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Direito ·

Antropologia Social

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19 Pierre Clastres 19341977 Ovídio de Abreu Filho Introdução A experiência direta do terreno as monografias dos pesquisadores e as mais antigas crônicas não deixam nenhuma dúvida sobre isso se existe alguma coisa completamente estranha a um índio é a ideia de dar U11 ordem ou de ter de obedecer Clastres 2003 28 O nome de Pierre Clastres permanece ligado à ideia de sociedade contra o I tado Ideia de origem etnológica porque foi certamente determinada por problema conceitos desenvolvidos no campo da antropologia Mas isto não impede que se imagi que ela também tenha sido suscitada por questões filosóficas e talvez por inquietaçê provenientes de experiências políticas exteriores ao domínio do pensamento propr mente antropológico 1 O jovem Clastres2 não pode ter sido indiferente às duas grandes guerras mundi que dividiram e devastaram o continente europeu nem às guerras coloniais em particul a Guerra da Argélia Muito menos ainda ao nazismo e aos fascismos que expuseram âmbito mesmo da civilização ocidental sua radical intolerância à diferença desta manifestada no holocausto dos judeus e na perseguição assassina de outras minori como ciganos homossexuais doentes mentais etc Como outros cientistas e filósofi ele deve ter observado com atenção inquieta que a Segunda Guerra vencida pelas for aliadas racionais e democratas concluiuse com um genocídio atômico com os bomb leios de Hiroshima e Nagasaki Mas isto não é tudo pois há algo ainda mais decisi uma decepção com a promessa comunista a esperança aberta pela revolução soviética possibilidade de um novo mundo mundo comunista sem classes e sem Estado cila com o stalinismo e com a violência do Estado soviético contra qualquer resistêrn Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ Professor do Departamento Antropologia e do Programa de PósGraduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense UF 282 interna ao seu domínio O movimento comunista dividese em tendências divergentes o marxismo perde sua aura revolucionária e revela sua face de ideologia de partido e de Estado Uma enorme desconfiança incide sobre a dialética o homem e a razão Foi o drama de 1956 a invasão da Hungria e o anúncio oficial por Khrushchev dos crimes de Stalin que modificou o agenciamento político e existencial dos quatro estudantes de filosofia militantes comunistas da célula do PC da Sorbonne em torno de François Châtelet Pierre Clastres Lucien Sebag Michel Cartry e Alfred Adler fa zendoos passar da filosofia para a etnologia Cartry e Adler orientaram suas pesquisas para a África com Marcel Griaule Clastres e Sebag escolheram a América com Alfred Métraux e Claude LéviStrauss Segundo uma ordenação retomada por LéviStrauss cf ensaio neste livro a an tropologia comporta três dimensões Ela começa como etnografia observação e descri ção de uma sociedade ou grupo particular ela continua como etnologia pela aplicação do método comparativo que necessariamente mobiliza um conjunto de pesquisas etno gráficas conquista uma primeira síntese sempre parcial que pode ser geográfica histó rica ou sistemática e finalmente ampliando seu espectro comparativo a antropologia alcança a última etapa da síntese com a conquista de universais culturais Observese que neste esquema a palavra antropologia aparece duas vezes uma primeira vez desig nando uma extremidade da série significando a síntese final momento da deter minação de universais da Cultura e uma outra vez como categoria que subsume as três dimensões do conhecimento antropológico Há aí a indicação de que na antropologia de LéviStrauss as análises etnográficas e etnológicas são conectadas no projeto de determinação de universais fornecendo os elementos a serem inte grados numa nova função de universalização função simbólica que rechaça além de qualquer teleologia histórica as essências inteligíveis e as instâncias subjetivas sejam elas metafísicas ou transcendentais Havia nessa atitude estruturalista mais do que a promessa de um novo pensamen to capaz de afirmar a alteridade como tal pois com efeito as análises apresentadas por LéviStrauss nas Estruturas elementares do parentesco 1949 no Totemismo hoje 1962 no Pensamento selvagem 1962 e também nas Mitológicas 1944 1967 1968 1971 revela vam respectivamente a universalidade da proibição do incesto a regra por excelência ie qualquer sociedade humana e sobretudo a universalidade de uma função simbóli a como potência subjacente a qualquer sistema de classificação e a qualquer forma de pensamento inclusive do pensamento científico As Mitológicas dissolvem a oposição io logos e do mito demonstram não ser mais possível opor o mito ao real como ficção rrem ao racional como absurdo Fulgurava o desembaraço de uma antropologia hábil 283 em determinar ordens simbólicas inconscientes irredutíveis ao primado da identidade sobre a diferença e às oposições entre o eu e o outro a natureza e a cultura o sensível e o inteligível a razão e o desatino a humanidade e a vida A radicalidade do pensamento de LéviStrauss foi plenamente percebida e sauda da na definição da originalidade da antropologia assim formulada pelo filósofo Maurice MerleauPonty A etnologia não é uma especialidade definida por um objeto particular as sociedades primitivas é uma maneira de pensar aquela que se impõe quando o objeto é o outro e exige de nós que nos transformemos 2010 1451 Neste ponto extremo o pensamento de LéviStrauss tocou profundamente Clastres que ao seu modo também almeja uma nova antropologia capaz de estabelecer um diálogo entre a civilização oci dental e as civilizações primitivas Não qualquer etnologia não a