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Filosofia do Direito
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INDIVÍDUO E PODER P VEYNE JP VERNANT L DUMONT P RICOEUR F DOLTO F VARELA G PERCHERON O INDIVÍDUO ATINGIDO NO CORAÇÃO PELO PODER PÚBLICO Paul Veyne A Michel Foucault como recordação das nossas divertidas conversas de terçafeira à noite Entendese aqui por indivíduo um sujeito um ser ligado à sua própria identidade pela consciência ou pelo conhecimento de si Suponhamos que esse sujeito no sentido filosófico da palavra é também um sujeito no sentido político da mesma palavra suponhamos que é o sujeito1 de um rei nesse caso não obedecerá na inconsciência como tudo indica que fazem os animais pensará algo da sua obediência e do seu amo e também de si mesmo como sujeito dócil ou indócil do seu rei No sentido que aqui atribuímos à palavra um sujeito não é um animal dum rebanho é pelo contrário um 1 Sujeito em francês tanto significa sujeito como súbdito Neste caso traduzimos sujeito por sujeito na acepção sociológica do termo entendendose como tal o indivíduo enquanto submetido à vontade do soberano N da T ser que dá valor à imagem que tem de si mesmo A preocupação com esta imagem pode leválo a desobedecer a revoltarse mas pode também e é o que sucede mais frequentemente leválo a obedecer ainda mais entendida neste sentido a noção do indivíduo não se opõe de modo algum à noção de sociedade ou de Estado Pode então dizerse que esse indivíduo é atingido no coração pelo poder público quando é atingido na sua imagem de si na relação que tem consigo mesmo quando obedece ao Estado ou à sociedade Gostaríamos de distinguir este ataque à imagem de si mesmo que foi sempre um dos maiores mecanismos em jogo nos conflitos históricos de outros mecanismos não menos importantes por exemplo os mecanismos económicos ou os mecanismos de partilha do poder Quando um indivíduo é atingido assim na própria ideia que faz de si próprio pode dizerse que a sua relação com o poder público é a mesma que estabeleceria com outro indivíduo que o tivesse humilhado ou pelo contrário que houvesse lisonjeado o seu orgulho Para dar um exemplo do mecanismo historicamente importante que é a imagem de si ou a subjectividade as guerras religiosas no século XVI ou as lutas anticlericais até 1905 que foram revoltas contra a autoridade pastoral da Igreja fizeram correr mais sangue e provocaram maiores paixões do que o movimento operário do século XIX Como escreveu Lucien Febvre se havia algo que os contemporâneos de Martinho Lutero recusavam com todas as suas forças era o argumento da autoridade tudo o que era mediação ou intercessão os irritava O que gostaríamos de tentar dizer aqui é que a importância do mecanismo da subjectividade não é menor no domínio político propriamente dito Vejamos um exemplo da história romana neste caso Nero Tratase de saber por que é que os romanos ou certos círculos de Roma derrubaram Nero quando a sua vida privada que era a principal razão de queixa que contra ele existia não afectava fosse de que maneira fosse a marcha dos negócios os interesses económicos sociais ou inter nacionais que permaneciam como sempre ou até evoluíam melhor do que noutras épocas Ou usando outras palavras esta exposição surgiu de uma perplexidade a de ouvir alguém dizerme Voto em De Gaulle por causa da dignidade da sua vida privada Constatamos que a imagem de si dos sujeitos do soberano é provavelmente a chave daquilo que se designa por imagem de marca do próprio soberano carisma políticaespectáculo imagem do pai ideologia ou legitimação Na minha aldeia que foi sensibilizada no princípio deste século pela luta contra o que se sentia como a autoridade clerical os votos socialistas devemse menos ao conteúdo da política socialista do que a uma hostilidade contra o estilo de autoridade gaullista Numa sociedade como o Império romano os conflitos que constituem a trama da história política raramente estão ligados à partilha do poder e ainda mais raramente às relações económicas a questão residia em saber se o imperador seria bom ou mau era bom se respeitava as susceptibilidades da casta senatorial susceptibilidades essas tão platónicas e ocas como as do duque de SaintSimon A subjectividade é simplesmente aquilo a que uma expressão da moda mas muito exacta chama a identidade de si Existe evidentemente uma diferença de natureza entre uma revolta da miséria e da fome e uma revolta do orgulho e da altivez No entanto sendo o homem um indivíduo encontramos várias revoltas económicas que tiveram também um aspecto de subjectivação a ideia de dignidade social é bem conhecida no movimento operário do século passado sabese que esta fome de dignidade incluía também o dever por parte do operário de se elevar por via da instrução e da moralidade Acrescentemos a propósito que a estetização de si a famosa distinção é seguramente um instrumento de classe uma barreira social Mas não o foi desde a origem nem o foi sempre muitas vezes tornase nisso mas nasce em primeiro lugar da forma particular da relação de si consigo mesmo a que se chama estetização É que existe também uma elegância popular Uma última observação introdutória a susceptibilidade dos sujeitos em relação à modalidae de comando explica outro facto curioso a desproporção entre a violência das reacções afectivas ao soberano e o alcance frequentemente muito limitado do poder do soberano O poder dum rei de França atolavase na impotência uma vez ultrapassadas as portas das cidades e tal poder tinha muito menos influência nos interesse sociais e políticos do que o poder das famílias da nobreza das confrarias etc apesar disto a imagem do rei possuía um forte impacto nas subjectividades muito mais do que a imagem dum actual presidente da república no entanto bem mais poderoso Recordamos primeiramente a frase Voto em De Gaulle por causa da dignidade da sua vida privada quando os meus ouvidos escutaram esta frase ela pareceume estúpida a única questão em jogo não eram as opções políticas ou as capacidades políticas de De Gaulle Estava enganado a frase não era estúpida mas ingénua a grandiosa como os vestígios da antiguidade Suponhamos como o autor da frase que a política não constitui um domínio específico onde há problemas a resolver reformas a organizar etc Suponhamos pelo contrário que a política se reduz ao dever de ser bom pai bom esposo cidadão disciplinado Por outras palavras que a política se reduz à moral cívica em suma que não é preciso fazer política Neste caso só um homem virtuoso merecerá dirigirnos Nós que somos gente honesta e não temos outra política que não seja sêlo sentirnosíamos enxovalhados se a governar o país estivesse um homem cuja vida privada fosse objecto de críticas Efectivamente é para nós um ponto de honra a nossa moralidade impecável ora por essência a moralidade é universal ninguém tem o direito de se furtar às obrigações que ela impõe Esta universalidade que é o nosso ponto de honra sofreria a pior das afrontas se um homem de costumes levianos fosse por nós colocado no lugar de honra É escusado dizer que na prática esta concepção ética da política leva ao conservadorismo pois o apolitismo virtuoso exclui qualquer ideia de reforma de militantismo etc Mas por favor que não se confunda a instância de política conservadora e a instância de subjectividade que não quer ser conspurcada Com efeito as duas instâncias podem estar separadas na realidade Vamos supor que estávamos a lidar com um conservador incorrigível mas cínico como Vilfredo Pareto ele teria votado em De Gaulle porque De Gaulle sabia humilhar os comunistas O que ele esperava de um político é que fosse um bom técnico e nada mais A Antiguidade grecoromana viveu também durante um bom milénio uma moral cívica e que nada tinha de cínica pelo contrário Esta moral resumese numa frase só se pode ser honradamente governado por um homem que sabe governar as suas paixões E com razão quando se obedece a um chefe que é senhor de si próprio não se obedece verdadeiramente a um chefe obedecese à moral a que o chefe é o primeiro a obedecer o bem moral é o senhor comum do rei e dos seus súbditos a heteronomia é na realidade uma autonomia De tal modo que ser senhor de si próprio consiste dizia Filóstrato em ser obediente em vez de teimoso impulsivo indisciplinado Em suma a relação que o sujeito ético tem consigo próprio é idêntica neste caso à relação que o sujeito político tem com o imperador O orgulho cívico está salvo reina a autodisciplina Apressome a esclarecer que aquilo que acabo de resumir era a moral dos nobres dos notáveis ou como costumava dizerse das pessoas instruídas Seria um erro tirarse deste caso particular a falsa conclusão de que a subjectivação a relação de si para consigo mesmo é essencialmente uma questão de autonomia de relações simétricas Nada disso cada classe social arranja a sua própria subjectivação como pode a partir das possibilidades de que dispõe o orgulho continua a ser o privilégio das classes que podem permitirse têlo Mas existe sempre subjectivação mesmo entre os ple beus Existia uma concepção plebeia da autoridade que era mais ou menos o inverso da dos notáveis Uma frase curiosa de Aristóteles diz mais ou menos o seguinte os tiranos fazem ostentação da sua imoralidade dos seus amores e das suas libações Aristóteles fala verdade durante um bom meio milénio desde Antônio amante de Cleópatra aos maus imperadores romanos entre os quais Nero adoptase a política de certos monarcas que fazem alarde da sua riqueza e da sua superioridade sobre a moral vulgar e a plebe ainda os amava mais por isso É fácil compreendêla um notável tem como ponto de honra obedecer apenas ao seu semelhante Em contrapartida um plebeu que se sentiria ultrajado por ver um dos seus semelhantes na miséria pretender darlhe ordens aceitará de bom grado obedecer a um mestre cuja superioridade provada através de sinais exteriores é flagrante Na sua humildade um plebeu não universaliza os seus valores o único recurso que tem é exigir obedecer a um senhor cujos valores se revelem superiores àqueles de que a plebe dispõe não é humilhante submeterse a um homem que não pertence ao vulgo O humilde orgulho do plebeu exige a desigualdade a dissimetria Tocámos de passagem no tema do consumo ostensatório é costume explicálo através da imaginação quando o rei bebe dizse habitualmente o povo bebe em pensamento Será isto verdade Estou a lembrarme de uma página interessante de VictorLouis Tapié no seu livro sobre a arte barroca e a civilização das sumptuosas igrejas barrocas o pobre povo escreve Tapié habituavase a viver pobremente convivendo com igrejas ou palácios de ouros e mármores refulgentes e cuja riqueza em vez de o ofuscar parecia pertencerlhe em parte Mas para alguém que se ofusque com a riqueza de outrem é preciso universalizar a partir de si a noção do homem ora o pobre povo considerava que a Igreja ou a nobreza eram de uma essência superior como a sua própria riqueza demonstrava Não se inveja o fausto de um rei do mesmo modo que ninguém se 14 apaixona pela rainha O problema não era cobiçar os ouros e os mármores dos palácios e das igrejas ou possuílos em imaginação mas ter a satisfação interior de estar submetido a uma autoridade evidente Não se participava no seu fausto em imaginação como num filme pornográfico Da mesma maneira a vida faustosa que levavam António e Cleópatra ou mesmo Nero apenas podiam ofuscar a aristocracia e isso só sucedia porque os seus festins se desenrolavam publicamente ora era contrário à igualdade aristocrática que Nero desse os seus festins numa cena pública que se erguesse mais alto do que a nobreza e que limitasse a pretensão dos nobres a impor os seus valores em toda a parte Da mesma maneira Emile Zola atribuirá proporções de escândalo à imoralidade do segundo Império na qual estavam envolvidas apenas escassas centenas de pessoas mas a festa imperial tinha um brilho público que chocava o universalismo republicano da virtude Ora só a festa dionisíaca é que tem brilho a virtude não O que está em jogo por trás de tudo isto não é como vemos a desigualdade económica nem exactamente as relações de classe estas e aquela são trunfos de enorme peso mas não estão aqui em jogo Outro exemplo dizse que os estabelecimentos de banhos da antiga Roma com os seus dourados e os seus mármores eram as catedrais da Antiguidade Quando um homem do povo lá ia obtinha duas satisfações gozava de um modo muito real aquele ambiente sumptuoso do mesmo modo que o gozo que nos dá o TGV1 que no entanto não nos pertence não é imaginário e dizia consigo próprio que o imperador que mandara construir aquele sumptuoso edifício amava a plebe e era tão poderoso que ninguém se envergonhava por lhe obedecer Regressemos agora à aventura de Nero para vermos o que é que aquele imperador pretendeu realmente fazer e por que foi derrubado vamos verificar que Nero 1 TGV iniciais de Train Grand Vitesse comboio de alta velocidade existente em França N da T 15 quis impor aos seus súbditos uma nova imagem de si próprio e deles ou seja das relações deles consigo Todos conhecem o escândalo causado pela partida de Nero para a Grécia a fim de aí ver reconhecido em jogos ou em concursos o seu génio artístico Até então exercera de forma notável os seus poderes tanto na política interna como externa O motivo da queda final do imperador não reside pois nesse ponto Nada tem a ver também com os seus crimes de serralho nem com o cabotinismo por ele demonstrado na Grécia pois tal cabotinismo não foi o que se julga quando Nero se exibia em Olímpia como músico ou desempenhando o papel de cocheiro não estava a abusar do grande poder que possuía para fazer que o cidadão privado se apercebesse dos seus talentos dava livre curso a uma utopia de carácter estritamente político a do soberano que para reinar se socorre do fascínio ou do encanto do seu génio pessoal Foi por causa desta utopia que a ordem senatorial o derrubou Deixaremos de encarar Nero como um caso psicológico especial e compreenderemos que o seu projecto era político se nos lembrarmos do seguinte o príncipe Sihanuk que não é exactamente um ingénuo criou em Phnom Penh um festival anual de cinema cuja medalha de ouro reciba todos os anos ao mesmo tempo era também proclamado por todos os jornais do Camboja como o melhor jornalista do seu reino Recordamos que Estaline foi o primeiro teórico e até mesmo o melhor linguista da sua época É curioso que pelo menos que eu saiba ninguém tivesse compreendido que o famoso episódio de Nero exibindose como cocheiro e músico em Olímpia constitui um episódio de crise de utopia política ao mesmo título que a Comuna de Paris de 1871 ou a revolução dos anabaptistas de Münster em 1534 A razão disto é talvez a seguinte desde a revolta de Münster à de Paris em 1968 as revoluções apelidadas só o diabo sabe porquê de utópicas foram sempre fenómenos de massa Isso faznos esquecer que em épocas mais recuadas em que os povos estavam ao nível do chão as desordens 16 utópicas eram regra geral obra dos próprios soberanos como os faraós Amenófis IV Akhénaton ou o califa AlHakim A utopia de Nero foi pretender colocar no poder a fascinação amorosa entre o príncipe e os seus súbditos a relação seria idêntica à que um virtuoso estabelece com um público de melómanos Esta ideia não era nem mais nem menos absurda do que a de colocar no poder a imaginação o amor segundo Santo Agostinho a bondade paternal do rei os sovietes o povo soberano ou a devoção de uma nobreza hereditária A invenção de Nero é muito original pois na sua época a prática vulgar dos tiranos era antes fazer que os saudassem como deuses vivos E isso Nero nunca fez O que é desconcertante no caso de Nero constitui uma particularidade típica da época para manifestar a sua utopia Nero meteuse na pele de um actor de que modo a obtenção de um prémio nos concursos olímpicos provaria a capacidade para governar um império De modo algum mas nesse tempo os vencedores dos concursos tornavamse figuras tão míticas como o são actualmente os vencedores dos prémios Nobel Um prémio Nobel é considerado hoje em dia como alguém que pertence a um escalão superior da humanidade em geral mesmo que tenha ganho o prémio da Química será chamado a manifestarse sobre a política ou os direitos do homem Aceitamos a autoridade dum homem de ciência ou dum pensador não a dum desportista Ora os romanos não estabeleciam a mesma oposição que nós entre diversão classificação que daríamos aos jogos e a outra