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Cinema e Audiovisual ·

Antropologia Social

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145 TEORIAE SOCIEDADE Número Especial Antropologias e Arqueologias hoje Edifício MastEr parEdEs janElas E vida social AnA LúciA Modesto rEsuMo O presente trabalho toma como objeto de análise o documentário Edifício Master de Eduardo Cou tinho Brasil 2002 Mudando o objetivo inicial que era filmar uma semana na vida de um prédio no bairro carioca de Copacabana o diretor preencheu o filme com depoimentos dos moradores que nar ram os fatos que julgam importantes em sua vida Primeiramente a importância que as histórias de vida de pessoas comuns da baixa classe média em que não há nada de heroico ou fabuloso sendo contado exerceram sobre o diretor e públi co receptor motivou meu estudo em busca da com preensão desse efeito Em segundo lugar há uma reflexão sobre o uso do documentário no levanta mento de histórias de vida Por último é o próprio método de levantamento de narrativas biográficas que se transforma no foco do trabalho através de uma pequena reflexão baseada no estudo do docu mentário sobre sua importância na Antropologia principalmente para os que investigam a vida me tropolitana palavraschavE Edifício Master o filme biografia antropologia urbana Edifício MastEr parEdEs janElas E vida social 146 introdução A primeira imagem foi gravada pela câmera de segurança do prédio A equipe de produção entra pelo portão Como em geral o espectador1 está acostumado a ver cenas gravadas por câmeras de segurança em reportagens sobre crimes há aumento da sen sação de que algo anormal acontece no edifício Isso é coerente com a visão do diretor que chama a si mesmo e a sua equipe de invasores2 Ao fundo escutamse as conversas entre os membros da equipe Parte da equipe entra no pequeno elevador São cinco pes soas e duas câmeras Uma terceira câmera fica do lado de fora e filma quando a porta do elevador se fecha Agora o espectador vê imagens dos corredores vazios do prédio Há uma certa sensação de claustrofobia Uma voz em off anuncia Um edifício em Copacabana a uma esquina da praia Duzentos e setenta e seis apartamentos conjugados Doze andares Vinte e três apartamentos por andar Uns quinhentos moradores Três equipes Alugamos um apartamento por um mês para mostrar a vida do prédio em uma semana O título do filme e a apresentação fazem com que o espectador por causa de sua experiência profissional relacione o documentário à obra A Utopia Urbana do antropó logo Gilberto Velho 1973 que realizou uma pesquisa em um edifício de Copacabana de apartamentos conjugados para saber por que as pessoas abriam mão da oportunidade de viver numa casa com jardim e quintal para residir em um conjugado de quarenta metros quadrados aproximadamente A impressão é a de que o filme é diretamente ins pirado na obra de Velho No entanto nos comentários não há nenhuma referência ao livro citado Em razão de seu objetivo Velho conduziu as entrevistas para a questão principal verificando que há uma estratificação no imaginário do espaço urbano e do grupo de pessoas que ele classifica como white collar seguindo a terminologia sociológica ame ricana ou estrato médio urbano As entrevistas são feitas para demonstrar que os valores que estão presentes nesse estrato social levam os moradores a escolherem a vida em um bairro considerado então como o mais moderno aquele em que há mais liberdade diversão comércio e principalmente em um endereço que atestaria por si mesmo o sta tus social do indivíduo como pertencente à classe média Apesar das condições precárias de moradia para os habitantes o bairro é um símbolo de superioridade social o que compensa qualquer malestar físico 1 Sempre que a palavra espectador for utilizada ela se refere à autora do texto 2 Essa palavra é utilizada pelo próprio diretor nos comentários que acompanham o DVD 147 TEORIAE SOCIEDADE Número Especial Antropologias e Arqueologias hoje Eduardo Coutinho