etnologia clássica que repete no seu exercício a partilha estabelecida pela razão ocidental entre razão e desati no que ao ignorar a linguagem própria das civilizações primitivas extingue qualquer possibilidade de diálogo Não a antropologia evolucionista mas como disse Clastres a propósito da antropologia de LéviStrauss uma outra etnologia à qual seu saber permi tisse forjar uma nova linguagem infinitamente mais rica uma etnologia que superando a oposição tão central em torno da qual se edificou e se afirmou nossa civilização se transformaria ela mesma num novo pensamento CLASTRES 1968 90 Contudo nem marxista nem estruturalista não é para o domínio das universali dades que se encaminham as pesquisas de Clastres Seu pensamento se orienta por uma outra questão que determina que comece por um questionamento políticoepistemológi co da partilha imposta pela razão ocidental A antropologia de Clastres tem o sentido de redefinir os termos e de questionar o valor dos valores que avaliam as sociedades primiti vas pelo padrão da civilização ocidental que dispõe toda alteridade no campo da desrazão Diante desta partilha teórica e prática infamante Clastres emite um grito que não cessará de ressoar ao longo de sua obra é preciso levar a sério as sociedades pri mitivas A este grito corresponde um novo conceito de sociedade primitiva Na sua formulação mais concisa este conceito pode ser assim enunciado as sociedades pri mitivas são sociedades sem Estado e as sociedades sem Estado são sociedades contra o Estado Evidentemente a este novo conceito corresponde uma outra perspectiva que altera o sentido dominante relacionado à ideia de etnologia Desde essa nova orientação a palavra etnologia não designa mais uma primeira síntese delimitada exteriormente por um balizamento geográfico ou histórico à espera de uma outra mais verdadeira por que mais universal A antropologia política de Clastres é sobretudo uma etnologia Não porque seja parcial no sentido de apenas circunscrever um subconjunto da experiência humana mas porque é sob uma nova orientação etnológica que se pode contemplar uma diferença radical que introduz uma rachadura incontornável no conjunto das sociedades humanas entre o antes da liberdade e o depois da servidão No lugar da partilha da razão ocidental que opõe primitivos e civilizados sociedades sem Estado e sociedades 284 com Estado Clastres declara uma outra diferença etnológica entre Sociedades contra o Estado e Sociedades de Estado Esta afirmação envolve uma dimensão genealógica um questionamento do sen tido e do valor da Razão ocidental que prejulga e desqualifica qualquer outra forma de pensamento e de vida Que forças se exprimem e que vontade se manifesta na panilha da razão Uma genealogia do Ocidente Conforme sua narrativa dominante a metafísica ocidental desde Platão tem como projeto alcançar a ciência dizer as coisas tal como elas são tem como prática elaborar um discurso capaz de legitimarse de modo imanente tem como objeto o Ser como instrumento a razão e como objetivo reduzir a violência e mostrar que ela é insensatez Em decorrência desse projeto porque nunca deixou de ostentar esse ideal a civilização ocidental se concede uma posição transcendente com respeito às demais culturas Contudo o colonialismo europeu o genocídio e o etnocídio persistentes como po lítica contra os indígenas das Américas exibem segundo a análise atenta de Clastres a violência como elemento imanente ao humanismo e à civilização ocidental E contra riando a promessa da metafísica e a presunção ocidental o que se constata é a estranha vizinhança entre violência e razão na qual a primeira aparece como condição e meio da segunda Ou seja segundo esta análise a violência não é o negativo da razão muito ao contrário de fato a razão necessita da violência para desdobrarse como de direito se deve apontar para uma violência imanente à própria razão ocidental à sua atitude de depre ciar e de segregar toda alteridade e toda diferença remetendoas ao campo do desatino O fato é que a civilização ocidental não se inclui no cenário das demais experiên cias humanas seu desdobramento é sempre contra o outro jogando qualquer alteridade no campo da desrazão Essa atitude foi relacionada na antropologia a um elemento gené tico imanente à essência da cultura em geral a um princípio que estaria na base de uma tendência universal de depreciar a alteridade O etnocentrismo seria esse princípio que constrange toda cultura a avaliar as demais pelo seu próprio padrão Contudo um pen samento que problematiza os fundamentos mesmos da ideia que opõe o Ocidente como razão e o resto como desatino não pode se contentar com uma compreensão abstrata do etnocentrismo Não é porque toda cultura se configura como ponto de vista determinado por um sistema complexo de referências composto de julgamentos de valor motivações conscientes e inconscientes que conforma a percepção de outras culturas que se deve concluir que todos os pontos de vista sobre o outro se equivalem Avaliada desde o horizonte dessa nova diferenciação que distingue dois tipos fundamentais de sociedades a ideia de etnocentrismo deve ser dramatizada Quando referido ao novo sentido da partilha à diferença irredutível entre sociedades de Estado e 285 sociedades contra o Estado o etnocentrismo não pode mais ser pensado como uma pro priedade universal da vida cultural em geral O conceito de etnocentrismo é diferenciado e admite a determinação de tipos de etnocentrismo Como diz Clastres se toda cultura é etnocêntrica somente a cultura ocidental é etnocida 2004 81 ou seja se toda cultura tende a depreciar o outro somente algumas conduzem essa depreciação a uma política de aniquilamento dos outros modos de vida O que distingue efetivamente