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O imaginário social dominante no Brasil interpreta o brasileiro como um tipo social homogêneo como no homem cordial de Sérgio Buarque possuindo as mesmas características quase sempre associadas à emocionali dade ao personalismo ao jeitinho independentemente de sua classe ou per tencimento social Tudo acontece como se esses indivíduos essencialmente semelhantes apenas diferissem na renda que ganham e que o progresso econômi co seria portanto o Deus ex machina ao qual caberia resolver problemas como desigualdade marginalização e subcidadania Existe entre nós uma crença fetichista no progresso econômico que faz esperar da expansão do mercado a resolução de todos os nossos problemas sociais O fato de que o Brasil tenha sido o país de maior crescimento econômico do globo entre 1930 e 1980 sem que as taxas de desigualdade marginalização e subcidadania jamais fossem alteradas radicalmente deveria ser um indicativo mais do que evidente do engano dessa pressuposição Isto no entanto não aconteceu e não acontece ainda hoje A ausência de uma adequada problematização dos aspectos de aprendizados coletivos morais e políticos envolvidos na questão da desigual dade e da sua naturalização e conseqüentemente na problemática da cons trução social da subcidadania devese também creio eu à complexa confi guração do campo científico entre nós Inicialmente o essencialismo cultura lista que articula as noções de personalismo familismo e patrimonialismo con tinua hegemônico seja na dimensão do senso comum seja na dimensão da reflexão metódica1 A partir de um paradigma explicativo semelhante àquele NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA OU O QUE É SER GENTE JESSÉ SOUZA O argumento que é fio condutor deste texto é parte de uma discussão desenvolvida em maior detalhe em SOUZA Jessé A Construção Social da Subcidadania Para uma Sociologia Política da Modernidade Periférica Ed UFMG 2003 Agradeço a Faperj pelo financiamen to da pesquisa que viabilizou este artigo 1 Uma discussão crítica em detalhe de diversas variantes desse ponto de partida teórico foi realizada em SOUZA Jessé A Modernização Seletiva Uma Reinterpretação do Dilema Brasileiro Ed UnB 2000 do paradigama culture and personality dominante na sociologia e antropolo gia americanas da primeira metade do século XX2 partese de uma perspecti va culturalista sem adequada vinculação com a eficácia de instituições funda mentais onde a cultura é percebida como uma entidade homogênea tota lizante e autoreferida Seria por conta dessa soberania do passado sobre o pre sente que nos confrontamos com solidariedades verticais baseadas no favor subcidadania para a maior parte da população e abismo material e valorativo entre as classes e as raças que compõem nossa sociedade Paralelamente na outra ponta das teorizações mais conjunturais e de menor nível de abstração a situação milita a favor da construção de um contexto de opacidade em relação às variáveis mais estruturais que envolvem um grau maior de abstração teórica É que em países como o Brasil onde a institucionalização em larga escala das ciências sociais se dá a partir da déca da de 1970 refletindo a tendência mundial da disseminação dos modelos do parcelização do conhecimento a fragmentação dos esquemas explicativos tendem a perder sua relação com qualquer realidade mais ampla Este fato associado à propagação paralela de teorias de médio alcance que renunciam a esclarecer ou tematizar seus próprios pressupostos e escolhas categoriais tendem a inibir a reflexão acerca de realidades que não tenham vínculo ime diato com realidades pragmáticas e conjunturais Por mais bem sucedidos e interessantes que sejam vários desses esforços que recuperam contextos e sentidos históricos e ajudam a mapear empiricamente dados relevantes acer ca da realidade eles não contribuem para renovar a compreensão mais tota lizadora acerca dos princípios estruturantes básicos que perfazem a singula ridade da modernidade periférica dado que seu horizonte categorial rejeita de plano qualquer preocupação com essa dimensão mais abstrata da reflexão teórica O mais das vezes o paradigma personalista e patrimonialista em suas vertentes tradicionais ou contemporâneas e híbridas permanece como a referência implícita da maior parte desse tipo de análise3 LUA NOVA Nº 59 2003 52 2 Uma excelente exposição da préhistória desenvolvimento e contradições internas ao para digma da teoria da modernização pode ser encontrada em KNÖBLWolgang Spielräume der modernizierung Velbrück 2002 3 Mesmo as tentativas mais recentes de construção de um paradigma do hibridismo como uma reação ao inegável dinamismo modernizante de várias sociedades periféricas como a brasileira por exemplo na realidade não abandonam o campo categorial do paradigma per sonalista familista e patrimonialista Em suas versões mais bemsucedidas essas teorizações postulam a convivência de dois princípios de estruturação social um personalista e um indi vidualista os quais no entanto permanecem indeterminados como se tratassem de duas rea lidades paralelas e apesar da dominância silenciosa da variável personalista nesse tipo de abordagem a questão central da articulação e da dominância relativa de cada um desses princípios jamais é explicitamente formulada ou resolvida Como nas versões tradicionais do NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 53 Estou convencido que a tematização dos aspectos socioculturais da desigualdade que permita superar o contexto de opacidade construído pelo fetichismo do progresso econômico exige a construção de um pa radigma teórico alternativo que permita preencher as lacunas e silêncios da configuração científica hegemônica que articula essencialismo cultural por um lado e a fragmentação conjuntural e pragmática da explicação teórica por outro No âmbito da reconstrução que gostaria de levar a cabo neste artigo gostaria de procurar me afastar dos pressupostos do essencialismo culturalista sem no entanto abrir mão de uma perspectiva que contem ple o acesso a realidades culturais e simbólicas E é precisamente nesse contexto que gostaria de incorporar as reflexões de Charles Taylor acerca da singularidade que as questões culturais morais e simbólicas em senti do amplo assumem no mundo moderno Aqui me interessa antes de tudo seu ponto de partida comunitarista como uma hermenêutica do espaço social a partir da sua crítica ao naturalismo que perpassa tanto a prática científica quanto a vida cotidiana como meio de articular precisamente a configuração valorativa implícita ao racionalismo ocidental que dá ensejo como veremos a um tipo específico de hierarquia social e uma também singular noção de reconhecimento social baseada nela Juntamente com a sociologia de Pierre Bourdieu creio encon trar nesses dois autores uma complementariedade fundamental de modo a unir a percepção de configurações valorativas implícitas e intransparentes à consciência cotidiana e ancoradas de modo opaco e inarticulado à eficá cia de algumas instituições do mundo moderno como mercado e Estado com a percepção de signos sociais visíveis que permitam mostrar o íntimo vínculo entre uma hierarquia valorativa que se traveste de universal e neu tra com a produção de uma desigualdade social que tende a se naturalizar tanto no centro quanto na periferia do sistema A articulação da perspecti va desses dois clássicos contemporâneos permite a meus olhos uma refor mulação muito mais sofisticada e útil do tema clássico marxista da ide ologia espontânea do capitalismo seja no contexto central seja no pe riférico paradigma do personalismo o poder de convencimento e o preenchimento das lacunas do argumento é garantido pelo paralelismo com os preconceitos do senso comum dessas sociedades Exemplos recentes de teorias latinoamericanas de hibridismo são as de CAN CLINI Nestor Garcia Culturas híbridas Edusp 1998 e DAMATTA Roberto Carnavais malandros e heróis Zahar 1981 Gostaria de iniciar a discussão com a análise de uma obra de um pensador periférico que segundo penso consegue estabelecer a questão decisiva em pauta nessa problemática ainda que a resposta final seja insa tisfatória tratase da Integração do Negro na Sociedade de Classes de Florestan Fernandes Neste livro Florestan se predispõe a empreender uma análise de como o povo emerge na história brasileira A concentração no negro e no mulato se legitima nesse contexto maior da empreitada teórica posto que foram precisamente esses grupos que tiveram o pior ponto de partida4 na transição da ordem escravocrata à competitiva Desse modo a reflexão de Florestan pode ser ampliada para abranger também os estratos despossuídos e os dependentes em geral e de qualquer cor na medida em que o único elemento que os diferenciava de negros e mulatos era o han dicap adicional do racismo5 O período estudado por Florestan vai de 1880 a 1960 o que dá uma idéia da amplitude do alentado estudo e o horizonte empírico concentrase na cidade de São Paulo permitindo desse modo observar as dificuldades de adaptação dos segmentos marginais na mais burguesa e competitiva das cidades brasileiras O dado essencial de todo o processo de desagregração da ordem servil e senhorial foi como nota corretamente Florestan o abandono do li berto à própria sorte ou azar Os antigos senhores na sua imensa maioria o Estado a Igreja ou qualquer outra instituição jamais se interessaram pelo destino do liberto Este imediatamente depois da abolição se viu respon sável por si e seus familiares sem que dispusesse dos meios materiais ou morais para sobreviver numa nascente economia competitiva de tipo capital ista e burguês Ao negro fora do contexto tradicional restava o desloca mento social na nova ordem Ele não apresentava os pressupostos sociais e psicossociais que são os motivos últimos do sucesso no meio ambiente con correncial Faltavalhe vontade de se ocupar com as funções consideradas degradantes que lhe lembravam o passado pejo que os imigrantes ita lianos por exemplo não tinham não era suficientemente industrioso nem poupador e acima de tudo faltavalhe o aguilhão da ânsia pela riqueza Neste contexto acrescentandose a isto o abandono dos libertos pelos anti LUA NOVA Nº 59 2003 54 4 FERNANDES Florestan A integração do negro na sociedade de classes vol I Ed Ática 1978 p 9 5 Para uma discussão das razões objetivas que permitem essa assimilação ver a parte II de SOUZA Jessé A Construção Social da Subcidadania NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 55 gos donos e pela sociedade como um todo estava de certo modo prefigura do o destino da marginalidade social e da pobreza econômica6 Esse é o quadro que permite compreender o drama social da adap tação do liberto às novas condições E aqui Florestan toca na questão central para todo seu argumento neste artigo nomeadamente a questão da organiza ção psicossocial que é um pressuposto da atividade capitalista e que exige uma présocialização em um sentido prédeterminado a qual faltava em qual quer medida significativa ao exescravo A ânsia em libertarse das condições humilhantes da vida anterior tornavao inclusive especialmente vulnerável a um tipo de comportamento reativo e ressentido em relação às demandas da nova ordem Assim o liberto tendia a confundir as obrigações do contrato de trabalho e não distinguia a venda da força de trabalho da venda dos direitos substantivos à noção de pessoa jurídica livre7 Ademais a recusa a certo tipo de serviço a inconstância no trabalho a indisciplina contra a supervisão o fascínio por ocupações nobilitantes tudo conspirava para o insucesso nas novas condições de vida e para a confirmação do preconceito A tese de Florestan é a de que a família negra não chega a se constituir como uma unidade capaz de exercer as suas virtualidades princi pais de modelação da personalidade básica e controle de comportamentos egoísticos8 Existe aqui nesse tema central da ausência da unidade familiar como instância moral e social básica uma continuidade com a política escravocrata brasileira que sempre procurou impedir qualquer forma orga nizada familiar ou comunitária da parte dos escravos É a continuidade de padrões familiares disruptivos que é percebida corretamente por Florestan como o fator decisivo para a perpetuação das condições de de sorganização social de negros e mulatos Sob todos os aspectos a família desorganizada era a base dos dese quilíbrios e da desorganização da vida em todas as suas dimensões A não socialização adequada de nenhum dos papéis familiares a incerteza e inse gurança social que faziam expulsar de casa as filhas que se perdiam por exemplo tudo militava no sentido de que a família não só não fosse uma base segura para a vida numa sociedade competitiva mas também se transfor masse na causa dos mais variados obstáculos A vida familiar desorganizada aliada à pobreza era responsável por um tipo de individuação ultraegoísta e predatória9 Este tipo de organização da personalidade sobejamente demon 6 FERNANDES idem vol I p20 7 Id ibid p30 8 Id ibid p154 9 Id ibid p230 strada nas entrevistas elencadas no livro produto da desorganização familiar reflete no egoismo e na instrumentalização do outro seja o outro a mul her ou o mais jovem e indefeso uma situação de sobrevivência tão agreste que mina por dentro qualquer vínculo de solidariedade desde o mais bási co na família até o comunitário e associativo mais geral Esse aspecto é fundamental para meu argumento na medida em que o que Florestan está pleiteando é na realidade a meus olhos atribuir à constituição e reprodução de um habitus específico no sentido de Bourdieu a apropriação de esquemas cognitivos e avaliativos transmiti dos e incorporados de modo préreflexivo e automático no ambiente fami liar desde a mais tenra idade permitindo a constituição de redes sociais também préreflexivas e automáticas que cimentam solidariedade e iden tificação por um lado e antipatia e preconceito por outro o lugar funda mental na explicação da marginalidade do negro Este ponto é central posto que se é a reprodução de um habitus precário a causa última da inadaptação e marginalização desses grupos então o problema não é meramente a cor da pele como certas tendências empiricistas acerca da desigualdade brasilera tendem hoje a interpretar Se há preconceito nesse terreno e certamente há e agindo de forma intransparente e virulenta não é antes de tudo um preconceito de cor mas sim um preconceito que se re fere a certo tipo de personalidade julgada como improdutiva e disrupti va para a sociedade como um todo Esse aspecto central não é todavia percebido com clareza por Florestan Sem dúvida ele tem o mérito de apontar na sua busca das causas últimas da marginalidade da população negra as précondições sociais independentes da cor que condicionam a situação de marginalidade Ele percebe por exemplo que as condições de inadaptação da população negra é comparável a dos dependentes rurais brancos10 misturando esses dois ele mentos como compondo em conjunto a gentinha ou a ralé nacional11 A cor da pele nesse contexto age no máximo como uma feri da adicional à autoestima do sujeito em questão mas o núcleo do proble ma é a combinação de abandono e inadaptação destinos que atingiam ambos os grupos independentemente da cor Precisamente por confundir habitus no sentido que estamos