face laboriosa e séria da vida A utopia de Nero tentou modificar as razões que pensava ele os sujeitos podiam ter para lhe obedecer Esta utopia nem por isso constituiu uma boa jogada ideológica versão marxista ou um modo de legitimação versão weberiana traduziuse em decisões específicas e teve consequências bem reais A mais importante das decisões foi nada mais nada menos que libertar a Grécia do domínio romano descolonizála até à queda de Nero a Grécia deixou de ter um governador ro 17 mano e de pagar imposto a Roma Isto é compreensível se os gregos tinham reconhecido em Olímpia o génio do imperador não era necessário um governador para os obrigar a obedecer daí em diante obedeceriam a Nero porque estavam fascinados pelo seu génio Quanto às consequências dessa utopia foram a própria queda de Nero Os gregos amavam naturalmente o seu libertador e conservarão dele uma grata lembrança a plebe de Roma continuava a venerar o seu nome no tempo dos imperadores cristãos três séculos mais tarde e após a queda deste imperador vários falsos Neros irão aparecer e tentar arrastar multidões Se Nero caiu foi por uma simples razão de subjectivação de classe os senadores e os notáveis municipais não puderam suportar ter que obedecer a um chefe genial queriam segundo o estilo de comando da época ser cortesmente solicitados como de igual para iguais pelo primeiro magistrado do Estado O estilo de comando foi a única razão da queda de Nero Pela sua natureza a utopia de Nero não mudava em nada as relações de poder sabese que o Senado era tão impotente sob o domínio de imperadores bons que se lhe dirigiam polidamente como sob o de imperadores maus Nero também não tocou nas relações de classe e de produção Enquanto desenvolvia a sua utopia na cena grega o Império continuava a girar a máquina administrativa e fiscal prosseguia a rotina habitual Nada modificava essa rotina excepto uma coisa o entusiasmo da plebe por um príncipe que não a menosprezava muito pelo contrário uma vez que atribuía suficiente valor aos plebeus para querer transformálos em admiradores seus Em todas as épocas tem sido importante o papel desempenhado pelo mecanismo da subjectivação Nos nossos dias vemos o corpo eleitoral nos Estados Unidos ou em França exigir que um candidato à presidência não seja divorciado Os factos deste género escapam à politologia de esquerda que parte das relações de classe e à politologia de direita que visa as funções do Estado consideradas sérias Então na falta de acei 18 tação da subjectivação como um mecanismo total utilizase o recurso habitual fazse o golpe do dualismo falarseá de ideologia símbolo ou imagem de marca Nos dois casos negarseá contra toda a evidência a especificidade desse mecanismo que se considerará ou o simples reflexo dos mecanismos sérios ou algo de anedótico com que a verdadeira politologia não deve misturarse pois tratase de algo pouco credivel quando muito uma concessão verbal a fazer ao ingénuo e rebelde animal popular Dito isto o assunto não ficou resolvido há aqui um problema incontestavelmente e será preciso perdermos algum tempo a examinálo Nos outros domínios as reivindicações da subjectividade podem ser tão substanciais e sangrentas como as da miséria ou do nacionalismo mas no caso particular do soberano estas reivindicações podem permanecer em grande parte verbais quase tudo se passa neste caso ao nível de frases ou símbolos bastará aos sujeitos terem a satisfação de saber que o seu rei os ama eternamente que o seu chefe é genial ou que o povo é soberano Pouco importa que a bondade de um rei não se traduza em nada nem sequer numa redução de impostos cada um sente obscuramente que essas frases sobre o Estado e as humildes realidades do Estado pertencem a duas ordens de coisas diferentes tanto mais que ninguém espera maravilhas do Governo As coisas passamse assim o conhecimento que os sujeitos têm do Estado surgelhes de duas origens bem diferentes uma é da ordem da comunicação da interlocução afecta por consequência a subjectividade A ideia do Estado é tão vasta mais ainda é tão abstracta que nunca se pode ter dela uma experiência de conjunto nem uma experiência concreta tudo o que experimentamos na prática são os impostos a pagar as multas de estacionamento além de um sentido geral de obrigação social cujos limites em relação à moral propriamente dita permanecem vagos Há pois por um lado as experiências sempre parciais do Estado assim como as relações que os sujeitos 19 mantêm em consequência com os agentes do soberano ou com os ministros que atraiçoam as suas puras intenções Mas por outro lado existe uma experiência bem diferente em que o Estado aparece na sua totalidade e nos solicita de uma forma completamente diversa é quando a República nos chama ou quando o rei promulga as leis Então e só então o Estado parece surgir em pessoa mas só pode fazêlo usando da palavra O Estado deixa então de depender de experiências práticas nunca totalizadas tornase uma entidade pertencente à rede de comunicação O Estado toma a palavra na televisão para um diálogo com os seus súbditos diálogo em que a sua prerrogativa é aliás monologar A experiência do Estado nos seus efeitos dispersos nada tem de transparente seria preciso um verdadeiro estudo sociológico para a conseguir perceber Em contrapartida a rede de comunicação é imediata por definição aí cada um conhece o seu interlocutor ou antes trava conhecimento com ele aí cada um percebe qual o direito de falar ou de estar calado que lhe é concedido Na verdade a comunicação é por si só um império com a sua hierarquia de locutores os seus direitos desiguais à palavra que não são certamente exclusivos de relações de forças com os seus privilégios de poder dizer de sua justiça de ter a última palavra ou de não ter senão uma palavra a dizer Quando o príncipe entra em comunicação com os seus súbditos por exemplo ao fazer promulgar um édito a questão não é de saber quem governa realmente no fundo e como é que isso se processa a única questão é saber quem tem o direito de falar como soberano aos outros que apenas têm o direito de o ouvir Podemos reconhecer aqui se quisermos uma personalização do poder mas na condição de lhe inverter os termos o poder não vai confundirse com um homem é pelo contrário um homem que vem emprestar a sua voz à entidade locutora que é à partida o soberano na verdade um homem público já não é um indivíduo Quando Nero se exibia no palco em Olímpia tocando lira ninguém esquecia que ele era o senhor do mundo A semiologia pragmática está a ensinarnos que na comunicação o pensamento que cada locutor quer exprimir pesa menos do que os diferentes papéis dos locutores que já estão fixados previamente O papel do interlocutor soberano de príncipe é desses o indivíduo rei ou presidente que vem desempenhar tal papel eclipase no seu papel O Estado assume de bom grado fisionomias pessoais nem que seja a de um simples presidente da III República Não se trata de carisma ou de outra imagem do pai isso corresponde à mais simples das necessidades o Estado só pode aparecer na sua totalidade soberana se entrar na comunicação por outras palavras terá que haver um chefe que dirá a primeira ou a última palavra Um chefe é precisamente isso comunicacional pois saber quem comanda de verdade e sobretudo por que é que todos obedecem é uma questão que se situa noutro campo Eis portanto o Estado transformado em entidade locutora é preciso que um homem lhe empreste a sua voz pois uma entidade não a possui Isto pode traduzirse da seguinte maneira é preciso um chefe Voltemos agora à subjectivação Os sujeitos conhecem pois o Estado o soberano sob duas formas obedecem a mil pequenas obrigações dispersas e conhecem a voz sem réplica do chefe Esse chefe assume aos seus olhos uma estatura gigantesca e como que antropomórfica os sujeitos imaginam que o príncipe é tão poderoso como a linguagem com que se lhes dirige Aquilo que a sua subjectividade esperará desse poderoso locutor são evidentemente frases gestos simbólicos Entretanto o público continua a exigir pesados impostos Mas isso não traz qualquer desmentido às palavras do rei Uma experiência muito geral prova com efeito que não se sente a contradição possível entre duas ideias quando essas ideias têm origem em dois domínios de realidade diferentes e afectam deste modo partes diferentes da nossa personalidade a existência do receptor é uma coisa o amor do rei é outra da mesma maneira os interesses de dinheiro são uma coisa a exigência de po der respeitarse a si próprio quando se obedece é outra E esta exigência é tão específica como outras exigências que pensando bem não são menos bizarras por exemplo o patriotismo Da subjectivação resulta que a relação do cidadão com o Estado não é nunca é uma relação de pura opressão uma vez que os sujeitos reagem a esta opressão no perímetro que os poderes sociais lhes deixam estabelecem um acordo íntimo com o seu próprio eu se este acordo é mau talvez se revoltem mesmo na ausência de razões sociais O Estado não é ou não é apenas uma empresa que desempenha funções necessárias os cidadãos exigem também dele coisas com que os accionistas de uma sociedade que apenas visam os seus interesses materiais não se preocupam O problema da subjectivação não é filosófico é histórico ao mesmo título que a história social ou política melhor ainda é exclusivamente histórico uma vez que o sujeito dos filósofos varia historicamente Há um problema do sujeito porque em política ése activo no próprio momento em que se obedece Activo portanto sujeito obedecer é fazer por si próprio aquilo que outros lhe dizem para fazer não são os satélites do tirano que vos agarram nos braços e nas pernas para os colocar na posição adequada mas esses gestos não se executariam se não se tivesse recebido ordem para isso Chamase poder àquilo que determina as condutas A que título faço aquilo que me obrigam a fazer Talvez os historiadores tenham uma palavra a dizer sobre isto Enfim para vermos como nada disto é ideologia ou mascarada perguntamos o que teria acontecido se Nero em vez de ser derrubado tivesse conseguido fazer triunfar a sua utopia Cinco coisas teriam acontecido e com isto terminamos 1 Roma capital imperial tornarseia a capital mundial dos jogos acima de Olímpia no que efectivamente se tornou no século III Têloia sido um século e meio antes 2 O Senado academia e conservatório da nobreza teria sido suprimido ou perderia a sua importância o que sucedeu no século IV Um regime de sultanato com camareiros e vizires instalarseia em Roma 3 Darseia a descolonização das províncias generalização do sistema de selfgovernment que regia a Itália Acabariam os governadores de província em caso de perturbação o Governo central enviaria o exército Os impostos provinciais que marcavam a sujeição das províncias teriam sido substituídos pelos impostos indirectos que as cidades italianas pagavam do ponto de vista fiscal seria mais ou menos a mesma coisa 4 O imperialismo romano teria deixado de considerar como alvos tradicionais a Mesopotâmia e a Arábia voltarseia para as nascentes do Nilo e a planície do baixo Volga onde Nero preparava expedições Com efeito Nero estava romanticamente obcecado por esses estrangulamentos para lá dos quais o Império parecia estenderse até ao infinito Os espíritos tradicionalistas terlheiam criticado sem dúvida esses objectivos longínquos da mesma forma que Jules Ferry recebeu críticas por sonhar em conquistar a Indochina em vez de reconquistar a AlsáciaLorena Em vez das províncias romanas da Mesopotâmia e da Arábia teria havido províncias da Etiópia e da Transcaucásia Nero estava apenas a mil quilômetros de Estalinegrado 5 Finalmente teria havido rotinização do carisma O sucessor de Nero não devia possuir provavelmente o mesmo talento artístico que ele Nesse caso a competição de Nero em Olímpia terseia transformado numa cerimónia simbólica de entronização em que cada novo imperador se exibiria em cima de um carro com um instrumento de música na mão Seria apenas mais um ritual imperial 23 O INDIVÍDUO NA CIDADE JeanPierre Vernant I A nossa pesquisa encontra o seu ponto de partida na distinção feita por Louis Dumont entre duas formas opostas de indivíduos o indivíduo fora do mundo o indivíduo no mundo O modelo do primeiro é o renunciante indiano que para se constituir a si próprio na sua independência e singularidade deve excluirse de todas as ligações sociais separarse da vida tal como ela é vivida pelos homens O desenvolvimento espiritual do indivíduo tem como condição na Índia a renúncia ao mundo a ruptura com todas as instituições que formam a trama da existência colectiva o abandono da comunidade à qual pertence o exílio num lugar de solidão definido pela sua distância relativamente aos outros pela sua conduta pelo seu sistema de valores Segundo o modelo indiano o aparecimento do indivíduo não ocorre no âmbito da vida social implica que ele a tenha abandonado O segundo modelo é o homem moderno o indivíduo que afirma e vive a sua individualidade encarada como um valor no interior do mundo o indivíduo mundano cada um de nós Como surgiu este segundo tipo de individualidade Para Louis Dumont é derivada e dependente do pri meio Segundo ele quando surgem numa sociedade tradicional os primeiros germes de individualismo tal sucederá sempre em oposição com a sociedade e sob a forma do indivíduo fora do mundo Terá sido este o curso da história no Ocidente Desde a época helenística o Sábio enquanto homem ideal definese em oposição à vida mundana ter acesso à sabedoria é renunciar ao mundo separarse dele Neste sentido e neste plano o cristianismo dos primeiros séculos não representa uma ruptura com o pensamento pagão mas uma continuidade com um desvio do acento tónico o indivíduo cristão existe na e pela sua relação com Deus ou seja fundamentalmente pela sua orientação fora do mundo a desvalorização da existência mundana e dos seus valores Por etapas e Louis Dumont nos seus Ensaios sobre o Individualismo assinala as fases desse caminho a vida mundana será a pouco e pouco contaminada pelo elemento extramundano que vai progressivamente penetrar e invadir todo o campo social A vida no mundo escreve Dumont conceberseá como podendo adequarse inteiramente ao valor supremo o indivíduo fora do mundo tornarseá o moderno indivíduo no mundo Eis a prova histórica do extraordinário poder da disposição inicial Esta concepção rigorosa e sistemática das condições que permitem ao indivíduo emergir libertandose pela prática da renúncia dos constrangimentos sociais foi elaborada por Louis Dumont a partir do estudo de uma civilização particular a da antiga Índia e aplicada primeiramente apenas às sociedades que ele designa por hierárquicas ou holistas aquelas que comportam um sistema de castas e onde cada indivíduo só tem realidade em função do todo e em relação a ele onde o ser humano é inteiramente definido pelo lugar que ocupa no conjunto social pela posição que tem numa escala de estatutos separados e interdependentes Mas a partir daqui Louis Dumont estendeu a sua concepção a todas as sociedades incluindo as ocidentais e transformou a sua tese numa teoria geral do apareci mento do indivíduo e do desenvolvimento do individualismo II É a validade desta explicação geral que queremos experimentar examinando como as coisas se apresentam na Grécia arcaica e clássica a Grécia das cidades entre os séculos VIII e IV antes da nossa era II1 Há que fazer previamente duas ordens de observações As primeiras dizem respeito à religião e à sociedade gregas antigas As segundas à própria noção de indivíduo O politeísmo grego é uma religião do tipo intramundano Não só os deuses estão presentes e agem no mundo como os actos do culto visam integrar os fiéis na ordem cósmica e social a que presidem as Potências divinas e são os aspectos múltiplos dessa ordem que respondem às diferentes modalidades do sagrado Não há lugar neste sistema para a personagem do renunciante Os que mais se aproximaram dessa personagem e que designamos por órficos permaneceram marginais ao longo de toda a Antiguidade sem nunca constituírem no seio da religião uma seita propriamente dita nem sequer um grupo religioso bem definido susceptível de trazer ao culto oficial um complemento uma dimensão suplementar introduzindo nele uma perspectiva de salvação A sociedade grega não é por outro lado de tipo hierárquico mas igualitário A cidade define o grupo daqueles que a formam situandoos num mesmo plano horizontal Quem não tiver