a cultura ocidental O que faz com que a cultura ocidental seja necessariamente etnocida Eis a questão que segundo Clastres permite ultrapassar uma compreensão abstrata do etnocentrismo que desconsidera suas diferen ças concretas A esse respeito Clastres associa a cultura ocidental a duas circunscrições fundamentais o Estado e o capitalismo O conceito de etnocídio diferentemente do conceito de genocídio que remete à ideia de raça e à vontade de extermínio de uma minoria étnica referese à ideia de cultura e à vontade de destruição de outros modos de vida e de pensamento Em ambos os casos tratase da negação da alteridade ora dirigida ao corpo ora à alma do outro Morte sempre morte da alteridade Mas se o genocídio exprime no dizer de Clastres um desejo de absoluta supressão física do outro o etnocídio exprime o princípio de apli cação de um projeto de redução espiritual do Outro ao Mesmo Resta ainda um ponto fundamental anotado por Clastres a civilização ocidental é etnocida em primeiro lugar no interior dela mesma O Estado nacional por exemplo deve tudo homogeneizar impor uma língua oficial uma religião oficial uma adminis tração unificada contra todas as particularidades locais etc Esta observação permite que Clastres vá ainda mais longe na elucidação das relações entre o etnocídio e o Estado o primeiro não é um simples componente do segundo há um vínculo mais profundo entre o desejo etnocida e o desejo de Estado O etnocídio argumenta Clastres é uma prática logicamente conforme à essência do Estado uma vez que ambos correspondem ao exer cício de forças centrípetas que conduzem à dissolução do múltiplo no Um Nesse nível formal Clastres constata que a prática etnocida e a máquina estatal funcionam da mesma ma neira e produzem os mesmos efeitos sob as espécies da civilização oci dental ou do Estado revelamse sempre a vontade de redução da diferen ça e da alteridade o sentido e o gosto do idêntico e do Um CLASTRES 2004 83 A reflexão de Clastres sobre os vínculos do etnocídio com as culturas ocidentais não se restringe a apontar essa sua conformidade com o Estado Sua análise pondera as diferenças concretas entre tipos de Estado e afirma que a diferença pertinente entre os estados bárbaros Império Inca antigo Egito despotismos orientais etc e os estados civilizados democracias totalitarismos e ditaduras diversas aquela que torna o etno cídio sem limites está para ele no seu regime de produção no capitalismo 286 a sociedade industrial a mais formidável máquina de produzir é por isso mesmo a mais terrível máquina de destruir Raças sociedades indi víduos espaço natureza mares florestas subsolo tudo é útil tudo deve ser utilizado tudo deve ser produtivo de uma produtividade elevada ao seu limite máximo de intensidade CLASTRES 1980 86 Fica então elucidado por Clastres que a escolha deixada pelo Ocidente civilização de Estado e sociedade capitalista às demais sociedades humanas era um dilema ou ceder à produção ou desaparecer ou etnocídio ou genocídio CLASTRES 2004 86 Diante disto como não desconfiar que a intolerância obstinada do humanismo não exprima uma impossibilidade estrutural da cultura ocidental de entrar em diálogo com outras culturas E como deixar de prolongar essa desconfiança até a própria antro pologia Como poderia ela ficar totalmente imune a essa intolerância constitutiva da cultural ocidental A ideia de sociedade contra o Estado A antropologia política de Clastres assumiu o desafio de pensar o que se ofereceu como inconcebível para o pensamento europeu a sociedade primitiva percebida como lugar de uma diferença absoluta como espaço estranho e impensável da ausência ausência de tudo o que constitui o universo sociocultural dos observadores mundo sem hierarquia homens que não obedecem a ninguém sociedade indiferente à posse e à riqueza chefes que não mandam culturas sem moral porque ignoram o pecado sociedades sem classes sociedades sem Estado etc CLASTRES 2004 234 Essa percepção dos conquistadores e dos primeiros viajantes delineou a visão de povos sem fé sem lei e sem rei que reaparece na antropologia clássica não mais como espanto primeiro mas domesticada em discursos com pretensão científica Visões evolu cionistas naturalistas economicistas marxistas etc compartilham uma imagem domi nante imagem dogmática do pensamento antropológico que reveste de incompletude as sociedades primitivas estas são sociedades mutiladas sociedades sem Estado socieda des sem escrita sociedades sem história sociedades sem desenvolvimento tecnológico sociedades de economia de subsistência sem mercado etc Clastres respondeu a esse desafio com a ideia de sociedade contra o Estado Essa ideia contém dois movimentos e desdobrase em dois tempos Ela envolve inicialmente uma concordância mas essa aquiescência diabólica em sua aparente inocência se pro longa numa afirmação que questiona a imagem dogmática do pensamento antropológi co Sim de fato as sociedades primitivas são sociedades sem Estado mas há um outro sim uma outra afirmação que exprime uma reviravolta profunda e decisiva de direito as sociedades sem Estado são sociedades contra o Estado O que se passa com essa redu plicação da afirmação 287 A ideia de sociedade contra o Estado ao envolver nela essa dupla afirmação in troduz a dimensão do desejo no conceito mesmo de sociedade primitiva A segunda afirmação revela um outro desejo o desejo dos selvagens irredutível à falta de algo que não se possui e que se almeja Um desejo afirmador imanente positivo constituinte de uma maneira de viver A ideia de sociedade contra o Estado traz à tona um desejo produtivo o desejo selvagem do múltiplo que constitui a sociedade primitiva como so ciedade indivisa que avessa a qualquer vontade de comandar ou de obedecer