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PAULO FREIRE PEDAGOGIA DA AUTONOMIA SABERES NECESSÁRIOS À PRÁTICA EDUCATIVA PAZ E TERRA 1 965263 Copyright Editora Villa das Letras Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar em qualquer forma ou meio seja eletrônico de fotocópia gravação etc sem a permissão do detentor do copirraite EDITORA PAZ E TERRA LTDA Rua do Triunfo 177 Sta Ifigênia São Paulo Tel 011 33378399 Fax 011 32236290 httpwwwpazeterracombr Texto revisto pelo novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa CIPBRASIL CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ Freire Paulo Pedagogia da autonomia saberes necessários à prática educativa Paulo Freire São Paulo Paz e Terra 2011 Formato ePub Requisitos do sistema Adobe Digital Editions Modo de acesso World Wide Web ISBN 9788577532261recurso eletrônico 1 Autonomia psicologia 2 Educação 3 Ensino 4 Prática de ensino 5 Professores Formação profissional I Título II Série CDD 370115 2 A ANA MARIA MINHA MULHER COM ALEGRIA E AMOR PAULO FREIRE A FERNANDO GASPARIAN A CUJO GOSTO DA REBELDIA E A CUJA DISPONIBILIDADE À LUTA PELA LIBERDADE E PELA DEMOCRACIA MUITO DEVEMOS PAULO FREIRE À MEMÓRIA DE ADMARDO SERAFIM DE OLIVEIRA PAULO FREIRE A JOÃO FRANCISCO DE SOUZA INTELECTUAL CUJO RESPEITO AO SABER DE SENSO COMUM JAMAIS O FEZ UM BASISTA E CUJO ACATAMENTO À RIGOROSIDADE CIENTÍFICA JAMAIS O TORNOU UM ELITISTA E A INÊS DE SOUZA SUA COMPANHEIRA E AMIGA COM ADMIRAÇÃO DE PAULO FREIRE A ELIETE SANTIAGO EM CUJA PRÁTICA DOCENTE ENSINAR JAMAIS FOI TRANSFERÊNCIA DE CONHECIMENTO FEITA PELA EDUCADORA AOS ALUNOS AO CONTRÁRIO PARA ELA ENSINAR É UMA AVENTURA CRIADORA PAULO FREIRE AOS EDUCANDOS E EDUCANDAS ÀS EDUCADORAS E EDUCADORES DO PROJETO AXÉ DE SALVADOR DA BAHIA NA PESSOA DE SEU INCANSÁVEL ANIMADOR CESARE DE LA ROCA COM MINHA PROFUNDA ADMIRAÇÃO PAULO FREIRE A ÂNGELA ANTUNES CISESKI MOACIR GADOTTI PAULO ROBERTO PADILHA E SÔNIA COUTO DO INSTITUTO PAULO FREIRE COM MEUS AGRADECIMENTOS PELO EXCELENTE TRABALHO DE ORGANIZAÇÃO DOS CAPÍTULOS DESTA PEDAGOGIA DA AUTONOMIA 3 PAULO FREIRE GOSTARIA IGUALMENTE DE AGRADECER A CHRISTINE RÖHRIG E À EQUIPE DE PRODUÇÃO E REVISÃO DA PAZ E TERRA PELA DEDICAÇÃO COM RELAÇÃO NÃO SÓ A ESTE COMO A OUTROS LIVROS MEUS PAULO FREIRE 4 Sumário PREFÁCIO EDNA CASTRO DE OLIVEIRA PRIMEIRAS PALAVRAS 1 Prática docente primeira reflexão 11 Ensinar exige rigorosidade metódica 12 Ensinar exige pesquisa 13 Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos 14 Ensinar exige criticidade 15 Ensinar exige estética e ética 16 Ensinar exige a corporificação das palavras pelo exemplo 17 Ensinar exige risco aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação 18 Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática 19 Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural 2 Ensinar não é transferir conhecimento 21 Ensinar exige consciência do inacabamento 22 Ensinar exige o reconhecimento de ser condicionado 23 Ensinar exige respeito à autonomia do ser do educando 5 24 Ensinar exige bomsenso 25 Ensinar exige humildade tolerância e luta em defesa dos direitos dos educadores 26 Ensinar exige apreensão da realidade 27 Ensinar exige alegria e esperança 28 Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível 29 Ensinar exige curiosidade 3 Ensinar é uma especificidade humana 31 Ensinar exige segurança competência profissional e generosidade 32 Ensinar exige comprometimento 33 Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo 34 Ensinar exige liberdade e autoridade 35 Ensinar exige tomada consciente de decisões 36 Ensinar exige saber escutar 37 Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica 38 Ensinar exige disponibilidade para o diálogo 39 Ensinar exige querer bem aos educandos 6 PREFÁCIO ACEITEI O DESAFIO DE ESCREVER o prefácio deste livro do prof Paulo Freire movida mesmo por uma das exigências da ação educativocrítica por ele defendida a de testemunhar a minha disponibilidade à vida e aos seus chamamentos Comecei a estudar Paulo Freire no Canadá com meu marido Admardo a quem este livro é em parte dedicado Não poderia aqui me pronunciar sem a ele me referir assumindoo afetivamente como companheiro com quem na trajetória possível aprendi a cultivar vários dos saberes necessários à prática educativa transformadora E o pensamento de Paulo Freire foi sem dúvida uma de suas grandes inspirações As ideias retomadas nesta obra resgatam de forma atualizada leve criativa provocativa corajosa e esperançosa questões que no dia a dia do professor continuam a instigar o conflito e o debate entre os educadores e as educadoras O cotidiano do professor na sala de aula e fora dela da educação fundamental à pósgraduação É explorado como numa codificação enquanto espaço de reafirmação negação criação resolução de saberes que constituem os conteúdos obrigatórios à organização programática e o desenvolvimento da formação docente São conteúdos que extrapolando os já cristalizados pela prática escolar o educador progressista principalmente não pode prescindir para o exercício da pedagogia da autonomia aqui proposta Uma pedagogia fundada na ética no respeito à dignidade e à própria autonomia do educando Como os demais saberes este demanda do educador um exercício permanente É a convivência amorosa com seus alunos e na postura curiosa e aberta que assume e ao mesmo tempo provocaos a se assumirem enquanto sujeitos sóciohistóricoculturais do ato de conhecer é que ele pode falar do respeito à dignidade e autonomia do educando Pressupõe romper com concepções e práticas que negam a compreensão da educação como uma situação gnosológica A competência técnicocientífica e o rigor de que o professor não deve abrir mão no desenvolvimento do seu trabalho 7 não são incompatíveis com a amorosidade necessária às relações educativas Essa postura ajuda a construir o ambiente favorável à produção do conhecimento onde o medo do professor e o mito que se cria em torno da sua pessoa vão sendo desvelados É preciso aprender a ser coerente De nada adianta o discurso competente se a ação pedagógica é impermeável a mudanças No âmbito dos saberes pedagógicos em crise ao recolocar questões tão relevantes agora quanto foram na década de 1960 Freire como homem de seu tempo traduz no modo lúcido e peculiar aquilo que os estudos das ciências da educação vêm apontando nos últimos anos a ampliação e a diversificação das fontes legítimas de saberes e a necessária coerência entre o saberfazer e o saberser pedagógicos Num momento de aviamento e de desvalorização do trabalho do professor em todos os níveis a pedagogia da autonomia nos apresenta elementos constitutivos da compreensão da prática docente enquanto dimensão social da formação humana Para além da redução ao aspecto estritamente pedagógico e marcado pela natureza política de seu pensamento Freire advertenos para a necessidade de assumirmos uma postura vigilante contra todas as práticas de desumanização Para tal o saberfazer da autorreflexão crítica e o saberser da sabedoria exercitados permanentemente podem nos ajudar a fazer a necessária leitura crítica das verdadeiras causas da degradação humana e da razão de ser do discurso fatalista da globalização Nesse contexto em que o ideário neoliberal incorpora entre outras a categoria da autonomia é preciso também atentar para a força de seu discurso ideológico e para as inversões que pode operar no pensamento e na prática pedagógica ao estimular o individualismo e a competitividade Como contraponto denunciando o malestar que vem sendo produzido pela ética do mercado Freire anuncia a solidariedade enquanto compromisso histórico de homens e mulheres como uma das formas de luta capazes de promover e instaurar a ética universal do ser humano Essa dimensão utópica tem na pedagogia da autonomia uma de suas possibilidades Finalmente impossível não ressaltar a beleza produzida e traduzida nesta obra A sensibilidade com que Freire problematiza e toca o educador aponta para a dimensão estética de sua prática que por isso mesmo pode ser movida pelo desejo e vivida com alegria sem abrir mão do sonho do rigor da seriedade e da simplicidade inerente ao saberdacompetência 8 Edna Castro de Oliveira Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense Professora do PPGE Centro de Educação UFES 9 PRIMEIRAS PALAVRAS A QUESTÃO DA FORMAÇÂO DOCENTE ao lado da reflexão sobre a prática educativoprogressiva em favor da autonomia do ser dos educandos é a temática central em torno de que gira este texto Temática a que se incorpora a análise de saberes fundamentais àquela prática e aos quais espero que o leitor crítico acrescente alguns que me tenham escapado ou cuja importância não tenha percebido Devo esclarecer aos prováveis leitores e leitoras o seguinte na medida mesma em que esta vem sendo uma temática sempre presente às minhas preocupações de educador alguns dos aspectos aqui discutidos não têm sido estranhos a análises feitas em livros meus anteriores Não creio porém que a retomada de problemas entre um livro e outro e no corpo de um mesmo livro enfade o leitor Sobretudo quando a retomada do tema não é pura repetição do que já foi dito No meu caso pessoal retomar um assunto ou tema tem que ver principalmente com a marca oral de minha escrita Mas tem que ver também com a relevância que o tema de que falo e a que volto tem no conjunto de objetos a que direciono minha curiosidade Tem que ver também com a relação que certa matéria tem com outras que vêm emergindo no desenvolvimento de minha reflexão É neste sentido por exemplo que me aproximo de novo da questão da inconclusão do ser humano de sua inserção num permanente movimento de procura que rediscuto a curiosidade ingênua e a crítica virando epistemológica É nesse sentido que reinsisto em que formar é muito mais do que puramente treinar o educando no desempenho de destrezas e por que não dizer também da quase obstinação com que falo de meu interesse por tudo o que diz respeito aos homens e às mulheres assunto de que saio e a que volto com o gosto de quem a ele se dá pela primeira vez Daí a crítica permanentemente presente em mim à malvadez neoliberal ao cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao sonho e à utopia 10 Daí o tom de raiva legítima raiva que envolve o meu discurso quando me refiro às injustiças a que são submetidos os esfarrapados do mundo Daí o meu nenhum interesse de não importa que ordem assumir um ar de observador imparcial objetivo seguro dos fatos e dos acontecimentos Em tempo algum pude ser um observador acinzentadamente imparcial o que porém jamais me afastou de uma posição rigorosamente ética Quem observa o faz de um certo ponto de vista o que não situa o observador em erro O erro na verdade não é ter um certo ponto de vista mas absolutizálo e desconhecer que mesmo do acerto de seu ponto de vista é possível que a razão ética nem sempre esteja com ele O meu ponto de vista é o dos condenados da Terra o dos excluídos Não aceito porém em nome de nada ações terroristas pois que delas resultam a morte de inocentes e a insegurança de seres humanos O terrorismo nega o que venho chamando de ética universal do ser humano Estou com os árabes na luta por seus direitos mas não pude aceitar a malvadez do ato terrorista nas Olimpíadas de Munique Gostaria por outro lado de sublinhar a nós mesmos professores e professoras a nossa responsabilidade ética no exercício de nossa tarefa docente Sublinhar esta responsabilidade igualmente àquelas e àqueles que se acham em formação para exercêla Este pequeno livro se encontra cortado ou permeado em sua totalidade pelo sentido da necessária eticidade que conota expressivamente a natureza da prática educativa enquanto prática formadora Educadores e educandos não podemos na verdade escapar à rigorosidade ética Mas é preciso deixar claro que a ética de que falo não é a ética menor restrita do mercado que se curva obediente aos interesses do lucro Em escala internacional começa a aparecer uma tendência em acertar os reflexos cruciais da nova ordem mundial como naturais e inevitáveis Num encontro internacional de ONGs um dos expositores afirmou estar ouvindo com certa frequência em países do Primeiro Mundo a ideia de que crianças do Terceiro Mundo acometidas por doenças como diarreia aguda não deveriam ser salvas pois tal recurso só prolongaria uma vida já destinada à miséria e ao sofrimento1 Não falo obviamente desta ética Falo pelo contrário da ética universal do ser humano Da ética que condena o cinismo do discurso citado acima que condena a exploração da força de trabalho do ser humano que condena acusar por ouvir dizer afirmar que alguém falou A sabendo que foi dito B falsear a verdade iludir o incauto golpear o fraco e indefeso soterrar o sonho e a utopia prometer sabendo 11 que não cumprirá a promessa testemunhar mentirosamente falar mal dos outros pelo gosto de falar mal A ética de que falo é a que se sabe traída e negada nos comportamentos grosseiramente imorais como na perversão hipócrita da pureza em puritanismo A ética de que falo é a que se sabe afrontada na manifestação discriminatória de raça de gênero de classe É por esta ética inseparável da prática educativa não importa se trabalhamos com crianças jovens ou com adultos que devemos lutar E a melhor maneira de por ela lutar é vivêla em nossa prática é testemunhála vivaz aos educandos em nossas relações com eles Na maneira como lidamos com os conteúdos que ensinamos no modo como citamos autores de cuja obra discordamos ou com cuja obra concordamos Não podemos basear nossa crítica a um autor na leitura feita por cima de uma ou outra de suas obras Pior ainda tendo lido apenas a crítica de quem só leu a contracapa de um de seus livros Posso não aceitar a concepção pedagógica deste ou daquela autora e devo inclusive expor aos alunos as razões por que me oponho a ela mas o que não posso na minha crítica é mentir É dizer inverdades em torno deles O preparo científico do professor ou da professora deve coincidir com sua retidão ética É uma lástima qualquer descompasso entre aquela e esta Formação científica correção ética respeito aos outros coerência capacidade de viver e de aprender com o diferente não permitir que o nosso malestar pessoal ou a nossa antipatia com relação ao outro nos façam acusálo do que não fez são obrigações a cujo cumprimento devemos humilde mas perseverantemente nos dedicar É não só interessante mas profundamente importante que os estudantes percebam as diferenças de compreensão dos fatos as posições às vezes antagônicas entre professores na apreciação dos problemas e no equacionamento de soluções Mas é fundamental que percebam o respeito e a lealdade com que um professor analisa e critica as posturas dos outros De quando em vez ao longo deste texto volto a este tema É que me acho absolutamente convencido da natureza ética da prática educativa enquanto prática especificamente humana É que por outro lado nos achamos ao nível do mundo e não apenas do Brasil de tal maneira submetidos ao comando da malvadez da ética do mercado que me parece ser pouco tudo o que façamos na defesa e na prática da ética universal do ser humano Não podemos nos assumir como sujeitos da procura da decisão da ruptura da opção como sujeitos históricos transformadores a não ser assumindonos 12 como sujeitos éticos Neste sentido a transgressão dos princípios éticos é uma possibilidade mas não é uma virtude Não podemos aceitála Não é possível ao sujeito ético viver sem estar permanentemente exposto à transgressão da ética Uma de nossas brigas na história por isso mesmo é exatamente esta fazer tudo o que possamos em favor da eticidade sem cair no moralismo hipócrita ao gosto reconhecidamente farisaico Mas faz parte igualmente desta luta pela eticidade recusar com segurança as críticas que veem na defesa da ética precisamente a expressão daquele moralismo criticado Em mim a defesa da ética jamais significou sua distorção ou negação Quando porém falo da ética universal do ser humano estou falando da ética enquanto marca da natureza humana enquanto algo absolutamente indispensável à convivência humana Ao fazêlo estou advertido das possíveis críticas que infiéis a meu pensamento me apontarão como ingênuo e idealista Na verdade falo da ética universal do ser humano da mesma forma como falo de sua vocação ontológica para o Ser Mais como falo de sua natureza constituindose social e historicamente não como um a priori da história A natureza que a ontologia cuida se gesta socialmente na história É uma natureza em processo de estar sendo com algumas conotações fundamentais sem as quais não teria sido possível reconhecer a própria presença humana no mundo como algo original e singular Quer dizer mais do que um ser no mundo o ser humano se tornou uma presença no mundo com o mundo e com os outros Presença que reconhecendo a outra presença como um não eu se reconhece como si própria Presença que se pensa a si mesma que se sabe presença que intervém que transforma que fala do que faz mas também do que sonha que constata compara avalia valora que decide que rompe E é no domínio da decisão da avaliação da liberdade da ruptura da opção que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade A ética se torna inevitável e sua transgressão possível é um desvalor jamais uma virtude Na verdade seria incompreensível se a consciência de minha presença no mundo não significasse já a impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença Como presença consciente no mundo não posso escapar à responsabilidade ética no meu moverme no mundo Se sou puro produto da determinação genética ou cultural ou de classe sou irresponsável pelo que faço no moverme no mundo e se careço de responsabilidade não posso falar em ética Isso não significa negar os 13 condicionamentos genéticos culturais sociais a que estamos submetidos Significa reconhecer que somos seres condicionados mas não determinados Reconhecer que a história é tempo de possibilidade e não de determinismo que o futuro permitaseme reiterar é problemático e não inexorável Devo enfatizar também que este é um livro esperançoso um livro otimista mas não ingenuamente construído de otimismo falso e de esperança vã As pessoas porém inclusive de esquerda para quem o futuro perdeu sua problematicidade o futuro é um dado dado dirão que ele é mais um devaneio de sonhador inveterado Não tenho raiva de quem assim pensa Lamento apenas sua posição a de quem perdeu seu endereço na história A ideologia fatalista imobilizante que anima o discurso neoliberal anda solta no mundo Com ares de pósmodernidade insiste em convencernos de que nada podemos contra a realidade social que de histórica e cultural passa a ser ou a virar quase natural Frases como a realidade é assim mesmo que podemos fazer ou o desemprego no mundo é uma fatalidade do fim do século expressam bem o fatalismo desta ideologia e sua indiscutível vontade imobilizadora Do ponto de vista de tal ideologia só há uma saída para a prática educativa adaptar o educando a esta realidade que não pode ser mudada O de que se precisa por isso mesmo é o treino técnico indispensável à adaptação do educando à sua sobrevivência O livro com que volto aos leitores é um decisivo não a esta ideologia que nos nega e amesquinha como gente De uma coisa qualquer texto necessita que o leitor ou a leitora a ele se entregue de forma crítica crescentemente curiosa É isto o que este texto espera de você que acabou de ler estas Primeiras palavras Paulo Freire São Paulo Setembro de 1996 14 Nota 1 Regina L Garcia e Víctor V Valla A fala dos excluídos Cadernos Cede 38 1996 15 1 PRÁTICA DOCENTE PRIMEIRA REFLEXÃO DEVO DEIXAR CLARO QUE embora seja meu interesse central considerar neste texto saberes que me parecem indispensáveis à prática docente de educadoras ou educadores críticos progressistas alguns deles são igualmente necessários a educadores conservadores São saberes demandados pela prática educativa em si mesma qualquer que seja a opção política do educador ou educadora Na continuidade da leitura vai cabendo ao leitor ou leitora o exercício de perceber se este ou aquele saber referido corresponde à natureza da prática progressista ou conservadora ou se pelo contrário é exigência da prática educativa mesma independentemente de sua cor política ou ideológica Por outro lado devo sublinhar que de forma não sistemática tenho me referido a alguns desses saberes em trabalhos anteriores Estou convencido porém é legítimo acrescentar da importância de uma reflexão como esta quando penso a formação docente e a prática educativocrítica O ato de cozinhar por exemplo supõe alguns saberes concernentes ao uso do fogão como acendêlo como equilibrar para mais para menos a chama como lidar com certos riscos mesmo remotos de incêndio como harmonizar os diferentes temperos numa síntese gostosa e atraente A prática de cozinhar vai preparando o novato ratificando alguns daqueles saberes retificando outros e vai possibilitando que ele vire cozinheiro A prática de velejar coloca a necessidade de saberes fundantes como o do domínio do barco das partes que o compõem e da função de cada uma delas como o conhecimento dos ventos de sua força de sua direção os ventos e as velas a posição das velas o papel do motor e da combinação entre motor e velas Na prática de velejar se confirmam se modificam ou se ampliam esses saberes 16 A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação TeoriaPrática sem a qual a teoria pode ir virando blábláblá e a prática ativismo O que me interessa agora repito é alinhar e discutir alguns saberes fundamentais à prática educativocrítica ou progressista e que por isso mesmo devem ser conteúdos obrigatórios à organização programática da formação docente Conteúdos cuja compreensão tão clara e tão lúcida quanto possível deve ser elaborada na prática formadora É preciso sobretudo e aí já vai um destes saberes indispensáveis que o formando desde o princípio mesmo de sua experiência formadora assumindose como sujeito também da produção do saber se convença definitivamente de que ensinar não é transferir conhecimento mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção Se na experiência de minha formação que deve ser permanente começo por aceitar que o formador é o sujeito em relação a quem me considero o objeto que ele é o sujeito que me forma e eu o objeto por ele formado me considero como um paciente que recebe os conhecimentos conteúdos acumulados pelo sujeito que sabe e que são a mim transferidos Nesta forma de compreender e de viver o processo formador eu objeto agora terei a possibilidade amanhã de me tornar o falso sujeito da formação do futuro objeto de meu ato formador É preciso que pelo contrário desde os começos do processo vá ficando cada vez mais claro que embora diferentes entre si quem forma se forma e reforma ao formar e quem é formado formase e forma ao ser formado É neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos conteúdos nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado Não há docência sem discência as duas se explicam e seus sujeitos apesar das diferenças que os conotam não se reduzem à condição de objeto um do outro Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender Quem ensina ensina alguma coisa a alguém É por isso que do ponto de vista gramatical o verbo ensinar é um verbo transitivo relativo Verbo que pede um objeto direto alguma coisa e um objeto indireto a alguém Do ponto de vista democrático em que me situo mas também do ponto de vista da radicalidade metafísica em que me coloco e de que decorre minha compreensão do homem e da mulher como seres históricos e inacabados e sobre que se funda a minha inteligência do processo de conhecer ensinar é algo mais que um verbo transitivo 17 relativo Ensinar inexiste sem aprender e viceversa e foi aprendendo socialmente que historicamente mulheres e homens descobriram que era possível ensinar Foi assim socialmente aprendendo que ao longo dos tempos mulheres e homens perceberam que era possível depois preciso trabalhar maneiras caminhos métodos de ensinar Aprender precedeu ensinar ou em outras palavras ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender Não temo dizer que inexiste validade no ensino de que não resulta um aprendizado em que o aprendiz não se tornou capaz de recriar ou de refazer o ensinado em que o ensinado que não foi apreendido não pode ser realmente aprendido pelo aprendiz Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar aprender participamos de uma experiência total diretiva política ideológica gnosiológica pedagógica estética e ética em que a boniteza deve acharse de mãos dadas com a decência e com a seriedade Às vezes nos meus silêncios em que aparentemente me perco desligado flutuando quase penso na importância singular que vem sendo para mulheres e homens sermos ou nos termos tornado como constata François Jacob seres programados mas para aprender2 É que o processo de aprender em que historicamente descobrimos que era possível ensinar como tarefa não apenas embutida no aprender mas perfilada em si com relação a aprender é um processo que pode deflagrar no aprendiz uma curiosidade crescente que pode tornálo mais e mais criador O que quero dizer é o seguinte quanto mais criticamente se exerça a capacidade de aprender tanto mais se constrói e desenvolve o que venho chamando curiosidade epistemológica3 sem a qual não alcançamos o conhecimento cabal do objeto É isto que nos leva de um lado à crítica e à recusa ao ensino bancário4 de outro a compreender que apesar dele o educando a ele submetido não está fadado a fenecer em que pese o ensino bancário que deforma a necessária criatividade do educando e do educador o educando a ele sujeitado pode não por causa