utilizando neste texto e que ele próprio havia revelado com tanta argúcia no peso relativo que ele atribui à desor ganização familiar com cor da pele Florestan é levado a imprecisões e LUA NOVA Nº 59 2003 56 10 Id ibid p148 11 Id ibid vol II p280 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 57 paradoxos que se repetem em cascata na sua argumentação Na realidade todo o argumento do livro é tributário da ambigüidade fundamental que confunde os dois aspectos relevados acima em relação à causa fundamen tal da situação de carência e marginalidade do negro Florestan supõe como causa primeira da mesma tanto a escravidão interna dentro do homem que o impede de pensar e agir segundo os imperativos da nova ordem social12 quanto o preconceito de cor13 visto como uma realidade iner cial representando resíduos do passado que penetram na sociedade competitiva e que ele supõe a partir do avanço e desenvolvimento desta estejam destinados a desaparecer14 Esses dois aspectos apesar de interligados são analiticamente duas realidades muito distintas No contexto estamental e adscritivo da sociedade escravocrata a cor funciona como índice tendencialmente abso luto da situação servil ainda que esta também assumisse formas mitigadas como vimos acima Na sociedade competitiva a cor funciona como índice relativo de primitividade sempre em relação ao padrão contingente do tipo humano definido como útil e produtivo no racionalismo ocidental e implementado por suas instituições fundamentais que pode ou não ser confirmado pelo indivíduo ou grupo em questão O próprio Florestan rela ta sobejamente as inúmeras experiências de inadaptação ao novo contexto determinadas em primeiro plano por incapacidade de atender às deman das da disciplina produtiva do capitalismo15 É de extrema importância por razões teóricas e práticas que se tenha clareza com relação a esse ponto A confusão entre estes dois aspec tos é muitas vezes obscurecida por motivos políticos dado que acredi tase a atribuição da marginalidade do negro a causas outras que não a cor e o racismo equivaleria a atribuir a culpa da mesma à sua vítima Ora é precisamente o abandono secular do negro e do dependente de qualquer cor à própria sorte a causa óbvia de sua inadaptação Foi esse abandono que criou condições perversas de eternização de um habitus precário que constrange esses grupos a uma vida marginal e humilhante à margem da sociedade incluída Por outro lado é necessário terse clareza teórica e prática acerca das causas reais da marginalização É precisamente o tipo de explicação que enfatiza o dado secundário da cor que permitiria suposta 12 Id ibid volI p92 13 Id ibid pp 283 e 316 14 Sobre o caráter passageiro e transitório da situação à época FERNANDES idemvol II pp 144 e 156 15 FERNANDES idem vol I pp 19 20 25 26 28 29 30 50 52 58 73 82 mente atribuir a culpa da marginalização unicamente ao preconceito que joga água no moinho da explicação economicista e evolucionista de tipo simples que supõe ser a marginalização algo temporário modificável por altas taxas de crescimento econômico as quais de algum modo obscuro terminaria por incluir todos os setores marginalizados Esse tipo de explicação descura dos aspectos morais e políticos que são imprescindíveis a uma real estratégia inclusiva Em nenhuma das sociedades modernas que logrou homogeneizar e generalizar em medida significativa um tipo humano para todas as classes como uma précondição para uma efetiva e atuante idéia de cidadania conseguiu esse intento como efeito colateral unicamente do desenvolvimento econômico Dentre as sociedades desenvolvidas inclusive é a mais rica dentre elas os EUA a que apresenta maior índice de desigualdade e exclusão16 A marginalização per manente de grupos sociais inteiros tem a ver com a disseminação efetiva de concepções morais e políticas que passam a funcionar como idéiasforça nessas sociedades É a explicação que atribui a marginalidade desses grupos a resíduos a serem corrigidos por variáveis economicamente derivadas dominantes não só em Florestan mas em todo o debate nacional teórico e prático acerca do tema das causas e dos remédios da desigualdade que me lhor contribui para sua permanência e naturalização Na realidade portanto não é a continuação do passado no pre sente inercialmente que está em jogo realidade essa destinada a desa parecer com o desenvolvimento econômico17 mas a redefinição moder na do negro e do dependente ou agregado brasileiro rural e urbano de qualquer cor como imprestável para exercer qualquer atividade rele vante e produtiva no novo contexto que constitui o quadro da nova situ ação de marginalidade A inércia aqui como ocorre tão frequentemente está de fato no lugar de uma explicação A questão que me parece a essencial é de que modo a transição do poder pessoal para o impessoal muda radicalmente as possibilidades de classificação e desclassificação social O que está em jogo nessa passagem e nessa mudança tão radical que expele como imprestáveis os segmentos responsáveis fundamental mente pela produção econômica no regime anterior Para a resposta desta LUA NOVA Nº 59 2003 58 16 Ver SCALON Celi Wahrnehmung von Ungleichheiten eine international vergleichende Analyse in BRUNKHORST Hauke COSTA Sérgio e SOUZA Jessé orgs Die Peripheren Moderne Frankfurt Campus 2003 no prelo 17 FERNANDES idem vol II p144 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 59 questão o tema dos resíduos18 e das inércias especialmente porque esses tais resíduos e inércias se eternizaram e se mostraram de fato ao contrário do que supunha o autor permanentes não avança o nosso co nhecimento Um outro ponto de imprecisão que no fundo duplica a ambi guidade em relação à opção corhabitus é a menção a coisas como mundo branco e mundo negro como se fossem ambos realidades essenciais e independentes e como se a hierarquia valorativa que articulasse essa dis juntiva não fosse na realidade única e subordinasse tanto brancos quan to negros Neste ponto da mesma forma que em relação ao tópico acima poderíamos refrasear a questão que formulamos e nos perguntar afinal o que está por trás das cores especialmente da cor preta que a faz um índice de alguma coisa ao mesmo tempo mais fundamental e menos visível e que se manifesta por trás da cor Não é portanto se estou certo o apego à hierarquia anterior que produz o racismo e o transfere como resíduo à ordem social competitiva Afinal a ordem competitiva também não é neutra nessa dimensão do ponto de partida meritocrático como parece estar implícito no argumento de Florestan A ordem competitiva também tem a sua hierarquia ainda que implícita opaca e intransparente aos atores e é com base nela e não em qualquer resíduo de épocas passadas que tanto negros quanto brancos sem qualificação adequada são desclassificados e marginalizados de forma per manente Não é à toa nesse sentido que a legitimação da marginalização nos depoimentos colimados em todo o livro pelo autor venha sempre acom panhada da menção a aspectos conspícuos da hierarquia valorativa do racionalismo ocidental moderno ausência de ordem disciplina previsibili dade raciocínio prospectivo etc O critério operante de classificaçãodesclas sificação era tão colado na hierarquia valorativa implícita e impessoal da nova ordem social que se reconhecia em vários depoimentos a cor como aspecto secundário Concebiase por exemplo que o negro se misturasse 18 Todo o raciocínio é tributário da sociologia da modernização tal como a conhecemos com sua crença na destruição gradual da tradição percebida precisamente como resíduos e inércias sob a forma de um evolucionismo de tipo simples e etapista Não cabe aqui repe tir argumentos que já formulamos alhures Que seja lembrado apenas que essa assunção eli mina de plano a consideração de sociedades periféricas modernamente singulares que pre cisamente se caracterizam pela perpetuação de situações de marginalidade e exclusão pro duzidas e tornadas opacas e permanentes por condições de legitimação da desigualdade que são eficazes apenas sob précondições especificamente modernas como veremos adiante em maior detalhe com o branco atrasado que está à sua altura moral intelectual19 Florestan no entanto permanece preso à explicação dos resíduos20 e não consegue incorporar vários desses depoimentos ao seu quadro explicativo que se torna crescentemente ambíguo impreciso e inconclusivo A resolução teórica desse embroglio com consequências práti cas nada desprezíveis exige a determinação precisa desse componente misterioso por trás da cor Florestan já aponta o caminho a ser seguido por meio da alusão recorrente em todo o seu trabalho de que o que os negros queriam efetivamente transformarse e ser gente21 O termo nunca é definido claramente nem por Florestan nem por seus informantes Acredito também nesse ponto que para ultrapassarmos o uso meramente retórico desse termo e conferirmos a ele densidade analítica tornase necessário desfazer a confusão entre habitus e cor Afinal o que os próprios informantes entendem por ser gente reflete claramente o que estamos percebendo como as précondições para a formação de um habitus ade quado aos imperativos institucionais da nova ordem independentemente de qualquer cor de pele Um dos sujeitos das histórias de vida que vivia com a mãe e a irmã ao deus dará relata o deslumbramento que sentiu por volta de 1911 ao passar a viver aos dez anos na casa de um ita liano Viu então o que era viver no seio de uma família o que entre eles os italianos era coisa séria Gostava porque comia na mesae podia apreciar em que consistia viver como gente22 No mesmo sentido temos as declarações abaixo Negro é gente e não tem que andar diferente dos outros Ser gente só pode significar ser igual ao branco e para isso é pre ciso proceder como o branco lançandose ativamente na com petição ocupacional23 Mas afinal o que é para além do sentido retórico compreen sível imediatamente de forma inarticulada por cada um de nós mas que apresenta desafios aparentemente intransponíveis logo que pretendemos definilo de forma adequada ser gente É no esclarecimento desse tema central que as contribuições de Taylor e Bourdieu podem nos ajudar A LUA NOVA Nº 59 2003 60 19 FERNANDES idem vol I p300 20 Id ibid pp 144 156 280 181 183 21 Apenas a título de exemplo FERNANDES idem vol I pp 174 e 196 e vol II pp 7 119 120 166 185 187 22 FERNANDES idem vol I p174 23 Id ibid vol II p166 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 61 escolha desses dois autores devese ao fato de que a meus olhos ambos se afastam tanto de uma sociologia subjetivista que reduz a complexidade da realidade social à interação consciente entre seus membros quanto de uma sociologia sistêmica que naturaliza a realidade social e se torna incapaz de perceber seus sentidos opacos e tornados intransparentes à consciência cotidiana e científica ou ainda de uma sociologia que essencializa a dimensão cultural como nas teorias tradicionais e contemporâneas da modernização Para Bordieu e Taylor a sociedade moderna se singulariza pre cisamente pela produção de uma configuração formada pelas ilusões do sentido imediato e cotidiano que Taylor denomina naturalismo e Bour dieu doxa que produzem um desconhecimento específico dos atores acerca de suas próprias condições de vida Também para ambos apenas uma perspectiva hermenêutica genética e reconstrutiva poderia reestabele cer as efetivas ainda que opacas e intransparentes précondições da vida social numa sociedade desse tipo No entanto o desafio concreto aqui é o de articular sistematicamente também as unilateralidades de cada uma das perspectivas estudadas de modo a tornálas operacionais no sentido de per mitir perceber como moralidade e poder se vinculam de modo peculiar no mundo moderno e muito especialmente no contexto periférico Talvez o aspecto que mais explicite as deficiências da teoria bourdiesiana e ponha a nu a necessidade de vinculála a uma teoria objeti va da moralidade como a tayloriana é o radical contextualismo da sua análise da classe trabalhadora francesa que o impede de perceber proces sos coletivos de aprendizado moral que ultrapassam de muito as barreiras de classe Na análise de Bourdieu sobre a produção opaca da desigualdade nas condições das sociedades modernas avançadas como a francesa24 o patamar último da sua análise que fundamenta uma infinidade de dis tinções sociais é a situação de necessidade da classe operária O que mostra o caráter histórico contingente e espaçotemporalmente contextual dessa necessidade é que ela se refere à distinção de hábitos de consumo dentro da dimensão de pacificação social típico do welfare state O que é visto como necessidade nesse contexto comparandose a sociedades periféricas como a brasileira adquire o sentido de consolidação histórica e 24 BOURDIEU Pierre Distinction Harvard University Press 1984 contingente de lutas políticas e aprendizados sociais e morais múltiplos de efetiva e fundamental importância os quais passam desapercebidos enquanto tais para Bourdieu Assim gostaria de propor uma subdivisão interna à categoria do habitus de tal modo a conferirlhe um caráter histórico mais matizado inexistente na análise bourdieusiana e acrescentar portanto uma dimen são genética e diacrônica à temática da constituição do habitus Assim em vez de falar apenas de habitus genericamente aplicandoo a situações específicas de classe num contexto sincrônico como faz Bourdieu acho mais interessante e rico para meus propósitos falar de uma pluralidade de habitus Se o habitus representa a incorporação nos sujeitos de esquemas avaliativos e disposições de comportamento a partir de uma situação socioeconômica estrutural então mudanças fundamentais na estrutura econômicosocial deve implicar conseqüentemente mudanças qualitativas importantes no tipo de habitus para todas as classes sociais envolvidas de algum modo nessas mudanças Esse foi certamente o caso da passagem das sociedades tradi cionais para as sociedades modernas no Ocidente A burguesia como a primeira classe dirigente na história que trabalha logrou romper com a dupla moral típica das sociedades tradicionais baseadas no código da honra e construir pelo menos em uma medida apreciável e significativa uma homogeneização de tipo humano a partir da generalização de sua própria economia emocional domínio da razão sobre as emoções cálcu lo prospectivo autoresponsabilidade etc às classes dominadas Esse processo se deu em todas as sociedades centrais do Ocidente das mais vari adas maneiras Em todas as sociedades que lograram homogeneizar um tipo humano transclassista esse foi um desiderato perseguido de forma consciente e decidida e não deixado a uma suposta ação automática do progresso econômico Assim sendo esse gigantesco processo histórico homogeneizador que posteriormente foi ainda mais aprofundado pelas conquistas sociais e políticas de iniciativa da própria classe trabalhadora o qual certamente não equalizou todas as classes em todas as esferas da vida mas sem dúvida generalizou e expandiu aspectos fundamentais da igual dade nas dimensões civis políticas e sociais como examinadas por Marshall no seu texto célebre pode ser percebido como um gigantesco processo de aprendizado moral e político de profundas conseqüências É precisamente esse processo histórico de aprendizado coletivo que não é