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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS CORAÇÃO EUCARÍSTICO DIREITO FILOSOFIA ANTROPOLOGIA E ÉTICA caderno de textos Prof Dr Claudemir Francisco Alves Belo Horizonte 20232 Filosofia antropologia e ética 2 TEXTO 1 DO ENRAIZAMENTO CÓSMICO À EMERGÊNCIA HUMANA Edgar Morin 1921 MORIN Edgar O método 5 a humanidade da humanidade 3ed Porto Alegre Sulina 2005 p 2534 I O ENRAIZAMENTO CÓSMICO Quem somos é inseparável de onde estamos de onde viemos para onde vamos Conhecer o humano não é expulsálo do universo mas aí situálo Pascal já nos tinha corretamente situado entre dois infinitos o que foi amplamente confirmado pelo duplo desenvolvimento no século XX da microfísica e da astrofísica Ao escrever podemos muito bem inflar nossas concepções para além dos espaços imagináveis ao custo da realidade das coisas mas só parimos átomos ele podia mesmo presumir nossa vertiginosa pequenez mais do que microscópica no seio de um liliputiano sistema solar de uma galáxia nanica num cosmo estendendose por bilhões de anosluz Ao escrever que um ácaro poderia conter uma infinidade de universos cada um com seu firmamento seus planetas sua terra podia supor nosso extremo gigantismo em relação ao mundo subatômico sem ainda desconfiar que somos formados por bilhões de bilhões de partículas e atravessados incessantemente sem perceber por bilhões de neutrinos Ao escrever que o homem está como que perdido num cantão desviado da natureza quase podia imaginar a marginalidade da nossa Terra terceiro satélite de Filosofia antropologia e ética 3 um Sol destronado do centro reduzido a astro perdido numa galáxia periférica entre bilhões de galáxias de um universo em expansão Conhecemos na atualidade nosso duplo enraizamento no cosmo físico e na esfera viva Estamos ao mesmo tempo na natureza e fora dela As ciências do mundo físico e as do mundo vivo serão com certeza revisadas e corrigidas acontecerão descobertas inacreditáveis teremos a revelação de dimensões ou realidades ainda invisíveis ou desconhecidas Quanto mais avançarmos no conhecimento mais aparecerão mistérios insondáveis Mas podemos desde já antecipar uma longa narrativa a do universo na qual nos situamos como protagonistas tardios Esse universo saído parece de um acontecimento inenarrável do qual jorraram luz matéria corpo espaço movimento é arrastado numa aventura fabulosa de criação e de destruição sem parar apagamse ou explodem sóis congelamse planetas sem parar reúnemse fragmentos e poeira de astros mortos em espiral sobre eles próprios para gerar novos sóis e novas galáxias Nosso cosmo ruma simultaneamente para a dispersão e para a complexificação quanto mais há complexidade mais esta é marginal e minoritária a matéria organizada conhecida representa menos de 2 do universo a vida talvez seja única ou ao menos muito rara no cosmo não passa de uma espuma parasita na Terra e a consciência talvez esteja só no mundo vivo A origem da aventura cósmica nos é incompreensível seu futuro velado seu sentido desconhecido Somos forjados produzidos levados nessa aventura da qual na metade do século XX ainda não tínhamos nenhuma consciência A primeira lição que nos dá o cosmo é que as partículas dos átomos de nossas células apareceram nos seus primeiros segundos nossos átomos de carbono formaramse num sol anterior ao nosso nossas macromoléculas uniramse nos primeiros e convulsivos tempos da Terra associandose em turbilhões entre os quais um cada vez mais rico na sua diversidade molecular metamorfoseouse numa Filosofia antropologia e ética 4 organização de novo tipo em relação à organização de novo tipo em relação à organização estritamente química a autoorganização viva O ser vivo é uma máquina inteiramente físicoquímica mas organizada de maneira mais complexa é dotada de qualidades e de propriedades desconhecidas no mundo molecular de onde no entanto saiu as qualidades expressas pelo termo vida Um pouco de substância física organizouse de modo termodinâmico na terra através de imersão marinha fervura química descargas elétricas ganhou vida A vida é solar todos os seus ingredientes foram forjados num sol e depois reunidos num planeta cujos componentes foram cuspidos por uma explosiva agonia solar ela é a transformação de um corrimento fotônico oriundo de flamantes turbilhões solares Nós seres vivos por consequência os humanos filhos das águas da Terra e do Sol somos uma formiga talvez um feto da diáspora cósmica algumas migalhas da existência solar um frágil broto da existência terrestre Natureza e destino cosmofísico do humano O ser humano não é físico somente nas suas partículas átomos e moléculas sua autoorganização originase de uma organização físicoquímica tendo produzido qualidades emergentes que constituem a vida sendo que todas as suas atividades auto organizadoras necessitam de processos físicoquímicos Tratase assim também de uma máquina térmica funcionando a 37 C O mundo físico do qual saímos não obedece a uma Ordem submetida a leis estritas também não está inteiramente entregue às desordens e aos acasos É levado por um grande jogo entre ordemdesordeminteraçõesorganização As organizações nascem de encontros aleatórios e obedecem a um certo número de princípios determinando a ligação dos elementos desses encontros num todo Esse é o jogo do mundo Realizase conforme um anel em que cada termo está em complementaridade e em antagonismo com os outros Filosofia antropologia e ética 5 Depois de ter acreditado num universo perfeitamente determinista a física descobriu nele furor violência e guerra com implosões e explosões de astros galáxias asfixiadas estrelas que se parasitam e devoram de forma canibal foram avistadas desde o final dos anos 1960 monstruosas bolas de fogo extragalácticas chamadas sobressalto gama com um diâmetro 85 vezes maior que o do nosso sistema solar e que se inflam em velocidades loucas São cataclismos afetando estrelas de nêutrons e supernovae O planeta Terra nasceu desse tumulto Na origem provavelmente um amontoado de detritos cósmicos oriundos de uma explosão solar se autoorganiza através de desordens e cataclismos enfrentando não apenas erupções e terremotos mas também o choque violento de aerólitos um dos quais talvez tenha arrancado a lua e outros provocado a extinção dos dinossauros A própria vida em convulsões telúricas e sua aventura ocorreu duas vezes ao menos o perigo de extinção fim do primário e durante o secundário Ela se desenvolveu não apenas em espécies diversas que se devoram mas também em ecossistemas onde as predações e as manducações constituem a cadeia alimentícia de dupla face a da vida e a da morte O desenvolvimento da hominização não constitui uma interrupção das desordens e dos acasos mas uma aventura submetida a desafios ecológicos acidentes conflitos entre espécies primas que se terminam pela liquidação física dos vencidos Assim é toda a aventura cósmica telúrica e biológica que parece obedecer a uma dialógica entre harmonia e cacofonia interações ordem desordem organização desorganização Filosofia antropologia e ética 6 O homem oriundo dessa aventura tem a singularidade de ser cerebralmente sapiensdemens ou seja carregar ao mesmo tempo a racionalidade o delírio a hubris insensatez a destrutividade E a história humana torrente tumultuosa de criações e de destruições despesas inusitadas de energia mistura de racionalidade organizadora ruído e furor tem algo de bárbaro de horrível de atroz de esplêndido evocado pela história cósmica como se esta se tivesse gravado em nossa memória hereditária O cosmo criounos à sua imagem Estamos sós no cosmo Existem fortes argumentos para crer nessa solidão de órfãos cósmicos especialmente o salto logicamente inconcebível da organização estritamente físicoquímica à auto organização viva existem outros para nos sugerir que outras vidas outras inteligências puderam surgir no universo Assim não podemos descartar a possibilidade mesmo improvável de outras formas de vida ou mesmo de consciência não posso rejeitar a ideia de existência de alguma inteligência telúrica invisível para nós ou inimaginável nem a ideia de uma macrointeligência emergindo do próprio cosmo mas se trataria ainda de inteligências emergentes não de uma inteligência primeira guiando o cosmo e a vida Há certo autoorganização do cosmo a partir de uma desordem extraordinária e de alguns princípios de ordem o cosmo se faz destruindose desfazse construindose Mas não consigo acreditar que a aventura cósmica seja animada por algum desígnio providencial que a guiaria rumo à salvação final O universo parece ter nascido na catástrofe e parece rumar para a dispersão generalizada Somos solidários desse destino insensato Se há morte do cosmo não podemos escapar a essa morte podemos somente tentar escapar da extinção do nosso sol migrando para sistemas solares pujantes No horizonte dos nossos horizontes está a morte A morte não é somente uma fatalidade de nosso destino biológico é também uma fatalidade última de nosso destino físico Filosofia antropologia e ética 7 II O ENRAIZAMENTO BIOLÓGICO À nossa ascendência e à nossa constituição física devemos acrescentar nossa inserção terrestre A Terra se autoproduziu e auto organizou na sua dependência ao sol e tornouse biofísica complexa a partir do momento em que se desenvolveu a biosfera Da Terra efetivamente originouse a vida e do desenvolvimento multiforme da vida policelular originouse a animalidade por fim o mais recente desenvolvimento de um ramo do mundo animal tornouse humano Nossa vida é terrestre e somos seres vivos A organização viva não instaura apenas um sistema de comunicação celular interno DNA RNA Proteínas mas comporta desde a era bacteriana comunicações de indivíduo a indivíduo contendo especialmente a injeção de informação do DNA de bactéria a bactéria O que levou a supor que apesar da sua diversidade o conjunto das bactérias vivendo na terra sob a terra e nos ares constitui uma espécie de organismo gigantesco cujos elementos comunicamse em cadeia Certas bactérias abrigando uma bactéria hóspede sob forma de mitocôndria transformaramse em células eucariotas as quais se confederaram em seres policelulares A aptidão à convergência permitiu a formação e o desenvolvimento de vegetais e animais com tendências à associação em bandos rebanhos e sociedades enquanto que nas interações entre unicelulares vegetais e animais formaram ecossistemas os quais se uniram para formar a biosfera O ser humano mortal como todo ser vivo possui a unidade bioquímica e a unidade genética da vida Tratase de um hipervivo que desenvolveu de maneira extraordinária as potencialidades da vida Exprime ao extremo as qualidades egocêntricas e altruístas do indivíduo atinge os paroxismos da vida nos êxtases e na embriaguez ferve de ardores orgiásticos e de orgasmos É também hiperdinâmico no sentido em que desenvolve de maneira nova a criatividade viva Com a humanidade dáse o deslocamento da faculdade criadora para o espírito Filosofia antropologia e ética 8 O ser humano é um metavivo que a partir das suas aptidões organizadoras e cognitivas cria novas formas de vida psíquicas espirituais e sociais a vida do espírito não é uma metáfora nem a vida dos mitos e das ideias tampouco como veremos a vida das nossas sociedades O ser humano permanece um vertebrado certo inferior em muitas performances aos vertebrados aquáticos e voadores mas pôde superálos pela sua técnica em numerosos campos Tratase de um hipermamífero pois marcado até a idade adulta pela simbiose infantil com a mãe desenvolve em amor e ternura cólera e ódio a afetividade dos mamíferos conservando deles sob a forma de amizades adultas a fraternidade juvenil ampliando a solidariedade e a rivalidade fazendo desabrochar as qualidades de memória inteligência e afetividade características da classe levando ao extremo a aptidão para amar gozar e sofrer Os mamíferos deram nos o apego a juvenilidade do brincar e da aprendizagem a experiência e a sagacidade da velhice assim tornamonos metamamíferos quando permanecemos jovens ao envelhecer Tratase de um animal hipersexuado A sua sexualidade não é mais apenas sazonal como ocorre ainda com o chimpanzé e não mais apenas localizada nas partes genitais espalhase por todo o ser não está mais limitada à reprodução mas invade freudulosamente condutas sonhos ideias É um superprimata que transformou em caracteres permanentes traços esporádicos ou provisórios nos macacos superiores a postura bípede a utilização de instrumentos hipertrofiou o cérebro dos ancestrais primatas desenvolveulhes a inteligência e a curiosidade tornandose uma cabeça pensante em tempo integral Já se tinha observado que filhotes de macaco de Ku Su mudavam de comportamento alimentar ao se deslocarem para a beira do mar e que esses costumes eram depois transmitidos Os chimpanzés fabricam instrumentos de madeira que utilizam de várias maneiras e cujo uso se transmite de geração em geração Filosofia antropologia e ética 9 Comparando as técnicas deles às dos antigos hominídeos Frédric Joulian concluiu que muitos dos critérios que distinguem estes dos macacos desaparecem Tudo o que aprendemos sobre as capacidades cognitivas e de linguagem dos chimpanzés desde 1970 é confirmado e enriquecido Washoe e seus companheiros aculturados adquiram um vocabulário de mais de 100 signos ou palavras assim como uma sintaxe rudimentar Sarah de Premack revelou até mesmo a sua capacidade de mentir O gorila Koko soube associar a morte a um grande sono Questão Para onde vão os gorilas quando eles morrem Koko Um buraco de lado confortável Questão O que eles sentem Koko Dormem Bem entendido não se trata da consciência humana da morte que como veremos vai nos separar inexoravelmente da animalidade Ainda que muito próximo de chimpanzés e de gorilas tendo 98 de genes idênticos o ser humano traz uma novidade na animalidade Os 2 de genes originais indicam uma reorganização com certeza muito importante do patrimônio hereditário É a pequena diferença que faz a grande diferença A pobreza do equipamento físico humano em comparação com inúmeros animais não impediu a grande decolagem da humanidade e a dominação do mundo vivo como se o desenvolvimento da inteligência individual e da organização social compensasse as carências ou insuficiências de nossos órgãos músculos olhos ouvidos etc Além do mais as insuficiências e carências por exemplo em sais e vitaminas se tornaram estímulos a buscar achar inventar III A GRANDE DECOLAGEM A HOMINIZAÇÃO Na efervescente epopeia evolutiva um ramo da ordem dos primatas começou há seis milhões de anos uma nova aventura a da hominização que se acelerando há 200 mil anos produziu a humanidade Filosofia antropologia e ética 10 Na sequência das descobertas de L S Leakey em 17 de julho de 1959 na garganta de Olduvai em Tanganyika numerosas outras escavações revelaram a presença de australopitecos acompanhados de instrumentos em regiões secas há dois ou três milhões de anos o que consolida a hipótese segundo a qual o desenvolvimento da bipedização e dos instrumentos foi uma resposta a um desafio ecológico o avanço da savana hostil e parcimoniosa consecutivo ao recuo da floresta tropical protetora e nutriente Contudo essa ideia foi questionada pela descoberta de australopitecos florestais de articulações adaptadas à condição bípede descoberta de Abel por Michel Brunet no Tchad descoberta de Ardipithecus ramidus 58 a 52 milhões de anos na Etiópia contemporâneos ou mais antigos do que as savanas Daí uma nova hipótese linhagens de antropoides teriam se tornado bípedes no seio da floresta sem perder a aptidão para subir nas árvores que conservamos o que lhes teria permitido utilizar melhor as mãos A isso se sobrepõe a tese de Anne DambricourtMalassé segundo a qual a hominização resultaria numa linhagem primata ainda silvestre de um impulso interno em curso de embriogênese rumo à contração craniana Não seria possível reunir num circuito essas concepções e considerar que um bípede das florestas pôde responder aos desafios da savana nela se desenvolvendo Estamos mais do que nunca na noite escura das origens A própria tese da gênese africana rica em argumentos não é certa Como diz o paleontólogo JeanJacques Jaeger Em nossa disciplina tudo se baseia na ausência de provas E Michel Brunet o descobridor de Abel A ausência de provas não é a prova da ausência Muitos enigmas permanecem e até mesmo aprofundam o mistério A hominização é uma aventura começada ao que atualmente parece há sete milhões de anos Ela é descontínua pela aparição de novas espécies habilis erectus neandertal sapiens e desaparecimento das anteriores bem como pela domesticação do fogo pelo surgimento da linguagem e da cultura É descontínua na sua dialógica entre desenvolvimento da bipedização da manualização verticalização do corpo cerebralização Filosofia antropologia e ética 11 juvenilização complexificação social Moscovici processos ao longo dos quais aparece a linguagem propriamente humana ao mesmo tempo que se constitui a cultura capital transmissível de geração em geração saberes savoirfaire crenças mitos costumes O adulto humano conservou como mostrou Bolk as características não especializadas do feto e as características psicológicas da juventude Cerebralização e juvenilização andam juntas ao longo da hominização A cerebralização aumenta o tamanho do cérebro o número de neurônios e de suas conexões complexifica sua organização e desenvolve a aptidão para aprender Os avanços correlacionados da juvenilização traduzemse na prolongação da infância ou seja do período de plasticidade cerebral que permite a aprendizagem da cultura pois a integração da complexidade cultural necessita de uma longa infância e pela conservação no adulto de características juvenis tanto no seu organismo que continua não especializado poliadaptativo e onívoro quanto na curiosidade e inventividade psíquicas Cerebralização e juvenilização favorecem o desenvolvimento da complexidade social esses três termos complementares se estimulam o que possibilita antes do aparecimento do homo sapiens a emergência conjunta de nossa linguagem e de nossa cultura Isso reforça a hipótese retomada por Clifford Geertz que expus em outra ocasião É evidente que o grande cérebro do sapiens só pôde surgir vencer triunfar depois da formação de uma cultura já complexa sendo surpreendente que tenhamos pensado durante tanto tempo o contrário Assim a hominização biológica foi necessária para a elaboração da cultura mas a emergência da cultura foi necessária para a continuação da hominização até o neandertal e o sapiens Assim começamos a perceber a relação em anel entre natureza e cultura Podemos até mesmo identificar mais ou menos aproximadamente a fase de hominização em que esses dois termos se entrelaçaram A aptidão natural para aprender encontrará seu Filosofia antropologia e ética 12 pleno emprego na cultura que constitui um capital de elementos adquiridos e de métodos de aquisição O ser humano dispõe de um corpo generalista como diz Boris Cyrulnik capaz de diversas adaptações e performances O que faz a sua insuficiência faz também a sua virtude a não especialização anatômica A mão não especializada tornouse polivalente verdadeira faz tudo diz Howell ligado a um cérebro generalista cada vez mais potente é capaz de realizar numerosas tarefas especializadas a generalidade e a polivalência são portanto as condições de múltiplas especializações enquanto o inverso é impossível Os instrumentos como as armas permitirão realizar tarefas especializadas Há ao mesmo tempo regressão dos programas ou rituais de comportamento O indivíduo humano torna se um ser de mil e uma utilidades Como dizia Rousseau vejo um animal menos forte que uns menos ágil que outros mas no conjunto o mais vantajosamente organizado de todos Discurso sobre a desigualdade social Assim a grande decolagem da hominização rumo à humanidade é investida pelo novo complexo cérebro mão linguagem espírito cultura sociedade A partir disso a humanidade não se reduz de modo algum à animalidade mas sem animalidade não há humanidade O proto humano só se torna plenamente humano quando o conceito de homem comporta uma dupla entrada uma entrada biofísica e uma entrada psicosociocultural uma remetendo à outra Na ponta da aventura criadora da vida a hominização resulta num novo começo Filosofia antropologia e ética 13 DEFINIÇÕES Anel recursivo Noção essencial para a concepção dos processos de auto organização e de autoprodução Constitui um circuito em que os efeitos retroagem sobre as causas sendo os próprios produtos produtores do que os produz p 299 Dialógica Unidade complexa entre duas lógicas entidades ou instâncias complementares concorrentes e antagônicas que se alimentam uma da outra se completam mas também se opõem e se combatem Distinguese da dialética hegeliana Em Hegel as contradições encontram uma solução superamse e suprimemse numa unidade superior Na dialógica os antagonismos persistem e são constitutivos das entidades ou dos fenômenos complexos p 300301 Filosofia antropologia e ética 14 TEXTO 2 MEDITAÇÕES Marco Aurélio 121 180 E C AURÉLIO Marco Meditações São Paulo Edipro 2019 LIVRO II 17 O tempo é um ponto no que diz respeito à vida humana ao passo que a substância flui a percepção sensorial é imprecisa a composição do corpo inteiro facilmente putrescível a alma é um pião que rodopia o destino difícil de ser previsto e o prestígio carente de discernimento Em síntese tudo aquilo que diz respeito ao corpo é um rio enquanto o que diz respeito à mente ou à alma é um sonho e uma fumaça quanto à vida é uma guerra e uma estada em país estrangeiro a fama dada na posteridade um esquecimento O que então é capaz de nos oferecer uma orientação Somente a filosofia Esta requer vigiar para que a divindade interior se mantenha não violenta e incólume acima de prazeres e sofrimentos sem agir de maneira aventureira destituída de meta nem mentirosa e hipócrita dispensando absolutamente a ação ou inação alheias ademais aceitar todo tipo de acontecimento e o lote que nos cabe seja qual for como provenientes daquele lugar seja onde for de onde nós mesmos provimos e principalmente aguardar a morte em uma disposição favorável e tranquila porquanto ela nada é senão a dissolução dos elementos a partir dos quais cada ser vivo é composto Se assim para os próprios elementos nada há de se temer no fato de cada um se transformar continuamente no outro por que temer e preocupar te com tua transformação e dissolução no conjunto Isso é conforme a natureza e nada que é conforme a natureza constitui mal Escrito enquanto em Carnuntum1 1 Aquartelamento à margem do rio Danúbio na Panônia hoje Hungria Filosofia antropologia e ética 15 LIVRO III 1 Não se deve apenas concluir racionalmente que a cada dia a vida vai se consumindo e deixando atrás de si uma menor porção para ser vivida tampouco que se alguém vive mais é incerto se seu intelecto vai se conservar o mesmo no transcorrer dos anos concedendolhe entendimento para os negócios e conhecimento conquistado na experiência para perscrutar as coisas divinas e humanas Com efeito se a pessoa volta à infância com a senilidade passando a falar coisas sem sentido ainda assim seu sistema respiratório seu sistema de nutrição sua imaginação seus impulsos e outras faculdades podem não lhe faltar mas como fazer o uso apropriado de si mesmo como dar conta das obrigações com precisão como distinguir nitidamente as coisas que se mostram e saber se no que toca a si mesma já é hora de sair de si visto que para essas coisas que certamente necessitam de raciocínio a pessoa já está morta Convém portanto que te apresses não só porque estás cada vez mais próximo da morte como também porque teu intelecto que te capacita a acompanhar um raciocínio com relação às coisas já está antecipadamente condenado ao aniquilamento 2 É preciso também observar que os próprios acontecimentos que se somam às operações naturais contêm algo de agradável e sedutor Por exemplo quando um pão é assado algumas de suas partes podem ficar quebradiças e se fragmentar deixando a crosta irregular mas embora de certa maneira isso contrarie a arte do padeiro e sua intenção esse pão possui algo em particular que estimula o apetite Os figos por sua vez são agradáveis quando maximamente maduros começam se contrair e murchar E as azeitonas demasiado maduras se impõem como frutos particularmente belos quando na iminência de entrar em putrefação Ademais as espigas se inclinam a pele da fronte de um leão a espuma escorrendo da boca de um javali e muitas outras coisas semelhantes embora isoladamente não apresentem de modo algum um belo aspecto por serem fatos da natureza concorrem para sua ornamentação e adquirem um aspecto atraente de sorte que se alguém com sentimento e ponderação sondar mais profundamente o que acontece no universo Filosofia antropologia e ética 16 mesmo entre as coisas que não passam de consequências de certo modo não vai encontrar quase nada que não exiba certo encanto Contemplará igualmente com prazer as reais mandíbulas ou goelas escancaradas dos animais selvagens e as imitações retratadas por pintores e estatuários e assim perceberá encanto em toda faixa etária mesmo na velhice da mulher ou na do homem como no viço da infância e da mocidade não demorando a capacitarse a ver com olhos sadios e sóbrios e muitas outras coisas desse tipo serão descortinadas por ele sem a todos convencer mas apenas àqueles que estão realmente familiarizados com a natureza e suas obras 3 Depois de curar muitas doenças Hipócrates2 ele próprio contraiu doença e morreu Os caldeus3 anteciparam a morte de muitas pessoas para em seguida serem eles também colhidos pelo destino Alexandre Pompeu e Caio César após tantas vezes destruírem por completo cidades inteiras e retalharem em campo de batalha muitos milhares de soldados de cavalaria e infantaria também um dia partiram da vida Heráclito4 que tanto investigou e se pronunciou acerca da natureza em torno da destruição do mundo pelo fogo acabou morrendo com o corpo internamente repleto de água e deitado no estrume Demócrito5 foi morto por piolhos e vermes Sócrates foi morto por outra espécie de 2 Nascido em Cós cerca de 460 a E C e morto em idade avançada autor do célebre juramento dos médicos encarou a medicina como ciência aliviandoa das superstições Deixou tratados famosos sobre ares águas e lugares e um livro de aforismos 3 Caldeus aqui é sinônimo de astrólogos 4 Filósofo nascido em Éfeso cerca de 540 a E C Célebre por ter chamado a atenção para a mutabilidade das coisas Conhecemse apenas fragmentos de suas obras mas exerceu profunda influência na Antiguidade O seu pensamento é sempre altivo e envolto em sombras de tristeza Dois aforismos seus muito citados Tudo flui Não nos banhamos duas vezes no mesmo rio 5 Nascido em Abdera cerca de 460 a E C discípulo de Leucipo o criador do atomismo cujas teorias divulgou Conhecemos apenas fragmentos de suas obras O fim que lhe é atribuído nesta passagem não foi o seu mas o de Ferecides terá ocorrido erro de copista ou interpolação Filosofia antropologia e ética 17 verme6 Qual o sentido disso Embarcaste realizaste a viagem e alcançaste a costa Ora desembarca Se para outra vida tampouco aí faltarão deuses Se contudo desembarcares na insensibilidade cessarão para ti sofrimentos e prazeres e deixarás de ser servidor de um vaso de carne que é tão inferior quanto aquele que serve é superior pois este é inteligência e divindade enquanto aquele é terra e sangue mesclados ao pó 4 Não gastes o resto de tua vida com ideias que dizem respeito aos outros a não ser que tenham relação com o interesse comum pois com isso certamente te privas de alguma outra ocupação que por ti é negligenciada ao te entreteres com ideias e ações alheias com metas visadas pelos outros com o que dizem ou pensam com o tramam e outras coisas semelhantes isso leva uma pessoa a fugir da observação e da atenção que deve dedicar à sua faculdade condutora Observa portanto no encadeamento de tuas ideias o cuidado no sentido de evitar aquilo que é arriscado e vão principalmente o que é supérfluo e pernicioso habitua te a pensar somente naquilo que se alguém te perguntar de repente o que estás pensando possas responder com total franqueza e de imediato de modo que se assim te abres será possível perceber de maneira rápida e evidente que és sincero e benevolente em relação a tudo e que és dotado de espírito de comunidade isso sem ceder em absoluto aos prazeres e às fantasias voluptuosas livre do gosto pelas disputas pela inveja e pela suspeita ou por quaisquer outras coisas cuja revelação te faria enrubescer Um homem com esse perfil que a partir de então não poupa nenhum esforço para se colocar entre os melhores é um sacerdote e um servidor dos deuses igualmente devotado ao serviço daquele que edificou nele sua morada graças a esse culto essa pessoa se mantém não contaminada pelos prazeres invulnerável a todo sofrimento livre de todo excesso indiferente a toda maldade um atleta da mais nobre das lutas capaz de não se deixar vencer por quaisquer paixões profundamente mergulhado na justiça alguém que aceita com toda sua alma tudo o que 6 Evidentemente a referência não é à cicuta mas sim aos acusadores de Sócrates Meleto Anito e Lícon Filosofia antropologia e ética 18 acontece e o lote que lhe cabe é alguém que raramente se põe a imaginar o que os outros dizem ou fazem ou pensam a não ser por força da necessidade e quando se trata de grande interesse da comunidade Realmente apenas se atém às suas funções e ao que lhe diz respeito e seu pensamento está ininterruptamente ligado ao lote do universo que lhe cabe dentro da trama tecida pelo destino cumpre suas funções honrosamente e está persuadido de que as coisas ditadas pelo destino são boas Com efeito a sorte atribuída a cada um está contida na ordem universal e também a implica Lembra ademais que tudo aquilo que participa do raciocínio está aparentado a ele e que a solicitude por todos os seres humanos está em conformidade com a natureza do ser humano que a boa reputação porém não deve ser concedida a todos mas só àqueles que vivem em conformidade com a natureza Quanto às pessoas que não vivem assim lembra incessantemente que tipo são em suas casas ou fora delas dia e noite quais são suas companhias como passam suas vidas em um estado de confusão isso ele sabe e tem em mente de modo a não aceitar em sua razão esse louvor que tais pessoas lhe concedem que nem mesmo são capazes de satisfazer a si mesmas 6 Se na vida humana descobrires algo superior à justiça verdade moderação coragem e para resumir um pensamento que encontra satisfação em si próprio ao te permitir agir em conformidade com a reta razão e diante de condições que não escolheste se eu digo contemplaste algo que supera isso em qualidade com toda tua ama volta te para tal coisa e goza o que descobriste ser o mais excelente Se entretanto nada parecer melhor que a divindade instalada em ti a qual fez de si mesma a base de teus impulsos pessoais submeteu as ideias ao controle e como disse Sócrates livrouse dos estímulos da percepção sensorial e sujeitouse aos deuses zelando pelos seres humanos se descobrires que tudo o mais comparado a isso é inferior e menos valioso não dá espaço a outra coisa pois se tu realmente uma vez te desviaste e pendeste para isso não vais conseguir mais incansavelmente deixar de dar preferência a esse bem que te é particular Pois não é lícito que qualquer coisa de outra espécie por exemplo o louvor da multidão ou o poder ou a riqueza ou o gozo de prazeres oponhase àquilo que é Filosofia antropologia e ética 19 racional e socialmente bom Todas aquelas coisas embora por algum tempo pareçam ajustarse a nossa natureza repentinamente se tornam dominantes e se instalam na inteligência produzindo um desvio em nossa natureza Escolhe eu digo de maneira simples e livre o que é o melhor e prendete a isso O melhor porém é o útil Se a referência for ao útil envolvendo a ti como um ser racional preservao se contudo envolve a ti como animal rejeitao e conserva sem orgulho teu julgamento apenas executa com firmeza teu exame 7 Jamais estima algo como vantajoso a ti se vier a te obrigar algum dia a violar tua fé a abrir mão do respeito que tens por ti a odiar alguém levantar suspeita lançar maldições ser hipócrita desejar algo que exige paredes e tapeçarias Com efeito aquele que preferiu a sua própria inteligência a sua divindade tutelar e o culto religioso em razão desta dignidade não atuará em nenhuma tragédia não se porá a lamentar e dispensará o isolamento e a presença maciça de pessoas e sobretudo não viverá nem se apegando à vida nem fugindo dela Não o preocupa que sua alma permaneça por um intervalo maior ou menor de tempo tendo um corpo por invólucro se com efeito for necessário desde já que ele o abandone estará pronto para isso e partirá sem qualquer embaraço como o faria em relação a outras atividades que pudesse executar reservada e decentemente Por toda a vida seu único cuidado é manter seu pensamento ocupado com o que é próprio a um ser vivo racional e social 10 Então descartando tudo o mais retém apenas esses poucos princípios lembrando ao mesmo tempo que cada um se limita a viver o presente que tem duração muito curta quanto ao restante é incerto ou impenetrável Efêmera portanto é a vida de cada um e pequeno é o cantinho em que vive efêmero inclusive é o mais duradouro dos renomes oferecidos pela posteridade e até isso segundo uma sucessão de pessoas medíocres que não tardarão a morrer que nem sequer conhecem a si mesmas muito menos aquelas que morreram há muito tempo Filosofia antropologia e ética 20 12 Caso ajas conforme a reta razão com referência ao que se coloca diante de ti com seriedade firmeza benevolência não admitindo que nada secundário te desvie de tua ação mas conservando pura a divindade que existe em ti como se devesses restituíla de imediato caso te vincules a isso sem nada esperar nem fugir de nada contente com tua atividade presente conforme a natureza a dizer e murmurar em todo som emitido de tua boca uma verdade heroica então viverás feliz E não existe ninguém com o poder de impedilo LIVRO IV 5 A morte como o nascimento é um mistério da natureza O nascimento é uma combinação de elementos enquanto a morte é uma dissolução nos mesmos elementos nada em absoluto que seja desonroso uma vez que não se opõe ao que se coaduna com um animal racional nem à raão de nossa disposição natural 6 Tais coisas por conta de tais fatores devem assim se produzir naturalmente sob o império da necessidade não querer que assim seja é querer que a figueira não tenha suco Em uma palavra lembrate que não transcorrerá muito tempo para que tu e ela estejam mortos logo depois nada deixareis atrás de vós nem sequer vosso nome 17 Não te conduzas como se estivesses destinado a viver dez mil anos A fatalidade está no teu encalço Enquanto ainda vives enquanto há possibilidade sê da estirpe das pessoas boas Filosofia antropologia e ética 21 QUESTÕES PARA ESTUDO INDIVIDUAL DO TEXTO QUESTÃO 1 De que maneira Marco Aurélio compreende o curso da vida humana e a finitude QUESTÃO 2 Qual é o conceito de ordem universal pressuposto pelo estoicismo O que é natureza O que significa viver em harmonia com a natureza de acordo com essa corrente filosófica QUESTÃO 3 De acordo com a perspectiva estoica expressa no texto o que é o mal Tratase de uma condição objetiva ou de uma percepção subjetiva Como o indivíduo racional deve agir em face do mal para ser feliz QUESTÃO 4 A relação estoica entre o espiritual e o material se concretiza em concepções de corpo e mente racional e animal interior e exterior Explique essas oposições Filosofia antropologia e ética 22 O que são as paixões Qual é o papel da razão na relação com as paixões QUESTÃO 5 Marco Aurélio faz uma identificação entre racionalidade e moralidade a felicidade está associada a fazer o bem e agir moralmente Explique essa postura Elabore uma explicação para o conceito de reta razão empregado e pressuposto por Marco Aurélio em diferentes momentos de sua meditação Filosofia antropologia e ética 23 TEXTO 3 CARTA A MENECEU Epicuro 341 270 aEC EPICURO Carta sobre a felicidade a Meneceu São Paulo Ed Unesp 2002 p 1418 Disponível em httpabdetcombrsitewpcontentuploads201411CartaSobrea Felicidadepdf Data da consulta 01 ago 2019 Subtítulos desta edição não constam no original Epicuro envia saudações a Meneceu O ESTUDO DA FILOSOFIA Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem nem se canse de fazêlo depois de velho porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito Quem afirma que a hora de dedicarse à filosofia ainda não chegou ou que ela já passou é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz Desse modo a filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho para quem está envelhecendo sentirse rejuvenescer através da grata recordação das coisas que já se foram e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir é necessário portanto cuidar das coisas que trazem a felicidade já que estando esta presente tudo temos e sem ela tudo fazemos para alcançála Pratica e cultiva então aqueles ensinamentos que sempre te transmiti na certeza de que eles constituem os elementos fundamentais para uma vida feliz Filosofia antropologia e ética 24 OS DEUSES Em primeiro lugar considerando a divindade como um ente imortal e bemaventurado como sugere a percepção comum de divindade não atribuas a ela nada que seja incompatível com a sua imortalidade nem inadequado à sua bemaventurança pensa a respeito dela tudo que for capaz de conservarlhe felicidade e imortalidade Os deuses de fato existem e é evidente o conhecimento que temos deles já a imagem que deles faz a maioria das pessoas essa não existe as pessoas não costumam preservar a noção que têm dos deuses Ímpio não é quem rejeita os deuses em que a maioria crê mas sim quem atribui aos deuses os falsos juízos dessa maioria Com efeito os juízos do povo a respeito dos deuses não se baseiam em noções inatas mas em opiniões falsas Daí a crença de que eles causam os maiores malefícios aos maus e os maiores benefícios aos bons Irmanados pelas suas próprias virtudes eles só aceitam a convivência com seus semelhantes e consideram estranho tudo que seja diferente deles A MORTE Acostumate à ideia de que a morte para nós não é nada visto que todo o bem e todo o mal residem nas sensações e a morte é justamente a privação das sensações A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera sem querer acrescentarlhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver É tolo portanto quem diz ter medo da morte não porque a chegada desta lhe trará sofrimento mas porque o aflige a própria espera aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligirnos enquanto está sendo esperado Filosofia antropologia e ética 25 Então o mais terrível de todos os males a morte não significa nada para nós justamente porque quando estamos vivos é a morte que não está presente ao contrário quando a morte está presente nós é que não estamos A morte portanto não é nada nem para os vivos nem para os mortos já que para aqueles ela não existe ao passo que estes não estão mais aqui E no entanto a maioria das pessoas ora foge da morte como se fosse o maior dos males ora a deseja como descanso dos males da vida O sábio porém nem desdenha viver nem teme deixar de viver viver não é um fardo e nãoviver não é um mal SABER VIVER Assim como opta pela comida mais saborosa e não pela mais abundante do mesmo modo ele colhe os doces frutos de um tempo bem vivido ainda que breve Quem aconselha o jovem a viver bem e o velho a morrer bem não passa de um tolo não só pelo que a vida tem de agradável para ambos mas também porque se deve ter exatamente o mesmo cuidado em honestamente viver e em honestamente morrer Mas pior ainda é aquele que diz bom seria não ter nascido mas uma vez nascido transpor o mais depressa possível as portas do Hades Se ele diz isso com plena convicção por que não vai desta vida Pois é livre para fazêlo se for esse realmente seu desejo mas se o disse por brincadeira foi frívolo em falar de coisas que brincadeira não admitem Nunca devemos nos esquecer de que o futuro não é nem totalmente nosso nem totalmente nãonosso para não sermos obrigados a esperálo como se estivesse por vir com toda a certeza nem nos desesperarmos como se não estivesse por vir jamais Filosofia antropologia e ética 26 OS DESEJOS E A TRANQUILIDADE DE ESPÍRITO Consideremos também que dentre os desejos há os que são naturais e os que são inúteis dentre os naturais há uns que são necessários e outros apenas naturais dentre os necessários há alguns que são fundamentais para a felicidade outros para o bem estar corporal outros ainda para a própria vida E o conhecimento seguro dos desejos leva a direcionar toda escolha e toda recusa para a saúde do corpo e para a serenidade do espírito visto que esta é a finalidade da vida feliz em razão desse fim praticamos todas as nossas ações para nos afastarmos da dor e do medo Uma vez que tenhamos atingido esse estado toda a tempestade da alma se aplaca e o ser vivo não tendo que ir em busca de algo que lhe falta nem procurar outra coisa a não ser o bem da alma e do corpo estará satisfeito De fato só sentimos necessidade do prazer quando sofremos sua ausência ao contrário quando não sofremos essa necessidade não se faz sentir O PRAZER É por essa razão que afirmamos que o prazer é o início e o fim de uma vida feliz Com efeito nós o identificamos como o bem primeiro e inerente ao ser humano em razão dele praticamos toda escolha ou recusa e a ele chegamos escolhendo todo bem de acordo com a distinção entre prazer e dor Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato nem por isso escolhemos qualquer prazer há ocasiões em que evitamos muitos prazeres quando deles advêm efeitos o mais das vezes desagradáveis ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo Portanto todo prazer constitui um bem por sua própria natureza não obstante isso nem todos são escolhidos do mesmo modo toda dor é um mal mas nem todas devem ser evitadas Convém portanto avaliar todos os Filosofia antropologia e ética 27 prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos Há ocasiões em que utilizamos um bem como se fosse um mal e ao contrário um mal como se fosse um bem A SIMPLICIDADE Consideramos ainda a autossuficiência um grande bem não que devamos nos satisfazer com pouco mas para nos contentarmos com esse pouco caso não tenhamos o muito honestamente