do conteúdo cujo conhecimento lhe foi transferido mas por causa do processo mesmo de aprender dar como se diz na linguagem popular a volta por cima e superar o autoritarismo e o erro epistemológico do bancarismo O necessário é que subordinado embora à prática bancária o educando mantenha vivo em si o gosto da rebeldia que aguçando sua curiosidade e estimulando sua capacidade de arriscarse de aventurarse de 18 certa forma o imuniza contra o poder apassivador do bancarismo Neste caso é a força criadora do aprender de que fazem parte a comparação a repetição a constatação a dúvida rebelde a curiosidade não facilmente satisfeita que supera os efeitos negativos do falso ensinar Esta é uma das significativas vantagens dos seres humanos a de se terem tornado capazes de ir mais além de seus condicionantes Isso não significa porém que nos seja indiferente ser um educador bancário ou um educador problematizador 11 ENSINAR EXIGE RIGOROSIDADE METÓDICA O educador democrático não pode negarse o dever de na sua prática docente reforçar a capacidade crítica do educando sua curiosidade sua insubmissão Uma de suas tarefas primordiais é trabalhar com os educandos a rigorosidade metódica com que devem se aproximar dos objetos cognoscíveis E esta rigorosidade metódica não tem nada que ver com o discurso bancário meramente transferidor do perfil do objeto ou do conteúdo É exatamente neste sentido que ensinar não se esgota no tratamento do objeto ou do conteúdo superficialmente feito mas se alonga à produção das condições em que aprender criticamente é possível E essas condições implicam ou exigem a presença de educadores e de educandos criadores instigadores inquietos rigorosamente curiosos humildes e persistentes Faz parte das condições em que aprender criticamente é possível a pressuposição por parte dos educandos de que o educador já teve ou continua tendo experiência da produção de certos saberes e que estes não podem a eles os educandos ser simplesmente transferidos Pelo contrário nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado ao lado do educador igualmente sujeito do processo Só assim podemos falar realmente de saber ensinado em que o objeto ensinado é apreendido na sua razão de ser e portanto aprendido pelos educandos Percebese assim a importância do papel do educador o mérito da paz com que viva a certeza de que faz parte de sua tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos mas também ensinar a pensar certo Daí a impossibilidade de vir a tornarse um professor crítico se mecanicamente 19 memorizador é muito mais um repetidor cadenciado de frases e de ideias inertes do que um desafiador O intelectual memorizador que lê horas a fio domesticandose ao texto temeroso de arriscarse fala de suas leituras quase como se estivesse recitandoas de memória não percebe quando realmente existe nenhuma relação entre o que leu e o que vem ocorrendo no seu país na sua cidade no seu bairro Repete o lido com precisão mas raramente ensaia algo pessoal Fala bonito de dialética mas pensa mecanicistamente Pensa errado É como se os livros todos a cuja leitura dedica tempo farto nada devessem ter com a realidade de seu mundo A realidade com que eles têm que ver é a realidade idealizada de uma escola que vai virando cada vez mais um dado aí desconectado do concreto Não se lê criticamente como se fazêlo fosse a mesma coisa que comprar mercadoria por atacado Ler vinte livros trinta livros A leitura verdadeira me compromete de imediato com o texto que a mim se dá e a que me dou e de cuja compreensão fundamental me vou tornando também sujeito Ao ler não me acho no puro encalço da inteligência do texto como se fosse ela produção apenas de seu autor ou de sua autora Esta forma viciada de ler não tem nada que ver por isso mesmo com o pensar certo e com o ensinar certo Só na verdade quem pensa certo mesmo que às vezes pense errado é quem pode ensinar a pensar certo E uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas Por isso é que o pensar certo ao lado sempre da pureza e necessariamente distante do puritanismo rigorosamente ético e gerador de boniteza me parece inconciliável com a desvergonha da arrogância de quem se acha cheia ou cheio de si mesmo O professor que pensa certo deixa transparecer aos educandos que uma das bonitezas de nossa maneira de estar no mundo e com o mundo como seres históricos é a capacidade de intervindo no mundo conhecer o mundo Mas histórico como nós o nosso conhecimento do mundo tem historicidade Ao ser produzido o conhecimento novo supera outro que antes foi novo e se fez velho e se dispõe a ser ultrapassado por outro amanhã5 Daí que seja tão fundamental conhecer o conhecimento existente quanto saber que estamos abertos e aptos à produção do conhecimento ainda não existente Ensinar aprender e pesquisar lidam com esses dois momentos do ciclo gnosiológico o em que se ensina e se aprende o conhecimento já existente e o em que se trabalha a produção do 20 conhecimento ainda não existente A dodiscência docênciadiscência e a pesquisa indicotomizáveis são assim práticas requeridas por esses momentos do ciclo gnosiológico 12 ENSINAR EXIGE PESQUISA Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino6 Esses quefazeres se encontram um no corpo do outro Enquanto ensino continuo buscando reprocurando Ensino porque busco porque indaguei porque indago e me indago Pesquiso para constatar constatando intervenho intervindo educo e me educo Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade Pensar certo em termos críticos é uma exigência que os momentos do ciclo gnosiológico vão pondo à curiosidade que tornandose mais e mais metodicamente rigorosa transita da ingenuidade para o que venho chamando curiosidade epistemológica A curiosidade ingênua de que resulta indiscutivelmente um certo saber não importa que metodicamente desrigoroso é a que caracteriza o senso comum O saber de pura experiência feito Pensar certo do ponto de vista do professor tanto implica o respeito ao senso comum no processo de sua necessária superação quanto o respeito e o estímulo à capacidade criadora do educando Implica o compromisso da educadora com a consciência crítica do educando cuja promoção da ingenuidade não se faz automaticamente 13 ENSINAR EXIGE RESPEITO AOS SABERES DOS EDUCANDOS Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou mais amplamente à escola o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos sobretudo os das classes populares chegam a ela saberes socialmente construídos na prática comunitária mas também como há mais de trinta anos venho sugerindo discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos Por que não aproveitar a experiência que têm os alunos de viver em áreas da cidade descuidadas pelo poder público para discutir por exemplo a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bemestar das populações os lixões e os riscos 21 que oferecem à saúde das gentes Por que não há lixões no coração dos bairros ricos e mesmo puramente remediados dos centros urbanos Essa pergunta é considerada em si demagógica e reveladora da má vontade de quem a faz É pergunta de subversivo dizem certos defensores da democracia Por que não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo conteúdo se ensina a realidade agressiva em que a violência é a constante e a convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida Por que não estabelecer uma intimidade entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos Por que não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes pelas áreas pobres da cidade A ética de classe embutida neste descaso Porque dirá um educador reacionariamente pragmático a escola não tem nada que ver com isso A escola não é partido Ela tem que ensinar os conteúdos transferilos aos alunos Aprendidos estes operam por si mesmos 14 ENSINAR EXIGE CRITICIDADE Não há para mim na diferença e na distância entre a ingenuidade e a criticidade entre o saber de pura experiência feito e o que resulta dos procedimentos metodicamente rigorosos uma ruptura mas uma superação A superação e não a ruptura se dá na medida em que a curiosidade ingênua sem deixar de ser curiosidade pelo contrário continuando a ser curiosidade se criticiza Ao criticizarse tornandose então permitome repetir curiosidade epistemológica metodicamente rigorizandose na sua aproximação ao objeto conota seus achados de maior exatidão Na verdade a curiosidade ingênua que desarmada está associada ao saber do senso comum é a mesma curiosidade que criticizandose aproximandose de forma cada vez mais metodicamente rigorosa do objeto cognoscível se torna curiosidade epistemológica Muda de qualidade mas não de essência A curiosidade de camponeses com quem tenho dialogado ao longo de minha experiência políticopedagógica fatalistas ou já rebeldes diante da violência das injustiças é a mesma curiosidade enquanto abertura mais ou menos espantada diante de não eus com que cientistas ou filósofos acadêmicos admiram o mundo Os cientistas e os filósofos 22 superam porém a ingenuidade da curiosidade do camponês e se tornam epistemologicamente curiosos A curiosidade como inquietação indagadora como inclinação ao desvelamento de algo como pergunta verbalizada ou não como procura de esclarecimento como sinal de atenção que sugere alerta faz parte integrante do fenômeno vital Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos acrescentando a ele algo que fazemos Como manifestação presente à experiência vital a curiosidade humana vem sendo histórica e socialmente construída e reconstruída Precisamente porque a promoção da ingenuidade para a criticidade não se dá automaticamente uma das tarefas precípuas da prática educativo progressista é exatamente o desenvolvimento da curiosidade crítica insatisfeita indócil Curiosidade com que podemos nos defender de irracionalismos decorrentes do ou produzidos por certo excesso de racionalidade de nosso tempo altamente tecnologizado E não vai nesta consideração nenhuma arrancada falsamente humanista de negação da tecnologia e da ciência Pelo contrário é consideração de quem de um lado não diviniza a tecnologia mas de outro não a diaboliza De quem a olha ou mesmo a espreita de forma criticamente curiosa 15 ENSINAR EXIGE ESTÉTICA E ÉTICA A necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não deve ser feita à distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética Decência e boniteza de mãos dadas Cada vez me convenço mais de que desperta com relação à possibilidade de enveredarse no descaminho do puritanismo a prática educativa tem de ser em si um testemunho rigoroso de decência e de pureza Uma crítica permanente aos desvios fáceis com que somos tentados às vezes ou quase sempre a deixar as dificuldades que os caminhos verdadeiros podem nos colocar Mulheres e homens seres históricosociais nos tornamos capazes de comparar de valorar de intervir de escolher de decidir de romper por tudo isso nos fizemos seres éticos Só somos porque estamos sendo Estar sendo é a condição entre nós para ser Não é possível pensar os seres humanos longe sequer da ética quanto mais fora dela Estar longe ou pior fora da ética entre nós mulheres e homens é 23 uma transgressão É por isso que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo o seu caráter formador Se se respeita a natureza do ser humano o ensino dos conteúdos não pode darse alheio à formação moral do educando Educar é substantivamente formar Divinizar ou diabolizar a tecnologia7 ou a ciência é uma forma altamente negativa e perigosa de pensar errado De testemunhar aos alunos às vezes com ares de quem possui a verdade um rotundo desacerto Pensar certo pelo contrário demanda profundidade e não superficialidade na compreensão e na interpretação dos fatos Supõe a disponibilidade à revisão dos achados reconhece não apenas a possibilidade de mudar de opção de apreciação mas o direito de fazêlo Mas como não há pensar certo à margem de princípios éticos se mudar é uma possibilidade e um direito cabe a quem muda exige o pensar certo que assuma a mudança operada Do ponto de vista do pensar certo não é possível mudar e fazer de conta que não mudou É que todo pensar certo é radicalmente coerente 16 ENSINAR EXIGE A CORPORIFICAÇÃO DAS PALAVRAS PELO EXEMPLO O professor que realmente ensina quer dizer que trabalha os conteúdos no quadro da rigorosidade do pensar certo nega como falsa a fórmula farisaica do faça o que mando e não o que eu faço Quem pensa certo está cansado de saber que as palavras a que falta a corporeidade do exemplo pouco ou quase nada valem Pensar certo é fazer certo Que podem pensar alunos sérios de um professor que há dois semestres falava com quase ardor sobre a necessidade da luta pela autonomia das classes populares e hoje dizendo que não mudou faz o discurso pragmático contra os sonhos e pratica a transferência de saber do professor para o aluno Que dizer da professora que de esquerda ontem defendia a formação da classe trabalhadora e que pragmática hoje se satisfaz curvada ao fatalismo neoliberal com o puro treinamento do operário insistindo porém que é progressista Não há pensar certo fora de uma prática testemunhal que o rediz em lugar de desdizêlo Não é possível ao professor pensar que pensa certo mas ao mesmo tempo perguntar ao aluno se sabe com quem está falando 24 O clima de quem pensa certo é o de quem busca seriamente a segurança na argumentação é o de quem discordando do seu oponente não tem por que contra ele ou contra ela nutrir uma raiva desmedida bem maior às vezes do que a razão mesma da discordância Uma dessas pessoas desmedidamente raivosas proibiu certa vez uma estudante que trabalhava em uma dissertação sobre alfabetização e cidadania que me lesse Já era disse com ares de quem trata com rigor e neutralidade o objeto que era eu Qualquer leitura que você faça deste senhor pode prejudicála Não é assim que se pensa certo nem é assim que se ensina certo8 Faz parte do pensar certo o gosto da generosidade que não negando a quem o tem o direito à raiva a distingue da raivosidade irrefreada 17 ENSINAR EXIGE RISCO ACEITAÇÃO DO NOVO E REJEIÇÃO A QUALQUER FORMA DE DISCRIMINAÇÃO É próprio do pensar certo a disponibilidade ao risco a aceitação do novo que não pode ser negado ou acolhido só porque é novo assim como o critério de recusa ao velho não é apenas o cronológico O velho que preserva sua validade ou que encarna uma tradição ou marca uma presença no tempo continua novo Faz parte igualmente do pensar certo a rejeição mais decidida a qualquer forma de discriminação A prática preconceituosa de raça de classe de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia Quão longe dela nos achamos quando vivemos a impunidade dos que matam meninos nas ruas dos que assassinam camponeses que lutam por seus direitos dos que discriminam os negros dos que inferiorizam as mulheres Quão ausentes da democracia se acham os que queimam igrejas de negros porque certamente negros não têm alma Negros não rezam Com sua negritude os negros sujam a branquitude das orações A mim me dá pena e não raiva quando vejo a arrogância com que a branquitude de sociedades em que se faz isso em que se queimam igrejas de negros se apresenta ao mundo como pedagoga da democracia Pensar e fazer errado pelo visto não têm mesmo nada que ver com a humildade que o pensar certo exige Não têm nada que ver com o bomsenso que regula nossos exageros e evita as nossas caminhadas até o ridículo e a insensatez Às vezes temo que algum leitor ou leitora mesmo que ainda não totalmente convertido ao pragmatismo neoliberal mas por ele já tocado 25 diga que sonhador continuo a falar de uma educação de anjos e não de mulheres e de homens O que tenho dito até agora porém diz respeito radicalmente à natureza de mulheres e de homens Natureza entendida como social e historicamente constituindose e não como um a priori da história9 O problema que se coloca para mim é que compreendendo como compreendo a natureza humana seria uma contradição grosseira não defender o que venho defendendo Faz parte da exigência que a mim mesmo faço de pensar certo pensar como venho pensando enquanto escrevo este texto Pensar por exemplo que o pensar certo a ser ensinado concomitantemente com o ensino dos conteúdos não é um pensar formalmente anterior ao e desgarrado do fazer certo Neste sentido é que ensinar a pensar certo não é uma experiência em que ele o pensar certo é tomado em si mesmo e dele se fala ou uma prática que puramente se descreve mas algo que se faz e que se vive enquanto dele se fala com a força do testemunho Pensar certo implica a existência de sujeitos que pensam mediados por objeto ou objetos sobre que incide o próprio pensar dos sujeitos Pensar certo não é quefazer de quem se isola de quem se aconchega a si mesmo na solidão mas um ato comunicante Não há por isso mesmo pensar sem entendimento e o entendimento do ponto de vista do pensar certo não é transferido mas coparticipado Se do ângulo da gramática o verbo entender é transitivo no que concerne à sintaxe do pensar certo ele é um verbo cujo sujeito é sempre copartícipe de outro Todo entendimento se não se acha trabalhado mecanicistamente se não vem sendo submetido aos cuidados alienadores de um tipo especial e cada vez mais ameaçadoramente comum de mente que venho chamando burocratizada implica necessariamente comunicabilidade Não há inteligência a não ser quando o próprio processo de inteligir é distorcido que não seja também comunicação do inteligido A grande tarefa do sujeito que pensa certo não é transferir depositar oferecer doar ao outro tomado como paciente de seu pensar a inteligibilidade das coisas dos fatos dos conceitos A tarefa coerente do educador que pensa certo é exercendo como ser humano a irrecusável prática de inteligir desafiar o educando com quem se comunica a quem comunica a produzir sua compreensão do que vem sendo comunicado Não há inteligibilidade que não seja comunicação e intercomunicação e que não se funde na dialogicidade O pensar certo por isso é dialógico e não polêmico 26 18 ENSINAR EXIGE REFLEXÃO CRÍTICA SOBRE A PRÁTICA O pensar certo sabe por exemplo que não é a partir dele como um dado dado que se conforma a prática docente crítica mas sabe também que sem ele não se funda aquela A prática docente crítica implicante do pensar certo envolve o movimento dinâmico dialético entre o fazer e o pensar sobre o fazer O saber que a prática docente espontânea ou quase espontânea desarmada indiscutivelmente produz é um saber ingênuo um saber de experiência feito a que falta a rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito Este não é o saber que a rigorosidade do pensar certo procura Por isso é fundamental que na prática da formação docente o aprendiz de educador assuma que o indispensável pensar certo não é presente dos deuses nem se acha nos guias de professores que iluminados intelectuais escrevem desde o centro do poder mas pelo contrário o pensar certo que supera o ingênuo tem que ser produzido pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor formador É preciso por outro lado reinsistir em que a matriz do pensar ingênuo como a do crítico é a curiosidade mesma característica do fenômeno vital Neste sentido indubitavelmente é tão curioso o professor chamado leigo no interior de Pernambuco quanto o professor de filosofía da educação na universidade A ou B O de que se precisa é possibilitar que voltandose sobre si mesma através da reflexão sobre a prática a curiosidade ingênua percebendose como tal se vá tornando crítica Por isso é que na formação permanente dos professores o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática O próprio discurso teórico necessário à reflexão crítica tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a prática O seu distanciamento epistemológico da prática enquanto objeto de sua análise deve dela aproximálo ao máximo Quanto melhor faça esta operação tanto mais inteligência ganha da prática em análise e maior comunicabilidade exerce em torno da superação da ingenuidade pela rigorosidade Por outro lado quanto mais me assumo como estou sendo e percebo a ou as razões de ser de por que estou sendo assim mais me torno capaz de mudar de promover me no caso do estado de curiosidade ingênua para o de curiosidade epistemológica Não é possível a assunção que o sujeito faz de si numa certa 27 forma de estar sendo sem a disponibilidade para mudar Para mudar e de cujo processo se faz necessariamente sujeito também Seria porém exagero idealista afirmar que a assunção por exemplo de que fumar ameaça minha vida já significa deixar de fumar Mas deixar de fumar passa em algum sentido pela assunção do risco que corro ao fumar Por outro lado a assunção se vai fazendo cada vez mais assunção na medida em que ela engendra novas opções por isso mesmo em que ela provoca ruptura decisão e novos compromissos Quando assumo o mal ou os males que o cigarro me pode causar me movo no sentido de evitar os males Decido rompo opto Mas é na prática de não fumar que a assunção do risco que corro por fumar se concretiza materialmente Me parece que há ainda um elemento fundamental na assunção de que falo o emocional Além do conhecimento que tenho do mal que o fumo me faz tenho agora na assunção que dele faço legítima raiva do fumo E tenho também a alegria de ter tido a raiva que no fundo ajudou que eu continuasse no mundo por mais tempo Está errada a educação que não reconhece na justa raiva10 na raiva que protesta contra as injustiças contra a deslealdade contra o desamor contra a exploração e a violência um papel altamente formador O que a raiva não pode é perdendo os limites que a confirmam perderse em raivosidade que corre sempre o risco de se alongar em odiosidade 19 ENSINAR EXIGE O RECONHECIMENTO E A ASSUNÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL É interessante estender mais um pouco a reflexão sobre a assunção O verbo assumir é um verbo transitivo e que pode ter como objeto o próprio sujeito que assim se assume Eu tanto assumo o risco que corro ao fumar quanto me assumo enquanto sujeito da própria assunção Deixemos claro que quando digo ser fundamental para deixar de fumar a assunção de que fumar ameaça minha vida com assunção eu quero sobretudo me referir ao conhecimento cabal que obtive do fumar e de suas consequências Outro sentido mais radical tem a assunção ou assumir quando digo uma das tarefas mais importantes da prática educativocrítica é propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumirse Assumirse como ser social e histórico como ser pensante comunicante transformador 28 criador realizador de sonhos capaz de ter raiva porque capaz de amar Assumirse como sujeito porque capaz de reconhecerse como objeto A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros É a outredade do não eu ou do tu que me faz assumir a radicalidade de meu eu A questão da identidade cultural de que fazem parte a dimensão individual e a de classe dos educandos cujo respeito é absolutamente fundamental na prática educativa progressista é problema que não pode ser desprezado Tem que ver diretamente com a assunção de nós por nós mesmos É isto que o puro treinamento do professor não faz perdendose e perdendoo na estreita e pragmática visão do processo A experiência histórica política cultural e social dos homens e das mulheres jamais pode se dar virgem do conflito entre as forças que obstaculizam a busca da assunção de si por parte dos indivíduos e dos grupos e das forças que trabalham em favor daquela assunção A formação docente que se julgue superior a essas intrigas não faz outra coisa senão trabalhar em favor dos obstáculos A solidariedade social e política de que precisamos para construir a sociedade menos feia e menos arestosa em que podemos ser mais nós mesmos tem na formação democrática uma prática de real importância A aprendizagem da assunção do sujeito é incompatível com o treinamento pragmático ou com o elitismo autoritário dos que se pensam donos da verdade e do saber articulado Às vezes mal se imagina o que pode passar a representar na vida de um aluno um simples gesto do professor O que pode um gesto aparentemente insignificante valer como força formadora ou como contribuição à assunção do educando por si mesmo Nunca me esqueço na história já longa de minha memória de um desses gestos de professor que tive na adolescência remota Gesto cuja significação mais profunda talvez tenha passado despercebida por ele o professor e que teve importante influência sobre mim Estava sendo então um adolescente inseguro vendome como um corpo anguloso e feio percebendome menos capaz do que os outros fortemente incerto de minhas possibilidades Era muito mais malhumorado que apaziguado com a vida Facilmente me eriçava Qualquer consideração feita por um colega rico da classe já me parecia o chamamento à atenção de minhas fragilidades de minha insegurança O professor trouxera de casa os nossos trabalhos escolares e chamando nos um a um devolviaos com o seu ajuizamento Em certo momento me 29 chama e olhando ou reolhando o meu texto sem dizer palavra balança a cabeça numa demonstração de respeito e de consideração O gesto do professor valeu mais do que a própria nota dez que atribuiu à minha redação O gesto do professor me trazia uma confiança ainda obviamente desconfiada de que era possível trabalhar e produzir De que era possível confiar em mim mas que seria tão errado confiar além dos limites quanto errado estava sendo não confiar A melhor prova da importância daquele gesto é que dele falo agora como se tivesse sido testemunhado hoje E faz na verdade muito tempo que ele ocorreu Este saber o da importância desses gestos que se multiplicam diariamente nas tramas do espaço escolar é algo