recusa na sua essência mesma a possibilidade de sua divisão Esse desejo afirmativo e criador ima nente ao exercício e ao ser da sociedade primitiva envolve no seu funcionamento por assim dizer molecular uma potência de antecipação e de evitação de todo movimento que possa vir a favorecer o nascimento de uma vontade de comandar e de obedecer que possa vir a ameaçar a integridade da sua organização indivisa que possa vir a ocasionar a emergência do poder coercitivo ou seja do Estado Conduzir a análise até essa dimensão talvez seja condição para que se possa levar a sério os selvagens Pois o que se vê nessa dimensão não é mais o vazio de uma ausência presumida pela fórmula sociedades sem Estado mas antes a vitalidade do pensamento dos selvagens e a consistência sociopolí tica das sociedades primitivas Há ainda um outro aspecto importante A distinção entre dois tipos de sociedade absolutamente irredutíveis um ao outro sociedades sem Estado e sociedades contra o Estado recoloca para Clastres o problema da passagem de um tipo ao outro Com o abandono de qualquer explicação apoiada em pressupostos evolucionistas continuístas teleológicos o aparecimento do Estado tornase enigmático Neste ponto revelasera dical o afastamento entre o pensamento de Clastres e o marxismo pois Clastres recusa o encadeamento mecânico disposto na seguinte série causal o desenvolvimento das forças produtivas determina o aparecimento das classes sociais e do seu regime de exploração que por sua vez requer e condiciona como modificação superestrutura o surgimento do Estado Posto fora de todo encadeamento mecânico de causas o Estado perde sua necessidade histórica e sua emergência ou existência desponta e persiste como aconte cimento não elucidado Com efeito a ideia de sociedade contra o Estado subverte a lógica que subordina a compreensão das sociedades primitivas ao modelo do Estado com ela Clastres afirma a universalidade do poder político e o caráter apenas regional da concepção ocidental do poder Quando a questão da origem do Estado deixa de se encadear com a questão do surgimento do estado de sociedade é o Estado como problema que se põe a girar em torno das sociedades contra o Estado Não se trata mais de estimar as sociedades sem Estado do ponto de vista das sociedades contra o Estado Assim a ideia de sociedades contra o Estado remete as sociedades sem Estado às sociedades com Estado não como ao seu destino ou como objetivo final da humanidade mas sob a forma de problema Qual é a origem do Estado 288 A ideia de sociedade contra o Estado desdobrase portanto em dois problemas distintos e relacionados Como fazem as sociedades primitivas para não ter Estado e de onde provém o Estado A articulação desses problemas eleva diz Clastres a etnolo gia à dimensão de uma teoria geral a construir da sociedade e da história É importante sublinhar o a construir Em todo caso Clastres imagina essa teoria como uma antropo logia política geral que se delineia em duas grandes interrogações l O que é o poder político Isto é O que é a sociedade e 2 Como se passa do poder político não coercitivo ao poder político coercitivo Isto é O que é a história CLASTRES 2003 39 Se a ideia de sociedade contra o Estado comporta no seu horizonte estes dois problemas a obra de Clastres não pode perdêlos de vista mesmo que ela não ofereça a eles uma res posta direta Por que então Clastres conserva essas interrogações que ele reconhece não ser ainda capaz de responder A ausência de respostas a esses problemas talvez tenha o sentido de ressaltar o Acontecimento inominável 3 que racha a humanidade entre um antes e um depois da servidão voluntária entre um antes e um depois do Estado mantendo sob suspeita toda tentativa de suturar essa rachadura toda resposta continuísta e toda integração hu manista etnocida De todo modo além desse sentido o reconhecimento da incapacidade de res ponder a essas interrogações reorienta o olhar de Clastres se parece ainda impossí vel determinar as condições de aparecimento do Estado podemos em troca precisar as condições de seu não aparecimento CLASTRES 2003 222 Essa reconversão é mais profunda pois com ela o problema da origem do Estado muda de estatuto deixa de ser um problema de antropologia geral e tornase um problema etnográfico recolado pela pesquisa etnográfica e pela análise etnológica da filosofia e das instituições políticas dos selvagens O mais relevante passa a ser investigar se e como esse problema concerne às sociedades primitivas Talvez por isso a partir dessa nova perspectiva as instituições pri mitivas apareçam para Clastres como objetos multifacetados agendamentos complexos de forças e movimentos divergentes O paradoxo da chefia indígena Um ano antes de sua partida para os Guayaki do Paraguai4 Pierre Clastres escreve Troca e poder filosofia da chefia indígena seu primeiro ensaio de etnologia que con tém como que contraído o programa de sua pesquisa futura Se é possível como foi dito compreender a obra de Clastres como um rigoroso desdobramento da ideia de socie dade contra o Estado devese considerar que essa ideia aparece pela primeira vez com caráter de esboço neste seu artigo cujo problema é entender o sentido e o funcionamen to de uma estranha instituição presente na grande maioria das sociedades americanas a instituição de uma chefia destituída de poder de comando 289 Clastres se recusa a ver nisso nessa ausência de poder de comando do chefe indí gena a evidência de uma falta a prova de que as sociedades primitivas carecem de uma efetiva organização política Por isso recusando as interpretações vigentes na literatura visando lançar um novo olhar sobre os materiais diversos compilados no Handbook oj SouthAmerican Indians Clastres aborda a chefia