não faz qualquer menção ao trabalho de Gilberto Velho e ex plica sua vontade de fazer um filme em um edifício em Copacabana pela possibilidade de fazer uma mudança em relação às obras filmadas por ele até então Acostumado com o trabalho em comunidades pobres ele escolheu mudar seu foco para um espaço fechado um prédio de classe média que classifica como um estrato social pelo qual os intelectuais sentem horror Foram feitas três semanas de pesquisa ou seja entrevistas em que fo ram selecionados os personagens do filme Cada um recebeu um cachê de cinquenta reais e as gravações foram feitas em uma semana Ao contrário das intenções iniciais que saíram até gravadas no início do filme Eduardo Coutinho não gravou a vida do prédio em uma semana Ele ocupou todo o tem po do documentário com entrevistas dos moradores vendo nesse material biográfico algo mais interessante do que tinha pensado no início Embora tenha deixado uma ter ceira câmera para mostrar a entrada do prédio imagens da praia e episódios cotidianos essas imagens foram cortadas na montagem final A terceira câmera só foi usada no iní cio para gravar a entrada da equipe e a entrevista com o administrador do prédio Apesar das contradições em relação ao roteiro original o diretor se mostrou muito satisfeito com a segunda escolha na qual os moradores falam sobre suas vidas A variedade de depoi mentos ou seja de pessoas com trajetórias diferentes morando em um mesmo lugar encantou o diretor e o espectador também A decisão de Eduardo Coutinho e a reação positiva do espectador ao documentário chamaram minha atenção para o fato de que a simples sequência de narrativas de vida sem qualquer ação nem mesmo da câmera que se reduz à função de captar cabeças fa lantes na maior parte do tempo se torna algo atraente para as pessoas Principalmente porque o grupo entrevistado não tem nada de exótico ou singular Um filme sobre pes soas como você e eu diz a frase na embalagem do DVD que poderia ser até considerada negativa para a comercialização Mas com quase duas horas de duração o documentário chama a atenção Vendo a reação fantástica que o filme tem sobre os meus alunos em aulas de Antropologia Urbana percebi que as narrativas de vida de moradores de gran des cidades que demonstram a diversidade humana do que normalmente é visto como uma multidão de seres homogêneos são uma atividade científica que pode ter um efeito semelhante ao trabalho do etnógrafo em outras sociedades Por isso resolvi estudar o filme procurando ver as possíveis razões de seu efeito sobre o público e em que medida ele pode contribuir para a etnografia de narrativas de vida Edifício MastEr parEdEs janElas E vida social 148 o docuMEntário concEito utilizado Falar em personagens quando há referência aos moradores pessoas reais pode dar um ar de ficção ao documentário Eduardo Coutinho observa que as pessoas se rein ventaram para a gravação em relação à pesquisa inicial acrescentaram e omitiram fatos antes citados Na visão do diretor a câmera estimula as pessoas a falarem de suas biogra fias e aumenta suas autoestimas Isso ficará claro no caso de um depoimento em que um morador agradece pela oportunidade de falar de sua infância sofrida Dentro das Ciên cias Sociais usamos expressões ao falar do indivíduo que o aproximam do personagem teatral Assim a expressão de Coutinho não contraria nossa noção de pessoa palavra que veio do próprio teatro ao contrário ela torna mais elegante nossa atuação em sociedade nós nos reinventamos em determinadas situações O conceito de documentário aqui utilizado foi retirado da obra de Noel Carrol 2005 Após discorrer sobre as dificuldades teóricas de separação entre documentário e filme de ficção Carrol aponta para uma posição neorretórica colocando como fator determinante a perspectiva do autor ao realizar sua obra No caso do documentário o autor 2005 91 o define como um filme de asserção pressuposta o que envolve uma intenção de sentido por parte do cineasta que fornece a base