sobre que teríamos de refletir seriamente É uma pena que o caráter socializante da escola o que há de informal na experiência que se vive nela de formação ou deformação seja negligenciado Falase quase exclusivamente do ensino dos conteúdos ensino lamentavelmente quase sempre entendido como transferência do saber Creio que uma das razões que explicam este descaso em torno do que ocorre no espaçotempo da escola que não seja a atividade ensinante vem sendo uma compreensão estreita do que é educação e do que é aprender No fundo passa despercebido a nós que foi aprendendo socialmente que mulheres e homens historicamente descobriram que é possível ensinar Se estivesse claro para nós que foi aprendendo que percebemos ser possível ensinar teríamos entendido com facilidade a importância das experiências informais nas ruas nas praças no trabalho nas salas de aula das escolas nos pátios dos recreios11 em que variados gestos de alunos de pessoal administrativo de pessoal docente se cruzam cheios de significação Há uma natureza testemunhal nos espaços tão lamentavelmente relegados das escolas Em A educação na cidade12 chamei a atenção para esta importância quando discuti o estado em que a administração de Luiza Erundina encontrou a rede escolar da cidade de São Paulo em 1989 O descaso pelas condições materiais das escolas alcançava níveis impensáveis Nas minhas primeiras visitas à rede quase devastada eu me perguntava horrorizado como cobrar das crianças um mínimo de respeito às carteiras escolares às mesas às paredes se o Poder Público revela absoluta desconsideração à coisa pública É incrível que não imaginemos a significação do discurso formador que faz uma escola respeitada em seu espaço A eloquência do discurso pronunciado na e pela limpeza do chão na boniteza das salas na 30 higiene dos sanitários nas flores que adornam Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço Pormenores assim da cotidianidade do professor portanto igualmente do aluno a que quase sempre pouca ou nenhuma atenção se dá têm na verdade um peso significativo na avaliação da experiência docente O que importa na formação docente não é a repetição mecânica do gesto este ou aquele mas a compreensão do valor dos sentimentos das emoções do desejo da insegurança a ser superada pela segurança do medo que ao ser educado vai gerando a coragem Nenhuma formação docente verdadeira pode fazerse alheada de um lado do exercício da criticidade que implica a promoção da curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica do outro sem o reconhecimento do valor das emoções da sensibilidade da afetividade da intuição ou adivinhação Conhecer não é de fato adivinhar mas tem algo que ver de vez em quando com adivinhar com intuir O importante não resta dúvida é não pararmos satisfeitos ao nível das intuições mas submetêlas à análise metodicamente rigorosa de nossa curiosidade epistemológica Não é possível também formação docente indiferente à boniteza e à decência que estar no mundo com o mundo e com os outros substantivamente exige de nós Não há prática docente verdadeira que não seja ela mesma um ensaio estético e ético permitaseme a repetição 31 Notas 2 François Jacob Nous sommes programmés mais pour apprendre Le Courrier Unesco fevereiro de 1991 3 Paulo Freire À sombra desta mangueira São Paulo Olho dágua 1995 4 Id Pedagogia do oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 1994 48a edição São Paulo Paz e Terra 2011 5 A esse propósito cf Álvaro Vieira Pinto Ciência e existência Rio de Janeiro Paz e Terra 1969 6 Falase hoje com insistência no professor pesquisador No meu entender o que há de pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma forma de ser ou de atuar que se acrescente à de ensinar Faz parte da natureza da prática docente a indagação a busca a pesquisa O de que se precisa é que em sua formação permanente o professor se perceba e se assuma porque professor como pesquisador 7 A este propósito cf Neil Postman Technopoly The Surrender of Culture to Technology Nova York Alfred A Knopf 1992 8 Cf Paulo Freire Cartas a Cristina Rio de Janeiro Paz e Terra 1995 p 207 9 Paulo Freire Pedagogia da esperança Rio de Janeiro Paz e Terra 1994 17a edição São Paulo Paz e Terra 2011 10 A de Cristo contra os vendilhões do Templo A dos progressistas contra os inimigos da reforma agrária a dos ofendidos contra a violência de toda discriminação de classe de raça de gênero A dos injustiçados contra a impunidade A de quem tem fome contra a forma luxuriosa com que alguns mais do que comem esbanjam e transformam a vida num desfrute 11 Esta é uma preocupação fundamental da equipe coordenada pelo professor Miguel Arroio e que vem propondo ao país em Belo Horizonte uma das melhores reinvenções da escola É uma lástima que não tenha havido ainda uma emissora de TV que se dedicasse a mostrar experiências como a de Belo Horizonte a de Uberaba a de Porto Alegre a do Recife e de tantas outras espalhadas pelo Brasil Que se propusesse revelar práticas criadoras de gente que se arrisca vividas em escolas privadas ou públicas Programa que poderia chamarse Mudar é difícil mas é possível No fundo um dos saberes fundamentais à prática educativa 12 Paulo Freire A educação na cidade São Paulo Cortez Editora 1991 32 2 ENSINAR NÃO É TRANSFERIR CONHECIMENTO AS CONSIDERAÇÕES OU REFLEXÕES ATÉ AGORA FEITAS vêm sendo desdobramentos de um primeiro saber inicialmente apontado como necessário à formação docente numa perspectiva progressista Saber que ensinar não é transferir conhecimento mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção Quando entro em uma sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações à curiosidade às perguntas dos alunos a suas inibições um ser crítico e inquiridor inquieto em face da tarefa que tenho a de ensinar e não a de transferir conhecimento É preciso insistir este saber necessário ao professor de que ensinar não é transferir conhecimento não apenas precisa ser apreendido por ele e pelos educandos nas suas razões de ser ontológica política ética epistemológica pedagógica mas também precisa ser constantemente testemunhado vivido Como professor num curso de formação docente não posso esgotar minha prática discursando sobre a Teoria da não extensão do conhecimento Não posso apenas falar bonito sobre as razões ontológicas epistemológicas e políticas da Teoria O meu discurso sobre a Teoria deve ser o exemplo concreto prático da teoria Sua encarnação Ao falar da construção do conhecimento criticando a sua extensão já devo estar envolvido nela e nela a construção estar envolvendo os alunos Fora disso me emaranho na rede das contradições em que meu testemunho inautêntico perde eficácia Me torno tão falso quanto quem pretende estimular o clima democrático na escola por meios e caminhos autoritários Tão fingido quanto quem diz combater o racismo mas perguntado se conhece Madalena diz Conheçoa É negra mas é competente e decente Jamais ouvi ninguém dizer que conhece Célia que é loura de olhos azuis mas é competente e decente No discurso perfilador de 33 Madalena negra cabe a conjunção adversativa mas no que contorna Célia loura de olhos azuis a conjunção adversativa é um não senso A compreensão do papel das conjunções que ligando sentenças entre si impregnam a relação que estabelecem de certo sentido o de causalidade falo porque recuso o silêncio o de adversidade tentaram dominálo mas não conseguiram o de finalidade Pedro lutou para que ficasse clara a sua posição o de integração Pedro sabia que ela voltaria não é suficiente para explicar o uso da adversativa mas na relação entre a sentença Madalena é negra e Madalena é competente e decente A conjunção mas aí implica um juízo falso ideológico sendo negra esperase que Madalena nem seja competente nem decente Ao reconhecerse porém sua decência e sua competência a conjunção mas se tornou indispensável No caso de Célia é um disparate que sendo loura de olhos azuis não seja competente e decente Daí o não senso da adversativa A razão é ideológica e não gramatical Pensar certo e saber que ensinar não é transferir conhecimento é fundamentalmente pensar certo é uma postura exigente difícil às vezes penosa que temos de assumir diante dos outros e com os outros em face do mundo e dos fatos ante nós mesmos É difícil não porque pensar certo seja forma própria de pensar de santos e de anjos e a que nós arrogantemente aspirássemos É difícil entre outras coisas pela vigilância constante que temos de exercer sobre nós próprios para evitar os simplismos as facilidades as incoerências grosseiras É difícil porque nem sempre temos o valor indispensável para não permitir que a raiva que podemos ter de alguém vire raivosidade que gera um pensar errado e falso Por mais que me desagrade uma pessoa não posso menosprezála com um discurso em que cheio de mim mesmo decreto sua incompetência absoluta Discurso em que cheio de mim mesmo tratoa com desdém do alto de minha falsa superioridade A mim não me dá raiva mas pena quando pessoas assim raivosas arvoradas em figuras de gênio me minimizam e destratam É cansativo por exemplo viver a humildade condição sine qua do pensar certo que nos faz proclamar o nosso próprio equívoco que nos faz reconhecer e anunciar a superação que sofremos O clima do pensar certo não tem nada que ver com o das fórmulas preestabelecidas mas seria a negação do pensar certo se pretendêssemos forjálo na atmosfera da licenciosidade ou do espontaneísmo Sem rigorosidade metódica não há pensar certo 34 21 ENSINAR EXIGE CONSCIÊNCIA DO INACABAMENTO Como professor crítico sou um aventureiro responsável predisposto à mudança à aceitação do diferente Nada do que experimentei em minha atividade docente deve necessariamente repetirse Repito porém como inevitável a franquia de mim mesmo radical diante dos outros e do mundo Minha franquia ante os outros e o mundo mesmo e a maneira radical como me experimento enquanto ser cultural histórico inacabado e consciente do inacabamento Aqui chegamos ao ponto de que talvez devêssemos ter partido O do inacabamento do ser humano Na verdade o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital Onde há vida há inacabamento Mas só entre mulheres e homens o inacabamento se tornou consciente A invenção da existência a partir dos materiais que a vida oferecia levou homens e mulheres a promover o suporte em que os outros animais continuam em mundo Seu mundo mundo dos homens e das mulheres A experiência humana no mundo muda de qualidade com relação à vida animal no suporte O suporte é o espaço restrito ou alongado a que o animal se prende afetivamente tanto quanto para resistir é o espaço necessário a seu crescimento e que delimita seu domínio É o espaço em que treinado adestrado aprende a sobreviver a caçar a atacar a defenderse num tempo de dependência dos adultos imensamente menor do que é necessário ao ser humano para as mesmas coisas Quanto mais cultural é o ser maior a sua infância sua dependência de cuidados especiais Faltam ao movimento dos outros animais no suporte a linguagem conceitual a inteligibilidade do próprio suporte de que resultaria inevitavelmente a comunicabilidade do inteligido o espanto diante da vida mesma do que há nela de mistério No suporte os comportamentos dos indivíduos têm sua explicação muito mais na espécie a que pertencem os indivíduos do que neles mesmos Faltalhes liberdade de opção Por isso não se fala em ética entre os elefantes A vida no suporte não implica a linguagem nem a postura ereta que permitiu a liberação das mãos13 Mãos que em grande medida nos fizeram Quanto maior se foi tornando a solidariedade entre mente e mãos tanto mais o suporte foi virando mundo e a vida existência O suporte veio fazendose mundo e a vida existência na proporção que o corpo humano vira corpo consciente captador apreendedor transformador criador de beleza e não espaço vazio a ser enchido por conteúdos 35 A invenção da existência envolve repitase necessariamente a linguagem a cultura a comunicação em níveis mais profundos e complexos do que o que ocorria e ocorre no domínio da vida a espiritualização do mundo a possibilidade de embelezar como de enfear o mundo e tudo isso inscreveria mulheres e homens como seres éticos Capazes de intervir no mundo de comparar de ajuizar de decidir de romper de escolher capazes de grandes ações de dignificantes testemunhos mas capazes também de impensáveis exemplos de baixeza e de indignidade Só os seres que se tornaram éticos podem romper com a ética Não se sabe de leões que covardemente tenham assassinado leões do mesmo ou de outro grupo familiar e depois tenham visitado os familiares para levarlhes sua solidariedade Não se sabe de tigres africanos que tenham jogado bombas altamente destruidoras em cidades de tigres asiáticos No momento em que os seres humanos intervindo no suporte foram criando o mundo inventando a linguagem com que passaram a dar nome às coisas que faziam com a ação sobre o mundo na medida em que se foram habilitando a inteligir o mundo e criaram por consequência a necessária comunicabilidade do inteligido já não foi possível existir a não ser disponível à tensão radical e profunda entre o bem e o mal entre a dignidade e a indignidade entre a decência e o despudor entre a boniteza e a feiura do mundo Quer dizer já não foi possível existir sem assumir o direito e o dever de optar de decidir de lutar de fazer política E tudo isso nos traz de novo à imperiosidade da prática formadora de natureza eminentemente ética E tudo isso nos traz de novo à radicalidade da esperança Sei que as coisas podem até piorar mas sei também que é possível intervir para melhorálas Gosto de ser homem de ser gente porque não está dado como certo inequívoco irrevogável que sou ou serei decente que testemunharei sempre gestos puros que sou e que serei justo que respeitarei os outros que não mentirei escondendo o seu valor porque a inveja de sua presença no mundo me incomoda e me enraivece Gosto de ser homem de ser gente porque sei que a minha passagem pelo mundo não é predeterminada preestabelecida Que o meu destino não é um dado mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir Gosto de ser gente porque a história em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade 36 22 ENSINAR EXIGE O RECONHECIMENTO DE SER CONDICIONADO Gosto de ser gente porque inacabado sei que sou um ser condicionado mas consciente do inacabamento sei que posso ir mais além dele Esta é a diferença profunda entre o ser condicionado e o ser determinado A diferença entre o inacabado que não se sabe como tal e o inacabado que histórica e socialmente alcançou a possibilidade de saberse inacabado Gosto de ser gente porque como tal percebo afinal que a construção de minha presença no mundo que não se faz no isolamento isenta da influência das forças sociais que não se compreende fora da tensão entre o que herdo geneticamente e o que herdo social cultural e historicamente tem muito a ver comigo mesmo Seria irônico se a consciência de minha presença no mundo não implicasse já o reconhecimento da impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença Não posso me perceber como uma presença no mundo mas ao mesmo tempo explicála como resultado de operações absolutamente alheias a mim Neste caso o que faço é renunciar à responsabilidade ética histórica política e social que a promoção do suporte ao mundo nos coloca Renuncio a participar e cumprir a vocação ontológica de intervir no mundo O fato de me perceber no mundo com o mundo e com os outros me põe numa posição em face do mundo que não é de quem nada tem a ver com ele Afinal minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta mas a de quem nele se insere É a posição de quem luta para não ser apenas objeto mas sujeito também da história Gosto de ser gente porque mesmo sabendo que as condições materiais econômicas sociais e políticas culturais e ideológicas em que nos achamos geram quase sempre barreiras de difícil superação para o cumprimento de nossa tarefa histórica de mudar o mundo sei também que os obstáculos não se eternizam Nos anos 1960 preocupado já com esses obstáculos apelei para a conscientização não como panaceia mas como um esforço de conhecimento crítico dos obstáculos vale dizer de suas razões de ser Contra toda a força do discurso fatalista neoliberal pragmático e reacionário insisto hoje sem desvios idealistas na necessidade da conscientização Insisto na sua atualização Na verdade enquanto aprofundamento da prise de conscience do mundo dos fatos dos acontecimentos a conscientização é exigência humana é um dos caminhos para a posta em prática da curiosidade 37 epistemológica Em lugar de estranha a conscientização é natural ao ser que inacabado se sabe inacabado A questão substantiva não está por isso no puro inacabamento ou na pura inconclusão A inconclusão repito faz parte da natureza do fenômeno vital Inconclusos somos nós mulheres e homens mas inconclusos são também as jabuticabeiras que enchem na safra o meu quintal de pássaros cantadores inconclusos são estes pássaros como inconcluso é Eico meu pastor alemão que me saúda contente no começo das manhãs Entre nós mulheres e homens a inconclusão se sabe como tal Mais ainda a inconclusão que se reconhece a si mesma implica necessariamente a inserção do sujeito inacabado num permanente processo social de busca Históricosocioculturais mulheres e homens nos tornamos seres em quem a curiosidade ultrapassando os limites que lhe são peculiares no domínio vital se torna fundante da produção do conhecimento Mais ainda a curiosidade é já conhecimento Como a linguagem que anima a curiosidade e com ela se anima é também conhecimento e não só expressão dele Numa madrugada há alguns meses estávamos Nita e eu cansados na sala de embarque de um aeroporto do Norte do país à espera da partida para São Paulo num desses voos madrugadores que a sabedoria popular chama voo coruja Cansados e realmente arrependidos de não haver mudado o esquema de voo Uma criança em tenra idade saltitante e alegre nos fez finalmente ficar contentes apesar da hora para nós inconveniente Um avião chega Curiosa a criança inclina a cabeça na busca de selecionar o som dos motores Voltase para a mãe e diz O avião ainda chegou Sem comentar a mãe atesta O avião já chegou Silêncio A criança corre até o extremo da sala e volta O avião já chegou diz O discurso da criança que envolvia a sua posição curiosa em face do que ocorria afirmava primeiro o conhecimento da ação de chegar do avião segundo o conhecimento da diferença da temporalização da ação entre o advérbio já e o advérbio ainda O discurso da criança era conhecimento do ponto de vista do fato concreto o avião chegou e era conhecimento do ponto de vista da criança que entre outras coisas fizera o domínio da circunstância adverbial de tempo no já Voltemos um pouco à nossa reflexão anterior A consciência do inacabamento entre nós mulheres e homens nos fez seres responsáveis daí a eticidade de nossa presença no mundo Eticidade que não há dúvida podemos trair O mundo da cultura que se alonga em mundo da história é 38 um mundo de liberdade de opção de decisão mundo de possibilidade em que a decência pode ser negada a liberdade ofendida e recusada Por isso mesmo a capacitação de mulheres e de homens em torno de saberes instrumentais jamais pode prescindir de sua formação ética A radicalidade desta exigência é tal que não deveríamos necessitar sequer de insistir na formação ética do ser ao falar de sua preparação técnica e científica É fundamental insistirmos nela precisamente porque inacabados mas conscientes do inacabamento seres da opção da decisão éticos podemos negar ou trair a própria ética O educador que ensinando geografia castra a curiosidade do educando em nome da eficácia da memorização mecânica do ensino dos conteúdos tolhe a liberdade do educando a sua capacidade de aventurarse Não forma domestica Tal qual quem assume a ideologia fatalista embutida no discurso neoliberal de vez em quando criticada neste texto e aplicada preponderantemente às situações em que o paciente são as classes populares Não há o que fazer o desemprego é uma fatalidade do fim do século A andarilhagem gulosa dos trilhões de dólares que no mercado financeiro voam de um lugar a outro com a rapidez dos faxes à procura insaciável de mais lucro não é tratada como fatalidade Não são as classes populares os objetos imediatos de sua malvadez Falase por isso mesmo da necessidade de disciplinar a andarilhagem dos dólares No caso da reforma agrária entre nós a disciplina de que se precisa segundo os donos do mundo é a que amacie a custo de qualquer meio os turbulentos e arruaceiros semterra A reforma agrária tampouco vira fatalidade Sua necessidade é uma invencionice absurda de falsos brasileiros proclamam os cobiçosos senhores das terras Continuemos a pensar um pouco sobre a inconclusão do ser que se sabe inconcluso não a inconclusão pura em si do ser que no suporte não se tornou capaz de reconhecerse interminado A consciência do mundo e a consciência de si como ser inacabado necessariamente inscrevem o ser consciente de sua inconclusão num permanente movimento de busca Na verdade seria uma contradição se inacabado e consciente do inacabamento o ser humano não se inserisse em tal movimento É neste sentido que para mulheres e homens estar no mundo necessariamente significa estar com o mundo e com os outros Estar no mundo sem fazer história sem por ela ser feito sem fazer cultura sem tratar sua própria presença no mundo sem sonhar sem cantar sem musicar sem pintar sem cuidar da terra das águas 39 sem usar as mãos sem esculpir sem filosofar sem pontos de vista sobre o mundo sem fazer ciência ou teologia sem assombro em face do mistério sem aprender sem ensinar sem ideias de formação sem politizar não é possível É na inconclusão do ser que se sabe como tal que se funda a educação como processo permanente Mulheres e homens se tornaram educáveis na medida em que se reconheceram inacabados Não foi a educação que fez mulheres e homens educáveis mas a consciência de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade É também na inconclusão de que nos tornamos conscientes e que nos inserta no movimento permanente de procura que se alicerça a esperança Não sou esperançoso disse certa vez por pura teimosia mas por exigência ontológica14 Este é um saber fundante da nossa prática educativa da formação docente o da nossa inconclusão assumida O ideal é que na experiência educativa educandos educadoras e educadores juntos convivam de tal maneira com este como com outros saberes de que falarei que eles vão virando sabedoria Algo que não nos é estranho a educadoras e educadores Quando saio de casa para trabalhar com os alunos não tenho dúvida nenhuma de que inacabados e conscientes do inacabamento abertos à procura curiosos programados mas para aprender15 exercitaremos tanto mais e melhor a nossa capacidade de aprender e de ensinar quanto mais sujeitos e não puros objetos do processo nos façamos 23 ENSINAR EXIGE RESPEITO À AUTONOMIA DO SER DO EDUCANDO Outro saber necessário à prática educativa e que se funda na mesma raiz que acabo de discutir a da inconclusão do ser que se sabe inconcluso é o que fala do respeito devido à autonomia do ser do educando Do educando criança jovem ou adulto Como educador devo estar constantemente advertido com relação a este respeito que implica igualmente o que devo ter por mim mesmo Não faz mal repetir a afirmação várias vezes feita neste texto o inacabamento de que nos tornamos conscientes nos fez seres éticos O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros Precisamente porque éticos podemos desrespeitar a rigorosidade da ética e resvalar para a sua negação por isso é imprescindível deixar claro que a 40 possibilidade do desvio ético não pode receber outra designação senão a de transgressão O professor que desrespeita a curiosidade do educando o seu gosto estético a sua inquietude a sua linguagem mais precisamente a sua sintaxe e a sua prosódia o professor que ironiza o aluno que o minimiza que manda que ele se ponha em seu lugar ao mais tênue sinal de sua rebeldia legítima tanto quanto o professor que se exime do cumprimento de seu dever de propor limites à liberdade do aluno que se furta ao dever de ensinar de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência É neste sentido que o professor autoritário que por isso mesmo afoga a liberdade do educando amesquinhando o seu direito de estar sendo curioso e inquieto tanto quanto o professor licencioso rompe com a radicalidade do ser humano a de sua inconclusão assumida em que se enraiza a eticidade É neste sentido também que a dialogicidade verdadeira em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença sobretudo no respeito a ela é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que inacabados assumindose como tais se tornam radicalmente éticos É preciso deixar claro que a transgressão da eticidade jamais pode ser vista ou entendida como virtude mas como ruptura com a decência O que quero dizer é o seguinte que alguém se torne machista racista classista sei lá o quê mas se assuma como transgressor da natureza humana Não me venha com justificativas genéticas sociológicas ou históricas ou filosóficas para explicar a superioridade da branquitude sobre a negritude dos homens sobre as mulheres dos patrões sobre os empregados Qualquer discriminação é imoral e lutar contra ela é um dever por mais que se reconheça a força dos condicionamentos a enfrentar A boniteza de ser gente se acha entre outras coisas nessa possibilidade e nesse dever de brigar Saber que devo respeito à autonomia e à identidade do educando exige de mim uma prática em tudo coerente com este saber 