acesso a esse plano está fora da cidade fora da sociedade em última análise fora da humanidade como o escravo Mas qualquer indivíduo se for um cidadão está em princípio apto a desempenhar todas as funções sociais com as suas implicações religiosas Não há casta sacerdotal tal como não há casta guerreira Do mesmo modo qualquer cidadão apto a combater está qualificado desde que não se encontre manchado por qualquer desonra para realizar o ritual do sacrifício em sua casa ou em nome 27 dum grupo mais vasto se possuir um estatuto de magistrado que o autorize a tal Neste sentido o cidadão da polis clássica tem menos afinidades com o homo hierarquicus de Dumont do que com o homo aequalis Eis por que comparando sacrifício indiano e sacrifício grego do ponto de vista do papel do indivíduo em cada um deles depois de ter observado que no caso do renunciante indiano o indivíduo para existir deve cortar todos os laços de solidariedade que antes o constituíam ligandoo aos outros à sociedade ao mundo e a ele próprio aos seus próprios actos através do desejo eu escrevi outrora Na Grécia o sacrifcante enquanto tal permanece fortemente integrado nos diversos grupos domésticos civis políticos em nome dos quais sacrifica Esta integração até na actividade religiosa da comunidade confere aos progressos da individualização um aspecto completamente diferente tais progressos produzemse no quadro social onde o indivíduo quando começa a emergir surge não como renunciante mas como sujeito de direito agente político pessoa privada no seio da sua família ou no círculo dos seus amigos II2 Segunda ordem de observações Que significam indivíduo individualismo Em Le souci de soi Michel Foucault considera que estes vocábulos abrangem três coisas distintas que podem estar associadas mas cujas ligações não são nem constantes nem necessárias a O lugar que se reconhece como pertencendo ao indivíduo singular e o seu grau de independência relativamente ao grupo de que é membro e às instituições que o governam b A valorização da vida privada relativamente às actividades públicas c A intensidade das relações de si para consigo mesmo de todas as práticas através das quais o indivíduo se considera a si próprio nas diversas dimensões que o compõem como objecto da sua preocupação e dos seus cuidados a maneira como ele orienta e dirige para si mesmo o seu esforço de observação de reflexão e de análise preocupação consigo e também trabalho de si 28 sobre si formação de si através de todas as técnicas mentais de atenção a si mesmo de exame de consciência de colocação à prova de ajuste elucidação e expressão de si Que estes três sentidos são independentes uns dos outros pareceme uma evidência Numa aristocracia militar o guerreiro afirmase como indivíduo à parte na singularidade da sua valentia excepcional Não se preocupa minimamente com a sua vida privada nem procura agir sobre si próprio através da autoanálise Inversamente a intensidade das relações de si para consigo podem existir a par de uma desqualificação dos valores da vida privada e até mesmo duma recusa do individualismo como sucede na vida monástica Por meu lado e numa perspectiva de antropologia histórica propunha antes uma classificação um pouco diferente que reconheçoo tem algo de arbitrário mas que neste caso permite esclarecer os problemas a O indivíduo stricto sensu o seu lugar o papel que desempenha no seu ou nos seus grupos o valor que lhe é reconhecido a margem de manobra de que dispõe a sua relativa autonomia face ao enquadramento institucional em que vive b O sujeito quando o indivíduo exprimindose na primeira pessoa falando em seu próprio nome enuncia certos traços que fazem dele um ser singular c O eu a pessoa o conjunto das práticas e das atitudes psicológicas que dão ao sujeito uma dimensão de interioridade e de unicidade que o constituem interiormente como um ser real original único um indivíduo singular cuja natureza autêntica reside inteiramente no segredo da sua vida interior no coração de uma intimidade à qual ninguém com excepção dele próprio pode ter acesso pois ela definese como consciência de si Se para melhor explicitar estes três planos e as suas diferenças arriscasse uma comparação com géneros literários diria que muito esquematicamente ao indivíduo corresponderia a biografia na medida em que por oposição ao relato épico ou histórico ela se centra sobre a vida duma personagem singular ao su 29 jeito corresponderia a autobiografia ou as memórias quando o individuo conta a si próprio o curso da sua vida e ao eu corresponderiam as Confissões os Diários íntimos onde a vida interior a pessoa singular do sujeito na sua complexidade e riqueza psicológica na sua relativa incomunicabilidade formam a matéria do texto Os gregos desde a época clássica conheceram certas formas de biografia e de autobiografia Ainda recentemente A Momigliano estudou a sua evolução concluindo que a nossa ideia da individualidade e do carácter duma pessoa tinha aí a sua origem Em contrapartida não só não existem na Grécia clássica nem helenística confissões ou diários íntimos algo de impensável como já G Mish o observara e A Momigliano também a caracterização do indivíduo na autobiografia grega ignora a intimidade do eu III Comecemos pelo individuo Para localizar a sua presença na Grécia três vias de acesso 1 o indivíduo valorizado como tal na sua singularidade 2 o indivíduo e a sua esfera pessoal o domínio do privado 3 a emergência do indivíduo nas instituições sociais que pelo seu próprio funcionamento acabaram por lhe destinar na época clássica um lugar central III1 Examinarei agora dois exemplos de indivíduos fora do conum na época arcaica O herói guerreiro Aquiles o mago inspirado o homem divino Hermótimo Epiménides Empédocles Mais do que o estatuto e os títulos no corpo social o que caracteriza um herói são a singularidade do seu destino o prestígio excepcional das suas façanhas a conquista de uma glória que é realmente sua a sobrevivência através dos séculos da sua fama na memória colectiva Os homens vulgares desaparecem a partir do momento em que morrem no esquecimento tenebroso do Hades desaparecem nōnumnoi são os anónimos os sem nome Só o individuo heróico ao aceitar enfrentar a morte na flor da juventude vê o seu nome perpetuarse gloriosamente de geração em geração A 30 sua figura singular fica para sempre inscrita no centro da vida comum Para isso precisou de isolarse de oporse até ao grupo dos seus de cortar os laços com os seus iguais e com os seus chefes Foi o caso de Aquiles Mas essa distância não o transforma num renunciante em alguém que abandonou a vida mundana Pelo contrário ao levar ao extremo a lógica duma vida humana votada a um ideal guerreiro faz que os valores mundanos as práticas sociais do combatente se ultrapassem a si próprios Às normas habituais aos costumes do grupo acrescenta graças ao tenso rigor da sua biografia à sua recusa do compromisso à sua exigência de perfeição até na morte uma dimensão nova Ele instaurua uma forma de honra e de excelência que ultrapassam a honra e a excelência vulgares Aos valores vitais às virtudes sociais próprias deste mundo mas sublimadas transmutadas na experiência da morte ele confere um brilho uma majestade uma solidez que aqueles não possuem no curso normal da vida e que os fazem escapar à destruição que ameaça tudo o que existe sobre a terra Mas essa solidez esse brilho essa majestade é o próprio corpo social que os reconhece que se apropria deles e lhes garante nas instituições honra e permanência Os magos São também indivíduos à parte que se demarcam do comum dos mortais pelo género de vida e pelo regime que seguem pelos poderes excepcionais de que desfrutam Praticam exercícios que me atrevo a designar por espirituais domínio da respiração concentração do sopro animado para o purificar para o separar do corpo libertálo mandálo em viagem para o além rememoração das vidas anteriores saída do ciclo das reencarnações sucessivas São os homens divinos theoi andres que enquanto vivos se elevam acima da condição mortal até ao estatuto de seres imperecíveis Não são renunciantes mesmo que no seu rasto surja uma corrente de pensamento cujos adeptos vão ter como objectivo fugir deste mundo Pelo contrário devido precisamente à sua singularidade e à distância que os mantém isolados do grupo essas personagens 31 vão desempenhar em períodos de crise nos séculos VII e VI um papel comparável ao de nomotetas de legisladores como Sólon que purificam as comunidades das suas manchas apaziguam as revoltas arbitrarn os conflitos promulgam regulamentos institucionais e religiosos Para regular os negócios públicos as cidades precisam de recorrer a estes indivíduos fora do comum III2 A esfera do privado Desde as formas mais arcaicas das cidades no fim do século VIII e já em Homero esboçamse correlativamente um dependendo do outro e articulandose com ele os domínios do que pertence ao comum ao público e do que pertence ao particular ao próprio to koinón e to idion O comum abarca todas as actividades todas as práticas que devem ser partilhadas ou seja que não devem ser o privilégio exclusivo de ninguém nem indivíduo nem grupo nobiliário e nas quais é preciso participar para se ser um cidadão o privado é o que não tem que ser partilhado e não diz respeito a ninguém Há uma história das formas assumidas pelo comum e pelo próprio e das suas respectivas fronteiras Em Esparta a educação dos jovens e os banquetes permanecem sob a forma da agogé e das sissitias refeições tomadas obrigatoriamente em conjunto ligadas à esfera do comum são actividades cívicas Em Atenas onde a emergência de um plano puramente político na cidade se opera a um nível de abstracção mais rigoroso a política neste sentido é a partilha por todos os cidadãos do poder de comandar de deliberar e decidir de julgar a esfera do privado aquela que diz respeito a cada um para si mesmo ligará à vida doméstica a educação das crianças e os banquetes para os quais se convidam os hóspedes que o próprio escolhe O grupo dos parentes e familiares vai definir uma zona onde as relações privadas entre indivíduos poderão desenvolverse assumir maior importância e adquirir uma tonalidade afectiva mais íntima O sumposion isto é o costume generalizado a partir do século VI de as pes 32 soas se reunirem em casa depois das refeições para beberem juntas conversarem divertiremse folgarem entre homens com amigos e cortesãs cantar a elegia sob a protecção de Dioniso de Afrodite e de Eros assinala o aparecimento na vida social dum comércio interpessoal mais livre e mais selectivo onde a individualidade de cada um é tida em conta e cuja finalidade é da ordem do prazer dum prazer domesticado e partilhado no respeito pela lei do beber bem Como escreve Florence Dupont O banquete é o lugar e o meio onde o homemcidadão privado tem acesso ao prazer e ao gozo paralelamente à Assembleia que será o lugar e o meio onde o cidadãohomem público terá acesso à liberdade e ao poder Le Plaisir et la Loi p 25 As práticas e os monumentos funerários testemunham a importância crescente que face ao domínio público a esfera privada adquire com os laços afectivos que unem o indivíduo aos que lhe estão próximo Até ao fim do século VI na Ática os túmulos eram geralmente individuais prolongam a ideologia do indivíduo heróico na sua singularidade A estela tem o nome do defunto e dirigese indistintamente a todos os que passam A imagem gravada ou pintada ao mesmo título que o kouros funerário que domina o túmulo representa o morto na sua beleza juvenil como exemplo dos valores das virtudes sociais que ele encarnou A partir do último quartel do século V paralelamente aos funerais públicos celebrados em honra dos que tombaram em combate pela pátria e onde a individualidade de cada defunto é como que afogada na glória comum da cidade estabelecese o costume dos túmulos familiares as estelas associam daí em diante os mortos e os vivos da casa os epitáfios celebram os sentimentos pessoais de afecto de desgosto de estima entre marido e mulher pais e filhos III3 Mas deixemos a esfera privada entremos no domínio público Deparamos aí com uma série de instituições que permitiram que no seu seio o indivíduo emergisse nalguns dos seus aspectos Observemos dois 33 exemplos o primeiro referese às instituições religiosas o segundo ao direito Ao lado da religião cívica existem os Mistérios como os de Eléusis A sua celebração realizase bem entendido sob a protecção oficial da cidade Mas eles estão abertos a todos quantos falem grego a atenienses e estrangeiros a mulheres e homens a escravos ou seres livres A participação na cerimónia até à iniciação completa depende da decisão tomada por cada um não do seu estatuto social da sua função no grupo Além disso aquilo que o iniciado espera da sua entronização é do ponto de vista individual uma sorte melhor no além Portanto livre decisão no que toca ao acesso à iniciação e quando se sai dela singularidade de um destino póstumo ao qual os outros não podem aspirar Mas terminadas as cerimónias e obtida a consagração nada nos costumes na maneira de viver na prática religiosa no comportamento social distingue o iniciado daquilo que ele era antes nem daquele que não o é Ele conquistou uma espécie de segurança interior está intimamente modificado do ponto de vista religioso pela familiaridade que adquiriu com as duas deusas Socialmente permanece inalterado idêntico A promoção individual do iniciado nos Mistérios não o transforma em momento algum num indivíduo fora do mundo desligado da vida terrena e dos elos cívicos Outra manifestação de individualismo religioso a partir ao que parece do século V assistese à criação de grupos religiosos por iniciativa de indivíduos que além de fundarem os grupos reúnem à sua volta num santuário privado consagrado a uma divindade adeptos desejosos de reservarem para si próprios o privilégio de celebrarem em conjunto um culto particular de como diz Aristóteles sacrificarem juntos e conviverem uns com os outros Os fiéis são os sunousiastai coassociados formando uma pequena comunidade religiosa fechada que têm o prazer de se encontrar na prática de uma devoção em que cada um para participar deve fazer um pedido nesse sentido e ser aceite por cada um dos outros membros do grupo 34 Ao escolher um deus como objecto de uma forma de devoção particular e ao ser ele próprio escolhido pela pequena comunidade de fiéis o indivíduo faz a sua entrada na organização do culto mas o lugar que ele ocupa não o exclui do mundo nem da sociedade O seu aparecimento assinala por oposição aos papéis religiosos predeterminados e como que programados pelo estatuto cívico de cada um a introdução na vida religiosa de relações mais flexíveis e mais livres entre as pessoas a criação na esfera religiosa de uma nova forma de associação que tem a ver com aquilo a que se pode chamar uma sociedade selectiva Mas é sobretudo através do desenvolvimento do direito que vemos surgir o indivíduo no âmbito das instituições públicas Dois exemplos o direito criminal o testamento Nos crimes de sangue a passagem do prédireito ao direito da vendetta com os seus processos de compensação e de arbitragem à instituição dos tribunais produz a ideia do indivíduo criminal É o indivíduo que surge desde logo como sujeito do delito e objecto de julgamento Entre a concepção préjurídica do crime visto como um miasma uma mancha contagiosa colectiva e a noção que o direito elabora acerca da falta que é cometida por uma pessoa singular e que comporta graus correspondentes a tribunais diferentes consoante o crime era justificado foi cometido contra vontade ou de livre vontade e com premeditação há uma ruptura Com efeito é o indivíduo que na instituição judiciária está posto em causa na relação mais ou menos estreita que mantém com o seu acto criminal Esta história jurídica tem uma contrapartida moral implica as noções de responsabilidade de culpabilidade pessoal de mérito tem igualmente uma contrapartida psicológica levanta o problema das condições coacção espontaneidade ou projecto deliberado que presidiram à decisão de um sujeito e também o problema dos motivos da sua acção Estes problemas encontrarão eco na tragédia ática do século V uma das características deste género literário é a interrogação constante sobre o 35 individuo que age o sujeito humano face à sua acção as relações entre os heróis do drama na sua singularidade e aquilo que ele fez que decidiu cuja responsabilidade ele suporta e que no entanto