violetas O lenço abriuse no ar e veio voando como um papagaio de papel ficou prêso afinal nos ramos de um cajueiro e muito trabalho custou à pequena arrancálo de lá com a vara de apanhar cajus assim mesmo ainda o rasgou um pouco bem no meio Mas de todos os presentes o que mais lhe agradava era ainda o primeiro a pesada caneca de pó de pedra Puseraa no seu quarto em cima da banca de escrever A princípio cuidara em usá la na mesa às refeições mas se arreceou da zombaria dos irmãos Ficou guardando nela os seus lápis e canetas Um dia teve idéia melhor e a caneca de louça passou a servir de vaso de flôres Um galho de manacá um bogari um jasmimdocabo uma rosa menina pois no jardim rústico da casa de campo não havia rosas importantes nem flôres caras Pôsse a estudar com mais afinco o seu livro de conversação inglêsa quando ia ao cinema prestava uma atenção intensa aos diálogos a fim de lhes apanhar não só o sentido mas a pronúncia Emprestava ao seu marinheiro as figuras de todos os galãs que via na tela e sucessivamente êle era Clark Gable Robert Taylor ou Cary Grant Ou era louro feito um mocinho que morria numa batalha naval do Pacífico e cujo nome a fita não dava chegava até ser às vezes careteiro e risonho como Red Skelton Porque ela era um pouco míope mal o vislumbrava olhandoo do chão via um recorte de cabeça uns braços se agitando e conforme a direção dos raios do sol parecialhe que êle tinha o cabelo louro ou escuro 331 Não lhe ocorria que não pudesse ser sempre o mesmo marinheiro E na verdade os tripulantes se revezavam diariamente uns ficavam de folga e iam passear na cidade com as pequenas que por lá arranjavam outros iam embora de vez para a África para a Itália No posto de dirigíveis criarase aquela tradição da menina do laranjal Os marinheiros puseramlhe o apelido de Tangerinegirl Talvez por causa do filme de Dorothy Lamour pois Dorothy Lamour é para tôdas as fôrças armadas norte americanas o modêlo do que devem ser as moças morenas da América do Sul e das ilhas do Pacífico Talvez porque ela os esperava sempre entre as laranjeiras E talvez porque o cabelo ruivo da pequena quando brilhava à luz da manhã tinha um brilho acobreado de tangerina madura Um a um sucessivamente como um bem de todos partilhavam êles o namôro com a garôta Tangerine O pilôto da aeronave dava voltas obediente voando o mais baixo que lhe permitiam os regulamentos enquanto o outro da janelinha olhava e dava adeus Não sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a idéia de atirar um bilhete Talvez pensassem que ela não os entenderia Já fazia mais de um mês que sobrevoavam a casa quando afinal o primeiro bilhete caiu fora escrito sôbre uma cara rosada de rapariga na capa de uma revista laboriosamente em letras de imprensa com os rudimentos de português que haviam aprendido da boca das pequenas na cidade Dear Tangerinegirl Please você vem hoje Today base X Dancing show Oito horas PM E no outro ângulo da revista em enormes letras o Amigo que é a palavra de passe dos americanos entre nós A pequena não atinou bem com aquêle Tangerine girl Seria ela Sim decerto e aceitou o apelido como uma lisonja Depois pensou que as duas letras do fim P M seriam uma assinatura Peter Paul ou Patsy como o ajudante de Nick Carter Mas uma lembrança de estudo lhe ocorreu consultou as páginas finais do dicionário que tratam de abreviaturas e verificou levemente decepcionada que aquelas letras queriam dizer a hora depois do meiodia Não pudera acenar uma resposta porque só vira o bilhete ao abrir a revista depois que o blimp se afastou E estimou que assim o fôsse sentiase tremendamente assustada e tímida ante e aquela primeira aproximação com o seu aeronauta Hoje veria se ele era altD e belo louro ou moreno Pensou em se esconder por 332 trás das colunas do portão para o ver chegar e não lhe falar nada Ou talvez tivesse coragem maior e desse a êle a sua mão juntos caminhariam até à base depois dançariam um fox langoroso êle lhe faria ao ouvido declarações de amor em inglês encostando a face queimada de sol ao seu cabelo Não pensou se o pessoal de casa lhe deixaria aceitar o convite Tudo se ia passando como num sonho e como num sonho se resolveria sem lutas nem empecilhos Muito antes do escurecer já estava penteada vestida Seu coração batia batia inseguro a cabeça doía um pouco o rosto estava em brasas Resolveu não mostrar o convite a ninguém não iria ao show não dançaria conversaria um pouco com êle ao portão Ensaiava frases em inglês e preparava o ouvido para as doces palavras na língua estranha As sete horas ligou o rádio e ficou escutando languidamente o programa de swings Um irmão passou fêz troça do vestido bonito naquela hora e ela nem o ouviu As sete e meia já estava na varanda com o ôlho no portão e na estrada As dez para as oito noite fechada Uá há muito acendera a pequena lâmpada que alumiava o portão saiu para o jardim E às oito em ponto ouviu risadas e tropel de passos na estrada aproximandose Com um recuo assustado verificou que não vinha apenas o seu marinheiro enamorado mas um bando ruidoso dêles Viuos aproximaremse trêmula Eles a avistaram cercaram o portão até parecia manobra militar tiraram os gorros e foram se apresentando numa algazarra jovial E de repente mal lhes foi ouvindo os nomes correndo os olhos pelas caras imberbes pelo sorriso esportivo e juvenil dos rapazes fitandoos de um em um procurando entre êles o seu principe sonhado ela compreendeu tudo Não existia o seu marinheiro apaixonado nunca fôra êle mais do que um mito do seu coração Jamais houvera um único jamais êle fôra o mesmo Talvez nem sequer o próprio blimp fôsse o mesmo Que vergonha meu Deus Dera adeus a tanta gente traída por uma aparência enganosa mandara diàriamente a tantos rapazes diversos as mais doces mensagens do seu coração E no sorriso dêles nas palavras cordiais que dirigiam à namorada coletiya à pequena Tangerinegirl que já era uma instituição da base só viu escárnio familiaridade insolente Decerto pensa vam que ela era também uma dessas pequenas que namoram os 333 marinheiros de passagem quem quer que seja decerto pensavam Meu Deus do céu Os moços por causa da meia escuridão ou porque não cuidavam naquelas nuanças psicológicas não atentaram na expressão de mágoa e susto que confrangia 0 restinho redondo da amiguinha E quando um dêles curvandose t lhe ofereceu o braço viua com surprêsa recuar balbuciando timidamente Desculpem houve engano um engano E os rapazes compreenderam ainda menos quando a viram fugir a princípio lentamente depois numa carreira cega Nem desconfiaram que ela correu a trancarse no quarto e mordendo o travesseiro chorou as lágrimas mais amargas e mais quentes que tinha nos olhos Nunca mais a viram no laranjal embora insistissem em atirar presentes viam que eles ficavam no chão esquecidos ou às vezes eram apanhados pelos moleques do sítio Piei janeiro 44 HISTORIA DE JAGUNÇO Escrevendo eu outro dia a respeito do Padre Cícero veiome à lembranca um episódio sucedido na época daquela arrancada de jagunços que com as bênçãos de Meu Padrinho e do senador Pinheiro Machado partiram do Juazeiro com o fim de depor o presidente do Estado coronel Marcos Franco Rabelo Mas não pretendo contar aqui a história da luta O presidente foi deposto mesmo morreu muita gente alguns jagunços e muitíssimos macacos os soldados da polícia estadual Morreu no combate de Miguel Calmon o nobre Jota da Penha caudilho rabelista que recebeu da bôca do cantador Aderaldo um dos mais belos epitáfios que têm ornado a sepultura dum herói Deus te dê a salvação Bôca que nunca mentiu Braço de herói destemido Mão forte que resistiu Vitoriosa a campanha deuse às tropas beligerantes a 334 I I ordem de regressar ao Juazeiro onde seriam desarmadas a fim de que se restabelecesse a ordem na província Sempre foi tarefa dura para qualquer comandante desmobilizar tropas vencedoras bem instaladas em território inimigo Calculese pois o esfôrço que careciam empregar os comandantes daquelas colunas irregularíssimas compostas quase tôdas de bandidos de cartaz ilustre de cangaceiros mercenários de jagunços profissionais encantados com o seu novo campo de atividades e com a benévola aquiescência das autoridades federais a todos os seus desmandos Mas apelouse para o Padre Cícero e tão grande era o prestigio do velho que a maioria da jagunçada acantonada na cidade de Maranguape vizinha à capital exigiu apenas ir a Fortaleza ver a pancada do mar e voltou pacificamente ao Cariri enchendo trens e trens durante dias inteiros Um ou outro grupo contudo discordou da ordem e resolveu voltar ao Juazeiro não no trem do govêrno mas a pé ou a cavalo por terra como lá se diz E durante a longa viagem de volta êsses homens iam esquecendo a finalidade inicial da arrancada iam deixando de distinguir entre amigos e adversários e aos poucos se transformavam em simples rufiões que sem indagar se as vítimas eram rabelistas ou marrêtas cercavam casas assaltavam lojas roubavam assassinavam violavam Já correra mais de um ano depois da revolução e ainda esses bandos andavam à sôlta assolando uma zona do sertão que dada a sua proximidade do litoral sempre vivera livre de bandoleiros Por essa época então estava toda a minha família na nossa velha fazenda o Junco no município de Quixadá Eu teria de três para quatro anos e certamente tudo que recordo dos acontecimentos dêsse tempo não são lembranças pessoais mas me foi sugerido pelas narrativas da família que o caso ainda vive na tradição doméstica Cêrca de uns dois meses antes do dia em que começa a minha história tinhanos aparecido em casa pedindo trabalho faminto e maltrapilho um cabra forte mulato dos seus trinta anos jeitoso insinuante que conseguiu agradar a meu pai e foi ficando na fazenda Sabia fazer quase tudo aparelhava cangalhas curava bicheiras do gado tapava goteiras do telhado tocava harmônica ajudava a tirar leite de manhã arreava e banhava os cavalos contava histórias às mulheres na cozinha quando lá ia filar um café 335 e pràticamente me servia de amasêca Pois Zé Antônio que era êsse o nome do cabra criou por mim uma extraordinária amizade Cobriame de mimos cantavame cantigas balançava a rêde em que eu dormia a sesta no alpendre era sempre quem me levava à lua da sela nos passeios a cavalo fêz até uma bainha de couro para uma faquinha que arranjou não sei onde e que eu enfiava no cós da sunga como Zé Antônio punha a sua no cinturão juntos íamos afiar as nossas armas na pedra de amolar da beira do açude e um dos divertimentos dos meus tios era me verem às voltas com Zé Antonio pLJiando como um gato sacudindo os cachos espevitada e valentona aprendendo a brigar de cacête para escândalo e vergonha de tôdas as senhoras da família De repente começaram a circular boatos contando as