indígena não como um elemento exótico destituído de sentido mas como um elemento que solicita o seguinte problema Como pensar essa disjunção entre a chefia e o poder Arrancada do enquadramento evolucionista que situa as sociedades primitivas numa linha evolutiva num estágio de evolução prépolítico a instituição da chefia indí gena força o antropólogo a interrogar o sentido da estranha persistência de um poder quase impotente de uma chefia sem autoridade de uma instituição que funciona sem conteúdo CLASTRES 2003 47 Desta forma Clastres retoma a caracterização mera mente descritiva proposta por Robert Lowie para interrogar sistematicamente o sentido da chefia indígena Segundo essa descrição o chefe deve exercer uma função moderado ra visando cuidar da unidade do grupo ser um bom orador e generoso com seus bens tendo o privilégio da poliginia Clastres introduz uma ordem nesta lista Primeiro distingue o exercício da chefia dos elementos associados ao chefe O exercício efetivo da chefia exibe a face positiva do chefe como apaziguador e como organizador das atividades econômicas e das ce rimônias A análise dos elementos associados ao chefe dom oratório generosidade e poliginia revela que esses elementos são os mesmos cuja troca constitui a sociedade como tal e que sancionam a passagem da natureza para a cultura Clastres assinala uma diferença de nível entre esses dois conjuntos de elementos e considera que não se deve confundir o nível empírico da instituição que diz respeito ao exercício efetivo da chefiai com o nível transcendental da instituição que diz respeito ao conjunto das prestações e das contraprestações que organizam as relações entre a estrutura social e a instituição política da chefia O que se observa no primeiro nível é a aparente falta de sentido da instituição que exibe um chefe prestigioso mas submetido à vontade do grupo e sem qualquer poder decisório A observação do segundo nível mostra que as condições de possibilidade da chefia indígena concernem aos três níveis fundamentais da troca de bens de mulheres e de palavras Contudo uma análise atenta evidencia que a chefia indígena nesses três níveis fundamentais rompe com o princípio da reciprocidade o chefe recebe mais mu lheres do que retribui doa mais bens do que recebe e monopoliza o exercício do discurso sem interlocutores Assim paradoxalmente no nível transcendental da instituição no qual o poder se relaciona com os três níveis estruturais da sociedade o chefe transgride o princípio da reciprocidade que condiciona a instauração da ordem cultural Perspicácia da análise de Clastres em ter evidenciado a ruptura da chefia com o princípio de reciprocidade Agudeza de espírito em ter decifrado o sentido paradoxal 290 de tão grande dissonância entre a ordem política e a ordem cultural Nessa dimensão de contestação da cultura a chefia não pode se configurar como uma instituição com sentido unívoco em conformidade absoluta com a ordem cultural E ainda menos o chefe pode ter um sentido não ambíguo pois é um personagem prestigioso mas tam bém perigoso Ambivalência da chefia ambivalência do chefe Positividade da política primitiva pois se a chefia é o lugar no qual a reciprocidade cessa de regular a circulação das mulheres dos bens e da linguagem a esfera política deve aparecer como exterior e como antagônica à estrutura do grupo é na relação negativa mantida com o grupo que se enraíza a impotência da função política a rejeição desta para o exterior da sociedade é o próprio meio de reduzila à impotência CLASTRES 2003 59 Esta proposição ace na para outra mais decisiva que relaciona o sentido da chefia a uma intencionalidade sociológica inconsciente a relação do poder com a troca por ser negativa não deixa de nos mostrar que é ao nível mais profundo da estrutura social lugar da constituição inconsciente de suas dimensões de onde advém e onde se encerra a problemática desse poder Em outros termos é a própria cultura como diferença maior com a natureza que se investe na recusa desse poder CLASTRES 2003 6061 E nessa dimensão desvelase uma identificação essencial do poder coercitivo e da natureza As sociedades primitivas colocam assim em seus próprios termos a questão do poder o poder coercitivo transcendente aparece como contestação da própria cultura Há aí um pensamento distinto das filosofias políticas ocidentais especialmente a de Hobbes o Estado é remetido não à origem do estado de sociedade à cultura mas ao des regramento da natureza Com efeito Clastres relaciona a constituição da esfera política primitiva a uma intuição de que o poder é em sua essência coerção que a atividade unificadora da função política se exerceria não a partir da estrutura da sociedade e conforme a ela mas a partir de um mais além incontrolável e contra ela que o poder em sua natureza não é senão um álibi furtivo da natureza em seu poder CLASTRES 2003 61 Clastres vê na intuição dessa ameaça o pressentimento de que a transcendência de um poder encerra um risco mortal para o grupo Ao considerar essa intuição e esse pressen timento ele propõe a hipótese de que as sociedades primitivas instituem sua esfera política como um verdadeiro mecanismo de defesa contra a emergência de um poder transcenden te pois no domínio da política primitiva a chefia é apenas lugar aparente do poder o lugar real é o próprio corpo social que o detém e o exerce como unidade indivisa As sociedades primitivas instituem a chefia para mostrar o poder como negativida de a ser controlada Nelas o chefe permanece sempre numa relação de dependência real com o grupo sempre na posição de devedor em relação ao grupo sempre numa relação de 291 subordinação com respeito ao grupo O chefe é aquele que está obrigado a falar e a ser gene roso sob pena