adequadamente tematizado por Bourdieu no seu estudo empíri co acerca da sociedade francesa Ele representa o que gostaria de deno LUA NOVA Nº 59 2003 62 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 63 minar de habitus primário de modo a chamar atenção para esquemas avaliativos e disposições de comportamento objetivamente internalizados e incorporados no sentido bourdieusiano do termo que permite o com partilhamento de uma noção de dignidade efetivamente compartilhada no sentido tayloriano É essa dignidade efetivamente compartilhada por classes que lograram homogeneizar a economia emocional de todos os seus membros numa medida significativa que me parece ser o fundamento pro fundo do reconhecimento social infra e ultrajurídico o qual por sua vez permite a eficácia social da regra jurídica da igualdade e portanto da noção moderna de cidadania É essa dimensão da dignidade comparti lhada no sentido não jurídico de levar o outro em consideração e que Taylor chama de respeito atitudinal25 que tem que estar disseminada de forma efetiva numa sociedade para que possamos dizer que nessa sociedade concreta temos a dimensão jurídica da cidadania e da igualdade garantida pela lei Para que haja eficácia legal da regra de igualdade é necessário que a percepção da igualdade na dimensão da vida cotidiana esteja efetivamente internalizada É essa dimensão que exige portanto um efetivo consenso valorativo transclassista como sua condição de existência que não é percebida enquanto tal por Bourdieu É essa ausência que o permite pen sar as relações entre as classes dominantes e dominadas como relações especulares reativas e de soma zero A radical contextualidade de seu argumento o impede de perceber a importância de conquistas históricas desse tipo de sociedade como a francesa as quais tornamse óbvias por comparação com sociedades periféricas como a brasileira onde tal con senso inexiste Ao chamar a generalização portanto das précondições sociais econômicas e políticas do sujeito útil digno e cidadão no sen tido tayloriano de reconhecido intersubjetivamente como tal de habitus primário eu o faço para diferenciálo analiticamente de duas outras realidades também fundamentais o habitus precário e o que gostaria de denominar habitus secundário O habitus precário seria o limite do habitus primário para baixo ou seja seria aquele tipo de personalidade e de disposições de com portamento que não atendem às demandas objetivas para que seja um indi víduo seja um grupo social possa ser considerado produtivo e útil em uma sociedade de tipo moderno e competitivo podendo gozar de reco nhecimento social com todas as suas dramáticas consequências existenciais e políticas Para alguns autores mesmo sociedades afluentes como a alemã já apresentam agora segmentos de trabalhadores e de pobres que vivem do seguro social precisamente com esses traços de um habitus precário26 na medida em que o que estamos chamando de habitus primário tende a ser definido segundo os novos patamares adequados às recentes transformações da sociedade globalizada e da nova importância do conhecimento No entanto como iremos ver essa definição só ganha o estatuto de um fenô meno de massa permanente em países periféricos como o Brasil O que estamos chamando de habitus secundário tem a ver com o limite do habitus primário para cima ou seja tem a ver com uma fonte de reconhecimento e respeito social que pressupõe no sentido forte do termo a generalização do habitus primário para amplas camadas da população de uma dada sociedade Nesse sentido o habitus secundário já parte da homogeneização dos princípios operantes na determinação do habitus primário e institui por sua vez critérios classificatórios de dis tinção social a partir do que Bourdieu chama de gosto Mas a determi nação conceitual precisa dessa diferenciação triádica da noção de habitus deve ser acoplada à discussão tayloriana das fontes morais ancoradas insti tucionalmente no mundo moderno seja no centro ou na periferia para sua adequada problematização Como a categoria de habitus primário é a mais básica na medida em que é a partir dela que se torna compreensível seus limites para baixo e para cima devemos nos deter ainda um pouco na sua determinação Gostaria de usar as investigações de Reinhardt Kreckel para tentar levar a noção de habitus primário a um patamar mais concreto de análise Parto da pressuposição de que a noção de Kreckel de ideolo gia do desempenho27 permite pensar a dimensão sociológica da pro dução da distinção social a partir da força objetiva da idéia de dignidade do agente racional como proposta por Taylor Afinal as pessoas não são aquinhoadas eqüitativamente com o mesmo reconhecimento social por sua dignidade de agente racional Essa dimensão não é tão rasa como a simples dimensão política dos direitos subjetivos universalizáveis e intercambiáveis sugere A dimensão jurídica da proteção legal é apenas uma das dimensões apesar de fundamental e importantíssima desse processo de reconhecimento Se é o trabalho útil produtivo e disciplina LUA NOVA Nº 59 2003 64 26 BITTLINGMAYER Uwe Transformation der Notwendigkeit prekarisierte habitusfor men als Kehrseite der Wissensgesellschaft pp 225254 in Theorie als Kampf Zur poli tischen Soziologie Pierre Bourdieus EICKELPASCH Rolf et alli orgs Opladen Leske und Budrich 2002 27 KRECKEL Reinhardt Politische Soziologie der sozialen Ungleichheit Frankfurt Campus 1992 pp 67106 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 65 do que parece estar por trás da avaliação objetiva do valor relativo de cada qual nessa dimensão então o potencial encobridor de desigualdades por trás da noção de dignidade do agente racional deve se manifestar mais facilmente nessa dimensão Kreckel chama de ideologia do desempenho a tentativa de elaborar um princípio único para além da mera propriedade econômica a partir do qual se constitui a mais importante forma de legitimação da desigualdade no mundo contemporâneo A idéia subjacente a esse argu mento é que teria que haver um pano de fundo consensual Hinter grundkonsens acerca do valor diferencial dos seres humanos de tal modo que possa existir uma efetiva ainda que subliminarmente produzida legitimação da desigualdade Sem isso o caráter violento e injusto da desigualdade social se manifestaria de forma clara e a olho nu Para ele a ideologia do desempenho baseiase na tríade meri tocrática que envolve qualificação posição e salário Destes a qualifi cação refletindo a extraordinária importância do conhecimento com o desenvolvimento do capitalismo é o primeiro e mais importante ponto que condiciona os outros dois A ideologia do desempenho é uma ideologia na medida em que ela não apenas estimula e premia a capacidade de desempenho objetiva mas legitima o acesso diferencial permanente a chances de vida e apropriação de bens escassos28 Apenas a combinação da tríade da ideologia do desempenho faz do indivíduo um sinalizador com pleto e efetivo do cidadão completo Vollbürger A tríade torna também compreensível por que apenas através da categoria do trabalho é possí vel se assegurar de identidade autoestima e reconhecimento social Nesse sentido o desempenho diferencial no trabalho tem que se referir a um indi víduo e só pode ser conquistado por ele próprio Apenas quando essas pré condições estão dadas pode o indivíduo obter sua identidade pessoal e social de forma completa Isso explica por que uma dona de casa por exemplo passe a ter um status social objetivamente derivado ou seja sua importância e reconhecimento social dependem de seu pertencimento a uma família ou a um marido Ela se torna neste sentido dependente de critérios ads critivos já que no contexto meritocrático da ideologia do desempenho 28 Id ibid p98 ela não possuiria valor autônomo29 A atribuição de respeito social nos papéis sociais de produtor e cidadão passa a ser mediado pela abstração real já produzida por mercado e Estado aos indivíduos pensados como suporte de distinções que estabelecem seu valor relativo A explicitação de Kreckel acerca das précondições para o reconhecimento objetivo dos papéis de produtor e cidadão é importante na medida em que é fundamen tal não apenas referirse ao mundo do mercado e da distribuição de recur sos escassos como perpassado por valores como faz Nancy Fraser30 por exemplo mas é necessário explicitar que valores são esses Afinal vai ser o poder legitimador do que Kreckel chama de ide ologia do desempenho que irá determinar aos sujeitos e grupos sociais excluídos de plano pela ausência dos pressupostos mínimos para uma com petição bem sucedida dessa dimensão objetivamente seu nãoreconheci mento social e sua ausência de autoestima A ideologia do desempenho funcionaria assim como uma espécie de legitimação subpolítica incrustada no cotidiano refletindo a eficácia de princípios funcionais ancorados em instituições opacas e intransparentes como mercado e Estado Ela é intrans parente posto que aparece à consciência cotidiana como se fosse efeito de princípios universais e neutros abertos à competição meritocrática Acho que essa idéia ajuda a conferir concretude àquilo que Taylor chama de fonte moral a partir da noção de self pontual embora seu poder ideológico e produtor de distinções não seja explicitamente tematizado por ele A partir da definição e da constituição de uma ideologia do desempenho como mecanismo legitimador dos papéis de produtor e cidadão que equivalem na reconstrução que estou propondo ao conteúdo do habitus primário é possível compreender melhor o seu limite para baixo ou seja o habitus precário Assim se o habitus primário impli ca um conjunto de predisposições psicossociais refletindo na esfera da personalidade a presença da economia emocional e das précondições cog nitivas para um desempenho adequado ao atendimento das demandas va riáveis no tempo e no espaço do papel de produtor com reflexos diretos no papel do cidadão sob condições capitalistas modernas a ausência dessas précondições em alguma medida significativa implica na consti tuição de um habitus marcado pela precariedade Nesse sentido habitus precário pode referirse tanto a setores mais tradicionais da classe trabalhadora de países desenvolvidos e aflu LUA NOVA Nº 59 2003 66 29 Id ibid p100 30 FRASER Nancy Justice Interruptus Routledge 1997 pp 1140 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 67 entes como a Alemanha como aponta Uwe Bittlingmayer em seu estudo31 incapazes de atender as novas demandas por contínua formação e flexibi lidade da assim chamada sociedade do conhecimento Wissensge sellschaft que exige agora uma ativa acomodação aos novos imperativos econômicos quanto também a secular ralé brasileira tratada no livro de Florestan Fernandes que examinamos acima Nos dois casos a formação de todo um segmento de inadaptados um fenômeno marginal em socie dades como a alemã e um fenômeno de massas numa sociedade periférica como a brasileira é resultante da ampliação da definição do que estamos chamando habitus primário No caso alemão a disparidade entre habi tus primário e habitus precário é causada pelas demandas crescentes por flexibilização o que exige uma economia emocional de tipo peculiar No caso brasileiro o abismo se cria já no limiar do século XIX com a re europeização do pais e se intensifica a partir de 1930 com o início do processo de modernização em grande escala Neste caso a linha divisória passa a ser traçada entre os setores europeizados ou seja os setores que lograram se adaptar às novas demandas produtivas e sociais e os setores não europeizados que tenderam por seu abandono a uma crescente e permanente marginalização Como o princípio básico do consenso transclassista é como vimos o princípio do desempenho e da disciplina a fonte moral do self pontual para Taylor passa a ser a aceitação e internalização generalizada desse princípio que faz com que a inadaptação e a marginalização desses setores possa ser percebida tanto pela sociedade incluída como também pelas próprias vítimas como um fracasso pessoal É também a centrali dade universal do princípio do desempenho com sua conseqüente incor poração préreflexiva que faz com que a reação dos inadaptados se dê num campo de forças que se articula precisamente em relação ao tema do desempenho positivamente pelo reconhecimento da intocabilidade de seu valor intrínseco apesar da própria posição de precariedade e negativa mente pela construção de um estilo de vida reativo ressentido ou aberta mente criminoso e marginal32 Já o limite do habitus primário para cima tem a ver com o fato de que o desempenho diferencial na esfera da produção tem que ser asso ciado a uma estilização da vida peculiar de modo a produzir distinções sociais Ou seja o desempenho diferencial não é apenas nem primaria 31 BITTLINGMAYER Op cit p233 32 FERNANDES Op cit vol I p94 mente talvez uma fonte de valorização social soziale Wertschätzung que estimula os laços de solidariedade social como propõe Axel Honneth33 por exemplo mas também em grande medida uma fonte de distinções sociais que se nutre do contexto de opacidade e de aparente neu tralidade o qual é parte integrante da ideologia do desempenho para o estabelecimento de distinções sociais que tendem a se naturalizar como efeito da opacidade peculiar de suas condições de existência Nesse sentido o que estamos chamando de habitus secun dário seria precisamente o que Bourdieu teria em mente com seu estudo sobre as sutis distinções que analisa no seu Distinctions É nessa dimen são que o gosto passa a ser uma espécie de moeda invisível transfor mando tanto o capital econômico puro quanto muito especialmente o capital cultural travestidos em desempenho diferencial a partir da ilusão do talento inato em um conjunto de signos sociais de distinção legítima a partir dos efeitos típicos do contexto de opacidade em relação às suas condições de possibilidade Mas também aqui é necessário acrescentar a dimensão objeti va da moralidade que permite em última instância todo o processo de fa bricação de distinções sociais a qual é descurada por Bourdieu Assim também o conceito de habitus secundário34 deve ser vinculado a exemplo do que fizemos com os conceitos de habitus primário e precário ao con texto moral ainda que opaco e naturalizado que lhe confere eficácia Se percebemos na ideologia do desempenho enquanto corolário da dig nidade do ser racional do self pontual tayloriano o fundamento moral implícito e naturalizado das duas outras formas de habitus que distin guimos acredito que o habitus secundário possa ser compreendido na sua especificidade antes de tudo a partir da noção tayloriana de expressivi dade e autenticidade O ideal romântico da autenticidade que o Taylor de Sources of the Self interpreta como uma fonte moral alternativa ao self pontual e o LUA NOVA Nº 59 2003 68 33 HONNETH Axel Kampf um Annerkenung Frankfurt Suhrkamp p203 34 Axel Honneth em sua interessante crítica a Bourdieu tende a rejeitar in toto o conceito de habitus dado o componente instrumental e utilitário que o perpassa Ao fazer isto no entan to Honneth corre o risco de jogar a criança fora junto com a água suja do balde como os alemães gostam de dizer em um provérbio popular na medida em que o que me parece impor tante é precisamente reconectar o conceito de habitus com uma instância moral que permita iluminar nas dimensões