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Filosofia

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CAPÍTULO IV CAPÍTULO III A EDITORA FORENSE se responsabiliza pelos vícios do produto no que concerne à sua edição aí compreendidas a impressão e a apresentação a fim de possibilitar ao consumidor bem manuseálo e lêlo Os vícios relacionados à atualização da obra aos conceitos doutrinários às concepções ideológicas e referências indevidas são de responsabilidade do autor eou atualizador As reclamações devem ser feitas até noventa dias a partir da compra e venda com nota fiscal interpretação do art 26 da Lei n 8078 de 11091990 Licensed by The University of Chicago Press Chicago Illinois USA 1958 by The University of Chicago Introduction by Margaret Canovan 1998 by The University of Chicago All rights reserved A condição humana ISBN 9788530972165 Direitos exclusivos da presente edição para o Brasil Copyright 2014 by FORENSE UNIVERSITÁRIA um selo da EDITORA FORENSE LTDA Uma editora integrante do GEN Grupo Editorial Nacional Travessa do Ouvidor 11 6º andar 20040040 Rio de Janeiro RJ SAC 11 50800751 faleconoscogrupogencombr bilacpintogrupogencombr wwwgrupogencombr O titular cuja obra seja fraudulentamente reproduzida divulgada ou de qualquer forma utilizada poderá requerer a apreensão dos exemplares reproduzidos ou a suspensão da divulgação sem prejuízo da indenização cabível art 102 da Lei n 9610 de 19021998 Quem vender expuser à venda ocultar adquirir distribuir tiver em depósito ou utilizar obra ou fonograma reproduzidos com fraude com a finalidade de vender obter ganho vantagem proveito lucro direto ou indireto para si ou para outrem será solidariamente responsável com o contrafator nos termos dos artigos precedentes respondendo como contrafatores o importador e o distribuidor em caso de reprodução no exterior art 104 da Lei n 961098 13a edição 2016 13a edição 2a reimpressão 2017 13a edição 3a reimpressão 2018 13a edição 4a reimpressão 2019 13a edição 5a reimpressão 2020 Tradução Roberto Raposo Revisão técnica e apresentação Adriano Correia Introdução Margaret Canovan Foto de capa Courtesy of the Hannah Arendt Bluecher Literary Trust Produção digital Ozone CIP Brasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ A727c 13 ed Arendt Hannah 19061975 A condição humana Hannah Arendt tradução Roberto Raposo revisão técnica e apresentação Adriano Correia 13 ed rev Reimpr Rio de Janeiro Forense Universitária 2020 il Tradução de The human condition sumário ISBN 9788530991920 1 Sociologia 2 Economia 3 Tecnologia 4 Ciência política I Título 1409084 CDD 301 CDU 306 NOTA À REVISÃO TÉCNICA Aintervenção no texto de A condição humana da edição anterior a essa cuja necessidade vem sendo apontada há bastante tempo entre os estudiosos do pensamento arendtiano no Brasil1 excedeu o âmbito da revisão técnica dos conceitos filosóficos contidos na obra a despeito de ter sido essa a intervenção mais decisiva Isso fez com que as várias alterações ultrapassassem o domínio da supressão de eventuais imprecisões e visassem também à conservação de uma unidade estilística O revisor buscou principalmente uniformizar a versão dos conceitos optar por termos já consagrados na literatura filosófica em português além de visar a uma maior literalidade e mais estreita proximidade com o estilo da escrita arendtiana marcado pela estrutura da língua materna o alemão com sentenças longas e estruturação muitas vezes inusual Do ponto de vista conceitual a principal intervenção consistiu na alteração da tradução dos termos labor e work traduzidos anteriormente por labor e trabalho e vertidos na presente edição como trabalho e obra consoante as traduções italiana lavoro opera e francesa travail oeuvre e distintamente da tradução espanhola labor trabajo Hannah Arendt antecipa as dificuldades da tradução quando indica quão inusitada é a sua distinção entre labor e work no início da seção 11 no capítulo III Ela insiste entretanto na centralidade dessa distinção e da sua diluição cuja evidência fenomênica ela encontra na persistência nas línguas europeias até a era moderna de duas palavras para o que viemos a designar apenas como trabalho para a compreensão do caráter da era moderna Para além do fato de que na sua discussão com Karl Marx e John Locke por exemplo ela recorra aos termos Arbeit e labor para designar trabalho e Werk e work para designar obra ou fabricação julgamos que ao optarmos por trabalho e obra para traduzir labor e work estamos em acordo com as precisas indicações de Arendt quando por exemplo ela compara as diversas línguas europeias na nota 39 à seção 6 no capítulo II e principalmente na nota 3 no capítulo III à seção intitulada The labour of our body and the work of our hands em que afirma o seguinte assim a língua grega distingue entre ponein e ergazesthai o latim entre laborare e facere ou fabricare que têm a mesma raiz etimológica o francês entre travailler e ouvrer o alemão entre arbeiten e werken Em todos esses casos apenas os equivalentes de labor têm uma conotação inequívoca de dores e penas O alemão Arbeit se aplicava originalmente apenas ao trabalho agrícola executado por servos e não à obra do artesão que era chamada Werk O francês travailler substituiu o mais antigo labourer e deriva de tripalium uma espécie de tortura A despeito de Hannah Arendt não mencionar o português o que se aplica ao francês etimologicamente também se ajusta ao nosso idioma2 Ainda no início do capítulo III ao comentar e buscar justificar sua distinção inusitada entre labor e work Arendt indica ser linguisticament e fundamental o fato de que a despeito da progressiva indistinção entre os dois termos na era moderna reste um resíduo da antiga dessemelhança o fato de a palavra labor como substantivo jamais designar o resultado final da atividade de trabalhar para o qual frequentemente são empregados termos afins a work mesmo nos casos em que a forma verbal correspondente a esses termos tenha se tornado antiquada Essa observação nos permite comentar adicionalmente a opção por traduzir work por obra e não por fabricação a despeito de Arendt empregar como sinônimos ao longo do presente livro os termos work e fabrication este último traduzido aqui sempre por fabricação notadamente no que concerne à atividade designada por eles uma vez que com relação ao produto final da atividade ela opte predominantemente por work O estranhamento com a forma verbal de work transferiuse para o português nas poucas ocasiões em que tivemos de verter expressões como work upon operar em Optamos por não inserir notas ao texto mas sempre que tivemos de lidar com opções difíceis ou inusuais de tradução indicamos o original entre colchetes As dificuldades são ampliadas pelo fato de Arendt frequentemente empregar alguns termos como sinônimos e em poucas ocasiões fazer parecer que há alguma distinção significativa entre eles Isso não se aplica às palavras solitudeEinsamkeit solitude e lonelinessVerlassenheit desamparo cujos contornos são bastante bem delineados na última seção do capítulo II mas é o caso de making fabricating e producing que aparentemente são empregados como sinônimos ao longo do livro mas aparecem reunidos logo no início da seção 33 no capítulo V como se se referissem a atividades que conservariam alguma distinção entre si o que fez com que as traduzíssemos por fazer fabricar e produzir O mesmo ocorre no início da seção 4 no capítulo II quando Arendt escreve working and fabricating and building obrando fabricando e construindo assim como na seção 31 no capítulo V e no final da seção 42 no capítulo VI quando grafa work and fabrication obra e fabricação Para a presente revisão foram consultadas com frequência as traduções alemã Vita activa oder Vom tätigen Leben Piper 2007 francesa Condition de lhomme moderne trad Georges Fradier CalmannLévy 2007 e espanhola La condición humana trad Ramón Gil Novales Paidós 2005 O cotejo com essas edições foi fundamental mesmo nas ocasiões em que não as acompanhamos Sobre a edição alemã cujo texto final foi estabelecido pela própria Arendt cabe notar que é mais uma reescrita que uma tradução propriamente dita Dentre as principais alterações cabe assinalar a incorporação de várias notas ao corpo do texto o acréscimo de inúmeras novas frases a grafia das palavras gregas nos caracteres do alfabeto grego o recurso frequente a obras da literatura alemã e significativas alterações nos títulos de algumas seções Em vista disso a edição alemã nos foi útil principalmente na versão de alguns termos específi cos de modo que eventualmente incluímos entre colchetes os correspondentes alemães dos termos em inglês Entretanto é digno de nota que em alemão Arendt que na edição original em inglês intitula Work o quarto capítulo conservando em toda parte no corpo do texto essa palavra empregando o termo fabrication fabricação com menor frequência opta por intitulálo Das Herstellen O fabricar conservando não obstante a palavra Werk obra no título da seção 11 e na palavra Kunstwerk obra de arte naturalmente Na edição alemã a atividade da obra é designada por Herstellen enquanto o produto dessa atividade é designado por Werk Não ficam claras as razões dessa opção conceitualmente muito mais precisa de Arendt para a edição alemã mas isso possivelmente se deu porque o verbo werken é pouco utilizado enquanto o substantivo Werk ainda é usual no vocabulário alemão corrente como ela nota no início da seção 11 Em todo caso como traduzimos do original em inglês optamos por uniformizar a tradução de work por obra e de fabrication por fabricação a despeito de eles poderem ser utilizados conceitualmente como equivalentes inclusive porque caso contrário restariam incompreensíveis vários trechos do livro nos quais ela emprega ambos os termos como em vários momentos na seção 19 na qual grafa por exemplo work of fabrication obra da fabricação Traduzimos a palavra self por simesmo sempre que Arendt pareceu pretender indicar uma interioridade solipsista que opera como o espaço próprio da alienação em relação ao mundo Em alemão Arendt empregou em geral o termo Selbst e no prólogo Selbstbewusstsein que pode ser traduzido por autoconsciência ou consciência de si Vertemos mind sempre por mente em vez de espírito Ao contrário do uso desse termo em A vida do espírito The life of the mind em A condição humana Hannah Arendt emprega o termo notadamente no capítulo VI no âmbito de sua análise da era moderna no qual o termo mind é relacionado antes ao raciocínio que às capacidades espirituais do pensamento da vontade e do juízo Restauramos na revisão a distinção fundamental a Arendt entre story estória e history história A despeito de ser um tanto antiquado em português o uso do termo estória no sentido empregado no texto julgamos que o próprio contexto no qual a autora emprega os termos lança luz sobre a especificidade do uso conceitual dessas palavras Hannah Arendt emprega ao longo do livro as expressões public realm public space e public sphere que traduzimos respectivamente por domínio público espaço público e esfera pública Foram mantidos os padrões de transliteração do grego e de referência bibliográfica empregados por Hannah Arendt na edição em inglês embora tenhamos aproveitado a ocasião para corrigir poucos problemas tipográficos que remanesciam nas edições brasileiras anteriores a essa Seguramente restam imprecisões e equívocos de responsabilidade integral do revisor técnico que podem ser dirimidos no futuro Gostaria de agradecer a essa editora pelo zelo e pela paciência durante o longo período de revisão desta tradução sem os quais seria inviável levála a cabo Agradeço ainda a generosa disponibilidade de Celso Lafer Bethânia Assy e André Duarte e também a Vanessa Sievers de Almeida e Wolfgang Heuer pelo auxílio no esclarecimento de algumas opções de Arendt na edição alemã da presente obra Foi fundamental à correção de importantes passagens nessa revisão o auxílio inestimável de Theresa Calvet de Magalhães e de Vanessa Sievers de Almeida na revisão final pelo qual sou imensamente grato Agradeço por fim a Adriana Delbó pela leitura atenta e por tudo o mais Adriano Correia 1 Cf o texto pioneiro de Theresa Calvet de Magalhães A categoria de trabalho labor em Hannah Arendt Ensaio 14 p 131 168 1985 A versão corrigida com o título A atividade humana do trabalho labor em Hannah Arendt foi publicada na revista Ética Filosofia Po lítica de Juiz de Fora no v 9 n 1 jun 2006 e está disponível na internet httpwwweticaefilosofiauffbr91theresapdf 2 Cf a esse respeito Antenor Nascentes Dicionário etimológico da língua portuguesa Rio de Janeiro 1955 José Pedro Machado Dicionário etimológico da língua portuguesa Lisboa Confluência 1959 v II e Antonio Geraldo Cunha Dicionário etimológico Nova Fronteira 2 ed São Paulo Nova Fronteira sd SUMÁRIO PENSAR O QUE ESTAMOS FAZENDO INTRODUÇÃO PRÓLOGO Capítulo I A CONDIÇÃO HUMANA 1 A vita activa e a condição humana 2 O termo vita activa 3 Eternidade versus imortalidade Capítulo II OS DOMÍNIOS PÚBLICO E PRIVADO 4 O homem um animal social ou político 5 A pólis e a família 6 O advento do social 7 O domínio público o comum 8 O domínio privado a propriedade 9 O social e o privado 10 A localização das atividades humanas Capítulo III TRABALHO 11 O trabalho de nosso corpo e a obra de nossas mãos 12 O caráterdecoisa do mundo 13 Trabalho e vida 14 Trabalho e fertilidade 15 A privatividade da propriedade e da riqueza 16 Os instrumentos da obra e a divisão do trabalho 17 Uma sociedade de consumidores Capítulo IV OBRA 18 A durabilidade do mundo 19 Reificação 20 A instrumentalidade e o animal laborans 21 A instrumentalidade e o homo faber Prezadas alunas e alunos Neste livro vamos ler apenas os textos do capítulo II abaixo indicados O homem animal social ou político A polis e a família O domínio público o comum O domínio privado a propriedade 22 O mercado de trocas 23 A permanência do mundo e a obra de arte Capítulo V AÇÃO 24 A revelação do agente no discurso e na ação 25 A teia de relações e as estórias encenadas 26 A fragilidade dos assuntos humanos 27 A solução grega 28 O poder e o espaço da aparência 29 O homo faber e o espaço da aparência 30 O movimento dos trabalhadores 31 A substituição da ação pela fabricação 32 O caráter processual da ação 33 A irreversibilidade e o poder de perdoar 34 A imprevisibilidade e o poder de prometer Capítulo VI A VITA ACTIVA E A ERA MODERNA 35 A alienação do mundo 36 A descoberta do ponto arquimediano 37 Ciência universal versus ciência natural 38 O advento da dúvida cartesiana 39 A introspecção e a perda do senso comum 40 O pensamento e a moderna concepção do mundo 41 A inversão entre contemplação e ação 42 A inversão dentro da vita activa e a vitória do homo faber 43 A derrota do homo faber e o princípio de felicidade 44 A vida como o bem supremo 45 A vitória do animal laborans AGRADECIMENTOS PENSAR O QUE ESTAMOS FAZENDO Adriano Correia Um menino nasceu o mundo tornou a começar João Guimarães Rosa Grande sertão veredas Do mesmo solo de desesperada esperança e de desesperado medo de temerário otimismo e de temerário desespero1 de onde brotou As origens do totalitarismo manam os problemas fundamentais enfrentados em A co ndição humana por Hannah Arendt Ambas as obras surgem da mesma disposição para a compreensão orientada não pela tentativa de negar os eventos extremos ao assimilálos à trivialidade da linearidade histórica encadeada por analogias leis universais generalidades e lugarescomuns mas pela corajosa determinação para enfrentar a realidade e resistir a ela seja ela qual for Em vista disso possivelmente uma das mais privilegiadas tril has para a compreensão do significado e da razão de ser de A condição humana encontrase na alteração do final de As origens do totalitarismo levada a cabo por Hannah Arendt na segunda edição da obra mediante a incorporação do ensaio Ideologia e terror2 no mesmo ano 1958 em que foi publicada a presente obra Nas últimas páginas da primeira edição de As origens do totalitarismo Arendt faz uma referência peculiar ao conceito kantiano de mal radical que teria surgido em conexão com um sistema no qual todos os homens se tornaram igualmente supérfluos3 A radicalidade desse mal repousaria não na corrupção do fundamento moral de todas as máximas com a recusa deliberada ou não da lei moral como móbil para a ação em nome da satisfação dos interesses ou apetições como em Kant 4 mas no mal absoluto contido na possibilidade de erradicação da pluralidade da face da Terra ao se tornar os seres humanos como seres humanos supérfluos não os usando como meios para um fim o que deixaria intocada sua essência como humanos atingindo apenas sua dignidade humana mas mais propriamente tornandoos supérfluos como se res humanos5 Os campos de concentração para Hannah Arendt operaram como laboratórios nos quais se experimentou a transformação da própria natureza humana mediante a destruição da espontanei dade de cada indivíduo tornado intercambiável e supérfluo Está em questão a dignidade humana pois para ela o respeito pela dignidade humana implica o reconhecimento de cada indivíduo humano como edificador de mundos ou coedificador de um mundo comum6 Na última frase do livro ela observa que as soluções totalitárias podem bem sobreviver à queda dos regi mes totalitários na forma de fortes tentações que surgirão sempre que parecer impossível aliviar a miséria política social ou econômica de um modo digno do homem7 Hannah Arendt publicou em 19538 o texto Ideologia e terror cuja articulação principal consiste em uma interpretação do regime totalitário à luz da teoria das formas de governo concebida por Montesquieu Em sua reflexão ela não apenas acrescenta aos dois critérios de Montesquieu a natureza aquilo que o faz ser o que é sua estrutura particular e o princípio de ação de um regime aquilo que o coloca em movimento por meio de ações um terceiro elemento uma experiência fundamental na qual repousa cada um deles9 mas julga ainda que o totalitarismo é uma nova forma de dominação que representa a destruição do político na medida em que a experiên cia fundamental que subjaz a ela é profundamente antipolítica Com efeito enquanto a monarquia repousa sobre a honra e a república sobre a virtude ambas respondendo à condição humana da pluralidade a tirania se assenta sobre a angústia do isolamento e do medo e o totalitarismo se apoia na experiência fundamental do desamparo loneliness à qual Arendt retornará na décima seção de A condição humana Enquanto na monarquia e na república o princípio de ação se define pelo que se almeja e na tirania pelo que se teme no totalitarismo o terror visa a gerar indivíd uos que não almejem a coisa alguma não definida na ideologia e que no seu desamparo já não participem do temor da própria aniquilação Contudo diz Arendt o desamparo organizado é consideravelmente mais perigoso que a impotência desorganizada de todos aqueles que são governados pela vontade tirânica e arbitrária de um único homem Seu perigo é que ele ameaça devastar o mundo como o conhecemos um mundo que em toda parte parece ter chegado a um fim antes que um novo início surgindo desse fim tenha tido tempo de se estabelecer10 Antes de concluir o ensaio Arendt reafirma sua convicção de que o totalitarismo como potencialidade e perigo sempre presente tende doravante a nos fazer companhia independentemente das falências dos próprios regimes Ela conclui não obstante afirmando o seguinte mas permanece também a verdade de que cada fim na história contém necessariamente um novo início esse início é a promessa a única mensagem que o fim pode produzir O início antes de se tornar um evento histórico é a suprema capacidade do homem politicamente é idêntica à liberdade do homem Initium ut esset homo creatus est para que houvesse um início o homem foi criado disse Agostinho A cidade de Deus Livro 12 cap 20 Esse início é garantido por cada novo nascimento é de fato cada homem11 Datam também de 1953 os primeiros registros dos planos de Arendt de examinar os conceitos de trabalho de obra ou fabricação e de ação assim como a oposição entre filosofia e política singularidade e pluralidade mortalidade e natalidade12 que serão fundamentais a A condição humana Mais importantes todavia são a conferência O conceito do homem como trabalhador e principalmente a série de conferências intitulada A grande tradição e a natureza do totalitarismo proferidas no mesmo período desses primeiros registros Nessa série de conferências do início de 1953 Arendt estabelece estreitos vínculos entre seu exame do regime totalitário e o programa de pesquisa que se delineou doravante para ela Na primeira delas Arendt retoma algumas de suas hipóteses já apresentadas em As origens do totalitarismo notadamente a do totalitarismo como uma nova forma de governo que é um desafio permanente à compreensão justamente porque demoliu nossas categorias de pensamento e padrões de juízo tradicionais Nas conferências seguinte s Arendt retoma tradicionais teorias das formas de governo de Platão e de Montesquieu assinalando a novidade do totalitarismo examina o conceito totalitário de lei moldado consoante a interpretação dos movimentos da história e da natureza identifica a ideologia como o princípio totalitário de ação analisa a relação de oposição entre filosofia e política Mas Arendt não apenas retoma hipóteses Além de examinar inauguralmente a relação entre ação compreensão início perdão e promessa ela reexamina o desamparo como experiência fundamental do regime totalitário sob uma nova luz Ao comparar desamparo isolamento e solitude Arendt ressalta o quanto o isolamento é o prérequisito da tirania que destrói ou torna incapaz de agir destrói a esfera do comum mas não destrói completamente o espaço entre os homens O isolamento é requerido para toda produção de coisas retirome do mundo dos homens e acrescento algo novo ao artifício humano Estou absorvido no mundo ao produzir uma coisa permaneço em contato com tudo Deixo apenas os homens Isso não é verdadeiro para o trabalho não isolamento necessária privacidade O isolamento tornase desamparo loneliness sob as condições do trabalho13 Tais considerações que vinculam estreitamente o totalitarismo e a atividade do trabalho nos conduzem à conferência O conceito do homem como trabalhador Nas duas páginas datilografadas em que ela registra suas notas temos antecipados vários aspectos da estrutura de A condição humana assim como a articulação de muitos de seus conceitos fundamentais O tema da conferência é a vitória do animal laborans na era moderna que se manifesta por exemplo na transformação da obra em trabalho e dos objetos de uso em objetos de consumo14 Consoante a isso no plano teórico ao conceber o trabalho como criador de todos os valores e glorificar a atividade tradicionalmente mais desprezada15 Karl Marx teria apenas radicalizado as posições de Adam Smith para quem o trabalho era o criador de toda riqueza e de John Locke para quem o trabalho era a fonte do direito de propriedade A implicação política mais aguda da prevalência do trabalho sobre todas as outras atividades compreendido como metabolismo do homem com a natureza sujeito à necessidade é a retração da esfera política que enfatiza Arendt sempre depende das teias de relações estabelecidas pela ação e pelo discurso distintamente da obra que se dá no isolamento e da atividade do trabalho realizada em desamparo Em A condição humana Arendt retomou essas consid erações ao indicar que a atividade da obra que supõe o isolamento como um prérequisito estabelece não obstante vínculos ao menos com o mundo tangível de coisas que produziu embora não seja capaz de estabelecer um domínio público autônomo no qual os homens qua homens possam aparecer O modo de vida do artífice pode até ser apolítico mas seguramente não é antipolítico O trabalho entretanto é uma atividade na qual o homem não está junto ao mundo nem convive com os outros mas está sozinho com seu corpo ante a pura necessidade de manterse vivo16 e justamente por isso é radicalmente antipolítica Ainda que viva na presença de outros aquele que está aprisionado no trabalho jamais conserva as marcas distintivas da pluralidade pois se experimenta apenas em meio à multiplicidade dos organismos vivos na divisão de tarefas em vista do propósito de vencer os imperativos da necessidade indissociáveis do estar vivo O interesse de Arendt por Marx não se deveu inicialmente entretanto à centralidade da atividade do trabalho na obra marxiana Inicialmente depois de haver escrito o texto Ideologia e terror uma nova forma de governo Arendt buscou investigar quais seriam os elementos totalitários do marxismo uma vez que em As origens do totalitarismo ela traçou um abrangente perfil dos elementos cristalizados no totalitarismo nazista mas foi amplamente criticada pelo tratamento desigual dado ao bolchevismo o que ela procurou sanar também no prefácio à parte III acrescentado à edição de 1966 a comprometer sua hipótese de que nazismo e stalinismo eram regimes correlatos A investigação da relação entre totalitarismo e marxismo foi também estimulada por seu propósito de aprofundar a análise das relações entre o totalitarismo e a tradição do pensamento político no Ocidente17 Com efeito já no percurso inicial de sua investigação Arendt convenceuse de que a obra de Marx estava estreitamente ligada à nossa tradição de pensamento político como seu acabamento18 e de que portanto para compreender o lugar de Marx era necessário compreender a própria tradição assim como a relação da tradição com o fenômeno totalitário19 A questão que orientava seus estudos sobre o marxismo não era qual a responsabilidade de Marx pelo totalitarismo mas por que o totalitarismo stalinista pôde se apropriar das ideias de Marx E a resposta a que chegou foi a de que a ruptura de Marx com a tradição da filosofia partindo da theoria ou contemplação em direção à práxis não foi tão profunda uma vez que não se traduziu em uma recusa da compreensão da práxis como poiesis da ação como fabricação nem redundou no reconhecimento da dignidade própria ao domínio político20 Hannah Arendt sustenta que a confusão da ação política com a produção da história remonta a Marx Ele esperava depois de Hegel ter interpretado a história da humanidade ser capaz de mudar o mundo ou seja produzir o futuro da humanidade O marxismo pôde ser desdobrado em uma ideologia totalitária por causa de sua perversão ou incompreensão da ação política como a produção da história21 A crítica a Marx não poderia em todo caso consoante as considerações supra deixar de desdobrarse em um exame da relação entre filosofia e política desde os primórdios do pensamento político no Ocidente Como assinalou Elizabeth YoungBruehl na sua ainda definitiva biografia sobre Arendt2 2 entre 1952 e 1956 Arendt esteve envolvida no projeto do seu livro sobre Marx mas cada vez mais enredada em estudos sobre o que chamava de grande tradição Em 1956 quando voltara a se deter sobre a obra de Karl Marx na série de conferências proferidas na Universidade de Chicago intitulada Vita activa o projeto de escrita de um pequeno estudo sobre Marx está abandonado pois Arendt tem em mente então a estrutura da obra que resultou em A condição humana Com efeito já em uma carta a Karl Jaspers de 6 de agosto de 1955 quando menciona o plano de escrever um livro a partir dessa série de conferências Arendt afirma que apenas nos últimos anos teria começado a verdadeiramente amar o mundo e conclui por gratidão quero denominar Amor mundi meu livro sobre teorias políticas23 Esse livro teria como introdução um exame do fio rompido da tradição e consistiria em uma série de tratados em torno de uma única questão formulada de vários modos o que há na condição humana que t orna a política possível e necessária Ou por que há alguém e não ninguém a dupla ameaça da nadidade nothingness e da ninguémdade nobodyness Ou por que somos no plural e não no singular24 A versão definitiva de A condição humana mais que uma resposta à pergunta sobre como e por que foi possível o totalitarismo e mais que um exame da relação entre totalitarismo e tradição converteuse em uma fenomenologia das atividades humanas fundamentais no âmbito da vida ativa o trabalho a obra ou fabricação e a ação Arendt principia sua investigação com o exame da relação entre a condição humana e a vita activa definida em contraposição à vita contemplativa mas visa antes de tudo a transcender a caracterização tradicional das atividades e da relação entre elas com vistas a uma indagação sobre o significado das próprias atividades e das transformações em seu caráter na era moderna No prólogo a A condição humana Arendt insiste que seu propósito não é fornecer respostas teóricas às perplexidades de nosso tempo não é o de estabelecer uma filosofia política tal como a tradição a compreendia portanto pois para esses problemas nã o há uma única solução possível elas dependem do acordo de muitos e assim do intercâmbio público das opiniões de muitos O propósito do livro é em suas palavras reconsiderar a condição humana do ponto de vista privilegiado de nossas mais novas experiências e nossos temores mais recentes O que proponho portanto é muito simples tratase de pensar o que estamos fazendo25 Quando Karl Jaspers pôde ler integralmente a edição alemã de A condição humana nomeada Vita activa o título pensado por Arendt antes de seu editor sugerir o título que permaneceu na edição americana escreveu uma carta a Arendt na qual afirmava o seguinte o que me atrai muito fortemente nesse livro é que as coisas que você explicitamente menciona e das quais não falará sobre bem no início e repetidamente depois disso exercem uma influência bastante palpável do pano de fundo26 Tais coisas são precisamente o que estamos fazendo como indica o prólogo Arendt distingue o mundo moderno que teria começado politicamente com as explosões atômicas da era moderna que começou cientificamente no século XVII e terminou no limiar do século XX Ao limitar o escopo de suas reflexões exclusivamente à era moderna Arendt busca rastrear as origens da moderna alienação da Terra para o universo e do mundo para o simesmo self com vistas à compreensão da natureza de uma época que fora suplantada com o advento de uma era nova e desconhecida Essa era se desdobra da alienação moderna combinada com a vitória do animal laborans e é para ela que a presente obra permanece acenando com um convite e um desafio à interminável tarefa de compreender A alienação da Terra e do mundo a produção técnica da vida a inviabilidade da tradução das verdades científicas em discurso o consequente divórcio entre o conhecimento técnico e o pensamento e por fim o advento da automação e a perspectiva de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho esses eventos constituem as experiências e temores novos que operam como pano de fundo da escrita da presente obra sem o qual sua atualidade pode permanecer incompreendida mais de meio século após sua publicação Arendt recorre ao termo vita activa carregado e sobrecarregado de tradição como ela mesma indica27 para caracterizar o âmbito das atividades humanas fundamentais mas busca se desvencilhar da sua caracterização tradicional como derivativo da vita contemplativa e hierarquicamente inferior a ela cuja implicação básica foi o obscurecimento das diferenças e articulações no interior da própria vita activa Ao se voltar sobre as próprias atividades Arendt se pergunta principalmente sobre suas condições seus espaços suas temporalidades suas razões de ser as dimensões humanas e mentalidades a elas associadas as redenções de suas infortunas e por fim sobre as transformações que sobrevieram a elas notadamente na era moderna Ao ingressarmos na Terra como viventes por meio do nascimento somos condicionados pela própria vida biológica com seus ciclos de necessidades imperativas a trabalhar com vistas ao atendimento das demandas corporais sempre repostas do processo vital A atividade do trabalho é uma resposta ao mero estar vivo que partilhamos com todos os viventes Na medida em que se traduz na permanente labuta em vista da sobrevivência e da saciedade o trabalho desenrolase no espaço privado do lar no qual a despeito de não depender da copresença para sua realização os membros de uma família comparti lham das agruras e dos deleites do estar vivo Hannah Arendt julga que cada atividade humana assinala sua localização adequada no mundo e que os juízos históricos das comunidades políticas mediante os quais cada uma delas determinava quais atividades da vita activa deveriam ser admitidas em público e quais deveriam ser ocultadas na privatividade podem corresponder à natureza dessas mesmas atividades28 A atividade do trabalho tanto quanto seus produtos não carece da exposição pública para adquirir alguma forma de existência Antes o contrário estreitamente vinculada à vida biológica ela reclama para sua subsistência a proteção que resulta do ocultamento Enredada no ciclo de esgotamento e regeneração que preside os processos corporais a atividade do trabalho experimenta o tempo como um contínuo devir de processos circulares Os processos automáticos naturais não são interrompidos pelos bens de consumo que são o produto do trabalho Esses produtos não demoram no mundo tempo suficiente para formarem parte dele nem desfrutam da durabilidade necessária para transcender o tempo de vida de seus produtores o trabalho jamais transcende a vida A atividade do trabalho compreendida como o metabolismo do homem com a natureza visa à subsistência da vida de cada indivíduo Se não transcende a vida em seu sentido estritamente biológico tal atividade não pode todavia ser identificada sem mais às labutas e penas uma vez que como nota Arendt em nenhuma outra atividade os seres humanos podem experimentar a bênção da vida como um todo decorrente da circunstância de que no trabalho o esforço e a gratificação se seguem tão proximamente quanto a produção e o consumo de mod o que a felicidade é concomitante ao processo29 Mais que isso a bênção ou a alegria do trabalho é o modo humano de experimentar a pura satisfação de se estar vivo que temos em comum com todas as criaturas vivas e inclusive o único modo pelo qual também os homens podem permanecer e voltear com contento no círculo prescrito pela natureza labutando e descansando trabalhando e consumindo com a mesma regularidade feliz e sem propósito com a qual o dia e a noite a vida e a morte sucedem um ao outro30 A despeito de tal felicidade Arendt insiste em afirmar que o trabalho não é capaz de operar como uma diferença específica entre os homens e os outros animais Cada indivíduo na medida em que trabalha e consome é sempre um animal laborans que é realmente apenas uma das espécies animais que povoam a Terra na melhor das hipóteses a mais desenvolvida31 A mais flagrante infortuna a acometer a atividade do trabalho e a vida inteiramente dedicada a ela é a permanente sujeição à necessidade a impor um ciclo inflexível de labutas e penas em vista de uma saciedade nunca alcançável de uma vez por todas O animal laborans é redimido desse aprisionamento apenas mediante a mobilização da capacidade humana do homo faber enquanto fazedor de instrumentos de fazer fabricar e produzir atenuando assim o fardo das labutas e penas da vida e erigindo ao mesmo tempo um mundo de durabilidade sem o qual a vida humana seguiria anonimamente em uníssono com os processos naturais sempre recorrentes a redenção da vida sustentada pelo trabalho é a mundanidade sustentada pela fabricação32 A obra ou fabricação é a atividade que responde à condição humana da mundanidade à dimensão da existência humana demandante de um mundo artificial de coisas duráveis cuja permanência instaura em contraposição ao tempo cíclico da vida biológica uma temporalidade linear na qual se podem reconhecer vidas individuais e não apenas a vida da espécie Não se trata portanto de apenas aliviar o fardo da condição de vivente mas de estabelecer um espaço e algum descompasso entre natureza e vida humana por meio da edificação de um mundo a abrigar cada vida individual O mundo enquanto artifício humano mais que como a comunidade dos homens é a obra do homo faber A despeito de conceber seus produtos no isolamento ou na companhia de poucos ajudantes ou aprendizes o homo faber na medida em que também visa a exibir e trocar seus produtos acaba por instaurar como lugar de reunião um mercado de trocas externo ao espaço de produção e à atividade da fabricação na medida em que todo o processo se encerra no produto fi nal mas ainda assim uma extensão sua Para Hannah Arendt ao contrário do animal laborans cuja vida social é sem mundo e gregária e que portanto é incapaz de construir ou habitar domínio público mundano o homo faber é perfeitamente capaz de ter um domínio público pr óprio embora não possa ser um domínio político propriamente dito33 O homo faber como fabricante de coisas e produtor do mundo relacionase com os outros como homo faber apenas no mercado de trocas no qual exibe seus produtos Ainda que a sociedade comercial seja um fenômeno tipicamente moderno Arendt assinala que já entre os antigos gregos e romanos os artífices constituíam uma comunidade a ocupar o limiar em que os produtos privados têm de ser exibidos em público e o espaço público é ocupado de um modo apolítico por sua lida instrumental com o mundo34 fabricação a obra do homo faber consiste em reificação35 em coisificação afirma Arendt O fabricante de coisas não estabelece um metabolismo com a natureza mas a viola para extrair dela materiais para a produção da infinidade de coisas que constituem o artifício humano o mundo Ao dispor do material o fabricante aplica sobre ele mediante sua maestria o modelo previamente concebido e que não desaparecerá depois de terminado o produto O próprio produto desfruta de uma relativa durabilidade distinta daquela dos bens de consumo que nutrem o processo vital É dessa durabilidade que provém sua objetividade sua relativa independência de seus fabricantes mortais que em todo caso também o contaminam com sua finitude Nessa medida as coisas do mundo produzidas p elo homo faber acabam por estabilizar a vida humana ao permitir aos homens a experiência de sua identidade no contato com objetos que desfrutam de relativa durabilidade sem um mundo interposto entre os homens e a natureza há eterno movimento mas não objetividade36 Esses objetos duráveis da fabricação são destinados ao uso mediante o qual distintamente do consumo que é o destino dos produtos do trabalho têm sua durabilidade desgastada mas não são destinados à destruição pois a destruição embora inevitável é incidental com relação ao uso mas inerente ao consumo37 Em vista disso ademais de desfru tar da condição de autor de seus produtos duráveis condição inalcançável na domesticação dos processos naturais pelo animal laborans assim como na iniciativa dos agentes que jamais são soberanos com relação ao que desencadeiam o homo faber pode atingir sua cota própria de imortalidade ainda que limitada e paradoxalmente impessoal exceção feita ao artista e sua obra afinal a obra é a atividade correspondente à não naturalidade da existência humana que não está engastada no semprerecorrente ciclo vital da espécie e cuja mortalidade não é compensada por este último38 A mentalidade do homo faber em todo caso é presidida pela categoria de meios e fins e a razão de ser de tudo o que há esgotase na aptidão para ser meio para algo outro que embora seja um fim opera também como meio em uma cadeia que remete ao infinito O utilitarismo sistemático que Hannah Arendt julga ser por excelência a filosofia do homo faber engendra como seu inelutável efeito colateral a completa ausência de significado Para ela a perplexidade do utilitarismo é que ele é capturado pela cadeia interminável de meios e fins sem jamais chegar a algum princípio que possa justificar a categoria de meios e fim isto é a categoria da própria utilidade O a fim de tornase o conteúdo do em razão de em outras palavras a utilidade instituída como significado gera a ausência de significado39 A única via para escapar à ausência de significado em um mundo estritamente utilitário no qual existem apenas meios e nenhum fim de modo que o significado de algo sempre demanda algo outro incessantemente é o recuo à subjetividade do homem como usuário tornado então um paradoxal fim em si mesmo Entretanto insiste Arendt a tragédia resultante consiste no fato de que a mentalidade utilitária e instrumental do homo faber passa a degradar o mundo das coisas e da natureza a simples meios sem valor intrínseco A tragédia consiste em suma na generalização da experiência da fabricação na qual a serventia e a utilidade são estabelecidas como critérios últimos para a vida e para o mundo dos homens mas somente na medida em que o processo vital se apodera das coisas e as utiliza para seus fins é que a instrumentalidade limitada e produtiva da fabricação se transforma na instrumentalização ilimitada de tudo o que existe40 Para o homo faber é como um milagre que a significação tenha lugar nesse mundo Ele é redimido da vicissitude da ausência de significado por meio das faculdades interrelacionadas da ação e do discurso que produzem estórias significativas com a mesma naturalidade com que a fabricação produz objetos de uso41 A ação é a atividade que corresponde à condição humana da pluralidade ao fato de que a Terra e o mundo são habitados não pelo Homem mas por homens e mulheres portadores de uma singularidade única iguais enquanto humanos mas radicalmente distintos e irrepetíveis de modo que a pluralidade humana mais que a infinita diversidade de todos os entes é a paradoxal pluralidade de seres únicos42 Assim como a atividade do trabalho visa a responder ao estar vivo conservando a vida e a atividade da obra almeja responder à mundanidade conservando e renovando o mundo a atividade da ação responde à pluralidade humana confirmandoa ao reafirmar no ator político a singularidade que seu nascimento já testemunhava A ação atividade política por excelência a única atividade que ocorre diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria43 encontra na pluralidade a sua condição prévia mas também sua razão de ser A ação corresponde à capacidade humana de desencadear o novo e o espaço adequado à sua manifestação do qual ela depende para adquirir realidade é o domínio público o local adequado para a excelência humana44 que sempre demanda a presença de outros do público constituído pelos pares do agente e que garante a realidade do mundo e de nós mesmos Hannah Arendt insiste em afirmar que para nós a apa rência constitui a realidade45 O espaço público só abriga o que é relevante de modo que mesmo as experiências íntimas ou privadas mais intensas jamais encontram guarida confortável nesse espaço a menos que sejam transformadas desprivatizadas e desindividualizadas Com isso o irrelevante é relegado ao domínio privado ainda que nesse domínio haja assuntos relevantes que só podem subsistir se protegidos do público Em todo caso interessa a Arendt fazer notar que a intensificação da experiência da própria subjetividade traduzida no fenômeno do encantamento moderno com as pequenas coisas por exemplo jamais opera como substituto adequado da perda de grandeza que se segue ao declínio do domínio público Em um sentido bastante fundamental a razão de ser da política para Arendt é a redenção da mortalidade e da futilidade da existência humana mediante a edificação de um espaço durável para a liberdade no qual a grandeza frágil e fugaz das palavras e feitos dos mortais se manifesta e encontra abrigo e louvor a raison dêtre da política é a liberdade e seu campo de experiência é a ação46 No final de Sobre a revolução ela menciona o trecho de Édipo em Colono no qual se traduz a sabedoria de Sileno o sátiro companheiro de Dioniso não ter nascido se sobrepõe a todo significa do revelado em palavras de longe a segunda melhor coisa para a vida uma vez que ela tenha aparecido é retornar o mais rapidamente possível para o lugar de onde veio Arendt lembra que Teseu o lendário fundador de Atenas nos informa o que permitia ao homem comum ao jovem e ao velho suportar o fardo da vida era a pólis o espaço dos livres feitos e das palavras vivas do homem que poderiam dotar a vida de esplendor47 Para ela a existência só é livrada de sua fragilidade mediante a redenção da futilidade do mero estar vivo promovida pela ação política cujo impulso brota do desejo de estar na companhia dos outros do amor ao mundo e da paixão pela liberdade Se nos inserimos no mundo como estranhos por meio do nascimento no mundo mundano ou humano dirá Arendt em A condição humana o homem só se insere por palavras e atos em uma espécie de segundo nascimento por meio do qual confirmamos e assumimos nosso aparecimento físico original não é outra a razão de ela afirmar ser a natalidade a categoria central do pensamento político e Paul Ricoeur afirmar ser ela o fenômeno prépolítico por excelência48 Em todo caso essa inserção no mundo humano por palavras e atos não nos é imposta pela necessidade como a atividade do trabalho nem desencadeada pela utilidade como a atividade da obra exceção notável feita mais uma vez à obra de arte A política está radicalmente vinculada à finitude da existência e dos propósitos humanos por um lado mas ao mesmo tempo à capacidade humana de uma grandeza radiante radicada na liberdade humana que desafia a morte com a memória A ação não incide sobre quaisquer objetos pois se dá sempre em um espaçoentre as pessoas capaz de relacionálas e mantêlas juntas Na medida em que aqueles que agem são iniciadores em meio a iniciadores acabam por instaurar o que Arendt nomeia teia de relações humanas na qual as consequências da ação se fazem sentir Assim é em virtude dessa teia preexistente de relações humanas com suas inúmeras vontades e intenções conflit antes que a ação quase nunca atinge seu objetivo mas é também graças a esse meio onde somente a ação é real que ela produz estórias intencionalmente ou não com a mesma naturalidade com que a fabricação produz coisas tangíveis Em vista disso o que é mais relevante em nosso contexto as estórias resultado da ação e do discurso revelam um agente mas esse agente não é autor nem produtor Alguém as iniciou e delas é o sujeito na dupla acepção da palavra seu ator e seu padecente mas ninguém é seu autor49 Pelo fato de que se movimenta sempre entre outros seres atuantes e em relação a eles o ator nunca é simples agente mas sempre ao mesmo tempo paciente Agir e padecer são como as faces opostas da mesma moeda e a estória iniciada por um ato compõese dos feitos e dos padecimentos dele decorrentes Essas consequências são ilimitadas porque a ação embora possa provir de nenhures por assim dizer atua em um meio no qual toda reação se converte em reação em cadeia e no qual todo processo é causa de novos processos Como a ação atua sobre seres que são capazes de realizar suas próprias ações a reação além de ser uma resposta é sempre uma nova ação que segue seu curso próprio e afeta os outros Assim a ação e a reação entre os homens jamais se passam em um círculo fechado e jamais podem ser restringidas de modo confiável a dois parceiros Essa ilimitabilidade é característica não só da ação política no sentido mais restrito da palavra como se a ilimitabilidade do interrelacionamento humano fosse apenas o resultado da multidão ilimitada de pessoas envolvidas da qual se poderia escapar ao se resignar à ação dentro de uma estrutura de circunstâncias limitada e apreensível o menor dos atos nas circunstâncias mais limitadas traz em si a semente da mesma ilimitabilidade pois basta um ato e às vezes uma palavra para mudar todo um conjunto Esse traço de imprevisibilidade e de processo autônomo da ação é a razão principal de a história da filosofia política com poucas exceções poder ser narrada como a sucessão das tentativas de curar a ação de suas infortunas por meio de sua supressão As infortunas principais de toda ação repousam na incapacidade humana de desfazer ou sequer de controlar com segurança qualquer um dos processos que desencadeiam por meio da ação por um lad o e de de prever as consequências de um ato e mesmo de conhecer com segurança os seus motivos50 por outro As infortunas da irreversibilidade e da imprevisibilidade aliadas à ambiguidade intrínseca à ação e à ilimitabilidade das implicações de todo ato sempre constituíram a razão fundamental do desprezo filosófico generalizado por todo o domínio dos assuntos humanos Com efeito os homens sempre souberam que aquele que age nunca sabe completamente o que está fazendo que sempre vem a ser culpado de consequências que jamais pretendeu ou previu que por mais desastrosas e imprevistas que sejam as consequências do seu ato jamais poderá desfazêlo que o processo por ele iniciado jamais se consuma inequivocamente em um único ato ou evento e que seu verdadeiro significado jamais se desvela para o ator mas somente à mirada retrospectiva do historiador que não age51 Em suma embora a ação seja a própria tradução da liberdade da capacidade humana de instaurar novidade no mundo aparentemente em nenhuma outra parte as pessoas são menos livres que nessa teia de relações De fato tanto no pensamento político quanto no filosófico a liberdade sempre foi identificada com a soberania com a capacidade de governar um processo do início ao fim Não obstante diz Arendt se a soberania e a liberdade fossem realmente a mesma coisa nenhum homem poderia ser livre pois a soberania o ideal da inflexível autossuficiência e autodomínio contradiz a própria condição da pluralidade Nenhum homem pode ser soberano porque não um homem mas homens habitam a Terra e não como sustenta a tradição desde Platão devido ao limitado vigor do homem que o faz depender do auxílio dos outros52 Essa ocorrência simultânea de liberdade com não soberania parece indicar que a existência hum ana é mesmo absurda e que Platão teria razão ao recomendar que não levássemos muito a sério o domínio dos assuntos humanos pois aí operamos como marionetes de algum deus Entretanto diz Arendt ao invés de buscar curar a ação de suas infortunas recorrendo a algum expediente extrínseco de controle caberia perguntar se a capacidade de agir não traz em si certas potencialidades que lhe permitem sobreviver às inaptidões da não soberania53 A Arendt interessa fazer notar que o remédio para a irreversibilidade e a imprevisibilidade de toda ação encontrase entre as potencialidades da própria ação e portanto não provém de qualquer outra esfera supostamente superior ou mais eficaz como o pensamento do filósofo ou a violência do homo faber redenção p ossível para o constrangimento da irreversibilidade da incapacidade de se desfazer o que se fez embora não se soubesse nem se pudesse saber o que se fazia é a faculdade de perdoar O remédio para a imprevisibilidade para a caótica incerteza do futuro está contido na faculdade de prometer e cumprir promessas As duas faculdades formam um par pois a primeira delas a de perdoar serve para desfazer os atos do passado cujos pecados pendem como espada de Dâmocles sobre cada nova geração e a segunda o obrigarse através de promessas serve para instaurar no futuro que é por definição um oceano de incertezas ilhas de segurança sem as quais nem mesmo a continuidade seria possível nas relações entre os homens para não mencionar todo tipo de durabilidade54 Que os homens e mulheres sejam capazes de ação é o que testemunha o nascime nto de cada indivíduo singular que como estrangeiro em um mundo e por ser capaz de ser início é uma promessa de inserção de novidade no mundo A ação é atualização do potencial de novidade que o nascimento enceta pois os homens são livres diferentemente de possuírem o dom da liberdade enquanto agem nem antes nem depois pois ser livre e agir são uma mesma coisa55 Esse mesmo indivíduo é sempre capaz portanto de agir sozinho ainda que politicamente sua ação esteja sempre contaminada pela imprevisibilidade e pela irreversibilid ade e que para sua efetivação ele sempre dependa da cooperação de outros Em todo caso um indivíduo jamais é capaz de constituir poder sozinho pois o poder sempre envolve a capacidade de articular propósitos comuns pelo discurso e de realizálos na ação em concerto Para Hannah Arendt a era moderna representa não apenas uma inteira transformação na articulação tradicional entre as atividades humanas mas também uma profunda alteração da natureza das próprias atividades Em A condição humana Hannah Arendt estabelece uma rígida distinção entre os domínios público e privado Entretanto o que marca a consolidação do mundo moderno na avaliação de Arendt é uma progressiva indistinção entre os domínios privado e político por meio da ascensão da esfera social com a consequente ascensão do lar oikia ou das atividades econômicas ao domínio público56 A esfera social é o domínio curiosamente híbrido no qual os interesses privados assumem importância pública57 O que caracteriza a atitude propriamente moderna é a compreensão da política como uma função da sociedade com a implicação fundamental de que as q uestões eminentemente privadas da sobrevivência e da aquisição transformaramse em interesse coletivo ainda que nunca se pudesse falar de fato de tal interesse como sendo público O advento de uma esfera híbrida como a social acaba por promover uma indistinção entre os domínios público e privado e o deslocamento de princípios de uma esfera a outra constituindose como uma interseção minando a possibilidade de felicidade pública ou privada Com efeito diz Hannah Arendt a busca irresponsável de interesses privados na esfera públicopolítica é tão prejudicial ao bem público quanto a arrogante tentativa dos gov ernos de regular a vida privada de seus cidadãos é prejudicial para a felicidade privada58 Em todo caso Arendt se recusa a conceber que o social as questões privadas em sua dimensão coletiva ainda que com implicações políticas constitua um espaço próprio terceiro em relação ao público e o privado O social é como uma espécie de fungo que expande seu espaço na medida em que se espraia sobre o privado e o público As dificuldades para compreender a era moderna decorrentes da rigidez da distinção não são negligenciáveis59 Hannah Arendt reconhece em todo caso que em cada uma das questões sociais há uma dupla face60 O que ela não deixa claro é o mecanismo ou o procedimento por meio do qual as questões sociais que possuem relevância para a coletividade e cuja solução é pressuposta no pleno exercício da cidadania sejam admitidas no domínio político sem provocar a sua ruína ou se converter em uma usurpação do espaço público por inter esses privados enfim como conciliar liberdade e igualdade ou espaço político e justiça Hannah Arendt observa que os antigos tinham por fundament al à política uma clara demarcação entre as demandas naturais da sobrevivência e as demandas políticas da liberdade que falavam ambas no cidadão Não obstante ela sustenta que desde os gregos o domínio político se revela como o espaço onde desenvolvemos uma espécie de segunda natureza não uma zoé transfigurada mas uma nova vida em acréscimo à vida privada e natural que jamais suprimimos61 Nas palavras de Werner Jaeger citadas por Arendt com a pólis o homem recebera além de sua vida privada uma espécie de segunda vida seu bíos politikos Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência e há uma nítida diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio idion e o que é comum koinon62 Seguramente para ela a capacidade humana para a política não se deixa sub sumir à expressão zoon politikon O homem diz ela é apolítico A política surge no entreoshomens portanto totalmente fora dos homens Por conseguinte não existe nenhuma substância política original A política surge no intraespaço e se estabelece como relação63 O único fator material indispensável para a geração do poder é a convivência entre as pessoas diz Arendt64 Não podemos conceber um a comunidade política sem um mundo que ao mesmo tempo separe e relacione os homens entre si Assim a política organiza de antemão as diversidades absolutas de acordo com uma igualda de relativa e em contrapartida às diferenças relativas65 Com efeito o domínio público enquanto mundo comum reúnenos na companhia uns dos outros e contudo evita que caiamos uns sobre os outros por assim dizer O que torna a sociedade de massas tão difícil de ser suportada não é o número de pessoas envolvido ou ao menos não fundamentalmente mas o fato de que o mundo entre elas perdeu seu poder de congregálas relacionálas e separálas66 A despeito de seu diagnóstico da irremediável ruptura do fio da tradição em nossos tempos Hannah Arendt se liga à tradição do nosso pensamento político quando concebe como desejável a conservação da consagrada linha divisória e protetora entre a natureza e o mundo humano67 Hannah Arendt estava co nvencida de que a oposição entre liberdade e vida biológica está na base de tudo o que podemos compreender como política e das virtudes especificamente políticas Para ela poderíamos inclusive dizer que é o próprio fato de que hoje o que está em jogo na política é a existência nua e crua de todos o sinal mais evidente da calamidade em que nosso mundo caiu68 Isso decorre para Arendt da moderna desconsideração da necessária distinção entre vida biológica e política assim como entre a felicidade que se experimenta na satisfação das necessidades vitais e a que se experimenta na fruição da liberdade política Com efeito diz ela o que os tempos modernos esperavam de seu Estado e o que esse Estado fez de fato em grande escala foi uma libertação dos homens para o desenvolvimento das forças produtivas sociais para a produção comum de mercadorias necessárias para uma vida feliz69 Nesse sentido como enfatiza com precisão Giorgio A gamben se algo caracteriza portanto a democracia moderna em relação à clássica é que ela se apresenta desde o início como uma reivindicação e uma liberação da zoé que ela procura constantemente transformar a mesma vida nua em forma de vida e de encontrar por assim dizer o bíos da zoé Daí também a sua específica aporia que consiste em querer colocar em jogo a liberdade e a felicidade dos homens no próprio ponto a vida nua que indicava a sua submissão70 A vida diz Hannah Arendt é um processo que em toda parte consome a durabilidade desgastaa e a faz desaparecer até que finalmente a matéria morta resultado de processos vitais pequenos singulares e cíclicos retorna ao gigantesco círculo global da natureza onde não existe começo nem fim e onde todas as coisas naturais volteiam em imutável e infindável repetição 71 é fato que a capacidade humana de vida no mundo implica sempre uma capacidade de transcender e alienarse dos processos da vida72 A vida humana seria uma perene recorrência imutável dos ciclos da espécie se não houvesse um mundo no qual cada indivíduo chega pelo nascimento e do qual se retira com a morte Uma vida especificamente humana é plena de eventos que ocorrem em um m undo que afirmam a singularidade de cada membro da espécie e seccionam a temporalidade cíclica da vida biológica É em vista disso que embora a natureza se manifeste na existência humana por meio do movimento circular de nossas funções corporais ela faz sua presença ser sentida no mundo feito pelo homem por meio da constante ameaça de sobrepujálo ou fazêlo perecer73 É da diluição da fronteira entre natureza e mundo que provêm as implicações mais relevantes dessas transformações Na era moderna uma das manifestações de tal ameaç a é o persistente tratamento de todos os objetos de uso como se fossem bens de consumo74 A repetição e a interminabilidade impressas no processo de fabricação após a Revolução Industrial o contaminam com a marca da circularidade do trabalho Dada a necessidade de substituir o mais rapidamente possível as coisas mundanas que nos rodeiam não mais respeitamos sua durabilidade Com isso diz Hannah Arendt temos de consumir devorar por assim dizer nossas casas nossa mobília nossos carros como se estes fossem as coisas boas da natureza que se deteriorariam inaproveitadas se não fossem arrastadas rapidamente para o ciclo interminável do metabolismo do homem com a natureza É como se houvéssemos rompido à força as fronteiras distintivas que protegiam o mundo o artifício humano da natureza tanto o processo biológico que prossegue dentro dele quanto os processos naturais cíclicos que o rodeiam entregandolhes e abandonandolhes a sempre ameaçada estabilidade de um mundo humano Com isso os ideais do homo faber fabricante do mundo que são a permanência a estabilidade e a durabilidade foram sacrificados à abundância o ideal do animal laborans75 A ascensão da vida biológica como bem supremo traduz a vitória do animal laborans Hannah Arendt sustenta que a vitória do animal laborans traduz o apequenamento da estatura e dos horizontes do homem moderno para quem a felicidade é o maior bem e se mostra exclusivamente como saciedade e mesmo fastio Ocorre que o tempo excedente do animal laborans jamais é empregado em algo que não seja o consumo e quanto maior é o tempo de que ele dispõe mais ávidos e ardentes são os seus apetites O fato de que esses apetites se tornam mais sofisticados de modo que o consumo já não se restringe às necessidades da vida mas ao contrário concentrase principalmente nas superfluidades da vida não altera o caráter dessa sociedade mas comporta o grave perigo de que afinal nenhum objeto do mundo esteja a salvo do consumo e da aniquilação por meio do consumo 76 Politicamente está em questão enfim que uma sociedade de consumidores possivelmente não é capaz de saber como cuidar de um mundo e das coisas que pertencem de modo exclusivo ao espaço das aparências mundanas visto que sua atitude central em relação a todos os objetos a atitude de consumo condena à ruína tudo em que toca77 Ao se apropriar da instrumentalidade do homo faber na era moderna sua capacidade destrutiva se torna devastadora Em outras palavras a vitória do animal laborans é a vitória da condição natural de vivente sobre qualquer outra condição da existência humana Seja no conceito de zoon politikon seja no de bíos politikos Aristóteles jamais concebeu a possibilidade de nos convertermos em meros animais vivos incapazes de uma existência política que seja mais que a gestão do contentamento animal Para Hannah Arendt a diluição da fronteira entre natureza e mundo entre animalidade e humanidade cristalizada na vitória do animal laborans como o modelo da vida excelente ou feliz revela o perigo de que o homem possa estar disposto e realmente esteja a ponto de converterse naquela espécie animal da qual desde Darwin ele imagina descender 78 Na modernidade o modo de vida do consumidor venceu e as implicações políticas de tal vitória dificilmente podem ser exageradas Consoante essa interpretação na modernidade a busca da imortalidade foi substituída pela da longevidade anônima e isso tem implicações extremas para a política e o mundo comum que é seu espaço próprio Não há espaço para a política onde não há uma dimensão da grandeza que transcenda o mero estar vivo e os deleites que ele envolve onde a liberdade não se sobreponha à saciedade Os ideais da abundância da vida confortável e da saciedade se afirmaram em face de todos os outros na modernidade Com a vitória do animal laborans é a existência do próprio mundo como obra do homem que está em questão sob a permanente ameaça de ser tragado pelos processos mobilizados para a satisfação das necessidades sempre pululantes e fonte de intensa experiência prazerosa do mero estar vivo A questão enfim diz Arendt é que quanto mais fácil se tornar a vida em uma sociedade de consum idores ou de trabalhadores mais difícil será preservar a consciência das exigências da necessidade que a compele mesmo quando a dor e o esforço as manifestações externas da necessidade são quase imperceptíveis O perigo é que tal sociedade deslumbrada pela abundância de sua crescente fertilidade e presa ao suave funcionamento de um processo interminável já não seria capaz de reconhecer a sua própria futilidade79 Ao animal laborans compreendido como uma mentalidade vencedora na modernidade e não como uma das dimensões incontornáveis da condição humana é vedado o amor mundi e não é outra a razão de sua vitória representar o ocaso da política a mentalidade e o ideal de vida do animal laborans traduz a recusa em confirmar por meio da ação a novidade que cada nascimento representa Ele jamais poderia dizer como Maquiavel o fez mais de uma vez amo mais Florença que minha vida ou a salvação da minha alma pois nas palavras de Arendt o desejo de sobrevivência do nome é o desejo de permanecer no mundo inteiramente independentemente da vida Nosso conceito de imortalidade é inútil porque é ambíguo vida eterna ou eterna presença no mundo A vida eterna é muito disposta a sacrificar a presença eterna no mundo assim como a fama está disposta a sacrificar a vida e inclusive a vida ete rna Maquiavel80 Nesse sentido prossegue Arendt nós que já não temos como certa a imortalidade da alma tendemos a não prestar atenção à pungência do credo de Maquiavel No tempo em que ele escreveu a expressão não era uma frase feita mas significava literalmente que se estava preparado para ser privado do direito à vida eterna ou para correr o risco de ser punido com o inferno por amor à própria cidade A questão tal como Maquiavel a viu não era se se amava mais a Deus do que o mundo mas se se seria capaz de amar mais o mundo do que a si próprio E de fato essa decisão foi sempre a decisão crucial para todos os que dedicaram sua vida à política81 O interesse de Hannah Arendt por uma fenomenologia da vita activa é motivado pela tentativa de compreender os vínculos da tradição do pensamento político e da história política ocidentais notadamente modernas com o declínio do domínio público assim como a perda de especificidade e o virtual desaparecimento das atividades propriamente políticas da ação e do discurso Tal declínio da política teria pavimentado o caminho para a dominação totalitária mediante a promoção de um modo de vida radicalmente antipolítico o do trabalhadorconsumidor Em resposta à convicção generalizada de que o totalitarismo era a perfeita tradução da infinidade de danos associados ao excesso de política Arendt insiste em indicar que o fenômeno totalitário traduz a morte da política e que a facilidade da sua ascensão e da sua instauração era o sintoma mais evidente da fragilidade de uma política estruturada em torno do propósito de proteger a vida e o processo de acumulação de recursos para sua conservação seu fomento e a ampliação do espectro das necessidades humanas Não se tratava portanto de excesso de política mas de falta Não é outra a razão de ela ter afirmado que o liberalismo a despeito do nome contribuiu para banir a noção de liberdade do âmbito político Pois a política de acordo com a mesma filosofia tem de se ocupar quase que exclusivamente com a manutenção da vida e a salvaguarda de seus interesses Ora onde a vida está em questão toda ação se encontra por definição sob o domínio da necessidade e o âmbito adequado para cuidar das necessidades vitais é a gigantesca e ainda crescente esfera da vida social e econômica cuja administração tem obscur ecido o âmbito político desde os primórdios da época moderna82 Arendt em todo caso sempre recusou o fatalismo assim como qualquer outro modo de compreender o futuro como predeterminado Não apenas por isso mas também por confiar na liberdade como signo da dignidade humana ela julgou que o nascimento de novos homens e mulheres constituía uma réplica permanente às pretensões totalitárias assim como uma promessa de que a mentalidade do animal laborans que mina as possibilidades mais remotas da política e a tudo apequena não prevaleça de uma vez por todas Mesmo em tempos sombrios ela pôde afirmar que com cada novo nascimento um novo começo nasce no mundo um novo mundo passa pot encialmente a existir83 Professor de Filosofia da Universidade Federal de Goiás e pesquisador do CNPq Organizador de Transpondo o abismo Hannah Arendt entre a filosofia e a política Forense Universitária 2002 Hannah Arendt e a condição humana Quarteto 2006 coorganizador com Mariangela Nascimento de Hannah Arendt entre o passado e o futuro UFJF 2008 autor de Hannah Arendt Zahar 2007 Agradeço a Adriana Delbó e Cícero Oliveira a generosa e atenta leitura da primeira versão deste texto 1 Hannah Arendt The origins of totalitarianism 2 ed ampl Nova Iorque Harcourt Brace Co 1973 p vii Cf p viii Origens do totalitarismo Trad Roberto Raposo São Paulo Companhia das Letras 2007 p 1112 Cf para o que se segue Celso Lafer A política e a condição humana posfácio a A condição humana Rio de Janeiro Forense Universitária 1981 2 Junto a esse ensaio acrescentado como capítulo final foi acrescentado como epílogo também na segunda edição o texto Totalitarian imperialism reflections on the Hungarian revolution suprimido na edição definitiva de 1966 na qual foram adicionados prefácios a cada uma das três partes 3 Hannah Arendt The origins of totalitarianism p 459 p 510 da trad bras 4 Cf A Correia O conceito de mal radical Transformação v 28 2 p 8394 2005 5 Hannah ArendtKarl Jaspers Correspondence 19261969 Lotte Kohler e Hans Saner eds Nova Iorque Harcourt Brace Co p 166 carta a K Jaspers de 4 de mar ço de 1951 6 Hannah Arendt The origins of totalitarianism p 458 p 509 da trad bras 7 Ibid p 459 p 510 da trad bras 8 Id Ideologie und Terror In Offener Horizont Festschrift für Karl Jaspers Munique 1953 p 229254 O texto ainda foi publicado no mesmo ano em inglês em uma versão expandida Hannah Arendt Ideology and terror a novel form of government The Review of Politics 15 n 3 p 303327 jul 1953 O texto resulta de uma conferência pronunciada em Heidelberg em 1952 Para o propósito de enfatizar a centralidade desse escrito no vínculo entre As origens do totalitarismo e A condição humana é fundamental a indicação de Arendt de que esse ensaio fora preparado inicialmente para o livro que pretendia escrever sobre Marx comentado adiante nesta apresentação Cf carta de 29 de janeiro de 1953 a Henry Allen Moe da Fundação Guggenheim mencionada em Jerome Kohn Introduction Social Research v 69 n 2 2002 Especial 50 anos de As origens do totalitarismo p vivii Cf os comentários de Karl Jaspers ao texto na carta de 3 de abril de 1953 em Hannah ArendtKarl Jaspers Correspondence 19261969 p 207209 9 Arendt parece crer não obstante que da própria teoria de Montesquieu se pode depreender a relação dos regimes com suas respectivas experiências fundamentais Cf o curso History of political theory Montesquieu 1955 Hannah Arendts papers Manuscript Division Library of Congress Washington Box 58 p 024188 As duas descobertas de Montesquieu 1 Divisão de poderes 2 Introdução nas formas de governo de um princípio de ação que por sua vez repousa em uma experiência humana geral 10 Hannah Arendt The origins of totalitarianism p 478 p 531 da trad bras 11 Ibid p 478479 p 531 da trad bras Como os gregos Agostinho poderia concluir que a mortalidade é o emblema da existência humana e denominar os homens os mortais Para Hannah Arendt todavia se ele tivesse aprofunda do suas especulações acerca do fato de que todo homem sendo criado no singular é um novo começo em virtude de seu nascimento teria definido os homens não à maneira dos gregos como mortais mas como natais e teria definido a liberdade da Vontade não como liberum arbitrium a escolha livre entre querer e não querer nilling mas como a liberdade de que fala Kant na Crítica da razão pura como espontaneidade absoluta Do mesmo modo se Kant tivesse conhecido a filosofia da natalidade de Agostinho provavelmente teria concordado que a liberdade da espontaneidade relativamente absoluta não é mais embaraçosa para a razão humana do que o fato de os homens nascerem continuamente recémchegados a um mundo que os precede no tempo A liberdade de espontaneidade é parte inseparável da condição humana H Arendt A vida do espírito Trad A Abranches C A R Almeida e H Martins 3 ed Rio de Janeiro RelumeDumará 1995 p 266267 Em suma nascer é já ser capaz de instaurar novidade no mundo através da ação e o nascimento é a aparição inaugural de uma singularidade que por sua unicidade e espontaneidade é promessa de liberdade que pode ganhar realidade no domínio político Os homens como entes do mundo são politicamente não seres para a morte mas permanentes afirm adores da singularidade que o nascimento inaugura Cf A Correia O significado político da natalidade Arendt e Agostinho In A Correia M Nascimento Orgs Hannah Arendt entre o passado e o futuro Juiz de Fora UFJF 2008 p 1534 Ver ainda A Correia Natalidade e amor mundi sobre a relação entre educação e política em Hannah Arendt Educação e pesquisa USP v 36 n 3 2010 p 811822 12 Hannah Arendt Denktagebuch 19501973 Munique Piper 2002 p 459 e 461 caderno XIX n 17 e 21 de outubro de 1953 13 Id The great tradition and the nature of totalitarianism Hannah Arendts Papers Box 74 1953 p 11 grifos meus 14 Id The concept of man as laborer New York University Hannah Arendt Papers Box 72 1953 p 2 15 Para Arendt a despeito de hesitações ocasionais notadamente em O capital Marx acaba por conceber o homem como um animal laborans na medida em que pensa ser a capacidade humana de reproduzir a própria vida ao produzir seus meios de subsistência a diferença específica inaugural entre os homens e os animais Cf nota 36 à seção 13 de A condição humana p 122 da presente edição Entretanto ela é frequentemente obrigada a reconhecer que ao pensar o homem como animal trabalhador Marx acabava por combinar em sua caracterização elementos da fabricação e do trabalho 16 Hannah Arendt The human condition 2 ed Chicago The University of Chicago Press 1998 p 245 p 263 da presente edição da qual citaremos sempre doravante Na nota 44 na mesma página Arendt insiste em assinalar o desamparo do trabalhador qua trabalhador 17 Para Arendt a mais séria lacuna em As origens do totalitarismo é a ausência de uma análise conceitual e histórica adequada do pano de fundo ideológico do bolchevismo Essa omissão foi deliberada Todos os outros elementos que finalmente se cristalizaram em movimentos totalitários e formas de governo podem ser remontados a correntes subterrâneas na história ocidental emergindo apenas quando e onde a tradicional estrutura social e política das nações europeias desmoronou O racismo e o imper ialismo o nacionalismo tribal dos panmovimentos e o antissemitismo não mantinham relação com as grandes tradições filosóficas e políticas do Ocidente A aterradora originalidade do totalitarismo o fato de que suas ideologias e métodos de governo eram inteiramente sem precedentes e de que suas causas furtavam se a uma explicação adequada em termos históricos usuais é facilmente negligenciada se se enfatiza demasiadamente o único elemento que tem atrás de si uma tradição respeitável e cuja discussão crítica requer a crítica de alguns dos mais importantes preceitos da filosofia política ocidental o Marxismo apud Jer ome Kohn Introduction Social Research v 69 n 2 2002 p v O texto citado foi retirado de um projeto enviado à John Simon Guggenheim Memorial Foundation que visava à publicação de um livro intitulado Elementos totalitários no marxismo cujo título foi alterado posteriormente para Karl Marx e a tradição do pensamento político ocidental O livro jamais foi concluído mas os problemas apontados pelo projeto estão no centro das preocupações de Arendt do final da década de 1960 traduzidas em obras como Entre o passado e o futuro Sobre a revolução e principalmente A condição humana 18 Arendt afirma com efeito em Entre o passado e o futuro que a tradição de nosso pensamento político teve seu início definido nos ensinamentos de Platão e Aristóteles Creio que ela cheg ou a um fim não menos definido nas teorias de Karl Marx que manifestavam a intenção de abjurar a filosofia e buscar realizála na política Hannah Arendt Tradition and the Modern Age Between past and future Nova Iorque Penguin Books 1993 p 17 Entre o passado e o futuro Trad Mauro W B de Almeida 6 ed São Paulo Perspectiva 2009 p 43 19 Poderseia dizer que o problema do trabalho indica o lado político e o problema da história o lado espiritual das perplexidades que surgiram no final do século XVIII e emergiram completamente em meados do século XIX Na medida em que ainda vivemos com e nessas perplexidades que entrementes se tornaram de fato muito mais agudas embora menos articuladas na formulação teórica ainda somos contemporâneos de Marx A enorme influência que Marx ainda exerce em quase todas as partes do mundo parece confirmar isso No entanto isso é verdadeiro apenas na medida em que escolhemos não considerar certos eventos do século XX isto é aqueles eventos que finalmente conduziram à forma de governo inteiramente nova que conhecemos como dominação totalitária O fio da nossa tradição no sentido de uma história contínua só se rompeu com a emergência de instituições e políticas totalitárias que não podiam mais ser compreendidas por meio das categorias do pensamento tradicional Hannah Arendt Karl Marx and the tradition of western political thought Social Research v 69 n 2 2002 p 280281 20 Cf Ibid p 314 21 Id The excommunists 1953 Essays in understanding Jerome Kohn ed Nova Iorque Harcourt Brace 1994 p 396 últimos grifos meus Compreender formação exílio e totalitarismo Trad Denise Bottmann São Paulo Companhia das Letras 2009 p 412 Sobre a relação entre Arendt e Marx conferir por exemplo Theresa Calvet de Magalhães A categoria de trabalho labor em Hannah Arendt Ensaio 14 1985 p 131168 revisa do em 2005 em httpwwweticaefilosofiauffbr91 theresapdf André Duarte O pensamento à sombra da ruptura Rio de Janeiro Paz e Terra 2000 B Parekh Hannah Arendts critique of Marx In M Hill Org Hannah Arendt and the recovery of the public world Nova Iorque St Martins Press 1979 22 Cf Elizabeth YoungBruehl Hannah Arendt por amor ao mundo Rio de Janeiro RelumeDumará p 253257 Conferir ainda a carta a Martin Heidegger de 8 de maio de 1954 Hannah ArendtMartin Heidegger correspondência 19251975 Ursula Ludz Ed Trad Marco A Casanova Rio de Janeiro RelumeDumará 2001 p 105106 da trad bras na qual Arendt indica ocuparse na ocasião da aproximação de três tarefas interligadas sondar a origem da inserção do conceito de domínio na política a partir de Montesquieu analisar a partir de Marx e Hobbes a vita activa e a relação entre as atividades do trabalho da fabricação e da ação partir do mito da caverna para investigar a relação tradicional entre filosofia e política Um plano análogo aparece anotado no Journal de Pensée 19501973 p 673 abril de 1954 23 Hannah ArendtKarl Jaspers correspondence 19261969 p 264 Alguns meses depois na ocasião em que ministrou as conferências Arendt informa a Jaspers em carta de 7 de abril de 1956 que pretende nomear Vita activa o seu livro e que focará as atividades do trab alho da obra e da ação em suas implicações políticas Cf p 283 24 Hann ah Arendt Denktagebuch 19501973 p 523 caderno XXI n 26 de abril de 1955 Em nota de julho de 1955 p 539 n 55 Arendt registra o seguinte Amor mundi trata do mundo que se forma como espaçotempo logo que os homens estão no plural não com os outros não próximosdosoutros a pluralidade pura basta 25 Id A condição humana p 6 26 Hannah ArendtKarl Jaspers correspondence 19261969 p 407 1º de dezembro de 1960 grifos do original 27 Hannah Arendt A condição humana p 15 28 Ibid p 90 e 96 29 Ibid p 132 30 Ibid p 131 Cf Hannah Arendt Trabalho obra ação Trad A Correia Cadernos de ética e filosofia política 7 22005 p 194 31 Hannah Arendt A condição humana p 104 32 Ibid p 292 33 Ibid p 199 Sobre os sentidos de público para Hannah Arendt conf erir na presente obra no cap II a seção 7 O domínio público o comum 34 A Antiguidade conhecia perfeitamente bem tipos de comunidades humanas nas quais nem o cidadão da pólis nem a res publica como tal estabelecia e determinava o conteúdo do domínio público mas nas quais a vida pública do homem comum era limitada a operar para o povo em geral isto é a ser um demiourgos um operário para o povo em contraposição ao oiketes que era um trabalhador doméstico e portanto um escravo Ibid p 198 35 Ibid p 172 36 Ibid p 171 37 Ibid 38 Ibid p 9 39 Ibid p 191192 40 Ibid p 195 Em um sentido bastante próximo Nietzsche fala de uma cultura de mercadores vemos agora surgir d e várias maneiras a cultura de uma sociedade em que o comércio é a alma assim como a peleja individual para os antigos gregos e a guerra a vitória e o direito para os romanos O mercador sabe estimar o valor de tudo sem pr oduzilo e estimar lhe o valor segundo a necessidade dos consumidores não segundo suas próprias necessidades quem e quantos consomem isto é sua grande pergunta Esse gênero de estimativa ele emprega instintiva e incessantemente para tudo também para as realizações da arte e da ciência dos pensadores doutores artistas es tadistas de povos e partidos de épocas inteiras em relação a tudo o que é produzido ele pergunta pela oferta e a demanda a fim de estabelecer para si o valor de uma coisa Isto al çado em caráter de toda uma cultura pensado com o máximo de amplidão e sutileza e impondose a toda vontade e capacidade é disso que vocês homens do próximo século XX estarão orgulhosos se os prof etas da classe mercadora tiverem razão em colocálo na sua posse Mas eu tenho pouca fé em tais profetas Aurora Trad Paulo César de Souza São Paulo Companhia das Letras 2004 p 127128 aforismo 175 grifos no original 41 A condição humana p 292 42 Ibid p 218 Para o que se segue conferir Theresa Calvet de Magalhães Ação linguagem e poder uma releitura do capítulo V da obra The human condition In A Correia Org Hannah Arendt e a condição humana Salvador Quarteto 2006 43 A condição humana p 9 44 Ibid p 61 Cf Celso Lafer Hannah Arendt pensamento persuasão e poder 2 ed rev e ampl Rio de Janeiro Paz e Terra 2003 cap 4 Da dignidade da política 45 Hannah Arendt A condição humana p 61 Cf Bethania Assy Hannah Arendt e a dignidade da a parência In A Duarte C Lopreato M B Magalhães Orgs A banalização da violência a atualidade do pensamento de Hannah Arendt Rio de Janeiro RelumeDumará 2004 46 Hannah Arendt What is freedom Between past and future p 146 p 192 da trad bras 47 On revolution Londres Penguin Books 1990 p 281 para os dois trechos citados Sobre a revolução Trad D Bottmann São Paulo Companhia das Letras 2011 p 350 e 351 48 Paul Ricoeur Pouvoir et violence In VV AA Politique et pensée Colloque Hannah Arendt Paris Payot 1996 p 164 Cf A condição humana p 11 49 Hannah Arendt A condição humana p 228 50 Ibid p 288 51 Ibid p 289 52 Ibid p 290 53 Ibid p 292 54 Ibid p 293 55 Hannah Arendt What is freedom Between past and future p 153 p 199 da trad bras 56 Id A condição humana p 40 57 Ibid p 43 58 Id Public rights and private interests In Money Stuber Orgs Small comforts for har d times humanists on public policy Nova Iorque Columbia University Press 1977 p 104 59 Cf por exemplo Hannah F Pit kin The attack of the blob Hannah Arendts concept of the social Chicago University of Chicago Press 2000 Odilio Aguiar A questão social em Hannah Arendt Transformação 27 2 2004 p 720 Seyla Benhabib Models of public space Hannah Arendt the liberal tradition and Jürgen Habermas In Craig C alhoun Ed Habermas and the public sphere 4 ed Massachusetts The MIT Press 1996 p 7398 No texto Public rights and private interests p 106107 Hannah Arendt observa o seguinte O que dizer dos direitos privados de indivíduos que são também cidadãos Como os interesses e direitos privados de alguém podem ser reconciliados com o que se tem direito a exigir dele enquanto um cidadão realmente a liberdade a vida política a vida do cidadão esta felicidade pública de que falei é um luxo uma felicidade adicional para a qual se torna apto apenas depois de as solicitações do processo vital terem sido satisfeitas Desse modo se falamos de igualdade a que stão é sempre a seguinte quanto temos de transformar as vidas privadas dos pobres Em outras palavras quanto dinheiro temos de dar a eles para tornálos aptos a desfrutar da felicidade pública Educação é muito bom mas o que importa mesmo é dinheiro Somente quando puderem desfrutar do público é que estarão dispostos e aptos a fazer sacrifícios pelo bem público Requerer sacrifícios de indivíduos que a inda não são cidadãos é exigir deles um idealismo que eles não têm e nem podem ter em vista da urgência do processo vital Antes de exigirmos idealismo dos pobres devemos antes t ornálos cidadãos e isto implica transformar as circunstâncias de suas vidas privadas de modo que se tornem aptos a desfrutar do público 60 Hannah Arendt Sobre Hannah Arendt Trad A Correia Revista Inquietude UFG v 1 n 2 agodez 2010 p 141 61 Arendt retorna aos gregos não pela nostalgia de uma era política ideal mas por julgar que a despeito da fragilidade da política em Atenas resul tante principalmente da inabilidade ateniense para redimir a imprevisibilidade e a irreversibilidade que são as infortunas da ação inaugurouse naquele momento uma dimensão da existência humana até então desconhecida votada à liberdade Sobre a compreensão arendtiana da política entre os antigos conferir Jacques Taminiaux Athens and Rome In Dana Villa Ed The Cambridge companion to Hannah Arendt Cambridge University Press 2000 62 Hannah Arendt A condição humana p 29 JAEGER Paidéia a formação do homem grego 4ª ed Trad Artur M Parreira São Paulo Martins Fontes 2003 p 144 63 Id O que é política Ed Ursula Ludz 2 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1999 p 23 64 Id A condição humana p 249 65 Id O que é política p 24 66 Id A condição humana p 65 67 Ibid p 402 68 Id O que é política p 77 Como nota Giorgio Agamben em sentido análogo a nossa política não conhece hoje outro valor e consequentemente outro desvalor que a vida e até que as contradições que isso implica não forem solucionadas nazismo e fascismo que haviam feito da decisão sobre a vida nua o critério político supremo permanecerão desgraçadamente atuais Giorgio Agamben Homo sacer o poder soberano e a vida nua I Belo Horizonte UFMG 2002 p 18 Ademais talvez também os campos de concentração e de extermínio sejam um experimento desse gênero uma tentativa extrema e monstruosa de decidir entre o humano e o inumano que terminou envolvendo em sua ruína a possibilidade mesma da distinção Giorgio Agamben Laperto luomo e lanimale Turim Bollati Boringhieri 2002 p 29 69 Hannah Arendt O que é política p 74 70 Homo sacer o poder soberano e a vida nua I p 17 71 Hannah Arendt A condição humana p 118 72 Ibi d p 148 73 Ibid p 120 74 Ibid p 153 Cf A Correia O desafio moderno Hannah Arendt e a sociedade de consumo In N Bignotto E J Moraes Orgs Hannah Arendt diálogos reflexões e memórias Belo Horizonte UFMG 2001 p 227245 75 A condição humana p 155 grifos meus 76 Ibid p 165 77 Id What is freedom Between past and future p 211 p 264 da trad bras 78 Id A condição humana p 400 79 Ibid p 167 80 Id Denktagebuch 19501973 p 540 caderno XXI n 55 de julho de 1955 81 Id On revolution p 286 grifos meus p 350 da trad bras 82 Id What is freedom Between past and future p 146 p 202 da trad bras 83 Id The origins of totalitarianism p 465 p 517 da trad bras INTRODUÇÃO Margaret Canovan Com a criação do homem veio ao mundo o próprio princípio do começar É da natureza do início que se comece algo novo algo que não se poder ia esperar de coisa alguma que tenha ocorrido antes p 220 Hannah Arendt é acima de tudo a teórica dos começos Todos os seus livros sã o narrativas do inesperado dizendo respeito seja aos novos horrores do totalitarismo seja à nova aurora da revolução e reflexões sobre a capacidade humana de começar algo novo pervagam seu pensamento Quando publicou A condição humana em 1958 ela mesma lançou algo inesperado no mundo e 40 anos mais tarde a originalidade do livro é tão impressionante quanto sempre foi Não pertencente a gênero algum ela não teve imitadores bemsucedidos e seu est ilo e sua forma continuam altamente idiossincráticos Embora Arendt jamais tenha tentado angariar discípulos e fundar uma escola de pensamento ela tem sido uma grande educadora abrindo os olhos de seus leitores para novos modos de observar o mundo e os assuntos humanos Frequentemente ela ilumina recantos negligenciados da experiência mediante a realização de novas distinções muitas delas triplas como se as dicotomias convencion ais fossem muito restritivas para sua imaginação intelectual A condição humana é repleta de distinções entre trabalho obra e ação entre poder violência e força entre a Terra e o mundo entre propriedade e riqueza e muitas outras frequentemente estabelecidas mediante investigações etimológicas Mas essas di stinções estão vinculadas a um modo mais controverso de contestar os truísmos contemporâneos pois no que é seguramente o aspecto mais inesperado deste livro ela encontra na Grécia Antiga um ponto arquimediano a pa rtir do qual lança um olhar crítico sobre modos de pensar e de se comportar que assumimos como óbvios Com efeito sua serena hipótese de que podemos ser capazes de aprender lições importantes da experiên cia de pessoas que viveram dois mil e quinhentos anos atrás desafia por si mesma a moderna crença no progresso Referências contínuas aos gregos têm agudizado o sentimento de desorientação experimentado por muitos leitores de A condição humana que têm achado difícil compreender o que realmente sucede no livro Aqui temos um escrito longo e complexo que não se ajusta a qualquer padrão estabelecido que é repleto de intuições inesperadas mas desprovido de uma estrutura argumentativa claramente aparente Por c onseguinte a questão mais urgente a ser considerada a título de introdução é o que Arendt realmente está fazendo Tanto a dificuldade do livro quanto seu persistente fascínio provêm do fato de que ela está fazendo muitas coisas de uma só vez Há mais linhas interligadas de pensamento que as que se pode seguir em uma primeira leitura e mesmo repetidas leituras podem trazer surpresas Não obstante uma coisa que ela claramente não está fazendo é a escrita de uma filosofia política como é convencionalmente compreendida isto é ofer ecendo prescrições políticas apoiadas em argumentos filosóficos Leitores acostumados a esse gênero tentaram encontrar algo desse tipo em A condição humana geralmente enfatizando o exame de Arendt da capacidade humana para a ação Uma vez que o livro é entrelaçado por críticas à sociedade moderna é tentador supor que ela pretendia apresentar uma utopia da ação política uma espécie de Nova Atenas E esta caricatura não é inteiramente infundada Arendt certamente era atraída pela democracia participativa e era uma observadora entusiasmada das irrupções de atividade cívica desde as manifestações americanas contra a Guerra do Vietnã até a formação de conselhos de base dos cidadãos durante a breve Revolução Húngara de 1956 Certamente era um de seus propósitos recordarnos de que a capacidade de agir está presente mesmo nas circunstâncias mais improváveis Mas ela denegou enfaticamente que seu papel como pensadora política fosse propor um projeto para o futuro ou dizer a alguém o que fazer Ao repudiar o título de filósofa política ela afirmou que o erro cometido por todos os filósofos políticos desde Platão consistiu em ignorar a condição fundamental da política a de que ela se passa entre seres humanos plurais cada um dos quais capaz de agir e iniciar algo novo As consequências resultantes de tal interação são contingentes e imprevisíveis concernem à política prática e estão sujeitas ao acordo de muitos elas jamais poderiam se basear em considerações teóricas ou na opinião de uma só pessoa p 6 Não se trata de filosofia política portanto e em face disso uma boa parte do livro parece realmente não tratar em absoluto de política As longas análises do trabalho e da obra e das implicações da ciência moderna e do crescimento econômico dizem respeito antes ao cenário para a política que à própria política Mesmo a discussão sobre a ação relacionase apenas parcialmente com atos especificamente políticos Logo após a publicação do livro Arendt descreveu A condição humana como uma espécie de prolegômenos a uma obra mais sistemática de teoria política planejada por ela mas nunca completada Ela explicou que sendo a ação a atividade política central foi necessário realizar um exercício preliminar de clarificação para separar conceitualmente a ação de outras atividades humanas com as quais ela é usualmente confundida como o trabalho e a obra1 Realmente o princípio organizador mais óbvio do livro consiste em sua análise fenomenológica das três formas de atividade que são fundamentais à condição humana o trabalho que corresponde à vida biológica do homem enquanto animal a obra que corresponde ao mundo artificial de objetos que os seres humanos erigem sobre a Terra e a ação que corresponde a nossa pluralidade enquanto indivíduos distintos Arendt sustenta que essas distinções e a hierarquia de atividades implícita nelas foram ignoradas no âmbito de uma tradição intelectual moldada por prioridades filosóficas e religiosas Todavia há muito mais no livro do que a análise fenomenológica e mais ainda do que a crítica de Arendt à deturpação da atividade humana pela filosofia política tradicional pois essas preocupações são delineadas por sua resposta a eventos contemporâneos Quando diz em seu prólogo que propõe apenas pensar o que estamos fazendo ela também deixa claro que o que tem em mente é não apenas uma análise geral da atividade humana mas uma reconsideração da condição humana do ponto de vista privilegiado de nossas mais novas experiências e nossos temores mais recentes p 6 Que experiências e que medos II O prólogo principia com reflexões sobre um desses eventos que revelam a capacidade humana para produzir novos começos o lançamento do primeiro satélite espacial em 1957 descrito por Arendt como um evento que em importância ultrapassa todos os outros até mesmo a fissão do átomo p 1 Como a Revolução Húngara de 1956 que também ocorreu enquanto ela estava trabalhando no livro esse evento inesperado a levou a rearranjar suas ideias mas foi ao mesmo tempo uma justificação de observações já feitas Por isso notando que essa surpreendente demonstração do poder humano foi celebrada por toda parte não por orgulho ou admiração mas antes como um sinal de que o gênero humano pode libertarse da Terra ela comenta que essa rebelião contra a existência humana tal como ela tem sido dada p 3 está em curso já há algum tempo Ao escapar da Terra para os céus e mediante iniciativas como a tecnologia nuclear os seres humanos estão sucessivamente desafiando os limites naturais colocando questões políticas tornadas largamente mais difíceis por conta da inacessibilidade da ciência moderna à discussão pública O prólogo de Arendt segue desse tema a outro evento não menos ameaçador p 5 que à primeira vista parece estranhamente desconectado o advento da automação Ao mesmo tempo em que nos libera do fardo do trabalho pesado a automação está causando desemprego em uma sociedade de trabalhadores na qual todas as ocupações são concebidas como modos de ganhar a vida Ao longo do livro é gradualmente revelado um contraste dialético entre esses dois tópicos aparentemente não relacionados a delinear a análise fenomenológica das atividades humanas Por um lado a aurora da era espacial demonstra que os seres humanos literalmente transcendem a natureza Como consequência da alienação da Terra da ciência moderna a capacidade humana de iniciar novas coisas coloca todos os limites naturais em questão deixando o futuro assustadoramente aberto Por outro lado em um desdobramento que Arendt vincula à moderna alienação do mundo sociedades automatizadas arrebatadas por produção e consumo cada vez mais eficientes nos encorajam a nos comportar e a nos conceber simplesmente como uma espécie animal governada por leis naturais Animais humanos inconscientes de suas capacidades e responsabilidades não são muito apropriados para se encarregar dos poderes que ameaçam a Terra Essa conjunção ecoa a análise anterior de Arendt sobre o totalitarismo como um processo niilista impulsionado por uma combinação paradoxal de convicções por um lado a crença em que tudo é possível e por outro a de que os seres humanos consistem meramente em uma espécie animal governada por leis da natureza ou da história a serviço das quais os indivíduos são inteiramente dispensáveis O eco não é surpreendente pois A condição humana é organicamente vinculada à obra de Arendt sobre o totalitarismo e ambas contêm em conjunto um diagnóstico notável e original da atribulação humana contemporânea O livro procede das conferências Fundação Charles R Walgreen que Arendt proferiu na Universidade de Chicago em abril de 1956 elas mesmas o desdobramento de um projeto muito maior sobre os Elementos totalitários no marxismo Arendt havia iniciado esse projeto após finalizar As origens do totalitarismo que continha uma boa consideração sobre os antecedentes do antissemitismo e do racismo nazistas mas nada sobre o pano de fundo marxista da versão assassina de Stalin da luta de classes Sua nova empresa consistia em examinar que características da teoria marxista poderiam ter contribuído para esse desastre No caso sua rede realizou uma pesca tão rica e variegada que o livro sobre Marx nunca foi escrito mas muitas das trilhas de pensamento envolvidas encontraram seu caminho em A condição humana notavelmente sua conclusão de que Marx havia incompreendido fatalmente a ação política em termos de uma mistura das outras atividades humanas que ela chama de obra e de trabalho Compreender a ação política como a produção de algo é para Arendt um erro perigoso A produção a atividade que ela chama de obra é algo que um artífice realiza ao forçar a matériaprima a se conformar a seu modelo A matériaprima nada tem a declarar no processo e os seres humanos não a modelam como matériaprima devido a uma tentativa de criar uma nova sociedade ou de produzir a história2 Falar do Homem produzindo sua própria história é enganador pois como Arendt nos recorda continuamente não existe tal pessoa os homens e não o Homem vivem na Terra e habitam o mundo p 9 Conceber a política como produção consiste em ignorar na teoria a pluralidade humana e na prática em coagir indivíduos No entanto Arendt achava que Marx herdara esse equívoco específico sobre a política da grande tradição do pensamento político Ocidental Desde quando Platão virou as costas para a democracia ateniense e planejou seu esquema de uma cidade ideal os filósofos políticos têm escrito sobre política de um modo que ignora sistematicamente as mais destacadas características políticas dos seres humanos que eles são plurais que cada um deles é capaz de novas perspectivas e novas ações e que eles não se conformam a um modelo ordenado e previsível a menos que essas capacidades políticas sejam esmagadas Um dos principais propósitos de Arendt em A condição humana é portanto desafiar toda a tradição da filosofia política ao recuperar e trazer à luz essas capacidades humanas negligenciadas Mas essa crítica da filosofia política não é o único grande tema do livro que tem origem em suas reflexões sobre Marx pois embora Marx fale de produção usando a terminologia do artesanato Arendt defende que ele realmente compreendeu a história nos termos do processo de produção e de consumo muito mais próximo da vida animal do trabalho de fato Sua visão da história humana como um processo previsível consiste em uma estória não dos indivíduos únicos mortais mas do processo vital coletivo da espécie Ainda que para Arendt ele estivesse inteiramente errado ao supor que esse processo poderia ser conduzido ao reino da liberdade por meio da revolução ela ficou perplexa com sua imagem da individualidade submersa na vida coletiva da espécie humana devotada à produção e ao consumo e se deslocando inexoravelmente em seu percurso Ela julgou que esta era uma representação reveladora da sociedade moderna na qual as preocupações econômicas passaram a dominar tanto a política quanto a autoconsciência humana Um segundo grande tema interligado com a fenomenologia das atividades humanas de Arendt é portanto sua descrição do surgimento de uma sociedade de trabalhadores Esse tema do social continua a ser um dos aspectos mais desconcertantes e controversos do livro Muitos leitores ofenderamse com as referências derrogatórias de Arendt às preocupações sociais e também presumiram que ao criticar o materialismo conformista da sociedade moderna ela pretende recomendar uma vida de ação heroica Mas essas leituras deixam escapar a complexidade do livro pois outro de seus temas centrais diz respeito aos perigos da ação que deflagra novos processos fora do controle dos atores incluindo os próprios processos que deram origem à sociedade moderna No centro de sua análise da condição humana está a importância vital para a existência civilizada de um mundo humano durável edificado na Terra para nos proteger dos processos naturais e para prover um cenário estável para nossas vidas mortais Como uma mesa em torno da qual as pessoas se reúnem esse mundo ao mesmo tempo separa e relaciona os homens entre si p 64 Somente a experiência de compartilhar um mundo humano comum com outros que o observam a partir de diferentes perspectivas pode nos habilitar a ver a realidade ao redor e desenvolver um senso comum compartilhado Sem isso somos todos devolvidos a nossas próprias experiências subjetivas nas quais apenas nossos sentimentos necessidades e desejos têm realidade A principal ameaça ao mundo humano foi por vários séculos a modernização econômica a qual como Marx indicou destruiu toda estabilidade e co locou tudo em movimento Distintamente de Marx para quem essa mudança era parte de um processo histórico inevitável Arendt a vincula a efeitos não pretendidos de ações humanas contingentes especificamente à expropriação massiva da propriedade eclesiástica e camponesa levada a cabo no curso da Reforma Com efeito a propriedade no sentido do direito à terra transmitido através das gerações sempre havia sido o principal bastião do mundo civilizado proporcionando aos proprietários um interesse na manutenção de sua estabilidade A grande transformação desencadeada pelas expropriações do século XVI foi dupla Por um lado camponeses que apostaram na estabilidade do mundo foram convertidos em trabalhadores diaristas inteiramente absorvidos na luta por satisfazer suas necessidades corporais Por outro a propriedade estável foi convertida em riqueza fluida em capital de fato com os efeitos dinâmicos que Marx descreveu tão bem Ao invés de habitar um mundo estável de objetos feito para durar os seres humanos acharamse tragados por um processo acelerado de produção e de consumo Na época em que Arendt estava refletindo