de ser abandonado pelo grupo Sobretudo o privilégio da poliginia mantém o chefe endividado e aprisionado ao grupo A filosofia da chefia indígena diferentemente da filosofia de Hobbes associa o po der coercitivo a virtualidade do Estado ao ressurgimento caótico da natureza ou seja à destruição da cultura A análise de Clastres cessa quando discerne no âmago da chefia in dígena o desejo das sociedades selvagens de perseverarem na indivisão essa vontade de estabelecer instituições que funcionem corno maneiras de evitar a aparição de um poder separado fundado sobre a coerção Sutileza da política primitiva que determina a chefia corno instituição contra o Estado instância de antecipação e conjuração da emergência do poder coercitivo o verdadeiro negativo da sociedade primitiva Arqueologia da violência a guerra nas sociedades primitivas Clastres procede nos seus últimos escritos reunidos postumamente no livro Ar queologia da violência pesquisas de antropologia política publicado em 1980 do mesmo modo que procedeu no seu primeiro texto e em todos os outros que escreveu Corno já foi dito ele começa por extrair o fato etnográfico dos clichês que o recobrem Após esse trabalho de desbastamento o fato ressurge corno objeto problemático e corno instituição positiva que incita o pensamento a questionar as imagens existentes sobre as sociedades primitivas Assim de caso em caso considerando a chefia o riso indígena a iniciação o profetismo tupiguarani a guerra etc Clastres estende e aprofunda o seu pensamento sobre o ser da sociedade primitiva No ensa10 Arqueologia da violência a guerra nas sociedades primitivas ao in terrogar a guerra em sua positividade Clastres apresenta a sua mais rica descrição do funcionamento sociopolítico da sociedade primitiva enquanto sociedade contra o Estado Neste caso o fato incontornável é a paixão dos primitivos pela guerra amplamen te noticiada por exploradores missionários mercadores ou viajantes nas mais diversas regiões do planeta Considerando essa massa de documentos Clastres não hesita em afir mar que a guerra apresenta nas sociedades sem Estado urna dimensão de universalidade as sociedades primitivas são sociedades guerreiras são sociedades voltadas para a guerra E não deixa de assinalar que essa primeira imagem das sociedades primitivas ressoa na filosofia política de Thomas Hobbes corno confirmação empírica de sua especulação fi losófica que opõe ao estado de sociedade que é para ele sociedade do Estado um estado de natureza que se distingue pela guerra de todos contra todos Clastres assinala o inesperado desaparecimento da guerra no discurso da etnologia recente que segundo ele se explica pelo fato de que as sociedades primitivas quando se tornam objeto de estudo já estão desfiguradas a caminho da morte instaladas num paci fismo forçado pelos estados nacionais Mas ele acrescenta ainda urna outra razão interna 292 à história da disciplina tratase da produção e da difusão de um conjunto de discursos que tendem a excluir a guerra do domínio das relações sociais Clastres destaca inicialmente a concepção naturalista de LeroiGourhan que apresenta a guerra como um comportamento de agressão inscrito na realidade biológica do homem Inerente ao homem como ser natural a agressividade encontra sua finalida de na subsistência Codificada socialmente a agressão manifestase na caça e na guerra pensada como um análogo da caça Os caçadores tornamse guerreiros e os guerreiros detentores da força armada dominam o restante da comunidade O social é reduzido ao natural ao biológico O cortejo reducionista prossegue com um discurso economicista que qualifica a economia primitiva como economia de subsistência economia que seria incapaz em decorrência de seu subdesenvolvimento tecnológico de responder aos desafios de um meio natural que ela não consegue dominar Sociedade da miséria sobre esse fundo sob a ação da concorrência vital prosperaria o fenômeno da guerra Clastres observa que esse discurso enunciado científico do postulado popular ajustase perfeitamente à antro pologia marxista e ao marxismo propriamente dito que como teoria da história fundada na tendência das forças produtivas ao desenvolvimento deve atribuirse como poto de apoio uma espécie de grau zero das forças produtivas é exatamente a economia primitiva pensada desde então como economia da miséria como economia que querendo sair da miséria tenderá a desenvolver suas forças produtivas CLASTRES 2004 226 Clastres ataca esses discursos economicistas logicamente tão bemarranjados com uma pergunta muito simples É a economia primitiva sim ou não uma economia da miséria E responde que as pesquisas mais escrupulosas da antropologia econômica de monstram que a economia dos selvagens permite uma satisfação total das necessidades materiais da sociedade ao preço de um tempo reduzido de atividade de produção e de uma baixa intensidade dessa atividade a sociedade primitiva seletiva na determinação de suas necessidades em vez de consumirse na luta pela sobrevivência são segundo a fórmula de Marshall Sahlins 1972 cf ensaio neste livro as primeiras sociedades de abundância E acrescenta ainda considerando o pequeno tempo dedicado à produção as sociedades primitivas são verdadeiras sociedades de lazer Isto posto a explicação econo mista da guerra perde seu ponto de apoio e o econômico não pode mais explicar a guerra Há ainda o discurso estruturalista Este situa a guerra no âmbito das relações so ciais mas não é capaz de pensar a guerra em si mesma A lógica da reciprocidade subor dina a guerra à troca as guerras são trocas malsucedidas e a troca são guerras potenciais pacificamente resolvidas Neste discurso que equaciona o ser da sociedade primitiva como um serparaatroca a guerra não