individual e coletiva também além do dado instrumental que é irre nunciável o tema do aprendizado moral Ver HONNETH Die zerissene Welt der symbolis chen Formen zum kultursoziologischen Werke Pierre Bourdieus in Die Zerrissene Welt des Sozialens Frankfurt Suhrkamp 1990 p171 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 69 princípio do desempenho que o comanda na medida em que implica a reconstrução narrativa de uma identidade singular para a qual não há mo delos préestabelecidos vive o perigo de transformase no seu contrário nas condições atuais O mote do diagnóstico da época levado a cabo por Taylor no seu The Ethics of Authenticity é precisamente a ameaça crescente de trivialização desse ideal do seu conteúdo dialógico e de autoinvenção em favor de uma perspectiva autoreferida simbolizada no que o autor chama de quick fix35 solução rápida O tema do gosto como a base das distinções sociais fundadas no que estamos chamando de habitus secundário compreende tanto o hor izonte da individualização conteudística baseada no ideal da identidade original dialógica e narrativamente constituída quanto o processo de indi viduação superficial baseado no quick fix Bourdieu não percebe a dife rença entre as duas formas já que para ele por força de suas escolhas ca tegoriais a estratégia da distinção é sempre utilitária e instrumental Para meus fins no entanto essa diferença é fundamental Afinal a recuperação da dimensão moral objetiva trabalhada por Taylor é o que explica em últi ma instância o apelo e eficácia social inclusive da versão massificada e pastiche dessa possibilidade de individualização A personificação do gosto para Bordieu serve antes de tudo precisamente para a definição da personalidade distinta uma personali dade que aparece como resultado de qualidades inatas e como expressão de harmonia e beleza e da reconciliação de razão e sensibilidade a definição do indivíduo perfeito e acabado36 As lutas entre as diversas frações de classe se dão precisamente pela determinação da versão socialmente hegemônica do que é uma personalidade distinta e superior A classe tra balhadora que não participa dessas lutas pela definição do critério hegemônico de distinção seria um mero negativo da idéia de personali dade quase como uma nãopessoa como as especulações de Bourdieu acerca da redução dos trabalhadores a pura força física deixa entrever37 Mas é precisamente aqui creio eu que o contextualismo de Bourdieu se mostra em seus limites e em sua perspectiva ahistórica Uma comparação entre as realidades francesa e brasileira pode ilustrar melhor o que imagino a partir da distinção entre habitus primário 35 TAYLOR The Ethics of Authenticity Harvard University Press 1991 p35 36 BOURDIEU Distinction Harvard University Press 1984 p11 37 Id ibid p384 e secundário e a importância desta diferenciação para uma percepção ade quada das especificidades das modernidades central e periférica Desse modo se estou certo seria a efetiva existência de um consenso básico e transclassista representado pela generalização das précondições sociais que possibilitam o compartilhamento efetivo nas sociedades avançadas do que estou chamando de habitus primário que faz com que por exemplo um alemão ou francês de classe média que atropele um seu compatriota das classes baixas seja com altíssima probabilidade efetivamente punido de acordo com a lei Se um brasileiro de classe média atropela um brasileiro pobre da ralé por sua vez as chances de que a lei seja efetivamente apli cada neste caso é ao contrário baixíssima Isso não significa que as pes soas nesse último caso não se importem de alguma maneira com o ocor rido O procedimento policial é geralmente aberto e segue seu trâmite buro crático mas o resultado é na imensa maioria dos casos simples absolvição ou penas dignas de mera contravenção É que na dimensão infra e ultrajurídica do respeito social obje tivo compartilhado socialmente o valor do brasileiro pobre nãoeuropeiza do ou seja que não compartilha da economia emocional do self pontual que é criação cultural contingente da Europa e América do Norte é com parável ao que se confere a um animal doméstico o que caracteriza obje tivamente seu status subhumano Existe em países periféricos como o Brasil toda uma classe de pessoas excluídas e desclassificadas dado que elas não participam do contexto valorativo de fundo o que Taylor chama de dignidade do agente racional o qual é condição de possibilidade para o efetivo compartilhamento por todos da idéia de igualdade nessa dimensão fundamental para a constituição de um habitus que por incorpo rar as características disciplinadoras plásticas e adaptativas básicas para o exercício das funções produtivas no contexto do capitalismo moderno poderíamos chamálo de habitus primário Permitamme precisar ainda um pouco mais essa idéia central para todo meu argumento neste artigo Falo de habitus primário dado que se trata efetivamente de um habitus no sentido que essa noção adquire em Bourdieu São esquemas avaliativos compartilhados objetivamente ainda que opacos e quase sempre irrefletidos e insconscientes que guiam nossa ação e nosso comportamento efetivo no mundo É apenas esse tipo de con senso como que corporal préreflexivo e naturalizado que pode permitir para além da eficácia jurídica uma especie de acordo implícito que sugere como no exemplo do atropelamento no Brasil que algumas pessoas e classes estão acima da lei e outras abaixo dela Existe como que uma rede LUA NOVA Nº 59 2003 70 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 71 invisivel que une desde o policial que abre o inquerito até o juiz que de creta a sentença final passando por advogados testemunhas promotores jornalistas etc que por meio de um acordo implícito e jamais verbalizado terminam por inocentar o atropelador O que liga todas essas intencionali dades individuais de forma subliminar e que conduz ao acordo implícito entre elas é o fato objetivo e ancorado institucionalmente do não valor humano do atropelado posto que é precisamente o valor diferencial entre os seres humanos que está atualizado de forma inarticulada em todas as nossas práticas institucionais e sociais Não se trata de intencionalidade aqui Nenhum brasileiro europeizado de classe média confessaria em sã consciência que considera seus compatriotas das classes baixas nãoeuropeizadas subgente Grande parte dessas pessoas votam em partidos de esquerda e participam de cam panhas contra a fome e coisas do gênero A dimensão aqui é objetiva sub liminar implícita e intransparente Ela é implícita também no sentido de que não precisa ser lingüisticamente mediada ou simbolicamente articula da Ela implica como a idéia de habitus em Bourdieu toda uma visão de mundo e uma hierarquia moral que se sedimenta e se mostra como signo social de forma imperceptível a partir de signos sociais aparentemente sem importância como a inclinação respeitosa e inconsciente do inferior social quando encontra um superior pela tonalidade da voz mais do que pelo que é dito etc O que existe aqui são acordos e consensos sociais mudos e sub liminares mas por isso mesmo tanto mais eficazes que articulam como que por meio de fios invisíveis solidariedades e preconceitos profundos e invisíveis É esse tipo de acordo para usar o exemplo do atropelamento acima que está por trás do fato de que todos os envolvidos no processo policial e judicial na morte por atropelamento do subhomem não europeizado sem qualquer acordo consciente e até contrariando expectati vas explícitas de muitas dessas pessoas terminem por inocentar seu com patriota de classe média Bourdieu não percebe pelo seu radical contextualismo que implica um componente ahistórico a existência do componente transclas sista que faz com que em sociedades como a francesa exista um acordo intersubjetivo e transclassista que pune efetivamente o atropelamento de um francês de classe baixa posto que ele é efetivamente na dimensão sub política e subliminar gente e cidadão pleno e não apenas força física e muscular ou mera tração animal É a existência efetiva desse componente no entanto que explica o fato de que na sociedade francesa numa dimen são fundamental independentemente da pertença a classe todos sejam cidadãos Esse fato não implica por outro lado que não existam outras dimensões da questão da desigualdade que se manifestam de forma tam bém velada e intransparente como tão bem demonstrado por Bourdieu em sua análise da sociedade francesa Mas a temática do gosto como sepa rando as pessoas por vínculos de simpatia e aversão pode e deve ser ana liticamente diferenciada da questão da dignidade fundamental da cidadania jurídica e social que estou associando aqui ao que chamo de habitus primário A distinção a partir do gosto tão magistralmente reconstruída por Bourdieu pressupõe no caso francês um patamar de igualdade efeti va na dimensão tanto do compartilhamento de direitos fundamentais quan to na dimensão do respeito atitudinal de que fala Taylor no sentido de que todos são percebidos como membros úteis ainda que desiguais em ou tras dimensões Em outras palavras à dimensão do que estamos chamando habitus primário se acrescenta uma outra dimensão que também pres supõe a existência de esquemas avaliativos implícitos e insconscientes compartilhados ou seja corresponde a um habitus específico no sentido de Bourdieu como exemplarmente demonstrado por este autor a partir das escolhas do gosto ao qual estamos denominando habitus secundário Essas duas dimensões obviamente se interpenetram de várias maneiras No entanto podemos e devemos separálas analiticamente na medida em que obedecem a lógicas distintas de funcionamento Como diria Taylor as fontes morais são distintas em cada caso No caso do habitus primário o que está em jogo é a efetiva disseminação da noção de dignidade do agente racional que o torna agente produtivo e cidadão pleno Em sociedades avançadas essa disseminação é efetiva e os casos de habitus precário são fenômenos marginais Em sociedades periféricas como a brasileira o habitus precário que implica a existência de redes invisiveis e objetivas que desqualificam os indivíduos e grupos sociais precarizados como subprodutores e subcidadãos e isso sob a forma de uma evidência social insofismável tanto para os privilegiados como para as próprias vítimas da precariedade é um fenômeno de massa e justifica minha tese de que o que diferencia substancialmente esses dois tipos de sociedades é a produção social de uma ralé estrutural nas sociedades periféricas Essa circunstância não elimina que nos dois tipos de sociedade exista a luta pela distinção baseada no que chamo de habitus secundário que tem a ver com a apropri ação seletiva de bens e recursos escassos e constitui contextos cristalizados e tendencialmente permanentes de desigualdade Mas a consolidação efetiva em grau significativo das précondições sociais que permitem a ge LUA NOVA Nº 59 2003 72 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 73 neralização de um habitus primário nas sociedades centrais torna a subci dadania enquanto fenômeno de massa restrito apenas às sociedades pe riféricas marcando sua especificidade como sociedade moderna e chaman do atenção para o conflito de classes específico da periferia O esforço dessa construção múltipla de habitus serve para ultra passar concepções subjetivistas da realidade que reduzem a mesma às interações face a face A situação descrita acima do atropelamento por exemplo seria explicada pelo paradigma personalista hibridista38 a par tir do capital social em relações pessoais do atropelador de classe média que terminaria levando à impunidade Esse é um exemplo típico do des propósito subjetivista de se interpretar sociedades periféricas complexas e dinâmicas como a brasileira como se o papel estruturante coubesse a princípios prémodernos como o capital social em relações pessoais Nesse terreno não há qualquer diferença entre países centrais ou periféricos Relações pessoais são importantes na definição de carreiras e chances individuais de ascensão social tanto num caso como no outro Nos dois tipos de sociedade no entanto os capitais econômico e cultural são estru turantes o que o capital social de relações pessoais não é O conceito de habitus desde que acrescentado de uma concepção não essencialista de moralidade ancorada em instituições fundamentais per mite tanto a percepção dos efeitos sociais de uma hierarquia atualizada de forma implícita e opaca e por isso mesmo tanto mais eficaz quanto a iden tificação do seu potencial segregador e constituidor de relações naturalizadas de desigualdade em várias dimensões variando com o tipo de sociedade analisado Neste sentido esse conceito pareceme um recurso fundamental desde que complementado com uma hermenêutica do sentido e da morali dade como a que Taylor nos oferece É precisamente esse tipo de enfoque teórico alternativo que me parece permitir que se navegue entre as duas mar gens polares de um culturalismo essencialista por um lado e de teorias de médio alcance que perdem qualquer relação com realidades mais abrangentes por outro As conseqüências práticas e políticas desse tipo de diagnóstico alternativo que revaloriza os componentes políticos e sociocul turais relacionados à temática da desigualdade e da sub cidadania certa mente não passam desapercebidas ao leitor atento JESSÉ SOUZA é professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro Iuperj 38 Na versão por exemplo já citada neste trabalho de um Roberto DaMatta NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA OU O QUE É SER GENTE JESSÉ SOUZA Este texto discute e combina algumas teorias contemporâneas sobre a origem e a dinâmica do reconhecimento social como a de Charles Taylor com abordagens socioculturais acerca da temática da desigualdade como as de Pierre Bourdieu e Reinhard Kreckel de modo a aplicálas de forma modificada e produtiva para o esclarecimento de questões centrais da modernidade periférica como os fenômenos da subcidadania e da natu ralização da desigualdade Seu objetivo é elaborar uma concepção teórica alternativa às abordagens personalistas e patrimonialistas desses fenô menos assim como às percepções conjunturais e pragmáticas produto da parcelização e fragmentação do conhecimento que perdem o vínculo com qualquer realidade mais ampla e totalizadora Palavraschave Modernidade periférica reconhecimento social desigualdade pensamento social brasileiro NON RECOGNITION AND UNDERCITIZENSHIP OR WHAT IS IT TO BE A HUMAN BEING This article discusses and matches some contemporary theories on the origin and dynamics of social recognition such as Charles Taylors and sociocultural approaches to the subject of inequality such as Pierre Bourdieus and Reinhard Kreckels in order to apply them in a modified and productive way to central matters of peripheral modernity such as the undercitizenship and the naturalization of inequality Its aim is to develop an alternative conception to the patrimonialist and personalist approach es to the subject as well as to shortrange and pragmatic perceptions which are the result of the partition and fragmentation of knowledge unconcerned about understanding a more embracing reality Keywords Peripheral modernity social recognition inequali ty Brazilian social thought RESUMOSABSTRACTS