o ultrapassa Outro testemunho da promoção social do indivíduo o testamento Louis Gernet analisou com inteligência as condições e modalidades do seu aparecimento A princípio na adopção entre vivos o indivíduo não é tido em consideração enquanto tal Tratase no caso de um chefe de família sem filhos de zelar para que ao adoptar na velhice um parente o seu lar não fique deserto e o seu património não seja disperso nas mãos de colaterais O uso da adopção testamentária inscrevese na mesma linha em questão está sempre a casa e a garantia da sua manutenção é o oikos que está em causa e não o indivíduo Pelo contrário quando a partir do século III se institui a prática do testamento propriamente dito este transformouse numa coisa estritamente individual permitindo a livre transmissão dos bens de acordo com a vontade formulada por escrito e que deve ser respeitada de um sujeito particular senhor de tomar decisões acerca de tudo quanto possui Entre um indivíduo e a sua riqueza qualquer que seja a forma que esta assuma património e bens adquiridos móveis e imóveis o elo é doravante directo e exclusivo a cada ser pertence um ter IV O sujeito O emprego da primeira pessoa num texto pode ter significados muito diferentes consoante a natureza do documento e a forma do enunciado édito ou proclamação dum soberano epitáfio fúnebre invocação do poeta que se coloca a si próprio em cena no início e no decurso do seu canto como inspirado pelas Musas ou detentor duma verdade revelada relato histórico no qual a certa altura o autor intervêm em pessoa para dar a sua opinião defesa e justificação de si nos discursos autobiográficos de oradores como Demóstenes ou Isócrates O discurso em que o sujeito se exprime dizendo eu não constitui pois uma categoria bem delimitada e de 36 alcance unívoco No entanto se decidi abordálo no caso da Grécia é porque ele responde a um tipo de poesia à lírica de um modo geral em que o autor pelo uso da primeira pessoa dá ao eu um aspecto particular de confidência exprimindo a sensibilidade que lhe é própria e conferindolhe o alcance geral dum modelo dum topos literário Ao fazer das suas emoções pessoais da sua afectividade do momento o tema principal da comunicação com o seu público de amigos de concidadãos de hetairoi os poetas líricos conferem a esta parte indecisa e secreta que existe em nós e que é o íntimo a subjectividade pessoal uma forma verbal exacta uma consistência mais firme Formulado na língua da mensagem poética aquilo que cada um sente individualmente como emoção no seu foro interior toma corpo e adquire uma espécie de realidade objectiva É preciso ir mais além A subjectividade do poeta uma vez afirmada cantada exaltada põe em causa as normas estabelecidas os valores socialmente reconhecidos Impõese como a pedra de toque daquilo que para o indivíduo é o belo e o feio o bem e o mal a felicidade e a infelicidade A natureza do homem é diversa constata Arquíloco cada um alegra o coração à sua maneira E Safo proclama fazendo eco desta ideia Para mim a mais bela coisa do mundo é aquela de que cada um mais gosta Portanto relatividade dos valores comumente admitidos É ao sujeito ao indivíduo naquilo que ele sente pessoalmente e de que faz a matéria do seu canto que cabe em última análise o papel de critério dos valores Uma outra característica a assinalar ao lado dos ciclos do tempo cósmico e da ordem do tempo socializado em oposição a eles o aparecimento do tempo tal como ele é vivido subjectivamente pelo indivíduo instável variável mas que conduz inexoravelmente à velhice e à morte tempo experimentado nas suas súbitas mudanças nos seus caprichos imprevisíveis na sua angustiante irreversibilidade O sujeito tem no interior de si mesmo a experiência deste tempo pessoal sob a forma do desgosto da nostalgia da espera da esperança do 37 sofrimento da recordação das alegrias passadas das presenças desaparecidas Na lírica grega o sujeito sentese a si mesmo e exprimese como essa parte do indivíduo sobre a qual não tem domínio que o deixa desarmado passivo impotente e que no entanto é nele a própria vida aquela que ele canta a sua vida IV1 O eu Os gregos arcaicos e clássicos têm bem entendido uma experiência do seu eu da sua pessoa assim como do seu corpo mas essa experiência é organizada de forma diferente da nossa O eu não é nem delimitado nem unificado é um campo aberto de forças múltiplas diz H Fränkel Sobretudo essa experiência é orientada para o exterior não para o interior O indivíduo procurase a si próprio e encontrase nos outros nesses espelhos que reflectem a sua imagem e que são para ele outros tantos alter ego parentes filhos amigos Como escreve James Redfield a propósito do herói da epopeia ele não é aos seus próprios olhos mais do que o espelho que os outros lhe apresentam O indivíduo projectase também e objectivase naquilo que ele efectivamente realiza as actividades e obras que lhe permitem captarse a si próprio não em potência mas em acto energeia e que nunca estão na sua consciência A introspecção não existe O sujeito não constitui um mundo interior fechado no qual deve penetrar para se encontrar ou antes para se descobrir O sujeito é extrovertido Do mesmo modo que o olho não se vê a si próprio o individuo para se aprender olha para outro lado para o exterior A sua consciência de si não é reflectida dobrada sobre si encerramento interior face a face com a sua própria pessoa é existencial Como já se observou muitas vezes o cogito ergo sum penso logo existo não tem qualquer significado para um grego Existo porque tenho mãos pés sentimentos porque caminho corro vejo e sinto Faço tudo isso e sei que o faço Mas nunca penso a minha existência através da consciência que tenho dela A minha consciência está sempre agarrada ao exterior tenho a consciência de ver determinado objecto de ouvir determinado som de 38 sofrer determinada dor O mundo do indivíduo não adquiriu a forma de uma consciência de si de um universo interior que define na sua origem radical a personalidade de cada um Bernard Groethuysen resume o estatuto particular da pessoa antiga numa fórmula simultaneamente lapidar e provocante dizendo que a consciência de si é a apreensão de um ele não ainda de um eu1 IV2 Podem levantarme a seguinte objecção como explicar os textos em que Platão escreve O que constitui cada um de nós é apenas a alma o ser que na realidade existe em cada um de nós e que designamos por alma imortal irá depois da morte juntarse aos outros deuses Leis 945a6b4 No Fédon Sócrates moribundo dirigese nos seguintes termos aos seus amigos Aquilo que eu sou é o Sócrates que conversa convosco egô eimi outos Socratès ho não o outro Socrates cujo cadáver em breve estará diante de vós Fédon 115c E conversando com Alcibíades o Sócrates platônico dizlhe Quando Sócrates dialoga com Alcibíades não é ao teu rosto que ele fala mas ao próprio Alcibíades e esse Alcibíades é a alma Alcibíades 130c O assunto parece aqui resolvido O que Sócrates e Alcibíades são aquilo que cada indivíduo é é a alma a psuché Essa alma que depois da morte vai juntarse ao além divino sabemos como surgiu no mundo grego A sua origem está naqueles Magos que eu evocava há pouco os quais recusando a ideia tradicional da psuché duplo do morto fantasma sem força sombra inconsciente desaparecida no Hades se esforçam mediante as suas práticas de concentração e de depuração do sopro por reunir a alma dispersa por todas as partes do corpo para que uma vez isolada e unificada seja possível se se quiser separála do corpo para viajar no além A concepção platónica de uma alma que é Sócrates encontra o seu ponto de partida a sua disposição 1 Anthropologie philosophique Paris Gallimard 1952 2ª ed 1980 p 61 39 inicial em exercícios de abandono do corpo de fuga para fora do mundo de evasião para o divino cujo objectivo é uma procura da salvação através da renúncia à vida terrestre Tudo isto é verdade Mas há que esclarecer ainda um ponto que é essencial A psuché é efectivamente Sócrates mas não o eu de Sócrates não o Sócrates psicológico A psuché é em cada um de nós uma entidade impessoal ou suprapessoal É a alma em mim mais do que a minha alma Em primeiro lugar porque essa alma se define pela sua oposição radical ao corpo e a tudo quanto está ligado a ele porque ela exclui por consequência o que em nós se deve a particularidades individuais as limitações próprias da existência física Em seguida porque esta psuché é em nós um daimon um ser divino um poder sobrenatural cujo lugar e função no universo ultrapassam a nossa pessoa singular O número de almas no cosmos está fixado duma vez por todas permanece eternamente o mesmo Existem tantas almas quantos os astros Cada homem encontra pois à nascença uma alma que já existia desde o princípio do mundo que não é de modo algum exclusiva dele e que depois da morte irá encarnar num outro homem ou num animal ou numa planta se não conseguiu na sua última vida tornarse suficientemente pura para ir juntarse no céu ao astro a que está ligada A alma imortal não traduz no homem a sua psicologia singular mas antes a aspiração do sujeito individual a fundirse no todo a reintegrarse na ordem cósmica geral É evidente que esta psuché adquiriu com Platão e conservará a partir dele um conteúdo mais propriamente pessoal Mas essa abertura em direcção ao psicológico efectuase através de práticas mentais comprometidas com a cidade e orientadas para este mundo Observemos o exemplo da memória Os exercícios de memória dos Magos ou dos Pitagóricos não visam recuperar o tempo pessoal o tempo fugaz das recordações exclusivas de cada um como os Líricos nem estabelecer uma ordem do tempo como farão os his toriadores mas rememorar desde o início a série completa das vidas anteriores para unir o fim ao começo e escapar ao ciclo das reencarnações Esta memória é o instrumento que permite sair do tempo não construílo São os Sofistas ao criarem uma mnemotécnica verdadeiramente utilitária é Aristóteles ao ligar a memória à parte sensível da alma que farão dela um elemento do sujeito humano e da sua psicologia Mas acima de tudo o que contribuirá decisivamente para dar ao eu na sua interioridade consistência e complexidade são todas as condutas que vão pôr em contacto a alma daimon a alma divina imortal suprapessoal com as outras partes da alma ligadas ao corpo às necessidades aos prazeres o thumós e a epithumia Este comércio da alma noética impessoal com o resto é orientado Tratase de submeter o inferior ao superior para realizar dentro de si um estado de liberdade análogo ao do cidadão na cidade Para que o homem seja senhor de si mesmo precisa de controlar a parte que deseja e se apaixona que os Líricos exaltavam e à qual se entregavam Pela observação de si os exercícios e as provações que impõe a si mesmo e pelo exemplo dos outros o homem deve encontrar as formas de se dominar a si mesmo tal como convém a um homem livre cujo ideal é não ser na sociedade escravo de ninguém nem dos outros nem de si próprio A prática contínua de askésis moral nasce desenvolvese e só tem significado no âmbito da cidade A par disto o treino na virtude e na educação cívica que preparam para a vida de homem livre Como escreve Michel Foucault a askésis moral faz parte da paideia do homem livre que tem um papel a desempenhar na cidade e em relação aos outros não tem que utilizar procedimentos distintos Mesmo quando com os estóicos esta ascética que num mesmo movimento pretende tornar o homem senhor de si e livre face aos outros veio a adquirir nos primeiros séculos da nossa era uma relativa independência enquanto exercício sobre si mesmo quando as técnicas de auscultação e controlo do próprio eu de provas impostas a si mesmo de exame de consciência e de rememoração de todos os factos do dia tendem a formar procedimentos específicos duma preocupação consigo mesmo que resulta não já apenas no domínio dos apetites e das paixões mas no gozo de si sem desejo nem perturbação estáse ainda no mundo e na sociedade Falando de Marco Aurélio e da espécie de anacorese em si mesmo a que ele se entrega Foucault escreve Essa actividade dedicada a si mesmo constitui não um exercício da solidão mas uma verdadeira prática social3 IV3 A preocupação consigo mesmo tal como ela se apresenta no paganismo tardio quando e de que maneira vai desembocar num novo significado da pessoa conferindo à história do indivíduo no Ocidente os seus traços originais o seu fáceis característico A viragem realizase entre os séculos III e IV da nossa era Um estilo inédito aparece na vida colectiva nas relações com o divino a experiência de si Peter Brown explicou muito claramente as condições e as consequências desta mutação no triplo plano social religioso espiritual Destas análises vou reter apenas os pontos que interessam de forma directa ao problema da dimensão interior dos indivíduos da consciência que eles têm de si mesmos É preciso sublinhar em primeiro lugar o brusco desaparecimento do modelo de paridade ainda vivo na época dos Antoninos que tornava os cidadãos iguais entre si e os homens iguais face aos deuses A sociedade não é evidentemente do tipo hierárquico como na Índia mas cada vez mais nos campos e nas cidades os grupos humanos tendem a delegar em indivíduos ex cepcionais colocados pelo seu género de vida à margem dos homens vulgares e marcados com um selo divino a função de garantir a ligação da terra com o céu e de exercer a este título sobre os homens um poder não já secular mas espiritual Com o aparecimento do santo homem do homem de Deus do asceta do anacoreta surge um tipo de indivíduo que só se separou do comum se descomprometeu do todo social para procurar o seu verdadeiro eu um eu em tensão entre um anjodaguarda que o puxa para cima e as forças demoníacas que assinalam em baixo as fronteiras inferiores da sua personalidade Busca de Deus e busca do eu são as duas dimensões duma mesma experiência solitária Peter Brown fala a este respeito de uma importância feroz atribuída à consciência de si a uma introspecção implacável e prolongada ao exame vigilante escrupuloso desconfiado das inclinações da vontade do livre arbítrio para descobrir em que medida eles permanecem opacos ou se tornaram transparentes à presença divina Uma nova forma de identidade começa a desenharse nesse momento define o indivíduo humano através dos seus pensamentos mais íntimos das suas imaginações secretas dos seus sonhos nocturnos das suas pulsões cheias de pecados da presença constante obsessiva no seu foro íntimo de todas as formas de tentação É este o ponto de partida da pessoa e do indivíduo modernos Mas a ruptura com o passado pagão é também uma continuidade Esses homens não eram renunciantes Na sua procura de Deus de si de Deus em si conservavam os olhos na terra Aproveitandose dum poder celeste que marcava a sua pessoa de um modo bastante profundo interior e exteriormente para serem reconhecidos sem contestação pelos seus contemporâneos como verdadeiros amigos de Deus adquiriram qualificações para desempenhar na terra a sua missão Agostinho é uma testemunha desta viragem na história da pessoa quando fala do abismo da consciência humana abyssus humanae conscientiae quando se interroga face à profundidade e multiplicidade infinita da sua própria memória sobre o mistério daquilo que existe Isso é o meu espírito sou eu próprio Que sou eu pois meu Deus Uma vida variável multiforme de uma imensidade prodigiosa Como escreveu Pierre Hadot Em vez de dizer a alma Agostinho afirma eu existo conheçome querome a mim próprio três actos que se implicam mutuamente Foram precisos três séculos para que o cristianismo atingisse esta consciência do eu4 Como vemos eis um significado novo da pessoa ligado a uma relação diferente mais íntima do indivíduo com Deus Mas fuga para fora do mundo isso certamente não Peter Brown no mesmo livro em que assinala a vastidão das mudanças que afectam a estrutura do eu no século IV romano observa que o valor concedido nessa mutação ao sobrenatural longe de encorajar a fuga para fora do mundo implicou com mais força do que nunca o homem no mundo criando instituições novas ou reformadas5 O homem de Agostinho aquele que no diálogo com Deus pode dizer eu afastouse sem dúvida do cidadão da cidade clássica do homo aequalis da Antiguidade pagã mas a sua distância em relação ao renunciante e ao homo hierarchicus da civilização indiana assume outras dimensões 4 Problèmes de la personne sob a direcção de I Meyerson Paris e La Haye Mouton 1973 p 133 5 Genèse de lAntiquité tardive Paris Gallimard 1983 p 6