24 ENSINAR EXIGE BOMSENSO A vigilância do meu bomsenso tem uma importância enorme na avaliação que a todo instante devo fazer de minha prática Antes por exemplo de qualquer reflexão mais detida e rigorosa é o meu bomsenso que me diz ser 41 tão negativo do ponto de vista de minha tarefa docente o formalismo insensível que me faz recusar o trabalho de um aluno por perda de prazo apesar das explicações convincentes do aluno quanto o desrespeito pleno pelos princípios reguladores da entrega dos trabalhos É o meu bomsenso que me adverte de que exercer a minha autoridade de professor na classe tomando decisões orientando atividades estabelecendo tarefas cobrando a produção individual e coletiva do grupo não é sinal de autoritarismo de minha parte É a minha autoridade cumprindo o seu dever Não resolvemos bem ainda entre nós a tensão que a contradição autoridadeliberdade nos coloca e confundimos quase sempre autoridade com autoritarismo licença com liberdade Não preciso de um professor de Ética para me dizer que não posso como orientador de dissertação de mestrado ou de tese de doutoramento surpreender o pósgraduando com críticas duras a seu trabalho porque um dos examinadores foi severo em sua arguição Se isso ocorre e eu concordo com as críticas feitas pelo professor não há outro caminho senão solidarizarme de público com o orientando dividindo com ele a responsabilidade do equívoco ou do erro criticado16 Não preciso de um professor de Ética para me dizer isto Meu bomsenso me diz Saber que devo respeito à autonomia à dignidade e à identidade do educando e na prática procurar a coerência com este saber me leva inapelavelmente à criação de algumas virtudes ou qualidades sem as quais aquele saber vira inautêntico palavreado vazio e inoperante17 De nada serve a não ser para irritar o educando e desmoralizar o discurso hipócrita do educador falar em democracia e liberdade mas impor ao educando a vontade arrogante do mestre O exercício do bomsenso com o qual só temos o que ganhar se faz no corpo da curiosidade Neste sentido quanto mais pomos em prática de forma metódica a nossa capacidade de indagar de comparar de duvidar de aferir tanto mais eficazmente curiosos nos podemos tornar e mais crítico se pode fazer o nosso bomsenso O exercício ou a educação do bomsenso vai superando o que há nele de instintivo na avaliação que fazemos dos fatos e dos acontecimentos em que nos envolvemos Se o bomsenso na avaliação moral que faço de algo não basta para orientar ou fundar minhas táticas de luta tem indiscutivelmente importante papel na minha tomada de posição a que não pode faltar a ética em face do que devo fazer 42 O meu bomsenso me diz por exemplo que é imoral afirmar que a fome e a miséria a que se acham expostos milhões de brasileiras e de brasileiros são uma fatalidade em face de que só há uma coisa a fazer esperar pacientemente que a realidade mude O meu bomsenso diz que isso é imoral e exige de minha rigorosidade científica a afirmação de que é possível mudar com a disciplina da gulodice da minoria insaciável O meu bomsenso me adverte de que há algo a ser compreendido no comportamento de Pedrinho silencioso assustado distante temeroso escondendose de si mesmo O bomsenso me faz ver que o problema não está nos outros meninos na sua inquietação no seu alvoroço na sua vitalidade O meu bomsenso não me diz o que é mas deixa claro que há algo que precisa ser sabido Esta é a tarefa da ciência que sem o bomsenso do cientista pode se desviar e se perder Não tenho dúvida do insucesso do cientista a quem falte a capacidade de adivinhar o sentido da desconfiança a abertura à dúvida a inquietação de quem não se acha demasiado certo das certezas Tenho pena e às vezes medo do cientista demasiado seguro da segurança senhor da verdade e que não suspeita sequer da historicidade do próprio saber É o meu bomsenso em primeiro lugar o que me deixa suspeitoso no mínimo de que não é possível à escola se na verdade engajada na formação de educandos e educadores alhearse das condições sociais culturais e econômicas de seus alunos de suas famílias de seus vizinhos Não é possível respeito aos educandos à sua dignidade a seu ser formandose à sua identidade fazendose se não se levam em consideração as condições em que eles vêm existindo se não se reconhece a importância dos conhecimentos de experiência feitos com que chegam à escola O respeito devido à dignidade do educando não me permite subestimar pior ainda zombar do saber que ele traz consigo para a escola Quanto mais me torno rigoroso na minha prática de conhecer tanto mais porque crítico respeito devo guardar pelo saber ingênuo a ser superado pelo saber produzido através do exercício da curiosidade epistemológica Ao pensar sobre o dever que tenho como professor de respeitar a dignidade do educando sua autonomia sua identidade em processo devo pensar também como já salientei em como ter uma prática educativa em que aquele respeito que sei dever ter ao educando se realize em lugar de ser negado Isso exige de mim uma reflexão crítica permanente sobre minha 43 prática através da qual vou fazendo a avaliação do meu próprio fazer com os educandos O ideal é que cedo ou tarde se invente uma forma pela qual os educandos possam participar da avaliação É que o trabalho do professor é o trabalho do professor com os alunos e não do professor consigo mesmo Esta avaliação crítica da prática vai revelando a necessidade de uma série de virtudes ou qualidades sem as quais não é possível nem ela a avaliação nem tampouco o respeito do educando Estas qualidades ou estas virtudes absolutamente indispensáveis à posta em prática deste outro saber fundamental à experiência educativa saber que devo respeito à autonomia à dignidade e à identidade do educando não são regalos que recebemos por bom comportamento As qualidades ou virtudes são construídas por nós no esforço que nos impomos para diminuir a distância entre o que dizemos e o que fazemos Este esforço o de diminuir a distância entre o discurso e a prática é já uma dessas virtudes indispensáveis a da coerência Como na verdade posso eu continuar falando no respeito à dignidade do educando se o ironizo se o discrimino se o inibo com a minha arrogância Como posso continuar falando em meu respeito ao educando se o testemunho que a ele dou é o da irresponsabilidade o de quem não cumpre o seu dever o de quem não se prepara ou se organiza para a sua prática o de quem não luta por seus direitos e não protesta contra as injustiças18 A prática docente específicamente humana é profundamente formadora por isso ética Se não se pode esperar de seus agentes que sejam santos ou anjos podese e devese deles exigir seriedade e retidão A responsabilidade do professor de que às vezes não nos damos conta é sempre grande A natureza mesma de sua prática eminentemente formadora sublinha a maneira como a realiza Sua presença na sala é de tal maneira exemplar que nenhum professor ou professora escapa ao juízo que dele ou dela fazem os alunos E o pior talvez dos juízos é o que se expressa na falta de juízo O pior juízo é o que considera o professor uma ausência na sala O professor autoritário o professor licencioso o professor competente sério o professor incompetente irresponsável o professor amoroso da vida e das gentes o professor malamado sempre com raiva do mundo e das pessoas frio burocrático racionalista nenhum desses passa pelos alunos sem deixar sua marca Daí a importância do exemplo que o professor ofereça de sua lucidez e de seu engajamento na peleja em defesa de seus direitos 44 bem como na exigência das condições para o exercício de seus deveres O professor tem o dever de dar suas aulas de realizar sua tarefa docente Para isso precisa de condições favoráveis higiênicas espaciais estéticas sem as quais se move menos eficazmente no espaço pedagógico Às vezes as condições são de tal maneira perversas que nem se move O desrespeito a este espaço é uma ofensa aos educandos aos educadores e à prática pedagógica 25 ENSINAR EXIGE HUMILDADE TOLERÂNCIA E LUTA EM DEFESA DOS DIREITOS DOS EDUCADORES Se há algo que os educandos brasileiros precisam saber desde a mais tenra idade é que a luta em favor do respeito aos educadores e à educação inclui que a briga por salários menos imorais é um dever irrecusável e não só um direito deles A luta dos professores em defesa de seus direitos e de sua dignidade deve ser entendida como um momento importante de sua prática docente enquanto prática ética Não é algo que vem de fora da atividade docente mas algo que dela faz parte O combate em favor da dignidade da prática docente é tão parte dela mesma quanto dela faz parte o respeito que o professor deve ter à identidade do educando à sua pessoa a seu direito de ser Um dos piores males que o poder público vem fazendo a nós no Brasil historicamente desde que a sociedade brasileira foi criada é o de fazer muitos de nós correr o risco de a custo de tanto descaso pela educação pública existencialmente cansados cair no indiferentismo fatalistamente cínico que leva ao cruzamento dos braços Não há o que fazer é o discurso acomodado que não podemos aceitar O meu respeito de professor à pessoa do educando à sua curiosidade à sua timidez que não devo agravar com procedimentos inibidores exige de mim o cultivo da humildade e da tolerância Como posso respeitar a curiosidade do educando se carente de humildade e da real compreensão do papel da ignorância na busca do saber temo revelar o meu desconhecimento Como ser educador sobretudo numa perspectiva progressista sem aprender com maior ou menor esforço a conviver com os diferentes Como ser educador se não desenvolvo em mim a indispensável amorosidade aos educandos com quem me comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte Não posso desgostar do que faço sob pena de não fazêlo bem Desrespeitado como gente no desprezo a que é 45 relegada a prática pedagógica não tenho por que desamála e aos educandos Não tenho por que exercêla mal A minha resposta à ofensa à educação é a luta política consciente crítica e organizada contra os ofensores Aceito até abandonála cansado à procura de melhores dias O que não é possível é ficando nela aviltála com o desdém de mim mesmo e dos educandos Uma das formas de luta contra o desrespeito dos poderes públicos pela educação de um lado é a nossa recusa a transformar nossa atividade docente em puro bico e de outro a nossa rejeição a entendêla e a exercêla como prática afetiva de tias e de tios É como profissionais idôneos na competência que se organiza politicamente está talvez a maior força dos educadores que eles e elas devem verse a si mesmos e a si mesmas É neste sentido que os órgãos de classe deveriam priorizar o empenho de formação permanente dos quadros do magistério como tarefa altamente política e repensar a eficácia das greves A questão que se coloca obviamente não é parar de lutar mas reconhecendose que a luta é uma categoria histórica reinventar a forma também histórica de lutar 26 ENSINAR EXIGE APREENSÃO DA REALIDADE Outro saber fundamental à experiência educativa é o que diz respeito à sua natureza Como professor preciso me mover com clareza na minha prática Preciso conhecer as diferentes dimensões que caracterizam a essência da prática o que me pode tornar mais seguro no meu próprio desempenho O melhor ponto de partida para estas reflexões é a inconclusão do ser humano de que se tornou consciente Como vimos aí radica a nossa educabilidade bem como a nossa inserção num permanente movimento de busca em que curiosos e indagadores não apenas nos damos conta das coisas mas também delas podemos ter um conhecimento cabal A capacidade de aprender não apenas para nos adaptar mas sobretudo para transformar a realidade para nela intervir recriandoa fala de nossa educabilidade a um nível distinto do nível do adestramento dos outros animais ou do cultivo das plantas A nossa capacidade de aprender de que decorre a de ensinar sugere ou mais do que isso implica a nossa habilidade de apreender a substantividade 46 do objeto aprendido A memorização mecânica do perfil do objeto não é aprendizado verdadeiro do objeto ou do conteúdo Neste caso o aprendiz funciona muito mais como paciente da transferência do objeto ou do conteúdo do que como sujeito crítico epistemologicamente curioso que constrói o conhecimento do objeto ou participa de sua construção É precisamente por causa desta habilidade de apreender a substantividade do objeto que nos é possível reconstruir um mal aprendizado o em que o aprendiz foi puro paciente da transferência do conhecimento feita pelo educador Mulheres e homens somos os únicos seres que social e historicamente nos tornamos capazes de apreender Por isso somos os únicos em quem aprender é uma aventura criadora algo por isso mesmo muito mais rico do que meramente repetir a lição dada Aprender para nós é construir reconstruir constatar para mudar o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito Creio poder afirmar na altura destas considerações que toda prática educativa demanda a existência de sujeitos um que ensinando aprende outro que aprendendo ensina daí o seu cunho gnosiológico a existência de objetos conteúdos a serem ensinados e aprendidos envolve o uso de métodos de técnicas de materiais implica em função de seu caráter diretivo objetivo sonhos utopias ideais Daí a sua politicidade qualidade que tem a prática educativa de ser política de não poder ser neutra Especificamente humana a educação é gnosiológica é diretiva por isso política é artística e moral servese de meios de técnicas envolve frustrações medos desejos Exige de mim como professor uma competência geral um saber de sua natureza e saberes especiais ligados à minha atividade docente Como professor se minha opção é progressista e venho sendo coerente com ela se não me posso permitir a ingenuidade de pensarme igual ao educando de desconhecer a especificidade da tarefa do professor não posso por outro lado negar que o meu papel fundamental é contribuir positivamente para que o educando vá sendo o artifice de sua formação com a ajuda necessária do educador Se trabalho com crianças devo estar atento à difícil passagem ou caminhada da heteronomia para a autonomia atento à responsabilidade de minha presença que tanto pode ser auxiliadora como pode virar perturbadora da busca inquieta dos educandos se trabalho com jovens ou adultos não menos atento devo estar com relação a que o meu 47 trabalho possa significar como estímulo ou não à ruptura necessária com algo defeituosamente assentado e à espera de superação Primordialmente minha posição tem de ser a de respeito à pessoa que queira mudar ou que recuse mudar Não posso negarlhe ou esconderlhe minha postura mas não posso desconhecer o seu direito de rejeitála Em nome do respeito que devo aos alunos não tenho por que me omitir por que ocultar a minha opção política assumindo uma neutralidade que não existe Esta a omissão do professor em nome do respeito ao aluno talvez seja a melhor maneira de desrespeitálo O meu papel ao contrário é o de quem testemunha o direito de comparar de escolher de romper de decidir e estimular a assunção deste direito por parte dos educandos Recentemente num encontro público um jovem recémentrado na universidade me disse cortesmente Não entendo como o senhor defende os semterra no fundo uns baderneiros criadores de problemas Pode haver baderneiros entre os semterra disse mas sua luta é legítima e ética Baderneira é a resistência reacionária de quem se opõe a ferro e a fogo à reforma agrária A imoralidade e a desordem estão na manutenção de uma ordem injusta A conversa aparentemente morreu aí O moço apertou minha mão em silêncio Não sei como terá tratado a questão depois mas foi importante que tivesse dito o que pensava e que tivesse ouvido de mim o que me parece justo que devesse ter dito É assim que venho tentando ser professor assumindo minhas convicções disponível ao saber sensível à boniteza da prática educativa instigado por seus desafios que não lhe permitem burocratizarse assumindo minhas limitações acompanhadas sempre do esforço por superá las limitações que não procuro esconder em nome mesmo do respeito que me tenho e aos educandos 27 ENSINAR EXIGE ALEGRIA E ESPERANÇA O meu envolvimento com a prática educativa sabidamente política moral gnosiológica jamais deixou de ser feito com alegria o que não significa dizer que tenha invariavelmente podido criála nos educandos Mas preocupado 48 com ela enquanto clima ou atmosfera do espaço pedagógico nunca deixei de estar Há uma relação entre a alegria necessária à atividade educativa e a esperança A esperança de que professor e alunos juntos podemos aprender ensinar inquietarnos produzir e juntos igualmente resistir aos obstáculos a nossa alegria Na verdade do ponto de vista da natureza humana a esperança não é algo que a ela se justaponha A esperança faz parte da natureza humana Seria uma contradição se inacabado e consciente do inacabamento primeiro o ser humano não se inscrevesse ou não se achasse predisposto a participar de um movimento constante de busca e segundo se buscasse sem esperança A desesperança é negação da esperança A esperança é uma espécie de ímpeto natural possível e necessário a desesperança é o aborto deste ímpeto A esperança é um condimento indispensável à experiência histórica Sem ela não haveria história mas puro determinismo Só há história onde há tempo problematizado e não prédado A inexorabilidade do futuro é a negação da história É preciso ficar claro que a desesperança não é maneira de estar sendo natural do ser humano mas distorção da esperança Eu não sou primeiro um ser da desesperança a ser convertido ou não pela esperança Eu sou pelo contrário um ser da esperança que por n razões se tornou desesperançado Daí que uma das nossas brigas como seres humanos deva ser dada no sentido de diminuir as razões objetivas para a desesperança que nos imobiliza Por tudo isso me parece uma enorme contradição que uma pessoa progressista que não teme a novidade que se sente mal com as injustiças que se ofende com as discriminações que se bate pela decência que luta contra a impunidade que recusa o fatalismo cínico e imobilizante não seja criticamente esperançosa A desproblematização do futuro numa compreensão mecanicista da história de direita ou de esquerda leva necessariamente à morte ou à negação autoritária do sonho da utopia da esperança É que na inteligência mecanicista portanto determinista da história o futuro é já sabido A luta por um futuro assim a priori conhecido prescinde da esperança A desproblematização do futuro não importa em nome de quê é uma violenta ruptura com a natureza humana social e historicamente constituindose 49 Tive recentemente em Olinda numa manhã como só os trópicos conhecem entre chuvosa e ensolarada uma conversa que diria exemplar com um jovem educador popular que a cada instante a cada palavra a cada reflexão revelava a coerência com que vive sua opção democrática e popular Caminhávamos Danilson Pinto e eu com alma aberta ao mundo curiosos receptivos pelas trilhas de uma favela onde cedo se aprende que só a custo de muita teimosia se consegue tecer a vida com sua quase ausência ou negação com carência com ameaça com desespero com ofensa e dor Enquanto andávamos pelas ruas daquele mundo maltratado e ofendido eu ia me lembrando de experiências de minha juventude em outras favelas de Olinda ou do Recife dos meus diálogos com favelados e faveladas de alma rasgada Tropeçando na dor humana nós nos perguntávamos em torno de um semnúmero de problemas Que fazer enquanto educadores trabalhando num contexto assim Há mesmo o que fazer Como fazer o que fazer Que precisamos nós os chamados educadores saber para viabilizar até mesmo os nossos primeiros encontros com mulheres homens e crianças cuja humanidade vem sendo negada e traída cuja existência vem sendo esmagada Paramos no meio de um pontilhão estreito que possibilita a travessia da favela para uma parte menos maltratada do bairro popular Olhávamos de cima um braço de rio poluído sem vida cuja lama e não água empapa os mocambos nela quase mergulhados Mais além dos mocambos me disse Danilson há algo pior um grande terreno onde se faz o depósito do lixo público Os moradores de toda esta redondeza pesquisam no lixo o que comer o que vestir o que os mantenha vivos Foi desse horrendo aterro que há dois anos uma família retirou de lixo hospitalar pedaços de seio amputado com que preparou seu almoço domingueiro A imprensa noticiou o fato que citei horrorizado e pleno de justa raiva no meu último livro À sombra desta mangueira É possível que a notícia tenha provocado em pragmáticos neoliberais sua reação habitual e fatalista sempre em favor dos poderosos É triste mas que fazer A realidade é mesmo esta A realidade porém não é inexoravelmente esta Está sendo esta como poderia ser outra e é para que seja outra que precisamos os progressistas lutar Eu me sentiria mais do que triste desolado e sem achar sentido para minha presença no mundo se fortes e indestrutíveis razões me convencessem de que a existência humana se dá no domínio da determinação Domínio em que dificilmente se poderia falar de opções de decisão de liberdade de ética 50 Que fazer A realidade é assim mesmo seria o discurso universal Discurso monótono repetitivo como a própria existência humana Numa história assim determinada as posições rebeldes não têm como se tornarem revolucionárias Tenho o direito de ter raiva de manifestála de têla como motivação para minha briga tal qual tenho o direito de amar de expressar meu amor ao mundo de têlo como motivação de minha briga porque histórico vivo a história como tempo de possibilidade e não de determinação Se a realidade fosse assim porque estivesse dito que assim teria de ser não haveria sequer por que ter raiva Meu direito à raiva pressupõe que na experiência histórica da qual participo o amanhã não é algo prédado mas um desafio um problema A minha raiva minha justa ira se funda na minha revolta em face da negação do direito de ser mais inscrito na natureza dos seres humanos Não posso por isso cruzar os braços fatalistamente diante da miséria esvaziando desta maneira minha responsabilidade no discurso cínico e morno que fala da impossibilidade de mudar porque a realidade é mesmo assim O discurso da acomodação ou de sua defesa o discurso da exaltação do silêncio imposto de que resulta a imobilidade dos silenciados o discurso do elogio da adaptação tornada como fado ou sina é um discurso negador da humanização de cuja responsabilidade não podemos nos eximir A adaptação a situações negadoras da humanização só pode ser aceita como consequência da experiência dominadora ou como exercício de resistência como tática na luta política Dou a impressão de que aceito hoje a condição de silenciado para bem lutar quando puder contra a negação de mim mesmo Esta questão a da legitimidade da raiva contra a docilidade fatalista diante da negação das gentes foi um tema que esteve implícito em toda a nossa conversa naquela manhã 28 ENSINAR EXIGE A CONVICÇÃO DE QUE A MUDANÇA É POSSÍVEL Um dos saberes primeiros indispensáveis a quem chegando a favelas ou a realidades marcadas pela traição a nosso direito de ser pretende que sua presença se vá tornando convivência que seu estar no contexto vá virando estar com ele é o saber do futuro como problema e não como inexorabilidade É o saber da história como possibilidade e não como determinação O mundo não é O mundo está sendo Como subjetividade 51 curiosa inteligente interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências Não sou apenas objeto da história mas seu sujeito igualmente No mundo da história da cultura da política constato não para me adaptar mas para mudar No próprio mundo físico minha constatação não me leva à impotência O conhecimento sobre os terremotos desenvolveu toda uma engenharia que nos ajuda a sobreviver a eles Não podemos eliminálos mas podemos diminuir os danos que nos causam Constatando nos tornamos capazes de intervir na realidade tarefa incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de nos adaptar a ela É por isso também que não me parece possível nem aceitável a posição ingênua ou pior astutamente neutra de quem estuda seja o físico o biólogo o sociólogo o matemático ou o pensador da educação Ninguém pode estar no mundo com o mundo e com os outros de forma neutra Não posso estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas A acomodação em mim é apenas caminho para a inserção que implica decisão escolha intervenção na realidade Há perguntas a serem feitas insistentemente por todos nós e que nos fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar De estudar descomprometidamente como se misteriosamente de repente nada tivéssemos que ver com o mundo um lá fora e distante mundo alheado de nós e nós dele Em favor de que estudo Em favor de quem Contra que estudo Contra quem estudo Que sentido teria a atividade de Danilson no mundo que descortinávamos do pontilhão se para ele estivesse decretada por um destino todopoderoso a impotência daquela gente fustigada pela carência Restaria a Danilson trabalhar apenas a possível melhora de performance da população no processo irrecusável de sua adaptação à negação da vida A prática de Danilson seria assim o elogio da resignação Porém na medida em que para ele como para mim o futuro é problemático e não inexorável outra tarefa se nos oferece A de discutindo a problematicidade do amanhã tornandoa tão óbvia quanto a carência de tudo na favela ir tornando igualmente óbvio que a adaptação à dor à fome ao desconforto à falta de higiene que o eu de cada um como corpo e alma experimenta toma forma de resistência física a