tropelias de um grupo de bandoleiros que andava pelos municípios vizinhos Tinham sido vistos no Riachão tinham atacado um negociante na Canoa cochichavase agora que andavam por perto de Cangati e Cangati era justamente a estação que precedia a nossa na linha do trem Diziase que o grupo se compunha de uns vinte homens a cavalo todos bem armados roubavam dinheiro e jóias rasgavam a punhal os sacos de mantimentos de que não se utilizavam despejando o conteúdo no chão realizavam exercícios de tiro ao alvo com o gado de raça dos currais Faziam mal às moças surravam velhas sangravam os homens E numa tarde de sextafeira lá na orla de mato do pátio quadrilátero de campo raso de cêrca de um quilômetro em cada face que se abre nas fazendas em tôrno da casagrande apontaram os primeiros animais do bando com os seus cavaleiros O sol poente se refletia no cano das armas e mesmo à distância se avistavam os lenços vermelhos as medalhas de ouro alumiando na aba quebrada dos chapeus de couro Deram um tiro para o ar e meteram a galope em direção à casa Mamãe amarrou as jóias num lenço correu ao quintal e atirou a trouxinha numa moita perto do galinheiro Neste momento em que escrevo trago no peito um broche de ouro em forma de âncora que estava dentro dessa trouxa Antônia a nossa ama trancouse na despensa com meu irmão pequenino Os cabras pararam a uns trinta metros de distância de casa apearam amarraram os animais num pé de turco espinhento que ainda hoje existe à beira do caminho do açude lentamente foram se espalhando em redor da casa fuzil na mão passo lento olhar 336 vigilante até que o cêrco se fechou No alpendre papai com mamãe ao lado e eu agarrada às saias dela esperávamos ao nosso redor uns três dos nossos caboclos desarmados e entre êles Zé Antônio O chefe do grupo destacouse então do meio dos seus Chegou devagarinho até ao degrau de pedra do alpendre tirou o chapéu de couro e com a fala mansa o jeito encabulado iniciou um preâmbulo cortês Boa tarde seu doutor Vim com êsses meninos pedir um adjutório a vossa senhoria Antes que papai respondesse houve um movimento à retaguarda Era Zé Antônio que avançava Papai virouse rápido para conter o cabra pois qualquer resistência naquela hora representava morte certa tôda a gente no alpendre estava na mira dos fuzis dos bandidos O chefe também ergueu a vista admirado mas Zé Antônio avançava sempre e aí o chefe abriu os braços soltou uma exclamação e os dois se agarraram Mas tinham se agarrado num abraço Davam risada olhavam um para o outro apertavamse as mãos E eu que lhe fazia morto seu compadre Cheguei a mandar o padre do Riachão dizer missa por sua alma Zé Antônio pôsse a explicar então a confusa história dum tiro de raspão na cabeça ficara apenas desacordado conseguira escapar viera se escondendo pela catinga comendo raiz brava até achar agasalho na casagrande do Junco Os outros homens foram se chegando espantados ante aqueles abraços Mas reconhecendo Zé Antônio também romperam em brados alegres Nós esquecidos ficávamos imóveis na nossa porta Papai mordia o bigode esperando o resultado da cena com um desejo desesperado de dar cabo daquele traidor desgraçado que comera da nossa mesa e dormira sob as nossas telhas e caía agora nos braços dos assaltantes Afinal Zé Antônio virouse Chegou para o nosso lado o Zé Antônio respeitoso de sempre Parecia confuso aflito até Torcia na mão o chapéu de palha e afinal falou Seu doutor minha dona quero fazer uma confissão a vosmecês E narrou tôda a incrível história Era êle Zé Antônio o sub chefe o lugartenente do bando 337 Ai seu doutor o senhor nem sabe quem é êste negro velho que comeu sua farinha O compadre Amador derruba mas Zé Antônio é quem sangra E quando o sujeito cai no chão estrebuchando compadre Amador reza o bendito das almas e Zé Antônio botalhe a vela na mão para ajudar o cristão a morrer Pra isso mesmo é que vivo com uma vela no bolso Zé Antonio é um cabra desgraçado seu doutor tem mesmo que morrer de bala ou pelo ferro frio não é cabra para morar em casa dum homem como o senhor O senhor se lembra dum caso de tiroteio que houve na Varge das Bêstas Era nós Peguei uma pitomba no couro da cabeça botou uma sangueira danada fiquei estirado no chão e os meninos me deram por morto De lá foi que vim para cá Desculpe o desafôro da chegada deles cercando a sua fazenda seu doutor Eu já disse a eles que esta casa para mim é santa é mesmo que ser a casa da velha minha mãe é mesmo que ser a Igreja do Perpétuo Socorro do Juazeiro Vamos saindo logo Só pedimos ao senhor que deixe dar de beber aos animais no açude e se a dona consentir os meninos aceitam uma cuia de leite com farinha que diz o compadre Amador desde de manhã não comem Mas isso não é exigido doutor é só por sua bondade Se não quiser dar nada nós vamos embora do mesmo jeito Papai apontou as vacas no curral Vocês mesmos vão tirar o leite As cuias estão naquele jirau junto à janela da cozinha Recebam a farinha pela janela também Enquanto os homens se espalhavam pelo curral Zé Antônio ficou um momento parado no alpendre vigiando Eu correra com mamãe à cozinha para assistir a distribuição da farinha aos homens De repente Zé Antônio sumiu para os lados do quintal papai o procurava com os olhos pelos quatro cantos afinal o homem voltou trazendo na mão a trouxinha das jóias Mamãe o encarou com surprêsa Zé Antônio lhe estendeu o embrulho E Zé Antônio mesmo que faz questão de lhe entregar os seus ouros dona O chefe do bando assistiu à cena sem pestanejar Se não gostou não disse nada Recebeu a cuia que lhe oferecia um dos seus homens recusou a farinha bebeu leite em goladas lentas 338 limpou a bôca nas costas da mão Não sei com que sinal misterioso chamou os cabras mas todos se foram reunindo de novo defronte do alpendre O chefe falou para Zé Antônio Vá se despedindo compadre Vamos chegando que é de noite Zé Antônio ia estendendo a mão a papai mas se arrependeu Contentouse em repetir os agradecimentos e encomendar a gente a Meu Padrinho e a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro Depois se aproximou de mim que me ia também chegando para êle e lhe sorria Puxou do quadril a longa faca de fio fino como navalha que eu tantas vêzes o vira afiar à beira do açude Estendeu a mão para mim seguroume a cabeca e num golpe só como quem quebra um talo de flor cortou com a faca um dos meus cachos Virouse para papai com um gesto de desculpa E só o que Zé Antônio rouba daqui seu doutor Deu uma risada satisfeita vendo o tufo de cabelo na mão de Zé Antônio êle sabia muito bem que eu detestava aqueles cachos Rio abril 44 De A Donzela e a Moura Torta 2 ed 1987 339 Introdução A crônica TangerineGirl de Rachel de Queiroz publicada em 1948 inscrevese em um momento histórico marcado pela presença de soldados norteamericanos no Brasil especialmente no Nordeste durante a Segunda Guerra Mundial Ambientada nesse cenário de encontros culturais forçados e temporários a narrativa constrói um espaço de tensão e estranhamento entre sujeitos distintos uma jovem brasileira um militar estrangeiro e as complexas interações mediadas por idioma idade poder e gênero Rachel de Queiroz escritora pioneira e primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras foi uma voz singular na literatura brasileira do século XX especialmente pela maneira como conferiu centralidade à experiência feminina e aos dilemas sociais do seu tempo Em TangerineGirl sua escrita articula elementos históricos e subjetivos oferecendo uma lente crítica para observar os impactos da ocupação simbólica e afetiva em contextos de assimetria cultural Este trabalho tem como objetivo analisar de que modo a diferença seja ela cultural linguística etária de gênero ou social se manifesta entre os personagens da narrativa e quais são os esforços empreendidos sutis ou explícitos para mitigála A análise será conduzida à luz da crítica feminista dos estudos póscoloniais e da leitura literária atenta à forma e à ambiguidade narrativa conforme orientações de Prado e Barbosa 2017 Schneider 2017 e Eagleton 2012 Pretendese assim demonstrar como a crônica se torna um espaço simbólico de confronto e negociação entre sujeitos historicamente distantes mas momentaneamente conectados pela experiência da guerra da juventude e do desejo Diferenças Culturais e Linguísticas Em TangerineGirl Rachel de Queiroz articula com sensibilidade as barreiras culturais e linguísticas que marcam o encontro entre a jovem brasileira e o soldado norteamericano A comunicação entre eles é permeada por malentendidos silêncios e gestos revelando a complexidade de interações em que o idioma não é plenamente compartilhado e os códigos culturais são radicalmente distintos O contexto histórico da narrativa a presença dos Estados Unidos em Natal RN durante a Segunda Guerra Mundial é essencial para compreender a ambientação e os tensionamentos culturais evidenciados na crônica Segundo Schneider 2017 p 116 Entre 1941 e 1946 a Segunda Guerra Mundial levou inúmeros militares norteamericanos para Natal Durante cinco anos os militares ocuparam duas bases potiguares a Base Naval e a Parnamirim Field a maior base da Força Aérea norteamericana em território estrangeiro Essa presença militar norteamericana implicou uma transformação do espaço urbano social e simbólico da cidade fazendo emergir uma convivência entre culturas distintas marcada por assimetrias de poder Como aponta Schneider 2017 p 117 essa relação pode ser lida como parte de um processo maior de dominação simbólica Os Estados Unidos passaram a exercer uma tendência expansionista e imperialista fazendo perceber seu papel no mundo e principalmente nas Américas como líder e por que não dizer neocolonizador Nesse cenário a barreira linguística assume uma função narrativa central a dificuldade de compreensão entre os personagens ilustra metaforicamente a distância cultural e afetiva que os separa O inglês língua do soldado representa não apenas um idioma estrangeiro mas o acesso a um mundo idealizado pela jovem narradora um universo de filmes músicas e mitos importados Além disso a troca da tangerina gesto silencioso de aproximação funciona como símbolo dessa tentativa de comunicação não verbal Prado e Barbosa 2017 p 361 observam A invasão da cultura norteamericana em terras nordestinas está presente através da literatura do cinema e da música No conto é o corpo da menina e o gesto da oferta da fruta que realizam o contato mais do que as palavras Essa experiência de estranhamento cultural não se limita à incompreensão verbal mas se estende às formas como os personagens habitam o mundo A jovem narradora observa o soldado não apenas como alguém que fala outra língua mas como alguém que traz consigo uma presença física e estética diferente o uniforme os gestos o modo de