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INDIVÍDUO E PODER P VEYNE JP VERNANT L DUMONT P RICOEUR F DOLTO F VARELA G PERCHERON O INDIVÍDUO ATINGIDO NO CORAÇÃO PELO PODER PÚBLICO Paul Veyne A Michel Foucault como recordação das nossas divertidas conversas de terçafeira à noite Entendese aqui por indivíduo um sujeito um ser ligado à sua própria identidade pela consciência ou pelo conhecimento de si Suponhamos que esse sujeito no sentido filosófico da palavra é também um sujeito no sentido político da mesma palavra suponhamos que é o sujeito1 de um rei nesse caso não obedecerá na inconsciência como tudo indica que fazem os animais pensará algo da sua obediência e do seu amo e também de si mesmo como sujeito dócil ou indócil do seu rei No sentido que aqui atribuímos à palavra um sujeito não é um animal dum rebanho é pelo contrário um 1 Sujeito em francês tanto significa sujeito como súbdito Neste caso traduzimos sujeito por sujeito na acepção sociológica do termo entendendose como tal o indivíduo enquanto submetido à vontade do soberano N da T ser que dá valor à imagem que tem de si mesmo A preocupação com esta imagem pode leválo a desobedecer a revoltarse mas pode também e é o que sucede mais frequentemente leválo a obedecer ainda mais entendida neste sentido a noção do indivíduo não se opõe de modo algum à noção de sociedade ou de Estado Pode então dizerse que esse indivíduo é atingido no coração pelo poder público quando é atingido na sua imagem de si na relação que tem consigo mesmo quando obedece ao Estado ou à sociedade Gostaríamos de distinguir este ataque à imagem de si mesmo que foi sempre um dos maiores mecanismos em jogo nos conflitos históricos de outros mecanismos não menos importantes por exemplo os mecanismos económicos ou os mecanismos de partilha do poder Quando um indivíduo é atingido assim na própria ideia que faz de si próprio pode dizerse que a sua relação com o poder público é a mesma que estabeleceria com outro indivíduo que o tivesse humilhado ou pelo contrário que houvesse lisonjeado o seu orgulho Para dar um exemplo do mecanismo historicamente importante que é a imagem de si ou a subjectividade as guerras religiosas no século XVI ou as lutas anticlericais até 1905 que foram revoltas contra a autoridade pastoral da Igreja fizeram correr mais sangue e provocaram maiores paixões do que o movimento operário do século XIX Como escreveu Lucien Febvre se havia algo que os contemporâneos de Martinho Lutero recusavam com todas as suas forças era o argumento da autoridade tudo o que era mediação ou intercessão os irritava O que gostaríamos de tentar dizer aqui é que a importância do mecanismo da subjectividade não é menor no domínio político propriamente dito Vejamos um exemplo da história romana neste caso Nero Tratase de saber por que é que os romanos ou certos círculos de Roma derrubaram Nero quando a sua vida privada que era a principal razão de queixa que contra ele existia não afectava fosse de que maneira fosse a marcha dos negócios os interesses económicos sociais ou inter nacionais que permaneciam como sempre ou até evoluíam melhor do que noutras épocas Ou usando outras palavras esta exposição surgiu de uma perplexidade a de ouvir alguém dizerme Voto em De Gaulle por causa da dignidade da sua vida privada Constatamos que a imagem de si dos sujeitos do soberano é provavelmente a chave daquilo que se designa por imagem de marca do próprio soberano carisma políticaespectáculo imagem do pai ideologia ou legitimação Na minha aldeia que foi sensibilizada no princípio deste século pela luta contra o que se sentia como a autoridade clerical os votos socialistas devemse menos ao conteúdo da política socialista do que a uma hostilidade contra o estilo de autoridade gaullista Numa sociedade como o Império romano os conflitos que constituem a trama da história política raramente estão ligados à partilha do poder e ainda mais raramente às relações económicas a questão residia em saber se o imperador seria bom ou mau era bom se respeitava as susceptibilidades da casta senatorial susceptibilidades essas tão platónicas e ocas como as do duque de SaintSimon A subjectividade é simplesmente aquilo a que uma expressão da moda mas muito exacta chama a identidade de si Existe evidentemente uma diferença de natureza entre uma revolta da miséria e da fome e uma revolta do orgulho e da altivez No entanto sendo o homem um indivíduo encontramos várias revoltas económicas que tiveram também um aspecto de subjectivação a ideia de dignidade social é bem conhecida no movimento operário do século passado sabese que esta fome de dignidade incluía também o dever por parte do operário de se elevar por via da instrução e da moralidade Acrescentemos a propósito que a estetização de si a famosa distinção é seguramente um instrumento de classe uma barreira social Mas não o foi desde a origem nem o foi sempre muitas vezes tornase nisso mas nasce em primeiro lugar da forma particular da relação de si consigo mesmo a que se chama estetização É que existe também uma elegância popular Uma última observação introdutória a susceptibilidade dos sujeitos em relação à modalidae de comando explica outro facto curioso a desproporção entre a violência das reacções afectivas ao soberano e o alcance frequentemente muito limitado do poder do soberano O poder dum rei de França atolavase na impotência uma vez ultrapassadas as portas das cidades e tal poder tinha muito menos influência nos interesse sociais e políticos do que o poder das famílias da nobreza das confrarias etc apesar disto a imagem do rei possuía um forte impacto nas subjectividades muito mais do que a imagem dum actual presidente da república no entanto bem mais poderoso Recordamos primeiramente a frase Voto em De Gaulle por causa da dignidade da sua vida privada quando os meus ouvidos escutaram esta frase ela pareceume estúpida a única questão em jogo não eram as opções políticas ou as capacidades políticas de De Gaulle Estava enganado a frase não era estúpida mas ingénua a grandiosa como os vestígios da antiguidade Suponhamos como o autor da frase que a política não constitui um domínio específico onde há problemas a resolver reformas a organizar etc Suponhamos pelo contrário que a política se reduz ao dever de ser bom pai bom esposo cidadão disciplinado Por outras palavras que a política se reduz à moral cívica em suma que não é preciso fazer política Neste caso só um homem virtuoso merecerá dirigirnos Nós que somos gente honesta e não temos outra política que não seja sêlo sentirnosíamos enxovalhados se a governar o país estivesse um homem cuja vida privada fosse objecto de críticas Efectivamente é para nós um ponto de honra a nossa moralidade impecável ora por essência a moralidade é universal ninguém tem o direito de se furtar às obrigações que ela impõe Esta universalidade que é o nosso ponto de honra sofreria a pior das afrontas se um homem de costumes levianos fosse por nós colocado no lugar de honra É escusado dizer que na prática esta concepção ética da política leva ao conservadorismo pois o apolitismo virtuoso exclui qualquer ideia de reforma de militantismo etc Mas por favor que não se confunda a instância de política conservadora e a instância de subjectividade que não quer ser conspurcada Com efeito as duas instâncias podem estar separadas na realidade Vamos supor que estávamos a lidar com um conservador incorrigível mas cínico como Vilfredo Pareto ele teria votado em De Gaulle porque De Gaulle sabia humilhar os comunistas O que ele esperava de um político é que fosse um bom técnico e nada mais A Antiguidade grecoromana viveu também durante um bom milénio uma moral cívica e que nada tinha de cínica pelo contrário Esta moral resumese numa frase só se pode ser honradamente governado por um homem que sabe governar as suas paixões E com razão quando se obedece a um chefe que é senhor de si próprio não se obedece verdadeiramente a um chefe obedecese à moral a que o chefe é o primeiro a obedecer o bem moral é o senhor comum do rei e dos seus súbditos a heteronomia é na realidade uma autonomia De tal modo que ser senhor de si próprio consiste dizia Filóstrato em ser obediente em vez de teimoso impulsivo indisciplinado Em suma a relação que o sujeito ético tem consigo próprio é idêntica neste caso à relação que o sujeito político tem com o imperador O orgulho cívico está salvo reina a autodisciplina Apressome a esclarecer que aquilo que acabo de resumir era a moral dos nobres dos notáveis ou como costumava dizerse das pessoas instruídas Seria um erro tirarse deste caso particular a falsa conclusão de que a subjectivação a relação de si para consigo mesmo é essencialmente uma questão de autonomia de relações simétricas Nada disso cada classe social arranja a sua própria subjectivação como pode a partir das possibilidades de que dispõe o orgulho continua a ser o privilégio das classes que podem permitirse têlo Mas existe sempre subjectivação mesmo entre os ple beus Existia uma concepção plebeia da autoridade que era mais ou menos o inverso da dos notáveis Uma frase curiosa de Aristóteles diz mais ou menos o seguinte os tiranos fazem ostentação da sua imoralidade dos seus amores e das suas libações Aristóteles fala verdade durante um bom meio milénio desde Antônio amante de Cleópatra aos maus imperadores romanos entre os quais Nero adoptase a política de certos monarcas que fazem alarde da sua riqueza e da sua superioridade sobre a moral vulgar e a plebe ainda os amava mais por isso É fácil compreendêla um notável tem como ponto de honra obedecer apenas ao seu semelhante Em contrapartida um plebeu que se sentiria ultrajado por ver um dos seus semelhantes na miséria pretender darlhe ordens aceitará de bom grado obedecer a um mestre cuja superioridade provada através de sinais exteriores é flagrante Na sua humildade um plebeu não universaliza os seus valores o único recurso que tem é exigir obedecer a um senhor cujos valores se revelem superiores àqueles de que a plebe dispõe não é humilhante submeterse a um homem que não pertence ao vulgo O humilde orgulho do plebeu exige a desigualdade a dissimetria Tocámos de passagem no tema do consumo ostensatório é costume explicálo através da imaginação quando o rei bebe dizse habitualmente o povo bebe em pensamento Será isto verdade Estou a lembrarme de uma página interessante de VictorLouis Tapié no seu livro sobre a arte barroca e a civilização das sumptuosas igrejas barrocas o pobre povo escreve Tapié habituavase a viver pobremente convivendo com igrejas ou palácios de ouros e mármores refulgentes e cuja riqueza em vez de o ofuscar parecia pertencerlhe em parte Mas para alguém que se ofusque com a riqueza de outrem é preciso universalizar a partir de si a noção do homem ora o pobre povo considerava que a Igreja ou a nobreza eram de uma essência superior como a sua própria riqueza demonstrava Não se inveja o fausto de um rei do mesmo modo que ninguém se 14 apaixona pela rainha O problema não era cobiçar os ouros e os mármores dos palácios e das igrejas ou possuílos em imaginação mas ter a satisfação interior de estar submetido a uma autoridade evidente Não se participava no seu fausto em imaginação como num filme pornográfico Da mesma maneira a vida faustosa que levavam António e Cleópatra ou mesmo Nero apenas podiam ofuscar a aristocracia e isso só sucedia porque os seus festins se desenrolavam publicamente ora era contrário à igualdade aristocrática que Nero desse os seus festins numa cena pública que se erguesse mais alto do que a nobreza e que limitasse a pretensão dos nobres a impor os seus valores em toda a parte Da mesma maneira Emile Zola atribuirá proporções de escândalo à imoralidade do segundo Império na qual estavam envolvidas apenas escassas centenas de pessoas mas a festa imperial tinha um brilho público que chocava o universalismo republicano da virtude Ora só a festa dionisíaca é que tem brilho a virtude não O que está em jogo por trás de tudo isto não é como vemos a desigualdade económica nem exactamente as relações de classe estas e aquela são trunfos de enorme peso mas não estão aqui em jogo Outro exemplo dizse que os estabelecimentos de banhos da antiga Roma com os seus dourados e os seus mármores eram as catedrais da Antiguidade Quando um homem do povo lá ia obtinha duas satisfações gozava de um modo muito real aquele ambiente sumptuoso do mesmo modo que o gozo que nos dá o TGV1 que no entanto não nos pertence não é imaginário e dizia consigo próprio que o imperador que mandara construir aquele sumptuoso edifício amava a plebe e era tão poderoso que ninguém se envergonhava por lhe obedecer Regressemos agora à aventura de Nero para vermos o que é que aquele imperador pretendeu realmente fazer e por que foi derrubado vamos verificar que Nero 1 TGV iniciais de Train Grand Vitesse comboio de alta velocidade existente em França N da T 15 quis impor aos seus súbditos uma nova imagem de si próprio e deles ou seja das relações deles consigo Todos conhecem o escândalo causado pela partida de Nero para a Grécia a fim de aí ver reconhecido em jogos ou em concursos o seu génio artístico Até então exercera de forma notável os seus poderes tanto na política interna como externa O motivo da queda final do imperador não reside pois nesse ponto Nada tem a ver também com os seus crimes de serralho nem com o cabotinismo por ele demonstrado na Grécia pois tal cabotinismo não foi o que se julga quando Nero se exibia em Olímpia como músico ou desempenhando o papel de cocheiro não estava a abusar do grande poder que possuía para fazer que o cidadão privado se apercebesse dos seus talentos dava livre curso a uma utopia de carácter estritamente político a do soberano que para reinar se socorre do fascínio ou do encanto do seu génio pessoal Foi por causa desta utopia que a ordem senatorial o derrubou Deixaremos de encarar Nero como um caso psicológico especial e compreenderemos que o seu projecto era político se nos lembrarmos do seguinte o príncipe Sihanuk que não é exactamente um ingénuo criou em Phnom Penh um festival anual de cinema cuja medalha de ouro reciba todos os anos ao mesmo tempo era também proclamado por todos os jornais do Camboja como o melhor jornalista do seu reino Recordamos que Estaline foi o primeiro teórico e até mesmo o melhor linguista da sua época É curioso que pelo menos que eu saiba ninguém tivesse compreendido que o famoso episódio de Nero exibindose como cocheiro e músico em Olímpia constitui um episódio de crise de utopia política ao mesmo título que a Comuna de Paris de 1871 ou a revolução dos anabaptistas de Münster em 1534 A razão disto é talvez a seguinte desde a revolta de Münster à de Paris em 1968 as revoluções apelidadas só o diabo sabe porquê de utópicas foram sempre fenómenos de massa Isso faznos esquecer que em épocas mais recuadas em que os povos estavam ao nível do chão as desordens 16 utópicas eram regra geral obra dos próprios soberanos como os faraós Amenófis IV Akhénaton ou o califa AlHakim A utopia de Nero foi pretender colocar no poder a fascinação amorosa entre o príncipe e os seus súbditos a relação seria idêntica à que um virtuoso estabelece com um público de melómanos Esta ideia não era nem mais nem menos absurda do que a de colocar no poder a imaginação o amor segundo Santo Agostinho a bondade paternal do rei os sovietes o povo soberano ou a devoção de uma nobreza hereditária A invenção de Nero é muito original pois na sua época a prática vulgar dos tiranos era antes fazer que os saudassem como deuses vivos E isso Nero nunca fez O que é desconcertante no caso de Nero constitui uma particularidade típica da época para manifestar a sua utopia Nero meteuse na pele de um actor de que modo a obtenção de um prémio nos concursos olímpicos provaria a capacidade para governar um império De modo algum mas nesse tempo os vencedores dos concursos tornavamse figuras tão míticas como o são actualmente os vencedores dos prémios Nobel Um prémio Nobel é considerado hoje em dia como alguém que pertence a um escalão superior da humanidade em geral mesmo que tenha ganho o prémio da Química será chamado a manifestarse sobre a política ou os direitos do homem Aceitamos a autoridade dum homem de ciência ou dum pensador não a dum desportista Ora os romanos não estabeleciam a mesma oposição que nós entre diversão classificação que daríamos aos jogos e a outra face laboriosa e séria da vida A