que se vai juntando outra a cultural Resistência ao descaso ofensivo de que os miseráveis são objeto No fundo as resistências 52 a orgânica eou a cultural são manhas necessárias à sobrevivência física e cultural dos oprimidos O sincretismo religioso afrobrasileiro expressa a resistência ou a manha com que a cultura africana escrava se defendia do poder hegemônico do colonizador branco É preciso porém que tenhamos na resistência que nos preserva vivos na compreensão do futuro como problema e na vocação para o Ser Mais como expressão da natureza humana em processo de estar sendo fundamentos para a nossa rebeldia e não para a nossa resignação em face das ofensas que nos destroem o ser Não é na resignação mas na rebeldia em face das injustiças que nos afirmamos Uma das questões centrais com que temos de lidar é a promoção de posturas rebeldes em posturas revolucionárias que nos engajam no processo radical de transformação do mundo A rebeldia é ponto de partida indispensável é deflagraãão da justa ira mas não é suficiente A rebeldia enquanto denúncia precisa se alongar até uma posição mais radical e crítica a revolucionária fundamentalmente anunciadora A mudança do mundo implica a dialetização entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio de sua superação no fundo o nosso sonho É a partir deste saber fundamental mudar é difícil mas é possível que vamos programar nossa ação políticopedagógica não importa se o projeto com o qual nos comprometemos é de alfabetização de adultos ou de crianças se de ação sanitária se de evangelização se de formação de mão de obra técnica O êxito de educadores como Danilson está centralmente nesta certeza que jamais os deixa de que é possível mudar de que é preciso mudar de que preservar situações concretas de miséria é uma imoralidade É assim que este saber que a história vem comprovando se erige em princípio de ação e abre caminho à constituição na prática de outros saberes indispensáveis Não se trata obviamente de impor à população espoliada e sofrida que se rebele que se mobilize que se organize para defenderse vale dizer para mudar o mundo Tratase na verdade não importa se trabalhamos com alfabetização com saúde com evangelização ou com todas elas de simultaneamente com o trabalho específico de cada um desses campos desafiar os grupos populares para que percebam em termos críticos a violência e a profunda injustiça que caracterizam sua situação concreta Mais ainda que sua situação concreta não é destino certo ou vontade de Deus algo que não pode ser mudado 53 Não posso aceitar como tática do bom combate a política do quanto pior melhor mas não posso também aceitar impassível a política assistencialista que anestesiando a consciência oprimida prorroga sine die a necessária mudança da sociedade Não posso proibir que os oprimidos com quem trabalho numa favela votem em candidatos reacionários mas tenho o dever de advertilos do erro que cometem da contradição em que se emaranham Votar no político reacionário é ajudar a preservação do status quo Como posso votar se sou progressista e coerente com minha opção num candidato em cujo discurso faiscante de desamor anuncia seus projetos racistas Partindo de que a experiência da miséria é uma violência e não a expressão da preguiça popular ou fruto da mestiçagem ou da vontade punitiva de Deus violência contra que devemos lutar tenho enquanto educador de me ir tornando cada vez mais competente sem o que a luta perderá eficácia É que o saber de que falei mudar é difícil mas é possível que me empurra esperançoso à ação não é suficiente para a eficácia necessária a que me referi Movendome enquanto nele fundado preciso ter e renovar saberes específicos em cujo campo minha curiosidade se inquieta e minha prática se baseia Como alfabetizar sem conhecimentos precisos sobre a aquisição da linguagem sobre linguagem e ideologia sobre técnicas e métodos do ensino da leitura e da escrita Por outro lado como trabalhar não importa em que campo no da alfabetização no da produção econômica em projetos cooperativos no da evangelização ou no da saúde sem ir conhecendo as manhas com que os grupos humanos produzem sua própria sobrevivência Como educador preciso ir lendo cada vez melhor a leitura do mundo que os grupos populares com quem trabalho fazem de seu contexto imediato e do maior de que o seu é parte O que quero dizer é o seguinte não posso de maneira alguma nas minhas relações políticopedagógicas com os grupos populares desconsiderar seu saber de experiência feito Sua explicação do mundo de que faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo E isso tudo vem explicitado ou sugerido ou escondido no que chamo leitura do mundo que precede sempre a leitura da palavra Se de um lado não posso me adaptar ou me converter ao saber ingênuo dos grupos populares de outro não posso se realmente progressista imporlhes arrogantemente o meu saber como o verdadeiro O diálogo em que se vai desafiando o grupo popular a pensar sua história social 54 como a experiência igualmente social de seus membros vai revelando a necessidade de superar certos saberes que desnudados vão mostrando sua incompetência para explicar os fatos Um dos equívocos funestos de militantes políticos de prática messianicamente autoritária foi sempre desconhecer totalmente a compreensão do mundo dos grupos populares Vendose como portadores da verdade salvadora sua tarefa irrecusável não é propôla mas impôla aos grupos populares Recentemente ouvi de jovem operário num debate sobre a vida na favela que já se fora o tempo em que ele tinha vergonha de ser favelado Agora dizia me orgulho de nós todos companheiros e companheiras do que temos feito através de nossa luta de nossa organização Não é o favelado que deve ter vergonha da condição de favelado mas quem vivendo bem e fácil nada faz para mudar a realidade que causa a favela Aprendi isso com a luta É possível que esse discurso do jovem operário não provocasse nada ou quase nada o militante autoritariamente messiânico É possível até que a reação do moço mais revolucionarista do que revolucionário fosse negativa à fala do favelado entendida como expressão de quem se inclina mais para a acomodação do que para a luta No fundo o discurso do jovem operário era a leitura nova que fazia de sua experiência social de favelado Se ontem se culpava agora se tornava capaz de perceber que não era apenas responsabilidade sua se achar naquela condição Mas sobretudo se tornava capaz de perceber que a situação de favelado não é irrevogável Sua luta foi mais importante na constituição do seu novo saber do que o discurso sectário do militante messianicamente autoritário É importante salientar que o novo momento na compreensão da vida social não é exclusivo de uma pessoa A experiência que possibilita o discurso novo é social Uma pessoa ou outra porém se antecipa na explicitação da nova percepção da mesma realidade Uma das tarefas fundamentais do educador progressista é sensível à leitura e à releitura do grupo provocálo bem como estimular a generalização da nova forma de compreensão do contexto É importante ter sempre claro que faz parte do poder ideológico dominante a inculcação nos dominados da responsabilidade por sua situação Daí a culpa que sentem eles em determinado momento de suas relações com o seu contexto e com as classes dominantes por se acharem nesta ou naquela situação desvantajosa É exemplar a resposta que recebi de 55 mulher sofrida em São Francisco Califórnia numa instituição católica de assistência aos pobres Falava com dificuldade do problema que a afligia e eu quase sem ter o que dizer afirmei indagando Você é norteamericana não é Não Sou pobre respondeu como se estivesse pedindo desculpas à norteamericanidade por seu insucesso na vida Me lembro de seus olhos azuis marejados de lágrimas expressando seu sofrimento e a assunção da culpa pelo seu fracasso no mundo Pessoas assim fazem parte das legiões de ofendidos que não percebem a razão de ser de sua dor na perversidade do sistema social econômico e político em que vivem mas na sua incompetência Enquanto sentirem assim pensarem assim e agirem assim reforçam o poder do sistema Se tornam coniventes da ordem desumanizante A alfabetização por exemplo numa área de miséria só ganha sentido na dimensão humana se com ela se realiza uma espécie de psicanálise históricopolíticosocial de que vá resultando a extrojeção da culpa indevida A isto corresponde a expulsão do opressor de dentro do oprimido enquanto sombra invasora Sombra que expulsa pelo oprimido precisa ser substituída por sua autonomia e sua responsabilidade Salientese contudo que não obstante a relevância ética e política do esforço conscientizador que acabo de sublinhar não se pode parar nele deixandose relegado para um plano secundário o ensino da escrita e da leitura da palavra Não podemos numa perspectiva democrática transformar uma classe de alfabetização num espaço em que se proíbe toda reflexão em torno da razão de ser dos fatos nem tampouco num comício libertador A tarefa fundamental dos Danilsons entre quem me situo é experimentar com intensidade a dialética entre a leitura do mundo e a leitura da palavra Programados para aprender e impossibilitados de viver sem a referência de um amanhã onde quer que haja mulheres e homens há sempre o que fazer há sempre o que ensinar há sempre o que aprender Nada disso contudo cobra sentido para mim se realizado contra a vocação para o Ser Mais histórica e socialmente constituindose em que mulheres e homens nos achamos inseridos 29 ENSINAR EXIGE CURIOSIDADE 56 Um pouco mais sobre a curiosidade Se há uma prática exemplar como negação da experiência formadora é a que dificulta ou inibe a curiosidade do educando e em consequência a do educador É que o educador que entregue a procedimentos autoritários ou paternalistas que impedem ou dificultam o exercício da curiosidade do educando termina por igualmente tolher sua própria curiosidade Nenhuma curiosidade se sustenta eticamente no exercício da negação da outra curiosidade A curiosidade dos pais que só se experimenta no sentido de saber como e onde anda a curiosidade dos filhos se burocratiza e fenece A curiosidade que silencia a outra se nega a si mesma também O bom clima pedagógicodemocrático é o em que o educando vai aprendendo à custa de sua prática mesma que sua curiosidade como sua liberdade deve estar sujeita a limites mas em permanente exercício Limites eticamente assumidos por ele Minha curiosidade não tem o direito de invadir a privacidade do outro e expôla aos demais Como professor devo saber que sem a curiosidade que me move que me inquieta que me insere na busca não aprendo nem ensino Exercer a minha curiosidade de forma correta é um direito que tenho como gente e a que corresponde o dever de lutar por ele o direito à curiosidade Com a curiosidade domesticada posso alcançar a memorização mecânica do perfil deste ou daquele objeto mas não o aprendizado real ou o conhecimento cabal do objeto A construção ou a produção do conhecimento do objeto implica o exercício da curiosidade sua capacidade crítica de tomar distância do objeto de observálo de delimitálo de cindilo de cercar o objeto ou fazer sua aproximação metódica sua capacidade de comparar de perguntar Estimular a pergunta a reflexão crítica sobre a própria pergunta o que se pretende com esta ou com aquela pergunta em lugar da passividade em face das explicações discursivas do professor espécies de respostas às perguntas que não foram feitas Isto não significa realmente que devamos reduzir a atividade docente em nome da defesa da curiosidade necessária a puro vaivém de perguntas e respostas que burocraticamente se esterilizam A dialogicidade não nega a validade de momentos explicativos narrativos em que o professor expõe ou fala do objeto O fundamental é que professor e alunos saibam que a postura deles do professor e dos alunos é dialógica aberta curiosa indagadora e não apassivada enquanto fala ou enquanto 57 ouve O que importa é que professor e alunos se assumam epistemologicamente curiosos Neste sentido o bom professor é o que consegue enquanto fala trazer o aluno até a intimidade do movimento de seu pensamento Sua aula é assim um desafio e não uma cantiga de ninar Seus alunos cansam não dormem Cansam porque acompanham as idas e vindas de seu pensamento surpreendem suas pausas suas dúvidas suas incertezas Antes de qualquer tentativa de discussão de técnicas de materiais de métodos para uma aula dinâmica assim é preciso indispensável mesmo que o professor se ache repousado no saber de que a pedra fundamental é a curiosidade do ser humano É ela que me faz perguntar conhecer atuar mais perguntar reconhecer Boa tarefa para um fim de semana seria propor a um grupo de alunos que registrasse cada um por si as curiosidades mais marcantes por que foram tomados em razão de que em qual situação emergente de noticiário da televisão de propaganda de videogame de gesto de alguém não importa Que tratamento deu à curiosidade se facilmente foi superada ou se pelo contrário conduziu a outras curiosidades Se no processo curioso consultou fontes dicionários computadores livros se fez perguntas a outros Se a curiosidade enquanto desafio provocou algum conhecimento provisório de algo ou não O que sentiu quando se percebeu trabalhando sua curiosidade mesma É possível que preparado para pensar a própria curiosidade tenha sido menos curiosa ou curioso A experiência se poderia refinar e aprofundar a tal ponto por exemplo que se realizasse um seminário quinzenal para o debate das várias curiosidades bem como dos desdobramentos das mesmas O exercício da curiosidade a faz mais criticamente curiosa mais metodicamente perseguidora do seu objeto Quanto mais a curiosidade espontânea se intensifica mas sobretudo se rigoriza tanto mais epistemológica ela vai se tornando Nunca fui ingênuo apreciador da tecnologia não a divinizo de um lado nem a diabolizo de outro Por isso mesmo sempre estive em paz para lidar com ela Não tenho dúvida nenhuma do enorme potencial de estímulos e desafios à curiosidade que a tecnologia põe a serviço das crianças e dos adolescentes das classes sociais chamadas favorecidas Não foi por outra razão que enquanto secretário de educação da cidade de São Paulo fiz chegar à rede das escolas municipais o computador Ninguém melhor do 58 que meus netos e minhas netas para me falar de sua curiosidade instigada pelos computadores com os quais convivem O exercício da curiosidade convoca a imaginação a intuição as emoções a capacidade de conjecturar de comparar na busca da perfilização do objeto ou do achado de sua razão de ser Um ruído por exemplo pode provocar minha curiosidade Observo o espaço onde parece que se está verificando Aguço o ouvido Procuro comparar com outro ruído cuja razão de ser já conheço Investigo melhor o espaço Admito hipóteses várias em torno da possível origem do ruído Elimino algumas até que chego a sua explicação Satisfeita uma curiosidade a capacidade de inquietarme e buscar continua em pé Não haveria existência humana sem a abertura de nosso ser ao mundo sem a transitividade de nossa consciência Quanto mais faço estas operações com maior rigor metódico tanto mais me aproximo da maior exatidão dos achados de minha curiosidade Um dos saberes fundamentais à minha prática educativocrítica é o que me adverte da necessária promoção da curiosidade espontânea para a curiosidade epistemológica Outro saber indispensável à prática educativocrítica é o de como lidaremos com a relação autoridadeliberdade19 sempre tensa e que gera disciplina como indisciplina Resultando da harmonia ou do equilíbrio entre autoridade e liberdade a disciplina implica necessariamente o respeito de uma pela outra expresso na assunção que ambas fazem de limites que não podem ser transgredidos O autoritarismo e a licenciosidade são rupturas do equilíbrio tenso entre autoridade e liberdade O autoritarismo é a ruptura em favor da autoridade contra a liberdade e a licenciosidade a ruptura em favor da liberdade contra a autoridade Autoritarismo e licenciosidade são formas indisciplinadas de comportamento que negam o que venho chamando a vocação ontológica do ser humano20 Assim como inexiste disciplina no autoritarismo ou na licenciosidade desaparece em ambos a rigor autoridade ou liberdade Somente nas práticas em que autoridade e liberdade se afirmam e se preservam enquanto elas mesmas portanto no respeito mútuo é que se pode falar de práticas disciplinadas como também em práticas favoráveis à vocação para o Ser Mais Entre nós em função mesma do nosso passado autoritário contestado nem sempre com segurança por uma modernidade ambígua oscilamos 59 entre formas autoritárias e formas licenciosas Entre uma certa tirania da liberdade e o exacerbamento da autoridade ou ainda na combinação das duas hipóteses O bom seria que experimentássemos o confronto realmente tenso em que a autoridade de um lado e a liberdade do outro medindose se avaliassem e fossem aprendendo a ser ou a estar sendo elas mesmas na produção de situações dialógicas Para isto o indispensável é que ambas autoridade e liberdade vão se tornando cada vez mais convertidas ao ideal do respeito comum somente como podem autenticarse Comecemos por refletir sobre algumas das qualidades que a autoridade docente democrática precisa encarnar em suas relações com a liberdade dos alunos É interessante observar que a minha experiência discente é fundamental para a prática docente que terei amanhã ou que estou tendo agora simultaneamente com aquela É vivendo criticamente a minha liberdade de aluno ou aluna que em grande parte me preparo para assumir ou refazer o exercício de minha autoridade de professor Para isso como aluno hoje que sonha com ensinar amanhã ou como aluno que já ensina hoje devo ter como objeto de minha curiosidade as experiências que venho tendo com professores vários e as minhas próprias se as tenho com meus alunos O que quero dizer é o seguinte não devo pensar apenas sobre os conteúdos programáticos que vêm sendo expostos ou discutidos pelos professores das diferentes disciplinas mas ao mesmo tempo a maneira mais aberta dialógica ou mais fechada autoritária com que este ou aquele professor ensina 60 Notas 13 Cf David Crystal The Cambridge Encyclopedia of Language Cambridge Cambridge University Press 1987 14 Cf Paulo Freire Pedagogia da esperança e À sombra desta mangueira 15 François Jacob op cit 16 Cf Paulo Freire Cartas a Cristina 17 Cf Id Professora sim tia não cartas a quem ousa ensinar São Paulo Olho dÁgua 1995 18 Insisto na leitura de Professora sim tia não cartas a quem ousa ensinar 19 cf Paulo Freire Professora sim tia nao cartas a quem ousa ensinar 20 Id Pedagogia do oprimido e Pedagogia da esperança 61 3 ENSINAR É UMA ESPECIFICIDADE HUMANA QUE POSSIBILIDADES DE EXPRESSARSE de crescer vem tendo a minha curiosidade Creio que uma das qualidades essenciais que a autoridade docente democrática deve revelar em suas relações com as liberdades dos alunos é a segurança em si mesma É a segurança que se expressa na firmeza com que atua com que decide com que respeita as liberdades com que discute suas próprias posições com que aceita reverse Segura de si a autoridade não necessita de a cada instante fazer o discurso sobre sua existência sobre si mesma Não precisa perguntar a ninguém certa de sua legitimidade se sabe com quem está falando Segura de si ela é porque tem autoridade porque a exerce com indiscutível sabedoria 31 ENSINAR EXIGE SEGURANÇA COMPETÊNCIA PROFISSIONAL E GENEROSIDADE A segurança com que a autoridade docente se move implica uma outra a que se funda na sua competência profissional Nenhuma autoridade docente se exerce ausente desta competência O professor que não leve a sério sua formação que não estude que não se esforce para estar à altura de sua tarefa não tem força moral para coordenar as atividades de sua classe Isso não significa porém que a opção e a prática democrática do professor ou da professora sejam determinadas por sua competência científica Há professores e professoras científicamente preparados mas autoritários a toda prova O que quero dizer é que a incompetência profissional desqualifica a autoridade do professor 62 Outra qualidade indispensável à autoridade em suas relações com as liberdades é a generosidade Não há nada que mais inferiorize a tarefa formadora da autoridade do que a mesquinhez com que se comporte A arrogância farisaica malvada com que julga os outros e a indulgência macia com que se julga ou com que julga os seus A arrogância que nega a generosidade nega também a humildade que não é virtude dos que ofendem nem tampouco dos que se regozijam com sua humilhação O clima de respeito que nasce de relações justas sérias humildes generosas em que a autoridade docente e as liberdades dos alunos se assumem eticamente autentica o caráter formador do espaço pedagógico A reação negativa ao exercício do comando é tão incompatível com o desempenho da autoridade quanto a sofreguidão pelo mando O mandonismo é exatamente esse gozo irrefreável e desmedido pelo mando A autoridade docente mandonista rígida não conta com nenhuma criatividade do educando Não faz parte de sua forma de ser esperar sequer que o educando revele o gosto de aventurarse A autoridade coerentemente democrática fundandose na certeza da importância quer de si mesma quer da liberdade dos educandos para a construção de um clima de real disciplina jamais minimiza a liberdade Pelo contrário aposta nela Empenhase em desafiála sempre e sempre jamais vê na rebeldia da liberdade um sinal de deterioração da ordem A autoridade coerentemente democrática está convicta de que a disciplina verdadeira não existe na estagnação no silêncio dos silenciados mas no alvoroço dos inquietos na dúvida que instiga na esperança que desperta A autoridade coerentemente democrática mais ainda que reconhece a eticidade de nossa presença a das mulheres e dos homens no mundo reconhece também e necessariamente que não se vive a eticidade sem liberdade e não se tem liberdade sem risco O educando que exercita sua liberdade ficará tão mais livre quanto mais eticamente vá assumindo a responsabilidade de suas ações Decidir é romper e para isso preciso correr o risco Não se rompe como quem toma um suco de pitanga numa praia tropical Mas por outro lado a autoridade coerentemente democrática jamais se omite Se recusa de um lado silenciar a liberdade dos educandos rejeita de outro a sua supressão do processo de construção da boa disciplina Um esforço sempre presente à prática da autoridade coerentemente democrática é o que a torna quase escrava de um sonho fundamental o de 63 persuadir ou convencer a liberdade de que vá construindo consigo mesma em si mesma com materiais que embora vindos de fora de si reelaborados por ela a sua autonomia É com ela a autonomia penosamente construindose que a liberdade vai preenchendo o espaço antes habitado por sua dependência Sua autonomia que se funda na responsabilidade que vai sendo assumida O papel da autoridade democrática não é transformando a existência humana num calendário escolar tradicional marcar as lições de vida para as liberdades mas mesmo quando tem um conteúdo programático a propor deixar claro com seu testemunho que o fundamental no aprendizado do conteúdo é a construção da responsabilidade da liberdade que se assume No fundo o essencial nas relações entre educador e educando entre autoridade e liberdades entre pais mães filhos e filhas é a reinvenção do ser humano no aprendizado de sua autonomia Me movo como educador porque primeiro me movo como gente Posso saber pedagogia biologia como astronomia posso cuidar da terra como posso navegar Sou gente Sei que ignoro e sei que sei Por isso tanto posso saber o que ainda não sei como posso saber melhor o que já sei E saberei tão melhor e mais autenticamente quanto mais eficazmente construa minha autonomia em respeito à dos outros Ensinar e enquanto ensino testemunhar aos alunos o quanto me é fundamental respeitálos e respeitarme são tarefas que jamais dicotomizei Nunca me foi possível separar em dois momentos o ensino dos conteúdos da formação ética dos educandos A prática docente que não há sem a discente é uma prática inteira O ensino dos conteúdos implica o testemunho ético do professor A boniteza da prática docente se compõe do anseio vivo de competência do docente e dos discentes e de seu sonho ético Não há nesta boniteza lugar para a negação da decência nem de forma grosseira nem farisaica Não há lugar para puritanismo Só há lugar para pureza Este é outro saber indispensável à prática docente O saber da impossibilidade de desunir o ensino dos conteúdos da formação ética dos educandos De separar prática de teoria autoridade de liberdade ignorância de saber respeito ao professor de respeito aos alunos ensinar de aprender Nenhum destes termos pode ser mecanicistamente separado um do outro Como professor tanto lido com minha liberdade quanto com minha 64 autoridade em exercício mas também diretamente com a liberdade dos educandos que devo respeitar e com a criação de sua autonomia bem como com os ensaios de construção da autoridade dos educandos Como professor não me é possível ajudar o educando a superar sua ignorância se não supero permanentemente a minha Não posso ensinar o que não sei Mas este repito não é saber de que apenas devo falar e falar com palavras que o vento leva É saber pelo contrário que devo viver concretamente com os educandos O melhor discurso sobre ele é o exercício de sua prática É concretamente respeitando o direito do aluno de indagar de duvidar e de criticar que falo desses direitos A minha pura fala sobre esses direitos a que não corresponda a sua concretização