caminhar o riso aberto demais ou sem razão Esses detalhes revelam que a linguagem no conto é também corporal e atmosférica feita de impressões ritmos e distâncias sensoriais A menina não entende o que ele diz mas interpreta à sua maneira aquilo que ele representa Nesse sentido o conto se insere em uma tradição da literatura latino americana que tematiza o olhar sobre o estrangeiro sobre a alteridade imposta pela história colonial ou neocolonial A figura do militar americano não é apenas um personagem individual ele sintetiza em sua corporeidade e em sua incomunicabilidade a presença de um poder externo que ocupa observa consome e em certa medida silencia O Brasil nesse contexto assume uma postura ambígua ao mesmo tempo hospitaleiro e submisso encantado e desconfortável A menina enquanto narradora é também produto dessa ambiguidade Sua juventude e espontaneidade não são sinônimos de inocência pura mas de um olhar que registra e interpreta o que a cerca a partir de um repertório limitado marcado por elementos fragmentários da cultura norteamericana Essa relação entre o que ela vê e o que não compreende revela a tensão entre fascínio e frustração tensão essa que a autora constrói com notável sutileza Rachel de Queiroz não recorre ao exagero nem à denúncia explícita sua crítica está embutida na forma da narrativa na escolha de uma perspectiva que capta o impacto simbólico da ocupação estrangeira sem precisar narrála em termos bélicos Além disso a opção pelo gênero da crônica contribui para o efeito de realismo contido e crítica lateral Como forma breve e cotidiana a crônica permite captar o instante fugaz e tornálo revelador A escolha do gesto da menina oferecer uma fruta como clímax da narrativa é um recurso de alta potência simbólica Nesse ponto a leitura de Eagleton 2006 sobre a literariedade e a linguagem como forma de construção da experiência é especialmente pertinente As obras literárias exigem um tipo de leitura especialmente alerta atenta ao tom ao estado de espírito ao andamento ao gênero à sintaxe à ambiguidade de fato a tudo o que entra na categoria de forma EAGLETON 2006 p 17 Aplicando essa chave de leitura ao conto podese perceber como a forma narrativa marcada por silêncios digressões internas e deslocamentos sensoriais comunica mais do que a trama em si A ausência de um desfecho resolutivo por exemplo reforça a ideia de que não há síntese possível entre os dois personagens A diferença entre eles não é superada é apenas brevemente tocada e esse toque já é significativo Por fim vale destacar que o vocabulário da menina também expressa seu esforço de decifração Termos como tangerina gosto doce olhos claros e palavras estranhas aparecem como elementos simbólicos de um universo que ela tenta compreender sensorialmente A linguagem nesse contexto é não apenas meio de comunicação mas campo de disputa simbólica Ela tenta nomear o que não conhece o soldado por sua vez fala sem ser compreendido Há assim um duplo movimento enquanto ela tenta aproximarse ele permanece imerso em sua própria opacidade estrangeira Rachel de Queiroz ao construir esse jogo de aproximação e afastamento propõe uma crítica sutil à ideia de que o contato entre culturas é natural fácil ou sempre benéfico A autora reconhece a beleza dos gestos de aproximação mas também evidencia suas limitações diante de estruturas de poder maiores e de barreiras históricas sedimentadas Diferenças de Gênero A construção das diferenças de gênero em TangerineGirl é central para a complexidade simbólica da narrativa Rachel de Queiroz escolhe como narradora uma menina jovem cujos pensamentos e percepções dão forma à história Tratase de uma escolha significativa pois confere voz a uma personagem que em contextos históricos e literários tradicionais costuma ser silenciada ou secundarizada Nesse sentido a autora opera dentro de uma lógica de ruptura com o cânone ao colocar no centro da narrativa uma subjetividade feminina em formação que observa interpreta e reage ao mundo ao seu redor A menina não apenas narra os acontecimentos ela os ressignifica a partir de sua experiência de gênero A figura do soldado americano não é apenas um estrangeiro mas um homem adulto com poder simbólico militar e físico A presença dele desencadeia um misto de encantamento e intimidação A menina observa o corpo a roupa os gestos e sobretudo a distância que o separa dela não apenas linguística mas também sexual e social Como indicam Prado e Barbosa 2017 p 359 a autora constrói nessa relação uma crítica implícita às limitações impostas à experiência feminina Ela escreve sobre mulher dá voz poder protagonismo à mulher E é aí sobretudo que Rachel de Queiroz tornase interessante à crítica feminista Ao apresentar uma menina como personagem ativa ainda que situada em posição de vulnerabilidade Rachel de Queiroz rompe com a representação passiva comumente atribuída às mulheres na literatura do seu tempo A menina de TangerineGirl não é objeto do olhar masculino ao contrário ela é sujeito de sua própria narrativa Ela observa o soldado interpreta seus gestos reage com delicadeza mas também com aguda percepção Há nela um desejo de entender talvez de seduzir mas também uma consciência ainda que difusa da diferença de posições entre eles Essa diferença está ligada não só à idade ou ao idioma mas também ao que a crítica de gênero aponta como o patriarcado estrutural das relações sociais A menina como figura feminina jovem ocupa um lugar de escuta de acolhimento e de fragilidade atributos historicamente associados ao feminino O soldado por outro lado representa o poder a invasão a autoridade e o silêncio ele fala mas não é compreendido domina o espaço com seu corpo e presença mas permanece emocionalmente ausente A assimetria da relação é portanto construída também pela forma como os papéis de gênero são performados e percebidos na narrativa Nesse ponto a crítica feminista ajuda a evidenciar que TangerineGirl não é apenas uma crônica sobre encontros culturais mas também sobre limites impostos à experiência feminina em contextos marcados por hierarquias de gênero e poder Como apontam as autoras Suas personagens vivenciam diferentes situações em diversas épocas e lugares ainda que haja o predomínio da região nordestina o que possibilita ao leitor descortinar um largo panorama da situação da mulher PRADO BARBOSA 2017 p 360 É nesse largo panorama que se inscreve a menina da crônica ela vive uma experiência ambígua de encantamento e frustração observação e impotência desejo e resignação Sua juventude a torna vulnerável mas também dotada de uma sensibilidade aguçada que a leva a perceber nuances que escapam à compreensão adulta O gesto de oferecer a tangerina nesse contexto não é apenas um ato de gentileza ou hospitalidade mas um ato de iniciativa feminina um esforço para estabelecer contato ainda que dentro dos limites impostos pela cultura e pelo gênero Rachel de Queiroz ao permitir que essa menina narre a história atribui à personagem não apenas voz mas agência Mesmo que essa agência seja restrita pelas circunstâncias históricas ela é ainda assim significativa A menina observa o estrangeiro mas não se submete a ele Sua curiosidade não é vazia ela está carregada de intenção de inteligência emocional de busca por sentido em um mundo que naquele momento lhe escapa Diferenças de Poder e Hierarquia As diferenças de poder em TangerineGirl não estão apenas implícitas nas relações de gênero ou nos desencontros culturais mas são reforçadas pela presença ostensiva da figura do soldado norteamericano como representante de uma nação militarmente hegemônica e de um império cultural em expansão O militar ainda que apresentado de forma aparentemente amistosa é símbolo vivo de uma hierarquia geopolítica que se impõe silenciosamente sobre o cotidiano da comunidade brasileira retratada Rachel de Queiroz ao construir esse encontro entre um agente de poder o soldado e um sujeito marginal a menina revela com sutileza as tensões provocadas por essa presença estrangeira em solo nacional O conto está ambientado em um momento histórico decisivo durante os anos da Segunda Guerra Mundial o Brasil firmou aliança com os Estados Unidos permitindo a instalação de bases militares em cidades estratégicas como Natal no Rio Grande do Norte Como destaca Schneider 2017 p 118 essa ocupação não foi neutra nem exclusivamente militar Durante cinco anos os norteamericanos fizeram parte da paisagem social e simbólica da cidade transformando hábitos consumos e até mesmo os modos de relacionamento entre os habitantes A base aérea tornouse um território de influência direta onde o poder estrangeiro se fazia presente não só com armas mas com cinema música roupas linguagem Assim o espaço físico da cidade nordestina tornouse também um espaço de disputa simbólica O poder militar embora não expresso por ações violentas na narrativa está inscrito na figura do soldado cuja mera presença carrega consigo uma estrutura de dominação e privilégio Ele ocupa a cena com naturalidade comanda sua linguagem mesmo sem ser compreendido caminha com segurança por uma terra que não é sua A menina ao contrário observao de fora tenta compreender seus gestos e palavras mas permanece numa posição subordinada não por inferioridade pessoal mas pelas estruturas históricas que os cercam Essa diferença hierárquica é intensificada pelo fato de que o militar ainda que não exerça autoridade de forma direta sobre a menina representa uma potência estrangeira que opera dentro de um território que não lhe pertence Seu domínio é tácito mas visível A própria linguagem incompreensível para a narradora funciona como uma barreira de exclusão O militar fala mas não ouve é acolhido mas não se adapta Ele está em trânsito é um forasteiro com poder Ela está enraizada mas sem autoridade A assimetria entre os dois portanto é menos relacional e mais estrutural Essa estrutura se inscreve também nas formas de olhar A menina observa tenta compreender decifra em silêncio O soldado ao contrário não parece perceber a profundidade daquele encontro ele atua mais como símbolo do que como sujeito Como bem observa Eagleton 2006 p 29 a literatura ao construir personagens simbólicos pode revelar camadas de poder que transcendem o plano individual Os personagens literários mesmo quando realistas frequentemente funcionam como condensações de forças sociais políticas e ideológicas São figuras que portam ainda que inconscientemente estruturas de dominação ou resistência Neste caso o militar norteamericano é a encarnação da presença imperialista em território brasileiro enquanto a menina representa o sujeito periférico que tenta compreender esse poder com os recursos simbólicos e afetivos de que dispõe A relação entre eles é marcada por