sobre as implicações da automação esse processo de produção e de consumo havia ultrapassado em muito o provimento das necessidades naturais as atividades os métodos e os bens de consumo envolvidos eram de fato extremamente artificiais Mas ela assinala que essa artificialidade moderna é inteiramente distinta do artifício mundano estável habitado pelas civilizações anteriores Os objetos a mobília e as próprias casas tornaramse itens de consumo ao passo que o processo de produção automático assumiu um ritmo quase natural ao qual inclusive os seres humanos têm de se ajustar Ela afirma que é como se houvéssemos rompido à força as fronteiras distintivas que protegiam o mundo o artifício humano da natureza tanto o processo biológico que prossegue dentro dele quanto os processos naturais cíclicos que o rodeiam entregandolhes e abandonandolhes a sempre ameaçada estabilidade de um mundo humano p 155 Por toda parte em A condição humana ela descreve o que aconteceu como um crescimento artificial do natural ou como uma liberação do processo vital pois a modernização acabou por mostrarse extraordinariamente boa no incremento da produção do consumo e da procriação dando origem a uma raça humana vastamente expandida que produz e consome mais que jamais antes Sua alegação é a de que desde quando essas preocupações econômicas se tornaram o centro da atenção pública e da política pública em vez de permanecerem ocultas na privacidade do lar como em todas as civilizações anteriores os ônus têm sido a devastação do mundo e uma tendência sempre crescente dos seres humanos para se compreenderem conforme seu desejo de consumir A implicação de seu argumento não é todavia a de que todos precisamos nos arrancar de nossa imersão no trabalho e nos engajar na ação Com efeito essa hegemonia moderna do trabalho não significa que os seres humanos deixaram de agir de fazer novos inícios ou de iniciar novos processos quer dizer apenas que a ciência e a tecnologia converteramse na arena para a ação na natureza Ao mesmo tempo em que os homens ficaram cada vez mais inclinados a se conceberem como uma espécie animal sua capacidade de transcender tais limites estava sendo dramaticamente revelada pelas invenções científicas pois a contrapartida da alienação do mundo sofrida pelos trabalhadores foi a alienação da Terra entre os cientistas Enquanto Arquimedes declarou muito tempo atrás que seria capaz de mover a Terra se pudesse encontrar um ponto fixo Arendt defende que da época de Galileu aos engenheiros espaciais e cientistas nucleares contemporâneos os homens encontraram modos de observar a Terra de uma perspectiva cósmica e exercitando o privilégio humano de produzir novos inícios desafiaram os limites naturais a ponto de ameaçar o futuro da própria vida Consoante seu diagnóstico da atribulação contemporânea os poderes prometeicos liberando processos com consequências insondáveis estão sendo exercidos em uma sociedade de seres muito absorvidos no consumo para assumir qualquer responsabilidade pelo mundo humano ou para compreender suas capacidades políticas Ela observou em seu prólogo que a ausência de pensamento relacionada por sua vez à perda do mundo humano comum é uma das mais notáveis características do nosso tempo p 6 e seu objetivo ao pensar em voz alta era seguramente encorajar o pensamento nos outros III Na medida em que o propósito de Arendt era provocar o pensamento e a discussão ela obteve um retumbante sucesso Como muitos de seus escritos A condição humana foi tema de intenso debate desde seu aparecimento Na verdade poucas outras obras de teoria política moderna receberam uma publicidade tão variada considerada por alguns como uma obra de gênio e por outros como abaixo da crítica Muitos acadêmicos objetaram à forma e ao estilo não ortodoxos do livro Não prestando atenção a debates em voga Arendt realiza sua própria análise sem definir seus termos e sem se engajar em uma argumentação convencional Também irromperam furiosas controvérsias políticas em torno do livro O tratamento do animal laborans e a análise das preocupações sociais tornou sua autora impopular entre muitos da esquerda mas sua consideração da ação trouxe uma mensagem de esperança e de encorajamento a outros radicais incluindo alguns do movimento pelos Direitos Civis e por detrás da Cortina de Ferro Durante o movimento dos estudantes dos anos 1960 A condição humana foi aclamada como um compêndio da democracia participativa e a associação com esse movimento por sua vez afastou seus críticos Nos últimos anos como o pensamento de Arendt atraiu crescente atenção em parte por razões que ela não teria apreciado como o interesse em seu gênero em sua origem étnica e em seu relacionamento amoroso com Heidegger a importância do livro tornouse muito amplamente reconhecida ainda que seu significado permaneça em disputa Tamanha é a complexidade de sua trama que há espaço para muitas leituras diferentes Aristotélicos fenomenólogos habermasianos pósmodernistas feministas e muitos outros encontraram inspiração em diferentes fios de seu rico tecido e os 40 anos desde sua publicação não parecem tempo suficiente para permitir determinar seu significado duradouro Se pudermos extrair um tema central de um livro tão complexo esse tema teria de ser sua recordação da importância vital da política e da compreensão adequada de nossas capacidades políticas assim como dos perigos e oportunidades que elas oferecem O exame da condição humana por Arendt nos recorda que os seres humanos são criaturas que agem no sentido de iniciar coisas e deflagrar cadeias de eventos Isto é algo que continuamos a fazer compreendendo ou não suas implicações com a consequência de que tanto o mundo humano quanto a própria Terra tenham sido devastados por nossas catástrofes autoinfligidas Considerando o que chama de era moderna do século XVII ao início do século XX ela diagnostica uma situação paradoxal na qual processos econômicos radicais foram suscitados pela ação humana ao mesmo tempo em que os concernidos se compreendiam progressivamente como destroços abandonados nas correntes das forças socioeconômicas Ela acreditava que ambas as tendências se relacionavam com uma nova focagem da atenção pública em atividades econômicas que tradicionalmente eram assuntos privados do lar Em seu prólogo todavia ela observa que esta era moderna sobre a qual escreve já havia fenecido dado que o advento da tecnologia nuclear iniciou uma era nova e ainda desconhecida na longa interação entre os seres humanos e seu habitat natural Se ela estivesse viva hoje poderia indicar uma nova variação no tema familiar do poder e da impotência novamente conectado à emergência na esfera pública de uma função natural até então resguardada na privacidade De um lado o advento da engenharia genética com seu poder de desencadear novos processos que rompem os elos da natureza confirmando impressionantemente a transcendência humana e o que ela designou como uma rebelião contra a existência humana tal como ela tem sido dada p 3 De outro nossa autocompreensão enquanto animais tem se aprofundado devido a uma ênfase sem precedente não apenas na produção mas também na reprodução Questões relativas ao sexo admitidas apenas recentemente na arena pública parecem estar enxotando rapidamente outros assuntos da discussão pública enquanto cientistas neodarwinistas nos encorajam a acreditar que tudo o que nos diz respeito é determinado por nossos genes Visto que a lacuna entre poder e responsabilidade parece mais ampla que nunca sua recordação da capacidade humana para a ação e sua tentativa de pensar o que estamos fazendo são particularmente oportunas Todavia precisamos ouvir cuidadosamente o que ela está dizendo pois podemos facilmente compreender mal sua mensagem como um apelo para que a humanidade desperte de seu torpor assuma o controle dos eventos e produza conscientemente nosso próprio futuro O problema com esse enredo quase marxista é que não existe humanidade capaz de assumir a responsabilidade desse jeito Seres humanos são plurais e mortais e são essas características da ação humana que conferem à política tanto a sua miraculosa abertura quanto sua desesperada contingência A mensagem mais animadora de A condição humana é sua recordação da natalidade humana e do milagre do começar Em nítido contraste com a ênfase de Heidegger em nossa mortalidade Arendt sustenta que a fé e a esperança nos assuntos humanos provêm do fato de que novas pessoas estão continuamente chegando ao mundo cada uma delas única e capaz de novas iniciativas que podem interromper ou desviar as cadeias de eventos mobilizadas por ações anteriores Ela fala da ação como a única faculdade humana operadorade milagres p 305 assinalando que nos assuntos humanos é realmente muito razoável esperar o inesperado e que novos começos não podem ser descartados nem mesmo quando a sociedade parece seguir um curso inexorável ou estar aprisionada na estagnação Desde a publicação do livro suas observações sobre a imprevisibilidade da política foram impressionantemente confirmadas inclusive pelo colapso do comunismo As revoluções de 1989 foram notavelmente arendtianas ilustrando sua explanação sobre como o poder pode surgir como que do nada quando as pessoas começam a agir em concerto e pode esvair de modo inesperado de regimes aparentemente poderosos Embora a análise arendtiana da ação seja uma mensagem de esperança em tempos sombrios ela também envolve alertas pois o outro lado dessa imprevisibilidade miraculosa da ação é a falta de controle sobre seus efeitos A ação coloca as coisas em movimento e não é possível prever sequer os efeitos das próprias iniciativas para não mencionar a ausência de controle sobre o que acontece quando se está enredado com as iniciativas de outras pessoas na arena pública A ação é portanto profundamente frustrante pois seus resultados podem vir a ser inteiramente diferentes do que o ator pretendia É devido a esta aleatoriedade da ação entre atores plurais que os filósofos políticos desde Platão sempre tentaram substituir a ação por um modelo de política conforme à produção de uma obra de arte Após o filósoforei que vê o modelo ideal e molda seus sujeitos passivos para adequálos a ele foram elaborados um esquema após outro de sociedades perfeitas nas quais todos se conformam ao projeto do autor A curiosa esterilidade das utopias provém da ausência no interior delas de qualquer espaço para a iniciativa de qualquer lugar para a pluralidade Embora estejamos agora a 40 anos de quando Arendt chamou atenção para isto a filosofia política dominante está ainda presa na mesma armadilha ainda indisposta a levar a ação e a pluralidade a sério ainda procurando princípios teóricos tão racionalmente compulsórios que mesmo as gerações vindouras tenham de aceitálos tornando assim redundante a contingência aleatória das acomodações alcançadas nas presentes arenas políticas Arendt observa que há alguns remédios para as infortunas da ação mas destaca seu limitado alcance Um deles é simplesmente a possibilidade permanente de realizar outras ações para interromper processos aparentemente inexoráveis ou para conduzir a política para uma direção diferente mas que por si mesma nada faz para curar os danos do passado ou tornar seguro o futuro imprevisível Apenas as capacidades humanas de perdoar e de prometer podem lidar com esses problemas e ainda assim apenas em parte Confrontado com a fatigante sequência de vingança por erros do passado que apenas provoca mais vingança como muitas organizações políticas contemporâneas o perdão pode romper essa cadeia e os recentes esforços por reconciliação entre raças na África do Sul fornecem uma ilustração impressionante da posição de Arendt Entretanto como ela nota ninguém pode perdoar a si mesmo apenas a cooperação imprevisível dos outros pode perdoar e alguns males estão além do perdão Ademais esse modo de romper a cadeia de consequências deflagrada pela ação funciona apenas para consequências humanas não há remédio por meio do perdão para a ação na natureza que deflagra reações nucleares ou provoca a extinção de espécies Outro meio de lidar com as consequências imprevisíveis de iniciativas plurais é a capacidade de fazer e manter promessas Promessas feitas a si mesmo não têm confiabilidade mas quando pessoas plurais se ajuntam para se comprometerem em relação ao futuro os pactos criados entre eles podem lançar ilhas de previsibilidade no oceano de incerteza criando um novo tipo de confiança e permitindo a eles exercer o poder coletivamente Todos os contratos tratados e constituições são desse tipo eles podem ser extremamente fortes e confiáveis como a constituição dos Estados Unidos da América ou podem não valer o papel em que estão escritos como o acordo de Hitler em Munique Em outras palavras eles são inteiramente contingentes bastante diferentes dos acordos hipotéticos alcançados nas imaginações dos filósofos Arendt é muito conhecida por sua celebração da ação particularmente pelas passagens onde ela fala sobre a fama imortal conquistada pelos cidadãos atenienses quanto eles se engajam com seus pares no domínio público Mas A condição humana diz respeito igualmente aos perigos da ação e à miríade de processos deflagrados pela iniciativa humana agora a se precipitar descontrolados Ela nos recorda é claro de que não somos animais indefesos podemos nos engajar em outra ação tomar iniciativas para interromper tais processos e tentar conduzilos sob controle mediante acordos Todavia além das dificuldades físicas de assumir o controle de processos impensadamente deflagrados pela ação na natureza ela também nos recorda dos problemas políticos causados pela própria pluralidade Em princípio se todos pudermos concordar em atuar work juntos somos capazes de exercer grande poder mas o acordo entre pessoas plurais é difícil de alcançar e nunca está a salvo de iniciativas disruptivas de outros atores Como estamos no limiar de um novo milênio o único prognóstico seguro que podemos fazer é o de que apesar da continuação de processos já em curso o futuro aberto se tornará uma arena para incontáveis iniciativas humanas que ultrapassam nossa imaginação atual Talvez não seja muito temerário fazer outro prognóstico o de que futuros leitores encontrarão em A condição humana alimento para o pensamento e oportunidade para o debate recolhendo e desdobrando diferentes fios e temas nesse extraordinário livro Isto condiria muito bem com Arendt Como ela disse próximo ao fim de sua vida cada vez que você escreve algo lança no mundo e isto se torna público todos estão obviamente livres para fazer com isso o que lhes aprouver e é assim que deve ser Não tenho qualquer problema com isto Você não deve buscar controlar agora tudo o que pode suceder ao que você tem de pensar por si mesmo Você deve antes tentar aprender com o que outras pessoas fizeram com isso3 1 Em uma proposta de pesquisa submetida à Fundação Rockfeller após a publicação de A condição humana provavelmente em 1959 Correspondence with the Rockefeller Foundation Hannah Arendt Papers Library of Congress Box 20 p 013872 2 A posição de Arendt é ilustrada por um comentário admirado de Mussolini sobre a Revolução bolchevique Lenin é um artista que manejou os homens como outros manejaram o mármore e o metal Citado por Alan Bullock em Hitler and Stalin Parallel Lives Londres Fontana Press 1993 p 374 3 Remarks to the American Society of Christian Ethics 1973 Hannah Arendt Papers Library of Congress Box 70 p 011828 PRÓLOGO Em 1957 um objeto terrestre feito pelo homem foi lançado ao universo onde durante algumas semanas girou em torno da Terra segundo as mesmas leis de gravitação que fazem girar e mantêm em movimento os corpos celestes o Sol a Lua e as estrelas Certamente o satélite artificial não era nenhuma lua ou estrela nem um corpo celeste que pudesse prosseguir em sua órbita circular por um período de tempo que para nós mortais constrangidos ao tempo da Terra durasse uma eternidade Ainda assim conseguiu permanecer nos céus durante algum tempo habitou e se moveu na vizinhança dos astros como se estes o houvessem tentativamente admitido em sua sublime companhia Esse evento que em importância ultrapassa todos os outros até mesmo a fissão do átomo teria sido saudado com incontida alegria não fossem as incômodas circunstâncias militares e políticas que o acompanhavam O curioso porém é que essa alegria não foi triunfal o que encheu o coração dos homens que agora ao erguerem os olhos da Terra para os céus podiam obervar lá uma coisa produzida por eles não foi orgulho nem assombro ante a enormidade do poder e do domínio humanos A reação imediata expressa no calor da hora foi alívio ante o primeiro passo para a fuga dos homens de sua prisão na Terra E essa estranha declaração longe de ter sido o lapso acidental de algum repórter norteamericano refletia involuntariamente a extraordinária frase gravada há mais de 20 anos no obelisco fúnebre de um dos grandes cientistas da Rússia humanidade não permanecerá para sempre presa à Terra Há já algum tempo tais impressões têm se tornado lugarcomum Elas mostram que em toda parte os homens não tardam a acompanhar as descobertas da ciência e o desenvolvimento da técnica e ajustarse a eles mas ao contrário estão décadas à sua frente Nesse aspecto como em outros a ciência realizou e afirmou aquilo que os homens haviam antecipado em sonhos que não eram nem tolos nem vãos A novidade foi apenas que um dos jornais mais respeitáveis dos Estados Unidos levou finalmente à primeira página aquilo que até então estivera relegado ao reino da literatura de ficção científica tão pouco respeitável à qual infelizmente ninguém deu até agora a atenção que merece como veículo dos sentimentos e desejos das massas A banalidade da declaração não deve nos levar a desconsiderar quão extraordinária ela de fato é pois embora os cristãos tenham chamado a Terra de vale de lágrimas e os filósofos tenham considerado o corpo uma prisão da mente ou da alma ninguém na história da humanidade jamais havia concebido a Terra como prisão para os corpos dos homens nem mostrado tal avidez por ir literalmente daqui à Lua Devem a emancipação e a secularização da era moderna que começaram com um afastamento não necessariamente de Deus mas de um Deus que era o Pai dos homens no céu terminar com um repúdio ainda mais funesto de u ma Terra que era a Mãe de todas as criaturas sob o firmamento A Terra é a própria quintessência da condição humana e a natureza terrestre ao que sabemos pode ser a única no universo capaz de proporcionar aos seres humanos um habitat no qual eles podem moverse e respirar sem esforço nem artifício O artifício humano do mundo separa a existência humana de todo ambiente meramente animal mas a vida mesma permanece fora desse mundo artificial e por meio da vida o homem permanece ligado a todos os outros organismos vivos Desde já algum tempo um grande número de investigações científi cas tem buscado tornar artificial também a vida e cortar o último laço a manter até o homem entre os filhos da natureza O mesmo desejo de escapar do aprisionamento à Terra manifestase na tentativa de criar a vida em uma proveta no desejo de misturar sob o microscópio o plasma seminal congelado de pessoas de comprovada capacidade a fim de produzir seres humanos superiores e alterarlhes o tamanho a forma e a função e suspeito que o desejo de escapar à condição humana também subjaza à esperança de prolongar a duração da vida humana para além do limite dos 100 anos Esse homem futuro que os cientistas nos dizem que produzirão em menos de um século parece imbuído por uma rebelião c ontra a existência humana tal como ela tem sido dada um dom gratuito vindo de lugar nenhum secularmente falando que ele deseja trocar por assim dizer por algo produzido por ele mesmo Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar tal troca assim como não há motivo para duvidar de nossa atual capacidade de destruir toda vida orgânica na Terra A questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento científico e técnico e essa questão não pode ser decidida por meios científicos é uma questão política de primeira grandeza cuja decisão portanto não pode ser deixada a cientistas profissionais ou a políticos profissionais Embora tais possibilidades possam pertencer ainda a um futuro remoto os primeiros efeitos de bumerangue dos grandes triunfos da ciência já se fizeram sentir em uma crise nas próprias ciências naturais O problema tem a ver com o fato de que as verdades da moderna visão científica do mundo embora possam ser demonstradas em fórmulas matemáticas e comprovadas tecnologicamente já não se prestam à expressão normal no discurso e no pensamento Quando se fala conceitual e coerentemente dessas verdades as sentenças resultantes são talvez não tão sem sentido quanto um círculo triangular mas muito mais que um leão alado Erwin Schrödinger Ainda não sabemos se essa situação é definitiva mas pode suceder que nós que somos criaturas ligadas à Terra e nos pusemos a agir como se fôssemos habitantes do universo jamais sejamos capazes de compreender isto é de pensar e de falar sobre as coisas que no entanto somos capazes de fazer Nesse caso seria como se nosso cérebro que constitui a condição material física de nossos pensamentos não fosse capaz de acompanhar o que fazemos de modo que de agora em diante necessitássemos realmente de máquinas artificiais que pensassem e falassem por nós Se for comprovado o divórcio entre o conhecimento no sentido moderno de conhecimento técnico knowhow e o pensamento então passaríamos a ser sem dúvida escravos indefesos não tanto de nossas máquinas quanto de nosso conhecimento técnico criaturas desprovidas de pensamento à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível por mais mortífera que seja Contudo mesmo que deixemos de lado essas últimas e ainda incertas consequências a situação criada pelas ciências tem grande importância política Sempre que a relevância do discurso está em jogo as questões tornam se políticas por definição pois é o discurso que faz do homem um ser político Se seguíssemos o conselho que ouvimos com tanta frequência de ajustar nossas atitudes culturais ao estado atual de realização científica adotaríamos deveras um modo de vida no qual o discurso não teria mais sentido Pois atualmente as ciências são forçadas a adotar uma linguagem de símbolos matemáticos que embora originariamente concebida apenas como uma abreviação de afirmações enunciadas contém agora afirmações que de modo algum podem ser retraduzidas em discurso O motivo pelo qual talvez seja prudente desconfiar do julgamento político de cientistas qua cientistas não é em primeiro lugar a sua falta de caráter que não tenham se recusado a desenvolver armas atômicas nem a sua ingenuidade que não tenham compreendido que uma vez desenvolvidas tais armas eles seriam os últimos a ser consultados quanto ao seu emprego mas precisamente o fato de que se movem em um mundo no qual o discurso perdeu seu poder E tudo o que os homens fazem sabem ou experimentam só tem sentido na medida em que se possa falar sobre Pode haver verdades para além do discurso e que podem ser de grande relevância para o homem no singular isto é para o homem na medida em que seja o que for não é um ser político Os homens no plural isto é os homens na medida em que vivem se movem e agem neste mundo só podem experimentar a significação porque podem falar uns com os outros e se fazer entender aos outros e a si mesmos Mais próximo e talvez igualmente decisivo é outro evento não menos ameaçador o advento da automação que dentro de algumas décadas provavelmente esvaziará as fábricas e liberará a humanidade do seu fardo mais antigo e mais natural o fardo do trabalho e a sujeição à necessidade Também aqui está em questão um aspecto fundamental da condição humana mas a rebelião contra esse aspecto o desejo de liberação das fadigas e penas do trabalho não é moderno mas tão antigo quanto a história de que se tem registro A própria isenção do trabalho não é novidade esteve outrora entre os mais arraigados privilégios da minoria Nesse caso parece que apenas se tirou proveito do progresso científico e do desenvolvimento técnico para alcançar algo com que todas as eras anteriores sonharam mas que nenhum foi capaz de realizar Entretanto isso é assim apenas na aparência A era moderna trouxe consigo uma glorificação teórica do trabalho e resultou na transformação factual de toda a sociedade em uma sociedade trabalhadora Assim a realização do desejo como sucede nos contos de fadas chega num momento em que só pode ser contraproducente É uma sociedade de trabalhadores a que está para ser liberada dos grilhões do trabalho uma sociedade que já não conhece aquelas outras atividades superiores e mais significativas em vista das quais essa liberdade mereceria ser conquistada Dentro dessa sociedade que é igualitária porque esse é o modo como o trabalho faz os homens viverem juntos já não restam classes nem aristocracia de natureza política ou espiritual a partir da qual pudesse ser iniciada novamente a restauração das outras capacidades do homem Até presidentes reis e primeirosministros concebem seus cargos como um emprego necessário à vida da sociedade e entre os intelectuais restam somente indivíduos solitários que consideram o que fazem como uma obra e não como meio de ganhar o próprio sustento O que se nos depara portanto é a perspectiva de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho isto é sem a única atividade que lhes resta Certamente nada poderia ser pior Este livro não oferece uma resposta a essas preocupações e perplexidades Tais respostas são dadas diariamente e elas concernem à política prática e estão sujeitas ao acordo de muitos elas jamais poderiam se basear em considerações teóricas ou na opinião de uma só pessoa como se lidássemos aqui com problemas para os quais só existe uma solução possível O que proponho nas páginas que se seguem é uma reconsideração da condição humana do ponto de vista privilegiado de nossas mais novas experiências e nossos temores mais recentes É óbvio que isso é um assunto do pensamento e a ausência de pensamento thoughtlessness a despreocupação negligente a confusão desesperada ou a repetição complacente de verdades que se tornaram triviais e vazias pareceme ser uma das mais notáveis características do nosso tempo O que proponho portanto é muito simples tratase apenas de pensar o que estamos fazendo O que estamos fazendo é na verdade o tema central deste livro Ele aborda somente as articulações mais elementares da condição humana aquelas atividades que tradicionalmente e também segundo a opinião corrente estão ao alcance de todo ser humano Por essa e outras razões a mais elevada e talvez a mais pura atividade de que os homens são capazes a atividade de pensar é deixada de fora das presentes considerações Sistematicamente portanto o livro limitase a uma discussão do trabalho da obra e da ação que constituem seus três capítulos centrais Historicamente abordo a era moderna em um último capítulo e no decorrer de todo o livro as várias constelações na hierarquia de atividades tais como as conhecemos da história do Ocidente Contudo a era moderna não coincide com o mundo moderno Cientificamente a era moderna que começou no século XVII terminou no limiar do século XX politicamente o mundo moderno em que vivemos hoje nasceu com as primeiras explosões atômicas Não discuto esse mundo moderno que constitui o pano de fundo da redação deste livro Limitome por um lado a uma análise daquelas capacidades humanas gerais que provêm da condição humana e são permanentes isto é que não podem ser irremediavelmente perdidas enquanto não mudar a própria condição humana Por outro lado o propósito final da análise histórica é o de rastrear até sua origem a moderna alienação do mundo em sua dupla fuga da Terra para o universo e do mundo para o simesmo self a fim de chegar a uma compreensão da natureza da sociedade como esta se desenvolvera e se apresentava no instante em que foi suplantada pelo advento de uma era nova e ainda desconhecida A CONDIÇÃO HUMANA 1 A vita activa e a condição humana Com a expressão vita activa pretendo designar três atividades humanas fundamentais trabalho obra e ação São fundamentais porque a cada uma delas corresponde uma das condições básicas sob as quais a vida foi dada ao homem na Terra O trabalho é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano cujos crescimento espontâneo metabolismo e resultante declínio estão ligados às necessidades vitais produzidas e fornecidas ao processo vital pelo trabalho A condição humana do trabalho é a própria vida A obra é a atividade correspondente à nãonaturalidade unnaturalness da existência humana que não está engastada no semprerecorrente everrecurrent ciclo vital da espécie e cuja mortalidade não é compensada por este último A obra proporciona um mundo artificial de coisas nitidamente diferente de qualquer ambiente natural Dentro de suas fronteiras é abrigada cada vida individual embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas elas A condição humana da obra é a mundanidade worldliness A ação única atividade que ocorre diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria corresponde à condição humana da pluralidade ao fato de que os homens e não o Homem vivem na Terra e habitam o mundo Embora todos os aspectos da condição humana tenham alguma relação com a política essa pluralidade é especificamente a condição não apenas a conditio sine qua non mas a conditio per quam de toda vida política Assim a língua dos romanos talvez o povo mais político que conhecemos empregava como sinônimas as expressões viver e estar entre os homens inter homines esse ou morrer e deixar de estar entre os homens inter homines esse desinere Mas em sua forma mais elementar a condição humana da ação está implícita até em Gênesis Macho e fêmea Ele os criou se entendermos que esse relato da criação do homem é distinto em princípio do outro segundo o qual Deus originalmente criou o Homem adam ele e não eles de modo que a multidão dos seres humanos vem a ser o resultado da multiplicação1 A ação seria um luxo desnecessário uma caprichosa interferência nas leis gerais do comportamento se os homens fossem repetições interminavelmente reproduzíveis do mesmo modelo cuja natureza ou essência fosse a mesma para todos e tão previsível quanto a natureza ou essência de qualquer outra coisa A pluralidade é a condição da ação humana porque somos todos iguais isto é humanos de um modo tal que ninguém jamais é igual a qualquer outro que viveu vive ou viverá Todas as três atividades e suas condições correspondentes estão intimamente relacionadas com a condição mais geral da existência humana o nascimento e a morte a natalidade e a mortalidade O trabalho assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo mas a vida da espécie A obra e seu produto o artefato humano conferem uma medida de permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano A ação na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos cria a condição para a lembrança remembrance ou seja para a história O trabalho e a obra bem como a ação estão também enraizados na natalidade na medida em que têm a tarefa de prover e preservar o mundo para o constante influxo de recém chegados que nascem no mundo como estranhos além de prevêlos e leválos em conta Entretanto das três atividades a ação tem a relação mais estreita com a condição humana da natalidade o novo começo inerente ao nascimento pode fazerse sentir no mundo somente porque o recémchegado possui a capacidade de iniciar algo novo isto é de agir Nesse sentido de iniciativa a todas as atividades humanas é inerente um elemento de ação e portanto de natalidade Além disso como a ação é a atividade política por excelência a natalidade e não a mortalidade pode ser a categoria central do pensamento político em contraposição ao pensamento metafísico A condição humana compreende mais que as condições sob as quais a vida foi dada ao homem Os homens são seres condicionados porque tudo aquilo com que eles entram em contato tornase imediatamente uma condição de sua existência O mundo no qual transcorre a vita activa consiste em coisas produzidas pelas atividades humanas mas as coisas que devem sua existência exclusivamente aos homens constantemente condicionam no entanto os seus produtores humanos Além das co ndições sob as quais a vida é dada ao homem na Terra e em parte a partir delas os homens constantemente criam suas próprias condições produzidas por eles mesmos que a despeito de sua origem humana e de sua variabilidade possuem o mesmo poder condicionante das coisas naturais O que quer que toque a vida humana ou mantenha uma duradoura relação com ela assume imediatamente o caráter de condição da existência humana Por isso os homens independentemente do que façam são sempre seres condicionados Tudo o que adentra o mundo humano por si próprio ou para ele é trazido pelo esforço humano tornase parte da condição humana O impacto da realidade do mundo sobre a existência humana é sentido e recebido como força condicionante A objetividade do mundo seu caráterde objeto objectcharacter ou seu caráterdecoisa thingcharacter e a condição humana complementamse uma à outra por ser uma existência condicionada a existência humana seria impossível sem coisas e estas seriam um amontoado de artigos desconectados um nãomundo se não fossem os condicionantes da existência humana Para evitar malentendidos a condição humana não é o mesmo que a natureza humana e a soma total das atividades e capacidades humanas que correspondem à condição humana não constitui algo equivalente à natureza humana Pois nem aquelas que discutimos neste livro nem as que deixamos de mencionar como o pensamento e a razão e nem mesmo a mais meticulosa enumeração de todas elas constituem características essenciais da existência humana no sentido de que sem elas essa existência deixaria de ser humana A mudança mais radical da condição humana que podemos imaginar seria uma emigração dos homens da Terra para algum outro planeta Tal evento já não inteiramente impossível implicaria que o homem teria de viver sob condições produzidas por ele mesmo radicalmente diferentes daquelas que a Terra lhe oferece O trabalho a obra a ação e na verdade mesmo o pensamento como o conhecemos deixariam de ter sentido No entanto até esses hipotéticos viajores da Terra ainda seriam humanos mas a única afirmativa que poderíamos fazer quanto à sua natureza é que são ainda seres condicionados embora sua condição seja agora em grande parte produzida por eles mesmos O problema da natureza humana a quaestio mihi factus sum a questão que me tornei para mim mesmo de Agostinho parece insolúvel tanto em seu sentido psicológico individual como em seu sentido filosófico geral É altamente improvável que nós que podemos conhecer determinar e definir as essências naturais de todas as coisas que nos rodeiam e que não somos sejamos capazes de fazer o mesmo a n osso próprio respeito seria como pular sobre nossas próprias sombras Além disso nada nos autoriza a presumir que o homem tenha uma natureza ou essência no mesmo sentido em que as outras coisas têm Em outras palavras se temos uma natureza ou essência então certamente só um deus poderia conhecêla e definila e a primeira precondição é que ele pudesse falar de um quem como se fosse um quê2 A perplexidade decorre do fato de as formas de cognição humana aplicáveis às coisas dotadas de qualidades naturais inclusive nós mesmos na medida limitada em que somos exemplares da espécie de vida orgânica mais altamente desenvolvida de nada nos valerem quando levantamos a pergunta e quem somos nós É por isso que as tentativas de definir natureza humana resultam quase invariavelmente na construção de alguma deidade isto é no deus dos filósofos que desde Platão revela se em um exame mais acurado como uma espécie de ideia platônica do homem Naturalmente desmascarar tais conceitos filosóficos do divino como conceitualizações das capacidades e qualidades humanas não é uma demonstração da nãoexistência de Deus e nem mesmo constitui argumento nesse sentido mas o fato de que as tentativas de definir a natureza do homem levam tão facilmente a uma ideia que nos parece definitivamente sobrehumana superhuman e é portanto identificada com o divino pode lançar suspeitas sobre o próprio conceito de natureza humana Por outro lado as condições da existência humana a vida a natalidade e a mortalidade a mundanidade a pluralidade e a Terra jamais podem explicar o que somos ou responder à pergunta sobre quem somos pela simples razão de que jamais nos condicionam de modo absoluto Essa sempre foi a opinião da filosofia em contraposição às ciências antropologia psicologia biologia etc que também se ocupam do homem Mas hoje podemos quase dizer que já demonstramos mesmo cientificamente que embora vivamos agora sob condições terrenas e provavelmente viveremos sempre não somos meras criaturas terrenas A moderna ciência natural deve os seus maiores triunfos ao fato de ter considerado e tratado a natureza terrena de um ponto de vista verdadeiramente universal isto é de um ponto de vista arquimediano escolhido voluntária e explicitamente fora da Terra 2 O termo vita activa Otermo vita activa é carregado e sobrecarregado de tradição É tão velho quanto nossa tradição de pensamento político mas não mais velho que ela E essa tradição longe de abranger e conceitualizar todas as experiências políticas da humanidade ocidental é produto de uma constelação histórica específica o julgamento de Sócrates e o conflito entre o filósofo e a pólis Ela eliminou muitas experiências de um passado próximo que eram irrelevantes para suas finalidades políticas e prosseguiu até seu fim na obra de Karl Marx de modo altamente seletivo O próprio termo que na filosofia medieval é a tradução consagrada do bios politikos de Aristóteles já ocorre em Agostinho onde como vita negotiosa ou actuosa reflete ainda o seu significado original uma vida dedicada aos assuntos públicopolíticos3 Aristóteles distinguia três modos de vida bioi que os homens podiam escolher livremente isto é em inteira independência das necessidades da vida e das relações delas decorrentes Essa condição prévia de liberdade excluía qualquer modo de vida dedicado sobretudo à preservação da vida não apenas o trabalho que era o modo de vida do escravo coagido pela necessidade de permanecer vivo e pelo mando do seu senhor mas também a vida de fabricação dos artesãos livres e a vida aquisitiva do mercador Em suma excluía todos aqueles que involuntária ou voluntariamente por toda a vida ou temporariamente já não podiam dispor em liberdade dos seus movimentos e atividades4 Os três modos de vida restantes têm em comum o fato de se ocuparem do belo isto é de coisas que não eram necessárias nem meramente úteis a vida de deleite dos prazeres do corpo na qual o belo é consumido tal como é dado a vida dedicada aos assuntos da pólis na qual a excelência produz belos feitos e a vida do filósofo dedicada à investigação e à contemplação das coisas eternas cuja beleza perene não pode ser causada pela interferência produtiva do homem nem alterada pelo consumo humano5 A principal diferença entre o emprego aristotélico e o posterior emprego medieval do termo é que o bios politikos denotava explicitamente somente o domínio dos assuntos humanos com ênfase na ação práxis necessária para estabelecêlo e mantêlo Nem o trabalho nem a obra eram tidos como sufi cientemente dignos para constituir um bios um modo de vida autônomo e autenticamente humano uma vez que serviam e produziam o que era necessário e útil não podiam ser livres e independentes das necessidades e carências humanas6 Se o modo de vida político escapou a esse veredicto isso se deveu à compreensão grega da vida na pólis que para eles denotava uma forma de organização política muito esp ecial e livremente escolhida e de modo algum apenas uma forma de ação necessária para manter os homens juntos de um modo ordeiro Não que os gregos ou Aristóteles ignorassem o fato de que a vida humana sempre exige alguma forma de organização política e que o governo dos súditos pode constituir um modo de vida à parte mas o modo de vida do déspota pelo fato de ser meramente uma necessidade não podia ser considerado livre e nada tinha a ver com o bios politikos7 Com o desaparecimento da antiga cidadeEstado e Agostinho parece ter sido o último a saber pelo menos o que outrora significava ser um cidadão a expressão vita activa perdeu o seu significado especificamente político e passou a denotar todo tipo de engajamento ativo nas coisas deste mundo É claro que isso não queria dizer que a obra e o trabalho tinham ascendido na hierarquia das atividades humanas e eram agora tão dignos quanto a vida dedicada à política8 De fato o oposto era verdadeiro a ação passara a ser vista como uma das necessidades da vida terrena de modo que a contemplação o bios theōrētikos traduzido como vita contemplativa era agora o único modo de vida realmente livre9 Contudo a enorme superioridade da contemplação sobre qualquer outro tipo de atividade inclusive a ação não é de origem cristã Encontramola na filosofia política de Platão em que toda a reorganização utópica da vida na pólis é não apenas dirigida pelo superior discernimento do filósofo mas não tem outra finalidade senão tornar possível o modo de vida filosófico A articulação aristotélica dos diferentes modos de vida em cuja ordem a vida de prazer tem papel secundário é orientada claramente pelo ideal da contemplação theōria À antiga liberdade em relação às necessidade s da vida e à coerção de outros os filósofos acrescentaram a liberdade e a cessação de toda atividade política skholē10 de sorte que a posterior pretensão dos cristãos de serem livres de envolvimento em assuntos mundanos de todos os negócios deste mundo foi precedida pela apolitia filosófica da Antiguidade tardia e dela se originou O que até então havia sido exigido somente por alguns poucos era agora visto como direito de todos A expressão vita activa compreendendo todas as atividades humanas e definida do ponto de vista da absoluta quietude da contemplação corresponde portanto mais estritamente à askholia grega inquietude com a qual Aristóteles designava toda atividade que ao bios politikos grego Já desde Aristóteles a distinção entre quietude e inquietude entre uma abstenção quase estática de movimento físico externo e qualquer tipo de atividade é mais decisiva que a distinção entre os modos de vida político e teórico porque afinal pode ocorrer em qualquer um dos três modos de vida É como a difer ença entre a guerra e a paz tal como a guerra ocorre em vista da paz também todo tipo de atividade mesmo o processo do mero pensamento deve culminar na absoluta quietude da contemplação11 Todo movimento os movimentos do corpo e da alma bem como do discurso e do raciocínio devem cessar diante da verdade Esta seja a antiga verdade do Ser ou a verdade cristã do Deus vivo só pode revelarse em meio à completa tranquilidade humana12 Tradicionalmente e até o início da era moderna a expressão vita activa jamais perdeu sua conotação negativa de inquietude necotium askholia Como tal permaneceu intimamen te ligada à distinção grega ainda mais fundamental entre as coisas que são por si o que são e as coisas que devem ao homem a sua existência entre as coisas que são physei e as coisas que são nomō O primado da contemplação sobre a atividade baseiase na convicção de que nenhuma obra de mãos humanas pode igualar em beleza e verdade o kosmos físico que revolve em torno de si mesmo em imutável eternidade sem qualquer interferência ou assistência externa seja humana seja divina Essa eternidade só se revela a olhos mortais quando todos os movimentos e atividades humanas estão em com pleto repouso Comparadas a esse estado de quietude todas as diferenças e articulações no âmbito da vita activa desaparecem Do ponto de vista da contemplação não importa o que perturba a necessária quietude mas que ela seja perturbada Tradicionalmente portanto a expressão vita activa recebe seu significado da vita contemplativa a dignidade que lhe é conferida é muito limitada porque ela serve às necessidades e carências da contemplação em um corpo vivo der Bedürftigkeit eines lebendigen Körpers an den die Kontemplation gebunden bleibt à necessidade de um corpo vivo ao qual a contemplação perm anece vinculada13 O cristianismo com a sua crença em um outro mundo cujas alegrias se prenunciam nos deleites da contemplação14 conferiu sanção religiosa ao rebaixamento da vita activa à sua posição derivada secundária mas a determinação dessa mesma hierarquia coincidiu com a descoberta da contemplação theōria como uma faculdade humana acentuadamente diversa do pensamento e do raciocínio que ocorreu na escola socrática e que desde então dominou o pensamento metafísico e político durante toda a nossa tradição15 Para as finalidades deste livro pareceme desnecessário discutir as razões dessa tradição Obviamente são mais profundas que o momento histórico que engendrou o conflito entre a pólis e o filósofo e que com isso levou também quase por acaso à descoberta da contemplação como o modo de vida do filósofo Essas razões devem residir em um aspecto inteiramente diferente da condição humana cuja diversidade não é esgotada pelas várias manifestações da vita activa e podemos presumir não seria esgotada mesmo se incluíssemos nela o pensamento e o movimento do raciocínio Portanto se o uso da expressão vita activa como aqui o proponho está em manifesta contradição com a tradição é que duvido não da validade da experiência subjacente à distinção mas antes da ordem hierárquica inerente a ela desde o início Isso não significa que eu deseje contestar ou mesmo discutir o conceito tradicional de verdade como revelação e portanto como algo essencialmente dado ao homem ou que prefira a asserção pragmática da era moderna de que o homem só pode conhecer aquilo que ele mesmo faz Sustento simplesmente que o enorme valor da contemplação na hierarquia tradicional embaçou as diferenças e articulações no âmbito da própria vita activa e que a despeito das aparências essa condição não foi essencialmente alterada pelo moderno rompimento com a tradição nem pela inversão final da sua ordem hierárquica em Marx e Nietzsche A estrutura conceitual permanece mais ou menos intacta e isso se deve à própria natureza do ato de virar de cabeça para baixo os sistemas filosóficos ou os valores atualmente aceitos isto é à natureza da própria operação A inversão moderna tem em comum com a tradicio nal hierarquia a premissa de que a mesma preocupação humana central deve prevalecer em todas as atividades dos homens posto que sem um princípio abrangente único nenhuma ordem poderia ser estabelecida Tal premissa não é evidente e meu emprego da expressão vita activa pressupõe que a preocupação subjacente a todas as suas atividades não é a mesma preocupação central da vita contemplativa como não lhe é superior nem inferior 3 Eternidade versus imortalidade Que de um lado as várias formas de engajamento ativo nas coisas deste mundo e de outro o pensamento puro que culmina na contemplação possam corresponder a duas preocupações humanas centrais inteiramente diferentes tem se evidenciado de uma forma ou de outra desde que os homens de pensamento e os homens de ação começaram a enveredar por caminhos diferentes16 isto é desde a as cendência do pensamento político na escola socrática Contudo quando os filósofos descobriram e é possível que a descoberta tenha sido feita pelo próprio Sócrates embora isso não se possa provar que o domínio político não propiciava necessariamente todas as atividades superiores do homem presumiram imediatamente não que houvessem descoberto algo novo além do que já se sabia mas que haviam encontrado um princípio superior para substituir o princípio que governava a pólis A maneira mais breve embora um tanto superficial de ilustrar esses dois princípios diferentes e até certo ponto conflitantes é lembrar a diferença entre imortalidade e eternidade Imortalidade significa continuidade no tempo vida sem morte nesta Terra e neste mundo tal como foi dada segundo o consenso grego à natureza e aos deuses do Olimpo Contra esse pano de fundo da vida perpétua da natureza e das vidas dos deuses isentas de morte e de velhice encontravamse os homens mortais os únicos mortais em um universo imortal mas não eterno defrontados com as vidas imortais dos seus deuses mas não sob o domínio de um Deus eterno Se confiarmos em Heródoto a diferença entre as duas parece ter sido notável para a autocompreensão dos gregos antes da exposição conceitual dos filósofos e portanto antes das experiências do eterno especificamente gregas que subjazem a essa exposição Ao discutir formas asiáticas de adoração e as crenças em um Deus invisível Heródoto menciona explicitamente que em comparação com esse Deus transcendente como diríamos hoje situado além do tempo da vida e do universo os deuses gregos eram anthrōpophyeis isto é tinham a mesma natureza e não apenas a mesma forma do homem17 A preocupação dos gregos com a imortalidade resultou de sua experiência de uma natureza imortal e de deuses imortais que juntos circundavam as vidas individuais de homens mortais Inserida em um cosmo onde tudo era imortal a mortalidade tornouse o emblema da existência humana Os homens são os mortais as únicas coisas mortais que e xistem porque ao contrário dos animais não existem apenas como membros de uma espécie cuja vida imortal é garantida pela procriação18 A mortalidade dos homens reside no fato de que a vida individual com uma história vital identificável desde o nascimento até a morte advém da vida biológica Essa vida individual difere de todas as outras coisas pelo curso retilíneo do seu movimento que por assim dizer trespassa o movi mento circular da vida biológica É isto a mortalidade moverse ao longo de uma linha reta em um universo em que tudo o que se move o faz em um sentido cíclico A tarefa e a grandeza potencial dos mortais residem em sua capacidade de produzir coisas obras feitos e palavras19 que mereceriam estar e pelo menos até certo ponto estão confortáveis na eternidade de sorte que por meio delas os mortais pudessem encontrar o seu lugar em um cosmo onde tudo é imortal exceto eles próprios Por sua capacidade de realizar feitos imortais por poderem deixar atrás de si vestígios imorredouros os homens a despeito de sua mortalidade individual atingem a imortalidade que lhes é própria e demonstram sua natureza divina A diferença entre o homem e o animal aplicase à própria espécie humana só os melhores os aristoi que constantemente provam serem os melhores aristeuein verbo que não tem equivalente em nenhuma outra língua e que preferem a fama imortal às coisas mortais são realmente humanos os outros satisfeitos com os prazeres que a natureza lhes oferece vivem e morrem como animais Essa era ainda a opinião de Heráclito20 opinião da qual dificilmente se encontra equivalente em qualquer filósofo depois de Sócrates Em nosso contexto não faz muita diferença se foi o próprio Sócrates ou se foi Platão quem descobriu o eterno como o verdadeiro centro do pensamento estritamente metafísico Depõe muito a favor de Sócrates o fato de que só ele entre todos os grandes pensadores singular nesse aspecto como em muitos outros jamais tenha se importado em dar forma escrita a seus pensamentos pois é óbvio que não importa o quanto um pensador possa estar preocupado com a eternidade no instante em que se põe a escrever os seus pensamentos ele deixa de estar fundamentalmente preocupado com a eternidade e volta a sua atenção para a tarefa de legar algum vestígio deles Ele ingressou na vita activa e escolheu sua forma de permanência e de imortalidade potencial Uma coisa é certa é somente em Platão que a preocupação com o eterno e a vida do filósofo são vistas como inerentemente contraditórias e em conflito com a luta pela imortalidade que é o modo de vida do cidadão o bios politikos A experiência que o filósofo tem do eterno experiência que para Platão era arrhēton indizível e para Aristóteles aneu logou sem palavras e que mais tarde foi conceitualizada no paradoxal nunc stans aquilo que é agora só pode ocorrer fora do domínio dos assuntos humanos e fora da pluralidade dos homens Sabemos disso desde a parábola da Caverna na República de Platão na qual o filósofo tendo se libertado dos grilhões que o prendiam aos seus semelhantes deixa a caverna em perfeita singularidade por assim dizer nem acompanhado nem seguido de outros Politicamente falando se morrer é o mesmo que de ixar de estar entre os homens a experiência do eterno é uma espécie de morte e a única coisa que a separa da morte real é que ela não é definitiva porque nenhuma criatura viva pode suportála durante muito tempo E é isso precisamente que separa a vita contemplativa da vita activa no pensamento medieval21 No entanto é decisivo que a experiência do eterno diferentemente da experiência do imortal não corresponda a qualquer atividade nem possa ser convertida em nenhuma delas visto que mesmo a atividade do pensamento que ocorre no interior de uma pessoa por meio de palavras é obviamente não apenas inadequada para propiciar tal experiência mas a interromperia e a arruinaria A theōria ou contemplação é a designação dada à experiência do eterno em contraposição a todas as outras atitudes que no máximo podem ter a ver com a imortalidade Talvez a descoberta do eterno pelos filósofos tenha sido favorecida pelo fato de que eles muito justificadamente duvidavam das possibilidades da pólis no tocante à imortalidade ou mesmo à permanência e talvez o choque de tal descoberta tenha sido tão atordoante que eles não puderam deixar de considerar como vaidade ou vanglória qualquer busca de imortalidade o que certamente os colocava em franca oposição à antiga cidadeEstado e à religião que a inspirava Contudo a vitória derradeira da preocupação com a eternidade sobre todos os tipos de aspiração à imortalidade não se deveu ao pensamento filosófico A queda do Império Romano demonstrou claramente que nenhuma obra de mãos mortais pode ser imortal e foi acompanhada pela promoção do evangelho cristão que pregava uma vida individual eterna à posição de religião exclusiva da humanidade ocidental Juntas ambas tornavam fútil e desnecessária qualquer busc a de imortalidade terrena e conseguiram tão bem transformar a vita activa e o bios politikos em servos da contemplação que nem mesmo a ascendência do secular na era moderna e a concomitante inversão da hierarquia tradicional entre ação e contemplação foram suficientes para resgatar do oblívio a procura da imortalidade que originalmente fora a fonte e o centro da vita activa 1 Na análise do pensament o político pósclássico frequentemente é bastante esclarecedor verificar qual das duas versões bíblicas da criação é citada Assim é altamente característico da diferença entre os ensinamentos de Jesus de Nazaré e de Paulo que Jesus discutindo a relação entre marido e mulher refirase a Gênesis 1 27 Não tendes lido que ele que os criou no início os criou macho e fêmea Mt 19 4 enquanto Paulo em uma ocasião semelhante insiste em que a mulher foi criada do homem e portanto para o homem embora em seguida atenue um pouco a dependência nem o homem é sem a mulher nem a mulher sem o ho mem I Cor 11 812 A diferença indica muito mais que uma atitude diferente com relação ao papel da mulher Para Jesus a fé era intimamente relacionada com a ação cf 33 adiante para Paulo a fé relacionavase antes de tudo com a salvação Especialmente interessante a esse respeito é Agostinho A cidade de Deus xii 21 que não só ignora inteiramente o que é dito em Gênesis 1 27 mas vê a diferença entre o homem e o animal no fato de ter sido o homem criado unum ac singulum enquanto foi ordenado aos animais que passassem a existir vários de uma só vez plura simul iussit existere Para Agostinho o relato da criação oferece uma boa oportunidade para salientar o caráter de espécie da vida animal em oposição à singularidade da existência humana 2 Agostinho geralmente considerado o primeiro a levantar a chamada questão antropológica na filosofia sabia disso muito bem Estabelece uma distinção entre as questões Quem sou e O que sou a primeira é feita pelo homem a si próprio E dirigime a mim mesmo e disseme Tu quem és tu E respondi Um homem tu quis es Confissões x 6 e a segunda é dirigida a Deus O que sou então meu Deus Qual é a minha natureza Quid ergo sum Deus meus Quae natura sum x17 Pois no grande mistério no grande profundum que é o homem iv 14 há algo do homem aliquid hominis que o espírito do homem que nele está não sabe Mas tu Senhor que o fizeste fecisti eum tudo sabes a seu respeito eius omnia x 5 Assim a mais conhecida dessas frases que citei no texto a quaestio mihi factus sum é uma questão levantada na presença de Deus ante cujos olhos torneime uma questão para mim mesmo x 33 Em resumo a resposta à questão Quem sou é simplesmente És um homem seja isso o que for e a resposta à questão O que sou só pode ser dada por Deus que fez o homem A questão da natureza do homem é uma questão teológica tanto quanto a questão da natureza de Deus ambas só podem ser resolvidas dentro da estrutura de uma resposta divinamente revelada 3 Cf Agostinho A cidade de Deus xix 2 19 4 William L Westermann Between slavery and freedom American historical review v L 1945 afirma que a declaração de Aristóteles de que os fabricantes vivem em uma condição de escravidão limitada significa que o artesão ao fazer um contrato de trabalho abria mão de dois dos quatro elementos de seu status de homem livre a saber liberdade de atividade econômica e direito de movimentação irrestrita mas por vontade própria e temporariamente evidências citadas por Westermann demonstram que na época compreendiase que a liberdade consistia em status inviolabilidade pessoal liberdade de atividade econômica e direito de movimentação irrestrita e que consequentemente a escravidão era a ausência destes quatro atributos Aristóteles ao enumerar os modos de vida na Ética Nicomaquéia i 5 e na Ética Eudêmia 1215a35ss nem chega a mencionar um modo de vida do fabricante para ele é óbvio que um banausos não é livre cf Política 1337b5 Menciona porém o modo de vida do ganhador de dinheiro para rejeitálo uma vez que também é adotado sob compulsão Ética Nicomaquéia 1096a5 Na Ética Eudêmia fica salientado que o critério é a liberdade ele enumera somente aqueles modos de vida escolhidos epexousian 5 Para a oposição entre o belo o necessário e o útil cf Política 1333a30ss 1332b32 6 Para a oposição entre o que é livre e o que é necessári o e útil cf Política 1332b2 7 Cf Política 1277b8 para a distinção entre governo despótico e política Quanto ao argumento de que a vida do déspota não é igual à vida de um homem livre uma vez que o primeiro está preocupado com coisas necessárias conferir 1325a24 8 Quanto à opinião generalizada de que a moderna avaliação do trabalho é de origem cristã conferir adiante 44 9 Cf Tomás de Aquino Suma teológica ii 2 179 especialmente art 2 onde a vita activa resulta da necessitas vitae praesentis e Expositio in Psalmos 45 3 onde se atribui ao corpo político a tarefa de proporcionar tudo o que é necessário à vida in civitate oportet invenire omnia necessaria ad vitam 10 A palavra grega skholē como a latina otium significa basicamente isenção de atividade política e não simplesmente lazer embora ambas sejam também usadas para indicar isenção do trabalho e das necessidades da vida De qualquer modo indicam sempre uma condição de liberação de preocupações e cuidados Uma excelente descrição da vida cotidiana de um cidadão ateniense comum que goza de completa isenção de trabalho e de obra pode ser encontrada em Fustel de Coulanges A cidade antiga Archor 1956 p 334336 qualquer um se convencerá de como a atividade política era absorvente nas condições da cidadeEstado Podese facilmente imaginar como essa vida política comum era cheia de preocupações quando se recorda que a lei ateniense não permitia que se permanecesse neutro e punia com perda de cidadania aqueles que não quisessem tomar partido em disputas faccionárias 11 Cf Aristóteles Política 1333a3033 Tomás de Aquino define a contemplação como quies ab exterioribus motibus Suma teológica ii 2 179 1 12 Tomás de Aquino ressalta a tranquilidade da alma e recomenda a vita activa porque ela extenua e portanto aquieta as paixões interiores e prepara para a contemplação Suma teológica ii 2 182 3 13 Tomás de Aquino é bastante explícito quanto à conexão entre a vita activa e as carências e necessidades do corpo humano que os homens e os an imais têm em comum Suma teológica ii 2 182 1 14 Agostinho fala do ônus sarcina da vida ativa imposto pelo dever da caridade que seria insuportável sem a doçura suavitas e o deleite da verdade obtido na contemplação A cidade de Deus xix 19 15 O consagrado ressentimento do filósofo contra a condição humana de possuir um corpo não é a mesma coisa que o antigo desprezo pelas necessidades da vida a sujeição à necessidade era apenas um dos aspectos da existência corpórea e uma vez libertado dessa necessidade o corpo era capaz daquela aparência pura que os gregos chamavam de beleza Desde Platão os filósofos acrescentaram ao ressentimento de serem forçados por carências corporais o ressentimento contra qualquer tipo de movimentação Porque o filósofo vive em completa quietude somente o seu corpo habita a cidade segundo Platão É essa também a origem da acusação de bisbilhotice polypragmosynē dirigida àqueles que passam a vida a cuidar da política 16 Cf F M Cornford Platos commonwealth em Unwritten philosophy 1950 p 54 A morte de Péricles e a Guerra do Peloponeso marcam o instante em que os homens de pensamento e os homens de ação começaram a enveredar por caminhos diferentes destinados a se separar cada vez mais até que o sábio estóico deixou de ser um cidadão do seu país e passou a ser um cidadão do universo 17 Depois de relatar que os persas não têm imagens de deuses nem templos nem altares e consideram insensatas essas coisas Heródoto i 131 passa a explicar que isso demonstra que eles não acreditam como os gregos que os deuses sejam anth rōpophyeis de natureza humana ou poderíamos acrescentar que os deuses e os homens tenham a mesma natureza Conferir também Píndaro Carmina Nemaea vi 18 Conferir Ps Aristóteles Economia 1343b24 A natureza garante à espécie seu ser para sempre por meio da recorrência períodos mas não pode garantir o mesmo para o indivíduo O mesmo pensamento Para as coisas vivas a vida é o ser surge em Sobre a alma 415b13 19 A língua grega não faz distinção entre obras e fe itos mas chamaos de erga quando são duráveis o bastante para subsistirem e grandiosos o bastante para serem lembrados Foi somente quando os filósofos ou melhor os sofistas começaram a fazer suas distinções intermináveis e a distinguir fazer de agir poiein e prattein que os substantivos poimata e pragmata passaram a ser usados mais largamente Cf Platão Cármides 163 Homero ainda não conhece a palavra pragmata que em Platão ta tōn anthōrpōn pragmata é mais bem traduzida como negócios humanos e tem a conotação de inquietação e futilidade Em Heródoto pragmata pode ter a mesma conotação cf por exemplo i 155 20 Heráclito fragm B29 Diels Fragmente der Vorsokratiker 4 ed 1922 21 In vita activa fixi permanere possumus in contemplativa autem intenta mente manere nullo modo valemus Tomás de Aquino Suma teológica ii 2 181 4 OS DOMÍNIOS PÚBLICO E PRIVADO 4 O homem um animal social ou político Avita activa a vida humana na medida em que está ativamente empenhada em fazer algo está sempre enraizada em um mundo de homens ou de coisas feitas pelos homens um mundo que ela jamais abandona ou chega a transcender completamente As coisas e os homens constituem o ambiente de cada uma das atividades humanas que não teriam sentido sem tal localização e no entanto esse ambiente o mundo no qual nascemos não existiria sem a atividade humana que o produziu como no caso de coisas fabricadas que dele cuida como no caso das terras de cultivo ou que o estabeleceu por meio da organização como no caso do corpo político Nenhuma vida humana nem mesmo a vida do eremita em meio à natureza selvagem é possível sem um mundo que direta ou indiretamente testemunhe a presença de outros seres humanos Todas as atividades humanas são condicionadas pel o fato de que os homens vivem juntos mas a ação é a única que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens A atividade do trabalho não requer a presença de outros mas um ser que trabalhasse em completa solidão não seria humano e sim um animal laborans no sentido mais literal da expressão Um homem obrando fabricando e construindo working and fabricating and building um mundo habitado somente por ele mesmo seria ainda um fabricador embora não um homo faber teria per dido a sua qualidade especificamente humana e seria antes um deus certamente não o Criador mas um demiurgo divino como Platão o descreveu em um dos seus mitos Só a ação é prerrogativa exclusiva do homem nem um animal nem um deus é capaz de ação1 e só a ação depende inteiramente da constante presença de outros Essa relação especial entre a ação e estar junto parece justificar plenamente a antiga tradução do zōon politikōn de Aristóteles como animal socialis que já encontramos em Sêneca e depois com Tomás de Aquino tornouse a tradução consagrada homo est naturaliter politicus id est socialis o homem é por natureza político isto é social2 Melhor que qualquer teoria elaborada essa substituição inconsciente do político pelo social revela até que ponto havia sido perdida a original compreensão grega da política Para tanto é significativo mas não decisivo que a palavra social seja de origem romana e não tenha equivalente na língua ou no pensamento gregos Não obstante o uso latino da palavra societas tinha também originalmente um significado claramente político embora limitado indicava uma aliança entre pessoas para um fim específico como quando os homens se organizavam para dominar outros ou para cometer um crime 3 É somente com o ulterior conceito de uma societas generis humani uma sociedade da espécie humana4 que o termo social começa a adquirir o sentido geral de condição humana fundamental Não que Aristóteles ou Platão ignorassem ou não dessem importância ao fato de que o homem não pode viver fora da companhia dos homens simplesmente não incluíam tal condição entre as características especificamente humanas Pelo contrário ela era algo que a vida humana tinha em comum com a vida animal razão suficiente para que não pude sse ser fundamentalmente humana A companhia natural meramente social da espécie humana era vista como uma limitação imposta a nós pelas necessidades da vida biológica que são as mesmas para o animal humano e para outras formas de vida animal Segundo o pensamento grego a capacidade humana de organização política não apenas é diferente dessa associação natural cujo centro é o lar oikia e a família mas encontrase em oposição direta a ela O surgimento da cidadeEstado significou que o homem recebera alé m de sua vida privada uma espécie de segunda vida o seu bios politikos Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência e há uma nítida diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio idion e o que é comum koinon5 Não se tratava de mera opinião ou teoria de Aristóteles mas de simples fato histórico que a fundação da pólis foi precedida pela destruição de todas as unidades organizadas à base do parentesco tais como a phratria e a phylē6 De todas as atividades necessárias e presentes nas comunidades humanas somente duas eram consideradas políticas e constituíam o que Aristóteles chamava de bios politikos a ação praxis e o discurso lexis das quais surge o domínio dos assuntos humanos ta tōn anthrōpōn pragmata como chamava Platão de onde está estritamente excluído tudo o que é apenas necessário ou útil Contudo embora certamente só a fundação da cidadeEstado tenha possibilitado aos homens passar toda a sua vida na esfera política em ação e em discurso a convicção de que essas duas capacidades humanas formam um par além de serem as mais altas de todas parece haver precedido a pólis e ter estado presente já no pensamento présocrático A estatura do Aquiles homérico só pode ser compreendida quando se o vê como o realizador de grandes feitos e o pronunciad or de grandes palavras7 Diferentemente da compreensão moderna essas palavras não eram tidas como grandes por exprimirem grandes pensamentos pelo contrário como percebemos pelas últimas linhas de Antígona talvez seja a capacidade de emitir grandes palavras megaloi logoi em resposta a rudes golpes que finalmente nos ensi ne o pensamento na velhice8 O pensamento era secundário com relação ao discurso mas o discurso e a ação eram tidos como coevos e iguais da mesma categoria e da mesma espécie e isso originalmente significava não apenas que a maioria das ações políticas na medida em que permanecem fora da esfera da violência são realmente realizadas por meio de palavras mas também mais fundamentalmente que o ato de encontrar as palavras certas no momento certo independentemente da informação ou comunicação que transmitem constitui uma ação Somente a pura violência é muda e por esse motivo a violência por si só jamais pode ter grandeza Mesmo quando relativamente tarde na Antiguidade as artes da guerra e do discurso a retórica emergiram como os dois principais tópicos da educação tal desdobramento era ainda inspirado por essa experiência e essa tradição anteriores prépólis e a elas permaneceu sujeito Na experiência da pólis que tem sido considerada não sem razão o mais loquaz dos corpos políticos e mais ainda na filosofia política que dela surgiu a ação e o discurso separaramse e tornaramse atividades cada vez mais independentes A ênfase passou da ação para o discurso e para o discurso como meio de persuasão e não como a forma especificamente humana de responder replicar e estar à altura do que aconteceu ou do que foi feito9 Ser político viver em uma pólis significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão e não força e violência Para os gregos forçar pessoas mediante violência ordenar ao invés de persuadir eram modos prépolíticos de lidar com as pessoas típicos da vida fora da pólis característicos do lar e da vida em família em que o chefe da casa imperava com poderes incontestes e despóticos ou da vida nos impérios bárbaros da Ásia cujo despotismo era frequentemente comparado à organização doméstica A definição de Aristóteles do homem como zōon politikon não apenas não se relacionava com a associ ação natural experimentada na vida doméstica mas era até oposta a ela ela só pode ser compreendida inteiramente se se acrescentar a ela a segunda famosa definição aristotélica do homem como zōon logon ekhon um ser vivo dotado de fala A tradução latina dessa expressão como animal rationale resulta de uma incompreensão não menos fundamental que a da expressão animal social Aristóteles não pretendia definir o homem em geral nem indicar a mais alta capacidade do homem que para ele não era o logos isto é o discurso ou a razão mas nous a capacidade de contemplação cuja principal característica é que o seu conteúdo não pode ser vertido em discurso10 Em suas duas mais famosas definições Aristóteles apenas formulou a opinião corrente da pólis acerca do homem e do modo de vida político e segundo essa opinião todos os que viviam fora da pólis escravos e bárbaros eram aneu logou destituídos naturalmente não da faculdade do discurso mas de um modo de vida no qual o discurso e somente o discurso tinha sentido e no qual a preocupação central de todos os cidadãos era falar uns com os outros A profunda incompreensão contida na tradução latina de político como social talvez não seja tão clara em nenhuma outra parte quanto em uma discussão em que Tomás de Aqui no compara a natureza do governo doméstico com a do governo político o chefe da família diz ele tem certa semelhança com o chefe do reino mas acrescenta o seu poder não é tão perfeito quanto o do rei11 De fato não só na Grécia e na pólis mas em toda a Antiguidade Ocidental teria sido evidente que mesmo o poder do tirano era menor e menos perfeito que o poder com que o paterfamilias o dominus governava a casa onde mantinha os seus escravos e seus familiares e isso não porque o poder do governante da cidade fosse igualado e controlado pelos poderes combinados dos chefes de família mas porque o governo absoluto e inconteste e a esfera política propriamente dita eram mutuamente excludentes12 5 A pólis e a família Embora a incompreensão e o equacionamento das esferas política e social sejam tão antigos quanto a tradução lat ina de termos gregos e sua adaptação ao pensamento romanocristão a confusão tornouse muito maior no uso moderno e na moderna concepção da sociedade A distinção entre as esferas privada e pública da vida corresponde aos domínios da família e da política que existiram como entidades diferentes e separadas pelo menos desde o surgimento da antiga cidadeEstado mas a eclosão da esfera social que estritamente não era nem privada nem pública é um fenômeno relativamente novo cuja origem coincidiu com a eclosão da era moderna e que encontrou sua forma política no Estadonação O que nos interessa nesse contexto é a extraordinária dificuldade com que devido a esse desdobramento compreendemos a divisão decisiva entre os domínios público e privado entre a esfera da pólis e a esfera do lar da família e finalmente entre as atividades relativas a um mundo comum e aquelas relativas à manutenção da vida divisão essa na qual se baseava todo o antigo pensamento político que a via como axiomática e evidente por si mesma Em nosso entendimento a linha divisória é inteiramente difusa porque vemos o corpo de povos e comunidades políticas como uma família cujos assuntos diários devem ser zelados por uma gigantesca administração doméstica de âmbito nacional O pensamento científico que corresponde a esse desdobramento já não é a ciên cia política e sim a economia nacional ou a economia social ou ainda a Volkswirtschaft todas as quais indicam uma espécie de administração doméstica coletiva13 o que chamamos de sociedade é o conjunto de famílias economicamente organizadas de modo a constituírem o facsímile de uma única família sobrehumana e sua forma política de o rganização é denominada nação14 Assim énos difícil compreender que segundo o pensamento dos antigos sobre esses assuntos o próprio termo economia política teria sido contraditório pois o que fosse econômico relacionado com a vida do indivíduo e a sobrevivência da espécie não era assunto político mas doméstico por definição15 Historicamente é muito provável que o surgimento da cidadeEstado e do domínio público tenha ocorrido à custa do domínio privado da família e do lar16 Contudo a antiga santidade da lareira embora muito mais pronunciada na Grécia clássica que na Roma antiga jamais se perdeu inteiramente O que impediu a pólis de violar as vidas privadas dos seus cidadãos e a fez ver como sagrados os limites que cercavam cada propriedade não foi o respeito pela propriedade privada tal como a concebemos mas o fato de que sem possuir uma casa um homem não podia participar dos assuntos do mundo porque não tinha nele lugar algum que fosse propriamente seu17 Até Platão cujos planos políticos previam a abolição da propriedade privada e a expansão da esfera pública ao ponto de aniquilar completamente a vida privada ainda falava com grande reverência de Zeus Herkeios o protetor das fronteiras e chamava de divinos os horoi os limites entre os Estados sem nisso ver qualquer contradição18 O traço distintivo da esfera do lar era que o fato de que nela os homens viviam juntos por serem a isso compelidos por suas necessidades e carências A força compulsiva era a própria vida os penates os deuses do lar eram segundo Plutarco os deuses que nos fazem viver e alimentar o nosso corpo19 que para sua manutenção e sobrevivência individual assim como a vida da espécie requer a companhia dos outros O fato de que a manutenção individual devesse ser a tarefa do homem e a sobrevivência da espécie a tarefa da mulher era tido como óbvio e ambas as funções naturais o trabalho do homem para fornecer o sustento e o trabalho da mulher no parto eram sujeitas à mesma premência da vida Portanto a comunidade natural do lar nascia da necessidade e a necessidade governava todas as atividades realizadas nela O domínio da pólis ao contrário era a esfera da liberdade e se havia uma relação entre essas duas esferas era que a vitória sobre as necessidades da vida no lar constituía a condição óbvia para a liberdade da pólis A política não podia em circunstância algu ma ser apenas um meio para proteger a sociedade seja uma sociedade de fiéis como na Idade Média uma sociedade de proprietários como em Locke uma sociedade inexoravelmente empenhada em um processo de aquisição como em Hobbes uma sociedade de produtores como em Marx uma sociedade de empregados como em nossa própria sociedade ou uma sociedade de trabalhadores como nos países socialistas e comunistas Em todos esses casos é a liberdade da sociedade e em alguns casos uma pretensa liberdade que requer e justifica a limitação da autoridade política A liberdade situase no domínio do social e a força e a violência tornamse monopólio do governo O que todos os filósofos gregos tinham como certo por mais que se opusessem à vida na pólis é que a liberdade situase exclusivamente na esfera política que a necessidade é primordialmente um fenômeno prépolítico característico da organização do lar privado e que a força e a violência são justifi cadas nesta última esfera por serem os únicos meios de vencer a necessidade governando escravos por exemplo e tornarse livre Uma vez que todos os seres humanos são sujeitos à necessidade têm o direito de empregar a violência contra os outros a violência é o ato prépolítico de liberarse da necessidade da vida para conquistar a liberdade no mundo Essa liberdade é a condição essencial daquilo que os gregos chamavam de felicidade eudaimonia que era um estado objetivo dependente em primeiro lugar de riqueza e de saúde Ser pobre ou ter má saúde significava estar sujeito à necessidade física e ser um escravo significava estar sujeito também à violência praticada pe lo homem Essa infelicidade dupla e redobrada da escravidão é inteiramente independente do efetivo bemestar subjetivo do escravo Assim um homem livre e pobre preferia a insegurança de um mercado de trabalho que mudasse diariamente a uma ocupação regular e garantida esta última por lhe restringir a liberdade de fazer o que desejasse a cada dia já era considerada servidão douleia e até o trabalho árduo e penoso era preferível à vida tranquila de muitos escravos domésticos20 No entanto o poder prépolítico com o qual o chefe do lar governava a família e seus escravos e que era tido como necessário porque o homem é um animal social antes de ser animal político nada tem em comum com o caótico estado de natureza de cuja violência segundo o pensamento político do século XVII os homens só poderiam escapar se estabelecessem um governo que por meio de um monopólio do poder e da violência abolisse a guerra de todos contra todos por mantêlos todos atemorizados21 Pelo contrário todo o conceito do governar e do ser governado do governo e do poder no sentido em que os concebemos bem como a ordem regulada que os acompanha eram tidos como prépolíticos pertencentes antes à esfera privada mais que à esfera pública A pólis diferenciavase do lar pelo fato de somente conhecer iguais ao passo que o lar era o centro da mais severa desigualdade Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando de outro e também não comandar Significava nem governar nem ser governado22 Assim dentro do domínio do lar a liberdade não existia pois o chefe do lar seu governante só era considerado livre na medida em que tinha o poder de deixar o lar e ingressar no domínio político no qual todos eram iguais É verdade que essa igual dade no domínio político tem muito pouco em comum com o nosso conceito de igualdade significava viver entre pares e ter de lidar somente com eles e pressupunha a existência de desiguais que de fato eram sempre a maioria da população na cidadeEstado 23 A igualdade portanto longe de estar ligada à justiça como nos tempos modernos era a própria essência da liberdade ser livre significava ser isento da desigualdade presente no ato de governar e moverse em uma esfera na qual não existiam governar nem ser governado Contudo termina aqui a possibilidade de descrever em termos de uma nítida oposição a profunda diferença entre as compreensões moderna e antiga de política No mundo moderno os domínios social e político diferem muito menos entre si O fato de que a política é apenas uma função da sociedade de que a ação o discurso e o pensamento sã o fundamentalmente superestruturas assentadas no interesse social não foi descoberto por Karl Marx pelo contrário foi uma das premissas axiomáticas que Marx recebeu acriticamente dos economistas políticos da era moderna Essa funcionalização torna impossível perceber qualquer abismo relevante entre as duas esferas e não se trata de uma questão de teoria ou de ideologia pois com a ascendência da sociedade isto é do lar oikia ou das atividades econômicas ao domínio público a administração doméstica e todas as questões antes pertinentes à esfera privada da famíli a transformaramse em preocupação coletiva24 No mundo moderno os dois domínios constantemente recobrem um ao outro como ondas no perene fluir do processo da vida O desaparecimento do abismo que os antigos tinham de transpor diariamente a fim de transcender o estreito domínio do lar e ascender ao domínio da política é um fenômeno essencialmente moderno Esse abismo entre o privado e o público ainda existia de certa forma na Idade Média embora houvesse perdido muito da sua importância e mudado inteiramente de localização Já se disse com acerto que após a queda do Império Romano foi a Igreja Católica que ofereceu aos homens um substituto para a cidadania antes outorgada exclusivamente pelo governo municipal 25 A tensão medieval entre a treva da vida diária e o grandioso esplendor de tudo o que era sagrado com a concomitante ascensão do secular ao religioso corresponde em muitos aspectos à ascensão do privado ao público na Antiguidade É claro que a diferença é muito marcante pois não importa quão mundana a Igreja tenha se tornado o que mantinha reunida a comunidade dos crentes era essencialmente sempre uma preocupação extramundana Embora só com alguma dificuldade seja possível equacionar o público com o religioso realmente o domínio secular sob o feudalismo era inteiramente aquilo que o domínio privado havia sido na Antiguidade Sua marca distintiva era a absorção de todas as atividades na esfera do lar onde tinham significação apenas privada e consequentemente a própria ausência de um domínio público26 É característico desse crescimento da esfera privada e incidentalmente da diferença entre o antigo chefe de família e o senhor feudal que este último pudesse administrar justiça dentro dos limites do seu feudo ao passo que o antigo chefe de família embora pudesse exercer um comando mais ameno ou mais severo não conhecia leis nem justiça fora do domínio político27 A transferência de todas as atividades humanas para o domínio privado e a conformação de todas as relações humanas ao molde do lar atingiram profundamente as organizações profissionais especificamente medievais nas cidades as guildas confréries e compagnons e mesmo as primeiras companhias comerciais nas quais a reunião original do lar parecia aludida pela própria palavra companhia companis e em expressões como aqueles que comem do mesmo pão homens que compartilham do mesmo pão e do mesmo vinho28 O conceito medieval do bem comum longe de indicar a existência de um domínio político reconhecia apenas que os indivíduos privados têm interesses materiais e espirituais em comum e só podem conservar sua privatividade e cuidar de seus próprios negócios quando um deles se encarrega de zelar por esse interesse comum O que distingue da realidade moderna essa atitude essencialmente cristã em relação à política não é tanto o reconhecimento de um bem comum quanto a exclusividade da esfera privada e a ausência daquele domínio curiosamente híbrido que chamamos de sociedade no qual os interesses privados assumem importância pública Não é surpreendente portanto que o pensamento político medieval preocupado exclusivamente com o domínio secular tenha permanecido ignorante do abismo entre a vida protegida no lar e a impiedosa exposição na pólis e consequentemente da virtude da coragem como uma das atitudes políticas mais elementares O que continua a ser surpreendente é que tenha sido Maquiavel o único teórico político pósclássico que em um extraordinário esforço para restaurar a ant iga dignidade da política percebeu o abismo e compreendeu até certo ponto a coragem necessária para transpôlo que o descreveu na elevação do Condottiere de uma baixa posição para um alto posto da privatividade para o principado isto é das circunstâncias comuns a todos os homens para a glória resplandecente das grandes realizações29 Deixar o lar originalmente para abraçar alguma empresa aventureira e gloriosa e mais tarde simplesmente para dedicar a vida aos assuntos da cidade exigia coragem pois era só no lar que os indivíduos s e preocupavam basicamente em defender a vida e a sobrevivência próprias Quem ingressasse no domínio político deveria em primeiro lugar estar disposto a arriscar a própria vida o excessivo amor à vida era um obstáculo à liberdade e sinal inconfundível de servilismo30 A coragem portanto tornouse a virtude política por excelência e só aqueles que a possuíam podiam ser admitidos em uma associação que era política em conteúdo e propósito e que por isso mesmo transcendia o mero estar junto imposto igualmente a todos escravos bárbaros e gregos pelas premências da vida 31 A vida boa como Aristóteles nomeava a vida do cidadão era portanto não apenas melhor mas livre de cuidados e mais nobre que a vida ordinária mas possuía qualidade inteiramente diferente Era boa exatamente porque tendo dominado as necessidades do mero viver tendo se libertado do trabalho e da obra e superado o anseio inato de sobrevivência comum a todas as criaturas vivas deixava de ser limitada ao processo biológico da vida Na raiz da consciência política grega encontramos uma clareza e uma precisão sem par na definição dessa diferença Nenhuma atividade que servisse à mera finalidade de garantir o sustento do indivíduo de somente alimentar o processo vital era autorizada a adentrar o domínio político e isso sob o grave risco de abandonaremse o comércio e a manufatura ao engenho de escravos e de estrangeiros de sorte que Atenas se transformou realmente na pensionópolis com um proletariado de consumidores que Max Weber tão vividamente descreveu32 O verdadeiro caráter dessa pólis é ainda bastante evidente nas filosofias políticas de Platão e Aristóteles mesmo que a linha divisória entre a família e a pólis seja ocasionalmente toldada especialmente em Platão que provavelmente seguindo Sócrates passou a colher os seus exemplos e ilustrações da pólis das experiências cotidianas na vida privada mas também em Aristóteles quando este seguindo Platão presumiu hipoteticamente que pelo menos a origem histórica da pólis deveria estar ligada às necessidades da vida e que somente o seu conteúdo ou finalidade inerente telos transcende a vida na boa vida Esses aspectos dos ensinamentos da escola socrática que logo se tornariam axiomáticos no nível da banalidade eram na época os mais novos e mais revolucionários resultavam não da experiência efetiva na vida política mas do desejo de libertarse do seu ônus um desejo que os filósofos em sua própria compreensão só podiam justificar mediante a demonstração de que até mesmo esse modo de vida o mais livre de todos estava ainda ligado à necessidade e sujeito a ela Não obstante o pano de fundo da experiência política efetiva pelo menos em Platão e Aristóteles continuava tão forte que jamais foi posta em dúvida a distinção entre as esferas do lar e da vida política Sem a vitória no lar sobre as necessidades da vida nem a vida nem a vida boa é possível mas a política jamais existe em função da vida No que tange aos membros da pólis a vida no lar existe em função da vida boa na pólis 6 O advento do social Oaparecimento da sociedade a ascensão da administração do lar de suas atividades seus problemas e dispositivos organizacionais do sombrio interior do lar para a luz da esfera pública não apenas turvou a antiga fronteira entre o privado e o político mas também alterou o significado dos dois termos e a sua importância para a vida do indivíduo e do cidadão ao ponto de tornálos quase irreconhecíveis Hoje não apenas não concordaríamos com os gregos que uma vida vivida na privatividade do que é próprio ao indivíduo idion fora do mundo do que é comum é idiota por definição mas tampouco concordaríamos com os romanos para os quais a privatividade oferecia um refúgio apenas temporário dos assuntos da res publica O que hoje chamamos de privado é uma esfera de intimidade cujos primórdios podemos remeter aos últimos períodos da civilização romana embora dificilmente a qualquer período da Antiguidade grega mas cujas peculiares multiplicidade e variedade eram certamente desconhecidas de qualquer período anterior à era moderna Não se trata de mera mudança de ênfase Na percepção dos antigos o caráter privativo da privatividade indicado pela própria pa lavra era sumamente importante significava literalmente um estado de encontrarse privado de alguma coisa até das mais altas e mais humanas capacidades do homem Quem quer que vivesse unicamente uma vida privada um homem que como o escravo não fosse admitido para adentrar o domínio público ou que como o bárbaro tivesse escolhido não estabelecer tal domínio não era inteiramente humano Hoje não pensamos mais primeiramente em privação quando empregamos a palavra privatividade e isso em parte se deve ao enorme enriquecimento da esfera privada por meio do moderno individualismo Não obstante parece ainda mais importante o fato de que a privatividade moderna é pelo menos tão nitidamente oposta ao domínio social desconhecido dos antigos que consideravam o seu conteúdo como assunto privado quanto do domínio político propriamente dito O fato histórico decisivo é que a privatividade moderna em sua função mais relevante a de abrigar o que é íntimo foi descoberta não como o oposto da esfera política mas da esfera social com a qual é portanto mais próxima e autenticamente relacionada O primeiro eloquente explorador da intimidade e até certo ponto o seu teórico foi JeanJacques Rousseau que de modo bastante característico é o único grande autor ainda citado frequentemente pelo primeiro nome Ele chegou à sua descoberta mediante uma rebelião não contra a opressão do Estado mas contra a insuportável perversão do coração humano pela sociedade contra a intrusão desta última em uma região recôndita do homem que até então não necessitara de proteção especial A intimidade do coração ao contrário do lar privado não tem lugar objetivo e tangível no mundo e a sociedade contra a qual ela protesta e se afirma não pode ser localizada com a mesma certeza que o espaço público Para Rousseau tanto o íntimo quanto o social eram antes formas subjetivas da existência humana e em seu caso era como se JeanJacques se rebelasse contra um homem chamado Rousseau O indivíduo moderno e seus intermináveis conflitos sua incapacidade tanto de sentirse à vontade na sociedade quanto de viver completamente fora dela seus estados de espírito em constante mutação e o radical subjetivismo de sua vida emoc ional nasceram dessa rebelião do coração Não resta dúvida quanto à autenticidade da descoberta de Rousseau por mais duvidosa que seja a autenticidade do indivíduo que foi Rousseau O surpreendente florescimento da poesia e da música a partir de meados do século XVIII até quase o último terço do século XIX acompanhado do surgimento do romance a única forma de arte inteiramente social coincidindo com um não menos impressionante declínio de todas as artes mais públicas especialmente a arquitetura constitui suficiente testemunho de uma estreita relação entre o social e o íntimo A reação rebelde contra a sociedade no decorrer da qual Rousseau e os românticos descobriram a intimidade foi dirigida em primeiro lugar contra as exigências niveladoras do social contra o que hoje chamaríamos de conformismo inerente a toda sociedade É importante lembrar que essa rebelião ocorreu antes que o princípio de igualdade o qual desde Tocqueville temos culpado pelo conformismo tivesse tido tempo de afirmarse tanto no domínio social quanto no político Nesse particular pouco importa se uma nação se compõe de iguais ou desiguais pois a sociedade exige sempre que os seus membros ajam como se fossem membros de uma enorme família que tem apenas uma opinião e um único interesse Antes da moderna desintegração da família esse interesse comum e essa opinião única eram representados pelo chefe do lar que comandava segundo essa opinião e esse interesse e evitava uma possível desunião entre os membros da família33 A notável coincidência da ascensão da sociedade com o declínio da família indica claramente que o que ocorreu na verdade foi a absorção da unidade familiar por grupos sociais correspondentes A igualdade dos membros desses grupos longe de ser uma igualdade entre pares lembra antes de tudo a igualdade dos membros do lar ante o poder despótico do chefe do lar exceto pelo fato de que na sociedade onde a força natural de um único interesse comum e de uma opinião unânime é tremendamente intensifica da pelo puro número o efetivo poder exercido por um único homem representando o interesse comum e a opinião correta podia mais cedo ou mais tarde ser dispensado O fenômeno do conformismo é característico do último estágio desse moderno desdobramento É verdade que o governo de um só homem o governo monárquico que os antigos diziam ser a forma organizacional da família é transformado na sociedade como hoje a conhecemos quando o topo da ordem social já não é constituído pela casa real de um governante absoluto em uma espécie de governo de ninguém Mas esse ninguém o suposto interesse único da sociedade como um todo em questões econômicas assim como a suposta opinião única da sociedade educada dos salões não deixa de governar por ter perdido sua personalidade Como verificamos pela forma mais social de governo isto é pela burocracia o último estágio do governo no Estadonação tal como o governo de um só homem constituía o primeiro estágio do despotismo benevolente e do absolutismo o governo de ninguém não é necessariamente um nãogoverno pode de fato em certas circunstâncias vir a ser uma das suas mais cruéis e tirânicas versões Um fator decisivo é que a sociedade em todos os seus níveis exclui a possibilidade de ação que outrora era excluída do lar doméstico Ao invés de ação a sociedade espera de cada um dos seus membros certo tipo de comportamento impondo inúmeras e variadas regras todas elas tendentes a normalizar os seus membros a fazêlos comportaremse a excluir a ação espontânea ou a façanha extraordinária Com Rousseau encontramos essas exigências nos salões da alta sociedade cujas convenções sempre equacionam o indivíduo com a sua posição dentro da estrutura social O que importa é esse equacionamento com a posição social e é irrelevante se se trata da efetiva posição na sociedade semifeudal do século XVIII do título na sociedade de classes do século XIX ou da mera função na atual sociedade de massas O surgimento da sociedade de massas pelo contrário indica apenas que os vários grupos sociais foram absorvidos por uma sociedade única tal como as unidades familiares antes deles com o surgimento da sociedade de massas o domínio do social atingiu finalmente após séculos de desenvolvimento o ponto em que abrange e controla igualmente e com igual força todos os membros de uma determinada comunidade Mas a sociedade iguala em quaisquer circunstâncias e a vitória da igualdade no mundo moderno é apenas o reconhecimento político e jurídico do fato de que a sociedade conquistou o domínio público e que a distinção e a diferença tornaramse assuntos privados do indivíduo Essa igualdade moderna baseada no conformismo inerente à sociedade e que só é possível porque o comportamento substituiu a ação como principal forma de relação humana difere em todos os seus aspectos da igualdade dos tempos antigos e especialmente da igualdade na cidadeEstado grega Pertencer aos poucos iguais homoioi significava ser admitido na vida entre os pares mas o próprio domínio público a pólis era permeado por um espírito acirradamente agonístico cada homem tinha constantemente de se distinguir de todos os outros de demonstrar por meio de feitos ou façanhas singulares que era o melhor de todos aien aristeuein34 Em outras palavras o domínio público era reservado à individualidade era o único lugar em que os homens podiam mostrar quem realmente eram e o quanto eram insubstituíveis Por conta dessa oportunidade e por amor a um corpo político que a propiciava a todos cada um deles estava mais ou menos disposto a compartilhar do ônus da jurisdição da defesa e da administração dos assuntos públicos É o mesmo conformismo a suposição de que os homens se comportam ao invés de agir em relação aos demais que está na base da moderna ciência da economia cujo nascimento coincidiu com o surgimento da sociedade e que juntamente com seu principal instrumento técnico a estatística se tornou a ciência social por excelência A economia que até a era moderna constituía uma parte não muito importante da ética e da política e que se baseia na premissa de que os homens agem em relação às suas atividades econômicas como agem em relação a tudo mais35 só veio adquirir caráter científico quando os homens tornaramse seres sociais e passaram a seguir unanimemente certos padrões de comportamento de sorte que aqueles que não seguissem as regras podiam ser considerados associais ou anormais As leis da estatística são válidas somente quando se lida com grandes números e longos períodos de tempo e os atos ou eventos só podem aparecer estatisticamente como desvios ou flutuações A justificativa da estatística é a de que os feitos e eventos são ocorrências raras na vida cotidiana e na história Contudo o pleno significado das relações cotidianas revelase não na vida do diaadia mas em feitos raros tal como a importância de um período histórico é percebida somente nos poucos eventos que o iluminam Aplicar à política ou à história a lei dos grandes números e dos longos períodos equivale a obliterar voluntariamente o próprio objeto dessas duas e é uma empresa inútil buscar o significado na política ou a importância na história quando tudo o que não é comportamento cotidiano ou tendência automática é descartado como irrelevante Não obstante como as leis da estatística são perfeitamente válidas quando lidamos com grandes números é óbvio que cada aumento populacional significa um aumento da validade e uma nítida diminuição dos desvios Politicamente isso significa que quanto maior é a população de qualquer corpo político maior é a probabilidade de que o social e não o político constitua o domínio público Os gregos cuja cidadeEstado foi o corpo político mais individualista e menos conformista que conhecemos tinham plena consciência do fato de que a pólis com a sua ênfase na ação e no discurso só poderia sobreviver se o número de cidadãos permanecesse restrito Grandes números de pessoas amontoadas desenvolvem uma inclinação quase irresistível na direção do despotismo seja o despotismo de uma pessoa ou do governo da maioria e embora a estatística isto é o tratamento matemático da realidade fosse desconhecida antes da era moderna os fenômenos sociais que possibilitaram esse tratamento grandes números justificando o conformismo o behaviorismo e o automatismo nos assuntos humanos eram precisamente o que no entendimento dos gregos distinguia da sua a civilização persa A triste verdade acerca do behaviorismo e da validade de suas leis é que quanto mais pessoas existem maior é a possibilidade de que se comportem e menor a possibilidade de que tolerem o nãocomportamento Estatisticamente isso resulta em um declínio da flutuação Na realidade os fe itos terão cada vez menos possibilidades de oporse à maré do comportamento e os eventos perderão cada vez mais a sua importância isto é a sua capacidade de iluminar o tempo histórico A uniformidade estatística não é de modo algum um ideal científico inócuo é sim o ideal político não mais secreto de uma sociedade que inteiramente submersa na rotina da vida cotidiana aceita pacificamente a concepção científica inerente à sua própria existência O comportamento uniforme que se presta à determinação estatística e portanto à predição cientificamente correta dificilmente pode ser explicado pela hipótese liberal de uma natural harmonia de interesses que é a base da economia clássica Não Karl Marx mas os próprios economistas liberais tiveram de introduzir a ficção comunista isto é supor a existência de um único interesse da sociedade como um todo que com uma mão invisível guia o comportamento dos homens e produz a harmonia de seus interesses conflitantes36 A diferença entre Marx e seus precursores foi apenas que ele encarou a realidade do conflito como este se apresentava na sociedade de seu tempo tão seriamente quanto a hipotética ficção da harmonia Esteve certo ao concluir que a socialização do homem produziria automaticamente uma harmonia de todos os interesses e apenas teve mais coragem que os seus mestres liberais quando propôs estabelecer na realidade a ficção comunista subjacente a todas as teorias econômicas O que Marx não compreendeu e em seu tempo seria impossível compreender é que os germes da sociedade comunista estavam presentes na realidade de um lar nacional e o que atravancava o completo desenvolvimento dela não era qualquer interesse de classe como tal mas somente a já obsoleta estrutura monárquica do Estadonação Obviamente o que impedia a sociedade de funcionar suavemente eram apenas certos resquícios tradicionais que interferiam e ainda influenciavam no comportamento de classes atrasadas Do ponto de vista da sociedade estes não passavam de simples fatores perturbadores no caminho do pleno desenvolvimento das forças sociais já não correspondiam à realidade e eram portanto em certo sentido muito mais fictícios que a ficção científica de um interesse único Uma vitória completa