convencidos de que desfrutam melhor a abundância os que menos dependem dela tudo o que é natural é fácil de conseguir difícil é tudo o que é inútil Os alimentos mais simples proporcionam o mesmo prazer que as iguarias mais requintadas desde que se remova a dor provocada pela falta pão e água produzem o prazer mais profundo quando ingeridos por quem deles necessita Habituarse às coisas simples a um modo de vida não luxuoso portanto não só é conveniente para a saúde como ainda proporciona ao homem os meios para enfrentar corajosamente as adversidades da vida nos períodos em que conseguimos levar uma existência rica predispõe o nosso ânimo para melhor aproveitála e nos prepara para enfrentar sem temor as vicissitudes da sorte A TEMPERANÇA E A PRUDÊNCIA Quando então dizemos que o fim último é o prazer não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos sentidos como acreditam certas pessoas que ignoram o nosso pensamento ou não concordam com ele ou o interpretam erroneamente mas ao prazer que é ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma Não são pois bebidas nem banquetes contínuos nem a posse de mulheres e rapazes nem o sabor dos peixes ou das outras iguarias de uma mesa farta que tornam doce uma vida mas um exame cuidadoso que investigue as causas de toda Filosofia antropologia e ética 28 escolha e de toda rejeição e que remova as opiniões falsas em virtude das quais uma imensa perturbação toma conta dos espíritos De todas essas coisas a prudência é o princípio e o supremo bem razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia é dela que originaram todas as demais virtudes é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência beleza e justiça e que não existe prudência beleza e justiça sem felicidade Porque as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade e a felicidade é inseparável delas O HOMEM SÁBIO Na tua opinião será que pode existir alguém mais feliz do que o sábio que tem um juízo reverente acerca dos deuses que se comporta de modo absolutamente indiferente perante a morte que bem compreende a finalidade da natureza que discerne que o bem supremo está nas coisas simples e fáceis de obter e que o mal supremo ou dura pouco ou só nos causa sofrimentos leves Que nega o destino apresentado por alguns como o senhor de tudo já que as coisas acontecem ou por necessidade ou por acaso ou por vontade nossa e que a necessidade é incoercível o acaso instável enquanto nossa vontade é livre razão pela qual nos acompanham a censura e o louvor Mais vale aceitar o mito dos deuses do que ser escravo do destino dos naturalistas o mito pelo menos nos oferece a esperança do perdão dos deuses através das homenagens que lhes prestamos ao passo que o destino é uma necessidade inexorável Entendendo que a sorte não é uma divindade como a maioria das pessoas acredita pois um deus não faz nada ao acaso nem algo incerto o sábio não crê que ela proporcione aos homens nenhum bem ou nenhum mal que sejam fundamentais para uma vida feliz mas sim que dela pode surgir o início de grandes bens e de grandes males A seu ver é preferível ser desafortunado e sábio a ser afortunado e tolo na prática é melhor que um bom projeto não chegue a bom termo do que chegue a ter êxito um projeto mau Filosofia antropologia e ética 29 MEDITAÇÃO Medita pois todas essas coisas e muitas outras a elas congêneres dia e noite contigo mesmo e com teus semelhantes e nunca mais te sentirás perturbado quer acordado quer dormindo mas viverás como um deus entre os homens Porque não se assemelha absolutamente a um mortal o homem que vive entre bens imortais QUESTÕES PARA ESTUDO INDIVIDUAL DO TEXTO QUESTÃO 1 Como o Epicurismo entende o prazer e qual é o seu papel na economia da felicidade Que relação Epicuro afirma existir entre prazer e espírito Explique o conceito epicurista de autossuficiência autarquia QUESTÃO 2 Analise comparativamente a ideia epicurista de valorização das coisas de acordo com a medida e o critério dos benefícios e dos prejuízos e o princípio estoico da conformação à natureza Proponha uma explicação para a naturalidade e a necessidade dos desejos tal como preconizadas por Epicuro Filosofia antropologia e ética 30 QUESTÃO 3 Explique a interpretação epicurista sobre os deuses primeiro tetrafármaco Comparea com a visão estoica QUESTÃO 4 Explique a interpretação epicurista sobre a morte segundo tetrafármaco Compare com a visão estoica sobre a finitude QUESTÃO 5 Analise os dois últimos tetrafármacos remédios para a cura da alma não há mal que sempre dure e tudo o que é natural é fácil de conseguir difícil é tudo o que é inútil Filosofia antropologia e ética 31 TEXTO 4 FÉDON Platão 4287 3487 aEC PLATÃO Fedon ou da alma 2ed Bauru Edipro 2015 p 194202 Tradução e notas Edson Bini PERSONAGENS DO DIÁLOGO EQUÉCRATES FÉDON APOLODORO SÓCRATES CEBES SÍMIAS CRÍTON O SERVIDOR DOS ONZE 63e Sócrates Quero explicar a vós meus juízes porque penso que um homem que realmente passou sua existência dedicandose à filosofia comportase com destemor diante da morte iminente 64a e alimenta intensas esperanças de que quando morto alcançará as maiores bênçãos no outro mundo Tentarei revelar a vós Símias e Cebes como seria isso É provável que outras pessoas não estejam cientes de que aqueles que se devotam à atividade filosófica corretamente limitam se a estudar o morrer e o estar morto Ora se isso for verdade seria efetivamente absurdo se manterem ansiosos por isso durante a totalidade de suas vidas e então se afligirem quando o que desejaram e constitui o objeto de um estudo e prática de tão longo tempo se apresenta a eles Símias riu e observou Por Zeus Sócrates não experimentava 64b a menor disposição para o riso até agora porém me induziste Filosofia antropologia e ética 32 ao riso Penso que a maioria dos indivíduos se ouvir o que disseste pensará que tua descrição dos filósofos é excelente e o povo de nossa cidade concordaria inteiramente que os filósofos anseiam a morte e que a maioria dos seres humanos sabem muito bem que os filósofos a merecem E estariam proferindo a verdade Símias exceto no que diz respeito a saberem muito bem De fato não sabem de que 64c modo os verdadeiros filósofos anseiam a morte de que modo merecem a morte e tampouco de que tipo de morte se trata Conversemos portanto disse ele entre nós sem prestar mais atenção a eles Pensas que há essa coisa que é a morte Certamente respondeu Símias Acreditamos não é mesmo que a morte é a separação da alma do corpo e que o estado que corresponde a estar morto é aquele no qual o corpo está separado da alma e existe sozinho por si mesmo enquanto a alma está separada do corpo e existe sozinha por si mesma É a morte algo distinto disso Não é isso ele disse Agora meu bom homem vê se concordas comigo pois se concordares suponho que arrojaremos mais luz ao objeto de nossa investigação 64d Julgas provável que um filósofo se importe muito com os chamados prazeres tais como o de comer e de beber De modo algum Sócrates disse Símias E quanto aos prazeres do sexo Certamente não Bem julgas que tal homem atribuiria muita importância aos demais cuidados do corpo esses que envolvem a posse de roupas e calçados elegantes além de outros ornamentos pessoais para o corpo Achas que se preocuparia com eles 64e ou os desprezaria exceto na exata medida da necessidade de possuílos Acho que o verdadeiro filósofo os desprezaria ele respondeu Filosofia antropologia e ética 33 Julgas que tal homem não se devotaria ao corpo mas se afastaria tanto quanto fosse capaz do corpo para se preocupar com a alma Julgo Assim em primeiro lugar está claro que em tais matérias o filósofo mais do que outros indivíduos libera a alma da 65a comunhão com o corpo Está Ora certamente Símias a maioria das pessoas pensa que um homem que não extrai prazer dessas coisas e que delas não participa não merece viver e que alguém que em nada se preocupa com os prazeres do corpo está praticamente morto O que dizes é certamente verdadeiro E quanto à efetiva aquisição do conhecimento Constitui o corpo um obstáculo ou não se houver com ele uma comunhão visando à busca do conhecimento O que quero dizer é o seguinte 65b têm a visão e a audição humanas nelas encerrada qualquer verdade ou é exato como os poetas nos dizem constantemente que nem ouvimos nem vemos qualquer coisa com precisão E se esses dois sentidos corpóreos não oferecem clareza ou precisão dificilmente os outros as oferecerão visto que são inferiores a esses Não pensas assim Certamente penso ele respondeu Se é assim ele disse quando é que a alma apreende a verdade De fato toda vez que tenta examinar qualquer coisa em associação com o corpo é claramente enganada por ele 65c O que dizes é verdadeiro Não é no raciocínio se é que em alguma parte que algo das coisas que são1 tornase claro para ela Sim Mas ela raciocina melhor quando nenhuma destas coisas a perturba quer a audição quer a visão quer a dor quer o prazer estando ela sim tanto quanto possível sozinha e isolada apartada do 1 τῶν ὄντων tón ónton Filosofia antropologia e ética 34 corpo e evitando na medida do possível toda associação ou contato com o corpo na sua busca da realidade Assim é E é nessa condição também que a alma do filósofo sumamente 65d despreza o corpo a ele se esquiva e se esforça para estar sozinha e isolada É o que se evidencia E quanto ao seguinte Símias Pensas haver uma coisa que é o próprio justo ou não Por Zeus que pensamos que há E quanto ao belo e ao bem Claro que sim E algum dia viste quaisquer dessas coisas com teus olhos De modo algum ele disse Ou as apreendeste com qualquer dos sentidos corpóreos Refiro me a todas essas coisas tais como tamanho saúde força e em síntese a essência ou qualidade subjacente de tudo 65e O que é o mais verdadeiro nelas é contemplado mediante o corpo ou será a seguinte a situação quem entre nós que se preparar o melhor possível e com a máxima precisão para apreender essa coisa ela mesma a qual está investigando chegará o mais próximo do conhecimento dela Certamente E não realizará isso com a maior perfeição aquele que aborda cada coisa exclusivamente com a razão não associando a visão à sua reflexão nem fazendo imiscuir quaisquer das 66a outras percepções sensoriais no seu raciocínio aquele que emprega absolutamente o pensamento puro na sua tentativa de investigar as coisas que são e que se afasta pessoalmente tanto quanto possível de olhos e ouvidos em suma de seu corpo inteiro porque percebe que a associação com ele perturba a alma e a impede de alcançar a verdade e a sabedoria Não será essa pessoa Símias que atingirá o ser na hipótese de alguém poder fazêlo Filosofia antropologia e ética 35 O que afirmas disse Símias é efetivamente verdadeiro Sócrates 66b Ora ele disse tudo isso leva necessariamente os legítimos filósofos a pensar e comunicar entre si algo assim é provável que haja um caminho que nos leve acompanhados de nossos argumentos em meio a nossa busca a concluir que enquanto tivermos um corpo e estiver a alma misturada a esse mal jamais alcançaremos completamente o que desejamos ou seja a verdade Pois o corpo nos mantém continuamente ocupados devido a sua necessidade de sustento somese a isso 66c que se é acometido por doenças estas obstam nossa busca do ser O corpo nos enche de desejos sensuais apetites e temores e de toda uma gama de ilusões e tolices de maneira que como dizem ele realmente nos impossibilita em absoluto o pensar O corpo acompanhado de seus desejos é o único responsável por guerras conflitos civis de facções2 e batalhas de fato todas as guerras nascem do desejo de obtenção de riqueza 66d e é o corpo e o cuidado que ele exige aos quais estamos escravizados que nos obriga a ganhar dinheiro e obter riqueza O resultado de tudo isso é não nos restar tempo para o cultivo da filosofia Mas o pior de tudo é que se realmente conseguimos algum ócio e nos voltamos para a filosofia o corpo incessantemente irrompe em meio aos nossos estudos nos transtornando com confusão agitação e medo de modo a nos impedir de contemplar a verdade realmente o que constatamos é que se pretendemos algum dia obter um conhecimento puro de 66e qualquer coisa teremos que nos libertar do corpo e observar as coisas em si mesmas com a alma exclusivamente Assim como indica nosso argumento é provável que quando estivermos mortos teremos a sabedoria pela qual ansiamos e da qual afirmamos ser amantes e não enquanto vivermos De fato na hipótese da impossibilidade do conhecimento puro enquanto estamos associados a um corpo é necessário concluir uma de duas coisas ou tal conhecimento não 2 στάσεις stáseis Filosofia antropologia e ética 36 pode ser adquirido de modo algum ou somente pode sêlo quando estivermos 67a mortos que quando a alma estará sozinha separada do corpo e não antes Enquanto vivermos penso que estaremos o mais próximo do conhecimento toda vez que evitarmos na medida do possível o intercâmbio e a parceria com o corpo salvo o absolutamente indispensável e não nos contaminarmos com a sua natureza peculiar mas nos mantermos puros em relação a ele até que o próprio deus nos liberte E desse modo libertandonos da insanidade do corpo e sendo puros é provável que comungaremos com pessoas do mesmo tipo e passaremos a conhecer por nossos esforços tudo que é puro 67b o que é segundo se presume a verdade De fato não é permitido que o impuro atinja o puro Penso que um discurso como esse Símias todos os que de maneira correta amam o aprendizado devem proferir entre si devendo ser esses os seus pensamentos Ou não pensas assim Com toda a certeza penso Sócrates Então Sócrates disse se isso for verdadeiro meu amigo tenho grande esperança que quando chegar ao lugar para onde estou indo lá se é que há algum lugar para isso atingirei plenamente o que foi o objeto principal do passado de 67c minha vida de sorte que a viagem que agora me é imposta é principiada repleta de esperança positiva essa mesma esperança existe para todo homem3 que acredita que seu pensamento foi purificado e está preparado Certamente disse Símias E não consiste a purificação no que já há algum tempo mencionamos em nosso discurso a saber em separar a alma o máximo possível do corpo e instruíla e habituála a recolherse em si mesma e conservar sua integridade em relação a todas as partes do corpo bem como em viver tanto quanto 67d seja capaz tanto no presente quanto no futuro sozinha e por si mesma libertada do corpo como de grilhões Certamente ele disse 3 ἀνδρί andrí ser humano do sexo masculino Filosofia antropologia e ética 37 Pois bem é essa libertação e separação da alma do corpo não é mesmo que chamamos de morte Precisamente ele disse Mas como afirmamos são exclusivamente aqueles que cultivam corretamente a filosofia que se mantêm maximamente desejosos de libertar a alma restringindose a isso a saber à libertação e separação da alma do corpo o exercício prático de estudo que os preocupa É o que se evidencia Portanto como eu disse no início seria ridículo4 que um homem que passasse a existência praticando para viver num estado o mais próximo possível da morte com ela se afligisse 67e quando essa chegasse para ele Não seria ridículo Está claro que sim Na realidade Símias ele disse aqueles que cultivam a filosofia da maneira correta se exercitam para morrer a morte se afigurando para eles menos temível do que para quaisquer outros seres humanos Considerao do seguinte prisma se são inteiramente desafeiçoados do corpo e anseia pela independência de suas almas não seria sumamente irracional se viessem a se amedrontar e se perturbar quando essa própria independência sucedesse Se não partissem contentes para um lugar onde poderão ter a esperança de atingir aquilo que foi o 68a objeto de seu anseio durante a vida inteira ou seja o saber e onde estariam livres da presença daquilo a que eram hostis Por ocasião da morte de favoritos5 esposas ou filhos muitos homens quiseram ir apara o Hades6 movidos pela esperança de ali ver aqueles de quem sentiam falta e estar em sua companhia E ao morrer se angustiará ao invés de se regozijar com a 4 γελοῖον gelóion Platão escreve anteriormente ἅτοπος átopos deslocado estranho absurdo mas a ideia expressa é essencialmente a mesma 5 παιδικῶν paidikón amantes masculinos adolescentes 6 Ἁιδου hádou o mundo subterrâneo dos mortos Filosofia antropologia e ética 38 perspectiva de partir para o mundo dos mortos aquele que está realmente enamorado do saber e que crê firmemente 68b que só pode encontrálo no mundo dos mortos É inconcebível que pensemos isso meu amigo caso seja esse homem realmente um filósofo pois ele estará firmemente convencido de que só encontrará o puro saber no mundo dos mortos E se assim for não será completamente ilógico para esse homem temer a morte Por Zeus completamente ilógico Então não será suficiente evidência disse Sócrates quando te achas diante de um homem perturbado com a iminência da morte que não se trata de um amante da sabedoria7 68c mas de um amante do corpo8 E esse homem é igualmente um amante do dinheiro9 e um amante das honras10 uma destas coisas ou ambas Decerto ele disse é como dizes E Símias ele disse não é aquilo que se chama de coragem particularmente característico de homens com essa disposição Com toda a certeza ele respondeu E o autocontrole tal como é chamado pela maioria das pessoas o qual consiste em não ser impulsionado pelas próprias paixões em ser superior a elas e agir decentemente não é peculiar exclusivamente daqueles que menosprezam o corpo e 68d passam suas vidas dedicandose à filosofia Necessariamente ele disse De fato se examinares a coragem e o autocontrole de outros indivíduos perceberás que são despropositados Em que sentido Sócrates Estás ciente não é mesmo de que todas as outras pessoas têm a morte entre os grandes males Não há dúvida ele disse 7 φιλόσοφος philósophos 8 φιλοσώματος philosómatos 9 φιλοχρήματος philokhrématos 10 φιλότιμος philótimos Filosofia antropologia e ética 39 E os corajosos não enfrentam a morte quando efetivamente o fazem por temor de males maiores É exato A conclusão é que é o medo que torna a todos corajosos com a exceção dos filósofos E isso a despeito de ser ilógico que se seja corajoso por causa de medo e covardia 68e Com certeza E no que respeita aos que se comportam decentemente Não é sua situação a mesma Não é um certo tipo de licenciosidade que os torna autocontrolados E ainda que decerto afirmemos ser isso impossível seu cândido autocontrole representa pouco mais do que isso na medida em que temem a possibilidade de serem privados de determinados prazeres que são objeto de seu desejo de modo que se abstêm de alguns prazeres porque se encontram sob o domínio de outros E no entanto ser dominado por prazeres é chamado de licenciosidade 69a O fato é que o que ocorre a eles é exercerem controle sobre certos prazeres porque são controlados por outros prazeres Isso se reporta ao que eu disse há pouco ou seja que são autocontrolados por uma espécie de licenciosidade É o que parece Prezado Símias suspeito não ser essa a forma correta de adquirir a virtude quer dizer trocando prazeres por prazeres dores por dores temores por temores e o maior pelo menor como se fossem moedas penso que a única correta moeda corrente pela qual todas essas coisas devem ser trocadas e mediante 69b a qual tudo isso deve ser comprado e vendido é realmente a sabedoria Coragem autocontrole justiça e em síntese a verdadeira virtude só existem acompanhadas de sabedoria sejam adicionados ou subtraídos prazeres temores e demais coisas desse naipe A virtude constituída pela permuta recíproca de tais coisas na ausência da sabedoria não passa de uma aparência fantasiosa de virtude realmente própria de escravos não encerrando em si nada de saudável ou verdadeiro ao passo que na 69c verdade o autocontrole a coragem e a justiça Filosofia antropologia e ética 40 constituem uma purificação de todas essas coisas sendo a própria sabedoria um tipo de purificação E suponho que aqueles que estabeleceram os ritos de iniciação não eram indivíduos destituídos de esclarecimento mas na realidade se expressaram com um significado oculto quando disseram há muito tempo que todo aquele que se dirige ao Hades não iniciado e sem pureza espiritual chafurdará na lama enquanto aquele que lá chegar iniciado e purificado terá sua morada com os deuses Há na verdade como dizem o que se ocupam dos mistérios muitos portadores do tirso11 69d mas as bacantes12 são poucas essas bacantes místicos são segundo penso os que cultivam corretamente a filosofia Na medida de minha capacidade nada deixei em minha vida omisso tendo me empenhado de todas as formas para me tornar um deles Quanto a se meu empenho foi correto e coroado pelo êxito creio que saberei com clareza quando lá chegar em breve se for a vontade do deus Eis a defesa Símias e Cebes que ofereço para indicar o provável acerto de minha atitude em não estar aflito ou perturbado 69e por vos deixar e aos senhores de que disponho aqui porque acredito que lá não menos do que aqui encontrarei bons senhores e amigos Se com esta minha defesa obtive mais sucesso em vos convencer nesta oportunidade do que obtive no convencimento dos juízes atenienses está tudo bem 11 ναρθηκοφόροι narthekofóroi o tirso era um bastão ornamentado com ramos de videira e hera que representava tanto Dionísio Baco quanto suas sacerdotisas 12 βάκχοι bákkhoi se refere àqueles ou melhor àquelas as bacantes tomadas pelo delírio no ritual dionisíaco Mas Platão parece utilizar o termo neste contexto num sentido amplo e figurativo isto é o genérico ou seja de praticantes dos mistérios ou místicos Filosofia antropologia e ética 41 QUESTÕES PARA ESTUDO INDIVIDUAL DO TEXTO QUESTÃO 1 Expliquem detalhadamente a seguinte tese do personagem Sócrates um homem que realmente passou sua existência dedicandose à filosofia comportase com destemor diante da morte iminente e alimenta intensas esperanças de que quando morto alcançará as maiores bênçãos no outro mundo Que semelhanças e diferenças podem ser descritas entre essa concepção platônica e a concepção cristã no tocante à vida após a morte QUESTÃO 2 O que são corpo e alma na concepção platônica Como se relacionam Explique o papel que a filosofia ou seria em sentido mais amplo o pensamento crítico desempenha segundo Platão na libertação da alma QUESTÃO 3 Faz sentido temer a morte de acordo com a perspectiva platônica Explore ambas as possibilidades respondendo afirmativamente e negativamente Compare essa posição platônica com outros pontos de vista considerados ao longo do semestre como o Estoicismo o Filosofia antropologia e ética 42 Epicurismo a visão cristã de Pascal e a perspectiva freudiana sobre os males da vida na civilização QUESTÃO 4 Explique o desprezo pelo corpo e a valorização dos bens espirituais que o personagem Sócrates diz caracterizar o filósofo Por que o corpo seria um obstáculo à consecução do conhecimento Em que medida essa ideia está presente na sociedade contemporânea Como se dá tal presença Explore as contradições desse fenômeno QUESTÃO 5 A julgar exclusivamente por essa parte do texto aqui transcrita podese dizer que Platão demonstrou a existência da alma Quais são os argumentos evidenciados nesse trecho com tal finalidade Caso você considere que o texto não tenha sido totalmente convincente quais são os aspectos que vocês julgam ausentes Vocês encontraram alguma fragilidade na exposição do personagem Sócrates Filosofia antropologia e ética 43 TEXTO 5 PENSAMENTOS excerto a Blaise Pascal 1623 1662 PASCAL Blaise Pensamentos 4ed São Paulo Nova Cultural 1988 p91 Os Pensadores 205 Quando penso na pequena duração da minha vida absorvida na eternidade anterior e na eternidade posterior no pequeno espaço que ocupo e mesmo que vejo fundido na imensidade dos espaços que ignoro e que me ignoram aterrome e assombrome de verme aqui e não alhures pois não há razão alguma para que esteja aqui e não alhures agora e não em outro momento qualquer Quem me colocou nestas condições Por ordem e obra de quem me foram designados este lugar e este momento Memoria hospitis unius diei praetereuntis1 206 O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora 207 Quantos reinos nos ignoram 208 Por que é limitado meu conhecimento Meu porte Minha duração antes a cem do que a mil anos Que razão teve a natureza para darma assim por que esse número de preferência a outro porquanto na sua infinidade não há motivo para escolher e um não tenta mais do que outro 1 A esperança do ímpio é como a penagem que flutua no ar como a espuma batida pela tempestade como a fumaça dispersada pelo vento e como a lembrança do hóspede de um dia que passa Sabedoria 5 14 Filosofia antropologia e ética 44 TEXTO 5 PENSAMENTOS excerto b Blaise Pascal 1623 1662 PASCAL Blaise Pensamentos sl Ridendo Castigat Mores 2002 p215223 Disponível em httpwwwEbooksBrasilcom Data da consulta 13 dez 2014 ebook I Censuro igualmente não só os que tomam partido de louvar o homem como também os que tomam o de o censurar e os que tomam o de o divertir e só posso aprovar os que procuram gemendo Os estoicos dizem tornai a entrar dentro de vós mesmos é aí que encontrareis o vosso repouso e isso não é verdadeiro Outros dizem saí e buscai a felicidade divertindovos e isso não é verdadeiro Vêm as doenças a felicidade não está nem em nós nem fora de nós está em Deus tanto fora como dentro de nós II A natureza do homem se considera de duas maneiras uma segundo seu fim e então ele é grande e incomparável outra segundo a multidão como se julga da natureza do cavalo e do cão pelo hábito de ver neles a corrida e pelo animum arcendi e então o homem é abjeto e vil Eis as duas vias que fazem julgar disso diversamente e que fazem os filósofos discutirem tanto pois um nega a suposição do outro um diz Ele não nasceu para esse fim pois todas as suas ações lhe repugnam outro diz Ele se afasta do seu fim quando pratica essas ações baixas III Temos uma ideia tão grande da alma do homem que não podemos tolerar que sejamos desprezados e não sejamos estimados por uma alma e toda a felicidade dos homens consiste nessa estima Filosofia antropologia e ética 45 A maior baixeza do homem é a procura da glória mas nisso mesmo está a maior marca de sua excelência porque alguma posse que ele tenha sobre a terra alguma saúde e comodidade essencial que possua não está satisfeito se não está na estima dos homens Ele estima tão grande a razão do homem que alguma vantagem que tenha sobre a terra se não está colocado vantajosamente também na razão do homem não está contente É o mais belo lugar do mundo nada pode desviálo desse desejo e é a qualidade mais indelével do coração do homem E os que desprezam mais os homens e que os igualam aos animais ainda querem ser por isso admirados e acreditados e se contradizem a si mesmos por seu próprio sentimento a sua natureza que é mais forte que tudo convencendoos da grandeza do homem mais fortemente que a razão os convence de sua baixeza IV Mau grado a visão de todas as misérias que nos tocam que nos pegam pela garganta temos um instinto que não podemos reprimir que nos eleva V A grandeza do homem é tão visível que se tira mesmo de sua miséria Porque ao que é natureza nos animais nós chamamos miséria do homem por onde reconhecemos que a natureza sendo hoje semelhante à dos animais ele caiu de melhor natureza que lhe era própria outrora Por que quem se acha infeliz por não ser ei senão um rei destronado Achavase Paulo Emílio infeliz por não ser cônsul Ao contrário toda a gente achava que ele era feliz por o ter sido porque sua condição não era de o ser sempre Mas achavase Perseu tão infeliz por não ser mais rei porque sua condição era de o ser sempre que se achava estranho que ele suportasse a vida Quem se acha infeliz por só ter uma boca E quem não se achará infeliz por só ter um olho Nunca talvez se tenha alguém lembrado de afligirse por não ter três olhos mas ninguém se consola de não os ter Filosofia antropologia e ética 46 VI Não se é miserável sem sentimento Uma casa em ruínas não o é Só o homem é miserável Ego vir videns VII A grandeza do homem é grande na medida em que ele se conhece miserável Uma árvore não se conhece miserável É pois ser miserável conhecerse miserável mas é ser grande conhecer que se é miserável Todas essas misérias provam sua grandeza São misérias de grande senhor misérias de um rei destronado IX Eu posso conceber um homem sem mãos pés cabeça pois é só a experiência que nos ensina que a cabeça é mais necessária que os pés mas não posso conceber o homem sem pensamento seria uma pedra ou um bruto É pois o pensamento que faz o ser do homem sem o que não se pode concebêlo Que é que sente prazer em nós É a mão O braço A carne O sangue Verseá que é preciso que seja alguma coisa de imaterial X Não é do espaço que devo indagar minha dignidade mas da regulação do meu pensamento Não terei mais possuindo terras Pelo espaço o universo me compreende e me engole como um ponto pelo pensamento eu o compreendo XI O homem não passa de um caniço o mais fraco da natureza mas é um caniço pensante Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmaga lo Um vapor uma gota dágua é o bastante para matálo Mas quando o universo o esmagasse o homem seria ainda mais nobre do que o que o mata porque sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele o universo a ignora Toda nossa dignidade consiste pois no pensamento É daí que é preciso nos elevarmos não do espaço e da duração que não saberíamos encher Trabalhemos pois para bem pensar eis o princípio da moral XIII Toda a dignidade do homem está no pensamento Filosofia antropologia e ética 47 O pensamento é pois uma coisa admirável por natureza Era preciso que tivesse estranhos defeitos para ser desprezível Mas tem tais que nada é mais ridículo Como é grande por sua natureza Como é baixo por seus defeitos XIV É perigoso fazer ver demais ao homem quanto ele é igual aos animais sem lhe mostrar sua grandeza É ainda perigoso fazerlhe ver demais a sua grandeza sem a sua baixeza É ainda mais perigoso deixálo ignorar ambas Mas é muito vantajoso representarlhe ambas Não é preciso que o homem creia que é igual aos animais nem que ignore ambos mas que saiba ambos XV Que o homem agora se estime a seu valor Que se ame pois tem em si uma natureza capaz do bem mas que não ame por isso as baixezas que nela existem Que se despreze porque essa capacidade é vazia mas que não se despreze por isso essa capacidade natural Que se odeie que só ame ele tem em si a capacidade de conhecer a verdade e de ser feliz mas não a tem de verdade ou constante ou satisfatória Eu desejaria pois levar o homem a querer encontrála a estar pronto e desembaraçado das paixões para seguila onde a encontrar sabendo quanto seu conhecimento se obscureceu pelas paixões eu desejaria que ele odiasse em si a concupiscência que o determina por si mesma afim de não o cegar ao fazer sua escolha e não deter quando tiver escolhido XVII Sinto que posso não ter existido pois o eu consiste no meu pensamento portanto eu que penso não teria existido se minha mãe tivesse morrido antes de eu ter sido animado portanto não sou um ser necessário Não sou também eterno nem infinito mas vejo bem que há na natureza um ser necessário eterno e infinito Filosofia antropologia e ética 48 QUESTÕES PARA ESTUDO INDIVIDUAL DO TEXTO QUESTÃO 1 Faça um levantamento dos argumentos apresentados no texto de Pascal para justificar a seguinte afirmação Deus é necessário o humano é contingente Para tratar da contingência humana analise o fragmento 205 interpretando a frase final memoria hospitis unius diei pretereuntis com a sua fonte bíblica A esperança do ímpio é como a palha levada pelo vento como a espuma miúda que a tempestade espalha é dispersa como o fumo pelo vento fugaz como a lembrança do hóspede de um dia A Bíblia de Jerusalém Sabedoria 5 14 QUESTÃO 2 Faça um levantamento no texto de Pascal dos argumentos empregados pelo autor que podem ser considerados semelhantes à mentalidade estoica e aqueles que são críticos ao hedonismo considerado em sua expressão epicurista É justificável afirmar que o pensamento de Pascal é uma forma de estoicismo Em que medida ele se opõe ao hedonismo Por quê QUESTÃO 3 Explique a relação que segundo Pascal existe entre corpo e alma Filosofia antropologia e ética 49 Por que o pensamento é visto por Pascal como algo que eleva o homem Explique essa questão à luz dos seguintes fragmentos IV e XI QUESTÃO 4 Para Pascal o ser humano é decadente ele caiu de melhor natureza que lhe era própria outrora O que isso quer dizer QUESTÃO 5 O que é a felicidade à luz do texto de Pascal Ao analisar o conceito de felicidade explique a seguinte afirmação O homem tem em si a capacidade de conhecer a verdade e de ser feliz mas não a tem de verdade ou constante ou satisfatória fragmento XV Filosofia antropologia e ética 50 TEXTO 5 PENSAMENTOS excerto c Blaise Pascal 1623 1662 PASCAL Blaise Pensamentos sl Ridendo Castigat Mores 2002 p2127 Disponível em httpwwwEbooksBrasilcom Data da consulta 27 jan 2022 ebook ARTIGO II O QUE É MAIS VANTAJOSO ACREDITAR OU NÃO ACREDITAR NA RELIGIÃO CRISTÃ Se há um Deus ele é infinitamente incompreensível de vez que não tendo nem partes nem limites nenhuma relação possui conosco somos pois incapazes de conhecer não só o que ele é como também se ele é Assim sendo quem ousará empreender resolver essa questão Não somos nós que nenhuma relação temos com ele Quem pois censurará os cristãos por não poderem dar satisfação de sua crença eles que professam uma religião de que não podem dar satisfação Expondoa ao mundo eles declaram que isso é uma tolice stultitiam No entanto vós vos lastimais porque eles não a provam Se a provassem faltariam à sua palavra é por não terem provas que não lhes falta o senso Sim mas embora isso escuse os que assim a oferecem e os livre da censura de produzila sem razão não escusa os que a recebem Examinemos pois esse ponto e digamos Deus é ou não é Mas para que lado penderemos A razão nada pode determinar aí Há um caos infinito que nos separa Na extremidade dessa distância infinita jogase cara ou coroa Que apostareis Pela razão não podeis fazer Filosofia antropologia e ética 51 nem uma nem outra coisa pela razão não podeis defender nem uma nem outra coisa Não acuseis pois de falsidade os que fizeram uma escolha pois nada sabeis disso Não mas eu os acusarei de terem feito não essa escolha mas uma escolha porque embora o que prefere coroa e o outro estejam igualmente em falta ambos estão em falta o justo é não apostar Sim mas é preciso apostar isso não é voluntário sois obrigados a isso e apostar que Deus é é apostar que ele não é Que tomareis pois Vejamos já que é preciso escolher vejamos o que menos vos interessa tendes duas coisas que perder o verdadeiro e o bem e duas coisas que empenhar vossa razão e vossa vontade vosso conhecimento e vossa beatitude e vossa natureza tem duas coisas que evitar o erro e a miséria Vossa razão não é mais atingida desde que é preciso necessariamente escolher escolhendo um dentre os dois Eis um ponto liquidado mas vossa beatitude Pesemos o ganho e a perda preferindo coroa que é Deus Estimemos as duas hipóteses se ganhardes ganhareis tudo se perderdes nada perdereis Apostai pois que ele é sem hesitar Isso é admirável sim é preciso apostar mas talvez eu aposte demais Vejamos Uma vez que é tal a incerteza do ganho e da perda se só tivésseis que apostar duas vidas por uma ainda poderíeis apostar Mas se devessem ser ganhas três seria preciso jogar desde que tendes necessidade de jogar e seríeis imprudente quando forçado a jogar não arriscásseis vossa vida para ganhar três num jogo em que é tamanha a incerteza da perda e do ganho Há porém uma eternidade de vida e de felicidade e assim sendo quando houvesse uma infinidade de probabilidades das quais somente uma fosse por vós ainda teríeis razão em apostar um para ter dois e agiríeis mal quando obrigado a jogar se recusásseis jogar uma vida contra três num jogo em que numa infinidade de probabilidades há uma por vós havendo uma infinidade de vida infinitamente feliz que ganhar Mas há aqui uma infinidade de vida infinitamente feliz que ganhar uma probabilidade de ganho contra uma porção finita de Filosofia antropologia e ética 52 probabilidades de perda e o que jogais é finito Jogo é jogo sempre onde há o infinito e onde não há infinidade de probabilidades de perda contra a de ganho não há que hesitar é preciso dar tudo e assim quando se é forçado a jogar é preciso renunciar à razão para conservar a vida e não arriscála pelo ganho infinito tão prestes a chegar quanto a perda do nada Por conseguinte de nada serve dizer que é incerto ganharse e que é certo arriscarse e que a infinita distância entre a certeza do que se expõe e a incerteza do que se deve ganhar iguala o bem finito que certamente se expõe ao infinito incerto Não é assim todo jogador arrisca com certeza para ganhar incertamente o finito sem pecar contra a razão Não há infinidade de distância entre essa certeza do que se expõe e a incerteza do ganho isso é falso Há na verdade infinidade entre a certeza de ganhar e a certeza de perder Mas a incerteza de ganhar é proporcional à certeza do que se arrisca segundo a proporção das probabilidades de ganho e de perda de onde se conclui que havendo tantas probabilidades de um lado como do outro a aposta deve ser igual e então a certeza do que se expõe é igual à incerteza do ganho bem longe está de ser infinitamente distante E assim a nossa proposição é de uma força infinita quando há o finito que arriscar num jogo em que há tantas probabilidades de ganho como de perda e o infinito que ganhar Isso é demonstrativo e se os homens são capazes de algumas verdades essa é uma delas Eu o declaro e o confesso Mas não haverá ainda um meio de ver o segredo do jogo Sim a Escritura e o resto etc Sim mas tenho as mãos atadas e a boca muda forçamme a apostar e não estou em liberdade não me soltam e sou feito de tal maneira que não posso crer Que quereis pois que eu faça É verdade Mas conhecei ao menos a vossa impotência para crer já que a razão a isso vos conduz e que todavia não o podeis trabalhai pois não para vos convencerdes pelo aumento das provas de Deus mas pela diminuição das vossas paixões Quereis chegar à fé mas ignorais o caminho quereis curarvos da infidelidade mas pedis os Filosofia antropologia e ética 53 remédios aprendei com os que estiveram atados como vós e que apostam agora todo o seu bem são pessoas que se curaram do mal de que desejais curarvos Segui a maneira pela qual começaram fazendo como se acreditassem tomando água benta mandando dizer missas etc Naturalmente isso vos fará crer e vos embrutecerá Mas é o que receio E por quê que tendes que perder Filosofia antropologia e ética 54 TEXTO 6 A FILOSOFIA QUE SE ELEVA DA TERRA AO CÉU Karl Marx 1818 1883 Friedrich Engels 18201895 MARX Karl ENGELS Friedrich A ideologia alemã São Paulo Boitempo 2007 p 9395 I Feuerbach Fragmento 2 de junho a meados de julho de 1846 O fato é portanto o seguinte indivíduos determinados que são ativos na produção de determinada maneira contraem entre si estas relações sociais e políticas determinadas A observação empírica tem de provar em cada caso particular empiricamente e sem nenhum tipo de mistificação ou especulação a conexão entre a estrutura social e política e a produção A estrutura social e o Estado provêm constantemente do processo de vida de indivíduos determinados mas desses indivíduos não como podem aparecer na imaginação própria ou alheia mas sim tal como realmente são quer dizer tal como atuam como produzem materialmente e portanto tal como desenvolvem suas atividades sob determinados limites pressupostos e condições materiais independentes de seu arbítrio A produção de ideias de representações da consciência está em princípio imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens com a linguagem da vida real O representar o pensar o intercâmbio espiritual dos homens ainda Filosofia antropologia e ética 55 aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material O mesmo vale para a produção espiritual tal como ela se apresenta na linguagem da política das leis da moral da religião da metafísica etc de um povo Os homens são os produtores de suas representações de suas ideias e assim por diante mas os homens reais ativos tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde até chegar às suas formações mais desenvolvidas A consciência Bewusstsein não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente bewusst Sein e o ser dos homens é o seu processo de vida real Se em toda ideologia os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmara escura este fenômeno resulta do seu processo histórico de vida da mesma forma como a inversão dos objetos na retina resulta de seu processo de vida imediatamente físico Totalmente ao contrário da filosofia alemã que desce do céu à terra aqui se eleva da terra ao céu Quer dizer não se parte daquilo que os homens dizem imaginam ou representam tampouco dos homens pensados imaginados e representados para a partir daí chegar aos homens de carne e osso partese dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida real expõese também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida Também as formações nebulosas na cabeça dos homens são sublimações necessárias de seu processo de vida material processo empiricamente constatável e ligado a pressupostos materiais A moral a religião a metafísica e qualquer outra ideologia bem como as formas de consciência a elas correspondentes são privadas aqui da aparência de autonomia que até então possuíam Não têm história nem desenvolvimento mas os homens ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais transformam também com esta sua realidade seu pensar e os produtos de seu pensar Não é a consciência que determina a vida mas a vida que determina a consciência No primeiro modo de considerar as coisas Filosofia antropologia e ética 56 partese da consciência como do indivíduo vivo no segundo que corresponde à vida real partese dos próprios indivíduos reais vivos e se considera a consciência apenas como sua consciência Esse modo de considerar as coisas não é isento de pressupostos Ele parte de pressupostos reais e não os abandona em nenhum instante Seus pressupostos são os homens não em quaisquer isolamento ou fixação fantásticos mas em seu processo de desenvolvimento real empiricamente observável sob determinadas condições Tão logo seja apresentado esse processo ativo de vida a história deixa de ser uma coleção de