um desequilíbrio estrutural ela se aproxima com interesse genuíno ele responde com gestos protocolares distantes Há afabilidade mas não reciprocidade há troca mas não diálogo real A crônica ao registrar esse breve encontro revela como o poder se exerce muitas vezes de forma silenciosa sem imposições diretas mas com consequências profundas A própria naturalização da presença militar estrangeira em um espaço cotidiano uma praça uma rua um mercado já é em si um exercício de dominação simbólica Rachel de Queiroz não denuncia abertamente essa estrutura mas a evidencia pela escolha do ponto de vista narrativo pela ênfase no estranhamento e pelo contraste entre o olhar curioso da menina e o comportamento indiferente do soldado Por fim é importante reconhecer que mesmo diante dessa assimetria a autora não apaga a subjetividade da narradora Ao contrário ela confere à menina o poder de registrar interpretar e significar o encontro E isso é por si só um gesto político A menina embora desprovida de poder institucional é aquela que narra Ela é quem vê quem conta quem recorda Em um mundo hierarquizado a escolha de Rachel de Queiroz por essa perspectiva é uma forma de subversão narrativa e crítica social silenciosa mas eficaz Esforços de Aproximação e Mediação Apesar das barreiras evidentes culturais linguísticas de gênero e de poder TangerineGirl é atravessada por um fio tênue de aproximação Rachel de Queiroz não retrata um confronto aberto mas uma tentativa contida de comunicação Essa tentativa no entanto não se dá pela via da linguagem verbal mas por meio de gestos olhares e objetos simbólicos O mais emblemático deles é a tangerina pequena simples local que a menina oferece ao soldado estrangeiro Tratase de um gesto carregado de significado hospitalidade curiosidade desejo de conexão talvez até afeto Esse momento de entrega embora singelo é carregado de ambiguidade narrativa A fruta cultivada no solo brasileiro é o que a menina tem a oferecer ao homem que representa um poder estrangeiro Ele aceita mas a cena não evolui para um diálogo verdadeiro há troca mas não há escuta mútua O gesto é simbólico de uma tentativa de mediação mas também denuncia seus próprios limites Como observam Prado e Barbosa 2017 p 361 a potência simbólica do encontro está mais no gesto do que na comunicação efetiva A tangerina representa o ponto de intersecção entre dois mundos sendo simultaneamente expressão de inocência e desejo de aproximação Esse esforço de mediação se dá de forma desigual a menina observa interpreta se esforça para compreender O soldado por outro lado está de passagem não se envolve não compreende não se adapta A aproximação portanto é unilateral Ainda assim Rachel de Queiroz constrói essa assimetria com extrema delicadeza sem recorrer a julgamentos explícitos ou dramatizações excessivas A narrativa é contida mas densamente simbólica O conto parece sugerir que mesmo diante de estruturas de poder rígidas e distâncias históricas e culturais há espaço para gestos humanos que tentam ainda que fracamente romper o isolamento entre sujeitos Esses gestos no entanto são frágeis e provisórios Não resolvem os conflitos mas os revelam de forma sutil A aproximação possível em TangerineGirl é aquela que reconhece os limites da comunicação mas ainda assim insiste no gesto no ato de estender a mão de compartilhar um fruto de buscar o outro sem a ilusão de uma fusão plena Conclusão A crônica TangerineGirl de Rachel de Queiroz é uma narrativa breve mas densa em significados Através do encontro entre uma jovem brasileira e um soldado norteamericano durante a Segunda Guerra Mundial a autora constrói uma reflexão multifacetada sobre as diferenças que separam os sujeitos em contextos de assimetria histórica cultural e simbólica A diferença linguística o estranhamento cultural o recorte de gênero e a hierarquia de poder compõem o tecido narrativo que sustenta o conto A menina figura aparentemente frágil emerge como sujeito narrativo ativo observa sente interpreta e oferece Sua perspectiva revela a tensão entre o encantamento e a exclusão entre o desejo de compreender e a impossibilidade de ser plenamente compreendida O soldado por sua vez representa não apenas o estrangeiro mas o agente de uma potência imperial que ocupa mesmo sem intenção explícita o território e o imaginário local Os gestos de aproximação como a oferta da tangerina ganham força simbólica dentro desse quadro de distanciamento Eles não superam as diferenças mas as tornam visíveis reconhecendo seus limites e ao mesmo tempo a dignidade de persistir na tentativa Rachel de Queiroz com sua escrita precisa e contida nos oferece não apenas um retrato de um tempo mas uma reflexão sobre a experiência humana diante da alteridade Ao dar voz à jovem narradora a autora não apenas destaca a condição feminina e periférica mas também aponta para o valor da escuta e da sensibilidade como formas legítimas de conhecimento e crítica TangerineGirl é portanto uma crônica que transcende o instante narrado e lança luz sobre as estruturas profundas que moldam nossas relações com o outro relações marcadas por diferenças mas também pela esperança contida no gesto da aproximação Referências bibliográficas EAGLETON Terry Como se ler literatura Tradução de Sérgio Flaksman São Paulo Martins Fontes 2006 PRADO Andréa Andrade BARBOSA Adriana Maria de Abreu Gênero história e cultura numa só tangerina Fólio Revista de Letras Vitória da Conquista v 9 n 2 p 357370 juldez 2017 QUEIROZ Rachel de TangerineGirl In 100 crônicas escolhidas Rio de Janeiro José Olympio SCHNEIDER Liane Rachel de Queiroz e os norteamericanos para que serve um dirigível In COUTINHO Eduardo de Assis Org Literatura e guerra ensaios críticos João Pessoa Editora da UFPB 2017 p 115124

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I 32 RACHEL DE QUEIROZ I CADEIRA N9 32 PATRONO ULISSES PENNAFORT RACHEL DE QUEIROZ RACHEL DE QUEIROZ filha de Daniel de Queiroz e de Clotilde Franklin de Queiroz nasceu em Fortaleza no dia 17 de novembro de 1910 Tendo os primeiros estudos com professores particulares em sua própria residência iria concluir o Curso Normal no Colégio da Imaculada Conceição em Fortaleza em 1925 Apenas dois anos depois ingressa no jornalismo colaborando nO Ceará de Júlio lbiapina escrevendo a princípio sob o pseudônimo de Rita de Queluz Tornase redatora efetiva desse periódico e passa a escrever em revistas como A Jangada e jornais como O Povo fundado em 1928 de cujo suplemento modernista Maracajá de 1929 é figura destacada assinando textos em prosa e em verso com o nome real Ainda em Fortaleza escreveu e publicou seu primeiro romance que lhe daria renome nacional Transferindose para o Rio de Janeiro ainda em 1930 onde continua a publicar romances dedicouse também ao teatro e à crônica Durante muito tempo militou no jornalismo colaborando nO Jornal na Ultima Hora e no Jornal do Commercio escre vendo para revistas como O Cruzeiro e A Cigarra além de outros periódicos como o Diário de Notícias nos primeiros tempos de Rio Considerada uma das tradutoras mais ativas do pafs já transpôs para o nosso idioma cerca de quarenta obras Há vários dnos passa parte do ano no Rio de Janeiro e outra parte no interior do Ceará na sua fazenda Não me deixes Participou em 1966 da 21a sessão da AssembléiaGeral da ONU onde serviu como dele gado do Brasil na Comissão dos Direitos do Homem E do Conselho Federal de Cultura desde sua fundação em 1967 Tendo sido a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras tomou posse da Cadeira n9 5 no dia 4 de novembro de 1977 Obras publicadas O Quinze 1930 hoje com cerca de 40 edições João Miguel 1932 Caminho de Pedras 1937 As Três Marias 1939 Dôra Doralina 1975 O Galo de Ouro 326 1985 e Memorial de Maria Moura 1992 romance a maioria com várias edições A Donzela e a Moura Torta 1948 100 Crônicas Escolhidas 1958 O Brasileiro Perplexo 1964 O Caçador de Tatu 1967 As Menininhas e Outras Crônicas 1976 e O Jogador de Sinuca e Mais Historinhas 1980 crônicas Lampião 1953 e A Beata Maria do Egito 1959 teatro O Menino Mágico 1969 literatura infantojuvenil Acrescentese que o romance O Galo de Ouro havia sido publicado em folhetins d O Cruzeiro em 1950 O Quinze romance que projetou nacionalmente o nome da escritora cearense foi traduzido no Japão e na Alemanha As Três Marias nos Estados Unidos Dôra Doralina nos Estados Unidos e na França Vários foram os prêmios conquistados pelas suas obras o romance de estréia obteve o Prêmio da Fundação Graça Aranha o quarto romance o Prêmio da Sociedade Felipe d Oliveira A Beata Maria do Egito obteve o Prêmio de Teatro do Instituto Nacional do Livro e o Prêmio Roberto Gomes da Secretaria de Educação do Rio de Janeiro Lampião o Prêmio Saci dO Estado de S Paulo O romance Memorial de Maria Moura conquistou mais de um prêmio Em 1957 Rachel de Queiroz recebeu o prêmioconsagração da Academia Brasileira de Letras para conjunto de obra o Prêmio Machado de Assis Em 1993 a escritora foi agraciada com o Prêmio Camões do Governo de Portugal Quando em 1960 a Livraria José Olympio Editora para comemorar o cinqüentenário da ficcionista fez editar suas primeiras obras sob o título de Quatro Romances o poeta Manuel Bandeira escreveu o hoje famoso Louvado para Rachel de Queiroz incluído no livro Estrela da Vida Inteira Entre as traduções feitas pela escritora e às quais já fizemos referência podemos citar as de Humilhados e Ofendidos Recordações da Casa dos Mortos Os Demônios e Os Irmãos Karamázovi de Dostoiévski O Castelo do Homem sem Alma de Cronin Destino da Carne de Samuel Butler O Morro do Vento Uivante de Emily Bronte e Memórias de Tolstói Em 1970 recebeu o título de Cidadã Carioca outorgado pela Assembléia Legislativa do Estado da Guanabara Ao publicar O Quinze em 1930 foi a escritora saudada por Augusto Frederico Schmidt que afirmou entre outras coisas Não se encontra no pequeno romance que D Rachel de Queiroz acaba de publicar o mínimo abuso A própria paisagem de seca cujo horror podia dar motivo para maior expansão descritiva a própria paisagem vem apenas necessariamente em rápidos e sóbrios painéis tão rápido sóbrios tão ligados com a vida dos personagens com a vida do livro que seria imposslve se destacar um trechozinho qualquer para antologia 328 TANGERINEGIRL De principio a interessou o nome da aeronave não zepelim nem dirigível ou qualquer outra coisa antiquada o grande fuso de metal brilhante chamavase modernissimamente blimp Pequeno como um briquedo independente amável A algumas centenas de metros da sua casa ficava a base aérea dos soldados americanos e o poste de amarração dos dirigíveis E de vez em quando eles deixavam o poste e davam uma volta como pássaros mansos que abandonassem o poleiro num ensaio de vôo