para compreensão dos sen tidos para o público assim como uma intenção assertiva por parte do cineasta que serve como base para a adoção de uma postura assertiva do público O cineasta pode inserir imagens que não reproduzem o real em sentido imediato quando por exemplo se refe re a fatos passados não registrados em filmes Mas sua postura é de comprometimento com a verdade ou a verossimilhança contanto que respeite os padrões de evidência e de argumentação exigidos para fundamentar a verdade ou a plausibilidade do conteúdo proposicional que apresenta Carrol 2005 89 O esforço de Carrol e outros se dá na busca de uma classificação teórica na prática o mercado já produz uma divisão o que vai influenciar o olhar do público e separar fantasia e realidade No caso do filme de Eduardo Coutinho há um detalhe interessante ele coloca um objetivo no início da narração e depois realiza um trabalho diferente Isso porém não quebra a posição assertiva do público O espectador percebe a mudança ocorrida mas para ele isso não compromete a plausibilidade do filme Quando se torna ciente dos mo tivos do diretor o espectador concorda com ele o conteúdo do filme é mais interessante do que imagens da Praia de Copacabana ou uma discussão na frente do prédio 149 TEORIAE SOCIEDADE Número Especial Antropologias e Arqueologias hoje o prédio E sua transforMação Vera Vim para aqui com um ano Já morei no 803 no 715 no 714 306 mo rei no 117 Vinte e oito apartamentos A nossa vida era de cigano mas sempre dentro do edifício Vou falar primeiro de uma maneira geral Aqui já foi um antro de perdição muito pesado Houve suicídios houve morte de porteiros houve assas sinatos Nos corredores havia pessoas caídas havia filas de homens e mulheres esperando a outra pessoa sair para ele entrar houve muitas cafetinas Depois vieram as mortes naturais Que eu me lembro a do 608 onde vocês estão morreu uma amiga minha Agora não Agora aqui é um prédio familiar Corte A câmera se aproxima da sala de administração do prédio Há uma mesa onde quatro pessoas conversam Seus olhares se voltam para a equipe de câmera que avança e entra numa salinha na qual o espectador avista Sérgio um senhor que fala com muita desenvoltura sempre procurando demonstrar sua autoridade Ele recebe a equipe com um sorriso Sejam bemvindos à sala de administração Corte Sou feliz porque estou aqui desde 8 do 4 de 97 e a minha gestão foi reeleita em março até 2003 Corte Espero fazer muito mais O meu objetivo não é digamos assim Eu queria deixar o prédio bonito decente graças a Deus eu consegui Eu ouço muito Piaget mas quando não dá eu passo para o Pinochet E é uma realidade Como diz o outro a re alidade é a morte das ilusões Eu dou muito amor E quero receber muito amor Mas essas coisas não se exige Se cativam Nas duas primeiras entrevistas já aparecem os primeiros sinais sobre a proficui dade do uso do documentário para a filmagem de narrativas de histórias de vida As palavras pronunciadas são acompanhadas de pequenas transformações faciais gestos modos de olhar e tons de voz os quais acrescentam significados à fala Vera conta os fatos negativos do passado em um tom confessional como quem está falando mal de alguém que está próximo ou pode chegar a qualquer momento É uma verdade que diz mas não quer ferir ninguém Eu poderia continuar aqui tentando descrever nuances e levantando hipóteses como ela tem intimidade com o prédio e está contando seu passado sujo Mas o que importa agora não é explicar sua postura mas descrever sua forma de falar Sua imagem facial Isso só um grande escritor conseguiria A imagem permite essa aná lise O mesmo no caso do Sérgio com sua filosofia unindo PiagetPinochet sua confissão que só quer receber amor São personagens para serem vistos A leitura da narrativa Edifício MastEr parEdEs janElas E vida social 150 deixa escapar a possibilidade de análise mais completa do depoimento e do narrador Isso fica mais nítido no próximo depoimento o de Maria do Céu Ele faz uma descrição da