fatos mortos como para os empiristas ainda abstratos ou uma ação imaginária de sujeitos imaginários como para os idealistas Ali onde termina a especulação na vida real começa também portanto a ciência real positiva a exposição da atividade prática do processo prático de desenvolvimento dos homens As fraseologias sobre a consciência acabam e o saber real tem de tomar o seu lugar A filosofia autônoma perde com a exposição da realidade seu meio de existência Em seu lugar pode aparecer no máximo um compêndio dos resultados mais gerais que se deixam abstrair da observação do desenvolvimento histórico dos homens Se separadas da história real essas abstrações não têm nenhum valor Elas podem servir apenas para facilitar a ordenação do material histórico para indicar a sucessão de seus estratos singulares Mas de forma alguma oferecem como a filosofia o faz uma receita ou um esquema com base no qual as épocas históricas possam ser classificadas A dificuldade começa ao contrário somente quando se passa à consideração e à ordenação do material seja de uma época passada ou do presente quando se passa à exposição real A eliminação dessas dificuldades é condicionada por pressupostos que não podem ser expostos aqui mas que resultam apenas do estudo do processo de vida real e da ação dos indivíduos de cada época Destacaremos aqui algumas dessas abstrações a fim de contrapôlas à ideologia ilustrandoas com alguns exemplos históricos Filosofia antropologia e ética 57 QUESTÕES PARA ESTUDO INDIVIDUAL DO TEXTO QUESTÃO 1 Explicitem a distinção que Marx faz entre os indivíduos como aparecem na imaginação própria ou alheia e os indivíduos como realmente são Deem exemplos de situações que mostrem ocorrer tal divórcio entre imagem de si e realidade na sociedade contemporânea QUESTÃO 2 Expliquem a seguinte afirmação a consciência não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente Por que Marx compreende a consciência como uma imagem invertida dos objetos na retina De que maneira esse texto pode ser visto como uma crítica à metafísica QUESTÃO 3 Expliquem o seguinte excerto Também as formações nebulosas na cabeça dos homens são sublimações necessárias de seu processo de vida material processo empiricamente constatável e ligado a pressupostos materiais Por que moral religião e política são consideradas por Marx e Engels como construções ideológicas Filosofia antropologia e ética 58 TEXTO 7 O 18 DE BRUMÁRIO DE LOUIS BONAPARTE Karl Marx 1818 1883 MARX Karl O 18 de Brumário de Louis Bonaparte São Paulo Boitempo 2011 p 2530 Em alguma passagem de suas obras Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados por assim dizer duas vezes1 Ele se esqueceu de acrescentar a primeira vez como tragédia a segunda como farsa Caussidière como Danton Luís Blanc2 como Robespierre a Montanha de 184851 como a Montanha de 1793953 o sobrinho como o tio E essa mesma caricatura se repete nas circunstâncias que envolvem a reedição do 18 de brumário4 1 HEGEL Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte Dritter Teil Preleções sobre a filosofia da história Terceira parte Berlim 1837 Werke v 9 Georg Wilhelm Friedrich Hegel 17701831 um dos mais importantes e influentes filósofos da Alemanha 2 São citados ao longo deste texto vários políticos ou estudiosos de questões políticas dos séculos XVIII e XIX Marx indica que certos papéispersonagens políticos de uma época costumam se repetir em outras subsequentes 3 Em analogia aos Montagnards que formaram a ala esquerda jacobinos na Convenção Nacional da Revolução Francesa foi denominada Montagne Montanha a fração dos pequenoburgueses democratas presente na Assembleia Nacional de 1848 4 Brumário é um dos meses do calendário republicano francês No dia 18 de brumário 9 de novembro de 1799 Napoleão Bonaparte derrubou mediante um golpe de Estado o Diretório francês tornandose ditador Filosofia antropologia e ética 59 Os homens fazem a sua própria história contudo não a fazem de livre e espontânea vontade pois não são eles que escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos E justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si mesmos e as coisas em criar algo nunca antes visto exatamente nessas épocas de crise revolucionária eles conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado tomam emprestados os seus nomes as suas palavras de ordem o seu figurino afim de representar com essa venerável roupagem tradicional e essa linguagem tomada de empréstimo as novas cenas da história mundial Assim Lutero5 se disfarçou de apóstolo Paulo a revolução de 17891814 se travestiu ora de República Romana ora de cesarismo romano e a revolução de 1848 não descobriu nada melhor para fazer do que parodiar de um lado o ano de 1789 e de outro a tradição revolucionária de 179395 Do mesmo modo uma pessoa que acabou de aprender uma língua nova costuma retraduzila o tempo todo para a sua língua materna ela porém só conseguirá apropriarse do espírito da nova língua e só será capaz de expressarse livremente com a ajuda dela quando passar a se mover em seu âmbito sem reminiscências do passado e quando em seu uso esquecer a sua língua nativa com o título de primeirocônsul Com a reedição do 18 de brumário Marx se refere ao golpe de Estado desferido por Luís Bonaparte no dia 2 de dezembro de 1851 5 Marinho Lutero 14831546 monge agostiniano que se tornou uma das figuras centrais da Reforma Protestante século XVI fundador do Luteranismo Filosofia antropologia e ética 60 QUESTÕES PARA ESTUDO INDIVIDUAL DO TEXTO QUESTÃO 1 O que significa dizer que a história sempre se repete sendo a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa Explicite os argumentos de que Marx se serve para justificar essa proposição QUESTÃO 2 Considere a seguinte afirmação de Marx Os homens fazem a sua própria história contudo não a fazem de livre e espontânea vontade pois não são eles que escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram Que implicações tal concepção traz para a ideia de condição humana que vem sendo abordada ao longo desta disciplina QUESTÃO 3 À luz da concepção de história expressa neste texto por Marx explique a seguinte afirmação A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos Filosofia antropologia e ética 61 TEXTO 8 O MALESTAR NA CIVILIZAÇÃO Sigmund Freud 1856 1939 FREUD Sigmund O malestar na civilização Disponível em httpwwwfreudonlinecombrlivrosvolume21volxxi2omalestarnacivilizacao 19301929 Data da consulta 31 jan 2018 Em meu trabalho O Futuro de uma Ilusão 1927c estava muito menos interessado nas fontes mais profundas do sentimento religioso do que naquilo que o homem comum entende como sua religião o sistema de doutrinas e promessas que por um lado lhe explicam os enigmas deste mundo com perfeição invejável e que por outro lhe garantem que uma Providência cuidadosa velará por sua vida e o compensará numa existência futura de quaisquer frustrações que tenha experimentado aqui O homem comum só pode imaginar essa Providência sob a figura de um pai ilimitadamente engrandecido Apenas um ser desse tipo pode compreender as necessidades dos filhos dos homens enternecerse com suas preces e aplacarse com os sinais de seu remorso Tudo é tão patentemente infantil tão estranho à realidade que para qualquer pessoa que manifeste uma atitude amistosa em relação à humanidade é penoso pensar que a grande maioria dos mortais nunca será capaz de superar essa visão da vida Mais humilhante ainda é descobrir como é vasto o número de pessoas de hoje que não podem deixar de perceber que essa religião é insustentável e não obstante isso tentam defendêla item por item numa série de lamentáveis atos retrógrados Gostaríamos de nos mesclar às fileiras dos crentes a fim de Filosofia antropologia e ética 62 encontrarmos aqueles filósofos que consideram poder salvar o Deus da religião substituindoo por um princípio impessoal obscuro e abstrato e dirigirmoslhes as seguintes palavras de advertência Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão E se alguns dos grandes homens do passado agiram da mesma maneira de modo nenhum se pode invocar seu exemplo sabemos por que foram obrigados a isso Retornemos ao homem comum e à sua religião a única que deveria levar esse nome A primeira coisa em que pensamos é na bem conhecida expressão de um de nossos maiores poetas e pensadores referindose à relação da religião com a arte e a ciência Wer Wissenschaft und Kunst besitzt hat auch Religion Wer jene beide nicht besitzt der habe Religion Esses dois versos por um lado traçam uma antítese entre a religião e as duas mais altas realizações do homem e por outro asseveram que com relação ao seu valor na vida essas realizações e a religião podem representarse ou substituirse mutuamente Se também nos dispusermos a privar o homem comum que não possui nem ciência nem arte de sua religião é claro que não teremos de nosso lado a autoridade do poeta Escolheremos um caminho específico para nos aproximarmos mais de uma justa apreciação de suas palavras A vida tal como a encontramos é árdua demais para nós proporcionanos muitos sofrimentos decepções e tarefas impossíveis A fim de suportála não podemos dispensar as medidas paliativas Não podemos passar sem construções auxiliares diznos Theodor Fontane Existem talvez três medidas desse tipo derivativos poderosos que nos fazem extrair luz de nossa desgraça satisfações Quem tem ciência e arte tem também religião Quem essas duas não tem esse tenha religião Filosofia antropologia e ética 63 substitutivas que a diminuem e substâncias tóxicas que nos tornam insensíveis a ela Algo desse tipo é indispensável Voltaire tinha os derivativos em mente quando terminou Cândido com o conselho para cultivarmos nosso próprio jardim e a atividade científica constitui também um derivativo dessa espécie As satisfações substitutivas tal como as oferecidas pela arte são ilusões em contraste com a realidade nem por isso contudo se revelam menos eficazes psiquicamente graças ao papel que a fantasia assumiu na vida mental As substâncias tóxicas influenciam nosso corpo e alteram a sua química Não é simples perceber onde a religião encontra o seu lugar nessa série Temos de pesquisar mais adiante A questão do propósito da vida humana já foi levantada várias vezes nunca porém recebeu resposta satisfatória e talvez não a admita Alguns daqueles que a formularam acrescentaram que se fosse demonstrado que a vida não tem propósito esta perderia todo valor para eles Tal ameaça porém não altera nada Pelo contrário faz parecer que temos o direito de descartar a questão já que ela parece derivar da presunção humana da qual muitas outras manifestações já nos são familiares Ninguém fala sobre o propósito da vida dos animais a menos talvez que se imagine que ele resida no fato de os animais se acharem a serviço do homem Contudo tampouco essa opinião é sustentável de uma vez que existem muitos animais de que o homem nada pode se aproveitar exceto descrevê los classificálos e estudálos ainda assim inumeráveis espécies de animais escaparam inclusive a essa utilização pois existiram e se extinguiram antes que o homem voltasse seus olhos para elas Mais uma vez só a religião é capaz de resolver a questão do propósito da vida Dificilmente incorreremos em erro ao concluirmos que a ideia de a vida possuir um propósito se forma e desmorona com o sistema religioso Voltarnosemos portanto para uma questão menos ambiciosa a que se refere àquilo que os próprios homens por seu comportamento mostram ser o propósito e a intenção de suas vidas O que pedem eles da vida e o que desejam nela realizar A resposta Filosofia antropologia e ética 64 mal pode provocar dúvidas Esforçamse para obter felicidade querem ser felizes e assim permanecer Essa empresa apresenta dois aspectos uma meta positiva e uma meta negativa Por um lado visa a uma ausência de sofrimento e de desprazer por outro à experiência de intensos sentimentos de prazer Em seu sentido mais restrito a palavra felicidade só se relaciona a esses últimos Em conformidade a essa dicotomia de objetivos a atividade do homem se desenvolve em duas direções segundo busque realizar de modo geral ou mesmo exclusivamente um ou outro desses objetivos Como vemos o que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer Esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início Não pode haver dúvida sobre sua eficácia ainda que o seu programa se encontre em desacordo com o mundo inteiro tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo Não há possibilidade alguma de ele ser executado todas as normas do universo sãolhe contrárias Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja feliz não se acha incluída no plano da Criação O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação de preferência repentina de necessidades represadas em alto grau sendo por sua natureza possível apenas como uma manifestação episódica Quando qualquer situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga ela produz tãosomente um sentimento de contentamento muito tênue Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um contraste e muito pouco de um determinado estado de coisas Assim nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar O sofrimento nos ameaça a partir de três direções de nosso próprio corpo condenado à decadência e à dissolução e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência do mundo externo que pode voltarse contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas e Filosofia antropologia e ética 65 finalmente de nossos relacionamentos com os outros homens O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro Tendemos a encarálo como uma espécie de acréscimo gratuito embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes Não admira que sob a pressão de todas essas possibilidades de sofrimento os homens se tenham acostumado a moderar suas reivindicações de felicidade tal como na verdade o próprio princípio do prazer sob a influência do mundo externo se transformou no mais modesto princípio da realidade que um homem pense ser ele próprio feliz simplesmente porque escapou à infelicidade ou sobreviveu ao sofrimento e que em geral a tarefa de evitar o sofrimento coloque a de obter prazer em segundo plano A reflexão nos mostra que é possível tentar a realização dessa tarefa através de caminhos muito diferentes e que todos esses caminhos foram recomendados pelas diversas escolas de sabedoria secular e postos em prática pelos homens Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades apresentasenos como o método mais tentador de conduzir nossas vidas isso porém significa colocar o gozo antes da cautela acarretando logo o seu próprio castigo Os outros métodos em que a fuga do desprazer constitui o intuito primordial diferenciamse de acordo com a fonte de desprazer para a qual sua atenção está principalmente voltada Alguns desses métodos são extremados outros moderados alguns são unilaterais outros atacam o problema simultaneamente em diversos pontos Contra o sofrimento que pode advir dos relacionamentos humanos a defesa mais imediata é o isolamento voluntário o manterse à distância das outras pessoas A felicidade passível de ser conseguida através desse método é como vemos a felicidade da quietude Contra o temível mundo externo só podemos defendernos por algum tipo de afastamento dele se pretendermos solucionar a tarefa por nós mesmos Há é verdade outro caminho e melhor o de tornarse Filosofia antropologia e ética 66 membro da comunidade humana e com o auxílio de uma técnica orientada pela ciência passar para o ataque à natureza e sujeitála à vontade humana Trabalhase então com todos para o bem de todos Contudo os métodos mais interessantes de evitar o sofrimento são os que procuram influenciar o nosso próprio organismo Em última análise todo sofrimento nada mais é do que sensação só existe na medida em que o sentimos e só o sentimos como consequência de certos modos pelos quais nosso organismo está regulado O mais grosseiro embora também o mais eficaz desses métodos de influência é o químico a intoxicação Não creio que alguém compreenda inteiramente o seu mecanismo é fato porém que existem substâncias estranhas as quais quando presentes no sangue ou nos tecidos provocam em nós diretamente sensações prazerosas alterando também tanto as condições que dirigem nossa sensibilidade que nos tornamos incapazes de receber impulsos desagradáveis Os dois efeitos não só ocorrem de modo simultâneo como parecem estar íntima e mutuamente ligados No entanto é possível que haja substâncias na química de nossos próprios corpos que apresentem efeitos semelhante pois conhecemos pelo menos um estado patológico a mania no qual uma condição semelhante à intoxicação surge sem administração de qualquer droga intoxicante Além disso nossa vida psíquica normal apresenta oscilações entre uma liberação de prazer relativamente fácil e outra comparativamente difícil paralela à qual ocorre uma receptividade diminuída ou aumentada ao desprazer É extremamente lamentável que até agora esse lado tóxico dos processos mentais tenha escapado ao exame científico O serviço prestado pelos veículos intoxicantes na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é tão altamente apreciado como um benefício que tanto indivíduos quanto povos lhes concederam um lugar permanente na economia de sua libido Devemos a tais veículos não só a produção imediata de prazer mas também um grau altamente desejado de independência do mundo externo pois sabese que com o auxílio desse amortecedor de Filosofia antropologia e ética 67 preocupações é possível em qualquer ocasião afastarse da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio com melhores condições de sensibilidade Sabese igualmente que é exatamente essa propriedade dos intoxicantes que determina o seu perigo e a sua capacidade de causar danos São responsáveis em certas circunstâncias pelo desperdício de uma grande quota de energia que poderia ser empregada para o aperfeiçoamento do destino humano A complicada estrutura de nosso aparelho mental admite contudo um grande número de outras influências Assim como a satisfação do instinto equivale para nós à felicidade assim também um grave sofrimento surge em nós caso o mundo externo nos deixe definhar caso se recuse a satisfazer nossas necessidades Podemos portanto ter esperanças de nos libertarmos de uma parte de nossos sofrimentos agindo sobre os impulsos instintivos Esse tipo de defesa contra o sofrimento se aplica mais ao aparelho sensorial ele procura dominar as fontes internas de nossas necessidades A forma extrema disso é ocasionada pelo aniquilamento dos instintos tal como prescrito pela sabedoria do mundo peculiar ao Oriente e praticada pelo ioga Caso obtenha êxito o indivíduo é verdade abandona também todas as outras atividades sacrifica a sua vida e por outra via mais uma vez atinge apenas a felicidade da quietude Seguimos o mesmo caminho quando os nossos objetivos são menos extremados e simplesmente tentamos controlar nossa vida instintiva Nesse caso os elementos controladores são os agentes psíquicos superiores que se sujeitaram ao princípio da realidade Aqui a meta da satisfação não é de modo algum abandonada mas garantese uma certa proteção contra o sofrimento no sentido de que a nãosatisfação não é tão penosamente sentida no caso dos instintos mantidos sob dependência como no caso dos instintos desinibidos Contra isso existe uma inegável diminuição nas potencialidades de satisfação O sentimento de felicidade derivado da satisfação de um selvagem impulso instintivo não domado pelo ego é incomparavelmente mais Filosofia antropologia e ética 68 intenso do que o derivado da satisfação de um instinto que já foi domado A irresistibilidade dos instintos perversos e talvez a atração geral pelas coisas proibidas encontram aqui uma explicação econômica Outra técnica para afastar o sofrimento reside no emprego dos deslocamentos de libido que nosso aparelho mental possibilita e através dos quais sua função ganha tanta flexibilidade A tarefa aqui consiste em reorientar os objetivos instintivos de maneira que eludam a frustração do mundo externo Para isso ela conta com a assistência da sublimação dos instintos Obtémse o máximo quando se consegue intensificar suficientemente a produção de prazer a partir das fontes do trabalho psíquico e intelectual Quando isso acontece o destino pouco pode fazer contra nós Uma satisfação desse tipo como por exemplo a alegria do artista em criar em dar corpo às suas fantasias ou a do cientista em solucionar problemas ou descobrir verdades possui uma qualidade especial que sem dúvida um dia poderemos caracterizar em termos metapsicológicos Atualmente apenas de forma figurada podemos dizer que tais satisfações parecem mais refinadas e mais altas Contudo sua intensidade se revela muito tênue quando comparada com a que se origina da satisfação de impulsos instintivos grosseiros e primários ela não convulsiona o nosso ser físico E o ponto fraco desse método reside em não ser geralmente aplicável de uma vez que só é acessível a poucas pessoas Pressupõe a posse de dotes e disposições especiais que para qualquer fim prático estão longe de serem comuns E mesmo para os poucos que os possuem o método não proporciona uma proteção completa contra o sofrimento Não cria uma armadura impenetrável contra as investidas do destino e habitualmente falha quando a fonte do sofrimento é o próprio corpo da pessoa Enquanto esse procedimento já mostra claramente uma intenção de nos tornar independentes do mundo externo pela busca da satisfação em processos psíquicos internos o procedimento seguinte apresenta esses aspectos de modo ainda mais intenso Nele a distensão do Filosofia antropologia e ética 69 vínculo com a realidade vai mais longe a satisfação é obtida através de ilusões reconhecidas como tais sem que se verifique permissão para que a discrepância entre elas e a realidade interfira na sua fruição A região onde essas ilusões se originam é a vida da imaginação na época em que o desenvolvimento do senso de realidade se efetuou essa região foi expressamente isentada das exigências do teste de realidade e posta de lado a fim de realizar desejos difíceis de serem levados a termo À frente das satisfações obtidas através da fantasia erguese a fruição das obras de arte fruição que por intermédio do artista é tornada acessível inclusive àqueles que não são criadores As pessoas receptivas à influência da arte não lhe podem atribuir um valor alto demais como fonte de prazer e consolação na vida Não obstante a suave narcose a que a arte nos induz não faz mais do que ocasionar um afastamento passageiro das pressões das necessidades vitais não sendo suficientemente forte para nos levar a esquecer a aflição real Um outro processo opera de modo mais energético e completo Considera a realidade como a única inimiga e a fonte de todo sofrimento com a qual é impossível viver de maneira que se quisermos ser de algum modo felizes temos de romper todas as relações com ela O eremita rejeita o mundo e não quer saber de tratar com ele Podese porém fazer mais do que isso podese tentar recriar o mundo em seu lugar construir um outro mundo no qual os seus aspectos mais insuportáveis sejam eliminados e substituídos por outros mais adequados a nossos próprios desejos Mas quem quer que numa atitude de desafio desesperado se lance por este caminho em busca da felicidade geralmente não chega a nada A realidade é demasiado forte para ele Tornase um louco alguém que a maioria das vezes não encontra ninguém para ajudá lo a tornar real o seu delírio Afirmase contudo que cada um de nós se comporta sob determinado aspecto como um paranoico corrige algum aspecto do mundo que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade Concedese especial Filosofia antropologia e ética 70 importância ao caso em que a tentativa de obter uma certeza de felicidade e uma proteção contra o sofrimento através de um remodelamento delirante da realidade é efetuada em comum por um considerável número de pessoas As religiões da humanidade devem ser classificadas entre os delírios de massa desse tipo É desnecessário dizer que todo aquele que partilha um delírio jamais o reconhece como tal Não pretendo ter feito uma enumeração completa dos métodos pelos quais os homens se esforçam para conseguir a felicidade e manter afastado o sofrimento sei também que o material poderia ter sido diferentemente disposto Ainda não mencionei um processo não por esquecimento mas porque nos interessará mais tarde em relação a outro assunto E como se poderia esquecer entre todas as outras a técnica da arte de viver Ela se faz visível por uma notável combinação de aspectos característicos Naturalmente visa também a tornar o indivíduo independente do Destino como é melhor chamá lo e para esse fim localiza a satisfação em processos mentais internos utilizando ao proceder assim a deslocabilidade da libido que já mencionamos Mas ela não volta as costas ao mundo externo pelo contrário prendese aos objetos pertencentes a esse mundo e obtém felicidade de um relacionamento emocional com eles Tampouco se contenta em visar a uma fuga do desprazer uma meta poderíamos dizer de cansada resignação passa por ela sem lhe dar atenção e se aferra ao esforço original e apaixonado em vista de uma consecução completa da felicidade Na realidade talvez se aproxime mais dessa meta do que qualquer outro método Evidentemente estou falando da modalidade de vida que faz do amor o centro de tudo que busca toda satisfação em amar e ser amado Uma atitude psíquica desse tipo chega de modo bastante natural a todos nós uma das formas através da qual o amor se manifesta o amor sexual nos proporcionou nossa mais intensa experiência de uma transbordante sensação de prazer fornecendonos assim um modelo para nossa busca da felicidade Há porventura algo mais natural do que Filosofia antropologia e ética 71 persistirmos na busca da felicidade do modo como a encontramos pela primeira vez O lado fraco dessa técnica de viver é de fácil percepção pois do contrário nenhum ser humano pensaria em abandonar esse caminho da felicidade por qualquer outro É que nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor Isso porém não liquida com a técnica de viver baseada no valor do amor como um meio de obter felicidade Há muito mais a ser dito a respeito Daqui podemos passar à consideração do interessante caso em que a felicidade na vida é predominantemente buscada na fruição da beleza onde quer que esta se apresente a nossos sentidos e a nosso julgamento a beleza das formas e a dos gestos humanos a dos objetos naturais e das paisagens e a das criações artísticas e mesmo científicas A atitude estética em relação ao objetivo da vida oferece muito pouca proteção contra a ameaça do sofrimento embora possa compensálo bastante A fruição da beleza dispõe de uma qualidade peculiar de sentimento tenuemente intoxicante A beleza não conta com um emprego evidente tampouco existe claramente qualquer necessidade cultural sua Apesar disso a civilização não pode dispensála Embora a ciência da estética investigue as condições sob as quais as coisas são sentidas como belas tem sido incapaz de fornecer qualquer explicação a respeito da natureza e da origem da beleza e tal como geralmente acontece esse insucesso vem sendo escamoteado sob um dilúvio de palavras tão pomposas quanto ocas A psicanálise infelizmente também pouco encontrou a dizer sobre a beleza O que parece certo é sua derivação do campo do sentimento sexual O amor da beleza parece um exemplo perfeito de um impulso inibido em sua finalidade Beleza e atração são originalmente atributos do objeto sexual Vale a pena observar que os próprios órgãos genitais cuja visão é sempre excitante dificilmente são julgados belos a qualidade da beleza ao contrário parece ligarse a certos caracteres sexuais secundários Filosofia antropologia e ética 72 A despeito da deficiência de minha enumeração aventurarme ei a algumas observações à guisa de conclusão para nossa investigação O programa de tornarse feliz que o princípio do prazer nos impõe não pode ser realizado contudo não devemos na verdade não podemos abandonar nossos esforços de aproximálo da consecução de uma maneira ou de outra Caminhos muito diferentes podem ser tomados nessa direção e podemos conceder prioridades quer ao aspecto positivo do objetivo obter prazer quer ao negativo evitar o desprazer Nenhum desses caminhos nos leva a tudo o que desejamos A felicidade no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível constitui um problema da economia da libido do indivíduo Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo Todos os tipos de diferentes fatores operarão a fim de dirigir sua escolha É uma questão de quanta satisfação real ele pode esperar obter do mundo externo de até onde é levado para tornarse independente dele e finalmente de quanta força sente à sua disposição para alterar o mundo a fim de adaptálo a seus desejos Nisso sua constituição psíquica desempenhará papel decisivo independentemente das circunstâncias externas O homem predominantemente erótico dará preferência aos seus relacionamentos emocionais com outras pessoas o narcisista que tende a ser autossuficiente buscará suas satisfações principais em seus processos mentais internos o homem de ação nunca abandonará o mundo externo onde pode testar sua força Quanto ao segundo desses tipos a natureza de seus talentos e a parcela de sublimação instintiva a ele aberta decidirão onde localizará os seus interesses Qualquer escolha levada a um extremo condena o indivíduo a ser exposto a perigos que surgem caso uma técnica de viver escolhida como exclusiva se mostre inadequada Assim como o negociante cauteloso evita empregar todo seu capital num só negócio assim também talvez a sabedoria popular nos aconselhe a não buscar a totalidade de nossa satisfação numa só aspiração Seu Filosofia antropologia e ética 73 êxito jamais é certo pois depende da convergência de muitos fatores talvez mais do que qualquer outro da capacidade da constituição psíquica em adaptar sua função ao meio ambiente e então explorar esse ambiente em vista de obter um rendimento de prazer Uma pessoa nascida com uma constituição instintiva especialmente desfavorável e que não tenha experimentado corretamente a transformação e a redisposição de seus componentes libidinais indispensáveis às realizações posteriores achará difícil obter felicidade em sua situação externa em especial se vier a se defrontar com tarefas de certa dificuldade Como uma última técnica de vida pelo que menos lhe trará satisfações substitutivas élhe oferecida a fuga para a enfermidade neurótica fuga que geralmente efetua quando ainda é jovem O homem que em anos posteriores vê sua busca da felicidade resultar em nada ainda pode encontrar consolo no prazer oriundo da intoxicação crônica ou então se empenhar na desesperada tentativa de rebelião que se observa na psicose A religião restringe esse jogo de escolha e adaptação desde que impõe igualmente a todos o seu próprio caminho para a aquisição da felicidade e da proteção contra o sofrimento Sua técnica consiste em depreciar o valor da vida e deformar o quadro do mundo real de maneira delirante maneira que pressupõe uma intimidação da inteligência A esse preço por fixálas à força num estado de infantilismo psicológico e por arrastálas a um delírio de massa a religião consegue poupar a muitas pessoas uma neurose individual Dificilmente porém algo mais Existem como dissemos muitos caminhos que podem levar à felicidade passível de ser atingida pelos homens mas nenhum que o faça com toda segurança Mesmo a religião não consegue manter sua promessa Se finalmente o crente se vê obrigado a falar dos desígnios inescrutáveis de Deus está admitindo que tudo que lhe sobrou como último consolo e fonte de prazer possíveis em seu sofrimento foi uma submissão incondicional E se está preparado para isso provavelmente poderia terse poupado o détour que efetuou Filosofia antropologia e ética 74 III Até agora nossa investigação sobre a felicidade não nos ensinou quase nada que já não pertença ao conhecimento comum E mesmo que passemos dela para o problema de saber por que é tão difícil para o homem ser feliz parece que não há maior perspectiva de aprender algo novo Já demos a resposta pela indicação das três fontes de que nosso sofrimento provém o poder superior da natureza a fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família no Estado e na sociedade Quanto às duas primeiras fontes nosso julgamento não pode hesitar muito Ele nos força a reconhecer essas fontes de sofrimento e a nos submeter ao inevitável Nunca dominaremos completamente a natureza e o nosso organismo corporal ele mesmo parte dessa natureza permanecerá sempre como uma estrutura passageira com limitada capacidade de adaptação e realização Esse reconhecimento não possui um efeito paralisador Pelo contrário aponta a direção para a nossa atividade Se não podemos afastar todo sofrimento podemos afastar um pouco dele e mitigar outro tanto a experiência de muitos milhares de anos nos convenceu disso Quanto à terceira fonte a fonte social de sofrimento nossa atitude é diferente Não a admitimos de modo algum não podemos perceber por que os regulamentos estabelecidos por nós mesmos não representam ao contrário proteção e benefício para cada um de nós Contudo quando consideramos o quanto fomos malsucedidos exatamente nesse campo de prevenção do sofrimento surge em nós a suspeita de que também aqui é possível jazer por trás desse fato uma parcela de natureza inconquistável dessa vez uma parcela de nossa própria constituição psíquica Filosofia antropologia e ética 75 QUESTÕES PARA ESTUDO INDIVIDUAL DO TEXTO QUESTÃO 1 Citando Theodor Fontane a vida é descrita por Freud como árdua demais para ser vivida sem construções auxiliares Explique o que são as três medidas paliativas ditas indispensáveis e como elas contribuem na economia da consecução da felicidade QUESTÃO 2 Explique o sentido da afirmação freudiana de que só a religião é capaz de resolver a questão do propósito da vida Confronte tal afirmação com a seguinte a ideia de a vida possuir um propósito se forma e desmorona com o sistema religioso QUESTÃO 3 Explique o papel do princípio do prazer na economia da felicidade Por que segundo Freud a infelicidade é sempre mais frequente do que a felicidade Apresente e discuta as três fontes de sofrimento que Freud identifica Filosofia antropologia e ética 76 TEXTO 9 ACERCA DA VERDADE E DA MENTIRA Friedrich Wilhelm Nietzsche 1844 1900 NIETZSCHE Friedrich W Acerca da verdade e da mentira São Paulo Rideel 2005 p 724 Num certo canto remoto do universo cintilante vertido em incontáveis sistemas solares havia uma vez um astro onde animais inteligentes inventaram o conhecimento Foi o minuto mais soberbo e hipócrita da história mundial mas foi apenas um minuto Depois de a natureza ter respirado umas poucas vezes o astro enregelou e os animais inteligentes tiveram de morrer Assim alguém poderia inventar uma fábula como esta e no entanto não ficaria suficientemente esclarecido quão lastimável quão obscuro e fugidio quão desprovido de finalidade e arbitrário se apresenta o intelecto humano no interior da natureza Eternidades houve em que ele não existia quando ele tiver de novo desaparecido nada se terá alterado Pois para este intelecto não há outra missão que transcenda a vida humana Antes pelo contrário ele é humano e só o seu dono e progenitor o encara tão pateticamente como se ele fosse o eixo à volta do qual gira o mundo Mas se nós conseguíssemos comunicar com um mosquito saberíamos que também ele paira neste ambiente com a mesma presunção e se sente como centro voador deste mundo Na natureza não há nada de tão censurável e limitado que não se inchasse qual tubo insuflável por meio de um pequeno sopro dessa força do conhecimento e tal como todo e qualquer carregador ambiciona ter o seu admirador assim o homem mais orgulhoso o filósofo julga ver de todos os lados os olhares do universo quais Filosofia antropologia e ética 77 telescópios dirigidos para o seu agir e pensar É estranho que o intelecto seja capaz disso ele que é acrescentado apenas como auxiliar aos seres mais infelizes mais delicados e efêmeros para sustentálos durante um minuto na existência da qual sem esta contribuição eles teriam toda a razão de fugir como o filho de Lessing O orgulho ligado ao conhecer e sentir que põe uma névoa ofuscante nos olhos e sentidos dos homens enganaos por conseguinte sobre o valor da existência pelo fato de encerrar em si o apreço mais lisonjeiro acerca do conhecimento O seu efeito mais geral é a ilusão mas também os efeitos mais particulares contêm em si algo de índole semelhante O intelecto como meio para a conservação do indivíduo desenvolve as suas forças dominantes na dissimulação pois este é o meio graças ao qual os indivíduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos quais está vedado lutar pela existência com o auxílio dos chifres ou dos dentes afiados das feras No homem esta arte da dissimulação atinge o seu ponto mais alto nele a ilusão a lisonja a mentira e a fraude o falar nas costas dos outros o representar o viver no brilho emprestado o usar uma máscara a convenção que oculta o jogo de cena diante dos outros e de si próprio o esvoaçar constante em torno dessa chama única numa palavra a vaidade são de tal modo a regra e a lei que não há quase nada mais inconcebível do que o aparecimento nos homens de um impulso honesto e puro para a verdade Estes estão profundamente submergidos em ilusões e visões oníricas o seu olhar só desliza pela superfície das coisas e vê aí formas a sua percepção não conduz em parte alguma à verdade mas satisfazse com receber estímulos e por assim dizer com um jogo tateando a custo as coisas Além disso de noite o homem deixa se durante uma vida inteira enganar em sonhos sem que o seu sentimento moral jamais procure evitálo ao passo que parece haver homens que deixaram de ressonar pela simples força de vontade Que é que o homem no fundo sabe acerca de si mesmo Sim se ele conseguisse ao menos uma vez percepcionarse completamente como se estivesse metido num expositor de vidro iluminado Não é que a natureza lhe oculta a maior parte das coisas mesmo sobre o Filosofia antropologia e ética 78 seu corpo para banir e fixálo longe das dobras intestinais longe do rápido fluir da corrente sanguínea e dos estremecimentos emaranhados das fibras numa consciência orgulhosa e malabarista A natureza deitou fora a chave e ai da fatídica curiosidade que conseguisse através de uma fenda olhar para fora e para baixo da câmara da consciência e pressentir que o homem assenta no impiedoso no sôfrego no insaciável no homicida na indiferença do seu não saber e como que suspenso em sonhos preso nas costas de um tigre De onde com os diabos vem nesta constelação o impulso da verdade Na medida em que o indivíduo se quer conservar relativamente aos outros indivíduos este na maior parte das vezes utiliza o intelecto num estado natural das coisas somente para a dissimulação mas como o homem quer existir tanto por necessidade como por tédio socialmente e em rebanho precisa fazer a paz e aspira a que desapareça do seu mundo pelo menos o mais brutal bellum omnium contra omnes Esta paz traz consigo algo que se parece com o primeiro passo para a obtenção daquele enigmático impulso para a verdade Acontece que agora é fixado aquilo que doravante deve ser a verdade ou seja é inventada uma designação das coisas tão válida como vinculativa e a legislação da língua produz também as primeiras leis da verdade pois aqui surge pela primeira vez o contraste entre verdade e mentira O mentiroso utiliza as designações válidas as palavras para fazer com que o irreal pareça real Ele diz por exemplo Sou rico quando a designação correta para a sua situação seria precisamente a palavra pobre Faz mau uso das convenções estabelecidas através de trocas arbitrárias ou até inversões dos nomes feitas a seu belprazer Se ele atuar desta maneira em proveito próprio e prejuízo dos outros então a sociedade perderá a confiança que nele depositava e excluiloá por isso Os homens neste caso fogem não tanto de ser enganados mas mais de ser prejudicados pela fraude a este nível no fundo eles não odeiam o engano mas sim as consequências más e adversas de determinadas espécies de engano É só num idêntico sentido restrito que o homem deseja a verdade aspira às agradáveis consequências da verdade que Filosofia antropologia e ética 79 conservam a vida é indiferente ao puro conhecimento inconsequente e é até avesso às verdades talvez prejudiciais e destruidoras E para além disto qual é a situação relativamente às convenções da língua Serão elas talvez produtos do conhecimento do sentido da verdade Coincidirão as designações e as coisas Será a língua a adequada expressão de todas as realidades Só mediante o processo do esquecimento pode o homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no grau que acabamos de assinalar Se ele não quer satisfazerse com a verdade sob a forma de tautologia isto é com invólucros vazios então estará eternamente a receber ilusões como se fossem verdades Que é uma palavra A representação sonora de um estímulo nervoso Porém deduzir a partir de um estímulo nervoso para uma causa que nos é exterior é já o resultado de uma incorreta e indevida aplicação do princípio de razão Como poderíamos nós dizer se na gênese da língua a verdade o ponto de vista da certeza tivessem sido os únicos decisivos nas designações como poderíamos nós então dizer A pedra é dura como se conhecêssemos a palavra dura de outro modo que não apenas como estímulo completamente subjetivo Dividimos as coisas em gêneros dizemos que a árvore é feminina e o arbusto é masculino Que transferências arbitrárias Como foram ultrapassados os cânones da certeza Falamos de serpente a designação quer apenas dizer serpentear mas podia também ser aplicada ao verme Que delimitações arbitrárias que preferências parciais tão depressa desta como daquela particularidade de uma coisa Comparadas entre si as diferentes línguas mostram que nas palavras nunca é a verdade que importa nem a expressão adequada caso contrário não existiriam tantas línguas A coisa em si que seria precisamente a verdade pura sem consequências é também para quem dá forma à língua totalmente inapreensível e mesmo nada desejável Ele designa unicamente as relações das coisas com os homens e socorrese para a