utopia de Nero tentou modificar as razões que pensava ele os sujeitos podiam ter para lhe obedecer Esta utopia nem por isso constituiu uma boa jogada ideológica versão marxista ou um modo de legitimação versão weberiana traduziuse em decisões específicas e teve consequências bem reais A mais importante das decisões foi nada mais nada menos que libertar a Grécia do domínio romano descolonizála até à queda de Nero a Grécia deixou de ter um governador ro 17 mano e de pagar imposto a Roma Isto é compreensível se os gregos tinham reconhecido em Olímpia o génio do imperador não era necessário um governador para os obrigar a obedecer daí em diante obedeceriam a Nero porque estavam fascinados pelo seu génio Quanto às consequências dessa utopia foram a própria queda de Nero Os gregos amavam naturalmente o seu libertador e conservarão dele uma grata lembrança a plebe de Roma continuava a venerar o seu nome no tempo dos imperadores cristãos três séculos mais tarde e após a queda deste imperador vários falsos Neros irão aparecer e tentar arrastar multidões Se Nero caiu foi por uma simples razão de subjectivação de classe os senadores e os notáveis municipais não puderam suportar ter que obedecer a um chefe genial queriam segundo o estilo de comando da época ser cortesmente solicitados como de igual para iguais pelo primeiro magistrado do Estado O estilo de comando foi a única razão da queda de Nero Pela sua natureza a utopia de Nero não mudava em nada as relações de poder sabese que o Senado era tão impotente sob o domínio de imperadores bons que se lhe dirigiam polidamente como sob o de imperadores maus Nero também não tocou nas relações de classe e de produção Enquanto desenvolvia a sua utopia na cena grega o Império continuava a girar a máquina administrativa e fiscal prosseguia a rotina habitual Nada modificava essa rotina excepto uma coisa o entusiasmo da plebe por um príncipe que não a menosprezava muito pelo contrário uma vez que atribuía suficiente valor aos plebeus para querer transformálos em admiradores seus Em todas as épocas tem sido importante o papel desempenhado pelo mecanismo da subjectivação Nos nossos dias vemos o corpo eleitoral nos Estados Unidos ou em França exigir que um candidato à presidência não seja divorciado Os factos deste género escapam à politologia de esquerda que parte das relações de classe e à politologia de direita que visa as funções do Estado consideradas sérias Então na falta de acei 18 tação da subjectivação como um mecanismo total utilizase o recurso habitual fazse o golpe do dualismo falarseá de ideologia símbolo ou imagem de marca Nos dois casos negarseá contra toda a evidência a especificidade desse mecanismo que se considerará ou o simples reflexo dos mecanismos sérios ou algo de anedótico com que a verdadeira politologia não deve misturarse pois tratase de algo pouco credivel quando muito uma concessão verbal a fazer ao ingénuo e rebelde animal popular Dito isto o assunto não ficou resolvido há aqui um problema incontestavelmente e será preciso perdermos algum tempo a examinálo Nos outros domínios as reivindicações da subjectividade podem ser tão substanciais e sangrentas como as da miséria ou do nacionalismo mas no caso particular do soberano estas reivindicações podem permanecer em grande parte verbais quase tudo se passa neste caso ao nível de frases ou símbolos bastará aos sujeitos terem a satisfação de saber que o seu rei os ama eternamente que o seu chefe é genial ou que o povo é soberano Pouco importa que a bondade de um rei não se traduza em nada nem sequer numa redução de impostos cada um sente obscuramente que essas frases sobre o Estado e as humildes realidades do Estado pertencem a duas ordens de coisas diferentes tanto mais que ninguém espera maravilhas do Governo As coisas passamse assim o conhecimento que os sujeitos têm do Estado surgelhes de duas origens bem diferentes uma é da ordem da comunicação da interlocução afecta por consequência a subjectividade A ideia do Estado é tão vasta mais ainda é tão abstracta que nunca se pode ter dela uma experiência de conjunto nem uma experiência concreta tudo o que experimentamos na prática são os impostos a pagar as multas de estacionamento além de um sentido geral de obrigação social cujos limites em relação à moral propriamente dita permanecem vagos Há pois por um lado as experiências sempre parciais do Estado assim como as relações que os sujeitos 19 mantêm em consequência com os agentes do soberano ou com os ministros que atraiçoam as suas puras intenções Mas por outro lado existe uma experiência bem diferente em que o Estado aparece na sua totalidade e nos solicita de uma forma completamente diversa é quando a República nos chama ou quando o rei promulga as leis Então e só então o Estado parece surgir em pessoa mas só pode fazêlo usando da palavra O Estado deixa então de depender de experiências práticas nunca totalizadas tornase uma entidade pertencente à rede de comunicação O Estado toma a palavra na televisão para um diálogo com os seus súbditos diálogo em que a sua prerrogativa é aliás monologar A experiência do Estado nos seus efeitos dispersos nada tem de transparente seria preciso um verdadeiro estudo sociológico para a conseguir perceber Em contrapartida a rede de comunicação é imediata por definição aí cada um conhece o seu interlocutor ou antes trava conhecimento com ele aí cada um percebe qual o direito de falar ou de estar calado que lhe é concedido Na verdade a comunicação é por si só um império com a sua hierarquia de locutores os seus direitos desiguais à palavra que não são certamente exclusivos de relações de forças com os seus privilégios de poder dizer de sua justiça de ter a última palavra ou de não ter senão uma palavra a dizer Quando o príncipe entra em comunicação com os seus súbditos por exemplo ao fazer promulgar um édito a questão não é de saber quem governa realmente no fundo e como é que isso se processa a única questão é saber quem tem o direito de falar como soberano aos outros que apenas têm o direito de o ouvir Podemos reconhecer aqui se quisermos uma personalização do poder mas na condição de lhe inverter os termos o poder não vai confundirse com um homem é pelo contrário um homem que vem emprestar a sua voz à entidade locutora que é à partida o soberano na verdade um homem público já não é um indivíduo Quando Nero se exibia no palco em Olímpia tocando lira ninguém esquecia que ele era o senhor do mundo A semiologia pragmática está a ensinarnos que na comunicação o pensamento que cada locutor quer exprimir pesa menos do que os diferentes papéis dos locutores que já estão fixados previamente O papel do interlocutor soberano de príncipe é desses o indivíduo rei ou presidente que vem desempenhar tal papel eclipase no seu papel O Estado assume de bom grado fisionomias pessoais nem que seja a de um simples presidente da III República Não se trata de carisma ou de outra imagem do pai isso corresponde à mais simples das necessidades o Estado só pode aparecer na sua totalidade soberana se entrar na comunicação por outras palavras terá que haver um chefe que dirá a primeira ou a última palavra Um chefe é precisamente isso comunicacional pois saber quem comanda de verdade e sobretudo por que é que todos obedecem é uma questão que se situa noutro campo Eis portanto o Estado transformado em entidade locutora é preciso que um homem lhe empreste a sua voz pois uma entidade não a possui Isto pode traduzirse da seguinte maneira é preciso um chefe Voltemos agora à subjectivação Os sujeitos conhecem pois o Estado o soberano sob duas formas obedecem a mil pequenas obrigações dispersas e conhecem a voz sem réplica do chefe Esse chefe assume aos seus olhos uma estatura gigantesca e como que antropomórfica os sujeitos imaginam que o príncipe é tão poderoso como a linguagem com que se lhes dirige Aquilo que a sua subjectividade esperará desse poderoso locutor são evidentemente frases gestos simbólicos Entretanto o público continua a exigir pesados impostos Mas isso não traz qualquer desmentido às palavras do rei Uma experiência muito geral prova com efeito que não se sente a contradição possível entre duas ideias quando essas ideias têm origem em dois domínios de realidade diferentes e afectam deste modo partes diferentes da nossa personalidade a existência do receptor é uma coisa o amor do rei é outra da mesma maneira os interesses de dinheiro são uma coisa a exigência de po der respeitarse a si próprio quando se obedece é outra E esta exigência é tão específica como outras exigências que pensando bem não são menos bizarras por exemplo o patriotismo Da subjectivação resulta que a relação do cidadão com o Estado não é nunca é uma relação de pura opressão uma vez que os sujeitos reagem a esta opressão no perímetro que os poderes sociais lhes deixam estabelecem um acordo íntimo com o seu próprio eu se este acordo é mau talvez se revoltem mesmo na ausência de razões sociais O Estado não é ou não é apenas uma empresa que desempenha funções necessárias os cidadãos exigem também dele coisas com que os accionistas de uma sociedade que apenas visam os seus interesses materiais não se preocupam O problema da subjectivação não é filosófico é histórico ao mesmo título que a história social ou política melhor ainda é exclusivamente histórico uma vez que o sujeito dos filósofos varia historicamente Há um problema do sujeito porque em política ése activo no próprio momento em que se obedece Activo portanto sujeito obedecer é fazer por si próprio aquilo que outros lhe dizem para fazer não são os satélites do tirano que vos agarram nos braços e nas pernas para os colocar na posição adequada mas esses gestos não se executariam se não se tivesse recebido ordem para isso Chamase poder àquilo que determina as condutas A que título faço aquilo que me obrigam a fazer Talvez os historiadores tenham uma palavra a dizer sobre isto Enfim para vermos como nada disto é ideologia ou mascarada perguntamos o que teria acontecido se Nero em vez de ser derrubado tivesse conseguido fazer triunfar a sua utopia Cinco coisas teriam acontecido e com isto terminamos 1 Roma capital imperial tornarseia a capital mundial dos jogos acima de Olímpia no que efectivamente se tornou no século III Têloia sido um século e meio antes 2 O Senado academia e conservatório da nobreza teria sido suprimido ou perderia a sua importância o que sucedeu no século IV Um regime de sultanato com camareiros e vizires instalarseia em Roma 3 Darseia a descolonização das províncias generalização do sistema de selfgovernment que regia a Itália Acabariam os governadores de província em caso de perturbação o Governo central enviaria o exército Os impostos provinciais que marcavam a sujeição das províncias teriam sido substituídos pelos impostos indirectos que as cidades italianas pagavam do ponto de vista fiscal seria mais ou menos a mesma coisa 4 O imperialismo romano teria deixado de considerar como alvos tradicionais a Mesopotâmia e a Arábia voltarseia para as nascentes do Nilo e a planície do baixo Volga onde Nero preparava expedições Com efeito Nero estava romanticamente obcecado por esses estrangulamentos para lá dos quais o Império parecia estenderse até ao infinito Os espíritos tradicionalistas terlheiam criticado sem dúvida esses objectivos longínquos da mesma forma que Jules Ferry recebeu críticas por sonhar em conquistar a Indochina em vez de reconquistar a AlsáciaLorena Em vez das províncias romanas da Mesopotâmia e da Arábia teria havido províncias da Etiópia e da Transcaucásia Nero estava apenas a mil quilômetros de Estalinegrado 5 Finalmente teria havido rotinização do carisma O sucessor de Nero não devia possuir provavelmente o mesmo talento artístico que ele Nesse caso a competição de Nero em Olímpia terseia transformado numa cerimónia simbólica de entronização em que cada novo imperador se exibiria em cima de um carro com um instrumento de música na mão Seria apenas mais um ritual imperial 23 O INDIVÍDUO NA CIDADE JeanPierre Vernant I A nossa pesquisa encontra o seu ponto de partida na distinção feita por Louis Dumont entre duas formas opostas de indivíduos o indivíduo fora do mundo o indivíduo no mundo O modelo do primeiro é o renunciante indiano que para se constituir a si próprio na sua independência e singularidade deve excluirse de todas as ligações sociais separarse da vida tal como ela é vivida pelos homens O desenvolvimento espiritual do indivíduo tem como condição na Índia a renúncia ao mundo a ruptura com todas as instituições que formam a trama da existência colectiva o abandono da comunidade à qual pertence o exílio num lugar de solidão definido pela sua distância relativamente aos outros pela sua conduta pelo seu sistema de valores Segundo o modelo indiano o aparecimento do indivíduo não ocorre no âmbito da vida social implica que ele a tenha abandonado O segundo modelo é o homem moderno o indivíduo que afirma e vive a sua individualidade encarada como um valor no interior do mundo o indivíduo mundano cada um de nós Como surgiu este segundo tipo de individualidade Para Louis Dumont é derivada e dependente do pri meio Segundo ele quando surgem numa sociedade tradicional os primeiros germes de individualismo tal sucederá sempre em oposição com a sociedade e sob a forma do indivíduo fora do mundo Terá sido este o curso da história no Ocidente Desde a época helenística o Sábio enquanto homem ideal definese em oposição à vida mundana ter acesso à sabedoria é renunciar ao mundo separarse dele Neste sentido e neste plano o cristianismo dos primeiros séculos não representa uma ruptura com o pensamento pagão mas uma continuidade com um desvio do acento tónico o indivíduo cristão existe na e pela sua relação com Deus ou seja fundamentalmente pela sua orientação fora do mundo a desvalorização da existência mundana e dos seus valores Por etapas e Louis Dumont nos seus Ensaios sobre o Individualismo assinala as fases desse caminho a vida mundana será a pouco e pouco contaminada pelo elemento extramundano que vai progressivamente penetrar e invadir todo o campo social A vida no mundo escreve Dumont conceberseá como podendo adequarse inteiramente ao valor supremo o indivíduo fora do mundo tornarseá o moderno indivíduo no mundo Eis a prova histórica do extraordinário poder da disposição inicial Esta concepção rigorosa e sistemática das condições que permitem ao indivíduo emergir libertandose pela prática da renúncia dos constrangimentos sociais foi elaborada por Louis Dumont a partir do estudo de uma civilização particular a da antiga Índia e aplicada primeiramente apenas às sociedades que ele designa por hierárquicas ou holistas aquelas que comportam um sistema de castas e onde cada indivíduo só tem realidade em função do todo e em relação a ele onde o ser humano é inteiramente definido pelo lugar que ocupa no conjunto social pela posição que tem numa escala de estatutos separados e interdependentes Mas a partir daqui Louis Dumont estendeu a sua concepção a todas as sociedades incluindo as ocidentais e transformou a sua tese numa teoria geral do apareci mento do indivíduo e do desenvolvimento do individualismo II É a validade desta explicação geral que queremos experimentar examinando como as coisas se apresentam na Grécia arcaica e clássica a Grécia das cidades entre os séculos VIII e IV antes da nossa era II1 Há que fazer previamente duas ordens de observações As primeiras dizem respeito à religião e à sociedade gregas antigas As segundas à própria noção de indivíduo O politeísmo grego é uma religião do tipo intramundano Não só os deuses estão presentes e agem no mundo como os actos do culto visam integrar os fiéis na ordem cósmica e social a que presidem as Potências divinas e são os aspectos múltiplos dessa ordem que respondem às diferentes modalidades do sagrado Não há lugar neste sistema para a personagem do renunciante Os que mais se aproximaram dessa personagem e que designamos por órficos permaneceram marginais ao longo de toda a Antiguidade sem nunca constituírem no seio da religião uma seita propriamente dita nem sequer um grupo religioso bem definido susceptível de trazer ao culto oficial um complemento uma dimensão suplementar introduzindo nele uma perspectiva de salvação A sociedade grega não é por outro lado de tipo hierárquico mas igualitário A cidade define o grupo daqueles que a formam situandoos num mesmo plano horizontal Quem não tiver acesso a esse plano está fora da cidade