fase primeira do prédio no estilo cômico Sua risada é contagiante É uma daquelas pessoas que fala completando as palavras com os gestos Transpor suas pala vras simplesmente não demonstraria sua diversão ao falar dos velhos tempos Fica tam bém a impressão escutando e vendo sua declaração que ela também se divertia com a desordem do prédio Vendo por exemplo homens descendo por cordas quando chegava a rádio patrulha Ou seu prazer com a troca de notícias da madrugada anterior uma brin cadeira que ela mantinha com uma amiga em que faziam as reportagens A desordem do prédio narrada pelos dois primeiros entrevistados ganha agora um ar carnavalesco e transmite uma sensação que as pessoas pelo menos alguns mo radores se divertiam com isso Depois quando fala que tudo mudou com a eleição de Sérgio para administrador ela muda de expressão fica séria Demonstra tristeza quando fala do quanto o administrador sofreu Mas essa mudança também parece uma tristeza devido a uma nova ordem que não seria divertida De qualquer forma a representação fílmica permite principalmente hoje com os aparelhos domésticos de reprodução ques tionar e refletir sobre o rosto do outro e nos encoraja a uma leitura que alcance o incons ciente da personagem Individualmente podemos apenas reunir duas subjetividades uma exposta e uma segunda que quer conhecer a outra mas tem apenas os caminhos incertos de sua intuição Mas um estudo coletivo pode levar a conclusões objetivas O uso do documentário também permite que as pessoas discutam essas impres sões do espectador Sei que a filmagem de uma narrativa de uma história de vida pelo seu valor econômico não pode ser apontada como uma prática de pesquisa sempre ao dispor de quem pretende levantar biografias Mas entendo que a possibilidade desta ser utilizada quando possível deixa um objeto precioso para aprofundar os estudos no cam po o preparo de pesquisadores e a possibilidade também de apresentação de trabalho em congressos etc O Edifício Master não é uma narrativa da vida são várias histórias contadas e condensadas mas ele deixa para a Antropologia Urbana também uma forma de captar a vida social na metrópole o que complementa muitos trabalhos já realizados e abre espaço para a discussão da condição do indivíduo de uma maneira mais complexa Além disso o documentário é ótimo para enriquecer discussões ou provocálas 151 TEORIAE SOCIEDADE Número Especial Antropologias e Arqueologias hoje WaltEr BEnjaMin E as transforMaçõEs da pErcEpção huMana coM o cinEMa O objetivo aqui é propor o uso dos documentários em trabalhos científicos como uma forma de aprimorar a percepção do outro e sua história de vida da mesma forma que a leitura de romances pode ajudar o etnógrafo na observação e descrição de outra cultura Walter Benjamin além de escrever sobre as mudanças que o romance moder no provocou na formação de um novo tipo de leitor também escreveu muito sobre as mudanças que o cinema provocou na ciência da percepção que os gregos chamavam de estética 1994 194 Peço licença para reproduzir uma longa citação de Benjamin sobre as mudanças inconscientes que o cinema introduziu no olhar cotidiano e que podem ser otimizadas se usarmos documentários como objeto de estudo e instrumento de pesquisa Nossos cafés e nossas e nossas ruas nossos escritórios e nossos quartos alu gados nossas estações e nossas fábricas pareciam aprisionarnos inapelavelmente Veio então o cinema que fez explodir esse universo carcerário com a dinamite de seus décimos de segundos permitindonos empreender viagens aventurosas entre as ruínas arremessadas à distância O espaço se amplia no grande plano o movi mento se torna mais vagaroso com a câmera lenta É evidente pois que a natureza que se dirige à câmera não é a mesma que se dirige ao olhar A diferença está princi palmente no fato de que o espaço em que o homem age conscientemente é substitu ído por outro em que sua atuação é inconsciente Se podemos perceber o caminhar de uma pessoa por exemplo ainda que em