da sociedade produzirá sempre algum tipo de ficção comunista cuja principal característica política é a de que realmente será governada por uma mão invisível isto é por ninguém O que tradicionalmente chamamos de Estado e de governo cede lugar aqui à mera administração um estado de coisas que Marx previu corretamente como o definhamento do Estado embora estivesse errado ao presumir que somente uma revolução pudesse provocálo e mais errado ainda quando acreditou que essa completa vitória da sociedade significaria o eventual surgimento do reino da liberdade37 A fim de medirmos a extensão da vitória da sociedade na era moderna sua inicial substituição da ação pelo comportamento e sua posterior substituição do governo pessoal pela burocracia que é o governo de ninguém pode convir também lembrar que sua ciência inicial a economia que altera padrões de comportamento somente nesse campo bastante limitado da atividade humana foi finalmente sucedida pela pretensão oniabrangente das ciências sociais que como ciências do comportamento visam a reduzir o homem como um todo em todas as suas atividades ao nível de um animal comportado e condicionado Se a economia é a ciência da sociedade em suas primeiras fases quando suas regras de comportamento podiam ser impostas somente a determinados setores da população e a uma parcela de suas atividades o surgimento das ciências do comportamento indica claramente o estágio final desse desdobramento quando a sociedade de massas já devorou todas as camadas da nação e o comportamento social converteuse em modelo de todas as áreas da vida Desde o advento da sociedade desde a admissão das atividades domésticas e da administração do lar no domínio público uma das principais características do novo domínio tem sido uma irresistível tendência a crescer a devorar os domínios mais antigos do político e do privado bem como a esfera da intimidade instituída mais recentemente Esse constante crescimento cuja aceleração não menos constante podemos observar no decorrer de pelo menos três séculos deriva sua força do fato de que por meio da sociedade o próprio processo da vida foi de uma forma ou de outra canalizado para o domínio público O domínio privado do lar era a esfera na qual as necessidades da vida da sobrevivência individual e da continuidade da espécie eram atendidas e garantidas Uma das características da privatividade antes da descoberta do íntimo era que o homem existia nessa esfera não como um ser verdadeiramente humano mas somente como exemplar da espécie animal humana Residia aí precisamente a razão última do vasto desprezo nutrido por ela na Antiguidade O s urgimento da sociedade mudou a avaliação de toda essa esfera mas não chegou a transformarlhe a natureza O caráter monolítico de todo tipo de sociedade o seu conformismo que só admite um único interesse e uma única opinião tem suas raízes basicamente na unicidade da espécie humana E como essa unicidade da espécie humana não é fantasia e nem mesmo simples hipótese científica como o é a ficção comunista da economia clássica a sociedade de massas onde o homem como animal social reina supremo e onde aparentemente a sobrevivência da espécie poderia ser garantida em escala mundial pode ao mesmo tempo ameaçar de extinção a humanidade A indicação talvez mais clara de que a sociedade constitui a organização pública do processo vital encontrase no fato de que em um tempo relativamente curto o novo domínio social transformou todas as comunidades modernas em sociedades de trabalhadores e empregados em outras palavras essas comunidades concentraram se imediatamente em torno da única atividade necessária para manter a vida Naturalmente para que se tenha uma sociedade de trabalhadores não é necessário que cada um dos seus membros seja realmente um trabalhador laborer ou um operário worker e nem mesmo a emancipação da classe operária working class e a enorme força potencial que o governo da maioria lhe atribui são decisivas nesse particular basta que todos os seus membros considerem tudo o que fazem primordialmente como modo de sustentar suas próprias vidas e as de suas famílias A sociedade é a forma na qual o fato da dependência mútua em prol da vida e de nada mais adquire importância pública e na qual se permite que as atividades relacionadas com a mera sobrevivência apareçam em público Se uma atividade é realizada em privado ou em público não é de modo algum algo indiferente Obviamente o caráter do domínio público tem de mudar de acordo com as atividades que nele são admitidas mas em grande medida a natureza da própria atividade também muda A atividade de trabalhar embora relacionada em qualquer circunstância com o processo vital em seu sentido mais elementar o biológico permaneceu estacionária durante milhares de anos aprisionada no eterno retorno do processo vital ao qual se encontrava ligada A promoção do trabalho à estatura de coisa pública longe de eliminar o seu caráter de processo o que seria de se esperar se lembrarmos que os corpos políticos sempre foram projetados com vistas à permanência e suas leis sempre foram compreendidas como limitações impostas ao movimento liberou ao contrário esse processo de sua recorrência circular e monótona e transformouo em progressivo desenvolvimento cujos resultados alteraram inteiramente em poucos séculos todo o mundo habitado Quando a atividade do trabalho foi liberada das restrições que lhe eram impostas por seu banimento no domínio privado e essa emancipação do trabalho não foi uma consequência da emancipação da classe operária mas a precedeu foi como se o elemento de crescimento inerente a toda vida orgânica houvesse completamente superado e prevalecido sobre os processos de perecimento por meio dos quais a vida orgânica é controlada e equilibrada no lar da natureza O domínio social no qual o processo da vida estabeleceu o seu próprio âmbito público desencadeou um crescimento artificial por assim dizer do natural e é contra esse crescimento não meramente contra a sociedade mas contra um domínio social em constante crescimento que o privado e o íntimo de um lado e de outro o político no sentido mais restrito da palavra mostramse incapazes de se defender O que chamamos de artificial crescimento do natural é visto geralmente como o aumento constantemente acelerado da produtividade do trabalho O fator isolado mais importante nesse aumento contínuo foi desde o início a organização da atividade do trabalho visível na chamada divisão do trabalho que precedeu a revolução industrial e na qual se baseia até mesmo a mecanização dos processos de trabalho o segundo fator mais importante na produtividade do trabalho Uma vez que o princípio organizacional deriva claramente do domínio público e não do privado a divisão do trabalho é precisamente o que sucede à atividade do trabalho nas condições do domínio público e que jamais poderia ocorrer na privatividade do lar38 Aparentemente em nenhuma outra esfera da vida atingimos tamanha excelência quanto na revolucionária transformação da atividade do trabalho ao ponto em que o significado verbal do próprio termo que sempre esteve ligado a fadigas e penas quase insuportáveis ao esforço e à dor e consequentemente a uma deformação do corpo humano de sorte que poderia ter sua origem somente na extrema miséria ou pobreza começou a perder o seu significado para nós39 Embora a extrema necessidade torne o trabalho indispensável à manutenção da vida a última coisa a esperar dele seria a excelência A excelência aretē como a teriam chamado os gregos virtus como teriam dito os romanos sempre foi reservada ao domínio público em que uma pessoa podia sobressairse e distinguirse das demais Toda atividade realizada em público pode atingir uma excelência jamais igualada na privatividade para a excelência por definição é sempre requerida a presença de outros e essa presença exige a formalização do público constituído pelos pares do indivíduo não pode ser a presença fortuita e familiar de seus iguais ou inferiores40 Nem mesmo o domínio social embora tenha tornado anônima a excelência enfatizado o progresso da humanidade ao invés das realizações dos homens e alterado o conteúdo do domínio público ao ponto de desfigurálo pôde aniquilar completamente a conexão entre a realização pública e a excelência Embora nos tenhamos tornado excelentes na atividade do trabalho que realizamos em público a nossa capacidade de ação e de discurso perdeu muito de seu antigo caráter desde que a ascendência do domínio social baniu estes últimos para a esfera do íntimo e do privado Essa curiosa discrepância não passou despercebida do público que geralmente a atribui a uma suposta defasagem entre nossas capacidades técnicas e nosso desenvolvimento humanístico em geral ou entre as ciências físicas que alteram e controlam a natureza e as ciências sociais que ainda não sabem como alterar e controlar a sociedade Não considerando outras falácias do argumento tantas vezes apontadas que seria ocioso repetilas essa crítica referese apenas a uma possível mudança na psicologia dos seres humanos os seus chamados padrões de comportamento não a uma mudança do mundo em que eles habitam E essa interpretação psicológica para a qual a ausência ou a presença de um domínio público é tão irrelevante quanto qualquer realidade mundana tangível parece bastante questionável em vista do fato de que nenhuma atividade pode tornarse excelente se o mundo não proporciona um espaço adequado para o seu exercício Nem a educação nem a engenhosidade nem o talento podem substituir os elementos constitutivos do domínio público que fazem dele o local adequado para a excelência humana 7 O domínio público o comum Otermo público denota dois fenômenos intimamente correlatos mas não completamente idênticos Significa em primeiro lugar que tudo o que aparece em público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível Para nós a aparência aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos constitui a realidade Em comparação com a realidade que decorre do ser visto e ouvido mesmo as maiores forças da vida íntima as paixões do coração os pensamentos do espírito os deleites dos sentidos levam uma espécie de existência incerta e obscura a não ser que e até que sejam transformadas desprivatizadas e desindividualizadas por assim dizer de modo que assumam um aspecto adequado à aparição pública41 A mais comum dessas transformações ocorre na narração de histórias e de modo geral na transposição artística de experiências individuais Mas não necessitamos da forma do artista para testemunhar essa transfiguração Toda vez que falamos de coisas que só podem ser experimentadas na privatividade ou na intimidade trazemolas para uma esfera na qual assumirão uma espécie de realidade que a despeito de sua intensidade elas jamais poderiam ter tido antes A presença de outros que vêem o que vemos e ouvem o que ouvimos garantenos a realidade do mundo e de nós mesmos e embora a intimidade de uma vida privada plenamente desenvolvida tal como jamais se conheceu antes do surgimento da era moderna e do concomitante declínio do domínio público sempre intensificará e enriquecerá grandemente toda a escala de emoções subjetivas e sentimentos privados essa intensificação sempre ocorre à custa da garantia da realidade do mundo e dos homens De fato o sentimento mais intenso que conhecemos isto é a experiência de grande dor física intenso ao ponto de eclipsar todas as outras experiências é ao mesmo tempo o mais privado e menos comunicável de todos Não é apenas talvez a única experiência à qual somos incapazes de conferir um aspecto adequado à aparição pública na verdade ela nos priva de nosso senso de realidade a ponto de podermos esquecer esta última mais rápida e facilmente que qualquer outra coisa Não parece haver uma ponte entre a subjetividade mais radical na qual eu já não sou reconhecível e o mundo exterior da vida42 Em outras palavras a dor que é realmente uma experiência limítrofe entre a vida no sentido de estar entre os homens inter homines esse e a morte são tão subjetivas e alheias ao mundo das coisas e dos homens que não podem assumir aparência alguma43 Uma vez que nosso senso de realidade depende totalmente da aparência e portanto da existência de um domínio público no qual as coisas possam emergir da treva de uma existência resguardada até a meialuz que ilumina nossas vidas privada e íntima deriva em última análise da luz muito mais intensa do domínio público No entanto há muitas coisas que não podem suportar a luz implacável e radiante da constante presença de outros na cena pública nesta só pode ser tolerado o que é considerado relevante digno de ser visto ou ouvido de sorte que o irrelevante se torna automaticamente um assunto privado É claro que isso não significa que as questões privadas sejam geralmente irrelevantes pelo contrário veremos que existem assuntos muito relevantes que só podem sobreviver no domínio privado O amor por exemplo em contraposição à amizade morre ou antes se extingue assim que é trazido a público Nunca busques dizer teu amor Amor que nunca se pode contar Dada a sua inerente nãomundanidade worldlessness o amor só pode ser falsificado e pervertido quando utilizado para fins políticos como a transformação ou a salvação do mundo O que o domínio público considera irrelevante pode ter um encanto tão extraordinário e contagiante que todo um povo pode adotálo como modo de vida sem com isso alterarlhe o caráter essencialmente privado O moderno encantamento com pequenas coisas embora pregado pela poesia do início do século XX em quase todas as línguas europeias encontrou sua apresentação clássica no petit bonheur do povo francês Desde o declínio de seu outrora vasto e glorioso domínio público os franceses tornaramse mestres na arte de serem felizes entre pequenas coisas no espaço de suas quatro paredes entre a cômoda e a cama a mesa e a cadeira entre o cachorro o gato e o vaso de flores estendendo a essas coisas um cuidado e uma ternura que em um mundo onde a industrialização rápida extermina constantemente as coisas de ontem para produzir os objetos de hoje podem até parecer o último recanto puramente humano do mundo Esse alargamento do privado o encantamento por assim dizer de todo um povo não o torna público não constitui um domínio públ ico mas pelo contrário significa apenas que o domínio público foi quase completamente minguado de modo que por toda parte a grandeza cedeu lugar ao encanto pois embora o domínio público possa ser vasto não pode ser encantador precisamente porque é incapaz de abrigar o irrelevante Em segundo lugar o termo público significa o próprio mundo na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que privadamente possuímos nele Esse mundo contudo não é idêntico à Terra ou à natureza enqu anto espaço limitado para o movimento dos homens e condição geral da vida orgânica Antes tem a ver com o artefato humano com o que é fabricado pelas mãos humanas assim como com os negócios realizados entre os que habitam o mundo feito pelo homem Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que o possuem em comum como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor pois como todo espaçoentre inbetween o mundo ao mesmo tempo separa e relaciona os homens entre si O domínio público enquanto mundo comum reúnenos na companhia uns dos outros e contudo evita que caiamos uns sobre os outros por assim dizer O que torna a sociedade de massas tão difícil de ser suportada não é o número de pessoas envolvido ou ao menos não fundamentalmente mas o fato de que o mundo entre elas perdeu seu poder de congregálas relacionálas e separálas A estranheza de tal situação assemelhase a uma sessão espírita na qual determinado número de pessoas reunidas em torno de uma mesa vissem subitamente por algum truque mágico desaparecer a mesa entre elas de sorte que duas pessoas sentadas em frente uma à outra já não estariam separadas mas tampouco teriam qualquer relação entre si por meio de algo tangível Historicamente conhecemos somente um princípio concebido para manter unida uma comunidade de pessoas destituídas de interesse em um mundo comum e que já não se sentiam relacionadas e separadas por ele Encontrar um vínculo entre as pessoas suficientemente forte para substituir o mundo foi a principal tarefa política da primeira filosofia cristã e foi Agostinho quem propôs edificar sobre a caridade não apenas a fraternidade cristã mas todas as relações humanas Essa caridade porém muito embora a sua desmundanidade worldlessness corresponda claramente à experiência humana geral do amor é ao mesmo tempo nitidamente diferente dele por ser algo que como o mundo está entre os homens Mesmo os ladrões têm entre si inter se aquilo que chamam de caridade44 Esse surpreendente exemplo do princípio político cristão é de fato muito bem escolhido porque o vínculo da caridade entre as pessoas embora incapaz de criar por si próprio um domínio público é bem adequado ao princípio fundamental cristão da não mundanidade e admiravelmente apropriado para guiar por este mundo um grupo de pessoas essencialmente nãomundanas um grupo de santos ou um grupo de crimi nosos bastando apenas que se conceba que o mundo está condenado e que toda atividade será nele realizada com a ressalva quamdiu mundus durat enquanto dura o mundo45 O caráter apolítico nãopúblico da comunidade cristã foi bem cedo defi nido na exigência de que deveria formar um corpus um corpo cujos membros teriam de relacionarse entre si como irmãos de uma mesma família46 A estrutura da vida comum foi modelada pelas relações entre os membros de uma família porque estas eram sabidamente não políticas e mesmo antipolíticas Jamais existiu um domínio público entre os membros de uma família e era portanto improvável que viesse a surgir da vida comunitária cristã se esta fosse governada pelo princípio da caridade e por nada mais Ainda assim como sabemos por meio da história e das regras das ordens monásticas as únicas comunidades nas quais se chegou a experimentar o princípio da caridade como um expedie nte político o perigo de que as atividades realizadas sob a necessidade da vida presente necessitas vitae praesentis47 levassem por si mesmas porque exercidas na presença de outros ao estabelecimento de um contramundo um domínio público no interior daquelas mesmas ordens foi suficiente para demandar regras e regulamentos adicionais dos quais o mais relevante em nosso contexto foi a proibição da excelência e do subsequente orgulho48 A não mundanidade como um fenômeno político só é possível com a premissa de que o mundo não durará mas com tal premissa é quase inevitável que a não mundanidade venha de uma forma ou de outra a dominar a cena política Foi o que sucedeu após a queda do Império Romano e parece estar ocorrendo novamente em nosso tempo embora por motivos bem diferentes e de forma muito diversa e talvez bem mais desalentadora A abstenção cristã das coisas mundanas não é de modo algum a única conclusão a se tirar da convicção de que o artifício humano produto de mãos mortais é tão mortal quanto os seus artífices Isso pode também pelo contrário intensificar o gozo e o consumo das coisas do mundo e de todas as formas de intercâmbio nas quais o mundo não é fundamentalmente concebido como o koinon aquilo que é comum a todos Só a existência de um domínio público e a subsequente transformação do mundo em uma comunidade de coisas que reúne os homens e estabelece uma relação entre eles dependem inteiramente da permanência Se o mundo deve conter um espaço público não po de ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que estão vivos mas tem de transcender a duração da vida de homens mortais Sem essa transcendência em uma potencial imortalidade terrena nenhuma política no sentido restrito do termo nenhum mundo comum nem domínio público são possívei s Pois diferentemente do bem comum tal como o cristianismo o concebia a salvação da própria alma como interesse comum a todos o mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos Transcende a duração de nossa vida tanto no passado quanto no futuro preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência nele É isso o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco mas também com aqueles que aqui estiveram antes e com aqueles que virão depois de nós Mas esse mundo comum só pode sobreviver ao vir e ir das gerações na medida em que aparece em público É a publicidade do domínio público que pode absorver e fazer brilhar por séculos tudo o que os homens venham a querer preservar da ruína natural do tempo Durante muitas eras antes de nós mas já não agora os homens ingressavam no domínio público por desejarem que algo seu ou algo que tinham em comum com outros fosse mais permanente que as suas vidas terrenas Assim a desgraça da escravidão consistia não só em ser privado de liberdade e de visibilidade mas também no medo dessas mesmas pessoas obscuras de que por serem obscuros morressem sem deixar vestígio algum de terem existido49 Talvez a mais clara evidência do desaparecimento do domínio público na era moderna seja a quase completa perda de uma autêntica preocupação com a imortalidade perda esta um tanto eclipsada pela perda simultânea da preocupação metafísica com a eternidade Esta última por ser a preocupação dos filósofos e da vita contemplativa deve permanecer fora de nossas considerações atuais mas a primeira é atestada pela atual identificação da busca da imortalidade com o vício privado da vaidade De fato nas condições modernas é tão improvável que alguém aspire sinceramente à imortalidade terrena que possivelmente temos razão de ver nela apenas a vaidade O famoso trecho de Aristóteles ao considerar os assuntos humanos não se deve considerar o homem como ele é nem considerar o que é mortal nas coisas mortais mas pensar neles somente na medida em que têm a possibilidade de imortalizar aparece muito adequadamente em uma de suas obras políticas50 Pois a pólis era para os gregos como a res publica para os romanos antes de tudo sua garantia contra a futilidade da vida individual o espaço protegido contra essa futilidade e reservado à relativa permanência dos mortais se não à sua imortalidade O que a era moderna pensa do domínio público após a espetacular ascensão da sociedade à dignidade pública foi expresso por Adam Smith quando com desarmante franqueza ele mencionou essa desafortunada raça de homens comumente chamados homens de letras para os quais a admiração pública é sempre uma parte considerável da recompensa na profissão médica talvez parte ainda maior na profissão jurídica e quase toda a recompensa na poesia e na filosofia51 Nessas palavras fica evidente que a admiração pública e a recompensa monetária têm a mesma natureza e podem substituir uma à outra A admiração pública é também algo a ser usado e consumido e o status como diríamos hoje satisfaz uma necessidade como o alimento satisfaz outra a admiração pública é consumida pela vaidade individual da mesma forma como o alimento é consumido pela fome Obviamente desse ponto de vista a prova da realidade não está na presença pública de outros mas antes na maior ou menor premência das necessidades cuja existência ou inexistência ninguém pode jamais atestar senão aquele que as sente E tal como a necessidade de alimento tem sua base demonstrável de realidade no processo vital é também óbvio que a angústia da fome inteiramente subjetiva é mais real que a vanglória como Hobbes chamava a necessidade de admiração pública Contudo ainda que essas necessidades por algum milagre da simpatia fossem compartilhadas por outros a sua própria futilidade as impediria sempre de estabelecer algo tão sólido e durável como um mundo comum Assim o que importa não é que haja falta de admiração pública pela poesia e pela filosofia no mundo moderno mas sim que essa admiração não constitui um espaço no qual as coisas são salvas da destruição pelo tempo Ao contrário a futilidade da admiração pública consumida diariamente em doses cada vez maiores é tal que a recompensa monetária uma das coisas mais fúteis que existem pode tornarse mais objetiva e mais real Em contraste com essa objetividade cuja base única é o dinheiro como denominador comum para a satisfação de todas as necessidades a realidade do domínio público depende da presença simultânea de inúmeros aspectos e perspectivas nos quais o mundo comum se apresenta e para os quais nenhuma medida ou denominador comum pode jamais ser concebido Pois embora o mundo comum seja o local de reunião de todos os que estão presentes o cupam nele diferentes posições e assim como se dá com dois objetos o lugar de um não pode coincidir com o de outro A importância de ser visto e ouvido por outros provém do fato de que todos veem e ouvem de ângulos diferentes É esse o significado da vida pública em comparação com a qual até a mais fecunda e satisfatória vida familiar pode oferecer somente o prolongamento ou multiplicação de cada indivíduo com os seus respectivos aspectos e perspectivas A subjetividade da privatividade pode prolongarse e multiplicarse na família e até tornarse tão forte que o seu peso se faça sentir no domínio público mas esse mundo familiar jamais pode substituir a realidade res ultante da soma total de aspectos apresentados por um objeto a uma multidão de espectadores Somente quando as coisas podem ser vistas por muitas pessoas em uma variedade de aspectos sem mudar de identidade de sorte que os que estão à sua volta sabem que veem identidade na mais completa diversidade pode a re alidade do mundo aparecer real e fidedignamente Nas condições de um mundo comum a realidade não é garantida primordialmente pela natureza comum de todos os homens que o constituem mas antes pelo fato de que a despeito de diferenças de posição e da resultante variedade de perspectivas todos estão sempre interessados no mesmo objeto Quando já não se pode discernir a mesma identidade do objeto nenhuma natureza humana comum e muito menos o conformismo artificial de uma sociedade de massas pode evitar a destruição do mundo comum que é geralmente precedida pela destruição dos muitos aspectos nos quais ele se apresenta à pluralidade humana Isso pode ocorrer nas condições do isolamento radical no qual ninguém mais pode concordar com ninguém como geralmente ocorre nas tiranias mas pode também ocorrer nas condições da sociedade de massas ou de histeria em massa em que vemos todos passarem subitamente a se comportar como se fossem membros de uma única família cada um a multiplicar e prolongar a perspectiva do vizinho Em ambos os casos os homens tornamse inteiramente privados isto é privados de ver e ouvir os out ros e privados de ser vistos e ouvidos por eles São todos prisioneiros da subjetividade de sua própria existência singular que continua a ser singular ainda que a mesma experiência seja multiplicada inúmeras vezes O mundo comum acaba quando é visto somente sob um aspecto e só se lhe permite apresentarse em uma única perspectiva 8 O domínio privado a propriedade Écom relação a essa múltipla significação do domínio público que o termo privado tem significado em sua acepção original de privativo Viver uma vida inteiramente privada significa acima de tudo estar privado de coisas essenciais a uma vida verdadeiramente humana estar privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros privado de uma relação objetiva com eles decorrente do fato de ligarse e separarse deles mediante um mundo comum de coisas e privado da possibilidade de realizar algo mais permanente que a própria vida A privação da privatividade reside na ausência de outros para estes o homem privado não aparece e portanto é como se não existisse O que quer que ele faça permanece sem importância ou consequência para os outros e o que tem importância para ele é desprovido de interesse para os outros Nas circunstâncias modernas essa privação de relações objetivas com os outros e de uma realidade garantida por intermédio destes últimos tornouse o fenômeno de massa do desamparo no qual assumiu sua forma mais extrema e mais antihumana52 O motivo pelo qual esse fenômeno é tão extremo é que a sociedade de massas não apenas destrói o domínio privado tanto quanto o domínio público priva ainda os homens não só do seu lugar no mundo mas também do seu lar privado no qual outrora eles se sentiam resguardados contra o mundo e onde de qualquer forma até os que eram excluídos do mundo podiam encontrarlhe o substituto no calor do lar e na limitada realidade da vida em família Devemos o pleno desenvolvimento da vida no lar e na família como espaço interior e privado ao extraordinário senso político do povo romano que ao contrário dos gregos jamais sacrificou o privado ao público mas ao contrário compreendeu que esses dois domínios somente podiam subsistir sob a forma da coexistência E embora a condição dos escravos fosse provavelmente um pouco melhor em Roma que em Atenas é bastante característico que um escritor romano tenha acreditado que para os escravos a casa do senhor era o mesmo que a res publica para os cidadãos 53 No entanto por mais suportável que possa ter sido a vida privada em família é óbvio que ela nunca podia ser mais que um substituto ainda que o domínio privado tanto em Roma como em Atenas oferecesse um amplo espaço para atividades que hoje classificamos como superiores à atividade política tais como o acúmulo de riqueza na Grécia ou a devoção às artes e às ciências em Roma Essa atitude liberal que podia em certas circunstâncias originar escravos muito prósperos e altamente educados significou apenas que o fato de ser próspero não tinha qualquer realidade na pólis grega e que ser filósofo não tinha muita importância na república romana54 Como seria de esperar o caráter privativo da privatividade a consciência de se estar privado de algo essencial em uma vida passada exclusivamente na esfera restrita do lar perdeu sua força a ponto de quase se extinguir com o advento do cristianismo A moralidade cristã em contraposição a seus preceitos religiosos fundam entais sempre insistiu em que cada um deve cuidar de seus afazeres e que a responsabilidade política constitui antes de tudo um ônus aceito exclusivamente em prol do bemestar e da salvação daqueles que ela liberta da preocupação com os assuntos públicos55 É surpreendente que essa atitude tenha sobrevivido na secular era moderna a tal ponto que Karl Marx que nesse particular como em outros apenas resumiu conceitualizou e transformou em um programa as premissas subjacentes a 200 anos de modernidade pôde enfim predizer e alimentar esperanças quanto à decadência de todo o domínio público A diferença entre os pontos de vista cristão e socialista a esse respeito o primeiro vendo o governo como um mal necessário em virtude da natureza pecadora do homem e o outro esperando poder abolilo al gum dia não é uma diferença de avaliação da esfera pública mas da natureza humana O que é impossível perceber de um ponto de vista ou de outro é que a decadência do Estado de Marx havia sido precedida pela decadência do domínio público ou antes por sua transformação na muito restrita esfera do governo Nos dias de Marx esse governo começara a decair ainda mais isto é a ser transformado em uma administração doméstica de dimensões nacionais até que em nossos dias começa a desaparecer completamente sob a forma da esfera ainda mais restrita e impessoal da administração Parece ser da natureza da relação entre os domínios público e privado que o estágio final do desaparecimento do domínio público seja acompanhado pela ameaça de liquidação também do domínio privado Nem é por acaso que toda a discussão veio a transformarse em um argumento quanto à desejabilidade ou indesejabilidade da posse privada da propriedade Pois a palavra privada em conexão com a propriedade mesmo em termos do pensamento político antigo perde imediatamente o seu caráter privativo e grande parte de sua oposição ao domínio público em geral aparentemente a propriedade possui certas qualificações que embora situadas no domínio privado sempre foram tidas como sendo da máxima importância para o corpo político A profunda conexão entre o privado e o público manifesta em seu nível mais elementar na questão da propriedade privada corre hoje o risco de ser mal interpretada em razão do moderno equacionamento entre a propriedade e a riqueza de um lado e a inexistência de propriedade e a pobreza de outro Essa má interpretação é ainda mais importuna visto que ambas a propriedade e a riqueza são historicamente de maior relevância para o domínio público que qualquer outra questão ou preocupação privada e desempenharam pelo menos formalmente mais ou menos o mesmo papel como principal condição para a admissão ao domínio público e à plena cidadania É portanto fácil esquecer que a riqueza e a propriedade longe de constituírem a mesma coisa têm caráter inteiramente diverso O atual surgimento em toda parte de sociedades real ou potencialmente muito ricas nas quais ao mesmo tempo basicamente não existe propriedade porque a riqueza de qualquer dos cidadãos individualmente consiste em sua participação na renda anual da sociedade como um todo mostra claramente quão pouco essas duas coisas estão conectadas Antes da era moderna que começou com a expropriação dos pobres e em seguida passou a emancipar as novas classes destituídas de propriedades todas as civilizações tiveram por base o caráter sagrado da propriedade privada A riqueza ao contrário fosse possuída privadamente ou publicamente distribuída nunca antes fora sagrada Originalmente a propriedade significava nada mais nada menos que o indivíduo possuía seu lugar em determinada parte do mundo e portanto pertencia ao corpo político isto é que chefiava uma das famílias que constituíam em conjunto o domínio público Essa parte do mundo possuída privadamente era tão completamente idêntica à família à qual pertencia56 que a expulsão de um cidadão podia significar não apenas o confisco de sua propriedade mas a efetiva destruição de sua própria morada57 A riqueza de um estrangeiro ou de um escravo não substituía em nenhuma circunstância essa propriedade58 ao passo que a pobreza não destituía o chefe de família desse lugar no mundo e da cidadania dele decorrente Nos tempos antigos quem viesse perder o seu lugar perdia quase automaticamente a cidadania além da proteção da lei59 A sa cralidade dessa privatividade assemelhavase à sacralidade do oculto ou seja do nascimento e da morte o começo e o fim dos mortais que como todas as criaturas vivas surgem das trevas de um submundo e retornam a elas60 A feição não privativa do domínio doméstico residia originalmente no fato de ser ele o domínio do nascimento e da morte que deve ser ocultado do domínio público por abrigar coisas ocultas aos olhos humanos e impenetráveis ao conhecimento humano61 É ocultado porque o homem não sabe de onde vem quando nasce nem para onde v ai quando morre Não o interior desse domínio que permanece oculto e sem significado público mas a sua aparência externa também é importante para a cidade e ele aparece no domínio da cidade por meio dos limites entre uma casa e outra A lei era originalmente identificada com essa linha divisória62 que em tempos antigos era ainda na verdade um espaço uma espécie de terra de ninguém63 entre o privado e o público abrigando e protegendo ambos os domínios e ao mesmo tempo separandoos um do outro É verdade que a lei da pólis transcendia essa antiga concepção da qual no entanto retinha seu significado espacial original A lei da cidadeEstado não era nem o conteúdo da ação política a ideia de que a atividade política é fundamentalmente o ato de legislar embora de origem romana é essencialmente moderna e encontrou sua mais alta expressão na filosofia política de Kant nem um catálogo de proibições baseado como ainda o são todas as leis modernas nos Não Farás do Decálogo Era bem literalmente uma muralha sem a qual poderia existir um aglomerado de casas um povoado asty mas não uma cidade uma comunidade política Essa leimuralha era sagrada mas só o recinto amuralhado era político 64 Sem ela seria tão impossível haver um domínio político como existir uma propriedade sem uma cerca que a delimitasse a primeira resguardava e circundava a vida política enquanto a outra abrigava e protegia o processo biológico vital da família65 Assim não é realmente exato dizer que a propriedade privada antes da era moderna era vista como condição axiomática para admissão ao domínio público ela era muito mais que isso A privatividade era como que o outro lado escuro e oculto do domínio público e como ser político significava atingir a mais alta possibilidade da existência humana não possuir um lugar privado próprio como no caso do escravo significava deixar de ser humano De origem inteiramente diferente e mais recente na história é a significação política da riqueza privada da qual o indivíduo retira os meios de sua subsistência Já mencionamos a antiga identificação da necessidade com o domínio privado do lar onde cada um tinha de dominar por si mesmo as necessidades da vida O homem livre que podia dispor de sua privatividade e não estava como o escravo à disposição de um amo podia ainda ser forçado pela pobreza A pobreza força o homem livre a agir como escravo66 A riqueza privada portanto tornouse condição para admissão à vida pública não pelo fato do seu dono estar empenhado em acumulála mas ao contrário porque garantia com razoável certeza que ele não teria de se dedicar a prover para si mesmo os meios do uso e do consumo e estava livre para a atividade pública67 Obviamen te a vida pública somente era possível depois de atendidas as muito mais urgentes necessidades da vida O meio de atendêlas era o trabalho e portanto a riqueza de uma pessoa era muitas vezes computada em termos do número de trabalhadores isto é de escravos que ela possuía68 Nesse contexto a posse de propriedade significava dominar as próprias necessidades vitais e portanto ser potencialmente uma pessoa livre livre para transcender a sua vida e ingressar no mundo que todos têm em comum Somente com o aparecimento desse mundo comum em uma tangibilidade concreta isto é com o surgi mento da cidadeEstado pôde esse tipo de propriedade privada adquirir sua eminente significação política e é portanto um tanto natural que o famoso desdém pelas ocupações servis não seja ainda encontrado no mundo homérico Caso o dono de uma propriedade preferisse ampliála ao invés de utilizála para viver uma vida política era como se ele sacrificasse prontamente a sua liberdade e voluntariamente se tornasse aquilo que o escravo era contra sua vontade ou seja um servo da necessidade69 Até o início da era moderna esse tipo de propriedade nunca foi visto como sagrado e somente quando a riqueza como fonte de renda coincidia com o pedaço de terra no qual se radicava uma família isto é em uma sociedade essencialmente agrícola esses dois tipos de propriedade podiam coincidir a tal ponto que toda propriedade adquiria um caráter de sacralidade De qualquer forma os modernos defensores da propriedade privada que unanimemente a veem como riqueza privada e nada mais pouco motivo têm para apelar a uma tradição segundo a qual não podia existir um domínio público livre sem o devido estabelecimento e a devida proteção da privatividade Pois o enorme acúmulo de riqueza ainda em curso na sociedade moderna que teve início com a expropriação o esbulho das classes camponesas que por sua vez foi consequência quase acidental da expropriação de bens monásticos e da Igreja após a Reforma70 jamais demonstrou grande consideração pela propriedade privada ao contrário sacrificavaa sempre que ela entrava em conflito com o acúmulo de riqueza O dito de Proudhon que a propriedade é um roubo tem sólida base de verdade nas origens do moderno capitalismo e é tanto mais significativo que mesmo Proudhon tenha hesitado em aceitar o duvidoso remédio da expropriação geral por saber muito bem que a abolição da propriedade privada ainda que pudesse curar o mal da pobreza muito provavelmente provocaria o mal ainda maior da tirania71 Uma vez que ele não via diferença entre propriedade e riqueza essas duas compreensões parecem contraditórias em sua obra o que de fato não são A longo prazo a apropriação individual de riqueza não terá maior respeito pela propriedade privada do que a socialização do processo de acumulação Não é uma invenção de Karl Marx mas algo da natureza dessa mesma sociedade que a privatividade em qualquer sentido possa apenas estorvar a evolução da produtividade social e portanto que quaisquer considerações em torno da posse privada devam ser rejeitadas em benefício do processo sempre crescente da riqueza social72 9 O social e o privado Oque chamamos anteriormente de advento do social coincidiu historicamente com a transformação do interesse privado pela propriedade privada em uma preocupação pública Logo que ingressou no domínio público a sociedade assumiu o disfarce de uma organização de proprietários propertyowners que ao invés de requererem o acesso ao domínio público em virtude de sua riqueza exigiram dele proteção para o acúmulo de mais riqueza Nas palavras de Bodin o governo pertencia aos reis e a propriedade aos súditos de sorte que era dever do rei governar no interesse da propriedade de seus súbitos comunidade commonwealth como se disse recentemente existia principalmente em benefício da riqueza comum common wealth73 Quando se permitiu que essa riqueza comum resultado de atividades anteriormente relegadas à privatividade dos lares conquistasse o domínio público as posses privada s essencialmente muito menos permanentes e muito mais vulneráveis à mortalidade de seus proprietários que o mundo comum que sempre resulta do passado e se destina a continuar a exis tir para as gerações futuras passaram a minar a durabilidade do mundo É verdade que a riqueza pode ser acumulada a tal ponto que nenhuma vida individual será capaz de consumila de sorte que a família mais que o indivíduo vem a ser sua proprietária No entanto a riqueza não deixa de ser algo destinado ao uso e ao consumo não importa quantas vidas individuais ela possa sustentar Somente quando a riqueza se transformou em capital cuja função principal era gerar mais capital é que a propriedade privada igualou ou avizinhou a permanência inerente ao mundo partilhado em comum 74 Essa permanência contudo é de outra natureza é a permanência de um processo mais que a permanência de uma estrutura estável Sem o processo de acumulação a riqueza recairia imediatamente no processo oposto de desintegração por meio do uso e do consumo A riqueza comum portanto jamais pode tornarse comum no sentido que atribuímos a um mundo comum permaneceu ou antes destinavase a permanecer estritamente privada Comum era somente o governo nomeado para proteger uns dos outros os proprietários privados na luta competitiva por mais riqueza A contradição óbvia desse moderno conceito de governo em que a única coisa que as pessoas têm em comum são os seus interesses privados já não deve nos incomodar como ainda incomoda va Marx pois sabemos que a contradição entre o privado e o público típica dos estágios iniciais da era moderna foi um fenômeno temporário que trouxe a completa extinção da diferença entre os domínios privado e público a submersão de ambos na esfera do social Pela mesma razão estamos em posição bem melhor para compreender as consequências para a existência humana do desaparecimento de ambas essas esferas da vida a esfera pública porque se tornou uma função da esfera privada e a esfera privada porque se tornou a única preocupação comum que restou Encarada desse ponto de vista a moderna descoberta da intimidade parece constituir uma fuga do mundo exterior como um todo para a subjetividade interior do indivíduo subjetividade esta que antes fora abrigada e protegida pelo domínio privado A dissolução desse domínio no social pode ser perfeitamente observada na crescente transformação da propriedade imóvel em propriedade móvel até que finalmente a distinção entre propriedade e riqueza entre os fungibiles e os consumptibiles da lei roma na perde toda a sua significação porque toda coisa tangível fungível passa a ser objeto de consumo perdeu seu valor de uso privado antes determinado por sua localização e adquiriu um valor exclusivamente social determinado por sua permutabilidade constantemente mutável cuja flutuação só temporariamente pode ser fixad a por meio de uma conexão com o denominador comum do dinheiro75 Intimamente ligada a essa evaporação social do tangível estava a mais revolucionária contribuição moderna ao conceito de propriedade segundo a qual a propriedade não constituía uma parte fixa e firmemente localizada do mundo adquirida por seu proprietário de uma maneira ou de outra mas ao contrário tinha no próprio homem a sua origem na sua posse de um corpo e na sua indiscutível propriedade da força desse corpo que Marx chamou de força de trabalho laborpower Assim a propriedade moderna perdeu seu caráter mundano e passou a situarse na própria pessoa isto é naquilo que o indivíduo somente podia perder juntamente com a vida Historicamente a premissa de Locke de que o trabalho do corpo de uma pessoa é a origem da propriedade é mais que duvidosa no entanto dado o fato de que já vivemos em condições nas quais a única propriedade em que podemos confiar é o nosso talento e a nossa força de trabalho é mais do que provável que ela ven ha a se tornar verdadeira Pois a riqueza depois que se tornou preocupação pública adquiriu tais proporções que dificilmente poderia ser controlada pela posse privada É como se o domínio público tivesse se vingado daqueles que tentaram utilizálo para seus interesses privados A maior ameaça aqui porém não é a abolição da posse privada da riqueza mas sim a abolição da propriedade privada no sen tido de um lugar tangível possuído por uma pessoa no mundo Para que compreendamos o perigo para a existência humana decorrente da eliminação do domínio privado para o qual a intimidade não é substituto muito seguro talvez seja melhor considerarmos aquelas feições não privativas da privatividade anteriores à descoberta da intimi dade e que desta independem A diferença entre o que temos em comum e o que possuímos privadamente é em primeiro lugar que as nossas posses privadas que usamos e consumimos diariamente são muito mais urgentemente necessárias que qualquer parte do mundo comum sem a propriedade como disse Locke de nada nos vale o comum76 A mesma necessidade que do ponto de vista do domínio público exibe somente o seu aspecto negativo de privação de liberdade possui uma força motriz cuja premência é inigualada pelos chamados desejos e aspirações superiores do homem não apenas ela será sempre a primeira entre as necessidades e preocupações do homem mas também evitará a apatia e a extinção da iniciativa que tão obviamente ameaçam todas as comunidades demasiado ricas77 A necessidade e a vida são tão in timamente aparentadas e conectadas que a própria vida é ameaçada quando se elimina totalmente a necessidade Pois longe de resultar automaticamente no estabelecimento da liberdade a eliminação da necessidade apenas obscurece a linha que separa a liberdade da necessidade As modernas discussões sobre a liberdade nas quais esta última nunca é vista como um estado objetivo da existência humana mas constitui um insolúvel problema de subjetividade de uma vontade inteiramente indeterminada ou determinada ou resulta da necessidade evidenciam o fato de que já não se percebe uma diferença objetiva e tangível entre ser livre e ser forçado pela necessidade A segunda saliente característica não privativa da privatividade é que as quatro paredes da propriedade privada de uma pessoa oferecem o único refúgio seguro contra o mundo público comum não só contra tudo o que nele ocorre mas também contra a sua própria publicidade contra o fato de ser visto e ouvido Uma existência vivida inteiramente em p úblico na presença de outros tornase como se diz superficial Retém a sua visibilidade mas perde a qualidade resultante de vir à luz a partir de um terreno mais sombrio que deve permanecer oculto a fim de não perder sua profundidade em um sentido muito real não subjetivo O único modo eficaz de garantir a escuridão do que deve ser escondido da luz da publicidade é a propriedade privada um lugar possuído privadamente para se esconder78 Embora seja bastante natural que os traços nãoprivativos nonprivati ve da privatividade apareçam mais nitidamente quando os homens estão ameaçados de perdêla o tratamento prático da propriedade privada por corpos políticos prémodernos mostra claramente que os homens sempre estiveram conscientes da existência e importância desses traços Nem por isso porém eles protegeram diretamente as atividades exercidas no domínio privado mas protegeram antes as fronteiras que separavam o que era privadamente possuído de outras partes do mundo principalmente do próprio mundo comum Por outro lado a marca distintiva da moderna teoria política e econômica na medida em que considera a propriedade privada como questão crucial tem sido sua ênfase nas atividades privadas dos proprietários e em s ua necessidade de proteção governamental para o acúmulo de riqueza à custa da propriedade tangível O que importa ao domínio público porém não é o espírito mais ou menos empreendedor de homens de negócios privados e sim as cercas em torno das casas e dos jardins dos cidadãos A invasão da privatividade pela sociedade a socialização do homem Marx é mais eficazmente realizada por meio da expropriação mas esta não é a única maneira Nesse como em outros aspectos as medidas revolucionárias do socialismo ou do comunismo podem muito bem ser substituídas por uma decadência mais lenta porém não menos certa do domínio privado em geral e da propriedade privada em particular A distinção entre os domínios público e privado concebida mais do ponto de vista da privatividade que do corpo político equivale à distinção entre o que deve ser exibido e o que deve ser ocultado Somente a era moderna em sua rebelião contra a sociedade descobriu quão rico e variegado pode ser o domínio do oculto nas condições da intimidade mas é impressionante que desde os pri mórdios da história até o nosso tempo o que precisou ser escondido na privatividade tenha sido sempre a parte corporal da existência humana tudo o que é ligado à necessidade do processo vital e que antes da era moderna abrangia todas as atividades a serviço da subsistência do indivíduo e da sobrevivência da espécie Escondidos eram os trabalhadores que com seus corpos cuidavam das necessidades corporais da vida79 e as mulheres que com seus corpos garantem a sobrevivência física da espécie Mulheres e escravos pertenciam à mesma categoria e eram escondidos não somente porque eram propriedade de outrem mas porque sua vida era trabalhosa laborious dedicada a funções corporais80 No início da era moderna depois que o trabalho livre perdeu o seu lugar oculto da privatividade do lar os trabalhadores passaram a ser escondidos e segregados da comunidade como criminosos atrás de altos muros e sob constant e supervisão81 O fato de que a era moderna emancipou as classes operárias e as mulheres quase no mesmo momento histórico deve certamente ser incluído entre as características de uma era que já não acreditava que as funções corporais e as preocupações materiais deviam ser escondidas E é ainda mais sintomático da natureza desses fenômenos que os poucos vestígios da estrita privatividade mesmo em nossa civilização tenham a ver com necessidades no sentido original de sermos demandados pelo fato de termos um corpo 10 A localização das atividades humanas Embora a distinção entre o privado e o público coincida com a oposição entre a necessidade e a liberdade entre a futilidade e a permanência e finalmente entre a vergonha e a honra não é de forma alguma verdadeiro que somente o necessário o fútil e o vergonhoso tenham o seu lugar adequado no domínio privado O significado mais elementar dos dois domínios indica que há coisas que devem ser ocultadas e outras que necessitam ser expostas em público para que possam adquirir alguma forma de existência Se examinarmos essas coisas independentemente de onde as encontremos em qualquer civilização veremos que cada atividade humana assinala sua localização adequada no mundo Isso se aplica às principais atividades da vita activa o trabalho a obra e a ação mas existe um exemplo desse fenômeno reconhecidamente extremo cuja vantagem para a elucidação é ter desempenhado um papel considerável na teoria política A bondade em um sentido absoluto em contraposição à prestabilidade ou à excelência na Antiguidade greco romana tornouse conhecida em nossa civilização somente com o advento do cristianismo Desde então reconhecemos nas boas obras uma importante variedade entre as ações humanas possíveis O notório antagonismo entre o cristianismo primitivo e a res publica tão admiravelmente resumido na fórmula de Tertuliano nec ulla magis res aliena quam publica nada nos é mais alheio que o que tem importância pública82 é compreendido usualmente e de modo correto como consequência de antigas expectativas escatológicas cuja significação imediata somente se perdeu depois que a experiência havia ensinado que nem mesmo a queda do Império Romano significava o fim do mundo83 No entanto a alémmundanidade otherworldliness do cristianismo tem ainda outra raiz talvez ainda mais intimamente relacionada com os ensinamentos de Jesus de Nazaré e de qualquer forma tão independente da crença na perecibilidade do mundo que temos a tentação de ver nela a verdadeira razão interna pela qual a alienação cristã em relação ao mundo pôde sobreviver tão facilmente à óbvia frustração de suas esperanças escatológicas A única atividade que Jesus ensinou por palavras e atos foi a atividade da bondade e a bondade abriga obviamente uma tendência de evitar ser vista e ouvida A hostilidade cristã em relação ao domínio público a tendência pelo menos dos primeiros cristãos de levar uma vida o mais possível afastada do domínio público pode também ser entendida como uma consequência evidente da devoção às boas obras independentemente de qualquer crença ou expectativa Pois é claro que no instante em que uma boa obra se torna pública e conhecida perde o seu caráter específico de bondade de não ter sido feita por outro motivo além do amor à bondade Quando a bondade aparece abertamente já não é bondade embora possa ainda ser útil como caridade organizada ou como um ato de solidariedade Daí Não dês tuas esmolas perante os homens para seres visto por eles A bondade só pode existir quando não é percebida nem mesmo por aquele que a faz quem quer que se veja a si mesmo no ato de fazer uma boa obra deixa de ser bom seria no máximo um membro útil da sociedade ou zeloso membro da Igreja Daí Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita Talvez seja essa curiosa qualidade negativa da bondade a ausência de manifestação fenomênica exterior o que torna o aparecimento de Jesus de Nazaré na história um evento tão profundamente paradoxal certamente parece ser por isso que ele pensava e ensinava que nenhum homem pode ser bom Por que me chamais de bom Ninguém é bom a não ser um isto é Deus84 A mesma convicção se expressa no relato talmúdico dos 36 homens justos em atenção aos quais Deus salva o mundo e que também não são conhecidos de ninguém muito menos de si mesmos Isso nos lembra a grande percepção de Sócrates de que nenhum homem pode ser sábio da qual nasceu o amor à sabedoria ou filosofia philosophy todo o relato da vida de Jesus parece atestar o quanto o amor à bondade resulta da compreensão de que nenhum homem pode ser bom O amor à sabedoria e o amor à bondade caso se resolvam nas atividades de filosofar e de realizar boas obras têm em comum o fato de que cessam imediatamente cancelamse por assim dizer sempre que se presume que o homem pode ser sábio ou ser bom Sempre houve tentativas de dar vida ao que jamais pode sobreviver ao momento fugaz do ato e todas elas sempre levaram ao absurdo Os filósofos da Antiguidade tardia que exigiam de si mesmo serem sábios eram absurdos ao afirmar serem felizes quando queimados vivos dentro do famoso Touro de Falera E não menos absurda é a exigência cristã de ser bom e oferecer a outra face quando não é tomada como metáfora mas tentada como um autêntico modo de vida Termina aqui porém a semelhança entre as atividades originadas no amor à bondade e no amor à sabedoria É verdade que ambas se opõem de certa forma ao domínio público mas o caso da bondade é muito mais extremo nesse particular e portanto é mais relevante em nosso contexto Só a bondade deve esconderse de modo absoluto e evitar toda aparição pois do contrário é destruída Mesmo quando o filósofo decide com Platão deixar a caverna dos assuntos humanos não precisa esconderse de si mesmo pelo contrário sob o céu das ideias não apenas encontra as verdadeiras essências de tudo quanto existe mas também a si próprio no diálogo entre eu e mim mesmo eme emautō no qual Platão aparentemente via a essência do pensamento85 Estar em solitude solitude significa estar consigo mesmo e portanto o ato de pensar embora possa ser a mais solitária das atividades nunca é realizado inteiramente sem um parceiro e sem companhia O amante da bondade porém jamais pode permitirse viver uma vida solitária solitary e no entanto sua vida com os outros e para os outros deve permanecer essencialmente sem testemunhas e privado acima de tudo da companhia de si próprio Não é um homem solitário mas desamparado lonely embora conviva com outros deve ocultarse deles e não pode sequer confiar a si mesmo o testemunho do que está fazendo O filósofo sempre pode contar com a companhia dos pensamentos ao passo que as boas ações não podem ser companhia para ninguém devem ser esquecidas no instante em que são praticadas porque até a memória delas destruiria sua bondade Além disso o ato de pensar por poder ser lembrado pode cristalizarse em pensamentos e os pensamentos como todas as coisas que devem sua existência à recordação podem ser transformados em objetos tangíveis que como a página escrita ou o livro impresso se tornam parte do artifício humano As boas obras por deverem ser imediatamente esquecidas jamais podem tornarse parte do mundo vêm e vão sem deixar vestígios Elas realmente não são deste mundo É esse caráter nãomundano inerente às boas obras que faz do amante da bondade uma figura essencialmente religiosa e torna a bondade como a sabedoria na Antiguidade uma qualidade essencialmente não humana e sobrehumana E no entanto o amor à bondade ao contrário do amor à sabedoria não se limita à experiência de poucos da mesma forma que o desamparo lonelinessVerlassenheit ao contrário da solitude está ao alcance da experiência de todos os homens Em certo sentido portanto a bondade e o desamparo têm muito mais relevância para a política que a sabedoria e a solitude mas somente a solitude pode constituir um autêntico modo de vida na figura do filósofo ao passo que a experiência muito mais geral do desamparo está em tal contradição com a condição humana da pluralidade que simplesmente não pode ser suportada durante muito tempo requer a companhia de Deus a única testemunha imaginável das boas obras para que não venha a aniquilar inteiramente a existênci a humana A alémmundanidade da experiência religiosa na medida em que é realmente a experiência do amor no sentido de uma atividade e não a outra muito mais frequente da passiva observação de uma verdade relevada manifestase dentro do próprio mundo como todas as outras atividades permanece neste mundo e tem de ser realizada dentro dele Mas essa manifest ação embora apareça no espaço no qual outras atividades são realizadas e dependa dele é de uma natureza ativamente negativa por fugir do mundo e esconderse de seus habitantes nega o espaço que o mundo oferece aos homens e principalmente aquela região pública desse espaço onde tudo e todos são vistos e ouvidos por outros Como um modo consistente de vida a bondade portanto não é apenas impossível nos confins do domínio público mas é até destruidora dele Talvez ninguém tenha sido mais agudamente consciente dessa qualidade ruinosa da bondade quanto Maquiavel que em famosa passagem ousou ensinar aos homens como não serem bons86 Não é preciso acrescentar que ele não disse nem pretendia dizer que se deva ensinar aos homens como serem maus o ato criminoso embora por outros motivos de ve também procurar não ser visto nem ouvido por outros O critério da ação política para Maquiavel era a glória o mesmo critério da Antiguidade Clássica e a maldade como a bondade não pode assumir o resplendor da glória Assim qualquer método pelo qual um homem possa realmente conquistar o poder mas não a glória é mau87 A maldade que deixa de estar escondida é impudente e destrói diretamente o mundo comum a bondade que deixa de estar escondida e assume um papel público deixa de ser boa tornase corrupta em seus próprios termos e levará essa corrupção para onde quer que vá Assim para Maquiavel o motivo pelo qual a Igreja tornouse uma influência corruptora na política italiana foi sua participação nos assuntos seculares como tais e não a corrupção individual de bispos e prelados Para ele a alternativa apresentada pelo problema do domínio religioso sobre o domínio secular era inevitavelmente esta ou o domínio público corrompia o corpo religioso e consequentemente tornavase corrupto ou o corpo religioso permanecia não corrompido e destruía completamente o domínio público Uma Igreja reformada constituía portanto um perigo ainda maior aos olhos de Maquiavel que observou com grande respeito mas com apreensão ainda maior o reflorescimento religioso do seu tempo as novas ordens que por salvar a religião de sua destruição por conta da licenciosidade dos prelados e dos chefes da Igreja ensinam as pessoas a serem boas e a não resistir ao mal em decorrência do que os governantes perversos podem fazer todo o mal que quiserem88 Escolhemos o exemplo reconhecidamente extremo de realizar boas obras extremo porq ue essa atividade não encontra guarida nem mesmo no domínio da privatividade para indicar que os juízos históricos das comunidades políticas mediante os quais cada uma delas determinava quais atividades da vita activa deveriam ser admitidas em público e quais deveriam ser ocultadas na privatividade podem corresponder à natureza dessas mesmas atividades Ao levantar a questão não pretendo empreender uma análise exaustiva das atividades da vita activa cujas articulações têm sido curiosamente negligenciadas por uma tradição que a considerou basicamente do ponto de vista da vita contemplativa mas tentar determinar com alguma segurança o seu significado político 1 Parece bastante surpreendente que os deuses homéricos só ajam no tocante aos homens governandoos de longe ou interferindo nos assuntos deles Além disso os conflitos e as lutas entre os deuses parecem resultar principalmente de seu envolvimento nos assuntos humanos ou de sua conflitante parcialidade em relação aos mortais O resultado é um enredo no qual homens e deuses atuam em conjunto mas a trama é estabelecida pelos mortais mesmo quando a decisão é tomada na assembleia de deuses no Olimpo Creio que o erg andrōn te theōn te de Homero Odisséia i 338 indica essa cooperação o bardo canta feitos de deuses e homens não histórias de deuses e histórias de homens Do modo análogo a Teogonia de Hesíodo trata não dos feitos dos deuses mas da gênese do mundo 116 narra portanto como as coisas passaram a existir por meio da procriação e da parturição constantemente repetidas O cantor servo das Musas canta os feitos gloriosos dos homens antigos e os deuses bemaventurados 97 ff mas em parte alguma ao que eu saiba os feitos gloriosos dos deuses 2 A citação é do Index Rerum da edição de Turim das obras de São Tomás de Aquino 1922 A palavra politicus não ocorre no texto mas o Index resume corretamente a significação dada por Tomás de Aquino como se pode verificar na Suma teológica i 96 4 ii 2 109 3 3 Societas regni em Lívio societas sceleris em Cornélio Nepos Tal aliança podia também ser estabelecida para fins comerciais e Tomás de Aquino ainda afirma que uma verdadeira societas entre negociantes só existe quando o próprio investidor compartilha do risco isto é quando a associação é realmente uma aliança cf W J Ashley An introduction to English economic history and theory 1931 p 419 4 Emprego aqui e no que se segue o termo espécie humana mankind como distinto de humanidade mankind que indica a soma total dos seres humanos 5 Werner Jaeger Paidéia 1945 III 111 6 Embora a tese principal de Fustel de Coulanges segundo a introdução de A cidade antiga Anchor 1956 consista em demonstrar que a mesma religião moldou a antiga organização da família e a antiga cidadeEstado o autor fornece numerosas referências ao fato de que o regime da gens baseado na religião da família e o regime da cidade eram na verdade duas formas antagônicas de governo Ou a cidade desagregava a família com o tempo ou não poderia p erdurar p 252 A contradição dessa grande obra devese aparentemente à tentativa de Coulanges de tratar em um mesmo conjunto Roma e as cidadesEstado gregas para suas evidências e categorias ele se apoia principalmente no sentimento institucional e político de Roma embora reconheça que o culto de Vesta já perdera o seu vigor na Grécia em tempos muito remotos mas nunca o perdeu em Roma p 146 Não só o abismo entre o lar e a cidade era muito mais profundo na Grécia do que em Roma mas somente na Grécia a religião olímpica que era a religião de Homero e da cidadeEstado era separada da religião mais antiga da família e do lar e superior a esta Enquanto Vesta a deusa da lareira passou a ser a protetora de uma lareira da cidade e tornouse parte do culto político ofi cial após a unificação e segunda fundação de Roma sua equivalente grega Héstia é mencionada pela primeira vez em Hesíodo o único poeta grego que em consciente oposição a Homero louva a vida do lar e da família na religião oficial da pólis Héstia teve de ceder a Dionísio seu lugar na assembleia dos 12 deuses olímpicos cf Mommsen Römische Geschichte 5 ed Livro I Capítulo 12 e Robert Graves The greek myths 1955 27 k 7 A frase é do discurso de Fênix Ilíada ix 443 e referese claramente à educação para a guerra e para a ágora a assembleia pública nas quais o homem pode distinguirse A tradução literal é teu pai encarregoume de ensinarte tudo isto para seres um pronunciador de palavras e um realizador de feitos mythōn te rhētēr emenai prēktēra te ergōn 8 A tradução literal das últimas linhas de Antígona 135054 é a seguinte Mas as grandes palavras neutralizando ou revidando os grandes golpes dos soberbos ensinam a compreensão na velhice O conteúdo dessas linhas é tão enigmático para a compreensão moderna que raramente se encontra um tradutor que ouse dar a elas seu sentido estrito Uma exceção é a tradução de Hölderlin Grosse Blicke aber Grosse Streiche der hohen Schultern Vergeltend Sie haben im Alter gelehrt zu denken Uma anedota contada por Plutarco ilustra em um nível muito menos elevado a ligação entre agir e falar Certa vez um homem aproximouse de Demóstenes e disse o quanto foi violentamente espancado Mas disse Demóstenes não sofreste nada do que estás me dizendo O outro levantou a voz em seguida e exclamou Eu não sofri nada Agora disse Demóstenes escuto a voz de quem foi ofendido e sofreu Vidas Demóstenes Um último vestígio dessa antiga conexão entre o discurso e o pensamento ausente em nossa noção de exprimir o pensamento por meio de palavras pode ser encontrado na popular frase de Cícero ratio et oratio 9 Característico desse d esdobramento é o fato de que todo político era chamado de rétor e que a retórica a arte de falar em público em oposição à dialética que era a arte do discurso filosófico era definida por Aristóteles como a arte da persuasão cf Retórica 1354a12ss 1355b26ss A distinção aliás vem de Platão Górgias 448 É nesse sentido que devemos compreender a opinião grega acerca do declínio de Tebas atribuído ao fato de terem os tebanos abandonado a retórica em favor do exercíc io militar vejase Jacob Burckhardt Griechische Kulturgeschichte ed Kroener III 190 10 Ética Nicomaquéia 1142a25 e 1178a6ss 11 Tomás de Aquino Suma teológica ii 2 50 3 12 Os termos dominus e paterfamilias eram portanto sinônimos como os termos servus e familiaris Dominum patrem familiae appellaverut servos familiares Sêneca Epístolas 47 12 A antiga liberdade do cidadão romano desapareceu quando os imperadores romanos adotaram o título de dominus ce nom quAuguste et que Tibère encore repoussaient comme une malédiction et une injure H Wallon Histoire de lesclavage dans lantiquité 1847 III 21 13 Segundo Gunnar Myrdal The political element in the development of economic theory 1953 p xl a ideia da economia social ou administração doméstica coletiva Volkswirtschaft é um dos três focos principais em torno dos quais se cristalizou a especulação política que impregnou a economia desde o início 14 Não pretendemos negar com isso que o Estadonação e sua sociedade surgiram do reino medieval e do feudalismo em cuja estrutura a família e a casa têm importância jamais igualada na Antiguidade Clássica Mas há uma diferença marcante Dentro da estrutura feudal as famílias e casas eram quase independentes entre si de sorte que a casa real representando uma determinada região territorial e governando os senhores feudais como primus inter pares não pretendia como um governante absoluto ser o chefe de uma família A nação medieval era um conglomerado de famílias seus membros não se consideravam como membros de uma única família que englobasse toda a nação 15 A distinção é muito clara nos primeiros parágrafos da Economia pseudoaristotélica nos quais se opõe o governo despótico de um só homem monarchia da organização familiar à organização inteiramente diferente da pólis 16 Em Atenas podemos ver o ponto de viragem na legislação de Sólon Corretamente Coulanges vê na lei ateniense que tornou dever filial sustentar os pais a prova da perda do poder paterno A cidade antiga Anchor 1956 p 315316 Contudo o poder paterno só era limitado quando entrava em conflito com os interesses da cidade e nunca em benefício do membro da família como indivíduo Assim a prática de vender crianças e enjeitar filhos pequenos foi exercida durante toda a Antiguidade cf R H Barrow Slavery in the Roman Empire 1928 p 8 Outros direitos da patria potestas se haviam tornado obsoletos mas o direito de enjeitar só foi proibido no ano 374 de nossa era 17 Quanto a essa distinção é interessante notar que havia cidades gregas onde os cidadãos eram obrigados por lei a dividir entre si suas colheitas e consumilas em comum embora cada um deles tivesse a propriedade absoluta e inconteste do seu pedaço de terra Conferir Coulanges A cidade antiga Anchor 1956 p 61 para quem essa lei era uma singular contradição mas não se trata de contradição porque no conceito dos antigos esses dois tipos de propriedade nada tinham em comum 18 Cf Leis 842 19 Fustel de Coulanges A cidade antiga Anchor 1956 p 96 A referência a P lutarco é de Quaestiones romanae 51 Parece nos estranho que Coulanges com a sua ênfase unilateral sobre as deidades da região dos mortos na religião grega e romana tenha deixado passar despercebido o fato de que esses deuses não eram meros deuses da morte e o culto não era um mero culto da morte e sim que essa antiga religião terrena servia à vida e à morte como dois aspectos do mesmo processo A vida surge da Terra e a ela retorna o nascimento e a morte são apenas dois estágios diferentes da mesma vida biológica sobre a qual os deuses subterrâneos têm controle 20 A discussão entre Sócrates e Euterus na Memorabilia ii 8 de Xenofonte é bem interessante Euterus é forçado pela necessidade a trabalhar com o seu corpo e está seguro de que seu corpo não poderá suportar esse tipo de vida durante muito tempo e também de que será indigente na velhice Ainda assim acha melhor trabalhar que mendigar Ao ouvir isso Sócrates propõe que ele procure alguém que esteja em melhores condições e precise de um ajudante Euterus responde que não suportaria a servidão douleia 21 Referimonos aqui a Hobbes Leviatã Parte I Capítulo 13 22 A mais famosa e mais bela referência a esse assunto é a discussão das diferentes formas de governo em Heródoto iii 80 83 na qual Otanes o defensor da igualdade grega isonomi declara não querer governar nem ser governado Mas é no mesmo espírito que Aristóteles diz que a vida do homem livre é melhor que a do déspota negando como algo óbv io a liberdade ao déspota Política 1325a24 Segundo Coulanges todas as palavras gregas e latinas que exprimem algum tipo de governo de um homem sobre os outros como rex pater anax basileus referiamse originariamente a relações domésticas e eram nomes que os escravos davam a seus senhores A cidade antiga Anchor 1956 p 89ss 228 23 A proporção variava e era cer tamente exagerada no relato de Xenofonte sobre Esparta onde entre quatro mil pessoas na praça pública um estrangeiro não contou mais que 60 cidadãos Hellenica iii 35 24 Cf Myrdal The political element in the development of economic theory A noção de que a sociedade como um chefe de família administra a casa em favor dos seus membros é profundamente arraigada na terminologia econômica Em alemão a palavra Volkswirtschaftslehre sugere que existe um sujeito coletivo da atividade econômica com um fim comum e valores comuns Em inglês teoria da riqueza theory of wealth ou teoria do bemestar theory of welfare exprimem ideias semelhantes p 140 O que significa uma economia social cuja função é a administração social do lar Em primeiro lugar implica ou sugere uma analogia entre a sociedade e o indivíduo que governa a sua casa ou a da sua família Adam Smith e James Mill desenvolveram explicitamente essa analogia Após a crítica de J S Mill e com o amplo reconhecimento da diferença entre a economia política prática e a teórica passouse a dar menos destaque a essa analogia p 143 O fato de a analogia não ser mais empregada pode deverse também a um desdobramento no qual a sociedade devorou a unidade familiar até tornarse uma perfeita substituta para ela 25 R H Barrow The romans 1953 p 194 26 As características que E Levasseur Histoire des classes ouvrières et de lindustrie en France avant 1789 1900 reconhece na organização feudal do trabalho aplicamse às comunidades feudais como um todo Chacun vivait chez soi et vivait de soi même le noble sur sa seigneurie le villain su r sa culture le citadin dans sa ville p 229 27 O tratamento equ itativo dos escravos que Platão recomenda nas Leis 777 pouco tem a ver com a justiça e não é recomendado devido a uma consideração com os escravos mas mais por uma questão de res peito por nós mesmos Quanto à coexistência de duas leis a lei política da justiça e a lei doméstica do domínio conferir Wallon Histoire de lesclavage dans lantiquité II 200 La loi pendant bien longtemps donc sabstenait de pénétrer dans la famille où elle reconnaissait lempire dune autre loi A jurisdição antiga especialmente a romana relativa a assuntos domésticos tratamento de escravos relações familiares etc destinavase essencialmente a restringir o poder do chefe de família que não fosse isso era ilimitado era impensável que pudesse haver um regime de justiça dentro da sociedade inteiramente privada dos próprios escravos que por definição se situavam fora do âmbito da lei e sujeitos ao domínio dos respectivos senhores Somente o senhor dos escravos na medida em que era também um cidadão estava sujeito ao controle das leis que em benefício da cidade eventualmente restringia até seus poderes no lar 28 W J Ashley An introduction to English economic history and theory p 415 29 Essa ascensão de uma esfera ou categoria mais baixa para outra mais alta é um tema recorrente em Maquiavel cf especialmente O príncipe Capítulo 6 acerca de Hiero de Siracusa e Capítulo 7 e Discursos Livro II Capítulo 13 30 Já no tempo de Sólon a escravidão era considerada pior que a morte Robert Schlaifer Greek theories of slavery from Homer to Aristotle Harvard studies in classical philology 1936 XLVII Desde então a philopsychia o amor à vida e a covardia passaram a ser identificadas com o servilismo Assim Platão pôde acreditar ter demonstrado o servilismo natural dos escravos pelo fato de estes não terem preferido a morte à escravidão República 386A Na resposta de Sêneca às queixas dos escravos podese encontrar ainda um reflexo tardio dessa atitude Com a liberdade tão ao alcance de nossas mãos existe ainda alguém que seja escravo Ep 77 14 ou ainda em sua frase vita si moriendi virtus abest servitus est sem a virtude que sabe como morrer a vida é escravidão 77 13 Para que se compreenda a atitude dos antigos em relação à escravidão convém lembrar que a maioria dos escravos era de inimigos derrotados e que geralmente só uma pequena percentagem era constituída de escravos natos E enquanto na República Romana os escravos eram em sua totalidade trazidos de fora das fronteiras do domínio romano os escravos gregos eram geralmente da mesma nacionalidade que os seus senhores haviam demonstrado sua natureza escrava por não terem cometido suicídio e como a coragem era a virtude política par excellence haviam demonstrado com isso sua indignidade natural sua incapacidade de serem cidadãos A atitude em relação aos escravos mudou no Império Romano não só devido à influência do estoicismo mas porque uma proporção muito maior da população escrava era escrava de nascimento Mas mesmo em Roma Virgílio considerava que labos era intimamente ligado à morte inglória Eneida vi 31 O fato de que o homem livre se diferencie do escravo por meio da coragem parece ter sido o tema de um poema do poeta cretense Híbrias Minhas riquezas são a lança a espada e o belo escudo Mas aqueles que não ousam valerse da lança da espada e do belo escudo que protege o corpo prostramse de joelhos assombrados e me chamam de Senhor e Grande Rei citado por Eduard Meyer Die Sklaverei im Altertum 1898 p 22 32 Max Weber Agrarverhältnisse im Altertum Gesammelte Aufsätze zur Sozialund Wirtschaftsgeschichte 1924 p 147 33 Bom exemplo disso é a observação de Sêneca que ao discutir a utilidade de ter escravos altamente instruídos que sabem de cor todos os clássicos para um senhor supostamente um tanto ignorante comenta O que a casa sabe o senhor sabe Ep 27 6 citado por Barrow Slavery in the Roman Empire p 61 34 Aien aristeuein kai hypeirochon emmenai allōn ser sempre o melhor e sobressair aos outros é a principal preocupação dos heróis de Homero Ilíada vi 208 e Homero foi o educador da Hélade 35 A concepção da economia política primeiramente como uma ciência remonta a Adam Smith e era desconhecida não só da Antiguidade e da Idade Média mas também da doutrina canônica a primeira doutrina econômica completa que diferia da economia moderna por ser uma arte e não uma ciência W J Ashley An introduction to English economic history and theory p 379 ss A economia clássica pressupunha que o homem na medida em que é um ser ativo age exclusivamente por interesse próprio e é movid o por um único desejo o desejo de aquisição A introdução por Adam Smith de uma mão invisível para promover um fim que não fazia parte da intenção de ninguém demonstra que mesmo esse mínimo de ação com a sua motivação uniforme contém ainda d emasiada iniciativa imprevisível para o estabelecimento de uma ciência Marx desenvolveu a economia clássica mais ainda ao substituir os interesses individuais e pessoais por interesses de grupo ou de classe e ao reduzir esses interesses de classe a duas classes principais de capitalistas e operários de sorte que só lhe restou um conflito em que a economia clássica enxergava uma multidão de conflitos contraditórios O motivo pelo qual o sistema econômico de Marx é mais consistente e coerente e portanto aparentemente muito mais científico que os de seus predecessores reside primordialmente na construção do homem socializado que é um ser ainda menos ativo que o homem econômico da economia liberal 36 Uma das principais teses da brilhante obra de Myrdal The political element in the development of economic theory p 54 e 150 é que o utilitarismo lib eral e não o socialismo é forçado a manter uma ficção comunista insustentável acerca da unidade da sociedade e que a ficção comunista está implícita na maioria das obras sobre economia Myrdal demonstra categoricamente que a economia só pode ser uma ciência se presumir que um só interesse permeia a sociedade como um todo Por trás da harmonia de interesses está sempre a ficção comu nista de um interesse único que pode então ser chamado de bemestar welfare ou de bem comum commonwealth Consequentemente os economistas liberais foram sempre guiados por um ideal comunista ou seja pelo interesse da sociedade como um todo p 194195 O ponto crucial do argumento é que isso equivale à asserção de que a sociedade deve ser concebida como um único sujeito E isto não obstante é precisamente o que não pode ser concebido Se tentarmos fazêlo seremos tentados a ignorar o fato essencial de que a atividade social é o resultado das intenções de vários indivíduos p 154 37 Há uma brilhante exposição desse aspecto geralmente negligenciado da relevância de Marx para a sociedade moderna em Siegfried Landshut Die Gegenwart im Lichte der Marxschen Lehre Hamburger Jahrbuch für Wirtschafts und Gesellschaftspolitik v I 1956 38 Aqui e no resto deste livro aplico a expressão divisão do trabalho somente às modernas condições de trabalho nas quais uma atividade é dividida e atomizada em um semnúmero de pequenas manipulações e não à divisão do trabalho pr opiciada pela especialização profissional Esta última só pode ser assim classificada sob a premissa de que a sociedade deve ser concebida como um sujeito único a satisfação das necessidades desse sujeito único é então subdividid a entre os seus membros por uma mão invisível O mesmo se aplica mutatis mutandis à noção estranha de uma divisão de trabalho entre os sexos que chega a ser considerada por alguns autores como a mais original de todas Essa divisão presume como seu único sujeito o gênero humano a espécie humana que dividiu seus trabalhos entre homens e mulheres Quando o mesmo argumento era usado entre os antigos conferir por exemplo Xenofonte Oeconomicus vii 22 a ênfase e o significado eram bastante diferentes A principal divisão era entre a vida vivida dentro de casa no lar e a vida vivida fora no mundo Somente esta última era plenamente digna do homem e naturalmente a noção de igualdade entre o homem e a mulher que é um pressuposto necessário para a ideia da divisão do trabalho estava inteiramente ausente cf n 81 A Antiguidade parece ter conhecido apenas a especialização profissional que era supostamente predeterminada por dons e qualidades naturais Assim o serviço work nas minas de ouro que ocupava vários milhares de operários era distribuído segundo a força e a habilidade de cada um Cf JP Vernant Travail et nature dans la Grèce ancienne Journal de psichologie normale et pathologique v LII n 1 janmar 1955 39 Todas as palavras europeias para trabalho o latim e o inglês labor o grego ponos o francês travail o alemão Arbeit significam dor e esforço e são usadas também para as dores do parto Labor tem a mesma raiz etimológica que labare cambalear sob uma carga ponos e Arbeit têm as mesmas raízes etimológicas que pobreza p enia em grego e Armut em alemão Mesmo Hesíodo tido como um dos poucos defensores do trabalho na Antiguidade via ponon alginoenta o trabalho penoso como o primeiro dos males que atormentavam os homens Teogonia 226 Quanto ao uso grego conferir G Herzog Hauser Ponos em PaulyWissowa As palavras alemãs Arbeit e arm derivam ambas do germânico arbma que significava solitário e desprezado abandonado Vejase Kluge Götze Etymologisches Wörterbuch 1951 No alemão medieval usamse essas palavras para traduzir labor tribulutio persecutio adversitas malum cf Klara Vontobel Das Arbeitsethos des deutschen Protestantismus Dissertation Berna 1946 40 A tão citada observação de Homero de que Zeus retira metade da excelência aretē de um homem no dia em que ele sucumbe à escravidão Odisséia xvii 320 ss é colocada na boca de Eumeu ele mesmo um escravo significando uma mera afirmação objetiva e não uma crítica ou um julgamento moral O escravo perde a excelência porque perde a admissão ao domínio público onde a excelência pode se revelar 41 Esse é também o motivo pelo qual é impossível traçar o perfil de qualquer escravo que viveu Até alcançarem a liberdade e a notoriedade todos os escravos são tipos obscuros mais que pessoas Barrow Slavery in the Roman Empire p 156 42 Refirome aqui a um poema sobre a dor pouco conhecido que Rilke escreveu em seu leito de morte As primeiras linhas desse poema sem título são Komm du du letzter den ich anerkenne heilloser Schmerz im leiblichen Geweb e termina como segue Bin ich es noch der da unkenntlich brennt Erinnerungen rei ss ich nicht herein O Leben Leben Draussensein Und ich in Lohe Niemand der mich kennt 43 Quanto à subjetividade da dor e sua relevância para todas as variantes de hedonismo e sensualismo conferir os 15 e 43 Para os vivos a morte é primordialmente o desaparecimento disappearance Mas ao contrário do que ocorre com a dor há um aspecto da morte no qual é como se ela aparecesse entre os vivos na velhice Goethe observou certa vez que envelhecer é retirarse gradualmente da aparência stufenweises Zurücktreten aus der Erscheinung a verdade dessa observação bem como o aspecto real desse processo de desaparecimento tornamse bastante tangíveis n os autorretratos dos grandes mestres quando velhos Rembrandt Leonardo etc nos quais a intensidade dos olhos parece iluminar e presidir uma carne que fenece 44 Contra Faustum Manichaeum v 5 45 Esse é ainda naturalmente o pres suposto mesmo da filosofia política de Tomás de Aquino cf Suma teológica ii 2 181 4 46 A expressão corpus rei publicae é corrente no latim précristão mas tem a conotação da população que habita uma res publica um dado domínio político O termo grego correspondente sma nunca é empregado no grego précristão em um sentido político Ao que parece a metáfora ocorre pela primeira vez em Paulo I Cor 12 1227 e é de uso corrente em todos os primeiros escritores cristãos conferir por exemplo Tertuliano Apologeticus 39 ou Ambrósio De officiis ministrorum iii 3 17 Veio a ter grande importância para a teoria política medieval que pressupunha unanimemente que todos os homens eram quasi unum corpum Tomás de Aquino Suma teológica ii 1 81 1 Mas enquanto os autores mais antigos enfatizavam a igualdade dos membros todos igualmente necessários ao bemestar do corpo como um todo passouse a destacar mais tarde a diferença entre a cabeça e os membros entre o dever de governar da cabeça e o dever de obedecer dos membros Quanto à Idade Média cf AntonHermann Chroust The corporate idea in the Middle Ages Review of Politics v VIII 1947 47 Tomás de Aquino Suma teológica ii 2 179 2 48 Conferir o artigo 57 da regra beneditina em Levass eur Histoire des classes ouvrières et de lindustrie en France avant 1789 1900 p 187 se um dos monges passava a sentir orgulho da sua obra era forçado a abandonála 49 Barrow Slavery in the Roman Empire p 168 em uma esclarecedora discussão sobre a admissão de escravos nos colégios romanos que proporcionava além de boas relações durante a vida e a certeza de um enterro decente a glória final de um epitáfio e o escravo encontrava um prazer melancólico neste último 50 Ética Nicomaquéia 1177b31 51 A riqueza das nações Livro I Capítulo 10 p 120 e 95 do v I ed Everyman 52 Quanto ao desamparo lonelinessVerlassenheit moderno como fenômeno de massa cf David Riesman The lonely crowd 1950 53 Plínio o Moço citado por W L Westermann Sklaverei em PaulyWissowa Supl VI p 1045 54 Existe prova suficiente dessa difer ença de estimativa da riqueza e da cultura em Roma e na Grécia Mas é interessante observar como essa estimativa coincide sistematicamente com a posição dos escravos Os escravos romanos desempenharam um papel muito maior na cultura romana que o dos escravos gregos na Grécia onde por outro lado o papel destes últimos na vida econômica foi muito mais importante cf Westermann em PaulyWissowa p 984 55 Agostinho A cidade de Deus xix 19 vê no dever de caritas em relação ao utilitas proximi o interesse do próximo a limitação do otium e da contemplação Mas na vida ativa não são as honras e o poder desta vida que devemos almejar mas o bemestar daqueles que estão abaixo de nós salutem subditorum É óbvio que esse tipo de responsabilidade assemelhase mais à responsabilidade do chefe de família em relação à sua família que à responsabilidade política propriamente dita O preceito cristão de que cada um cuide de seus próprios negócios provém de I Ts 4 11 que procureis viver uma vida tranquila e que trateis de vossos negócios prattein ta idia onde ta idia é entendido como o oposto de ta koina assuntos comuns públicos 56 Coulanges A cidade antiga Anchor 1956 afirma O verdadeiro significado de familia é propriedade designa o campo a casa dinheiro e escravos p 107 Mas essa propriedade não é vista como vinculada à família pelo contrário a família é vinculada ao lar o lar é ligado ao solo p 62 O importante é que a fortuna é imóvel como o lar e o túmulo aos quais está vinculada O homem é que se vai p 74 57 Levasseur Histoire des classes ouvrières et de lindustrie en France avant 1789 1900 relata a fundação de uma comunidade medieval e suas condições de admissão Il ne suffisait pas dhabiter la ville pour avoir droit à cette admission Il fallait posséder une maison Além disso toute injure proférée en public contre la commune entraînait la démolition de la maison et le banissement du coupable p 240 inclusive n 3 58 A diferença é mais óbvia no caso dos escravos que embora não possuíssem propriedade como os antigos a concebiam isto é não tivessem um lugar que lhes pertencesse de modo algum eram destituídos de propriedade no sentido moderno O peculium as posses privadas de um escravo podia representar somas consideráveis e mesmo incluir escravos próprios vicarii Barrow fala da propriedade que mesmo o mais humilde de sua classe possuía Slavery in the Roman Empire p 122 Esta obra constitui a melhor descrição do papel do peculium 59 Coulanges menciona uma observação de Aristóteles de que nos tempos antigos o filho não podia ser cidadão enquanto o pai estivesse vivo quando este morria somente o filho mais velho gozava de direitos políticos A cidade antiga Anchor 1956 p 228 Coulanges afirma que a plebs romana consistia originalmente de pessoas sem lar e que portanto era claramente distinta do populus Romanus p 229 ss 60 Toda esta religião era confinada pelas paredes de cada casa Todos esses deuses a Lareira os Lares e os Manes eram chamados de deuses ocultos ou deuses do interior Em todos os atos d essa religião o sigilo era necessário sacrificia occulta como disse Cícero De arusp respl 17 Coulanges A cidade antiga Anchor 1956 p 37 61 Aparentemente os Mistérios Eleusinos proporcionavam uma experiência comum e quase pública de todo esse domínio que dada a sua própria natureza e embora fosse comum a todos precisava ser escondida mantida em segredo para o domínio público todos podiam participar dos mistérios mas a ninguém era lícito falar deles Os mistérios tinham a ver com o indizível e qualquer experiência que não pudesse ser expressa em palavras era apolítica e talvez antipolítica por definição cf Karl Kerenyi Die Geburt der Helena 194345 p 48 ss Tinham a ver com o segredo do nascimento e da morte como parece proválo um fragmento de Píndaro oide men biou teleutan oiden de diosdoton archan fragm 137a em que supostamente o iniciado conhecia o fim da vida e o começo dado por Zeus 62 A palavra grega nomos lei vem de nemein que significa distribuir possuir o que foi distribuído e habitar A combinação de lei e de cerca na palavra nomos é bem evidente em um fragmento de Heráclito machestai chrē ton dēmon hyper tou nomou hokōsper teichos o povo deve lutar pela lei como por uma muralha A palavra romana para lei lex tem significado inteiramente diferente indica uma relação formal entre as pessoas e não uma muralha que as separa umas das outras Mas a fronteira e seu deus Terminus que separavam o agrum publicum a privato Lívio eram muito mais reverenciados que os respectivos theoi horoi na Grécia 63 Coulanges menciona uma antiga lei grega segundo a qual não se permitia que dois edifícios se tocassem A cidade antiga Anchor 1956 p 63 64 A palavra pólis tinha originariamente a conotação de algo como murocircundante ringwall e ao que parece o latim urbs exprimia também a noção de um círculo e derivava da mesma raiz de orbis Encontramos a mesma relação na palavra inglesa town que originariamente como o alemão Zaun significava cerca cf R B Onians The origins of European thought 1954 p 444 n 1 65 O legislador portanto não precisava ser um cidadão muitas vezes era convocado de fora Sua obra não era política a vida política porém só podia começar depois que ele houvesse terminado sua legislação 66 Demóstenes Orationes 57 45 A pobreza força os homens livres a fazer muitas coisas servis e mesquinhas polla doulika kai tapeina pragmata tous eleutherous h penia biazetai poiein 67 Essa condição para a admissão no domínio público ainda existia no início da Idade Média Os Livros dos Costumes ingleses ainda traziam uma nítida distinção entre o artífice e o cidadão livre o franke homme da cidade Se um artífice se tornasse tão rico que desejasse vir a ser um homem livre devia renegar a sua arte e desfazerse de todos os seus instrumentos W J Ashley An introduction to English economic history and theory p 83 Foi somente sob o governo de Eduardo III que o artífice se tornou tão rico que ao invés de ser o artífice inabilitado para a cidadania esta passou a ser vinculada à participação em uma das companhias p 89 68 Ao contrário de outros autores Coulanges ressalta as atividades consumidoras de tempo e de força que eram exigidas de um cidadão na Antiguidade mais que seu ócio e percebe corretamente que a afirmação de Aristóteles de que nenhum homem que tivesse de labutar para seu sustento podia ser um cidadão era a mera afirmação de um fato e não a expressão de um preconceito A cidade antiga Anchor 1956 p 335 ss É característico da transformação moderna que as riquezas por si independentemente da ocupação de seu proprietário viessem a ser uma qualificação para a cidadania só agora ser cidadão era um mero privilégio desvinculado de quaisquer atividades especificamente políticas 69 Essa me parece ser a solução do conhecido enigma com que se depara no estudo da história econômica do mundo antigo o fato de ter a indústria se desenvol vido até certo ponto mas tenha estancado inesperadamente de realizar o progresso que se podia esperar considerandose o fato de que os romanos demonstravam eficiência e capacidade de organização em larga escala em outros setores nos serviços públicos e no exército Barrow Slavery in the Roman Empire p 109110 Esperar a mesma capacidade de organização em questões privadas como em serviços públicos parece ser um preconceito devido às condições modernas Max Weber em seu notável ensaio Agrarverhältnisse im Altertum Gesammelte Aufsätze zur Sozialund Wirtschaftsgeschichte 1924 já havia insistido sobre o fato de que as cidades antigas eram mais centros de consumo que de produção e que o antigo proprietário de escravos era um rentier e não um capitalista Unternehmer p 13 22 ss e 144 A indiferença dos autores antigos no tocante a questões econômicas aliada à falta de documentos a esse respeito aumenta o peso do argumento de Weber 70 Todas as histórias da classe operária isto é uma classe de pessoas completamente destituídas de propriedade e que vivem somente da obra de suas mãos comportam o mesmo ingênuo pressuposto de que sempre existiu tal classe Contudo como vimos nem mesmo os escravos eram destituídos de propriedade na Antiguidade e geralmente se verifica que os chamados trabalhadores livres da Antiguidade não passavam de vendeiros negociantes e artífices livres Barrow Slavery in the Roman Empire p 126 M E Park The plebs urbana in Ciceros day 1921 conclui portanto que não existiam trabalhadores livres visto que o homem livre parecia ser sempre algum tipo de proprietário W J Ashley resume a situação na Idade Média até o século XV Não existia ainda uma grande classe de assalariados uma classe operária no sentido moderno da expressão Chamamos hoje de operários a um grupo de homens entre os quais alguns indivíduos podem realmente ser promovidos a mestres mas cuja maioria jamais pode esperar galgar uma posição mais alta No século XIV porém trabalhar alguns anos como diarista era apenas um estágio pelo qual os homens mais pobres tinham que passar enquanto a maioria prova velmente se estabelecia como mestreartífice assim que terminava o aprendizado An introduction to English economic history and theory p 9394 Assim a classe operária da Antiguidade não era nem livre nem destituída de propriedade se por meio da alforria o escravo ganhava a liberdade em Roma ou a comprava em Atenas não se tornava um trabalhador livre mas tornavase imediatamente um comerciante ou um artífice independente Aparentemente a maioria dos escravos ao se tornarem livres levavam consigo certo capital próprio que lhes permitia estabelecerse no comércio ou na indústria Barrow Slavery in the Roman Empire p 103 E na Idade Média ser um operário no sentido moderno do termo era um estágio temporário na vida de uma pessoa uma preparação para a maestria e para a vida adulta Na Idade Média o trabalho arrendado era uma exceção e os trabalhadores diaristas da Alemanha os Tagelöhner na tradução luterana da Bíblia ou os manoeuvres franceses viviam fora das comunidades estabelecidas e eram idênticos aos pobres os labouring poor da Inglaterra cf Pierre Brizon Histoire du travail et des travailleurs 1926 p 40 Além disso o fato de nenhum código legal antes do Code Napoléon tratar de trabalhadores livres cf W Endemann Die Behandlung der Arbeit im Privatrecht 1896 p 49 e 53 demonstra de maneira conclusiva quão recente é a existência de uma classe operária 71 Conferir o engenhoso comentário sobre a frase a propriedade é um roubo que ocorre na Théorie de la propriété p 209 210 de Proudhon publicada postumamente na qual ele apresenta a propriedade em sua natureza egoísta e satânica como o meio mais eficaz de resistir ao despotismo sem derrubar o Estado 72 Devo confessar que não vejo em que se baseiam os economistas liberais da sociedade atual que hoje se chamam de conservadores para justificar seu otimismo quando afirmam que a apropriação privada de riqueza será bastante para proteger as liberdades individuais ou seja que desempenhará o mesmo papel da propriedade privada Em uma sociedade de de tentores de empregos essas liberdades só estão seguras na medida em que são garantidas pelo Estado e ainda hoje são constantemente ameaçadas não pelo Estado mas pela sociedade que distribui os empregos e determina a parcela de apropriação individual 73 R W K Hinton Was Charles I a tyrant Review of Politics v XVIII jan 1956 74 Quanto à história da palavra capital como derivada do latim caput que na legislação romana era empregada para designar o principal de uma dívida vejase W J Ashley An introduction to English economic history and theory p 429 e 433 n 183 Somente no século XVIII os autores passaram a empregar essa palavra no sentido mode rno de riqueza investida de forma a trazer proveito 75 A teoria econômica medieval ainda não concebia o dinheiro como denominador comum e como padrão mas consideravao como um dos consumptibiles 76 Segundo tratado sobre o governo Seção 27 77 Os casos relativamente raros em que os autores antigos louvam o trabalho e a pobreza são inspirados por esse perigo cf referências em G HerzogHauser Ponos em PaulyWissowa 78 As palavras gregas e latinas que designam o interior da casa megaron e atrium têm forte conotação de escuridão e treva cf Mommsen Römische Geschichte 5 ed p 22 e 236 79 Aristóteles Política 1254b25 80 A vida da mulher é classificada como pontikos por Aristóteles Sobre a geração dos animais 775a33 O fato de que mulheres e escravos pertenciam a um só grupo e viviam juntos de que nenhuma mulher nem mesmo a esposa do chefe da casa vivia entre seus iguais outras mulheres livres de modo que a posição social dependia muito menos do nascimento que da ocupação ou função é muito bem apresentado por Wallon Histoire de lesclavage dans lantiquité I 77 ss que fala de uma confusion des rangs ce partage de toutes les fonctions domestiques Les femmes se confondaient avec leurs esclaves dans les soins habituels de la vie intérieure De quelque rang quelles fussent le travail était leur apanage comme aux hommes la guerre 81 Cf Pierre Brizon Histoire du travail et des travailleurs 4 ed 1926 p 184 quanto às condições de trabalho em uma fábrica do século XVII 82 Tertuliano Apologeticus 38 83 Essa diferença de experiência talvez explique em parte a diferença entre a grande sanidade de Agostinho e a noção terrivelmente concreta de política de Tertuliano Ambos eram romanos e profundamente formados pela vida política de Roma 84 Lc 819 O mesmo pensamento ocorre em Mt 6118 em que Jesus adverte contra a hipocrisia contra a aberta exibição da piedade A piedade não pode aparecer para os homens mas somente para Deus que vê em segredo É verdade que Deus recompensará o homem mas não como d iz a tradução clássica abertamente A palavra alemã Scheinheiligkeit expressa muito adequadamente esse fenômeno religioso no qual a mera aparição já é hipocrisia 85 Encontrase essa expressão passim em Platão cf esp Górgias 482 86 O príncipe Capítulo 15 87 Ibid Capítulo 8 88 Discursos Livro III Capítulo I TRABALHO No capítulo seguinte Karl Marx será criticado Isso é lamentável em uma época em que tantos escritores que outrora ganharam a vida pela apropriação tácita ou explícita da grande riqueza das ideias e intuições marxianas decidiram tornarse antimarxistas profissionais no decurso de tal processo um deles até descobriu que o próprio Karl Marx era incapaz de se sustentar to make a living esquecendose por um instante das gerações de autores que ele sustentou supported Ante tal dificuldade posso evocar a declaração feita por Benjamin Constant quando se sentiu compelido a atacar Rousseau Jéviterai certes de me joindre aux détracteurs dun grand homme Quand le hasard fait quen apparence je me rencontre avec eux sur un seul point je suis en défiance de moimême et pour me consoler de paraître un instant de leur avis jai besoin de désavouer et de flétrir autant quil es t en moi ces prétendus auxiliaires Certamente evitarei a companhia dos detratores de um grande homem Quando o acaso faz com que aparentemente eu esteja de acordo com eles sobre um