sua expressão das mais ousadas metáforas Uma estimulação nervosa traduzida numa imagem Filosofia antropologia e ética 80 Primeira metáfora A imagem de novo transformada num som Segunda metáfora E de cada vez uma transposição completa de uma esfera para outra totalmente diversa e nova Podese imaginar uma pessoa completamente surda e que nunca tenha tido uma sensação do som e da música tal como ele se espanta com as figuras acústicas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibração das cordas e jurará com base nisso saber agora a que se chama som assim acontece com todos nós a respeito da linguagem Julgamos saber algo das próprias coisas quando falamos de árvores cores neve e flores e no entanto não dispomos senão de metáforas das coisas que não correspondem de forma alguma às essencialidades primordiais Tal como o som enquanto figura de areia o enigmático X da coisa em si é tomado uma vez como estimulação nervosa depois como imagem finalmente como som Em qualquer dos casos não existe lógica no surgimento da linguagem e a totalidade do material do qual e com o qual posteriormente o homem da verdade o investigador o filósofo trabalha e constrói se não se trata de castelos no ar não provêm tampouco da essência das coisas Pensemos ainda particularmente na formação dos conceitos Cada palavra tornase de imediato conceito por precisamente não dever servir para a experiência originária única e totalmente individualizada à qual deve a sua emergência algo como recordação mas também para inumeráveis casos mais ou menos semelhantes isto é em rigor nunca idênticos portanto que devem adequarse a casos sempre diferentes Todo o conceito emerge da igualização do não igual Tão certo como uma folha nunca é completamente igual a uma outra assim também o conceito de folha foi formado graças ao abandono dessas diferenças individuais por um esquecimento do elemento diferenciador e suscita então a representação como se existisse na natureza fora das folhas algo que fosse a folha algo como uma forma originária segundo a qual todas as folhas seriam tecidas desenhadas recortadas coloridas frisadas e pintadas mas por mão desajeitada de tal maneira que nenhum exemplar tivesse sido executado de modo correto e fiável como a cópia fiel da forma originária Filosofia antropologia e ética 81 Chamamos honesta a uma pessoa Perguntamonos Por que atuou ela hoje de forma tão honesta A nossa resposta costuma ser Por causa da sua honestidade A honestidade Isso significa de novo a folha é a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se chamasse a honestidade mas conhecemos inúmeras ações individualizadas e desiguais que nós pelo não considerar o desigual igualizamos e que agora designamos como ações honestas por fim formulamos a partir delas uma qualitas occulta com o nome a honestidade O descurar do individual e do real dános o conceito do mesmo modo que nos dá a forma enquanto a natureza não conhece quaisquer formas e conceitos e portanto quaisquer gêneros mas apenas um X para nós inacessível e indefinível Portanto também a nossa oposição entre indivíduo e gênero é antropomórfica e não provém da essência das coisas embora não ousemos dizer que não lhe corresponda o que seria uma afirmação dogmática e como tal tão indemonstrável como a sua contrária Que é então a verdade Um exército móvel de metáforas de metonímias de antropomorfismos numa palavra uma soma de relações humanas que foram poética e retoricamente intensificadas transpostas e adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixas canônicas e vinculativas as verdades são ilusões que foram esquecidas enquanto tais metáforas que foram gastas e que ficaram esvaziadas do seu sentido moedas que perderam o seu cunho e que agora são consideradas não já como moedas mas como metal Continuamos sem saber de onde provém o impulso para a verdade porque até agora apenas ouvimos falar da obrigação que a sociedade impõe para existir ser verdadeiro isto é utilizar as metáforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da obrigação de mentir segundo uma convenção estabelecida de mentir de um modo gregário num estilo vinculativo para todos Ora é certo que o homem esquece que é isso que se passa com ele ele mente do modo indicado inconscientemente e segundo hábitos de séculos e Filosofia antropologia e ética 82 precisamente através dessa não consciência e através desse esquecimento ele atinge o sentimento da verdade Deste sentimento de ser obrigado a designar uma coisa como vermelha uma outra como fria uma terceira como muda desperta uma inclinação moral relativa à verdade a partir da oposição ao mentiroso em que ninguém confia que todos excluem o homem prova a si próprio o caráter digno fiável e útil da verdade Coloca agora o seu agir enquanto ser racional sob o domínio das abstrações já não tolera ser arrastado por impressões súbitas por intuições ele generaliza todas essas impressões em conceitos descoloridos e mais frios de modo a ligar a eles o veículo da sua vida e do seu agir Tudo o que distingue o homem do animal depende dessa faculdade de reduzir as metáforas intuitivas a um esquema e portanto de dissolver uma imagem num conceito No domínio destes esquemas é possível algo que nunca poderia ser conseguido sob as primeiras impressões construir uma ordem em pirâmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis privilégios de subordinações delimitações que agora se contrapõe ao mundo intuitivo das primeiras impressões como sendo o mundo mais estável mais geral mais conhecido mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo Enquanto cada metáfora da intuição é individual e ímpar e assim sabe escapar a toda classificação o grande edifício dos conceitos mostra a regularidade estrita de um columbário romano e exala na lógica esse rigor e frieza próprios da matemática Quem for tocado por essa exalação fria mal acreditará que também o conceito descarnado e octogonal como um dado e deslocável como este apesar de tudo é como o resíduo de uma metáfora e que a ilusão da transposição artística de uma estimulação nervosa em imagens é se não a mãe pelo menos a avó de todo o conceito Neste jogo de dados dos conceitos chamase porém verdade o utilizar cada dado tal como é designado o contar rigorosamente os seus pontos formar rubricas corretas e nunca subverter a ordem das castas e a sequência das classes hierárquicas Assim como os romanos e os Etruscos dividiam o céu através de rígidas linhas matemáticas e num espaço de tal forma delimitado Filosofia antropologia e ética 83 como um templo fixavam um deus assim também cada povo tem sobre ele um céu de conceitos semelhantes matematicamente dividido e por exigência da verdade compreende agora o fato de cada deus conceptual apenas dever ser procurado na sua esfera Podese admirar aqui o homem como um imenso gênio construtor o qual consegue sobre fundações movediças e como sobre água corrente a edificação de uma catedral de conceitos infinitamente complicada na verdade para encontrar apoio em tais fundações é preciso que seja uma construção como se de uma teia de aranha se tratasse tão delicada que possa ser levada pelas ondas e tão sólida que não possa ser destruída pelo vento Como gênio construtor o homem elevase deste modo muito acima da abelha esta constrói com cera que colhe da natureza ele com uma bem mais delicada matéria a dos conceitos que ele deve fabricar a partir de si mesmo Há aqui no homem muito que admirar mas não apenas pelo seu impulso para a verdade para o puro conhecer das coisas Se alguém esconde uma coisa por trás de um arbusto nesse exato lugar a procura de novo e a encontra nesse procurar e encontrar não há muito que enaltecer no entanto é isso que se passa com o procurar e encontrar da verdade no interior da razão Quando dou a definição de mamífero e depois declaro após observação de um camelo Eis um mamífero deste modo de fato uma verdade é trazida à luz mas é de valor limitado quero dizer que ela é do princípio ao fim antropomórfica e que não contém um único ponto que seja verdadeiro em si real e universalmente válido a não ser para o homem O investigador de tais verdades não procura no fundo senão a metamorfose do mundo no homem ele luta por um compreender do mundo como coisa antropomórfica e consegue no melhor dos casos o sentimento de uma assimilação De modo semelhante ao astrólogo que observa as estrelas ao serviço do homem e em conexão com a sua felicidade e sofrimento um tal investigador considera o mundo inteiro como vinculado ao homem como a ressonância infinitamente modulada de um som originário o do homem como a cópia múltiplas vezes reproduzida de uma imagem originária a do homem O seu Filosofia antropologia e ética 84 procedimento é tomar o homem como medida de todas as coisas desse modo no entanto ele parte do erro de acreditar que tem essas coisas imediatamente perante si como puros objetos Esquece as metáforas intuitivas originais enquanto metáforas e tomaas pelas próprias coisas Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metáforas apenas por meio do endurecimento e da solidificação de um fluido originariamente incandescente de uma torrente de imagens emergentes do poder originário da imaginação humana apenas por meio da crença inabalável de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto sujeito criador e artista ele vive com algum descanso segurança e coerência Se ele pudesse sair por um instante apenas dos muros da prisão dessa crença desapareceria imediatamente a sua autoconfiança Já lhe é penoso reconhecer como o inseto ou o pássaro percepcionam um mundo completamente diferente daquele que o homem percepciona e que a questão quanto a saber qual das duas percepções do mundo é a mais correta é uma questão totalmente absurda pois para ser respondida deveria já ser medida com o padrão da percepção correta isto é com um padrão que não existe Em geral porém pareceme que a percepção correta significaria a expressão adequada de um objeto no sujeito um absurdo cheio de contradições porquanto entre duas esferas absolutamente distintas como entre sujeito e objeto não existe nenhuma causalidade nenhuma correção nenhuma expressão mas quando muito uma relação estética ou seja uma transposição aproximada uma tradução que segue o original de forma balbuciante para uma língua totalmente desconhecida para o que em todo o caso é necessária uma esfera intermediária e um poder intermediário livremente poético e inventivo A palavra aparência é muito sedutora por isso a evito o mais possível é que não é verdade que a essência das coisas apareça no mundo empírico Um pintor a quem faltassem as mãos e que quisesse exprimir pelo canto a imagem que tem na mente sempre revelaria mais coisas nessa permuta entre esferas do que o mundo Filosofia antropologia e ética 85 empírico revela da essência das coisas A própria relação entre um estímulo nervoso e a imagem produzida não é em si mesma necessária se porém a mesma imagem for milhões de vezes produzida e legada através de várias gerações e aparecer ao conjunto da humanidade sempre na sequência do mesmo motivo acaba por adquirir para o homem o mesmo significado como se este significado fosse a imagem única e necessária e como se essa relação entre o estímulo nervoso inicial e a imagem produzida fosse uma rigorosa relação de causalidade tal como um sonho que eternamente repetido seria sentido inegavelmente como a realidade em absoluto Mas o endurecimento e a solidificação de uma metáfora em nada garantem a necessidade e a justificação exclusiva dessa metáfora Qualquer pessoa versada em tais observações sentiu decerto uma profunda desconfiança perante todo e qualquer idealismo desse gênero e sempre que se compenetrou com toda a clareza da permanente coerência da onipresença e da infalibilidade das leis da natureza acabou por concluir o seguinte aqui ao penetrarmos fundo nas alturas do mundo telescópicos e na profundidade do mundo microscópico é tudo extremamente seguro elaborado infinito e conforme as leis e sem lacunas A ciência terá eternamente muito a escavar com êxito nesta mina e todos os achados serão consonantes e não se contradirão Como tudo isto se assemelha pouco a um produto da imaginação Porque se se assemelhasse teria de deixar adivinhar onde quer que fosse o seu caráter de aparência e de não realidade A isto há a contrapor que se cada um de nós tivesse ainda percepções sensoriais de tipo diferente poderia percepcionar as sensações ora apenas como uma ave ora como um verme ora como uma planta ou o mesmo estímulo seria visto por um de nós como vermelho e por outro de nós como azul um terceiro poderia ouvir esse estímulo como um som e assim ninguém falaria de uma tal conformidade às leis da natureza antes conceberia esta apenas como uma construção extremamente subjetiva E que é então para nós afinal uma lei da natureza Não a conhecemos em si mas apenas nos seus efeitos isto é nas suas relações com outras leis da natureza que por seu turno só nos são conhecidas como relações Todas estas Filosofia antropologia e ética 86 relações por conseguinte remetem apenas umas para as outras e são para nós totalmente incompreensíveis na sua essência na verdade compreendemos nelas apenas aquilo que lhes atribuímos o tempo o espaço ou seja relações de sucessão e números Tudo o que de maravilhoso porém admiramos precisamente nas leis da natureza o que exige o nosso esclarecimento e o que nos poderia levar a desconfiar do idealismo tudo isso está única e exclusivamente no rigor matemático e na inviolabilidade das representações de tempo e espaço Estas construímolas nós todavia dentro e a partir de nós próprios com a mesma necessidade com que a aranha faz a teia se somos obrigados a apreender todas as coisas apenas sob estas formas não é já de admirar que apreendamos em todas as coisas de fato apenas essas formas porque todas elas têm de conter em si as leis do número e o número é exatamente o que há de mais espantoso nas coisas Toda a conformidade às leis que tanto nos impressiona no movimento dos astros e nos processos químicos coincide no fundo com aquelas qualidades que nós próprios atribuímos às coisas para nos impressionarmos a nós próprios Daí resulta no entanto que essa formação artística de metáforas com que em nós se inicia qualquer sensação pressupõe já essas formas realizase portanto nelas só a partir da firme permanência destas formas primordiais se explica a possibilidade de se poder construir mais tarde de novo a partir das próprias metáforas um edifício de conceitos Este edifício é nomeadamente uma imitação das relações temporais espaciais e numéricas que assenta em metáforas Conforme vimos é a linguagem que trabalha originariamente na construção dos conceitos só mais tarde a ciência Tal como a abelha trabalha simultaneamente na construção dos favos e os enche de mel assim a ciência trabalha incessantemente nesse grande columbário dos conceitos na necrópole das intuições constrói cada vez novos e mais elevados andares reforça limpa e renova os favos antigos e esforçase acima de tudo por encher esta armação elevada até o infinito e por arrumar dentro dela a totalidade do mundo empírico isto é o mundo antropomórfico Se o homem ao agir liga a sua vida à razão e aos conceitos desta para não ser arrastado e não Filosofia antropologia e ética 87 se perder a si próprio o investigador constrói a sua cabana mesmo ao pé da torre da ciência para ajudar na sua construção e para encontrar proteção para si debaixo do baluarte já existente E bem precisa de proteção pois existem forças terríveis que o pressionam continuamente e que opõem verdades completamente diferentes à verdade científica usando os rótulos mais variados Esse impulso para a formação de metáforas esse impulso básico do homem que não se pode esquecer nunca porque com isso se abstrairia do próprio homem não está de forma alguma dominado e só até certo ponto refreado pelo fato de se construir para ele um mundo novo regular e rígido a partir dos seus produtos evanescentes os conceitos como se de uma fortaleza se tratasse Ele procura uma outra área do seu agir outro leito do rio e encontrao no mito e principalmente na arte Não pára de confundir as classes e células dos conceitos ao propor novas transposições metáforas e metonímias ao mostrar constantemente o desejo de configurar o mundo já existente do homem desperto de modo tão colorido desconexo e inconsequente aliciante e sempre novo tal como o é o mundo dos sonhos No fundo o homem vígil só tem a certeza de estar desperto devido à teia dos conceitos sólida e regular e precisamente por isso cai às vezes na crença de que está a sonhar quando esta teia de conceitos é ocasionalmente rasgada pela arte Pascal tem razão ao afirmar que se nós tivéssemos todas as noites o mesmo sonho nos preocuparíamos tanto com ele como com as coisas que vemos todos os dias Se um artesão tivesse a certeza de sonhar todas as noites durante doze horas seguidas que era rei seria creio bem diz Pascal tão feliz quanto um rei que sonhasse todas as noites durante doze horas que era artesão A vigília diurna de um povo excitado pelo mito por exemplo o dos gregos antigos devido ao milagre continuamente em ato tal como o mito o assume é de fato mais parecida com o sonho do que com o dia do pensador científico a quem a ciência fez perder as ilusões Quando toda e qualquer árvore pode falar uma vez como ninfa ou quando disfarçado de touro um deus pode raptar donzelas quando a própria deusa Atena é vista de repente quando passa pelos Filosofia antropologia e ética 88 mercados de Atenas num belo carro de cavalos acompanhada por Pisístrato e nisso acreditavam os bons atenienses então em cada instante tudo é possível como no sonho e a natureza inteira enleia o homem tal como se ela só fosse um jogo de máscaras dos deuses que por brincadeira gozam o homem sob todas as formas Mas até o homem tem uma inclinação invencível para se deixar enganar e fica como que encantado de felicidade quando o rapsodo lhe conta contos de fadas épicos como se fossem verdadeiros ou quando no drama o ator representa o rei ainda mais regiamente do que o mostra a realidade O intelecto esse mestre da dissimulação permanece tanto tempo livre e isento da sua normal servidão quanto pode enganar sem prejudicar e celebra então as suas Saturnais Jamais é tão exuberante tão rico tão orgulhoso tão ágil e audaz possuído de prazer criativo mistura as metáforas e remove os pétreos limites das abstrações de modo a designar por exemplo o rio como a via móvel que leva o homem ao ponto onde ele normalmente vai a pé Agora se livrou da marca da servidão noutras ocasiões esforçado com melancólica solicitude em ensinar o caminho e as ferramentas a um pobre diabo que aspira a existir e tal como um servo que para o seu dono parte à procura de presa e saque tornou se agora dono e pode afastar a expressão de indigência Independentemente do que ele fizer agora em comparação com o seu agir anterior tudo é impregnado de dissimulação tal como o anterior agir o era de distorção Copia a vida humana consideraa no entanto uma coisa boa e parece darse razoavelmente por satisfeito com ela Os imensos vigamentos e andaimes dos conceitos agarrado aos quais o homem indigente se vai salvando pela vida fora são para o intelecto libertado apenas um andaime e um brinquedo para as suas habilidades mais ousadas E quando o destrói mistura recompõe ironicamente juntando o mais estranho e separando o que está mais próximo então revela que não precisa desses recursos da indigência e que agora não é guiado pelos conceitos mas sim pelas intuições Não há caminho regular que leve destas intuições para a terra dos esquemas fantásticos as abstrações a palavra não é feita para elas o homem emudece ao vêlas ou fala em metáforas Filosofia antropologia e ética 89 proibidas e construções de conceitos inauditos para corresponder pelo menos de modo criativo à impressão da vigorosa intuição presente pela destruição e pelo troçar dos velhos limites dos conceitos Há épocas em que o homem racional e o homem intuitivo estão ao lado um do outro um com medo da intuição o outro com desprezo pela abstração este é tão pouco racional quanto aquele é pouco artístico Ambos desejam dominar a vida este na medida em que sabe responder às principais necessidades com prevenção prudência método aquele enquanto herói felicíssimo que não vê as necessidades e apenas considera como real a vida dissimulada sob uma aparência de beleza Onde alguma vez o homem intuitivo maneja as armas de forma mais enérgica e vitoriosa que o seu adversário como por exemplo na antiga Grécia pode na melhor das hipóteses formarse uma civilização e fundarse o domínio da arte sobre a vida Aquela dissimulação aquela denegação da indigência aquele esplendor das intuições metafóricas e em geral aquela imediatez da ilusão acompanha todas as exteriorizações de uma tal vida Nem a casa nem o porte nem o vestuário nem o cântaro de barro deixam transparecer que foi a necessidade que os inventou como se em todos eles só se devesse manifestar uma felicidade sublime e uma clareza olímpica e símultaneamente um brincar com as coisas sérias Enquanto o homem dirigido por conceitos e por abstrações apenas se defende da infelicidade por meio deles sem forjar a felicidade a partir das abstrações aspirando à ausência de dor tanto quanto for possível o homem intuitivo estando no seio de uma civilização colhe já das suas intuições além da defesa contra o mal uma iluminação uma alegria e uma redenção que jorram continuamente De fato ele sofre mais intensamente quando sofre sim é verdade que também sofre mais vezes porque não sabe aprender com a experiência e cai sempre na mesma armadilha em que já caiu uma vez Então ele é tão irracional no sofrimento como na felicidade grita e nada o consola Quão diferente é no mesmo infortúnio o homem estóico ensinado pela experiência e dominando se através dos conceitos Ele que noutras ocasiões só procura Filosofia antropologia e ética 90 Sinceridade verdade ausência de fingimento e proteção contra assaltos traiçoeiros tira agora da infelicidade a obraprima dissimulação tal como aquele na felicidade o rosto que apresenta não estremece nem se move mas como que apresenta uma máscara com uma digna ponderação dos traços não grita e nem sequer altera o tom da voz quando uma verdadeira carga de água desaba sobre ele cobrese com a capa e afastase dela a passo lento Tradução do Seminário de Tradução Filosófica coordenado pela Dr Helga Hoock Quadrado Instituto Alemão de Lisboa QUESTÕES PARA ESTUDO INDIVIDUAL DO TEXTO QUESTÃO 1 Explique a seguinte afirmação Julgamos saber algo das próprias coisas quando falamos de árvores cores neve e flores e no entanto não dispomos senão de metáforas das coisas que não correspondem de forma alguma às essencialidades primordiais Explique o processo de formação de conceitos Explique o conceito de verdade que Nietzsche oferece Filosofia antropologia e ética 91 QUESTÃO 2 Explique o seguinte excerto Só mediante o processo do esquecimento pode o homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no grau que acabamos de assinalar QUESTÃO 3 Por que Nietzsche considera todo conhecimento como um antropomorfismo QUESTÃO 4 Explique o excerto seguinte no qual toda percepção é entendida como uma tradução que segue o original de forma balbuciante para uma língua totalmente desconhecida QUESTÃO 5 Explique o seguinte excerto a ciência trabalha incessantemente nesse grande columbário dos conceitos na necrópole das intuições constrói cada vez novos e mais elevados andares reforça limpa e renova os favos antigos e esforçase acima de tudo por encher esta armação elevada até o infinito e por arrumar dentro dela a totalidade do mundo empírico isto é o mundo antropomórfico Considere as seguintes imagens para entender o sentido figurativo e conceitual em que Nietzsche emprega os termos Filosofia antropologia e ética 92 QUESTÃO 6 Explique a noção nietzschiana de impulso para a verdade Quais são as críticas que o autor faz à existência de tal impulso Columbário Necrópole Filosofia antropologia e ética 93 TEXTO 10 O LIVREARBÍTRIO Agostinho 354 430 AGOSTINHO O livrearbítrio São Paulo Paulus 1995 pp 4647 5152 5557 6064 66 69 134137 142144 1 A CAUSA DO PECADO O ABUSO DA VONTADE LIVRE I18 AGOSTINHO Eis o que eu quero te explicar agora o que põe o homem acima dos animais seja qual for o nome com que designemos tal faculdade seja mente ou espírito ou com mais propriedade um e outro indistintamente porque encontramos esses dois vocábulos também nos Livros Sagrados quando pois esse elemento superior domina no homem e comanda a todos os outros elementos que o constituem ele encontrase perfeitamente ordenado Com efeito vemos que temos muitos elementos comuns não somente com os animais mas também com as árvores e plantas tais como ingerir alimento crescer gerar fortificarse Vemos que todas essas propriedades são concedidas igualmente às árvores as quais pertencem a um grau bem ínfimo entre os seres vivos Constatamos ainda e devemos reconhecer que os animais podem ver entender e sentir os objetos corporais por meio do olfato do gosto do tato e frequentemente com mais penetração do que nós Além do que há neles força vigor solidez dos membros rapidez e grande agilidade de movimentos corporais Em tudo isso nós somos superiores a alguns deles iguais a outros e a vários dentre eles inferiores Sem dúvida possuímos natureza genérica comum com os animais Filosofia antropologia e ética 94 Entretanto a busca dos prazeres do corpo e a fuga dos dissabores constituem atividade da vida animal Há ainda outras propriedades que não parecem convir aos animais sem que todavia sejam no homem as mais perfeitas como por exemplo divertirse e rir Por certo são expressões características do homem mas as menos importantes no julgamento de quem julga a natureza humana Contudo não devemos nos julgar melhores do que eles por possuirmos essas paixões Pois tais inclinações ao se revoltarem contra a razão nos tornam inafortunados Ora ninguém jamais se pretendeu superior a outros por sua miséria Por conseguinte só quando a razão domina a todos os movimentos da alma o homem deve se dizer perfeitamente ordenado Porque não se pode falar de ordem justa sequer simplesmente de ordem onde as coisas melhores estão subordinadas às menos boas Acaso não te parece assim EVÓDIO É evidente que é dessa maneira AGOSTINHO Então quando a razão a mente ou o espírito governa os movimentos irracionais da alma é que está a dominar na verdade no homem aquilo que precisamente deve dominar em virtude daquela lei que reconhecemos como sendo a lei eterna EVÓDIO Compreendo e sigo teu raciocínio 21a AGOSTINHO É porque não te resta agora senão responder a esta questão se puderes existe na tua opinião algo mais nobre do que a mente dotada de razão e sabedoria EVÓDIO A meu ver nada existe exceto Deus AGOSTINHO Essa é igualmente a minha opinião I 21b AGOSTINHO Com efeito por enquanto bastenos saber que esse Ser seja ele qual for capaz de ultrapassar em excelência a mente dotada de virtude não poderia de modo algum ser um Ser injusto Tampouco ainda que tivesse esse poder ele não forçaria a mente a submeterse às paixões Filosofia antropologia e ética 95 EVÓDIO Não há ninguém que deixe de admitir essa afirmação sem hesitação alguma I 21c AGOSTINHO Logo só me resta concluir se de um lado tudo o que é igual ou superior à mente que exerce seu natural senhorio e achase dotada de virtude não pode fazer dela escrava da paixão por causa da justiça por outro lado tudo o que lhe é inferior tampouco o pode por causa dessa mesma inferioridade como demonstram as constatações precedentes Portanto não há nenhuma outra realidade que torne a mente cúmplice da paixão a não ser a própria vontade e o livrearbítrio EVÓDIO Não vejo conclusão nenhuma tão necessária quanto essa 2 A ATUAÇÃO DA BOA VONTADE PROVA QUE O PECADO VEM DO LIVRE ARBÍTRIO I 25 AGOSTINHO E assim perguntote existe em nós alguma vontade EVÓDIO Não o sei dizer AGOSTINHO E queres sabêlo EVÓDIO Também o ignoro AGOSTINHO Então nada mais me perguntes de agora em diante EVÓDIO Por quê AGOSTINHO Porque não devo responder às tuas perguntas a não ser que queiras conhecer as respostas Além do mais se não queres chegar à sabedoria é inútil conversar contigo sobre tais questões Enfim não mais poderá ser meu amigo se não me quiseres bem Pelo menos considera o seguinte em relação a ti mesmo não tens vontade alguma de levar vida feliz EVÓDIO Vejo que não se pode negar que todos tenhamos desejo disso Continua vejamos o que queres concluir por aí AGOSTINHO Eu o farei Mas antes dizeme ainda tens consciência de possuir boa vontade EVÓDIO O que vem a ser a boa vontade Filosofia antropologia e ética 96 AGOSTINHO É a vontade pela qual desejamos viver com retidão e honestidade para atingirmos o cume da sabedoria Considera agora se não desejas levar uma vida reta e honesta ou se não queres ardentemente te tornar sábio Ou pelo menos se ousarias negar que temos a boa vontade ao querermos essas coisas EVÓDIO Nada disso eu nego porque admito que não somente tenho uma vontade mas ainda uma boa vontade AGOSTINHO E que apreço dás a essa boa vontade Achas que se possa comparála de algum modo com as riquezas com as honras ou com os prazeres do corpo ou ainda com todas essas coisas reunidas EVÓDIO Deus me livre de loucura tão perniciosa AGOSTINHO Sernosá preciso então alegrarnos só um pouco por possuirmos em nosso espírito esse tesouro quero dizer essa boa vontade Em comparação a ela seria preciso julgar dignos de desprezo todos aqueles outros bens sobre os quais nos referimos No entanto para a sua posse vemos multidão de homens não recuar diante de nenhum cansaço de perigo algum EVÓDIO É preciso alegrarnos e muito por possuirmos a boa vontade AGOSTINHO Pois bem E aqueles que não desfrutam dessa alegria sofrerão apenas pouco dano pela privação de tão grande bem EVÓDIO Ao contrário seria para eles o maior de todos os danos I 26 AGOSTINHO Portanto penso que agora já vês depende de nossa vontade gozarmos ou sermos privados de tão grande e verdadeiro bem Com efeito haveria alguma coisa que dependa mais de nossa vontade do que a própria vontade Ora quem quer que seja que tenha essa boa vontade possui certamente um tesouro bem mais preferível do que os reinos da terra e todos os prazeres do corpo E ao contrário a quem não a possui faltalhe sem dúvida algo que ultrapassa em excelência todos os bens que escapam a nosso poder Bens esses que se escapam a nosso poder ela a vontade sozinha traria por si mesma Por certo um homem não se considerará muito infeliz se vier a perder sua boa reputação riquezas consideráveis ou Filosofia antropologia e ética 97 bens corporais de toda espécie Mas não o julgarás antes muito mais infeliz caso tendo em abundância todos esses bens venha ele a se apegar demasiadamente a tudo isso coisas essas que podem ser perdidas bem facilmente e que não são conquistadas quando se quer Ao passo que sendo privado da boa vontade bem incomparavelmente superior para reaver tão grande bem a única exigência é que o queira EVÓDIO Nada há de mais verdadeiro I 28 AGOSTINHO Pois bem E podes de algum modo deixar de julgar que é preciso evitar a vida infeliz EVÓDIO Julgo com convicção que assim seja E penso que nada senão isso deve ser feito e com grande empenho AGOSTINHO Aceitemos portanto isto é feliz o homem realmente amante de sua boa vontade e que despreza por causa dela tudo o que se estima como bem cuja perda pode acontecer ainda que permaneça a vontade de ser conservado AGOSTINHO Mas dizeme eu te peço amar a sua boa vontade e têla em tão grande apreço como antes dissemos não é isso justamente a própria boa vontade EVÓDIO Dizes a verdade AGOSTINHO Mas se julgamos com razão ser feliz o homem de boa vontade não se deveria também com boa razão declarar ser infeliz aquele que possui vontade contrária a essa EVÓDIO Com muito boa razão AGOSTINHO Logo que motivo existe para crer que devemos duvidar que é pela vontade que merecemos e levamos uma vida louvável e feliz e pela mesma vontade que levamos uma vida vergonhosa e infeliz Filosofia antropologia e ética 98 EVÓDIO Constato que chegamos a essa conclusão fundamentando nos em razões certas e inegáveis I 29 AGOSTINHO Ainda outra coisa Retiveste penso eu a definição dada por nós a respeito da boa vontade Dissemos ser ela a vontade pela qual desejamos viver justa e honestamente EVÓDIO Sim eu me recordo AGOSTINHO Portanto se por nossa boa vontade amamos e abraçamos essa mesma boa vontade preferindoa a todas as outras coisas cuja conservação não depende de nosso querer a consequência será como nos indica a razão que nossa alma esteja dotada de todas aquelas virtudes cuja posse constitui precisamente a vida conforme a retidão e a honestidade De onde se segue esta conclusão todo aquele que quer viver conforme a retidão e a honestidade se quiser pôr esse bem acima de todos os bens passageiros da vida realiza conquista tão grande com tanta facilidade que para ele o querer e o possuir serão um só e mesmo ato EVÓDIO Digote com toda verdade posso dificilmente conter uma exclamação de alegria vendo de repente surgir diante de mim tão grande bem e de maneira tão fácil de ser adquirido AGOSTINHO Pois bem essa mesma alegria gerada pela aquisição de tão grande bem ao elevar a alma na calma e constância constitui a vida que é dita feliz A não ser que não consideres a vida feliz como o gozo de bens verdadeiros e seguros EVÓDIO Consideroa tal como tu mesmo I 30 AGOSTINHO Perfeitamente Mas na tua opinião haverá um só homem sequer que não queira e deseje de todos os modos viver uma vida feliz EVÓDIO Todo homem a deseja Quem pode duvidar disso AGOSTINHO Por qual motivo então nem todos eles a obtêm Porque como nós o dissemos e concordamos é voluntariamente que os homens a merecem E acontece que voluntariamente também chegam a uma vida de infortúnios E assim recebem o que merecem Filosofia antropologia e ética 99 Mas eis que surge não sei qual contradição a tentar derrubar se não fizermos um exame atento e minucioso as nossas conclusões de há pouco tão bem elaboradas e tão fortemente apoiadas Com efeito como se explica que os homens sofram voluntariamente uma vida infeliz se de modo algum ninguém quer viver no infortúnio E como se explica que sendo por sua própria vontade que o homem obtém vida feliz quando acontece que tantos são infelizes apesar de todos quererem ser felizes Será que isso não vem do fato de que uma coisa é querer viver bem ou mal e outra coisa muito distinta é merecer o resultado por uma boa ou má vontade Com efeito aqueles que são felizes para isso é preciso que sejam também bons não se tornaram tais só por terem querido viver vida feliz visto que os maus também o querem Mas sim porque os justos o quiseram com retitude o que os maus não o quiseram Nada de estranhar então que os homens desventurados não obtenham o que querem isto é vida feliz Com efeito o essencial o que acompanha a felicidade e sem o que ninguém é digno de obtêla o fato de viver retamente eles não o querem Ora a lei eterna em consideração da qual já é tempo de voltar a nossa atenção decretou com firmeza irremovível o seguinte o merecimento está na vontade Assim a recompensa ou o castigo serão a beatitude ou a desventura É porque ao afirmarmos que os homens são voluntariamente infelizes não dizemos por aí que eles queiram ser infelizes mas que possuem tal vontade que a desgraça se segue necessariamente mesmo contra o desejo de felicidade Não há pois nada de contraditório ao raciocínio precedente todos querem ser felizes mas sem poder sêlo Pois nem todos querem viver com retidão e é só com essa boa vontade que têm o direito à vida feliz A menos que tenhas alguma objeção a fazer EVÓDIO Não nada tenho a opor I 31 EVÓDIO Vejamos agora sem mais demora que relação existe em tudo isso com a questão das duas leis já colocadas anteriormente a lei eterna e a temporal Filosofia antropologia e ética 100 AGOSTINHO Seja Antes porém respondeme aquele que ama viver retamente tem certamente prazer nisso de tal modo que encontra não apenas o bem verdadeiro mas ainda real doçura e alegria Essa pessoa não há de apreciar também sobre todas as coisas com dileção especial essa lei em virtude da qual a vida feliz é atribuída à boa vontade e a vida infeliz à má vontade EVÓDIO Sem dúvida amaa e com veemência porque é observando a que ele vive como o faz AGOSTINHO Pois bem Ao Amála será que ama a algo variável e temporal ou a algo estável e eterno EVÓDIO Certamente a algo que é eterno e imutável AGOSTINHO E o que dizes daqueles que perseveram em sua má vontade e desejam apesar disso ser felizes Podem eles amar essa lei que lhes determina o infortúnio como justo salário EVÓDIO De modo algum penso eu AGOSTINHO E a nada mais amam EVÓDIO Pelo contrário amam muitas outras coisas precisamente aquelas a cuja aquisição e conservação sua má vontade persiste em procurar AGOSTINHO Queres te referir penso eu às riquezas às honras aos prazeres à beleza do corpo e a todas as demais coisas que podem não ser obtidas mesmo quando desejadas ou estão perdidas contra a própria vontade EVÓDIO Refirome precisamente a tais coisas AGOSTINHO E julgas que esses bens sejam eternos quando tu os vês sujeitos à mobilidade do tempo EVÓDIO Quem poderia pensar assim a não ser um louco AGOSTINHO Logo é evidente que há duas espécies de homens uns amigos das coisas eternas e outros amigos das coisas temporais I 33 AGOSTINHO Assim pois as mesmas coisas podem ser usadas diferentemente de modo bom ou mal E quem se serve mal é aquele que se apega a tais bens da maneira a se embaraçar com eles Filosofia antropologia e ética 101 amandoos demasiadamente Com efeito submetese àqueles mesmos bens que lhe deveriam estar submissos Faz dessas coisas bens aos quais ele mesmo deveria ser um bem ordenandoas e fazendo delas bom uso Assim quem se serve dessas coisas de modo ordenado mostra que elas são boas não para si pois elas não o tornam nem bom nem melhor mas antes é ele mesmo que as torna melhores Por isso ele não as ama até se deixar prender e não faz delas como se fossem membros de sua própria alma o que seria feito caso as amasse a ponto de recear que elas vindo a lhe faltar lhe fossem como cruéis e dolorosos ferimentos Mas se ele se mantiver acima dessas coisas pronto a possuílas e governálas caso seja preciso e mais ainda pronto a perdêlas ou a se passar delas Visto que assim é crês que seria preciso condenar o ouro e a prata por causa dos avarentos ou o vinho por causa dos que se embriagam ou o encanto das mulheres por causa dos libertinos e dos adúlteros e assim em relação a tudo mais Especialmente quando podes ver um médico fazer bom uso do fogo e um envenenador uso criminoso até do pão EVÓDIO Isso é bem verdade não se pode considerar as coisas por elas mesmas mas sim os homens que podem fazer mau uso delas I 34 AGOSTINHO Muito bem Nós já começamos a compreender penso eu qual seja o valor da lei eterna E reconhecemos também até onde pode ir a lei temporal em sua repressão com castigos Distinguimos também com clareza suficiente as duas espécies de realidades umas eternas e outras temporais E as duas classes de homens uns seguindo e amando as coisas eternas e outros as coisas temporais Estabelecemos ainda que é próprio da vontade escolher o que cada um pode optar e abraçar E nada a não ser a vontade poderá destronar a alma das alturas de onde domina e afastála do caminho reto Do mesmo modo é evidente ser preciso não censurar o objeto do qual se usa mal mas sim a pessoa que dele mal se serviu Voltemos agora se concordares àquela questão proposta no começo deste diálogo e vejamos se ela já está resolvida Tínhamo Filosofia antropologia e ética 102 nos proposto de procurar a definição do que seja cometer o mal Foi nesse intento que dissemos tudo o que precede até aqui Em consequência agora é o momento de examinarmos com cuidado se cometer o mal é outra coisa do que menosprezar e considerarmos os bens eternos bens dos quais a alma goza por si mesma e atinge também por si mesma e aos quais não pode perder caso os ame de verdade e ir em busca dos bens temporais como se fossem grandes e admiráveis Bens esses experimentados com o corpo a parte menos nobre do homem e que nada têm de seguro Para mim todas as más ações isto é nossos pecados podem estar incluídos nessa única categoria Espero que me dês a conhecer o teu parecer a esse respeito I 35a EVÓDIO É bem como dizes e eu concordo em que todos os pecados encontremse nessa única categoria a saber cada um ao pecar afastase das coisas divinas e realmente duráveis para se apegar às coisas mutáveis e incertas ainda que estas se encontrem perfeitamente dispostas cada uma em sua ordem e realizem a beleza que lhes corresponde Contudo é próprio de uma alma pervertida e desordenada escravizarse a elas A razão é que por ordem e direito divinos foi a alma posta à frente das coisas inferiores para as conduzir conforme o seu beneplácito Ao mesmo tempo o outro problema que nós nos tínhamos proposto após a primeira questão o que é proceder mal pareceme já termos resolvido com clareza a saber de onde vem praticarmos o mal Se não me engano tal como a nossa argumentação mostrou o mal moral tem sua origem no livrearbítrio de nossa vontade I 35b Mas quanto a esse mesmo livrearbítrio o qual estamos convencidos de ter o poder de nos levar ao pecado perguntome se Aquele que nos criou fez bem de nolo ter dado Na verdade parece me que não pecaríamos se estivéssemos privados dele e é para se temer que nesse caso Deus mesmo venha a ser considerado o autor de nossas más ações Filosofia antropologia e ética 103 AGOSTINHO Não tenhas receio algum a esse respeito Mas para fazermos um exame mais atento reservaremos outro momento Pois este nosso diálogo já pede limite e fim Quisera te ver persuadido de que nós por assim dizer estamos batendo à porta de grandes e profundas questões 3 O LIVREARBÍTRIO É UM BEM EM SI MESMO II 47 EVÓDIO Declaro estar suficientemente convicto de que existe um modo o quanto é possível nesta vida para homens como nós de tornar evidente estes dois princípios primários que Deus existe e que todos os bens procedem de Deus Isso porque todos os seres existentes os que têm a inteligência a vida e a existência os que somente possuem a vida e a existência como os que possuem somente a existência todos vêm de Deus Vejamos agora se é possível esclarecer a terceira questão proposta a saber convém considerar a vontade livre do homem entre os bens Uma vez esse