seus grandes traços nada sabemos em compensação sobre sua atitude na fração de segundo em que se dá um passo Aqui intervém a câmera com seus inúmeros recursos auxiliares Suas imersões e emersões suas interrupções e seus isolamentos suas extensões e suas acelerações suas ampliações e suas miniaturizações Ela nos abre pela primeira vez a experiên cia do inconsciente ótico do mesmo modo que a psicanálise a experiência do nosso inconsciente pulsional Benjamin 1994 189 Entendo que essa mudança do olhar que ocorre com as massas e o cinema é mais apurada com o desenvolvimento da etnografia em que o pesquisador também precisa estar atento às piscadelas e seus sentidos Mas o filme quando estudado junto com et nografia também pode aperfeiçoar técnicas etnográficas No caso da biografia também a percepção auditiva é importante No documentário o espectador percebe em vários momentos que o tom da voz se altera Ao contar fatos dolorosos o entrevistado fala al gumas palavras de forma quase inaudível Com a máquina podemos aumentar em muito o volume mais do que no gravador Além disso a leitura dos lábios também nos ajuda A postura diante de uma câmera pode fazer também o indivíduo se soltar ou se reinventar como citado acima O caso de Antônio Carlos é interessante um senhor de 57 Edifício MastEr parEdEs janElas E vida social 152 anos que se declarou tímido e gago e foi dizendo que a entrevista seria terrível No final o entrevistador observa que ele não gaguejou um minuto e pergunta o por quê Ao explicar Antônio conta um momento de sua vida muito especial Lágrimas e orgulho aparecem em seu rosto e em seu tom de voz Não sei Foi Deus Falou por mim Foi maravilhoso O entrevistador pergunta a razão de ele ter achado maravilhoso o depoimento Porque mais uma vez eu tive a oportunidade de passar a público a minha in fância que apesar de sofrida às vezes é um pouco amarga eu nunca precisei de pe gar pó de beber cachaça mantive a minha dignidade Não tenho nada que pese nos meus ombros Tenho a convicção de que fui um bom filho minha mãe morreu nos meus braços Às vezes saía daqui ia até Brasília às vezes não podia porque eu tinha voltado de férias Eu pedi ao gerente eu preciso ir ver minha mãe minha mãe está pior Fui E quando eu voltei e falei com o gerente que nas férias eu compensava es ses dias Eu te agradeço por você ter me liberado Ele disse Você não precisa me agradecer você foi porque merecia Fiquei muito feliz Eu não sabia que ele tinha por mim como funcionário uma consideração tão forte Eu sou muito frouxo O homem não chora no simples fato de chorar O homem eu não escondo eu sou esse O depoimento de Antônio Carlos mostra que o exercício de passar a vida privada para o domínio público pode emocionar o indivíduo a ponto de provocar mudanças psi cossomáticas como a interrupção temporária de sua gagueira O diretor do filme explica o fato apenas como um efeito da câmera sobre algumas pessoas Dependendo do indiví duo a reação pode ser a inversa mas as terapias atuais mostram que o falar sobre si pode realmente curar diferentes tipos de problemas Longe do divã do psicanalista entendo que o registro e o estudo de uma história de vida também podem exercer esse efeito sobre o narrador e o público receptor Gostaria de introduzir a noção de cena de V Crapanzano 2005 nessa discussão O autor fala de epifenômenos que acompanhariam as relações sociais como emoções humores sentimentos dos quais o estudo muitas vezes é rejeitado por entenderse que se referem a um mundo subjetivo V Crapanzano entende que tal dimensão é na ver dade intersubjetiva e faz referência a diálogos que ocorrem na vida cotidiana e em si tuações de pesquisa nas quais experiências podem mudar a percepção da pessoa em relação a outros indivíduos e ao meio Ele dá exemplos de sua vida pessoal e profissional nos quais mudanças instantâneas de percepção das coisas teriam acontecido e fala do surgimento de um segundo olhar Embora possa parecer romântico ou subjetivo são experiências que