fora da sociedade em última análise fora da humanidade como o escravo Mas qualquer indivíduo se for um cidadão está em princípio apto a desempenhar todas as funções sociais com as suas implicações religiosas Não há casta sacerdotal tal como não há casta guerreira Do mesmo modo qualquer cidadão apto a combater está qualificado desde que não se encontre manchado por qualquer desonra para realizar o ritual do sacrifício em sua casa ou em nome 27 dum grupo mais vasto se possuir um estatuto de magistrado que o autorize a tal Neste sentido o cidadão da polis clássica tem menos afinidades com o homo hierarquicus de Dumont do que com o homo aequalis Eis por que comparando sacrifício indiano e sacrifício grego do ponto de vista do papel do indivíduo em cada um deles depois de ter observado que no caso do renunciante indiano o indivíduo para existir deve cortar todos os laços de solidariedade que antes o constituíam ligandoo aos outros à sociedade ao mundo e a ele próprio aos seus próprios actos através do desejo eu escrevi outrora Na Grécia o sacrifcante enquanto tal permanece fortemente integrado nos diversos grupos domésticos civis políticos em nome dos quais sacrifica Esta integração até na actividade religiosa da comunidade confere aos progressos da individualização um aspecto completamente diferente tais progressos produzemse no quadro social onde o indivíduo quando começa a emergir surge não como renunciante mas como sujeito de direito agente político pessoa privada no seio da sua família ou no círculo dos seus amigos II2 Segunda ordem de observações Que significam indivíduo individualismo Em Le souci de soi Michel Foucault considera que estes vocábulos abrangem três coisas distintas que podem estar associadas mas cujas ligações não são nem constantes nem necessárias a O lugar que se reconhece como pertencendo ao indivíduo singular e o seu grau de independência relativamente ao grupo de que é membro e às instituições que o governam b A valorização da vida privada relativamente às actividades públicas c A intensidade das relações de si para consigo mesmo de todas as práticas através das quais o indivíduo se considera a si próprio nas diversas dimensões que o compõem como objecto da sua preocupação e dos seus cuidados a maneira como ele orienta e dirige para si mesmo o seu esforço de observação de reflexão e de análise preocupação consigo e também trabalho de si 28 sobre si formação de si através de todas as técnicas mentais de atenção a si mesmo de exame de consciência de colocação à prova de ajuste elucidação e expressão de si Que estes três sentidos são independentes uns dos outros pareceme uma evidência Numa aristocracia militar o guerreiro afirmase como indivíduo à parte na singularidade da sua valentia excepcional Não se preocupa minimamente com a sua vida privada nem procura agir sobre si próprio através da autoanálise Inversamente a intensidade das relações de si para consigo podem existir a par de uma desqualificação dos valores da vida privada e até mesmo duma recusa do individualismo como sucede na vida monástica Por meu lado e numa perspectiva de antropologia histórica propunha antes uma classificação um pouco diferente que reconheçoo tem algo de arbitrário mas que neste caso permite esclarecer os problemas a O indivíduo stricto sensu o seu lugar o papel que desempenha no seu ou nos seus grupos o valor que lhe é reconhecido a margem de manobra de que dispõe a sua relativa autonomia face ao enquadramento institucional em que vive b O sujeito quando o indivíduo exprimindose na primeira pessoa falando em seu próprio nome enuncia certos traços que fazem dele um ser singular c O eu a pessoa o conjunto das práticas e das atitudes psicológicas que dão ao sujeito uma dimensão de interioridade e de unicidade que o constituem interiormente como um ser real original único um indivíduo singular cuja natureza autêntica reside inteiramente no segredo da sua vida interior no coração de uma intimidade à qual ninguém com excepção dele próprio pode ter acesso pois ela definese como consciência de si Se para melhor explicitar estes três planos e as suas diferenças arriscasse uma comparação com géneros literários diria que muito esquematicamente ao indivíduo corresponderia a biografia na medida em que por oposição ao relato épico ou histórico ela se centra sobre a vida duma personagem singular ao su 29 jeito corresponderia a autobiografia ou as memórias quando o individuo conta a si próprio o curso da sua vida e ao eu corresponderiam as Confissões os Diários íntimos onde a vida interior a pessoa singular do sujeito na sua complexidade e riqueza psicológica na sua relativa incomunicabilidade formam a matéria do texto Os gregos desde a época clássica conheceram certas formas de biografia e de autobiografia Ainda recentemente A Momigliano estudou a sua evolução concluindo que a nossa ideia da individualidade e do carácter duma pessoa tinha aí a sua origem Em contrapartida não só não existem na Grécia clássica nem helenística confissões ou diários íntimos algo de impensável como já G Mish o observara e A Momigliano também a caracterização do indivíduo na autobiografia grega ignora a intimidade do eu III Comecemos pelo individuo Para localizar a sua presença na Grécia três vias de acesso 1 o indivíduo valorizado como tal na sua singularidade 2 o indivíduo e a sua esfera pessoal o domínio do privado 3 a emergência do indivíduo nas instituições sociais que pelo seu próprio funcionamento acabaram por lhe destinar na época clássica um lugar central III1 Examinarei agora dois exemplos de indivíduos fora do conum na época arcaica O herói guerreiro Aquiles o mago inspirado o homem divino Hermótimo Epiménides Empédocles Mais do que o estatuto e os títulos no corpo social o que caracteriza um herói são a singularidade do seu destino o prestígio excepcional das suas façanhas a conquista de uma glória que é realmente sua a sobrevivência através dos séculos da sua fama na memória colectiva Os homens vulgares desaparecem a partir do momento em que morrem no esquecimento tenebroso do Hades desaparecem nōnumnoi são os anónimos os sem nome Só o individuo heróico ao aceitar enfrentar a morte na flor da juventude vê o seu nome perpetuarse gloriosamente de geração em geração A 30 sua figura singular fica para sempre inscrita no centro da vida comum Para isso precisou de isolarse de oporse até ao grupo dos seus de cortar os laços com os seus iguais e com os seus chefes Foi o caso de Aquiles Mas essa distância não o transforma num renunciante em alguém que abandonou a vida mundana Pelo contrário ao levar ao extremo a lógica duma vida humana votada a um ideal guerreiro faz que os valores mundanos as práticas sociais do combatente se ultrapassem a si próprios Às normas habituais aos costumes do grupo acrescenta graças ao tenso rigor da sua biografia à sua recusa do compromisso à sua exigência de perfeição até na morte uma dimensão nova Ele instaurua uma forma de honra e de excelência que ultrapassam a honra e a excelência vulgares Aos valores vitais às virtudes sociais próprias deste mundo mas sublimadas transmutadas na experiência da morte ele confere um brilho uma majestade uma solidez que aqueles não possuem no curso normal da vida e que os fazem escapar à destruição que ameaça tudo o que existe sobre a terra Mas essa solidez esse brilho essa majestade é o próprio corpo social que os reconhece que se apropria deles e lhes garante nas instituições honra e permanência Os magos São também indivíduos à parte que se demarcam do comum dos mortais pelo género de vida e pelo regime que seguem pelos poderes excepcionais de que desfrutam Praticam exercícios que me atrevo a designar por espirituais domínio da respiração concentração do sopro animado para o purificar para o separar do corpo libertálo mandálo em viagem para o além rememoração das vidas anteriores saída do ciclo das reencarnações sucessivas São os homens divinos theoi andres que enquanto vivos se elevam acima da condição mortal até ao estatuto de seres imperecíveis Não são renunciantes mesmo que no seu rasto surja uma corrente de pensamento cujos adeptos vão ter como objectivo fugir deste mundo Pelo contrário devido precisamente à sua singularidade e à distância que os mantém isolados do grupo essas personagens 31 vão desempenhar em períodos de crise nos séculos VII e VI um papel comparável ao de nomotetas de legisladores como Sólon que purificam as comunidades das suas manchas apaziguam as revoltas arbitrarn os conflitos promulgam regulamentos institucionais e religiosos Para regular os negócios públicos as cidades precisam de recorrer a estes indivíduos fora do comum III2 A esfera do privado Desde as formas mais arcaicas das cidades no fim do século VIII e já em Homero esboçamse correlativamente um dependendo do outro e articulandose com ele os domínios do que pertence ao comum ao público e do que pertence ao particular ao próprio to koinón e to idion O comum abarca todas as actividades todas as práticas que devem ser partilhadas ou seja que não devem ser o privilégio exclusivo de ninguém nem indivíduo nem grupo nobiliário e nas quais é preciso participar para se ser um cidadão o privado é o que não tem que ser partilhado e não diz respeito a ninguém Há uma história das formas assumidas pelo comum e pelo próprio e das suas respectivas fronteiras Em Esparta a educação dos jovens e os banquetes permanecem sob a forma da agogé e das sissitias refeições tomadas obrigatoriamente em conjunto ligadas à esfera do comum são actividades cívicas Em Atenas onde a emergência de um plano puramente político na cidade se opera a um nível de abstracção mais rigoroso a política neste sentido é a partilha por todos os cidadãos do poder de comandar de deliberar e decidir de julgar a esfera do privado aquela que diz respeito a cada um para si mesmo ligará à vida doméstica a educação das crianças e os banquetes para os quais se convidam os hóspedes que o próprio escolhe O grupo dos parentes e familiares vai definir uma zona onde as relações privadas entre indivíduos poderão desenvolverse assumir maior importância e adquirir uma tonalidade afectiva mais íntima O sumposion isto é o costume generalizado a partir do século VI de as pes 32 soas se reunirem em casa depois das refeições para beberem juntas conversarem divertiremse folgarem entre homens com amigos e cortesãs cantar a elegia sob a protecção de Dioniso de Afrodite e de Eros assinala o aparecimento na vida social dum comércio interpessoal mais livre e mais selectivo onde a individualidade de cada um é tida em conta e cuja finalidade é da ordem do prazer dum prazer domesticado e partilhado no respeito pela lei do beber bem Como escreve Florence Dupont O banquete é o lugar e o meio onde o homemcidadão privado tem acesso ao prazer e ao gozo paralelamente à Assembleia que será o lugar e o meio onde o cidadãohomem público terá acesso à liberdade e ao poder Le Plaisir et la Loi p 25 As práticas e os monumentos funerários testemunham a importância crescente que face ao domínio público a esfera privada adquire com os laços afectivos que unem o indivíduo aos que lhe estão próximo Até ao fim do século VI na Ática os túmulos eram geralmente individuais prolongam a ideologia do indivíduo heróico na sua singularidade A estela tem o nome do defunto e dirigese indistintamente a todos os que passam A imagem gravada ou pintada ao mesmo título que o kouros funerário que domina o túmulo representa o morto na sua beleza juvenil como exemplo dos valores das virtudes sociais que ele encarnou A partir do último quartel do século V paralelamente aos funerais públicos celebrados em honra dos que tombaram em combate pela pátria e onde a individualidade de cada defunto é como que afogada na glória comum da cidade estabelecese o costume dos túmulos familiares as estelas associam daí em diante os mortos e os vivos da casa os epitáfios celebram os sentimentos pessoais de afecto de desgosto de estima entre marido e mulher pais e filhos III3 Mas deixemos a esfera privada entremos no domínio público Deparamos aí com uma série de instituições que permitiram que no seu seio o indivíduo emergisse nalguns dos seus aspectos Observemos dois 33 exemplos o primeiro referese às instituições religiosas o segundo ao direito Ao lado da religião cívica existem os Mistérios como os de Eléusis A sua celebração realizase bem entendido sob a protecção oficial da cidade Mas eles estão abertos a todos quantos falem grego a atenienses e estrangeiros a mulheres e homens a escravos ou seres livres A participação na cerimónia até à iniciação completa depende da decisão tomada por cada um não do seu estatuto social da sua função no grupo Além disso aquilo que o iniciado espera da sua entronização é do ponto de vista individual uma sorte melhor no além Portanto livre decisão no que toca ao acesso à iniciação e quando se sai dela singularidade de um destino póstumo ao qual os outros não podem aspirar Mas terminadas as cerimónias e obtida a consagração nada nos costumes na maneira de viver na prática religiosa no comportamento social distingue o iniciado daquilo que ele era antes nem daquele que não o é Ele conquistou uma espécie de segurança interior está intimamente modificado do ponto de vista religioso pela familiaridade que adquiriu com as duas deusas Socialmente permanece inalterado idêntico A promoção individual do iniciado nos Mistérios não o transforma em momento algum num indivíduo fora do mundo desligado da vida terrena e dos elos cívicos Outra manifestação de individualismo religioso a partir ao que parece do século V assistese à criação de grupos religiosos por iniciativa de indivíduos que além de fundarem os grupos reúnem à sua volta num santuário privado consagrado a uma divindade adeptos desejosos de reservarem para si próprios o privilégio de celebrarem em conjunto um culto particular de como diz Aristóteles sacrificarem juntos e conviverem uns com os outros Os fiéis são os sunousiastai coassociados formando uma pequena comunidade religiosa fechada que têm o prazer de se encontrar na prática de uma devoção em que cada um para participar deve fazer um pedido nesse sentido e ser aceite por cada um dos outros membros do grupo 34 Ao escolher um deus como objecto de uma forma de devoção particular e ao ser ele próprio escolhido pela pequena comunidade de fiéis o indivíduo faz a sua entrada na organização do culto mas o lugar que ele ocupa não o exclui do mundo nem da sociedade O seu aparecimento assinala por oposição aos papéis religiosos predeterminados e como que programados pelo estatuto cívico de cada um a introdução na vida religiosa de relações mais flexíveis e mais livres entre as pessoas a criação na esfera religiosa de uma nova forma de associação que tem a ver com aquilo a que se pode chamar uma sociedade selectiva Mas é sobretudo através do desenvolvimento do direito que vemos surgir o indivíduo no âmbito das instituições públicas Dois exemplos o direito criminal o testamento Nos crimes de sangue a passagem do prédireito ao direito da vendetta com os seus processos de compensação e de arbitragem à instituição dos tribunais produz a ideia do indivíduo criminal É o indivíduo que surge desde logo como sujeito do delito e objecto de julgamento Entre a concepção préjurídica do crime visto como um miasma uma mancha contagiosa colectiva e a noção que o direito elabora acerca da falta que é cometida por uma pessoa singular e que comporta graus correspondentes a tribunais diferentes consoante o crime era justificado foi cometido contra vontade ou de livre vontade e com premeditação há uma ruptura Com efeito é o indivíduo que na instituição judiciária está posto em causa na relação mais ou menos estreita que mantém com o seu acto criminal Esta história jurídica tem uma contrapartida moral implica as noções de responsabilidade de culpabilidade pessoal de mérito tem igualmente uma contrapartida psicológica levanta o problema das condições coacção espontaneidade ou projecto deliberado que presidiram à decisão de um sujeito e também o problema dos motivos da sua acção Estes problemas encontrarão eco na tragédia ática do século V uma das características deste género literário é a interrogação constante sobre o 35 individuo que age o sujeito humano face à sua acção as relações entre os heróis do drama na sua singularidade e aquilo que ele fez que decidiu cuja responsabilidade ele suporta e que no entanto o ultrapassa Outro testemunho da