não tem sentido Quanto mais penso sobre a prática educativa reconhecendo a responsabilidade que ela exige de nós tanto mais me convenço do dever nosso de lutar no sentido de que ela seja realmente respeitada O respeito que devemos como professores aos educandos dificilmente se cumpre se não somos tratados com dignidade e decência pela administração privada ou pública da educação 32 ENSINAR EXIGE COMPROMETIMENTO Outro saber que devo trazer comigo e que tem que ver com quase todos os de que tenho falado é o de que não é possível exercer a atividade do magistério como se nada ocorresse conosco Como impossível seria sairmos na chuva expostos totalmente a ela sem defesas e não nos molhar Não posso ser professor sem me pôr diante dos alunos sem revelar com facilidade ou relutância minha maneira de ser de pensar politicamente Não posso escapar à apreciação dos alunos E a maneira como eles me percebem tem importância capital para o meu desempenho Daí então que uma de minhas preocupações centrais deva ser a de procurar a aproximação cada vez maior entre o que digo e o que faço entre o que pareço ser e o que realmente estou sendo Se perguntado por um aluno sobre o que é tomar distância epistemológica do objeto lhe respondo que não sei mas que posso vir a saber isso não me dá a autoridade de quem conhece me dá a alegria de assumindo minha ignorância não ter mentido E não ter mentido abre para mim junto aos alunos um crédito que devo preservar Eticamente impossível 65 teria sido dar uma resposta falsa um palavreado qualquer Um chute como se diz popularmente Mas de um lado precisamente porque a prática docente sobretudo como a entendo me coloca a possibilidade que devo estimular de perguntas várias preciso me preparar ao máximo para de outro continuar sem mentir aos alunos de outro não ter de afirmar seguidamente que não sei Saber que não posso passar despercebido pelos alunos e que a maneira como me percebam me ajuda ou desajuda no cumprimento de minha tarefa de professor aumenta em mim os cuidados com o meu desempenho Se a minha opção é democrática progressista não posso ter uma prática reacionária autoritária elitista Não posso discriminar o aluno em nome de nenhum motivo A percepção que o aluno tem de mim não resulta exclusivamente de como atuo mas também de como o aluno entende como atuo Evidentemente não posso levar meus dias como professor a perguntar aos alunos o que acham de mim ou como me avaliam Mas devo estar atento à leitura que fazem de minha atividade com eles Precisamos aprender a compreender a significação de um silêncio ou de um sorriso ou de uma retirada da sala O tom menos cortês com que foi feita uma pergunta Afinal o espaço pedagógico é um texto para ser constantemente lido interpretado escrito e reescrito Neste sentido quanto mais solidariedade exista entre o educador e educandos no trato deste espaço tanto mais possibilidades de aprendizagem democrática se abrem na escola Creio que nunca precisou o professor progressista estar tão advertido quanto hoje em face da esperteza com que a ideologia dominante insinua a neutralidade da educação Desse ponto de vista que é reacionário o espaço pedagógico neutro por excelência é aquele em que se treinam os alunos para práticas apolíticas como se a maneira humana de estar no mundo fosse ou pudesse ser uma maneira neutra Minha presença de professor que não pode passar despercebida dos alunos na classe e na escola é uma presença em si política Enquanto presença não posso ser uma omissão mas um sujeito de opções Devo revelar aos alunos a minha capacidade de analisar de comparar de avaliar de decidir de optar de romper Minha capacidade de fazer justiça de não falhar à verdade Ético por isso mesmo tem que ser o meu testemunho 33 ENSINAR EXIGE COMPREENDER QUE A EDUCAÇÃO É UMA FORMA DE INTERVENÇÃO NO MUNDO 66 Outro saber de que não posso duvidar um momento sequer na minha prática educativocrítica é o de que como experiência especificamente humana a educação é uma forma de intervenção no mundo Intervenção que além do conhecimento dos conteúdos bem ou mal ensinados eou aprendidos implica tanto o esforço de reprodução da ideologia dominante quanto o seu desmascaramento Dialética e contraditória não poderia ser a educação só uma ou só a outra dessas coisas Nem apenas reprodutora nem apenas desmascaradora da ideologia dominante Neutra indiferente a qualquer destas hipóteses a da reprodução da ideologia dominante ou a de sua contestação a educação jamais foi é ou pode ser É um erro decretála como tarefa apenas reprodutora da ideologia dominante como erro é tomála como uma força de desocultação da realidade a atuar livremente sem obstáculos e duras dificuldades Erros que implicam diretamente visões defeituosas da história e da consciência De um lado a compreensão mecanicista da história que reduz a consciência a puro reflexo da materialidade e de outro o subjetivismo idealista que hipertrofia o papel da consciência no acontecer histórico Nem somos mulheres e homens seres simplesmente determinados nem tampouco livres de condicionamentos genéticos culturais sociais históricos de classe e de gênero que nos marcam e a que nos achamos referidos Do ponto de vista dos interesses dominantes não há dúvida de que a educação deve ser uma prática imobilizadora e ocultadora de verdades Toda vez porém que a conjuntura o exige a educação dominante é progressista à sua maneira progressista pela metade As forças dominantes estimulam e materializam avanços técnicos compreendidos e tanto quanto possível realizados de maneira neutra Seria demasiado ingênuo até angelical de nossa parte esperar que a bancada ruralista aceitasse quieta e concordante a discussão nas escolas rurais e mesmo urbanas do país da reforma agrária como projeto econômico político e ético da maior importância para o próprio desenvolvimento nacional Isso é tarefa para educadoras e educadores progressistas cumprirem dentro e fora das escolas É tarefa para organizações não governamentais para sindicatos democráticos realizarem Já não é ingênuo esperar porém que o empresariado que se moderniza com raízes urbanas adira à reforma agrária Seus interesses na expansão do mercado o fazem progressista em face da reação ruralista O próprio comportamento progressista do empresariado que se moderniza progressista em face da truculência retrógrada dos ruralistas se esvazia de 67 humanismo quando da confrontação entre os interesses humanos e os do mercado E é uma imoralidade para mim que se sobreponha como se vem fazendo aos interesses radicalmente humanos os do mercado Continuo bem aberto à advertência de Marx a da necessária radicalidade que me faz sempre desperto a tudo o que diz respeito à defesa dos interesses humanos Interesses superiores aos de puros grupos ou de classes de gente Ao reconhecer que precisamente porque nos tornamos seres capazes de observar de comparar de avaliar de escolher de decidir de intervir de romper de optar nos fizemos seres éticos e se abriu para nós a probabilidade de transgredir a ética jamais poderia aceitar a transgressão como um direito mas como uma possibilidade Possibilidade contra a que devemos lutar e não diante da qual cruzar os braços Daí a minha recusa rigorosa aos fatalismos quietistas que terminam por absorver as transgressões éticas em lugar de condenálas Não posso virar conivente de uma ordem perversa irresponsabilizandoa por sua malvadez ao atribuir a forças cegas e imponderáveis os danos por ela causados aos seres humanos A fome frente a frente à abastança e o desemprego no mundo são imoralidades e não fatalidades como o reacionarismo apregoa com ares de quem sofre por nada poder fazer O que quero repetir com força é que nada justifica a minimização dos seres humanos no caso das maiorias compostas de minorias que não perceberam ainda que juntas seriam a maioria Nada o avanço da ciência e ou da tecnologia pode legitimar uma ordem desordeira em que só as minorias do poder esbanjam e gozam enquanto às maiorias em dificuldades até para sobreviver se diz que a realidade é assim mesma que sua fome é uma fatalidade do fim do século Não junto a minha voz à dos que falando em paz pedem aos oprimidos aos esfarrapados do mundo a sua resignação Minha voz tem outra semântica tem outra música Falo da resistência da indignação da justa ira dos traídos e dos enganados Do seu direito e do seu dever de rebelarse contra as transgressões éticas de que são vítimas cada vez mais sofridas A ideologia fatalista do discurso e da política neoliberais de que venho falando é um momento daquela desvalia acima referida dos interesses humanos em relação aos do mercado Difícilmente um empresário moderno concordaria com que seja direito de seu operário por exemplo discutir durante o processo de sua alfabetização ou no desenvolvimento de algum curso de aperfeiçoamento 68 técnico esta mesma ideologia a que me venho referindo Discutir suponhamos a afirmação O desemprego no mundo é uma fatalidade do fim deste século E por que fazer a reforma agrária não é também uma fatalidade E por que acabar com a fome e com a miséria não são igualmente fatalidades de que não se pode fugir É reacionária a afirmação segundo a qual o que interessa aos operários é alcançar o máximo de sua eficácia técnica e não perder tempo com debates ideológicos que a nada levam O operário precisa inventar a partir do próprio trabalho a sua cidadania que não se constrói apenas com sua eficácia técnica mas também com sua luta política em favor da recriação da sociedade injusta a ceder seu lugar a outra menos injusta e mais humana Naturalmente reinsisto o empresário moderno aceita estimula e patrocina o treino técnico de seu operário O que ele necessariamente recusa é a sua formação que envolvendo o saber técnico e científico indispensável fala de sua presença no mundo Presença humana presença ética aviltada toda vez que transformada em pura sombra Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que por não poder ser neutra minha prática exige de mim uma definição Uma tomada de posição Decisão Ruptura Exige de mim que escolha entre isto e aquilo Não posso ser professor a favor de quem quer que seja e a favor de não importa o quê Não posso ser professor a favor simplesmente do homem ou da humanidade frase de uma vaguidade demasiado contrastante com a concretude da prática educativa Sou professor a favor da decência contra o despudor a favor da liberdade contra o autoritarismo da autoridade contra a licenciosidade da democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais Sou professor contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração a miséria na fartura Sou professor a favor da esperança que me anima apesar de tudo Sou professor contra o desengano que me consome e imobiliza Sou professor a favor da boniteza de minha própria prática boniteza que dela some se não cuido do saber que devo ensinar se não brigo por este saber se não luto pelas condições materiais necessárias sem as quais meu corpo descuidado corre o risco de se amofinar e de já não ser o testemunho que deve ser de lutador pertinaz que cansa mas não desiste Boniteza que se esvai de minha prática se cheio de mim mesmo arrogante e desdenhoso dos alunos não canso de me admirar 69 Assim como não posso ser professor sem me achar capacitado para ensinar certo e bem os conteúdos de minha disciplina não posso por outro lado reduzir minha prática docente ao puro ensino daqueles conteúdos Esse é um momento apenas de minha atividade pedagógica Tão importante quanto ele o ensino dos conteúdos é o meu testemunho ético ao ensinálos É a decência com que o faço É a preparação científica revelada sem arrogância pelo contrário com humildade É o respeito jamais negado ao educando a seu saber de experiência feito que busco superar com ele Tão importante quanto o ensino dos conteúdos é a minha coerência na classe A coerência entre o que digo o que escrevo e o que faço É importante que os alunos percebam o esforço que faz o professor ou a professora procurando sua coerência É preciso também que este esforço seja de quando em vez discutido na classe Há situações em que a conduta da professora pode parecer aos alunos contraditória Isto se dá quase sempre quando o professor simplesmente exerce sua autoridade na coordenação das atividades na classe e parece aos alunos que ele o professor exorbitou de seu poder Às vezes é o próprio professor que não está certo de ter realmente ultrapassado o limite de sua autoridade ou não 34 ENSINAR EXIGE LIBERDADE E AUTORIDADE Noutro momento deste texto me referi ao fato de não termos ainda resolvido o problema da tensão entre a autoridade e a liberdade Inclinados a superar a tradição autoritária tão presente entre nós resvalamos para formas licenciosas de comportamento e descobrimos autoritarismo onde só houve o exercício legítimo da autoridade Recentemente jovem professor universitário de opção democrática comentava comigo o que lhe parecia ter sido um desvio seu no uso de sua autoridade Disse constrangido ter se oposto a que um aluno de outra classe continuasse na porta entreaberta de sua sala a manter uma conversa gesticulada com uma das alunas Ele tivera inclusive que parar sua fala em face do descompasso que a situação provocava Para ele sua decisão com que devolvera ao espaço pedagógico o necessário clima para continuar sua atividade específica e com a qual restaurara o direito dos estudantes e o seu de prosseguir a prática docente fora autoritária Na verdade não Licencioso teria sido se tivesse permitido que a indisciplina de uma liberdade mal 70 centrada desequilibrasse o contexto pedagógico prejudicando assim o seu funcionamento Num dos inúmeros debates de que venho participando e em que discutia precisamente a questão dos limites sem os quais a liberdade se perverte em licença e a autoridade em autoritarismo ouvi de um dos participantes que ao falar dos limites à liberdade eu estava repetindo a cantilena que caracterizava o discurso de professor seu reconhecidamente reacionário durante o regime militar Para o meu interlocutor a liberdade estava acima de qualquer limite Para mim não exatamente porque aposto nela porque sei que sem ela a existência só tem valor e sentido na luta em favor dela A liberdade sem limite é tão negada quanto a liberdade asfixiada ou castrada O grande problema que se coloca ao educador ou à educadora de opção democrática é como trabalhar no sentido de fazer possível que a necessidade do limite seja assumida eticamente pela liberdade Quanto mais criticamente a liberdade assuma o limite necessário tanto mais autoridade tem ela eticamente falando para continuar lutando em seu nome Gostaria uma vez mais de deixar bem expresso o quanto aposto na liberdade o quanto me parece fundamental que ela se exercite assumindo decisões Foi isso pelo menos o que marcou a minha experiência de filho de irmão de aluno de professor de marido de pai e de cidadão A liberdade amadurece no confronto com outras liberdades na defesa de seus direitos em face da autoridade dos pais do professor do Estado É claro que nem sempre a liberdade do adolescente faz a melhor decisão com relação a seu amanhã É indispensável que os pais tomem parte das discussões com os filhos em torno desse amanhã Não podem nem devem omitirse mas precisam saber e assumir que o futuro é de seus filhos e não seu É preferível para mim reforçar o direito que têm à liberdade de decidir mesmo correndo o risco de não acertar a seguir a decisão dos pais É decidindo que se aprende a decidir Não posso aprender a ser eu mesmo se não decido nunca porque há sempre a sabedoria e a sensatez de meu pai e de minha mãe a decidir por mim Não valem argumentos imediatistas como Já imaginou o risco por exemplo que você corre de perder tempo e oportunidade insistindo nessa ideia maluca A ideia do filho naturalmente O que há de pragmático em nossa existência não pode sobreporse ao imperativo ético de que não podemos fugir O filho tem no mínimo o direito de provar a maluquice de sua ideia Por outro lado faz parte do aprendizado da decisão a assunção das consequências do ato de 71 decidir Não há decisão a que não se sigam efeitos esperados pouco esperados ou inesperados Por isso é que a decisão é um processo responsável Uma das tarefas pedagógicas dos pais é deixar óbvio aos filhos que sua participação no processo de tomada de decisão deles não é uma intromissão mas um dever até desde que não pretendam assumir a missão de decidir por eles A participação dos pais se deve dar sobretudo na análise com os filhos das consequências possíveis da decisão a ser tomada A posição da mãe ou do pai é a de quem sem nenhum prejuízo ou rebaixamento de sua autoridade humildemente aceita o papel de enorme importância de assessor ou assessora do filho ou da filha Assessor que embora batendose pelo acerto de sua visão das coisas jamais tenta impor sua vontade ou se abespinha porque seu ponto de vista não foi aceito O que é preciso fundamentalmente mesmo é que o filho assuma eticamente responsavelmente sua decisão fundante de sua autonomia Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir A autonomia vai se constituindo na experiência de várias inúmeras decisões que vão sendo tomadas Por que por exemplo não desafiar o filho ainda criança no sentido de participar da escolha da melhor hora para fazer seus deveres escolares Por que o melhor tempo para esta tarefa é sempre o dos pais Por que perder a oportunidade de ir sublinhando aos filhos o dever e o direito que eles têm como gente de ir forjando sua própria autonomia Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém Por outro lado ninguém amadurece de repente aos vinte e cinco anos A gente vai amadurecendo todo dia ou não A autonomia enquanto amadurecimento do ser para si é processo é vir a ser Não ocorre em data marcada É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade vale dizer em experiências respeitosas da liberdade Uma coisa me parece muito clara hoje jamais tive medo de apostar na liberdade na seriedade na amorosidade na solidariedade na luta em favor das quais aprendi o valor e a importância da raiva Jamais receei ser criticado por minha mulher por minhas filhas por meus filhos assim como pelos alunos e alunas com quem tenho trabalhado ao longo dos anos porque tivesse apostado demasiado na liberdade na esperança na palavra do outro na sua vontade de erguerse ou reerguerse por ter sido mais ingênuo do que crítico O que temi nos diferentes momentos de minha vida foi dar margem por gestos ou palavrações a ser considerado um oportunista um realista um homem de pé no chão ou um desses equilibristas que se 72 acham sempre em cima do muro à espera de saber qual a onda que se fará poder O que sempre deliberadamente recusei em nome do próprio respeito à liberdade foi sua distorção em licenciosidade O que sempre procurei foi viver em plenitude a relação tensa contraditória e não mecânica entre autoridade e liberdade no sentido de assegurar o respeito entre ambas cuja ruptura provoca a hipertrofia de uma ou de outra É interessante observar como de modo geral os autoritários consideram amiúde o respeito indispensável à liberdade como expressão de incorrigível espontaneísmo e os licenciosos descobrem autoritarismo em toda manifestação legítima da autoridade A posição mais difícil indiscutivelmente correta é a do democrata coerente com seu sonho solidário e igualitário para quem não possível autoridade sem liberdade e esta sem aquela 35 ENSINAR EXIGE TOMADA CONSCIENTE DE DECISÕES Voltemos à questão central que venho discutindo nesta parte do texto a educação especificidade humana como um ato de intervenção no mundo É preciso deixar claro que o conceito de intervenção não está sendo usado com nenhuma restrição semântica Quando falo em educação como intervenção me refiro tanto à que aspira a mudanças radicais na sociedade no campo da economia das relações humanas da propriedade do direito ao trabalho à terra à educação à saúde quanto à que pelo contrário reacionariamente pretende imobilizar a história e manter a ordem injusta Estas formas de intervenção com ênfase mais num aspecto do que noutro nos dividem em nossas opções em relação a cuja pureza nem sempre somos leais Rara vez por exemplo percebemos a incoerência agressiva que existe entre as nossas afirmações progressistas e o nosso estilo desastrosamente elitista de ser intelectuais E que dizer de educadores que se dizem progressistas mas de prática pedagógicopolítica eminentemente autoritária Não é por outra razão que insisti tanto em Professora sim tia não na necessidade de criarmos em nossa prática docente entre outras a virtude da coerência Não há nada talvez que desgaste mais um professor que se diz progressista do que sua prática racista por exemplo É interessante observar como há mais coerência entre os intelectuais autoritários de direita 73 ou de esquerda Dificilmente um deles ou uma delas respeita e estimula a curiosidade crítica nos educandos o gosto da aventura Difícilmente contribui de maneira deliberada e consciente para a constituição e a solidez da autonomia do ser do educando De modo geral teimam em depositar nos alunos apassivados a descrição do perfil dos conteúdos em lugar de desafiá los a apreender a substantividade dos mesmos enquanto objetos gnosiológicos somente como os aprendem É na diretividade da educação esta vocação que ela tem como ação especificamente humana de endereçarse até sonhos ideais utopias e objetivos que se acha o que venho chamando politicidade da educação A qualidade de ser política inerente à sua natureza É impossível na verdade a neutralidade da educação E é impossível não porque professoras e professores baderneiros e subversivos o determinem A educação não vira política por causa da decisão deste ou daquele educador Ela é política Quem pensa assim quem afirma que é por obra deste ou daquele educador mais ativista que outra coisa que a educação vira política não pode esconder a forma depreciativa como entende a política Pois é na medida mesma em que a educação é deturpada e diminuída pela ação de baderneiros que ela deixando de ser verdadeira educação passa a ser política algo sem valor A raiz mais profunda da politicidade da educação se acha na educabilidade mesma do ser humano que se funda na sua natureza inacabada e da qual se tornou consciente Inacabado e consciente de seu inacabamento histórico necessariamente o ser humano se faria um ser ético um ser de opções de decisão Um ser ligado a interesses e em relação aos quais tanto pode manterse fiel à eticidade quanto pode transgredila É exatamente porque nos tornamos éticos que se criou para nós a probabilidade como afirmei antes de violar a ética Para que a educação fosse neutra era preciso que não houvesse discordância nenhuma entre as pessoas com relação aos modos de vida individual e social com relação ao estilo político a ser posto em prática aos valores a ser encarnados Era preciso que não houvesse em nosso caso por exemplo nenhuma divergência em face da fome e da miséria no Brasil e no mundo era necessário que toda a população nacional aceitasse mesmo que elas miséria e fome aqui e fora daqui são uma fatalidade do fim do século Era preciso também que houvesse unanimidade na forma de enfrentálas para superálas Para que a educação não fosse uma forma política de intervenção no mundo era indispensável que o mundo em que ela se desse 74 não fosse humano Há uma incompatibilidade total entre o mundo humano da fala da percepção da inteligibilidade da comunicabilidade da ação da observação da comparação da verificação da busca da escolha da decisão da ruptura da ética e da possibilidade de sua transgressão e a neutralidade não importa de quê O que devo pretender não é a neutralidade da educação mas o respeito a toda prova aos educandos aos educadores e às educadoras O respeito aos educadores e educadoras por parte da administração pública ou privada das escolas o respeito aos educandos assumido e praticado pelos educadores não importa de que escola particular ou pública É por isso que devo lutar sem cansaço Lutar pelo direito que tenho de ser respeitado e pelo dever que tenho de reagir a que me destratem Lutar pelo direito que você que me lê professora ou aluna tem de ser você mesma e nunca jamais lutar por essa coisa impossível acinzentada e insossa que é a neutralidade Que é mesmo a minha neutralidade senão a maneira cômoda talvez mas hipócrita de esconder minha opção ou meu medo de acusar a injustiça Lavar as mãos em face da opressão é reforçar o poder do opressor é optar por ele Como posso ser neutro diante da situação não importa qual seja ela em que o corpo das mulheres e dos homens vira puro objeto de espoliação e de descaso O que se coloca à educadora ou ao educador democrático consciente da impossibilidade da neutralidade da educação é forjar em si um saber especial que jamais deve abandonar saber que motiva e sustenta sua luta se a educação não pode tudo alguma coisa fundamental a educação pode Se a educação não é a chave das transformações sociais não é também simplesmente reprodutora da ideologia dominante O que quero dizer é que a educação nem é uma força imbatível a serviço da transformação da sociedade porque assim eu queira nem tampouco é a perpetuação do status quo porque o dominante o decrete O educador e a educadora críticos não podem pensar que a partir do curso que coordenam ou do seminário que lideram podem transformar o país Mas podem demonstrar que é possível mudar E isso reforça nele ou nela a importância de sua tarefa político pedagógica A professora democrática coerente competente que testemunha seu gosto de vida sua esperança no mundo melhor que atesta sua capacidade de luta seu respeito às