fazem parte da vida social Penso que narrativas de histórias de vida podem provocar tais reações não só nos estão envolvidos na pesquisa mas também nos leitores No caso da vida metropolitana isso seria uma transformação da mentalidade blasé termo que G Simmel 2009 tor 153 TEORIAE SOCIEDADE Número Especial Antropologias e Arqueologias hoje nou famoso ao descrever a atitude do indivíduo que se fecha diante da quantidade de impulsos lançados sobre ele A narração dessa vida entendo pode provocar mudanças psicológicas destravando uma mentalidade adquirida Com o uso do documentário ficaria mais fácil mostrar que esses efeitos são objetivos o quE não sE consEguE EsquEcEr O que o espectador percebe nas narrativas é como os sentimentos de honra e dig nidade podem levar o indivíduo para atitudes extremas como o suicídio A entrevista de um casal surpreendeu Coutinho devido aos imprevistos ocorridos com a fala da esposa Perguntado o marido Carlos responde que eles viviam bem A esposa Maria Regina in terrompe o marido falando que desde fevereiro eles enfrentam problemas e que ela che gou a tentar se matar sentando na janela O ato não foi consumado porque seu parceiro a segurou Aí ocorre uma pequena discussão em que o marido tenta manter sua posição discreta e ela quer revelar os defeitos dele de Copacabana e sua insatisfação com a idade e a velhice que fazem com que ela evite a vida em público atitude de reclusão reforçada pelo fato de o parceiro ficar olhando para outras mulheres Há acusações mútuas de ciú me e uma tensão entre dois Há um corte e Carlos aparece falando Nós não prestamos mas nos amamos Seria uma conclusão mas Maria Regina completa Eu falei que da próxima vez eu atiro nele e depois em atiro em mim A entrevista mesmo citando suicídio e morte em seu todo ficou hilariante devido à forma com que Maria Regina fala interrompendo e desmentindo o parceiro e pergun tando se o entrevistador quer saber a verdade De certa maneira o espectador não leva a sério suas ameaças No entanto sabemos que o ciúme entre casais provoca situações de violência todos os dias O riso é uma demonstração de alívio quando achamos que naquele momento a ameaça da morte não é séria Em outras histórias a tensão não pode ser disfarçada Vera foi costureira de fa mílias ricas Após a morte do marido agora vive em um dos apartamentos do Master Apresentase para a entrevista bem vestida maquiada Seu português demonstra ser o de alguém que aprendeu muita coisa com a alta sociedade Os objetos que mais gosto são os meus retratos Porque eu me amo A gente tem que se amar A gente mora no cartão postal do Rio que é Copacabana Mas é muito violento aqui muito violento Eu ia passando na Siqueira Campos ali na porta da Telemar e um rapaz me abordou me abordou com uma mulher e eu me assustei Ele tirou o revólver e disse Cala a boca e não olha para lado nenhum Ele queria saber onde eu morava Olha quando eu entrei aqui eu tive tanto medo tanto medo do rapaz Um rapaz bonito branco bem vestido mas muito bem vestido mes Edifício MastEr parEdEs janElas E vida social 154 mo Aí ele disse Pega o cartão da Caixa Econômica Eu abri a gaveta joguei tudo no meio da cama Eu tremia Eu tive que me arrastar pegar nas pernas dele pegar nas pernas dele aquele gatinho e pedir para ele não apertar o gatilho Ai eu fui com ele ele tirou todo o meu dinheiro Oito mil reais Eu vim para a casa o senhor não imagina como eu fiquei Chorando chorando chorando Ele Pode ficar com seu dinheiro que eu não preciso de seu dinheiro Aí ele me deu aquela sacola até hoje eu guardo aquela maldita sacola procura e mostra uma sacola xadrez com um envelope dentro onde estão dois maços de papéis dobrados como dinheiro Eu fiquei desesperada Fiquei zanzando aqui eu devia CA Ponto Frio Quando deu quatro horas eu botei uma calça e fui na janela para pular ela explica que não pulou por causa de suas dívidas Porque quando eu não sou dessas pessoas que dizem defunto não paga Porque quando eu morrer eu quero morrer