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O imaginário social dominante no Brasil interpreta o brasileiro como um tipo social homogêneo como no homem cordial de Sérgio Buarque possuindo as mesmas características quase sempre associadas à emocionali dade ao personalismo ao jeitinho independentemente de sua classe ou per tencimento social Tudo acontece como se esses indivíduos essencialmente semelhantes apenas diferissem na renda que ganham e que o progresso econômi co seria portanto o Deus ex machina ao qual caberia resolver problemas como desigualdade marginalização e subcidadania Existe entre nós uma crença fetichista no progresso econômico que faz esperar da expansão do mercado a resolução de todos os nossos problemas sociais O fato de que o Brasil tenha sido o país de maior crescimento econômico do globo entre 1930 e 1980 sem que as taxas de desigualdade marginalização e subcidadania jamais fossem alteradas radicalmente deveria ser um indicativo mais do que evidente do engano dessa pressuposição Isto no entanto não aconteceu e não acontece ainda hoje A ausência de uma adequada problematização dos aspectos de aprendizados coletivos morais e políticos envolvidos na questão da desigual dade e da sua naturalização e conseqüentemente na problemática da cons trução social da subcidadania devese também creio eu à complexa confi guração do campo científico entre nós Inicialmente o essencialismo cultura lista que articula as noções de personalismo familismo e patrimonialismo con tinua hegemônico seja na dimensão do senso comum seja na dimensão da reflexão metódica1 A partir de um paradigma explicativo semelhante àquele NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA OU O QUE É SER GENTE JESSÉ SOUZA O argumento que é fio condutor deste texto é parte de uma discussão desenvolvida em maior detalhe em SOUZA Jessé A Construção Social da Subcidadania Para uma Sociologia Política da Modernidade Periférica Ed UFMG 2003 Agradeço a Faperj pelo financiamen to da pesquisa que viabilizou este artigo 1 Uma discussão crítica em detalhe de diversas variantes desse ponto de partida teórico foi realizada em SOUZA Jessé A Modernização Seletiva Uma Reinterpretação do Dilema Brasileiro Ed UnB 2000 do paradigama culture and personality dominante na sociologia e antropolo gia americanas da primeira metade do século XX2 partese de uma perspecti va culturalista sem adequada vinculação com a eficácia de instituições funda mentais onde a cultura é percebida como uma entidade homogênea tota lizante e autoreferida Seria por conta dessa soberania do passado sobre o pre sente que nos confrontamos com solidariedades verticais baseadas no favor subcidadania para a maior parte da população e abismo material e valorativo entre as classes e as raças que compõem nossa sociedade Paralelamente na outra ponta das teorizações mais conjunturais e de menor nível de abstração a situação milita a favor da construção de um contexto de opacidade em relação às variáveis mais estruturais que envolvem um grau maior de abstração teórica É que em países como o Brasil onde a institucionalização em larga escala das ciências sociais se dá a partir da déca da de 1970 refletindo a tendência mundial da disseminação dos modelos do parcelização do conhecimento a fragmentação dos esquemas explicativos tendem a perder sua relação com qualquer realidade mais ampla Este fato associado à propagação paralela de teorias de médio alcance que renunciam a esclarecer ou tematizar seus próprios pressupostos e escolhas categoriais tendem a inibir a reflexão acerca de realidades que não tenham vínculo ime diato com realidades pragmáticas e conjunturais Por mais bem sucedidos e interessantes que sejam vários desses esforços que recuperam contextos e sentidos históricos e ajudam a mapear empiricamente dados relevantes acer ca da realidade eles não contribuem para renovar a compreensão mais tota lizadora acerca dos princípios estruturantes básicos que perfazem a singula ridade da modernidade periférica dado que seu horizonte categorial rejeita de plano qualquer preocupação com essa dimensão mais abstrata da reflexão teórica O mais das vezes o paradigma personalista e patrimonialista em suas vertentes tradicionais ou contemporâneas e híbridas permanece como a referência implícita da maior parte desse tipo de análise3 LUA NOVA Nº 59 2003 52 2 Uma excelente exposição da préhistória desenvolvimento e contradições internas ao para digma da teoria da modernização pode ser encontrada em KNÖBLWolgang Spielräume der modernizierung Velbrück 2002 3 Mesmo as tentativas mais recentes de construção de um paradigma do hibridismo como uma reação ao inegável dinamismo modernizante de várias sociedades periféricas como a brasileira por exemplo na realidade não abandonam o campo categorial do paradigma per sonalista familista e patrimonialista Em suas versões mais bemsucedidas essas teorizações postulam a convivência de dois princípios de estruturação social um personalista e um indi vidualista os quais no entanto permanecem indeterminados como se tratassem de duas rea lidades paralelas e apesar da dominância silenciosa da variável personalista nesse tipo de abordagem a questão central da articulação e da dominância relativa de cada um desses princípios jamais é explicitamente formulada ou resolvida Como nas versões tradicionais do NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 53 Estou convencido que a tematização dos aspectos socioculturais da desigualdade que permita superar o contexto de opacidade construído pelo fetichismo do progresso econômico exige a construção de um pa radigma teórico alternativo que permita preencher as lacunas e silêncios da configuração científica hegemônica que articula essencialismo cultural por um lado e a fragmentação conjuntural e pragmática da explicação teórica por outro No âmbito da reconstrução que gostaria de levar a cabo neste artigo gostaria de procurar me afastar dos pressupostos do essencialismo culturalista sem no entanto abrir mão de uma perspectiva que contem ple o acesso a realidades culturais e simbólicas E é precisamente nesse contexto que gostaria de incorporar as reflexões de Charles Taylor acerca da singularidade que as questões culturais morais e simbólicas em senti do amplo assumem no mundo moderno Aqui me interessa antes de tudo seu ponto de partida comunitarista como uma hermenêutica do espaço social a partir da sua crítica ao naturalismo que perpassa tanto a prática científica quanto a vida cotidiana como meio de articular precisamente a configuração valorativa implícita ao racionalismo ocidental que dá ensejo como veremos a um tipo específico de hierarquia social e uma também singular noção de reconhecimento social baseada nela Juntamente com a sociologia de Pierre Bourdieu creio encon trar nesses dois autores uma complementariedade fundamental de modo a unir a percepção de configurações valorativas implícitas e intransparentes à consciência cotidiana e ancoradas de modo opaco e inarticulado à eficá cia de algumas instituições do mundo moderno como mercado e Estado com a percepção de signos sociais visíveis que permitam mostrar o íntimo vínculo entre uma hierarquia valorativa que se traveste de universal e neu tra com a produção de uma desigualdade social que tende a se naturalizar tanto no centro quanto na periferia do sistema A articulação da perspecti va desses dois clássicos contemporâneos permite a meus olhos uma refor mulação muito mais sofisticada e útil do tema clássico marxista da ide ologia espontânea do capitalismo seja no contexto central seja no pe riférico paradigma do personalismo o poder de convencimento e o preenchimento das lacunas do argumento é garantido pelo paralelismo com os preconceitos do senso comum dessas sociedades Exemplos recentes de teorias latinoamericanas de hibridismo são as de CAN CLINI Nestor Garcia Culturas híbridas Edusp 1998 e DAMATTA Roberto Carnavais malandros e heróis Zahar 1981 Gostaria de iniciar a discussão com a análise de uma obra de um pensador periférico que segundo penso consegue estabelecer a questão decisiva em pauta nessa problemática ainda que a resposta final seja insa tisfatória tratase da Integração do Negro na Sociedade de Classes de Florestan Fernandes Neste livro Florestan se predispõe a empreender uma análise de como o povo emerge na história brasileira A concentração no negro e no mulato se legitima nesse contexto maior da empreitada teórica posto que foram precisamente esses grupos que tiveram o pior ponto de partida4 na transição da ordem escravocrata à competitiva Desse modo a reflexão de Florestan pode ser ampliada para abranger também os estratos despossuídos e os dependentes em geral e de qualquer cor na medida em que o único elemento que os diferenciava de negros e mulatos era o han dicap adicional do racismo5 O período estudado por Florestan vai de 1880 a 1960 o que dá uma idéia da amplitude do alentado estudo e o horizonte empírico concentrase na cidade de São Paulo permitindo desse modo observar as dificuldades de adaptação dos segmentos marginais na mais burguesa e competitiva das cidades brasileiras O dado essencial de todo o processo de desagregração da ordem servil e senhorial foi como nota corretamente Florestan o abandono do li berto à própria sorte ou azar Os antigos senhores na sua imensa maioria o Estado a Igreja ou qualquer outra instituição jamais se interessaram pelo destino do liberto Este imediatamente depois da abolição se viu respon sável por si e seus familiares sem que dispusesse dos meios materiais ou morais para sobreviver numa nascente economia competitiva de tipo capital ista e burguês Ao negro fora do contexto tradicional restava o desloca mento social na nova ordem Ele não apresentava os pressupostos sociais e psicossociais que são os motivos últimos do sucesso no meio ambiente con correncial Faltavalhe vontade de se ocupar com as funções consideradas degradantes que lhe lembravam o passado pejo que os imigrantes ita lianos por exemplo não tinham não era suficientemente industrioso nem poupador e acima de tudo faltavalhe o aguilhão da ânsia pela riqueza Neste contexto acrescentandose a isto o abandono dos libertos pelos anti LUA NOVA Nº 59 2003 54 4 FERNANDES Florestan A integração do negro na sociedade de classes vol I Ed Ática 1978 p 9 5 Para uma discussão das razões objetivas que permitem essa assimilação ver a parte II de SOUZA Jessé A Construção Social da Subcidadania NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 55 gos donos e pela sociedade como um todo estava de certo modo prefigura do o destino da marginalidade social e da pobreza econômica6 Esse é o quadro que permite compreender o drama social da adap tação do liberto às novas condições E aqui Florestan toca na questão central para todo seu argumento neste artigo nomeadamente a questão da organiza ção psicossocial que é um pressuposto da atividade capitalista e que exige uma présocialização em um sentido prédeterminado a qual faltava em qual quer medida significativa ao exescravo A ânsia em libertarse das condições humilhantes da vida anterior tornavao inclusive especialmente vulnerável a um tipo de comportamento reativo e ressentido em relação às demandas da nova ordem Assim o liberto tendia a confundir as obrigações do contrato de trabalho e não distinguia a venda da força de trabalho da venda dos direitos substantivos à noção de pessoa jurídica livre7 Ademais a recusa a certo tipo de serviço a inconstância no trabalho a indisciplina contra a supervisão o fascínio por ocupações nobilitantes tudo conspirava para o insucesso nas novas condições de vida e para a confirmação do preconceito A tese de Florestan é a de que a família negra não chega a se constituir como uma unidade capaz de exercer as suas virtualidades princi pais de modelação da personalidade básica e controle de comportamentos egoísticos8 Existe aqui nesse tema central da ausência da unidade familiar como instância moral e social básica uma continuidade com a política escravocrata brasileira que sempre procurou impedir qualquer forma orga nizada familiar ou comunitária da parte dos escravos É a continuidade de padrões familiares disruptivos que é percebida corretamente por Florestan como o fator decisivo para a perpetuação das condições de de sorganização social de negros e mulatos Sob todos os aspectos a família desorganizada era a base dos dese quilíbrios e da desorganização da vida em todas as suas dimensões A não socialização adequada de nenhum dos papéis familiares a incerteza e inse gurança social que faziam expulsar de casa as filhas que se perdiam por exemplo tudo militava no sentido de que a família não só não fosse uma base segura para a vida numa sociedade competitiva mas também se transfor masse na causa dos mais variados obstáculos A vida familiar desorganizada aliada à pobreza era responsável por um tipo de individuação ultraegoísta e predatória9 Este tipo de organização da personalidade sobejamente demon 6 FERNANDES idem vol I p20 7 Id ibid p30 8 Id ibid p154 9 Id ibid p230 strada nas entrevistas elencadas no livro produto da desorganização familiar reflete no egoismo e na instrumentalização do outro seja o outro a mul her ou o mais jovem e indefeso uma situação de sobrevivência tão agreste que mina por dentro qualquer vínculo de solidariedade desde o mais bási co na família até o comunitário e associativo mais geral Esse aspecto é fundamental para meu argumento na medida em que o que Florestan está pleiteando é na realidade a meus olhos atribuir à constituição e reprodução de um habitus específico no sentido de Bourdieu a apropriação de esquemas cognitivos e avaliativos transmiti dos e incorporados de modo préreflexivo e automático no ambiente fami liar desde a mais tenra idade permitindo a constituição de redes sociais também préreflexivas e automáticas que cimentam solidariedade e iden tificação por um lado e antipatia e preconceito por outro o lugar funda mental na explicação da marginalidade do negro Este ponto é central posto que se é a reprodução de um habitus precário a causa última da inadaptação e marginalização desses grupos então o problema não é meramente a cor da pele como certas tendências empiricistas acerca da desigualdade brasilera tendem hoje a interpretar Se há preconceito nesse terreno e certamente há e agindo de forma intransparente e virulenta não é antes de tudo um preconceito de cor mas sim um preconceito que se re fere a certo tipo de personalidade julgada como improdutiva e disrupti va para a sociedade como um todo Esse aspecto central não é todavia percebido com clareza por Florestan Sem dúvida ele tem o mérito de apontar na sua busca das causas últimas da marginalidade da população negra as précondições sociais independentes da cor que condicionam a situação de marginalidade Ele percebe por exemplo que as condições de inadaptação da população negra é comparável a dos dependentes rurais brancos10 misturando esses dois ele mentos como compondo em conjunto a gentinha ou a ralé nacional11 A cor da pele nesse contexto age no máximo como uma feri da adicional à autoestima do sujeito em questão mas o núcleo do proble ma é a combinação de abandono e inadaptação destinos que atingiam ambos os grupos independentemente da cor Precisamente por confundir habitus no sentido que estamos utilizando neste texto e