único ponto começo a suspeitar de mim próprio e para consolarme de parecer por um instante defender sua opinião preciso repudiar e conservar distante de mim tanto quanto eu puder esses pretensos auxiliares1 11 O trabalho de nosso corpo e a obra de nossas mãos2 Adistinção que proponho entre trabalho e obra é inusitada A evidência fenomênica a seu favor é demasiado impressionante para ser ignorada e não obstante é historicamente um fato que com exceção de umas poucas considerações esparsas as quais por sinal nunca chegaram a ser desenvolvidas mesmo nas teorias de seus autores quase nada existe para corroborála na tradição prémoderna do pensamento político ou no vasto corpo das modernas teorias do trabalho Contra essa escassez de provas históricas porém há um testemunho muito articulado e obstinado isto é o simples fato de que todas as línguas europeias antigas e modernas possuem duas palavras etimologicamente independentes para designar o que viemos a considerar como a mesma atividade e conservam ambas a despeito de serem repetidamente usadas como sinônimas3 Assim a distinção de Locke entre as mãos que obram working e o corpo que trabalha é de certa forma reminiscente da antiga distinção grega entre o cheirotechnēs o artífice ao qual corresponde o Handwerker alemão e aqueles que como escravos e animais domésticos atendem com seus corpos às necessidades da vida4 ou em grego tō sōmati ergazesthai obram com seus corpos embora mesmo aqui o trabalho e a obra já sejam tratados como idênticos uma vez que a palavra empregada não é ponein trabalho mas ergazesthai obra Somente em um ponto que porém é linguisticamente o mais importante de todos o emprego antigo e o emprego moderno das duas palavras como sinônimas fracassou inteiramente a saber na formação do substantivo correspondente Mais uma vez encontramos aqui completa unanimidade a palavra trabalho labor compreendida como um substantivo jamais designa o produto final o resultado da ação de trabalhar mas permanece como um substantivo verbal classificado com o gerúndio enquanto o nome do próprio produto é invariavelmente derivado da palavra para obra mesmo nos casos em que o uso corrente seguiu tão de perto a evolução moderna que a forma verbal da palavra obra se tornou um tanto antiquada5 O motivo pelo qual essa distinção permaneceu ignorada e sua significação permaneceu inexplorada nos tempos antigos parecenos bast ante óbvio O desprezo pela atividade do trabalho originalmente oriundo de uma apaixonada luta pela libertação da necessidade e de uma impaciência não menos apaixonada com todo esforço que não deixasse vestígio monumento ou grande obra digna de ser lembrada generalizouse na medida das crescentes exigências do tempo dos cidadãos pela vida na pólis e de sua insistência na abstenção skholē de toda atividade que não fosse política até estenderse a tudo quanto exigisse esforço O costume político anterior que precedeu o pleno desenvolvimento da cidadeEstado meramente distinguia entre escravos inimigos vencidos dmōes ou douloi que eram levados para a casa do vencedor juntamente com outros despojos de guerra e lá como moradores da casa oiketai ou familiares trabalhavam como escravos para prover o próprio sustento e o dos seus senhores e dēmiourgoi os operários do povo em geral que tinham liberdade de movimento fora do domínio privado e dentro do domínio público6 Em época mais recente os artesãos aos quais Sólon descrevia ainda como fi lhos de Atena e de Hefesto chegaram a receber outro nome eram chamados de banausoi isto é homens cujo principal interesse é o seu ofício e não a praça pública Somente a partir de fins do século V a pólis passa a classificar as ocupações segundo a quantidade de esforço que exigem de sorte que Aristóteles considerava como mais mesquin has aquelas ocupações nas quais o corpo se desgasta mais Embora ele se recusasse a conceder cidadania aos banausoi teria aceitado pastores e pintores mas não camponeses nem escultores7 Veremos adiante que à parte seu desprezo pelo trabalho os gregos tinham suas razões para não confiar no artífice ou antes na mentalidade do homo faber Essa desconfiança porém só é encontrada em certos períodos ao passo que todas as antigas valorações das atividades humanas inclusive as que como a de Hesíodo supostamente enaltecem o trabalho8 repousam na convicção de que o trabalho do nosso corpo exigido pelas necessidades deste último é servil Consequentemente as ocupações que não consistiam em trabalhar mas fossem empreendidas não por si próprias e sim com a finalidade de atender às necessidades da vida foram assimiladas ao status do trabalho e isso explica as mudanças e as variações na valoração e classificação delas em diferentes épocas e em diferentes lugares A opinião de que o trabalho e a obra eram desdenhados na Antiguidade pelo fato de que somente escravos os exerciam é um preconceito dos historiadores modernos Os antigos raciocinavam de modo contrário achavam necessário ter escravos em virtude da natureza servil de todas as ocupações que fornecessem o necessário para a manutenção da vida 9 Era precisamente com base nisso que a instituição da escravidão era defendida e justificada Trabalhar significava ser escravizado pela necessidade e essa escravização era inerente às condições da vida humana Pelo fato de serem dominados pelas necessidades da vida os homens só podiam conquistar a liberdade dominando outros que eles à força sujeitavam à necessidade A degradação do escravo era um golpe do destino e um destino pior que a morte pois implicava a metamorfose do homem em algo semelhante a um animal doméstico10 Em vista disso qualquer alteração na condição d o escravo como a alforria ou uma mudança na circunstância política geral que elevasse certas ocupações a um nível de relevância pública acarretava automaticamente uma mudança na natureza do escravo11 A instituição da escravidão na Antiguidade embora não em épocas posteriores não foi um artifício para obter mão de obra barata nem um instrumento de exploração para fins de lucro mas sim a tentativa de excluir o trabalho das condições da vida do homem Tudo o que os homens tinham em comum com as outras formas de vida animal não era considerado humano Essa era também por sinal a razão da teoria grega tão mal interpretada da natureza inumana do escravo Aristóteles que sustentou tão explicitamente essa teoria e depois no leito de morte alforriou seus escravos talvez não fosse tão inconsistente como tendem a pensar os modernos Ele negava não a capacidade dos escravos para serem humanos mas somente o emprego da palavra homens para designar membros da espécie humana enquanto estivessem totalmente sujeitos à necessidade 12 E a verdade é que o emprego da palavra animal no conceito de animal laborans ao contrário do uso muito discutível da mesma palavra na expressão animal rationale é inteiramente justificado O animal laborans é realmente apenas uma das espécies animais que povoam a Terra na melhor das hipóteses a mais desenvolvida Não é surpreendente que a distinção entre trabalho e obra tenha sido ignorada na Antiguidade Clás sica A diferenciação entre a casa privada e o domínio político público entre o doméstico que era um escravo e o chefe da casa que era um cidadão entre as atividades que deviam ser ocultadas na privatividade e aquelas que eram dignas de serem vistas ouvidas e lembradas obscureceu e predeterminou todas as outras distinções até restar somente um critério é em privado ou em púb lico que se gasta a maior parte do tempo e do esforço A ocupação é motivada por cura privati negotii ou cura rei publicae pelo cuidado com os negócios privados ou com as coisas públicas13 Com o advento da teoria política os filósofos aboliram até essas distinções que ao menos haviam estabelecido uma diferença entre as atividades ao opor a contemplação indistintamente a todo tipo de atividade Com eles mesmo a atividade política foi rebaixada à posição da necessidade que doravante passou a ser o denominador comum de todas as articulações da vita activa Também não podemos esperar razoavelmente qualquer auxílio do pensamento político cristão que aceitou a distinção feita pelos filósofos e refinoua e como a religião destinase à multidão enquanto a filosofia somente a uns poucos deulhe validade geral obrigatória para todos os homens À primeira vista porém é surpreendente que a era moderna tendo invertido todas as tradições tanto a posição tradicional da ação e da contemplação como a tradicional hierarq uia dentro da vita activa com sua glorificação do trabalho como fonte de todos os valores e sua elevação do animal laborans à posição tradicionalmente ocupada pelo animal rationale não tenha engendrado uma única teoria que distinguisse claramente entre o animal laborans e o homo faber entre o trabalho do nosso corpo e a obra de nossas mãos Ao invés disso encontramos primeiro a distinção entre trabalho pr odutivo e improdutivo e um pouco mais tarde a diferenciação entre obra qualificada e não qualificada e finalmente sobrepondose a ambas por ser aparentemente de significação mais fundamental a divisão de todas as atividades em trabalho manual e intelectual Das três porém somente a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo vai ao fundo da questão e não foi por acaso que os dois grandes teóricos nesse campo Adam Smith e Karl Marx basearam nela toda a estrutura da sua argumentação O motivo da promoção do trabalho na era moderna foi a sua produtividade e a noção aparentemente blasfema de Marx de que o trabalho e não Deus criou o homem ou de que o trabalho e não a razão distingue o homem dos outros animais era apenas a formulação mais radical e consistente de algo com que toda a era moderna concordava14 Ademais tanto Smith quanto Marx estavam de acordo com a opinião pública moderna quando menosprezavam o trabalho improdutivo por considerálo parasitário realmente uma espécie de perversão do trabalho como se fosse indigna desse nome toda atividade que não enriquecesse o mundo Marx certamente compartilhava do desprezo de Smith pelos criados domésticos que como hóspedes preguiçosos nada deixam atrás de si em troca do que consomem15 No entanto todas as eras anteriores à era moderna ao identificarem a condição do trabalhador com a escravidão tinham em mente precisamente esses criados domésticos esses habitantes do lar oiketai ou f amiliares que trabalhavam em vista da mera subsistência e eram necess ários para o consumo isento de esforço e não para a produção O que eles deixaram atrás de si em troca do que consumiam foi nada mais nada menos que a liberdade ou na linguagem moderna a produtividade potencial de seus senhores Em outras palavras a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo contém embora eivada de preconceito a distinção mais fundamental entre obra e trabalho16 Realmente é típico de todo trabalho nada deixar atrás de si que o resultado do seu esforço seja consumido quase tão depressa quanto o esforço é despendido E no entanto esse esforço a despeito de sua futilidade decorre de uma enorme premência e é motivado por um impulso mais poderoso que qualquer outro pois a própria vida depende dele A era moderna em geral e Karl Marx em particular fascinados por assim dizer pela atual produtividade sem precedentes da humanidade ocidental tendiam quase irresistivelmente a considerar todo trabalho como obra e a falar do animal laborans em termos muito mais adequados ao homo faber como a esperar que faltasse apenas um passo para eliminar totalmente o trabalho e a necessidade17 Sem dúvida a evolução histórica que tirou o trabalho de sua ocultação e o guindou ao domínio público onde pôde ser organizado e dividido18 constituiu poderoso argumento no desenvolvimento dessas teorias Contudo um fato ainda mais significativo nesse particular já pressentido pelos economistas clássicos e claramente descoberto e enunciado por Karl Marx é que a própria atividade do trabalho independentemente de circunstâncias históricas e de sua localização no domínio privado ou no domínio público possui realmente uma produtividade própria por mais fúteis ou não duráveis que sejam os seus produtos Essa produtividade não reside em qualquer um dos produtos do trabalho mas na força humana cujo vigor não se esgota depois que ela produz os meios de sua subsistência e sobrevivência mas é capaz de produzir um excedente isto é mais que o necessário à sua própria reprodução Uma vez que não é o próprio trabalho mas o excedente da força de trabalho humana Arbeitskraft que explica a produtividade do trabalho a introdução desse termo por Marx como Engels observou corretamente constitui o elemento mais original e mais revolucionário de todo o seu sistema19 Ao contrário da produtividade da ob ra que acrescenta novos objetos ao artifício humano a produtividade da força de trabalho só incidentalmente produz objetos e preocupase fundamentalmente com os meios de sua própria reprodução além disso como a sua força não se extingue quando sua reprodução já está assegurada ela pode ser utilizada para a reprodução de mais de um processo vital mas nunca produz outra coisa senão vida20 Mediante violenta opressão em uma sociedade de escravos ou mediante a exploração na sociedade capitalista da época de Marx essa produtividade pode ser canalizada de tal forma que o trabalho de alguns é bastante para a vida de todos Desse ponto de vista puramente social que é o ponto de vista de toda a era moderna mas que recebeu sua mais coerente e grandiosa expressão na obra de Marx todo trabalho é produtivo de modo que perde sua validade a distinção anterior entre a realização de tarefas servis que não deixam vestígios e a produção de coisas suficientemente duráveis para que sejam acumuladas Como vimos antes o ponto de vista social é idêntico à interpretação que leva em conta apenas o processo vital do gênero humano e dentro de seu sistema de referência todas as coisas tornamse o bjetos de consumo Em uma sociedade completamente socializada cuja única finalidade fosse a sustentação do processo vital e é esse o ideal infelizmente nada utópico que orienta as teorias de Marx21 a distinção entre trabalho e obra desapareceria completamente toda obra se tornaria trabalho uma vez que todas as coisas seriam concebidas não em sua qualidade objetiva mundana mas como resultados da força viva do trabalho e como funções de processo vital22 É interessante notar que as distinções entre obra qual ificada e não qualificada e entre obra manual e intelectual não desempenham papel algum na economia política clássica nem na obra de Marx Comparadas à produtividade do trabalho essas distinções são realmente de importância secundária Toda atividade exige certo grau de qualificação tanto as atividades de limpar e de cozinhar como a de escrever um livro ou construir uma casa A distinção não se refere a atividades diferentes mas apenas assinala certos estágios e qualidades em cada uma del as Ela adquiriu certa importância com a moderna divisão do trabalho na qual tarefas originalmente confiadas aos jovens e aos inexperientes congelaramse como ocupações vitalícias Mas essa consequência da divisão do trabalho na qual uma atividade é dividida em tantas partes minúsculas que cada executante especializado precisa somente de um mínimo de qualificação tende a abolir completamente o trabalho qualificado como Marx acertadamente previu O resultado é que o que é comprado e vendido no mercado de trabalho não é a qualifi cação individual mas a força de trabalho da qual todo ser humano deve possuir aproximadamente a mesma quantidade Além disto como a obra não qualificada é uma contradição a distinção é válida somente para a atividade do trabalho e a tentativa de utilizála como principal sistema de referência já indica que a distinção entre trabalho e o bra foi abandonada em favor do trabalho Bem diferente é o caso da categoria mais popular da obra manual e intelectual Aqui a conexão subjacente entre o que trabalha com a mão e o que trabalha com a cabeça é mais uma vez o processo de trabalho no último caso realizado pela cabeça e no primeiro por outra parte do corpo Contudo o pensamento que se presume ser a atividade da cabeça é ainda menos produtivo que o trabalho embora de certa forma se assemelhe a este último uma vez que é também um processo que provavelmente cessa apenas junto com a vida Se o trabal ho não deixa atrás de si vestígio permanente o pensamento não deixa absolutamente coisa alguma de tangível Por si mesmo o pensamento jamais se materializa em objetos Sempre que o operário worker intelectual deseja manifestar seus pensamentos tem de usar as mãos e adquirir qualificação manual como qualquer outro que realiza uma o bra Em outras palavras o pensamento e a obra são duas atividades diferentes que nunca coincidem completamente o pensador que desejar dar a conhecer ao mundo o conteúdo de seus pensamentos deve antes de tudo parar de pensar e lembrarse de seus pensamentos Neste como em todos os casos a lembrança prepara o intangível e o fútil para sua materialização final é o começo do processo da obra e como o exame que o artesão faz do modelo que lhe guiará a obra o seu estágio mais imaterial A obra sempre requer em seguida algum material sobre o qual possa ser realizada e que mediante a fabricação a atividade do homo faber seja transformada em um objeto mundano A qualidade específica de obra da obra intelectual devese à obra de nossas mãos tanto quanto a de qualquer outro tipo de obra Parece plausível e realmente é muito comum conectar e justificar a moderna distinção entre o trabalho intelectual e o manual com a antiga dis tinção entre artes liberais e artes servis No entanto o que distingue as artes liberais das artes servis não é de forma alguma um grau superior de inteligência nem o fato de que o artista liberal opera com o cérebro enquanto o sórdido negociante opera works com suas mãos O critério antigo é basicamente político Aquelas ocupações que envolvem prudentia a capacidade de julgamento prudente que é a virtude do estadista e as profissões de relevância pública ad hominum utilitatem23 como a arquitetura a medicina e a agricultura24 são liberais Todos os ofícios tanto o ofício do escriba como o do carpinteiro são sórdidos indignos de um cidadão completo e os piores são aqueles que consideraríamos os mais úteis como os dos vendedores de peixe açougueiros cozinheiros negociantes de aves domésticas e pescadores25 Mas nem mesmo essas atividades são necessariamente puro trabalho Há ainda uma terceira cat egoria na qual a labuta e o esforço a operae em contraposição ao opus a mera atividade em contraposição à obra são pagos e em tais casos o próprio salário é sinal de escravidão26 Embora sua origem possa ser remontada à Idade Média27 a distinção entre a obra manual e a obra intelectual é moderna e tem duas causas bastante diferentes ambas não obstante igualmente características do clima geral da era moderna Uma vez que nas condições modernas toda ocupação deveria demonstrar sua utilidade para a sociedade em geral e como a utilidade das ocupações intelectuais se tornara mais que duvidosa dada a moderna glorificação do trabalho era apenas natural que também os intelectuais desejassem ser considerados como membros da população operária Ao mesmo tempo porém e em contradição apenas aparente com esse desdobramento a necessidade e a estima da sociedade em relação a certas realizações intelectuais aumentaram em uma medida sem precedentes em nossa história com a exceção dos séculos de declínio do Império Romano Pode convir lembrar nesse contexto que em toda a história antiga os serviços intelectuais dos escribas quer atendessem a necessidades do domínio público quer a do domínio privado eram realizados por escravos e classificados consoante a condição deles Somente a burocratização do Império Romano e a concomitante ascensão política e social dos imperadores levaram a uma reavaliação dos serviços intelectuais28 Como o intelectual realmente não é um operário que como todos os outros operários desde o mais humilde artesão até o maior dos artistas esteja empenhado em acrescentar mais uma coisa se possível durável ao artifício humano ele se assemelha mais ao criado doméstico de Adam Smith que a qualquer outro ainda que a sua função seja menos manter intacto o processo da vida e proporcionar sua regeneração que cuidar da manutenção das várias máquinas burocráticas gigantescas cujos processos consomem os seus serviços e devoram os seus produtos tão rápida e impiedosamente quanto o processo biológico da vida 29 12 O caráterdecoisa do mundo Odesprezo pelo trabalho na teoria antiga e sua glorificação na teoria moderna baseavamse ambos na atitude subjetiva ou na atividade do trabalhador um desconfiando de seu doloroso esforço outra louvando sua produtividade A subjetivi dade dessa forma de abordagem talvez seja mais óbvia na distinção entre trabalho leve e pesado mas já vimos que pelo menos no caso de Marx que sendo o maior dos modernos teóricos do trabalho necessariamente estabelece uma espécie de pedra de toque em tais discussões a produtividade do trabalho é medida e aferida em relação às exigências do processo vital para fins da própria reprodução reside no excedente potencial inerente à força de trabalho humana e não na qualidade ou no caráter das coisas que ele produz Similarmente a opinião grega para a qual os pintores eram superiores aos escultores certamente não tinha por base algum respeito maior pela pintura30 Parece que a distinção entre trabalho e obra que os nossos teóricos tão obstinadamente negligenciaram e nossas línguas tão aferradamente conservam tornase realmente apenas uma diferença de grau quando não se leva em conta o caráter mundano da coisa produzida sua localização sua função e a duração de sua permanência no mundo A distinção entre um pão cuja expectativa de vida no mundo dificilmente ultrapassa um dia e uma mesa que pode facilmente sobreviver a gerações de homens é sem dúvida muito mais óbvia e decisiva que a diferença entre um padeiro e um carpinteiro A curiosa discrepância entre a linguagem e a teoria que observamos no início resulta então em uma discrepância entre a linguagem objetiva que falamos orientada para o mundo worldoriented e as teorias subjetivas orientadas para o homem que usamos em nossa s tentativas de compreender É a linguagem e são as experiências humanas fundamentais subjacentes a ela e não a teoria que nos ensinam que as coisas do mundo entre as quais transcorre a vita activa são de natureza muito diferente e produzidas por tipos muito diferentes de atividades Vistos como parte do mundo os produtos da obra e não os produtos do trabalho garantem a permanência e a durabilidade sem as quais um mundo absolutamente não seria possível É dentro desse mundo de coisas duráveis que encontramos os bens de consumo com os quais a vida assegura os meios de sua sobrevivência Exigidas por nossos corpos e produzidas pelo trabalho deles mas sem estabilidade própria essas coisas destinadas ao consumo incessante aparecem e desaparecem em um ambiente de coisas que não são consumidas mas usadas e às quais à medida que as usamos nos habituamos e acostumamos Como tais elas geram a familiaridade do mundo seus costumes e hábitos de intercâmbio entre os homens e as coisas bem como entre homens e homens O que os bens de consumo são para a vida humana os objetos de uso são para o mundo humano É destes que os bens de consumo derivam o seu caráterdecoisa thingcharacter e a linguagem que não permite que a atividade do trabalho produza algo tão sólido e não verbal como um substantivo sugere a forte probabilidade de que nem mesmo saberíamos o que uma coisa é se não tivéssemos diante de nós a obra de nossas mã os Diferentes tanto dos bens de consumo quanto dos objetos de uso há finalmente os produtos da ação e do discurso que constituem juntos a textura das relações e dos assuntos humanos Por si mesmos são não apenas destituídos da tangibilidade das outras coisas mas são ainda menos duráveis e mais fúteis que o que produzimos para o consumo Sua realidade depende inteiramente da pluralidade humana da presença constante de outros que possam ver e ouvir e portanto atestar sua exi stência Agir e falar são ainda manifestações externas da vida humana e esta só conhece uma atividade que embora relacionada com o mundo exterior de muitas maneiras não se manifesta nele necessariamente nem precisa ser ouvida vista usada ou consumida para ser real a atividade de pensar Vistos porém em sua mundanidade a ação o discurso e o pensamento têm muito mais em comum entre si que qualquer um deles tem com a obra ou com o trabalho Por si próprios não produzem nem geram coisa alguma são tão fúteis quanto a vida Para que se tornem coisas mundanas isto é feitos fatos eventos e modelos de pensamentos ou ideias devem primeiro ser vistos ouvidos e lembrados e então transformados em coisas reificados por assim dizer em recital de poesia na página escrita ou no livro impresso em pintura ou escultura em algum tipo de registro documento ou monumento Todo o mundo factual dos assuntos humanos depende para sua realidade e existência contínua em primeiro lugar da presença de outros que tenham visto e ouvido e que se lembram e em segundo lugar da transformação do intangível na tangib ilidade das coisas Sem a lembrança e sem a reificação de que a lembrança necessita para sua realização e que realmente a tornam como afirmavam os gregos a mãe de todas as artes as atividades vivas da ação do discurso e do pensamento perderiam sua realidade ao fim de cada processo e desapareceriam como se nunca houvessem existido A materializaç ão que eles devem sofrer para que de algum modo permaneçam no mundo ocorre ao preço de que sempre a letra morta substitui algo que nasceu do espírito vivo e que realmente durante um momento fugaz existiu como espírito vivo Têm de pagar esse preço porque são de natureza inteiramente não mundana e portanto requerem o auxílio de uma atividade de natureza completamente diferente dependem para sua realidade e materialização da mesma manufatura workmanship que constrói as outras coisas do artifício humano A realidade e a confiabilidade do mundo humano repousam basicamente no fato de que estamos rodeados de coisas mais permanentes que a atividade por meio da qual foram produzidas e potencialmente ainda mais permanentes que as vidas de seus autores A vida humana na medida em que é construtorademundo world building está empenhada em um constante processo de reificação e o grau de mundanidade das coisas produzidas cuja soma total constitui o artifício humano depende de sua maior ou menor permanência no mundo 13 Trabalho e vida Das coisas tangíveis as menos duráveis são aquelas necessárias ao processo da vida Seu consumo mal sobrevive ao ato de sua produção nas palavras de Locke todas essas boas coisas que são realmente úteis à vida do homem à necessidade de subsistir são geralmente de curta duração de tal modo que se não forem consumidas pelo uso se deteriorarão e perecerão por si mesmas31 Após uma breve permanência no mundo retornam ao processo natural que as produziu seja por meio da absorção no processo vital do animal humano seja por meio da deterioração e sob a forma que lhes dá o homem por meio da qual adquirem seu lugar efêmero no mundo de coisas feito pelo homem desaparecem mais rapidamente que qualquer outra parte do mundo Consideradas em sua mundanidade são as coisas menos mundanas e ao mesmo tempo as mais naturais Embora feitas pelo homem vêm e vão são produzidas e consumidas de acordo com o semprerecorrente movimento cíclico da natureza Cíclico também é o movimento do organismo vivo incluindo o corpo humano enquanto ele pode suportar o processo que permeia sua existência e o torna vivo A vida é um processo que em toda parte consome a durabilidade desgastaa e a faz desaparecer até que finalmente a matéria morta resultado de processos vitais pequenos singulares e cíclicos retorna ao gigantesco círculo global da natureza onde não existe começo nem fim e onde todas as coisas naturais volteiam em imutável e imorredoura repetição A natureza e o movimento cíclico que ela impõe a todas as coisas vivas desconhecem o nascimento e a morte tais como os compreendemos O nascimento e a morte de seres humanos não são simples ocorrências naturais mas referemse a um mundo no qual aparecem e do qual partem indivíduos singulares entes únicos impermutáveis e irrepetíveis O nascimento e a morte pressupõem um mundo que não está em constante movimento mas cuja durabilidade e relativa permanência tornam possível o aparecimento e o desaparecimento um mundo que existia antes de qualquer indivíduo aparecer nele e que sobreviverá à sua partida final Sem um mundo no qual os homens nascem e do qual se vão com a morte haveria apenas um imutável eterno retorno a perenidade imortal da espécie humana como a de todas as outras espécies animais Uma filosofia da vida que não chegue como Nietzsche à afirmação do eterno retorno eiwige Wiederkehr como o princípio supremo de todo ente simplesmente não sabe do que está falando A palavra vida porém tem significado inteiramente diferente quando é relacionada ao mundo e empregada para designar o intervalo de tempo entre o nascimento e a morte Limitada por u m começo e um fim isto é pelos dois supremos eventos do aparecimento e do desaparecimento no mundo a vida segue uma traje tória estritamente linear cujo movimento não obstante é transmitido pela força motriz da vida biológica que o homem compartilha com outras coisas vivas e que conserva para sempre o movimento cíclico da natureza A principal característica dessa vida especificamente humana cujo aparecimento e desaparecimento constituem eventos mundanos é que ela é plena de eventos que no fim pode m ser narrados como uma estória story e estabelecer uma biografia era essa vida bios em contraposição à mera zōē que Aristóteles dizia ser de certa forma uma espécie de praxis32 Pois a ação e o discurso que como vimos estavam intimamente interligados na compreensão grega da política são realmente duas atividades cujo resultado final será sempre uma história suficientemente coerente para ser narrada por mais acidentais ou fortuitos que possam parecer os eventos singulares e suas causas É somente dentro do mundo humano que o movimento cíclico da natureza se manifesta como crescimento e declínio Estes como o nascimento e a morte não são ocorrências naturais propriamente ditas não têm lugar no ciclo incessante e incansável no qual volteia perpetuamente todo o lar da natureza Somente quando ingressam no mundo feito pelo homem os processos da natureza podem ser descritos como crescimento e declínio somente quando consideramos os produtos da natureza determinada árvore ou determinado cachorro como coisas individuais retirandoos com isso do seu ambiente natural e colocandoos em nosso mundo é que eles começam a crescer e declinar Embora a natureza se manifeste na existência humana por meio do movimento circular de nossas funções corporais ela faz sua presença ser sentida no mundo feito pelo homem por meio da constante ameaça de sobrepujálo ou fazêlo perecer A característica comum ao processo biológico no homem e ao processo de crescimento e declínio no mundo é que ambos fazem parte do movimento cíclico e portanto infinitamente repetitivo da natureza todas as atividades humanas provocadas pela necessidade de fazer face a esses processos estão vinculadas aos ciclos recorrentes da natureza e não têm qualquer começo ou fim propriamente dito Ao contrário da atividade da obra working que termina quando o objeto está acabado pronto para ser acrescentado ao mundo comum de coisas a atividade do trabalho laboring movese sempre no mesmo círculo prescrito pelo processo biológico do organismo vivo e o fim de suas fadigas e penas só advém com a morte desse organismo33 Ao definir o trabalho como o metabolismo do homem com a natureza em cujo processo o material da natureza é adaptado por uma mudança de forma às necessidades do homem de sorte que o trabalho se inco rpora a seu sujeito Marx deixou claro que estava falando fisiologicamente e que o trabalho e o consumo são apenas dois estágios do ciclo semprerecorrente da vida biológica34 Esse ciclo precisa ser sustentado pelo consumo e a atividade que provê os meios de consumo é o trabalho35 Tudo o que o trabalho produz destinase a alimentar quase imediatamente o processo da vida humana e esse consumo regenerando o processo vital produz ou antes reproduz nova força de trabalho de que o corpo necessita para seu posterior sustento36 Do ponto de vista das exigências do processo vital a necessidade de subsistir como afirmou Locke trabalhar e consumir seguem um ao outro tão de perto que quase constituem um único movimento o qual mal termina tem de começar tudo de novo A necessidade de subsistir comanda tanto o trabalho quanto o consumo e o trabalho quando incorpora reúne e misturase corporalmente às coisas fornecidas pela natureza37 realiza ativamente aquilo que o corpo faz mais intimamente quando consome seu alimento Ambos são processos devoradores que se apossam da matéria e a destroem e a obra realizada pelo trabalho em seu material é apenas o preparo para a destruição final deste último É verdade que esse aspecto destrutivo e devorador da atividade do trabalho só é visível do ponto de vista do mundo e em oposição à obra que não prepara a matéria para incorporála mas transformaa em material para operar nele work upon e utilizar o produto acabado Do ponto de vista da natureza é a obra que é destrutiva mais que o trabalho uma vez que o processo da obra subtrai a matéria das mãos da natureza sem a devolver a esta no curso rápido do metabolismo natural do corpo vivo Igualmente vinculada aos ciclos recorrentes dos movimentos naturais mas não tão prementemente imposta ao homem pela condição da vida humana38 é a segunda tarefa do trabalho sua luta constante e interminável contra os processos de crescimento e declínio mediante os quais a natureza permanentemente invade o artifício humano ameaçando a durabilidade do mundo e seu préstimo para o uso humano A proteção e a preservação do mundo contra os processos naturais são duas dessas labutas que exigem o desempenho monótono de tarefas diariamente repetidas Ao contrário do exercício essencialmente pacífico por meio do qual o trabalho obedece às ordens das necessidades imediatas do corpo essa luta trabalhosa embora possa ser ainda menos produtiva que o metabolismo direto do homem com a natureza tem uma relação muito mais íntima com o mundo que ela defende contra a natureza Nas lendas e narrativas mitológicas antigas ela assumiu muitas vezes a grandeza das lutas heroicas contra forças infinitamente superiores como no caso de Hércules entre cujos 12 trabalhos heroicos constava o de limpar os estábulos de Augias O emprego medieval da palavra trabalho travail arebeit revela uma conotação similar de feito heroico que exige grande força e coragem e é realizado com espírito de luta Mas a luta que o corpo humano trava diariamente para manter limpo o mundo e evitarlhe o declínio tem pouca semelhança com feitos heroicos a persistência que ela requer para que se repare novamente a cada dia o esgotamento de ontem não é coragem e o que torna o esforço tão doloroso não é o perigo mas a implacável repetição Os trabalhos de Hércules têm em comum com todos os grandes feitos o fato de serem únicos mas infelizmente é somente o estábulo mitológico de Augias que fica limpo depois de despendido o esforço e realizada a tarefa 14 Trabalho e fertilidade Asúbita e espetacular ascensão do trabalho da mais baixa e desprezível posição à mais alta categoria como a mais estimada de todas as atividades humanas começou quando Locke descobriu que o trabalho é a fonte de toda propriedade Prosseguiu quando Adam Smith afirmou que o trabalho era a fonte de toda riqueza e atingiu o clímax no sistema do trabalho39 de Marx no qual o trabalho passou a ser a fonte de toda produtividade e a expressão da própria humanidade do homem Dos três porém somente Marx estava interessado no trabalho como tal Locke preocupavase com a instituição da propriedade privada como a base da sociedade enquanto Smith pretendia explicar e assegurar a progressão desenfreada de uma acumulação ilimitada de riqueza Todos eles porém embora Marx com maior força e consistência defendiam que o trabalho fosse visto como a suprema capacidade humana de construçãodomundo worldbuilding e como o trabalho é na verdade a mais natural e a menos mundana das atividades do homem cada um deles e novamente nenhum mais que Marx viuse enredado em algumas contradições genuínas Parece ser da própria natureza desse assunto que a mais óbvia solução dessas contradições ou antes o motivo mais óbvio pelo qual esses grandes autores não se deram conta delas é o fato de que equacionam a obra com o trabalho de tal forma que atribuem ao trabalho certas faculdades que somente a obra possui Esse equacionamento sempre leva a absurdos patentes embora geralmente não tão nitidamente manifestos quanto na seguinte frase de Veblen O indício duradouro do trabalho produtivo é o seu produto material geralmente um artigo de consumo40 Aqui a prova duradoura que ele menciona de início por necessitar dela para a suposta produtividade do trabalho é imediatamente destruída pelo consumo do produto com o qual ele termina forçado por assim dizer pela evidência factual do próprio fenômeno Assim para poupar o trabalho de sua manifesta desgraça de produzir somente coisas de curta duração Locke foi forçado a introduzir o dinheiro uma coisa duradoura que os homens podem conservar sem que se estrague uma espécie de deus ex machina sem o qual o corpo que trabalha em obediência ao seu processo vital jamais poderia vir a ser a origem de algo tão permanente e durável quanto a propriedade visto que não existem coisas duráveis a serem conservadas para sobreviver à atividade do processo de trabalho E mesmo Marx que realmente definiu o homem como um animal laborans teve d e admitir que a produtividade do trabalho propriamente dito só tem início com a reificação Vergegenständlichung com a construção de um mundo objetivo de coisas Erzeugung einer gegenständlichen Welt41 Mas o esforço do trabalho jamais poupa o animal que trabalha de repetilo inteiramente mais uma vez e permanece portanto como uma eterna necessidade imposta pela natureza42 Quando Marx insiste que o processo de trabalho termina no produto43 esquece sua própria definição desse processo como o metabolismo entre o homem e a natureza no qual o produto é imediatamente incorporado consumido e destruído pelo processo vital do corpo Uma vez que nem Locke nem Smith preocuparamse com o trabalho como tal ambos podiam permitirse admitir certas distinções que na verdade equivaleriam a distinguir em princípio entre trabalho e obra não fosse por uma interpretação que considera como simplesmente irrelevantes os aspectos genuínos do trabalho Assim Smith chama de trabalho improdutivo todas as atividades relacionadas com o consumo como se se tratasse de um aspecto acidental e irrelevante de algo cuja verdadeira natureza fosse ser produtivo O desdém com que ele descreve como tarefas e serviços domésticos geralmente se perdem no instante em que são realizados e raramente deixam atrás de si algum vestígio ou valor44 relacionase muito mais proximamente com a opinião prémoderna sobre o trabalho que com a moderna glorificação dele Smith e Locke estavam ainda bastante conscientes do fato de que nem todo tipo de trabalho estabelece em tudo uma diferença de valor45 e que há certo tipo de atividade que nada acrescenta ao valor dos materiais sobre os quais opera46 É verdade também que o trabalho incorpora à natureza algo que é próprio ao homem mas a proporção entre o que a natureza dá as boas coisas e o que o homem lhe acrescenta é exatamente o contrário no caso dos produtos do trabalho em comparação com os produtos da obra As boas coisas destinadas ao consumo jamais perdem completamente seu caráter natural e o grão de trigo jamais desaparece totalmente no pão como a árvore desapareceu na mesa Assim embora Locke tenha prestado pouca atenção à sua própria distinção entre o trabalho do nosso corpo e a obra de nossas mãos tinha de reconhecer a diferença entre coisas de curta duração e aquelas suficientemente duradouras para que os homens possam conserválas sem que se estraguem47 A dificuldade era a mesma para Smith e Locke os produtos deviam permanecer por um tempo suficientemente longo no mundo das coisas tangíveis para se tornarem valiosos em vista do que pouco importa se o valor era definido por Locke como algo que pudesse ser conservado e transformado em propriedade ou por Smith como algo que durasse o tempo suficiente para ser trocado por outra coisa Mas esses são pontos secundários quando comparados à contradição fundamental que atravessa como um fio vermelho todo o pensamento de Marx e que está presente tanto no terceiro volume de O capital quanto nas obras do jovem Marx A atitude de Marx em relação ao trabalho em relação ao próprio foco de seu pensamento nunca deixou de ser equívoca48 Embora o trabalho fosse uma eterna necessida de imposta pela natureza e a mais humana e produtiva das atividades do homem a revolução segundo Marx não tinha a tarefa de emancipar as classes trabalhadoras mas de emancipar o homem do trabalho somente quando o trabalho é abolido pode o reino da liberdade suplantar o reino da necessidade Pois o reino da liberdade começa somente onde cessa o trabalho imposto pela carência e pela utilidade exterior onde termina o império das necessidades físicas imediatas49 Contradições fundamentais e flagrantes como essas raramente ocorrem em escritores de segunda categoria no caso dos grandes autores conduzem ao cerne de sua obra No caso de Marx cuja lealdade e integridade na descrição dos fenômenos tal como estes se apresentavam aos seus olhos são indubitáveis as discrepâncias importantes observadas por todos os estudiosos de sua obra não podem ser atribuídas à diferença entre o ponto de vista científico do historiador e o ponto de vista moral do profeta50 nem a um movimento dialético que exigisse o negativo ou o mal para produzir o positivo ou o bem O fato é que em todos os estágios de sua obra ele define o homem como um animal laborans e então o conduz para uma sociedade na qual essa força a maior e mais humana de todas já não é necessária Ficamos com a alternativa muito angustiante entre a escravidão produtiva e a liberdade improdutiva Surge assim a questão por que Locke e todos os seus sucessores a despeito de suas próprias intuições se apegaram tão obstinadamente ao trabalho como origem da propriedade da riqueza de todos os valores e finalmente da própria humanidade do homem Ou em outras palavras que experiências inerentes à atividade do trabalho passaram a ser de tão importância para a era moderna Historicamente os teóricos políticos do século XVII em diante viramse frente a frente com um processo até então inaudito de crescimento da riqu eza da propriedade e da aquisição Tentando explicar esse constante crescimento tiveram a atenção naturalmente voltada para o fenômeno do processo progressivo de sorte que por motivos que teremos de discutir mais tarde51 o conceito de processo veio a ser o termo chave da nova era bem como das ciências históricas e naturais que ela desenvolveu Desde os seus primórdios esse processo dada sua aparente interminabilidade foi concebido como um pr ocesso natural e mais especificamente à imagem do processo vital A mais grosseira superstição da era moderna de que dinheiro produz dinheiro e sua mais aguda intuição polític a de que poder gera poder devem sua plausibilidade à metáfora subjacente da fertilidade natural da vida De todas as atividades humanas somente o trabalho e não a ação nem a obra é interminável prosseguindo automaticamente em consonância com a vida fora do escopo das decisões voluntárias ou dos propósitos humanamente significativ os Talvez nada indique mais claramente o nível do pensamento de Marx e a fidelidade de suas descrições à realidade fenomenológica que o fato de ele haver baseado toda a sua teoria na compreensão do trabalho e da procriação como duas modalidades do mesmo fértil processo vital O trabalho era para ele a reprodução da vida do próprio indivíduo que lhe assegurava a sobrevivência enquanto a procriação era a produção de vida alheia que assegurava a sobrevivência da espécie 52 Cronologicamente essa intuição é a origem jamais esquecida da teoria que ele elaborou em seguida ao passar a chamar de trabalho abstrato a força de trabalho de um organismo vivo e ao conceber o excedente do trabalho como aquela quantidade de força de trabalho remanescente depois de o trabalhador ter produzido os meios para sua reprodução Com isso ele alcançou uma profundidade de experiência jamais atingida por qualquer um dos seus precursores aos quais em todo caso devia quase todas as suas inspirações decisivas ou qualquer um dos seus sucessores Ajustou sua teoria a teoria da era moderna às mais antigas e persistentes intuições sobre a natureza do trabalho que segundo as tradições hebraica e clássica estava tão intimamente ligado à vida quanto o nascimento Da mesma forma o verdadeiro significado da recémdescoberta produtividade do trabalho só se torna evidente na obra de Marx na qual repousa sobre o equacionamento da produtividade com a fertilidade de sorte que o famoso desdobramento das forças produti vas da humanidade em uma sociedade abundante em coisas boas realmente não obedece a outra lei nem é sujeita a outra necessidade que não seja o mandamento original Crescei e multiplicaivos no qual é como se a voz da própria natureza falasse conosco A fertilidade do metabolismo do homem com a natureza decorrente do excesso natural da força de trabalho participa ainda da superabundância que vemos por toda parte do lar da natureza bênção ou a alegria do trabalho é o modo humano de experimentar a pura satisfação de se estar vivo que temos em comum com todas as criaturas vivas e é ainda o único modo de os homens também poderem permanecer e voltear com contento no círculo prescrito pela natureza labutando e descansando trabalhando e consumindo com a mesma regularidade feliz e sem propósito com a qual o dia e a noite a vida e a morte sucedem um ao outro A recompensa das fadigas e penas repousa na fertilidade da natureza na confiança serena de que aquele que nas fadigas e penas fez sua parte permanece uma parte da natureza no futuro de seus filhos e dos filhos de seus filhos O Antigo Testamento que ao contrário da Antiguidade Clássica sustentava que a vida é sagrada e que por conseguinte nem a morte nem o trabalho são um mal e de modo algum um argumento contra a vida53 mostra nas estórias stories dos patriarcas como eles viviam despreocupados com a morte como prescindiam da imortalidade individual e terrena ou da garantia da eternidade de suas almas e como a morte lhes alcançava sob a forma familiar da noite e do repouso tranquilo e eterno numa boa velhice cheia de anos A bênção da vida como um todo inerente ao trab alho nunca pode ser encontrada na obra e não deve ser confundida com o período de alívio e alegria inevitavelmente breve que segue a realização e acompanha o acabamento A bênção do trabalho consiste em que o esforço e a gratificação seguem um ao outro tão proximamente quanto a produção e o consumo dos meios de subsistência de modo que a felicidade é concomitante ao processo da mesma forma como o prazer é concomitante ao funcionamento de um corpo sadio A felicidade do maior número na qual generalizamos e vulgarizamos o contentamento que sempre abençoou a vida terrena conceituou em um ideal a realidade fundamental de uma humani dade trabalhadora O direito de buscar essa felicidade é realmente tão inegável quanto o direito à vida é inclusive idêntico a ela Mas nada tem em comum com a boa fortuna que é rara e nunca dura e não pode ser procurada porque depende da sorte e daquilo que o acaso dá e toma embora a maioria das pessoas em sua busca de felicidade persiga a boa fortuna e se torne infeliz mesmo quando a encontra por querer conservar e desfrutar a sorte como se esta fosse uma inesgotável abundância de boas coisas Não existe felicidade duradoura fora do ciclo prescrito de exaustão dolorosa e regeneração prazerosa e tudo o que desequilibra esse ciclo a pobreza e a miséria nas quais a exaustão é seguida pela penúria ao invés da regeneração ou grande riqueza e uma vida inteiramente isenta de esforço na qual o tédio toma o lugar da exaustão e os moinhos da necessidade do consumo e da digestão trituram até a morte impiedosa e esterilmente um corpo humano impotente arruína a felicidade elementar que advém de se estar vivo A força da vida é a fertilidade O organismo vivo não se esgota após garantir o necessário à sua reprodução seu excedente está em sua potencial multiplicação O consistente naturalismo de Marx descobriu a força de trabalho como modalidade especificamente humana de força vital tão capaz de criar um excedente quanto o é a própria nat ureza Como Marx estava quase exclusivamente interessado nesse processo o processo das forças produtivas da sociedade em cuja vida como na vida de qualquer espécie animal a produção e o consumo sempre se equilibram a questão da existência separada de coisas mundanas cuja durabilidade sobrevive e resiste aos processos devoradores da vida jamais lhe ocorreu Do ponto de vista da vida da espécie todas as atividades realmente encontram seu denominador comum na atividade do trabalho e o único critério de distinção que resta é a abundância ou escassez de bens que alimentam o processo vital Quando cada coisa se torna objeto de consumo perde toda importância o fato de que o excedente do trabalho não altera a natureza a curta duração dos produtos e isso se manifesta na obra de Marx no desprezo com que ele trata as renitentes distinções de seus precursores entre trabalho produtivo e improdutivo ou entre trabalho qualificado e não qualificado O motivo pelo qual os precursores de Marx não puderam se esquivar dessas distinções que essencialmente equivalem à distinção mais fundamental entre obra e trabalho não consistiu em que eles fossem menos científicos e sim que escreviam com base na premissa da p ropriedade privada ou pelo menos da apropriação da riqueza nacional pelo indivíduo Para que se estabeleça a propriedade a mera abundância jamais pode ser suficiente os produtos do trabalho não se tornam mais duráveis por serem abundantes e não podem s er amontoados e armazenados para juntarse à propriedade de um homem pelo contrário é bem provável que desapareçam no processo de apropriação o u pereçam inutilmente caso não sejam consumidos antes que se estraguem 15 A privatividade da propriedade e da riqueza Àprimeira vista pode parecer realmente estranho que uma teoria que terminou de maneira tão concludente na abolição de toda propriedade tenha partido da fundação teórica da propriedade privada Tal estranheza porém é um pouco mitigada quando lembramos o aspecto agudamente polêmico da preocupação da era moderna com a propriedade cujos direitos foram afirmados explicitamente contra o domínio comum e contra o Estado Como nenhuma teoria política anterior ao socialismo e ao comunismo propusera estabelecer uma sociedade inteiramente destituída de propriedade e como nenhum governo antes do século XX demonstrara séria inclinação para expropriar os seus cidadãos o conteúdo da nova teoria não podia ser inspirado pela necessidade de proteger os direitos de propriedade contra uma possível intrusão da administração governamental O fato é que naquela época ao contrário de agora quando todas as teorias da propriedade encontramse obviamente na defensiva os economistas não estavam absolutamente na de fensiva ao contrário eram abertamente hostis a toda a esfera do governo que na melhor das hipóteses era tido como um mal necessário um reflexo da natureza humana 54 e na pior como parasita da vida da sociedade que sem ele seria sadia55 O que a era moderna defendeu tão inflamadamente jamais foi a propriedade como tal mas a busca desenfreada de mais propriedade ou da apropriação em contraposição a todos os órgãos que sustentavam a permanência morta de um mundo comum a era moderna travou suas batalhas em nome da vida da vida da sociedade Não resta dúvida de que como o processo natural da vida reside no corpo nenhuma outra atividade é tão imediatamente vinculada à vida quanto o trabalho Locke não poderia ficar satisfeito com a tradicional explicação do trabalho de acordo com a qual ele é a consequência natural e inevitável da pobreza e jamais um meio de abolila nem com a tradicional explicação da origem da propriedade por meio da aquisição da conquista ou de uma divisão original do mundo comum56 O que realmente o interessava era a apropriação e o que tinha de encontrar era uma atividade apropriadoradomundo worldappropriating e cuja privatividade estivesse ao mesmo tempo fora de dúvida ou disputa É claro que nada é mais privado que as funções corporais do processo vital inclusive a fertilidade e é digno de nota o fato de que os poucos casos em que até mesmo uma humanidade socializada respeita e impõe severa privatividade tenham a ver precisamente com essas atividades impostas pelo processo vital Destas o trabalho por ser atividade e não meramente uma função é a menos privada por assim dizer a única que sentimos que não precisa ser escondida no entanto é ainda suficientemente próxima ao processo vital para tornar plausível o argumento a favor da privatividade da apropriação distintamente do argumento muito diferente a favor da privatividade da propriedade57 Locke fundamentou a propriedade privada naquilo cuja propriedade é a mais privada de todas a propriedade do homem em sua própria pessoa ou seja em seu próprio corpo58 O trabalho do nosso corpo e a obra de nossas mãos tornamse uma coisa só uma vez que ambos são meios de apropriar aquilo que Deus deu aos homens em comum E esses meios corpo mãos e boca são os apropriadores naturais porque não pertencem à humanidade em comum mas são dados a cada homem para seu uso privado59 Tal como Marx teve de introduzir uma força natural a força de trabalho do corpo para explicar a produtividade do trabal ho e o progressivo processo de crescimento da riqueza Locke embora de modo menos explícito teve de remontar a propriedade a uma origem natural da apropriação a fim de romper à força aquelas fronteiras mundanas estáveis que cercam o quinhão do mundo que cada pessoa privadamente possui do comum60 O que Marx tinha ainda em comum com Locke era a pretensão de ver o processo de crescimento da riqueza como um processo natural seguindo automaticamente suas leis fora dos intuitos e decisões voluntárias Se alguma atividade humana haveria de estar de alguma forma envolvida em tal processo só podia ser uma atividade corporal cujo funcionamento natural não pudesse ser interrompido mesmo se se desejasse Interromper tais atividades seria realmente destruir a natureza e para toda a era moderna quer se aferrasse à instituição da propriedade privada ou visse nela um empecilho ao crescimento da riqueza uma interrupção ou um controle do processo da riqueza equivalia a uma tentativa de destruir a vida da sociedade O desenvolvimento da era moderna e o advento da sociedade na qual a mais privada de todas as atividades humanas a do trabalho foi tornada pública e lhe foi permitido estabelecer seu próprio domí nio comum podem tornar duvidoso que a existência da propriedade como lugar privadamente possuído no mundo seja capaz de suportar o inexorável processo de crescimento da riqueza Não obstante não deixa de ser verdadeiro que a privatividade dos bens de uma pessoa isto é sua completa independência do comum não poderia se mais bem garantida que pela transformação da propriedade em apropriação ou por uma interpretação do cercamento do comum que o veja como o resultado o produto da atividade do corpo Sob esse aspecto o corpo realmente passa a ser a quintessência de toda propriedade uma vez que é a única coisa que não se pode compartilhar ainda que se desejasse Nada de fato é menos comum e menos comunicável e portanto mais seguramente protegido contra a visibilidade e a audibilidade do domínio público que o que se passa dentro do nosso corpo seus prazeres e suas dores seu trabalho e seu consumo Por isso mesmo nada expele o indivíduo mais radicalmente do mundo que a concentração exclusiva na vida corporal concentração à qual o homem é compelido pela escravidão ou pelo extremo da dor insuportável Quem por algum motivo desejar tornar inteiramente privada a existência humana independente do mundo e consciente apenas de seu próprio estar vivo deve basear seus argumentos nessas experiências e como a implacável fadiga do trabalho escravo não é natural mas feita pelo homem e contradiz a natural fertilidade do animal laborans cuja força não se esgota e cujo tempo não é consumido depois de ele reproduzir sua própria vida a experiência natural subjacente à independência estóica e epicurista em relação ao mundo não é o trabalho nem a escravidão mas a dor A felicidade alcançada no isolamento do mundo e desfrutada dentro das fronteiras da existência privada do indivíduo jamais pode ser outra coisa senão a famosa ausência de dor uma definição com a qual qualquer variante consistente do sensualismo tem de concordar O hedonismo a doutrina que afirma que somente as sen sações corporais são reais é apenas a forma mais radical de um modo de vida não político totalmente privado a verdadeira realização do lathe biōsas kai mē politeuesthai de Epicuro viver oculto e não se importar com o mundo Normalmente a ausência de dor é a condição corporal suficiente para a experiência do mundo somente se o corpo não está irritado e por meio da irritação lançado para dentro de si mesmo nossos sentidos corporais podem funcionar normalmente e receber o que lhes é oferecido A ausência de dor geralmente só é sentida no breve estágio intermediário entre a dor e a não dor e a sensação que corresponde ao conceito de felicidade dos sensualistas é o alijamento da dor mais que a sua ausência A intensidade dessa sensação é indubitável na verdade somente a sensação da dor pode igualála61 O esforço mental exigido pelas filosofias que por motivos diversos desejam liberar o homem do mundo é sempre um ato de imaginação no qual a mera ausência de dor é experimentada e atualizada na sensação de se estar alijado dela62 De qualquer forma a dor e a concomitante experiência do alijamento da dor são as únicas sensações tão independentes do mundo que não contêm a experiência de qualquer objeto mundano Realmente a dor causada por uma espada ou a cócega provocada por uma pluma nada me diz da qualidade ou sequer da existência mundana da espada ou da pluma63 Só uma irresistível suspeita da capacidade dos sentidos para uma experiência adequada do mundo e essa suspeita está na origem de toda filosofia especificamente moderna pode expli car a estranha e mesmo absurda escolha que utiliza os fenômenos como a dor ou a cócega que obviamente impedem o funcionamento normal dos nossos sentidos como exemplos de toda experiência sensorial e deles inferir a subjetividade de qualidades secundárias e mesmo primárias Se não tivéssemos outras percepções sensoriais além daquelas nas quais o corpo se sente a si mesmo a realidade do mundo exterior ficaria não apenas sujeita à dúvida mas certamente não teríamos noção alguma de um mundo A única atividade que corresponde estritamente à experiência da não mundanidade ou antes à perda do mundo que ocorre na dor é a do trabalho na qual o corpo humano embora em atividade também é lançado para dentro de si mesmo concentrase apenas em seu próprio estar vivo e permanece preso ao seu metabolismo com a natureza sem jamais transcender ou libertarse do ciclo recorrente do seu funcionamento Mencionamos antes a dupla dor vinculada ao processo vital para a qual a linguagem tem somente uma palavra e que segundo a Bíblia foi imposta à vida do homem ao mesmo tempo o doloroso esforço envolvido na reprodução da própria vida e na da vida da espécie Se esse doloroso esforço da vida e da fertilidade fosse a verdadeira origem da propriedade então a privatividade dessa propriedade seria realmente tão semmundo worldless quanto a inigualável privatividade de se ter um corpo e de se experimentar a dor Contudo essa privatividade embora seja essencialmente a privatividade da apropriação não era absolutamente aquilo que Locke cujos conceitos eram ainda basicamente os da tradição prémoderna entendia como propriedade privada Qualquer que fosse a sua origem essa propriedade era ainda para ele um cercamento do comum isto é fundamentalmente um lugar no mundo onde o que é privado pode ser escondido e protegido contra o domínio público Como tal ficava em contato com o mundo comum mesmo em uma época em que o crescimento da riqueza e da apropriação começou a ameaçar de extinção esse mundo comum Devido à sua segurança mundana a propriedade não reforça mas antes mitiga a desvinculação do processo do trabalho em relação ao mundo Por isso mesmo o caráter de processo do trabalho a implacabilidade com que o trabalho é reclamado e impelido pelo processo vital é interrompido pela aquisição de propriedade Em uma sociedade de proprietários em contraposição a uma sociedade de trabalhadores ou de assalariados é ainda o mundo e não a abundância natural nem a mera necessidade da vida que está no centro do cuidado e da preocupação humanos A questão tornase inteiramente diferente quando o principal interesse deixa de ser a propriedade e passa a ser o crescimento da riqueza e o processo de acumulação enquanto tais Esse processo pode ser tão infinito quanto o processo vital da espécie e sua infinitude é constantemente desafiada e interrompida pelo fato inconveniente de que os indivíduos privados não vivem para sempre nem dispõem de um tempo infinito Somente se a vida da sociedade como um todo ao invés da vida limitada dos indivíduos é considerada como o sujeito gigantesco do processo de acumulação pode esse processo seguir totalmente livre e em plena velocidade isento dos limites impostos pela duração da vida individual e pela propriedade possuída individualmente Somente quando o homem deixa de agir como um indivíduo interessado apenas por sua própria sobrevivência mas como um membro da espécie um Gattungswesen como Marx costumava dizer somente quando a reprodução da vida individual é absorvida pelo processo vital da espécie humana pode o processo vital coletivo de uma humanidade socializada seguir sua necessidade isto é seguir o seu curso automático de fertilidade no duplo sentido da multiplicação de vidas e da crescente abundância de bens exigida por elas A coincidência da filosofia do trabalho de Marx com as teorias da evolução e do desenvolvimento do século XIX a evolução natural de um processo vital único a partir das formas mais rudimentares de vida orgânica até a aparição do animal humano e o desenvolvimento histórico de um processo vital da humanidade como um todo é surpreendente e logo foi percebida por Engels que chamou Marx de o Darwin da história O que todas essas teor ias têm em comum nas várias ciências economia história biologia geologia é o conceito de processo virtualmente desconhecido antes da era moderna Como a descoberta dos processos pelas ciências naturais coincidira com a descoberta da introspecção na filosofia é bastante natural que o processo biológico existente dentro de nós tenha se tornado afinal o modelo do novo conceito dentro da estrutura das experiências dadas à introspecção não conhecemos outro processo senão o processo vital dentro dos nossos corpos e a única atividade que lhe corresponde e na qual podemos traduzilo é a do trabalho Assim pode parecer quase inevitável que o equacionamento da produtividade com a fertilidade na filosofia do trabalho da era moderna tenha resultado em uma variedade de filosofias da vida baseadas no mesmo equacionamento64 A diferença entre as primeiras teorias do trabalho e as posteriores filosofias da vida é acima de tudo que estas últimas perderam de vista a única atividade necessária para sustentar o processo vital No entanto mesmo essa perda parece corresponder ao factual desenvolvimento histórico que tornou o trabalho mais leve do que jamais o fora antes e portanto ainda mais semelhante ao funcionamento automático do processo vital Se na virada do século com Nietzsche e Bergson a vida e não o trabalho foi proclamada criadora de todos os valores essa glorificação do mero dinamismo do processo vi tal aboliu aquele mínimo de iniciativa presente até mesmo em atividades que como o trabalho e a procriação são impostas ao homem pela necessidade Contudo nem o enorme aumento da fertilidade nem a socialização do processo ou seja a substituição dos homens individuais pela sociedade ou pela coletividade da espécie humana como seu sujeito podem eliminar o caráter estrito e até cruel da privatividade da experiência dos processos do corpo nos quais a vida se manifesta ou da própria atividade do trabalho Provavelmente nem a abundância de bens nem a redução do tempo gasto no trabalho resultarão no estabelecimento de um mundo comum e o animal laborans expropriado não se torna menos privado pelo fato de ter sido destituído de um lugar privado próprio onde possa esconderse e protegerse do domínio comum Marx predisse corretamente embora com injustificado júbilo o definhamento do domínio público nas condições de um desenvolvimento desenfreado das forças produtivas da sociedade e estava igualmente certo isto é co nsistente com a sua concepção do homem como um animal laborans quando previu que os homens socializados gozariam sua liberação do trabalho naquelas atividades estritamente privadas e essencialmente semmundo que hoje chamamos de passatempos hobbies65 16 Os instrumentos da obra e a divisão do trabalho Infelizmente parece ser da natureza das condições da vida tal como esta foi dada ao homem que a única vantagem possível da fertilidade da força de trabalho humana resida em sua capacidade de conseguir as coisas necessárias à vida para mais de um homem ou de uma família Os produtos do trabalho produtos do metabolismo do homem com a natureza não permanecem no mundo tempo suficiente para se tornarem parte dele e a própria atividade do trabalho concentrada exclusivamente na vida e em sua manutenção esquecese do mundo até o extremo da não mundanidade O animal laborans compelido pelas necessidades do seu corpo não usa esse corpo tão livremente como o homo faber utiliza suas mãos suas ferramentas primordiais e por isso Platão sugeriu que os trabalhadores e escravos eram não apenas sujeitos à necessidade e incapazes de liberdade mas inaptos também para dominar a parte animal de sua natureza66 Uma sociedade de massas de trabalhadores tal como Marx tinha em mente quando falava de uma humanidade soc ializada consiste em espécimes semmundo da espécie humana quer sejam escravos domésticos levados a esse constrangimento pela violência de outrem quer sejam livres exercendo voluntariamente suas funções É verdade que essa desmundanidade worldlessness do animal laborans é inteiramente diversa da fuga ativa da publicidade do mundo que vimos ser inerente à prática de boas obras O animal laborans não foge do mundo mas dele é expelido na medida em que é prisioneiro da privatividade do seu p róprio corpo adstrito à satisfação de necessidades das quais ninguém pode compartilhar e que ninguém pode comunicar inteiramente O fato de que a escravidão e o banimento no lar constituíam de modo geral a condição social de todos os trabalhadores antes da era moderna devese basicamente à própria condição humana a vida que para todas as outras espécies animais é a própria essência do seu ser tornase um ônus para o homem em virtude de sua inata repugnância à futilidade67 Esse ônus tornase ainda mais pesado pelo fato de que nenhum dos chamados desejos superiores possui a mesma urgência ou é realmente imposto ao homem pela necessidade como o são as carências elementares da vida A escravidão veio a ser a condição social das classes trabalhadoras porque se acreditava que ela era a condição natural da própria vida Omnis vita servitium est68 O ônus da vida biológica que oprime e consome o período de vida especificamente humano entre o nascimento e a morte só pode ser eliminado mediante o uso de servos e a função principal dos antigos escravos era antes a de arcar com o ônus do consumo no lar e não produzir para a sociedade como um todo69 O motivo pelo qual o trabalho escravo pôde desempenhar papel tão importante nas sociedades antigas e pelo qual o seu desperdício e improdutividade passaram despercebidos é que a antiga cidadeEstado era basicamente um centro de consumo ao contrário das cidades medievais que eram principalmente centros de produção70 O preço da eliminação do fardo da vida dos ombros de todos os cidadãos era enorme e de modo algum consistiu apenas na injustiça violenta de forçar uma parte da humanidade a ingressar na treva da dor e da necessidade Como essa treva é natural inerente à condição humana e somente é artificial o ato de violência por meio do qual um grupo de homens tenta liberarse dos grilhões que nos prendem a todos à necessidade e à dor o preço da absoluta libertação da necessidade é em certo sentido a própria vida ou antes a substituição da vida real por uma vida delegada Nas condições da escravidão os poderosos da Terra podiam usar inclusive seus sentidos de modo delegado podiam ver e ouvir por meio de seus escravos como dizia o idioma grego em Heródoto71 Em seu nível mais elementar as fadigas e penas da obtenção das coisas necessárias à vida e os prazeres de incorporálas são tão intimamente ligados entre si no ciclo da vida biológica cujo ritmo recorrente condiciona a vida humana em seu movimento único e unilinear que a completa eliminação da dor e do esforço do trabalho não só despojaria a vida biológica de seus prazeres mais naturais mas privaria a vida especificamente humana de sua vivacidade e de sua vitalidade próprias A condição humana é tal que a dor e o esforço não são meros sintomas que podem ser eliminados sem que se transforme a própria vida são mais propriamente os modos pelos quais a vida juntamente com a necessidade à qual está vinculada se faz sentir Para os mortais a vida fácil dos deuses seria uma vida sem vida Pois as nossas crenças na realidade da vida e na realidade do mundo não são a mesma coisa A segunda provém basicamente da permanência e da durabilidade do mundo bem superiores às da vida mortal Se alguém soubesse que o mundo acabaria quando ele morresse ou logo depois esse mundo perderia toda a sua realidade como a perdeu entre os primeiros cristãos na medida em que estavam convencidos de que as suas expectativas escatológicas seriam imediatamente realizadas A confiança na realidade da vida ao contrário depende quase exclusivamente da intensi dade com que a vida é experimentada do impacto com que ele se faz sentir Essa intensidade é tão grande e sua força é tão elementar que onde quer que prevaleça na alegria ou na tristeza obscurece qualquer outra realidade mundana Já se observou muitas vezes que aquilo que a vida dos ricos perde em vitalidade em proximida de com as boas coisas da natureza ganha em refinamento em sensibilidade às coisas belas do mundo O fato é que a capacidade humana de vida no mundo implica sempre uma capacidade de transcender e alienarse dos processos da vida enquanto a vitalidade e a vivacidade só podem ser conservadas na medida em que os homens se disponham a arcar com o ônus as fadigas e as penas da vida É verdade que o enorme aperfeiçoamento d e nossas ferramentas de trabalho os robôs mudos com os quais o homo faber acorreu em auxílio do animal laborans em contraposição aos instrumentos humanos dotados de fala o instrumentum vocale como eram chamados os escravos no lar entre os antigos os quais o homem de ação tinha de dominar e oprimir sempre que desejava liberar o animal laborans de sua sujeição tornou o duplo trabalho da vida o esforço de sua manutenção e a dor de gerála mais fácil e menos doloroso do que jamais foi antes Isso naturalmente não eliminou a compulsão da atividade do trabalho nem a condição de sujeição da vida humana à carência e à necessidade Mas ao contrário do que ocorria na sociedade escravista na qual a maldição da necessidade era uma realidade muito vívida porque a vida de um escravo testemunhava diariamente o fato de que a vida é escravidão essa condição já não é hoje inteiramente manifesta e por não aparecer tanto tornase muito mais difícil notála ou lembrála O perigo aqui é óbvio O homem não pode ser livre se ignora estar sujeito à necessidade uma vez que sua liberdade é sempre conquistada mediante tentativas nunca inteiramente bemsucedidas de libertarse da necessidade E embora possa ser verdade que seu impulso mais forte na direção dessa liberdade é sua repugnância à futilidade é também possível que o impulso enfraqueça à medida que essa futilidade parece mais fácil e passa a exigir menor esforço Pois é ainda provável que as enormes mudanças da revolução industrial no passado e as mudanças ainda maiores da revolução atômica no futuro permaneçam como mudanças do mundo e não mudanças da condição básica da vida humana na Terra As ferramentas e instrumentos que podem suavizar consideravelmente o esforço do trabalho não são produtos do trabalho mas da obra não pertencem ao processo do consumo mas são parte integrante do mundo de objetos de uso Não importa quão relevante seja o papel que desempenham no trabalho de qualquer civilização dada jamais pode atingir a importância fundamental das ferramentas para todo tipo de obra Nenhuma obra pode ser produzida sem ferramentas e o nascimento do homo faber e o surgimento de um mundo de coisas feito pelo homem são na verdade contemporâneos da descoberta de ferramentas e de instrumentos Do ponto de vista do trabalho as ferramentas reforçam e multiplicam a força humana até quase substituíla como ocorre em todos os casos nos quais as forças naturais como os animais domésticos a força hidráulica ou a eletricidade e não meras coisas materiais são domadas pelo homem Da mesma forma as ferramentas aumentam a fertilidade natural do animal laborans e produzem uma abundância de bens de consumo Mas todas essas mudanças são de natureza quantitativa ao passo que a qualidade das coisas fabricadas desde o mais simples objeto de uso até a obraprima de arte depende profundamente da existência de instrumentos adequados Além disso as limitações dos instrumentos no tocante à suavização do trabalho da vida o simples fato de que os serviços de um único criado jamais podem ser inteiramente substituídos por uma centena de aparelhos na cozinha ou por meia dúzia de robôs no subsolo são de natureza fundamental Um testemunho curioso e inesperado desse fato é que ele pôde ser previsto milhares de anos antes de se dar o fabuloso desenvolvimento moderno de instrumentos e de máquinas Em tom meio fantasioso e meio irônico Aristóteles imaginou certa vez aquilo que se tornou realidade tempos depois ou seja que cada ferramenta fosse capaz de executar sua própria obra quando se lha ordenasse como as estátuas de Dédalo ou as trípodes de Hefesto que segundo diz o poeta ingressaram por conta própria na assembleia dos deuses Assim a lançadeira teceria e o plectro tocaria a lira sem que uma mão os guiasse E prossegue afirmando que isso significaria realmente que o artífice já não necessitaria de assistentes humanos mas não que os escravos domésticos pudessem ser dispensados Pois os escravos não são instrumentos para fabricar coisas ou para a produção mas para a vida que constantemente consome os seus serviços72 O processo de fabricação de uma coisa é limitado e a função do instrumento atinge um fim previsível e controlável no produto acabado o processo vital que exige o trabalho é uma atividade interminável e o único instrumento à sua altura teria de ser um perpetuum mobile isto é o instrumentum vocale tão vivo e ativo quanto o organismo a que serve Dos instrumentos domésticos nada resulta além do uso da própria posse e é precisamente por isso que eles não podem ser substituídos pelas ferramentas e instrumentos do artífice dos quais resulta algo além do mero uso do instrumento73 Embora os instrumentos e ferramentas projetados para produzir mais e algo totalmente diferente do mero uso sejam de importância secundária para a atividade do trabalho o mesmo não se aplica ao outro grande princípio do processo de trabalho humano a divisão do trabalho A divisão do trabalho realmente resulta diretamente do processo do trabalho e não deve ser confundida com o princípio aparentemente semelhante da especialização que prevalece nos processos da obra e com o qual é comumente equacionada A especialização da obra e a divisão do trabalho têm em comum somente o princípio geral da organização princípio este que nada tem a ver com a obra ou o trabalho mas deve sua origem à esfera estritamente política da vida ao fato de que o homem é capaz de agir e de agir em conjunto e em concerto Somente dentro da estrutura da organização política onde os homens não apenas vivem mas agem em conjunto podem ocorrer a especialização da obra e a divisão do trabalho Contudo enquanto a especialização da obra é essencialmente guiada pelo próprio produto acabado cuja natureza é exigir diferentes habilidades que são então reunidas e organizadas em um conjunto a divisão do trabalho pelo contrário pressupõe a equivalência qualitativa de todas as atividades singulares para as quais nenhuma habilidade especial é necessária e essas atividades não têm um fim em si mesmas mas representam de fato somente certas quantidades de força de trabalho somadas umas às outras de modo puramente quantitativo A divisão do trabalho é baseada no fato de que dois homens podem reunir sua força de trabalho e proceder um com o outro como se fossem um só74 Essa unidade oneness é exatamente o oposto da cooperação ela indica a unidade da espécie em relação à qual cada membro individual é igual e intercambiável A formação de um trabalho coletivo em que os trabalhadores são socialmente organizados segundo esse princípio da força de trabalho comum e divisível é o exato oposto de várias organizações de operários desde as antigas guildas e corporações até certos tipos de organizações sindicais modernas cujos membros são mantidos reunidos pelas habilidades e especializações que os distinguem dos outros Como nenhuma das atividades em que se divide o processo tem um fim em si mesma seu fim natural é exatamente o mesmo do trabalho indiviso seja a mera reprodução dos meios de subsistência isto é a capacidade de consumo dos trabalhadores seja a exaustão da força de trabalho humana Nenhuma dessas duas limitações porém é final a exaustão faz parte do processo vital do indivíduo não da coletividade e o sujeit o do processo de trabalho nas condições da divisão do trabalho é uma força de trabalho labor forceArbeitskraft coletiva não a força de trabalho labor powerArbeitskraft individual A inesgotabilidade dessa força de trabalho labor forceArbeitskraft corresponde exatamente à imortalidade deathlessness da espécie cujo processo vital como um todo também não é interrompido pelo nascimento e pela morte individuais dos seus membros Mais séria pareceme é a limitação imposta pela capacidade de consumir que permanece vinculada ao indivíduo mesmo quando uma força coletiva de trabalho substituiu a força de trabalho individual O progresso da acumulação de riqueza pode ser ilimitado em uma humanidade socializada que se desembaraçou das limitações da propriedade individual e superou a limitação da apropriação individual ao dissolver toda riqueza estável a posse de coisas amontoadas e armazenadas em dinheiro para gastar e consumir Já vivemos em uma sociedade em que a riqueza é aferida em termos da capacidade de ganhar e gastar que são apenas modificações do duplo metabolismo do corpo humano O problema é portanto como sintonizar o consumo individual com um acúmulo ilimitado de riqueza Uma vez que a humanidade como um todo ainda está muito longe de ter atingido o limite da abundância o modo pelo qual a sociedade pode superar essa limitação natural de sua fertilidade só poderia ser concebido hipoteticamente e em uma escala nacional Nesse caso a solução parece bastante simples Consiste em tratar todos os objetos de uso como se fossem bens de consumo de sorte que uma cadeira ou uma mesa sejam então consumidas tão rapidamente quanto um vestido e um vestido se desgaste quase tão rapidamente quanto o alimento Essa forma de relacionamento com as coisas do mundo ademais é perfeitamente adequada ao modo como elas são produzidas A Revolução Industrial substituiu todo artesanato pelo trabalho e o resultado foi que as coisas do mundo moderno se tornaram produtos do trabalho cujo destino natural é serem consumidos ao invés de produtos da obra que se destinam a ser usados Da mesma forma como os instrumentos e ferramentas embora originados da obra sempre foram empregados também nos processos do trabalho a divisão do trabalho inteiramente adequada e em consonância com o processo do trabalho tornouse uma das principais características dos modernos processos da obra isto é da fabricação e produção de objetos de uso A divisão do trabalho mais que um aumento da mecanização substituiu a rigorosa especialização antes exigida para todo tipo de artesanato O artesanato é necessário somente para o projeto e a fabricação de modelos antes de estes ingressarem na produção em massa que também depende de ferramentas e de máquinas Mas a produção em massa seria além disso completamente impossível sem a substituição dos artesãos e da especialização por trabalhadores e pela divisão do trabal ho Ferramentas e instrumentos diminuem o esforço e a dor e com isso mudam os modos pelos quais outrora a urgente necessidade inerente ao trabalho manifestavase a todos Não mudam a necessidade mesma servem apenas para escondêla de nossos sentidos Algo semelhante se aplica aos produtos do trabalho que não se tornam mais duráveis por meio da abundância O caso é inteiramente diferente na correspondente transformação moderna do processo da obra pela introdução do princípio da divisão do trabalho Nesse caso a natureza da obra é alterada e o processo de produção embora não produza absolutamente objetos para o consumo assume o caráter do trabalho Embora as máquinas nos tenham obrigado a um ritmo infinitamente mais rápido de repetição que aquele prescrito pelo ciclo dos processos naturais e essa aceleração especificamente moderna pode nos fazer ignorar o caráter repetitivo de todo trabalho a repetição e a interminabilidade do processo imprimemlhe a marca inconfundível do trabalho Isso é ainda mais evidente nos objetos de uso produzidos por essas técnicas de trabalho Sua mera abundância os transforma em bens de consumo A interminabilidade do processo de trabalho é garantida pelas semprerecorrentes necessidades de consumo a interminabilidade da produção só pode ser garantida se os seus produtos perderem o caráter de objetos de uso e se tornarem cada vez mais objetos de consumo ou em outras palavras se o ritmo do uso for acelerado tão tremendamente que a diferença objetiva entre uso e consumo entre a relativa durabilidade dos objetos de uso e o rápido ir e vir dos bens de consumo reduzirse até se tornar insignificante Em nossa necessidade de substituir cada vez mais depressa as coisas mundanas que nos rodeiam já não podemos nos permitir usálas respeitar e preservar sua inerente durabilidade temos de consumir devorar por assim dizer nossas casas nossa mobília nossos carros como se estes fossem as coisas boas da natureza que se deteriorariam inaproveitadas se não fossem arrastadas rapidamente para o ciclo interminável do metabolismo do homem com a natureza É como se houvéssemos rompido à força as fronteiras distintivas que protegiam o mundo o artifício humano da natureza tanto o processo biológico que prossegue dentro dele quanto os processos naturais cíclicos que o rodeiam entregandolhes e abandonandolhes a sempre ameaçada estabilidade de um mundo humano Os ideais do homo faber fabricante do mundo que são a permanência a estabilidade e a durabilidade foram sacrifi cados à abundância o ideal do animal laborans Vivemos em uma sociedade de trabalhadores porque somente o trabalho com sua inerente fertilidade tem possibilidade de produzir a abundância e transformamos a obra em trabalho separandoa em partículas minúsculas até que ele se prestou à divisão na qual o denominador comum da execução mais simples é atingido para eliminar do caminho da força de trabalho humana que é parte da natureza e talvez até a mais poderosa de todas as forças naturais o obstáculo da estabilidade nãonatural unnatural e puramente mundana do artifício humano 17 Uma sociedade de consumidores Dizse frequentemente que vivemos em uma sociedade de consumidores e uma vez que como vimos o trabalho e o consumo são apenas dois estágios do mesmo processo imposto ao homem pela necessidade da vida isso é somente outro modo de dizer que vivemos em uma sociedade de trabalhadores Essa sociedade não surgiu em decorrência da emancipação das classes trabalhadoras mas resultou da emancipação da própria atividade do trabalho que precedeu em vários séculos a emancipação política dos trabalhadores A questão não é que pela primeira vez na história os trabalhadores tenham sido admitidos com iguais direitos no domínio público e sim que quase conseguimos reduzir todas as atividades humanas ao denominador comum de assegurar as coisas necessárias à vida e de produzilas em abundância Não importa o que façamos supostamente o faremos com vistas a prover nosso próprio sustento é esse o veredicto da sociedade e vem diminuindo rapidamente o número de pessoas capazes de desafiálo especialmente nas profissões que poderiam fazêlo A única exceção que a sociedade está disposta a admitir é o artista que propriamente falando é o único operário worker que restou em uma sociedade de trabalhadores laboring society A mesma tendência de reduzir todas as atividades sérias à condição de prover o próprio sustento manifestase em todas as atuais teorias do trabalho que quase unanimemente definem o trabalho como o oposto do divertirse play Em consequência todas as atividades sérias independentemente dos frutos que produzam são chamadas de trabalho enquanto toda atividade que não seja necessária nem para a vida do indivíduo nem para o processo vital da sociedade é classificada como divertimento playfulness75 Nessas teorias que refletindo no nível teórico a avaliação atual de uma sociedade trabalhadora tornam mais aguda essa avaliação e a levam ao seu extremo inerente não resta nem mesmo a obra do artista ela foi dissolvida no divertirse e perdeu seu significado mundano Compreendese que o divertimento do artista desempenha a mesma função que o jogo de tênis no processo vital de trabalho da sociedade ou a que a manutenção de um passatempo hobby desempenha na vida de um indivíduo A emancipação do trabalho não resultou em uma equiparação dessa atividade a outras atividades da vita activa mas em seu predomínio quase incontestável Do ponto de vista de prover o próprio sustento toda atividade não relacionada com o trabalho tornase um passatempo76 A fim de dissipar a plausibilidade dessa autointerpretação do homem moderno convém lembrar que todas as civilizações anteriores à nossa teriam concordado antes com Platão que a arte de ganhar dinheiro technē mistharnētikē não tem relação alguma com o verdadeiro conteúdo mesmo de artes como a medicina a navegação ou a arquitetura que eram acompanhadas por recompensas monetárias Foi para explicar essa recompensa monetária que obviamente é de natureza inteiramente diferente da saúde objeto da medicina ou da construção de edifícios objeto da arquitetura que Platão sugeriu a existência de mais uma arte para acompanhar todas as outras Essa arte adicional não é vista absolutamente como o elemento de trabalho existente em artes que em tudo o mais seriam livres mas pelo contrário é tida como a única arte que permite ao artista o operário profissional como diríamos hoje manterse livre da necessidade de trabalhar77 Ela pertence à mesma categoria da arte que se exigia do chefe de uma casa que devia saber como exercer autoridade e empregar a violência no comando de seus escravos Seu objetivo é manter o homem livre da necessidade de prover o próprio sustento e nas outras artes os objetivos eram ainda mais distantes dessa necessidade elementar A emancipação do trabalho e a concomitante emancipação das classes trabalhadoras da opressão e da exploração certamente significaram progresso na direção da não violência Muito menos certo é que tenham representado um progresso também na direção da liberdade Nenhuma violência exercida pelo homem exceto aquela empregada na tortura pode se igualar à força natural com que a necessidade compele Por essa razão os gregos derivavam sua palavra para tortura anagkai de necessidade e não de bia que era o termo usado para a violência de um homem contra outro e essa é também a razão do fato histórico de que em toda a Antiguidade Ocidental a tortura a necessidade que nenhum homem pode suportar só podia ser aplicada a escravos que de qualquer forma já estavam sujeitos à necessidade 78 Foram as artes da violência da guerra da pirataria e finalmente do governo absoluto que colocaram os vencidos a serviço dos vencedores e com isso mantiveram a necessidade em suspenso durante o mais longo período de que se tem registro na história79 A era moderna ainda mais que o cristianismo provocou juntamente com a sua glorificação do trabalho uma enorme degradação na avaliação dessas artes e uma menor mas não menos importante diminuição real do uso dos instrumentos de violência nos assuntos humanos em geral8 0 O enaltecimento do trabalho e a necessidade inerente ao metabolismo com a natureza na atividade do trabalho são ao que parece intimamente relacionados com a degradação de todas as atividades que resultam diretamente da violência como o emprego da força das relações humanas ou contêm em si mesmos um elemento de violência o que como veremos adiante é o caso de toda manufatura É como se a crescente eliminação da violência no decorrer de toda a era moderna tenha quase automaticamente aberto as portas ao retorno da necessidade em seu nível mais elementar O que já sucedeu outrora em nossa história nos séculos do declínio do Império Romano pode estar acontecendo novamente Também naquela época o trabalho tornouse uma ocupação das classes livres somente para levar a estas as obrigações das classes servis81 O risco de que a emancipação do trabalho na era moderna não só fracasse na instauração de uma era de liberdade para todos mas ao contrário acabe por submeter pela primeira vez toda a humanidade ao jugo da necessidade já havia sido claramente percebido por Marx quando ele insistiu em que o objetivo de uma revolução não podia ser a já alcançada emancipação das classes trabalhadoras mas sim a emancipação do homem em relação ao trabalho À primeira vista esse objetivo parece utópico o único elemento estritamente utópico nos ensinamentos de Marx82 A emancipação do trabalho nos termos do próprio Marx é a emancipação da necessidade o que significaria em última análise a emancipação igualmente em relação ao consumo isto é ao metabolismo com a natureza que é a própria condição da vida humana 83 Contudo os desdobramentos da última década e especialmente as possibilidades abertas pelo desenvolvimento ulterior da automação permitem nos indagar se a utopia de ontem não se converterá na realidade de amanhã de sorte que finalmente só reste das fadigas e penas inerentes ao ciclo biológico a cuja força motriz está ligada a vida humana o esforço de consumir Contudo nem mesmo essa utopia poderia alterar a essencial futilidade mundana do processo vital Os dois estágios pelos quais deve passar o eterno ciclo de vida biológica os estágios do trabalho e do consumo podem mudar de proporção até o ponto em que quase toda a força de trabalho humana seja gasta em consumir acarretando o grave problema social do lazer isto é essencialmente o problema de como propiciar devido à exaustão diária um período de tempo suficiente para manter intacta a capacidade para o consumo84 O consumo isento de dor e de esforço não mudaria o caráter devorador da vida biológica apenas o aumentaria até que uma humanidade completamente liberada dos grilhões da dor e do esforço estivesse livre para consumir o mundo inteiro e reproduzir diariamente todas as coisas que desejasse consumir A quantidade de coisas que apareceriam e desapareceriam a cada dia e a cada hora no processo vital de tal sociedade seria na melhor das hipóteses irrelevante para o mundo caso o mundo e o seu caráterdecoisa pudessem suportar o dinamismo negligente de um processo vital inteiramente motorizado O perigo da futura automação não é tanto a tão deplorada mecanização e artificialização da vida natural quanto o fato de que a despeito de sua artificialidade toda a produtividade humana seria sugada por um processo vital enormemente intensificado e seguiria automaticamente sem dor e sem esforço o seu ciclo natural semprerecorrente O ritmo das máquinas aumentaria e intensificaria enormemente o ritmo natural da vida mas não mudaria apenas tornaria mais mortal a principal característica da vida em relação ao mundo que é a de minar a durabilidade Há ainda um longo caminho a percorrer desde a gradual diminuição das horas de trabalho que vem constantemente progredindo há quase um século até essa utopia Além disso o progresso foi um tanto superestimado porque foi comparado às condições extraordinariamente desumanas de exploração que preponderaram nos primeiros estágios do capitalismo Se pensarmos em termos de períodos de tempo um pouco mais longos o montante anual total de tempo livre desfrutado individualmente no presente nos parecerá menos uma realização da modernidade que uma tardia aproximação da normalidade85 Nesse aspecto como em outros o espectro de uma verdadeira sociedade de consumidores é mais alarmante como um ideal da sociedade de hoje que como uma realidade existente O ideal não é novo estava claramente indicado na premissa inconteste da economia política clássica de que o objetivo fi nal da vita activa é o crescimento da riqueza da abundância e da felicidade do maior número E afinal o que é esse ideal da sociedade moderna senão o sonho muito antigo dos pobres e despossuídos que pode ser encantador como sonho mas que se transforma em uma felicidade ilusória logo que realizado A esperança que inspirava Marx e os melhores homens dos vários movimentos de operários a de que o tempo livre finalmente emanciparia os homens da necessidade e tornaria produtivo o animal laborans baseiase na ilusão de uma fi losofia mecanicista que supõe que a força de trabalho como qualquer outra energia não pode ser perdida de modo que se não for gasta e exaurida na labuta da vida nutrirá automaticamente outras atividades superiores O modelo dessa esperança de Marx era sem dúvida a Atenas de Péricles que no futuro com a ajuda da enormemente aumentada produtividade do trabalho humano prescindiria de escravos para sustentarse e se tornaria realidade para todos Cem anos depois de Marx conhecemos a falácia desse raciocínio o tempo excedente do animal laborans jamais é empregado em algo que não seja o consumo e quanto maior é o tempo de que ele dispõe mais ávidos e ardentes são os seus apetites O fato de que esses apetites se tornam mais sofisticados de modo que o consumo já não se restringe às necessidades da vida mas ao contrário concentrase principalmente nas superfluidades da vida não altera o caráter dessa sociedade mas comporta o grave perigo de que afinal nenhum objeto do mundo esteja a salvo do consumo e da aniquilação por meio do consumo A verdade bastante incômoda de tudo isso é que o triunfo do mundo moderno sobre a necessidade se deve à emancipação do trabalho isto é ao fato de que o animal laborans foi admitido no domínio público e no entanto enquanto o animal laborans continuar de posse dele não poderá existir um verdadeiro domínio público mas apenas atividades privadas exibidas à luz do dia O resultado é aquilo que eufemisticamente é chamado de cultura de massas e o seu arraigado problema é uma infelicidade universal devida de um lado ao problemático equilíbrio entre o trabalho e o consumo e de outro à persistente demanda do animal laborans de obtenção de uma felicidade que só pode ser alcançada quando os processos vitais de exaustão e de regeneração de dor e de alijamento da dor atingem um perfeito equilíbrio A universal demanda de felicidade e a infelicidade extensamente disseminada em nossa sociedade que são apenas os dois lados da mesma moeda são alguns dos mais persuasivos sintomas de que já começamos a viver em uma sociedade de trabalho que não tem suficiente trabalho para mantêla contente Pois somente o animal laborans e não o artífice nem o homem de ação sempre demandou ser feliz ou pensou que homens mortais pudessem ser felizes Um dos óbvios sinais de perigo de que talvez estejamos a ponto de realizar o ideal do animal laborans é o grau em que toda a nossa economia já se tornou uma economia de desperdício na qual todas as coisas devem ser devoradas e descartadas quase tão rapidamente quanto apareceram no mundo a fim de que o processo não chegue a um fim repentino e catastrófico Mas se esse ideal já estivesse realizado e não passássemos realmente de membros de uma sociedade de consumidores já não viveríamos de modo algum em um mundo mas simplesmente seríamos impelidos por um processo em cujos ciclos semprerecorrentes as coisas aparecem e desaparecem manifestamse e fenecem sem jamais durarem o tempo suficiente para envolverem em seu meio o processo vital O mundo o lar construído pelo homem na Terra e fabricado com o material que a natureza terrena coloca à disposição de mãos humanas consiste não de coisas que são consumidas mas de coisas que são usadas Se a natureza e a Terra constituem de modo geral a condição da vida humana então o mundo e as coisas do mundo constituem a condição na qual essa vida especificamente humana pode estar em casa na Terra Aos olhos do animal laborans a natureza é a grande provedora de todas as boas coisas que pertencem igualmente a todos os seus filhos que as tomam de suas mãos e se mi sturam com elas no trabalho e no consumo86 Essa mesma natureza aos olhos do homo faber construtor do mundo fornece apenas os materiais quase sem valor próprio pois todo o seu valor reside na obra realizada sobre eles87 Sem tomar as coisas das mãos da natureza e consumilas e sem se defender dos processos naturais de crescimento e declínio o animal laborans jamais poderia sobreviver Mas sem estar em casa em meio a coisas cuja durabilidade as torna adequadas ao uso e à construção de um mundo cuja própria permanência está em contraste direto com a vida essa vida jamais seria humana Quanto mais fácil se tornar a vida em uma sociedade de consumidores ou de trabalhadores mais difícil será preservar a consciência das exigências da necessidade que a compele mesmo quando a dor e o esforço as manifestações externas da necessidade são quase imperceptíveis O perigo é que tal sociedade deslumbrada pela abundância de sua crescente fertilidade e presa ao suave funcionamento de um processo interminável já não seria capaz de reconhecer a sua própria futilidade a futilidade de uma vida que não se fixa nem se realiza em assunto algum que seja permanente que continue a existir depois de terminado seu trabalho88 1 Cf De la liberté des anciens comparée à celle des modernes 1819 reeditado em Cours de politique constitutionelle 1872 II 549 2 J Locke Segundo tratado sobre o governo civil seção 26 3 Assim a língua grega distingue entre ponein e ergazesthai o latim entre laborare e facere ou fabricari que têm a mesma raiz etimológica o francês entre travailler e ouvrer o alemão entre arbeiten e werken Em todos esses casos apenas os equivalentes de trabalho têm uma conotação inequívoca de dores e penas O alemã o Arbeit se aplicava originalmente apenas ao trabalho agrícola executado por servos e não à obra do artesão que era chamada Werk O francês travailler substituiu o mais antigo labourer e deriva de tripalium uma espécie de tortura cf Grimm Wörterbuch p 1854 ss e Lucien Fèbre Travail évolution dun mot et dune idée Journal de psychologie normale et pathologique v XLI n 1 1948 4 Aristóteles Política 1254b25 5 É o caso do francês ouvrer e do alemão werken Em ambas as línguas diferentemente do uso corrente do inglês labor as palavras travailler e arbeiten quase perderam seu significado original de dor e atribulação Grimm Wörterbuch já notara essa mudança em meados do século XIX Während in älterer Sprache die Bedeutung von molestia und schwerer Arbeit vorherrschte die von opus opera zurücktrat tritt umgekehrt in der heutigen diese vor und jene erscheint seltener É interessante também o fato de que os substantivos work oeuvre Werk apresentam uma tendência crescente de serem usados em relação a obras de arte nas três línguas 6 Cf JP Vernant Travail et natur e dans la Grèce ancienne Journal de psychologie normale et pathologique LII n 1 janmar 1955 Le terme dēmiourgoi chez Homère et Hésiode ne qualifie pas à lorigine lartisan en tant que tel comme ouv rier il définit toutes les activités qui sexercent en dehors du cadre de loikos en faveur dun public dēmos les artisans charpentiers et forgerons mais non moins queux les devins les héraults les aèdes 7 Política 1258b35 ss Quanto à discussão de Aristóteles acerca da admissão dos banausoi à cidadania cf Política iii 5 A teoria de Aristóteles corresponde muito de perto à realidade estimase que até 80 da mãodeobra livre a obra e o comércio consistiam em nãocidadãos eram estrangeiros katoikountes e metoikoi ou escravos emancipados que haviam galgado essas posições cf Fritz Heichelheim Wirtschaftsgeschichte des Altertums 1938 I 398 ss Jacob Burckhardt que em sua Griechische Kulturgeschichte v II Seções 6 e 8 menciona a opinião corrente na Grécia quanto a quem pertencia ou não à classe dos banausoi observa também que não se conhece nenhum tratado sobre escultura Em vista dos muitos ensaios sobre música e poesia é provável que não se trate de acidente da tradição como não é acidental o fato de conhecermos tantos relatos acerca do grande sentimento de superioridade e até da arrogância de famosos pintores dos quais não existem correspondentes quando se trata de escultores Essa valoração dos pintores e dos escultores sobreviveu muitos séculos Encontramola a inda na Renascença quando a escultura era classificada entre as artes servis enquanto a pintura tinha uma posição intermediária entre as artes liberais