diferenças sabe cada vez mais o valor que tem para a modificação da realidade a maneira consistente com que vive sua presença 75 no mundo de que sua experiência na escola é apenas um momento mas um momento importante que precisa ser autenticamente vivido 36 ENSINAR EXIGE SABER ESCUTAR Recentemente em conversa com um grupo de amigos e amigas uma delas a professora Olgair Garcia me disse que em sua experiência pedagógica de professora de crianças e de adolescentes mas também de professora de professoras vinha observando quão importante e necessário é saber escutar Se na verdade o sonho que nos anima é democrático e solidário não é falando aos outros de cima para baixo sobretudo como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais que aprendemos a escutar mas é escutando que aprendemos a falar com eles Somente quem escuta paciente e criticamente o outro fala com ele mesmo que em certas condições precise falar a ele O que jamais faz quem aprende a escutar para poder falar com é falar impositivamente Até quando necessariamente fala contra posições ou concepções do outro fala com ele como sujeito da escuta de sua fala crítica e não como objeto de seu discurso O educador que escuta aprende a difícil lição de transformar o seu discurso às vezes necessário ao aluno em uma fala com ele Há um sinal dos tempos entre outros que me assusta a insistência com que em nome da democracia da liberdade e da eficácia se vem asfixiando a própria liberdade e por extensão a criatividade e o gosto da aventura do espírito A liberdade de movernos de arriscarnos vem sendo submetida a uma certa padronização de fórmulas de maneiras de ser em relação às quais somos avaliados É claro que já não se trata de asfixia truculentamente realizada pelo rei despótico sobre seus súditos pelo senhor feudal sobre seus vassalos pelo colonizador sobre os colonizados pelo dono da fábrica sobre seus operários pelo Estado autoritário sobre os cidadãos mas pelo poder invisível da domesticação alienante que alcança a eficiência extraordinária no que venho chamando burocratização da mente Um estado refinado de estranheza de autodemissão da mente do corpo consciente de conformismo do indivíduo de acomodação diante de situações consideradas fatalistamente como imutáveis É a posição de quem encara os fatos como algo consumado como algo que se deu porque tinha que se dar da forma como se deu é a posição por isso mesmo de quem entende e vive a história 76 como determinismo e não como possibilidade É a posição de quem se assume como fragilidade total diante do todopoderosismo dos fatos que não apenas se deram porque tinham que se dar mas que não podem ser reorientados ou alterados Não há nesta maneira mecanicista de compreender a história lugar para a decisão humana21 Na medida mesma em que a desproblematização do tempo de que resulta que o amanhã ora é a perpetuação do hoje ora é algo que será porque está dito que será não há lugar para a escolha mas para a acomodação bem comportada ao que está aí ou ao que virá Nada é possível de ser feito contra a globalização que realizada porque tinha de ser realizada tem de continuar seu destino porque assim está misteriosamente escrito que deve ser A globalização que reforça o mando das minorias poderosas e esmigalha e pulveriza a presença impotente dos dependentes fazendoos ainda mais impotentes é destino dado Em face dela não há outra saída senão que cada um baixe a cabeça docilmente e agradeça a Deus porque ainda está vivo Agradeça a Deus ou à própria globalização Sempre recusei os fatalismos Prefiro a rebeldia que me confirma como gente e que jamais deixou de provar que o ser humano é maior do que os mecanicismos que o minimizam A proclamada morte da história que significa em última análise a morte da utopia e do sonho reforça indiscutivelmente os mecanismos de asfixia da liberdade Daí que a briga pelo resgate do sentido da utopia de que a prática educativa humanizante não pode deixar de estar impregnada tenha de ser uma constante sua Quanto mais me deixe seduzir pela aceitação da morte da história tanto mais admito que a impossibilidade do amanhã diferente implica a eternidade do hoje neoliberal que aí está e a permanência do hoje mata em mim a possibilidade de sonhar Desproblematizando o tempo a chamada morte da história decreta o imobilismo que nega o ser humano A desconsideração total pela formação integral do ser humano e a sua redução a puro treino fortalecem a maneira autoritária de falar de cima para baixo Nesse caso falar a que na perspectiva democrática é um possível momento do falar com nem sequer é ensaiado A desconsideração total pela formação integral do ser humano a sua redução a puro treino fortalecem a maneira autoritária de falar de cima para baixo a que falta por isso mesmo a intenção de sua democratização no falar com 77 Os sistemas de avaliação pedagógica de alunos e de professores vêm se assumindo cada vez mais como discursos verticais de cima para baixo mas insistindo em passar por democráticos A questão que se coloca a nós enquanto professores e alunos críticos e amorosos da liberdade não é naturalmente ficar contra a avaliação de resto necessária mas resistir aos métodos silenciadores com que ela vem sendo às vezes realizada A questão que se coloca a nós é lutar em favor da compreensão e da prática da avaliação enquanto instrumento de apreciação do quefazer de sujeitos críticos a serviço por isso mesmo da libertação e não da domesticação Avaliação em que se estimule o falar a como caminho do falar com No processo da fala e da escuta a disciplina do silêncio a ser assumida com rigor e a seu tempo pelos sujeitos que falam e escutam é um sine qua da comunicação dialógica O primeiro sinal de que o sujeito que fala sabe escutar é a demonstração de sua capacidade de controlar não só a necessidade de dizer a sua palavra que é um direito mas também o gosto pessoal profundamente respeitável de expressála Quem tem o que dizer tem igualmente o direito e o dever de dizêlo É preciso porém que quem tem o que dizer saiba sem sombra de dúvida não ser o único ou a única a ter o que dizer Mais ainda que o que tem a dizer não é necessariamente por mais importante que seja a verdade alvissareira por todos esperada É preciso que quem tem o que dizer saiba sem dúvida nenhuma que sem escutar o que quem escuta tem igualmente a dizer termina por esgotar a sua capacidade de dizer por muito ter dito sem nada ou quase nada ter escutado Por isso é que acrescento quem tem o que dizer deve assumir o dever de motivar de desafiar quem escuta no sentido de que quem escuta diga fale responda É intolerável o direito que se dá a si mesmo o educador autoritário de comportarse como o proprietário da verdade de que se apossa e do tempo para discorrer sobre ela Para ele quem escutasequer tem tempo próprio pois o tempo de quem escuta é o seu o tempo de sua fala Sua fala por isso mesmo se dá num espaço silenciado e não num espaço com ou em silêncio Ao contrário o espaço do educador democrático que aprende a falar escutando é cortado pelo silêncio intermitente de quem falando cala para escutar a quem silencioso e não silenciado fala A importância do silêncio no espaço da comunicação é fundamental De um lado me proporciona que ao escutar como sujeito e não como objeto a fala comunicante de alguém procure entrar no movimento interno do seu pensamento virando linguagem de outro torna possível a quem fala 78 realmente comprometido com comunicar e não com fazer puros comunicados escutar a indagação a dúvida a criação de quem escutou Fora disso fenece a comunicação Voltemos a um ponto referido antes mas sobre que preciso insistir Uma das características da experiência existencial no mundo em comparação com a vida no suporte é a capacidade que mulheres e homens criamos de inteligir o mundo sobre que e em que atuamos o que se deu simultaneamente com a comunicabilidade do inteligido Não há inteligência da realidade sem a possibilidade de ser comunicada Um dos sérios problemas que temos é como trabalhar a linguagem oral ou escrita associada ou não à força da imagem no sentido de efetivar a comunicação que se acha na própria compreensão ou inteligência do mundo A comunicabilidade do inteligido é a possibilidade que ele tem de ser comunicado mas não é ainda a sua comunicação Sou tão melhor professor então quanto mais eficazmente consiga provocar o educando no sentido de que prepare ou refine sua curiosidade que deve trabalhar com minha ajuda com vistas a que produza sua inteligência do objeto ou do conteúdo de que falo Na verdade meu papel como professor ao ensinar o conteúdo a ou b não é apenas o de me esforçar para com clareza máxima descrever a substantividade do conteúdo para que o aluno o fixe Meu papel fundamental ao falar com clareza sobre o objeto é incitar o aluno a fim de que ele com os materiais que ofereço produza a compreensão do objeto em lugar de recebêla na íntegra de mim Ele precisa se apropriar da inteligência do conteúdo para que a verdadeira relação de comunicação entre mim como professor e ele como aluno se estabeleça É por isso repito que ensinar não é transferir conteúdo a ninguém assim como aprender não é memorizar o perfil do conteúdo transferido no discurso vertical do professor Ensinar e aprender têm que ver com o esforço metodicamente crítico do professor de desvelar a compreensão de algo e com o empenho igualmente crítico do aluno de ir entrando como sujeito em aprendizagem no processo de desvelamento que o professor ou professora deve deflagrar Isso não tem nada que ver com a transferência de conteúdo e fala da dificuldade mas ao mesmo tempo da boniteza da docência e da discência Não é difícil compreender assim como uma de minhas tarefas centrais como educador progressista seja apoiar o educando para que ele mesmo vença suas dificuldades na compreensão ou na inteligência do objeto e para 79 que sua curiosidade compensada e gratificada pelo êxito da compreensão alcançada seja mantida e assim estimulada a continuar a busca permanente que o processo de conhecer implica Que me seja perdoada a reiteração mas é preciso enfatizar mais uma vez ensinar não é transferir a inteligência do objeto ao educando mas instigálo no sentido de que como sujeito cognoscente se torne capaz de inteligir e comunicar o inteligido É neste sentido que se impõe a mim escutar o educando em suas dúvidas em seus receios em sua incompetência provisória E ao escutálo aprendo a falar com ele Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade auditiva de cada um Escutar no sentido aqui discutido significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro ao gesto do outro às diferenças do outro Isso não quer dizer evidentemente que escutar exija de quem realmente escuta sua redução ao outro que fala Isso não seria escuta mas autoanulação A verdadeira escuta não diminui em mim em nada a capacidade de exercer o direito de discordar de me opor de me posicionar Pelo contrário é escutando bem que me preparo para melhor me colocar ou melhor me situar do ponto de vista das ideias Como sujeito que se dá ao discurso do outro sem preconceitos o bom escutador fala e diz de sua posição com desenvoltura Precisamente porque escuta sua fala discordante sendo afirmativa porque escuta jamais é autoritária Não é difícil perceber como há umas tantas qualidades que a escuta legítima demanda do seu sujeito Qualidades que vão sendo constituídas na prática democrática de escutar Deve fazer parte de nossa formação discutir quais são estas qualidades indispensáveis mesmo sabendo que elas precisam ser criadas por nós em nossa prática se nossa opção políticopedagógica é democrática ou progressista e se somos coerentes com ela É preciso que saibamos que sem certas qualidades ou virtudes como amorosidade respeito aos outros tolerância humildade gosto da alegria gosto da vida abertura ao novo disponibilidade à mudança persistência na luta recusa aos fatalismos identificação com a esperança abertura à justiça não é possível a prática pedagógicoprogressista que não se faz apenas com ciência e técnica Aceitar e respeitar a diferença é uma dessas virtudes sem o que a escuta não se pode dar Se discrimino o menino ou menina pobre a menina ou o menino negro o menino índio a menina rica se discrimino a mulher a 80 camponesa a operária não posso evidentemente escutálas e se não os escuto não posso falar com elas mas a elas de cima para baixo Sobretudo me proíbo entendêlas Se me sinto superior ao diferente não importa quem seja recuso escutálo ou escutála O diferente não é o outro a merecer respeito é um isto ou aquilo destratável ou desprezível Se a estrutura do meu pensamento é a única certa irrepreensível não posso escutar quem pensa e elabora seu discurso de outra maneira que não a minha Nem tampouco escuto quem fala ou escreve fora dos padrões da gramática dominante E como estar aberto às formas de ser de pensar de valorar consideradas por nós demasiado estranhas e exóticas de outra cultura Vemos como o respeito às diferenças e obviamente aos diferentes exige de nós a humildade que nos adverte dos riscos de ultrapassagem dos limites além dos quais a nossa autovalia necessária vira arrogância e desrespeito aos demais É preciso afirmar que ninguém pode ser humilde por puro formalismo como se cumprisse mera obrigação burocrática A humildade exprime pelo contrário uma das raras certezas de que estou certo a de que ninguém é superior a ninguém A falta de humildade expressa na arrogância e na falsa superioridade de uma pessoa sobre a outra de uma raça sobre a outra de um gênero sobre o outro de uma classe ou de uma cultura sobre a outra é uma transgressão da vocação humana do Ser Mais22 O que a humildade não pode exigir de mim é a minha submissão à arrogância e ao destempero de quem me desrespeita O que a humildade exige de mim quando não posso reagir à altura da afronta é enfrentála com dignidade A dignidade do meu silêncio e do meu olhar que transmitem o meu protesto possível É óbvio que não posso me bater fisicamente com um jovem a quem não é necessário juntar robustez e menos ainda a qualidade de lutador Nem por isso porém devo amesquinharme diante de seu desrespeito e de seu agravo trazendoos comigo de volta para casa sem um gesto ao menos de protesto É preciso que assumindo com gravidade a minha impotência na relação de poder entre mim e ele fique sublinhada sua covardia É necessário que ele saiba que eu sei que sua falta de valor ético o inferioriza É preciso que ele saiba que se físicamente pode golpearme e seus golpes me causam dor não tem contudo a força suficiente para dobrarme a seu arbítrio Sem bater fisicamente no educando o professor pode golpeálo impor lhe desgostos e prejudicálo no processo de sua aprendizagem A resistência 81 do professor por exemplo em respeitar a leitura de mundo com que o educando chega à escola obviamente condicionada por sua cultura de classe e revelada em sua linguagem também de classe se constitui um obstáculo à sua experiência de conhecimento Respeitar a leitura de mundo do educando como tenho insistido neste e em outros trabalhos saber escutálo não significa já deixei isto claro concordar com ela a leitura de mundo ou a ela se acomodar assumindoa como sua Respeitar a leitura de mundo do educando não é também um jogo tático com que o educador ou educadora procura tornarse simpático ao educando É a maneira correta que tem o educador de com o educando e não sobre ele tentar a superação de uma maneira mais ingênua por outra mais crítica de inteligir o mundo Respeitar a leitura de mundo do educando significa tomála como ponto de partida para a compreensão do papel da curiosidade de modo geral e da humana de modo especial como um dos impulsos fundantes da produção do conhecimento É preciso que ao respeitar a leitura de mundo do educando para ir mais além dela o educador deixe claro que a curiosidade fundamental à inteligibilidade do mundo é histórica e se dá na história se aperfeiçoa muda qualitativamente se faz metodicamente rigorosa E a curiosidade assim metodicamente rigorizada faz achados cada vez mais exatos No fundo o educador que respeita a leitura de mundo do educando reconhece a historicidade do saber o caráter histórico da curiosidade por isso mesmo recusando a arrogância cientificista assume a humildade crítica própria da posição verdadeiramente científica O desrespeito à leitura de mundo do educando revela o gosto elitista portanto antidemocrático do educador que por isso mesmo não escutando o educando com ele não fala Nele deposita seus comunicados Há algo ainda de real importância a ser discutido na reflexão sobre a recusa ou ao respeito à leitura de mundo do educando por parte do educador A leitura de mundo revela evidentemente a inteligência do mundo que vem cultural e socialmente se constituindo Revela também o trabalho individual de cada sujeito no próprio processo de assimilação da inteligência do mundo Uma das tarefas essenciais da escola como centro de produção sistemática de conhecimento é trabalhar criticamente a inteligibilidade das coisas e dos fatos e a sua comunicabilidade É imprescindível portanto que a escola instigue constantemente a curiosidade do educando em vez de 82 amaciála ou domesticála É preciso mostrar ao educando que o uso ingênuo da curiosidade altera a sua capacidade de achar e obstaculiza a exatidão do achado É preciso por outro lado e sobretudo que o educando vá assumindo o papel de sujeito da produção de sua inteligência do mundo e não apenas o de recebedor da que lhe seja transferida pelo professor Quanto mais me torno capaz de me afirmar como sujeito que pode conhecer tanto melhor desempenho minha aptidao para fazêlo Ninguém pode conhecer por mim assim como não posso conhecer pelo aluno O que posso e o que devo fazer na perspectiva progressista em que me acho é ao ensinarlhe certo conteúdo desafiálo a que se vá percebendo na e pela própria prática sujeito capaz de saber Meu papel de professor progressista não é apenas o de ensinar matemática ou biologia mas o de tratando a temática que é objeto de um lado de meu ensino de outro da aprendizagem do aluno ajudálo a reconhecerse como arquiteto de sua própria prática cognoscitiva Todo ensino de conteúdos demanda de quem se acha na posição de aprendiz que a partir de certo momento vá assumindo a autoria também do conhecimento do objeto O professor autoritário que se recusa a escutar os alunos se fecha a esta aventura criadora Nega a si mesmo a participação neste momento de boniteza singular o da afirmação do educando como sujeito de conhecimento É por isso que o ensino dos conteúdos criticamente realizado envolve a abertura total do professor ou da professora à tentativa legítima do educando para tomar em suas mãos a responsabilidade de sujeito que conhece Mais ainda envolve a iniciativa do professor que deve estimular aquela tentativa no educando ajudandoo para que a efetive É neste sentido que se pode afirmar ser tão errado separar prática de teoria pensamento de ação linguagem de ideologia quanto separar ensino de conteúdos de chamamento ao educando para que se vá fazendo sujeito do processo de aprendêlos Numa perspectiva progressista o que devo fazer é experimentar a unidade dinâmica entre o ensino do conteúdo e o ensino do que é e de como aprender É ensinando matemática que ensino também como aprender e como ensinar como exercer a curiosidade epistemológica indispensável à produção do conhecimento 37 ENSINAR EXIGE RECONHECER QUE A EDUCAÇÃO É IDEOLÓGICA 83 Saber igualmente fundamental à prática educativa do professor ou da professora é o que diz respeito à força às vezes maior do que pensamos da ideologia É o que nos adverte de suas manhas das armadilhas em que nos faz cair É que a ideologia tem que ver diretamente com a ocultação da verdade dos fatos com o uso da linguagem para penumbrar ou opacizar a realidade ao mesmo tempo em que nos torna míopes O poder da ideologia me faz pensar nessas manhãs orvalhadas de nevoeiro em que mal vemos o perfil dos ciprestes como sombras que parecem muito mais manchas das sombras mesmas Sabemos que há algo metido na penumbra mas não o divisamos bem A própria miopia que nos acomete dificulta a percepção mais clara mais nítida da sombra Mais séria ainda é a possibilidade que temos de docilmente aceitar que o que vemos e ouvimos é o que na verdade é e não a verdade distorcida A capacidade de penumbrar a realidade de nos miopizar de nos ensurdecer que tem a ideologia nos faz por exemplo a muitos de nós aceitar docilmente o discurso cinicamente fatalista neoliberal que proclama ser o desemprego no mundo uma desgraça do fim de século Ou que os sonhos morreram e que o válido hoje é o pragmatismo pedagógico é o treino técnicocientífico do educando e não sua formação de que já não se fala Formação que incluindo a preparação técnicocientífica vai mais além dela A capacidade de nos amaciar que tem a ideologia nos faz às vezes mansamente aceitar que a globalização da economia é uma invenção dela mesma ou de um destino que não se poderia evitar uma quase entidade metafísica e não um momento do desenvolvimento econômico submetido como toda produção econômica capitalista a uma certa orientação política ditada pelos interesses dos que detêm o poder Falase porém em globalização da economia como um momento necessário da economia mundial a que por isso mesmo não é possível escapar Universalizase um dado do sistema capitalista e um instante da vida produtiva de certas economias capitalistas hegemônicas como se o Brasil o México a Argentina devessem participar da globalização da economia da mesma forma que os Estados Unidos a Alemanha o Japão Pegase o trem no meio do caminho e não se discutem as condições anteriores e atuais das diferentes economias Nivelamse os patamares de deveres entre as distintas economias sem se considerarem as distâncias que separam os direitos dos fortes e o seu poder de usufruílos e a fraqueza dos débeis para exercer os seus direitos Se a globalização implica a superação de fronteiras a abertura sem restrições ao 84 livrecomércio acabese então quem não puder resistir Não se indaga por exemplo se em momentos anteriores da produção capitalista nas sociedades que lideram a globalização hoje elas eram tão radicais na abertura que consideram agora uma condição indispensável ao livrecomércio Exigem no momento dos outros o que não fizeram consigo mesmas Uma das eficácias de sua ideologia fatalista é convencer os prejudicados das economias submetidas de que a realidade é assim mesmo de que não há nada a fazer mas seguir a ordem natural dos fatos Pois é como algo natural ou quase natural que a ideologia neoliberal se esforça por nos fazer entender a globalização e não como uma produção histórica O discurso da globalização que fala em ética esconde porém que a sua é a ética do mercado e não a ética universal do ser humano pela qual devemos lutar bravamente se optamos na verdade por um mundo de gente O discurso da globalização astutamente oculta ou nela busca penumbrar a reedição intensificada ao máximo mesmo que modificada da medonha malvadez com que o capitalismo aparece na história O discurso ideológico da globalização procura disfarçar que ela vem robustecendo a riqueza de uns poucos e verticalizando a pobreza e a miséria de milhões O sistema capitalista alcança no neoliberalismo globalizante o máximo de eficácia de sua malvadez intrínseca Espero convencido de que chegará o tempo em que passada a estupefação em face da queda do muro de Berlim o mundo se refará e recusará a ditadura do mercado fundada na perversidade de sua ética do lucro Não creio que as mulheres e os homens do mundo independentemente até de suas opções políticas mas sabendosee assumindose como mulheres e homens como gente não aprofundem o que hoje já existe como uma espécie de malestar que se generaliza em face da maldade neoliberal Mal estar que terminará por consolidarse numa rebeldia nova em que a palavra crítica o discurso humanista o compromisso solidário a denúncia veemente da negação do homem e da mulher e o anúncio de um mundo genteficado serão armas de incalculável alcance Há um século e meio Marx e Engels gritavam em favor da união das classes trabalhadoras do mundo contra sua espoliação Agora necessária e urgente se fazem a união e a rebelião das gentes contra a ameaça que nos atinge a da negação de nós mesmos como seres humanos submetidos à fereza da ética do mercado 85 É neste sentido que jamais abandonei a minha preocupação primeira que sempre me acompanhou desde os começos de minha experiência educativa A preocupação com a natureza humana23 a que devo a minha lealdade sempre proclamada Antes mesmo de ler Marx já fazia minhas as suas palavras já fundava a minha radicalidade na defesa dos legítimos interesses humanos Nenhuma teoria da transformação políticosocial do mundo me comove sequer se não parte de uma compreensão do homem e da mulher enquanto seres fazedores da história e por ela feitos seres da decisão da ruptura da opção Seres éticos mesmo capazes de transgredir a ética indispensável algo de que tenho insistentemente falado neste texto Tenho afirmado e reafirmado o quanto realmente me alegra saberme um ser condicionado mas capaz de ultrapassar o próprio condicionamiento A grande força sobre que alicerçarse a nova rebeldia é a ética universal do ser humano e não a do mercado insensível a todo reclamo das gentes e apenas aberta à gulodice do lucro É a ética da solidariedade humana Prefiro ser criticado como idealista e sonhador inveterado por continuar sem relutar a apostar no ser humano a me bater por uma legislação que o defenda contra as arrancadas agressivas e injustas de quem transgride a própria ética A liberdade do