que ele próprio havia revelado com tanta argúcia no peso relativo que ele atribui à desor ganização familiar com cor da pele Florestan é levado a imprecisões e LUA NOVA Nº 59 2003 56 10 Id ibid p148 11 Id ibid vol II p280 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 57 paradoxos que se repetem em cascata na sua argumentação Na realidade todo o argumento do livro é tributário da ambigüidade fundamental que confunde os dois aspectos relevados acima em relação à causa fundamen tal da situação de carência e marginalidade do negro Florestan supõe como causa primeira da mesma tanto a escravidão interna dentro do homem que o impede de pensar e agir segundo os imperativos da nova ordem social12 quanto o preconceito de cor13 visto como uma realidade iner cial representando resíduos do passado que penetram na sociedade competitiva e que ele supõe a partir do avanço e desenvolvimento desta estejam destinados a desaparecer14 Esses dois aspectos apesar de interligados são analiticamente duas realidades muito distintas No contexto estamental e adscritivo da sociedade escravocrata a cor funciona como índice tendencialmente abso luto da situação servil ainda que esta também assumisse formas mitigadas como vimos acima Na sociedade competitiva a cor funciona como índice relativo de primitividade sempre em relação ao padrão contingente do tipo humano definido como útil e produtivo no racionalismo ocidental e implementado por suas instituições fundamentais que pode ou não ser confirmado pelo indivíduo ou grupo em questão O próprio Florestan rela ta sobejamente as inúmeras experiências de inadaptação ao novo contexto determinadas em primeiro plano por incapacidade de atender às deman das da disciplina produtiva do capitalismo15 É de extrema importância por razões teóricas e práticas que se tenha clareza com relação a esse ponto A confusão entre estes dois aspec tos é muitas vezes obscurecida por motivos políticos dado que acredi tase a atribuição da marginalidade do negro a causas outras que não a cor e o racismo equivaleria a atribuir a culpa da mesma à sua vítima Ora é precisamente o abandono secular do negro e do dependente de qualquer cor à própria sorte a causa óbvia de sua inadaptação Foi esse abandono que criou condições perversas de eternização de um habitus precário que constrange esses grupos a uma vida marginal e humilhante à margem da sociedade incluída Por outro lado é necessário terse clareza teórica e prática acerca das causas reais da marginalização É precisamente o tipo de explicação que enfatiza o dado secundário da cor que permitiria suposta 12 Id ibid volI p92 13 Id ibid pp 283 e 316 14 Sobre o caráter passageiro e transitório da situação à época FERNANDES idemvol II pp 144 e 156 15 FERNANDES idem vol I pp 19 20 25 26 28 29 30 50 52 58 73 82 mente atribuir a culpa da marginalização unicamente ao preconceito que joga água no moinho da explicação economicista e evolucionista de tipo simples que supõe ser a marginalização algo temporário modificável por altas taxas de crescimento econômico as quais de algum modo obscuro terminaria por incluir todos os setores marginalizados Esse tipo de explicação descura dos aspectos morais e políticos que são imprescindíveis a uma real estratégia inclusiva Em nenhuma das sociedades modernas que logrou homogeneizar e generalizar em medida significativa um tipo humano para todas as classes como uma précondição para uma efetiva e atuante idéia de cidadania conseguiu esse intento como efeito colateral unicamente do desenvolvimento econômico Dentre as sociedades desenvolvidas inclusive é a mais rica dentre elas os EUA a que apresenta maior índice de desigualdade e exclusão16 A marginalização per manente de grupos sociais inteiros tem a ver com a disseminação efetiva de concepções morais e políticas que passam a funcionar como idéiasforça nessas sociedades É a explicação que atribui a marginalidade desses grupos a resíduos a serem corrigidos por variáveis economicamente derivadas dominantes não só em Florestan mas em todo o debate nacional teórico e prático acerca do tema das causas e dos remédios da desigualdade que me lhor contribui para sua permanência e naturalização Na realidade portanto não é a continuação do passado no pre sente inercialmente que está em jogo realidade essa destinada a desa parecer com o desenvolvimento econômico17 mas a redefinição moder na do negro e do dependente ou agregado brasileiro rural e urbano de qualquer cor como imprestável para exercer qualquer atividade rele vante e produtiva no novo contexto que constitui o quadro da nova situ ação de marginalidade A inércia aqui como ocorre tão frequentemente está de fato no lugar de uma explicação A questão que me parece a essencial é de que modo a transição do poder pessoal para o impessoal muda radicalmente as possibilidades de classificação e desclassificação social O que está em jogo nessa passagem e nessa mudança tão radical que expele como imprestáveis os segmentos responsáveis fundamental mente pela produção econômica no regime anterior Para a resposta desta LUA NOVA Nº 59 2003 58 16 Ver SCALON Celi Wahrnehmung von Ungleichheiten eine international vergleichende Analyse in BRUNKHORST Hauke COSTA Sérgio e SOUZA Jessé orgs Die Peripheren Moderne Frankfurt Campus 2003 no prelo 17 FERNANDES idem vol II p144 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 59 questão o tema dos resíduos18 e das inércias especialmente porque esses tais resíduos e inércias se eternizaram e se mostraram de fato ao contrário do que supunha o autor permanentes não avança o nosso co nhecimento Um outro ponto de imprecisão que no fundo duplica a ambi guidade em relação à opção corhabitus é a menção a coisas como mundo branco e mundo negro como se fossem ambos realidades essenciais e independentes e como se a hierarquia valorativa que articulasse essa dis juntiva não fosse na realidade única e subordinasse tanto brancos quan to negros Neste ponto da mesma forma que em relação ao tópico acima poderíamos refrasear a questão que formulamos e nos perguntar afinal o que está por trás das cores especialmente da cor preta que a faz um índice de alguma coisa ao mesmo tempo mais fundamental e menos visível e que se manifesta por trás da cor Não é portanto se estou certo o apego à hierarquia anterior que produz o racismo e o transfere como resíduo à ordem social competitiva Afinal a ordem competitiva também não é neutra nessa dimensão do ponto de partida meritocrático como parece estar implícito no argumento de Florestan A ordem competitiva também tem a sua hierarquia ainda que implícita opaca e intransparente aos atores e é com base nela e não em qualquer resíduo de épocas passadas que tanto negros quanto brancos sem qualificação adequada são desclassificados e marginalizados de forma per manente Não é à toa nesse sentido que a legitimação da marginalização nos depoimentos colimados em todo o livro pelo autor venha sempre acom panhada da menção a aspectos conspícuos da hierarquia valorativa do racionalismo ocidental moderno ausência de ordem disciplina previsibili dade raciocínio prospectivo etc O critério operante de classificaçãodesclas sificação era tão colado na hierarquia valorativa implícita e impessoal da nova ordem social que se reconhecia em vários depoimentos a cor como aspecto secundário Concebiase por exemplo que o negro se misturasse 18 Todo o raciocínio é tributário da sociologia da modernização tal como a conhecemos com sua crença na destruição gradual da tradição percebida precisamente como resíduos e inércias sob a forma de um evolucionismo de tipo simples e etapista Não cabe aqui repe tir argumentos que já formulamos alhures Que seja lembrado apenas que essa assunção eli mina de plano a consideração de sociedades periféricas modernamente singulares que pre cisamente se caracterizam pela perpetuação de situações de marginalidade e exclusão pro duzidas e tornadas opacas e permanentes por condições de legitimação da desigualdade que são eficazes apenas sob précondições especificamente modernas como veremos adiante em maior detalhe com o branco atrasado que está à sua altura moral intelectual19 Florestan no entanto permanece preso à explicação dos resíduos20 e não consegue incorporar vários desses depoimentos ao seu quadro explicativo que se torna crescentemente ambíguo impreciso e inconclusivo A resolução teórica desse embroglio com consequências práti cas nada desprezíveis exige a determinação precisa desse componente misterioso por trás da cor Florestan já aponta o caminho a ser seguido por meio da alusão recorrente em todo o seu trabalho de que o que os negros queriam efetivamente transformarse e ser gente21 O termo nunca é definido claramente nem por Florestan nem por seus informantes Acredito também nesse ponto que para ultrapassarmos o uso meramente retórico desse termo e conferirmos a ele densidade analítica tornase necessário desfazer a confusão entre habitus e cor Afinal o que os próprios informantes entendem por ser gente reflete claramente o que estamos percebendo como as précondições para a formação de um habitus ade quado aos imperativos institucionais da nova ordem independentemente de qualquer cor de pele Um dos sujeitos das histórias de vida que vivia com a mãe e a irmã ao deus dará relata o deslumbramento que sentiu por volta de 1911 ao passar a viver aos dez anos na casa de um ita liano Viu então o que era viver no seio de uma família o que entre eles os italianos era coisa séria Gostava porque comia na mesae podia apreciar em que consistia viver como gente22 No mesmo sentido temos as declarações abaixo Negro é gente e não tem que andar diferente dos outros Ser gente só pode significar ser igual ao branco e para isso é pre ciso proceder como o branco lançandose ativamente na com petição ocupacional23 Mas afinal o que é para além do sentido retórico compreen sível imediatamente de forma inarticulada por cada um de nós mas que apresenta desafios aparentemente intransponíveis logo que pretendemos definilo de forma adequada ser gente É no esclarecimento desse tema central que as contribuições de Taylor e Bourdieu podem nos ajudar A LUA NOVA Nº 59 2003 60 19 FERNANDES idem vol I p300 20 Id ibid pp 144 156 280 181 183 21 Apenas a título de exemplo FERNANDES idem vol I pp 174 e 196 e vol II pp 7 119 120 166 185 187 22 FERNANDES idem vol I p174 23 Id ibid vol II p166 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 61 escolha desses dois autores devese ao fato de que a meus olhos ambos se afastam tanto de uma sociologia subjetivista que reduz a complexidade da realidade social à interação consciente entre seus membros quanto de uma sociologia sistêmica que naturaliza a realidade social e se torna incapaz de perceber seus sentidos opacos e tornados intransparentes à consciência cotidiana e científica ou ainda de uma sociologia que essencializa a dimensão cultural como nas teorias tradicionais e contemporâneas da modernização Para Bordieu e Taylor a sociedade moderna se singulariza pre cisamente pela produção de uma configuração formada pelas ilusões do sentido imediato e cotidiano que Taylor denomina naturalismo e Bour dieu doxa que produzem um desconhecimento específico dos atores acerca de suas próprias condições de vida Também para ambos apenas uma perspectiva hermenêutica genética e reconstrutiva poderia reestabele cer as efetivas ainda que opacas e intransparentes précondições da vida social numa sociedade desse tipo No entanto o desafio concreto aqui é o de articular sistematicamente também as unilateralidades de cada uma das perspectivas estudadas de modo a tornálas operacionais no sentido de per mitir perceber como moralidade e poder se vinculam de modo peculiar no mundo moderno e muito especialmente no contexto periférico Talvez o aspecto que mais explicite as deficiências da teoria bourdiesiana e ponha a nu a necessidade de vinculála a uma teoria objeti va da moralidade como a tayloriana é o radical contextualismo da sua análise da classe trabalhadora francesa que o impede de perceber proces sos coletivos de aprendizado moral que ultrapassam de muito as barreiras de classe Na análise de Bourdieu sobre a produção opaca da desigualdade nas condições das sociedades modernas avançadas como a francesa24 o patamar último da sua análise que fundamenta uma infinidade de dis tinções sociais é a situação de necessidade da classe operária O que mostra o caráter histórico contingente e espaçotemporalmente contextual dessa necessidade é que ela se refere à distinção de hábitos de consumo dentro da dimensão de pacificação social típico do welfare state O que é visto como necessidade nesse contexto comparandose a sociedades periféricas como a brasileira adquire o sentido de consolidação histórica e 24 BOURDIEU Pierre Distinction Harvard University Press 1984 contingente de lutas políticas e aprendizados sociais e morais múltiplos de efetiva e fundamental importância os quais passam desapercebidos enquanto tais para Bourdieu Assim gostaria de propor uma subdivisão interna à categoria do habitus de tal modo a conferirlhe um caráter histórico mais matizado inexistente na análise bourdieusiana e acrescentar portanto uma dimen são genética e diacrônica à temática da constituição do habitus Assim em vez de falar apenas de habitus genericamente aplicandoo a situações específicas de classe num contexto sincrônico como faz Bourdieu acho mais interessante e rico para meus propósitos falar de uma pluralidade de habitus Se o habitus representa a incorporação nos sujeitos de esquemas avaliativos e disposições de comportamento a partir de uma situação socioeconômica estrutural então mudanças fundamentais na estrutura econômicosocial deve implicar conseqüentemente mudanças qualitativas importantes no tipo de habitus para todas as classes sociais envolvidas de algum modo nessas mudanças Esse foi certamente o caso da passagem das sociedades tradi cionais para as sociedades modernas no Ocidente A burguesia como a primeira classe dirigente na história que trabalha logrou romper com a dupla moral típica das sociedades tradicionais baseadas no código da honra e construir pelo menos em uma medida apreciável e significativa uma homogeneização de tipo humano a partir da generalização de sua própria economia emocional domínio da razão sobre as emoções cálcu lo prospectivo autoresponsabilidade etc às classes dominadas Esse processo se deu em todas as sociedades centrais do Ocidente das mais vari adas maneiras Em todas as sociedades que lograram homogeneizar um tipo humano transclassista esse foi um desiderato perseguido de forma consciente e decidida e não deixado a uma suposta ação automática do progresso econômico Assim sendo esse gigantesco processo histórico homogeneizador que posteriormente foi ainda mais aprofundado pelas conquistas sociais e políticas de iniciativa da própria classe trabalhadora o qual certamente não equalizou todas as classes em todas as esferas da vida mas sem dúvida generalizou e expandiu aspectos fundamentais da igual dade nas dimensões civis políticas e sociais como examinadas por Marshall no seu texto célebre pode ser percebido como um gigantesco processo de aprendizado moral e político de profundas conseqüências É precisamente esse processo histórico de aprendizado coletivo que não é adequadamente tematizado por