e as servis vejase Otto Neurath Beiträge zur Geschichte der Opera Servilia Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik v X LI n 2 1915 O fato de que a opinião pública grega nas cidadesEstados julgava as ocupações segundo o esforço necessário e o tempo consumido é confirmado por uma observação de Aristóteles quanto à vida dos pastores Há grandes diferenças nos modos de vida humanos Os mais preguiçosos são os pastores pois conseguem alimento sem trabalho ponos a partir de animais domésticos e gozam de tempo livre skholazousin Política 1256a30 ss É interessante notar que Aristóteles provavelmente seguindo a opinião corrente mencione aqui a preguiça aergia juntamente com e de algum modo como condição para a skholē a abstenção de certas atividades que é a condição para a vida política O leitor moderno em geral tem de estar ciente de que aergia e skholē não são a mesma coisa A preguiça tinha as mesmas conotações que tem para nós e uma vida de skholē não era considerada uma vida indolente Não obstante o equacionamento de skholē com a inatividade é característico de uma evolução ocorrida dentro da pólis Assim Xenofonte nos conta que Sócrates fora acusado de haver citado um verso de Hesíodo A obra não é uma desgraça mas sim a preguiça aergia A acusação era que Sócrates havia instilado em seus discípulos um espírito escravo Memorabilia i 2 56 Historicamente é importante ter em mente a diferença entre o desprezo com que nas cidadesEstados gregas eram vistas todas as ocupações não políticas resultante da enorme demanda de tempo e de energia dos cidadãos e o desprezo anterior mais original e mais geral pelas atividades que serviam apenas para sustentar a vida ad vitae sustentatione como são definidas as opera servilia ainda no século XVIII No mundo de Homero Páris e Odisseu ajudam na construção de suas casas e a própria Nausicaa lava as roupas dos irmãos etc Tudo isso faz parte da autossuficiência do herói homérico de sua independência e da supremacia autônoma de sua pessoa Nenhuma obra é sórdida quando significar maior independência a mesma atividade pode ser sinal de servilismo se o que estiver em jogo não for a independência pessoal e sim a mera sobrevivência se não for uma expressão de soberania mas de suje ição à necessidade A diferente estima de Homero pelo artesanato é naturalmente muito conhecida Mas o seu verdadeiro significado foi belamente exposto em um ensaio recente de Richard Harder Eigenart der Griechen 1949 8 O trabalho e a obra ponos e ergon são diferenciados em Hesíodo só a obra é devido a Eris a deusa da boa disputa Os trabalhos e os dias 2026 mas o trabalho como todos os outros males provém da caixa de Pandora 90 ss e é uma punição imposta por Zeus porque Prometeu o astuto o traiu Desde então os deuses esconderam dos homens a vida 42 ss e sua maldição atinge os homens comedores de pão 82 Além disso Hesíodo aceita como natural que o trabalho em uma fazenda seja feito por escravos e animais domésticos Louva a vida cotidiana o que para um grego já é bastante extraordinário mas o seu ideal é o fazendeirocavalheiro e não o trabalhador que fica em casa e mantémse afastado tanto das aventuras do mar e quanto dos assuntos públicos da ágora 29 ss cuidando apenas de sua vida 9 Aristóteles inicia sua famosa discussão da escravidão Política 1253b25 com a afirmação de que sem o necessário nem a vida nem a boa vida é possível Ser um senhor de escravos é a forma humana de assenhorearse da necessidade e portanto não é para physin contra a natureza a própria vida o exige Portanto os camponeses que suprem as coisas necessárias à vida são classificados tanto por Platão como por Aristóteles na mesma categoria que os escravos cf Robert Schlaifer Greek theories of slavery from Homer to Aristotle Harvard Studies in Classical Philology v XLVII 1936 10 É nesse sentido que Eurípedes chama todos os escravos de maus eles veem tudo do ponto de vista do estômago Suplementum Euripideum Ed Arnim frag 49 n 2 11 Assim Aristóteles recomendava que os escravos incumbidos de ocupações livres ta eleuthera tōn ergōn fossem tratados com mais dignidade e não como escravos Por outro lado quando nos primeiros séculos do Império Romano certas funções públicas que sempre haviam sido executadas por escravos públicos passaram a ser consideradas mais dignas e mais importantes esses servi publici que na verdade cumpriam tarefas de funcionários públicos receberam permissão de usar toga e desposar mulheres livres 12 As duas qualidades que segundo Aristóteles o escravo não possui e é por causa desses defeitos que ele não é humano são a faculdade de deliberar e decidir to bouleutikon e a de prever e escolher proairesis Isto é naturalmente apenas um modo mais explícito de dizer que o escravo é sujeito à necessidade 13 Cícero De re publica v 2 14 A criação do homem por meio do trabalho humano foi uma das mais persistentes ideias de Marx desde sua juventude Essa ideia pode ser encontrada em variantes diversas no Jugendschriften em que na Kritik der Hegelschen Dialektik ele a atribui a Hegel cf MarxEngels Gesamtausgabe Parte I v 5 Berlim 1932 p 156 e 167 Fica claro no contexto que Marx realmente pretendia substituir a tradicional definição do homem como animal rationale ao definilo como um animal laborans Reforça a teoria uma sentença da Deutsche Ideologie que mais tarde foi suprimida Der erste geschichtliche Akt dieser Individuen wodurch sie sich von den Tieren unterscheide n ist nicht dass sie denken sondern dass sie anfangen ihre Lebensmittel zu produzieren ibid p 568 Formulações semelhantes ocorrem nos Manuscritos econômicofi losóficos ibid p 125 e na Sagrada Família ibid p 189 Engels empregou formulações semelhantes muitas vezes por exemplo no Prefácio de 1884 a Origem da família e no artigo de jornal de 1876 Labour in the transition from ape to man cf Marx K Engels F Selective works Londres 1950 v II Parece que foi Hume e não Marx o primeiro a insistir em que o trabalho distingue o homem do animal Adriano Tilgher Homo Faber 1929 edição inglesa Work what it has meant to men through the ages 1930 Como o trabalho não desempenha qualquer papel importante na filosofia de Hume esse f ato tem interesse apenas histórico para ele essa característica não tornava a vida humana mais produtiva mas somente mais árdua e mais dolorosa que a vida animal Contudo é interessante nesse contexto notar com que cuidado Hume insistia repetidamente que nem o pensamento nem o raciocínio distinguem o homem do animal e que o comportamento das bestas demonstra que eles são capazes de ambos 15 A riqueza das nações Ed Everyman II 302 16 A distinção entre trabalho produtivo e improdutivo se deve aos fisiocratas que diferenciavam entre classes produtoras proprietárias e estéreis Como afirmavam que a fonte original de toda produtividade residia nas forças naturais da terra o critério de produtividade que adotavam tinha a ver com a criação de novos objetos e não com as necessidades e carências dos homens Assim o marquês de Mirabeau pai do famoso orador chama de estéril la classe douvriers dont les travaux quoique nécessaires aux besoins des hommes et utiles à la société ne sont pas néanmoins productifs e exemplifica sua distinção entre obra estéril e produtiva comparandoa à diferença entre cortar uma pedra e produzila cf Jean Dautry La notion de travail chez SaintSimon et Fourier Journal de psychologie normale et pathologique v LII n 1 janmar 1955 17 Essa esperança acompanhou Marx do princípio ao fim Já a encontramos na Deutsche Ideologie Es handelt sich nicht darum die Arbeit zu befreien sondern sie aufzuheben Gesamtausgabe Parte I v 3 p 185 e muitas décadas depois no terceiro volume de Das Kapital Capítulo 48 Das Reich der Freiheit beginnt in der Tat erst da wo das Arbeiten aufhört MarxEngels Gesamtausgabe Parte II Zurique 1933 p 873 18 Em sua introdução ao segundo livro de A riqueza das nações Ed Everyman I p 241 ss Adam Smith destaca que a produtividade se deve antes à divisão do trabalho que ao próprio trabalho 19 Cf a Introdução de Engels ao Wage labour and capital de Marx em Marx Engels Selected works Londres 1950 I 384 no qual Marx introduzira o novo termo com certa ênfase 20 Marx sempre ressaltou especialmente em sua juventude que a principal função do trabalho era a produção da vida e portanto considerava o trabalho em conjunto com a procriação cf Deutsche Ideologie p 19 e Wage labour and capital p 77 21 As expressões vergesellschafteter Mensch ou gesellschaftliche Menschheit eram frequentemente usadas por Marx para indicar o objetivo do socialismo conferir por exemplo o terceiro volume de Das Kapital p 873 e a décima das Teses sobre Feuerbach O ponto de vista do antigo materialismo é a sociedade civil o ponto de vista do novo é a sociedade humana ou a humanidade socializada Selected works II 367 Consistia na eliminação da lacuna entre a existência individual e a existência social do homem de sorte que esteno seu ser mais individual seria ao mesmo tempo um ser social um Gemeinwesen Jugendschriften p 113 Marx chama frequentemente essa natureza social de Gattungswesen do homem sua qualidade de membro da espécie e a famosa autoalienação marxiana é antes de tudo a alienação do homem em relação à sua Gattungswesen ibid p 89 Eine unmittelbare Konsequenz davon dass der Mensch dem Produkt seiner Arbeit seiner Lebenstätigkeit seinem Gattungswesen entfremdet ist ist die Entfremdung des Menschen vom dem Menschen A sociedade ideal é um estado de coisas no qual todas as atividades humanas derivam tão naturalmente da natureza humana como a secreção de cera deriva das abelhas para fazer o favo de mel viver e trabalhar para viver passam a ser a mesma coisa e a vida já não começará para o trabalhador onde a atividade do trabalho cessa Wage labour and capital p 77 22 O ataque original de Marx contra a sociedade capitalista não se devia à sua transformação de todos os objetos em mercadorias mas sim a que o trabalhador se comporta em relação ao produto do seu trabalho como se este lhe fosse um objeto estranho dass der Arbeiter zum Produkt seiner Arbeit als einem fremden Gegenstand sich verhält Jugendschriften p 83 em outras palavras que as coisas do mundo uma vez produzidas pelos homens são até certo ponto independentes da vida humana estranhas a ela 23 Por uma questão de conveniência seguirei a discussão de Cícero sobre ocupações liberais e servis de De officiis i 5054 Os critérios de prudentia e utilitas ou utilitas hominum são enunciados nos 151 e 155 A tradução de prudentia por Walter Miller na edição da Loeb Classical Library como um grau mais elevado de inteligência pareceme enganosa 24 A classificação da agricultura entre as artes liberais é naturalmente especificamente romana Não se deve a alguma utilidade especial da lavoura como suporíamos mas antes tem a ver com a ideia romana de patria segundo a qual o ager Romanus e não só a cidade de Roma é o lugar ocupado pelo domínio público 25 É essa utilidade para o mero viver que Cícero chama de mediocris utilitas 151 e elimina das artes liberais Novamente a tradução pareceme falha não se trata de profissões das quais advém considerável benefício à sociedade mas de ocupações que em nítido contraste com as citadas anteriormente transcendem a utilidade vulgar dos bens de consumo 26 Os romanos consideravam tão decisiva a diferença entre opus e operae que tinham dois tipos diferentes de contrato a locatio operis e a locatio operarum dos quais o último tinha papel insignificante uma vez que a maioria do trabalho era feita por escravos cf Edgar Loening Handwörterbuch der Staatswissenschaften 1890 I 742 ss 27 A opera liberalia era identificada com a obra intelectual ou antes espiritual na Idade Média cf Otto Neurath Beiträge zur Geschichte der Opera Servilia Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik v XLI 1915 n 2 28 H Wallon descreve esse processo sob o reino de Diocleciano les fonctions jadis serviles se trouvèrent anoblies élevées au premier rang de lÉtat Cette haute considération qui de lempereur se répandait sur les premiers serviteurs du palais sur les plus hauts dignitaires de lempire descendait à tous le s degrés des fonctions publiques le service public devint un office public Les charges les plus serviles les noms que nous avons cités aux fonctions de lesclavage sont revêtus de léclat qui rejaillit de la personne du prince Histoire de lesclavage dans lantiquité 1847 III 126 e 131 Antes desse enaltecimento dos serviços públicos os escribas eram classificados na mesma categoria dos vigias de edifícios públicos ou mesmo daqueles que conduziam os gladiadores à arena ibid p 171 Parecenos digno de nota o fato de que o enaltecimento dos intelectuais tenha coincidido com o estabelecimento de uma burocracia 29 O trabalho de algumas das mais respeitáveis categorias da sociedade não produz como no caso dos criados domésticos valor algum diz Adam Smith incluindo entre elas todo o exército e a marinha os funcionários públicos e as profissões liberais tais como as dos clérigos advogados médicos homens de letras de toda espécie A ob ra dessas pessoas como a declamação dos atores a arenga do orador ou a canção do músico perece no próprio instante de sua produção A riqueza das nações Livro I p 295296 Ed Everyman É óbvio que Smith não encontraria dificuldade alguma para classificar os nossos funcionários de escritório 30 Pelo contrário é duvidoso que qualquer pintura fosse jamais tão admirada quanto a estátua do Zeus de Fídias em Olímpia cujo poder mágico segundo se dizia fazia qualquer um esquecer suas aflições e penas quem não a tinha visto vivera em vão etc 31 J Locke Segundo tratado sobre o governo civil Seção 46 32 Política 1254a7 33 Na literatura mais antiga sobre o trabalho até o último terço do século XIX não era incomum que os autores insistissem na conexão entre o trabalho e o movimento cíclico no processo vital Assim SchulzeDelitzsch em uma palestra intitulada Die Arbeit Leipzig 1863 começa com uma descrição do ciclo desejoesforçosatisfação Beim letzten Bissen fängt schon die Verdauung an Contudo na volumosa literatura pósmarxiana sobre o problema do trabalho o único autor que enfatiza esse aspecto tão elementar da atividade do trabalho e teoriza sobre ele é Pierre Naville cujo La vie de travail et ses problèmes 1954 é uma das mais interessantes e talvez a mais original das contribuições recentes Discutindo os aspectos particulares da jornada de trabalho em contraposição a outras formas de medição du tempo de trabalho ele diz o seguinte Le trait principal est son caractère cyclique ou rythmique Ce caractère est lié à la fois à lesprit naturel et cosmologique de la journée et au caractère des fonctions physiologiques de lêtre humain quiil a en commun avec les espèces anim ales supérieures Il est évident que le travail devait être de prime abord lié à des rythmes et fonctions naturels Daí advém o caráter cíclico do dispêndio e da reprodução da força de t rabalho que determina a unidade de tempo da jornada de trabalho A mais importante intuição de Naville é a de que o caráter temporal da vida humana na medida em que não é simplesmente uma parte da vida da espécie está em nítido contraste com o caráter temporal cíclico da jornada de trabalho Les limites naturelles supérieures de la vie ne sont pas dictées comme celle de la journée par la nécessité et la possibilité de se reproduire mais au contraire par limpossibilité de se renouveler sinon à léchelle de lespèce Le cycle saccomplit en une fois et ne se renouvelle pas p 1924 34 O capital Ed Modern Library p 201 Essa fórmula é frequente na obra de Marx e sempre repetida quase verbatim Trabalho é a eterna necessidade natural de efetuar o metabolismo entre o homem e a natureza Ver por exemplo Das Kapital v I Parte 1 Capítulo 1 Seção 2 e Parte 3 Capítulo 5 A tradução inglesa padrão Ed Modern Library p 50 e 205 não alcança a precisão de Marx Encontramos quase a mesma formulação no v III de Das Kapital p 872 Obviamente quando Marx fala como frequentemente o faz do processo vital da sociedade não está pensando por metáforas 35 Marx denominou o trabalho consumo produtivo O capital Ed Modern Library p 204 e jamais perdeu de vista o fato de que se tratava de uma condição fisiológica 36 Toda a teoria de Marx está atrelada à intuição inicial de que o trabalhador antes de tudo reproduz sua própria vida ao produzir seus meios de subsistência Em seus primeiros escritos Marx pensava que os homens começam a distinguirse dos animais quando começam a produzir seus meios de subsistência Deutsche Ideologie p 10 É esse realmente o conteúdo da definição do homem como um animal laborans Mais digno de nota ainda é o fato de que em outros trechos Marx não se satisfaz com essa definição porque ela nã o distingue de modo suficientemente claro o homem dos animais A aranha realiza operações que lembram as de um tecelão e a abelha envergonharia muitos arquitetos na construção de seus alvéolos Mas o que distingue o pior dos arquitetos da melhor das abelhas é o fato de que o arquiteto erige sua estrutura na imaginação antes de construíla na realidade Ao fim de cada processodetrabalho temos um resultado que já existia na imaginação do trabalhador desde o começo O capital Ed Modern Library p 198 É óbvio que Marx aqui já não se referia ao trabalho mas à obra na qual não estava interessado e a melhor prova disso é que o elemento de imaginação aparentemente tão importante não desempenha papel algum em sua teoria do trabalho No terceiro volume de Das Kapital ele repete que o excedente de trabalho além dos limites das necessidades imediatas serve ao prolongamento progressivo do processo de reprodução p 872 e 278 A despeito de hesitações ocasionais Marx permaneceu convencido de que Milton produziu o Paraíso Perdido pela mesma razão pela qual o bichodaseda produz seda Theories of surplus value Londres 1951 p 186 37 J Locke Segundo tratado sobre o governo civil Seções 46 26 e 27 respectivamente 38 Ibid Seção 34 39 A expressão é de Karl Dunkmann Soziologie der Arbeit 1933 p 71 que observa corretamente que o título da grande obra de Marx é inadequado teria sido mais bem intitulada como System d er Arbeit 40 Essa curiosa formulação ocorre em Thorstein Veblen The theory of the leisure class 1917 p 44 41 O termo vergegenständlichen não ocorre muito frequentemente em Marx mas quando ocorre é sempre em um contexto crucial Cf Jugendschriften p 88 Das praktische Erzeugen ein er gegenständlichen Welt die Bearbeitung der unorganischen Natur ist die Bewährung des Menschen als eines bewussten Gattungswesens Das Tier produziert unter der Herrschaft des unmittelbaren Bedürfnisses während der Mensch selbst frei vom physischen Bedürfnis produziert und erst wahrhaft produziert in der Freiheit von demselben Aqui como no trecho de O Capital citado na nota 36 Marx obviamente introduz um conce ito inteiramente diferente de trabalho isto é fala de obra e de fabricação A mesma reificação é mencionada em Das Kapital v I Parte 3 Capítulo 5 embora de modo um tanto equívoco Die Arbeit ist vergegenständlicht und der Gegenstand ist verarbeiter O jogo de palavras em torno de Gegenstand torna obscuro o que de fato sucede no processo por meio da reificação uma coisa nova é produzida mas o objeto que esse processo transformou em coisa é do ponto de vista do processo apenas matériaprima e não uma coisa A tradução inglesa editada pela Modern Library p 201 deixa escapar o significado do texto alemão e assim esquivase do equívoco 42 Tratase de uma formulação recorrente nas obras de Marx Cf por exemplo Das Kapital v I Ed Modern Library p 50 e v III p 873874 43 Des Prozess erlischt im Produkt Das Kapital v I Parte 3 Capítulo 5 44 Adam Smith A riqueza das nações I 295 45 Locke Segundo tratado sobre o governo civil Seção 40 46 Adam Smith A riqueza das nações I 294 47 Locke Segundo tratado sobre o governo civil Seções 46 e 47 48 Lêtre et le travail 1949 de Jules Vuillemin é um bom exemplo do que acontece quando se tenta resolver as contradições e equívocos do pensamento de Marx Isso só é possível se se abandona inteiramente a evidência fenomênica e se começa a tratar os conceitos de Marx como se constituíssem por si mesmos um complicado quebracabeça de abstrações Assim o trabalho decorre aparentemente da necessidade mas na verdade realiza a obra da liberdade e afirma nosso poder no trabalho a necessidade express a para o homem uma liberdade oculta p 15 e 16 Em contraposição a essas tentativas de vulgarização sofisticada convém lembrar a atitude soberana do próprio Marx em relação à sua obra que é relatada por Kautsky na seguinte anedota Kautsky perguntou a Marx em 1881 se ele não pretendia editar suas obras completas ao que Marx respondeu Primeiro é preciso escrever essas obras Kautsky Aus der Frühzeit des Marxismus 1935 p 53 49 Das Kapital III 873 Na Deutsche Ideologie Marx afirma que die kommunistische Revolution die Arbeit beseitigt p 59 depois de ter afirmado algumas páginas antes p 10 que somente por meio do trabalho o homem se distingue dos animais 50 A formulação é de Edmund Wilson em To the Finland Station Ed Anchor 1953 mas essa crítica é familiar à literatura marxista 51 Cf Capítulo V 42 a seguir 52 Deutsche Ideologie p 17 53 Em parte alguma do Antigo Testame nto a morte é representada como a retribuição do pecado A maldição que expulsou o homem do paraíso tampouco o puniu com o trabalho e o nascimento apenas tornou o trabalho mais árduo e o nascimento doloroso Segundo Gênesis o homem adam fora criado para cuidar e zelar pelo solo adamah como o seu próprio nome que é a forma masculina de solo indica cf Gn 2 5 e 15 Nem havia ainda Adam para cultivar adamah Formou pois o Senhor Deus a Adam do pó de adamah E Ele Deus tomou a Adam e pôlo no jardim do Éden para ele o cultivar e guardar utilizo aqui a tradução de Martin Buber e Franz Rosenzweig Die Schrift Berlim nd A palavra cultivar leawod que mais tarde se tornou a palavra para trabalhar em hebraico t em a conotação de servir A maldição 3 1719 não menciona essa palavra mas o significado é claro o serviço para o qual o homem havia sido criado tornavase agora servidão O corrente malentendido popular da maldição se deve a uma interpretação inconsciente do Antigo Testamento à luz do pensamento grego Esse malentendido é geralmente evitado pelos autores católicos Conferir por exemplo Jacques Leclercq Leçons de droit naturel v IV Parte 2 Travail proprieté 1946 p 31 La peine du travail est le résultat du péché original Lhomme non déchu eût travaillé dans la joie mais il eût travaillé ou J Chr Nattermann Die moderne Arbeit soziologisch und theologisch betrachtet 1953 p 9 É interessante nesse contexto comparar a maldição do Antigo Testamento com a explicação aparentemente semelhante da aspereza do trabalho em Hesíodo Diz o poeta que os deuses para punir o homem esconderam dele a vida cf n 8 de sorte que ele tinha de procurála ao passo que aparentemente tudo o que precisava fazer antes era colher os frutos da terra nos campos e n as árvores Aqui a maldição consiste não apenas na aspereza do trabalho mas no próprio trabalho 54 Todos os autores da era moderna concordam em que o lado bom e produtivo da natureza humana é refletido pela sociedade enquanto sua maldade torna o governo necessário Como disse Thomas Paine A sociedade é produzida por nossas necessidades e o governo por nossa maldade a primeira promove nossa felicidade positivamente unindo nossas afeições enquanto o segundo o faz negativamente impondo limites aos nossos vícios Em todo Estado a sociedade é uma bênção mas o governo mesmo no melhor dos Estados é um mal necessário Common sense 1776 Ou ainda Madison Mas o que é o governo senão um dos maiores reflexos da natureza humana Se os homens fossem anjos não haveria necessidade de governo Se os homens fossem governados por anjos não haveria necessidade de controles externos ou internos The federalist Ed Modern Library p 337 55 Essa era a opinião de Adam Smith por exemplo que se mostrava indignado ante a extravagância pública do governo Toda ou quase toda a renda pública na maioria dos países é empregada para mante r mãos improdutivas A riqueza das nações I 306 56 Sem dúvida antes de 1690 ninguém concebia que o homem tivesse direito natural à propriedade em decorrência do seu trabalho depois de 1690 a ideia passou a ser um axioma da ciência social Richard Schlatter Private property the history of an idea 1951 p 156 Os conceitos de trabalho e de propriedade eram até mutuamente exclusivos enquanto trabalho e pobreza ponos e penia Arbeit e Armut formavam um par no sentido de que a atividade que correspondia ao estado de pobreza era o trabalho Platão portanto que afirmava que os trabalhadores escravos eram maus porque não eram senhores da parte animal deles tinha quase a mesma opinião sobre o estado de pobreza O homem pobre não é senhor de si mesmo pēnes ōn kai heautou mē kratōn Sétima carta 351A Nenhum dos autores clássicos jamais pensou no trabalho como uma possível fonte de riqueza Segundo Cícero que provavelmente apenas resume a opinião do seu tempo a propriedade é adquirida por antiga conquista vitória ou divisão legal aut vetere occupatione aut victoria aut lege De officiis i 21 57 Cf 8 acima 58 Segundo tratado sobre o governo civil Seção 26 59 Ibid Seção 25 60 Ibid Seção 31 61 Pareceme que certos tipos de vícios em drogas moderados e um tanto frequentes geralmente atribuídos a propriedades formadoras de hábito dessas drogas talvez se devam ao desejo de repetir o prazer alguma vez experimentado com o alívio da dor acompanhado por sua intensa sensação de euforia O próprio fenômeno era bem conhecido na Antiguidade ao passo que na literatura moderna encontro o único apoio para minha suposição em Isak Dinesen Converse at night in Copenhagen Last tales 1957 p 338 ss em que ela considera a cessação da dor um dos três tipos de felicidade perfeita Platão já se opunha àqueles que ao deixarem de sentir dor acreditam firmemente ter atingido a meta do prazer República 585A mas admite que esses prazeres misturados que se seguem à dor ou à privação são mais intensos que os prazeres puros como o de cheirar um aroma agradável ou o de contemplar figuras geométricas Curiosamente foram os hedonistas que tornaram o assunto confuso e não quiseram admitir que o prazer da cessação da dor fosse mais intenso que o prazer puro para não falar da mera ausência da dor Assim é q ue Cícero acusava Epicuro de ter confundido a mera ausência de dor com o prazer do alijamento da dor cf V Brochard Études de philosophie ancienne et de philosophie moderne 1912 p 252 ss E Lucrécio exclamou Pois não vedes que a natureza clama por duas coisas apenas um corpo livre da dor e uma mente livre de preocupações The nature of the universe Ed Penguin p 60 62 Brochard Études de philosophie ancienne et de philosophie moderne fornece um excelente resumo do pensamento dos filósofos dos últimos séculos da Antiguidade especialmente de Epicuro O caminho da firme felicidade sensual reside na capacidade da alma de fugir para um mundo mais feliz criado por ela mesma de modo que com o auxílio da imaginação ela pode sempre persuadir o corpo a experimentar o mesmo prazer que ele conhecera antes p 278 e 294 ss 63 É característico de todas as teorias que argumentam contra a capacidade dos sentidos de nos fornecer o mundo que retirem a visão de sua posição como o mais alto e mais nobre dos sentidos e substituamna pelo tato ou o gosto que na verdade são os sentidos mais privados ou seja aqueles nos quais o corpo ao perceber um objeto sente primeiramente a si mesmo Todos os pensadores que negam a realidade do mundo exterior teriam concordado com Lucrécio que disse Pois o tato e nada mais que o tato por tudo o que homens chamam sagrado é a essência de todas as nossas sensações corporais The nature of the universe p 72 Isso porém não é suficiente o tato ou o gosto em um corpo não irritado ainda transmite demais a realidade do mundo quando como um prato de morangos sinto o gosto dos morangos e não o próprio gosto ou para usar um exemplo de Galileu quando passo a mão primeiro sobre uma estátua de mármore depois sobre um homem vivo percebo o mármore e o corpo vivo e não primeiramente a minha mão a tocálos Assim ao tentar demonstrar que as qualidades secundárias como cores gostos cheiros não passam de meros n omes que residem unicamente no corpo sensível Galileu é forçado a desistir do seu próprio exemplo e a introduzir a sensação de ser titilado por uma pluma com o que conclui Acredito que as várias qualid ades atribuídas aos corpos naturais tais como gostos cheiros cores e outras possuem precisamente existência semelhante e não maior Il Saggiatore em Opere IV p 333 ss tradução citada por E A Burtt Metaphysical foundations of modern science 1932 Esse argumento pode se basear apenas naquelas experiências sensoriais nas quais o corpo voltase claramente para dentro de si mesmo e é portanto ejetado por assim dizer do mundo no qual normalmente se move Quanto mais forte f or a sensação interna do corpo mais plausível se torna o argumento Seguindo linha semelhante de raciocínio Descartes diz O mero movimento de uma espada que corta parte de nossa pele causanos dor mas nem por isso nos faz perceber o movimento ou a forma da espada E é certo que essa sensação de dor não é menos diferente do movimento que a provoca do que são as sensações que temos de cores sons cheiros ou sabores Principles Parte 4 traduzido por Haldane e Ross Philosophical works 1911 64 Essa conexão foi vagamente percebida pelos alunos de Bergson na França cf em especial Édouard Berth Les méfaits des intellectuels 1914 Capítulo I e George Sorel DAristote à Marx 1935 Pertence à mesma escola a obra do erudito italiano Adriano Tilgher Homo faber que enfatiza que a ideia de trabalho é central e constitui a chave do novo conceito e da nova imagem da vida ed inglesa p 55 A escola de Bergson como seu mestre idealiza o trabalho equacionandoo com a obra e a fabricação No entanto há uma semelhança marcante entre o motor da vida biológica e o élan vital de Bergson 65 Na sociedade comunista ou socialista todas as profissões se tornariam por assim dizer passatempos hobbies não haveria pintores mas apenas pessoas que entre outras coisas gastariam seu tempo também com a pintura ou seja pessoas que hoje fazem uma coisa amanhã fazem outra que caçam pela manhã pescam à tarde criam gado ao anoitecer são críticos após o jantar conforme julgarem conveniente sem por isso jamais chegarem a ser caçadores pescadores pastores ou críticos Deutsche Ideologie p 22 e 373 66 República 590C 67 Veblen The theory of the leisure class p 33 68 Sêneca De tranquillitate animae ii 3 69 Conferir a excelente análise de Winston Ashley The theory of natural slavery according to Aristotle and St Thomas Dissertation University of Notre Dame 1941 Capítulo 5 que enfatiza corretamente que acreditar que Aristóteles considerou os escravos como universalmente necessários meramente como ferramentas produtivas equivaleria a perder de vista completamente o argumento aristotélico Ele enfatiza antes a necessidade deles para o consumo 70 Max Weber Agrarverhältnisse im Altertum em Gesammelte Aufsätze zur Sozial und Wirtschaftsgeschichte 1924 p 13 71 Heródoto i 113 por exemplo eide te dia toutôn e passim Expressão semelhante ocorre em Plínio Naturalis historia xxix 19 alienis pedibus ambulamus alienis oculis agnoscimus aliena memoria salut amus aliena vivimus opera citado de R H Barrow Slavery in the Roman Empire 1928 p 26 Andamos com pés alheios vemos com olhos alheios reconhecemos e saudamos as pessoas com uma memória alheia vivemos de trabalho alheio 72 Aristóteles Política 1253b301254a18 73 Winston Ashley The theory of natural slavery according to Aristotle and St Thomas Capítulo 5 74 Conferir Viktor von Weizsäcker Zum Begriff der Arbeit em Festschrift für Alfred Weber 1948 p 739 O ensaio merece nota graças a certas observações esporádicas mas de modo geral é infelizmente inútil uma vez que Weizsäcker contrib ui para obscurecer ainda mais o conceito de trabalho com o pressuposto gratuito de que os seres humanos doentes têm de realizar um trabalho a fim de ficarem bons 75 Embora essa categoria de trabalhodiversão pareça à primeira vista tão geral que quase não tem sentido é característica sob outro aspecto a verdadeira oposição subjacente a ela é a oposição entre necessidade e liberdade e é realmente notável observar como é plausível para o pensamento moderno considerar o divertimento a fonte da liberdade À parte essa generalização podese dizer que as modernas idealizações do trabalho se enquadram grosso modo nas seguintes categorias 1 o trabalho é um meio de atingir um fim superior Essa é de modo geral a posição católica que tem o grande mérito de não ser capaz de fugir inteiramente à realidade de sorte que as íntimas conexões entre trabalho e vida e entre trabalho e dor são pelo menos usualmente mencionadas Um eminente representante dessa posição é Jacques Leclercq de Louvain especialmente em sua discussão do trabalho e da propriedade em Leçons de droit naturel 1946 v IV Parte 2 2 O trabalho é um ato de modelagem no qual dada estrutura é transformada em outra estrutura superior Essa é a tese central da famosa obra de Otto Lipmann Grundriss der Arbeitswissenschaft 1926 3 O trabalho em uma sociedade trabalhadora é puro prazer ou pode tornarse inteiramente tão satisfatório quanto as atividades do lazer cf Glen W Cleeton Making work human 1949 Essa é a posição adotada hoje por Corrado Gini em sua Ecconomica lavorista 1954 que considera os Estados Unidos como uma sociedade trabalhadora società lavorista na qual o trabalho é um prazer e onde todos querem trabalhar Conferir um resumo de sua posição em língua alemã em Zeitschrift für die gesamte Staatswissenschaft CIX 1953 e CX 1954 Aliás essa teoria é menos nova do que parece Foi formulada pela primeira vez por F Nitti Le travail humain et ses lois Revue internationale de sociologie 1895 que então afirmava inclusive que a ideia de que o trabalho é doloroso é um fato mais psicológico que fisiológico de sorte que a dor desaparecerá em uma sociedade em que todos trabalhem workArbeiten 4 Finalmente o trabalho é a confirmação do homem contra a natureza que é dominada por ele por meio do trabalho Esse é o pressuposto que subjaz explícita ou implicitamente à nova tendência especialmente francesa de um humanismo do trabalho Seu representante mais conhecido é Georges Friedmann Depois de todas essas teorias e discussões acadêmicas é um tanto reconfortante saber que a grande maioria dos trabalhadores workersArbeitern quando se lhe pergunta por que o homem trabalha workArbeitet responde simplesmente para poder viver ou para ganhar dinheiro cf Helmut Schelsky Arbeiterjugend Gestern und Heute 1955 cujas publicações são notavelmente isentas de preconceitos e idealizações 76 O papel do passatempo hobby na moderna sociedade trabalhadora é bastante surpreendente e talvez seja a raiz da experiência nas teorias sobre trabalhodiversão O que é especialmente digno de nota nesse contexto é que Marx que não tinha ideia alguma desse desdobramento esperava que em sua sociedade utópica livre do trabalho todas as atividades seriam exercidas de uma maneira muito semelhante aos passatempos 77 República 346 Assim a arte da aquisição afasta a pobreza como o remédio afasta a doença Górgias 478 Como o pagamento de seus serviços era voluntário Loening Handwörterbuch der Staatswissenschaften as profissões liberais devem realmente ter atingido notável perfeição na arte de ganhar dinheiro 78 A explicação moderna desse costume característico de toda a Antiguidade grega e latina de que sua origem está na crença de que o escravo é incapaz de dizer a verdade a não ser sob tortura Barrow Slavery in the Roman Empire p 31 é inteiramente errônea Ao contrário a crença é a de que ninguém pode inventar uma mentira sob tortura On croyait recueillir la voix même de la nature dans le cris de la douleur Plus la douleur pénétrait avant plus intime et plus vrai sembla être ce témoignage de la chair et du sang Wallon Histoire de lesclavage dans lantiquité I 325 A psicologia dos antigos era muito mais cônscia do que nós do elemento de liberdade de invenção livre que existe na mentira As necessidades introduzidas pela tortura supostamente destruíam essa liberdade e portanto ela não podia ser aplicada a cidadãos livres 79 As palavras mais antigas com que os gregos designavam os escravos douloi e dmōes significam ainda inimigo ve ncido Quanto às guerras e à venda de prisioneiros de guerra como principal fonte de escravos na Antiguidade cf W L Westermann Sklaverei em PaulyWissowa 80 Hoje devido aos novos aperfeiçoamentos de instrumentos de guerra e de destruição nos inclinamos a ignorar essa t endência muito importante da era moderna Na verdade o século XIX foi um dos períodos mais pacíficos da história 81 Wallon Histoire de lesclavage dans lantiquité III 265 Wallon demonstra de modo brilhante como a posterior generalização estóica de que todos os homens são escravos baseavase nos desdobramentos do Império Romano no qual a antiga liberdade foi gradualmente abolida pelo governo imperial até que finalmente ninguém era livre e todos tinham seu senhor O momento decisivo ocorreu quando primeiro Calígula e depois Trajano consentiram em ser chamados dominus palavra usada antes somente para designar o chefe de uma casa A chamada moralidade escrava da Antiguidade tardia e sua premissa de que não havia diferença real entre a vida do escravo e a vida do homem livre tinham um pano de fundo muito realista Agora o escravo realmente podia dizer ao amo ninguém é livre todos temos um senhor Nas palavras de Wallon Les condamnés aux mines ont pour confrères à un moindre degré de peine les condamnés aux moulins aux boulangeries aux relais publics à toute autre travail faisant lobjet dune corporation particulière p 216 Cest le droit de lesclavage qui gouverne maintenant le citoyen et nous avons retrouvé toute la législation propre aux esclaves dans les règlements qui concernent sa personne sa famille ou ses biens p 219220 82 A sociedade de Marx sem classes e sem Estado não é utópica À parte o fato de q ue os desdobramentos modernos têm uma tendência inconfundível no sentido de abolir distinções de classe na sociedade e de substituir o governo por aquela administração das coisas que segundo Engels seria a característica da sociedade socialista esses ideais no próprio Marx foram concebidos obviamente de acordo com a democracia ateniense com a exceção de que na sociedade comunista os privilégios dos cidadãos livres seriam estendidos a todos 83 Talvez não seja exagero dizer que La condi tion ouvrière 1951 de Simone Weil é o único livro na imensa literatura sobre a questão do trabalho que lida com o problema sem preconceitos e sem sentimentalismo A autora escolheu como lema para o seu diário no qual anotava suas experiências cotidianas em uma fábrica um verso de Homero poll aekadzomenē kraterē depikeiset anagkē muito contra a tua vontade pois a necessidade pesa mais poderosamente sobre ti e conclui que a esperança de uma liberação final do trabalho e da necessidade é o único elemento utópico do marxismo e ao mesmo tempo a verdadeira força motriz de todos os movimentos revolucionários trabalhistas de inspiração marxista É o ópio do povo que Marx acreditava que fosse a religião 84 Não é preciso dizer que esse lazer não é de modo algum como o afirma a opinião corrente o mesmo que a skholē da Antiguidade que não era um fenômeno de consumo conspícuo ou não e não resultava do aparecimento de tempo livre conquistado sobre o trabalho mas era ao contrário uma abstenção consciente de qualquer atividade ligada ao mero estar vivo tanto a atividade de consumir como a atividade de trabalhar A pedra de toque dessa skholē em contraposição ao moderno ideal de lazer era a bem conhecida e frequentemente descrita frugalidade da vida grega no período clássico Assim é típico que o comércio marítimo que mais que qualquer outra coisa era responsável pela riqueza em Atenas fosse encarado como suspeito de sorte que Platão seguindo o exemplo de Hesíodo recomendou a fundação de novas cidadesEstados longe do mar 85 Calculase que durante a Idade Média as pessoas raramente trabalhavam mais que a metade dos dias do ano Havia 141 feriados oficiais cf Levasseur Histoire des classes ouvrières et de lindustrie en France avant 1789 p 329 cf também Liesse Le travail 1899 p 253 sobre o número de dias de trabalho working dayArbeitstages na França antes da Revolução A monstruosa extensão do dia de trabalho é típica do início da Revolução Industrial quando os trabalhadores tiveram de competir com as máquinas recémintroduzidas Antes disso a duração do dia de trabalho era de 11 ou 12 horas na Inglaterra do século XV e 10 horas no século XVII cf H Herkner Arbeitszeit em Handwörterbuch für die Staatswissenschaft 1923 I p 899 ss Em resumo les travailleurs ont connu pendant la première moitié du 19e siècle des conditions dexistence pires que celles subies auparavant par les plus infortunées Édouard Dolleans Histoire du travail en France 1953 De modo geral superestimase o progresso alcançado em nosso tempo uma vez que este é medido em comparação com uma era sombria de fato É possível por exemplo que a expectativa de vida na maioria dos países altamente civilizados hoje corresponda apenas à de certos séculos da Antiguidade Não o sabemos naturalmente mas somos levados a essa suspeita quando refletimos sobre a idade em que morreram muitas pessoas famosas 86 Locke Segundo tratado sobre o governo civil Seção 28 87 Ibid Seção 43 88 Adam Smith A riqueza das nações I 295 OBRA 18 A durabilidade do mundo Aobra de nossas mãos distintamente do trabalho do nosso corpo o homo faber que produz e literalmente opera em1 distintamente do animal laborans que trabalha e se mistura com fabrica a infinita variedade de coisas cuja soma total constitui o artifício humano Em sua maioria mas não exclusivamente essas coisas são obj etos destinados ao uso dotadas da durabilidade de que Locke necessitava para o estabelecimento da propriedade e do valor de que Adam Smith precisava para o mercado de trocas e dão testemunho da produtividade que Marx acreditava ser o teste da natureza humana O uso adequado delas não causa seu desaparecimento elas dão ao artifício humano a estabilidade e a solidez sem as quais não se poderia contar com ele para abrigar a criatura mortal e instável que é o homem A durabilidade do artifício humano não é absoluta o uso que dele fazemos embora não o consumamos o desgasta O processo vital que pe rmeia todo o nosso ser também o invade e se não usarmos as coisas do mundo elas finalmente também perecerão e retornarão ao processo natural global do qual foram retiradas e contra o qual foram erigidas Se abandonada à própria sorte ou descartada do mundo humano a cadeira se converterá novamente em made ira e a madeira se deteriorará e retornará ao solo de onde surgiu a árvore que foi cortada para transformarse no material no qual operar e com o qual construir Mas embora esse possa ser o fim inevitável de cada coisa no mundo sinal de que são produtos de um fabricante mortal não é tão certo que seja o destino final do próprio artifício humano no qual todas as coisas podem ser constantemente substituídas com a mudança das gerações que chegam e habitam o mundo construído pelo homem e que se vão Além disso embora o uso esteja vinculado à deterioração desses objetos a deterioração não é o destino destes últimos no mesmo sentido em que a destruição é o fim intrínseco de todas as coisas destinadas ao consumo O que o uso desgasta é a durabilidade É essa durabilidade que confer e às coisas do mundo sua relativa independência dos homens que as produziram e as utilizam sua objetividade que as faz resistir se opor stand against2 e suportar pelo menos durante algum tempo as vorazes necessidades e carências de seus fabricantes e usuários vivos Desse ponto de vista as coisas do mundo têm a função de estabilizar a vida humana sua objetividade reside no fato de que contrariando Heráclito que disse qu e o mesmo homem jamais pode entrar no mesmo rio os homens a despeito de sua natureza sempre cambiante podem recobrar sua mesmidade sameness isto é sua identidade por se relacionarem com a mesma cadeira e a mesma mesa Em outras palavras contra a subjetividade dos homens afirmase a objetividade do mundo feito pelo homem e não a sublime indiferença de uma natureza intacta cuja esmagadora força elementar os forçaria ao contrário a voltear inexoravelmente no círculo do seu próprio movimento biológico que se harmoniza estreitamente com o movimento cíclico global do reino da natureza Somente nós que erigimos a objetividade de um mundo nosso a partir do que a natureza nos oferece que o construímos dentro do ambiente natural para assim nos proteger dele podemos observar a natureza como algo objetivo Sem um mundo interposto entre os homens e a natureza há eterno movimento mas não objetividade Embora o uso e o consumo como a obra e o trabalho não sejam a mesma coisa aparentemente se justapõem em certas áreas importantes a ponto de parecer justificar bem o acordo unânime com que a opinião pública e a opinião dos eruditos têm tornado idênticos esses dois tópicos diferentes O uso contém realmente certo elemento de consumo na medida em que o processo de desgaste wearingout process ocorre por meio do contato do objeto de uso com o organismo consumidor vivo e quanto mais estreito for o contato entre o corpo e a coisa usada mais plausível parecerá o equacionamento dos dois Se por exemplo concebermos a natureza dos objetos de uso em termos das roupas que vestimos seremos tentados a concluir que o uso é apenas um consumo em passo mais lento Contra isso há o argumento já mencionado de que a destruição embora inevitável é incidental com relação ao uso mas inerente ao consumo O que distingue o mais frágil par de sapatos dos meros bens de consumo é que ele não se estragará se não for usado o fato de que tem certa independência própria ainda que modesta que lhes permite sobreviver até por um tempo considerável aos estados de ânimo cambiantes de seu proprietário Usados ou não permanecerão no mundo durante certo tempo a não ser que sejam intencionalmente destruídos Argumento semelhante muito mais famoso e muito mais plausível poderia ser empregado em defesa da identificação da obra com o trabalho O trabalho humano mais necessário e elementar o cultivo do solo parece perfeito exemplo de trabalho que por assim dizer se transforma em obra no decorrer do processo Isso assim parece porque o cultivo do solo a despeito de sua íntima relação com o ciclo biológico e de sua completa dependência do ciclo mais amplo da natureza deixa atrás de si algum produto que sobrevive à própria atividade e constitui uma adição durável ao artifício humano a mesma tarefa executada ano após ano terminará por transformar o solo inculto em terra cultivada Exatamente por esse motivo tal exemplo figura com destaque em todas as teorias antigas e modernas do trabalho No entanto a despeito da inegável similaridade e embora sem dúvida a consagrada dignidade da agricultura se deva ao fato de que o cultivo do solo não só provê os meios de subsistência mas no decorrer do processo prepara a Terra para a construção do mundo a diferença ainda é bem clara a terra cultivada não constitui propriamente um objeto de uso que exista com durabilidade própria e exija para sua permanência somente o cuidado normal da preservação para que o solo cultivado permaneça cultivado ele precisa ser trabalhado continuamente Em outras palavras não chega a haver uma verdadeira reificação na qual a existência da coisa produzida é assegurada de uma vez por todas precisa ser continuamente reproduzida para que permaneça de algum modo como parte do mundo humano 19 Reificação Afabricação a obra do homo faber consiste em reificação A solidez inerente a todas as coisas mesmo à mais frágil resulta do material sobre o qual se operou mas esse mesmo material não é simplesmente dado e disponível como os frutos do campo e das árvores que podemos colher ou deixar em paz sem com isso alterar o lar da natureza O material já é um produto das mãos humanas que o retiraram de sua natural localização seja matando um processo vital como no caso da árvore que tem de ser destruída para que se obtenha a madeira seja interrompendo algum dos processos mais lentos da natureza como no caso do ferro da pedra ou do mármore arrancados do ventre da Terra Esse elemento de violação e d e violência está presente em toda fabricação e o homo faber criador do artifício humano sempre foi um destruidor da natureza O animal laborans que com o próprio corpo e a ajuda de animais domésticos nutre o processo da vida pode ser o amo e o senhor de todas as criaturas vivas mas permanece ainda o servo da natureza e da Terra só o homo faber se porta como amo e senhor de toda a Terra Como a sua produtividade era vista à imagem de um Deus Criador de sorte que enquanto Deus cria ex nihilo o homem cria a partir de determinada substância a produtividade humana por definição estava fadada a resultar em uma revolta prometeica pois só pode construir um mundo feito pelo homem após destruir parte da natureza criada por Deus3 A experiência dessa violência é a mais elementar experiência da força humana e portanto o exato oposto do esforço doloroso e exaustivo experimentado no simples trabalho Pode produzir a satisfação e a autoconfiança e até tornarse uma fonte de autoconfiança durante toda a vida coisas estas todas bem diferentes da bem aventurança que pode acompanhar uma existência dedicada ao trabalho e à labuta ou do próprio prazer de trabalhar passageiro mas intenso que surge quando o esforço é coordenado e ordenado ritmicamente e é essencialmente o mesmo que o prazer sentido em outros movimentos rítmicos do corpo A maioria das descrições das alegrias do trabalho quando não são tardios reflexos do contentamento bíblico com a vida e a morte não confunde simplesmente o orgulho de haver cumprido uma tarefa com a alegria de realizála têm a ver com a exultação sentida no violento empenho de uma força com a qual o homem se mede com as forças esmagadoras dos elementos e que por meio da astuciosa invenção das ferramentas sabe multiplicar muito além de sua medida natural4 A solidez resulta dessa força e não do prazer ou da exaustão que o homem sente quando provê o próprio sustento com o suor do seu rosto e não é simplesmente tomada de empréstimo ou colhida como dádiva gratuita da presença eterna da natureza embora fosse impossível sem o material arra ncado da natureza A solidez já é um produto das mãos do homem A verdadeira obra da fabricação work of fabricationHerstellung é executada sob a orientação de um modelo segundo o qual se constrói o objeto Esse modelo pode ser uma imagem vista pelos olhos da mente ou um esboço no qual a imagem já passou por um ensai o de materialização por meio da obra Em cada caso o que orienta a obra da fabricação está fora do fabricante e precede o efetivo processo da obra quase do mesmo modo que as urgências do processo vital no trabalhador precedem o efetivo de processo de trabalho Essa descrição está em flagrante contradição com as descobertas da psicologia moderna que nos dizem quase unanimemente que as imagens mentais estão tão seguramente localizadas em nossas cabeças quanto as dores da fome em nosso estômago Essa subjetivização da ciência moderna que é apenas um reflexo da subjetivização ainda mais radical do mundo moderno encontra justificação nesse caso no fato de que realmente a maior parte da obra no mundo moderno é realizada sob forma de trabalho de sorte que mesmo que o desejasse o operário não poderia trabalhar para sua obra antes que para si mesmo5 muitas vezes contribuindo para a produção de objetos de cujo aspecto final ele não tem a menor noção6 Essas circunstâncias embora de grande importância histórica são irrelevantes para uma descrição das articulações fundamentais da vita activa O que nos chama a atenção é o verdadeiro abismo que separa todas as sensações corporais prazer ou dor desejos e satisfações sensações tão privadas que não podem ser adequadamente verbalizadas menos ainda representadas no mundo exterior e portanto completamente impassíveis de reificação das imagens mentais que se prestam tão fácil e naturalmente à reifica ção que não podemos conceber a produção de uma cama sem ter antes alguma imagem alguma ideia de uma cama ante nosso olhar interior nem podemos imaginar uma cama sem recorrer a alguma experiência visual de uma coisa real Para o papel que a fabricação veio a desempenhar na hierarquia da vita activa é muito importante o fato de que a imagem ou o modelo cujo aspecto orienta o processo de fabricação não apenas o precede mas não desaparece depois de terminado o produto sobrevivelhe intacto pronto por assim dizer para prestarse a uma infinita continuação da fabricação Essa multiplicação potencial inerente à obra difere em princípio da repetição que caracteriza o trabalho Esta é exigida pelo ciclo biológico e permanece sujeita a ele as necessidades e carências do corpo humano vêm e vão e embora reapareçam sempre de novo em intervalos regulares jamais perduram muito tempo A multiplicação diferentemente da mera repetição multiplica algo que já possui uma existência relativamente estável e permanente no mundo Essa qualidade da permanência do modelo ou da imagem o fato de existir antes que a fabricação comece e de permanecer depois que esta termina sobrevivendo a todos os possíveis objetos de uso que continua ajudando fazer existir exerceu uma forte influência na doutrina das ideias eternas de Platão Na medida em que os seus ensinamentos foram inspirados pela palavra idea ou eidos aspecto ou forma que ele foi o primeiro a usar em um contexto filosófico eles baseavamse em experiências de poiēsis de fabricação fabrication e embora Platão empregasse a sua teoria para exprimir experiências muito dife rentes e talvez muito mais filosóficas nunca deixou de buscar seus exemplos no campo da produção making quando desejava demonstrar a plausibilidade do que dizia7 A ideia eterna única que preside uma multidão de coisas perecíveis adquire plausibilidade nos ensinamentos de Platão a partir da permanência e da unicidade do modelo segundo o qual muitos objetos perecíveis podem ser produzidos O processo de fabricação é inteiramente determinado pelas categorias dos meios e do fim A coisa fabricada é um produto final no duplo sentido de que o processo de produção termina com ela o processo desaparece no produto como disse Marx e de que é apenas um meio de produzir esse fim É verdade que o trabalho também produz para o fim do consumo mas como esse fim a coisa a ser consumida não tem a permanência mundana de uma peça da obra o fim do processo não é determinado pelo produto final e sim pela exaustão da força de trabalho enquanto por outro lado os próprios produtos imediatamente tornamse meios novamente meios de subsistência e de reprodução da força de trabalho No processo de fabricação ao contrário o fim é indubitável ocorre quando uma coisa inteiramente nova com suficiente durabilidade para permanecer no mundo como um ente independente é acrescentada ao artifício humano No tocante à coisa ao produto final da fabricação o processo não precisa repetirse O impulso para a repetição decorre da necessidade que tem o artífice de ganhar os seus meios de subsistência caso em que sua obra coincide com seu trabalho ou resulta de uma demanda de multiplicação no mercado caso em que o artífice que cuida de satisfazer essa demanda acrescentou a seu ofício a arte de ganhar dinheiro como diria Platão O importante é que em cada caso o processo é repetido por motivos externos a ele mesmo distintamente da repetição compulsória inerente ao trabalho no qual o homem tem de comer para trabalhar e trabalhar para comer A característica da fabricação é ter um começo definido e um fim definido e previsível e essa característica é bastante para distinguila de todas as outras atividades humanas O trabalho preso ao movimento cíclico do processo vital do corpo não tem começo nem fim A ação como veremos adiante embora tenha um começo definido jamais tem um fim previsível Essa grande confiabilidade da obra refletese no fato de que o processo de fabricação ao contrário da ação não é irreversível cada coisa produzida por mãos humanas pode ser destruída por elas e nenhum objeto de uso é tão urgentemente necessário ao processo vital que o seu fabricante não possa arcar com sua destruição e sobreviver a ela O homo faber é realmente amo e senhor não apenas porque é o senhor ou se estabeleceu como senhor de toda a natureza mas porque é senhor de si mesmo e de seus atos Isso nã o se aplica ao animal laborans sujeito às necessidades de sua própria vida nem ao homem de ação que depende de seus semelhantes A sós com a sua imagem do futuro produto o homo faber é livre para produzir e também a sós diante da obra de suas mãos é livre para destruir 20 A instrumentali dade e o animal laborans Do ponto de vista do homo faber inteiramente conf iante nos utensílios primordiais que são as suas mãos o homem é como disse Benjamin Franklin um fabricante de instrumentos toolmaker Os mesmos utensílios que apenas mecanizam e aliviam o fardo do trabalho do animal laborans são projetados e inventados pelo homo faber para a edificação de um mundo feito de coisas e sua conveniência e precisão são ditadas pelos propósitos objetivos que ele desejar inventar mais que por necessidades ou carências subjetivas Ferramentas e instrumentos são objetos tão intensamente mundanos que podemos classificar civilizações inteiras empregando os como crit ério Contudo em parte alguma seu caráter mundano é mais manifesto que quando são usados nos processos do trabalho nos quais constituem realmente as únicas coisas tangíveis que sobrevivem tanto ao trabalho quanto ao próprio processo de consumo Portanto para o animal laborans sujeito aos processos devoradores da vida e constantemente ocupado com eles a durabilidade e a estabilidade do mundo são representadas antes de tudo pelos instrumentos e ferramentas que ele utiliza e em uma sociedade de trabalhadores as ferramentas assumem muito provavelmente um caráter ou função mais que meramente instrumental As frequentes queixas que ouvimos quanto à perversão de meios e fins na sociedade moderna acerca de homens que se tornam servos das máquinas que eles mesmos inventaram e são adaptados às suas exigências ao invés de usálas como instrumentos para a satisfação das necessidades e carências humanas têm suas raízes na situação factual do trabalho Nessa situação na qual a produção consiste antes de tudo no preparo para o consumo a própria distinção entre meios e fins tão característica das atividades do homo faber simplesmente não faz sentido e portanto os instrumentos que o homo faber inventou e com os quais veio em auxílio do trabalho do animal laborans perdem seu caráter instrumental assim que são usados por este último Dentro do próprio processo vital do qual o trabalho permanece como parte integrante e ao qual jamais transcende é ocioso fazer perguntas que pressuponham a categoria dos meios e do fim como por exemplo se os homens vivem e consomem para ter força para trabalhar ou se trabalham para ter os meios de consumo Se considerarmos em termos de comportamento humano essa perda da faculdade de distinguir claramente entre meios e fins podemos dizer que a livre disposição e uso de instrumentos para a fabricação de um produto final específico são substituídos pela unificação rítmica do corpo trabalhador com seus utensílios na qual o próprio movimento do trabalho age como força unificadora O trabalho mas não a obra requer para obter melhores resultados uma execução ritmicamente ordenada e na medida em que muitos operários se aglomeram exige uma c oordenação rítmica de todos os movimentos individuais8 Nesse movimento as ferramentas perdem seu caráter instrumental e a clara distinção entre o homem e seus utensílios é toldada O que preside o processo de trabalho e todos os processos da obra executados à maneira do trabalho não são o esforço propositado do homem nem o produto que ele possa desejar mas o próprio movimento do processo e o ritmo que este impõe aos trabalhadores Os utensílios do trabalho são tragados por esse ritmo até que o corpo e a ferramenta volteiem no mesmo movimento repetitivo isto é até que no uso das máquinas que dentre todos os utensílios melhor se ajustam à execução do animal laborans já não é o movimento do corpo que determina o movimento do utensílio mas sim o movimento da máquina que compele os movimentos do corpo O fato é que nada pode ser mais facilmente e menos artificialmente mecanizado que o ritmo do processo do trabalho que por sua vez corresponde ao ritmo repetitivo do processo vital igualmente automático e ao seu metabolismo com a natureza Precisamente por não utilizar instrumentos e ferramentas para construir um mundo mas para facilitar os trabalhos de seu próprio processo vital o animal laborans sempre viveu literalmente em um mundo de máquinas desde que a Revolução Industrial e a emancipação do trabalho substituíram quase todas as ferramentas manuais por máquinas que de uma forma ou de outra suplantaram a força de trabalho labor powerArbeitskraft humana mediante a potência power superior das forças naturais natural forcesNaturgewalten A diferença decisiva entre ferramentas e máquinas talvez seja mais bem exemplificada com a discussão aparentemente infindável de se o homem deve ser ajustado à máquina ou se as máquinas devem ser ajustadas à natureza do homem No primeiro capítulo mencionamos o motivo principal pelo qual tal discussão é necessariamente estéril se a condição humana consiste no fato de que o homem é um ser condicionado para quem tudo seja dado pela natureza ou feito por ele próprio se torna imediatamente condição para sua existência posterior então o homem ajustouse a um ambiente de máquinas desde o instante em que as concebeu Sem dúvida as máquinas tornaramse condição tão inalienável de nossa existência como os utensílios e ferramentas o foram em todas as eras anteriores Assim do nosso ponto de vista o interesse da discussão reside antes no fato de ter sido levantada essa questão de ajustamento Nunca houve dúvida de que o homem se ajustava ou precisava de ajuste especial às ferramentas que utilizava da mesma forma como uma pessoa se ajusta às próprias mãos O caso das máquinas é inteiramente diferente Ao contrário das ferramentas da manufatura que em cada momento dado no processo da obra permanecem servas da mão as máquinas exigem que o trabalhador as sirva que ajuste o ritmo natural do seu corpo ao movimento mecânico delas Certamente isso não implica que os homens enquanto tais se ajustem ou se tornem servos de suas máquinas mas significa que enquanto dura a obra nas máquinas o processo mecânico substitui o ritmo do corpo humano Mesmo a mais sofisticada ferramenta permanece como serva incapaz de guiar ou de substituir a mão Mesmo a mais primitiva máquina guia o trabalho do nosso corpo até finalmente substituílo por completo Como tão frequentemente ocorre com os desdobramentos históricos parece que as verdadeiras implicações da tecnologia isto é da substituição de ferramentas e utensílios pela maquinaria só vieram à luz em seu derradeiro estágio com o advento da automação Para nossos propósitos talvez seja útil lembrar mesmo brevemente os principais estágios do desenvolvimento da moderna tecnologia desde o início da era moderna O primeiro estágio a invenção da máquina a vapor que levou à Revolução Industrial era ainda caracterizado pela imitação de processos naturais e pelo uso de forças naturais para finalidades humanas que em princípio ainda não diferia do antigo uso das forças da água e do vento A novidade não era o princípio da máquina a vapor mas sim a descoberta e o uso das minas de carvão para alimentála 9 As ferramentasmáquina machine tools desse primeiro estágio refletem essa imitação de processos conhecidos naturalmente elas também imitam e intensificam o vigor das atividades naturais da mão humana Mas hoje nos é dito que a maior armadilha a evitar é a suposição de que a finalidade do desenho seja reproduzir os movimentos da mão do operador operator ou trabalhador10 O próximo estágio é caracterizado principalmente pelo uso da eletricidade e realmente a eletricidade continua a determinar o estágio atual de desenvolvimento técnico Esse estágio já não pode ser descrito em termos de uma gigantesca ampliação e continuação dos antigos ofícios e artes e é somente a este mundo que as categorias do homo faber para quem todo instrumento é um meio de atingir um fim prescrito já não se aplicam Pois agora já não usamos o material como a natureza nos fornece matando processos naturais interrompendoos ou imitando os Em todos esses casos alteramos e desnaturalizamos a natureza para nossos próprios fins mundanos de sorte que o mundo ou o artifício humano de um lado e a natureza de outro permanecem como duas entidades nitidamente separadas Hoje passamos a criar por assim dizer isto é a desencadear por nossa própria iniciativa processos naturais que jamais teriam ocorrido sem nós e ao invés de envolver cuidadosamente o artifício humano com defesas contra as forças elementares da natureza mantendoas tão distante quanto possível do mundo feito pelo homem canalizamos essas forças juntamente com o seu poder elementar para o próprio mundo Isso resu ltou em uma verdadeira revolução no conceito de fabricação a manufatura que sempre havia sido uma série de passos separados tornouse um processo contínuo o processo da esteira transportadora ou da linha de montagem11 A automação representa o estágio mais recente desse desenvolvimento e realmente ilumina toda a história do maquinismo machinism12 Sem dúvida permanecerá o ponto culminante do desenvolvimento moderno ainda que a era atômica e uma tecnologia baseada em descobertas nucleares ponham um fim um tanto rápido nela Os primeiros instrumentos da tecnologia nuclear os vários tipos de bombas atômicas que se deflagradas em quantidades suficientes que não precisam ser muito grandes poderiam destruir toda a vida orgânica da Terra apresentam uma evidência suficiente da enorme escala em que tal mudança poderia ocorrer Nesse caso já não se trataria de desencadear e liberar processos naturais elementares mas de manejar na Terra e na vida cotidiana energias e forças que só ocorrem fora da Terra no unive rso o que já é feito mas somente nos laboratórios de pesquisas dos físicos nucleares13 Se a atual tecnologia consiste em canalizar forças naturais para o mundo do artifício humano a tecnologia do futuro pode vir a consistir em canalizar forças universais do cosmo que nos rodeia para a natureza da Terra Resta ver se essas técnicas futuras transformarão o lar da natureza tal como o conhecemos desde o começo de nosso mundo na mesma medida ou ainda mais do que a atual tecnologia alterou a mundanidade do artifício humano A canalização de forças naturais para o mundo humano estilhaçou o próprio caráter propositado do mundo o fato de que os objetos são os fins para os quais os instrumentos e ferramentas são projetados É característico de todos os processos naturais o fato de surgirem sem o auxílio do homem e de que as coisas naturais não são produzidas mas vêm a ser por si mesmas aquilo em que se tornam É esse também o significado autêntico de nossa palavra natureza quer a derivemos da raiz latina nasci nascer quer a remetamos à sua origem grega physis que vem de phyein surgir de aparecer por si mesmo Ao contrário dos produtos de mãos humanas que têm de ser feitos passo a passo e para os quais o processo de fabricação é inteiramente distinto da existência da coisa fabricada a existência da coisa natural não é separada mas de certa forma idêntica ao processo através do qual ela passa a existir a semente contém e em certo sentido já é a árvore e a árvore deixa de viver se o processo de crescimento através do qual passou a existir for interrompido Se observarmos esses processos contra o pano de fundo dos propósitos humanos que têm um começo voluntário e um fim definido eles assumem um caráter de automatismo Chamamos de automático todo movimento autopropulsado e portanto fora do alcance da interferência voluntária ou intencional Na modalidade de produção introduzida pela automação a diferença entre a operação e o produto bem como a precedência do produto sobre a operação que é apenas o meio para produzir o fim perdem seu sentido e tornamse obsoletas14 As categorias do homo faber e do seu mundo não se aplicam aqui como jamais poderiam aplicarse à natureza e ao universo natural Por sinal é por isso que os modernos defensores da automação geralmente se opõem tão firmemente à noção mecanicística da natureza e ao utilitarismo prático do século XVIII tão eminentemente característicos do modo unilateral e determinado da orientação do homo faber para a obra A discussão de todo o problema da tecnologia isto é da transformação da vida e do mundo pela introdução da máquina vem sendo estranhamente desencaminhada por uma concentração demasiado exclusiva no serviço ou desserviço que as máquinas prestam ao homem A premissa é de que toda ferramenta e todo utensílio destinam se basicamente a tornar mais fácil a vida do homem e menos doloroso o trabalho humano Sua instrumentalidade é concebida exclusivamente nesse sentido antropocêntrico Mas a instrumentalidade das ferramentas e dos utensílios relacionase muito mais intimamente com o objeto que eles se destinam a produzir e o seu mero valor humano limitase ao uso que deles faz o animal laborans Em outras palavras o homo faber o fazedor de ferramentas inventou as ferramentas e utensílios para construir um mundo e não pelo menos não principalmente para servir ao processo vital humano Assim a questão não é tanto se somos senhores ou escravos de nossas máquinas mas se estas ainda servem ao mundo e às coisas do mundo ou se pelo contrário elas e o movimento automático de seus processos passaram a dominar e mesmo a destruir o mundo e as coisas Uma coisa é certa o contínuo processo automático da manufatura eliminou não apenas a premissa injustificada de que mãos humanas guiadas por cérebros humanos constituem a eficiência ótima15 mas também a outra premissa muito mais importante de que as coisas do mundo que nos rodeiam devem depender do projeto humano e se r construídas segundo padrões humanos de utilidade ou de beleza Em lugar de utilidade e beleza que são padrões do mundo passamos a projetar produtos que ainda exercem certas funções básicas mas têm sua forma determinada primordialmente pela operação da máquina As funções básicas são naturalmente as funções do processo vital do animal humano visto que nenhuma outra função é basicamente necessária o próprio produto porém e não apenas suas variantes mas inclusive a mudança total para novo produto dependerá inteiramente da capacidade das máquinas16 Projetar objetos para a capacidade operacional das máquinas ao invés de projetar máquinas para produzir certos objetos equivaleria de fato a inverter completamente a categoria de meios e fim se essa categoria ainda tivesse algum sentido Mas mesmo o fim mais geral a liberação de força humana manpower geralmente atribuído às máquinas é tido agora como secundário e obsoleto inadequado e uma potencial limitação para um espantoso aumento de eficiência17 Nas condições atuais tornouse tão insensato descrever este mundo de máquinas em termos de meios e fins como sempre o foi indagar da natureza se ela produziu a semente para produzir uma árvore ou a árvore para produzir a semente Por isso mesmo é bastante provável que o contínuo processo que busca canalizar para o mundo humano os processos infindáveis da natureza embora possa perfeitamente destruir o mundo qua mundo como artifício humano provavelmente será capaz de atender às necessidades vitais da espécie humana com a mesma confiabilidade e amplitude com que a própria natureza o fez antes que os homens construíssem na Terra o seu lar artificial e erguessem uma barreira entre a natureza e eles mesmos Para uma sociedade de trabalhadores o mundo de máquinas tornouse um substituto para o mundo real embora este pseudomundo seja incapaz de realizar a mais importante tarefa do artifício humano que é a de oferecer aos mortais uma morada mais permanente e estável que eles mesmos Em seu contínuo processo de operação este mundo de máquinas está perdendo inclusive aquele caráter mundano independente que as ferramentas e utensílios e a primeira maquinaria da era moderna possuíam em tão alto grau Os processos naturais de que se alimenta o relacionam cada vez mais com o próprio processo biológico de sorte que os aparelhos que outrora manejávamos livremente começam a mostrarse como se fossem carapaças integrantes do corpo humano tanto quanto a carapaça é parte integrante do corpo da tartaruga Do ponto de vista desses desdobramentos a tecnologia realmente já não parece ser produto de um esforço humano consciente no sentido de ampliar a força material mas sim um desdobramento biológico da humanidade no qual as estruturas inatas do organismo humano são transplantadas em uma medida sempre crescente para o ambiente do homem18 21 A instrumentalidade e o homo faber Os utensílios e ferramentas do homo faber dos quais provém a experiência mais fundamental da instrumentalidade determinam toda obra e toda fabricação work and fabrication Herstellen und Fabrizieren Aqui é realmente verdade que o fim justifica os meios mais que isso o fim produz e organiza os meios O fim justifica a violência cometida contra a natureza para que se obtenha o material tal como a madeira justifi ca matar a árvore e a mesa justifica destruir a madeira É em atenção ao produto final que as ferramentas são projetadas e os utensílios são inventados e o mesmo produto final organiza o próprio processo da obra decide sobre os especialistas necessários a quantidade de cooperação o número de auxiliares etc Durante o processo da obra tudo é julgado em termos de adequação e serventia usefulness em relação ao fim desejado e a nada mais Os mesmos critérios de meios e fim aplicamse ao próprio produto Embora este seja um fim em relação aos meios pelos quais foi produzido e seja o fim do processo de fabricação nunca se converte por assim dizer em um fim em si mesmo pelo menos não enquanto permanece um objeto de uso A cadeira que é o fim da carpintaria só pode demonstrar sua utilidade ao tornarse novamente um meio seja como uma coisa cuja durabilidade permite seu uso como meio para uma vida mais confortável seja como um meio de troca O problema do critério de utilidade inerente à própria atividade de fabricação é que a relação entre meios e fim na qual se fia é muito semelhante a uma cadeia na qual todo fim pode novamente servir como meio em algum outro contexto Em outras palavras em um mundo estritamente utilitário todos os fins são constrangidos a serem de curta duração e a transformaremse em meios para alcançar outros fins19 Essa perplexidade intrínseca a todo utilitarismo sistemático que é por excelência a filosofia do homo faber pode ser diagnosticada teoricamente como uma incapacidade inata de compreender a diferença entre utilidade e significância que expressamos linguisticamente ao distinguirmos entre a fim de in order to e em razão de for the sake of Assim o ideal de utilidade que permeia uma sociedade de artífices como o ideal de conforto em uma sociedade de trabalhadores ou o ideal de aquisição que preside as sociedades comerciais já não é realmente uma questão de utilidade mas de significado É em razão da utilidade em geral que o homo faber julga e faz tudo em termos de a fim de O ideal de utilidade como os ideais de outras sociedades já não pode ser concebido como algo necessário a fim de se obter alguma outra coisa esse ideal simplesmente impugna o questionamento sobre seu próprio uso É óbvio que não há resposta à pergunta que Lessing certa vez dirigiu aos filósofos utilitaristas do seu tempo E qual o uso do uso A perplexidade do utilitarismo é que ele é capturado pela cadeia interminável de meios e fins sem jamais chegar a a lgum princípio que possa justificar a categoria de meios e fim isto é a categoria da própria utilidade O a fim de tornase o conteúdo do em razão de em outras palavras a utilidade instituída como significado gera a ausência de significado Dentro da categoria de meios e fim e entre as experiências da instrumentalidade que governam todo o mundo dos objetos de uso e a utilidade não há como pôr termo à cadeia de meios e fins e evitar que todos os fins voltem afinal a ser usados como meios a não ser declarar que determinada coisa é um fim em si mesma No mundo do homo faber onde tudo deve ter seu uso isto é servir como instrumento para a obtenção de outra coisa o próprio significado pode mostrarse apenas como um fim como um fim em si mesmo que é realmente ou uma tautologia aplicável a todos os fins ou uma contradição nos termos Pois um fim assim que é atingido deixa de ser um fim e perde sua capacidade de orientar e justificar a escolha de meios de organizálos e produzilos Passa a ser então um objeto entre objetos ou seja foi acrescentado ao enorme arsenal de coisas dadas do qual o homo faber seleciona livremente os meios de atingir seus fins O significado ao contrário deve ser permanente e nada perder de seu caráter quer ele seja alcançado ou antes encontrado pelo homem quer o homem fracasse e o perca O homo faber na medida em que é apenas um fabricante de coisas e em que pensa somente em termos dos meios e fins que decorrem diretamente de sua atividade da obra é tão incapaz de compreender o significado como o animal laborans é incapaz de compreender a instrumentalidade E tal como os utensílios e instrumentos que o homo faber usa para construir o mundo tornamse o próprio mundo para o animal laborans também a significação desse mundo que realmente está fora do alcance do homo faber tornase para ele o paradoxal fim em si mesmo A única saída do dilema de ausência de significado em toda filosofia estritamente utilitária é afastarnos do mundo objetivo de coisas de uso e recuarmos para a subjetividade do próprio uso Só em um mundo estritamente antropocêntrico onde o usuário isto é o próprio homem tornase o fim último que põe termo à cadeia infindável de meios e fins pode a utilidade como tal adquirir a dignidade da significação A tragédia porém é que no instante em que o homo faber parece ter se realizado nos termos de sua própria atividade ele passa a degradar o mundo das coisas que é o fim e o produto final de sua mente e de suas mãos Se o homem como usuário é o mais alto de todos os fins a medida de todas as coisas então não somente a natureza tratada pelo homo faber como o material quase sem valor sobre o qual ele opera mas as próprias coisas valiosas tornamse simples meios e com isso perdem o seu próprio valor intrínseco O utilitarismo antropocêntrico do homo faber encontrou sua mais alta expressão na fórmula de Kant nenhum homem pode jamais tornarse um meio para um fim todo ser humano é um fim em si mesmo Embora encontremos antes de Kant uma percepção das funestas consequências que um desobstruído e desorientado pensamento em termos de meios e fins invariavelmente tem para o domínio político por exemplo na insistência de Locke em que não se deve permitir que um homem seja dono do corpo de outro ou use a força do seu corpo é somente em Kant que a filosofia das primeiras fases da era moderna libertase inteiramente das trivialidades do bom senso encontradas sempre onde o homo faber dita os padrões da sociedade Naturalmente o motivo disso é que Kant não pretendia formular ou conceitualizar os princípios do utilitarismo do seu tempo mas ao contrário desejava antes de tudo pôr em seu devido lugar a categoria de meiosefim e evitar que fosse empregada no campo da ação política Não obstante sua fórmula não pode renegar sua origem no pensamento utilitário como é o caso de sua outra famosa e também inerentemente paradoxal interpretação da atitude do homem em relação aos únicos objetos que não são para o uso a saber as obras de arte com as quais ele disse que experimentamos um prazer sem qualquer interesse20 Pois a m esma operação que faz do homem o fim supremo permitelhe sujeitar se puder toda a natureza a esse fim21 isto é degradar a natureza e o mundo a simples meios privandoos de sua dignidade independente Nem mesmo Kant foi capaz de resolver o dilema ou iluminar a cegueira do homo faber no tocante ao problema do significado sem voltar ao paradoxal fim em si mesmo e essa perplexidade reside no fato de que embora somente a fabricação com sua instrumentalidade seja capaz de construir um mundo esse mesmo mundo tornase tão sem valor quanto o material empregado simples meios para outros fins quando se permite que os padrões que presidiram o seu surgimento prevaleçam depois que ele foi estabelecido Na medida em que é homo faber o homem instrumentaliza e sua instrumentalização implica a degradação de todas as coisas a meios a perda do seu valor intrínseco e independente de tal modo que finalmente não apenas os objetos da fabricação mas também a Terra em geral e todas as forças da natureza que claramente vêm a ser sem o auxílio do homem e possuem uma existência independente do mundo humano perdem seu valor porque não apresentam a reificação resultante da obra22 Não foi por outro motivo senão essa atitude do homo faber em relação ao mundo que os gregos em seu período clássico declararam que todo o campo das artes e ofícios no qual os homens operavam com instrumentos e faziam algo não pela satisfação de fazêlo mas para produzir outra coisa era banáusico palavra talvez mais bem traduzida como filisteu conotando a vulgaridade de pensar e agir em termos de conveniência A veemência desse desprezo não deixará de nos espantar se constatarmos que os grandes mestres da escultura e da arquitetura gregas de modo algum escapavam a esse veredicto O que está em jogo não é naturalmente a instrumentalidade como tal o emprego de meios para atingir um fim mas antes a generalização da experiência da fabricação na qual a serventia e a utilidade são estabelecidas como critérios últimos para a vida e para o mundo dos homens Essa generalização é inerente à atividade do homo faber porque a experiência dos meios e do fim como está presente na fabricação não desaparece com o produto acabado mas prolongase até o destino fi nal deste último que é o de servir como objeto de uso A instrumentalização de todo o mundo e de toda a Terra essa ilimitada desvalorização de tudo o que é dado esse processo de crescente ausência de significado no qual todo fim é transformado em um meio e que só pode ser interrompido quando se faz do próprio homem o amo e senhor de todas as coisas não provém diretamente do processo de fabricação pois do ponto de vista da fabricação o produto acabado é um fim em si mesmo uma entidade independente e durável dotada de existência própria tal como o homem é um fim em si mesmo na filosofia política de Kant Somente na medida em que a fabricação fabrica principalmente objetos de uso o produto acabado novamente se torna um meio e somente na medida em que o processo vital se apodera das coisas e as utiliza para seus fins é que a instrumentalidade limitada e produtiva da fabricação se transforma na instrumentalização ilimitada de tudo o que existe É bastante óbvio que os gregos temiam essa desvalorização do mundo e da natureza assim como seu inerente antropocentrismo a opinião absurda de que o homem é o ente mais elevado e de que tudo o mais está sujeito às exigências da vida humana Aristóteles da mesma forma como viam com desprezo a pura vulgaridade de todo utilitarismo consistente Talvez o melhor exemplo do quanto eles estavam conscientes das consequências de se considerar o homo faber como a mais elevada possibilidade humana seja o famoso argumento de Platão contra Protágoras e sua declaração aparentemente autoevidente de que o homem é a medida de todas as coisas de uso chrmata da existência das que existem e da inexistência das que não existem23 Evidentemente Protágoras não disse que o homem é a medida de todas as coisas como a tradição e as traduções consagradas o fizeram dizer O que importa nesse assunto é que Platão percebeu imediatamente que quando se faz do homem a medida de todas as coisas de uso é ao homem como usuário e instrumentalizador a quem se relaciona o mundo e não ao homem como orador homem de ação ou pensador E como é da natureza do homem como usuário e instrumentalizador considerar tudo como um meio para um fim considerar cada árvore como madeira em potencial isso tem de significar afinal que o homem se torna a medida não só das coisas cuja existência depende dele mas de literalmente tudo o que existe Nessa interpretação platônica Protágoras se afigura realmente como o primeiro precursor de Kant pois se o homem é a medida de todas as coisas então o homem é a única coisa que escapa à relação de meiosefim o único fim em si mesmo capaz de usar tudo o mais como meio Platão sabia perfeitamente que as possibilidades de produzir objetos de uso e de tr atar todas as coisas da natureza como potenciais objetos de uso são tão ilimitadas quanto as necessidades e os talentos do ser humano Se se permitir que os critérios do homo faber governem o mundo depois de construído como devem necessariamente presidir o nascimento desse mundo então o homo faber finalmente se servirá de tudo e considerará tudo o que existe como simples meios à sua disposição Julgará cada coisa como se ela pertencesse à categoria de chrēmata ou de objetos de uso de sorte que seguindo o exemplo de Platão o vento deixará de ser concebido como força natural existente por si mesmo para ser considerado exclusivamente consoante as necessidades humanas de calor e refrigério e isso naturalmente significaria que o vento como algo objetivamente dado seria eliminado da experiência humana Por conta de tais consequências Platão que no fim da vida lembra mais uma vez nas Leis o dito de Protágoras responde com uma fórmula quase paradoxal não o homem que em virtude de suas necessidades e talentos quer usar tudo e portanto termina por privar todas as coisas de seu valor intrínseco mas o deus é a medida mesmo dos simples objetos de uso24 22 O mercado de trocas Marx em um dos muitos apartes que testificam seu eminente senso histórico observou certa vez que a definição do homem por Benjamin Franklin como um fazedor de instrumentos é tão típica do ianquismo isto é da era moderna quanto a definição do homem como um animal político o era da Antiguidade25 A verdade dessa observação reside no fato de que a era moderna estava tão decidida a excluir de seu domínio público o homem político ou seja o homem que fala e age quanto a Antiguidade estava decidida a excluir o homo faber Em ambos os casos a exclusão não era tão natural quanto o era a exclusão dos trabalhadores e das classes destituídas de propriedade até sua emancipação no século XIX A era moderna era naturalmente perfeitamente consciente de que o domínio político nem sempre era e nem precisava necessariamente ser uma mera função da sociedade destinada a proteger o lado produtivo e social da natureza humana mediante a administração governamental mas via como palavras ocas e vãglória vainglory tudo o que não fosse a aplicação da lei e da ordem A capacidade humana sobre a qual a era moderna baseou sua reivindicação da produtividade natural inata da sociedade era a inq uestionável produtividade do homo faber A Antiguidade ao contrário conhecia perfeitamente bem tipos de comunidades humanas nas quais nem o cidadão da pólis nem a res publica como tal estabelecia e determinava o conteúdo do domínio público mas nas quais a vida pública do homem comum era limitada a operar para o povo em geral isto é a ser um dēmiourgos um operário para o povo em contraposição ao oiketēs que era um trabalhador doméstico e portanto um escravo26 A marca distintiva dessas comunidad es não políticas era que sua praça pública a agora não era um lugar de encontro para os cidadãos e sim a praça do mercado na qual os artífices podiam exibir e trocar produtos Além disso na Grécia os tiranos nutriam a ambição sempre frustrada de dissuadir os cidadãos da preocupação com os assuntos públicos do desperdício do seu tempo nos improdutivos agoreuein e politeuesthai e de transformar a agora em um conjunto de lojas semelhantes aos bazares do despotismo oriental O que caracterizava essa praça do mercado e mais tarde caracterizou os bairros comerciais e artesanais das cidades da Idade Média era que a exibição de bens para venda era acompanhada pela exibição da sua produção Na verdade a produção conspícua se nos for permitido modificar a expressão de Veblen é realmente uma peculiaridade da sociedade de produtores tanto quanto o consumo conspícuo é característico de uma sociedade de trabalhadores Ao contrário do animal laborans cuja vida social é sem mundo e gregária e que portanto é incapaz de construir ou habitar domínio público mundano o homo faber é perfeitamente capaz de ter um domínio público próprio embora não possa ser um domínio político propriamente dito O domínio público do homo faber é o mercado de trocas no qual ele pode exibir os produtos de sua mão e receber a estima que merece Essa inclinação para a habilidade na exibição pública showmanship é intimamente conectada com a propensão de barganhar permutar e trocar uma coisa por outra que segundo Adam Smith distingue os homens dos animais e possivelmente não menos arraigada que ela27 O fato é que o homo faber construtor do mundo e produtor de coisas só encontra sua relação apropriada com as outras pessoas trocando produtos com elas uma vez que é sempre no isolamento que ele os produz A privatividade exigida nos primórdios da era moderna como direito supremo de cada membro da socied ade era efetivamente a garantia de isolamento sem o qual nenhuma obra pode ser produzida Os observadores e espectadores dos mercados medievais onde o artífice era exposto em seu isolamento à luz do público não chegavam a ameaçar esse isolamento mas apenas o advento do domínio social no qual os outros não se contentam com olhar julgar e admirar mas querem ser admitidos na companhia dos artífices e com eles participar como iguais no processo da obra ameaçou o esplêndido isolamento do obrador e por conseguinte minou as próprias noções de competência e de excelência Esse isolamento em relação aos outros é a condição de vida necessária a toda maestria que consiste em estar a sós com a ideia a imagem mental da coisa que irá existir Diferentemente das formas políticas de dominação essa maestria é basicamente o domínio de coisas e materiais e não de pessoas Aliás este último tipo de domínio é bem secundário para a atividade da artesania e as palavras operário e mestre ouvrier e maître eram originalmente empregadas como sinônimos28 A única companhia que resulta diretamente da manufatura decorre unicamente do fato de que o mestre necessita de ajudantes ou deseja instruir outros em seu ofício Contudo a diferença entre sua qualificação e a ajuda não qualificada é temporária como a diferença entre adultos e crianças Dificilmente algo pode ser mais alheio à manufatura ou mais destrutivo que a obra em equipe que na verdade não passa de uma variante da divisão do trabalho e pressupõe a subdivisão das operações nos movimentos simples que as constituem29 A equipe sujeito multicéfalo de toda produção executada segundo o princípio da divisão do trabalho possui a mesma contiguidade das partes constituintes do todo e qualquer tentativa de isolamento por parte de seus membros seria fatal à produção Mas não é somente essa contiguidade que falta ao mestre e artífice quando ativamente engajado na produção as formas especificamente políticas de estar junto aos outros o agir em concerto e o fa lar entre si estão completamente fora do alcance de sua produtividade Somente quando o produto está terminado e o mestre e artífice para de operar é que ele pode abandonar seu isolamento Historicamente o último domínio público o último lugar de reunião que de alguma forma se relaciona com a atividade do homo faber é o mercado de trocas onde seus produtos são exibidos A sociedade comercial típica dos primeiros estágios da era moderna ou do início do capitalismo manufatureiro resultou dessa produção conspícua com sua concomitante fome de possibilidades universais de barganha e permuta e o seu fim chegou com a ascensão do trabalho e com a sociedade do trabalho que substituíram a produção conspícua e seu respectivo orgulho pelo consumo conspícuo e sua concomitante vaidade É verdade que as pessoas que se encontravam umas com as outras no mercado de trocas já não eram os próprios fabricantes e elas não se encontravam como pessoas mas como donos de mercadorias e valores de troca como foi abundantemente indicado por Marx Em uma sociedade na qual a troca de produtos tornouse a principal atividade política mesmo os trabalhadores porque confrontados com donos de dinheiro ou de mercadorias tornamse proprietários donos de sua força de trabalho É somente nesse ponto que principia a famosa autoalienação selfalienation de Marx com a degradação dos homens a mercadorias e essa degradação é característica da situação do trabalho em uma sociedade manufatureira que julga os homens não como pessoas mas como produtores segundo a qualidade de seus produtos Uma sociedade de trabalhadores ao contrário julga os homens segundo as funções que eles exercem no processo de trabalho enquanto a força de trabalho aos olhos do homo faber é apenas o meio de produzir o fim necessariamente superior isto é ou um objeto de uso ou um objeto para a troca a sociedade de trabalhadores confere à força de trabalho o mesmo valor superior que atribui à máquina Em outras palavras só aparentemente essa sociedade é mais humana embora seja verdade que em suas condições o preço do trabalho humano sobe a tal ponto que pode parecer mais estimado e mais valioso que qualquer matéria ou material dados na verdade ela apenas prefigura algo ainda mais valioso ou seja o funcionamento mais suave da máquina cuja tremenda força de processamento primeiro uniformiza para depois desvalorizar todas as coisas transformandoas em bens de consumo A sociedade comercial ou o capitalismo em seus primeiros estágios quando ainda possuía um espírito ardentemente competitivo e aquisitivo é ainda regulada pelos critérios do homo faber Quando o homo faber deixa seu isolamento surge como mercador e negociante e como tal estabelece o mercado de trocas Esse mercado deve existir antes do surgimento de uma classe manufatureira que então produz exclusivamente para o mercado isto é produz objetos de troca em vez de coisas para o uso Nesse processo que segue do artesanato isolado para a manufatura destinada ao mercado de trocas a qualidade do produto final acabado muda um pouco embora não inteiramente A durabilidade único critério que determina se uma coisa pode existir como uma coisa e perdurar no mundo como um ente distinto continua a ser o critério supremo apesar de ela já não produzir coisas adequadas ao uso e sim adequadas a serem armazenadas de antemão para troca futura30 Essa é a mudança de qualidade refletida na atual distinção entre valor de uso e valor de troca pela qual o segundo tem com o primeiro a mesma relação que o mercadornegociante tem com o fabricantemanufaturador Na medida em que o homo faber fabrica objetos de uso não apenas os produz na privatividade do isolamento mas também para a privatividade do uso da qual os produtos emergem e aparecem no domínio público como mercadorias no mercado de trocas Já se disse muitas vezes e infelizmente já se esqueceu outras tantas vezes que o valor sendo como é uma ideia da proporção entre a posse de uma coisa e a posse de outra na concepção do homem31 significa sempre valor de troca32 Pois é somente no mercado de trocas onde todas as coisas podem ser trocadas por outras que todas elas se tornam valores quer sejam produtos do trabalho ou da obra quer sejam bens de consumo ou objetos de uso quer necessários à vida do corpo ou ao conforto da existência ou à vida do espírito mind Esse valor consiste unicamente na estima do domínio público no qual as coisas aparecem como mercadorias e o que confere esse valor a um objeto não é o trabalho a obra o capital o lucro ou o material mas única e exclusivamente o domínio público no qual o objeto aparece para ser estimado reclamado ou negligenciado O valor é aquela qualidade que nenhuma coisa pode ter na privatividade mas que adquire automaticamente assim que aparece em público Esse valor negociável marketable value como assinalou Locke muito claramente nada tem a ver com a valia worth natural intrínseca de qualquer coisa33 que é uma qualidade objetiva da própria coisa independente da vontade do comprador ou vendedor individuais é algo ligado à própria coisa existente quer eles queiram ou não e que eles têm de reconhecer34 O valor intrínseco de uma coisa só pode ser mudado p or meio da mudança da própria coisa como uma pessoa pode arruinar o valor de uma mesa retirandolhe uma das pernas ao passo que o valor negociável de uma mercadoria é alterado pela alteração de alguma proporção entre essa mercadoria e outra coisa qualquer35 Em outras palavras ao contrário das coisas dos feitos ou das ideias os valores nunca são produtos de uma atividade humana específica mas passam a existir sempre que os objetos são trazidos para a relatividade da troca em constante mutação entre os membros da sociedade Ninguém como insistiu corretamente Marx visto em seu isolamento produz valores e poderia ter acrescentado ninguém em seu isolamento se preocupa com eles As coisas as ideias ou os ideais morais só se tornam valores em sua relação social36 A confusão reinante na economia clássica37 e a confusão maior que resultou do uso do termo valor value na filosofia foram originalmente causadas pelo fato de que a palavra mais antiga para valia worth que ainda encontramos em Locke foi suplantada pela expressão valor de uso use value aparentemente mais científica Mar x também aceitou essa terminologia e fiel à sua repugnância pelo domínio público percebeu de modo bastante consistente o pecado original do capitalismo na mudança do valor de uso para o valor de troca No entanto contra esses pecados de uma sociedade comercial onde realmente o mercado de trocas é o lugar público mais importante e onde consequentemente cada coisa se torna um valor intercambiável uma mercadoria Marx não invocou a valia objetiva intrínseca instrinsick objective worth à própria coisa Em seu lugar colocou a função que as coisas exercem no processo vital consumidor dos homens que desconhece tanto a valia worth objetiva e intrínseca quanto o valor value subjetivo e socialmente determinado Na socialista distribuição equânime de todos os bens a todos os que trabalham todas as coisas dissolvemse em meras funções no processo de regeneração da vida e da força de trabalho Essa confusão verbal porém contanos somente parte da história O motivo pelo qual Marx reteve teimosamente a expressão valor de uso bem como a razão das numerosas tentativas vãs de encontrar alguma fonte objetiva como o trabalho a terra ou o lucro para o nascimento dos valores é que ninguém achava fácil aceitar o simples fato de não existirem valores absolutos no mercado de trocas que é a esfera própria dos valores e de que procurar um valor absoluto se assemelharia a tentar a quadratura do círculo A tão deplorada desvalorização de todas as coisas isto é a perda de toda valia worth intrínseca começa com a sua transformação em valores values ou mercadorias uma vez que desse momento em diante elas passaram a existir somente em relação a alguma outra coisa que pode ser adquirida em seu lugar A relatividade universal o fato de que uma coisa só existe em relação a outras e a perda do valor intrínseco o fato de que tudo deixa de possuir valor objetivo independente da avaliação mutável da oferta e da procura são inerentes ao próprio conceito de valor value38 O motivo pelo qual esses desdobramentos que parecem inevitáveis em uma sociedade comercial tornaramse a fonte de profunda inquietação e chegaram a constituir o principal problema da nova ciência da economia não foi nem mesmo a relatividade como tal mas antes o fato de que o homo faber cuja atividade é aferida inteiramente pelo uso constante de escalas medidas regras e padrões não podia suportar a perda de padrões ou escalas absolutos Pois o dinheiro que obviamente serve de denominador comum a uma variedade de coisas de sorte que possam ser trocadas umas pelas outras não possui de modo algum a existência independente e objetiva capaz de transcender todo uso e sobreviver a toda manipulação que a escala ou qualquer outra forma de medição possuem em relação à coisa que devem medir e aos homens que as manuseiam É essa p erda de padrões e regras universais sem os quais o homem jamais poderia ter construído um mundo que Platão já pressentia na proposta protagórica de estabelecer o homem como fabricante de coisas e o uso que delas ele faz como a suprema medida destas últimas Isso mostra o quanto a relatividade do mercado de trocas está intimamente conectada com a instrumentalidade que resulta do mundo do artífice e da experiência da fabricação Na verdade a primeira desdobrase consistentemente e sem quebra de continuidade da segunda Mas a resposta de Platão de que não o homem mas um deus é a medida de todas as coisas seria um gesto moralizante vazio se realmente fosse verdadeiro que como presumia a era moderna a instrumentalidade disfarçada em utilidade governa o âmbito do mundo acabado tão exclusivamente quanto governa a atividade por meio da qual o mundo e todas as coisas nele contidas passaram a existir 23 A permanência do mundo e a obra de arte Entre as coisas que conferem ao artifício humano a estabilidade sem a qual ele jamais poderia ser um lar confiável para os homens há uma quantidade de objetos estritamente sem utilidade alguma e que ademais por serem únicos não são intercambiáveis e portanto resistem à igualação por meio de um denominador comum como o dinheiro se ingressam no mercado de trocas só podem ser apreçados arbitrariamente Além disso o relacionamento adequado com uma obra de arte certamente não é usála pelo contrário ela tem de ser cuidadosamente resguardada de todo o contexto dos objetos de uso comuns para que possa alcançar o seu lugar adequado no mundo Da mesma forma tem de ser resguardada das exigências e carências da vida diária com as quais tem menos contato que qualquer outra coisa Ao argumento não interessa se essa inutilidade dos objetos de arte sempre existiu ou se antigamente a arte servia às chamadas necessidades religiosas do homem tal como os objetos