em paz eu quero morrer sem dever nada a ninguém Hoje eu tenho um namorado bacana Por que a solidão machuca muito machuca muito No depoimento de Vera o espectador fica esperando para ver as fotos dela Eduar do Coutinho diz que não mostrou por uma questão de ética pessoal Ela não pegou as fotos para mostrar e durante todo o documentário ele evitou tirar o foco da câmera da pessoa entrevistada Se ela não mostra suas fotos faz questão por outro lado de mos trar a sacola que o assaltante lhe deu Diante de todo o mal que a sacola representava o espectador se pergunta por que ela conservou um objeto que representa toda a maldade do criminoso e o sofrimento da personagem Tal como objetos que mostram momentos felizes fotos que registram lugares e pessoas importantes o símbolo de um aconteci mento amargo da vida também tem lugar entre os objetos guardados por uma pessoa A sacola é uma dádiva maldita um artifício usado pelo assaltante para aumentar a dor da vítima Mas como prova de acontecimento que quase causou o fim de sua existência Vera guarda a sacola intacta como memória material de sua dor Entendo que a sacola é marcada por algo que ela não quer esquecer porque esquecer é uma forma de perdoar A sacola com a imitação do dinheiro é a alegoria do mal que lhe foi feito Ela sente nojo do objeto mas como conseguiu sobreviver física e psicologicamente a sacola também pode ser um símbolo de superação Às vezes a marca do passado trágico está na expressão facial que surge de repente em um rosto que quer aparentar felicidade como no depoimento de Renata Ela fala do namorado americano que seria louco por ela Quando o entrevistador pergunta por que ela ainda não casou Renata responde que quer esperar porque a pressão dele naquele momento está muito forte Ele deposita dinheiro todo mês na conta dela comprou um apartamento para ela não fica claro se é o que ela ocupa no Master manda mensagens e faz ligações toda hora No início da entrevista ela disse que o namorado deveria estar irritado porque o celular estava desligado Em um momento em que ela está falando do casamento diz 155 TEORIAE SOCIEDADE Número Especial Antropologias e Arqueologias hoje Eu sonho fazer uma coisa assim Quando eu saí de casa minha mãe falou eu não dou uma semana para você passar fome com sua prima e voltar implorando um prato de comida Eu falei mãe só puta eu não vou ser e não vou matar ninguém mas posso passar fome mas na sua casa eu não venho mais Renata tinha uma mãe liberal mas que não aceitou a gravidez da filha adolescen te preocupada com que os outros iam falar Ela leva a filha em um centro de umbanda onde lhe é dado um preparado para provocar aborto O feto morreu mas continuou no corpo da mãe Renata passou muito mal e foi internada Ao sair do hospital não aceitou o convite da mãe para voltar para casa Ela responde Olha mãe a senhora tem que lembrar que com filho na sua casa eu não ia ficar agora sem filho eu não quero ficar A mágoa que Renata demonstra contra a mãe é muito grande Em um instante porém ela retoma a alegria inicial para dizer que agora ninguém a derruba mais e ela é a Renata a number one do Brasil Para o espectador fica a dúvida sobre a relação amorosa contada no início da entrevista Principalmente porque apesar da alegria Renata demonstrava ansiedade mexendo sem parar nos cabelos Levando em conta que ela mesma usou a palavra sonho relacionada ao casamento com o americano rico e apaixonado dúvidas ficam no ar O diretor também parece ter tido a mesma sensação quando diz que Renata saiu do prédio poucos dias depois da entrevista Não para ir para os EUA mas para outro prédio seme lhante conclusão Walter Lima Jr que comentou o filme com o diretor no DVD chegou à seguinte conclusão Esse é um filme terrível sobre a solidão humana É um filme sobre o irre mediável As pessoas estão aí dentro daquela caixa É muito revelador da solidão humana Eu acho até Copacabana habitada por solitários Aquela selva de janelas e cimento me dá a sensação de um muro