comércio não pode estar acima da liberdade do ser humano A liberdade do comércio sem limite é licenciosidade do lucro Vira privilégio de uns poucos que em condições favoráveis robustece seu poder contra os direitos de muitos inclusive o direito de sobreviver Uma fábrica de tecido que fecha por não poder concorrer com os preços da produção asiática por exemplo significa não apenas o colapso econômico financeiro de seu proprietário que pode ter sido ou não um transgressor da ética universal humana mas também a expulsão de centenas de trabalhadores e trabalhadoras do processo de produção E suas famílias Insisto com a força que tenho e que posso juntar na minha veemente recusa a determinismos que reduzem a nossa presença na realidade históricosocial à pura adaptação a ela O desemprego no mundo não é como disse e tenho repetido uma fatalidade É antes o resultado de uma globalização da economia e de avanços tecnológicos a que vem faltando o dever ser de uma ética realmente a serviço do ser humano e não do lucro e da gulodice irrefreada das minorias que comandam o mundo O progresso científico e tecnológico que não responde fundamentalmente aos interesses humanos às necessidades da nossa existência perdem para mim sua significação A todo avanço tecnológico 86 haveria de corresponder o empenho real de resposta imediata a qualquer desafio que pusesse em risco a alegria de viver dos homens e das mulheres A um avanço tecnológico que ameaça milhares de mulheres e de homens de perder seu trabalho deveria corresponder outro avanço tecnológico que estivesse a serviço do atendimento das vítimas do progresso anterior Como se vê esta é uma questão ética e política e não tecnológica O problema me parece muito claro Assim como não posso usar minha liberdade de fazer coisas de indagar de caminhar de agir de criticar para esmagar a liberdade dos outros de fazer e de ser assim também não poderia ser livre para usar os avanços científicos e tecnológicos que levem milhares de pessoas à desesperança Não se trata acrescentemos de inibir a pesquisa e frear os avanços mas de pôlos a serviço dos seres humanos A aplicação de avanços tecnológicos com o sacrifício de milhares de pessoas é um exemplo a mais de quanto podemos ser transgressores da ética universal do ser humano e o fazemos em favor de uma ética pequena a do mercado a do lucro Entre as transgressões à ética universal do ser humano sujeitas à penalidade deveria estar a que implicasse a falta de trabalho a um sem número de gentes a sua desesperação e a sua morte em vida A preocupação por isso mesmo com a formação técnicoprofissional capaz de reorientar a atividade prática dos que foram postos entre parênteses teria de multiplicarse Gostaria de deixar bem claro que não apenas imagino mas sei quão difícil é a aplicação de uma política do desenvolvimento humano que assim privilegie fundamentalmente o homem e a mulher e não apenas o lucro Mas sei também que se pretendemos realmente superar a crise em que nos achamos o caminho ético se impõe Não creio em nada sem ele ou fora dele Se de um lado não pode haver desenvolvimento sem lucro este não pode ser por outro o objetivo do desenvolvimento de que o fim último seria o gozo imoral do investidor De nada vale a não ser enganosamente para uma minoria que terminaria fenecendo também uma sociedade eficazmente operada por máquinas altamente inteligentes substituindo mulheres e homens em atividades as mais variadas e milhões de Marias e Pedros sem ter o que fazer E este é um risco muito concreto que corremos24 Não creio também que a política a dar carne a este espírito ético possa jamais ser a ditatorial contraditoriamente de esquerda ou coerentemente de direita O caminho autoritário já é em si uma contravenção à natureza 87 inquietamente indagadora buscadora de homens e de mulheres que se perdem se perdem a liberdade É exatamente por causa de tudo isso que como professor devo estar advertido do poder do discurso ideológico começando pelo que proclama a morte das ideologias Na verdade só ideologicamente posso matar as ideologias mas é possível que não perceba a natureza ideológica do discurso que fala de sua morte No fundo a ideologia tem um poder de persuasão indiscutível O discurso ideológico nos ameaça de anestesiar a mente de confundir a curiosidade de distorcer a percepção dos fatos das coisas dos acontecimentos Não podemos escutar sem um mínimo de reação crítica discursos como estes O negro é geneticamente inferior ao branco É uma pena mas é isso o que a ciência nos diz Em defesa de sua honra o marido matou a mulher Que poderíamos esperar deles uns baderneiros invasores de terra Essa gente é sempre assim damoslhe os pés e logo quer as mãos Nós já sabemos o que o povo quer e do que precisa Perguntarlhe seria uma perda de tempo O saber erudito a ser entregue às massas incultas é a sua salvação Maria é negra mas é bondosa e competente Esse sujeito é um bom cara É nordestino mas é sério e prestimoso Você sabe com quem está falando Que vergonha homem casar com homem mulher casar com mulher É isso você vai se meter com gentinha é o que dá 88 Quando negro não suja na entrada suja na saída O governo tem que investir mesmo é nas áreas onde mora gente que paga imposto Você não precisa pensar Vote em fulano que pensa por você Você desempregado seja grato Vote em quem ajudou você Vote em fulano de tal Está se vendo pela cara que se trata de gente fina de trato que tomou chá em pequeno e não de um pérapado qualquer O professor falou sobre a Inconfidência Mineira O Brasil foi descoberto por Cabral No exercício crítico de minha resistência ao poder manhoso da ideologia vou gerando certas qualidades que vão virando sabedoria indispensável à minha prática docente A necessidade desta resistência crítica por exemplo me predispõe de um lado a uma atitude sempre aberta aos demais aos dados da realidade de outro a uma desconfiança metódica que me defende de tornarme absolutamente certo das certezas Para me resguardar das artimanhas da ideologia não posso nem devo me fechar aos outros nem tampouco me enclausurar no ciclo de minha verdade Pelo contrário o melhor caminho para guardar viva e desperta a minha capacidade de pensar certo de ver com acuidade de ouvir com respeito por isso de forma exigente é me deixar exposto às diferenças é recusar posições dogmáticas em que me admita como proprietário da verdade No fundo a atitude correta de quem não se sente dono da verdade nem tampouco objeto acomodado do discurso alheio que lhe é autoritariamente feito Atitude correta de quem se encontra em permanente disponibilidade a tocar e a ser tocado a perguntar e a responder a concordar e a discordar Disponibilidade à vida e a seus contratempos Estar disponível é estar sensível aos chamamentos que nos chegam aos sinais mais diversos que nos apelam ao canto do pássaro à chuva que cai ou que se anuncia na nuvem 89 escura ao riso manso da inocência à cara carrancuda da desaprovação aos braços que se abrem para acolher ou ao corpo que se fecha na recusa É na minha disponibilidade permanente à vida a que me entrego de corpo inteiro pensar crítico emoção curiosidade desejo que vou aprendendo a ser eu mesmo em minha relação com o contrário de mim E quanto mais me dou à experiência de lidar sem medo sem preconceito com as diferenças tanto melhor me conheço e construo meu perfil 38 ENSINAR EXIGE DISPONIBILIDADE PARA O DIÁLOGO Nas minhas relações com os outros que não fizeram necessariamente as mesmas opções que fiz no nível da política da ética da estética da pedagogia nem posso partir de que devo conquistálos não importa a que custo nem tampouco temo que pretendam conquistarme É no respeito às diferenças entre mim e eles ou elas na coerência entre o que faço e o que digo que me encontro com eles ou com elas É na minha disponibilidade à realidade que construo a minha segurança indispensável à própria disponibilidade É impossível viver a disponibilidade à realidade sem segurança mas é impossível também criar a segurança fora do risco da disponibilidade Como professor não devo poupar oportunidade para testemunhar aos alunos a segurança com que me comporto ao discutir um tema ao analisar um fato ao expor minha posição em face de uma decisão governamental Minha segurança não repousa na falsa suposição de que sei tudo de que sou o maior Minha segurança se funda na convicção de que sei algo e de que ignoro algo a que se junta a certeza de que posso saber melhor o que já sei e conhecer o que ainda não sei Minha segurança se alicerça no saber confirmado pela própria experiência de que se minha inconclusão de que sou consciente atesta de um lado minha ignorância me abre de outro o caminho para conhecer Me sinto seguro porque não há razão para me envergonhar por desconhecer algo Testemunhar a abertura aos outros a disponibilidade curiosa à vida a seus desafios são saberes necessários à prática educativa Viver a abertura respeitosa aos outros e de quando em vez de acordo com o momento tomar a própria prática de abertura ao outro como objeto da reflexão crítica deveria fazer parte da aventura docente A razão ética da 90 abertura seu fundamento político sua referência pedagógica a boniteza que há nela como viabilidade do diálogo A experiência da abertura como experiência fundante do ser inacabado que terminou por se saber inacabado Seria impossível saberse inacabado e não se abrir ao mundo e aos outros à procura de explicação de respostas a múltiplas perguntas O fechamento ao mundo e aos outros se torna transgressão ao impulso natural da incompletude O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade como inconclusão em permanente movimento na história Certa vez numa escola da rede municipal de São Paulo que realizava uma reunião de quatro dias com professores e professoras de dez escolas da área para planejar em comum suas atividades pedagógicas visitei uma sala em que se expunham fotografías das redondezas da escola Fotografias de ruas enlameadas de ruas bempostas também Fotografías de recantos feios que sugeriam tristeza e dificuldades Fotografias de corpos andando com dificuldade lentamente alquebrados de caras desfeitas de olhar vago Um pouco atrás de mim dois professores faziam comentários em torno do que lhes tocava mais de perto De repente um deles afirmou Há dez anos ensino nesta escola Jamais conheci nada de sua redondeza além das ruas que lhe dão acesso Agora ao ver esta exposição25 de fotografias que nos revelam um pouco de seu contexto me convenço de quão precária deve ter sido a minha tarefa formadora durante todos estes anos Como ensinar como formar sem estar aberto ao contorno geográfico social dos educandos A formação dos professores e das professoras devia insistir na constituição deste saber necessário e que me faz certo desta coisa óbvia que é a importância inegável que tem sobre nós o contorno ecológico social e econômico em que vivemos E ao saber teórico desta influência teríamos que juntar o saber teóricoprático da realidade concreta em que os professores trabalham Já sei não há dúvida que as condições materiais em que e sob que vivem os educandos lhes condicionam a compreensão do próprio mundo sua capacidade de aprender de responder aos desafios Preciso agora saber ou abrirme à realidade desses alunos com quem partilho a minha atividade pedagógica Preciso tornarme se não absolutamente íntimo de sua forma de estar sendo no mínimo menos estranho e distante dela E a diminuição de minha estranheza ou de minha distância da realidade hostil em que vivem meus alunos não é uma questão de pura 91 geografia Minha abertura à realidade negadora de seu projeto de gente é uma questão de real adesão de minha parte a eles e a elas a seu direito de ser Não é me mudando para uma favela que provarei a eles e a elas minha verdadeira solidariedade política sem falar ainda na quase certa perda de eficácia de minha luta em função da mudança mesma O fundamental é a minha decisão éticopolítica minha vontade nada piegas de intervir no mundo É o que Amílcar Cabral chamou suicídio de classe e a que me referi na Pedagogia do oprimido como páscoa ou travessia No fundo diminuo a distância que me separa das condições malvadas em que vivem os explorados quando aderindo realmente ao sonho de justiça luto pela mudança radical do mundo e não apenas espero que ela chegue porque se disse que chegará Diminuo a distância entre mim e a dureza de vida dos explorados não com discursos raivosos sectários que só não são ineficazes porque dificultam mais ainda a minha comunicação com os oprimidos Com relação a meus alunos diminuo a distância que me separa de suas condições negativas de vida na medida em que os ajudo a aprender não importa que saber o do torneiro ou o do cirurgião com vistas à mudança do mundo à superação das estruturas injustas jamais com vistas a sua imobilização O saber alicerçante da travessia na busca da diminuição da distância entre mim e a perversa realidade dos explorados é o saber fundado na ética de que nada legitima a exploração dos homens e das mulheres pelos homens mesmos ou pelas mulheres Mas este saber não basta Em primeiro lugar é preciso que ele seja permanentemente tocado e empurrado por uma calorosa paixão que o faz quase um saber arrebatado É preciso também que a ele se somem saberes outros da realidade concreta da força da ideologia saberes técnicos em diferentes áreas como a da comunicação Como desocultar verdades escondidas como desmistificar a farsa ideológica espécie de arapuca atraente em que facilmente caímos Como enfrentar o extraordinário poder da mídia da linguagem da televisão de sua sintaxe que reduz a um mesmo plano o passado e o presente e sugere que o que ainda não há já está feito Mais ainda que diversifica temáticas no noticiário sem que haja tempo para a reflexão sobre os variados assuntos De uma notícia sobre Miss Brasil se passa a um terremoto na China de um escândalo envolvendo mais um banco dilapidado por diretores inescrupulosos temos cenas de um trem que descarrilou em Zurique O mundo encurta o tempo se dilui o ontem vira agora o amanhã já está feito Tudo muito rápido 92 Debater o que se diz o que se mostra e como se mostra na televisão me parece algo cada vez mais importante Como educadores e educadoras progressistas não apenas não podemos desconhecer a televisão mas devemos usála sobretudo discutila Não temo parecer ingênuo ao insistir não ser possível pensar sequer em televisão sem ter em mente a questão da consciência crítica É que pensar em televisão ou na mídia em geral nos põe o problema da comunicação processo impossível de ser neutro Na verdade toda comunicação é comunicação de algo feita de certa maneira em favor ou na defesa sutil ou explícita de algum ideal contra algo e contra alguém nem sempre claramente referido Daí também o papel apurado que joga a ideologia na comunicação ocultando verdades mas também a própria ideologização no processo comunicativo Seria uma santa ingenuidade esperar de uma emissora de televisão do grupo do poder dominante que noticiando uma greve de metalúrgicos dissesse que seu comentário se funda nos interesses patronais Pelo contrário seu discurso se esforçaria para convencer que sua análise da greve leva em consideração os interesses da nação Não podemos nos pôr diante de um aparelho de televisão entregues ou disponíveis ao que vier Quanto mais nos sentamos diante da televisão há situações de exceção como quem em férias se abre ao puro repouso e entretenimento tanto mais risco corremos de tropeçar na compreensão de fatos e de acontecimentos A postura crítica e desperta nos momentos necessários não pode faltar O poder dominante entre muitas leva mais uma vantagem sobre nós É que para enfrentar o ardil ideológico de que se acha envolvida a sua mensagem na mídia seja nos noticiários nos comentários aos acontecimentos ou na linha de certos programas para não falar na propaganda comercial nossa mente ou nossa curiosidade teria de funcionar epistemologicamente todo o tempo E isso não é fácil Mas se não é fácil estar permanentemente em estado de alerta é possível saber que não sendo um demônio que nos espreita para nos esmagar o televisor diante do qual nos achamos não é tampouco um instrumento que nos salva Talvez seja melhor contar de um a dez antes de fazer a afirmação categórica a que Wright Mills26 se refere É verdade ouvi no noticiário das vinte horas 39 ENSINAR EXIGE QUERER BEM AOS EDUCANDOS 93 E que dizer mas sobretudo que esperar de mim se como professor não me acho tomado por este outro saber o de que preciso estar aberto ao gosto de querer bem às vezes à coragem de querer bem aos educandos e à própria prática educativa de que participo Esta abertura ao querer bem não significa na verdade que porque professor me obrigo a querer bem a todos os alunos de maneira igual Significa de fato que a afetividade não me assusta que não tenho medo de expressála Significa esta abertura ao querer bem a maneira que tenho de autenticamente selar o meu compromisso com os educandos numa prática específica do ser humano Na verdade preciso descartar como falsa a separação radical entre seriedade docente e afetividadeNão é certo sobretudo do ponto de vista democrático que serei tão melhor professor quanto mais severo mais frio mais distante e cinzento me ponha nas minhas relações com os alunos no trato dos objetos cognoscíveis que devo ensinar A afetividade não se acha excluída da cognoscibilidade O que não posso obviamente permitir é que minha afetividade interfira no cumprimento ético de meu dever de professor no exercício de minha autoridade Não posso condicionar a avaliação do trabalho escolar de um aluno ao maior ou menor bemquerer que tenha por ele A minha abertura ao querer bem significa a minha disponibilidade à alegria de viver Justa alegria de viver que assumida plenamente não permite que me transforme num ser adocicado nem tampouco num ser arestoso e amargo A atividade docente de que a discente não se separa é uma experiência alegre por natureza É falso também tomar como inconciliáveis seriedade docente e alegria como se a alegria fosse inimiga da rigorosidade Pelo contrário quanto mais metodicamente rigoroso me torno na minha busca e na minha docência tanto mais alegre me sinto e esperançoso também A alegria não chega apenas no encontro do achado mas faz parte do processo da busca E ensinar e aprender não podem darse fora da procura fora da boniteza e da alegria O desrespeito à educação aos educandos aos educadores e às educadoras corrói ou deteriora em nós de um lado a sensibilidade ou a abertura ao bemquerer da própria prática educativa de outro a alegria necessária ao quefazer docente É digna de nota a capacidade que tem a experiência pedagógica para despertar estimular e desenvolver em nós o gosto de querer bem e o gosto da alegria sem a qual a prática educativa perde o sentido É esta força misteriosa às vezes chamada vocação 94 que explica a quase devoção com que a grande maioria do magistério nele permanece apesar da imoralidade dos salários E não apenas permanece mas cumpre como pode seu dever Amorosamente acrescento Mas é preciso sublinho que permanecendo e amorosamente cumprindo o seu dever não deixe de lutar politicamente por seus direitos e pelo respeito à dignidade de sua tarefa assim como pelo zelo devido ao espaço pedagógico em que atua com seus alunos É preciso por outro lado reinsistir em que não se pense que a prática educativa vivida com afetividade e alegria prescinda da formação científica séria e da clareza política dos educadores ou educadoras A prática educativa é tudo isso afetividade alegria capacidade científica domínio técnico a serviço da mudança ou lamentavelmente da permanência do hoje É exatamente esta permanência do hoje neoliberal que a ideologia contida no discurso da morte da história propõe Permanência do hoje a que o futuro desproblematizado se reduz Daí o caráter desesperançoso fatalista antiutópico de uma tal ideologia em que se forja uma educação friamente tecnicista e se requer um educador exímio na tarefa de acomodação ao mundo e não na de sua transformação Um educador com muito pouco de formador com muito mais de treinador de transferidor de saberes de exercitador de destrezas Os saberes de que este educador pragmático necessita na sua prática não são os de que venho falando neste livro A mim não me cabe falar deles os saberes necessários ao educador pragmático neoliberal mas denunciar sua atividade antihumanista Outro saber de que o educador progressista precisa estar convencido como de suas consequências é o de ser o seu trabalho uma especificidade humana Já vimos que a condição humana fundante da educação é precisamente a inconclusão de nosso ser histórico de que nos tornamos conscientes Nada que diga respeito ao ser humano à possibilidade de seu aperfeiçoamento físico e moral de sua inteligência sendo produzida e desafiada os obstáculos a seu crescimento o que possa fazer em favor da boniteza do mundo como de seu enfeamento a dominação a que esteja sujeito a liberdade por que deve lutar nada que diga respeito aos homens e às mulheres pode passar despercebido pelo educador progressista Não importa com que faixa etária trabalhe o educador ou a educadora O nosso é um trabalho realizado com gente miúda jovem ou adulta mas gente em permanente processo de busca Gente formandose mudando 95 crescendo reorientandose melhorando mas porque gente capaz de negar os valores de distorcerse de recuar de transgredir Não sendo superior nem inferior a outra prática profissional a minha que é a prática docente exige de mim um alto nível de responsabilidade ética de que a minha própria capacitação científica faz parte É que lido com gente Lido por isso mesmo independentemente do discurso ideológico negador dos sonhos e das utopias com os sonhos as utopias e os desejos as frustrações as intenções as esperanças tímidas às vezes mas às vezes fortes dos educandos Se não posso de um lado estimular os sonhos impossíveis não devo de outro negar a quem sonha o direito de sonhar Lido com gente e não com coisas E porque lido com gente não posso por mais que inclusive me dê prazer entregarme à reflexão teórica e crítica em torno da própria prática docente e discente recusar a minha atenção dedicada e amorosa à problemática mais pessoal deste ou daquele aluno ou aluna Desde que não prejudique o tempo normal da docência não posso fecharme a seu sofrimento ou a sua inquietação porque não sou terapeuta ou assistente social Mas sou gente O que não posso por uma questão de ética e de respeito profissional é pretender passar por terapeuta Não posso negar a minha condição de gente de que se alonga pela minha abertura humana uma certa dimensão terápica É convencido disto que desde jovem sempre marchei de minha casa para o espaço pedagógico onde encontro os alunos com quem comparto a prática educativa Foi sempre como prática de gente que entendi o quefazer docente De gente inacabada de gente curiosa inteligente de gente que pode saber que pode por isso ignorar de gente que não podendo passar sem ética se tornou contraditoriamente capaz de transgredila Mas se nunca idealizei a prática educativa se em tempo algum a vi como algo que pelo menos parecesse com um quefazer de anjos jamais foi fraca em mim a certeza de que vale a pena lutar contra os descaminhos que nos obstaculizam de Ser Mais Naturalmente o que de maneira permanente me ajudou a manter esta certeza foi a compreensão da história como possibilidade e não como determinismo de que decorre necessariamente a importância do papel da subjetividade na história a importância da capacidade de comparar de analisar de avaliar de decidir de romper e por isso tudo a importância da ética e da política 96 É esta percepção do homem e da mulher como seres programados mas para aprender e portanto para ensinar para conhecer para intervir que me faz entender a prática educativa como um exercício constante em favor da produção e do desenvolvimento da autonomia de educadores e educandos Como prática estritamente humana jamais pude entender a educação como uma experiência fria sem alma em que os sentimentos e as emoções os desejos os sonhos devessem ser reprimidos por uma espécie de ditadura racionalista Nem tampouco jamais compreendi a prática educativa como uma experiência a que faltasse o rigor em que se gera a necessária disciplina intelectual Estou convencido porém de que a rigorosidade a séria disciplina intelectual o exercício da curiosidade epistemológica não me fazem necessariamente um ser malamado arrogante cheio de mim mesmo Ou em outras palavras não é a minha arrogância intelectual a que fala de minha rigorosidade científica Nem a arrogância é sinal de competência nem a competência é causa de arrogância Não nego a competência por outro lado de certos arrogantes mas lamento neles a ausência de simplicidade que não diminuindo em nada seu saber os faria gente melhor Gente mais gente 97 Notas 21 cf Id pedagogia da esperança 22 cf Id pedagogia do oprimido 23 Cf Paulo Freire pedagogia da esperança cartas a cristina e pedagogia do oprimido 24 Joseph Moermann La globalization de leconomie provoqueratelle un mai 68 mondial La marmite mondiale sous pression Le courrier 08 de abril de 1996 suíça 25 As fotos que compunham a exposicao haviam sido feitas por um grupo de professoras da area 26 Wright Mills La élite del poder México Fondo de Cultura Económica 1945 98 COORDENAÇÃO EDITORIAL Izabel Aleixo PRODUÇÃO EDITORIAL Hugo Langone Mariana Elia REVISÃO Mariana Oliveira Eduardo Carneiro PROJETO GRÁFICO Priscila Cardoso DIAGRAMAÇÃO DA VERSÃO IMPRESSA Trio Studio PAZ E TERRA 99 Este ebook foi desenvolvido em formato ePub pela Distribuidora Record de Serviços de Imprensa SA 100