ponto demonstrado concederei sem hesitação que Deus nola deu e que convinha nola ter dado AGOSTINHO Tu te lembraste com exatidão dos assuntos propostos Notaste perfeitamente que a segunda questão que todo bem procede de Deus está explicada Mas deverias ter notado que também esta a terceira está resolvida Pois parecia a ti como dizias que o livrearbítrio da vontade não devia nos ter sido dado visto que as pessoas servemse dele para pecar Eu opunha à tua opinião que não podemos agir com retidão a não ser pelo livrearbítrio da vontade E afirmava que Deus nolo deu sobretudo em vista desse bem Tu me respondeste que a vontade livre devia nos ter sido dada Filosofia antropologia e ética 104 do mesmo modo como nos foi dada a justiça da qual ninguém pode se servir a não ser com retidão Essa resposta lançounos a entrar em múltiplos rodeios neste diálogo com a finalidade de te provar que todos os bens os menores como os maiores chegamnos unicamente por meio de Deus Mas tal conclusão não teria sido posta com clareza se não tivéssemos antes refutado o sentimento ímpio do insensato que diz em seu coração Deus não existe Sl 531 Empenhamonos então em uma discussão capaz de nos trazer alguma evidência certos da proteção do mesmo Deus em tão arriscada viagem Ora essas duas verdades que Deus existe e que todos os bens vêm dele nós já admitimos com fé inabalável Entretanto nós as expusemos de tal forma que a terceira verdade também se torna plenamente evidente a saber que a vontade livre deve ser contada entre os bens recebidos de Deus II 48 AGOSTINHO Com efeito a discussão precedente já demonstra e nós o admitimos a natureza corpórea ser de grau inferior à natureza espiritual E daí se seguir que o espírito é um bem maior do que o corpo Ora entre os bens corpóreos encontrase no homem alguns de que ele pode abusar sem que por isso digamos que esses bens não lhe deveriam ter sido dados pois reconhecemos serem eles um bem Sendo assim o que há de espantoso que exista no espírito também abusos de alguns bens mas que por serem bens não puderam ter sido dados a não ser por Aquele de quem procedem todos os bens Com efeito vês que grande privação é para o corpo não ter as mãos e contudo acontece que há quem use mal das próprias mãos Realizam com elas ações cruéis ou vergonhosas Se visses uma pessoa sem pés afirmarias que lhe falta à integridade do corpo um bem muito valioso Entretanto aquele que se serve de seus pés para prejudicar ao próximo ou se avilta a si mesmo estaria usando mal de seus pés Negarias isso Filosofia antropologia e ética 105 Com os olhos vemos esta luz do dia e distinguimos as diversas formas corporais São eles elementos de máxima beleza em nosso corpo Assim estão eles colocados como no ápice em tributo à sua dignidade Seu uso contribui para salvaguardar o homem e trazerem eles à nossa vida muitas vantagens Entretanto muitos se servem deles para praticarem grande número de ações vergonhosas e obrigamnos a servir às suas paixões Ora compreendes quão precioso bem falta ao rosto quando lhe faltam os olhos Todavia se eles existem quem nolos deu a não ser Deus o dispensador de todos os bens Por conseguinte do mesmo modo como aprovas a presença desses bens no corpo e que sem considerar os que eles abusam louvas o doador de igual modo deve ser quanto à vontade livre sem a qual ninguém pode viver com retidão Deves reconhecer que ela é um bem e um dom de Deus e que é preciso condenar aqueles que abusam desse bem em vez de dizer que o doador não deveria têlo dado a nós 4 O MAL ORIGINASE DA DEFICIÊNCIA DO LIVREARBÍTRIO II 54 AGOSTINHO Com efeito não pode existir realidade alguma que não venha de Deus De fato em todas as coisas nas quais notares que há medida número e ordem não hesites em atribuílas a Deus como seu autor Aliás a um ser ao qual tiveres retirado completamente esses três elementos nele nada restará absolutamente Porque mesmo se nele permanecesse um começo qualquer de perfeição desde que aí não encontres mais a medida nem o número nem a ordem visto que em toda parte onde se encontrarem esses três elementos existe a perfeição plenamente realizada tu deverias retirar mesmo um início de perfeição que parecesse até ser apenas certa matéria oferecida ao artífice para que trabalhe com ela e a aperfeiçoe Porque se a perfeição em sua realização completa é um bem o começo dessa perfeição já é certo Filosofia antropologia e ética 106 bem Assim se acontecesse a supressão total do bem o que restaria não é um quase nada mas sim um absoluto nada Ora todo bem procede de Deus Não há de fato realidade alguma que não proceda de Deus Considera agora de onde pode proceder aquele movimento de aversão que nós reconhecemos constituir o pecado sendo ele movimento defeituoso e todo defeito vindo do nãoser não duvides de afirmar sem hesitação que ele não procede de Deus Tal defeito porém sendo voluntário está posto sob nosso poder Porque se de fato o temeres é preciso não o querer e se não o quiseres ele não existirá Haverá pois segurança maior do que te encontrares em uma vida onde nada pode te acontecer quando não o queiras Mas é verdade que o homem que cai por si mesmo não pode igualmente se reerguer por si mesmo tão espontaneamente 5 A PRESCIÊNCIA DIVINA E O LIVREARBÍTRIO III 4 EVÓDIO Assim sendo sintome sumamente preocupado com uma questão como pode ser que pelo fato de Deus conhecer antecipadamente todas as coisas futuras não venhamos nós a pecar sem que isso seja necessariamente De fato afirmar que qualquer acontecimento possa se realizar sem que Deus o tenha previsto seria tentar destruir a presciência divina com desvairada impiedade É porque se Deus sabia que o primeiro homem havia de pecar o que deve concordar comigo todo aquele que admite a presciência divina em relação aos acontecimentos futuros se assim se deu eu não digo que por isso ele não devesse ter criado o homem pois o criou bom e o pecado em nada pode prejudicar a Deus Além do que depois de Deus ter manifestado toda a sua bondade criandoo manifestou sua justiça punindo o pecado e ainda sua grande misericórdia salvandoo Desse modo não digo que ele não devia ter criado o homem mas já que previra seu pecado como futuro afirmo Filosofia antropologia e ética 107 que isso devia inevitavelmente realizarse Como pois pode existir uma vontade livre onde é evidente uma necessidade tão inevitável III 5 AGOSTINHO Insististe com veemência Que a misericórdia de Deus nos venha em ajuda e abra a porta a nós que nela batemos Contudo eu acreditaria facilmente que se os homens em sua maioria são atormentados por essa questão o único motivo é que eles não procuram a solução com piedade E estão mais prontos a se desculparem do que a se acusarem de seus pecados Com efeito alguns admitem de bom grado que nenhuma Providência divina preside as coisas humanas E assim abandonando ao destino sua alma e corpo entregamse a toda espécie de vícios que os golpeiam e despedaçam Negando os julgamentos de Deus e menosprezando os dos homens creem livrarse dos que os acusam apelando para a proteção da sorte Acostumaramse a representar essa sorte pintandoa como pessoa cega Assim pensam ter eles mesmos mais valor do que ela pela qual se creem governados Ou então confessam partilhar sua cegueira ao sentir e falar dessa maneira Poderseia sem absurdo conceder a tais pessoas que todas as suas atividades são uma sequência de acasos visto que caem em cada uma de suas ações Contra essa opinião porém cheia de erros loucos e insensatos creio que já tratamos suficientemente em nosso segundo diálogo Há outras pessoas que sem ousar negar que a Providência de Deus governa a vida humana preferem crer entretanto por erro ímpio que essa Providência é impotente injusta até mesmo má Isso ao invés de confessarem os seus próprios pecados com piedade suplicante Não obstante se todas essas pessoas se deixassem persuadir pensando no melhor dos Seres o mais justo e poderoso creriam que a bondade a justiça e o poder de Deus são bem maiores e mais elevados do que todas as concepções do próprio espírito E sem conceber orgulho algum por suas descobertas nem perturbação alguma diante do que lhes falta entender tornarseiam Filosofia antropologia e ética 108 pela ciência mais aptas à contemplação E reconhecendo sua ignorância mais pacientes para tentar novas investigações III 6 AGOSTINHO Com efeito eis o que é causa de preocupação e admiração como não admitir contradição e repugnância no fato de Deus por um lado prever todos os acontecimentos futuros e por outro nós pecarmos por livre vontade e não por necessidade Tu dizes realmente se Deus prevê o pecado do homem este há de pecar necessariamente Ora se isso é necessário não há portanto decisão voluntária no pecado mas sim irrecusável e imutável necessidade E desse raciocínio receias precisamente chegarmos a uma das duas seguintes conclusões ou negar em Deus impiamente a presciência de todos os acontecimentos futuros ou bem caso não possamos negálo de admitir que pecamos não voluntária mas necessariamente Mas haverá outro motivo de tua perplexidade EVÓDIO Não nada mais no momento AGOSTINHO Então tudo o que Deus prevê acontece ao teu parecer necessariamente e não de modo voluntário ao homem EVÓDIO É bem essa a minha opinião AGOSTINHO Desperta enfim e após refletir um pouco dentro de ti dizeme se puderes que tipo de atos de vontade terás amanhã o de pecar ou de agir corretamente EVÓDIO Não o sei AGOSTINHO O que dizes E Deus mesmo pensarás que também o ignora EVÓDIO Nunca pensaria isso AGOSTINHO Logo se ele conhece qual deve ser a tua vontade de amanhã igualmente prevê qual a vontade de todos os homens quer os existentes quer os que virão a existir Com maior razão prevê sua própria conduta em relação aos justos e aos ímpios Filosofia antropologia e ética 109 EVÓDIO Certamente se digo que Deus tem a presciência de minhas ações direi com maior segurança que ele também tem a presciência das suas próprias e assim prevê com absoluta certeza o que fará AGOSTINHO Ora acaso tu não temes dizer que Deus fará também todas as suas obras por necessidade e não voluntariamente visto haver de acontecer tudo o que Deus prevê necessária e não livremente EVÓDIO Ao dizer que todos os acontecimentos previstos por deus acontecem necessariamente eu tinha só em mente aqueles que acontecem com os seres criados e não os que acontecem com ele mesmo Com efeito esses na realidade não acontecem pois são eternos AGOSTINHO Então Deus não atua sobre as suas criaturas EVÓDIO Ele estabeleceu uma vez por todas como deve decorrer a ordem do universo que criou e nada dispõe com novo querer AGOSTINHO Acaso não cria o Criador ninguém feliz EVÓDIO Certamente o cria AGOSTINHO E ele o faz por certo no momento em que essa pessoa se torna feliz EVÓDIO Assim é AGOSTINHO Se pois por exemplo tu deves te tornar feliz daqui a um ano só será daqui a um ano que serás feliz EVÓDIO Sim AGOSTINHO Nesse caso Deus prevê hoje o que farás daqui a um ano EVÓDIO Sempre o previu e ainda agora o prevê E admito que assim deve suceder no futuro III 7 AGOSTINHO Peçote que me digas não és tu uma criatura de Deus e a tua felicidade não há de se realizar em ti EVÓDIO Por certo eu sou não só sua criatura como é em mim mesmo que se realizará a minha felicidade Filosofia antropologia e ética 110 AGOSTINHO Mas então não será voluntária mas necessariamente que a tua felicidade realizarseá em ti por disposição de Deus EVÓDIO A vontade de Deus constitui para mim uma necessidade AGOSTINHO Então serás feliz contra tua vontade EVÓDIO Ah Se estivesse em meu poder o ser feliz sem dúvida alguma eu o seria desde agora E se não o sou é porque não sou eu mas ele que me torna feliz AGOSTINHO De modo maravilhoso a verdade se manifestou por tua voz Pois não poderias de fato encontrar nada que esteja em nosso poder senão aquilo que fazemos quando o queremos Eis por que nada se encontra tão plenamente em nosso poder do que a própria vontade Pois esta desde que o queiramos sem demora estará disposta à execução Assim podemos muito bem dizer não envelhecemos voluntariamente mas por necessidade Ou não morremos voluntariamente mas por necessidade E outras coisas semelhantes Contudo que não queiramos voluntariamente aquilo que queremos quem mesmo em delírio ousaria afirmar tal coisa É porque ainda que Deus preveja as nossas vontades futuras não se segue que não queiramos algo sem vontade livre Pois ao dizer a respeito da felicidade que tu não te tornas feliz por ti mesmo disseste isso como se talvez o tivesse negado Ora o que eu disse foi quando chegares a ser feliz tu não o serás contra a tua vontade mas sim querendoo livremente Pois se Deus prevê tua felicidade futura e nada te pode acontecer senão o que ele previu visto que caso contrário não haveria presciência Todavia não estamos obrigados a admitir a opinião totalmente absurda e muito afastada da verdade que tu poderás ser feliz sem o querer Ora a vontade de ser feliz que terás quando começares a sêlo certamente não te é tirada pela presciência de Deus que já desde hoje voltase com certeza sobre tua felicidade futura Assim também a vontade culpável se acaso estiver em ti não deixará de ser vontade livre pelo fato de ter Deus previsto a existência futura dela Filosofia antropologia e ética 111 III 8 AGOSTINHO Considera agora eu te rogo com quanta cegueira dizem se Deus previu minha vontade futura visto que nada pode acontecer senão o que ele previu é necessário que eu queria o que ele previu Ora se isso fosse necessário não seria mais voluntariamente que eu quis forçoso é reconhecêlo mas por necessidade Ó insólita loucura Pois como não pode acontecer nada senão o que foi previsto por Deus a vontade da qual ele previu a existência futura é vontade livre Desprezo igualmente outra afirmação monstruosa como a que acabo de atribuir àquele mesmo opositor que diz é necessário que eu queira de determinado modo Pois por aí pelo fato de essa pessoa supor a necessidade de querer de certo modo ela tenta eliminar a mesma vontade livre Já que lhe é inevitável querer dessa maneira de onde tirará ela o seu querer visto que não haverá mais o ato livre da vontade E se esse homem afirmar que não quis dizer isso contudo ao dizer que visto haver necessidade de querer a vontade não possui mais aquele seu poder de liberdade então poderá ele ser refutado com o que tu mesmo respondeste quando te perguntei se era contra tua vontade que havias de ter tornar feliz Com efeito respondesteme que serias logo feliz se tivesse tal poder porque tinhas a vontade mas não a possibilidade conforme disseste Ao que eu acrescentei que essa era a exclamação mesma da verdade provinda da tua voz Realmente não podemos negar que algo não está em nosso poder quando aquilo que queremos não se encontra à nossa disposição Entretanto quando queremos se a própria vontade nos faltasse evidentemente não o quereríamos Mas se por impossível acontecer que queiramos sem o querer está claro que a vontade não falta a quem quer E nada mais está tanto em nosso poder quanto temos à nossa disposição o que queremos Consequentemente nossa vontade sequer seria mais vontade se não estivesse em nosso poder Ora por isso mesmo por ela estar em nosso poder é que ela é livre Filosofia antropologia e ética 112 para nós Pois é claro que aquilo que não é livre para nós é o que não está em nosso poder ou que não se encontra à nossa disposição Eis por que sem negar que Deus prevê todos os acontecimentos futuros entretanto nós queremos livremente aquilo que queremos Porque se o objeto da presciência divina é a nossa vontade é essa mesma vontade assim prevista que se realizará Haverá pois um ato de vontade livre já que Deus vê esse ato livre com antecedência E por outro lado não seria ato de nossa vontade se ele não devesse estar em nosso poder Portanto Deus também previu esse poder Logo essa presciência não me tira o poder Poder que me pertencerá tanto mais seguramente quanto mais a presciência daquele que não pode se enganar previu que me pertenceria EVÓDIO Eis que agora não nego mais antes admito que tudo o que Deus previu acontece necessariamente Mas se ele previu os nossos pecados foi de tal forma que haveríamos de guardar nossa vontade E esta não deixa de ser livre e estar sempre posta sob nosso poder III 9 AGOSTINHO O que então te embaraça ainda Talvez esqueceste as conclusões de nosso primeiro diálogo e por isso negas que sem sermos forçados por ninguém nem por agente superior nem por inferior nem por igual não pecamos senão por nossa própria vontade EVÓDIO Não ouso negar nenhuma dessas verdades Entretanto confesso que não vejo ainda como não se contradizem estes dois fatos a presciência divina de nossos pecados e a nossa liberdade de pecar Porque enfim Deus é justo É preciso reconhecêlo E ele prevê tudo Mas quisera saber em virtude de que justiça ele castiga os pecados que não podem deixar de acontecer Ora como o que ele previu não pode deixar de acontecer necessariamente como não se há de atribuir ao Criador o que em suas criaturas inevitavelmente acontece Filosofia antropologia e ética 113 III 10 AGOSTINHO Conforme teu parecer de onde vem a oposição a nosso livrearbítrio em face à presciência de Deus Da presciência ou do caráter divino dessa presciência EVÓDIO Sobretudo por ser presciência de Deus AGOSTINHO Então se fosses tu a prever com alguma certeza que alguém haveria de pecar não seria necessariamente que ele haveria de pecar EVÓDIO Ao contrário seria necessário que ele viesse a pecar De outra maneira minha previsão não seria uma presciência por não se referir a fatos verídicos AGOSTINHO Nesse caso se as coisas previstas acontecem necessariamente não é porque a presciência é de Deus mas somente porque há uma presciência Porque se a coisa prevista não fosse certa não haveria presciência EVÓDIO De acordo mas aonde tudo isso nos levará AGOSTINHO Se não me engano não se segue da tua previsão que tu forçarias a pecar aquele de quem previste que haveria de pecar nem a tua presciência mesma o forçaria a pecar Ainda que sem dúvida ele houvesse de pecar pois de outra forma não terias tido a presciência desse acontecimento futuro Assim também não há contradição a que saibas por tua presciência o que outro realizará por sua própria vontade Assim Deus sem forçar ninguém a pecar prevê contudo os que hão de pecar por própria vontade III 11 AGOSTINHO Por que pois como justo juiz não puniria ele os atos que sua presciência não forçou a cometer Porque assim como tu ao lembrares os acontecimentos passados não os força a se realizarem assim Deus ao prever os acontecimentos futuros não os força E assim como tens lembrança de certas coisas que fizeste todavia não fizeste todas as coisas de que te lembras do mesmo modo Deus prevê tudo de que ele mesmo é o autor sem contudo ser o autor de tudo o que prevê Mas dos atos maus de que não é o autor ele é o justo punidor Filosofia antropologia e ética 114 Compreende destarte com que justiça Deus pune os pecados pois ainda que os sabendo futuros ele não é quem os faz Porque se não tivesse de castigar os pecadores porque prevê os seus pecados ele não teria tampouco de recompensar os que procedem bem Visto que não deixa de prever tampouco as suas boas ações Reconheçamos pois pertencer à sua presciência o fato de nada ignorar dos acontecimentos futuros E também visto o pecado ser cometido voluntariamente ser próprio de sua justiça julgálo e não deixar que seja cometido impunemente já que a sua presciência não os forçou a serem cometidos 6 TUDO CONTRIBUI PARA A ORDEM UNIVERSAL III 32 AGOSTINHO Deus é pois o Criador de todas as naturezas não somente daquelas que haviam de perseverar na virtude e na justiça como daquelas que haveriam de pecar Estas Deus as criou não para que pecassem mas para que acrescentassem algo à beleza do universo quer consentindo quer não ao pecado Se aqueles seres espirituais que ocupam o cume da ordem universal tivessem falhado e aceitado pecar o universo terseia enfraquecido e deteriorado e algo de grande teria faltado à criação Pois faltaria aquilo cuja ruína perturbaria o equilíbrio e a harmonia dos seres Tais são aquelas criaturas tão excelentes santas e sublimes potestades celestes ou supracelestes das quais só Deus é o Senhor e ao qual o mundo inteiro está submetido Sem a função delas cheia de justiça e de perfeição nosso universo não subsistiria Do mesmo modo aquelas outras criaturas que podem pecar ou não no caso de não existirem a ordem do universo não se alteraria Nesse caso entretanto muito de considerável teria faltado Posto que com efeito são almas racionais por certo dessemelhantes por suas funções daqueles espíritos superiores mas igualandoos em sua natureza Filosofia antropologia e ética 115 E abaixo delas há ainda muitos outros graus de ser que sendo obras do Deus supremo permanecem dignas de louvor 7 CONCLUSÃO NADA PODE PERTURBAR O GOVERNO DE DEUS SOBRE O UNIVERSO III 35 AGOSTINHO Donde se segue esta conclusão a criatura corpórea até a de condição mais ínfima não estaria privada de beleza singularíssima mesmo no caso de o homem não ter querido pecar Com efeito quem pode governar o todo pode também governar uma parte Não se segue porém que aquele que pode menos possa algo mais Assim por exemplo um médico pode ser competente para curar eficazmente qualquer doença da pele Entretanto não se segue que aquele médico que trata com sucesso tais males necessariamente cure toda espécie de doenças no homem Na verdade a razão pode perceber uma ideia certa que faça ver com evidência que deve existir uma criatura que nunca tenha pecado e nunca houvesse de pecar jamais e essa mesma razão pode mostrar também outra verdade que essa criatura abstémse de pecar por sua livre vontade e isso sem ser forçada por necessidade alguma mas por si mesma E mesmo se ela pecasse ainda que de fato não o tenha feito como Deus o previu apesar de tudo bastaria a autoridade divina cujo poder é inefável para governar todo este universo de modo que dando a cada um o que lhe convém e é devido Ele não haveria de tolerar em todo seu domínio nada de disforme ou indecoroso 8 TODO SER É BOM O MAL É UMA PRIVAÇÃO III 36b AGOSTINHO Toda natureza que pode tornarse menos boa todavia é boa De fato ou bem a corrupção não lhe é nociva e nesse Filosofia antropologia e ética 116 caso ela é incorruptível ou bem a corrupção atingea e então ela é corruptível Vem a perder a sua perfeição e tornase menos boa Caso a corrupção a privar totalmente de todo bem o que dela restará não poderá mais se corromper não tendo mais bem algum cuja corrupção a possa atingir e assim prejudicála Por outro lado aquilo que a corrupção não pode prejudicar também não pode se corromper e assim esse ser será incorruptível Pois eis algo totalmente absurdo uma natureza tornarse incorruptível por sua própria corrupção Por isso se diz com absoluta verdade que toda natureza enquanto tal é boa Mas se ela for incorruptível será melhor do que a corruptível E se ela for corruptível já que a corrupção não pode atingila senão tornandoa menos boa ela é indubitavelmente boa Ora toda natureza ou é corruptível ou incorruptível Portanto toda natureza é boa QUESTÕES PARA ESTUDO INDIVIDUAL DO TEXTO QUESTÃO 1 Explique a noção agostiniana da boa vontade QUESTÃO 2 Explique as seguintes teses de Agostinho a Só Deus é mais nobre do que a razão humana b Nem o superior nem o inferior podem determinar a razão humana c Apenas a vontade e o livre arbítrio podem tornar a mente cúmplice da paixão Filosofia antropologia e ética 117 QUESTÃO 3 Explique a afirmação abaixo Em seguida compare as ideias de Agostinho e de Pascal no que diz respeito à distinção entre o homem e os animais Só quando a razão domina a todos os movimentos da alma o homem deve se dizer perfeitamente ordenado Porque não se pode falar de ordem justa sequer simplesmente de ordem onde as coisas melhores estão subordinadas às menos boas QUESTÃO 4 Explique a concepção agostiniana da felicidade Por que afinal há pessoas infelizes Compare esse ponto de vista com a discussão freudiana sobre a felicidade QUESTÃO 5 Explique a noção de mal moral discutida por Agostinho QUESTÃO 6 Explique a noção de livre arbítrio formulada por Agostinho Por que afinal temos livre arbítrio Não seria melhor não tê lo QUESTÃO 7 A partir da noção de livre arbítrio o que é o mal Por que ele existe Como a existência do mal se relaciona com a presciência divina Filosofia antropologia e ética 118 QUESTÃO 8 Confronte a ideia agostiniana de livre arbítrio com a a distinção marxista de consciência de si e conhecimento de si e b com a noção freudiana de inconsciente Filosofia antropologia e ética 119 TEXTO 11 A MORALIDADE DAS AÇÕES HUMANAS ÉTICA POLÍTICA E RELIGIÃO Immanuel Kant 1724 1804 KANT Immanuel A religião nos limites da simples razão Covilhã LusoSofia 2008 p 110119 Primeira Seção Disponível em httpwwwlusosofianettextoskantimmanuelreligiaolimitessimplesrazaopdf Data da consulta 28 jul 2020 PRIMEIRA SEÇÃO REPRESENTAÇÃO FILOSÓFICA DO TRIUNFO DO PRINCÍPIO BOM SOB A FORMA DE FUNDAÇÃO DE UM REINO DE DEUS NA TERRA I DO ESTADO DE NATUREZA ÉTICO Um estado civil de direito político é a relação dos homens entre si enquanto estão comunitariamente sob leis de direito públicas que são no seu todo leis de coação Um estado civil ético é aquele em que os homens estão unidos sob leis não coativas isto é sob simples leis de virtude Ora assim como ao primeiro se contrapõe o legal estado de natureza mas nem por isso sempre conforme ao direito isto é o estado de natureza jurídico assim se distingue do último o estado de natureza ético Em ambos cada homem proporciona a si mesmo a lei Filosofia antropologia e ética 120 e não há nenhuma lei externa a que ele se reconheça submetido juntamente com todos os outros Em ambos cada homem é o seu próprio juiz e não há nenhuma autoridade pública detentora de poder que segundo leis determine com força de direito o que nos casos que se apresentam é dever de cada um e leve tal dever a geral execução Numa comunidade política já existente todos os cidadãos políticos como tais se encontram no entanto no estado de natureza ético e estão autorizados a nele permanecer com efeito seria uma contradição in adiecto que a comunidade política tivesse de forçar os seus cidadãos a entrar numa comunidade ética pois esta última já no seu conceito traz consigo a liberdade quanto a toda a coação Toda a comunidade política pode decerto desejar que nela se encontre também um domínio sobre os ânimos segundo leis de virtude pois onde os seus meios de coação não chegam porque o juiz humano não pode perscrutar o interior dos outros homens ali operariam o requerido as disposições de ânimo virtuosas Mas ai do legislador que pela boa ação pretendesse levar a cabo uma constituição orientada para fins éticos Efetivamente produziria assim não só o contrário da constituição ética mas também minaria e tornaria insegura a sua constituição política O cidadão da comunidade política permanece pois plenamente livre no que toca à competência legisladora da última quer queira além disso ingressar numa união ética com outros concidadãos quer pretenda antes permanecer no estado de natureza desta índole No entanto só na medida em que uma comunidade ética tem de se fundar em leis públicas e conter uma constituição que nelas se funda os que livremente se associam para ingressar em tal estado terão não de se deixar ordenar pelo poder político como devem dispor ou não dispor interiormente tais leis mas sim tolerar restrições a saber relativamente à condição de que nada exista na comunidade ética que esteja em conflito com o dever dos seus membros como cidadãos do Estado embora se a primeira vinculação é de índole genuína de nenhum modo há que preocuparse do último Filosofia antropologia e ética 121 Além disso visto que os deveres de virtude dizem respeito a todo o gênero humano o conceito de uma comunidade ética está sempre referido ao ideal de uma totalidade de todos os homens e nisso se distingue do de uma comunidade política Por conseguinte uma multidão de homens unidos nesse propósito não pode todavia chamarse a própria comunidade ética mas somente uma sociedade particular que tende para a unanimidade com todos os homens inclusive com todos os seres racionais finitos a fim de erigir um todo ético absoluto de que toda a sociedade parcial é apenas uma representação ou um esquema porque cada uma em relação com as outras deste tipo pode por seu turno representarse como encontrandose no estado de natureza ético com todas as imperfeições do mesmo como acontece também com diversos Estados políticos que não se encontram em nenhuma ligação por meio de um público direito das gentes II O HOMEM DEVE SAIR DO ESTADO DE NATUREZA ÉTICO PARA SE TORNAR MEMBRO DE UMA COMUNIDADE ÉTICA Assim como o estado de natureza jurídico é um estado de guerra de todos contra todos assim também o estado de natureza ético é um estado de incessante assédio pelo mal que se encontra no homem e ao mesmo tempo em todos os outros os quais como acima se assinalou corrompem uns aos outros e de modo mútuo a sua disposição moral e inclusive na boa vontade de cada um em particular em virtude da ausência de um princípio que os una como se fossem instrumentos do mal se afastam do fim comunitário do bem e se põem uns aos outros em perigo de cair de novo sob o domínio do mal Ora bem assim com o estado de uma liberdade externa desprovida de lei brutal e de uma independência em relação a leis coativas constitui um estado de injustiça e de guerra de todos contra todos de que o homem deve sair para ingressar num estado Filosofia antropologia e ética 122 civil político1 assim o estado de natureza ético é um público assédio recíproco dos princípios de virtude e um estado de interna amoralidade de que o homem natural se deve logo que possível aprontar a sair Temos pois aqui um dever de índole peculiar não dos homens para com homens mas do gênero humano para consigo mesmo Toda a espécie de seres racionais está objetivamente determinada na ideia ao fomento do bem supremo como bem comunitário Mas porque o supremo bem moral não é realizado apenas mediante o esforço da pessoa singular em ordem à sua própria perfeição moral mas exige uma união das pessoas num todo em vista do mesmo fim em ordem a um sistema de homens bem intencionados no qual apenas e graças à sua unidade se pode realizar o bem moral supremo e por outro lado a ideia de semelhante todo como república universal segundo leis de virtude é uma ideia completamente diversa de todas as leis morais que concernem àquilo que pelo que sabemos está em nosso poder a saber a atuar em vista de um todo a cujo respeito não podemos saber se ele está como tal também em nosso poder por isso este dever quanto à 1 A proposição de Hobbes status hominum naturalis est bellum omnium in omnes não tem nenhum outro defeito a não ser o de que deveria dizer est status belli etc mas embora não se admita que entre os homens que não se encontram sob leis externas e públicas dominem sempre efetivas hostilidades contudo o seu estado status iuridicus isto é a relação em e pela qual eles são susceptíveis de direitos da sua aquisição ou conservação é um estado em que cada qual quer ele próprio ser juiz sobre o que é o seu direito frente a outros mas não tem por parte dos outros nenhuma segurança quanto a isto nem ele a concede aos outros a não ser cada um a sua própria força é um estado de guerra em que todos devem constantemente estar armados contra todos A segunda proposição de Hobbes exeundum esse e statu naturali é uma consequência da primeira pois este estado é uma lesão contínua dos direitos de todos os outros por meio da pretensão de ser juiz nos seus próprios afazeres e não deixar a outros homens nenhuma segurança acerca do que é seu mas apenas o seu próprio arbítrio Filosofia antropologia e ética 123 índole e ao princípio é diferente de todos os outros Suspeitarseá já de antemão que este dever necessitará do pressuposto de uma outra ideia a saber da de um ser moral superior mediante cuja universal organização as forças por si insuficientes dos particulares são unidas em vista de um efeito comum Mas antes de mais temos de seguir o fio condutor daquela necessidade moral e ver aonde nos conduz III O CONCEITO DE UMA COMUNIDADE ÉTICA E O CONCEITO DE UM POVO DE DEUS SOB LEIS ÉTICAS Se houver de se realizar uma comunidade ética então todos os particulares se devem submeter a uma legislação pública e todas as leis que os ligam se devem olhar como mandamentos de um legislador comunitário Ora se a comunidade a fundar tivesse de ser uma comunidade jurídica então a própria multidão que se congrega num todo é que deveria ser o legislador das leis constitucionais porque a legislação brota do princípio restringir a liberdade de cada um às condições sob as quais pode coexistir com a liberdade de todos os outros segundo uma lei geral2 e portanto neste caso a vontade geral institui uma coação externa legal Mas se a comunidade deve ser uma comunidade ética então não há que considerar o próprio povo como legislador Pois em semelhante comunidade todas as leis estão em rigor ordenadas a fomentar a moralidade das ações que é algo de interior por conseguinte não pode estar sob leis humanas públicas já que pelo contrário estas últimas o que constituiria uma comunidade jurídica estão ordenadas unicamente à legalidade das ações que surge diante dos olhos e não à moralidade interior de que unicamente aqui se fala Por conseguinte importa haver alguém diferente do povo que para uma comunidade ética se possa aduzir como publicamente legislador No entanto leis éticas não se podem pensar como só provenientes originariamente da vontade 2 Tal é o princípio de todo o direito externo Filosofia antropologia e ética 124 desse ser superior como estatutos que porventura não poderiam ser obrigatórios sem que uma ordem tenha antes sido publicada porque então não seriam leis éticas e o dever a elas conforme não seria virtude livre mas dever jurídico susceptível de coação Portanto só pode conceberse como legislador supremo de uma comunidade ética um ser relativamente ao qual todos os verdadeiros deveres portanto também os éticos3 se hão de representar ao mesmo tempo como mandamentos seus o qual por isso deve igualmente ser um conhecedor dos corações para penetrar no mais íntimo das disposições de ânimo de cada qual e como deve acontecer em toda a comunidade proporcionar a cada um aquilo que os seus atos merecem Mas este é o conceito de Deus como soberano moral do mundo Por conseguinte uma comunidade ética só pode pensarse como um povo sob mandamentos divinos isto é como um povo de Deus e claro está de acordo com leis de virtude Poderia decerto conceberse também um povo de Deus segundo leis estatutárias isto é segundo leis em cuja observância não se trata da moralidade mas apenas da legalidade das ações tal povo seria uma comunidade jurídica de que Deus seria certamente o legislador portanto a sua constituição seria teocracia mas homens como sacerdotes que dele receberam imediatamente os seus mandatos 3 Logo que algo se reconhece como dever ainda que seja um dever imposto pelo simples arbítrio de um legislador humano é ao mesmo tempo mandamento divino obedecerlhe As leis civis estatutárias não podem sem dúvida chamarse mandamentos divinos mas se são justas a sua observância é simultaneamente mandamento divino A proposição Importa mais obedecer a Deus do que aos homens significa apenas que quando os últimos ordenam algo que em si é mau imediatamente contrário à lei moral não se lhes pode nem deve obedecer Mas inversamente se a uma lei civil política em si não imoral se opõe algo que se tem por lei divina estatutária há fundamento para considerar a última como espúria porque está em antagonismo com um dever claro e inclusive nunca pode autenticarse de modo suficiente que ela seja efetivamente mandamento divino para se estar autorizado a transgredir de harmonia com ela um dever aliás consistente Filosofia antropologia e ética 125 dirigiriam um governo aristocrático Mas semelhante constituição cuja existência e forma se alicerça inteiramente em fundamentos históricos não é a que constitui a tarefa da pura razão moralmente legisladora cuja solução unicamente aqui temos de realizar tal constituição será considerada na seção histórica como instituição segundo leis civis políticas cujo legislador embora seja Deus é no entanto externo ao passo que aqui temos a ver apenas com uma constituição cuja legislação é simplesmente interna de uma república sob leis de virtude isto é de um povo de Deus que seria diligente nas obras boas A tal povo de Deus pode contraporse a ideia de uma horda do princípio mau como união dos que são do seu partido em vista da extensão do mal ao qual importa não permitir que se leve a cabo aquela união se bem que também aqui o princípio que combate as disposições de ânimo virtuosas reside em nós mesmos e só figuradamente é representado como poder externo IV A IDEIA DE UM POVO DE DEUS SÓ É SOB ORGANIZAÇÃO HUMANA REALIZÁVEL NA FORMA DE UMA IGREJA A ideia sublime nunca plenamente alcançável de uma comunidade ética míngua muito em mãos humanas a saber para chegar a ser uma instituição que capaz em todo o caso de representar somente a forma daquela está no tocante aos meios de erigir semelhante todo muito restringida sob condições da natureza sensível do homem Mas como pode esperarse que de um lenho tortuoso se talhe algo de plenamente reto Instituir um povo de Deus moral é portanto uma obra cuja execução não se pode esperar dos homens mas somente do próprio Deus Contudo não é permitido ao homem estar inativo quanto a este negócio e deixar que a Providência atue como se a cada qual fosse permitido perseguir somente o seu interesse moral privado deixando a uma sabedoria superior o todo do interesse do gênero humano segundo a sua determinação moral Pelo contrário há de Filosofia antropologia e ética 126 proceder como se tudo dele dependesse e só sob esta condição pode esperar que uma sabedoria superior garantirá ao seu esforço bem intencionado a consumação O desejo de todos os bemintencionados é pois que o Reino de Deus venha que se faça a sua vontade na Terra mas que devem eles organizar para que isto lhes aconteça Uma comunidade ética sob a legislação moral divina é uma Igreja que na medida em que não é objeto algum de experiência possível se chama a Igreja invisível uma mera ideia da união de todos os homens retos sob o governo divino imediato mas moral do mundo tal como serve de arquétipo às que devem ser fundadas por homens A visível é a união efetiva dos homens num todo que concorda com aquele ideal Na medida em que toda a sociedade sob leis públicas traz consigo uma subordinação dos seus membros na relação dos que obedecem às suas leis com os que se atêm à observância das mesmas a multidão unida naquele todo a Igreja é a congregação sob os seus superiores que chamados também mestres ou pastores de almas administram somente os negócios do seu chefe invisível e se chamam conjuntamente a este respeito servidores da Igreja do mesmo modo que na comunidade política o chefe visível se denomina a si mesmo de vez em quando o supremo servidor do Estado embora não reconheça decerto acima de si nenhum homem em geral nem sequer a própria totalidade do povo A verdadeira Igreja visível é aquela que representa o reino moral de Deus na Terra tanto quanto isso pode acontecer através dos homens Os requisitos por conseguinte as notas características da verdadeira Igreja são os seguintes 1 A universalidade por conseguinte a sua unidade numérica deve em si conter a disposição para tal a saber embora dividida em opiniões contingentes e desunida encontrase apesar de tudo quanto ao fito essencial erigida sob princípios que devem necessariamente levála à universal unificação numa única Igreja portanto nenhuma divisão em seitas Filosofia antropologia e ética 127 2 A característica qualidade de tal Igreja isto é a pureza a união sob nenhuns outros motivos a não ser os morais Purificada da imbecilidade da superstição e da loucura do fanatismo 3 A relação sob o princípio da liberdade tanto a relação interna dos seus membros entre si como a externa da Igreja com o poder político ambas as coisas num Estado livre por conseguinte nem hierarquia nem iluminismo uma espécie de democracia mediante inspirações particulares que podem ser diferentes de outras segundo a cabeça de cada qual 4 A modalidade de tal Igreja a imutabilidade quanto à sua constituição com a reserva porém dos ordenamentos contingentes respeitantes só à administração da Igreja as quais podem mudar segundo o tempo e as circunstâncias embora ela tenha para tal de conter já a priori em si mesma na ideia do seu fim os princípios seguros Portanto sob leis originais como que prescritas publicamente por um código não sob símbolos arbitrários que por lhes faltar a autenticidade são contingentes expostos à contradição e mutáveis Filosofia antropologia e ética 128 TEXTO 12 LIBERDADE E FACTICIDADE A SITUAÇÃO JeanPaul Sartre 1905 1980 SARTRE JeanPaul O ser e o nada ensaio de ontologia fenomenológica Petrópolis Vozes 1997 pp 593602 Texto editado e simplificado para fins didáticos A divisão em seções aqui presente não existe no original 1 INTRODUÇÃO O argumento decisivo empregado pelo senso comum contra a liberdade consiste em nos lembrar de nossa impotência Longe de podermos modificar nossa situação ao nosso belprazer parece que não podemos modificarnos a nós mesmos Não sou livre nem para escapar ao destino de minha classe minha nação minha família nem sequer para construir meu poderio ou minha riqueza nem para dominar meus apetites mais insignificantes ou meus hábitos Nasço operário francês sifilítico hereditário ou tuberculoso A história de uma vida qualquer que seja é a história de um fracasso O coeficiente de adversidade das coisas é de tal ordem que anos de paciência são necessários para obter o mais ínfimo resultado E ainda é preciso obedecer à natureza para comandála ou seja inserir minha ação nas malhas do determinismo Bem mais do que parece fazerse o homem parece ser feito pelo clima e a terra a raça e a classe a língua a história da coletividade da qual participa a hereditariedade as circunstâncias individuais de sua infância os hábitos adquiridos os grandes e pequenos acontecimentos de sua vida Filosofia antropologia e ética 129 Este argumento nunca perturbou profundamente os adeptos da liberdade humana Descartes o primeiro deles reconhecia ao mesmo tempo que a vontade é infinita e que é preciso dominar mais a nós mesmos do