Assim de começo aos olhos da menina o blimp existia como uma coisa em si como um animal de vida própria fascinavaa como prodígio mecânico que era e principalmente ela o achava lindo todo feito de prata igual a uma jóia librandose majestosamente pouco abaixo das nuvens Tinha coisas de ídolo evocavalhe um pouco o gênio escravo de Aladin Não pensara nunca em andar dentro dele não pensara sequer que pudesse alguém andar dentro dele Ninguém pensa em calvagar uma águia nadar nas costas de um golfinho e no entanto o olhar fascinado acompanha tanto quanto pode águia e golfinho numa admiração gratuita pois parece que é mesmo uma das virtudes da beleza essa renúncia de nós próprios que nos impõe em troca de sua contemplação pura e simples Os olhos da menina prendiamse portanto ao blimp sem nenhum desejo particular sem a sombra de uma reivindicação Verdade que via lá dentro umas cabecinhas espiando mas tão minúsculas que não davam impressão de realidade faziam parte da pintura eram elemento decorativo obrigatório como as grandes letras U S Navy gravadas no bójo de prata Ou talvez lembrassem aqueles perfis recortados em folhas que fazem de chofer nos automóveis de brinquedo O seu primeiro contacto com a tripulação do dirigível começou de maneira puramente ocasional Acabara o café da manhã a menina tirara a mesa e fôra à porta que dá para o laranjal sacudir da toalha as migalhas de pão Lá de cima um tripulante avistou aquele pano branco tremulando entre as árvores espalhadas e a areia e o seu coração solitário comoveuse Vivia naquela base como um frade no seu convento sozinho entre soldados e ii exortações patrióticas E ali estava juntinho ao oitão da casa de telhado vermelho sacudindo um pano entre a mancha verde das laranjeiras uma mocinha de cabelo ruivo O marinheiro agitouse todo com aquêle adeus Várias vêzes já sobrevoara aquela casa vira gente em baixo entrando e saindo e pensara quão distante vivem os homens quão indiferentes passam entre si cada um trancado na sua vida Ele estava sempre voando por cima dos outros vendoos espiandoos e se alguns erguiam os olhos nenhum pensava no navegador que ia dentro queriam só ver a beleza prateada vogando pelo céu Mas agora aquela menina tinha para êle um pensamento agitava no ar um pano como uma bandeira decerto era bonita ô sol lhe tirava fulgurações de fogo de cabelo e a silhueta esguia se recortava claramente no fundo verdeeareia Seu coração atirou se para a menina num grande impulso agradecido debruçouse à janela agitou os braços gritou Amigo Amigo embora soubesse que o vento a distância o ruído do motor não deixariam ouvir nada Ficou incerto se ela lhe vira os gestos e quis corresponder de modo mais tangível Gostaria de lhe atirar uma flor uma oferenda Mas que podia haver dentro de um dirigível da Marinha que servisse para ser oferecido a uma pequena O objeto mais delicado que encontrou foi uma grande caneca de louça branca pesada como uma bala de canhão na qual em breve lhe iriam servir o café E foi aquela caneca que o navegante atirou atirou não deixou cair a uma distância prudente da figurinha iluminada lá embaixo deixoua cair num gesto delicado procurando abrandar a fôrça da gravidade a fim de que o objeto não chegasse sibilante como um projétil mas suavemente como uma dádiva A menina que sacudia a toalha erguera realmente os olhos ao ouvir o motor do blimp Viu os braços do rapaz se agitarem lá em cima Depois viu aquela coisa branca fender o ar e cair na areia teve um susto pensou numa brincadeira de mau gôsto uma pilhéria rude de soldado estrangeiro Mas quando viu a caneca branca pousada no chão intacta teve uma confusa intuição do impulso que a mandara apanhoua leu gravadas no fundo as mesmas letras que havia no corpo do dirigível U S Navy Enquanto isso o blimp em lugar de ir para longe dava mais uma volta lenta sôbre a casa e o pomar Então a mocinha tornou a erguer os olhos e deliberadamente dessa vez acenou com a toalha sorrindo e agitando a cabeça O blimp fêz mais duas voltas 330 e lentamente se afastou e a menina teve a impressão de que êle levava saudades Lá de cima o tripulante pensava também não em saudades que êle não sabia português mas em qualquer coisa pungente e doce porque apesar de não falar nossa língua Idade americano também tem coração Foi assim que se estabeleceu aquêle rito matinal Diàriamente passava o blimp e diàriamente a menina o esperava não mais levou a toalha branca e às vezes nem sequer agitava os braços deixavase estar imóvel mancha clara na terra banhada de sol Era uma espécie de namoro de gavião com gazela ele fero soldado cortando os ares ela pequena medrosa lá embaixo vendoo passar com os olhos fascinados Já agora os presentes trazidos de propósito da base não eram mais a grosseira caneca improvisada caíam do céu números do Life e do Time um gorro de marinheiro e certo dia o tripulante tirou do bôlso o seu lenço de seda vegetal perfumado com essência sintética de violetas O lenço abriuse no ar e veio voando como um papagaio de papel ficou prêso afinal nos ramos de um cajueiro e muito trabalho custou à pequena arrancálo de lá com a vara de apanhar cajus assim mesmo ainda o rasgou um pouco bem no meio Mas de todos os presentes o que mais lhe agradava era ainda o primeiro a pesada caneca de pó de pedra Puseraa no seu quarto em cima da banca de escrever A princípio cuidara em usá la na mesa às refeições mas se arreceou da zombaria dos irmãos Ficou guardando nela os seus lápis e canetas Um dia teve idéia melhor e a caneca de louça passou a servir de vaso de flôres Um galho de manacá um bogari um jasmimdocabo uma rosa menina pois no jardim rústico da casa de campo não havia rosas importantes nem flôres caras Pôsse a estudar com mais afinco o seu livro de conversação inglêsa quando ia ao cinema prestava uma atenção intensa aos diálogos a fim de lhes apanhar não só o sentido mas a pronúncia Emprestava ao seu marinheiro as figuras de todos os galãs que via na tela e sucessivamente êle era Clark Gable Robert Taylor ou Cary Grant Ou era louro feito um mocinho que morria numa batalha naval do Pacífico e cujo nome a fita não dava chegava até ser às vezes careteiro e risonho como Red Skelton Porque ela era um pouco míope mal o vislumbrava olhandoo do chão via um recorte de cabeça uns braços se agitando e conforme a direção dos raios do sol parecialhe que êle tinha o cabelo louro ou escuro 331 Não lhe ocorria que não pudesse ser sempre o mesmo marinheiro E na verdade os tripulantes se revezavam diariamente uns ficavam de folga e iam passear na cidade com as pequenas que por lá arranjavam outros iam embora de vez para a África para a Itália No posto de dirigíveis criarase aquela tradição da menina do laranjal Os marinheiros puseramlhe o apelido de Tangerinegirl Talvez por causa do filme de Dorothy Lamour pois Dorothy Lamour é para tôdas as fôrças armadas norte americanas o modêlo do que devem ser as moças morenas da América do Sul e das ilhas do Pacífico Talvez porque ela os esperava sempre entre as laranjeiras E talvez porque o cabelo ruivo da pequena quando brilhava à luz da manhã tinha um brilho acobreado de tangerina madura Um a um sucessivamente como um bem de todos partilhavam êles o namôro com a garôta Tangerine O pilôto da aeronave dava voltas obediente voando o mais baixo que lhe permitiam os regulamentos enquanto o outro da janelinha olhava e dava adeus Não sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a idéia de atirar um bilhete Talvez pensassem que ela não os entenderia Já fazia mais de um mês que sobrevoavam a casa quando afinal o primeiro bilhete caiu fora escrito sôbre uma cara rosada de rapariga na capa de uma revista laboriosamente em letras de imprensa com os rudimentos de português que haviam aprendido da boca das pequenas na cidade Dear Tangerinegirl Please você vem hoje Today base X Dancing show Oito horas PM E no outro ângulo da revista em enormes letras o Amigo que é a palavra de passe dos americanos entre nós A pequena não atinou bem com aquêle Tangerine girl Seria ela Sim decerto e aceitou o apelido como uma lisonja Depois pensou que as duas letras do fim P M seriam uma assinatura Peter Paul ou Patsy como o ajudante de Nick Carter Mas uma lembrança de estudo lhe ocorreu consultou as páginas finais do dicionário que tratam de abreviaturas e verificou levemente decepcionada que aquelas letras queriam dizer a hora depois do meiodia Não pudera acenar uma resposta porque só vira o bilhete ao abrir a revista depois que o blimp se afastou E estimou que assim o fôsse sentiase tremendamente assustada e tímida ante e aquela primeira aproximação com o seu aeronauta Hoje veria se ele era altD e belo louro ou moreno Pensou em se esconder por 332 trás das colunas do portão para o ver chegar e não lhe falar nada Ou talvez tivesse coragem maior e desse a êle a sua mão juntos caminhariam até à base depois dançariam um fox langoroso êle lhe faria ao ouvido declarações de amor em inglês encostando a face queimada de sol ao seu cabelo Não pensou se o pessoal de casa lhe deixaria aceitar o convite Tudo se ia passando como num sonho e como num sonho se resolveria sem lutas nem empecilhos Muito antes do escurecer já estava penteada vestida Seu coração batia batia inseguro a cabeça doía um pouco o rosto estava em brasas Resolveu não mostrar o convite a ninguém não iria ao show não dançaria conversaria um pouco com êle ao portão Ensaiava frases em inglês e preparava o ouvido para as doces palavras na língua estranha As sete horas ligou o rádio e ficou escutando languidamente o programa de swings Um irmão passou fêz troça do vestido bonito naquela hora e ela nem o ouviu As sete e meia já estava na varanda com o ôlho no portão e na estrada As dez para as oito noite fechada Uá há muito acendera a pequena lâmpada que alumiava o portão saiu para o jardim E às oito em ponto ouviu risadas e tropel de passos na estrada aproximandose Com um recuo assustado verificou que não vinha apenas o seu marinheiro enamorado mas um bando ruidoso dêles Viuos aproximaremse trêmula Eles a avistaram cercaram o portão até parecia manobra militar tiraram os gorros e foram se apresentando numa algazarra jovial E de repente mal lhes foi ouvindo os nomes correndo os olhos pelas caras imberbes pelo sorriso esportivo e juvenil dos rapazes fitandoos de um em um procurando entre êles o seu principe sonhado ela compreendeu tudo Não existia o seu marinheiro apaixonado nunca fôra êle mais do que um mito do seu coração Jamais houvera um único jamais êle fôra o mesmo Talvez nem sequer o próprio blimp fôsse o mesmo Que vergonha meu Deus Dera adeus a tanta gente traída por uma aparência enganosa mandara diàriamente a tantos rapazes diversos as mais doces mensagens do seu coração E no sorriso dêles nas