Bourdieu no seu estudo empíri co acerca da sociedade francesa Ele representa o que gostaria de deno LUA NOVA Nº 59 2003 62 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 63 minar de habitus primário de modo a chamar atenção para esquemas avaliativos e disposições de comportamento objetivamente internalizados e incorporados no sentido bourdieusiano do termo que permite o com partilhamento de uma noção de dignidade efetivamente compartilhada no sentido tayloriano É essa dignidade efetivamente compartilhada por classes que lograram homogeneizar a economia emocional de todos os seus membros numa medida significativa que me parece ser o fundamento pro fundo do reconhecimento social infra e ultrajurídico o qual por sua vez permite a eficácia social da regra jurídica da igualdade e portanto da noção moderna de cidadania É essa dimensão da dignidade comparti lhada no sentido não jurídico de levar o outro em consideração e que Taylor chama de respeito atitudinal25 que tem que estar disseminada de forma efetiva numa sociedade para que possamos dizer que nessa sociedade concreta temos a dimensão jurídica da cidadania e da igualdade garantida pela lei Para que haja eficácia legal da regra de igualdade é necessário que a percepção da igualdade na dimensão da vida cotidiana esteja efetivamente internalizada É essa dimensão que exige portanto um efetivo consenso valorativo transclassista como sua condição de existência que não é percebida enquanto tal por Bourdieu É essa ausência que o permite pen sar as relações entre as classes dominantes e dominadas como relações especulares reativas e de soma zero A radical contextualidade de seu argumento o impede de perceber a importância de conquistas históricas desse tipo de sociedade como a francesa as quais tornamse óbvias por comparação com sociedades periféricas como a brasileira onde tal con senso inexiste Ao chamar a generalização portanto das précondições sociais econômicas e políticas do sujeito útil digno e cidadão no sen tido tayloriano de reconhecido intersubjetivamente como tal de habitus primário eu o faço para diferenciálo analiticamente de duas outras realidades também fundamentais o habitus precário e o que gostaria de denominar habitus secundário O habitus precário seria o limite do habitus primário para baixo ou seja seria aquele tipo de personalidade e de disposições de com portamento que não atendem às demandas objetivas para que seja um indi víduo seja um grupo social possa ser considerado produtivo e útil em uma sociedade de tipo moderno e competitivo podendo gozar de reco nhecimento social com todas as suas dramáticas consequências existenciais e políticas Para alguns autores mesmo sociedades afluentes como a alemã já apresentam agora segmentos de trabalhadores e de pobres que vivem do seguro social precisamente com esses traços de um habitus precário26 na medida em que o que estamos chamando de habitus primário tende a ser definido segundo os novos patamares adequados às recentes transformações da sociedade globalizada e da nova importância do conhecimento No entanto como iremos ver essa definição só ganha o estatuto de um fenô meno de massa permanente em países periféricos como o Brasil O que estamos chamando de habitus secundário tem a ver com o limite do habitus primário para cima ou seja tem a ver com uma fonte de reconhecimento e respeito social que pressupõe no sentido forte do termo a generalização do habitus primário para amplas camadas da população de uma dada sociedade Nesse sentido o habitus secundário já parte da homogeneização dos princípios operantes na determinação do habitus primário e institui por sua vez critérios classificatórios de dis tinção social a partir do que Bourdieu chama de gosto Mas a determi nação conceitual precisa dessa diferenciação triádica da noção de habitus deve ser acoplada à discussão tayloriana das fontes morais ancoradas insti tucionalmente no mundo moderno seja no centro ou na periferia para sua adequada problematização Como a categoria de habitus primário é a mais básica na medida em que é a partir dela que se torna compreensível seus limites para baixo e para cima devemos nos deter ainda um pouco na sua determinação Gostaria de usar as investigações de Reinhardt Kreckel para tentar levar a noção de habitus primário a um patamar mais concreto de análise Parto da pressuposição de que a noção de Kreckel de ideolo gia do desempenho27 permite pensar a dimensão sociológica da pro dução da distinção social a partir da força objetiva da idéia de dignidade do agente racional como proposta por Taylor Afinal as pessoas não são aquinhoadas eqüitativamente com o mesmo reconhecimento social por sua dignidade de agente racional Essa dimensão não é tão rasa como a simples dimensão política dos direitos subjetivos universalizáveis e intercambiáveis sugere A dimensão jurídica da proteção legal é apenas uma das dimensões apesar de fundamental e importantíssima desse processo de reconhecimento Se é o trabalho útil produtivo e disciplina LUA NOVA Nº 59 2003 64 26 BITTLINGMAYER Uwe Transformation der Notwendigkeit prekarisierte habitusfor men als Kehrseite der Wissensgesellschaft pp 225254 in Theorie als Kampf Zur poli tischen Soziologie Pierre Bourdieus EICKELPASCH Rolf et alli orgs Opladen Leske und Budrich 2002 27 KRECKEL Reinhardt Politische Soziologie der sozialen Ungleichheit Frankfurt Campus 1992 pp 67106 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 65 do que parece estar por trás da avaliação objetiva do valor relativo de cada qual nessa dimensão então o potencial encobridor de desigualdades por trás da noção de dignidade do agente racional deve se manifestar mais facilmente nessa dimensão Kreckel chama de ideologia do desempenho a tentativa de elaborar um princípio único para além da mera propriedade econômica a partir do qual se constitui a mais importante forma de legitimação da desigualdade no mundo contemporâneo A idéia subjacente a esse argu mento é que teria que haver um pano de fundo consensual Hinter grundkonsens acerca do valor diferencial dos seres humanos de tal modo que possa existir uma efetiva ainda que subliminarmente produzida legitimação da desigualdade Sem isso o caráter violento e injusto da desigualdade social se manifestaria de forma clara e a olho nu Para ele a ideologia do desempenho baseiase na tríade meri tocrática que envolve qualificação posição e salário Destes a qualifi cação refletindo a extraordinária importância do conhecimento com o desenvolvimento do capitalismo é o primeiro e mais importante ponto que condiciona os outros dois A ideologia do desempenho é uma ideologia na medida em que ela não apenas estimula e premia a capacidade de desempenho objetiva mas legitima o acesso diferencial permanente a chances de vida e apropriação de bens escassos28 Apenas a combinação da tríade da ideologia do desempenho faz do indivíduo um sinalizador com pleto e efetivo do cidadão completo Vollbürger A tríade torna também compreensível por que apenas através da categoria do trabalho é possí vel se assegurar de identidade autoestima e reconhecimento social Nesse sentido o desempenho diferencial no trabalho tem que se referir a um indi víduo e só pode ser conquistado por ele próprio Apenas quando essas pré condições estão dadas pode o indivíduo obter sua identidade pessoal e social de forma completa Isso explica por que uma dona de casa por exemplo passe a ter um status social objetivamente derivado ou seja sua importância e reconhecimento social dependem de seu pertencimento a uma família ou a um marido Ela se torna neste sentido dependente de critérios ads critivos já que no contexto meritocrático da ideologia do desempenho 28 Id ibid p98 ela não possuiria valor autônomo29 A atribuição de respeito social nos papéis sociais de produtor e cidadão passa a ser mediado pela abstração real já produzida por mercado e Estado aos indivíduos pensados como suporte de distinções que estabelecem seu valor relativo A explicitação de Kreckel acerca das précondições para o reconhecimento objetivo dos papéis de produtor e cidadão é importante na medida em que é fundamen tal não apenas referirse ao mundo do mercado e da distribuição de recur sos escassos como perpassado por valores como faz Nancy Fraser30 por exemplo mas é necessário explicitar que valores são esses Afinal vai ser o poder legitimador do que Kreckel chama de ide ologia do desempenho que irá determinar aos sujeitos e grupos sociais excluídos de plano pela ausência dos pressupostos mínimos para uma com petição bem sucedida dessa dimensão objetivamente seu nãoreconheci mento social e sua ausência de autoestima A ideologia do desempenho funcionaria assim como uma espécie de legitimação subpolítica incrustada no cotidiano refletindo a eficácia de princípios funcionais ancorados em instituições opacas e intransparentes como mercado e Estado Ela é intrans parente posto que aparece à consciência cotidiana como se fosse efeito de princípios universais e neutros abertos à competição meritocrática Acho que essa idéia ajuda a conferir concretude àquilo que Taylor chama de fonte moral a partir da noção de self pontual embora seu poder ideológico e produtor de distinções não seja explicitamente tematizado por ele A partir da definição e da constituição de uma ideologia do desempenho como mecanismo legitimador dos papéis de produtor e cidadão que equivalem na reconstrução que estou propondo ao conteúdo do habitus primário é possível compreender melhor o seu limite para baixo ou seja o habitus precário Assim se o habitus primário impli ca um conjunto de predisposições psicossociais refletindo na esfera da personalidade a presença da economia emocional e das précondições cog nitivas para um desempenho adequado ao atendimento das demandas va riáveis no tempo e no espaço do papel de produtor com reflexos diretos no papel do cidadão sob condições capitalistas modernas a ausência dessas précondições em alguma medida significativa implica na consti tuição de um habitus marcado pela precariedade Nesse sentido habitus precário pode referirse tanto a setores mais tradicionais da classe trabalhadora de países desenvolvidos e aflu LUA NOVA Nº 59 2003 66 29 Id ibid p100 30 FRASER Nancy Justice Interruptus Routledge 1997 pp 1140 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 67 entes como a Alemanha como aponta Uwe Bittlingmayer em seu estudo31 incapazes de atender as novas demandas por contínua formação e flexibi lidade da assim chamada sociedade do conhecimento Wissensge sellschaft que exige agora uma ativa acomodação aos novos imperativos econômicos quanto também a secular ralé brasileira tratada no livro de Florestan Fernandes que examinamos acima Nos dois casos a formação de todo um segmento de inadaptados um fenômeno marginal em socie dades como a alemã e um fenômeno de massas numa sociedade periférica como a brasileira é resultante da ampliação da definição do que estamos chamando habitus primário No caso alemão a disparidade entre habi tus primário e habitus precário é causada pelas demandas crescentes por flexibilização o que exige uma economia emocional de tipo peculiar No caso brasileiro o abismo se cria já no limiar do século XIX com a re europeização do pais e se intensifica a partir de 1930 com o início do processo de modernização em grande escala Neste caso a linha divisória passa a ser traçada entre os setores europeizados ou seja os setores que lograram se adaptar às novas demandas produtivas e sociais e os setores não europeizados que tenderam por seu abandono a uma crescente e permanente marginalização Como o princípio básico do consenso transclassista é como vimos o princípio do desempenho e da disciplina a fonte moral do self pontual para Taylor passa a ser a aceitação e internalização generalizada desse princípio que faz com que a inadaptação e a marginalização desses setores possa ser percebida tanto pela sociedade incluída como também pelas próprias vítimas como um fracasso pessoal É também a centrali dade universal do princípio do desempenho com sua conseqüente incor poração préreflexiva que faz com que a reação dos inadaptados se dê num campo de forças que se articula precisamente em relação ao tema do desempenho positivamente pelo reconhecimento da intocabilidade de seu valor intrínseco apesar da própria posição de precariedade e negativa mente pela construção de um estilo de vida reativo ressentido ou aberta mente criminoso e marginal32 Já o limite do habitus primário para cima tem a ver com o fato de que o desempenho diferencial na esfera da produção tem que ser asso ciado a uma estilização da vida peculiar de modo a produzir distinções sociais Ou seja o desempenho diferencial não é apenas nem primaria 31 BITTLINGMAYER Op cit p233 32 FERNANDES Op cit vol I p94 mente talvez uma fonte de valorização social soziale Wertschätzung que estimula os laços de solidariedade social como propõe Axel Honneth33 por exemplo mas também em grande medida uma fonte de distinções sociais que se nutre do contexto de opacidade e de aparente neu tralidade o qual é parte integrante da ideologia do desempenho para o estabelecimento de distinções sociais que tendem a se naturalizar como efeito da opacidade peculiar de suas condições de existência Nesse sentido o que estamos chamando de habitus secun dário seria precisamente o que Bourdieu teria em mente com seu estudo sobre as sutis distinções que analisa no seu Distinctions É nessa dimen são que o gosto passa a ser uma espécie de moeda invisível transfor mando tanto o capital econômico puro quanto muito especialmente o capital cultural travestidos em desempenho diferencial a partir da ilusão do talento inato em um conjunto de signos sociais de distinção legítima a partir dos efeitos típicos do contexto de opacidade em relação às suas condições de possibilidade Mas também aqui é necessário acrescentar a dimensão objeti va da moralidade que permite em última instância todo o processo de fa bricação de distinções sociais a qual é descurada por Bourdieu Assim também o conceito de habitus secundário34 deve ser vinculado a exemplo do que fizemos com os conceitos de habitus primário e precário ao con texto moral ainda que opaco e naturalizado que lhe confere eficácia Se percebemos na ideologia do desempenho enquanto corolário da dig nidade do ser racional do self pontual tayloriano o fundamento moral implícito e naturalizado das duas outras formas de habitus que distin guimos acredito que o habitus secundário possa ser compreendido na sua especificidade antes de tudo a partir da noção tayloriana de expressivi dade e autenticidade O ideal romântico da autenticidade que o Taylor de Sources of the Self interpreta como uma fonte moral alternativa ao self pontual e o LUA NOVA Nº 59 2003 68 33 HONNETH Axel Kampf um Annerkenung Frankfurt Suhrkamp p203 34 Axel Honneth em sua interessante crítica a Bourdieu tende a rejeitar in toto o conceito de habitus dado o componente instrumental e utilitário que o perpassa Ao fazer isto no entan to Honneth corre o risco de jogar a criança fora junto com a água suja do balde como os alemães gostam de dizer em um provérbio popular na medida em que o que me parece impor tante é precisamente reconectar o conceito de habitus com uma instância moral que permita iluminar nas dimensões individual e coletiva também