que a sorte Pois convém fazer aqui certas distinções muitos dos fatos enunciados pelos deterministas não podem ser levados em consideração O coeficiente de adversidade das coisas em particular não pode constituir um argumento contra nossa liberdade porque é por nós ou seja pelo posicionamento prévio de um fim que surge o coeficiente de adversidade Determinado rochedo que demonstra profunda resistência se pretendo removêlo será ao contrário preciosa ajuda se quero escalálo para contemplar a paisagem Em si mesmo se for sequer possível imaginar o que ele é em si mesmo o rochedo é neutro ou seja espera ser iluminado por um fim de modo a se manifestar como adversário ou auxiliar Também só pode manifestarse dessa ou daquela maneira no interior de um complexoutensílio já estabelecido Sem picaretas e ganchos veredas já traçadas técnica de escalagem o rochedo não seria nem fácil nem difícil de escalar a questão não seria colocada e o rochedo não manteria relação de espécie alguma com a técnica do alpinismo Assim ainda que as coisas em bruto que Heidegger denomina existentes em bruto possam desde a origem limitar nossa liberdade de ação é nossa liberdade mesmo que deve constituir previamente a moldura a técnica e os fins em relação aos quais as coisas irão manifestarse como limites Mesmo se o rochedo se revela como muito difícil de escalar e temos de desistir da escalada observemos que ele só se revela desse modo por ter sido originariamente captado como escalável portanto é nossa liberdade que constitui os limites que irá encontrar depois Decerto após essas considerações permanece um residuum inominável e impensável que pertence ao Emsi considerado e faz com que em um mundo iluminado por nossa liberdade determinado rochedo seja mais propício à escalagem e aquele outro não Mas Filosofia antropologia e ética 130 longe de ser originariamente esse resíduo um limite da liberdade esta surge como liberdade graças a ele ou seja graças ao Emsi bruto enquanto tal 2 O CONCEITO DE LIBERDADE O senso comum com efeito concordará conosco o ser dito livre é aquele que pode realizar seus projetos Mas para que o ato possa comportar uma realização é preciso que a simples projeção de um fim possível se distinga a priori da realização deste fim Se bastasse conceber para realizar estaria eu mergulhado em um mundo semelhante ao do sonho no qual o possível não se distingue de forma alguma do real Ficaria condenado então a ver o mundo se modificar segundo os caprichos das alterações de minha consciência e não poderia praticar em relação à minha concepção a colocação entre parênteses e a suspensão do juízo que irão distinguir uma simples ficção de uma escolha real Aparecendo desde o momento em que é simplesmente concebido o objeto não seria nem escolhido nem desejado Abolida a distinção entre o simples desejo a representação que posso escolher e a escolha a liberdade desapareceria com ela Somos livres quando o termo último pelo qual fazemos anunciar a nós mesmos o que somos constitui um fim ou seja não um existente real como aquele que na suposição precedente viria a satisfazer nosso desejo mas sim um objeto que ainda não existe Mas em consequência este fim só pode ser transcendente caso esteja separado de nós ao mesmo tempo em que nos é acessível Somente um conjunto de existentes reais pode nos separar deste fim assim como este fim só pode ser concebido enquanto estado porvir dos existentes reais que dele me separam O fim nada mais é do que o esboço de uma ordem dos existentes ou seja o esboço de uma série de disposições a serem tomadas pelos existentes sobre o fundamento de suas relações atuais Filosofia antropologia e ética 131 Com efeito o Parasi devido à negação interna ilumina os existentes em suas relações mútuas por meio do fim que posiciona e projeta este fim a partir das determinações que capta ao existilo Não há círculo vicioso como vimos pois o surgimento do Parasi se efetua de uma só vez Mas sendo assim a ordem mesma dos existentes é indispensável à própria liberdade É por meio deles que a liberdade é separada do e reunida ao fim que persegue e lhe anuncia o que ela é De sorte que as resistências que a liberdade desvela no existente longe de constituir um perigo para ela nada mais fazem do que permitirlhe surgir como liberdade Só pode haver Parasi livre enquanto comprometido em um mundo resistente Fora deste comprometimento as noções de liberdade determinismo e necessidade perdem inclusive seu sentido É necessário além disso sublinhar com clareza contra o senso comum que a fórmula ser livre não significa obter o que se quis mas sim determinarse por si mesmo a querer no sentido lato de escolher Em outros termos o êxito não importa em absoluto à liberdade A discussão que opõe o senso comum aos filósofos provém de um malentendido o conceito empírico e popular de liberdade produto de circunstâncias históricas políticas e morais equivale à faculdade de obter os fins escolhidos O conceito técnico e filosófico de liberdade o único que consideramos aqui significa somente autonomia de escolha É preciso observar contudo que a escolha sendo idêntica ao fazer pressupõe um começo de realização de modo a se distinguir do sonho e do desejo Assim não diremos que um prisioneiro é sempre livre para sair da prisão o que seria absurdo nem tampouco que é sempre livre para desejar sua libertação o que seria um truísmo irrelevante mas sim que é sempre livre para tentar escapar ou fazer se libertar ou seja qualquer que seja sua condição ele pode projetar sua evasão e descobrir o valor de seu projeto por um começo de ação Nossa descrição da liberdade por não distinguir o escolher do fazer nos obriga a renunciar de vez à distinção entre intenção e Filosofia antropologia e ética 132 ato Não é possível separar o pensamento da linguagem que o exprime e assim como acontece de nossa palavra nos revelar nosso pensamento também nossos atos nos revelam nossas intenções ou seja nos permite desempenhálas esquematizálas tornálas objetos em vez de nos limitarmos a vivêlas ou seja a tomar delas uma consciência nãotética Esta distinção essencial entre liberdade de escolha e liberdade de obter foi percebida certamente por Descartes depois do estoicismo Coloca um ponto final em todas as discussões sobre querer e poder que ainda hoje opõem os defensores aos adversários da liberdade 3 O CONCEITO DE FACTICIDADE Nem por isso deixa de ser verdade o fato de que a liberdade encontra ou parece encontrar limites em virtude do dado transcendido ou nadificado por ela Mostrar que o coeficiente de adversidade da coisa e seu caráter de obstáculo unido a seu caráter de utensílio é indispensável à existência de uma liberdade corresponde a usar de um argumento como faca de dois gumes porque se nos permite estabelecer que a liberdade não é dirimida pelo dado indica por outro lado algo como um condicionamento ontológico da liberdade Não seria sensato dizer como certos filósofos contemporâneos sem obstáculo não há liberdade E como não podemos admitir que a liberdade cria por si mesma seu obstáculo o que é absurdo para quem tenha compreendido o que é uma espontaneidade parece haver aqui uma espécie de precedência ontológica do Emsi em relação ao Parasi É preciso pois considerar as observações anteriores como simples tentativas de aplanar as dificuldades e retomar desde o começo a questão da facticidade Estabelecemos que o Parasi é livre Mas isso não significa que seja seu próprio fundamento Se ser livre significasse ser seu próprio fundamento seria necessário que a liberdade decidisse sobre a existência de seu ser E tal necessidade pode ser entendida de duas Filosofia antropologia e ética 133 formas Em primeiro lugar seria preciso que a liberdade decidisse acerca de seu serlivre ou seja que fosse não somente escolha de um fim mas escolha de si mesma como liberdade Portanto haveria a pressuposição de que a possibilidade de serlivre e a possibilidade de não ser livre existiriam igualmente antes da livre escolha e uma delas ou seja antes da livre escolha da liberdade Mas uma vez que seria necessária então uma liberdade prévia que escolhesse ser livre ou seja no fundo que escolhesse ser o que já é seríamos remetidos ao infinito pois ela teria necessidade de outra liberdade anterior que a escolhesse e assim por diante De fato somos uma liberdade que escolhe mas não escolhemos ser livres estamos condenados à liberdade como dissemos atrás arremessados na liberdade ou como diz Heidegger em derrelição E vemos que tal derrelição não tem outra origem salvo a própria existência da liberdade Portanto se definimos a liberdade como escapar ao dado ao fato há um fato do escapar ao fato É a facticidade da liberdade Coincidimos aqui com as exigências do senso comum empiricamente só podemos ser livres em relação a tal estado de coisas e apesar deste Dirseá que sou livre em relação a tal estado de coisas quando este não me constrange Assim a concepção empírica e prática da liberdade é inteiramente negativa parte da consideração de uma situação e constata que esta situação me deixa livre para perseguir tal ou qual fim Poderíamos até dizer que esta situação condiciona minha liberdade no sentido de que está aí para não me constranger Eliminese a proibição de circular pelas ruas após o toque de recolher e que significação poderá ter para mim a liberdade conferida por exemplo por um salvoconduto de dar um passeio à noite1 1 Pela singularidade do exemplo voltamos a lembrar que o livro foi escrito na França ocupada pelos nazistas N do T Filosofia antropologia e ética 134 4 LIBERDADE É SER NO MEIO DO MUNDO Dissemos que a liberdade não é livre para não ser livre e que não é livre para não existir Isso porque com efeito o fato de não poder não ser livre é a facticidade da liberdade e o fato de não poder não existir é a sua contingência Contingência e facticidade se identificam há um ser cuja liberdade temdeser em forma do não ser ou seja da nadificação Existir como o fato da liberdade ou ter deser um ser no meio do mundo é a mesma coisa o que significa que a liberdade é originariamente relação com o dado Mas qual a relação com o dado Devese entender por isso que o dado Emsi condiciona a liberdade Vejamos melhor o dado não entra de forma alguma na constituição da liberdade pois esta se interioriza como negação interna do dado Simplesmente é a pura contingência que a liberdade nega fazendose escolha é a plenitude de ser que a liberdade colore de insuficiência e negatividade iluminandoa à luz de um fim que não existe é a liberdade mesmo na medida em que esta existe e que não importa o que faça não pode escapar à sua própria existência Assim por sua própria projeção rumo a um fim a liberdade constitui como ser no meio do mundo um datum Emsi dado particular que ela temdeser A liberdade não o escolhe pois isso seria escolher a própria existência mas pela escolha que faz de seu fim ela faz com que esse datum se revele dessa ou daquela maneira sob tal ou qual luz em conexão com a descoberta do mundo mesmo Assim a própria contingência da liberdade e o mundo que com sua contingência própria circunda tal contingência irão aparecer à liberdade somente à luz do fim que ela escolheu ou seja não enquanto existentes em bruto mas na unidade de iluminação de uma só nadificação Filosofia antropologia e ética 135 5 O CONCEITO DE SITUAÇÃO Denominaremos situação a contingência da liberdade no plenum de ser do mundo na medida em que esse datum que está aí somente para não constranger a liberdade só se revela a esta liberdade enquanto já iluminado pelo fim por ela escolhido Assim o datum jamais aparece ao Parasi como existente em bruto e Emsi ele se descobre sempre como motivo já que só se revela à luz de um fim que o ilumina Situação e motivação se identificam O Parasi se descobre comprometido no ser investido pelo ser ameaçado pelo ser descobre o estado de coisas que o circunda como motivo para uma reação de defesa ou de ataque Mas só pode fazer tal descoberta porque posiciona livremente o fim em relação ao qual o estado de coisas é ameaçador ou favorável Tais observações devem nos mostrar que a situação produto comum da contingência do Emsi e da liberdade é um fenômeno ambíguo no qual é impossível ao Parasi discernir a contribuição da liberdade e a do existente em bruto Com efeito assim como a liberdade é um escapar a uma contingência que ela temdeser para dela escapar também a situação é livre coordenação e livre qualificação de um dado em bruto que não se deixa qualificar de modo algum 6 CONCLUSÃO Eisme aos pés desse rochedo que me aparece como não escalável Significa que o rochedo me aparece à luz de uma escalada projetada projeto secundário que extrai seu sentido a partir de um projeto inicial que é meu sernomundo Assim o rochedo se destaca sobre fundo de mundo por efeito da escolha inicial de minha liberdade Mas por outro lado minha liberdade não pode decidir se o rochedo a escalar irá servir ou não à escalada Isso faz parte do ser em bruto do rochedo Filosofia antropologia e ética 136 Todavia o rochedo só pode manifestar sua resistência à escalada se for integrado pela liberdade em uma situação cujo tema geral é a escalada Para o simples viajante que atravessa a estrada e cujo livre projeto é pura ordenação estética da paisagem o rochedo não se mostra nem como escalável nem como nãoescalável manifestase somente como belo ou feio Assim é impossível determinar em cada caso particular o que procede da liberdade e o que procede do ser em bruto do Emsi O dado em si mesmo como resistência ou como ajuda só se revela à luz da liberdade projetante Mas a liberdade projetante organiza uma iluminação de tal ordem que o Emsi se mostra como é ou seja resistente ou favorável ficando bem entendido que a resistência do dado não é diretamente admissível como qualidade Emsi do dado mas somente como indicação através de uma livre iluminação e uma livre refração de um quid2 inapreensível Portanto é somente no e pelo livre surgimento de uma liberdade que o mundo desenvolve e revela as resistências que podem tornar irrealizável o fim projetado O homem só encontra obstáculo no campo de sua liberdade Melhor ainda é impossível decretar a priori o que procede do existente em bruto ou da liberdade no caráter de obstáculo deste ou daquele existente particular Aquilo que é obstáculo para mim com efeito não o será para outro Não há obstáculo absoluto mas o obstáculo revela seu coeficiente de adversidade através de técnicas livremente inventadas livremente adquiridas também o revela em função do valor do fim posicionado pela liberdade Esse rochedo não será um obstáculo se almejo a qualquer custo chegar ao alto da montanha irá me desencorajar ao contrário se livremente determinei limites ao meu desejo de fazer a escalada projetada Assim o mundo por coeficientes de adversidade me revela a maneira como me atenho aos fins a que me destino de sorte 2 Em latim um que alguma coisa N do T Filosofia antropologia e ética 137 que jamais posso saber se me fornece informação a seu ou a meu respeito Além disso o coeficiente de adversidade do dado jamais é simples relação com minha liberdade enquanto puro brotar nadificador é relação iluminada pela liberdade entre o datum que é o rochedo e o datum que minha liberdade temdeser ou seja entre o contingente que ela não é e sua pura facticidade Sendo igual o desejo de escalar o rochedo será fácil para um alpinista atlético difícil para outro novato mal treinado e de corpo franzino Mas o corpo por sua vez só se revela bem ou mal treinado em relação a uma escolha livre É porque estou aí e faço de mim o que sou que o rochedo desenvolve com relação a meu corpo um coeficiente de adversidade Para o advogado que permanece na cidade e defende uma causa com o corpo escondido sob sua toga o rochedo não é difícil nem fácil de escalar está fundido na totalidade mundo sem dela emergir de modo algum E em certo sentido sou eu quem escolhe meu corpo como franzino ao leválo a defrontarse com dificuldades que eu mesmo faço nascer alpinismo ciclismo esportes Se não escolhi praticar esportes se permaneço em cidades e se me ocupo exclusivamente de negócios ou trabalhos intelectuais meu corpo de forma alguma será qualificado por esse ponto de vista Assim começamos a entrever o paradoxo da liberdade não há liberdade a não ser em situação e não há situação a não ser pela liberdade A realidade humana encontra por toda parte resistências e obstáculos que ela não criou mas essas resistências e obstáculos só têm sentido na e pela livre escolha que a realidade humana é Filosofia antropologia e ética 138 PARA O ESTUDO INDIVIDUAL 1 Seu objetivo é entender ao ler inteiramente o texto o que os conceitos listados abaixo significam de acordo com o ponto de vista de Sartre Você deve ser capaz de explicálos com textos breves não se estendendo cada um deles por mais do que três linhas a Liberdade b Emsi c Parasi 2 Caso você não os conheça pesquise em um dicionário ou no Google o significado dos conceitos seguintes Alguns já são termos conhecidos mas possuem outros significados um pouco diversos daqueles com que normalmente os usamos no cotidiano Outros são conceitos filosóficos que você precisa compreender a A priori b Empírico c Coeficiente d Contingente e contingência e Fim f Possível e possibilidade g Real h Determinismo i Necessidade j Truísmo k Derrelição l Negativo m Constranger Filosofia antropologia e ética 139 QUESTÕES PARA ESTUDO INDIVIDUAL DO TEXTO QUESTÃO 1 De acordo com o senso comum existe liberdade Por quê QUESTÃO 2 Qual é a diferença entre a liberdade como obtenção do que se deseja e liberdade como autonomia de escolha QUESTÃO 3 Na versão do senso comum as contingências limitam a liberdade Para Sartre a liberdade é que configura as contingências O que isso quer dizer QUESTÃO 4 Comente a afirmação a escolha sendo idêntica ao fazer pressupõe um começo de realização de modo a se distinguir do sonho e do desejo QUESTÃO 5 O que significa afirmar que estamos condenados à liberdade QUESTÃO 6 O que significa afirmar que a concepção empírica e prática da liberdade é inteiramente negativa Filosofia antropologia e ética 140 A partir do que você leu no texto procure elaborar uma breve explicação para o termo nadificação empregado por Sartre QUESTÃO 7 Dado o contexto em discussão nesta disciplina como se pode interpretar a afirmação de Sartre segundo a qual no ser humano a existência precede a essência SARTRE O existencialismo é um humanismo Filosofia antropologia e ética 141 TEXTO 13 EICHMANN EM JERUSALÉM Hannah Arendt 19061975 ARENDT Hannah Eichmann em Jerusalém um relato sobre a banalidade do mal São Paulo Companhia das Letras 1999 CONTEXTUALIZAÇÃO PUBLICADA NA ORELHA DO LIVRO Na Casa da Justiça de Jerusalém o palco estava montado para um espetáculo de magnitude histórica as vítimas de ontem alçadas à condição de juízes do antigo carrasco Mais que um julgamento uma lição e uma advertência nada frearia a determinação do Estado judeu em capturar gente como Adolf Eichmann um dos arquitetos da solução final raptado num subúrbio de Buenos Aires por um comando israelense em maio de 1960 Tudo teria seguido como planejado se ao menos o curso do processo não tivesse produzido a mais bizarra desproporção quanto mais inflada a retórica da acusação quanto maior o horror dos testemunhos tanto mais se apagava e apequenava a figura do monstro na cabine de vidro O fato não escapou aos olhos da filósofa Hannah Arendt que assistia ao julgamento como correspondente da revista The New Yorker Esquivandose à paixão reinante ela pôde ver Eichmann em toda a sua mediocridade um arrivista de pouca inteligência uma nulidade pronta a obedecer a qualquer voz imperativa um funcionário incapaz de discriminação moral em suma um homem sem consistência própria em quem os clichês e eufemismos burocráticos faziam as vezes de caráter Filosofia antropologia e ética 142 Uma vítima portanto Longe disso não há sofisma capaz de apagar seu papel na deportação de miIhōes de judeus para os campos de extermínio nazistas O problema é que Eichmann descobre na própria mediocridade seu último trunfo como condenar um funcionário honesto e obediente cumpridor de metas que não fizera mais do que agir conforme a ordem legal vigente na Alemanha de então Orelha do livro TEXTO SUGERIDO POR HANNAH ARENDT COMO SENTENÇA A SER APLICADA A ADOLF EICHMANN Você admitiu que o crime cometido contra o povo judeu durante a guerra foi o maior crime na história conhecida e admitiu seu papel nele Mas afirmou nunca ter agido por motivos baixos que nunca teve inclinação de matar ninguém que nunca odiou os judeus que no entanto não podia ter agido de outra forma e que não se sente culpado Achamos isso difícil mesmo que não inteiramente impossível de acreditar existem algumas embora não muitas provas contra você nessa questão de motivação e consciência que podem ficar além de toda dúvida Você disse também que seu papel na Solução Final foi acidental e que quase qualquer pessoa poderia ter tomado seu lugar de forma que potencialmente quase todos os alemães são igualmente culpados O que você quis dizer foi que onde todos ou quase todos são culpados ninguém é culpado Essa é uma conclusão realmente bastante comum mas que não estamos dispostos a aceitar E se não entende nossa objeção recomendaríamos a sua atenção à história de Sodoma e Gomorra duas cidades bíblicas que foram destruídas pelo fogo do céu porque todo o povo delas havia se tornado igualmente culpado Isso incidentalmente tem a ver com a recémnascida ideia de culpa coletiva segundo a qual as pessoas são culpadas ou se sentem culpadas de coisas feitas em seu nome mas não por elas coisas de Filosofia antropologia e ética 143 que não participaram e das quais não auferiram nenhum proveito Em outras palavras culpa e inocência diante da lei são de natureza objetiva e mesmo que 8 milhões de alemães tivessem feito o que você fez isso não seria desculpa para você Felizmente não precisamos ir tão longe Você próprio não alegou a efetiva mas apenas a potencial culpa da parte de todos que vivem num Estado cujo principal propósito político se tornou a perpetração de crimes inauditos E a despeito das vicissitudes exteriores ou interiores que o levaram a se transformar em criminoso existe um abismo entre a realidade do que você fez e a potencialidade do que os outros poderiam ter feito Nós nos ocupamos aqui apenas com o que você fez e não com a natureza possivelmente não criminosa de sua vida interior e de seus motivos ou com as potencialidades criminosas daqueles a sua volta Você contou sua história como uma história de dificuldades e sabendo das circunstâncias estamos até certo ponto dispostos a admitir que em circunstâncias mais favoráveis é altamente improvável que você tivesse de comparecer perante nós ou perante qualquer outra corte criminal Suponhamos hipoteticamente que foi simplesmente a má sorte que fez de você um instrumento da organização do assassinato em massa mesmo assim resta o fato de você ter executado e portanto apoiado ativamente uma política de assassinato em massa Pois política não é um jardimdeinfância em política obediência e apoio são a mesma coisa E assim como você apoiou e executou uma política de não partilhar a Terra com o povo judeu e com o povo de diversas outras nações como se você e seus superiores tivessem o direito de determinar quem devia e quem não devia habitar o mundo consideramos que ninguém isto é nenhum membro da raça humana haverá de querer partilhar a Terra com você Esta é a razão e a única razão pela qual você deve morrer na forca Filosofia antropologia e ética 144 TEXTO 14 DE COMO FILOSOFAR É APRENDER A MORRER Michel de Montaigne 1533 1592 MONTAIGNE Michel de De como filosofar é aprender a morrer In MONTAIGNE Michel de Ensaios v1 São Paulo Nova Cultural 1996 p 92105 Os Pensadores Diz Cícero que filosofar não é outra coisa senão prepararse para a morte Isso talvez porque o estudo e a contemplação tiram a alma para fora de nós separamna do corpo o que em suma se assemelha à morte e constitui como que um aprendizado em vista dela Ou então é porque de toda sabedoria e inteligência resulta finalmente que aprendemos a não ter receio de morrer Em verdade ou nossa razão falha ou seu objetivo único deve ser a nossa própria satisfação e seu trabalho tender para que vivamos bem e com alegria como recomenda a Sagrada Escritura1 Todas as opiniões propõem que o prazer é a meta da vida mas diferem no que concerne aos meios de atingir o alvo E se assim não fosse as repeliríamos de imediato pois quem daria ouvido a alguém que apontasse na pena e no sofrimento os objetivos da existência A esse respeito as dissensões entre as seitas filosóficas são puro palavrório deixemos de lado essas sutilezas Sêneca em tais 1 E compreendi que não há felicidade para o homem a não ser a de alegrar se e fazer o em durante sua vida A Bíblia de Jerusalém Eclesiastes 3 12 Filosofia antropologia e ética 145 discussões entra mais obstinação e picuinha2 do que convém à ciência tão respeitável Mas em qualquer papel que se proponha desempenhar põe o homem um pouco de si mesmo3 Digam o que disserem na própria prática da virtude o fim visado é a volúpia E agradame repetir essa palavra que pronunciam constrangidos E se significa prazer supremo e extremada satisfação melhor se deva ela à virtude do que a qualquer outra coisa pois a volúpia robusta e viril é a mais seriamente voluptuosa E deveríamos chamála prazer denominação mais feliz e mais natural do que a de vigor que lhe damos Quanto à volúpia de ordem menos elevada se acreditam que mereça igual nome que o mantenham mas não com exclusividade Mais do que a virtude tem ela seus inconvenientes e seus momentos difíceis além de serem mais efêmeras as sensações que nos procura e mais fluidas e fugidias tem suas vigílias seus jejuns suas penas seu suor e sangue Paixões de toda sorte influem nela e redunda ela em tão pesada saciedade que equivale a uma penitência É erro nosso imaginar que tais inconvenientes a estimulam e a condimentam em razão dessa lei da natureza que afirma tudo se fortalecer ante o obstáculo encontrado e erro é também pensar que quando se trata de volúpia proveniente da virtude semelhantes dificuldades a acabrunham e a tornam austera e inacessível Ao contrário do que se verifica com a volúpia na prática da virtude tais dificuldades enobrecem requintam e realçam o prazer divino e perfeito que ela nos procura Bem indigno de sentilo é por certo quem pesa o custo e o rendimento dela não lhe conhece as belezas nem o uso Os que nos afirmam que embora sua posse seja agradável penosa e laboriosa é a sua 2 Picoterie argumentação maliciosa e provocante N do T 3 O texto original é obscuro Michaut o interpreta também sem muita clareza N do T Filosofia antropologia e ética 146 conquista não nos estarão dizendo ser a virtude coisa sempre desagradável Mesmo porque quem a terá jamais atingido Os mais perfeitos tiveram de se contentar com aspirar a ela dela se aproximar sem nunca chegar a possuíla Enganamse porém os que assim falam pois não há prazer conhecido cuja procura em si já não constitua uma satisfação Ela ligase ao objetivo visado e contribui muito para o resultado de que participa essencialmente A felicidade e a bemaventurança da virtude enchemlhe as dependências e os caminhos desde o portão de entrada até os muros que lhe cercam os domínios Um dos principais benefícios da virtude está no desprezo que nos inspira pela morte o que nos permite viver em doce quietude e faz com que se desenrole agradavelmente e sem preocupações nossa existência E sem esses sentimentos toda volúpia é sem encanto Eis por que todos os sistemas filosóficos concordam nesse ponto e para ele convergem Embora todos se entendam igualmente em nos recomendar o desprezo à dor à pobreza e outros acidentes a que está sujeita a vida humana nem todos o fazem com igual cuidado ou porque tais acidentes não nos atingem forçosamente em sua maioria os homens vivem sua vida sem sofrer com a pobreza e alguns como o músico Xenófilo4 que morreu com cento e seis anos vivem em perfeita saúde sem conhecer nem a dor nem a doença ou porque na pior das hipóteses pode a morte quando quisermos pôr fim aos nossos males E ela própria é inevitável Marchamos todos para a morte nosso destino agitase na urna funerária um pouco mais cedo um pouco mais tarde o nome de cada um dali sairá e a barca fatal nos levará a todos ao eterno exílio Horácio Portanto se a receamos temos nela um motivo permanente de tormentos e andaremos como em país inimigo a deitar os olhos para todos os lados ela é sempre uma ameaça como o rochedo de Tântalo Cícero 4 Filósofo que Montaigne qualifica como músico Filosofia antropologia e ética 147 Nossos tribunais ordenam muitas vezes se execute o criminoso no próprio local do crime Conduzamno durante o trajeto entre belas residências e deemlhe as melhores refeições os mais deliciosos acepipes não poderão acariciarlhe o paladar nem o canto dos pássaros nem os acordes da lira lhe devolverão o sono Horácio Pensais que será sensível a nossos cuidados e que o fim último de sua viagem sempre em mente não lhe alterará e tornará insosso qualquer possível prazer Inquietase com o caminho conta os dias mede a vida pela extensão da estrada sem cessar atormentado pela ideia do suplício que o espera Cláudio A meta de nossa existência é a morte é este o nosso objetivo fatal Se nos apavora como poderemos dar um passo à frente sem tremer O remédio do homem vulgar consiste em não pensar na morte Mas quanta estupidez será precisa para uma tal cegueira Por que não coloca o freio no rabo do asno desde que meteu na cabeça andar de costas Lucrécio Não há como estranhar caia tão amiúde na armadilha As pessoas se apavoram simplesmente com lhe ouvir o nome a morte E persignamse como se ouvissem falar no diabo E como ela é mencionada nos testamentos só resolvem fazer o seu quando os condenou o médico E Deus sabe em que estado de espírito se encontram então sob o impacto da dor e do pavor Como esta palavra ressoava demasiado forte a seus ouvidos e lhes parecia de mau augúrio tinham os romanos se habituado a adoçála ou a empregar perífrases Em vez de dizer morreu diziam parou de viver viveu bastavalhes que se falasse em vida Nós lhes tomamos de empréstimo esses eufemismos e dizemos Mestre João se foi5 5 Feu do latim fuit foi Fulano que se foi hoje ainda se diz feu um tel em francês mas será então traduzido por falecido fulano Quanto a maître jean é o apelido que se dava outrora aos pedantes sábios ou doutores N do T Filosofia antropologia e ética 148 Se porventura se aplica o ditado a palavra é de prata como nasci entre onze horas e meiodia do último dia de fevereiro de 1533 e começamos o ano em janeiro6 como a acontece agora faz exatamente quinze dias que completei meus trinta e nove anos Posso pois esperar viver ainda tal período e atormentar me meditando sobre tão longínqua eventualidade fora loucura Mas jovens e velhos se vão da vida em condições idênticas Partem todos como se acabassem de chegar sem contar que não há homem tão decrépito ou velho ou alquebrado que não alimente a esperança da longevidade de Matusalém e não tenha ainda vinte anos de vida diante de si Direi mais quem pobre louco fixou a duração de tua existência Acreditas no que dizem os médicos sem atentar para o que se verifica em torno de ti e sem julgar pela experiência Pelo andar das coisas há muito já não vives senão por excepcional favor Já ultrapassaste a duração habitual da vida Podes comproválo contando quantos entre os teus conhecidos morreram antes dessa idade em bem maior número do que os que a alcançaram Anota os nomes dos que pelo brilho de sua existência adquiriram certa fama aposto encontrar entre eles mortos antes dos trinta e cinco muitos mais do que depois O razoável e o piedoso está em tomar como exemplo a humanidade de Jesus ora sua existência terrena findouse aos trinta e três anos O maior homem do mundo homem e não Deus Alexandre morreu também com essa idade Quantas maneiras diversas tem a morte de nos surpreender O homem nunca pode chegar a prever todos os perigos que o ameaçam a cada instante Horácio Deixo de lado as doenças as febres as pleurisias Quem poderia imaginar que um duque de Bretanha fosse morrer sufocado pela multidão como aconteceu a um deles quando da entrada em 6 Em França o ano teve vários inícios Foi Carlos IX quem fixou em 1563 a data do começo do ano em janeiro Filosofia antropologia e ética 149 Lião do Papa Clemente meu compatriota Não vimos um dos nossos reis morrer em folguedo E não faleceu outro seu antepassado da queda de um porco que montava Ésquilo advertido de que morreria da queda de uma casa embora dormisse em um campo de trigo foi esmagado por uma tartaruga caída das garras de uma águia Houve quem sucumbisse em consequência de uma semente de uva engolida outro imperador morreu de uma arranhadura feita com o pente Emílio Lépido em virtude de uma topada na porta de sua casa Aufídio por ter batido com a cabeça no batente da entrada da sala do Conselho E entre as coxas das mulheres o pretor Cornélio Galo Tigelino comandante da guarda de Roma Ludovico filho de Gui de Gonzaga Marquês de Mântua e o que é péssimo exemplo Spensipo filósofo platônico E até um papa de nosso tempo O pobre Bebius que era juiz ao adiar o julgamento de certa causa morreu subitamente chegara a sua hora O médico Caio Julius ao tratar dos olhos de um enfermo teve os seus próprios fechados para sempre E para misturarme à enumeração um dos meus irmãos Capitão Saint Martin de vinte e quatro anos e que já dera provas sobejas de seu valor foi atingido por uma bola logo abaixo da orelha direita quando jogava pela Nem vestígio nem contusão não se sentou sequer não interrompeu o jogo e no entanto cinco ou seis horas depois eilo atacado de apoplexia causada pelo golpe recebido Tais exemplos são tão frequentes repetemse tão comumente diante de nossos olhos que não parece possível evitarse se oriente nosso pensamento para a morte nem negar que a cada instante nos ameace ela Que importa o que possa acontecer direis se não nos preocupamos com isso É também meu parecer e se houvesse meio de escapar ao golpe ainda que fosse sob uma pele de vitela não seria homem se não o empregasse pois a mim me basta viver sossegado e pondo em Filosofia antropologia e ética 150 prática tudo o que para tanto venha a contribuir embora pouco glorioso ou exemplar prefiro passar por louco ou impertinente se meu erro me agrada ou não o percebo a ser sábio e sofrer Horácio É loucura porém querer furtarse assim a essa ideia Vaise voltase correse dançase nenhuma notícia da morte que beleza Mas quando ela nos cai em cima ou em cima de nossas mulheres nossos filhos nossos amigos que os surpreenda ou não quantos tormentos gritos imprecações desespero Vistes alguém mais humilhado transtornado confundido É preciso preocuparse com ela de antemão Pois essa incúria animal ainda que pudesse alojarse na mente de um homem inteligente o que acho inteiramente impossível nos faz pagar caro demais sua mercadoria7 Se a morte fosse um inimigo suscetível de se evitar aconselharia agir diante dela como um covarde diante do perigo mas em não sendo isso verdade e atingindo ela infalivelmente os fugitivos poltrões ou valentes persegue o homem em sua fuga e não poupa nem mesmo a tímida juventude que tenta escaparlhe Horácio como nenhuma couraça nos protege contra ela cobrivos de ferro e de bronze a morte vos atingirá sob a armadura Horácio aprendamos a esperála de pé firme e a lutar Para começar a despojála da vantagem maior de que dispõe contra nós tomemos por caminho inverso ao habitual Tiremos dela o que tem de estranho pratiquemola habituemonos a ela não pensemos em outra coisa tenhamo la a todo instante presente em nosso pensamento e sob todas as suas formas Ao tropeço de um cavalo à queda de uma telha à menor picada de alfinete digamos se fosse a morte e esforcemonos em reagir contra a apreensão que uma tal reflexão pode provocar Em meio às festas e aos divertimentos lembremonos sem cessar de que somos mortais e não nos entreguemos tão inteiramente ao prazer que não nos sobre 7 As denrée no caso suas ilusões N do T Filosofia antropologia e ética 151 tempo para recordar que de mil maneiras nossa alegria pode acabar na morte nem em quantas circunstâncias ela sobrevém inopinadamente É o que faziam os egípcios quando em seus festivais e votados aos prazeres da mesa mandavam trazer um esqueleto humano para rememorar aos convivas a fragilidade de sua vida Pensa que cada dia é teu último dia e aceitarás com gratidão aquele que não mais esperavas Horácio Não sabemos onde a morte nos aguarda esperemola em toda parte Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade quem aprendeu a morrer desaprendeu de servir nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento Paulo Emílio ao ir receber as honras do triunfo respondia ao mensageiro enviado por esse infeliz rei da Macedônia seu prisioneiro a fim de suplicarlhe que não o incluísse em seu séquito Que o solicite a si próprio Em verdade sem certa anuência da natureza é difícil que a arte e a indústria progridam nas obras que produzem Eu não sou melancólico sou sonhador Não há nada que minha imaginação vasculhe mais do que a ideia da morte e isso desde sempre mesmo no período da minha vida em que mais me dediquei aos prazeres estava então na flor da idade Catulo Entre senhoras e festas imaginavam que andasse preocupado a remoer algum ciúme ou à espera inquieta de qualquer acontecimento enquanto na realidade meu pensamento se orientava para não sei quem que dias antes ao sair de festa semelhante entregue ao ócio ao amor e às doces recordações fora tomado de febre e morrera E considerava que coisa análoga me aguardava de atalaia Em breve o tempo presente já não será e não poderemos lembrálo Lucrécio E não me franzia a fronte mais do que outro qualquer esse pensamento É impossível que a princípio essa ideia não nos cause penosa impressão Mas voltando a ela encarandoa de todos os Filosofia antropologia e ética 152 ângulos aos poucos acabamos por nos acostumarmos a ela De outro modo teria eu andado continuamente agitado e amedrontado pois ninguém mais do que eu jamais desconfiou tanto da vida e contou menos com a sua duração Minha saúde até agora excelente apenas perturbada por pequenas indisposições não me dá maiores esperanças de grande longevidade como tampouco as doenças me fazem temer um fim prematuro A cada instante tenho a impressão de haver chegado minha última hora e repito sem cessar o que devera ocorrer fatalmente um dia pode acontecer hoje Efetivamente os acasos e perigos a que estamos expostos pouco ou nada nos aproximam do fim E se pensarmos em quantos acidentes podem ameaçarnos além dos que imaginamos iminentes deveremos reconhecer que no mar como no lar na guerra como no retiro a morte sempre se encontra perto de nós nenhum homem é mais frágil do que outro nenhum tem assegurado o dia seguinte Sêneca Para fazer o que me cumpre fazer antes de morrer todo tempo me parece curto ainda que se trate de trabalho de uma hora Alguém folheando meu caderno de notas revelou algo que eu desejava se fizesse depois de minha morte disse a essa pessoa a verdade isto é que ao registrar essa nota me encontrava a uma légua apenas de casa mas me apressara em escrevêla porque não estava certo de não morrer antes de entrar A chegada da morte não me surpreenderá achome sempre e quanto posso preparado para essa ocorrência Ela se mistura sem cessar a meu pensamento nele se grava Na medida do possível andemos sempre de botas e prontos para partir e em particular não tenhamos negócios a tratar senão com nós mesmos por que em tão curta vida fazemos tantos projetos Horácio Suficiente trabalho teremos com esses nossos negócios próprios para que nos embaracemos com outros Mais do que da morte queixamse uns de que venha Filosofia antropologia e ética 153 interromper uma bela vitória lamentamse outros de não terem podido casar a filha antes ou educarem as crianças um lastima deixar a mulher outro o filho entes a que mais se apegavam Quanto a mim graças a Deus estou em estado de desaparecer quando Lhe aprouver sem nenhuma saudade senão da própria vida Estou em regra com tudo e como que já disse adeus a todos salvo a mim mesmo Nunca homem se apresentou mais bem preparado para deixar a vida no momento necessário e sem menor dissimulação Ninguém se desprendeu melhor e mais completamente da vida do que eu As mortes mais integrais são as mais desejáveis8 Oh Desgraça dizem uns um só dia nefasto basta para envenenar todas as alegrias da vida Lucrécio Não terminarei nunca a minha obra lamenta o arquiteto deixarei pois imperfeitos esses soberbos baluartes Virgílio Nada se empreenda pois em vista de tão remota conclusão pelo menos não se o faça com a apaixonada intenção de chegar ao fim Nascemos para agir quero que a morte me surpreenda em pleno trabalho Ovídio Vamos agir portanto e prolonguemos os trabalhos da existência quanto pudermos e que a morte nos encontre a plantar as nossas couves mas indiferentes à sua chegada e mais ainda ante as nossas hortas inacabadas9 Conheço alguém que na hora extrema lastimava incessantemente lhe fosse cortar a morte no décimo quinto ou no décimo sexto de nossos reis o fio de uma história em andamento Não pensem que a morte nos rouba a saudade das coisas mais queridas Lucrécio Devemos desfazernos dessas preocupações vulgares e nocivas Se se construíram cemitérios perto das igrejas e nos 8 No texto les plus mortes morts isto é as mortes em que tudo morre ao mesmo tempo em oposição às mortes em que o indivíduo se extingue gradualmente através de sucessivas perdas de faculdades N do T 9 Imparfait não feito não terminado Filosofia antropologia e ética 154 lugares mais frequentados da cidade foi diz Licurgo para acostumar a plebe as mulheres e as crianças a não se assustarem à vista de um morto e a fim de que o contínuo espetáculo de ossadas túmulos pompas funerárias advirta todos do que os espera era outrora costume alegrar os festins com execuções e com combates de gladiadores estes caíam amiúde entre as taças e inundavam de sangue as mesas do banquete Silius Itálico Os egípcios em seus festins faziam apresentar aos convivas uma imagem da morte que lhes gritava bebe goza pois serás assim depois de morto Também se tornou em mim um hábito não somente ter sempre presente a ideia da morte como também falar dela constantemente E nada me interessa mais do que indagar da morte das pessoas que