palavras cordiais que dirigiam à namorada coletiya à pequena Tangerinegirl que já era uma instituição da base só viu escárnio familiaridade insolente Decerto pensa vam que ela era também uma dessas pequenas que namoram os 333 marinheiros de passagem quem quer que seja decerto pensavam Meu Deus do céu Os moços por causa da meia escuridão ou porque não cuidavam naquelas nuanças psicológicas não atentaram na expressão de mágoa e susto que confrangia 0 restinho redondo da amiguinha E quando um dêles curvandose t lhe ofereceu o braço viua com surprêsa recuar balbuciando timidamente Desculpem houve engano um engano E os rapazes compreenderam ainda menos quando a viram fugir a princípio lentamente depois numa carreira cega Nem desconfiaram que ela correu a trancarse no quarto e mordendo o travesseiro chorou as lágrimas mais amargas e mais quentes que tinha nos olhos Nunca mais a viram no laranjal embora insistissem em atirar presentes viam que eles ficavam no chão esquecidos ou às vezes eram apanhados pelos moleques do sítio Piei janeiro 44 HISTORIA DE JAGUNÇO Escrevendo eu outro dia a respeito do Padre Cícero veiome à lembranca um episódio sucedido na época daquela arrancada de jagunços que com as bênçãos de Meu Padrinho e do senador Pinheiro Machado partiram do Juazeiro com o fim de depor o presidente do Estado coronel Marcos Franco Rabelo Mas não pretendo contar aqui a história da luta O presidente foi deposto mesmo morreu muita gente alguns jagunços e muitíssimos macacos os soldados da polícia estadual Morreu no combate de Miguel Calmon o nobre Jota da Penha caudilho rabelista que recebeu da bôca do cantador Aderaldo um dos mais belos epitáfios que têm ornado a sepultura dum herói Deus te dê a salvação Bôca que nunca mentiu Braço de herói destemido Mão forte que resistiu Vitoriosa a campanha deuse às tropas beligerantes a 334 I I ordem de regressar ao Juazeiro onde seriam desarmadas a fim de que se restabelecesse a ordem na província Sempre foi tarefa dura para qualquer comandante desmobilizar tropas vencedoras bem instaladas em território inimigo Calculese pois o esfôrço que careciam empregar os comandantes daquelas colunas irregularíssimas compostas quase tôdas de bandidos de cartaz ilustre de cangaceiros mercenários de jagunços profissionais encantados com o seu novo campo de atividades e com a benévola aquiescência das autoridades federais a todos os seus desmandos Mas apelouse para o Padre Cícero e tão grande era o prestigio do velho que a maioria da jagunçada acantonada na cidade de Maranguape vizinha à capital exigiu apenas ir a Fortaleza ver a pancada do mar e voltou pacificamente ao Cariri enchendo trens e trens durante dias inteiros Um ou outro grupo contudo discordou da ordem e resolveu voltar ao Juazeiro não no trem do govêrno mas a pé ou a cavalo por terra como lá se diz E durante a longa viagem de volta êsses homens iam esquecendo a finalidade inicial da arrancada iam deixando de distinguir entre amigos e adversários e aos poucos se transformavam em simples rufiões que sem indagar se as vítimas eram rabelistas ou marrêtas cercavam casas assaltavam lojas roubavam assassinavam violavam Já correra mais de um ano depois da revolução e ainda esses bandos andavam à sôlta assolando uma zona do sertão que dada a sua proximidade do litoral sempre vivera livre de bandoleiros Por essa época então estava toda a minha família na nossa velha fazenda o Junco no município de Quixadá Eu teria de três para quatro anos e certamente tudo que recordo dos acontecimentos dêsse tempo não são lembranças pessoais mas me foi sugerido pelas narrativas da família que o caso ainda vive na tradição doméstica Cêrca de uns dois meses antes do dia em que começa a minha história tinhanos aparecido em casa pedindo trabalho faminto e maltrapilho um cabra forte mulato dos seus trinta anos jeitoso insinuante que conseguiu agradar a meu pai e foi ficando na fazenda Sabia fazer quase tudo aparelhava cangalhas curava bicheiras do gado tapava goteiras do telhado tocava harmônica ajudava a tirar leite de manhã arreava e banhava os cavalos contava histórias às mulheres na cozinha quando lá ia filar um café 335 e pràticamente me servia de amasêca Pois Zé Antônio que era êsse o nome do cabra criou por mim uma extraordinária amizade Cobriame de mimos cantavame cantigas balançava a rêde em que eu dormia a sesta no alpendre era sempre quem me levava à lua da sela nos passeios a cavalo fêz até uma bainha de couro para uma faquinha que arranjou não sei onde e que eu enfiava no cós da sunga como Zé Antônio punha a sua no cinturão juntos íamos afiar as nossas armas na pedra de amolar da beira do açude e um dos divertimentos dos meus tios era me verem às voltas com Zé Antonio pLJiando como um gato sacudindo os cachos espevitada e valentona aprendendo a brigar de cacête para escândalo e vergonha de tôdas as senhoras da família De repente começaram a circular boatos contando as tropelias de um grupo de bandoleiros que andava pelos municípios vizinhos Tinham sido vistos no Riachão tinham atacado um negociante na Canoa cochichavase agora que andavam por perto de Cangati e Cangati era justamente a estação que precedia a nossa na linha do trem Diziase que o grupo se compunha de uns vinte homens a cavalo todos bem armados roubavam dinheiro e jóias rasgavam a punhal os sacos de mantimentos de que não se utilizavam despejando o conteúdo no chão realizavam exercícios de tiro ao alvo com o gado de raça dos currais Faziam mal às moças surravam velhas sangravam os homens E numa tarde de sextafeira lá na orla de mato do pátio quadrilátero de campo raso de cêrca de um quilômetro em cada face que se abre nas fazendas em tôrno da casagrande apontaram os primeiros animais do bando com os seus cavaleiros O sol poente se refletia no cano das armas e mesmo à distância se avistavam os lenços vermelhos as medalhas de ouro alumiando na aba quebrada dos chapeus de couro Deram um tiro para o ar e meteram a galope em direção à casa Mamãe amarrou as jóias num lenço correu ao quintal e atirou a trouxinha numa moita perto do galinheiro Neste momento em que escrevo trago no peito um broche de ouro em forma de âncora que estava dentro dessa trouxa Antônia a nossa ama trancouse na despensa com meu irmão pequenino Os cabras pararam a uns trinta metros de distância de casa apearam amarraram os animais num pé de turco espinhento que ainda hoje existe à beira do caminho do açude lentamente foram se espalhando em redor da casa fuzil na mão passo lento olhar 336 vigilante até que o cêrco se fechou No alpendre papai com mamãe ao lado e eu agarrada às saias dela esperávamos ao nosso redor uns três dos nossos caboclos desarmados e entre êles Zé Antônio O chefe do grupo destacouse então do meio dos seus Chegou devagarinho até ao degrau de pedra do alpendre tirou o chapéu de couro e com a fala mansa o jeito encabulado iniciou um preâmbulo cortês Boa tarde seu doutor Vim com êsses meninos pedir um adjutório a vossa senhoria Antes que papai respondesse houve um movimento à retaguarda Era Zé Antônio que avançava Papai virouse rápido para conter o cabra pois qualquer resistência naquela hora representava morte certa tôda a gente no alpendre estava na mira dos fuzis dos bandidos O chefe também ergueu a vista admirado mas Zé Antônio avançava sempre e aí o chefe abriu os braços soltou uma exclamação e os dois se agarraram Mas tinham se agarrado num abraço Davam risada olhavam um para o outro apertavamse as mãos E eu que lhe fazia morto seu compadre Cheguei a mandar o padre do Riachão dizer missa por sua alma Zé Antônio pôsse a explicar então a confusa história dum tiro de raspão na cabeça ficara apenas desacordado conseguira escapar viera se escondendo pela catinga comendo raiz brava até achar agasalho na casagrande do Junco Os outros homens foram se chegando espantados ante aqueles abraços Mas reconhecendo Zé Antônio também romperam em brados alegres Nós esquecidos ficávamos imóveis na nossa porta Papai mordia o bigode esperando o resultado da cena com um desejo desesperado de dar cabo daquele traidor desgraçado que comera da nossa mesa e dormira sob as nossas telhas e caía agora nos braços dos assaltantes Afinal Zé Antônio virouse Chegou para o nosso lado o Zé Antônio respeitoso de sempre Parecia confuso aflito até Torcia na mão o chapéu de palha e afinal falou Seu doutor minha dona quero fazer uma confissão a vosmecês E narrou tôda a incrível história Era êle Zé Antônio o sub chefe o lugartenente do bando 337 Ai seu doutor o senhor nem sabe quem é êste negro velho que comeu sua farinha O compadre Amador derruba mas Zé Antônio é quem sangra E quando o sujeito cai no chão estrebuchando compadre Amador reza o bendito das almas e Zé Antônio botalhe a vela na mão para ajudar o cristão a morrer Pra isso mesmo é que vivo com uma vela no bolso Zé Antonio é um cabra desgraçado seu doutor tem mesmo que morrer de bala ou pelo ferro frio não é cabra para morar em casa dum homem como o senhor O senhor se lembra dum caso de tiroteio que houve na Varge das Bêstas Era nós Peguei uma pitomba no couro da cabeça botou uma sangueira danada fiquei estirado no chão e os meninos me deram por morto De lá foi que vim para cá Desculpe o desafôro da chegada deles cercando a sua fazenda seu doutor Eu já disse a eles que esta casa para mim é santa é mesmo que ser a casa da velha minha mãe é mesmo que ser a Igreja do Perpétuo Socorro do Juazeiro Vamos saindo logo Só pedimos ao senhor que deixe dar de beber aos animais no açude e se a dona consentir os meninos aceitam uma cuia de leite com farinha que diz o compadre Amador desde de manhã não comem Mas isso não é exigido doutor é só por sua bondade Se não quiser dar nada nós vamos embora do mesmo jeito Papai apontou as vacas no curral Vocês mesmos vão tirar o leite As cuias estão naquele jirau junto à janela da cozinha Recebam a farinha pela janela também Enquanto os homens se espalhavam pelo curral Zé Antônio ficou um momento parado no alpendre vigiando Eu correra com mamãe à cozinha para assistir a distribuição da farinha aos homens De repente Zé Antônio sumiu para os lados do quintal papai o procurava com os olhos pelos quatro cantos afinal o homem voltou trazendo na mão a trouxinha das jóias Mamãe o encarou com surprêsa Zé Antônio lhe estendeu o embrulho E Zé Antônio mesmo que faz questão de lhe entregar os seus ouros dona O chefe do bando assistiu à cena sem pestanejar Se não gostou não disse nada Recebeu a cuia que lhe oferecia um dos seus homens recusou a farinha bebeu leite em goladas lentas 338 limpou a bôca nas costas da mão Não sei com que sinal misterioso chamou os cabras mas todos se foram reunindo de novo defronte do alpendre O chefe falou para Zé Antônio Vá se despedindo compadre Vamos