além do dado instrumental que é irre nunciável o tema do aprendizado moral Ver HONNETH Die zerissene Welt der symbolis chen Formen zum kultursoziologischen Werke Pierre Bourdieus in Die Zerrissene Welt des Sozialens Frankfurt Suhrkamp 1990 p171 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 69 princípio do desempenho que o comanda na medida em que implica a reconstrução narrativa de uma identidade singular para a qual não há mo delos préestabelecidos vive o perigo de transformase no seu contrário nas condições atuais O mote do diagnóstico da época levado a cabo por Taylor no seu The Ethics of Authenticity é precisamente a ameaça crescente de trivialização desse ideal do seu conteúdo dialógico e de autoinvenção em favor de uma perspectiva autoreferida simbolizada no que o autor chama de quick fix35 solução rápida O tema do gosto como a base das distinções sociais fundadas no que estamos chamando de habitus secundário compreende tanto o hor izonte da individualização conteudística baseada no ideal da identidade original dialógica e narrativamente constituída quanto o processo de indi viduação superficial baseado no quick fix Bourdieu não percebe a dife rença entre as duas formas já que para ele por força de suas escolhas ca tegoriais a estratégia da distinção é sempre utilitária e instrumental Para meus fins no entanto essa diferença é fundamental Afinal a recuperação da dimensão moral objetiva trabalhada por Taylor é o que explica em últi ma instância o apelo e eficácia social inclusive da versão massificada e pastiche dessa possibilidade de individualização A personificação do gosto para Bordieu serve antes de tudo precisamente para a definição da personalidade distinta uma personali dade que aparece como resultado de qualidades inatas e como expressão de harmonia e beleza e da reconciliação de razão e sensibilidade a definição do indivíduo perfeito e acabado36 As lutas entre as diversas frações de classe se dão precisamente pela determinação da versão socialmente hegemônica do que é uma personalidade distinta e superior A classe tra balhadora que não participa dessas lutas pela definição do critério hegemônico de distinção seria um mero negativo da idéia de personali dade quase como uma nãopessoa como as especulações de Bourdieu acerca da redução dos trabalhadores a pura força física deixa entrever37 Mas é precisamente aqui creio eu que o contextualismo de Bourdieu se mostra em seus limites e em sua perspectiva ahistórica Uma comparação entre as realidades francesa e brasileira pode ilustrar melhor o que imagino a partir da distinção entre habitus primário 35 TAYLOR The Ethics of Authenticity Harvard University Press 1991 p35 36 BOURDIEU Distinction Harvard University Press 1984 p11 37 Id ibid p384 e secundário e a importância desta diferenciação para uma percepção ade quada das especificidades das modernidades central e periférica Desse modo se estou certo seria a efetiva existência de um consenso básico e transclassista representado pela generalização das précondições sociais que possibilitam o compartilhamento efetivo nas sociedades avançadas do que estou chamando de habitus primário que faz com que por exemplo um alemão ou francês de classe média que atropele um seu compatriota das classes baixas seja com altíssima probabilidade efetivamente punido de acordo com a lei Se um brasileiro de classe média atropela um brasileiro pobre da ralé por sua vez as chances de que a lei seja efetivamente apli cada neste caso é ao contrário baixíssima Isso não significa que as pes soas nesse último caso não se importem de alguma maneira com o ocor rido O procedimento policial é geralmente aberto e segue seu trâmite buro crático mas o resultado é na imensa maioria dos casos simples absolvição ou penas dignas de mera contravenção É que na dimensão infra e ultrajurídica do respeito social obje tivo compartilhado socialmente o valor do brasileiro pobre nãoeuropeiza do ou seja que não compartilha da economia emocional do self pontual que é criação cultural contingente da Europa e América do Norte é com parável ao que se confere a um animal doméstico o que caracteriza obje tivamente seu status subhumano Existe em países periféricos como o Brasil toda uma classe de pessoas excluídas e desclassificadas dado que elas não participam do contexto valorativo de fundo o que Taylor chama de dignidade do agente racional o qual é condição de possibilidade para o efetivo compartilhamento por todos da idéia de igualdade nessa dimensão fundamental para a constituição de um habitus que por incorpo rar as características disciplinadoras plásticas e adaptativas básicas para o exercício das funções produtivas no contexto do capitalismo moderno poderíamos chamálo de habitus primário Permitamme precisar ainda um pouco mais essa idéia central para todo meu argumento neste artigo Falo de habitus primário dado que se trata efetivamente de um habitus no sentido que essa noção adquire em Bourdieu São esquemas avaliativos compartilhados objetivamente ainda que opacos e quase sempre irrefletidos e insconscientes que guiam nossa ação e nosso comportamento efetivo no mundo É apenas esse tipo de con senso como que corporal préreflexivo e naturalizado que pode permitir para além da eficácia jurídica uma especie de acordo implícito que sugere como no exemplo do atropelamento no Brasil que algumas pessoas e classes estão acima da lei e outras abaixo dela Existe como que uma rede LUA NOVA Nº 59 2003 70 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 71 invisivel que une desde o policial que abre o inquerito até o juiz que de creta a sentença final passando por advogados testemunhas promotores jornalistas etc que por meio de um acordo implícito e jamais verbalizado terminam por inocentar o atropelador O que liga todas essas intencionali dades individuais de forma subliminar e que conduz ao acordo implícito entre elas é o fato objetivo e ancorado institucionalmente do não valor humano do atropelado posto que é precisamente o valor diferencial entre os seres humanos que está atualizado de forma inarticulada em todas as nossas práticas institucionais e sociais Não se trata de intencionalidade aqui Nenhum brasileiro europeizado de classe média confessaria em sã consciência que considera seus compatriotas das classes baixas nãoeuropeizadas subgente Grande parte dessas pessoas votam em partidos de esquerda e participam de cam panhas contra a fome e coisas do gênero A dimensão aqui é objetiva sub liminar implícita e intransparente Ela é implícita também no sentido de que não precisa ser lingüisticamente mediada ou simbolicamente articula da Ela implica como a idéia de habitus em Bourdieu toda uma visão de mundo e uma hierarquia moral que se sedimenta e se mostra como signo social de forma imperceptível a partir de signos sociais aparentemente sem importância como a inclinação respeitosa e inconsciente do inferior social quando encontra um superior pela tonalidade da voz mais do que pelo que é dito etc O que existe aqui são acordos e consensos sociais mudos e sub liminares mas por isso mesmo tanto mais eficazes que articulam como que por meio de fios invisíveis solidariedades e preconceitos profundos e invisíveis É esse tipo de acordo para usar o exemplo do atropelamento acima que está por trás do fato de que todos os envolvidos no processo policial e judicial na morte por atropelamento do subhomem não europeizado sem qualquer acordo consciente e até contrariando expectati vas explícitas de muitas dessas pessoas terminem por inocentar seu com patriota de classe média Bourdieu não percebe pelo seu radical contextualismo que implica um componente ahistórico a existência do componente transclas sista que faz com que em sociedades como a francesa exista um acordo intersubjetivo e transclassista que pune efetivamente o atropelamento de um francês de classe baixa posto que ele é efetivamente na dimensão sub política e subliminar gente e cidadão pleno e não apenas força física e muscular ou mera tração animal É a existência efetiva desse componente no entanto que explica o fato de que na sociedade francesa numa dimen são fundamental independentemente da pertença a classe todos sejam cidadãos Esse fato não implica por outro lado que não existam outras dimensões da questão da desigualdade que se manifestam de forma tam bém velada e intransparente como tão bem demonstrado por Bourdieu em sua análise da sociedade francesa Mas a temática do gosto como sepa rando as pessoas por vínculos de simpatia e aversão pode e deve ser ana liticamente diferenciada da questão da dignidade fundamental da cidadania jurídica e social que estou associando aqui ao que chamo de habitus primário A distinção a partir do gosto tão magistralmente reconstruída por Bourdieu pressupõe no caso francês um patamar de igualdade efeti va na dimensão tanto do compartilhamento de direitos fundamentais quan to na dimensão do respeito atitudinal de que fala Taylor no sentido de que todos são percebidos como membros úteis ainda que desiguais em ou tras dimensões Em outras palavras à dimensão do que estamos chamando habitus primário se acrescenta uma outra dimensão que também pres supõe a existência de esquemas avaliativos implícitos e insconscientes compartilhados ou seja corresponde a um habitus específico no sentido de Bourdieu como exemplarmente demonstrado por este autor a partir das escolhas do gosto ao qual estamos denominando habitus secundário Essas duas dimensões obviamente se interpenetram de várias maneiras No entanto podemos e devemos separálas analiticamente na medida em que obedecem a lógicas distintas de funcionamento Como diria Taylor as fontes morais são distintas em cada caso No caso do habitus primário o que está em jogo é a efetiva disseminação da noção de dignidade do agente racional que o torna agente produtivo e cidadão pleno Em sociedades avançadas essa disseminação é efetiva e os casos de habitus precário são fenômenos marginais Em sociedades periféricas como a brasileira o habitus precário que implica a existência de redes invisiveis e objetivas que desqualificam os indivíduos e grupos sociais precarizados como subprodutores e subcidadãos e isso sob a forma de uma evidência social insofismável tanto para os privilegiados como para as próprias vítimas da precariedade é um fenômeno de massa e justifica minha tese de que o que diferencia substancialmente esses dois tipos de sociedades é a produção social de uma ralé estrutural nas sociedades periféricas Essa circunstância não elimina que nos dois tipos de sociedade exista a luta pela distinção baseada no que chamo de habitus secundário que tem a ver com a apropri ação seletiva de bens e recursos escassos e constitui contextos cristalizados e tendencialmente permanentes de desigualdade Mas a consolidação efetiva em grau significativo das précondições sociais que permitem a ge LUA NOVA Nº 59 2003 72 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 73 neralização de um habitus primário nas sociedades centrais torna a subci dadania enquanto fenômeno de massa restrito apenas às sociedades pe riféricas marcando sua especificidade como sociedade moderna e chaman do atenção para o conflito de classes específico da periferia O esforço dessa construção múltipla de habitus serve para ultra passar concepções subjetivistas da realidade que reduzem a mesma às interações face a face A situação descrita acima do atropelamento por exemplo seria explicada pelo paradigma personalista hibridista38 a par tir do capital social em relações pessoais do atropelador de classe média que terminaria levando à impunidade Esse é um exemplo típico do des propósito subjetivista de se interpretar sociedades periféricas complexas e dinâmicas como a brasileira como se o papel estruturante coubesse a princípios prémodernos como o capital social em relações pessoais Nesse terreno não há qualquer diferença entre países centrais ou periféricos Relações pessoais são importantes na definição de carreiras e chances individuais de ascensão social tanto num caso como no outro Nos dois tipos de sociedade no entanto os capitais econômico e cultural são estru turantes o que o capital social de relações pessoais não é O conceito de habitus desde que acrescentado de uma concepção não essencialista de moralidade ancorada em instituições fundamentais per mite tanto a percepção dos efeitos sociais de uma hierarquia atualizada de forma implícita e opaca e por isso mesmo tanto mais eficaz quanto a iden tificação do seu potencial segregador e constituidor de relações naturalizadas de desigualdade em várias dimensões variando com o tipo de sociedade analisado Neste sentido esse conceito pareceme um recurso fundamental desde que complementado com uma hermenêutica do sentido e da morali dade como a que Taylor nos oferece É precisamente esse tipo de enfoque teórico alternativo que me parece permitir que se navegue entre as duas mar gens polares de um culturalismo essencialista por um lado e de teorias de médio alcance que perdem qualquer relação com realidades mais abrangentes por outro As conseqüências práticas e políticas desse tipo de diagnóstico alternativo que revaloriza os componentes políticos e sociocul turais relacionados à temática da desigualdade e da sub cidadania certa mente não passam desapercebidas ao leitor atento JESSÉ SOUZA é professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro Iuperj 38 Na versão por exemplo já citada neste trabalho de um Roberto DaMatta NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA OU O QUE É SER GENTE JESSÉ SOUZA Este texto discute e combina algumas teorias contemporâneas sobre a origem e a dinâmica do reconhecimento social como a de Charles Taylor com abordagens socioculturais acerca da temática da desigualdade como as de Pierre Bourdieu e Reinhard Kreckel de modo a aplicálas de forma modificada e produtiva para o esclarecimento de questões centrais da modernidade periférica como os fenômenos da subcidadania e da natu ralização da desigualdade Seu objetivo é elaborar uma concepção teórica alternativa às abordagens personalistas e patrimonialistas desses fenô menos assim como às percepções conjunturais e pragmáticas produto da parcelização e fragmentação do conhecimento que perdem o vínculo com qualquer realidade mais ampla e totalizadora Palavraschave Modernidade periférica reconhecimento social desigualdade pensamento social brasileiro NON RECOGNITION AND UNDERCITIZENSHIP OR WHAT IS IT TO BE A HUMAN BEING This article discusses and matches some contemporary theories on the origin and dynamics of social recognition such as Charles Taylors and sociocultural approaches to the subject of inequality such as Pierre Bourdieus and Reinhard Kreckels in order to apply them in a modified and productive way to central matters of peripheral modernity such as the undercitizenship and the naturalization of inequality Its aim is to develop an alternative conception to the patrimonialist and personalist approach es to the subject as well as to shortrange and pragmatic perceptions which are the result of the partition and fragmentation of knowledge unconcerned about understanding a more embracing reality Keywords Peripheral modernity social recognition inequali ty Brazilian social thought RESUMOSABSTRACTS

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