disseram que atitude assumiram Nas histórias que leio os trechos referentes à morte são os que mais me prendem a atenção Vêse isso pela escolha dos meus exemplos e pela afeição particular que revelo pelo assunto Se fosse escritor anotaria as mortes que mais me impressionaram e as comentaria pois quem ensinasse os homens a morrer os ensinaria a viver Dicearcus escreveu um livro com esse título porém diferente e menos útil em seu objetivo Dirão que em sua realidade a morte ultrapassa a nossa concepção por mais que nos preparemos para enfrentála quando ela chegar estaremos no mesmo ponto Deixaios falar Sem dúvida uma tal preparação comporta grandes vantagens pois será pouco caminhar ao seu encontro sem apreensões Há mais a própria natureza nos ajuda na ocorrência e nos dá a coragem que poderia faltarnos Se nossa morte é súbita e violenta não temos tempo de receála se não na medida em que a enfermidade nos domina diminui naturalmente o nosso apego à vida Custame muito mais aceitar a ideia de morrer quando gozo saúde do que quando estou com febre Quando Filosofia antropologia e ética 155 não me sinto bem as alegrias da vida me parecem menos valiosas tanto mais quanto não estou em condições de usufruí las a morte se me afigura menos temível Disso concluo que quanto mais me desprender da vida e me aproximar da morte tanto mais facilmente me conformarei com a passagem de uma para outra Como diz César e como o verifiquei em mais de uma circunstância as coisas produzem maiores efeitos de longe que de perto Assim é que me atormentam mais as doenças se estou bem de saúde do que se as enfrento A alegria o prazer e a força induzemme a uma ampliação desproporcional do estado contrário e os incômodos da enfermidade eu os concebo mais pesados do que os sinto realmente quando adoeço E espero que o mesmo se dê quanto à morte As flutuações a que se sujeita a nossa saúde o enfraquecimento gradual que sofremos são meios que a natureza emprega para dissimularnos a aproximação de nosso fim e de nossa decrepitude Que resta a um ancião do vigor de sua juventude e do seu passado Ah como sobra pouco aos velhos Pseudo Galo César a quem um soldado alquebrado e decrépito viera pedir em plena rua autorização para se matar respondeu rindo pensas então que ainda estás vivo Creio que não seríamos capazes de suportar uma tal mudança se a ela chegássemos repentinamente Mas em nos conduzindo pela mão devagar quase insensivelmente a natureza nos familiariza com essa miserável condição De tal modo que a mocidade se extingue em nós sem que lhe percebamos o fim em verdade mais penoso do que o de nosso ser inteiro ao ter de deixar uma vida de achaques quando morremos de velhice O salto que nos cabe dar para passar de uma existência miserável ao fim dela não é tão sensível quanto o que separa uma vida tranquila e florescente de uma vida difícil e dolorosa O corpo curvado tem menos força para carregar um fardo o mesmo ocorre com a alma que é preciso fortalecer e Filosofia antropologia e ética 156 pôr em condição de resistir à opressão causada pelo medo da morte Como é impossível que encontre a calma sob o peso desse temor se o pudesse dominar inteiramente o que está acima das forças humanas estaria a alma assegurada contra a inquietação a ansiedade o medo e tudo o que nos aflige nem o rosto cruel de um tirano nem a tempestade furibunda que revolve o Adriático nada lhe pode abalar o ânimo nada nem Júpiter lançando seus raios Horácio A alma tornarseia então senhora de suas paixões e de seus mais ardentes desejos nada a atingiria nem a indigência nem a vergonha nenhuma adversidade Esforcemonos pois por conseguir essa vantagem Nisso consiste a verdadeira e soberana liberdade a que nos permite desafiar a violência e a injustiça desprezar a prisão e os ferros escravizadores sobrecarregarteei os pés e as mãos de cadeias e entregarteei ao mais cruel dos carcereiros Um Deus me libertará quando eu o quiser esse Deus penso eu é a morte a morte termo de toas as coisas Horácio Nossa religião não teve alicerce humano mais sólido que o do desprezo à vida E não é somente a voz da razão que a isso nos conduz pois por que temeríamos perder uma coisa que uma vez perdida já não podemos lamentar E como a morte nos ameaça sem cessar sob vários aspectos não será mais desagradável ficarmos a receálos todos de antemão do que nos resignarmos uma vez por todas diante dela Por que se preocupar com sua vinda se é inevitável Dizia alguém a Sócrates os trinta tiranos condenaramte à morte Ao que o filósofo respondeu Eles já o foram pela natureza Que tolice nos afligirmos no momento em que nos vamos ver livres de nossos males Nossa vinda ao mundo foi para nós a vinda de todas as coisas nossa morte será a morte de tudo Lastimar não mais viver dentro de cem anos é tão absurdo quanto lamentar não ter nascido um século antes A morte é origem de outra vida Nascemos entre lágrimas e muito nos custou entrar na Filosofia antropologia e ética 157 vida atual passando para uma vida despojamonos do que fomos na precedente Não pode ser grave uma coisa que acontece uma só vez será razoável recear com tanta antecedência acidente de tão curta duração Em relação à morte viver pouco ou muito é a mesma coisa pois nada é longo ou curto quando deixa de existir Diz Aristóteles que há no rio Hipanis insetos que vivem somente um dia os que morrem às oito da manhã morrem jovens e os que morrem às cinco da tarde morrem de decrepitude Quem não acharia divertido que tão insignificante diferença em existências tão efêmeras bastasse para tachálas de felizes Semelhante apreciação acerca da duração da vida humana não é menos ridícula se a comparamos com a eternidade ou simplesmente com a duração das montanhas dos rios das estrelas e até de certos animais A natureza nos ensina saís deste mundo como nele entrastes Passastes da morte à vida sem que fosse por efeito de vossa vontade e sem temores tratai de vos conduzirdes de igual maneira ao passardes da vida à morte vossa morte entra na própria organização do universo é um fato que tem seu lugar assinalado no decurso dos séculos os mortais se emprestam mutuamente a vida e a tocha que se transmite de mão em mão nas corridas sagradas Lucrécio Mudarei para vós esse belo entrosamento das coisas Morrer é a própria condição de vossa criação a morte é parte integrante de vós mesmos A existência de que gozais participa da vida e da morte a um tempo desde o dia de vosso nascimento caminhais concomitantemente na vida e para a morte a primeira hora de vossa vida é uma hora a menos que tereis para viver Sêneca nascer é começar a morrer o último instante de vida é consequência do primeiro Manílio O tempo que viveis vós o roubais à vida e a restringis proporcionalmente Vossa vida tem como efeito conduzirvos à morte E enquanto viveis estais Filosofia antropologia e ética 158 constantemente sob a ameaça de morte e mortos já não viveis mais ou se assim preferis a morte sucede à vida logo durante a vida estais moribundos e a morte atinge muito mais duramente e essencialmente o moribundo do que o morto Se soubestes usar a vida e gozála quanto pudestes idevos e vos declareis satisfeitos por que não sair do banquete da vida como um conviva saciado Lucrécio Se não soubestes usar se ela vos foi inútil que vos importa perdêla E se ela continuasse em que a empregaríeis Para que prolongar dias de que não se saberá tirar melhor proveito do que no passado Lucrécio A vida em si não é nem um bem nem um mal Torna se bem ou mal segundo o que dela fazeis E se vivestes um dia já vistes tudo pois um dia é igual a todos os outros Uma é a luz uma é a noite Esse sol essa lua essas estrelas em sua disposição são os mesmos que apreciaram vossos antepassados e que conhecerão vossos descendentes Vossos sobrinhos não verão nada mais do que viram seus pais Manílio E em última análise podese dizer que a totalidade dos atos diversos que comporta a comédia a que vos convidei cumprese no decurso de um ano cujas quatro estações se o observastes abarcam a infância a adolescência a idade viril e velhice do mundo Essa marcha é constante não a modifico nunca e sem cessar ela se repete e assim será eternamente Giramos sempre em torno do mesmo círculo Lucrécio o ano retorna sem descontinuar a estrada percorrida Virgílio Não está em meus projetos inovar para vós a ordem das coisas não posso nada imaginar nada inventar de novo para vos agradar é e será sempre a repetição das mesmas cenas Lucrécio Dai vosso lugar a outros como outros vos deram o seu A igualdade é a primeira condição da equidade Quem se há de queixar de uma medida que atinge a todos Podeis prolongar vossa vida o que quer que façais não diminuirá em nada o tempo que tendes para serdes mortos Por mais Filosofia antropologia e ética 159 comprida que seja vossa vida não será nada e esse estado que lhe sucederá e que pareceis tanto temer terá a mesma duração que se houvésseis morrido no berço vivei quanto séculos quiserdes nem por isso será menos eterna a morte Lucrécio Nesse estado em que vos porei não tereis motivo para descontentamento ignorais que não vos sobrevirá um outro vós mesmo o qual vivo vos possa chorar como morto e gemer sobre o vosso cadáver Lucrécio E essa vida que tanto lamentais perder não mais a desejareis não teremos mais com que nos inquietarmos nem com nós mesmos nem com a vida nenhuma saudade teremos da existência Lucrécio A morte é menos temível do que nada se é que alguma coisa menos que nada é possível Lucrécio Morto ou vivo vós não lhe escapais vivo porque sois morto porque não sois mais Por outro lado ninguém morre antes da hora O tempo que perdeis não vos pertence mais do que o que precedeu vosso nascimento e não vos interessa considerai em verdade que os séculos inumeráveis já passados são para vós como se não tivessem sido Lucrécio Qualquer que seja a duração de vossa vida ela é completa Sua utilidade não reside na duração e sim no emprego que lhe dais Há quem viveu muito e não viveu Meditai sobre isso enquanto o podeis fazer pois depende de vós e não do número de anos terdes vivido bastante Imagináveis então nunca chegardes ao ponto para o qual vos dirigíveis Haverá caminho que não tenha fim E se o fato de ter companheiros vos pode consolar pensai que o mundo inteiro segue caminho idêntico as raças futuras vos seguirão por sua vez Lucrécio Tudo obedece ao mesmo impulso a que obedeceis Haverá algo que não envelheça como vós envelheceis Milhares de homens milhares de animais milhares de outras criaturas morrem no mesmo instante em que morreis não há uma só Filosofia antropologia e ética 160 noite nem um só dia em que não se ouçam misturados aos vagidos dos recémnascidos os gritos de dor em torno dos esquifes Lucrécio Por que tentar recuar se não vos é permitido voltar atrás Vistes mais de um indivíduo que se satisfez com morrer fugindo assim a grandes misérias já deparastes com alguém que se achou prejudicado E não será tolice condenar uma coisa que não conheceis nem pessoalmente nem através de outro Por que vos queixardes de mim e do destino Nós vos estaremos prejudicando Cabevos governarnos ou ao contrário dependeis de nós Por mais moço que sejais vossa vida chegou ao fim um homem de pequena estatura é tão completo quanto outro muito grande Nem a estatura do homem nem sua existência têm medidas determinadas Quíron recusou a imortalidade quando Saturno seu pai deus do tempo e da mortalidade lhe revelou as condições dela Imaginai a que ponto uma vida sem fim fora menos tolerável e mais penosa para o homem do que a que lhe foi dada Se não tivésseis a morte vós me amaldiçoaríeis sem cessar por vos haver privado dela Foi propositalmente que a ela juntei alguma amargura a fim de impedir que ante a comodidade de seu uso não a buscásseis com excessiva avidez Para vos trazer a essa moderação que solicito de vós de não abreviar a vida e não tentar esquivar a morte tempereias pelas sensações mais ou menos suaves mais ou menos duras que vos podem outorgar Ensinei a Tales o primeiro entre vossos sábios10 que viver e morrer são igualmente indiferentes o que o impeliu a responder muito sabiamente a alguém que lhe perguntava por que então não se matava porque é indiferente A água a terra o fogo tudo o que constitui meu domínio e contribui para vossa vida não contribuem mais do que a morte Por que temeis 10 Referência ao filósofo Tales de Mileto ca 624 546 AEC considerado o primeiro filósofo Filosofia antropologia e ética 161 vosso último dia Ele não vos entrega mais à morte do que o faz cada um dos dias anteriores Não é o último passo a causa de nossa fadiga ele apenas a determina Todos os dias levam à morte só o último a alcança Eis os sábios conselhos que vos dá a natureza nossa mãe Amiúde indaguei de mim mesmo por que na guerra a perspectiva ou a presença da morte nossa ou de outrem nos impressiona muito menos do que em nossos lares Se assim não fosse um exército se comporia unicamente de médicos e de choramingas Estranho igualmente que a morte em sendo a mesma para todos a acolham com mais calma os camponeses e o povo miúdo que os outros Creio em verdade que são essas fisionomias de circunstância e esse aparato lúgubre com que a cercam que nos impressionam mais do que ela própria Quando ela se aproxima há uma modificação total em nossa vida cotidiana mães mulheres e crianças gritam e se lamentam Inúmeras pessoas nos visitam consternadas a gente da casa aí está pálida e desesperada a obscuridade reina no quarto acendemse velas à nossa cabeceira juntamse padres e médicos tudo em suma em volta de nós se dispõe como para inspirar horror ainda não rendemos o último suspiro e já estamos amortalhados e enterrados As crianças amedrontamse quando as pessoas mesmo suas conhecidas se apresentam mascaradas pois é o que ocorre nesse momento Arranquemos as máscaras às coisas como às pessoas e por baixo veremos muito simplesmente a morte A mesma com a qual partiu ontem sem maior pavor tal ou qual criado ou aia Feliz é a morte que nos surpreende sem que haja tempo para semelhantes preparativos Filosofia antropologia e ética 162 QUESTÕES PARA ESTUDO INDIVIDUAL DO TEXTO QUESTÃO 1 A afirmação de que a filosofia é uma forma de se preparar para a morte tem uma matriz platônica Sobre isso confronte o sentido que essa frase tem no texto 4 No entanto Montaigne remete mote que dá título a seu ensaio à obra de Cícero Qual é a diferença entre as duas perspectivas Por que Montaigne faz essa escolha QUESTÃO 2 Explique a seguinte afirmação na própria prática da virtude o fim visado é a volúpia Compare o ponto de vista de Montaigne com o pensamento de Epicuro texto 3 QUESTÃO 3 Por que a seguinte afirmação não implica na perspectiva de Montaigne uma adesão ao hedonismo na própria prática da virtude o fim visado é a volúpia O hedonismo foi abordado em diferentes momentos nesta disciplina especialmente quando se tratou de estoicismo e de epicurismo assim como na discussão da obra de Freud QUESTÃO 4 Utilize os seguintes termos para propor uma síntese sobre a relação que se deve ter com a morte seguindo os argumentos defendidos por Michel de Montaigne inevitabilidade variedade imprevisibilidade ubiquidade Filosofia antropologia e ética 163 QUESTÃO 5 Montaigne propõe a presentificação da morte como a única maneira eficaz de enfrentála O que isso quer dizer Filosofia antropologia e ética 164 TEXTO 15 A NOÇÃO HEIDEGGERIANA DE EXISTÊNCIA CONCEITOS BÁSICOS excertos Martin Heidegger 1889 1976 HEIDEGGER Martin Ser e tempo 10 ed Petrópolis Vozes Bragança Paulista Editora Universitária São Francisco 2015 p 4243 4849 98100 102104 173174 176177 181 passim Com vistas a favorecer a legibilidade foram introduzidos quebras de parágrafos subtítulos e comentários em notas que não fazem parte do texto original 1 DASEIN O SER HUMANO É PRESENÇA Caso a questão do ser deva ser colocada explicitamente e desdobrada em toda a sua transparência a sua elaboração exige de acordo com as explicações feitas até aqui a explicitação da maneira de se visualizar o ser de se compreender e apreender conceitualmente o sentido a preparação da possibilidade de uma escolha correta do ente exemplar a elaboração do modo genuíno de acesso a esse ente Visualizar compreender escolher aceder a são atitudes constitutivas do questionar e ao mesmo tempo modos de ser de um determinado ente daquele ente que nós mesmos os que questionam sempre somos Elaborar a questão do ser significa portanto tornar transparente um ente que questiona em seu ser Como modo de ser de um ente o questionar dessa questão se acha essencialmente determinado pelo que nela se questiona pelo ser Designamos com o termo presença esse ente que cada um de nós mesmos sempre somos e que entre outras coisas possui em seu ser a possibilidade de questionar A colocação explícita e transparente da Filosofia antropologia e ética 165 questão sobre o sentido de ser requer uma explicação prévia e adequada de um ente da presença no tocante a seu ser 2 O PRIMADO ÔNTICOONTOLÓGICO DA PRESENÇA A presença não é apenas um ente que ocorre entre outros entes Ao contrário ela se distingue onticamente pelo privilégio de em seu ser isto é sendo estar em jogo seu próprio ser Mas também pertence a essa constituição de ser da presença a característica de em seu ser isto sendo estabelecer uma relação de ser com seu próprio ser Isso significa explicitamente e de alguma maneira que a presença se compreende em seu ser isto é sendo É próprio deste ente que seu ser se lhe abra e manifeste com e por meio de seu próprio ser isto é sendo A compreensão de ser é em si mesma uma determinação de ser da presença O privilégio ôntico que distingue a presença está em ela ser ontológica Ser ontológico ainda não diz aqui elaborar uma ontologia Por isso se reservarmos o termo ontologia para designar o questionamento teórico explícito do sentido de ser então devese chamar este ser ontológico da presença de préontológico Isso no entanto não significa simplesmente sendo onticamente um ente mas sendo no modo de uma compreensão de ser A presença sempre se compreende a si mesma a partir de sua existência de uma possibilidade própria de ser ou não ser ela mesma Essas possibilidades a própria presença as escolheu mergulhou nelas ou ali simplesmente cresceu No modo de assumirse ou perderse a existência só se decide a partir de cada presença em si mesma A questão da existência só poderá ser esclarecida sempre pelo próprio existir Em consequência a presença possui um primado múltiplo frente a todos os outros entes O primeiro é um primado ôntico a presença é um ente determinado em seu ser pela existência O segundo é um primado ontológico com base em sua determinação de existência a presença é em si mesma ontológica Pertence à presença de maneira igualmente originária e enquanto constitutiva da Filosofia antropologia e ética 166 compreensão da existência uma compreensão do ser de todos os entes que não possuem o modo de ser da presença A presença tem por conseguinte um terceiro primado que é a condição ôntico ontológica da possibilidade de todas as ontologias Desse modo a presença se mostra como o ente que ontologicamente deve ser o primeiro interrogado antes de qualquer outro 3 A PRESENÇA É SERNOMUNDO A presença existe A presença é ademais um sendo que sempre eu mesmo sou A expressão composta sernomundo já na sua cunhagem mostra que pretende referirse a um fenômeno de unidade Devese considerar este primeiro achado em seu todo A impossibilidade de dissolvêla em elementos que podem ser posteriormente compostos não exclui a multiplicidade de momentos estruturais que compõem essa constituição O que diz serem De saída completamos a expressão dizendo sernomundo e nos vemos tentados a compreender o serem como um estar dentro de Com esta última expressão designamos o modo de ser de um ente que está num outro como a água está no copo a roupa no armário Esses entes que podem ser determinados como estando um dentro do outro têm o mesmo modo de ser do que é simplesmente dado como coisa que ocorre dentro do mundo Tais caracteres pertencem ao ente não dotado do modo de ser da presença O serem ao contrário significa uma constituição de ser da presença e é um existencial Com ele portanto não se pode pensar no ser simplesmente dado de uma coisa corpórea o corpo vivo do humano dentro de um ente simplesmente dado O serem não pode indicar que uma coisa simplesmente dada está espacialmente dentro de outra porque em sua origem o em não significa de forma alguma uma relação espacial desta espécie em deriva de innan morar habitar deterse an significa estou acostumado a familiarizado com cultivo alguma coisa possui o significado de colo no sentido de habito e diligo O ente ao qual pertence o serem neste Filosofia antropologia e ética 167 sentido é o ente que sempre eu mesmo sou A expressão sou conectase a junto eu sou diz por sua vez eu moro detenhome junto ao mundo como alguma coisa que deste ou daquele modo me é familiar Como infinitivo de eu sou isto é como existencial ser significa morar junto a ser familiar com O serem é pois a expressão formal e existencial do ser da presença que possui a constituição essencial de sernomundo Ao delimitarmos dessa maneira o serem a presença não se vê despojada de toda e qualquer espacialidade Ao contrário a presença tem seu próprio ser no espaço o qual no entanto só é possível com base e fundamento no sernomundo em geral Não se pode por conseguinte esclarecer ontologicamente o serem mediante uma caracterização ôntica dizendo o serem um mundo é uma propriedade espiritual e a espacialidade do homem é uma qualidade de sua corporeidade Leiblichkeit fundada sempre num ser corpóreo Körperlichkeit Pois com isso se estaria novamente diante do ser simplesmente dado de uma coisa espiritual assim qualificada junto a uma coisa corpórea permanecendo obscuro o ser como tal do ente composto A compreensão do sernomundo como estrutura essencial da presença é que possibilita a visão penetrante da espacialidade existencial da presença É ela que impede a eliminação antecipada desta estrutura Essa eliminação prévia não é motivada ontologicamente mas metafisicamente pela opinião ingênua de que primeiro o homem é uma coisa espiritual e que só então colocase em um espaço Com a facticidade o sernomundo da presença já se dispersou ou até mesmo se fragmentou em determinados modos de serem Pode se exemplificar a multiplicidade desses modos de serem através da seguinte enumeração ter o que fazer com alguma coisa produzir alguma coisa tratar e cuidar de alguma coisa aplicar alguma coisa fazer desaparecer ou deixar perderse alguma coisa empreender impor pesquisar interrogar considerar discutir determinar Estes modos de serem possuem o modo de ser da ocupação que ainda será caracterizada mais profundamente Como sernomundo Filosofia antropologia e ética 168 pertence ontologicamente à presença o seu ser para com o mundo é essencialmente ocupação De acordo com o que foi dito o sernomundo não é uma propriedade que a presença às vezes apresenta e outras não como se pudesse ser igualmente com ela ou sem ela O homem não é no sentido de ser e além disso ter uma relação com o mundo o qual por vezes lhe viesse a ser acrescentado A presença nunca é numa primeira aproximação um ente por assim dizer livre de serem que algumas vezes tem gana de assumir uma relação com o mundo Esse assumir relações com o mundo só é possível porque a presença sendonomundo é como é Tal constituição de ser não surge porque além dos entes dotados do caráter da presença ainda se dão outros entes os simplesmente dados que com ela se deparam Esses outros entes só podem depararse com a presença quando conseguem mostrarse por si mesmos dentro de um mundo 4 A PRESENÇA É UM SERCOMOSOUTROS A descrição do mundo circundante mais próximo por exemplo do mundo do artesão mostrou que com o instrumento em ação também vêm ao encontro os outros aos quais a obra se destina No modo de ser desse manual ou seja em sua conjuntura subsiste uma referência essencial a possíveis portadores para os quais a obra está talhada sob medida Do mesmo modo junto com o material empregado também vem ao encontro o seu produtor ou fornecedor enquanto aquele que serve bem ou mal O campo por exemplo onde passeamos lá fora mostrase como o campo que pertence a alguém que é por ele mantido em ordem o livro usado foi comprado em tal livreiro foi presenteado por e assim por diante Em seu seremsi o barco ancorado na praia referese a um conhecido que nele viaja ou então um barco desconhecido mostra outros Os outros que assim vêm ao encontro no conjunto instrumental à mão no mundo circundante não são algo acrescentado pelo pensamento a uma coisa já antes simplesmente dada Todas essas coisas vêm ao encontro a partir do mundo em que Filosofia antropologia e ética 169 elas estão à mão para os outros Este mundo já é previamente sempre o meu Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes a presença se entende a partir de seu mundo e a copresença dos outros vem ao encontro nas mais diversas formas a partir do que está à mão dentro do mundo Mas mesmo quando a presença dos outros se torna por assim dizer temática eles não chegam ao encontro como pessoas simplesmente dadas Nós as encontramos por exemplo junto ao trabalho o que significa primordialmente em seu serno mundo Dentro do mundo essa copresença dos outros só se abre para uma presença e assim também para os copresentes visto que a presença é em si mesma essencialmente sercom O sercom determina existencialmente a presença mesmo quando um outro não é de fato dado ou percebido Mesmo o estarsó da presença é sercom no mundo Somente num sercom e para um sercom é que o outro pode faltar O estarsó é um modo deficiente de sercom e sua possibilidade é a prova disso Por outro lado não se elimina o estar só porque junto a mim ocorre um outro exemplar de homem ou dez outros A presença pode estar só mesmo quando esse e ainda outros tantos são simplesmente dados Do ponto de vista ontológico o ser para os outros é diferente do ser para coisas simplesmente dadas O outro ente possui ele mesmo o modo de ser da presença No sercom e para os outros subsiste portanto uma relação ontológica entre presenças Essa relação podese dizer já é cada vez constitutiva da própria presença a qual possui por si mesma uma compreensão do ser e assim relacionase com a presença A relação ontológica com os outros tornase pois projeção do próprio ser para si mesmo num outro O outro é um duplo de si mesmo Filosofia antropologia e ética 170 QUESTÕES PARA ESTUDO INDIVIDUAL DO TEXTO QUESTÃO 6 Explique o primado ôntico da presença comentando a seguinte afirmação a presença se compreende sendo QUESTÃO 7 Explique a afirmação A presença sempre se compreende a si mesma a partir de sua existência de uma possibilidade própria de ser ou não ser ela mesma QUESTÃO 8 Explique o sentido do primado ôntico e ontológico da presença postulado por Heidegger QUESTÃO 9 Comente a noção de sernomundo da presença a partir da ideia de ocupação QUESTÃO 10 Explique a noção de sercomosoutros a partir da afirmação seguinte o outro é um duplo de si mesmo Em seguida analise a afirmação de que estar junto com outras presenças não elimina o estar só da presença Filosofia antropologia e ética 171 TEXTO 16 A EXISTÊNCIA AUTÊNTICA E A EXISTÊNCIA INAUTÊNTICA excertos Martin Heidegger 1889 1976 HEIDEGGER Martin Ser e tempo 10 ed Petrópolis Vozes Bragança Paulista Editora Universitária São Francisco 2015 p 230234 236244 passim Com vistas a favorecer a legibilidade foram introduzidos quebras de parágrafos subtítulos e comentários em notas que não fazem parte do texto original Remontando às estruturas existenciais que compõem a abertura do sernomundo a interpretação de certo modo perdeu de vista a cotidianidade da presença A análise deve reconquistar mais uma vez o horizonte fenomenal estabelecido para seu tema Levantase então a pergunta quais são os caracteres existenciais da abertura do ser nomundo quando o sernomundo cotidiano se detém no modo de ser do impessoal Será que esse modo de ser possui uma disposição própria e específica uma compreensão uma fala e uma interpretação especiais A resposta a essas perguntas tornase tanto mais urgente quanto mais se recorda que numa primeira aproximação e na maior parte das vezes a presença sucumbe ao impessoal e por ele se deixa dominar Como serlançadonomundo não será que a presença foi jogada de saída no caráter público do impessoal E que mais significa esse ser público do que a abertura específica do impessoal Se o compreender deve ser entendido primordialmente como poderser da presença as possibilidades de ser que a presença enquanto impessoal abriu e das quais se apropriou devem ser Filosofia antropologia e ética 172 extraídas de uma análise do compreender e da interpretação próprias do impessoal Essas possibilidades próprias revelam assim uma tendência essencial do ser da cotidianidade Explicitada de maneira suficiente em sua estrutura ontológica a cotidianidade há de desenvolver um modo de ser originário da presença de tal maneira que a partir desse modo de ser possa demonstrarse em sua concreção existencial o fenômeno de estarlançado inerente à presença 1 A FALAÇÃO A expressão falação não deve ser tomada aqui em sentido pejorativo Terminologicamente significa um fenômeno positivo que constitui o modo de ser do compreender e da interpretação da presença cotidiana A fala na maior parte das vezes se pronuncia e já sempre se pronunciou É linguagem Ao pronunciarse o compreender e a interpretação já se dão Como um pronunciamento a linguagem guarda em si uma interpretação da compreensão da presença Assim como a linguagem também essa interpretação não é algo simplesmente dado mas o seu ser contém em si o modo de ser da presença Muito mais do que uma indicação do fato dessas interpretações da presença cabe agora questionar o modo de ser existencial da fala que se pronuncia e já se pronunciou Se o modo de ser da fala não pode ser concebido como algo simplesmente dado qual é então o seu ser e o que diz em princípio sobre o modo de ser cotidiano da presença A fala que se pronuncia é comunicação A tendência ontológica da comunicação é fazer o ouvinte participar do ser que se abriu para o sobre que se fala De acordo com a compreensibilidade mediana já dada na linguagem falada que se articula nesse pronunciarse a fala comunicada pode ser compreendida amplamente sem que o ouvinte se coloque num ser que compreenda originalmente do que trata a fala Não se compreende tanto o referencial da fala mas só se escuta aquilo que já se falou na falação Esta é compreendida e aquele só Filosofia antropologia e ética 173 mais ou menos por alto Temse em mente a mesma coisa porque se compreende em comum o dito numa mesma medianidade Tanto a escuta quanto o compreender já aderiram previamente ao que foi falado como tal A comunicação não partilha a referência ontológica primordial com o referencial da fala mas a convivência se move dentro de uma fala comum e numa ocupação com o falado O seu empenho é para que se fale O que se diz o dito e a dicção empenhamse agora pela autenticidade e objetividade da fala e de sua compreensão Por outro lado dado que a fala perdeu ou jamais alcançou a referência ontológica primária ao referencial da fala ela nunca se comunica no modo de uma apropriação originária deste sobre o que se fala contentandose com repetir e passar adiante a fala O falado na falação arrasta consigo círculos cada vez mais amplos assumindo um caráter autoritário As coisas são assim como são porque é assim que delas impessoalmente se fala Repetindo e passando adiante a fala potenciase a falta de solidez Nisso se constitui a falação A falação não se restringe apenas à repetição oral da fala mas expandese no que escreve enquanto escrivinhação Aqui a repetição da fala não se funda tanto no ouvir dizer Ela se alimenta do que se lê A compreensão mediana do leitor nunca poderá distinguir o que foi haurido e conquistado originalmente do que não passa de mera repetição E mais ainda a própria compreensão mediana não tolera tal distinção pois não necessita dela já que tudo compreende Obstruindo da maneira descrita a falação constitui o modo de ser da compreensão desenraizada de presença Ela não se apresenta como estado simplesmente dado de algo simplesmente dado mas existencialmente sem raízes ela mesma é no modo de um contínuo desenraizamento Do ponto de vista ontológico isso significa como sernomundo a presença que se mantém na falação cortou suas remissões ontológicas primordiais originárias e legítimas com o mundo com a copresença e com o próprio serem Ela se mantém oscilante e desse modo sempre é e está junto ao mundo com os outros e consigo mesma Filosofia antropologia e ética 174 2 A CURIOSIDADE O sernomundo está numa primeira aproximação empenhado no mundo das ocupações A presença busca o distante somente para tornálo em seu aspecto próximo de si A presença só se deixa arrastar pelo aspecto do mundo Tratase de um modo de ser onde ela se ocupa em tornarse desprendida de si mesma enquanto ser nomundo desprendida do ser junto ao que imediatamente está à mão na cotidianidade A curiosidade liberada porém ocupase em ver não para compreender o que vê ou seja para chegar a ele num ser mas apenas para ver Ela busca apenas o novo a fim de por ele renovada correr para uma outra novidade Esse acurar em ver não trata de apreender e nem de ser e estar na verdade através do saber mas sim das possibilidades de abandonarse ao mundo Por isso a curiosidade caracterizase especificamente por uma impermanência junto ao que está mais próximo Por isso também não busca o ócio de uma permanência contemplativa e sim a excitação e inquietação mediante o sempre novo e as mudanças do que vem ao encontro Em sua impermanência a curiosidade se ocupa da possibilidade contínua de dispersão A curiosidade nada tem a ver com a contemplação admiradora dos entes θαυμάζειν Ela não se empenha em se deixar levar para o que não compreende através da admiração do espanto Ela se ocupa em providenciar um conhecimento para simplesmente terse tornado consciente Os dois momentos constitutivos da curiosidade a impermanência no mundo circundante das ocupações e a dispersão em novas possibilidades fundam a terceira característica essencial desse fenômeno que chamamos de desamparo A curiosidade está em toda parte e em parte nenhuma Este modo de sernomundo desvela um novo modo de ser da presença cotidiana em que ela se encontra constantemente desenraizada A falação também rege os caminhos da curiosidade É ela que diz o que se deve ter lido e visto Esse estar em toda parte e em parte alguma da curiosidade entregase à responsabilidade da falação Filosofia antropologia e ética 175 Esses dois modos de ser cotidianos da fala e da visão não se acham simplesmente um ao lado do outro em sua tendência de desenraizamento mas um modo de ser arrasta o outro consigo A curiosidade que nada perde e a falação que tudo compreende dão à presença que assim existe a garantia de uma vida cheia de vida pretensamente autêntica Com esta pretensão porém mostrase um terceiro fenômeno característico da abertura da presença cotidiana 3 A AMBIGUIDADE Tudo parece ter sido compreendido captado e discutido autenticamente quando no fundo não foi Ou então parece que não o foi quando no fundo já foi A ambiguidade não diz respeito apenas ao dispor e ao tratar com o que pode estar acessível num uso e numa fruição mas já se consolidou no compreender como um poderser no modo do projeto e da doação preliminar de possibilidades da presença Não somente todo mundo conhece e discute o que se dá e ocorre como também todo mundo conhece e discute o que se dá e ocorre como também todo mundo já sabe falar sobre o que vai acontecer o que ainda não se dá e ocorre mas que propriamente deve ser feito Todo mundo sempre já pressentiu e farejou de antemão o que outros já pressentiram e farejaram Essa atitude de estar na pista e na verdade a partir do ouvir dizer quem autenticamente está na pista não fala sobre isso é o modo mais traiçoeiro em que a ambiguidade propicia à presença possibilidades a fim de sufocála em sua força Em sua ambiguidade a falação e a curiosidade cuidam para que aquilo que se criou de autenticamente novo já chegue envelhecido quando se torna público Este só consegue libertarse em suas possibilidades positivas quando a falação encobridora perde a voga e o interesse comum morre Essa ambiguidade oferece à curiosidade o que ela busca e confere à falação a aparência de que nela tudo se decide Esse modo de ser da abertura do sernomundo também domina inteiramente a convivência como tal Numa primeira aproximação o Filosofia antropologia e ética 176 outro está por aí pelo que se ouviu impessoalmente dele pelo que se sabe e se fala a seu respeito A falação logo se insinua dentre as formas de convivência originária Todo mundo presta primeiro atenção em como o outro se comporta no que ele irá dizer A convivência no impessoal não é de forma alguma uma justaposição acabada e indiferente mas um prestar atenção uns nos outros ambíguo e tenso Tratase de um escutar uns aos outros secretamente Sob a máscara do ser um para o outro atua o ser um contra o outro 4 A DECADÊNCIA E O ESTARLANÇADO Este termo decadência não exprime qualquer avaliação negativa Pretende apenas indicar que numa primeira aproximação e na maior parte das vezes a presença está junto e no mundo das ocupações Este empenharse e estar junto a possui frequentemente o caráter de perderse no caráter público do impessoal Por si mesma em seu próprio poderser si mesmo mais autêntico a presença já sempre caiu de si mesma e decaiu no mundo Decair no mundo indica o empenho na convivência na medida em que esta é conduzida pela falação curiosidade e ambiguidade O que anteriormente denominamos de impropriedade da presença recebe agora com a interpretação da decadência uma determinação mais precisa Impróprio e não próprio não significam de forma alguma propriamente não no sentido de a presença perder todo o seu ser nesse modo de ser Impropriedade também não diz mais ser e estar no mundo Ao contrário constitui justamente um modo especial de sernomundo em que é totalmente absorvido pelo mundo e pela copresença dos outros no impessoal Não ser ele mesmo é uma possibilidade positiva dos entes que se empenham essencialmente nas ocupações do mundo Devese conceber esse não ser como o modo mais próximo de ser da presença o modo em que na maioria das vezes ela se mantém Assim a decadência da presença também não pode ser apreendida como queda de um estado original mais puro e superior Disso não dispomos onticamente de nenhuma experiência Filosofia antropologia e ética 177 e ontologicamente de nenhuma possibilidade e guia ontológicos para uma interpretação Seria igualmente um equívoco compreender a estrutura ontológicoexistencial da decadência atribuindolhe o sentido de uma propriedade ôntica negativa que talvez pudesse vir a ser superada em estágios mais desenvolvidos da cultura humana Se porém na falação e na interpretação pública a própria presença confere a si mesma a possibilidade de perderse no impessoal e de decair na falta de solidez é porque a própria presença prepara para si mesma a tentação constante de decair É que o ser nomundo já é em si mesmo tentador Tornandose desse modo tentação a interpretação pública mantém a presença presa em sua decadência A falação e a ambiguidade o já ter visto tudo e já ter compreendido tudo perfazem a pretensão de que a abertura da presença assim disponível e dominante seria capaz de lhe assegurar a certeza a autenticidade e a plenitude de todas as possibilidades de seu ser A certeza de si mesmo e a decisão do impessoal espalham uma suficiência crescente no tocante à compreensão própria e disposta A pretensão do impessoal de nutrir e dirigir toda vida autêntica tranquilizava a presença assegurando que tudo está em ordem e que todas as portas estão abertas O sernomundo da decadência é em si mesmo tanto tentador como tranquilizante Os fenômenos aqui demonstrados de tentação tranquilidade alienação e aprisionamento prisão caracterizam o modo de ser específico da decadência Designamos essa mobilidade da presença em seu próprio ser de precipitação A presença se precipita de si mesma para si mesma na falta de solidez e na nulidade de uma cotidianidade imprópria Mediante a interpretação pública essa precipitação fica velada para a presença sendo interpretada como ascensão e vida concreta Filosofia antropologia e ética 178 O modo em que a precipitação se movimenta para e na falta de solidez do ser impróprio no impessoal arranca constantemente o compreender do projeto de possibilidades próprias lançandoo numa pretensão tranquilizada de possuir ou alcançar tudo Esse arrancar contínuo da propriedade sempre dissimulado e junto com o lançamento no impessoal caracterizam a mobilidade da decadência como turbilhão A decadência não determina apenas existencialmente o serno mundo O turbilhão também revela o caráter de mobilidade e de lance do estarlançado que se pode impor a si mesmo na disposição da presença O estarlançado não só não é um feito pronto como também não é um fato acabado Pertence à facticidade da presença ter de permanecer em lance enauanto for o que é e ao mesmo tempo de estar envolta no turbilhão da impropriedade do impessoal Pertence à presença que sendo está em jogo o seu próprio ser o estarlançado no qual a facticidade se deixa e faz ver fenomenalmente A presença existe faticamente Filosofia antropologia e ética 179 QUESTÕES PARA ESTUDO INDIVIDUAL DO TEXTO QUESTÃO 11 Explique as noções de falação e de curiosidade e analise as razões pelas quais Heidegger considera essas atitudes como típicas do modo de existência inautêntico QUESTÃO 12 Por que ao tratar da falação e da decadência Heidegger insiste que esses termos não devem ser entendidos pejorativamente QUESTÃO 13 Por que o sernomundo da decadência é tanto tentador como tranquilizante Filosofia antropologia e ética 180 TEXTO 17 O PENDENTE O FIM E A TOTALIDADE Martin Heidegger 1889 1976 HEIDEGGER Martin Ser e tempo 10 ed Petrópolis Vozes Bragança Paulista Editora Universitária São Francisco 2015 p 316320 Com vistas a favorecer a legibilidade foram introduzidos quebras de parágrafos subtítulos e comentários em notas que não fazem parte do texto original 1 O PENDENTE Há na presença uma não totalidade contínua e ineliminável que encontra seu fim com a morte Mas será que se deve interpretar como pendente o fato fenomenal de que esse aindanão pertence à presença