de uso comuns servem a necessidades mais comuns Ainda que a origem histórica da arte tivesse caráter exclusivamente religioso ou mitológico o fato é que a arte sobreviveu magnificamente à sua separação da religião da magia e do mito Dada su a excepcional permanência as obras de arte são as mais intensamente mundan as de todas as coisas tangíveis sua durabilidade permanece quase inalcançada pelo efeito corrosivo dos processos naturais uma vez que não estão sujeitas ao uso por criaturas vivas um uso que na verdade longe de realizar sua finalidade inerente como a finalidade de uma cadeira é realizada quando alguém se senta nela só pode destruíla Assim a durabilidade das obras de arte é de uma ordem superior àquela de que todas as coisas precisam para existir elas podem alcançar a permanência através das eras Nessa permanência a estabilidade de artifício humano que jamais pode ser absoluta por ele ser habitado e usado por mortais adquire representação própria Em nenhuma outra parte a mera durabilidade do mundo feito pelo homem aparece com tal pureza e claridade em nenhuma outra parte portanto esse mundocoisa thingworld se revela tão espetacularmente como a morada não mortal para seres mortais É como se a estabilidade mundana se tornasse transparente na permanência da arte de sorte que certo pressentimento de imortalidade não a imortalidade da alma ou da vida mas de algo imortal alcançado por mãos mortais tornouse tangivelmente presente para fulgurar e ser visto soar e ser escutado falar e ser lido A fonte imediata da obra de arte é a capacidade humana de pensar da mesma forma como no homem a propensão para a barganha e a permuta é a fonte dos objetos de troca e sua aptidão para usar é a fonte dos objetos de uso Tratase de capacidades do homem e não de meros atributos do animal humano como sentimentos carências e necessidades aos quais estão relacionadas e que muitas vezes constituem o seu conteúdo Essas propriedades humanas são tão alheias ao mundo que o homem cria como seu lar na Terra quanto as propriedades correspondentes de outras espécies animais e se elas tivessem de constituir um ambiente fabricado pelo homem para o animal humano esse ambiente seria um nãomundo nonworld um produto de emanação mais que de criação O pensar relacionase com o sentimento e transforma seu desalento mudo e inarticulado do mesmo m odo como a troca transforma a ganância crua do desejo e o uso transforma o anseio desesperado das necessidades até que todos se tornem adequados a adentrar o mundo e serem transformados em coisas serem reificados Em cada caso uma capacidade humana que por sua própria natureza é comunicativa e abertaaomundo worldopen transcende e libera no mundo uma apaixonada intensidade que estava aprisionada no simesmo self No caso das obras de arte a reificação é algo mais que mera transformação é uma transfiguração uma verdadeira metamorfose como se o curso da natureza que requer que tudo queime até virar cinzas fosse invertido de modo que até o pó pudesse irromper em chamas39 As obras de arte são coisas do pensamento mas nem por isso deixam de ser coisas O processo do pensamento não é capaz de produzir e fabricar por si próprio coisas tangíveis como livros pinturas esculturas ou composições da mesma forma como o uso é incapaz de produzir e fabricar por si próprio casas e móveis Naturalmente a reificação que ocorre quando se escreve algo quando se pinta uma imagem ou se modela uma figura ou se compõe uma melodia tem a ver com o pensamento que a precede mas o que realmente transforma o pensamento em realidade e fabrica as coisas do pensamento é a mesma manufatura workmanship que com a ajuda do instrumento primordial que são as mãos humanas constrói as coisas duráveis do artifício humano Dissemos anteriormente que essa reificação e materialização sem a qual nenhum pensamento pode tornarse uma coisa tangível ocorre sempre a um preço e que o preço é a própria vida é sempre na letra morta que o espírito vivo deve sobreviver uma morte da qual ele só pode ser resgatado quando a letra morta entra novamente em contato com uma vida disposta a ressuscitálo ainda que essa ressurreição dos mortos tenha em comum com todas as coisas vivas o fato de que ela também tornará a morrer Essa morte porém embora esteja presente de certa forma em toda arte como que indicando a distância entre a fonte original do pensamento no coração ou na cabeça do homem e seu destino final no mundo varia de uma arte para outra Na música e na poesia que são as menos materialistas das artes porque seu material consiste em sons e palavras a reificação e a manufatura workmanship necessárias são mínimas O jovem poeta e a criança prodígio na música podem atingir a perfeição sem muito treino e experiência fenômeno que dificilmente ocorre na pintura na escultura ou na arquitetura A poesia cujo material é a linguagem talvez seja a mais humana e a menos mundana das artes aquela cujo produto fi nal permanece mais próximo do pensamento que o inspirou A durabilidade de um poema é produzida por meio da condensação de modo que é como se a linguagem falada com extrema densidade e concentração fosse poética por si mesma Na poesia a recordação Mnēmosynē a mãe das musas é diretamente transformada em memória o meio do poeta para realizar essa transformação é o ritmo por meio do qual o poema fixase na lembrança quase que por si mesmo É essa proximidade com a lembrança viva que permite que o poema perdure retenha sua durabilidade fora da página escrita ou impressa e embora a qualidade de um poema possa estar submetida a vários padrões diferentes sua memorabilidade inevitavelmente determinará sua durabilidade isto é a possibilidade de ficar permanentemente fixado na lembrança da humanidade De todas as coisas do pensamento a poesia é a mais próxima deste último e dentre as obras de arte a que menos é uma coisa é um poema No entanto mesmo um poema não importa quanto tempo tenha existido como viva palavra falada na lembrança do bardo e dos que o escutaram será finalmente feito isto é escrito e transformado em uma coisa tangível entre as coisas pois a recordação e o dom da lembrança dos quais provém todo desejo de imperecibilidade necessitam de coisas que os façam rememorar para que eles próprios não venham a perecer40 O pensamento e a cognição não são a mesma coisa Fonte das obras de arte o pensamento se manifesta sem transformação ou transfiguração em toda grande filosofia ao passo que a principal manifestação dos processos cognitivos através dos quais adquirimos e acumulamos conhecimento são as ciências A cognição sempre persegue um fim definido que pode ser determinado tanto por considerações práticas como pela mera curiosidade mas uma vez atingido esse fim o processo cognitivo termina O pensamento ao contrário não tem outro fim ou propósito além de si mesmo e não chega sequer a produzir resultados não só a filosofia utilitária do homo faber mas os homens de ação e os entusiastas por resultados nas ciências jamais se cansaram de assinalar quão inteiramente inútil é o pensamento realmente tão inútil quanto as obras de arte que inspira E nem mesmo esses produtos inúteis o pensamento pode reivindicar para si pois estes como os grandes sistemas filosóficos dificilmente podem ser propriamente chamados de resultados do pensamento puro estritamente falando uma vez que é precisamente o processo do pensar que o artista ou o filósofo que escreve têm de interromper e transformar para a reificação materializante de sua obra A atividade de pensar é tão incessante e repetitiva quanto a própria vida perguntar se o pensamento tem algum significado configura o mesmo enigma irrespondível que a pergunta sobre o significado da vida os processos do pensamento permeiam tão intimamente toda a existência humana que o seu começo e o seu fim coincidem com o começo e o fim da própria vida humana Assim embora o pensamento inspire a mais alta produtividade mundana do homo faber não é de modo algum sua prerrogativa começa a afirmarse como fonte de inspiração do homo faber somente quando este se ultrapassa por assim dizer e se põe a produzir coisas inúteis objetos que não têm qualquer relação com carências materiais ou intelectuais com as necessidades físicas do homem ou com a sua sede de conhecimento Por outro lado a cognição toma parte em todos os processos não somente nos da obra intelectual ou artística como a própria fabricação ela é um processo que tem um começo e um fim cuja utilidade pode ser posta à prova e que se não produzir resultados terá fracassado como fracassa a maestria do carpinteiro quando ele fabrica uma mesa de duas pernas Os processos cognitivos das ciências não diferem basicamente da função da cognição na fabricação os resultados científicos produzidos por meio da cognição são acrescentados ao artifício humano como todas as outras coisas Além disso devemos distinguir tanto o pensamento como a cognição da capacidade de raciocínio lógico que se manifesta em operações tais como deduções de enunciados axiomáticos ou autoevidentes por si mesmos na subsunção de ocorrências particulares a regras gerais ou nas técnicas para prolongar cadeias sistemáticas de conclusões Nessas faculdades humanas estamos de fato diante de uma espécie de força cerebral que em mais de um aspecto assemelhase sobretudo à força de trabalho desenvolvida pelo animal humano em seu metabolismo com a natureza Os processos mentais que se alimentam da força cerebral são geralmente chamados de inteligência e essa inteligência pode realmente ser medida em testes de inteligência da mesma forma como a força física pode ser medida por outros meios Suas leis as leis da lógica podem ser descobertas como outras leis da natureza por se radicarem em última instância na estrutura do cérebro humano e para o indivíduo normalmente sadio possuem a mesma força compulsiva que a necessidade que regula as outras funções de nossos corpos É próprio da estrutura do cérebro humano ser compelido a admitir que dois mais dois sejam quatro Se fosse verdadeiro que o homem é um animal rationale no sentido em que a era moderna compreendeu essa ex pressão ou seja uma espécie animal que difere das outras pelo fato de ser dotada de uma força cerebral superior então as recéminventadas máquinas eletrônicas que às vezes para consternação e outras vezes para confusão dos seus inventores são tão espetacularmente mais inteligentes que os seres humanos seriam realmente homunculi Na realidade elas são como todas as máquinas meras substitutas e aperfeiçoadoras artificiais da força de trabalho humana adotando o consagrado expediente da divisão do trabalho de subdividir toda operação em seus movimentos constitutivos mais simples substituindo por exemplo a multiplicação pela adição iterativa A força superior da máquina manifestase em sua velocidade muito superior à da força do cérebro humano graças a essa velocidade sup erior a máquina pode dispensar a multiplicação que é o expediente técnico préeletrônico para acelerar a adição Tudo o que os computadores gigantescos provaram é que a era moderna estava errada ao acreditar com Hobbes que a racionalidade no sentido de calcular as consequências é a mais alta e a mais humana das capacidades do homem e que os filósofos da vida e do trabalho Marx ou Bergson ou Nietzsche estavam certos quando viam nesse tipo de inteligência que confundiam com a razão uma mera função do processo vital ou como dizia Hume uma mera escrava das paixões É óbvio que essa força cerebral e os processos lógicos coativos que dela resultam não são capazes de construir um mundo são tão semmundo worldless quanto os igualmente irresistíveis processos da vida do trabalho e do consumo Uma das mais surpreendentes discrepâncias da economia clássica é que os mesmos teóricos que se orgulhavam da consistência da sua perspectiva utilitária frequentemente censuravam a mera utilidade De modo geral sabiam muito bem que a produtividade específica da obra reside menos em sua utilidade que em sua capacidade de produzir durabilidade Com essa discrepância admitiam tacitamente a falta de realismo de sua própria filosofia utilitária Pois embora a durabilidade das coisas comuns seja apenas um débil reflexo da permanência de que são capazes as mais mundanas das coisas as obras de arte algo dessa qualidade que para Platão era divina por avizinharse da imortalidade é inerente a cada coisa enquanto uma coisa e é precisamente essa qualidade ou sua ausência que transparece em sua forma e as torna belas ou feias É verdade que um objeto comum de uso não é nem deve ser destinado a ser belo no entanto tudo o que possui alguma forma e é visto não pode deixar de ser belo ou feio ou algo entre belo e feio Tudo o que existe aparece necessariamente e nada pode aparecer sem ter forma própria portanto não existe de fato coisa alguma que de algum modo não transcenda o seu uso funcional e essa transcendência sua beleza ou feiúra corresponde ao seu aparecimento público e ao fato de ser vista Pelo mesmo motivo isto é em sua mera existência mundana todas as coisas também transcendem a esfera da pura instrumentalidade assim que são completadas O critério segundo o qual a excelência de uma coisa é julgada nunca é a simples utilidade como se uma mesa feia exercesse a mesma função que uma mesa bonita e sim sua adequaç ão ou inadequação no tocante àquilo que ela deve parecer e isto na linguagem de Platão é somente sua adequação ou inadequação ao eidos ou à idea à imagem mental ou antes à imagem vista pelo olho interno que precedeu sua chegada ao mundo e sobreviverá à sua possível destruição Em outras palavras nem mesmo os objetos de uso são julgados somente segundo as necessidades subjetivas do homem mas segundo critérios objetivos do mundo onde encontrarão o seu lugar para durar para serem vistos e para serem usados O mundo de coisas feito pelo homem o artifício humano construído pelo homo faber tornase um lar para os homens mortais cuja estabilidade suportará e sobreviverá ao movimento de permanente mudança de suas vidas e ações apenas na medida em que transcende a mera funcionalidade das coisas produzidas para o consumo e a mera utilidade dos objetos produzidos para o uso A vida em seu sentido não biológico o tempo que transcorre entre o nascimento e a morte manifestase na ação e no discurso que têm em comum com a vida sua essencial futilidade A realização de grandes feitos e o pronunciamento de grandes palavras não deixarão qualquer vestígio qualquer produto que possa perdurar depois que passa o momento da ação e da palavra falada Se o animal laborans necessita da ajuda do homo faber para facilitar seu trabalho e remover sua dor e se os mortais necessitam de sua ajuda do homo faber para edificar um lar sobre a Terra os homens que agem e falam necessitam da ajuda do homo faber em sua capacidade suprema isto é da ajuda do artista dos poetas e historiadores dos construtores de monumentos ou escritores porque sem eles o único produto da atividade dos homens a estória que encenam e contam de modo algum sobreviveria Para ser o que o mundo é sempre destinado a ser um lar para os homens durante sua vida na Terra o artifício humano tem de ser um lugar adequado para a ação e o discurso para atividades não apenas inteiramente inúteis para as necessidades da vida mas de uma natureza inteiramente diferente das múltiplas atividades de fabricação por meio das quais o próprio mundo e todas as coisas nele são produzidos Não precisamos escolher aqui entre Platão e Protágoras ou decidir se o homem ou um deus deve ser a medida de todas as coisas o que é certo é que a medida não pode ser nem as necessidades coativas da vida biológica e do trabalho nem o instrumentalismo utilitário da fabricação e do uso 1 A palavra latina fa ber que provavelmente se relaciona com facere fazer alguma coisa no sentido de produção designava originariamente o fabricante e artista que operava sobre materiais duros como pedra ou madeira era também usada como tradução do grego tektōn que tem a mesma conotação A palavra fabri muitas vezes seguida de tignarii designava especialmente operários de construção e carpinteiros Não pude determinar onde e quando a expressão homo faber certamente de origem moderna e pósmedieval surgiu pela primeira vez Jean Leclercq Vers la société basée sur le travail Revue du travail v LI n 3 mar 1950 sugere que foi Bergson quem lançou o conceito de homo faber na circulação das ideias 2 Isso está implicado no verbo latino obicere do qual nossa palavra objeto é uma derivação tardia e na palavra alemã Gegenstand objeto Objeto significa literalmente algo lançado ou posto contra 3 Essa interpretação da criatividade humana é medieval ao passo que a noção do homem como senhor da Terra é típica da era moderna Ambas contradizem o espírito da Bíblia Segundo o Antigo Testamento o homem é o senhor de todas as criaturas vivas Gn 1 que foram criadas para ajudá lo 219 Mas em passagem alguma ele é tornado amo e senhor da Terra pelo contrário o homem foi posto no Jardim do Éden para servilo e preserválo 215 É interessante notar que Lutero rejeitando conscientemente o compromisso escolástico com a Antiguidade grega e latina procura eliminar da obra e do trabalho humanos todo e qualquer elemento de produção e fabricação O trabalho humano segundo ele apenas encontra os tesouros que Deus colocou na Terra Seguindo o Antigo Testamento ele ressalta a completa dependência do homem em relação à Terra não o domínio dela Sage an wer legt das Silber und Gold in die Berge dass man es findet Wer legt in die Äcker solch grosses Gut als heraus wächst Tut das Menschen Arbeit Ja wohl Arbeit findet es wohl aber Gott muss es dahin legen soll es die Arbeit finden So finden wir denn dass alle unsere Arbeit nichts ist denn Gottes Güter finden und aufheben nichts aber möge machen und erhalten Werke Ed Walch V 1873 4 Hendrik de Man por exemplo descreve quase que exclusivamente as satisfações da fabricação e da manufatura sob o título enganador de Der Kampf um die Arbeitsfreude 1927 5 Yves Simon Trois leçons sur le travail Paris nd Esse tipo de idealização é frequente no pensamento católico liberal ou esquerdista da França cf especialmente Jean Lacroix La notion du travail La vie intellectuelle jun 1952 e o dominicano M D Chenu Pour une théologie du travail Esprit 1952 e 1955 Le travailler travaille pour son oeuvre plutôt que pour lui même loi de générosité métaphysique qui définit lactivité laborieuse 6 Georges Friedmann Problèmes humains du machinisme industriel 1946 p 211 mostra como é frequente que os operários das grandes fábricas ignorem inclusive o nome ou a função exata da peça produzida por sua máquina 7 O testemunho de Aristóteles de que foi Platão quem introduziu o termo idea na terminologia filosófica ocorre no primeiro livro de sua Metafísica 987b8 Excelente relato do uso anterior da palavra e do ensinamento de Platão encontrase em Gerard F Else The terminology of ideas Harvard studies in classical philology v XLVII 1936 Corretamente Else insiste em que não podemos saber pelos diálogos o que era a doutrina das Ideias em sua forma final e completa Igualmente incerta para nós é a origem da doutrina nesse particular porém o guia mais seguro talvez seja ainda a própria palavra que Platão introduziu de modo tão surpreendente na terminologia filosófica embora ela não fosse corrente na linguagem ática As palavras eidos e idea referemse sem dúvida a formas e aspectos visíveis especialmente de criaturas vivas assim é improvável que Platão concebesse a doutrina sob a influência de formas geométricas A tese de Francis M Cornford Plato and Parmenides Ed Liberal Arts p 69100 de que a doutrina é provavelmente de origem socrática uma vez que Sócrates procurava definir a justiça em si ou a bondade em si que não podem ser percebidas pelos sentidos bem como pitagórica uma vez que a doutrina da existência chõrismos das ideias eternas e separadas de todas as coisas perecíveis implica a existência separada de uma alma consciente e conhecedora à parte do corpo e dos sentidos pareceme muito convincente Minha apresentação porém deixa em suspenso todos es ses pressupostos Ela se refere simplesmente ao Livro X da República no qual o próprio Platão explica sua doutrina tomando o caso comum de um artífice que faz camas e mesas de acordo com a ideia dessas camas e mesas e acrescenta é assim que falamos neste caso e em casos semelhantes É óbvio que para Platão a própria palavra idea era sugestiva e ele queria que ela sugerisse o artífice que faz uma cama ou uma mesa não olhando outra cama ou outra mesa mas olhando a ideia de cama Kurt von Fritz The Constitution of Athens 1950 p 34 35 Não é preciso dizer que nenhuma dessas explicações vai ao fundo da questão que é a experiência especificamente filosófica subjacente ao conceito de ideia por um lado e por outro sua mais surpreendente qualidade seu poder esclarecedor o fato de que é to phanotaton ou ekphanestaton 8 A conhecida compilação feita por Karl Bücher em 1897 de canções rítmicas de trabalho Arbeit und Rhythmus 6 ed 1924 foi seguida de volumosa literatura de caráter mais científico Um dos melhores desses estudos Joseph Schopp Das deutsche Arbeitslied 1935 ressalta o fato de que não existem canções da obra mas somente canções de trabalho As canções dos artífices são sociais e cantadas após o trabalho O fato é naturalmente que não existe ritmo natural algum para a obra Notase às vezes a surpreendente semelhança entre o ritmo natural inerente a toda operação de trabalho e o ritmo das máquinas sem contar as repetidas queixas de que as máquinas impõem ao trabalhador um ritmo artificial É típico que essas queixas sejam relativamente raras entre os próprios trabalhadores que ao contrário parecem encontrar o mesmo prazer na obra mecânica repetitiva que em outros trabalhos repetitivos cf por exemplo Georges Friedmann Où va le travail humain 2 ed 1953 p 233 e Hendrik de Man Der Kampf um die Arbeitsfreude p 213 Isso confirma observações já feitas no começo deste século nas fábricas da Ford Karl Bücher que acreditava que o trabalho rítmico é um trabalho altamente espiritual vergeistigt já dizia Aufreibend werden nur solchen einförmigen Arbeiten die sich nicht rhythmisch gestalten lassen Arbeit und Rhythmus p 443 Pois embora a velocidade da máquina seja sem dúvida muito maior e mais repetitiva que a do trabalho natural espontâneo a própria execução rítmica faz com que o trabalho mecânico e o trabalho préindustrial tenham mais traços em comum entre si do que cada um deles tem com a obra Hendrik de Man por exemplo percebe muito bem que diese von Bücher gepriesene Welt weniger die des handwerkmässig schöpferischen Gewerbes als die der einfachen schieren Arbeitsfron ist Der Kampf um die Arbeitsfreude p 244 Todas essas teorias parec emme altamente discutíveis em vista do fato de que os próprios operários apresentam razão inteiramente diferente para sua preferência pelo trabalho repetitivo Preferemno porque é mecânico e não requer atenção de sorte que ao executálo podem pensar em outra coisa Podem geistig wegtreten nas palavras de operários berlinenses Cf Thielicke e Pentzlin Mensch und Arbeit im technischen Zeitalter Zum Problem der Rationalisierung 1954 p 35 ss que também relatam que segundo uma investigação do Max Planck Institut für Arbeitspsychologie cerca de 90 dos operários preferem tarefas monótonas Essa explicação é bastante digna de nota uma vez que coincide com as muito antigas recomendações cristãs quanto aos méritos do trabalho manual que por exigir menor atenção tende a interferir menos na contemplação que as outras ocupações e profissões cf Étienne Delaruelle Le travail dans les règles monastiques occidentales du 4e au 9e siècle Journal de psychologie normale et pathologique v XLI n 1 1948 9 Uma das importantes condições materiais da Revolução Industrial foi a extinção das florestas e a descoberta do carvão mineral como substituto de madeira A solução proposta por R H Barrow em seu livro Slavery in the Roman Empire 1928 ao conhecido enigma no estudo da história econômica do mundo antigo de que a indústria se desenvolveu até certo ponto mas deixou repentinamente de fazer o progresso que era de se esperar é bem interessante e bastante convincente nesse particular Ele sustenta que o único fator que impediu a aplicação das máquinas à indústria foi a inexistência de combustível bom e barato uma vez que não havia provisão abundante de carvão mineral à disposição p 123 10 John Diebold Automation the advent of the automatic factory 1952 p 67 11 Ibid p 69 12 Friedmann Problèmes humains du machinisme industriel p 168 Esta é realmente a mais óbvia conclusão a ser tirada do livro de Diebold a linha de montagem é o resultado do conceito da manufatura como um processo contínuo e se poderia acrescentar que a automação é o resultado da maquinização machinization da linha de montagem À liberação da força de trabalho humana nos primeiros estágios da industrialização a automação acrescenta a liberação da força do cérebro humano uma vez que as tarefas de fiscalização e controle atualmente realizadas por seres humanos serão feitas por máquinas Automation the advent of the automatic factory p 140 Tanto uma como outra libera trabalho não obra O operário ou artífice dotado de respeito próprio cujos valores humanos e psicológicos p 164 quase todos os que escrevem sobre o assunto procuram desesperadamente salvar certas vezes com uma pitada de ironia involuntária como quando Diebold e outros acreditam sinceramente que o trabalho de consertos que talvez jamais venha a ser inteiramente automatizado pode trazer a mesma satisfação que a fabricação e a produção de um objeto novo está fora de cogitação pelo simples fato de ter sido eliminado das fábricas muito antes de se ouvir falar em automação Os operários workers fabris sempre foram trabalhadores laborers e embora seu respeito próprio possa ter excelentes fundamentos certamente não decorre da obra que executam A única coisa que podemos esperar é que eles próprios se recusem a aceitar os substitutos sociais da satisfação e do respeito próprio que lhes são oferecidos pelos teóricos do trabalho que entrementes realmente acreditam que o interesse na obra e a satisfação do artesanato podem ser substituídos por relações humanas e pelo respeito que os operários granjeiam entre seus companheiros operários p 164 Afinal a automação deveria ter pelo menos a vantagem de demonstrar os absurdos de todos os humanismos do trabalho caso se leve em consideração o significado verbal e histórico da palavra humanismo a própria expressão humanismo do trabalho se revela uma contradição nos termos Para uma excelente crítica do modismo das relações humanas cf Daniel Bell Work and its discontents 1956 cap 5 e R P Genelli Facteur humain ou facteur social du travail Revue française du travail v VII n 13 janmar 1952 em que se encontra também uma firme denúncia da terrível ilusão da alegria do trabalho 13 Günther Anders em um interessante ensaio sobre a bomba atômica Die Antiquiertheit des Menschen 1956 sustenta de modo convincente que a palavra experimento já não se aplica aos experimentos nucleares envolvendo explosões das novas bombas Pois era característico dos experimentos o fato de que o espaço no qual ocorriam era estritamente limitado e isolado do meio ambiente Os efeitos das bombas são tão gigantescos que seu laboratório tornouse coextensivo com o globo p 260 14 Diebold Automation the advent of the automatic factory p 5960 15 Ibid p 67 16 Ibid p 3845 17 Ibid p 110 e 157 18 Werner Heisenberg Das Naturbild der heutigen Physik 1955 p 1415 19 Quanto à interminabilidade da cadeia de meios e fins o Zweckprogressus in infinitum e à destruição do significado que lhe é inerente comparar com Nietzsche Afor 666 em Wille zur Macht 20 A expressão de Kant é ein Wohlgefallen ohne alles Interesse Kritik der Unteilskraft Ed Cassirer V 272 21 Ibid p 515 22 Der Wasserfall wie die Erde überhaupt wie alle Naturkraft hat keinen Wert weil er keine in ihm vegegenständlichte Arbeit darstellt Das Kapital III MarxEngels Gesamtausgabe Abt II Zurique 1933 698 23 Teeteto 152 e Crátilo 385E Nesses casos como em outras citações antigas do dito famoso Protágoras é sempre citado nos seguintes termos pantōn chērmatōn metron estin anthrōpos cf Diels Fragmente der Vorsokratiker 4 ed 1922 frag B1 A palavra chērmata não significa de forma alguma todas as coisas mas especificamente aquelas coisas que os homens usam possuem ou de que necessitam O suposto dito de Protágoras o homem é a medida de todas as coisas seria em grego anthrōpos metron pantōn correspondendo por exemplo à frase de Heráclito polemos patēr pantōn o conflito é o pai de todas as coisas 24 Leis 716D cita textualmente o dito pita górico exceto pelo fato de a palavra homem anthrōpos ser substituía por o deus ho theos 25 O capital ed Modern Library p 358 n 3 26 A história dos primeiros tempos da Idade Média e principalmente a história das guildas de artesãos fornece um bom exemplo da verdade inerente à antiga concepção dos trabalhadores como habitantes da casa em contraposição aos artífices que eram vistos como operários para o povo em geral Pois o surgimento das guildas assinala o segundo estágio da história da indústria a transição do sistema familiar para o sistema do artesão ou da guilda No primeiro caso não havia uma classe de artesãos propriamente dita porque todas as necessidades de uma família ou de outros grupos domésticos eram satisfeitas pelo trabalho dos membros do próprio grupo W J Ashley An introduction to Engli sh economic history and theory 1931 p 76 No alemão medieval a palavra Störer equivale exatamente à palavra grega dēmiourgos Der griechische dēmiourgos heisst Störer er geht beim Volk arbeiten er geht auf die Stör Stör sig nifica dēmos povo Cf Jost Trier Arbeit und Gemeinschaft Studium Generale v III n 11 nov 1950 27 E ele acrescenta com ênfase Ninguém jamais viu um cão fazer uma troca equitativa e deliberada de um osso por outro com outro cão Wealth of nations Ed Everymans I 12 28 E Levasseur Histoire des classes ouvrières et le lindustrie en France avant 1789 1900 Les mots maître et ouvrier étaient encore pris comme synonymes au 14e siècle p 564 n 2 ao passo que au 15e siècle la maîtrise est devenue un titre auquel il nest permis à tous daspirer p 572 Originariamente le mot ouvrier sappliquait dordinaire à quinconque ouvrait faisait ouvrage maître ou valet p 309 Nas próprias oficinas e fora delas na vida social não havia grande distinção entre o mestre ou proprietário da oficina e os trabalhadores p 313 Cf também Pierre Brizon Histoire du travail et des travailleurs 4 ed 1926 p 39 ss 29 Charles R Walter e Robert H Guest The man on the assembly line 1952 p 10 A famosa descrição que Adam Smith faz desse princípio na fabricação de alfinetes Wealth of nations Ed Everymans I p 4 ss mostra claramente como o trabalho mecânico foi precedido pela divisão do trabalho e dela deriva seu princípio 30 Adam Smith Wealth of nations Ed Everymans II p 241 31 Essa definição foi dada pelo economista italiano Abbey Galiani Cito Hannah R Sewall The theory of value before Adam Smit h 1901 Publications of the American Economic Association 3 série v II n 3 p 92 32 Alfred Marshall Principles of economics 1920 I 8 33 Considerations upon the lowering of interest an d raising the value of money Collected Works 1801 II 21 34 W J Ashley An introduction to English economic history and theory 1931 p 140 observa que a diferença fundamental entre os pontos de vista medieval e moderno é que para nós o valor é algo inteiramente subjetivo é o que cada indivíduo está disposto a pagar por alguma coisa Com Tomás de Aquino era algo objetivo Isso só é verdadeiro até certo ponto pois a primeira coisa sobre a qual insistem os professores medievais é que o valor não é determinado pela excelência intrínseca à própria coisa pois se fosse assim uma mosca seria mais valiosa que uma pérola uma vez que é intrinsecamente mais excelente George OBrien An essay on medieval economic teaching 1920 p 109 A discrepância é dissolvida quando se introduz a distinção que Locke fazia entre valia worth e valor value chamando a primeira de valor naturalis e o segundo de pretium e também valor A diferenciação existe naturalmente em todas as sociedades com exceção das mais primitivas mas na era moderna a primeira cede cada vez mais o lugar ao segundo Quanto aos ensinamentos medievais conferir também Slater Value in theology and political economy Irish Ecclesiastical Record set 1901 35 Locke Second treatise of civil government Seção 22 36 Das Kapital III 689 MarxEngels Gesamtausgabe Parte II Zurique 1933 37 O exemplo mais claro dessa confusão é a teoria de valor de Ricardo especialmente sua crença desesperada em um valor absoluto São excelentes as interpretações de Gunnar Myrdal The political element in the development of economic theory 1953 p 66 ss e de Walter A Weisskopf The psychology of economics 1955 cap 3 38 A verdade da observação de Ashley que citamos acima n 34 reside no fato de que a Idade Média não conheceu o mercado de trocas propriamente dito Para os mestres medievais o valor de uma coisa era determinado por sua valia worth ou pelas necessidades objetivas dos homens como por exemplo em Buridan valor rerum aestimatur secundum humanam indigentiam e o preço justo resultava normalmente da avaliação comum exceto que devido aos desejos variados e corruptos dos homens convém que a média seja fixada segundo o julgamento de alguns homens criteriosos Gerson De contractibus i 9 apud OBrien An essay on medieval economic teaching 1920 p 104 ss Na falta de um mercado de trocas era inconcebível que o valor de uma coisa devesse consistir unicamente em sua relação ou proporção com outra coisa A questão por conseguinte não é tanto se o valor é objetivo ou subjetivo mas se pode ser absoluto ou indica somente uma relação entre coisas 39 Refirome no texto a um poema de Rilke sobre a arte que sob o título Mágica descreve essa transfiguração Diz o poema Aus unbeschreiblicher Verwandlung stammen solche Gebilde Fühl und glaub Wir leidens oft zu Asche werden Flammen doch in der Kunst zur Flamme wird der Staub Hier ist Magie In das Bereich des Zaubers scheint das gemeine Wort hinaufgestuft und ist doch wirklich wie der Ruf des Taubers der nach der unsichtbaren Taube ruft em Aus TaschenBüchern und MerkBlättern 1950 40 A expressão idiomática fazer um poema ou faire des vers indicando a atividade do poeta já se relaciona com essa reificação O mesmo se aplica ao alemão dichten que provavelmente deriva do latim dictare das ausgesonnene geistig Geschaffene niederschreiben order zum Nietderschreiben vorsagen Grimm Wörterbuch e também se aplicaria se a palavra derivasse como sugere agora o Etymologisches Wörterbuch 1951 de Kluge Götze de tichen antiga palavra que significa schaffen talvez relacionada com o latim fingere Nesse caso a atividade poética que produz o poema antes de ele ser escrito é também concebida como um produzir Assim é que Demócrito louvava o gênio divino de Homero que construiu um cosmos com todo tipo de palavras epeōn kosmon etektēnato pantoiōn Diels Fragmente der Vorsokratiker 4 ed 1922 B12 A mesma ênfase no artesanato do poeta está presente na expressão grega para a arte da poesia tektōnes hymnōn AÇÃO Tod as as mágoas são suportáveis se as colocamos em uma estória story ou contamos uma estória sobre elas Isak Dinesen Nam in omni actione principaliter intenditur ab agente sive necessitate naturae sive voluntarie agat propriam similitudinem explicare unde fit quod omne agens in quantum huiusmodi delectatur quia cum omne quod est appetat suum esse ac in agendo agentis esse modammodo amplietur sequitur de necessitate delectatio Nihil igitur agit nisi tale existens quale patiens fiere debet Pois em toda ação o que é visado primeiramente pelo agente quer ele aja por necessidade natural ou por livre arbítrio é revelar sua própria imagem Daí res ulta que todo agente na medida em que age sente prazer em agir como tudo o que é deseja sua própria existência e como na ação a existência do agente é de certo modo intensificada resulta necessariamente o prazer Assim nada age a menos que ao agir torn e patente seu simesmo latente Dante 24 A revelação do agente no discurso e na ação Apluralidade humana condição básica da ação e do discurso tem o duplo aspecto da igualdade e da distinção Se não fossem iguais os homens não poderiam compreender uns aos outros e os que vieram antes deles nem fazer planos para o futuro nem prever as necessidades daqueles que virão depois deles Se não fossem distintos sendo cada ser humano distinto de qualquer outro que é foi ou será não precisariam do discurso nem da ação para se fazerem compreender Sinais e sons seriam suficientes para a comunicação imediata de necessidades e carências idênticas A distinção humana não é idêntica à alteridade à curiosa qualidade da alteritas comum a tudo o que existe e que por conseguinte para a filosofia medieval é uma das quatro características básicas e universais do Ser transcendendo toda qualidade particular A alteridade é sem dúvida aspecto importante da pluralidade a razão pela qual todas as nossas defi nições são distinções pela qual não podemos dizer o que uma coisa é sem distinguila de outra Em sua forma mais abstrata a alteridade está presente somente na mera multiplicação de objetos inorgânicos ao passo que toda vida orgânica já exibe variações e distinções inclusive entre indivíduos da mesma espécie Só o homem porém é capaz de exprimir essa distinção e distinguirse e só ele é capaz de comunicar a si próprio e não apenas comunicar alguma coisa como sede fome afeto hostilidade ou medo No homem a alteridade que ele partilha com tudo o que existe e a distinção que ele partilha com tudo o que vive tornamse unicidade e a pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres únicos O discurso e a ação revelam essa distinção única Por meio deles os homens podem distinguir a si próprios ao invés de permanecerem apenas distintos a ação e o discurso são os modos pelos quais os seres humanos aparecem uns para os outros certamente não como objetos físicos mas qua homens Esse aparecimento em contraposição à mera existência corpórea depende da iniciativa mas tratase de uma iniciativa da qual nenhum ser humano pode absterse sem deixar de ser humano Isso não ocorre com nenhuma outra atividade da vita activa Os homens podem perfeitamente viver sem trabalhar obrigando outros a trabalharem para eles e podem muito bem decidir simplesmente usar e fruir do mundo de coisas sem lhe acrescentar um só objeto útil a vida de um explorador ou senhor de escravos e a vida de um parasita podem ser injustas mas certamente são humanas Por outro lado uma vida sem discurso e sem ação e esse é o único modo de vida em que há sincera renúncia de toda aparência e de toda vaidade na acepção bíblica da palavra é literalmente morta para o mundo deixa de ser uma vida humana uma vez que já não é vivida entre os homens É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano e essa inserção é como um segundo nascimento no qual confirmamos e assumimos o fato simples do nosso aparecimento físico original Não nos é imposta pela necessidade como o trabalho nem desencadeada pela utilidade como a obra Ela pode ser estimulada pela presença de outros a cuja companhia possamos desejar nos juntar mas nunca é condicionada por eles seu impulso surge do começo que veio ao mundo quando nascemos e ao qual respondemos quando começamos algo novo por nossa própria iniciativa1 Agir em seu sentido mais geral significa tomar iniciativa iniciar como indica a palavra grega archein começar conduzir e finalmente governar imprimir movimento a alguma coisa que é o significado original do termo latino agere Por constituírem um initium por serem recémchegados e iniciadores em virtude do fato de terem nascido os homens tomam iniciativas são impelidos a agir Initium ergo ut esset creatus est homo ante quem nullus fuit para que houvesse um início o homem foi criado sem que antes dele ninguém o fosse diz Agostinho em sua filosofia política 2 Tratase de um início que difere do início do mundo3 pois não é o início de algo mas de alguém que é ele próprio um iniciador Com a criação do homem veio ao mundo o próprio princípio do começar e isso naturalmente é apenas outra maneira de dizer que o princípio da liberdade foi criado quando o homem foi criado mas não antes É da natureza do início que se comece algo novo algo que não se poderia esperar de coisa alguma que tenha ocorrido antes Esse caráter de surpreendente impresciência é inerente a todo início e a toda origem Assim a origem da vida a partir da matéria inorgânica é uma infinita improbabilidade dos processos inorgânicos como o é o surgimento da Terra do ponto de vista dos processos do u niverso ou a evolução da vida humana a partir da vida animal O novo sempre acontece em oposição à esmagadora possibilidade das leis estatísticas e à sua probabilidade que para todos os fins práticos e cotidianos equivale à certeza assim o novo sempre aparece na forma de um milagre O fato de o homem ser capaz de agir significa que se pode esperar del e o inesperado que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável E isso mais uma vez só é possível porque cada homem é único de sorte que a cada nascimento vem ao mundo algo singularmente novo Desse alguém que é único podese dizer verdadeiramente que antes dele não havia ninguém Se a ação como início corresponde ao fato do nascimento se é a efetivação da condição humana da natalidade o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição humana da pluralidade isto é do viver como um ser distinto e único entre iguais A ação e o discurso são tão intimamente relacionados porque o ato primordial e especificamente hum ano deve conter ao mesmo tempo resposta à pergunta que se faz a todo recémchegado Quem és Essa revelação de quem alguém é está implícita tanto em suas palavras quanto em seus feitos contudo a afinidade entre discurso e revelação é obviamente muito mais estreita que a afinidade entre ação e revelação4 tal como a afinidade entre ação e início é mais estreita que a afi nidade entre discurso e início embora grande parte dos atos senão a maioria deles seja realizada na forma de discurso De qualquer modo desacompanhada do discurso a ação perderia não só o seu caráter revelador como e pelo mesmo motivo o seu sujeito por assim dizer em lugar de homens que agem teríamos robôs executores a realizar coisas que permaneceriam humanamente incompreensíveis A ação muda deixaria de ser ação pois não haveria mais um ator e o ator realizador de feitos só é possível se for ao mesmo tempo o pronunciador de palavras A ação que ele inicia é humanamente revelada pela palavra e embora seu ato possa ser percebido em seu aparecimento físico bruto sem acompanha mento verbal só se torna relevante por meio da palavra falada na qual ele se identifica como o ator anuncia o que faz fez e pretende fazer Nenhuma outra realização humana precisa tanto do discurso quanto a ação Em todas as outras realizações o discurso desempenha um papel secundário como um meio de comunicação ou um mero acompanhamento de algo que poderia ser feito em silêncio É verda de que o discurso é extremamente útil como meio de comunicação e de informação mas como tal poderia ser substituído por uma linguagem de signos que então poderia comprovarse até mais útil e mais conveniente para exprimir ce rtos significados como na matemática e em outras disciplinas científicas ou em certas modalidades de trabalho em equipe Assim é também verdade que a capacidade humana de agir especificamente a de agir em concerto é extremamente útil para fins de autodefesa ou satisfação de interesses mas se aqui estivesse em questão apenas o uso da ação como meio para um fim é evidente que o mesmo fim poderia ser alcançado muito mais facilmente com a violência muda de tal modo que a ação parece uma substituta pouco eficaz da violência da mesma forma que o discurso do ponto de vista da mera utilidade parece um substituto inadequado da linguagem de signos Ao agir e ao falar os homens mostram quem são revelam ativamente suas identidades pessoais únicas e assim fazem seu aparecimento no mundo humano enquanto suas identidades físicas aparecem sem qualquer atividade própria na conformação singular do corpo e no som singular da voz Essa revelação de quem em contraposição a o que alguém é os dons qualidades talentos e defeitos que se podem exibir ou ocultar está implícita em tudo o que esse alguém diz ou faz Só no completo silêncio e na total passividade pode alguém ocultar quem é mas seu desvelamento quase nunca pode ser alcançado como um propósito deliberado como se a pessoa possuísse e pudesse dispor desse quem do mesmo modo como possui e pode dispor de suas qualidades Pelo contrário é quase certo que o quem que aparece tão clara e inconfundivelmente para os outros permanece oculto para a própria pessoa à se melhança do daimōn na religião grega que acompanha cada homem durante toda sua vida sempre observando por detrás por cima de seus ombros de sorte que só era visível para aqueles que ele encontrava Essa qualidade reveladora do discurso e da ação passa a um primeiro plano quando as pessoas estão com as outras nem pró nem contra elas isto é no puro estar junto dos homens Embora ninguém saiba quem revela quando desvela a si mesmo no feito ou na palavra devese estar disposto a correr o risco de se desvelar e esse risco não pode ser assumido nem pelo realizador de boas obras que deve ser desprovido do simesmo self e manterse em completo anonimato nem pelo criminoso que precisa esconderse dos outros Ambos são fi guras solitárias o primeiro é pró e o segundo é contra todos os homens ficam portanto fora do âmbito do intercurso humano e são figuras politicamente marginais que em geral surgem no cenário histórico em épocas de corrupção desintegração e ruína política Dada sua tendência intrínseca de desvelar o agente juntamente com o ato a ação requer para seu pleno aparecimento a luz intensa que outrora tinha o nome de glória e que só é possível no domínio público Sem o desvelamento do agente no ato a ação perde seu caráter específico e tornase um feito como outro qualquer Na verdade passa a ser apenas um me io de atingir um fim tal como a fabricação é um meio de produzir um objeto Isso ocorre sempre que se perde o estar junto dos homens isto é quando as pessoas são meramente pró ou contra as outras como acontece por exemplo na guerra moderna quando os homens entram em ação e empregam meios violentos para alcançar determinados objetivos em proveito de seu lado e contra o inimigo Nessas circunstâncias que naturalmente sempre existiram o discurso transformase de fato em mera conversa apenas mais um meio de alcançar um fim quer iludindo o inimigo quer ofuscando a todos com propaganda Nesse caso as palavras nada revelam o desvelamento advém exclusivamente do próprio feito e esse feito como todos os outros não pode desvelar o quem a identidade única e distinta do agente Em tais situações a ação perde a qualidade por meio da qual transcende a mera atividade produtiva que desde a modesta fabricação de objetos de uso até a inspirada criação de obras de arte é desprovida de outro significado além do que é revelado no produto acabado e nada pretende mostrar além do que é claramente visível ao fim do processo de produção Desprovida de um nome de um quem a ela associado a ação perde todo o sentido ao passo que uma obra de arte conserva sua relevância quer saibamos ou não o nome do artista Os monumentos ao Soldado Desconhecido erigidos após a Primeira Guerra Mundial comprovam a necessidade de glorificação subsistente ainda na época de encontrar um quem um alguém identificável a quem quatro anos de carnificina deveriam ter revelado A frustra ção desse desejo e a recusa a se resignar ao fato brutal de que o agente da guerra havia sido realmente ninguém inspiraram a construção desses monumentos ao desconhecido a todos aqueles a quem a guerra fracassou em tornar conhecidos roubandolhes com isso não suas realizações mas sua dignidade humana5 25 A teia de relações e as estórias encenadas Embora plenamente visível a manifestação de quem o falante e agente inconfundivelmente é conserva uma curiosa intangibilidade que frustra toda tentativa de expressão verbal inequívoca No momento em que queremos dizer quem alguém é nosso próprio vocabulário nos induz ao equívoco de dizer o que esse alguém é enleamo nos em uma descrição de qualidades que a pessoa necessariamente partilha com outras que lhe são semelhantes passamos a descrever um tipo ou um caráter character na antiga acepção da palavra com o resultado de que sua unicidade específica nos escapa Essa frustração tem a mais estreita afinidade com a notória impossibilidade filosófica de se chegar a uma definição do homem uma vez que todas as definições são determinações ou interpretações de o que o homem é e portanto de qualidades que ele possivelmente poderia ter em comum com outros seres vivos enquanto sua diferença específica seria encontrada determinandose que tipo de quem ele é Contudo à parte essa perplexidade filosófica a impossibilidade de solidificar em palavras por assim dizer a essência viva da pessoa tal como ela se apresenta no fluxo da ação e do discurso tem profundas consequências para todo o domínio dos assuntos humanos no qual existimos basicamente como seres que ag em e falam Exclui em princípio nossa capacidade para manejar esses assuntos como manejamos as coisas de cuja natureza podemos dispor visto que podemos nomeálas O fato é que a manifestação do quem ocorre da mesma forma que as manifestações notoriamente duvidosas dos antigos oráculos que segundo Heráclito não revelam nem escondem com palavras apenas sinalizam6 É esse um fator básico da incerteza igualmente notória não apenas de todos os assuntos políticos mas de todos os assuntos que se dão diretamente entre os homens sem a influência mediadora estabilizadora e solidificadora das coisas7 Tratase apenas da primeira dentre as muitas frustrações que acometem a ação e po r conseguinte o estar junto e o intercurso entre os homens E talvez seja a mais fundamental dentre as com que lidaremos na medida em que não resulta de comparações com atividades mais confiáveis e produtivas como a fabricação a contemplação a cognição e mesmo o trabalho mas aponta para algo que frustra a ação no que concerne a seus próprios propósitos O que está em jogo é o caráter de revelação sem o qual a ação e o discurso perderiam toda relevância humana A ação e o discurso ocorrem entre os homens uma vez que a eles são dirigidos e conservam sua capacidade de revelar o agente agentrevealing mesmo quando o seu conteúdo é exclusivamente objetivo dizendo respeito a questões do mundo das coisas no qual os homens se movem mundo este que se interpõe fisicamente entre eles e do qual procedem seus interesses específicos objetivos e mundanos Esses interesses constituem na acepção mais literal da palavra algo que interessa interest que se situa entre as pessoas e que portanto é capaz de relacionálas e mantêlas juntas A maior parte da ação e do discurso diz respeito a esse espaçoentre in between que varia de grupo para grupo de pessoas de sorte que a maior parte das palavras e atos referese a alguma realidade objetiva mundana além de ser um desvelamento do agente qu e atua e fala Como esse desvelamento do sujeito é parte integrante do todo até mesmo da mais objetiva interação o espaçoentre físico e mundano juntamente com os seus interesses é recoberto e por assim dizer sobrelevado por outro espaçoentre inteiramente diferente constituído de atos e palavras cuja origem se deve unicamente ao agir e ao falar dos homens diretamente uns com os outros Esse segundo espaçoentre subjetivo não é tangível pois não há objetos tangíveis nos quais ele possa se solidificar o processo de agir e falar não pode deixar atrás de si tais resultados e produtos finais Mas a despeito de toda a sua intangibilidade o espaçoentre é tão real quanto o mundo das coisas que visivelmente temos em comum Damos a essa realidade o nome de teia de relações humanas indicando pela metáfora sua qualidade de certo modo intangível É verdade que essa teia é tão vinculada ao mundo objetivo das coisas quanto o discurso é vinculado à existência de um corpo vivo mas a relação não é como a de uma fachada ou na terminologia marxiana de uma superestrutura essencialmente supérflua afixada à estrutura útil do edifício O erro básico de todo materialismo em política materialismo este que não é de origem marxista nem sequer moderna mas tão antigo quanto a nossa história da teoria política8 é ignorar a inevitabilidade com que os homens se desvelam como sujeitos como pessoas distintas e singulares mesmo quando inteiramente concentrados na obtenção de um objeto completamente material e mundano Prescindir desse desvelamento se isso de fato fosse possível significaria transformar os homens em algo que eles não são por outro lado negar que ele é real e tem consequências próprias seria simplesmente irrealista A rigor o domínio dos assuntos humanos consiste na teia de relações humanas que existe onde quer que os homens vivam juntos O desvelamento do quem por meio do discurso e o estabelecimento de um novo início por meio da ação inseremse sempre em uma teia já existente onde suas consequências imediatas podem ser sentidas Juntos iniciam novo processo que finalmente emerge como a singular estória de vida do recém chegado que afeta de modo singular as estórias de vida de todos aqueles com quem ele entra em contato É em virtude dessa teia preexistente de relações humanas com suas inúmeras vontades e intenções conflitantes que a ação quase nunca atinge seu objetivo mas é também graças a esse meio onde somente a ação é real que ela produz estórias intencionalmente ou não com a mesma naturalidade com que a fabricação produz coisas tangíveis Essas estórias podem então ser registradas em documentos e monumentos podem tornarse visíveis em objetos de uso e obras de arte podem ser contadas e recontadas e forjadas worked em todo tipo de material Elas mesmas em sua realidade viva são de uma natureza inteiramente diferente de tais reificações Falamnos mais de seus sujeitos do herói que há no centro de toda estória do que qualquer produto de mãos humanas fala do artífice que o produziu sem no entanto serem produtos propriamente ditos Embora todos comecem a própria vida inserindose no mundo humano por meio da ação e do discurso ninguém é autor ou produtor de sua própria estória de vida Em outras palavras as estórias resultado da ação e do discurso revelam um agente mas esse agente não é autor nem produtor Alguém as iniciou e delas é o sujeito na dupla acepção da palavra seu ator e seu padecente mas ninguém é seu autor Que toda vida individual entre o nascimento e a morte possa afinal ser narrada como uma estória com começo e fim é a condição prépolítica e préhistórica da história history a grande estória sem começo nem fim Mas a razão pela qual cada vida humana conta sua estória e pela qual a história se torna finalmente o livro de estórias storybook da humanidade com muitos atores e oradores e ainda assim sem quaisquer autores tangíveis é que ambas resultam da ação Pois a grande incó gnita da história que vem aturdindo a filosofia da história na era moderna surge não somente quando consideramos a história como um todo e descobrimos que o seu sujeito a humanidade é uma abstração que jamais pode tornarse um agente ativo essa mesma incógnita tem aturdido a filosofia política desde os seus primórdios na Antiguidade e contribuiu para o desprezo geral que os filósofos desde Platão sempre dedicaram ao domínio dos assuntos humanos A perplexidade é que em qualquer série de eventos que no conjunto compõem uma estória com um significado único podemos quando muito isolar o agente que pôs o processo inteiro em movimento e embora esse agente frequentemente continue a ser o sujeito o herói da estória nunca podemos apontálo inequivocamente como o autor do resultado final É por isso que Platão julgava que os assuntos humanos ta tōn anthrōpōn pragmata resultantes da ação praxis não deveriam ser tratados com grande seriedade as ações dos homens se pareceriam com os movimentos de títeres conduzidos por uma mão invisível oculta nos bastidores de sorte que o homem parece ser o brinquedo de um deus9 É digno de nota o fato de que Platão que não tinha indício algum do moderno conceito de história tenha sido o primeiro a inventar a metáfora do ator que nos bastidores por trás dos homens que atuam puxa os cordões e é responsável pela estória O deus platônico é apenas um símbolo do fato de que as estórias reais ao contrário das que inventamos não têm autor como tal é o verdadeiro precursor da Providência da mão invisível da Natureza do espírito do mundo do interesse de classe e de outras noções semelhantes mediante as quais os filósofos da história cristãos e modernos tentaram resolver o desconcertante problema de que embora a história deva a sua existência aos homens obviamente não é todavia feita por eles De fato nada denota mais claramente a natureza política da história o fato de que é uma estória de atos e feitos mais que de tendências e forças ou de ideias que a introdução de um ator invisível nos bastidores que encontramos em todas as filosofias da história e que constitui razão suficiente para que as reconheçamos filosofias políticas disfarçadas Pelo mesmo motivo o simples fato de que Adam Smith tenha precisado de uma mão invisível a guiar as transações econômicas no mercado de trocas mostra claramente que as relações de troca envolvem algo mais que a mera atividade econômica e que o homem econômico ao fazer seu aparecimento no mercado é um ser atuante e não exclusivamente um produtor ou um negociante e mercador A invenção do ator que se esconde nos bastidores decorre de uma perplexidade mental mas não corresponde a qualquer experiência real Com essa invenção a história resultante da ação é falsamente interpretada como uma história ficcional na qual um autor realmente puxa os cordões e dirige a peça A história de ficção revela um produtor tal como qualquer obra de arte indica claramente que foi feita por alguém e isso não é próprio do caráter da história mesma mas apenas do modo pelo qual ela veio a existir A diferença entre a história real e a ficcional é precisamente que esta última é criada made up enquanto a primeira não o é de modo algum A história real em que nos engajamos enquanto vivemos não tem criador visível nem invisível porque não é criada O único alguém que ela revela é o seu herói e ela é o único meio pelo qual a manifestação originalmente intangível de um quem singularmente distinto pode tornarse tangível ex post facto por meio da ação e do discurso Só podemos saber quem alguém é ou foi se conhecermos a história da qual ele é o herói em outras palavras sua biografia tudo o mais que sabemos a seu respeito inclusive a obra que ele possa ter produzido e deixado atrás de si diznos apenas o que ele é ou foi Assim embora saibamos muito menos a respeito de Sócrates que jamais escreveu uma linha sequer nem deixou obra alguma atrás de si que acerca de Platão ou Aristóteles sabemos muito melhor e mais intimamente quem foi Sócrates por conhecermos sua estória do que sobre quem foi Aristóteles acerca de cujas opiniões estamos muito mais bem informados O herói desvelado pela história não precisa ter qualidades heróicas originalmente isto é em Homero a palavra herói não era mais que um nome dado a qualquer homem livre que houvesse participado da aventura troiana10 e d o qual se podia contar uma história A conotação de coragem que hoje reconhecemos ser uma qualidade indispensável a um herói já está de fato presente na disposição para agir e falar para inserirse no mundo e começar uma estória própria E essa coragem não está necessariamente nem principalmente associada à disposição para arcar com as consequências a coragem e mesmo a audácia já estão presentes no ato de alguém que abandona seu esconderijo privado para mostrar quem é desvelandose e exibindose a si próprio A dimensão dessa coragem original sem a qual a ação o discurso e portanto segundo os gregos a liberdade seriam impossíveis não é menor se o herói for um covarde pode ser até maior Tanto o conteúdo específico como o significado geral da ação e do discurso podem assumir várias formas de reificação em obras de arte que glorificam um feito ou uma proeza e por meio de transformação e de condensação exibem algum acontecimento extraordinário em sua significação plena Contudo a específica qualidade reveladora da ação e do discurso a manifestação implícita do agente e do orador está tão indissoluvelmente vinculada ao fluxo vivo do agir e do falar que só pode ser representada e reificada mediante uma espécie de repetição a imitação ou mimēsis que segundo Aristóteles predomina em todas as artes mas só é realmente adequada ao drama cujo próprio nome do verbo grego dran agir indica que a representação teatral é na verdade uma imitação da ação11 Esse elemento de imitação porém está presente não apenas na arte do ator mas também como alega corretamente Aristóteles na feitura ou na escrita da peça pelo menos na medida em que a peça teatral só adquire plena existência ao ser encenada no teatro Só os atores e oradores que reencenam o enredo da estória podem comunicar o significado total não tanto da história mesma mas dos heróis que se revelam nele12 Nos termos de tragédia grega isso quer dizer que tanto o significado direto como o significado universal da estória são revelados pelo coro que não imita13 e cujos comentários são pura poesia ao passo que as identidades intangíveis dos agentes na estória por escaparem a toda generalização e portanto a toda reificação só podem ser comunicadas por meio da imitação de seu agir Essa é também a razão pela qual o teatro é a arte política por excelência somente no teatro a esfera política da vida humana é transposta para a arte Pelo mesmo motivo é a única arte cujo assunto é exclusivamente o homem em sua relação com os outros homens 26 A fragilidade dos assuntos humanos Ao contrário da fabricação a ação jamais é possível no isolamento Estar isolado é estar privado da capacidade de agir A ação e o discurso necessitam tanto da presença circunvizinha de outros quanto a fabricação necessita da presença circunvizinha da natureza da qual obtém seu material e de um mundo onde coloca o produto acabado A fabricação é circundada pelo mundo e está em permanente contato com ele a ação e o discurso são circundados pela teia de atos e palavras de outros homens e estão em permanente contato com ela A crença popular em um homem forte que isolado dos outros deve sua força ao fato de estar só é ou mera superstição baseada na ilusão de que podemos produzir algo no domínio dos assuntos humanos produzir instituições ou leis por exemplo como fazemos mesas e cadeiras ou produzir homens melhores ou piores14 ou é então a desesperança consciente de toda ação política e não política aliada à esperança utópica de que seja possível tratar os homens como se tratam outros materiais15 A força de que o indivíduo necessita para qualquer processo de produção perde inteiramente seu valor quando se trata da ação não importando se essa força é intelectual ou uma questão de força puramente material A história está repleta de exemplos de impotência do homem forte e superior que não sabe como angariar o auxílio ou o agir conjunto co acting de seus semelhantes fracasso que é frequentemente atribuído à fatal inferioridade do grande número e ao ressentimento que as pessoas eminentes inspiram nas medíocres Mas por mais verdadeiras que sejam essas observações não atingem o âmago da questão Como exemplo do que está em jogo nesse particular podemos lembrar que o grego e o latim ao contrário das línguas modernas possuem duas palavras totalmente diferentes mas correlatas para designar o verbo agir Aos dois verbos gregos archein começar liderar e finalmente governar e prattein atravessar realizar e acabar correspondem os dois verbos latinos agere pôr em movimento liderar e gerere cujo significado original é conduzir16 Aqui é como se toda ação estivesse dividida em duas partes o começo feito por uma só pessoa e a realização à qual muitos se associam para conduzir acabar levar a cabo o empreendimento Não só as palavras se correlacionam de modo análogo como a história do seu emprego é também muito semelhante Em ambos os casos a palavra que originalmente designava apenas a segunda parte da ação ou seja sua realização prattein e gerere passou a ser o termo aceito para designar a ação em geral enquanto a palavra que designava o começo da ação adquiriu um signifi cado especial pelo menos na linguagem política Archein passou a significar principalmente governar e liderar quando empregada de maneira específica e agere passou a significar liderar mais do que pôr em movimento Desse modo o papel do iniciador e líder que era um primus inter pares no caso de Homero um rei entre reis passou a ser o papel de um governante a interdependência original da ação a dependência do iniciador e líder em relação aos outros devido a seu auxílio e a dependência de seus seguidores em relação a ele para ter uma oportunidade de agir dividiuse em duas funções completamente diferentes a função de dar ordens que passou a ser prerrogativa do governante e a função de executálas que passou a ser dever dos súditos O governante está só isolado contra os demais por sua força tal como o iniciador estava a princípio isolado devido à sua iniciativa até encontrar a adesão dos outros Contudo a força do iniciador e líder mostrase apenas em sua iniciativa e nos riscos que assume não na efetiva realização No caso do governante bemsucedido ele pode reivindicar para si aquilo que na verdade é a realização de muitos algo que jamais teria sido permitido a Agamêmnon que era rei mas não governante Por meio dessa reivindicação o governante monopoliza por assim dizer a força daqueles sem cujo auxílio ele jamais teria sido capaz de realizar coisa alguma E assim surge a ilusão de força extraordinária e com ela a falácia do homem forte que é poderoso por estar só Pelo fato de que se movimenta sempre entre outros seres atuantes e em relação a eles o ator nunca é simples agente mas sempre e ao mesmo tempo padecente Fazer e padecer são como as faces opostas da mesma moeda e a estória iniciada por um ato compõese dos feitos e dos padecimentos dele decorrentes Essas consequências são ilimitadas porque a ação embora possa provir de nenhures por assim dizer atua em um meio no qual toda reação se converte em reação em cadeia e no qual todo processo é causa de novos processos Como a ação atua sobre seres que são capazes de realizar suas próprias ações a reação além de ser uma resposta é sempre uma nova ação que segue seu curso próprio e afeta os outros Assim a ação e a reação entre os homens jamais se passam em um círculo fechado e jamais podem ser restringidas de modo confiável a dois parceiros Essa ilimitabilidade boundlessness é característica não só da ação política no sentido mais restrito da palavra como se a ilimitabilidade do interrelacionamento humano fosse apenas o resultado da multidão ilimitada de pessoas envolvidas da qual se poderia escapar ao se resignar à ação dentro de uma estrutura limitada e apreensível de circunstâncias o menor dos atos nas c ircunstâncias mais limitadas traz em si a semente da mesma ilimitabilidad e pois basta um ato e às vezes uma palavra para mudar todo um conjunto Além disso seja qual for o seu conteúdo específico a ação sempre estabelece relações e tem portanto a tendência inerente de romper todos os limites e transpor todas as fronteiras17 Os limites e fronteiras existem no domínio dos assuntos humanos mas eles jamais chegam a constituir estrutura capaz de resistir de modo confiável ao assalto por meio do qual tem de se inserir nele cada nova geração A fragilidade das leis e instituições humanas e de modo geral de todo assunto relativo à convivência dos homens decorre da condição humana da natalidade e independe inteiramente da fragilidade da natureza humana As cercas que circundam a propriedade privada e protegem os limites de cada lar as fronteiras territoriais que protegem e tornam possível a identidade física de um povo e as leis que protegem e tornam possível sua existência política têm tamanha importância para a estabilidade dos assuntos humanos precisamente porque nenhum de tais princípios limitadores e protetores resulta das atividades que transcorrem no próprio domínio dos assuntos humanos As limitações legais nunca são salvaguardas absolutamente seguras contra a ação vinda do interior do próprio corpo político da mesma forma que as fronteiras territoriais jamais são salvaguardas inteiramente seguras contra a ação vinda de fora A ilimitabilidade da ação é apenas o outro lado de sua tremenda capacidade de estabelecer relações isto é de sua produtividade específica É por isso que a antiga virtude da moderação de se manter dentro dos limites é realmente uma das virtudes políticas por excelência tal como a tentação política por excelência é realmente a hybris como sabiam tão bem os gregos com sua grande experiência com as potencialidades da ação e não a vontade de poder como somos inclinados a acreditar Contudo embora as várias limitações e fronteir as que encontramos em todo corpo político possam oferecer certa proteção contra a ilimitabilidade inerente à ação são totalmente impotentes para contrabalançar sua segunda característica relevante sua inerente imprevisibilidade Não se trata apenas da mera impossibilidade de se predizerem todas as consequências lógi cas de determinado ato pois se assim fosse um computador eletrônico seria capaz de predizer o futuro pois a imprevisibilidade decorre diretamente da estória que como resultado da ação se inicia e se estabelece assim que passa o instante fugaz do ato O problema é que seja qual for o caráter e o conteúdo da estória subsequente quer transcorra na vida pública ou na vida privada quer envolva muitos ou poucos atores seu pleno significado pode se revelar somente quando ela termina Ao contrário da fabricação em que a luz sob a qual se julga o produto final provém da imagem ou modelo percebido de antemão pelo olhar do artífice a luz que ilumina os processos da ação e portanto todos os processos históricos só aparece quando eles terminam muitas vezes quando todos os participantes já estão mortos A ação só se revela plenamente para o contador da estória storyteller ou seja para o olhar retrospectivo do historiador que realmente sempre sabe melhor o que aconteceu do que os próprios participantes Todo relato feito pelos próprios atores ainda que em raros casos constitua versão fidedigna de suas intenções finalidades e motivos tornase uma mera fonte de material útil nas mãos do historiador e nunca se equipara à sua estória em significância e veracidade Aquilo que o contador da estória narra deve necessariamente estar oculto para o próprio ator pelo menos enquanto este último estiver empenhado no ato ou enredado em suas consequências pois para o ator a significação do ato não está na estória que dele decorre Muito embora as estórias sejam o resultado inevitável da ação não é o ator e sim o contador da estória que percebe e faz a estória 27 A solução grega Aimprevisibilidade do resultado está intimamente relacionada ao caráter revelador da ação e do discurso nos quais alguém revela seu simesmo sem jamais se conhecer ou ser capaz de calcular de antemão a quem revela O velho ditado de que ninguém pode ser considerado eudaimōn antes de morrer talvez dê uma indicação do assunto em questão se formos capazes de ouvir seu significado original após 2500 anos de trivializante repetição nem mesmo a tradução latina proverbial e corriqueira já em Roma nemo ante mortem beatus esse dici potest transmite o significado original embora talvez tenha inspirado a prática da Igreja Católica de só beatificar os santos depois de há um bom tempo seguramente mortos Porque eudaimonia não significa felicidade nem beatitude é intraduzível e talvez até inexplicável Tem a conotação de bemaventurança mas sem qualquer implicação religiosa e significa literalmente algo como o bemestar do daimōn que acompanha cada homem durante toda a sua vida que é a sua identidade distinta mas só aparece e é visível para os outros 18 Portanto ao contrário da felicidade que é um passageiro estado de ânimo e da boa sorte que alguém pode ter em certos períodos da vida e carecer em outros a eudaimonia como a própria vida é uma duradoura condição de existência que não é sujeita a mudança nem é capaz de produzir mudanças Segundo Aristóteles ser eudaimôn é o mesmo que ter sido eudaimōn assim como viver bem eu dzēn é o mesmo que ter vivido bem durante toda a vida não são estados ou atividades que mudam a qualidade de uma pessoa como aprender e ter aprendido que indicam dois atributos inteiramente diferentes da mesma pessoa em momentos diferentes19 Embora essa identidade inalterável da pessoa se revele de modo intangível na ação e no discurso só se torna tangível na estória de vida do ator e do orador como estória porém só pode ser conhecida isto é percebida como entidade palpável depois que chega a seu fim Em outras palavras a essência humana não a natureza humana em geral que não existe nem a soma total de qualidades e imperfeições do indivíduo mas a essência de quem alguém é só pode passar a existir depois que a vida se acaba deixando atrás de si nada além de uma estória Assim quem pretender conscientemente ser essencial deixar atrás de si uma estória e uma identidade que conquistará fama imortal deve não só arriscar a vida mas também optar expressamente como o fez Aquiles por uma vida curta e uma morte prematura Só o homem que não sobrevive ao seu ato supremo permanece senhor inconteste de sua identidade e sua possível grandeza porque se retira na morte das possíveis consequências e da continuação do que iniciou O que dá à estória de Aquiles sua significância paradigmática é o fato de que ela mostra laconicamente que o preço da eudaimonia é a própria vida e que uma pessoa só pode estar segura dela quando renuncia à continuidade da existência ao longo da qual nos revelamos aos poucos quando resume toda a existência em um único feito de sorte que a estória do ato termina ao mesmo tempo em que a vida É verdade que até mesmo Aquiles permanece dependente do contador de estórias do poeta ou historiador sem os quais tudo o que ele fez teria sido em vão mas ele é o único herói e portanto o herói por excelência que põe nas mãos do narrador o pleno significado do seu feito de sorte que é como se ele houvesse não apenas encenado mas também feito a estória de sua vida Esse conceito de ação é sem dúvida altamente individualista como diríamos hoje20 Destaca o anseio de autodesvelamento à custa de todos os outros fatores e fica por isso relativamente intocado pelo constrangimento predicament da imprevisibilidade Como tal passou a ser o protótipo da ação na Grécia Antiga e influenciou na forma do chamado espírito agonístico o apaixonado impulso de alguém para exibir seu simesmo ao medirse com os outros que está na base do conceito de política prevalecente nas cidadesEstados Sintoma evidente dessa influência predominante é o fato de que os gregos distintamente de todos os desdobramentos posteriores não consideravam a função de legislar como atividade política Em sua opinião o legislador era como o construtor dos muros da cidade alguém cuja obra devia ser executada e terminada antes que a atividade política pudesse começar Consequentemente era tratado como qualquer outro artesão ou arquiteto e podia ser trazido de fora e contratado sem que precisasse ser cidadão ao passo que o direito de politeuesthai de engajarse nas muitas atividades que afinal ocorriam na pólis era exclusivo dos cidadãos Para os gregos as leis como os muros ao redor da cidade não eram um resultado da ação mas um produto da fabricação Antes que os homens começassem a agir era necessário assegurar um lugar definido e nele erguer uma estrutura dentro da qual pudessem ocorrer tod as as ações subsequentes o espaço era o domínio público da pólis e a estrutura era a sua lei legislador e arquiteto pertenciam à mesma categoria21 Mas essas entidades tangíveis não eram o conteúdo de política a pólis não era Atenas e sim os atenienses22 nem exigiam a mesma lealdade que conhecemos do tipo romano de patriotismo Embora seja certo que Platão e Aristóteles promoveram o ato de legislar e a construção de cidades ao mais alto nível da vida política isso não quer dizer que eles tenham ampliado as experiências gregas fundamentais da ação e da política para incluir aquilo que mais tarde viria a ser o gênio político de Roma a legislação e a fundação A escola socrática ao contrário voltouse para essas atividades que os gregos consideravam prépolíticas por desejar combater a política e a ação Para os socráticos o ato de legislar e a tomada de decisões pelo voto eram as mais legítimas atividades políticas porque nelas os homens agem como artesãos o resultado da ação deles é aí um produto tangível e o processo tem um fim claramente identificável23 A rigor não se trata mais ou melhor não se trata ainda de ação praxis propriamente dita mas de fabricação poiēsis a qual preferem em virtude de sua maior confiabilidade É como se tivessem dito que bastaria que os homens renunciassem à sua capacidade para a ação que é fútil ilimitada e incerta com relação aos resultados para que houvesse um remédio para a fragilidade dos assuntos humanos O quanto esse remédio pode destruir a própria substância das relações humanas é talvez mais bem exemplificado em uma das raras ocasiões em que Aristóteles vai buscar na esfera da vida privada um exemplo de ação na relação entre benfeitor e beneficiário Com aquela cândida abstenção de moralização tão típica da Antiguidade grega mas não da romana Aristóteles começa por dizer como algo óbvio que o benfeitor sempre ama aqueles a quem ajuda mais do que é amado por eles Em seguida passa a explicar que isso é bastante natural visto que o benfeitor executou uma obra uma ergon ao passo que o beneficiado apenas aceitou sua beneficência Segundo Aristóteles o benfeitor ama sua obra a vida do beneficiário que ele produziu tanto quanto o poeta ama seus poemas e lembra ao leitor que o amor do poeta por sua obra dificilmente é menos apaixonado que o amor da mãe pelos filhos24 Essa explanação mostra claramente que Aristóteles concebe a ação em termos de fabricação e o seu resultado a relação entre os homens em termos de obra realizada a despeito de suas enfáticas tentativas de distinguir entre ação e fabricação praxis e poiēsis25 No caso é perfeitamente óbvio como essa interpretação embora possa servir para explicar psicologicamente o fenômeno da ingratidão se benfeitor e beneficiado concordarem em interpretar a ação em termos de fabricação na verdade arruína a própria ação e seu verdadeiro resultado a relação que ela deveria ter estabelecido O exemplo do legislador parecenos menos plausível somente porque a noção grega de sua tarefa e função no domínio público é absolutamente estranha à nossa De qualquer modo a obra tal como a atividade do legislador na concepção grega só pode tornarse o conteúdo da ação no caso de qualquer ação subsequente ser indesejável ou impossível e a ação só pode resultar em um produto final com a condição de que seu significado autêntico intangível e sempre inteiramente frágil seja destruído O remédio grego original e préfilosófico para essa fragilidade foi a fundação da pólis Por ter nascido e permanecido enraizada na experiência e no julgamento grego prépólis daquilo que faz o viver junto dos homens syzēn valer a pena ou seja o compartilhamento de palavras e atos26 a pólis tinha dupla função Em primeiro lugar destinavase a permitir que os homens fizessem permanentemente ainda que com certas restrições aquilo que de outra forma era possível somente como empreendimento infrequente e extraordinário para o qual tinham de deixar seus lares Esperavase que a pólis multiplicasse as oportunidades de conquistar fama imortal ou seja multiplicasse para cada homem as possibilidades de distinguirse de revelar em ato e palavra quem era em sua distinção única Uma das razões senão a principal do incrível desenvolvimento do talento e do gênio em Atenas bem como do rápido e não menos surpreendente declínio da cidadeEstado foi precisamente que do começo ao fim o principal objetivo da pólis era fazer do extraordinário uma ocorrência ordinária da vida cotidiana A segunda função da pólis novamente conectada intimamente com os riscos da ação tal como experimentada antes que a pólis passasse a existir er a remediar a futilidade da ação e do discurso pois as chances de um feito merecedor de fama ser lembrado de que realmente se tornasse imortal não eram muito boas Homero não foi somente um brilhante exemplo da função política do poeta e portanto o educador de toda a Hélade o próprio fato de que um empreendimento tão grandioso como a guerra de Tróia pudesse ter sido esquecido sem um poeta que o imortalizasse centenas de anos depois exemplifica muito bem o que poderia ocorrer com a grandeza humana se e sta tivesse de se fiar apenas nos poetas para garantir sua permanência Não nos interessam aqui as causas históricas do surgimento da cidadeEstado grega os próprios gregos deixaram claro de modo inequívoco o que dela pensavam e qual a sua raison dêtre A pólis se acreditarmos nas célebres palavras de Péricles na Oração Fúnebre fornecia uma garantia para os que haviam obrigado mares e terras a tornarse o cenário da sua audácia de que não ficariam sem testemunho e não dependeriam do louvor de Homero nem de qualquer outro artista da palavra sem a ajuda de terceiros os que agiam seriam capazes de estabelecer juntos a memória eterna de seus feitos bons ou maus e de inspirar a admiração dos contemporâneos e da posteridade 27 Em outras palavras a convivência dos homens nos moldes da pólis parecia assegurar que as mais fúteis atividades humanas a ação e o discurso e que os menos tangíveis e mais efêmeros produtos do homem os feitos e as estórias que deles resultam se tornariam imperecíveis A organização da pólis fisicamente assegurada pelos muros que rodeavam a cidade e fisionomicamente garantida por suas leis para que as gerações futuras não viessem a mudar sua identidade a ponto de tornála irreconhecível é uma espécie de memória organizada Garante ao ator mortal que sua existência passageira e sua grandeza efêmera terão sempre a realidade que advém de ser visto ouvido e de modo geral de aparecer para a plateia de seus semelhantes que fora da pólis só podiam assistir à curta duração do desempenho e portanto precisavam de Homero e de outros do mesmo ofício para apresentálo aos que não estavam presentes Segundo essa autointerpretação o domínio político resulta diretamente da ação em conjunto do compartilhamento de palavras e atos A ação portanto não apen as mantém a mais íntima relação com a parte pública do mundo comum a todos nós mas é a única atividade que o constitui É como se os muros da pólis e os limites da lei fossem erguidos em torno de um espaço público preexistente que entretanto sem essa proteção est abilizadora não perduraria não sobreviveria ao próprio instante da ação e do discurso Falando metafórica e teoricamente e não historicamente é claro é como se os que regressaram da guerra de Tróia desejassem tornar permanente o espaço da ação que havia surgido de seus feitos e sofrimentos e impedir que esse espaço desaparecesse com a dispersão deles e o regresso de cada um a seus domicílios isolados A rigor a pólis não é a cidadeEstado em sua localização física é a organização das pessoas tal como ela resulta do agir e falar em conjunto e o seu verdadeiro espaço situase entre as pessoas que vivem juntas com tal propósito não importa onde estejam Onde quer que vás serás uma pólis essas famosas palavras não só vieram a ser o lema da colonização grega mas exprimiam a convicção de que a ação e o discurso criam um espaço entre os participantes capaz de situarse adequadamente em quase qualquer tempo e lugar Tratase do espaço da aparência no mais amplo sentido da palavra ou seja o espaço no qual eu apareço aos outros e os outros a mim onde os homens existem não meramente como as outras coisas vivas ou inanimadas mas fazem explicitamente seu aparecimento Nem sempre esse espaço existe e embora todos os homens sejam capazes de agir e de falar a maioria deles o escravo o estrangeiro e o bárbaro na Antiguidade o trabalhador e o artesão antes da idade moderna o empregado e o homem de negócios da atualidade não vive nele Além disso nenhum homem pode viver permanentemente nesse espaço Ser privado dele significa ser privado da realidade que humana e politicamente falando é o mesmo que a aparência Para os homens a realidade do mundo é garantida pela presença dos outros pelo fato de aparecerem a todos pois o que aparece a todos a isso chamamos Ser28 e tudo o que deixa de ter essa aparência surge e se esvai como um sonho íntima e exclusivamente nosso mas desprovido de realidade29 28 O poder e o espaço da aparência Oespaço da aparência passa a existir sempre que os homens se reúnem na modalidade do discurso e da ação e portanto precede toda e qualquer constituição formal do domínio público e as várias formas de governo isto é as várias formas possíveis de organização do domínio público Sua peculiaridade reside no fato de que ao contrário dos espaços que são a obra de nossas mãos não sobrevive à efetividade do movimento que lhe deu origem mas desaparece não só com a dispersão dos homens como no caso de grandes catástrofes que destroem o corpo político de um povo mas também com o desaparecimento ou suspensão das próprias atividades Onde quer que as pessoas se reúnam esse espaço existe potencialmente mas só potencialmente não necessariamente nem para sempre A ascensão e a decadência de civilizações o declínio e o desaparecimento de impérios poderosos e de grandes culturas sem o concurso de catástrofes externas e na maioria das vezes essas causas externas são precedidas por uma degenerescência interna que é um convite ao desastre devem se a essa peculiaridade do domínio público que pelo fato de repousar em última instância na ação e no discurso jamais perde inteiramente seu caráter potencial O que primeiro solapa e depois destrói as comunidades políticas é a perda do poder e a impotência final e o poder não pode ser armazenado e mantido em reserva para casos de emergência como os instrumentos da violência mas só existe em sua efetivação Se não é efetivado perdese e a história está cheia de exemplos de que nem a maior das riquezas materiais pode compensar essa perda O poder só é efetivado onde a palavra e o ato não se divorciam onde as palavras não são vazias e os atos não são brutais onde as palavras não são empregadas para velar intenções mas para desvelar realidades e os atos não são usados para violar e destruir mas para estabelecer relações e criar novas realidades É o poder que mantém a existência do domínio público o espaço potencial da aparência entre homens que agem e falam A própria palavra como o seu equivalente grego dynamis e o latino potentia com suas várias derivações modernas ou o alemão Macht que vem de mögen e möglich e não de machen indica seu caráter de potencialidade O poder é sempre como diríamos hoje um potencial de poder não uma entidade imutável mensurável e confiável como a força force e o vigor strength Enquanto o vigor é a qualidade natural de um indivíduo isolado o poder passa a existir entre os homens quando eles agem juntos e desaparece no instante em que eles se dispersam Devido a essa peculiaridade que possui em comum com todas as potencialidades que podem apenas ser efetivadas mas nunca inteiramente materializadas o poder tem um espantoso grau de independência de fatores materiais sejam estes números ou meio s Um grupo de homens relativamente pequeno mas bem organizado pode governar por tempo quase indeterminado vastos e populosos impérios a história registra não poucos exemplos de países pequenos e pobres que levam a melhor sobre nações grandes e ricas A história de Davi e Golias só é verdadeira como metáfora o poder de poucos pode ser superior ao de muitos mas na luta entre dois homens o que decide é o vigor não o poder e a sagacidade isto é a força do cérebro contribui materialmente para o resultado não menos que a força muscular Por outro lado a revolta popular contra governantes materialmente fortes pode gerar um poder praticamente irresistível mesmo quando se renuncia à violência em face de forças materiais vastamente superiores Dar a isso o nome de resistência passiva é sem dúvida uma ironia pois se trata de um dos mais ativos e eficazes modos de ação já concebido uma vez que não se lhe pode opor um combate que termine em vitória ou derrota mas somente uma chacina em massa da qual o próprio vencedor sairia derrotado e de mãos vazias visto que ninguém governa os mortos O único fator material indispensável para a geração do poder é a convivência entre os homens Estes só retêm poder quando vivem tão próximos uns aos outros que as potencialidades da ação estão sempre presentes e portanto a fundação de cidades que como cidadesEstados se converteram em paradigmas para toda a organização política ocidental é na verdade a condição prévia material mais importante do poder O que mantém unidas as pessoas depois que passa o momento fugaz da ação aquilo que hoje chamamos de organização e o que elas ao mesmo tempo mantêm vivo ao permanecerem unidas é o poder Todo aquele que por algum motivo se isola e não participa dessa convivência é privado do poder e se torna impotente por maior que seja seu vigor e por mais válidas que sejam suas razões Se o poder fosse algo mais que essa potencialidade no estar junto se pudesse ser possuído como o vigor ou aplicado como a força ao invés de depender do acordo frágil e temporário de muitas vontades e intenções a onipotência seria uma possibilidade humana concreta Porque o poder como a ação é ilimitado ao contrário do vigor não encontra limitação física na natureza humana na existência corpórea do homem Sua única limitação é a existência de outras pessoas limitação que não é acidental pois o poder humano corresponde antes de tudo à condição humana da pluralidade Pelo mesmo motivo é possível dividir o poder sem reduzilo e a interação de poderes com seus controles e equilíbrios tende inclusive a gerar mais poder pelo menos enquanto a interação seguir viva e não tiver resultado em um impasse O vigor ao contrário é indivisível e embora também seja controlado e equilibrado pela presença dos outros a interação da pluralidade significa nesse caso uma definida limitação do vigor do indivíduo que é mantida dentro de limites e pode vir a ser superada pelo poder potencial da maioria Uma identificação do vigor necessário para a produção de coisas com o poder necessário à ação só é concebível como atributo divino de um deus Por isso a onipotência jamais é atributo dos deuses no politeísmo não importa quão superior às forças dos homens possa ser o vigor dos deuses Inversamente a aspiração de onipotência implica sempre à parte de sua hybris utópica a destruição da pluralidade Nas condições da vida humana a única alternativa ao poder não é o vigor ineficaz contra o poder mas a força que um homem sozinho pode exercer contra seu semelhante e da qual um ou uns poucos homens podem ter o monopólio ao se apoderarem dos meios de violência Entretanto embora a violência seja capaz de destruir o poder jamais pode substituílo Daí resulta a combinação política nada infrequente de força e impotência uma legião de forças impotentes que se desgastam muitas vezes de modo espetacular e veemente mas em completa futilidade sem deixar monumentos nem estórias e raramente uma recordação suficiente para de algum modo ingressar na história Na experiência histórica e na teoria tradicional essa combinação mesmo quando não reconhecida como tal tem o nome de tirania e o consagrado temor a essa forma de governo não é inspirado exclusivamente por sua crueldade que como atesta a longa sucessão de tiranos benévolos e déspotas esclarecidos não é um de seus traços inevitáveis mas pela impotência e pela futilidade a que condena tanto governantes como governados Mais importante é a descoberta que se deve ao que eu saiba exclusivamente a Montesquieu o último pensador político seriamente preocupado com o problema das formas de governo Montesquieu percebeu que a principal característica da tirania é que se ela se baseia no isolamento no isolamento do tirano em relação aos súditos e no dos súditos entre si por meio do medo e da suspeita generalizada e que portanto a tirania não era uma forma de governo como qualquer outra mas contradizia a condição humana essencial da pluralidade o agir e o falar em conjunto que é a condição de todas as formas de organização política A tirania impede o desenvolvimento do poder não só em um segmento específico do domínio público mas em sua totalidade em outras palavras gera a impotência tão naturalmente quanto outros organismos políticos geram poder Na interpretação de Montesquieu isso torna necessário atribuirlhe lugar especial na teoria dos corpos políticos só a tirania é incapaz de engendrar suficiente poder para permanecer no espaço da aparência que é o domínio público ao contrário tão logo passa a existir gera as sementes de sua própria destruição30 A violência de modo bastante curioso pode destruir o poder com mais facilidade do que é capaz de destruir o vigor e embora uma tirania se caracterize sempre pela impotência dos seus súditos privados da capacidade humana de agir e falar em conjunto não é necessariamente caracterizada por fraqueza e esterilidade pelo contrário as artes e os ofícios podem florescer em tais condições bastando que o governante seja suficientemente benévolo para deixar em paz os súditos em seu isolamento Por outro lado o vigor uma dádiva da natureza que o indivíduo não pode partilhar com os outros pode enfrentar a violência com mais possibilidades de êxito do que tem ao enfrentar o poder seja heroicamente dispondose a lutar e morrer seja estoicamente aceitando o sofrimento e desafiando todos os tormentos por meio da autossuficiência e de uma retirada do mundo em ambos os casos a integridade e o vigor do indivíduo permanecem intactos Só o poder pode efetivamente aniquilar o vigor e portanto o vigor está sempre em perigo proveniente da força combinada da maioria O poder corrompe de fato quando os fracos se unem para destruir o forte mas não antes A vontade de poder como compreendeu a era moderna de Hobbes a Nietzsche glorificandoa ou denunciandoa longe de ser uma característica do forte é como a cobiça e a inveja um dos vícios do fraco talvez o seu mais perigoso vício Se a tirania pode ser definida como a tentativa sempre frustrada de substituir o poder pela violência a oclocracia o governo da multidão seu exato oposto pode ser caracterizada pela tentativa muito mais promissora de substituir o poder pelo vigor O poder pode de fato aniquilar todo vigor e sabemos que onde o principal domínio público é a sociedade há sempre o perigo de que mediante uma forma pervertida de agir em conjunto por impulso pressão e truques de pequenos grupos subam ao primeiro plano os que nada sabem e nada podem fazer O veemente desejo de violência tão característico de alguns dos melhores artistas criativos pensadores estudiosos e artífices modernos é uma reação natural daqueles de quem a sociedade tentou furtar o vigor 31 O poder preserva o domínio público e o espaço da aparência e como tal é também a força vital do artifício humano que perderia sua suprema raison dêtre se deixasse de ser o palco da ação e do discurso da teia dos assuntos e relações humanos e das estórias por eles engendradas Se não fosse ao mesmo tempo abrigo e assunto dos homens o mundo não seria um artifício humano e sim um amontoado de coisas desconexas ao qual cada indivíduo isolado teria a liberdade de acrescentar mais um objeto sem o abrigo do artifício humano os assuntos humanos seriam tão instáveis fúteis e vãos como as perambulações das tribos nômades A melancólica sabedoria do Eclesiastes Vaidade das vaidades tudo é vaidade Nada há de novo sob o sol não há recordação das coisas passadas nem restará com os vindouros uma recordação das coisas que estão por vir não resulta necessariamente de uma experiência especificamente religiosa mas é certamente inevitável sempre e onde quer que se extinga a confiança no mundo como lugar adequado ao aparecimento humano para a ação e o discurso Sem a ação para inserir no jogo do mundo o novo começo de que cada homem é capaz por haver nascido nada há de novo sob o sol sem o discurso para materializar e memorar ainda que tentativamente as coisas novas que aparecem e resplandecem não há recordação sem a permanência duradoura de um artefato humano não poderá restar com os vindouros uma recordação das coisas que estão por vir E sem o poder o espaço da aparência produzido p ela ação e pelo discurso em público se desvanecerá tão rapidamente como o ato vivo e a palavra viva Talvez nada em nossa história tenha durado tão pou co quanto a confiança no poder e nada tenha durado mais que a desconfiança platônica e cristã em relação ao esplendor que acompanha seu espaço da aparência e finalmente na era moderna nada é mais comum que a convicção de que o poder corrompe As palavras de Péricles tal como as relata Tucídides são talvez únicas em sua suprema confiança na capacidade humana de ao mesmo tempo e em um só gesto por assim dizer encenar e salvar sua grandeza e em que o próprio desempenho fosse suficiente para gerar a dynamis e prescindir da reificação transformadora do homo faber para mantêla real32 Embora o discurso de Péricles certamente correspondesse e exprimisse as convicções mais profundas do povo ateniense sempre foi lido com a triste sabedoria da visão retrospectiva por homens que sabiam que suas palavras foram proferidas no começo do fim No entanto por mais breve que tenha sido essa fé na dynamis e por conseguinte na política fé que já não existia quando foram formuladas as primeiras filosofias políticas sua mera existência pode ter bastado para elevar a ação ao topo da hierarquia da vita activa e singularizar o discurso como a distinção decisiva entre a vida humana e a vida animal ação e discurso que conferiram à política uma dignidade que ainda hoje não desapareceu completamente Fica eminentemente claro nas formulações de Péricles e aliás não menos transparente nos poemas de Homero que o significado mais profundo do ato praticado e da palavra enunciada independe de vitória ou derrota e não deve ser afetado pelo resultado final por suas consequências boas ou más Ao contrário do comportamento humano que os gregos como todo povo civilizado julgavam segundo padrões morais levando em conta por um lado motivos e intenções e por outro objetivos e consequências a ação só pode ser julgada pelo critério de grandeza porque é de sua natureza romper o comumente aceito e alcançar o extraordinário onde tudo o que é verdadeiro na vida comum e cotidiana não mais se aplica uma vez que tudo o que existe é único e sui generis33 Tucídides e Péricles sabia muito bem que tinha rompido os padrões normais do comportamento cotidiano ao atribuir a glória de Atenas ao fato de ter deixado atrás d e si por toda parte eterna recordação mnēmeia aidia de suas boas e más ações A arte da política ensina os homens a gerar o que é grande e luminoso ta megala kai lampra nas palavras de Demócrito enquanto existe a pólis a inspirar os homens a ousarem o extraordinário todas as coisas estão salvas se sucumbe tudo está perdido 34 Por mais puros ou grandiosos que sejam os motivos e os objetivos jamais são únicos como qualidades psicológicas eles são típicos característicos de diferentes tipos de pessoas A grandeza portanto ou o significado específico de cada ato só pode residir no próprio cometimento e não em sua motivação ou em seu resultado Essa insistência no ato vivo e na palavra falada como as maiores realizações de que os seres humanos são capazes foi conceituada na noção aristotélica de energeia atualidade actuality com a qual se designavam todas as atividades que não visam a um fim que são ateleis e não deixam obra alguma atrás de si não deixam par autas erga atividades que esgotam todo o seu significado no próprio desempenho35 É da experiência dessa total atualidade que advém o significado original do paradoxal fim em si mesmo pois nesses casos de ação e discurso36 não se busca um fim telos mas este reside na própria atividade que assim se converte em entelecheia e a obra não sucede ao processo e o extingue mas está incrustada nele o desempenho é a obra é energeia37 Em sua filosofia política Aristóteles tem ainda clara consciência do que está em jogo na política ou seja nada menos que a ergon tou anthrōpou38 a obra do homem qua homem e se definiu essa obra como viver bem eu zēn queria com isso dizer claramente que a obra nesse caso não é produto da obra mas só existe na pura atualidade Essa realização especificamente humana encontrase completamente fora da categoria de meios e fins a obra do homem não é um fim porque os meios de realizála as virtudes ou aretai não são qualidades que podem ou não ser atualizadas mas são por si mesmas atualidades Em outras palavras os meios de alcançar o fim já seriam o fim e esse fim por sua vez não pode ser considerado como meio em outro contexto pois nada há de mais elevado a atingir que essa própria atualidade Vemos um débil reflexo da experiência grega préfilosófi ca da ação e do discurso como pura atualidade na afirmação repetida com insistência na filosofia política desde Demócrito e Platão de que a política é uma technē uma das artes comparável a atividades como a arte da cura ou a navegação cujo produto como no caso da atuação do bailarino e do ator é idêntico ao cometimento do próprio ato Podemos porém avaliar o que aconteceu à ação e ao discurso que existem somente em sua atualidade e portanto constituem as mais altas atividades do domínio político quando ouvimos o que a moderna sociedade tem a dizer sobre eles com a inflexível e peculiar coerência que a caracterizou em suas primeiras fases Pois essa importantíssima degradação da ação e do discurso está implícita quando Adam Smith classifica qualquer ocupação que se baseie essencialmente no desempenho como a profissão dos militares clérigos advogados médicos e cantores de ópera na mesma categoria dos serviços domésticos que é a mais baixa e mais improdutiva forma de trabalho39 Foram precisamente essas ocupações a arte da cura a execução da flauta a