chegando que é de noite Zé Antônio ia estendendo a mão a papai mas se arrependeu Contentouse em repetir os agradecimentos e encomendar a gente a Meu Padrinho e a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro Depois se aproximou de mim que me ia também chegando para êle e lhe sorria Puxou do quadril a longa faca de fio fino como navalha que eu tantas vêzes o vira afiar à beira do açude Estendeu a mão para mim seguroume a cabeca e num golpe só como quem quebra um talo de flor cortou com a faca um dos meus cachos Virouse para papai com um gesto de desculpa E só o que Zé Antônio rouba daqui seu doutor Deu uma risada satisfeita vendo o tufo de cabelo na mão de Zé Antônio êle sabia muito bem que eu detestava aqueles cachos Rio abril 44 De A Donzela e a Moura Torta 2 ed 1987 339 Introdução A crônica TangerineGirl de Rachel de Queiroz publicada em 1948 inscrevese em um momento histórico marcado pela presença de soldados norteamericanos no Brasil especialmente no Nordeste durante a Segunda Guerra Mundial Ambientada nesse cenário de encontros culturais forçados e temporários a narrativa constrói um espaço de tensão e estranhamento entre sujeitos distintos uma jovem brasileira um militar estrangeiro e as complexas interações mediadas por idioma idade poder e gênero Rachel de Queiroz escritora pioneira e primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras foi uma voz singular na literatura brasileira do século XX especialmente pela maneira como conferiu centralidade à experiência feminina e aos dilemas sociais do seu tempo Em TangerineGirl sua escrita articula elementos históricos e subjetivos oferecendo uma lente crítica para observar os impactos da ocupação simbólica e afetiva em contextos de assimetria cultural Este trabalho tem como objetivo analisar de que modo a diferença seja ela cultural linguística etária de gênero ou social se manifesta entre os personagens da narrativa e quais são os esforços empreendidos sutis ou explícitos para mitigála A análise será conduzida à luz da crítica feminista dos estudos póscoloniais e da leitura literária atenta à forma e à ambiguidade narrativa conforme orientações de Prado e Barbosa 2017 Schneider 2017 e Eagleton 2012 Pretendese assim demonstrar como a crônica se torna um espaço simbólico de confronto e negociação entre sujeitos historicamente distantes mas momentaneamente conectados pela experiência da guerra da juventude e do desejo Diferenças Culturais e Linguísticas Em TangerineGirl Rachel de Queiroz articula com sensibilidade as barreiras culturais e linguísticas que marcam o encontro entre a jovem brasileira e o soldado norteamericano A comunicação entre eles é permeada por malentendidos silêncios e gestos revelando a complexidade de interações em que o idioma não é plenamente compartilhado e os códigos culturais são radicalmente distintos O contexto histórico da narrativa a presença dos Estados Unidos em Natal RN durante a Segunda Guerra Mundial é essencial para compreender a ambientação e os tensionamentos culturais evidenciados na crônica Segundo Schneider 2017 p 116 Entre 1941 e 1946 a Segunda Guerra Mundial levou inúmeros militares norteamericanos para Natal Durante cinco anos os militares ocuparam duas bases potiguares a Base Naval e a Parnamirim Field a maior base da Força Aérea norteamericana em território estrangeiro Essa presença militar norteamericana implicou uma transformação do espaço urbano social e simbólico da cidade fazendo emergir uma convivência entre culturas distintas marcada por assimetrias de poder Como aponta Schneider 2017 p 117 essa relação pode ser lida como parte de um processo maior de dominação simbólica Os Estados Unidos passaram a exercer uma tendência expansionista e imperialista fazendo perceber seu papel no mundo e principalmente nas Américas como líder e por que não dizer neocolonizador Nesse cenário a barreira linguística assume uma função narrativa central a dificuldade de compreensão entre os personagens ilustra metaforicamente a distância cultural e afetiva que os separa O inglês língua do soldado representa não apenas um idioma estrangeiro mas o acesso a um mundo idealizado pela jovem narradora um universo de filmes músicas e mitos importados Além disso a troca da tangerina gesto silencioso de aproximação funciona como símbolo dessa tentativa de comunicação não verbal Prado e Barbosa 2017 p 361 observam A invasão da cultura norteamericana em terras nordestinas está presente através da literatura do cinema e da música No conto é o corpo da menina e o gesto da oferta da fruta que realizam o contato mais do que as palavras Essa experiência de estranhamento cultural não se limita à incompreensão verbal mas se estende às formas como os personagens habitam o mundo A jovem narradora observa o soldado não apenas como alguém que fala outra língua mas como alguém que traz consigo uma presença física e estética diferente o uniforme os gestos o modo de caminhar o riso aberto demais ou sem razão Esses detalhes revelam que a linguagem no conto é também corporal e atmosférica feita de impressões ritmos e distâncias sensoriais A menina não entende o que ele diz mas interpreta à sua maneira aquilo que ele representa Nesse sentido o conto se insere em uma tradição da literatura latino americana que tematiza o olhar sobre o estrangeiro sobre a alteridade imposta pela história colonial ou neocolonial A figura do militar americano não é apenas um personagem individual ele sintetiza em sua corporeidade e em sua incomunicabilidade a presença de um poder externo que ocupa observa consome e em certa medida silencia O Brasil nesse contexto assume uma postura ambígua ao mesmo tempo hospitaleiro e submisso encantado e desconfortável A menina enquanto narradora é também produto dessa ambiguidade Sua juventude e espontaneidade não são sinônimos de inocência pura mas de um olhar que registra e interpreta o que a cerca a partir de um repertório limitado marcado por elementos fragmentários da cultura norteamericana Essa relação entre o que ela vê e o que não compreende revela a tensão entre fascínio e frustração tensão essa que a autora constrói com notável sutileza Rachel de Queiroz não recorre ao exagero nem à denúncia explícita sua crítica está embutida na forma da narrativa na escolha de uma perspectiva que capta o impacto simbólico da ocupação estrangeira sem precisar narrála em termos bélicos Além disso a opção pelo gênero da crônica contribui para o efeito de realismo contido e crítica lateral Como forma breve e cotidiana a crônica permite captar o instante fugaz e tornálo revelador A escolha do gesto da menina oferecer uma fruta como clímax da narrativa é um recurso de alta potência simbólica Nesse ponto a leitura de Eagleton 2006 sobre a literariedade e a linguagem como forma de construção da experiência é especialmente pertinente As obras literárias exigem um tipo de leitura especialmente alerta atenta ao tom ao estado de espírito ao andamento ao gênero à sintaxe à ambiguidade de fato a tudo o que entra na categoria de forma EAGLETON 2006 p 17 Aplicando essa chave de leitura ao conto podese perceber como a forma narrativa marcada por silêncios digressões internas e deslocamentos sensoriais comunica mais do que a trama em si A ausência de um desfecho resolutivo por exemplo reforça a ideia de que não há síntese possível entre os dois personagens A diferença entre eles não é superada é apenas brevemente tocada e esse toque já é significativo Por fim vale destacar que o vocabulário da menina também expressa seu esforço de decifração Termos como tangerina gosto doce olhos claros e palavras estranhas aparecem como elementos simbólicos de um universo que ela tenta compreender sensorialmente A linguagem nesse contexto é não apenas meio de comunicação mas campo de disputa simbólica Ela tenta nomear o que não conhece o soldado por sua vez fala sem ser compreendido Há assim um duplo movimento enquanto ela tenta aproximarse ele permanece imerso em sua própria opacidade estrangeira Rachel de Queiroz ao construir esse jogo de aproximação e afastamento propõe uma crítica sutil à ideia de que o contato entre culturas é natural fácil ou sempre benéfico A autora reconhece a beleza dos gestos de aproximação mas também evidencia suas limitações diante de estruturas de poder maiores e de barreiras históricas sedimentadas Diferenças de Gênero A construção das diferenças de gênero em TangerineGirl é central para a complexidade simbólica da narrativa Rachel de Queiroz escolhe como narradora uma menina jovem cujos pensamentos e percepções dão forma à história Tratase de uma escolha significativa pois confere voz a uma personagem que em contextos históricos e literários tradicionais costuma ser silenciada ou secundarizada Nesse sentido a autora opera dentro de uma lógica de ruptura com o cânone ao colocar no centro da narrativa uma subjetividade feminina em formação que observa interpreta e reage ao mundo ao seu redor A menina não apenas narra os acontecimentos ela os ressignifica a partir de sua experiência de gênero A figura do soldado americano não é apenas um estrangeiro mas um homem adulto com poder simbólico militar e físico A presença dele desencadeia um misto de encantamento e intimidação A menina observa o corpo a roupa os gestos e sobretudo a distância que o separa dela não apenas linguística mas também sexual e social Como indicam Prado e Barbosa 2017 p 359 a autora constrói nessa relação uma crítica implícita às limitações impostas à experiência feminina Ela escreve sobre mulher dá voz poder protagonismo à mulher E é aí sobretudo que Rachel de Queiroz tornase interessante à crítica feminista Ao apresentar uma menina como personagem ativa ainda que situada em posição de vulnerabilidade Rachel de Queiroz rompe com a representação passiva comumente atribuída às mulheres na literatura do seu tempo A menina de TangerineGirl não é objeto do olhar masculino ao contrário ela é sujeito de sua própria narrativa Ela observa o soldado interpreta seus gestos reage com delicadeza mas também com aguda percepção Há nela um desejo de entender talvez de seduzir mas também uma consciência ainda que difusa da diferença de posições entre eles Essa diferença está ligada não só à idade ou ao idioma mas também ao que a crítica de gênero aponta como o patriarcado estrutural das relações sociais A menina como figura feminina jovem ocupa um lugar de escuta de acolhimento e de fragilidade atributos historicamente associados ao feminino O soldado por outro lado representa o poder a invasão a autoridade e o silêncio ele fala mas não é compreendido domina o espaço com seu corpo e presença mas permanece emocionalmente ausente A assimetria da relação é portanto construída também pela forma como os