possui em si mesma nenhuma positividade e 293 não apresenta consistência institucional alguma Tudo estaria muito bem diz Clastres se não fosse a inadequação desse discurso à realidade etnográfica à quase universalidade do fenômeno da guerra primitiva Clastres contrapõe a posição de Hobbes a sociedade primitiva como guerra de todos contra todos e a de LéviStrauss a sociedade primitiva é a troca de todos com todos e recusa as duas A sociedade primitiva é o espaço da troca e é também o lu gar da violência a guerra tanto quanto a troca pertence ao ser social primitivo Não se pode e é o que é preciso estabelecer pensar a sociedade primitiva sem pensar a guerra CLASTRES 2004 231 Não há nessa proposição conciliação nem com Hobbes nem com LéviStrauss E sobretudo o erro de LéviStrauss está na confusão dos planos em que se situam a troca e a guerra na sociedade primitiva Ao recusar a hipótese do continuísmo econômico que apresenta a pretensa miséria primitiva como causa de uma suposta concorrência vital entre os grupos primitivos e ao questionar o continuísmo lógico que faz da guerra um acidente que vem conturbar o funcionamento da lógica da reciprocidade Clastres isola o fato da guerra prepara o terreno para afirmar a guerra como instituição política Esse isolamento da guerra como instituição politicamente consistente e plenamente social força novamente o pensamento a examinar o ser da sociedade primitiva A sociedade primitiva é indivisa não conhece a separação entre senhores e sú ditos nem a distinção entre proprietários e não proprietários e funciona de maneira a impedir a desigualdade a exploração e a divisão A sociedade primitiva é uma multipli cidade de comunidades locais que estendem sua codificação sobre um território com preendido como espaço exclusivo de exercício dos direitos comunitários Todas orienta das por um ideal de autarquia econômica e de independência política Esse ideal implica um movimento de exclusão pois é contra as outras comunidades que cada sociedade afirma seu direito privilegiado sobre um território determinado Com efeito os ideais de autarquia econômica e de independência política mostram que as relações de cada comunidade com os grupos vizinhos é sobretudo imanente à ordem política irredutível a uma determinação de ordem econômica A sociedade primitiva é segundo a análise de Clastres ao mesmo tempo totalidade e unidade Cada comunidade enquanto indivisa pode se pensar como um Nós Esse Nós por sua vez se pensa como totalidade na relação igual que mantém com os Nós equivalentes que constituem as outras aldeias tribos bandos etc A comunidade primitiva pode se afirmar como totalidade porque se institui como unidade ela é um todo finito porque é um Nós indiviso CLASTRES 2004 237238 Contudo esses ideais não isolam as comunidades locais ao contrário eles supõem e mobilizam um sistema dinâmico de relações que está necessariamente em movimen to perpétuo A comunidade primitiva ao invés de permanecer fechada em si mesma 294 abrese para as outras na intensidade extrema da nolênu gucreia C2 e conduzido aos seguintes problemas Como pensar ao mesmo tem s e i A guerra é um simples acidente ou é uma condição estruturante da s7ie tiva Eis que Clastres se vê nesse ponto obrigado a voltar às ideias de Hoites e i LéviStrauss para recusar esses dois modelos e escapar da cilada que se monta quando se orienta essa contraposição para constranger o pensamento da sociedade primitia à seguinte alternativa a guerra de todos contra todos ou a troca de todos com todos A hipótese de LéviStrauss segundo a compreensão de Clastres é uma lógica da identificação ela entra em contradição com a lógica da sociedade primitiva a comuni dade primitiva recusa identificarse com as outras perder sua diferença e a capacidade de se pensar como autônoma Essa recusa da lógica da identificação manifesta uma lógica centrífuga imanente à sociedade primitiva que mantém as comunidades lo cais na dispersão que lhes é própria Tratase de uma lógica sociológica Há imanente à sociedade primitiva uma lógica centrífuga da atomiza ção da dispersão da cisão de modo que cada comunidade tem necessi dade para se pensar como tal como totalidade una da figura oposta do estrangeiro ou do inimigo e assim a possibilidade da violência está ins crita de antemão no ser social primitivo a guerra é uma estrutura universal da sociedade primitiva e não o fracasso acidental de uma troca malsucedida CLASTRES 2004 239 Nesse sentido Clastres pode considerar a guerra primitiva como uma instituição plenamente política social e não natural uma política do múltiplo orientada contra o surgimento do Um uma política constitutiva não do estado de sociedade em geral mas do dinamismo das sociedades sem Estado das sociedades contra o Estado Clastres pondera que se a sociedade primitiva não pode consistir na paz universal que alienaria a sua liberdade ela também não pode se entregar à guerra total que aboli ria a sua igualdade Com efeito diz ele O ser social tem portanto simultaneamente necessidade da troca e da guerra para poder a uma só vez conjugar o ponto de honra autonomista e a recusa da divisão É com essa dupla exigência que se relacionam o es tatuto e a função da troca e da guerra que se desdobram em planos diferentes CLASTRES 2004 240 Esta posição não significa o reconhecimento de uma continuidade que asseguraria a passagem da guerra à troca ou viceversa A novidade da análise de Clastres está em mostrar que a guerra e a troca dizem respeito a duas estruturas diferentes e a funções es pecíficas Além disso Clastres considera fundamental dizer que nas sociedades primitivas a guerra como estrutura subordina a troca como função Assim para ele a guerra opera uma imediata classificação do povo em amigos