cheio de solitários Eduardo Coutinho concorda mas chama a atenção para o fato de que são pessoas tentando sobreviver à solidão Talvez seja isso que no final cause um efeito positivo no espectador ele acompanhou um pouco de múltiplas trajetórias em que os problemas dos personagens estão registrados mas viu pessoas que tentavam demonstrar que sobrevi veram mantendo a dignidade um valor importante para o grupo social a que pertencem Embora as histórias relatadas falem de existências prosaicas não se deve condenar a Edifício MastEr parEdEs janElas E vida social 156 autoestima que elas demonstram A questão da sobrevivência à solidão leva à comparação com outras sociedades es tudadas pelos etnógrafos nas quais a questão principal que direcionava o olhar do leitor era saber como povos sobreviveram à escassez de recursos naturais e instrumentais ou às invasões promovidas por sociedades militarmente mais avançadas B Malinowski 1976 aprofundou a questão quando após dar as orientações de como o trabalho de campo deve ser feito colocou o que seria o objetivo maior para o etnógrafo Reproduzo o texto ao qual me refiro Cada cultura possui seus próprios valores as pessoas têm suas próprias am bições seguem a seus próprios impulsos desejam diferentes formas de felicidade Estudar as instituições costumes e códigos ou estudar o comportamento do homem sem atingir os desejos e sentimentos subjetivos pelos quais ele vive e sem o intuito de compreender o que é para ele a essência de sua felicidade é minha opinião perder a maior recompensa que se possa esperar do estudo do homem Ma linowski 1976 34 O Edifício Master não prova que as pessoas são felizes ou tristes em sua solidão se admitirmos que os moradores do prédio são solitários como quer W Lima Jr Mas o espectador sente que recebeu aquela que é a maior recompensa do estudo do homem Mesmo que o documentário não seja um trabalho científico entendo que as narrativas de histórias de vida representam um objeto fundamental para o trabalho etnográfico nas metrópoles pois são o melhor meio de conseguir a resposta à questão de como as pessoas sobrevivem à solidão e outras pressões da vida urbana 157 TEORIAE SOCIEDADE Número Especial Antropologias e Arqueologias hoje rEfErências BiBliográficas BENJAMIN W 1994 Magia e Técnica Arte e Política ensaios sobre literatura e histó ria da cultura São Paulo Brasiliense CARROL N 2005 Ficçãonão e cinema de asserção pressuposta uma análise conceitu al In RAMOS Fernão Pessoa Org Teoria Contemporânea do Cinema vol 2 São Paulo Senac pp 69104 CRAPANZANO V 1995 A cena lançando sobre o real Revista Mana 112 357384 MALINOWSKI B 1976 Os Argonautas do Pacífico Ocidental São Paulo Abril Cultural SIMMEL G 2009 As grandes cidades e a vida do espírito In Psicologia do dinheiro e outros ensaios Lisboa Edições Texto Grafia pp VELHO G 1973 A Utopia Urbana Rio de janeiro Zahar ficha técnica do filME Nome do filme Edifício Master Diretor Eduardo Coutinho País Brasil Ano 2002 Produtor Vídeo Filmes Comentadores Eduardo Coutinho Walter Lima Jr E Consuelo Lins Produção executiva João Moreira Salles e Maurício Andrade Ramos Edifício MastEr parEdEs janElas E vida social 158 Edifício MastEr Walls WindoWs and social lifE aBstract This paper covers the memories of the current city of PirenópolisGO on the conflict occurred in the historical archaeological site of Lavras do Abade in the year of 1887 Theories on collective cultural and social memory are discussed as well as the im plementation of these three concepts in the under standing of the interviews conducted the study of cultural events the aspects of forgotten places and use of material culture by the community kEyWords Edifício Master the movie biography urban anthropology soBrE a autora AnA LúciA Modesto Doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP é professora do Departamento de Sociologia da UFMG Suas áreas de interesse além de Cinema incluem Ética Social Industria Cultural Conhecimento e Antropologia e Mal