representação teatral que forneceram para o pensamento antigo os exemplos das mais altas e grandiosas atividades do homem 29 O homo faber e o espaço da aparência Araiz da estima dos antigos pela política é a convicção de que o homem qua homem cada indivíduo em sua distinção única aparece e confirmase no discurso e na ação e de que essas atividades a despeito de sua futilidade material são dotadas da qualidade de perdurar por si próprias porquanto criam sua própria recordação40 O domínio público o espaço no mundo de que os homens necessitam para de algum modo aparecer é portanto obra do homem em um sentido mais específico que o da obra de suas mãos ou o do trabalho do seu corpo A convicção de que o máximo que o homem pode atingir é seu aparecimento e sua atualização não é de modo algum algo óbvio Contra ela há a convicção do homo faber de que os produtos feitos pelo homem podem vir a ser mais e não apenas mais duradouros que o próprio homem como há também a firme crença do animal laborans de que a vida é o bem supremo A rigor ambos são portanto apolíticos e tenderão a denunciar a ação e o discurso como ociosidade intrometimento ocioso ou conversa ociosa e de modo geral julgarão as atividades públicas pelo critério da utilidade para fins supostamente mais nobres no caso do homo faber tornar o mundo mais útil e belo no caso do animal laborans tornar a vida mais fácil e longa Isso porém não significa que os dois possam prescindir inteiramente do domínio público pois sem o espaço da aparência e sem a confiança na ação e no discurso como uma forma de convivência é impossível estabelecer inequivocamente a realidade do si mesmo próprio da própria identidade ou a realidade do mundo circundante O senso humano de realidade requer que os homens atualizem o puro dado passivo do seu ser não para modificálo mas para exprimir e dar plena existência àquilo que se não o fizessem teriam de suportar passivamente de qualquer maneira41 Essa atualização consiste e ocorre naquelas atividades que só existem na mera atualidade O único atributo do mundo que nos permite aferir sua realidade é o fato de ser comum a todos nós e o senso comum ocupa uma posição tão alta na hierarquia das qualidades políticas porque é o único sentido que ajusta à realidade como um todo os nossos cinco sentidos estritamente individuais e os dados rigorosamente particulares que eles percebem Graças ao senso comum é possível saber que as percepções dos outros sentidos desvelam a realidade e não são meramente percebidas como irritações de nossos nervos nem como sensações de resistência de nossos corpos Um declínio perceptível do senso comum em qualquer comunidade e um perceptível recrudescimento da superstição e da credulidade constituem portanto sinais quase inconfundíveis de alienação em relação ao mundo Essa alienação a atrofia do espaço da aparência e o definhament o do senso comum é naturalmente levada a um extremo muito maior em uma sociedade de operários que em uma sociedade de produtores Em seu isolamento a salvo não só de ser perturbado mas também de ser visto ouvido e confirmado pelos outros o homo faber está junto nã o apenas com os produtos que faz mas também com o mundo de coisas ao qual acrescentará seus próprios produtos continua assim embora indiretamente a conviver com os outros que fizeram o mundo e também são fabricantes de coisas Já mencionamos o mercado de trocas no qual o artesão entra em contato com seus iguais e que para eles representa um domínio público comum na medida em que cada um deles contribui com algo para ele No entanto embora o domínio público como mercado de trocas corresponda mais adequadamente à atividade da fabricação a troca mesma já pertence ao campo da ação e não é de modo algum mero prolongamento da produção menos ainda é mera função de processos automáticos como a compra de alimentos e de outros bens de consumo que acompanha necessariamente a atividade do trabalho A afirmação de Marx de que as leis econômicas são como as leis da natureza de que não são feitas pelo homem para regular os atos livres da troca mas são funções das condições produtivas da sociedade como um todo só é correta em uma sociedade de trabalhadores onde todas as atividades são rebaixadas ao nível do metabolismo do corpo humano com a natureza e onde não existe troca mas somente consumo Contudo aqueles que se encontram no mercado de trocas são fundamentalmente não pessoas mas fabricantes de produtos que nunca exibem nele a si próprios nem mesmo suas aptidões e qualidades como na produção conspícua da Idade Média mas seus produtos O impulso que conduz o fabricante à praça pública do mercado não é o desejo de encontrar pessoas mas produtos e o poder que mantém a coesão e a existência desse mercado não é a potencialidade que surge entre as pessoas quando estas se unem na ação e no discurso mas um poder de troca Adam Smith combinado que cada participante adquiriu em seu isolamento Foi essa ausência de relacionamento com os outros e essa preocupação primordial com mercadorias permutáveis que Marx denunciou como a desumanização e a autoalienação da sociedade comercial que de fato exclui os homens qua homens e em uma surpreendente inversão da antiga relação entre público e privado exige que eles se mostrem somente na privatividade de suas famílias ou na intimidade dos amigos Talvez o melhor exemplo da frustração da pessoa humana inerente a uma comunidade de produtores e mais ainda à sociedade comercial seja o fenômeno do gênio que a era moderna desde a Renascença até o final do século XIX viu como seu mais alto ideal O gênio criativo como expressão quintessencial da grandeza humana era inteiramente desconhecido na Antiguidade e na Idade Média Só no começo do século XX os grandes artistas passaram a protestar com surpreendente unanimidade contra o fato de serem chamados de gênios e a insistir no artesanato na competência e na estreita relação entre arte e ofício manual É verdade que esse protesto não foi em parte mais que uma reação contra a vulgarização e a comercialização da noção de gênio mas deveuse também ao mais recente advento de uma sociedade de trabalhadores que não vê como um ideal a produtividade ou a criatividade e que é destituída de qualquer experiência da qual possa emanar a própria noção de grandeza O que importa em nosso contexto é que a obra do gênio em contraposição ao produto do artesão parece haver absorvido aqueles elementos de distinção e unicidade que encontram expressão imediata somente na ação e no discurso A obsessão da era moderna com a assinatura própria de cada artista a sensibilidade sem precedentes em relação ao estilo revela uma preocupação com aquelas características mediante as quais o artista transcende sua habilidade e sua manufatura workmanship de modo análogo àquele por meio do qual a unicidade de cada pessoa transcende a soma de suas qualidades Por causa dessa transcendência que efetivamente diferencia a grande obra de arte dos demais produtos das mãos humanas o fenômeno do gênio criativo parecia constituir a mais elevada legitimação da convicção do homo faber de que os produtos de um homem podem ser mais e essencialmente maiores que ele mesmo Contudo a grande veneração que a era moderna tão prontamente dedica ao gênio beirando tantas vezes a idolatria dificilmente poderia mudar o fato elementar de que a essência de quem uma pessoa é não pode ser reificada por ela mesma Quando essa essência aparece objetivamente sob a forma de uma obra de arte ou de manuscrito comum manifesta a identidade de uma pessoa e portanto serve para identificar a autoria mas emudece e nos escapa quando tentamos interpretála como o espelho de uma pessoa viva Em outras palavras a veneração do gênio como ídolo encerra a mesma degradação da pessoa humana que os demais princípios predominantes na sociedade comercial É um elemento indispensável do orgulho humano acreditar que quem alguém é transcende em grandeza e importância qualquer coisa que esse alguém possa fazer e produzir Que os médicos os doceiros e os criados das grandes casas sejam julgados pelo que fizeram ou mesmo pelo que pretenderam fazer as grandes pessoas são julgadas pelo que são42 Só os vulgares consentirão em derivar seu orgulho do que fizeram em virtude dessa condescendência tornarseão escravos e prisioneiros de suas próprias faculdades e descobrirão caso lhes reste algo mais que mera vaidade estulta que ser escravo e prisioneiro de si mesmo não é menos amargo e talvez seja mais vergonhoso que ser servo de outrem Não é na glória mas na atribulação predicament do gênio criativo que a superioridade do homem sobre sua obra parece realmente invertida de sorte que ele o criador vivo vêse concorrendo com suas criações às quais subsiste ainda que elas possam eventualmente sobreviver a ele O que salva os dons realmente grandes é o fato de que os que arcam com esse ônus permanecem superiores ao que fizeram pelo menos enquanto estiver viva a fonte de criatividade pois essa fonte na verdade mana de quem eles são e permanece portanto exterior ao efetivo processo da obra assim como permanece independente do que possam realizar No entanto a atribulação do gênio é real o que fica evidente no caso dos literati em que de fato se consuma a inversão da ordem entre o homem e seu produto o que há de tão ultrajante em seu caso e o que aliás suscita mais ódio popular que a falsa superioridade intelectual é que mesmo o seu pior produto lhes será provavelmente superior A característica distintiva do intelectual é que ele permanece absolutamente imperturbado pela terrível humilhação sob a qual trabalha o verdadeiro artista ou escritor sentir que se torna filho de sua obra na qual é condenado a verse como em um espelho limitado tal e tal43 30 O movimento dos trabalhadores Embora não seja capaz de estabelecer um domínio público autônomo no qual os homens qua homens possam aparecer a atividade da obra para a qual o isolamento em relação aos outros é uma condição prévia necessária está ainda vinculada de várias maneiras a esse espaço da aparência na pior das hipóteses permanece ligada ao mundo tangível das coisas que ela produz A manufatura workmanship portanto talvez constitua um modo apolítico de vida mas certamente não é antipolítico Contudo este último é precisamente o caso do trabalho atividade na qual o homem não está junto ao mundo nem convive com os outros mas está sozinho com seu corpo ante a pura necessidade de manterse vivo44 É verdade que também vive na presença e na companhia de outros mas esse estar junto togetherness não possui nenhum dos traços característicos da verdadeira pluralidade Não é a combinação proposital de diferentes habilidades e vocações como no caso da feitura de uma obra para não falar das relações entre pessoas únicas mas existe na multiplicidade de espécimes todos fundamentalmente iguais por serem o que são como meros organismos vivos De fato é próprio do trabalho agrupar os homens em turmas de trabalho nas quais alguns indivíduos trabalham juntos como se fossem um só45 e nesse sentido a convivência permeia mais intimamente o trabalho que qualquer outra atividade46 Mas essa natureza coletiva do trabalho47 longe de estabelecer uma realidade reconhecível e identificável para cada membro da turma de trabalho exige ao contrário a perda efetiva de toda consciência da individualidade e da identidade e é por essa razão que todos aqueles valores derivados do trabalho além de sua função óbvia no processo v ital são inteiramente sociais e não diferem essencialmente do prazer adicional que se tem quando se come e se bebe em companhia de outros A sociabilidade que surge dessas atividades resultantes do metabolismo do corpo humano com a natureza não se baseia em igualdade mas em uniformidade e desse ponto de vista é inegável que por natureza um filósofo em matéria de gênio e disposição difere muito menos do carregador de rua que o mastim difere do galgo Na verdade essa observação de Adam Smith que Marx citava com grande prazer48 ajustase muito melhor a uma sociedade de consumidores que ao agrupamento de pessoas no mercado de trocas no qual vêm à luz os talentos e qualidades dos produtores e em vista disso sempre fornece alguma base para a distinção A uniformidade predominante em uma sociedade que se baseia no trabalho e no consumo e que se manifesta em sua conformidade tem íntima conexão com a experiência somática de trabalhar em conjunto na qual o ritmo biológico do trabalho une de tal forma o grupo de trabalhadores a ponto de cada um poder sentir que não é mais um indivíduo mas um com os outros Não resta dúvida de que isso atenua as labutas e penas do trabalho como a marcha em conjunto atenua para cada soldado o esforço de caminhar É portanto inteiramente correto afirmar que para o animal laborans o sentido e o valor do trabalho dependem inteiramente das condições sociais isto é se for permitido ao processo do trabalho e do consumo funcionar suave e facilmente independentemente das atitudes profissionais propriamente ditas49 o problema é apenas que as melhores condições sociais para o trabalho são aquelas nas quais o indivíduo pode perder sua identidade Essa unificação de muitos em um só é basicamente antipolítica é o exato oposto da convivência que prevalece nas comunidades comerciais ou políticas que para citar o exemplo de Aristóteles não consiste em uma associação koinōnia entre dois médicos mas de um médico com um agricultor e de modo geral de pessoas diferentes e desiguais50 A igualdade presente no domínio público é necessariamente uma igualdade de desiguais que precisam ser igualados sob certos aspectos e para propósitos específicos Como tal o fator igualador não provém da natureza humana mas de fora assim como o dinheiro para retomar o exemplo de Aristóteles é necessário como um fator externo para igualar as atividades desiguais do médico e do agricultor A igualdade política é portanto o exato oposto da igualdade de todos perante a morte que como destino comum aos homens decorre da condição humana ou da igualdade perante Deus pelo menos em sua interpretação cristã na qual deparamos com uma pecabilidade idêntica inerente à natureza humana Nessas situações nenhum fator igualador é necessário visto como a uniformidade prevalece de qualquer modo pelo mesmo motivo porém a efetiva experiência dessa uniformidade a experiência da vida e da morte ocorre não apenas no isolamento mas no completo desamparo no qual não é possível qualquer comunicação genuína e muito menos associação e comunidade Do ponto de vista do mundo e do domínio público a vida e a morte e tudo o que comprova uniformidade são experiências não mundanas antipolíticas e verdadeiramente transcendentes A surpreendente ausência de rebeliões sérias por parte dos escravos nos tempos antigos e modernos51 parece confirmar a incapacidade do animal laborans para a diferenciação e por conseguinte para a ação e o discurso Não menos surpreendente porém é o papel súbito e muitas vezes extraordinariamente produtivo que os movimentos dos trabalhadores desempenharam na política moderna Das revoluções de 1848 até a revolução húngara de 1956 a classe operária europeia por ser o único setor organizado e portanto o setor conducente do povo escreveu um dos mais gloriosos capítulos da história recente e provavelmente o mais promissor No entanto embora estivesse ofuscada a linha divisória entre suas reivindicações econômicas e políticas entre organizações políticas e sindicais não devemos confundir as duas coisas Os sindicatos que defendem os interesses da classe operária e lutam por eles são responsáveis pela posterior incorporação desta última na sociedade e sobretudo pela extraordinária melhora da segurança econômica do prestígio social e do poder político da classe Os sindicatos jamais foram revolucionários no sentido de desejarem a transformação simultânea da sociedade e das instituições políticas nas quais ess a sociedade estava representada e os partidos políticos da classe operária têm sido na maior parte das vezes partidos de interesses em nada diferentes dos que representam outras classes sociais Apareceu uma diferença somente naqueles momentos raros e decisivos não obstante nos quais no decorrer de um processo revolucionário ficava claro de repente que essas pessoas se não fossem guiadas por programas e ideologias partidárias oficiais tinham ideias próprias quanto às possibilidades do governo democrático nas condições modernas Em outras palavras a linha divisória não concerne às reivindicações econômicas e sociais extremas mas exclusivamente à proposição de uma nova forma de governo Ao se defrontar com a ascensão dos sistemas totalitários sobretudo quando analisa os desdobramentos na União Soviética o historiador moderno facilmente esquece que assim como as massas modernas e seus líderes conseguiram pelo menos provisoriamente engendrar no totalitarismo uma nova forma de governo autêntica embora inteiramente destrutiva as revoluções populares vêm por seu turno há mais de 100 anos propondo sempre sem êxito outra nova forma de governo o sistema de conselhos populares em substituição ao sistema partidário continental que cabe dizer já nasceu desacreditado52 Os destinos históricos das duas tendências presentes na classe operária o movimento sindical e as aspirações políticas populares não podiam ser mais divergentes enquanto os sindicatos ou seja a classe operária na medida em que é apenas uma dentre as classes da so ciedade moderna têm prosseguido de vitória em vitória o movimento político dos trabalhadores tem sido derrotado sempre que ousa apresentar suas próprias reivindicações distintas de programas partidários e reformas econômicas Se a tragédia da revolução húngara conseguiu apenas demonstrar ao mundo que a despeito de todas as derrotas e aparências esse elã político ainda não morreu seus sacrifícios não terão sido em vão Essa discrepância aparentemente flagrante entre o fato histórico a produtividade política da classe operária e os dados fenomenológicos obtidos da anál ise da atividade do trabalho tende a desaparecer após exame mais profundo do desenvolvimento e da substância do movimento dos trabalhadores A principal diferença entre o trabalho escravo e o moderno trabalho livre não é o fato de o trabalhador possuir liberdade pessoal liberdade de movimento e de atividade econômica e inviolabilidade pessoal mas consiste em que o trabalhador moderno é admitido no domínio público e completamente emancipado como cidadão O momento crucial da história do trabalho foi a abolição do requisito de propriedade para o direito de voto Até então a condição do trabalho livre era muito semelhante à da constantemente crescente população escrava emancipada na Antiguidade constituía se de homens livres assimilados à condição de residentes estrangeiros mas não eram cidadãos Em contraste com as antigas emancipações de escravos pelas quais em geral o escravo deixava de ser um trabalhador quando deixava de ser um escravo e pelas quais portanto a escravidão continuava a ser a condição social da atividade do trabalho não importa quantos escravos fossem emancipados a emancipação moderna do tra balho ao contrário visou a elevar a própria atividade do trabalho objetivo que foi atingido muito antes da concessão de direitos civis e pessoais ao operário como pessoa Contudo um dos efeitos colaterais importantes da emancipação efetiva dos operários foi a admis são mais ou menos súbita no domínio público de todo um novo segmento da população que assim pôde aparecer em público53 e isso sem que fossem ao mesmo tempo admitidos na sociedade sem que desempenhassem qualquer papel de liderança nas mais importantes atividades econômicas dessa sociedade e portanto sem que fossem absorvidos pelo domínio social e por assim dizer subtraídos do público Talvez nada ilustre melhor o papel decisivo da mera aparência do distinguirse e ser conspícuo no domínio dos assuntos humanos que o fato de que os trabalhadores quando ingressaram no cenário histórico sentiram necessidade de adotar um traje próprio o sansculotte do qual durante a Revolução Francesa derivavam seu nome54 Com esse traje adquiriram uma distinção própria distinção esta dirigida contra todos os outros O próprio páthos do movimento dos trabalhadores em seus primeiros estágios e o movimento ainda está nos primeiros estágios em todos os países nos quais o capitalismo não atingiu seu pleno desenvolvimento como na Europa Oriental por exemplo mas também na Itália e na Espanha e mesmo na França tem origem em sua luta contra a sociedade como um todo O vasto potencial de poder que esses movimentos adquiriram em tempo relativamente curto e muitas vezes nas circunstâncias as mais adversas devese ao fato de que a despeito de toda conversa e teoria os trabalhadores foram o único grupo no cenário político que além de defender seus interesses econômicos travou uma batalha inteiramente política Em outras palavras ao aparecer no cenário público o movimento dos trabalhadores era a única organização na qual os homens agiam e falavam qua homens e não qua membros da sociedade Para esse papel revolucionário e político do movimento dos trabalhadores que muito provavelmente está próximo do seu fim é decisivo o fato de que a atividade econômica de seus membros fosse incidental e que a sua força de atração jamais se restringisse às fileiras da classe operár ia Se durante certo tempo pareceu que o movimento conseguiria fundar pelo menos dentro de suas próprias fileiras um novo espaço público com novos padrões políticos o que impulsionou essa tentativa não foi o trabalho nem a própria atividade do trabalho nem a rebelião sempre utóp ica contra as necessidades da vida mas sim aquelas injustiças e hipocrisias que desapareceram com a transformação da sociedade de classes em uma sociedade de massas e com a substituição do salário diário ou semanal por um salário anual garantido Hoje em dia os operários já não estão à margem da sociedade fazem parte dela e são empregados como todo mundo A importância política do movimento dos trabalhadores é hoje a mesma de qualquer outro grupo de pressão já se foi o tempo que durou quase um século em que podia representar o povo como um todo se entendermos por le peuple o corpo político efetivo diferente portanto da população e da sociedade 55 Na revolução húngara os operários não se diferenciavam do restante do povo a noção de um sistema parlamentar baseado em conselhos ao invés de partidos que de 1848 a 1918 fora quase o monopólio da classe operária tornouse uma reivindicação unânime de todo o povo Ambíguo em seu conteúdo e objetivos desde o princípio o movimento dos trabalhadores perdeu imediatamente essa representação e por conseguinte seu papel político sempre que a classe operária se tornava uma parte integrante da sociedade um poder econômico e social por si mesmo como nas economias mais desenvolvidas do mundo ocidental ou naquelas que tiverem sucesso na transformação de toda a população em uma sociedade trabalhadora como ocorreu na Rússia e pode vir a ocorrer em outros países mesmo em condições não totalitárias Em circunstâncias nas quais mesmo o mercado de trocas está sendo suprimido o definhamento do domínio público tão evidente ao longo da era moderna bem pode vir a consumarse 31 A substituição da ação pela fabricação Preocupada desde cedo com produtos tangíveis e lucros demonstráveis e mais tarde obcecada com o funcionamento suave e com a sociabilidade a idade moderna não foi a primeira a denunciar a ociosa inutilidade da ação e do discurso em particular e da política em geral56 O exaspero ante a tripla frustração da ação a imp revisibilidade dos resultados a irreversibilidade do processo e o anonimato dos autores é quase tão antigo quanto a história escrita Tanto os homens de ação quanto os pensadores sempre foram tentados a procurar um substituto para a ação na esperança de que o domínio dos assuntos humanos pudesse escapar da acidentalidade e da irresponsabilidade moral inerente à pluralidade dos agentes A notável monotonia das soluções propostas no decorrer da história escrita atesta a simplicidade elementar da questão De modo geral redundam sempre na busca de proteção contra as calamidades da ação em uma atividade em que um homem isolado aos demais seja o senhor dos seus atos do começo ao fim Essa tentativa de substituir a ação pela fabricação é visível em todos os argumentos contra a democracia os quais por mais consistentes e razoáveis que sejam sempre se transformam em argumentos contra os elementos essenciais da política Todas as calamidades da ação resultam da condição humana da pluralidade que é a condição sine qua non daquele espaço da aparência que é o domínio público Consequentemente a tentativa de eliminar essa pluralidade equivale sempre à supressão do próprio domínio público A mais óbvia salvaguarda contra os perigos da pluralidade é a monarquia ou o governo de um só homem em suas muitas variedades desde a franca tirania de um contra todos até o despotismo benévolo e aquelas formas de democracia nas quais a maioria constitui um corpo coletivo de sorte que o povo passa a ser muitos em um só e arvorase em monarca57 O reifilósofo a solução de Platão cuja sabedoria resolve os dilemas da ação como se fossem problemas de cognição solucionáveis é apenas uma e de modo algum a menos tirânica variedade de governo de um só homem O problema com essas formas de governo não é o fato de serem cruéis pois muitas vezes não o são mas o fato de que funcionam bem demais Um tirano que conheça seu ofício pode perfeitamente ser bondoso e indulgente em tudo como Pisístrato cujo governo mesmo na Antiguidade foi comparado à Idade de Ouro de Cronos58 suas medidas podem parecer muito não tirânicas e benévolas a ouvidos modernos especialmente quando viemos a saber que a única tentativa de abolir a escravidão na Antiguidade embora malograda foi feita por Periandro tirano de Corinto59 Mas todas as tiranias têm em comum o banimento dos cidadãos do domínio público e a insistência em que devem dedicarse aos seus assuntos privados enquanto só o governante deve cuidar dos assuntos públicos60 É certo que isso equivalia a promover a indústria privada e a iniciativa privada mas os cidadãos não podiam ver nessa política outra coisa senão a tentativa de priválos do tempo necessário à participação nas questões comuns a todos É com as óbvias vantagens da tirania a curto prazo a estabilidade a segurança e a produtividade que devemos tomar cuidado quando menos porque preparam o caminho para uma inevitável perda de poder embora o verdadeiro desastre possa ocorrer em futuro relativamente distante A fuga da fragilidade dos assuntos humanos para a solidez da quietude e da ordem tem sido realmente tão recomendada que a maior parte da filosofia política desde Platão poderia facilmente ser interpretada como uma série de tentativas de encontrar fundamentos teóricos e meios práticos de uma completa fuga da política O que caracteriza todas essas modalidades de evasão é o conceito de governo rule isto é a noção de que os homens só podem viver juntos de maneira legítima e política quando alguns têm o direito de comandar e os demais são forçados a obedecer O lugarcomum que já encontramos em Platão e Aristóteles de que toda comunidade política consiste em governantes e governados suposição na qual se baseiam por sua vez as atuais definições de formas de governo governo de um ou monarquia governo de poucos ou oligarquia e governo de muitos ou democracia baseavase mais na suspeita em relação à ação que no desprezo pelo homem e resultou mais do sincero desejo de encontrar um substituto para a ação que de alguma vontade de poder irresponsável ou tirânica Do ponto de vista teórico a versão mais sintética e fundamental da fuga da ação para o governo ocorre em O político em que Platão instaura um abismo entre os dois modos de ação archein e prattein começar e realizar que para os gregos eram interconectados O problema segundo Platão era garantir que o iniciador permanecesse como senhor absoluto daquilo que começou prescindindo do auxílio de outros para leválo a cabo No âmbito da ação esse domínio isolado só pode ser alcançado quando os outros são usados na execução de ordens quando já não é necessário que adiram por iniciativa própria ao empreendimento com seus próprios objetivos e motivações e quando por outro lado aquele que tomou a iniciativa não se permite qualquer envolvimento na própria ação Começar archein e agir prattein podem assim transformarse em duas atividades inteiramente diferentes e o iniciador passa a ser um governante um archōn na dupla acepção da palavra que não precisa em absoluto agir prattein mas governa archein aqueles que são capazes de executar Nessas circunstâncias a essência da política é saber como iniciar e governar nos assuntos mais sérios considerando o que é oportuno e o que é inoportuno a ação como tal é inteiramente eliminada e passa a ser a mera execução de ordens61 Platão foi o primeiro a introduzir a divisão entre os que sabem e não agem e os que agem e não sabem em lugar da antiga articulação da ação em começo e realização de sorte que saber o que fazer e fazêlo tornamse dois desempenhos inteiramente diferentes Visto que o próprio Platão identificou de imediato a linha divisória entre pensamento e ação com o abismo que separa governantes de governados é óbvio que as experiências nas quais se fundamenta a divisão platônica são as da vida doméstica em que nada jamais seria feito se o senhor não soubesse o que fazer e não desse ordens aos escravos que as executavam sem conhecerlhes as razões Aqui efetivamente quem sabe não precisa fazer e quem faz não precisa pensar ou conhecer Platão tinha ainda clara consciência de que propunha uma transformação revolucionári a da pólis ao aplicar à sua administração as máximas comumente aceitas para a boa ordem dos assuntos domésticos62 É erro comum interpretar Platão como se ele pretendesse abolir a família e o lar pelo contrário ele pretendia ampliar a vida doméstica ao ponto em que todos os cidadãos fossem assimilados a uma única família Em outras palavras pretendia eliminar o caráter privado da comunidade doméstica e para isso propôs a abolição da propriedade privada e do matrimônio individual63 Na concepção dos gregos a relação entre governar e ser governado entre comando e obediência era por definição idêntica à relação entre senhor e escravo e portanto excluía qualquer possibilidade de ação Assim a alegação platônica de que as normas de comportamento nos assuntos públicos deviam derivar de relação senhorescravo em uma comunidade doméstica bem ordenada significa na realidade que a ação não deveria ter papel algum nos assuntos humanos É óbvio que o esquema de Platão oferece possibilidades muito maiores de estabelecer uma ordem permanente nos assuntos humanos que os esforços do tirano para excluir a todos exceto a si próprio do domínio público Embora cada cidadão conservasse certa participação na condução dos assuntos públicos todos agiriam na verdade como um só homem inclusive sem ter a possibilidade de dissensão interna e muito menos de luta de caráter partidário por meio do governo os muitos se tornam um em todos os aspectos exceto na aparência corporal64 Historicamente o conceito de governo embora originado no domínio domést ico e familiar desempenhou seu papel mais decisivo na organização dos assuntos públicos e para nós está inseparavelmente ligado à política Isso não deve nos levar a desconsiderar o fato de que para Platão tratavase de uma categoria muito mais geral Platão via no conceito de governo o principal instrumento para ordenar e julgar os assuntos humanos sob todos os aspectos Isso fica evidente não só quando ele insiste em que a cidadeEstado seja concebida como um homem escrito em maiúsculas e quando constrói uma ordem psicológica que na verdade reproduz a ordem pública de sua cidade utópica mas é ainda mais evidente na grandiosa consistência com que introduz o princípio da dominação na relação do homem consigo mesmo Segundo Platão e a tradição aristocrática do Ocidente o supremo critério da competência de um homem para governar os outros é a capacidade de governarse a si mesmo Assim como o reifilósofo comanda a cidade a alma comanda o corpo e a razão comanda as paixões No próprio Platão a legitimidade dessa tirania em tudo o que diz respeito ao homem sua conduta em relação a si mesmo e em relação aos outros é ainda firmemente arraigada no significado ambíguo da palavra archein que significa ao mesmo tempo começar e governar para Platão como ele diz expressamente no final de As leis só o início archē tem o direito de governar archein Na tradição do pensamento platônico essa identificação original linguisticamente predeterminada entre governar e começar teve como resultado a compreensão de todo começar como legitimação do governo até que finalmente o elemento de começo desapareceu inteiramente do conceito de governo Com ele desapareceu da fi losofia política a co mpreensão mais elementar e autêntica da liberdade humana A separação platônica entre o saber e o fazer permaneceu na base de todas aqu elas teorias da dominação que não se limitam à simples justificação de uma irredutível e irresponsável vontade de poder Meramente pela força da conceituação e da elucidação filosófica a identificação platônica do conhecimento com comando e governo e da ação com obediência e execução prevaleceu sobre todas as experiências e articulações anteriores do domínio político e tornouse peremptória para a tradição do pensamento político mesmo depois de esquecidas há muito tempo as raízes da experiência da qual Platão derivou seus conceitos À parte a combinação platônica única de profundidade e beleza cuja importância seguramente conduziria seus pensamentos através dos séculos a longevidade dessa parte específica de sua obra devese ao fato de ele haver reforçado sua substituição da ação pelo governo mediante uma interpretação ainda mais plausível em termos de produção e fabricação Realmente é verdade e Platão que havia retirado a palavrachave de sua filosofia o termo ideia do domínio da fabricação tinha de ser o primeiro a percebêlo que a divi são entre saber e executar tão alheia ao domínio da ação cuja validade e sentido são destruídos no instante em que pensamento e ação se separam é uma experiência cotidiana na fabricação cujos processos obviamente se desdobram em duas partes primeiro perceber a imagem ou forma eidos do produto que se vai fabricar em seguida organizar os meios e dar início à execução O desejo platônico de substituir a ação pela fabricação visando a conferir ao domínio dos assuntos humanos a solidez inerente à obra e à fabricação tornase mais evidente quando atinge o próprio cerne de sua filosofia a doutrina das ideias Quando não estava preocupado com filosofia política como no Banquete e em outras partes de sua obra Platão definia as ideias como aquilo que mais brilha ekphanestaton e portanto como variações do belo É somente na República que as ideias se convertem em padrões medidas e regras de comportamento todos eles variações ou derivações da ideia do bem na acepção grega da palavra isto é do que é bom para ou do que é adequado65 Essa transformação foi necessária a fim de aplicar a doutrina das ideias à política e foi para um fim essencialmente político eliminar dos assuntos humanos seu caráter de fragilidade que Platão julgou necessário declarar que o bem e não o belo é a ideia mais elevada Essa ideia do bem não é porém a ideia mais elevada para o filósofo que deseja contemplar a verdadeira essência do Ser e para isso sai da caverna escura dos assuntos humanos para o céu luminoso das ideias mesmo na República o filósofo ainda é definido como amante da beleza não da bondade O bem é a ideia mais elevada para o reifilósofo que deseja governar os assuntos humanos porque tem de passar a sua vida entre os homens e não pode habitar para sempre sob o céu das ideias Somente quando volta à caverna escura dos assuntos humanos para conviver novamente com os seus semelhantes é que ele necessita das ideias que guiem como padrões e regras que lhe permitam medir e sob os quais subsumir a multiplicidade vária dos atos e palavras humanos com a mesma certeza absoluta e objetiva com que pode se orientar o artesão na fabricação e o leigo no julgamento de cada cama individual pelo emprego do modelo estável e sempre presente a ideia da cama em geral66 Tecnicamente a maior vantagem dessa transformação e aplicação da doutrina das ideias ao domínio político reside na supressão do elemento pessoal na noção platônica de governo ideal Platão sabia muito bem que suas analogias favoritas colhidas na vida doméstica tais como a relação senhorescravo ou pastorrebanho exigiriam uma qualidade quase divina do governante dos homens para distinguilo tão nitidamente de seus súditos quanto os escravos se distinguiam do senhor ou o rebanho do pastor67 A construção do espaço público à imagem de um objeto fabricado ao contrário continha apenas a implicação de mestria comum de experiência na arte da política como em qualquer outr a arte onde o fator constritivo reside não na pessoa do artista ou do artesão mas no objeto impessoal de sua arte ou ofício Na República o reifilósofo aplica as ideias como o artesão aplica suas regras e padrões faz sua cidade como o escultor faz uma estátua68 e na obra final de Platão essas mesmas ideias são inclusive transformadas em leis que precisam ser executadas69 Nesse sistema de referência o aparecimento de um sistema político utópico passível de ser construído segundo um modelo por alguém que dominasse as técnicas dos assuntos humanos tornouse quase algo natural e Platão o primeiro a desenhar uma planta para a construção de corpos políticos inspirou todas as utopias posteriores E embora nenhuma dessas utopias jamais tenha desempenhado papel perceptível na história pois nas poucas vezes em que os esquemas utópicos foram concretizados logo ruíram sob o peso da realidade não tanto da realidade de circunstâncias externas mas sobretudo das relações humanas reais que não conseguiam controlar serviram como veículo dos mais eficazes para conservar e desenvolver uma tradição de pensamento político na qual o conceito de ação era consciente ou inconscientemente interpretado em termos de produção e fabricação Há porém um ponto digno de nota no desenvolvimento dessa tradição É verdade que a violência sem a qual nenhuma fabricação poderia existir sempre desempenhou função importante no pensamento e nos esquemas políticos baseados na interpretação da ação em termos de produção mas até a era moderna esse elemento de violência permaneceu estritamente instrumental um meio que precisava de um fim que o justifi casse e limitasse de sorte que a glorificação da violência como tal esteve inteiramente ausente do pensamento político até a era moderna De modo geral essa glorificação seria impossível enquanto a contemplação e a razão fossem vistas como as mais nobres capacidades do homem porque a partir dessa premissa todas as articulações da vita activa tanto a fabricação como a ação sem falar no trabalho permaneciam secundárias e instrumentais Na esfera mais limitada da teoria política a consequência disso era que a noção de governo e as questões concomitantes de legitimidade e autoridade legal desempenharam papel muito mais decisivo que as compreensões e interpretações da própria ação Somente a convicção da era moderna de que o homem só pode conhecer aquilo que ele mesmo faz de que suas capacidades supostamente superiores dependem da fabricação e de que ele é portanto basicamente um homo faber e não um animal rationale trouxe à baila as implicações muito mais antigas da violência inerentes a todas as interpretações do domínio dos assuntos humanos como uma esfera de fabricação Percebese isso nitidamente na série de revoluções típicas da era moderna todas as quais com exceção da Revolução Americana revelam a mesma combinação do antigo entusiasmo romano pela fundação de um novo corpo político com a glorificação da violência como único meio de produzir esse corpo Ao afirmar que a violência é a parteira de toda velha sociedade grávida de uma sociedade nova ou seja de toda mudança histórica e política70 Marx apenas sintetiza a convicção dominante em toda a era moderna e extrai as consequências de sua crença mais íntima a de que a história é produzida pelo homem tal como a natureza é produzida por Deus Toda a terminologia da teoria política e do pensamento político atesta claramente o quanto foi persistente e bem sucedida a transformação da ação em uma modalidade da fabricação e torna quase impossível discutir esses assuntos sem que se empregue a categoria de meios e fins e se pense em termos de instrumentalidade Mais convincente ainda talvez seja a unanimidade com que os provérbios populares em todas as línguas modernas nos advertem que quem deseja um fim deve desejar também os meios e que não se faz uma omelete sem quebrar ovos Somos talvez a primeira geração a adquirir plena consciência das consequências mortíferas inerentes a uma linha de pensamento que nos força a admitir que todos os meios desde que sejam eficazes são admissíveis e justificados para alcançar alguma coisa que se definiu como um fim Contudo para evitar esses caminhos batidos do pensamento não basta fazer certas restrições como a de que nem todos os meios são admissíveis ou de que em certas circunstâncias os meios podem ser mais importantes que os fins tais restrições ou dão como certo um sistema moral que como o demonstram as muitas exortações dificilmente poderia ser dado como certo ou então elas mesmas são subjugadas pela linguagem e pelas analogias que empregam Falar de fins que não justificam todos os meios é cair em paradoxo pois a definição de um fim é precisamente a justificação dos meios e os paradoxos sempre indicam perplexidades jamais as resolvem e por isso jamais são convincentes Enquanto acreditarmos que lidamos com fins e meios no domínio político não poderemos impedir que alguém recorra a todos os meios para alcançar fins reconhecidos A substituição da ação pela fabricação e a concomitante degradação da política em um meio para atingir um fim supostamente superior na Antiguidade a proteção dos bons contra o domínio dos maus em geral e a segurança dos filósofos em particular71 na Idade Média a salvação das almas e na era moderna a produtividade e o progresso da sociedade são tão antigas quanto a tradição da filosofia políti ca É verdade que somente a era moderna definiu o homem basicamente como homo faber um fazedor de instrumentos e um produtor de coisas e pôde assim vencer o desprezo e a suspeita entranhados com que a tradição via toda a esfera da fabricação No entanto essa mesma tradição na medida em que também se voltara contra a ação de modo menos aberto é claro mas não menos efetivo fora obrigada a interpretar a ação em termos de fabricação e assim apesar de sua suspeita e do seu desprezo a introduzir na filosofia política certas tendências e formas de pensamento aos quais a era moderna pôde recorrer Nesse particular a era moderna não inverteu a tradição antes a libertou dos preconceitos que a haviam impedido de declarar abertamente que a obra do artesão devia ser hierarquicamente superior às ociosas ações e opiniões que constituem o domínio dos assuntos humanos O fato é que Platão e em menor medida Aristóteles para quem os artesãos sequer eram dignos da plena cidadania foram os primeiros a propor que as questões políticas fossem tratadas e os corpos políticos governados à maneira da fabricação Essa aparente contradição mostra claramente a profundidade das autênticas perplexidades inerentes à capacidade humana de ação e a força da tentação de eliminar seus riscos e perigos introduzindose na teia das relações humanas categorias muito mais sólidas e confiáveis próprias das atividades mediante as quais confrontamos a natureza e construímos o mundo do artifício humano 32 O caráter processual da ação Ainstrumentalização da ação e a degradação da política em um meio para atingir outra coisa certamente jamais conseguiram eliminar de fato a ação evitar que ela seja uma das experiências humanas decisivas nem destruir por completo o domínio dos assuntos humanos Vimos anteriormente que em nosso mundo a aparente eliminação do trabalho como esforço doloroso ao qual toda vida humana está vinculada teve em primeiro lugar a consequência de que a obra é agora executada à maneira do trabalho enquanto os produtos da obra objetos destinados ao uso passaram a ser consumidos como se fossem meros bens de consumo Analogamente a tentativa de eliminar a ação em virtude de sua incerteza e de salvar de sua fragilidade os assuntos humanos tratandoos como se fossem ou pudessem vir a ser produtos planejados da fabricação humana resultou em primeiro lugar na canalização da capacidade humana de agir de iniciar processos novos e espontâneos que jamais existiriam sem os homens para uma atitude em relação à natureza que até o último estágio da era moderna se limitara a explorar as leis naturais e a fabricar objetos a partir de materiais naturais O comentário recente e casual de um cientista que sugeriu seriamente que a pesquisa básica é quando estou fazendo o que não sei que estou fazendo72 talvez seja o melhor exemplo da medida em que começamos a agir no sentido mais literal da palavra na natureza Isso começou de modo bastante inofensivo com o experimento no qual os homens já não se contentavam em observar registrar e contemplar aquilo que a natureza entregava prontamente em sua própria aparência mas passaram a prescrever condições e a provocar processos naturais O que na época se transformou em uma capacidade sempre crescente de deflagrar processos elementares os quais sem a interferência dos homens teriam continuado adormecidos e talvez jamais ocorressem terminou finalmente em uma verdadeira arte de fabricar a natureza isto é de criar processos naturais que sem os homens jamais existiriam e que a natureza terrena por si mesma parece incapaz de executar embora processos semelhantes ou idênticos possam ser fenômenos comuns no universo que circunda a Terra Com a introdução do experimento no qual prescrevemos condições concebidas pelo homem a os processos naturais e forçamolos a se ajustarem a padrões criados pelo homem acabamos por aprender a repetir o processo que ocorre no Sol isto é a extrair dos processos naturais da Terra aquelas energias que sem nossa intervenção só se produzem no universo O próprio fato de que as ciências naturais tenham se tornado exclusivamente ciências de processos e em seu último estágio ciências de processos sem retorno potencialmente irreversíveis e irremediáveis indica claramente que seja qual for a força cerebral necessária para iniciálos a verdadeira capacidade humana subjacente que poderia desencadear sozinha esse desdobramento não é nenhuma capacidade teórica nem a contemplação ou a razão mas a aptidão humana para agir para iniciar novos processos sem precedentes cujo resultado é incerto e imprevisível quer sejam deflagrados no domínio humano quer no domínio natural Nesse aspecto da ação extremamente importante para a era moderna para seu enorme alargamento das capacidades humanas assim como para seus sem precedentes conceito e consciência da história desencadeiamse processos de resultado imprevisível de sorte que a incerteza mais que a fragilidade passa a ser o caráter decisivo dos assuntos humanos Essa propriedade da ação havia de modo geral passado despercebida na Antiguidade e para dizer o mínimo mal encontrou uma expressão adequada na filosofia antiga para a qual o próprio conceito de história tal como o conhecemos era inteiramente estranho O conceito central das duas ciências inteiramente novas da era moderna tanto da ciência natural como da ciência histórica é o conceito de processo e a efetiva experiência humana em que esse conceito se baseia é a ação Só podemos conceber a natureza e a história como sistemas de processos porque somos capazes de agir de iniciar nossos próprios processos É verdade que esse caráter do pensamento moderno veio à luz pela primeira vez na ciência da história que desde Vico vem sendo conscientemente apresentada como ciência nova ao passo que decorreram vários séculos até que as ciências naturais fossem forçadas pelos próprios resultados de suas realizações triunfais a trocar um obsoleto arcabouço de conceitos por um vocabulário surpreendentemente semelhante ao empregado nas ciências históricas Seja como for a fragili dade só se manifesta como principal característica dos assuntos humanos em determinadas circunstâncias históricas Os gregos avaliavam essas circunstâncias comparandoas à eterna presença ou ao eterno retorno de todas as coisas naturais e a principal preocupação deles era estarem à altura e serem dignos da imortalidade qu e circunda os homens mas que os mortais não possuem Para aqueles que não são tomados por essa preocupação com a imortalidade o domínio dos assuntos humanos tende a revelar um aspecto inteiramente diferente e um tanto contraditório a saber uma extraordinária resiliência cuja força de persi stência e de continuidade no tempo é muito superior à estável durabilidade do mundo sólido de coisas Embora os homens sempre tenham sido capazes de destruir tudo o que fosse produzido por mãos humanas e hoje se tornaram capazes até de destruir potencialmente aquilo que o homem não criou a Terra e a natureza terrena nunca foram e jamais serão capazes de desfazer ou sequer de controlar com segurança qualquer um dos processos que desencadeiam por meio da ação Nem mesmo o olvido e a confusão que podem encobrir com tanta eficácia a origem de qualquer ato isolado e a responsabilidade por ele são capazes de desfazer um ato ou de impedir suas consequências E essa incapacidade de desfazer o que foi feito é equiparada por outra incapacidade quase igualmente completa de prever as consequências de um ato e mesmo de conhecer com segurança os seus motivos73 Enquanto a força do processo de produção é inteiramente absorvida e exaurida pelo produto final a força do processo de ação nunca se exaure em um único ato mas ao contrário pode aumentar à medida que suas consequências se multiplicam o que perdura no domínio dos assuntos humanos são esses processos e sua perduração é ilimitada tão independente da perecibilidade da matéria e da mortalidade dos humanos quanto o é a perduração da própria humanidade O motivo pelo qual jamais podemos prever com certeza o resultado e o fim de qualquer ação é simplesmente que a ação não tem fim O processo de um único ato pode perdurar literalmente por todos os tempos até que a própria humanidade tenha chegado a um fim Que os atos mais que qualquer outro produto humano tenham tão grande capacidade de perdurar constituiria motivo de orgulho para os homens se eles fossem capazes de suportar seu fardo o fardo da irreversibilidade e da imprevisibilidade do qual o processo da ação extrai sua própria força Que isso é impossível os homens sempre o souberam Os homens sempre souberam que aquele que age nunca sabe completamente o que está fazendo que sempre vem a ser culpado de consequências que jamais pretendeu ou previu que por mais desastrosas e imprevistas que sejam as consequências do seu ato jamais poderá desfazêlo que o processo por ele iniciado jamais se consuma inequivocamente em um único ato ou evento e que seu verdadeiro significado jamais se desvela para o ator mas somente à mirada retrospectiva do historiador que não age Tudo isso é motivo suficiente para se afastar com desespero do domínio dos assuntos humanos e julgar com desprezo a capacidade humana de liberdade que ao criar a teia de relações humanas parece enredar de tal modo o seu criador que este parece mais uma vítima ou um paciente que o autor e realizador do que fez Em outras palavras em nenhuma outra parte nem no trabalho sujeito às necessidades da vida nem na fabricação dependente do material dado o homem parece ser menos livre que naquelas capacidades cuja própria essência é a liberdade e naquele domínio que deve sua existência única e exclusivamente ao homem Essa maneira de pensar está de acordo com a grande tradição do pensamento ocidental acusar a liberdade de induzir o homem à necessidade condenar a ação o começo espontâneo de algo novo porque seus resultados caem em uma rede predeterminada de relações invariavelmente arrastando com elas o agente que parece ter confiscada sua liberdade no exato momento em que lança mão dela A única salvação contra esse tipo de liberdade parece residir na inação na abstenção de todo o domínio dos assuntos humanos como único meio de salvaguardar a soberania própria e a integridade como pessoa Se deixarmos de lado as desastrosas consequências de tais recomendações que somente no estoicismo se materializaram em um sistema coerente de comportamento humano o seu erro básico parece residir na identificação da soberania com a liberdade identificação esta que sempre foi admitida como certa tanto pelo pensamento político como pelo pensamento filosófico Se a soberania e a liberdade fossem realmente a mesma coisa nenhum homem poderia ser livre pois a soberania o ideal da inflexível autossuficiência e autodomínio contradi z a própria condição da pluralidade Nenhum homem pode ser soberano porque não um homem mas homens habitam a Terra e não como sustenta a tradição desde Platão devido ao limitado vigor do homem que o faz depender do auxílio dos outros Todas as recomendações propostas pela tradição para que o homem possa superar a condição de não soberania e atingir uma integridade intocável da pessoa humana equivalem a compensações para a intrínseca fraqueza da pluralidade No entanto se tais recomendações fossem seguidas e se fosse bemsucedida essa tentativa de superar as consequências da pluralidade o resultado não seria tanto o domínio soberano de alguém sobre si mesmo mas antes o domínio arbitrário de todos os outros ou como no estoicismo a troca do mundo real por um mundo imaginário no qual esses outros simplesmente não existiriam Em outras palavras o que está em jogo aqui não é o vigor ou a fraqueza no sentido de autossuficiência Nos sistemas politeístas por exemplo nem mesmo um deus por mais poderoso que seja pode ser soberano somente quando se pressupõe um deus único Um é um inteiramente só e sempre o será a soberania e a liberdade podem ser idênticas Em qualquer outra circunstância a soberania só é possível na imaginação adquirida ao preço da realidade Assim como o epicurismo repousa na ilusão de felicidade quando se é assado vivo no Touro de Falera o estoicismo repousa na ilusão de liberdade quando se é escravo Ambas as ilusões atestam o poder psicológico da imaginação mas esse poder só pode ser exercido enquanto a realidade do mundo e dos vivos n a qual se é e se parece ser feliz ou infeliz livre ou escravo é eliminada a tal ponto que nem o mundo nem os vivos são sequer admitidos como espectadores do espetáculo da autoilusão Se olharmos a liberdade com os olhos da tradição identificando liberdade com soberania a ocorrência simultânea da liberdade com não soberania o fato de ser capaz de iniciar algo novo mas incapaz de controlar ou prever suas consequências parece quase forçarnos à conclusão de que a existência humana é absurda74 Em face da realidade humana e da sua evidência fenomênica é realmente tão falso negar a liberdade humana de agir pelo fato de que o ator jamais permanece senhor de seus atos quanto afirmar que a soberania humana é possível devido ao incontestável fato da liberdade humana75 Surge assim a questão de saber se a realidade não invalida nossa noção de que a liberdade e a não soberania são mutuamente excludentes ou em outras palavras se a capacidade de agir não traz em si certas potencialidades que lhe permitem sobreviver às inaptidões da não soberania 33 A irreversibilidade e o poder de perdoar Vimos que o animal laborans pôde ser redimido do constrangimento predicamentVerlegenheit do aprisionamento no ciclo semprerecorrente do processo vital da eterna sujeição à necessidade do trabalho e do consumo unicamente mediante a mobilização de outra capacidade humana a capacidade do homo faber de fazer fabricar e produzir making fabricating and producingherzustellen zu fabrizieren und zu produzieren o qual como fazedor de instrumentos não só atenua as labutas e penas do trabalho como também erige um mundo de durabilidade A redenção da vida sustentada pelo trabalho é a mundanidade sustentada pela fabricação Vimos também que o homo faber pôde ser redimido do constrangimento da ausência do significado a desvalorização de todos os valores e da impossibilidade de encontrar critérios válidos em um mundo determinado pela categoria de meios e fins unicamente por meio das faculdades interrelacionadas da ação e do discurso que produzem estórias significativas com a mesma naturalidade com que a fabricação produz objetos de uso E se isso não estivesse fora do escopo destas considerações poderíamos acrescentar a esses exemplos os constrangimentos do pensamento pois o pensamento também é incapaz de se pensar fora dos constrangimentos engendrados pela própria atividade de pensar Em cada um desses casos o que salva o homem qua animal laborans homo faber ou pensador é algo inteiramente diferente algo que vem de fora não do homem por certo mas de cada uma das respectivas atividades Do ponto de vista do animal laborans parece um milagre o fato de que ele seja também um ser que conhece um mundo e nele habita do ponto de vista do homo faber parece milagre uma espécie de revelação divina o fato de o significado ter um lugar neste mundo O caso da ação e de seus constrangimentos é bem diferente O remédio contra a irreversibilidade e a imprevisibilidade do processo que ela desencadeia não provém de outra faculdade possivelmente superior mas é uma das potencialidades da própria ação A redenção possível para o constrangimento da irreversibilidade da incapacidade de se desfazer o que se fez embora não se soubesse nem se pudesse saber o que se fazia é a faculdade de perdoar O remédio para a imprevisibilidade para a caótica incerteza do futuro está contido na faculdade de prometer e cumprir promessas As duas faculdades formam um par pois a primeira delas a de perdoar serve para desfazer os atos do passado cujos pecados pendem como espada de Dâmocles sobre cada nova geração e a segunda o obrigarse através de promessas serve para instaurar no futuro que é por defi nição um oceano de incertezas ilhas de segurança sem as quais nem mesmo a continuidade seria possível nas relações entre os homens para não mencionar todo tipo de durabilidade Se não fôssemos perdoados liberados das consequências daquilo que fizemos nossa capacidade de agir ficaria por assim dizer limitada a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos seríamos para sempre as vítimas de suas consequências à semelhança do aprendiz de feiticeiro que não dispunha da fórmula mágica para desfazer o feitiço Sem estarmos obrigados ao cumprimento de promessas jamais seríamos capazes de conservar nossa identidade seríamos condenados a errar desamparados e sem rumo nas trevas do coração de cada homem enredados em suas contradições e seus equívocos trevas que só podem ser dissipadas pela luz derramada no domínio público pela presença de outros que confirmam a identidade entre aquele que promete e aquele que cumpre Ambas as faculdades portanto dependem da pluralidade da presença e da ação de outros pois ninguém pode perdoar a si mesmo e ninguém pode se sentir obrigado por uma promessa feita apenas para si mesmo o perdão e a promessa realizados na solitude e no isolamento permanecem sem realidade e não podem significar mais do que um papel que a pessoa encena para si mesma Uma vez que essas faculdades correspondem tão de perto à condição humana da pluralidade o papel que desempenham na política estabelece um conjunto de princípios orientadores diametralmente opostos aos padrões morais inerentes à noção platônica de governo Pois o governo platônico cuja legitimidade baseavase no domínio do simesmo extrai seus princípios orientadores aqueles que justificam e ao mesmo tempo limitam o poder sobre os outros de uma relação estabelecida entre mim e mim mesmo de sorte que o certo e o errado nas relações com os outros são determinados pelas atitudes com relação ao simesmo até que todo o domínio público passa a ser visto à imagem do homem escrito em maiúsculo da ordem adequada entre as capacidades individuais da mente da alma e do corpo do homem Por outro lado o códi go moral inferido das faculdades de perdoar e de prometer baseiase em experiências que ninguém jamais pode ter consigo mesmo e que ao contrário se baseiam inteiramente na presença de outros E do mesmo modo como a dimensão e as formas de autogoverno selfrule justificam e determinam o governo dos outros governase os outros como se governa a si mesmo também a dimensão e as formas do perdão e das promessas que o indivíduo recebe determinam a dimensão e as formas do perdão que ele pode ser capaz de conceder a si próprio ou do cumprimento de promessas que só a ele dizem respeito Como os remédios contra o enorme vigor e resiliência dos processos da ação só são eficaze s na condição de pluralidade é muito perigoso usar essa faculdade em qualquer outro domínio que não o dos assuntos humanos A tecnologia e a ciência natural moderna que já não colhem materiais da natureza nem a observam ou imitam seus processos mas parecem realmente agir nela aparentemente introduziram por isso mesmo a irreversibilidade e a imprevisibilidade humanas no domínio da natureza onde não há remédio para desfazer o que foi feito Analogamente parece que um dos grandes perigos de agir nos moldes da fabricação e dentro da estrutura de sua categoria de meios e fins reside na concomitante autoprivação dos remédios inerentes apenas à ação de modo que se é obrigado não só a fazer do recorrendo aos meios da violência necessários a toda fabricação mas também a desfazer undo o que foi feito por meio da destruição como se destrói um objeto que não deu certo Nada aparece de modo tão evidente nessas tentativas quanto a grandeza do poder humano cuja fonte reside na capacidade de agir e que sem os remédios inerentes à ação começa inevitavelmente a subjugar e a destruir não o próprio homem mas as condições nas quais a vida lhe foi dada O descobridor do papel do perdão no domínio dos assuntos humanos foi Jesus de Nazaré O fato de que ele tenha feito essa descoberta em um contexto religioso e a tenha enunciado em linguagem religiosa não é motivo para levála menos a sério em um sentido estritamente secular É da natureza de nossa tradição de pensamento político por motivos nos quais não podemos nos deter aqui ser altamente seletiva e excluir da conceituação articulada grande variedade de experiências políticas autênticas entre as quais não é surpreendente encontrar algumas de natureza elementar Certos aspectos dos ensinamentos de Jesus de Nazaré que não se relacionam basicamente com a mensagem religiosa cristã mas surgiram de experiências da pequena e coesa comunidade de seus seguidores inclinada a desafiar as autoridades públicas de Israel certamente incluemse entre essas experiências políticas autênticas embora tenham sido negligenciados em virtude de sua suposta natureza exclusivamente religiosa O único sinal rudimentar da percepção de que o perdão pode ser o corretivo necessário aos danos inevitáveis que resultam da ação pode ser visto no princípio romano de poupar os vencidos parcere subiectis uma sabedoria que os gregos desconheciam totalmente ou no direito de comutar a pena de morte provavelmente também de origem romana que é a prerrogativa de quase todos os chefes de Estado ocidentais É crucial para o nosso contexto que Jesus sustente contra os escribas e fariseus que em primeiro lugar não é verdade que somente Deus tenha o poder de perdoar76 e em segundo lugar que esse poder não deriva de Deus como se Deus e não os homens perdoasse através de seres humanos mas ao contrário deve ser mobilizado pelos homens entre si antes que possam esperar serem pe rdoados também por Deus A formulação de Jesus é ainda mais radical No Evangelho não se supõe que o homem perdoe porque Deus perdoa e ele portanto tem de fazer o mesmo e sim que se cada um no íntimo do coração perdoar Deus fará o mesmo77 O motivo da insistência sobre um dever de perdoar é obviamente que eles não sabem o que fazem e não se aplica ao caso extremo do crime e do mal voluntário pois do contrário não teria sido necessário ensinar que se ele te ofender sete vezes no dia e sete vezes no dia retornar a ti dizendo me arrependo tu o perdoarás78 O crime e o mal voluntário são raros mais raros talvez que as boas ações segundo Jesus Deus se encarregará deles no Juízo Final que nenhum papel desempenha na vida terrena e tampouco se caracteriza pelo perdão mas pela justa retribuição apodounai79 A ofensa contudo é uma ocorrência cotidiana decorrência natural do fato de que a ação estabelece constantemente novas relações em uma teia de relações e precisa do perdão da liberação para possibilitar que a vida possa continuar desobrigando constantemente os homens daquilo que fizeram sem o saber80 Os homens podem ser agentes livres somente mediante essa mútua e constante desobrigação do que fazem somente com a constante disposição para mudar de ideia e recomeçar podese confiar a eles um poder tão grande quanto o de começar algo novo Sob esse aspecto o perdão é o exato oposto da vingança que atua como reação reacting a uma ofensa inicial com a qual longe de porem fim às consequências da primeira falta todos permanecem enredados no processo permitindo que a reação em cadeia contida em cada ação siga livremente seu curso Ao contrário da vingança que é a reação natural e automática à transgressão e que devido à irreversibilidade do processo da ação pode ser esperada e até calculada o ato de perdoar jamais pode ser previsto é a única reação que atua de modo inesperado e embora seja reação conserva algo do caráter original da ação Em outras palavras o perd ão é a única reação que não reage react apenas mas age de novo e inesperadamente sem ser condicionada pelo ato que a provocou e de cujas consequências liberta por conseguinte tanto o que perdoa quanto o que é perdoado A liberdade mencionada nos ensinamentos de Jesus sobre o perdão é a libertação com relação à vingança que prende tanto o agente quanto o paciente no inexorável automatismo do processo da ação que por si jamais precisa chegar a um fim A alternativa do perdão mas de modo algum seu oposto é a punição e ambos têm em comum o fato de que tentam pôr fim a algo que sem interferência alguma poderia prosseguir indefinidamente É portanto bastante significativo um elemento estrutural no domínio dos assuntos humanos que os homens não sejam capazes de perdoar aquilo que não podem punir nem de punir o que se revelou imperdoável Essa é a verdadeira marca distintiva daquelas ofensas que desde Kant chamamos de mal radical cuja natureza é tão pouco conhecida mesmo por nós que fomos expostos a uma de suas raras irrupções na cena pública Sabemos apenas que não podemos punir nem perdoar esse tipo de ofensas e que portanto elas transcendem o domínio dos assuntos humanos e as potencialidades do poder humano os quais destroem radicalmente sempre que surgem Em tais casos em que o próprio ato nos despoja de todo poder só resta realmente repetir com Jesus Seria melhor para ele que se lhe atasse ao pescoço uma pedra de moinho e que fosse precipitado ao mar Talvez o argumento mais plausível em defesa de que perdoar e agir são tão intimamente ligados quanto destruir e produzir resulte daquele aspecto do perdão no qual a ação de desfazer o que foi feito parece ter o me smo caráter revelador que o próprio feito O perdão e a relação que ele estabelece constituem sempre um assunto eminentemente pessoal embora não necessariamente individual ou privado no qual o que foi feito é perdoado em consideração a quem o fez Isso foi também claramente reconhecido por Jesus Perdoados lhe serão os seus muitos pecados porque ela amou muito mas a quem pouco se perdoa pouco ama e é a razão da atual convicção de que só o amor tem o poder de perdoar Pois o amor embora seja uma das mais raras ocorrências nas vidas humanas81 possui de fato inigualável poder de autorrevelação e inigualável clareza de visão para perceber o quem precisamente por não se preocupar ao ponto da não mundanidade quase total com o que a pessoa amada possa ser com suas qualidades e imperfeições suas realizações fracassos e transgressões Dada a sua paixão o amor destrói o espaçoentre que estabelece uma relação entre nós e os outros e deles nos separa Enquanto dura o seu fascínio o único espaçoentre que pode inserirse entre duas pessoas que se amam é o filho o produto do amor O filho esse espaçoentre com o qual agora os amantes passam a relacionarse e que possuem em comum representa o mundo na medida em que também os separa é uma indicação de que inserirão um novo mundo no mundo existente82 É como se por meio do filho os amantes retornassem ao mundo do qual o amor os expulsou Mas essa nova mundanidade o re sultado possível e o único final possivelmente feliz de um caso de amor é de certa forma o fim do amor que terá de dominar novamente os parceiros ou ser transformado em outra modalidade de pertencimento Por natureza o amor é nãomundano unworldly e é por essa razão mais que por sua raridade que é não apenas apolítico mas antipolítico talvez a mais poderosa das forças humanas antipolíticas Portanto se fosse verdade como o supôs a cristandade que só o amor pode perdoar porque só o amor é plenamente receptivo a quem alguém é a ponto de estar sempre disposto a perdoar não importa o que se tenha feito o perdão teria de ser inteiramente excluído de nossas considerações No entanto o que o amor é em sua esfera própria e estritamente delimitada o respeito é no domínio mais amplo dos assuntos humanos Como a philia politikē aristotélica o respeito é uma espécie de amizade sem intimidade ou proximidade é uma consideração pela pessoa desde a distância que o espaço do mundo coloca entre nós consideração que independe de qualidades que possamos admirar ou de realizações que possamos ter em alta conta Assim a moderna perda do respeito ou melhor a convicção de que só se deve respeito ao que se admira ou se preza constitui claro sintoma da crescente despersonalização da vida pública e social De qualquer modo o respeito porque concerne exclusivamente à pessoa é o bastante para motivar o perdão pelo que a pessoa fez por consideração a ela Mas o fato de que o mesmo quem revelado na ação e no discurso permanece sempre o sujeito do perdão constitui a razão mais profunda pela qual ninguém pode perdoarse a si próprio no perdão como de um modo geral na ação e no discurso dependemos dos outros aos quais aparecemos em uma distinção que nós mesmos somos incapazes de perceber Encerrados em nós mesmos jamais seríamos capazes de nos perdoar por algum defeito ou transgressão pois careceríamos da experiência da pessoa em consideração a quem se pode perdoar 34 A imprevisibilidade e o poder de prometer Distintamente do perdão que sempre foi considerado irrealista e inadmissível no domínio público talvez devido a seu contexto religioso talvez devido à ligação com o amor que acompanha sua descoberta o poder estabilizador inerente à faculdade de fazer promessas sempre foi conhecido em nossa tradição Podemos remontálo ao sistema legal romano à inviolabilidade de acordos e tratados pacta sunt servanda ou podemos atribuir sua descoberta a Abraão o homem de Ur cuja estória como a Bíblia a conta revela tão apaixonada inclinação para fazer alianças que é como se houvesse deixado seu país exclusivamente para pôr à prova na vastidão do mundo o poder da promessa recíproca até que o próprio Deus finalmente consentiu em firmar com ele uma Aliança Seja como for a grande variedade de teorias do contrato confirma desde os tempos de Roma que o poder de fazer promessas ocupou ao longo dos séculos o centro do pensamento político A imprevisibilidade que o ato de fazer promessas dissipa ao menos parcialmente tem uma dupla natureza decorre ao mesmo tempo da obscuridade do coração humano ou seja da inconfiabilidade fundamental dos homens que jamais podem garantir hoje quem serão amanhã e da impossibilidade de se preverem as consequências de um ato em uma comunidade de iguais onde todos têm a mesma capacidade de agir A incapacidade do homem para confiar em si mesmo e para ter fé absoluta em si próprio o que é a mesma coisa é o preço que os seres humanos pagam pela liberdade e a impossibilidade de permanecerem como senhores únicos do que fazem de conhecerem as consequências de seus atos e de confiarem no futuro é o preço que pagam pela pluralidade e pela realidade pela alegria de coabitarem com outros em um mundo cuja realidade é assegurada a cada um pela presença de todos A função da faculdade de prometer é dominar essa dupla obscuridade dos assuntos humanos e como tal constitui a única alternativa a uma supremacia baseada na dominação do simesmo e no governo de outros corresponde exatamente à existência de uma liberdade que foi dada em uma condição de não soberania O perigo e a vantagem inerente a todos os corpos políticos assentados sobre contratos e tratados é que ao contrário daqueles que se assentam sobre o governo e a soberania deixam a imprevisibilidade dos assuntos humanos e a inconfiabilidade dos homens exatamente como são usandoas meramente como o meio por assim dizer no qual são instauradas certas ilhas de previsibilidade e erigidos certos marcos de confiabilidade No momento em que as promessas perdem seu caráter de isoladas ilhas de certeza em um oceano de incerteza ou seja quando se abusa dessa faculdade para abarcar todo o terreno do futuro e traçar caminhos seguros em todas as direções as promessas perdem poder vinculante e todo o empreendimento acaba por se autossuprimir Referimonos antes ao poder que passa a existir quando as pessoas se reúnem e agem em concerto e que desaparece assim que elas se separam A força que as mantém unidas distinta do espaço da aparência no qual se reúnem e do poder que conserva a existência desse espaço público é a força da promessa ou do contrato mútuos A soberania que sempre é espúria quando reivindicada por uma entidade única e isolada quer seja a entidade individual da pessoa quer a entidade coletiva da nação passa a ter certa realidade limitada quando muitos homens se vinculam mutuamente mediante promessas A soberania reside na resultante independência limitada em relação à impossibilidade de calcular o futuro e seus limites são os mesmos limites inerentes à própria faculdade de fazer e cumprir promessas A soberania de um grupo de pessoas vinculadas e mantidas unidas não por uma vontade idêntica que por um passe de mágica as inspirasse a todas mas por um propósito acordado somente em relação ao qual as promessas são válidas e vinculativas se mostra muito claramente em sua inconteste superioridade em relação à soberania daqueles que são inteiramente livres isentos de quaisquer promessas e desimpedidos por quaisquer propósitos Essa superioridade decorre da capacidade de dispor do futuro como se fosse o presente isto é do enorme e realmente milagroso aumento da própria dimensão na qual o poder pode ser eficaz Nietzsche com sua extraordinária sensibilidade para os fenômenos morais a despeito de seu moderno preconceito de enxergar a fonte de todo poder na vontade de poder do indivíduo isolado viu na faculdade de prometer a memória da vontade como ele a chamou a verdadeira diferença que distingue a vida humana da vida animal83 Se a soberania é no domínio da ação e dos assuntos humanos o que a mestria é no domínio da fabricação e no mundo de coisas a principal diferença entre ambas é que a primeira só pode ser alcançada pela união de muitos enquanto a segunda só é concebível no isolamento Na medida em que a moralidade é mais que a soma total de mores de costumes e padrões de comportamento consolidados pela tradição e validados à base de acordos e tanto a tradição como os acordos mudam com o tempo a própria moralidade não tem outro apoio pelo menos no plano político senão a boa vontade de se contrapor aos enormes riscos da ação mediante a disposição para perdoar e ser perdoado para fazer promessas e cumprilas Estes são os únicos preceitos morais que não são aplicados à ação a partir de fora de alguma faculdade supostamente superior ou de experiências fora do alcance da própria ação Pelo contrário surgem diretamente da vontade de conviver com os outros na modalidade da ação e do discurso e são assim semelhantes a mecanismos de controle instaurados na própria faculdade de iniciar processos novos e intermináveis Se sem a ação e o discurso sem a articulação da natalidade estaríamos condenados a voltear incessantemente no ciclo semprerecorrente do devir também sem a faculdade de desfazer o que fizemos e de controlar pelo menos parcialmente os processos que desencadeamos seríamos vítimas de uma necessidade automática com todas as marcas das leis inexoráveis que segundo as ciências naturais anteriores à nossa época se supunha que constituíam a característica proeminente dos processos naturais Já vimos que para seres mortais essa fatalidade natural embora gire em torno de si mesma e possa ser eterna só pode significar a ruína Se a fatalidade fosse de fato a marca inalienável dos processos históricos seria também igualmente verdadeiro que tudo o que é feito na história está arruinado E até certo ponto isso é verdade Entregues a si mesmos os assuntos humanos só podem seguir a lei da mortalidade que é a mais certa lei e a única confiável de uma vida transcorrida entre o nascimento e a morte O que interfere nessa lei é a faculdade de agir uma vez que interrompe o curso inexorável e automático da vida cotidiana que por sua vez como vimos interfere no ciclo do processo biológico vital e o interrompe Prosseguindo na direção da morte o período de vida do homem arrastaria inevitavelmente todas as coisas humanas para a ruína e a destruição se não fosse a faculdade humana de interrompêlo e iniciar algo novo uma faculdade inerente à ação que é como um lembrete semprepresente de que os homens embora tenham de morrer não nascem para morrer mas para começar No entanto assim como do ponto de vista da natureza o movimento retilíneo do período de vida do homem entre o nascimento e a morte parece constituir um desvio peculiar da regra natural comum do movimento cíclico também a ação do ponto de vista dos processos automáticos que aparentemente determinam a trajetória do mundo parece um milagre Na linguagem da ciência natural é o infinitamente improvável que ocorre regularmente A ação é de fato a única faculdade humana operadorademilagres como Jesus de Nazaré cujas intuições sobre essa faculdade podem ser comparadas em sua originalidade e em seu ineditismo com as intuições de Sócrates sobre as possibilidades do pensamento devia saber muito bem ao comparar o poder de perdoar com o poder mais geral de operar milagres colocando ambos no mesmo nível e ao alcance do homem84 O milagre que salva o mundo o domínio dos assuntos humanos de sua ruína normal natural é em última análise o fato da natalidade no qual a faculdade da ação se radica ontologicamente Em outras palavras é o nascimento de novos seres humanos e o novo começo a ação de que são capazes em virtude de terem nascido Só a plena experiência dessa capacidade pode conferir aos assuntos humanos fé e esperança essas duas características essenciais da existência humana que os gregos antigos ignoraram por completo por depreciarem a fé como uma virtude muito incomum e pouco importante e computarem a esperança entre os males da ilusão contidos na caixa de Pandora É essa fé e essa esperança no mundo que encontra sua expressão talvez mais gloriosa e mais sucinta nas breves palavras com as quais os Evangelhos anunciaram sua boanova Nasceu uma criança entre nós 1 Essa descrição encontra apoio em recentes descobertas da psicologia e da biologia que salientam também a estreita afinidade entre a ação e o discurso bem como sua espontaneidade e sua ausência de finalidade prática Conferir especialmente Arnold Gehlen Der Mensch Seine Natur und seine Stellung in der Welt 1955 que faz excelente síntese dos resultados e interpretações das pesquisas científicas atuais com abundantes intuições valiosas Se Gehlen como os cientistas em cujas descobertas ele baseia suas próprias teorias acredita que essas capacidades especificamente humanas são também uma necessidade biológica isto é necessária a um organismo biologicamente fraco e mal ajustado como o do homem é outra questão que não nos interessa aqui 2 A cidade de Deus xii 20 3 Para Agostinho havia tanta diferença entre os dois começos que ele empregava uma palavra diferente para indicar o começo que é o homem initium chamando de principium o início do mundo que é a tradução consagrada do primeiro versículo da Bíblia Como se vê em A cidade de Deus xi 32 a palavra principium portava para Agostinho um sentido muito menos radical o início do mundo não significa que nada houvesse sido feito antes uma vez que os anjos o foram enquanto na frase acima citada referente ao homem ele acrescenta explicitamente que ninguém existia antes dele 4 Esse é o motivo pelo qual Platão diz que a lexis o discurso é mais rigorosamente fiel à verdade que a praxis 5 O livro de William Faulkner Uma fábula 1954 supera em discernimento e clareza quase toda a literatura sobre a Primeira Guerra Mundial pelo fato de que o seu herói é o Soldado Desconhecido 6 Oute legei oute kryptei alla sēmainei Diels Fragmente der Vorsokratiker 4 ed 1922 fragm B93 7 Sócrates emprega a mesma palavra que Heráclito sēmainein mostrar e dar sinais ao referirse à manifestação do seu daimonion Xenofonte Memorabilia i 1 2 4 A crermos em Xenofonte Sócrates comparava seu daimonion aos oráculos e insistia em que ambos deviam ser utilizados somente para os assuntos humanos em que nada é certo e não para as questões das artes e ofícios em que tudo é previsível ibid 79 8 Na teoria política o materialismo é pelo menos tão antigo quanto a suposição platônicoaristotélica de que as comunidades políticas poleis e não apenas a vida familiar ou a coexistência de várias unidades familiares oikiai devem sua existência à necessidade material Quanto a Platão cf República 369 em que a origem da pólis é encontrada nas carências e na falta de autossuficiência humanas Quanto a Aristóteles que neste como em outros casos está mais próximo que Platão da opinião corrente entre os gregos cf Política 1252b29 A pólis começou a existir em vista do viver mas continua a existir em vista do viver bem O conceito aristotélico de sympheron que mais tarde encontramos na utilitas de Cícero deve ser entendido nesse contexto Por sua vez ambos são precursores da posterior teoria do interesse já plenamente desenvolvida por Bodin tal como os reis governam os povos o Interesse governa os reis Em seu desdobramento moderno Marx se sobressai não graças ao seu materialismo mas porque é o único pensador político suficientemente consistente para basear sua teoria do interesse material em uma atividade humana comprovadamente material o trabalho isto é o metabolismo do corpo humano com a matéria 9 Leis 803 e 644 10 Em Homero a palavra hērōs sem dúvida tinha uma conotação de distinção mas uma distinção de que era capaz qualquer homem livre Em parte alguma aparece com o significado ulterior de semideus resultante talvez da deificação dos antigos heróis épicos 11 Já Aristóteles menciona que a palavra drama foi escolhida porque os drntes as pessoas que agem são imitados Poética 1448a28 No próprio tratado fica evidente que Aristóteles foi buscar no drama o modelo da imitação na arte a generalização do conceito para tornálo aplicável a todas as artes parece um tanto impraticável 12 Geralmente Aristóteles fala portanto não de uma imitação da ação praxis mas dos agentes prattontes cf Poética 1448a1ss 1448b25 1449b24ss Contudo não é consistente nesse uso cf 1451a29 1447a28 O fundamental é que a tragédia não trata das qualidades dos homens sua poiots mas dos acontecimentos relacionados a eles de suas ações suas vidas sua boa ou má sorte 1450a1518 O conteúdo da tragédia não é portanto o que chamaríamos de personagem e sim a ação ou o enredo 13 Problemata 918b28 obra pseudoaristotélica menciona que o coro imita menos 14 Platão já recriminava Péricles por não haver tornado melhor o cidadão pois no fim de sua carreira os atenienses eram piores que antes Górgias 515 15 A história política recente está repleta de exemplos indicativos de que a expressão material humano não é uma metáfora inofensiva O mesmo se pode dizer das inúmeras experiências científicas modernas no campo da engenharia social da bioquímica da cirurgia cerebral etc todas inclinadas a lidar com o material humano e a modificálo como se se tratasse de um material qualquer Essa atitude mecanicista é típica da era moderna Quando visava a objetivos semelhantes a Antiguidade tendia a conceber o homem como um animal selvagem que preci sava ser domado e domesticado Em qualquer desses casos o único resultado possível é a morte do homem não necessariamente como organismo vivo mas qua homem 16 Quanto a archein e prattein conferir sobretudo seu emprego em Homero cf C Capelle Wörterbuch des Homeros und der Homeriden 1889 17 É interessante observar que Montesquieu cujo interesse não eram as leis mas as ações que seu espírito inspiraria define as leis como rapports persistentes entre diferentes sere s O espírito das leis Livro I Capítulo 1 cf Livro XXVI Capítulo 1 Tratase de uma definição surpreendente uma vez que as leis sempre foram definidas em termos de fronteiras e limitações A razão disso é que Montesquieu estava menos interessado no que chamava natureza do governo se e ra república ou monarquia por exemplo que em seu princípio pelo qual é levado a agir nas paixões humanas que o põem em movimento Livro III Capítulo 1 18 Quanto a essa interpretação de daimōn e eudaimonia cf Sófocles Édipo Rei 1186ss especialmente os versos Tis gar tis anēr pleon tas eudaimonias phereiē tosouton hoson dokeinē kai doxant apoklinai Pois qual qual homem pode suportar mais eudaimonia que a que colhe da aparência e desvia em sua aparência É contra essa distorção inevitável que o coro afirma seu próprio conhecimento estes outros veem têm diante dos olhos como um exemplo o daimōn de Édipo a miséria dos mortais é serem cegos para seu próprio daimōn 19 Aristóteles Metafísica 1048a23ss 20 O fato de que a palavra grega equivalente à expressão cada um hekastos deriva de hekas distante parece indicar o quanto esse individualismo deve ter sido profundamente arraigado 21 Conferir por exemplo Aristóteles Ética Nicomaquéia 1141b25 Não há diferença mais fundamental entre Grécia e Roma que a entre suas respectivas atitudes em relação ao território e à lei Em Roma a fundação da cidade e o estabelecimento de suas leis constituíam o ato importante e decisivo ao qual todos os feitos e realizações posteriores tinham de ser relacionados a fim de adquirirem validade política e legitimação 22 Cf M F Schachermeyr La formation de la cité grecque Diogenes n 4 1953 que compara o costume grego com o da Babilônia onde a noção de os babilônios só podia expressarse com as palavras o povo do território da cidade de Babilônia 23 Pois só os legisladores agem como artífices cheirotechnoi porque seu ato tem um fim tangível um eschaton que é o decreto aprovado na assembleia psēphisma Ética Nicomaquéia 1141b29 24 Ibid 1168a13ss 25 Ibid 1140 26 Logōn kai pragmatōn koinōnein como disse certa vez Aristóteles ibid 1126b12 27 Tucídides ii 41 28 Aristóteles Ética Nicomaquéia 1172b36ss 29 Heráclito diz essencialmente o mesmo que Aristóteles no trecho citado ao declarar q ue o mundo é um só e é comum a todos os que estão despertos mas que todos os que dormem voltamse para seu próprio mundo Diels Fragmente der Vorsokratiker B89 30 Nas palavras de Montesquieu que desconsidera a diferença entre tirania e despotismo Le principe du gouvernement despotique se corrompt sans cesse parce quil est corrompu par sa nature Les autres gouvernements périssent parce que des accidents particuliers en violent le principe celuici périt par son vice intérieur lorsque quelques causes accidentelles nempêchent point son principe de se corrompre O espírito das leis Livro VIII Capítulo 10 31 A partir de uma observação casual de Nietzsche se pode conjecturar até onde a sua glorificação da vontade de poder era inspirada nessas experiências do intelectual moderno Denn die Ohnmacht gegen Menschen nicht die Ohnmacht gegen die Natur erzeugt die desperateste Verbitterung gegen das Dasein Wille zur Macht nº 55 32 No parágrafo da Oração Fúnebre mencionado acima na nota 27 Péricles contrasta deliberadamente a dynamis da pólis e a arte craftsmanship dos poetas 33 O motivo pelo qual Aristóteles em sua Poética julga que a grandeza megethos é uma condição prévia do enredo dramático é que o drama imita a ação e esta é julgada pelo critério da grandeza por sua d istinção do corriqueiro 1450b25 Aliás o mesmo se aplica à beleza que reside na grandeza e na taxis a junção das partes 1450b34ss 34 Conferir o fragmento B157 de Demócrito em Diels Fragmente der Vorsokratiker 35 Quanto ao conceito de energeia conferir Ética Nicomaquéia 1094al5 Física 201b31 Sobre a alma 417a16 431a6 Os exemplos citados com maior frequência são a visão e a execução da flauta 36 Em nosso contexto não importa que Aristóteles tenha visto na contemplação e no pensamento theria e nous a mais elevada possibilidade de atualidade e não na ação e no discurso 37 Os dois conceitos aristotélicos energia e entelecheia são intimamente relacionados entre si energeia synteinei pros tn entelecheian a plena atualidade energeia nada efetua ou produz além de si mesma e a plena realidade entelecheia não tem outro fim além de si mesma vejase Metafísica 1050a2235 38 Ética Nicomaquéia 1097b22 39 A riqueza das nações Ed Everyman II 295 40 Este é um aspecto crucial do conceito grego de virtude embora talvez não do romano onde existe aretē não pode haver esquecimento cf Aristóteles Ética Nicomaquéia 1100b1217 41 É este o significado da última frase da citação de Dante que encabeça este capítulo Embora bastante simples e clara no original em latim a frase é quase intraduzível De monarchia i 13 42 Cito aqui um trecho do maravilhoso conto de Isak Dinesen The Dreamers em Seven gothic tales Ed Modern Library especialmente p 340ss 43 O texto integral do aforismo de Paul Valéry do qual são retiradas as citações é o seguinte Créateur crée Qui vient dachever un long ouvrage le voit former enfin un être quil navait pas voulu quil na pas conçu précisément pusquil la enfanté et ressent cette terrible humiliation de se sentir devenir le fils de son oeuvre de lui emprunter des traits irrécusables une ressemblance des manies une borne un miroir et ce quil a de pire dans un miroir sy voir limité tel et tel Tel quel II 149 44 O desamparo do trabalhador qua trabalhador é geralmente ignorado na literatura referente ao assunto porque as condições sociais e a organização do trabalho exigem a presença simultânea de vários trabalhadores para a execução de qualquer tarefa e rompem todas as barreiras do isolamento No entanto M Halbwachs La classe ouvrière et les niveaux de vie 1913 percebeu o fenômeno Louvrier e st celui qui dans et par son travail ne se trouve en rapport quavec de la matière et non avec des hommes e vê nessa inerente falta de contato o motivo pelo qual toda a classe trabalhadora foi mantida fora da sociedade durante tantos séculos p 118 45 Viktor von Weizsäcker psiquiatra alemão descreve o relacionamento entre os trabalhadores durante o trabalho como segue Es ist zunächst bemerkenswert dass die zwei Arbeiter sich zusammen verhalten als ob sie einer wären Wir haben hier einen Fall von Kollektivbildung vor uns der in der annähernden Identität oder Einswerdung der zwei Individuen besteht Man kann auch sagen dass zwei Personen durch Verschmelzung eine einzige dritte geworden seien aber die Regeln nach der diese dritte arbeitet unterscheiden sich in nichts von der Arbeit einer einzigen Person Zum Begriffder Arbeit in Festschrift für Alfred Weber 1948 p 739740 46 Esta parece ser a razão pela qual etimologicamenteArbeit und Gemeinschaft für den Menschen älterer geschichtlicher Stufen grosse Inhaltsflächen gemeinsam haben quanto à relação entre trabalho e comunidade conferir Jost Trier Arbeit und Gemeinschaft Studium Generale v III n 11 nov 1950 47 Conferir R P Genelli Facteur humain ou facteur social du travail Revue Française du travail v VII n 13 janmar 1952 que julga necessário encontrar uma nova solução para o problema do trabalho que leve em conta a natureza coletiva do trabalho e que portanto sustente não o trabalhador individual mas lhe sustente como membro de um grupo Essa nova solução é naturalmente a que prevalece na sociedade moderna 48 Adam Smith A riqueza das nações I 15 e Marx Das Elend der Philosophie Stuttgart 1885 p 125 Adam Smith hat sehr wohl gesehen dass in Wirklichkeit die Verschiedenheit der natürlichen Anlagen zwischen den Individuen weit geringer ist als wir glauben Ursprünglich unterscheidet sich ein Lastträger weniger von einem Philosophen als ein Kettenhund von einem Windhund Es ist die Arbeitsteilung welche einen Abgrund zwischen beiden aufgetan hat Marx usa a expressão divisão do trabalho para designar indiscriminadamente a especialização profissional e a divisão do próprio processo de trabalho mas aqui se refere evidentemente ao primeiro caso A especialização profissional é de fato uma forma de distinção e o artesão ou o operário profissional mesmo quando ajudado por outros opera essencialmente isolado Só entra em contato com outros enquanto operário quando se trata de trocar o produto Na verdadeira divisão do trabalho o trabalhador nada pode realizar no isolamento seu esforço é apenas parte e função do esforço de todos os trabalhadores entre os quais a tarefa é dividida Mas esses outros trabalhadores qua trabalhadores não diferem dele são todos igu ais Consequentemente o que instaurou o abismo entre o carregador de rua e o filósofo não foi a divisão do trabalho relativamente recente mas a antiquíssima especialização profissional 49 Alain Touraine Lévolution du travail ouvrier aux usines Renault 1955 p 177 50 Ética Nicomaquéia 1133a16 51 O fator decisivo é que as rebeliões e revoluções modernas sempre reclamaram liberdade e justiça para todos ao passo que na Antiguidade os escravos jamais reivindicaram a liberdade como direito inalienável de todos os homens e nunca houve tentativa de abolir a escravidão como tal por meio de ação conjunta W L Westermann Sklaverei em PaulyWissowa Supl VI p 981 52 É importante ter em mente a acentuada diferença de substância e função política entre o sistema partidário continental e os sistemas inglês e norteamericano Um aspecto decisivo embora geralmente despercebido da dinâmica das revoluções europeias é o fato de que a palavra de ordem dos conselhos Soviets Räte etc nunca foi levantada pelos partidos e movimentos que desempenharam um papel ativo em sua organização mas sempre brotou de rebeliões espontâneas Como tais os conselhos não foram propriamente compreendidos nem particularmente bem recebidos pelos ideólogos dos vários movimentos que pretendiam usar a revolução a fim de impor ao povo uma forma preconcebida de governo A famosa palavra de ordem da rebelião de Kronstadt que foi um dos pontos cruciais da Revolução Russa era Soviets sem comunismo Na época isso queria dizer Soviets sem partidos A tese de que os regimes totalitários nos confrontam com uma nova forma de governo é analisada com alguma profundidade em meu artigo Ideology and terror a novel form of government Review of Politics jul 1953 Uma análise mais detalhada da revolução húngara e do sistema de conselhos pode ser encontrada em um artigo recente intitulado Totalitarian imperialism Journal of Politics fev 1958 53 Uma anedota da época da Roma Imperial narrada por Sêneca pode mostrar o quanto era considerado perigoso o mero aparecimento em público Naquela época foi apresentada ao Senado a proposta de que os escravos usassem em público traje idêntico para que fossem prontamente diferenciados dos cidadãos livres A proposta foi rejeitada como muito perigosa uma vez que os escravos poderiam então reconhecerse uns aos outros e tomar consciência de seu potencial de poder Os intérpretes modernos tendem evidentemente a tirar desse incidente a conclusão de que o número de escravos da época devia ser muito elevado no que estão inteiramente enganados O que o sólido instinto político dos romanos julgava perigoso era o aparecimento como tal independentemente do número de pessoas envolvidas cf Westermann Sklaverei em PaulyWissowa p 1000 54 A Soboul Problèmes du travail en lan II Journal de psychologie normale et pathologique v LII n 1 janmar 1955 descreve muito bem como os trabalhadores apareceram no cenário histórico pela primeira vez Les travailleurs ne sont pas désignés par leur fonction sociale mais simplement par leur costume Les ouvriers adoptèrent le pantalon boutonné à la veste et ce costume devint une caractéristique du peuple des sansculottes en parlant des sansculottes déclare Pétion à la Convention le 10 avril 1793 on nentend pas tous le citoyens les nobles et les aristocrates exceptés mais on entend des hommes qui nont pas pour les distinguer de ceux qui ont 55 Originalmente a expressão le peuple que se tornou corrente em fins do século XVIII designava simplesmente aqueles que não possuíam propriedade Como já observamos antes tal classe de pessoas int eiramente destituídas de propriedade era desconhecida antes da era moderna 56 O clássico no assunto é ainda Adam Smith para quem a única função legítima do governo é a defesa do rico contra o pobre ou daqueles que têm alguma propriedade contra os que não têm propriedade alguma A riqueza das nações II 198ss quanto à citação conferir II 203 57 Essa é a interpretação aristotélica da tirania sob forma de democracia Política 1292a16ss A realeza porém não se situa entre as formas tirânicas de governo nem pode ser definida como governo de um só homem ou monarquia Enquanto os termos tirania e monarquia podiam ser usados indistintamente as palavras tirano e basileus rei eram antônimas conferir por exemplo Aristóteles Ética Nicomaquéia 1160b3 Platão República 576D De modo geral o governo de um só homem é louvado na Antiguidade somente no tocante a assuntos domésticos ou à guerra a célebre frase da Ilíada ouk agathon polykoiraniē heis koiranos estō heis basileus o governo de muitos não é bom um só deve ser o senhor um só deve ser rei ii 204 é citada geralmente em algum contexto econômico ou militar Aristóteles que em sua Metafísica 1076a3ss aplica a frase de Homero à vida política da comunidade politeuesthai em sentido metafórico é uma exceção Na Política 1292a13 onde cita a mesma frase de Homero manifestase contra a posse do poder por muitos não como indivíduos mas coletivamente e declara que isso é apenas uma forma disfarçada de governo de um só homem ou tirania Inversamente o governo de muitos denominado mais tarde polyarkhia é citado depreciativamente para designar confusão de comando na guerra conferir por exemp lo Tucídides vi 72 cf Xenofonte Anábase vi 1 18 58 Aristóteles Constituição dos atenienses xvi 2 7 59 Conferir Fritz Heichelheim Wirtschaftsgeschichte des Altertums 1938 I 258 60 Aristóteles Constituição dos atenienses xv 5 relata isso de Pisístrato 61 O político 305 62 O principal argumento de O político é o de que não existia diferença entre a constituição de uma grande família e a da pólis cf 259 de sorte que a mesma ciência abrangeria os assuntos políticos e econômicos ou domésticos 63 Isso fica especialmente claro em passagens do quinto livro da República no qual Platão descreve o quanto o receio de atacar o próprio filho irmão ou pai contribuiria para a paz geral em sua república utópica E como as mulheres eram compartilhadas entre os cidadãos ninguém saberia quem eram seus parentes consanguíneos ou não conferir esp 463C e 465B 64 Platão República 443E 65 O termo ekphanestaton é empregado em Fedro 250 como a principal qualidade do belo Na República 518 qualidade semelhante é reclamada para a ideia do bem que é denominada phanotaton Ambas as palavras derivam de phainesthai aparecer e brilhar e em ambos os casos Platão emprega o superlativo Obviamente o atributo de clarid ade radiante aplicase muito mais ao belo que ao bem 66 A afirmação de Werner Jaeger Paidéia 1945 II 416 n a ideia de que existe uma arte suprema da medida e de que o conhecimento do filósofo sobre o valor p hronēsis é a capacidade de medir está presente em toda a obra de Platão de ponta a ponta só se aplica à filosofia política de Platão na qual a ideia do bem substitui a ideia do belo A parábola da caverna narrada na República constitui o próprio cerne da filosofia política de Platão mas a doutrina das ideias tal como é ali exposta deve ser entendida como aplicada à política e não como o desenvolvimento original e puramente filosófico que não podemos discutir aqui A caracterização de Jaeger do conhecimento que o filósofo tem dos valores como phronsis indica na realidade a natureza política e não filosófica desse conhecimento pois a própria palavra phronēsis caracteriza em Platão e Aristóteles o discernimento do estadista e não a visão do filósofo 67 Em O político onde Platão desenvolve principalmente essa linha de pensamento ele conclui com ironia se procurarmos alguém tão adequado para governar os homens como o pastor é adequado para governar seu rebanho encontraremos um deus e não um mortal 275 68 República 420 69 Pode ser interessante notar o seguinte desdobramento na teoria política de Platão na República a divisão entre governantes e governados é guiada pela relação entre peritos e leigos em O político orientase pela relação entre saber e fazer nas Leis o cumprimento de leis imutáveis é tudo o que resta ao estadista ou ao bom funcionamento do domínio público O que mais surpreende nesse desdobramento é a progressiva redução das faculdades exigidas para o domínio da arte política 70 A citação é de O capital Ed Modern Library p 824 Outras passagens de sua obra mostram que Marx não restringe essa obs ervação à manifestação de forças econômicas ou sociais Por exemplo Na história real é sabido que a conquista a escravidão o roubo o assassinato ou em resumo a violência desempenham o maior papel Ibid 785 71 Comparese a afirmação de Platão de que o desejo do filósofo de se tornar governante dos homens advém apenas do medo de ser governado pelos piores República 347 com a afirmação de Agostinho de que a função do governo é permitir que os