papéis de gênero são performados e percebidos na narrativa Nesse ponto a crítica feminista ajuda a evidenciar que TangerineGirl não é apenas uma crônica sobre encontros culturais mas também sobre limites impostos à experiência feminina em contextos marcados por hierarquias de gênero e poder Como apontam as autoras Suas personagens vivenciam diferentes situações em diversas épocas e lugares ainda que haja o predomínio da região nordestina o que possibilita ao leitor descortinar um largo panorama da situação da mulher PRADO BARBOSA 2017 p 360 É nesse largo panorama que se inscreve a menina da crônica ela vive uma experiência ambígua de encantamento e frustração observação e impotência desejo e resignação Sua juventude a torna vulnerável mas também dotada de uma sensibilidade aguçada que a leva a perceber nuances que escapam à compreensão adulta O gesto de oferecer a tangerina nesse contexto não é apenas um ato de gentileza ou hospitalidade mas um ato de iniciativa feminina um esforço para estabelecer contato ainda que dentro dos limites impostos pela cultura e pelo gênero Rachel de Queiroz ao permitir que essa menina narre a história atribui à personagem não apenas voz mas agência Mesmo que essa agência seja restrita pelas circunstâncias históricas ela é ainda assim significativa A menina observa o estrangeiro mas não se submete a ele Sua curiosidade não é vazia ela está carregada de intenção de inteligência emocional de busca por sentido em um mundo que naquele momento lhe escapa Diferenças de Poder e Hierarquia As diferenças de poder em TangerineGirl não estão apenas implícitas nas relações de gênero ou nos desencontros culturais mas são reforçadas pela presença ostensiva da figura do soldado norteamericano como representante de uma nação militarmente hegemônica e de um império cultural em expansão O militar ainda que apresentado de forma aparentemente amistosa é símbolo vivo de uma hierarquia geopolítica que se impõe silenciosamente sobre o cotidiano da comunidade brasileira retratada Rachel de Queiroz ao construir esse encontro entre um agente de poder o soldado e um sujeito marginal a menina revela com sutileza as tensões provocadas por essa presença estrangeira em solo nacional O conto está ambientado em um momento histórico decisivo durante os anos da Segunda Guerra Mundial o Brasil firmou aliança com os Estados Unidos permitindo a instalação de bases militares em cidades estratégicas como Natal no Rio Grande do Norte Como destaca Schneider 2017 p 118 essa ocupação não foi neutra nem exclusivamente militar Durante cinco anos os norteamericanos fizeram parte da paisagem social e simbólica da cidade transformando hábitos consumos e até mesmo os modos de relacionamento entre os habitantes A base aérea tornouse um território de influência direta onde o poder estrangeiro se fazia presente não só com armas mas com cinema música roupas linguagem Assim o espaço físico da cidade nordestina tornouse também um espaço de disputa simbólica O poder militar embora não expresso por ações violentas na narrativa está inscrito na figura do soldado cuja mera presença carrega consigo uma estrutura de dominação e privilégio Ele ocupa a cena com naturalidade comanda sua linguagem mesmo sem ser compreendido caminha com segurança por uma terra que não é sua A menina ao contrário observao de fora tenta compreender seus gestos e palavras mas permanece numa posição subordinada não por inferioridade pessoal mas pelas estruturas históricas que os cercam Essa diferença hierárquica é intensificada pelo fato de que o militar ainda que não exerça autoridade de forma direta sobre a menina representa uma potência estrangeira que opera dentro de um território que não lhe pertence Seu domínio é tácito mas visível A própria linguagem incompreensível para a narradora funciona como uma barreira de exclusão O militar fala mas não ouve é acolhido mas não se adapta Ele está em trânsito é um forasteiro com poder Ela está enraizada mas sem autoridade A assimetria entre os dois portanto é menos relacional e mais estrutural Essa estrutura se inscreve também nas formas de olhar A menina observa tenta compreender decifra em silêncio O soldado ao contrário não parece perceber a profundidade daquele encontro ele atua mais como símbolo do que como sujeito Como bem observa Eagleton 2006 p 29 a literatura ao construir personagens simbólicos pode revelar camadas de poder que transcendem o plano individual Os personagens literários mesmo quando realistas frequentemente funcionam como condensações de forças sociais políticas e ideológicas São figuras que portam ainda que inconscientemente estruturas de dominação ou resistência Neste caso o militar norteamericano é a encarnação da presença imperialista em território brasileiro enquanto a menina representa o sujeito periférico que tenta compreender esse poder com os recursos simbólicos e afetivos de que dispõe A relação entre eles é marcada por um desequilíbrio estrutural ela se aproxima com interesse genuíno ele responde com gestos protocolares distantes Há afabilidade mas não reciprocidade há troca mas não diálogo real A crônica ao registrar esse breve encontro revela como o poder se exerce muitas vezes de forma silenciosa sem imposições diretas mas com consequências profundas A própria naturalização da presença militar estrangeira em um espaço cotidiano uma praça uma rua um mercado já é em si um exercício de dominação simbólica Rachel de Queiroz não denuncia abertamente essa estrutura mas a evidencia pela escolha do ponto de vista narrativo pela ênfase no estranhamento e pelo contraste entre o olhar curioso da menina e o comportamento indiferente do soldado Por fim é importante reconhecer que mesmo diante dessa assimetria a autora não apaga a subjetividade da narradora Ao contrário ela confere à menina o poder de registrar interpretar e significar o encontro E isso é por si só um gesto político A menina embora desprovida de poder institucional é aquela que narra Ela é quem vê quem conta quem recorda Em um mundo hierarquizado a escolha de Rachel de Queiroz por essa perspectiva é uma forma de subversão narrativa e crítica social silenciosa mas eficaz Esforços de Aproximação e Mediação Apesar das barreiras evidentes culturais linguísticas de gênero e de poder TangerineGirl é atravessada por um fio tênue de aproximação Rachel de Queiroz não retrata um confronto aberto mas uma tentativa contida de comunicação Essa tentativa no entanto não se dá pela via da linguagem verbal mas por meio de gestos olhares e objetos simbólicos O mais emblemático deles é a tangerina pequena simples local que a menina oferece ao soldado estrangeiro Tratase de um gesto carregado de significado hospitalidade curiosidade desejo de conexão talvez até afeto Esse momento de entrega embora singelo é carregado de ambiguidade narrativa A fruta cultivada no solo brasileiro é o que a menina tem a oferecer ao homem que representa um poder estrangeiro Ele aceita mas a cena não evolui para um diálogo verdadeiro há troca mas não há escuta mútua O gesto é simbólico de uma tentativa de mediação mas também denuncia seus próprios limites Como observam Prado e Barbosa 2017 p 361 a potência simbólica do encontro está mais no gesto do que na comunicação efetiva A tangerina representa o ponto de intersecção entre dois mundos sendo simultaneamente expressão de inocência e desejo de aproximação Esse esforço de mediação se dá de forma desigual a menina observa interpreta se esforça para compreender O soldado por outro lado está de passagem não se envolve não compreende não se adapta A aproximação portanto é unilateral Ainda assim Rachel de Queiroz constrói essa assimetria com extrema delicadeza sem recorrer a julgamentos explícitos ou dramatizações excessivas A narrativa é contida mas densamente simbólica O conto parece sugerir que mesmo diante de estruturas de poder rígidas e distâncias históricas e culturais há espaço para gestos humanos que tentam ainda que fracamente romper o isolamento entre sujeitos Esses gestos no entanto são frágeis e provisórios Não resolvem os conflitos mas os revelam de forma sutil A aproximação possível em TangerineGirl é aquela que reconhece os limites da comunicação mas ainda assim insiste no gesto no ato de estender a mão de compartilhar um fruto de buscar o outro sem a ilusão de uma fusão plena Conclusão A crônica TangerineGirl de Rachel de Queiroz é uma narrativa breve mas densa em significados Através do encontro entre uma jovem brasileira e um soldado norteamericano durante a Segunda Guerra Mundial a autora constrói uma reflexão multifacetada sobre as diferenças que separam os sujeitos em contextos de assimetria histórica cultural e simbólica A diferença linguística o estranhamento cultural o recorte de gênero e a hierarquia de poder compõem o tecido narrativo que sustenta o conto A menina figura aparentemente frágil emerge como sujeito narrativo ativo observa sente interpreta e oferece Sua perspectiva revela a tensão entre o encantamento e a exclusão entre o desejo de compreender e a impossibilidade de ser plenamente compreendida O soldado por sua vez representa não apenas o estrangeiro mas o agente de uma potência imperial que ocupa mesmo sem intenção explícita o território e o imaginário local Os gestos de aproximação como a oferta da tangerina ganham força simbólica dentro desse quadro de distanciamento Eles não superam as diferenças mas as tornam visíveis reconhecendo seus limites e ao mesmo tempo a dignidade de persistir na tentativa Rachel de Queiroz com sua escrita precisa e contida nos oferece não apenas um retrato de um tempo mas uma reflexão sobre a experiência humana diante da alteridade Ao dar voz à jovem narradora a autora não apenas destaca a condição feminina e periférica mas também aponta para o valor da escuta e da sensibilidade como formas legítimas de conhecimento e crítica TangerineGirl é portanto uma crônica que transcende o instante narrado e lança luz sobre as estruturas profundas que moldam nossas relações com o outro relações marcadas por diferenças mas também pela esperança contida no gesto da aproximação Referências bibliográficas EAGLETON Terry Como se ler literatura Tradução de Sérgio Flaksman São Paulo Martins Fontes 2006 PRADO Andréa Andrade BARBOSA Adriana Maria de Abreu Gênero história e cultura numa só tangerina Fólio Revista de Letras Vitória da Conquista v 9 n 2 p 357370 juldez 2017 QUEIROZ Rachel de TangerineGirl In 100 crônicas escolhidas Rio de Janeiro José Olympio SCHNEIDER Liane Rachel de Queiroz e os norteamericanos para que serve um dirigível In COUTINHO Eduardo de Assis Org Literatura e guerra ensaios críticos João Pessoa Editora da UFPB 2017 p 115124

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