enquanto ela é A que ente nos referimos quando falamos de pendente Essa expressão significa aquilo que sem dúvida pertence a um ente mas ainda falta Estar pendente e faltar são copertinentes Estar pendente por exemplo diz o resto de uma dívida a ser saldada O que está pendente ainda não é disponível Liquidar a dívida no sentido de suprimir o que está pendente significa entrar no haver isto é amortizar sucessivamente o resto com o que se preenche por assim dizer o vazio do aindanão até que se ajunte a soma devida Estar pendente significa portanto o que é copertinente ainda não está ajuntado Do ponto de vista ontológico as partes a serem ajuntadas nesse caso não estão à mão embora possuam o mesmo modo de ser das que já se acham à mão que por sua vez não se modificam com a entrada do resto O remanescente à parte do conjunto é liquidado ajuntandose sucessivamente as partes O ente em que alguma coisa Filosofia antropologia e ética 181 ainda está pendente tem o modo de ser do que está à mão Chamaremos de soma a junção ou a disjunção nela fundada Essa disjunção que pertence a um modo de junção a falta enquanto o que está pendente não proporciona de forma alguma a determinação ontológica do aindanão que como morte possível pertence à presença Esse ente não possui absolutamente o modo de ser do que está à mão dentro do mundo A junção daquilo que a presença é em seu percurso até completar o seu curso não se constitui como um ajuntamento ininterrupto de pedaços que de algum modo e em algum lugar estariam à mão por si mesmos Ao preencher o seu aindanão a presença não é o que se juntou assim como ela também não é quando ela não é mais A presença sempre existe no modo em que o seu aindanão lhe pertence Mas não existirá algum ente que sendo como é também pode ter um aindanão sem que tenha de possuir o modo de ser da presença 2 O CONTRA EXEMPLO DA LUA CRESCENTE Podese dizer por exemplo da lua que o último quarto ainda está pendente até chegar à lua cheia O aindanão míngua com o desaparecimento da sombra que oculta Aí a lua como um todo já está sempre simplesmente dada Abstraindose que mesmo cheia a lua nunca pode ser totalmente apreendida isso não pode significar que as partes pertinentes ainda não sejam e estejam juntas Esse aindanão referese unicamente à apreensão perceptiva Todavia o aindanão que pertence à presença não apenas se mantém provisória e momentaneamente inacessível à experiência própria ou estranha como sobretudo ainda não é real O problema não diz respeito à apreensão do aindanão característico da presença e sim a seu possível ser e nãoser A presença deve em si mesma devir o que ela ainda não é ou seja deve ser A fim de se determinar comparativamente o ser do aindanão característico da presença é preciso levar em consideração um outro ente a cujo modo de ser pertença o devir Filosofia antropologia e ética 182 3 O EXEMPLO DO AMADURECIMENTO DO FRUTO O fruto não maduro por exemplo encaminhase para o seu amadurecimento No amadurecimento aquilo que ele ainda não é de modo algum se oferece como algo que se lhe ajunta no sentido de algo que aindanão é simplesmente dado O próprio fruto amadurece O amadurecimento e o amadurecer caracterizamlhe o ser enquanto fruto Não fosse o fruto um ente que chegasse por si mesmo ao próprio amadurecimento nada que se lhe acrescentasse de fora poderia eliminarlhe o não amadurecimento O aindanão do não maduro não significa uma coisa exterior a qual indiferentemente ao fruto poderia ser simplesmente dada nele ou com ele O aindanão indica o próprio fruto em seu modo específico de ser Enquanto algo à mão a soma incompleta é indiferente ao resto que falta e não está à mão Em sentido rigoroso a soma não pode ser nem indiferente nem não indiferente Em seu amadurecimento o fruto é não apenas não indiferente em relação à maturidade entendida como o outro de si mesmo mas o fruto em amadurecimento é o não amadurecimento O aindanão já está incluído em seu próprio ser não como uma determinação arbitrária e sim como um constitutivo Analogamente a presença enquanto ela é já é seu aindanão O que na presença constitui a não totalidade o insistente antecederasimesma não é nem algo pendente numa junção aditiva nem um aindanãosetertornadoacessível É um aindanão que enquanto ente que é cada presença tem de ser No entanto a comparação com o não estar maduro do fruto a despeito de certa concordância mostra diferenças essenciais Tomálas em consideração significa reconhecer o que há de indeterminado em tudo que dissemos até o momento sobre fim e findar Se também o amadurecimento o ser específico do fruto e modo de ser do aindanão do não amadurecido concorda formalmente com a presença em que tanto um como outro já são num sentido a Filosofia antropologia e ética 183 ser ainda delimitado o seu aindanão isso porém não significa que a maturidade como fim coincidam no tocante à estrutura ontológica do fim Com o amadurecimento o fruto se completa 4 O QUE SIGNIFICA DIZER QUE A MORTE É O FIM Será que a morte a que chega a presença é também completude nesse sentido Sem dúvida com a morte a presença completou seu curso Mas terá ela com isso necessariamente esgotado suas possibilidades específicas Mesmo a presença incompleta finda Por outro lado a presença tem tão pouco necessidade da morte para chegar à maturidade que ela pode ultrapassála antes do fim Na maior parte das vezes ela finda na incompletude ou na decrepitude e desgaste Findar não diz necessariamente completarse Tornase assim mais urgente a questão em que sentido a morte deve ser concebida como findar da presença Findar significa de início terminar e isso num sentido ontológico diverso A chuva acaba Ela não mais está aí O caminho termina Esse findar não faz com que o caminho desapareça Esse terminar qualifica o caminho como algo simplesmente dado Findar enquanto terminar pode pois significar passar a não ser mais simplesmente dado ou só ser simplesmente dado com o fim Esse último findar pode por sua vez ou determinar um ser simplesmente dado que está inacabado um caminho em construção está interrompido ou construir o acabamento de um ser simplesmente dado com a última pincelada acabase o quadro Mas o findar enquanto acabar não inclui em si a completude Ao contrário aquilo que se quer completar deve atingir seu acabamento possível Completude é um modo derivado de acabamento Este só é possível como determinação de um ser simplesmente dado ou de algo à mão No sentido de desaparecer o findar ainda pode modificarse segundo o modo de ser de um ente A chuva findou ou seja Filosofia antropologia e ética 184 desapareceu O pão findou ou seja foi consumido não é mais disponível como algo à mão Enquanto fim da presença a morte não se deixa caracterizar adequadamente por nenhum desses modos de findar Caso se compreendesse o morrer como estarnofim no sentido de um findar nos modos discutidos suporseia a presença como ser simplesmente dado ou como algo à mão Na morte a presença nem se completa nem simplesmente desaparece nem acaba e nem pode estar disponível à mão Da mesma forma que a presença enquanto é constantemente já é o seu aindanão ela também já é sempre o seu fim O findar implicado na morte não significa o ser e estarnofim da presença mas o seu serparaofim A morte é um modo de ser que a presença assume no momento em que é Para morrer basta estar vivo Enquanto serparaofim o findar reclama um esclarecimento ontológico haurido no modo de ser da presença E precisamente apenas a partir da determinação existencial do findar é que se fará compreensível a possibilidade do caráter existencial de um modo de ser do aindanão que se encontra antes do fim O esclarecimento existencial do serparaofim poderá fornecer a base suficiente para se delimitar o sentido possível em que se fala de uma totalidade da presença desde que essa totalidade seja constituída pela morte entendida como fim A tentativa de se alcançar uma compreensão da totalidade dotada do caráter de presença tomandose como ponto de partida um esclarecimento do aindanão e passandose pela caracterização do fim não conduz para a sua meta Ela só mostrou negativamente que o aindanão que cada presença é recusa sua interpretação como o pendente O estarnofim se apresenta como uma determinação inadequada do fim para o qual a presença é em existindo Filosofia antropologia e ética 185 QUESTÕES PARA ESTUDO INDIVIDUAL DO TEXTO QUESTÃO 14 Comente e explique a seguinte afirmação há na presença uma não totalidade contínua e ineliminável que encontra seu fim com a morte Leve em consideração na sua resposta a noção heideggeriana de pendência QUESTÃO 15 Servindose da ideia heideggeriana de que a presença é ser paraamorte comente a seguinte afirmação a presença enquanto ela é já é seu aindanão Filosofia antropologia e ética 186 TEXTO 18 IMORTALIDADE NA VERSÃO PÓSMODERNA Zygmunt Bauman 1925 2017 BAUMAN Zygmunt O malestar da pósmodernidade Rio de Janeiro Zahar 1998 pp 190 204 Um homem livre pensa em tudo menos na morte e sua sabedoria é uma meditação não sobre a morte mas sobre a vida Baruch Spinoza Ética Existe um conto extraordinário O imortal deixado pelo extraordinário escritor argentino Jorge Luis Borges Nesse conto Joseph Cartaphilus de Esmirna após uma longa e árdua viagem chega à Cidade dos Imortais Perambulando pelo palácio labiríntico que era a cidade Joseph foi dominado primeiro pela impressão de espantosa antiguidade depois pela impressão do interminável do estarrecedor e finalmente pela do completamente insensato O palácio estava repleto de corredores sem saída altas janelas inalcançáveis imponentes portas que conduziam a um cubículo ou buraco inacreditáveis escadas invertidas cujos degraus e balaustradas inclinavamse para baixo Outras escadas unidas aereamente à lateral da monumental parede terminavam sem conduzir a parte alguma depois de dar duas ou três voltas na majestosa escuridão das cúpulas E assim por diante Nesse palácio construído por imortais para imortais nada parecia ter sentido nada servia a nenhuma finalidade mas permitamnos observar em cada Filosofia antropologia e ética 187 pormenor havia um vestígio uma lembrança de formas concebidas nas cidades habitadas por seres mortais e desse modo podia expressar e brandir seu absurdo desafiando com estardalhaço os fins para que foi originalmente inventado Essa deve ter sido uma cidade não de quaisquer imortais mas daqueles imortais que primeiro passaram pela experiência de ser mortal aprenderam as habilidades que refletiam tal experiência e então certo tempo depois alcançaram a imortalidade Naquele momento eles ainda sentiam a necessidade de expressar a chocante descoberta de que tudo aprendido antes se tornou subitamente inútil e destituído de significado A essa altura contudo haviam abandonado até o palácio que construíram no momento da descoberta Joseph encontrouos jazendo nas covas rasas da areia desses lamentáveis buracos emergiam homens barbudos e macilentos de pele acinzentada e nus Não me espantou que eles não conseguissem falar e que devorassem serpentes Não era isso que Joseph ao se aventurar na expedição para escapar à própria e temida morte esperava que ocorresse num mundo regido pela bemaventurança perpétua da vida eterna Mas então ele compreendeu Ser imortal é coisa comum Com exceção do homem todas as criaturas são imortais pois ignoram a morte O que é divino incompreensível é saber que se é imortal Tudo dentre os mortais tem o valor do irrecuperável e do perigoso Dentre os Imortais de outro lado todo ato e todo pensamento é o eco de outros que o precederam no passado sem nenhum início visível ou o constante presságio de outros que no futuro o repetirão a um grau vertiginoso Nada pode acontecer apenas uma vez nada é preciosamente precário As conclusões são tão lúcidas quanto são esmagadoras na vida humana tudo conta porque os seres humanos são mortais e sabem disso Tudo o que os mortais humanos fazem tem sentido devido a esse conhecimento Se a morte algum dia fosse derrotada não haveria mais sentido em todas aquelas coisas que eles Filosofia antropologia e ética 188 laboriosamente juntam a fim de injetar algum propósito em sua vida absurdamente breve Essa cultura humana que conhecemos as artes a política a intricada teia de relações humanas ciência ou tecnologia foi concebida no ponto do trágico mas fatal encontro entre o período finito da existência física humana e a infinitude da vida espiritual humana O ponto crucial da questão é que o conhecimento da mortalidade significa ao mesmo tempo o conhecimento da possibilidade de imortalidade Em consequência não se pode estar ciente da mortalidade sem encarar a inevitabilidade da morte como uma afronta e uma indignidade e sem pensar nas maneiras de corrigir o erro Estar ciente da mortalidade significa imaginar a imortalidade sonhar com a imortalidade trabalhar com vistas à imortalidade ainda que como adverte Borges seja somente esse sonho que enche a vida de significado enquanto a vida imortal se algum dia alcançada traria somente a morte do significado Talvez se indagado Freud respondesse que o nosso perpétuo impulso em direção à imortalidade é em si o efeito do instinto da morte Ou poderseia falar acompanhando Hegel da astúcia da razão ela consola os mortais ao acenarlhes com a perspectiva da imortalidade mas só ao ocultar o fato de que unicamente enquanto permanecerem mortais a perspectiva de imortalidade pode afigurarse um consolo É a implacável realidade da morte que torna a imortalidade uma proposta atraente mas é a mesma realidade que torna o sonho da eternidade uma força ativa um motivo para ação A imortalidade é afinal um empreendimento uma condição antinatural que não surgirá por si mesma a não ser engabelada ou obrigada a existir Realizar o sonho exigiria muito esforço e estratégia inteligente E a história humana estava abarrotada de tais esforços ditados por duas estratégias básicas A primeira era coletiva Os seres humanos individuais são mortais mas não aquelas totalidades humanas de que eles fazem parte a que pertencem A Igreja a Nação o Partido a Causa aqueles para Filosofia antropologia e ética 189 citar a memorável expressão de Émile Durkheim seres maiores do que eu mesmo todos eles viverão muito mais do que qualquer de seus membros porém viverão mais talvez até para sempre exclusivamente graças ao esforço de cada um e de todos os membros para assegurarlhes a vida eterna à custa da própria vida Desse modo foi concedido significado à morte individual Não foi em vão Mas o significado é derivativo e não augura preservação do indivíduo sob qualquer aspecto ou forma A preocupação com a imortalidade individual dissolvese no empreendimento de servir a imortalidade do grupo Com isso a própria individualidade dissolvese o que ajuda imensamente o grupo em seus incessantes esforços para subordinar preocupações individuais da vida ao que for declarado do interesse da sobrevivência do grupo Os túmulos de soldados desconhecidos que ornamentam todas as capitais do mundo sintetizam o ponto essencial dessa estratégia visando ao mesmo tempo o seu contínuo fascínio A segunda estratégia era individual Fisicamente todos os indivíduos devem morrer mas alguns homens qualificados como importantes por essa mesma razão podem ser preservados como indivíduos na memória de seus sucessores Essa outra vida póstuma pode em princípio durar tanto quanto existirem homens com memória Mas é necessário que a pessoa se faça gravar nessa memória por intermédio dos seus feitos inconfundivelmente feitos individuais feitos que ninguém mais realizou De um modo geral embora não exclusivamente dois tipos de feitos estiveram em competição por essa espécie de imortalidade isto é para reivindicar o direito de permanecer para sempre na memória humana Os primeiros eram realizações de governantes e líderes de homens reis legisladores generais os segundos eram empreendimentos de autores filósofos poetas artistas Nas palavras colocadas por Platão na boca de Sócrates a alma é extremamente semelhante ao divino e imortal e em consequência na família dos deuses a menos que se Filosofia antropologia e ética 190 seja um filósofo não é permitido a ninguém entrar exceto o amante do estudo Ao contrário da primeira estratégia a segunda era particularmente inadequada para o consumo de massa Ela era vinculada ao status de individualidade como privilégio como a realização do inigualavelmente dotado extraordinariamente meritório ou sob outros aspectos excepcional Era uma tal individualidade que oferecia a chave mestra para a imortalidade mas algumas pessoas conseguiram ascender a essa individualidade somente porque as outras a multidão a massa nunca o fizeram e nunca tiveram uma possibilidade de fazêlo Obter a imortalidade segundo as regras dessa estratégia significava destacarse da aglomeração e acima do comum Já em Platão o elogio dos filósofos era subscrito pelo desprezo e depreciação daqueles que alegadamente viviam só da carne Não obstante as suas nítidas diferenças nenhuma das duas estratégias poderia sair incólume da revolução moderna que Michel Foucault descreveu como antes de tudo o entrincheiramento do poder individualizante o poder que em princípio constituiu todos os seus objetos como indivíduos empregando técnicas de poder que exigiam que a responsabilidade individual pela formação e exercício das identidades fosse simultaneamente o direito e dever de todos e que providenciaram para que a exigência fosse cumprida A modernidade era uma força democrática populista ao transformar todos os seres humanos em indivíduos de facto ou in spe em esperança no futuro Mas a fórmula da imortalidade coletiva requeria a supressão da individualidade ao passo que a fórmula da imortalidade individual somente tinha sentido enquanto a individualidade permanecesse o privilégio dos poucos A democracia não era o único desafio que a ascensão da modernidade lançava aos habituais meios humanos de enfrentar o sonho da imortalidade O humanismo moderno era outro Como resumiu John Carroll em sua recente reavaliação do legado Filosofia antropologia e ética 191 humanista ele tentou substituir Deus pelo homem colocar o homem no centro do universo divinizálo Sua ambição era instituir uma ordem humana na terra uma ordem inteiramente humana O novo ponto de Arquimedes sobre o qual a Terra e com ela o universo giraria devia ser a vontade humana auxiliada e apoiada pela razão humana Como se verificou porém a vontade humanista atrofiouse até o nada de modo que o altivo e arrogante eu sou degenerou naquele de um inválido crônico que acompanha a vida da janela do hospital Anna Jamroziac Como isso sucedeu MORTE MODERNA E PÓSMODERNA Na ordem divina a cruciante discrepância entre a intemporalidade do pensamento e a temporalidade da carne era uma indignidade mas não uma provocação uma causa de dor mas não de ressentimento Podia até embora não sem a imaginação levada a seu limite ser imbuída de um sentido mais profundo ou louvada como a fonte de todo significado Não ocorria assim na nova ordem humana Ali tudo devia servir aos planos e desejos humanos e tudo o que resistisse à razão e vontade humanas ou as desafiasse era uma abominação A incomensurabilidade dos períodos de tempo intelectual e físico e a morte biológica responsável por ela tornouse então um desafio à inteligência e determinação humanas Em um mundo fundamentado na promessa de liberdade para os poderes criativos humanos a inevitabilidade da morte biológica era a mais obstinada e sinistra das ameaças que pairava sobre a credibilidade dessa promessa e assim sobre o fundamento desse mundo Ao acompanhar os meios da prática moderna que sempre tende a dividir questões grandes e difíceis de tratar em uma série de tarefas menores e acessíveis a apavorante e incontestável questão da morte biológica assomando na extremidade oposta das buscas humanas foi na época moderna repartida desconstruída em uma profusão de tarefas e assuntos que preenchem o período total da vida A Filosofia antropologia e ética 192 modernidade não aboliu a morte somos tão mortais atualmente quanto o éramos no início da era da ordem humana Ela porém trouxe enormes avanços na arte de repelir toda e qualquer causa de morte isto é exceto a causa de todas as causas que é a própria e inata mortalidade humana e impedir que tais causas ocorram Ocupados como estamos tentando observar todas as prescrições e proscrições que a medicina moderna propõe pensamos menos se tanto na vaidade suprema dessa observância O resultado da desconstrução é que o inimigo invisível a morte desapareceu de vista e do discurso No entanto o preço da desconstrução é a vida policiada do princípio ao fim pelas guarnições ubíquas do inimigo banido Havendo recusado enfrentar com coragem a incompatibilidade da promessa moderna com o fato da mortalidade humana tornamonos de fato pelo menos temporariamente inválidos acompanhando a vida das janelas do hospital Temporariamente ou para sempre Este é reconhecidamente um problema discutível e que eu um estranho tanto à clínica médica quanto a ousados projetos biológicos alguém que não sabe mais sobre o atual e o esperado potencial de recentes processos biotecnológicos do que um leigo poderia ou deveria saber não tenho credenciais para apreciar Tenho pouco se tanto a dizer acerca das perguntas cruciais de que depende a resposta ao problema acima o progresso do conhecimento biológico e da técnica médica tem probabilidade de avançar além da suspensão do processo de envelhecimento e chegar a obstar a até então inevitável investida dos processos de desintegração da vida Ele é em outras palavras capaz de efetuar um salto qualitativo de meramente prolongar a vida isto é de adiar o momento em que a pessoa se depara com a morte quanto ao mais inelutável para o rebaixamento da ocorrência da morte de seu atual status de destino inevitável para aquele de contingência isto e atingir a imortalidade prática Deixo essas perguntas para os especialistas Farei uma pergunta diferente de que forma as descobertas no campo da imortalidade prática têm Filosofia antropologia e ética 193 probabilidades de se acomodarem dentro do tipo de sociedade em que estamos E portanto quais são os seus prováveis significado e consequências culturais A nossa sociedade pósmoderna é marcada pelo descrédito escárnio ou justa desistência de muitas ambições atualmente denegridas como utópicas ou condenadas como totalitárias características da era moderna Dentre tais sonhos modernos abandonados e desesperançados está a perspectiva de suprimir as desigualdades socialmente geradas de garantir a todo indivíduo humano uma possibilidade igual de acesso a tudo de bom e desejável que a sociedade possa oferecer Mais uma vez tal como nas etapas iniciais da revolução moderna vivemos numa sociedade cada vez mais polarizada Ao longo do período moderno tendeuse a definir a exclusão social como um soluço temporário no progresso uniforme e implacável sob outros aspectos em direção à igualdade Ela era minimizada pelo mau funcionamento ainda não corrigido mas em princípio corrigível do sistema social não suficientemente racionalizado Os desempregados e sem vencimentos eram encarados como o exército de reserva da mãodeobra o que significava que amanhã ou no dia seguinte seriam sem dúvida convocados ao serviço ativo e se juntariam às fileiras de produtores que em princípio compreenderiam toda a sociedade Esse não é mais o caso Falamos hoje em desemprego estrutural um termo que ainda contrariamente aos fatos alude ao emprego como sendo a norma e dá a entender que a atual falta maciça de emprego é uma anomalia Aqueles sem trabalho não são mais um exército de reserva da mãodeobra o progresso econômico não significa mais procura de mãodeobra o novo investimento significa menos não mais emprego a racionalização significa reduzir postos de trabalho e colocações Podese dizer que na extremidade oposta do espetacular avanço científico e tecnológico o crescimento do PNB passa a medir a produção maciça de redundância e pessoas Filosofia antropologia e ética 194 redundantes Essas pessoas são mantidas vivas mediante o que a estrutura da nossa economia define com mais do que uma insinuação da condenação que toda anormalidade merece como transferências secundárias a dependência que as estigmatiza como um fardo para os assalariados para os ativamente envolvidos na vida econômica para os contribuintes Não requeridas como produtoras inúteis como consumidoras elas são pessoas que a economia com sua lógica de suscitar necessidades e satisfazer necessidades poderia muito bem dispensar O fato de estarem por perto e reivindicarem o direito à sobrevivência é um aborrecimento para o restante de nós Sua presença não poderia mais ser justificada em função da competitividade eficiência ou quaisquer outros critérios legitimados pela razão econômica dominante Não há emprego suficientemente significativo para todas essas pessoas vivas e não há muita perspectiva de algum dia equiparar o volume de trabalho com a multidão daqueles que o querem e o necessitam para escapar à rede de transferências secundárias e ao estigma a ela associado Seria insensato talvez ingênuo mas certamente arriscado excluir a possibilidade de uma ligação estreita entre a premonição de redundância orgânica e os atuais sinais de reavaliação da nova vida e longa vida Vivemos na época do temor demográfico Se durante a era da modernidade do século XVIII um elevado índice de natalidade era considerado um sinal de saúde da nação e mais pessoas significava mais riqueza e poder atualmente ambos são receados como uma ameaça à bemaventurança dos consumidores e como um imposto exasperante sobre recursos limitados Cada vez mais as pessoas são registradas na coluna de débito não na de crédito do cálculo econômico Seria realmente estranho se não houvesse vínculo entre a desvalorização econômica dos totais humanos com a redundância inerente da população e a tendência cultural cada vez mais acentuada de recusar a vontade do direito de viver àqueles que são demasiado fracos ou insignificantes para exigir Filosofia antropologia e ética 195 e assegurar esse direito Para qualquer estudioso sério da cultura seria ingênuo aceitar pelo valor nominal as justificativas culturalmente ordenadas de padrões comportamentais que como bem sabe qualquer estudioso sério da cultura servem para esconder em vez de revelar os verdadeiros motivos e razões a fim de atenuar as contradições entre os valores exaltados e o comportamento praticado assim como tornar aceitável o que os preceitos culturais condenam explicitamente mas a vida exige E assim tendemos a defender o aborto dos ainda não nascidos em função precisamente do princípio humanitário do direito de escolher dos já nascidos ou a eutanásia dos velhos em função do direito de escolher a morte a uma espécie de vida a que a sociedade recusou conferir significado É um paradoxo ou talvez nem tanto um paradoxo afinal e ironia da história ou talvez não uma ironia afinal que um oferecimento realista de qualquer maneira mais realista do que alguma vez antes de imortalidade biológica seja prometido pela ciência numa época em que a mensagem cultural é o excesso ou redundância de vida e quando por conseguinte o impedimento a prevenção e limitação da vida se transforma em valor culturalmente aprovado e incentivado Sob essas circunstâncias podese supor que o oferecimento se enfim se tornar não só realista mas real seja aceito seletivamente e assim se torne outro fator possivelmente o mais poderoso que já existiu estratificado e polarizador Ao fazêlo apenas acompanhará a já visível tendência à privatização de tudo inclusive da possibilidade de sobrevivência ou de viver mais Com a tecnologia de transplante e substituição de órgãos a ciência médica contemporânea adquiriu meios eficientes para prolongar a vida Mas a própria natureza dessa tecnologia acima de tudo embora não unicamente o seu custo exorbitante obsta a sua aplicação universal O acesso à vida mais longa já está tecnologicamente estratificado Poderseia razoavelmente esperar que esses efeitos estratificados se tornassem ainda mais acentuados uma vez que o prolongamento da vida cruza o limiar da Filosofia antropologia e ética 196 imortalidade prática Numa inversão drástica da estratégia moderna de sobrevivência coletivizada a imortalidade biológica tem toda possibilidade de se transformar em um fator e um atributo da individualização a conservação dos mais merecedores Como outrora foi o direito de viver eternamente na memória humana o direito à perpetuidade da existência biológica necessitaria ser obtido ou herdado no que diz respeito a isso É muito provável que se transforme na aposta mais valorizada e cobiçada no jogo competitivo da autoafirmação individual Um exame mais atento da cena cultural pósmoderna sugere fortemente tal reviravolta nos acontecimentos Para o consumo de massa a nossa cultura tem uma mensagem que se tanto desvaloriza ou dilui o sonho da vida eterna e isso mediante o exorcismo do horror da morte Esse efeito é alcançado por meio de duas estratégias aparentemente opostas porém de fato suplementares e convergentes Uma é a estratégia de esconder de vista a morte daqueles próximos à própria pessoa e expulsála da memória colocar os doentes terminais aos cuidados de profissionais confinar os velhos em guetos geriátricos muito antes de eles serem confiados ao cemitério esse protótipo de todos os guetos transferir funerais para longe de locais públicos moderar a demonstração pública de luto e pesar explicar psicologicamente os sofrimentos da perda como casos de terapia e problemas de personalidade A morte próxima de casa é dissimulada enquanto a morte como um transe humano universal a morte dos anônimos e generalizados outros é exibida espalhafatosamente convertida num espetáculo de rua nunca findo que não mais evento sagrado ou de carnaval é apenas um dentre muitos dos acessórios da vida diária Assim banalizada a morte tornase demasiado habitual para ser notada e excessivamente habitual para despertar emoções intensas E a coisa usual excessivamente comum para ser dramática e certamente demasiado comum para se ser dramático a respeito Seu horror é exorcizado pela sua onipresença tornado ausente pelo Filosofia antropologia e ética 197 excesso de visibilidade tornado ínfimo por ser ubíquo silenciado pelo barulho ensurdecedor E enquanto a morte se desvanece e posteriormente desaparece pela banalização assim também o investimento emocional e volitivo no anseio por sua derrota É como se a multidão houvesse sido subreptícia mas persistentemente treinada a não desejar o que é improvável que consiga de qualquer modo a não ambicionar a vida eterna quando e se ela se tornar viável Tanto aqueles elegíveis para a imortalidade pessoal quanto aqueles deixados para trás concordariam que somente um determinado tipo de vida merece ser prolongado para sempre embora ambos os lados o aceitassem um conjeturaria por diferentes razões e inspirado por uma experiência de vida diferente O tipo de sociedade com probabilidades de ser construída sobre tal consenso não é muito difícil de imaginar mas talvez demasiado apavorante por enquanto isto é em momento próximo demais às ingênuas mas emocionantes ambições da civilização moderna e das práticas da civilização pósmoderna IMORTALIDADE MODERNA E PÓSMODERNA Como observamos antes foi ela a única e original obra e ato que durante a maior parte da história humana resultou na individualidade das condições de autor e de agente assegurando assim ou se esperou que assegurasse a imortalidade do indivíduo como indivíduo se bem que somente uma imortalidade individual composta de recordações e ritos comemorativos A modernidade fortaleceu e democratizou essa estratégia de imortalidade individual outrora disponível principalmente para príncipes e filósofos tornandoa acessível ao crescente número dos que exercem sempre novos ofícios e profissões Contudo o início da era nitidamente pós moderna coincidiu com a proclamação da morte do autor De Roland Barthes e Michel Foucault até Jacques Derrida e Jean Baudrillard todos os observadores mais perspicazes dos meandros da cultura contemporânea e fornecedores de suas mais influentes auto Filosofia antropologia e ética 198 interpretações chamam a atenção para o anonimato dos textos que se autodesdobram para os quais os autores perderam o seu outrora estimado acesso privilegiado sendo privados no caminho do seu anterior monopólio de elaboração do significado e da interpretação Os mais meditativos e filosoficamente perspicazes artistas pós modernos ao se esforçarem para representar o espírito e a tendência de sua era em sua obra e nas técnicas com que as obras são executadas mais do que qualquer outra coisa retratam e expressam a ausência do original Compositores de discos populares gravam o que já foi gravado Andy Warhol pinta o que já foi pintado Sherrie Levine fotografa o que já foi fotografado eles e muitos outros citam cotejam rearranjam recompõem e acima de tudo copiam e multiplicam as imagens já criadas fazendo circular a questão da autoria e originalidade e providenciando para que a questão não possa ser formulada novamente de nenhum modo significativo Andy Warhol deuse ao trabalho de eliminar o original de seu processo artístico Desenvolveu técnicas que permitiam a criação de qualquer número de cópias mas impossibilitavam que se selecionasse qualquer uma delas como a original ou a primeira Todos nós que confiamos nossos pensamentos a computadores em vez de a folhas manuscritas ou datilografadas e interagimos com a tela incessantemente reescrevendo e reordenando o que escrevemos sabemos muitíssimo bem que cada versão seguinte torna as versões anteriores nãoexistentes apagando todos os traços do caminho que nos conduziu até onde então estamos A escrita em computador extinguiu a outrora sagrada ideia da versão original Os estudantes formados do próximo século sentirão muita falta dos temas prediletos das dissertações deste século reconstituir as sucessivas etapas da luta do autor com os próprios pensamentos até o início até o ato original da inspiração e assim recontar o drama da criação individual Assim os computadores lançam uma sombra gigantesca sobre a nossa imagem herdada do escritor como autor o próprio nome do programa que usamos para escrever não sugere um Filosofia antropologia e ética 199 processador de palavras em vez de um compositor de ideias pensador e criador Em sua brilhante apreensão das consequências culturais da Segunda Era dos Meios de Comunicação que começou com o estabelecimento das redes de computadores interligados a Internet e a realidade virtual Mark Poster salienta que as palavras e imagens procriam com indecente rapidez não marmoreamente como numa fábrica centralizada mas rizomicamente em qualquer localização descentrada A mudança para uma rede de comunicações descentralizada transforma os transmissores em receptores os produtores em consumidores os governantes em governados e permitamme acrescentar transforma os autores nos processadores do material cada vez mais anônimo e órfão ZB perturbando a lógica de entendimento da primeira era dos meios de comunicação Realmente quem possui os direitos do texto dos quadros de aviso da Internet e por conseguinte é responsável por ele o autor o operador do sistema a comunidade de participantesMark Poster Ou permitamme acrescentar o próprio sistema que certamente envolve todas essas pessoas mas não pode ser reduzido à vontade às intenções de nenhuma delas Os direitos de propriedade e reivindicações autorais perdem muito do seu sentido depois que a informação foi liberada para se movimentar e se multiplicar como se por sua livre vontade e seu momento na terra de ninguém do espaço cibernético Os operadores humanos não fazem parte desse momento Eles acionam processos que não comandam e quase nunca são capazes de monitorar quanto mais supervisionar Ninguém controla a lógica desse impulso cultural que ocorre no interior do espaço cibernético que é espaço cibernético Como afirmou certa vez Jean Baudrillard esse meio interage unicamente consigo mesmo Os signos expandemse eles concatenamse e produzem a si mesmos sempre um sobre o outro de modo que não existe absolutamente nenhuma referência básica que possa sustentálos Filosofia antropologia e ética 200 O receptáculo em que a imortalidade dos feitos humanos individuais foi armazenada para preservação foi a memória humana O anseio por tornar o receptáculo ainda mais seguro e com capacidade suficiente para acomodar a democratização da imortalidade individual deve ter proporcionado um poderoso ímpeto para a invenção e o desenvolvimento de computadores como acima de tudo uma memória artificial Mas o resultado não inteiramente previsto desse anseio foi que o ser humano sozinho dentre as espécies e não admira que ele esteja sozinho uma vez que todas as outras espécies são imortais por omissão não por ação graças a não se darem conta da sua mortalidade em vez de por realizarem a tarefa da autoimortalização está buscando construir seu duplo imortal uma espécie artificial inaudita Uma consequência foi a substituição da imortalidade dos vivos pela imortalidade de objetos mortos Ao visar à imortalidade virtual técnica e garantir a sua exclusiva perpetuação por uma projeção em artefatos a espécie humana está precisamente perdendo a própria imunidade e especificidade e tornandose imortalizada como uma espécie inumana está abolindo em si mesma a mortalidade dos vivos em favor da imortalidade dos mortos Mas outra consequência foi a elevação desses objetos mortos a uma espécie virtual com suas próprias leis de evolução seus indiscriminados modelos de procriação suas mutações mutantes vírus e imunidades assim como seus tropismos e mecanismos de assimilação metabolismo e adaptação Ninguém controla essa nova espécie nem mesmo a própria nova espécie o dispositivo inventado para extinguir a mais cruciante das contingências tornouse ele próprio como todas as espécies a contingência encarnada Programado para tornar a imortalidade humana segura ele emancipou o destino da imortalidade dos esforços humanos Expropriou a imortalidade dos indivíduos humanos que ansiavam por tornar as suas façanhas individuais eternamente vivas Em vez de garantir imortalidade aos autores ele aboliu a autoria da vida eterna Filosofia antropologia e ética 201 A imortalidade individual de grandes atos e pensamentos seguiu o caminho da imortalidade coletivizada das massas Também a imortalidade dos indivíduos como indivíduos foi então coletivizada Entregue aos caprichos da espécie alimentase da morte do indivíduo A imortal espécie dos computadores revelouse uma grande igualadora não porque elevou todos às fileiras outrora reservadas exclusivamente aos grandes homens mas porque extinguiu a noção dos grandes homens como uma categoria que tinha probabilidade de um tipo de imortalidade diferente dos mortais comuns aqueles a que era sempre oferecida a imortalidade por procuração mediante o sacrifício de suas vidas no altar da espécie ou de uma parte selecionada da espécie Com a capacidade infinita e o apetite insaciável da memória artificial ser registrado não é mais a recompensa dos poucos eleitos nem necessariamente o resultado do próprio empreendimento de alguém Agora todos têm a possibilidade e a probabilidade de ter o nome e registro de vida conservados para sempre na memória artificial dos computadores Pela mesma razão ninguém tem a possibilidade de obter um acesso privilegiado à comemoração perpétua A fama essa premonição da imortalidade foi suplantada pela notoriedade essa imagem da contingência infidelidade e inconstância do destino Quando todos podem ter um quinhão dos refletores ninguém permanece sob os refletores para sempre mas tampouco ninguém submerge para sempre na escuridão A morte a irrevogável e irreversível ocorrência foi suplantada pelo ato do desaparecimento os refletores movemse para outro local mas sempre podem voltarse e de fato se voltam para o outro lado Os desaparecidos estão temporariamente ausentes não totalmente ausentes porém eles estão tecnicamente presentes armazenados em segurança no depósito da memória artificial sempre prontos a serem ressuscitados sem muita dificuldade e a qualquer momento Se a modernidade se esforçou para desconstruir a morte em nossa época pósmoderna é a vez de a imortalidade ser Filosofia antropologia e ética 202 desconstruída Mas o efeito global é a obliteração da oposição entre morte e imortalidade entre o transitório e o duradouro A imortalidade não é mais a transcendência da mortalidade É tão instável e extinguível quanto a própria vida tão irreal quanto se tornou a morte transformada no ato do desaparecimento ambas são receptivas à interminável ressurreição mas nenhuma à finalidade Foi a consciência da morte que insuflou vida na história humana Por trás da ilimitada inventiva sedimentada na cultura humana achavase o conhecimento da morte que convertia a brevidade da vida numa ofensa à dignidade humana um desafio à inteligência humana que requeria transcendência alargava a imaginação incitava à ação Sem conhecer a morte os animais vivem na imortalidade sem realmente se esforçar por isso os seres humanos devem merecer conquistar construir a sua imortalidade Eles enfim o conseguiram mas somente ao ceder a imortalidade a uma espécie artificial vivendo a própria imortalidade como uma realidade virtual Com as oposições entre realidade e representação signo e significado virtual e real progressivamente obliteradas a imortalidade técnica e virtual não se apoderaria do que a imortalidade outrora possuiu como um empreendimento como sonho irrealizado A nova imortalidade virtual e técnica a imortalidade por procuração não é um desvio um sinuoso retorno à imortalidade a priori imortalidade por desconhecimento da espécie nãohumana e inumana O conhecimento da morte é a tragédia especificamente humana Costumava ser também a fonte imperecível da grandeza especificamente humana o móvel das melhores realizações humanas Não sabemos se a grandeza sobreviverá à tragédia ainda não a experimentamos não estivemos aqui antes O mundo que temos habitado até aqui está salpicado pelas marcas e traços deixados pelos nossos esforços em escapar para a imortalidade Depois que obtivemos um equivalente eletrônico do retrato de Dorian Gray podemos ter conquistado para nós um mundo sem Filosofia antropologia e ética 203 rugas mas também sem paisagem história e objetivo Bem podemos ter achado o caminho para a Cidade dos Imortais de Jorge Luis Borges