promoção social do indivíduo o testamento Louis Gernet analisou com inteligência as condições e modalidades do seu aparecimento A princípio na adopção entre vivos o indivíduo não é tido em consideração enquanto tal Tratase no caso de um chefe de família sem filhos de zelar para que ao adoptar na velhice um parente o seu lar não fique deserto e o seu património não seja disperso nas mãos de colaterais O uso da adopção testamentária inscrevese na mesma linha em questão está sempre a casa e a garantia da sua manutenção é o oikos que está em causa e não o indivíduo Pelo contrário quando a partir do século III se institui a prática do testamento propriamente dito este transformouse numa coisa estritamente individual permitindo a livre transmissão dos bens de acordo com a vontade formulada por escrito e que deve ser respeitada de um sujeito particular senhor de tomar decisões acerca de tudo quanto possui Entre um indivíduo e a sua riqueza qualquer que seja a forma que esta assuma património e bens adquiridos móveis e imóveis o elo é doravante directo e exclusivo a cada ser pertence um ter IV O sujeito O emprego da primeira pessoa num texto pode ter significados muito diferentes consoante a natureza do documento e a forma do enunciado édito ou proclamação dum soberano epitáfio fúnebre invocação do poeta que se coloca a si próprio em cena no início e no decurso do seu canto como inspirado pelas Musas ou detentor duma verdade revelada relato histórico no qual a certa altura o autor intervêm em pessoa para dar a sua opinião defesa e justificação de si nos discursos autobiográficos de oradores como Demóstenes ou Isócrates O discurso em que o sujeito se exprime dizendo eu não constitui pois uma categoria bem delimitada e de 36 alcance unívoco No entanto se decidi abordálo no caso da Grécia é porque ele responde a um tipo de poesia à lírica de um modo geral em que o autor pelo uso da primeira pessoa dá ao eu um aspecto particular de confidência exprimindo a sensibilidade que lhe é própria e conferindolhe o alcance geral dum modelo dum topos literário Ao fazer das suas emoções pessoais da sua afectividade do momento o tema principal da comunicação com o seu público de amigos de concidadãos de hetairoi os poetas líricos conferem a esta parte indecisa e secreta que existe em nós e que é o íntimo a subjectividade pessoal uma forma verbal exacta uma consistência mais firme Formulado na língua da mensagem poética aquilo que cada um sente individualmente como emoção no seu foro interior toma corpo e adquire uma espécie de realidade objectiva É preciso ir mais além A subjectividade do poeta uma vez afirmada cantada exaltada põe em causa as normas estabelecidas os valores socialmente reconhecidos Impõese como a pedra de toque daquilo que para o indivíduo é o belo e o feio o bem e o mal a felicidade e a infelicidade A natureza do homem é diversa constata Arquíloco cada um alegra o coração à sua maneira E Safo proclama fazendo eco desta ideia Para mim a mais bela coisa do mundo é aquela de que cada um mais gosta Portanto relatividade dos valores comumente admitidos É ao sujeito ao indivíduo naquilo que ele sente pessoalmente e de que faz a matéria do seu canto que cabe em última análise o papel de critério dos valores Uma outra característica a assinalar ao lado dos ciclos do tempo cósmico e da ordem do tempo socializado em oposição a eles o aparecimento do tempo tal como ele é vivido subjectivamente pelo indivíduo instável variável mas que conduz inexoravelmente à velhice e à morte tempo experimentado nas suas súbitas mudanças nos seus caprichos imprevisíveis na sua angustiante irreversibilidade O sujeito tem no interior de si mesmo a experiência deste tempo pessoal sob a forma do desgosto da nostalgia da espera da esperança do 37 sofrimento da recordação das alegrias passadas das presenças desaparecidas Na lírica grega o sujeito sentese a si mesmo e exprimese como essa parte do indivíduo sobre a qual não tem domínio que o deixa desarmado passivo impotente e que no entanto é nele a própria vida aquela que ele canta a sua vida IV1 O eu Os gregos arcaicos e clássicos têm bem entendido uma experiência do seu eu da sua pessoa assim como do seu corpo mas essa experiência é organizada de forma diferente da nossa O eu não é nem delimitado nem unificado é um campo aberto de forças múltiplas diz H Fränkel Sobretudo essa experiência é orientada para o exterior não para o interior O indivíduo procurase a si próprio e encontrase nos outros nesses espelhos que reflectem a sua imagem e que são para ele outros tantos alter ego parentes filhos amigos Como escreve James Redfield a propósito do herói da epopeia ele não é aos seus próprios olhos mais do que o espelho que os outros lhe apresentam O indivíduo projectase também e objectivase naquilo que ele efectivamente realiza as actividades e obras que lhe permitem captarse a si próprio não em potência mas em acto energeia e que nunca estão na sua consciência A introspecção não existe O sujeito não constitui um mundo interior fechado no qual deve penetrar para se encontrar ou antes para se descobrir O sujeito é extrovertido Do mesmo modo que o olho não se vê a si próprio o individuo para se aprender olha para outro lado para o exterior A sua consciência de si não é reflectida dobrada sobre si encerramento interior face a face com a sua própria pessoa é existencial Como já se observou muitas vezes o cogito ergo sum penso logo existo não tem qualquer significado para um grego Existo porque tenho mãos pés sentimentos porque caminho corro vejo e sinto Faço tudo isso e sei que o faço Mas nunca penso a minha existência através da consciência que tenho dela A minha consciência está sempre agarrada ao exterior tenho a consciência de ver determinado objecto de ouvir determinado som de 38 sofrer determinada dor O mundo do indivíduo não adquiriu a forma de uma consciência de si de um universo interior que define na sua origem radical a personalidade de cada um Bernard Groethuysen resume o estatuto particular da pessoa antiga numa fórmula simultaneamente lapidar e provocante dizendo que a consciência de si é a apreensão de um ele não ainda de um eu1 IV2 Podem levantarme a seguinte objecção como explicar os textos em que Platão escreve O que constitui cada um de nós é apenas a alma o ser que na realidade existe em cada um de nós e que designamos por alma imortal irá depois da morte juntarse aos outros deuses Leis 945a6b4 No Fédon Sócrates moribundo dirigese nos seguintes termos aos seus amigos Aquilo que eu sou é o Sócrates que conversa convosco egô eimi outos Socratès ho não o outro Socrates cujo cadáver em breve estará diante de vós Fédon 115c E conversando com Alcibíades o Sócrates platônico dizlhe Quando Sócrates dialoga com Alcibíades não é ao teu rosto que ele fala mas ao próprio Alcibíades e esse Alcibíades é a alma Alcibíades 130c O assunto parece aqui resolvido O que Sócrates e Alcibíades são aquilo que cada indivíduo é é a alma a psuché Essa alma que depois da morte vai juntarse ao além divino sabemos como surgiu no mundo grego A sua origem está naqueles Magos que eu evocava há pouco os quais recusando a ideia tradicional da psuché duplo do morto fantasma sem força sombra inconsciente desaparecida no Hades se esforçam mediante as suas práticas de concentração e de depuração do sopro por reunir a alma dispersa por todas as partes do corpo para que uma vez isolada e unificada seja possível se se quiser separála do corpo para viajar no além A concepção platónica de uma alma que é Sócrates encontra o seu ponto de partida a sua disposição 1 Anthropologie philosophique Paris Gallimard 1952 2ª ed 1980 p 61 39 inicial em exercícios de abandono do corpo de fuga para fora do mundo de evasião para o divino cujo objectivo é uma procura da salvação através da renúncia à vida terrestre Tudo isto é verdade Mas há que esclarecer ainda um ponto que é essencial A psuché é efectivamente Sócrates mas não o eu de Sócrates não o Sócrates psicológico A psuché é em cada um de nós uma entidade impessoal ou suprapessoal É a alma em mim mais do que a minha alma Em primeiro lugar porque essa alma se define pela sua oposição radical ao corpo e a tudo quanto está ligado a ele porque ela exclui por consequência o que em nós se deve a particularidades individuais as limitações próprias da existência física Em seguida porque esta psuché é em nós um daimon um ser divino um poder sobrenatural cujo lugar e função no universo ultrapassam a nossa pessoa singular O número de almas no cosmos está fixado duma vez por todas permanece eternamente o mesmo Existem tantas almas quantos os astros Cada homem encontra pois à nascença uma alma que já existia desde o princípio do mundo que não é de modo algum exclusiva dele e que depois da morte irá encarnar num outro homem ou num animal ou numa planta se não conseguiu na sua última vida tornarse suficientemente pura para ir juntarse no céu ao astro a que está ligada A alma imortal não traduz no homem a sua psicologia singular mas antes a aspiração do sujeito individual a fundirse no todo a reintegrarse na ordem cósmica geral É evidente que esta psuché adquiriu com Platão e conservará a partir dele um conteúdo mais propriamente pessoal Mas essa abertura em direcção ao psicológico efectuase através de práticas mentais comprometidas com a cidade e orientadas para este mundo Observemos o exemplo da memória Os exercícios de memória dos Magos ou dos Pitagóricos não visam recuperar o tempo pessoal o tempo fugaz das recordações exclusivas de cada um como os Líricos nem estabelecer uma ordem do tempo como farão os his toriadores mas rememorar desde o início a série completa das vidas anteriores para unir o fim ao começo e escapar ao ciclo das reencarnações Esta memória é o instrumento que permite sair do tempo não construílo São os Sofistas ao criarem uma mnemotécnica verdadeiramente utilitária é Aristóteles ao ligar a memória à parte sensível da alma que farão dela um elemento do sujeito humano e da sua psicologia Mas acima de tudo o que contribuirá decisivamente para dar ao eu na sua interioridade consistência e complexidade são todas as condutas que vão pôr em contacto a alma daimon a alma divina imortal suprapessoal com as outras partes da alma ligadas ao corpo às necessidades aos prazeres o thumós e a epithumia Este comércio da alma noética impessoal com o resto é orientado Tratase de submeter o inferior ao superior para realizar dentro de si um estado de liberdade análogo ao do cidadão na cidade Para que o homem seja senhor de si mesmo precisa de controlar a parte que deseja e se apaixona que os Líricos exaltavam e à qual se entregavam Pela observação de si os exercícios e as provações que impõe a si mesmo e pelo exemplo dos outros o homem deve encontrar as formas de se dominar a si mesmo tal como convém a um homem livre cujo ideal é não ser na sociedade escravo de ninguém nem dos outros nem de si próprio A prática contínua de askésis moral nasce desenvolvese e só tem significado no âmbito da cidade A par disto o treino na virtude e na educação cívica que preparam para a vida de homem livre Como escreve Michel Foucault a askésis moral faz parte da paideia do homem livre que tem um papel a desempenhar na cidade e em relação aos outros não tem que utilizar procedimentos distintos Mesmo quando com os estóicos esta ascética que num mesmo movimento pretende tornar o homem senhor de si e livre face aos outros veio a adquirir nos primeiros séculos da nossa era uma relativa independência enquanto exercício sobre si mesmo quando as técnicas de auscultação e controlo do próprio eu de provas impostas a si mesmo de exame de consciência e de rememoração de todos os factos do dia tendem a formar procedimentos específicos duma preocupação consigo mesmo que resulta não já apenas no domínio dos apetites e das paixões mas no gozo de si sem desejo nem perturbação estáse ainda no mundo e na sociedade Falando de Marco Aurélio e da espécie de anacorese em si mesmo a que ele se entrega Foucault escreve Essa actividade dedicada a si mesmo constitui não um exercício da solidão mas uma verdadeira prática social3 IV3 A preocupação consigo mesmo tal como ela se apresenta no paganismo tardio quando e de que maneira vai desembocar num novo significado da pessoa conferindo à história do indivíduo no Ocidente os seus traços originais o seu fáceis característico A viragem realizase entre os séculos III e IV da nossa era Um estilo inédito aparece na vida colectiva nas relações com o divino a experiência de si Peter Brown explicou muito claramente as condições e as consequências desta mutação no triplo plano social religioso espiritual Destas análises vou reter apenas os pontos que interessam de forma directa ao problema da dimensão interior dos indivíduos da consciência que eles têm de si mesmos É preciso sublinhar em primeiro lugar o brusco desaparecimento do modelo de paridade ainda vivo na época dos Antoninos que tornava os cidadãos iguais entre si e os homens iguais face aos deuses A sociedade não é evidentemente do tipo hierárquico como na Índia mas cada vez mais nos campos e nas cidades os grupos humanos tendem a delegar em indivíduos ex cepcionais colocados pelo seu género de vida à margem dos homens vulgares e marcados com um selo divino a função de garantir a ligação da terra com o céu e de exercer a este título sobre os homens um poder não já secular mas espiritual Com o aparecimento do santo homem do homem de Deus do asceta do anacoreta surge um tipo de indivíduo que só se separou do comum se descomprometeu do todo social para procurar o seu verdadeiro eu um eu em tensão entre um anjodaguarda que o puxa para cima e as forças demoníacas que assinalam em baixo as fronteiras inferiores da sua personalidade Busca de Deus e busca do eu são as duas dimensões duma mesma experiência solitária Peter Brown fala a este respeito de uma importância feroz atribuída à consciência de si a uma introspecção implacável e prolongada ao exame vigilante escrupuloso desconfiado das inclinações da vontade do livre arbítrio para descobrir em que medida eles permanecem opacos ou se tornaram transparentes à presença divina Uma nova forma de identidade começa a desenharse nesse momento define o indivíduo humano através dos seus pensamentos mais íntimos das suas imaginações secretas dos seus sonhos nocturnos das suas pulsões cheias de pecados da presença constante obsessiva no seu foro íntimo de todas as formas de tentação É este o ponto de partida da pessoa e do indivíduo modernos Mas a ruptura com o passado pagão é também uma continuidade Esses homens não eram renunciantes Na sua procura de Deus de si de Deus em si conservavam os olhos na terra Aproveitandose dum poder celeste que marcava a sua pessoa de um modo bastante profundo interior e exteriormente para serem reconhecidos sem contestação pelos seus contemporâneos como verdadeiros amigos de Deus adquiriram qualificações para desempenhar na terra a sua missão Agostinho é uma testemunha desta viragem na história da pessoa quando fala do abismo da consciência humana abyssus humanae conscientiae quando se interroga face à profundidade e multiplicidade infinita da sua própria memória sobre o mistério daquilo que existe Isso é o meu espírito sou eu próprio Que sou eu pois meu Deus Uma vida variável multiforme de uma imensidade prodigiosa Como escreveu Pierre Hadot Em vez de dizer a alma Agostinho afirma eu existo conheçome querome a mim próprio três actos que se implicam mutuamente Foram precisos três séculos para que o cristianismo atingisse esta consciência do eu4 Como vemos eis um significado novo da pessoa ligado a uma relação diferente mais íntima do indivíduo com Deus Mas fuga para fora do mundo isso certamente não Peter Brown no mesmo livro em que assinala a vastidão das mudanças que afectam a estrutura do eu no século IV romano observa que o valor concedido nessa mutação ao sobrenatural longe de encorajar a fuga para fora do mundo implicou com mais força do que nunca o homem no mundo criando instituições novas ou reformadas5 O homem de Agostinho aquele que no diálogo com Deus pode dizer eu afastouse sem dúvida do cidadão da cidade clássica do homo aequalis da Antiguidade pagã mas a sua distância em relação ao renunciante e ao homo hierarchicus da civilização indiana assume outras dimensões 4 Problèmes de la personne sob a direcção de I Meyerson Paris e La Haye Mouton 1973 p 133 5 Genèse de lAntiquité tardive Paris Gallimard 1983 p 6