e inimigos Portanto se a comunidade primitiva tem necessidade de aliados é porque ela tem inimigos De todo modo o fundamental é que o dispositivo da guerra divide os 295 Outros em aliados e inimigos Desta forma entre o Eu e o Outro como inimigo há o aliado político O aliado político demonstra a prevalência da guerra sobre a troca pois ele revela que é a guerra como estratégia das comunidades para se preservarem autônomas e para se conservarem indivisas que determina a aliança como tática A aliança política não pode aparecer no texto de Clastres como o oposto da guerra pois na prática efetiva ela é requerida pela guerra real E essa subordinação se confirma quando Clastres mostra que o princípio da reciprocidade nas sociedades primitivas articula grupos reunidos nas redes de aliança políticas e só impera nessas redes Clastres critica LéviStrauss por ele não ter diferenciado o nível propriamente antropológico a troca exogâmica de mulheres requerida pela proibição do incesto que instaura a cultura do nível político os regimes de troca entre os grupos humanos como viventes políticos Em outros termos LéviStrauss confundiria a reciprocidade fundadora da cultura com a troca como modo de relação entre grupos sociais Clastres que não fala do horizonte da humanidade insiste na originalidade da sociedade primi tiva que ao desenvolver uma estratégia destinada a reduzir ao máximo possível a neces sidade da troca não é em absoluto a sociedade para a troca mas antes pelo contrário sociedade contra a troca CLASTRES 2004 243 Clastres desvenda uma relação sistemática entre a guerra como política externa da sociedade primitiva e o respeito à lei ancestral como garantia de sua política interna em favor da indivisão social De um lado diz ele a sociedade primitiva quer perseverar em seu ser manter sua indi visão Tal é tanto no plano econômico impossibilidade de acumular riquezas quanto no plano da relação de poder o chefe existe mas não manda a política interna da sociedade primitiva conservarse corno Nós indiviso corno totalidade una CLASTRES 2004 246 De outro lado ele mostra que o desejo das comunidades locais de assegurarem sua indivisão implica a hostilidade a guerra entre as comunidades indivisas Portanto nas sociedades primitivas a indivisão interna e a oposição externa se conjugam uma é condição da outra A guerra é seu fundamento a própria vida de seu ser sua finalidade a sociedade primitiva é sociedade para a guerra ela é por essência guerreira CLAS TRES 2004 247 E ela é essencialmente guerreira porque a guerra primitiva é a mani festação de uma lógica centrífuga uma lógica do múltiplo Enquanto expressão de uma força centrífuga e de uma lógica do múltiplo a guerra primitiva resiste à força centrípeta à lógica da unificação à lógica do Um ou seja ao Estado Mais uma vez a análise de Clastres termina quando ela relaciona a descrição da complexidade de uma instituição no caso a guerra como estrutura da sociedade primi tia com um nível mais profundo relativo ao desejo coletivo que anima a vida da socie dade primitiva Clastres termina quando conecta a guerra primitiva com o desejo das 2 sociedades selvagens de perseverarem na indivisão Estabelecida esta conexão a guerra primitiva aparece como mais um dispositivo que exprime o desejo que constitui a socie dade primitiva como sociedade contra o Estado E assim diante da presunção etnocida da civilização ocidental a obra de Clastres renova a cada livro e a cada ensaio o desejo de dar o testemunho etnológico da existência e consistência milenar das sociedades contra o Estado Notas 1 Não se pode deixar de mencionar embora não seja o tema deste ensaio a importância da obra de Clastres para a antropologia brasileira Confirase a esse respeito o ensaio de Tânia Stolze Lima e Mareio Goldman publicado como prefácio da edição brasileira do livro A sociedade contra o Estado e o posfácio da edição brasileira do livro Arqueologia da violência intitulado Intempestivo ainda de Eduardo Viveiros de Castro 2 Pierre Clastres nasce em Paris em 1934 Faz seus estudos de filosofia na Sorbonne formandose em 1957 Acompanha os cursos de LéviStrauss no Collége de France a partir de 1960 Foi diretor de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique CNRS e membro do Laboratoire Anthropologie Sociale do Collége de Fran ce Morre aos 43 anos em um acidente de carro em uma estrada de Cévennes 3 Sobre este ponto cf o ensaio Liberdade mal encontro inominável publicado no livro Arqueologia da violência 2004 Pierre Clastres foi um pesquisador de campo Fez investigação etnográfica com os índios Guayaki do Para guai 0aneiro de 1963 a janeiro de 1964 com os Guarani do Paraguai 1965 com os Chulupi do Paraguai 1966 e 1968 com os Yanomami da Venezuela quatro meses entre 1970 e 1971 e com os Guarani do Estado de São Paulo 1974 Obras selecionadas de Pierre Clastres Arqueologia da violência Pesquisas de Antropologia Política 1977 São Paulo Cosac N aify 2004 A sociedade contra o Estado 1974 São Paulo Cosac Naify 2003 Crônica dos índios Guayaki O que sabem os Aché caçadores nômades do Paraguai 1972 São Paulo Ed 34 1995 A fala sagrada Mitos e cantos dos índios Guarani 1974 Campinas Papirus 1990 Trad de Nícia A Bonati Referências CLASTRES P Arqueologia da violência Pesquisas de Antropologia Política São Paulo Cosac N aify 2004 A sociedade contra o Estado São Paulo Cosac Naify 2003 Crônica dos índios Guayaki O que sabem os Aché caçadores nômades do Para guai São Paulo Ed 34 1995 297 A fala sagrada Mitos e cantos dos índios Guarani Campinas Papirus 1990 Trad de NA Bonati Entre silêncio e diálogo ln LÉVISTRAUSS C EArc documentos São Paulo Documentos 1968 CLASTRES P GUACHET M AD LER A LIZOT J Guerra religião e poder Lis boa Ed 70 1980 GRP 298