bons vivam com mais tranquilidade entre os maus Epistolae 153 6 72 Citado de uma entrevista de Wernher von Braun publicada em The New York Times em 16 de dezembro de 1957 73 Man weiss die Herkunft nicht man weiss die Folgen nicht der Wert der Handlung ist unbekannt como disse certa vez Nietzsche Wille zur Macht n 291 mal se dando conta de que apenas ecoava a antiga suspeita dos filósofos em relação à ação 74 Essa conclusão existencialista se deve muito menos do que parece a uma autêntica r evisão de conceitos e padrões tradicionais na verdade ela ainda opera no âmbito da tradição e com conceitos tradicionais embora com certo espírito de rebeldia O resultado mais consistente dessa rebe ldia é portanto um retorno aos valores religiosos que porém já não têm raízes na fé ou em experiências religiosas autênticas mas são como todos os valores espirituais modernos são valores de troca obtidos no caso para descartar os valores do desespero 75 Onde o orgulho humano ainda está intacto é a tragédia mais que o absurdo q ue é vista como marca característica da existência humana O maior expoente dessa opinião é Kant para quem a espontaneidade da ação e as concomitantes faculdades da razão prática inclusive a força do juízo são ainda as principais qu alidades do homem muito embora sua ação recaia no determinismo das leis naturais e seu juízo não consiga penetrar o segredo da realidade absoluta a Ding an sich Kant teve a coragem de absolver o homem das consequências dos seus atos insistindo unicamente na pureza dos motivos o que o impediu de perder a fé no homem e em sua grandeza potencial 76 É o que se afirma enfaticamente em Lucas 5 2142 cf Mateus 9 46 ou Marcos 12 710 onde Jesus opera um milagre para provar que o Filho do homem tem sobre a Terra o poder de perdoar pecados com ênfase em sobre a Terra O que choca o povo é muito mais sua insistência no poder de perdoar que os milagres que ele faz de modo que os que comiam ali com ele começaram a dizer entre si Quem é este que também perdoa pecados Lucas 7 49 77 Mateus 18 35 cf Marcos 11 25 E quando vos puserdes em oração perdoai para que também o vosso Pai que está nos céus vos perdoe vossas transgressões Ou Porque se vós perdoardes aos homens as ofensas deles também vosso pai celestial vos perdoará mas se não perdoardes aos homens as transgressões deles também vosso pai celestial não perdoará vossas transgressões Mateus 6 1415 Em todos esses casos o poder de perdoar é um poder fundamentalmente humano Deus nos perdoa nossas dívidas assim como perdoamos nossos devedores 78 Lucas 17 34 É importante observar que as três palavraschave do texto aphienai metanoein e hamartanein têm certas conotações mesmo no grego do Novo Testamento que as traduções não conseguem transmitir por inteiro O significado original de aphienai é despedir e libertar e não perdoar metanoein significa mudar de ideia e como serve também para traduzir o hebraico shuv retornar voltar sobre os próprios passos mais que se arrepender com suas conotações emocionais e psicológicas O que se exige é muda de ideia e não peque mais o que é quase o oposto de fazer penitência Finalmente hamartanein pode realmente ser muito adequadamente traduzido por transgredir na m edida em que significa mais errar malograr e extraviarse que pecar conferir Heinrich Ebeling Griechischdeutsches Wörterbuch zum Neuen Testamente 1923 O versículo que citei da tradução padrão poderia também ser traduzido como segue E se ele transgredir contra ti e procurarte dizendo Mudei de ideia deves desobrigálo 79 Mateus 16 27 80 Essa interpretação parece ser justificada pelo contexto L ucas 17 15 Jesus introduz suas palavras assinalando a inevitabilidade das ofensas skandala que são imperdoáveis pelo menos na Terra mas ai daquele por quem elas vêm Seria melhor para ele que se lhe atasse ao pescoço uma pedra de moinho e que fosse precipitado ao mar e continua a ensinar o perdão às transgressões hamartanein 81 O vulgar preconceito de que o amor é tão comum quanto o romance devese talvez ao fato de que todos ouvimos falar de amor pela primeira vez por meio da poesia Mas os poetas nos iludem eles são os únicos para os quais o amor é uma experiência não somente crucial mas indispensável o que lhes dá o direito de confundilo com uma experiência universal 82 Essa faculdade criadorademundo worldcreating do amor não é o mesmo que a fertilidade na qual se baseia a maior ia dos mitos da criação A seguinte fábula mitológica vai ao contrário buscar suas imagens claramente na experiência do amor o céu é visto como imensa deusa que ainda se debruça sobre o deus terra do qual está sendo separada pelo deus ar que nasceu entre eles e que agora começa a erguêla Assim passa a haver um espaço mundano composto de ar que se insinua entre a terra e o céu Conferir H A Frankfort The intellectual adventure of ancient man Chicago 1946 p 18 e Mircea Eliade Traité dhistoire des religions Paris 1953 p 212 83 Nietzsche viu com inigualável clareza a conexão entre a soberania humana e a faculdade de fazer pr omessas o que o levou ao singular discernimento da relação entre o orgulho humano e a consciência humana Infelizmente ambos os discernimentos permaneceram sem relação com seu principal conceito o de vontade do poder e não tiveram influência sobre ele sendo portanto ignorados muitas vezes pelos próprios estudiosos de Nietzsche Eles podem ser encontrados nos dois primeiros afo rismos do segundo tratado de Zur Genealogie der Moral 84 Cf as citações mencionadas na nota 77 O próprio Jesus reconheceu na fé a origem humana de sse poder de operar milagres que deixamos de fora de nossas considerações Em nosso contexto o único ponto que nos interessa é que o poder de fazer milagres não é considerado divino a fé moverá montanhas e a fé perdoará um fato é tão miraculoso quanto o outro e a resposta dos apóstolos quando Jesus demandou que perdoassem sete vezes ao dia foi Senhor aumentanos a fé A VITA ACTIVA E A ERA MODERNA Er hat den archimedischen Punkt gefunden hat ihn aber gegen sich ausgenutzt offenbar hat er ihn nur under dieser Bedingung finden dürfen Ele encontrou o ponto arquimediano mas empregouo contra si mesmo ao que parece essa era a condição para que ele o encontrasse Franz Kafa 35 A alienação do mundo No limiar da era moderna encontramse três grandes eventos que lhe determinaram o caráter a descoberta da América e a subsequente exploração de toda a Terra a R eforma que expropriando as propriedades eclesiásticas e monásticas desencadeou o duplo processo de expropriação individual e acúmulo de riqueza social e a invenção do telescópio ensejando o desenvolvimento de uma nova ciência que considera a natureza da Terra do ponto de vista do universo Não podem ser considerados eventos modernos tal como os conhecemos desde a Revolução Francesa e embora não possam ser explicados por cadeia alguma de causalidade como nenhum evento pode sêlo continuam a desenrolarse em uma incólume continuidade na qual existem precedentes e os predecessores podem ser nomeados Nenhum deles tem o caráter peculiar de uma explosão de correntes subterrâneas que tendo reunido sua força às ocultas irrompessem subitamente Os nomes ligados a esses eventos Galileu Galilei Martinho Lutero e os grandes navegadores exploradores e aventureiros do tempo das descobertas pertencem ainda a um mundo prémoderno Além disso não se encontra em nenhum deles nem mesmo em Galileu1 o estranho páthos da novidade a quase violenta insistência com que quase todos os grandes autores cientistas e filósofos desde o século XVII declaravam ver coisas jamais antes vistas e ter pensamentos jamais antes pensados Esses precursores não eram revolucionários e seus motivos e intenções estavam ainda firmemente arraigados na tradição Aos olhos dos seus contemporâneos o mais espetacular dos três eventos deve ter sido as descobertas de continentes desconhecidos e de oceanos jamais sonhados o mais inquietante deve ter sido a irremediável cisão da cristandade ocidental devido à Reforma com seu inerente desafio à ortodoxia como tal e com sua imediata ameaça à tranquilidade das almas dos homens e sem dúvida o menos percebido de todos foi a introdução no já amplo arsenal de utensílios humanos de um novo instrumento inútil a não ser para olhar as estrelas embora fosse o primeiro instrumento puramente científico já concebido No entanto se n os fosse dado medir o ímpeto momentum da história como medimos os processos naturais talvez verificássemos que aquilo que originalmente teve o menor impacto perceptível os primeiros passos tentativos do homem na direção da descoberta do universo vem aumentando constantemente tanto em impetuosidade momentousness quanto em velocidade até eclipsar não só o alargamento da superfície da Terra limitada em última instância apenas pelos próprios limites do globo mas também o processo econômico de acumulação ainda aparentemente ilimitado Mas essas são meras especulações Na verdade a descoberta do planeta o mapeamento de suas terras e o levantamento cartográfico de seus mares levaram muitos séculos e só agora estão chegando ao fim Só agora o homem tomou plena posse de sua morada mortal e agrupou os horizontes infinitos tentadora e proibitivamente abertos a todas as eras anteriores em um globo cujos majestosos contornos e detalhada superfície ele conhece como as linhas na palma de sua mão Precisamente no instante em que se descobriu a imensidão do espaço disponível sobre a Terra começou o famoso apequenamento do globo até que em nosso mundo que embora resulte da era moderna não é de modo algum idêntico ao mundo da era moderna cada homem é finalmente tanto habitante da Terra como habitante do seu país Os homens vivem agora em um todo contínuo com as dimensões da Terra no qual mesmo a noção de distância inerente até à mais perfeita contiguidade das partes cedeu ante o furioso ataque da velocidade A velocidade conquistou o espaço e ainda que esse processo de conquista encontre seu limite na fronteira inexpugnável da presença simultânea do mesmo corpo em dois lugares diferentes tornou a distância irrelevante pois nenhuma parcela significativa de uma vida humana anos meses ou mesmo semanas é agora necessária para que se atinja qualquer ponto da Terra É verdade que nada poderi a ter sido mais alheio ao propósito dos exploradores e circunavegadores do início da era moderna que esse processo de avizinhamento eles se fizeram ao mar para ampliar a Terra não para reduzi la a uma bola e quando atenderam ao chamado do distante não tinham intenção alguma de abolir a distância Somente a sabedoria da retrospecção vê o óbvio nada que possa ser medido pode permanecer imenso toda medição reúne pontos distantes e portanto estabelece proximidade onde antes predominava a distância Os mapas e as cartas de navegação das primeiras etapas da era moderna anteciparamse às invenções técnicas mediante as quais todo o espaço terrestre se tornou pequeno e ao alcance da mão Antes do encolhimento do espaço e da abolição da distância por meio de ferrovias navios a vapor e aviões deuse o encolhimento infinitamente maior e mais efi caz resultante da capacidade perquiridora da mente humana cujo uso de números símbolos e modelos pode condensar e ajustar a escala da distância física da Terra à medida do sentido natural e da compreensão do corpo humano Antes que soubéssemos como contornar a Terra como circunscrever em dias e horas a esfera da morada humana já havíamos trazido o globo à nossa sala de estar para tocálo com as mãos e girálo ante nossos olhos Há outro aspecto dessa questão que como veremos adiante será da maior importância em nosso contexto É próprio da natureza da capacidade humana de perquirição só poder funcionar quando o homem se desvencilha de qualquer envolvimento e preocupação com o que está perto de si e se retira a uma distância de tudo o que o rodeia Quanto maior a distância entre o homem e o seu ambiente o mundo ou a Terra mais ele poderá perquirir e medir e menos espaço mundano e terrestre lhe restará O fato de que o apequenamento decisivo da Terra foi consequência da invenção do aeroplano isto é de ter o homem deixado inteiramente a superfície da Terra é como um símbolo para o fenômeno geral de que qualquer diminuição de distância terrestre só pode ser conquistada ao preço de se colocar uma distância decisiva entre o homem e a Terra de alienálo do seu ambiente terrestre imediato O fato de que a Reforma um evento inteiramente diferente terminou por nos coloc ar ante um fenômeno semelhante de alienação que Max Weber inclusive identificou sob o nome de ascetismo intramundano innerworldly como a mais recôndita fonte da nova mentalidade capitalista talvez seja uma das muitas coincidências que tornam tão difícil para o historiador não acreditar em fantasmas demônios e Zeitgeists O que é tão surpreendente e perturbador é a semelhança na extrema divergência Pois essa alienação intramundana nada tem a ver em intenção ou conteúdo com a alienação em relação à Terra inerente à descoberta e à posse do planeta Além disso a alienação intramundana cuja facticidade histórica Max Weber demonstrou em seu famoso ensaio está presente não apenas na nova moralidade resultante das tentativas de Lutero e Calvino de restaurar a inflexível alémmundanidade da fé cristã está igualmente presente embora em um nível inteiramente diverso na expropriação do campesinato consequência imprevista da expropriação da propriedade da Igreja e como t al o fator isolado mais importante no colapso do sistema feudal2 Naturalmente é ocioso especular sobre qual teria sido o curso de nossa economia sem esse evento cujo impacto impeliu a humanidade ocidental a um desdobramento no qual toda propriedade era destruída no processo de sua apropriação todas as coisas eram devoradas no processo de sua produção e a estabilidade do mundo era minada em um constante processo de mudança Tais especulações porém são significativas na medida em que nos fazem lembrar que a história é uma estória de eventos e não de forças ou ideias com cursos previsíveis São ociosas e até perigosas quando empregadas como argumento contra a realidade ou quando se destinam a indicar potencialidades e alternativas positivas visto que não apenas o seu número é ilimitado por definição mas também lhes falta a tangível inesperabilidade do evento que elas procuram compensar com a mera plaus ibilidade Assim permanecem sendo meros fantasmas por mais prosaica que seja a forma sob a qual são apresentadas Para que não subestimemos o ímpeto que esse processo adquiriu após séculos de desenvolvimento quase desenfreado convém talvez refletir sobre o chamado milagre econômico alemão do pósguerra que só é milagre se visto dentro de um quadro de referência ultrapassado O exemplo alemão demonstra muito clara mente que nas condições modernas a expropriação de pessoas a destruição de objetos e a devastação de cidades converteramse em um estímulo radical para um processo não de mera recuperação mas de acúmulo de riqueza ainda mais rápido e mais eficaz bastando para isso que o país seja suficientemente moderno para responder em termos do processo de produção Na Alemanha a completa destruição substituiu o inexorável processo de depreciação de todas as coisas mundanas proc esso esse que caracteriza a economia de desperdício na qual vivemos agora O resultado foi quase o mesmo um aumento súbito da prosperidade que como ilustra a Alemanha do pósguerra se alimenta não da abundância de bens materiais ou de qualquer outra coisa estável e dada mas do próprio processo de produção e consumo Nas condições modernas a conservação e não a destruição significa ruína porque a própria durabilidade dos objetos conservados é o maior obstáculo ao processo de reposição cujo crescimento constante da velocidade é a única constância restante onde esse processo se estabelece3 Já vimos que a propriedade distintamente da riqueza e da apropriação indica a parte de um mundo comum que tem um dono privado e é portanto a mais elementar condição política para a mundanidade do homem Pelo mesmo motivo a expropriação e a alienação do mundo coincidem e a era moderna muito contra as intenções de todos os atores da peça começou por alienar do mundo certas camadas da população Tendemos a negligenciar a importância central dessa alienação para a era moderna porque geralmente destacamos seu caráter secular e identificamos secularidade com mundanidade Contudo como evento histórico tangível a secularização significa apenas a separação entre Igreja e Estado entre religião e política e isso do ponto de vista religioso implica um retorno à inicial atitude cristã de dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus mais que uma perda de fé e transcendência ou um novo e enfático interesse nas coisas deste mundo A moderna perda de fé não é de origem religiosa não pode ser remetida à Reforma nem à Contrarreforma os dois grandes movimentos religiosos da era moderna e seu alcance não se limita de modo algum à esfera religiosa Além do mais mesmo se admitirmos que a era moderna iniciou com um súbito e inexplicável eclipse da transcendência da crença em um além disso não se segue absolutamente que essa perda tenha lançado o homem de volta ao mundo Ao contrário a evidência histórica mostra que os homens modernos não foram arremessados de volta a este mundo mas para dentro de si mesmos Uma das mais persistentes tendências da filosofia moderna desde Descartes e talvez a mais original contribuição moderna à filosofia foi uma preocupação exclusiva com o simesmo enquanto distinto da alma da pessoa ou do homem em geral uma tentativa de reduzir todas as experiências tanto com o mundo como com outros seres humanos a experi ências entre o homem e ele mesmo A grandeza da descoberta de Max Weber quanto às origens do capitalismo reside precisamente em sua demonstração de que é possível haver uma enorme atividade estritamente mundana sem que haja qualquer cuidado ou deleite com o mundo uma atividade cuja motivação mais profunda é ao contrário a preocupação e o cuidado com o simesmo O que distingue a era moderna é a alienação em relação ao mundo e não como pensava Marx a autoalienação selfalienation4 A expropriação o despojamento de certos grupos do seu lugar no mundo e sua nua exposição às exigências da vida criou tanto o original acúmulo de riqueza como a possibilidade de transformar essa riqueza em capital mediante o trabalho Tudo isso junto constituiu as condições para o surgimento de uma economia capitalista Desde o começo séculos antes da revolução industrial era evidente que esse desdobramento iniciado pela expropriação e nutrido por ela resultaria em um enorme aumento da produtividade humana A nova classe trabalhadora que literalmente vivia da mão à boca estava não só diretamente sob a urgência constrangedora das necessidades da vida5 mas ao mesmo tempo alienada de qualquer cuidado ou preocupação que não decorresse imediatamente do próprio processo vital O que foi liberado nos e stágios iniciais da primeira classe trabalhadora livre da história foi a força Kräfte inerente à força de trabalho labor powerArbeitskraft isto é à mera abundância natural do processo bi ológico que como todas as forças naturais da procriação tanto quanto da atividade do trabalho garante um generoso excedente muito além do necessário à reprodução de jovens para contrabalançar os velhos O que distingue esses desdobramentos do início da era moderna de ocorrências similares do passado é que a expropriação e o acúmulo de riqueza não resultaram simplesmente em novas propriedades nem levaram a uma nova redistribuição da riqueza mas realimentaram o processo para gerar novas expropriações maior produtividade e mais apropriação Em outras palavras a liberação da força de trabalho como processo natural não se restringiu a certas classes da sociedade e a apropriação não terminou por conta da satisfação das necessidades e de sejos o acúmulo de capital portanto não levou à estagnação que conhecemos tão bem dos ricos impérios que precederam a era moderna mas propagouse por toda a sociedade e deu início a um fluxo constantemente crescente de riqueza Mas esse processo que é realmente o processo vital da sociedade como o chamava Marx e cuja capacidade de produzir riqueza só pode ser comparada à fertilidade dos processos naturais nos quais a criação de um homem e de uma mulher seria suficiente para produzir pela multiplicação qualquer número de seres humanos permanece ligado ao princípio de alienação do mundo do qual resultou o processo só pode continuar se não se permite que a durabilidade e a estabilidade mundanas não interfiram e na medida em que todas as coisas mundanas todos os produtos finais do processo de produção o realimentem a uma velocidade cada vez maior Em outras palavras o processo de acúmulo de riqueza tal como o conhecemos estimulado pelo processo vital e por sua vez estimulando a vida humana é possível somente se o mundo e a própria mundanidade do homem forem sacrificados O primeiro estágio dessa alienação foi caracterizado por sua crueldade pela miséria e pela pobreza material que representou para um número cada vez maior de pobres trabalhadores que haviam sido despojados mediante a ex propriação da dupla proteção da família e da propriedade isto é da posse familiar privada de uma parte do mundo e que até o advento da era moderna abrigara o processo vital individual e a atividade do trabalho sujeita às necessidades desse processo O segundo estágio foi atingido quando a sociedade se tornou o sujeito do novo processo vital como antes a família fora antes o seu sujeito O pertencimento a uma classe social substituiu a proteção que ant es era oferecida pelo pertencimento a uma família e a solidariedade social passou a ser substituta muito eficaz da solidariedade natural que antes reinava na unidade familiar Além disso a sociedade como um todo o sujeito coletivo do processo vital não permaneceu de modo algum como entidade intangível como a ficção comunista de que necessitava a economia clássica da mesma forma como a unidade familiar havia sido identificada com um pedaço do mundo possuído privadamente com sua propriedade a sociedade foi identificada com uma parte tangível embora possuída coletivamente de propriedade o território do Estado nação que até o seu declínio no século XX oferecia a todas as classes um substituto do lar possuído privadamente despojado da classe dos pobres Todas as teorias orgânicas do nacionalismo especialmente em sua versão centroeuropeia baseiamse em uma identificação da nação e das relações entre os seus membros com a famíl ia e as relações familiares Porque a sociedade passa a substituir a família supõese que o sangue e o solo devam governar as relações entre os seus membros a homogeneidade da população e seu arraigamento no solo de um dado território passam a ser os requisitos do Estadonação em toda parte No entanto embora esse desdobramento tenha sem dúvida atenuado a crueldade e a miséria mal chegou a influenciar o processo de expropriação e alienação do mundo uma vez que a posse coletiva é a rigor uma contradição nos termos O declínio do sist ema europeu do Estadonação o encolhimento econômico e geográfico da Terra de forma que a prosperidade e a depressão tendem a se tornar fenômenos mundiais a transformação da humanidade que até nosso tempo era uma noção abstrata ou um princípio orientador apenas para os humanistas em uma entidade realmente existente cujos membros nos pontos mais distantes do globo levam menos tempo para encontrarse que os membros de uma nação há uma geração atrás isso marca o começo do último estágio desse desdobramento Do mesmo modo como a família e sua propriedade foram sub stituídas pelo pertencimento a uma classe e pelo território nacional a humanidade começou a substituir as sociedades vinculadas nacionalmente e a Terra a substituir o restrito território do Estado Mas o que quer que o futuro nos reserve o processo de alienação do mundo desencadeado pela e xpropriação e caracterizado por um crescimento cada vez maior da riqueza pode assumir proporções ainda mais radicais somente se lhe for permitido seguir a lei que lhe é inerente Pois os homens não podem se tornar cidadãos do mundo do modo como são cidadãos dos seus países e homens sociais não podem ser donos coletivos do modo como os homens que têm um lar e uma família são donos de sua propriedade privada A ascensão da sociedade trouxe consigo o declínio simultâneo dos domínios público e privad o Mas o eclipse de um mundo público comum tão crucial para a formação do homem de massa desamparado e tão perigoso na formação da mentalidade semmundo dos modernos movimentos ideológicos de massas começou com a perda muito mais tangível da posse privada de uma parte do mundo 36 A descoberta do ponto arquimediano Desde o dia em que um bebê nasceu em uma manjedoura podese duvidar que tenha ocorrido uma coisa tão grande com tão pouco alarde Com essas palavras Whitehead apresenta Galileu e a descoberta do telescópio no palco do mundo moderno6 Nada nessas palavras é um exagero Assim como o nascimento em uma manjedoura que significou não o fim da Antiguidade mas o começo de algo tão inesperado e imprevisivelmente novo que nem a esperança nem o medo poderia têlo antecipado essa primeira hesitante mirada na direção do universo através de um instrumento ao mesmo tempo ajustado aos sentidos humanos e destinado a revelar aquilo que definitiva e eternamente tinha de ficar fora do alcance deles montou o palco para um mundo inteiramente novo e determinou o curso de outros eventos que com muito maior alarde iriam dar início à era moderna Exceto em um grupo de homens eruditos numericamente pequeno e politicamente sem influência astrônomos filósofo s e teólogos o telescópio não gerou grande excitação antes a atenção pública foi atraída pela demonstração dramática por Galileu das leis da queda dos corpos tida como o início da moderna ciência natural embora seja duvidoso que por si mesmas sem que Newton as transformasse mais tarde na lei universal da gravitação ainda um dos mais espetaculares exemplos do moderno amálgama entre astronomia e física elas jamais tivessem levado a nova ciência na direção da astrofísica Pois o que distinguiu mais drasticamente a nova visão do mundo não apenas daquela da Antiguidade ou da Idade Média mas t ambém da grande sede renascentista de experiência direta foi o pressuposto de que o mesmo tipo de força exterior deveria se manifestar na queda dos corpos terrestres e no movimento dos corpos celestes Além disso a novidade da descoberta de Galileu foi anuviada por sua estreita relação com antecedentes e precursores Não apenas as especulações filosóficas de Nicolau de Cusa e de Giordano Bruno mas a imaginação matematicamente treinada dos astrônomos Copérnico e Kepler havia desafiado a noção do mundo finito e geocêntrico que os homens conservavam desde tempos imemoriais Os filósofos e não Galileu foram os primeiros a abolir a dicotomia entre uma Terra e um céu sobre ela promovendoa como eles pensavam à categoria das estrelas nobres e encontrando um lar para ela em um universo eterno e infinito7 E parece que os astrônomos não precisaram de telescópio algum para afirmar que contrariamente a toda experiência dos sentidos não é o Sol que se move em torno da Terra mas a Terra que gira em torno do Sol Se o historiador examina esses começos com toda a sabedoria e os preconceitos da visão retrospectiva ele é tentado a concluir que não havia necessidade de confirmação empírica para abolir o sistema ptolomaico Antes bastaria a coragem especulativa de seguir o princípio antigo e medieval da simplicidade da natureza ainda que levasse à negação de toda experiência sensorial e a grande audácia da imaginação de Copérnico que o ergueu da Terra e o permitiu observála de cima como se realmente fosse um habitante do Sol E o historiador se sente justificado em suas conclusões quando considera que as descobertas de Galileu foram precedidas de um véritable retour à Archimède em curso desde a Renascença Sem dúvida é sugestivo que Leonardo o tenha estudado com apaixonado interesse e que Galileu possa ser considerado seu discípulo8 Contudo nem as especulações dos filósofos nem a imaginação dos astrônomos jamais constituíram um evento Antes das descobertas telescópicas de Galileu a filosofia de Giordano Bruno atraiu pouca atenção mesmo entre eruditos e sem a confirmação factual que elas conferiram à revoluç ão copernicana não só os teólogos mas todos os homens sensatos têlaiam considerado um desvairado apelo de uma imaginação descontrolada 9 No domínio das ideias existem apenas originalidade e profundidade que são qualidades pessoais mas nenhuma novidade absoluta objetiva as ideias vêm e vão têm uma permanência e até certa imortalidade própria dependendo do seu inerente poder de iluminação que subsiste e perdura independentemente do tempo e da história Além do mais distintamente dos eventos as ideias nunca são sem precedentes e as especulações não confirmadas empiricamente quanto ao movimento da Terra em torno do Sol não eram mais sem precedentes que as teorias contemporâneas sobre o átomo se não tivessem ba se em experimentos nem consequências no mundo factual10 O que Galileu fez e que ninguém havia feito antes foi usar o telescópio de tal modo que os segredos do universo foram fornecidos à cognição humana com a certeza da percepção sensorial11 isto é colocou ao alcance de uma criatura presa à Terra e de seus sentidos presos ao corpo aquilo que pare cia estar para sempre além de suas capacidades na melhor das hipóteses estava aberto às incertezas da especulação e da imaginação Essa diferença de relevância entre o sistema copernicano e as descobertas de Galileu foi percebida muito claramente pela Igreja Católica que não fizera objeções à teoria prégalileana de um Sol imóvel e de uma Terra que se movia enquanto os astrônomos a empregaram como uma hipótese conveniente para fins matemáticos mas como o Cardeal Bellarmine indicou a Galileu demonstrar que a hipótese salva as aparências não é de modo algum o mesmo que demonstrar a realidade do movimento da Terra12 A que ponto essa observação era pertinente pôde ser imediatamente percebido pela súbita mudança de ânimo por parte do mundo erudito após a confirmação da descoberta de Galileu Daí por diante fizeramse notavelmente ause ntes o entusiasmo com que Giordano Bruno concebera um universo infinito a exultação religiosa com que Kepler contemplara o Sol o mais excelente de todos os corpos do universo cuja essência é nada menos que a pura luz e que portanto lhe parecia a morada mais adequada a Deus e aos anjos bemaventurados13 e a satisfação mais sóbria de Nicolau de Cusa ao ver a Terra finalmente em casa no céu estrelado Por confirmar seus predecessores Galileu estabeleceu um fato demonstrável onde antes havia especulações inspiradas A imediata reação filosófica a essa realidade não foi a exultação e sim a dúvida cartesiana na qual foi fundada a filosofia moderna essa escola de suspeita como Nietzsche a chamou certa vez e que terminou na convicção de que de agora em diante a morada da alma só pode ser construída de modo seguro sobre a sólida fundação do mais inflexível desespero14 Durante muitos séculos as consequências desse evento novamente como as consequências da Natividade permaneceram contraditórias e inconclusivas e ainda hoje o conflito entre o próprio evento e suas consequências quase imediatas está longe de ser resolvido O advento das ciências naturais é creditado a um aumento demonstrável e cada vez mais célere do poder e do conhecimento humanos Pouco antes da era moderna a humanidade europeia sabia menos que Arquimedes no século III aC ao passo que os primeiros 50 anos de nosso século testemunharam mais descobertas importantes que todos os séculos de história registrada juntos No entanto com igual razão o mesmo fenômeno foi responsabilizado pelo não menos demonstrável aumento do desespero humano ou pelo niilismo especificamente moderno que se propagou para setores cada vez maiores da população do qual o aspecto mais signifi cativo talvez seja o de que já não poupa os próprios cientistas cujo fundamentado otimismo no século XIX ainda foi capaz de enfrentar o igualmente justificável pessimismo de pensadores e poetas A moderna concepção astrofísica do mundo que teve início com Galileu e seu desafio à suficiência dos sentidos para revelar a real idade deixaramnos um universo de cujas qualidades conhecemos apenas o modo como afetam nossos instrumentos de medição e nas palavras de Eddington as primeiras se assemelham ao segundo tanto quanto um número de telefone se assemelha ao assinante15 Em outras palavras ao invés de qualidades objetivas encontramos instrumentos e ao invés da natureza do universo o homem encontra apenas a si mesmo nas palavras de Heisenberg16 Em nosso contexto o que importa é que tanto o desespero quanto o triunfo são inerentes ao mesmo evento Se desejarmos colocar isso em uma perspectiva histórica é como se a descoberta de Galileu comprovasse com um fato demonstrável que tanto o pior temor quanto a mais presunçosa esperança da especulação humana o antigo temor de que os nossos sentidos nossos órgãos para a recepção da realidade podem nos trair e o desejo arquimediano de um ponto fora da Terra a partir do qual o homem pudesse erguer o mundo só pudessem se mostrar verdadeiros ao mesmo tempo como se o desejo só pudesse ser satisfeito contanto que perdêssemos a realidade e o temor só se consumasse se compensado pela aquisição de poderes supramundanos Pois o que quer que façamos hoje em física seja liberando processos energéticos que ordinariamente só ocorrem no So l seja tentando desencadear em um tubo de ensaio os processos de evolução cósmica ou com o auxílio de telescópios penetrando o espaço cósmico até um limite de dois e mesmo de seis bilhões de anosluz ou construindo máquinas para a produção e controle de energias desconhecidas no lar da natureza terrena ou em aceleradores atômicos atingindo velocidades que se aproximam da velocidade da luz ou produzindo elementos que não se encontram na natureza ou dispersando partículas radioativas criadas por nós na Terra mediante o emprego da radiação cósmica sempre manejamos a natureza a partir de um ponto no universo fora da Terra Sem efetivamente nos posicionarmos onde Arquimedes desejava se posicionar dos moi pou stō presos ainda à Terra pela condição humana descobrimos um meio de atuar sobre a Terra e dentro da natureza terrena como se pudéssemos dispor dela a partir de fora do ponto arquimediano E mesmo com o risco de ameaçar o processo vital natural expomos a Terra a forças universais e cósmicas alheias ao lar da natureza Conquanto ninguém tenha previsto tais realizações e conquanto a maioria das teorias de hoje esteja em frontal contradição com aquelas formuladas nos primeiros séculos da era moderna esse desdobramento foi possível apenas porque inicialmente a antiga dicotomia entre a Terra e o céu foi abolida e uma unificação do universo foi levada a cabo de modo que daí por diante nada que ocorresse na natureza era tido como um mero evento terreno Todos os eventos passaram a ser vistos como sujeitos a uma lei universalmente válida no sentido mais completo do termo ou seja válida entre outras coisas além do alcance da experiência sensorial do homem mesmo daquelas experiências sensoriais realizadas com a ajuda dos instrumentos mais precisos válida além do alcance da memória humana e do aparecimento da humanidade na Terra válida inclusive além do surgimento da vida orgânica e da própria Terra Todas as leis da nova ciência da astrofísica são formuladas do ponto arquimediano ponto esse que provavelmente se situa mais longe da Terra e exerce muito mais poder sobre ela do que Arquimedes ou Galileu jamais ousaram pensar Se hoje os cientistas indicam que podemos presumir com igual validade que a Terra gira em torno do Sol ou que o Sol gira em torno da Terra que ambos os pressupostos estão de acordo com fenômenos observados e a diferença está apenas na escolha do ponto de referência isso não significa de modo algum um retorno à posição do Cardeal Bellarmine ou de Copérnico na qual os astrônomos lidavam com meras hipóteses Antes significa que movemos o ponto arquimediano mais um passo para longe da Terra para um ponto do universo onde nem a Terra nem o Sol são o centro de um sistema universal Significa que já não nos sentimos nem mesmo presos ao Sol que nos movemos livremente no universo escolhendo o nosso ponto de referência onde quer que seja conveniente para um fim específico No que diz respeito às realizações práticas da ciência moderna essa mudança do antigo sistema heliocêntrico para um sistema sem centro fixo é sem dúvida tão importante quanto a mudança original da visão de mundo geocêntrica para a heliocêntrica Só agora afirmamonos como seres universais como criaturas terrestres não por natureza e essência mas apenas pela condição de estarem vivas e que portanto mediante o raciocínio podem superar essa condição não na simples especulação mas de fato Não obstante o relativismo geral que advém automaticamente da mudança de uma visão de mundo heliocêntrica para outra desprovida de centro conceitualizado na teoria da relatividade de Einstein com a sua negação de que em um instante presente definido toda matéria seja simultaneamente real17 e com a negação concomitante e implícita de que o Ser que aparece no tempo e no espaço tenha realidade absoluta já estava contido ou ao menos foi precedido por aquelas teorias do século XVII segundo as quais o azul não passa de uma relação com um olho que vê e o peso não passa de uma relação de aceleração recíproca18 A paternidade do moderno relativismo não se deve a Einstein mas a Galileu e Newton O que prenunciou a era moderna não foi o antigo desejo de simplicidade harmonia e beleza dos astrônomos que levou Copérnico a considerar as órbitas dos planetas a partir do Sol e não da Terra nem o recémdespertado amor renascentista pela Terra e pelo mundo com a sua rebelião contra o racionalismo da escolástica medieval pelo contrário esse amor ao mundo foi a primeira vítima da triunfal alienação do mundo da era moderna Antes foi a descoberta devida ao novo instrumento de que a imagem de Copérnico do homem viril que posi cionandose no Sol contempla os planetas19 era muito mais que uma imagem ou um gesto era de fato um indício da assombrosa capacidade humana de pensar em termos de universo enquanto permanece na Terra e da talvez ainda mais assombrosa capacidade humana de empregar as leis cósmicas como princípios orientadores da ação terrestre Comparados à alienação da Terra subjacente a todo o desenvolvimento da ciência natural na era moderna a retirada da proximidade terrestre contida na descoberta do globo como um todo e a alienação do mundo resultante do duplo processo de expropriação e acúmulo de riqueza têm importância secundária De qualquer modo enquanto a alienação do mundo determinou o curso e o desenvolvimento da sociedade moderna a alienação da Terra tornouse e continuou sendo a característica da ciência moderna Sob o signo da alienação da Terra toda ciência não somente as ciências físicas e naturais mudou tão radicalmente seu conteúdo mais íntimo que se poderia duvidar se antes da era moderna existiu de algum modo algo como a ciência Isso fica talvez mais claro no desenvolvimento do mais importante instrumento mental da nova ciência os dispositivos da álgebra moderna mediante os quais a matemática conseguiu libertarse dos grilhões da espacialidade20 isto é da geometria que como o nome indica depende de medidas e medições terrenas A moderna matemática libertou o homem dos grilhões da experiência terrestre e o seu poder de cognição dos grilhões da finitude O fator decisivo nesse particular não é que os homens no início da era moderna ainda acreditassem com Platão na estrutura matemática do universo nem que uma geração mais tarde acreditassem com Descartes que o conhecimento seguro só é possível quando a mente lida com suas próprias formas e fórmulas Decisiva é a sujeição inteiramente não platônica da geometria ao tratamento algébrico que revela o moderno ideal de reduzir os movimentos e os dados sensoriais terrestres a símbolos matemáticos Sem essa linguagem simbólica não espacial Newton não teria sido capaz de reunir a astronomia e a física em uma única ciência ou em outras palavras de formular uma lei da gravitação na qual a mesma equação se aplica aos movimentos dos corpos celestes no firmamento e ao movimento dos corpos terrestres na Terra Mesmo então era evidente que a matemática moderna em um desenvolvimento já espetacular havia descoberto a espantosa faculdade humana de apreender em símbolos aqueles conceitos e dimensões que no máximo eram considerados negações e portanto limitações da mente uma vez que a sua imensidão parecia transcender a mente de meros mortais cuja existência dura um tempo insignificante e permanece presa a um recanto não muito importante do universo Contudo ainda mais significativo que essa possibilidade a de lidar com entidades que não podiam ser vistas pelo olho da mente foi o fato de que o novo instrumento mental que sob esse aspecto era ainda mais novo e mais importante que todos os instrumentos científicos que ajudou a inventar abriu o caminho para uma forma inteiramente inédita de abordar a natureza e de se aproximar dela no experimento No experimento o homem efetivou sua recémconquistada liberdade dos grilhões da experiência terrena ao invés de observar os fenômenos naturais tal como estes se lhe apresentavam colocou a natureza sob as condições de sua própria mente isto é sob as condições atingidas de um ponto de vista universal e astrofísico uma perspectiva cósmica localizada fora da própria natureza Foi por essa razão que a matemática passou a ser a principal ciência da era moderna e essa proeminência nada tem a ver com Platão que considerava a matemática a mais nobre das ciências abaixo apenas da filosofia da qual segundo ele ninguém deveria ser autorizado a se aproximar sem antes familiarizarse com o mundo matemático de formas ideais Pois a matemática isto é a geometria era a introdução adequada àquele firmamento de ideias no qual ne nhuma simples imagem eidōla ou sombra nenhuma matéria perecível podia mais interferir no aparecimento do ser eterno no qual essas aparências estão salvas sōzein ta phainomena e seguras enquanto purificadas tanto da sensualidade e da mortalidade humanas como da perecibilidade material Não obstante as formas ideais e matemáticas não eram produtos do intelecto mas fornecidas aos olhos da mente do mesmo modo como os dados sensoriais são fornecidos aos órgãos dos sentidos e os que eram treinados para perceber o que estava oculto aos olhos da visão corporal e da mente não treinada da multidão percebiam o verdadeiro ser ou antes o ser em sua aparência verdadeira Com o advento da modernidade a matemática não somente amplia o seu conteúdo ou atinge o infinito para tornarse aplicável à imensidão de um universo infinito que cresce e se expande infinitamente mas deixa completamente de se preocupar com aparências Já não é o começo da filosofia da ciência do Ser em sua verdadeira aparência mas ao invés disso passa a ser a ciência da estrutura da mente humana Quando a geometria analítica de Descartes tratou o espaço e a extensão a res extensa da natureza e do mundo de modo que suas relações por mais complicadas que fossem deviam sempre poder ser expressas por meio de fórmulas algébricas a matemática conseguiu reduzir e traduzir tudo o que o homem não é sob a forma de configurações idênticas a estruturas mentais humanas Quando além disso a mesma geometria analítica demonstrou que inversamente as verdades numéricas podem ser representadas inteiramente espacialmente desenvolveuse uma ciência física cuja completação prescindia de quaisquer outros princípios que não os da pura matemática com essa ciência o homem podia deslocarse arriscarse no espaço e estar seguro de que não encontraria coisa alguma além de si mesmo nada que não pudesse ser reduzido a modelos presentes nele mesmo21 Assim sendo os fenômenos somente poderiam ser salvos na medida em que pudessem ser reduzidos a uma ordem matemática e essa operação matemática não servia para preparar a mente humana para a revelação do verdadeiro ser direcionandoa para as medidas ideais que aparecem nos dados fornecidos aos snetidos mas ao contrário servia para reduzir esses dados às medidas da mente humana que dada uma distância suficiente e estando suficientemente remota e não envolvida pode observar e manusear a multiplicidade e a variedade do concreto segundo seus própri os padrões e símbolos Estes já não são mais formas ideais desveladas aos olhos da mente mas o resultado da remoção dos fenômenos dos olhos da mente não menos que dos olhos do corpo e de reduziremse todas as aparências pela força inerente à distância Nessa condição de distanciamento todo conjunto de coisas transformase em mera multiplicidade e toda multiplicidade por mais desordenada incoerente e confusa que seja recairá em certos padrões e configurações tão válidos e não mais significativos que a curva matemática que como Leibniz assinalou certa vez sempre pode ser verificada entre pontos lançados ao acaso em uma folha de papel Pois se é possível demonstrar que uma trama matemática de algum tipo pode ser tecida em qualquer un iverso que contenha vários objetos então o fato de que o nosso universo se presta ao tratamento matemático não é de grande importância filosófica22 e certamente não demonstra qualquer ordem inerente e intrinsecamente bela da natureza nem oferece uma confirmação da mente humana de sua capacidade de ultrapassar os sentidos em perceptividade ou de sua adequação como um órgão para receber a verdade A moderna reductio scientiae ad mathematicam invalidou o testemunho da observação da natureza tal como testificada a curta distância pelos sentidos humanos da mesma forma como Leibniz invalidou o conhecimento da origem aleatória e da natureza caótica da folha de papel coberta de pontos E o sentimento de suspeita de indignação e de desespero que foi a primeira e espiritualmente ainda é a mais duradoura consequência da descoberta de que o ponto arquimediano não era mero sonho vão da especulação ociosa é a mesma indignação impotente do homem que tendo visto com os próprios olhos como aqueles pontos foram lançados no papel arbitrariamente e sem previsão vê demonstrar e é forçado a admitir que todos os seus sentidos e a sua capacidade de julgamento o traíram e que o que ele viu foi a evolução de uma linha geométrica cuja direção é constante e uniformemente determinada por uma regra única23 37 Ciência universal versus ciência natural Muitas gerações e bom número de séculos se passaram antes que viesse à luz o verdadeiro significado da revolução do Copérnico e da descoberta do ponto arquimediano Somente nós e nós apenas há pouco mais de algumas décadas chegamos a viver em um mundo inteiramente determinado por uma ciência e uma tecnologia cuja verdade objetiva e conhecimento técnico knowhow e prático decorrem de leis cósmicas e universais distintamente das leis terrestres e naturais e no qual o conhecimento adquirido mediante a escolha de um ponto de referência fora da Terra é aplicado à natureza terrena e ao artifício humano Há um profundo abismo entre aqueles que no passado sabiam que a Terra girava em torno do Sol que nem a Terra nem o Sol eram o centro do universo e que haviam concluído que o homem perdera o seu lar assim como a sua posição privilegiada na criação e nós que ainda somos e provavelmente sempre seremos criaturas da Terra dependentes do metabolismo com a natureza terrena e que descobrimos os meios de desencadear processos de origem cósmica e possivelmente de dimensões cósmicas Se alguém desejasse traçar uma nítida linha divisória entre a era moderna e o mundo no qual passamos a viver poderia encontrála na diferença entre uma ciência que observa a natureza de um ponto de vista universal e assim consegue dominála completamente e uma ciência verdadeiramente universal que importa processos cósmicos para a natureza mesmo sob o risco óbvio de destruíla e com ela destruir o seu domínio sobre ela O que nos ocorre em primeiro lugar naturalmente é o tremendo aumento do poder humano de destruição o fato de que somos capazes de destruir toda a vida orgânica da Terra e de que algum dia provavelmente seremos capazes de destruir a própria Terra No entanto não menos terrível e não menos difícil de assimilar é o novo poder correspondente de criar o fato de que podemos produzir novos elementos jamais encontrados na natureza de que somos capazes não apenas de especular quanto às relações entre massa e energia e quanto à mais secreta identidade dessas duas mas de fato de transformar massa em energia ou transformar radiação em matéria Ao mesmo tempo passamos a povoar o espaço em volta da Terra com estrelas feitas pelo homem criando por assim dizer novos corpos celestes sob a forma de satélites e esperamos ser capazes em um futuro não muito distante de realizar aquilo que todas as eras passadas viram como o maior o mais profundo e o mais sagrado mistério da natureza criar ou recriar o milagre da vida Emprego deliberadamente a palavra criar para indicar que estamos na verdade fazendo aquilo que todas as eras antes de nós julgaram ser a prerrogativa exclusiva da ação divina Tal pensamento parecenos uma blasfêmia e embora seja uma blasfêmia em qualquer sistema de referência filosófico ou teológico do Ocidente ou do Oriente não é mais blasfemo que o que temos feito e aspiramos a fazer No entanto esse pensamento perde seu caráter de blasfêmia assim que compreendemos aquilo que Arquimedes compreendeu tão bem muito embora não soubesse como galgar aquele seu ponto fora da Terra isto é que não importa como expliquemos a evolução da Terra da natureza e do homem eles têm de ter passado a existir por meio de alguma força transmundana universal cuja obra tem de ser compreensível até poder ser imitável por alguém que possa ocupar o mesmo lugar Em última análise é somente essa suposta localização no universo fora do nosso planeta que nos possibilita produzir processos que não ocorrem na Terra e não desempenham papel algum na matéria estável mas que são cruciais para a criação da matéria Realmente é da própria natureza desses eventos que a astrofísica e não a geofísica a ciência universal e não a ciência natural tenha sido capaz de penetrar os últimos segredos da Terra e da natureza Do ponto de vista do universo a Terra é apenas um caso especial e pode ser compreendida como tal da mesma forma que nessa concepção não pode haver diferença entre matéria e energia visto que ambas são apenas formas diferentes da mesma substância básica24 Já com Galileu e certamente desde Newton a palavra universal começou a adquirir um significado realmente muito específico significa válido além do nosso sistema solar E algo bastante semelhante ocorreu a outra palavra de origem filosófica a palavra a bsoluto aplicada a tempo absoluto espaço absoluto movimento absoluto ou velocidade absoluta para designar um tempo um espaço um movimento e uma velocidade presentes no universo e comparados aos quais o tempo o espaço o movimento e a velocidade na Terra são apenas relativos Tudo o que acontece na Terra tornouse relativo desde que a relação da Terra com o universo se tornou o ponto de referência para todas as medições Filosoficamente parece que a capacidade do home m de assumir esse ponto de vista cósmico e universal sem mudar de lugar é a mais clara indicação possível de sua origem universal por assim dizer É como se já não precisássemos que a teologia nos dissesse que o homem não é nem pode ser de forma alguma deste mundo muito embora viva aqui e talvez algum dia possamos ser capazes de ver o antigo entusiasmo dos filósofos pelo universal como a primeira indicação como se eles tivessem apenas tido um pressentimento de que chegaria o tempo em que os homens teriam de viver em condições terrenas e ao mesmo tempo ser capazes de olhar a Terra e agir sobre ela a partir de um ponto situado fora dela O problema é somente ou pelo menos assim nos parece agora que embora o homem possa fazer coisas de um ponto de vista universal e absoluto algo que os filósofos jamais consideraram possível ele perdeu sua capacidade de pensar em termos universais e absolutos e com isso realizou e frustrou ao mesmo tempo os critérios e ideais da filosofia tradicional Ao invés da antiga dicotomia entre o céu e a Terra temos agora outra entre o homem e o universo ou entre a capacidade da mente humana para a compreensão e as leis universais que os homens podem descobrir e manusear sem uma verdadeira compreensão Quaisquer que venham a ser as recompensas e os ônus desse futuro ainda incerto uma coisa é certa embora possa afetar grandemente talvez mesmo radicalmente o vocabulário e o conteúdo metafórico das religiões existentes não abole nem elimina e nem mesmo altera a incógnita que é a região da fé Enquanto a nova ciência a ciência do ponto arquimediano necessitou de séculos e de gerações para desenvolver suas plenas potencialidades levando quase 200 anos para começar a mudar o mundo e a estabelecer novas condições para a vida do homem bastaram apenas algumas décadas mal uma geração para que a mente humana chegasse a certas conclusões a partir das descobertas de Galileu e dos métodos e pressupostos mediante os quais elas foram realizadas Em uma questão de anos ou décadas a mente humana mudou tão radicalmente quanto o mundo humano em uma questão de séculos e embora essa mudança tenha naturalmente permanecido restrita aos poucos membros da mais estranha de todas as sociedades modernas a sociedade dos cientistas e a república das letras a única sociedade que sobreviveu a todas as mudanças de convicção e a conflitos sem uma revolução e sem jamais esquecer de honrar o homem de cujas crenças ela não mais compartilha25 essa sociedade antecipou sob muitos aspectos pela mera força da imaginação treinada e controlada a radical mudança na mente de todos os homens modernos e que só em nosso tempo veio a ser uma realidade politicamente demonstrável26 Descartes é o pai da filosofia moderna da mesma forma como Galileu é o ancestral da ciência moderna e embora seja verdadeiro que após o século XVII e devido principalmente ao desenvolvimento da filosofia moderna a separação entre a ciência e a filosofia foi mais radical do que jamais havia sido antes27 Newton foi quase o último a chamar seus esforços de filosofia experimental e a oferecer suas descobertas à reflexão de astrônomos e filósofos 28 da mesma forma que Kant foi o último filósofo a ser também uma espécie de astrônomo e cientista natural29 a filosofia moderna deve a sua origem e o seu curso mais exclusivamente a descobertas científicas específicas que qualquer outra filosofia anterior Se essa filosofia que era a exata contrapartida de uma concepção científica do mundo há muito tempo descartada não se tornou obsoleta hoje isso não se deve apenas à natureza da filosofia que sempre qu e é autêntica possui a mesma permanência e durabilidade das obras de arte mas nesse caso particular está intimamente relacionada à subsequente evolução de um mundo no qual verdades durante muitos séculos acessíveis somente a uns poucos se tornaram realidade para todos Seria realmente insensato ignorar a congruência quase inteiramente precisa da alienação do homem moderno com relação ao mundo com o subjetivismo da filosofia moderna de Descartes e Hobbes até o sensualismo o empirismo e o pragmatismo ingleses até o idealismo e o materialismo alemães chegando ao recente existencialismo fenomenológico e ao positivismo lógico ou epistemológico Mas seria igualmente insensato acredi tar que o que desviou a mente do fi lósofo das antigas questões metafísicas para uma grande variedade de introspecções a introspecção em seu aparelho sensorial ou em seu aparelho cognitivo na sua consciência e em seus processos lógico e psicológico tenha sido o impul so resultante de um desenvolvimento autônomo de ideias ou em uma variação da mesma abordagem acreditar que o nosso mundo teria sido diferente se ao menos a filosofia se houvesse aferrado à tradição Como dissemos antes não são ideias mas eventos que mudam o mundo o sistema heliocêntrico como ideia é tão velho quanto a especulação pitagórica e tão persistente em nossa história quanto as tradições neoplatônicas e nem por isso jamais mudou o mundo ou a mente humana e o autor do evento crucial da era moderna foi Galileu e não Descartes O próprio Descartes era bastante consciente disso e ao saber do julgamento de Galileu e de sua retratação foi momentaneamente tentado a queimar todos os seus papéis porque se o movimento da Terra é falso todos os fundamentos de minha filosofia também são falsos30 Mas Descartes e os filósofos desde que elevaram o que havia ocorrido no nível do pensamento inflexível registraram com inigualada precisão o enorme choque do evento anteciparam pelo menos parcialmente as perplexidades inerentes ao novo ponto de vista do homem com as quais os cientistas não se preocupavam por falta de tempo até que em nossa época elas começaram a transparecer em sua própria obra e a interferir em suas próprias investigações Desde então foi transposta a curiosa discrepância entre o ânimo da moderna filosofia que desde o começo fora predominantemente pessimista e o ânimo da ciência moderna que até re centemente fora tão euforicamente otimista Pouca alegria parece haver restado a cada uma delas 38 O advento da dúvida cartesiana Afilosofia moderna começou com o de omnibus dubitandum est de Descartes com a dúvida mas com a dúvida não como um controle inerente à mente humana destinada a resguardála contra os engodos do pensamento e as ilusões dos sentidos nem como um ceticismo em relação à moral e aos preconceitos dos homens e da s épocas e nem mesmo como um método crítico na pesquisa científica e na especulação filosófica A dúvida cartesiana atinge um escopo muito mais amplo e visa a um fim demasiado fundamental para ser determinada por tais conteúdos concretos Na filosofia e no pensamento modernos a dúvida ocupa a mesma posição central que em todos os séculos anteriores era ocupada pelo thaumazein grego a admiração diante de tudo o que é como é Descartes foi o primeiro a conceitualizar esse duvidar moderno que depois dele passou a ser o motor autoevidente e inaudível que moveu todo pensamento o eixo invisível em torno do qual todo pensamento tem girado Tal como desde Platão e Aristóteles até a era moderna a filosofia conceitual em seus maiores e mais autênticos representantes havia sido a articulação da admiração também a moderna filosofia desde Descartes tem consistido nas articulações e ramificações do duvidar A dúvida cartesiana em seu significado radical e universal foi inicialmente a reação a uma nova realidade realidade essa não menos real pelo fato de se ter restringido durante séculos ao círculo limitado e politicamente insignificante dos doutos e eruditos Os filósofos compreenderam imediatamente que as descobertas de Galileu não encerravam um mero desafio ao testemunho dos sentidos e que agora já não era a razão como em Aristarco e Copérnico que lhes havia violado os sentidos se assim fosse bastaria que os homens optassem entre suas faculdades e deixar que a razão ingênita se tornasse a concubina de sua credulidade 31 Não foi a razão mas um instrumento feito pela mão do homem o telescópio que realmente mudou a concepção física do mundo o que os levou ao novo conhecimento não foi a contemplação nem a observação nem a especulação mas a ativa interferência do homo faber da atividade de fazer e de fabricar making and fabricating Em outras palavras o homem estava enganado somente enquanto acreditava que a realidade e a verdade se revelariam aos seus sentidos e à sua razão bastando para tanto que ele permanecesse fiel ao que via com os olhos do corpo e da mente A antiga oposição entre a verdade sensorial e a verdade racional entre a capacidade inferior dos sentidos para a verdade e a capacidade superior da razão para a verdade perdeu sua importância ante esse desafio ante a óbvia implicação de que a verdade e a realidade não são dadas que nem uma nem outra aparecem como são e que somente na interferência na aparência na eliminação das aparências podese conservar a esperança de atingirse o verdadeiro conhecimento Só então se descobriu até que ponto a razão e a fé na razão dependiam não de percepções sensoriais isoladas cada uma das quais poderia ser ilusória mas do pressuposto inquestionado de que os sentidos como um todo reunidos e presididos pelo senso comum que é o sexto e o mais elevado de todos os sentidos ajustam o homem à realidade que o rodeia Se o olho humano pode trair o homem a ponto de tantas gerações se enganarem ao crer que o Sol girava em torno da Terra então a metáfora dos olhos da mente já não podia ser conservada baseava se embora implicitamente e mesmo quando usada em oposição aos sentidos em uma confiança máxima na visão corporal Se o Ser e a Aparência estão definitivamente separados e esse como observou Marx certa vez é realmente o pressuposto básico de toda a ciência moderna então não resta coisa alguma em que se possa ter fé tudo tem de ser posto em dúvida É como se a antiga predição de Demócrito de que a vitória da mente sobre os sentidos só podia terminar com a derrota da mente tivesse se realizado exceto pelo fato de que agora a leitura de um instrumento parecia ter obtido uma vitória tanto sobre a mente como sobre os sentidos31a A característica proeminente da dúvida cartesiana é a sua universalidade o fato de que nada nenhum pensamento ou experiência dela escapa Talvez ninguém tenha explorado suas verdadeiras dimensões com maior honestidade que Kierkegaard quando ele se lançou não da razão como ele julgava mas da dúvida para a crença levando assim a dúvida ao próprio cerne da religião moderna32 A universalidade da dúvida cartesiana se estende desde o testemunho dos sentidos ao testemunho da razão e ao testemunho da fé porque essa dúvida reside em última análise na perda de autoevidência e todo pensamento sempre havia partido daquilo que é evidente em si e por si mesmo evidente não apenas para aquele que pensa mas para todos A dúvida cartesiana não duvidava simplesmente de que a compreensão humana pudesse não estar aberta a toda verdade ou de que a visão humana não fosse capaz de tudo ver mas de que a inteligibilidade para a compreensão humana não constituísse de algum modo uma demonstração de verdade tal como a visibilidade não constitui de modo algum uma prova de realidade Essa dúvida duvida de que exista algo como a verdade e com isso descobre que o tradicional conceito de verdade fosse ele baseado na percepção dos sentidos na razão ou na crença na revelação divina apoiavase do duplo pressuposto de que o que verdadeiramente é aparecerá por si mesmo consoante a isso e que as capacidades humanas são adequadas para recebêlo33 Que a verdade se revela por si mesma era o credo comum à Antiguidade pagã e à hebraica à filosofia secular e à filosofia cristã Por isso a nova filosofia moderna voltouse com tamanha veemência na verdade com uma violência que se avizinhava do ódio contra a tradição abolindo sumariamente a entusiasta restauração e a redescoberta da Antiguidade pela Renascença Só se percebe plenamente toda a pungência da dúvida de Descartes quando se compreende que as novas descobertas haviam assestado um golpe ainda mais desastroso contra a confiança humana no mundo e no universo que o indicado pela nítida separação entre ser e aparência Pois agora a relação entre os dois já não é estática como o era no ceticismo tradicional como se as aparências meramente escondessem e encobrissem um ser verdadeiro que para sempre escapa aos olhos do homem Pelo contrário esse Ser é agora tremendamente ativo e enérgico cria suas próprias aparências ainda que essas aparências sejam embustes Tudo o que os sentidos humanos percebem é provocado por forças invisíveis e secretas e se com o auxílio de certos dispositivos e instrumentos engenhosos essas forças são apanhadas em ato mais que descobertas como um animal cai em uma armadilha ou um ladrão é apanhado muito contra sua intenção e vontade verificase que esse Ser tremendamente eficaz é de tal natureza que seus desvelamentos têm de ser ilusórios e que as conclusões deduzidas de suas aparências têm de ser enganosas Dois pesadelos perseguem a filosofia de Descartes Em certo sentido esses pesadelos vieram a ser os mesmos de toda a era moderna não porque esta tenha sido muito profundamente influenciada pela filosofia cartesiana mas porque sua emergência era quase inevitável depois que as verdadeiras implicações da moderna visão de mundo foram compreendidas Esses pesadelos eram muito simples e muito bem conhecidos Em um deles a realidade tanto a realidade do mundo quanto a da vida humana é posta em dúvida se não podemos confiar nos sentidos nem no senso comum nem na razão então é possível que tudo o que tomamos pela realidade não passe de um sonho O outro diz respeito à condição humana geral tal como revelada pelas novas descobertas e à impossibilidade de os homens confiarem em seus sentidos e em sua razão em tais circunstâncias parece realmente muito mais plausível a ideia de um espírito mau um Dieu trompeur que deliberada e malignamente trai o homem que aquela de que Deus comanda o universo A consumada diabrura desse espírito mau consistiria em haver criado um ser dotado da noção de verdade apenas para conferirlhe outras faculdades tais que ele jamais será capaz de alcançar qualquer verdade jamais será capaz de estar certo de coisa alguma Realmente este último ponto a questão da certeza veio a se tornar crucial para todo o desenvolvimento da moralidade moderna O que se perdeu na era moderna não foi naturalmente a capacidade para a verdade ou a realidade ou a fé nem a concomitante aceitação inevitável do testemunho dos sentidos e da razão mas a certeza que antes as acompanhavam Na religião não foi a crença na salvação ou em uma vida futura que se perdeu imediatamente mas a certitudo salutis e isso aconteceu em todos os países protestantes nos quais a decadência da Igreja Católica abolira a última instituição ligada à tradição que onde quer que a sua autoridade permanecesse inconteste interpunhase entre o impacto da modernidade e a multidão de fiéis Tal como a consequência imediata dessa perda da certeza foi um novo zelo pelo fazer o bem nessa vida como se ela fosse apenas um longo período de provação 34 também a perda da certeza da verdade levou a um novo zelo inteiramente sem precedentes pela veracidade como se o homem só pudesse se permitir ser um mentiroso enquanto estava seguro da incontestável existência da verdade e da realidade objetiva que certamente sobreviveriam e derrotariam as suas mentiras35 A mudança radical de padrões morais que ocorreu no primeiro século da era moderna foi inspirada pelas necessidades e ideais do seu mais importante grupo de homens os novos cientistas e as virtudes cardeais modernas o sucesso a diligência e a veracidade são ao mesmo tempo as maiores virtudes para a ciência moderna36 As sociedades eruditas e as Academias Reais tornaramse os centros moralmente influentes nos quais os cientistas organizavamse em busca de caminhos e meios que lhes permitissem capturar a natureza na armadilha de experimentos e instrumentos de modo que ela fosse forçada a revelar seus segredos E essa tarefa gigantesca para a qual nenhum homem isolado seria suficiente mas talvez somente o esforço coletivo das melhores mentes da humanidade prescreveu as regras de comportamento e os novos critérios de julgamento Onde antes a verdade residira no tipo de teoria que desde os gregos significara a mirada contemplativa do espectador que se interessava pela realidade aberta diante de si e a acolhia a questão do sucesso passou a dominar e a prova da teoria passou a ser uma prova prática se funcionará ou não A teoria converteuse em hipótese e o sucesso da hipótese converteuse em verdade No entanto esse critério importantíssimo do sucesso independe de considerações práticas ou do desenvolvimento técnico que possa ou não acompanhar descobertas científicas específicas O critério do sucesso é inerente à própria essência e ao progresso da ciência moderna independentemente de sua aplicabilidade Nesse particular o sucesso não é de modo algum o ídolo oco no qual degenerou na sociedade burguesa foi e segue sendo nas ciências desde então um verdadeiro triunfo da engenhosidade humana contra disparidades esmagadoras A solução cartesiana da dúvida universal ou o seu despertar dos dois pesadelos interligados de que tudo é um sonho e que não existe realidade e de que não Deus mas um espírito mau reina sobre o mundo e zomba dos homens foi semelhante em método e conteúdo à substituição da verdade truth pela veracidade truthfulness e da realidade reality pela confiabilidade reliability A convicção de Descartes de que embora a nossa mente não seja a medida das coisas e da verdade certamente tem de ser a medida do que afirmamos ou negamos37 ecoa aquilo que os cientistas em geral e sem articulação explícita haviam descoberto que mesmo que não exista a verdade o homem pode ser veraz e mesmo que não exista certeza confiável o homem pode ser confiável Se alguma salvação existia devia estar no próprio homem e se houvesse resposta para as perguntas levantadas pelo ato de duvidar tinham de decorrer do próprio ato de duvidar Se tudo se tornou duvidoso então pelo menos o ato de duvidar é certo e real Qualquer que seja o estado da realidade e da verdade tal como se dão aos sentidos e à razão ninguém pode duvidar de sua dúvida e estar incerto quanto a se duvida ou não38 O famoso cogito ergo sum penso logo existo não resultava para Descartes de alguma autocerteza do pensamento como tal pois se assim fosse o pensamento teria adquirido uma nova dignidade e uma nova significação para o homem mas era uma simples generalização de um dubito ergo sum39 Em outras palavras da mera certeza lógica de que ao duvidar de algo eu permaneço consciente de um processo do duvidar em minha consciência Descartes concluiu que esses processos que se passam na mente do homem são dotados de certeza própria e que podem ser objeto de investigação na introspecção 39 A introspecção e a perda do senso comum De fato a introspecção não a reflexão da mente do homem quanto ao estado de sua alma ou do seu corpo mas o mero interesse cognitivo da consciência consciousness por seu próprio conteúdo e essa é a essência da cogitatio cartesiana na qual cogito sempre significa cogito me cogitare tem de produzir a certeza pois na intr ospecção só está envolvido aquilo que a própria mente produziu como ninguém interfere a não ser o produtor do produto o homem vêse diante de nada e de ninguém a não ser de si mesmo Muito antes que as ciências físicas e naturais começassem a indagar se o homem era capaz de encontrar conhecer e compreender outra coisa além de si mesmo a filosofia moderna procurara garantir na introspecção que o homem não se preocupasse a não ser consigo mesmo Descartes acreditava que a certeza produzida por seu novo método de introspecção era a certeza do existo Iam40 Em outras palavras o homem leva dentro de si mesmo a sua certeza a certeza de sua existência o mero funcionamento da consciência embora talvez não possa garantir uma realidade mundana dada aos sentidos e à razão confirma indubitavelmente a realidade das sensações e do raciocínio isto é a realidade dos processos que ocorrem na mente Estes não diferem dos processos biológicos que ocorrem no corpo e que quando deles fi camos cientes podem também convencernos de sua realidade operativa working Na medida em que até os sonhos são reais uma vez que pressupõem um sonhador e um sonho o mundo da consciência é suficientemente real O problema é apenas que tal como seria impossível inferir da ciência awareness dos processos corporais a forma real de qualquer corpo inclusive o nosso também é impossível apreender a partir da mera consciência consciousness das sensações na qual a pessoa sente seus sentidos e mesmo o objeto sentido se torna pa rte da sensação a realidade com todas as suas formas coloridos contornos e constelações A árvore vista pode ser suficientemente real para a sensação da visão da mesma forma que a árvore sonhada é sufi cientemente real para o sonhador enquanto dura o sonho mas nem uma nem outra podem jamais vir a ser uma árvore real Devido a essas perplexidades é que Descartes e Leibniz precisavam provar não a existência de Deus mas a sua bondade o primeiro demonstrando que nenhum espírito mau governa o mundo e zomba do homem e o segundo que esse mundo nele incluído o homem é o melhor dos mundos possíveis O aspecto importante dessas justificações exclusivamente modernas conhecidas desde Leibniz como teodicéias é que a dúvida não diz respeito à existência de um ser supremo que pelo contrário é tida como certa mas diz respeito à sua revelação tal como dada na tradição bíblica e suas intenções em relação ao homem e ao mundo ou antes a adequação da relação entre o homem e o mundo Dessas duas a dúvida sobre se a Bíblia ou a natureza contém revelação divina é natural uma vez demonstrado que a revelação como tal o desvelamento da realidade aos sentidos e da verdade à razão não garante nem uma nem outra A dúvida quanto à bondade de Deus porém a noção de um Dieu trompeur resultou da própria experiência do engano inerente à ace itação da nova visão do mundo um engano cuja pungência repousa em sua irremediável repetição pois nenhum conhecimento da natureza heliocêntrica do nosso sistema planetário pode alterar o fato de que vemos diariamente o Sol girar em torno da Terra erguendose e pondose em seu lugar predeterminado Só então quando se percebeu que o homem não fosse pelo acidente da invenção do telescópio poderia ter sido enganado para sempre os caminhos de Deus se tornaram de fato inteiramente inescrutáveis quanto mais o homem aprendia acerca do universo menos podia compreender as intenções e propósitos para os quais ele deve ter sido criado A bondade do Deus das teodicéias é portanto estritamente a qualidade de um deus ex machina a bondade inexplicável é em última análise a última coisa que salva a realidade na filosofia de Descartes a coexistência da mente e da extensão da res cogitans e da res extensa da mesma forma que salva a harmonia preestabelecida em Leibniz entre o homem e o mundo41 A própria engenhosidade da introspecção cartesiana e portanto o motivo pelo qual essa filosofia tornouse tão importante para o desenvolvimento espiritual e intelectual da era moderna residem em primeiro lugar no fato de ter empregado o pesadelo da não realidade como um modo de submergir todos os objetos mundanos no fluxo da consciência e de seus processos A árvore vista que encontramos na consciência mediante a introspecção já não é a árvore dada à visão e ao tato uma entidade por si mesma dotada de sua própria forma idêntica e inalterável Ao ser processada como um objeto da consciência no mesmo nível de uma coisa meramente lembrada ou inteiramente imaginária tornase parte integrante desse mesmo processo isto é daquela consciência que só conhecemos como fluxo em constante movimento Nada talvez pudesse preparar melhor a nossa mente para a consequente dissolução da matéria em energia de objetos em um torvelinho de ocorrências atômicas que essa dissolução da realidade objetiva em estados subjetivos da mente ou antes em processos mentais subjetivos Em segundo lugar e isso teve relevância ainda maior nos estágios iniciais da era moderna o método cartesiano para assegurar a certeza contra a dúvida universal correspondia mais precisamente à conclusão mais óbvia a ser tirada da nova ciência física embora não se possa conhecer a verdade como algo dado e desvelado o homem pode pelo menos conhecer o que ele próprio faz Essa veio a ser realmente a atitude mais geral e mais geralmente aceita na era moderna e foi essa convicção mais que a dúvida que lhe deu origem que impulsionou geração após geração durante mais de três séculos em um ritmo cada vez mais acelerado de descoberta e desenvolvimento A razão cartesiana baseiase inteiramente no pressuposto implícito de que a mente só pode conhecer aquilo que ela mesma produziu e retém de alguma forma dentro de si mesma42 Assim o seu mais alto ideal tem de ser o conhecimento matemático tal como a era moderna o concebe isto é não o conhecimento de formas ideais dadas fora da mente mas de formas produzidas por uma mente que nesse caso particular nem sequer necessita do estímulo ou melhor da irritação dos sentidos por outros objetos além de si mesma Essa teoria é certamente aquilo que Whitehead a chama o resultado do senso comum em retirada43 Pois o senso comum que fora antes aquele sentido por meio do qual todos os outros com as suas sensações estritamente privadas se ajustavam ao mundo comum tal como a visão ajustava o homem ao mundo visível tornouse então uma faculdade interior sem qualquer relação com o mundo Esse sentido era agora chamado de comum meramente por ser comum a todos O que os homens têm agora em comum não é o mundo mas a estrutura de suas mentes e isso eles não podem a rigor ter em comum o que pode ocorrer é apenas que a faculdade de raciocínio seja a mesma para todos44 O fato de que dado o problema de dois mais dois todos chegaremos à mesma resposta quatro passa a ser de agora em diante o modelo máximo do raciocínio do senso comum A razão tanto em Descartes quanto em Hobbes tornase cálculo de consequências a faculdade de deduzir e concluir isto é um processo que o homem pode a qualquer momento desencadear dentro de si mesmo A mente desse homem para ficarmos no campo da matemática já não vê doismaisdoissãoquatro como uma equação na qual os dois lados equilibramse em uma harmonia autoevidente mas concebe a equação como a expressão de um processo mediante o qual dois e dois tornamse quatro a fim de gerar novos processos de adição que levarão finalmente ao infinito É essa a faculdade que a era moderna denomina raciocínio do senso comum tratase do jogo da mente consigo mesma jogo esse que ocorre quando a mente se fecha contra toda realidade e sente somente a si própria Os resultados desse jogo são verdades compulsórias porque supostamente a estrutura mental de um homem difere da de outro apenas na forma do seu corpo Qualquer eventual diferença é uma diferença de poder mental e essa pode ser testada e medida como se mede a potência de um motor Aqui a velha definição do homem como animal rationale adquire uma terrível precisão destituído do sentido mediante o qual os cinco sentidos animais do homem se ajustam a um mundo comum a todos os homens os seres humanos não passam realmente de animais capazes de raciocinar de calcular as consequências A perplexidade inerente à descoberta do ponto arquimediano era e ainda é o fato de que o ponto fora da Terra foi descoberto por uma criatura presa à Terra que descobriu no instante em que procurava aplicar sua visão universal do mundo a seu real ambiente que ela própria vivia em um mundo não apenas diferente mas às avessas A solução cartesiana dessa perplexidade foi deslocar o ponto arquimediano para dentro do próprio homem45 escolher como último ponto de referência a configuração da própria mente humana que se assegura da realidade e da certeza dentro de um arcabouço de fórmulas matemáticas produzidas por ela mesma Aqui a famosa reductio scientiae ad mathematicam permite substituir o que é dado através dos sentidos por um sistema de equações matemáticas nas quais todas as relações reais são dissolvidas em relações lógicas entre símbolos criados pelo homem É essa substituição que permite à ciência moderna cumprir a sua tarefa de produzir producingproduzieren os fenômenos e objetos que deseja observar46 E o pressuposto é que nem um Deus nem um espírito mau podem alterar o fato de que dois mais dois são quatro 40 O pensamento e a moderna concepção do mundo Embora a transferência cartesiana do ponto arquimediano para a mente do homem permitisse que este o levasse consigo por assim dizer aonde quer que fosse e com isso se libertasse inteiramente da realidade dada isto é da condição humana de ser um habitante da Terra talvez nunca tenha sido tão convincente quanto a dúvida universal da qual resultou e que se supunha que ela dissiparia47 De qualquer modo vemos hoje nas perplexidades com que deparam os cientistas naturais em meio aos seus maiores triunfos os mesmos pesadelos que vêm perseguindo os filósofos desde o início da era moderna O pesadelo está presente no fato de que uma equação matemática como a da massa e da energia que originariamente se destinava apenas a s alvar os fenômenos estar de acordo com fatos observáveis que também podiam ser explicados de outro modo da mesma forma como os sistemas ptolomaico e copernicano originariamente diferiam somente em simplicidade e harmonia prestase na verdade a uma conversão muito real de massa em energia e viceversa de sorte q ue a conversão matemática implícita em toda equação corresponde à conversibilidade em realidade está presente também no misterioso fenômeno de que os sistemas da matemática não euclidiana foram descobertos sem qualquer premeditação de aplicabilidade ou sequer de significado empírico até adquirirem surpreendente validade na teoria de Einstein e é ainda mais inquietante na conclusão inevitável de que a possibilidade de tal aplicação tem de ser mantida aberta para todas as construções da matemática pura mesmo as mais remotas48 Se for verdade que todo um universo ou antes qualquer número de universos completamente diferentes passará a existir e a comprovar qualquer configuração geral construída pela mente humana o homem poderá real mente por um instante rejubilarse com a reafirmação da harmonia preestabelecida entre a matemática pura e a física49 entre a mente e a matéria entre o homem e o universo Mas será difícil afastar a suspeita de que esse mundo matematicamente preconcebido talvez não passe de um mundo onírico no qual toda visão sonhada que o próprio homem produz tem caráter de realidade somente enquanto dura o sonho E a suspeita crescerá quando ele por força descobrir que os eventos e ocorrências no infinitamente pequeno no átomo seguem as mesmas leis e regularidades que no infinitamente grande ou nos sistemas planetários50 O que isso parece indicar é que quando pesquisamos a natureza do ponto de vista da astronomia obtemos sistemas planetários ao passo que quando fazemos nossas investigações astronômicas do ponto de vista da Terra obtemos sistemas geocêntricos terrestres De qualquer forma sempre que tentamos transcender a aparência para além de toda experiência sensorial inclusive com a ajuda de instrumentos a fim de apreender os segredos últimos do Ser que segundo nosso conceito do mundo físico é tão furtivo que jamais aparece e no entanto é tão tremendamente poderoso que produz todas as aparências verificamos que os mesmos padrões governam o macrocosmo e o microcosmo e que o nosso instrumento registra as mesmas leituras Novamente podemos por um instante rejubilarnos por havermos reencontrado a unidade do universo apenas para sermos vitimados pela suspeita de que o que encontramos talvez nada tenha a ver com o macrocosmo ou com o microcosmo que lidamos apenas com os padrões de nossa própria mente a mente que projetou os instrumentos e submeteu a natureza às suas condições no experimento impôs à natureza as suas leis na frase de Kant e nesse caso é como se realmente estivéssemos nas mãos de um espírito mau que escarnece de nós e frustra a nossa sede de conhecimento de sorte que sempre que procuramos aquilo que não somos encontramos somente os padrões de nossa própria mente A dúvida cartesiana logicamente a mais plausível e cronologica mente a mais imediata consequência da descoberta de Galileu foi durante séculos amenizada pela engenhosa transferência do ponto arquimediano para dentro do próprio homem pelo menos no tocante às ciências naturais Mas a matematização da física mediante a qual se deu a absoluta renúncia dos sentidos para o propósito de adquirir conhecimento teve em seus últimos estágios a inesperada mas plausível consequência de que toda pergunta que o homem faz à natureza é respondida em termos de padrões matemáticos para os quais nenhum modelo pode jamais ser adequado visto que todo modelo teria de ser configurado após nossas experiências sensoriais51 Neste ponto a conexão entre o pensamento e a experiência dos sentidos inerente à condição human a parece vingarse de nós embora a tecnologia demonstre a verdade dos mais abstratos conceitos da ciência moderna demonstra apenas que o homem sempre pode aplicar os resultados de sua mente e que não importa que sistema empregue para explicar os fenômenos naturais será sempre capaz de adotálo como princípio orientador nas atividades de fabricar e agir Tal possibilidade estava latente até mesmo nos primórdios da matemática moderna quando se verificou que as verdades numéricas podiam ser perfeitamente traduzidas em relações espaciais Se portanto a ciência de hoje em sua perplexidade aponta as conquistas da técnica para provar que estamos lidando com uma ordem autêntica dada na natureza52 parece ter caído em um círculo vicioso que pode ser formulado do seguinte modo os cientistas formulam suas hipóteses para organizar seus experimentos e em seguida empregam esses experimentos para verificar as hipóteses é óbvio que durante toda essa empresa eles lidam com uma natureza hipotética53 Em outras palavras o mundo do experimento sempre parece suscetível de tornarse uma realidade criada pelo homem e isso embora possa aumentar o poder humano de produzir e de agir até de criar um mundo a um grau muito além do que qualquer época anterior ousou imaginar em sonho ou fantasia torna infelizmente a aprisionar o homem e agora muito mais vigorosamente na prisão de sua própria mente nas limitações dos padrões que ele mesmo criou No momento em que ele deseja aquilo que todas as épocas anteriores eram capazes de realizar ou seja experimentar a realidade daquilo que ele próprio não é verifica que a natureza e o universo se lhe escapam e que um universo construído segundo o comportamento da natureza durante o experimento e de acordo com os próprios princípios que o homem é capaz de traduzir tecnicamente em realidade operativa carece de toda representação possível A novidade aqui não é que existem coisas das quais não podemos formar uma imagem essas coisas sempre foram conhecidas e entre elas estava por exemplo a alma mas sim que as coisas materiais que vemos e representamos e a partir das quais medimos as coisas imateriais que não podemos visualizar são igualmente inimagináveis Com o desaparecimento do mundo tal como dado aos sentidos desaparece também o mundo transcendente e com ele a possibilidade de transcender o mundo material em conceito e pensamento Não é surpreendente portanto que o novo universo seja não apenas praticamente inacessível mas nem ao menos pensável pois não importa como o concebamos está errado talvez não tão desprovido de sentido como um círculo triangular mas muito mais que um leão alado54 A dúvida universal de Descartes atingiu agora o cerne da própria ciência física porque o caminho da fuga para a mente do próprio homem é bloqueado quando se verifica que o moderno universo físico não só está além de qualquer representação o que seria de esperar sob o pressuposto de que a natureza e o Ser não se revelam aos sentidos mas é também inconcebível e inimaginável em termos de raciocínio puro 41 A inversão entre contemplação e ação Talvez a mais grave consequência espiritual das descobertas da era moderna e ao mesmo tempo a única que não podia ser evitada uma vez que seguiu muito de perto a descoberta do ponto arquimediano e o resultante advento da dúvida cartesiana tenha sido a inversão reversal da ordem hierárquica entre a vita contemplativa e a vita activa Para compreender quão coativos eram os motivos dessa inversão é necessário em primeiro lugar nos desfazer do atual preconceito que atribui o desenvolvimento da ciência moderna por causa de sua aplicabilidade a um desejo pragmático de melhorar as condições da vida humana na Terra É um dado histórico o de que a moderna tecnologia tem suas origens não na evolução daquelas ferramentas que o homem sempre havia inventado para o duplo propósito de facilitar seu trabalho e de erigir o artifício humano mas exclusivamente na busca completamente não prática de conhecimento inútil Assim o relógio um dos primeiros instrumentos modernos não foi inventado para os propósitos da vida prática mas exclusivamente para o propósito altamente teórico de realizar certos experimentos com a natureza É certo que essa invenção logo que se tornou clara a sua utilidade prática mudou todo o ritmo e a própria fisionomia da vida humana mas isso do ponto de vista dos seus inventores foi mero acidente Se tivéssemos de confiar somente nos chamados instintos práticos dos homens jamais teria havido qualq uer tecnologia digna de nota e embora as invenções técnicas hoje existentes tragam em si certo ímpeto que provavelmente gerará melhorias até certo ponto é pouco provável que o nosso mundo condicionado à técnica pudesse sobreviver e muito menos continuar a desenvolverse se conseguíssemos nos convencer de que o homem é antes de tudo um ser prático Seja como for a experiência fundamental por trás da inversão entre contemplação e ação foi precisamente que a sede humana de conhecimento só pôde ser mitigada depois que o homem depositou sua confiança no engenho das próprias mãos Não que o conhecimento e a verdade já não fossem importantes mas só podiam ser atingidos mediante a ação e não pela contemplação Foi um instrumento o telescópio uma obra das mãos do homem que finalmente forçou a natureza ou melhor o universo a revelar seus segredos As razões para que se confiasse no agir e se desconfiasse da contemplação ou observação tornaramse ainda mais fortes após o resultado das primeiras pesquisas ativas Desde que o ser e a aparência se divorciaram e quando já não se supunha qu e a verdade aparecesse se revelasse e se desvelasse ao olho mental de um observador surgiu uma verdadeira necessidade de buscar a verdade por trás de aparências enganosas Realmente nada poderia ser menos digno de confiança para adquirir conhecimento e aproximarse da verdade que a observação passiva ou a mera contemplação Para ter certeza tinhase de assegurarse e para conhecer tinha de agir A certeza do conhecimento só podia ser atingida mediante dupla condição primeiro que o conhecimento se referisse apenas àquilo que o próprio homem havia feito de modo que seu ideal passou a ser o conhecimento matemático no qual se lida apenas com entidades da mente produzidas por ela mesma e segundo que o conhecimento fosse de tal natureza que ele só pudesse ser testado mediante mais agir Desde então a verdade científica e a verdade filosófica separaramse a verdade científica não só não precisa ser eterna como não precisa sequer ser compreensível ou adequada à razão humana Muitas gerações de cientistas foram necessárias antes que a mente humana se tornasse suficientemente ousada para encarar frontalmente essa implicação da modernidade Se a natureza e o universo são produtos de um fabricante divino e se a mente humana é incapaz de compreender aquilo que não tenha sido feito pelo próprio homem então o homem não pode de modo algum esperar aprender da natureza coisa alguma que ele possa compreender Pode ser capaz graças ao seu engenho de descobrir e mesmo de imitar os mecanismos dos processos naturais mas isso não significa que esses mecanismos tenham algum sentido para ele não precisam ser inteligíveis De fato nenhuma suposta revelação divina suprarracional e nenhuma suposta verdade filosófica abstrusa jamais ofenderam a razão humana tão manifestamente quanto certos resultados da ciência moderna Podemos realmente dizer com Whitehead Só Deus sabe que aparente absurdo não será amanhã uma verdade demonstrada55 Realmente a mudança que ocorreu no século XVII foi mais radical do que é capaz de indicar a simples inversão da tradicional ordem estabelecida entre a contemplação e a ação doing A rigor essa inversão tinha a ver apenas com a relação entre pensar e agir doing ao passo que a contemplação no sentido original de visão da verdade foi inteiramente abolida Pois pensamento e contemplação não são a mesma coisa Tradicionalmente concebiase o pensamento como a maneira mais direta e importante de chegar à contemplação da verdade Desde Platão e provavelmente desde Sócrates compreendiase o pensamento como diálogo interior no qual alguém fala consigo mesmo eme emautō para recordar a expressão corrente nos diálogos de Platão e embora esse diálogo não tenha qualquer manifestação externa e chegue a exigir a cessação mais ou menos completa de todas as outras atividades constitui por si um estado eminentemente ativo Sua inatividade exterior é nitidamente distinguível da passividade a completa quietude na qual a verdade é finalmente revelada ao homem A escolástica medieval ao considerar a filosofia como serva da teologia bem poderia ter agradado a Platão e a Aristóteles ambos embora em um contexto muito diferente consideraram esse processo dialógico do pensamento um modo de preparar a alma e levar a mente a uma visão da verdade para além do pensamento e do discurso uma verdade que é arrhēton incapaz de ser comunicada através de palavras como disse Platão56 ou uma verdade para além do discurso como em Aristóteles57 Assim a inversão que ocorreu na era moderna não consistiu em elevar o agir do ing ao nível outrora ocupado pelo contemplar como o mais alto estado de que os seres humanos são capazes como se daí por diante o agir fosse a significação última em nome da qual tinha de ser realizada a contemplação tal como até então todas as atividades da vita activa tinham sido julgadas e justificadas na medida em que tornavam possível a vita contemplativa A i nversão tinha a ver somente com a atividade de pensar que daí por diante passou a ser a serva do agir como havia sido a ancilla theologiae a serva da contemplação da verdade divina na filosofia medieval e a serva da contemplação da verdade do Ser na filosofia antiga A contemplação mesma tornouse completamente sem sentido De certa forma a radicalidade d essa inversão é toldada por um outro tipo de inversão com a qual é frequentemente identificada e que desde Platão vem dominando a história do pensamento ocidental Quem quer que leia a alegoria da Caverna na República de Platão à luz da história grega logo perceberá que a periagōgē a reviravolta turningabout que Platão exige do fi lósofo constituía na verdade uma inversão da ordem homérica do mundo Não a vida após a morte como no Hades homérico mas a vida comum na Terra é situada em uma caverna em um submundo a alma não é a sombra do corpo mas é o corpo que é a sombra da alma e o movimento fantasmal e sem sentido atribuído por Homero à existência sem vida da alma no Hades após a morte é agora atribuído aos feitos sem sentido de homens que não deixam a caverna da existência humana para observar as ideias eternas visíveis no céu58 Nesse contexto interessome apenas pelo fato de que a tradição platônica do pensamento tanto filosófico quanto político começou com uma inversão e que essa inversão original determinou em grande parte os modelos de pensamento nos quais a filosofia ocidental caía quase automaticamente sempre que não era animada por um forte e original ímpeto filosófico De fato a filosofia acadêmica vem sendo desde então dominada por uma incessante inversão entre idealismo e materialismo transcendentalismo e imanentismo realismo e nominalismo hedonismo e ascetismo e assim por diante O que importa aqui é a inversibilidade de todos esses sistemas o fato de que podem ser virados de cabeça para baixo ou revirados de cabeça para cima a qualquer momento da história sem se precisar para tal inversão de eventos históricos ou alterações dos elementos estruturais envolvidos Os próprios conceitos permanecem os mesmos não importa o lugar que ocupem nas várias ordens sistemáticas Uma vez que Platão havia conseguido tornar reversíveis esses elementos e conceitos estruturais as inversões no decorrer da história intelectual não precisavam senão de uma experiência puramente intelectual uma experiência dentro do âmbito da estrutura do próprio pensamento conceitual Essas inversões já haviam tido início nas escolas filosóficas da Antiguidade tardia e permaneceram como parte da tradição ocidental É ainda a mesma tradição o mesmo jogo intelectual com antíteses emparelhadas que comanda até certo ponto as famosas inversões modernas das hierarquias espirituais como a de Marx na qual ele virou de cabeça para baixo a dialética de Hegel ou a de Nietzsche que revalorou o sensual e o natural em comparação com o suprassensual e o supranatural A inversão de que trato aqui a consequência espiritual das descobertas de Galileu embora tenha sido muitas vezes interpretada nos termos das inversões tradicionais e portanto como integrante da his tória das ideias ocidental é de uma natureza completamente diferente A convicção de que a verdade objetiva não é dada ao homem e que ele só pode conhecer aquilo que ele mesmo faz não advém do ceticismo mas de uma descoberta demonstrável e portanto não leva à resignação mas a uma atividade redobrada ou ao desespero A perda do mundo na filosofia moderna cuja introspecção descobriu a cons ciência como sentido interior com o qual o indivíduo sente os seus sentidos e verificou que ela era a única segurança da realidade difere não só em grau da antiga suspeita dos filósofos em relação ao mundo e aos outros com quem compartilhavam o mundo agora o filósofo já não se volta de um mundo de enganosa perecibilidade para outro mundo de verdade eterna mas volta as costas a ambos e se retira para dentro de si mesmo O que descobre na região do simesmo interior é novamente não uma imagem cuja permanência pode ser observada e contemplada mas ao contrário o constante movimento das percepções sensoriais e a atividade mental em movimento não menos constante Desde o século XVII a filosofia produziu seus melhores e menos discutidos resultados quando investigou em um supremo esforço de autoinspeção os processos dos sentidos e da mente Sob esse aspecto a maior parte da filosofia moderna é realmente teoria da cognição e psicologia e nos poucos casos em que as potencialidades do método cartesiano de introspecção foram plenamente realizadas por homens como Pascal Kierkegaard e Nietzsche somos tentados a dizer que os filósofos fizeram experimentos consigo próprios não menos radicalmente e talvez mais intrepidamente que os cientistas experimentaram com a natureza Por mais que possamos admirar a coragem e respeitar a extraordinária engenhosidade dos filósofos no decorrer de toda a era moderna não se pode negar que a sua influência e a sua importância diminuíram como nunca antes Não foi no pensamento da Idade Média mas no da era moderna que a filosofia passou a segund o ou mesmo a terceiro plano Depois que Descartes baseou sua filosofia nas descobertas de Galileu a filosofia parece condenada a seguir sempre um passo atrás dos cientistas e de suas descobertas ainda mais espantosas que as de Galileu cujos princípios se empenha arduamente para descobrir ex post facto e para ajustar a alguma interpretação global da natureza do conhecimento humano Como tal porém a filosofia não era necessária aos cientistas que pelo menos até o nosso tempo acreditavam não precisar de uma serva e muito menos uma que pretendesse carregar o archote à frente da sua graciosa ama Kant Os filósofos tornaramse epistemólogos preocupados com uma teoria global da ciência da qual os cientistas não necessitavam ou tornaramse realmente aquilo que Hegel queria que fossem os órgãos do Zeitgeist os portavozes por meio dos quais o estado de espírito geral da época era expresso com clareza conceitual Em ambos os casos quer considerassem a natureza quer a história tentavam compreender e se ajustar com o que aconteceu sem a sua ajuda Obviamente a filosofia sofreu mais com a modernidade que qualquer outro campo do esforço humano e é difícil dizer se sofreu mais em decorrência da quase automática elevação da atividade a uma dignidade completamente inesperada e sem precedentes ou da perda da verdade tradicional ou seja do conceito de verdade subjacente a toda a nossa tradição 42 A inversão dentro da vita activa e a vitória do homo faber As primeiras atividades da vita activa a se promoverem à posição antes ocupada pela contemplação foram as atividades de fazer e fabricar making and fabricating prerrogativas do homo faber Isso era bastante natural visto que foi um instrumento e portanto o homem na medida em que é um fabricante de instrumentos que levou à moderna revolução Daí em diante todo progresso científico tem estado mais intimamente ligado ao desenvolvimento cada vez mais sofisticado da manufatura de novas ferramentas e instrumentos Enquanto por exemplo os experimentos de Galileu com a queda de corpos pesados poderiam ter sido realizados em qualquer época da história caso os homens estivessem inclinados a procurar a verdade mediante experimentos o experimento de Michelson com o interferômetro em fins do século XIX dependeu não apenas do seu gênio experimental mas necessitou do avanço geral da tecnologia e portanto não poderia ter sido realizado antes59 Não foi somente a parafernália de instrumentos e portanto o auxílio que o homem teve de angariar do homo faber para adquirir o conhecimento que fez com que essas atividades ascendessem de sua antiga posição humilde na hierarquia das capacidades humanas Mais decisivo que isso foi o elemento de produção e de fabricação presente no próprio experimento que engendra os seus próprios fenômenos de observação e portanto depende desde o início das capacidades produtivas do homem O emprego da experimentação para fins de conhecimento já era consequência da convicção de que o homem só pode conhecer aquilo que ele mesmo produz pois essa convicção significava que ele poderia aprender algo acerca das coisas que não fez se representasse e imitasse os processos através dos quais essas coisas passaram a existir A tão discutida mudança de ênfase na história da ciência da velha questão sobre o que e por que algo é para a nova questão de como veio a existir é decorrência direta dessa convicção e a resposta só pode ser encontrada no experimento Este repete os processos naturais como se o próprio homem estivesse a ponto de produzir os objetos da natureza e embora nos primeiros estágios da era moderna nenhum cientista responsável teria imaginado com a medida em que o homem é realmente capaz de produzir a natureza ainda assim todo cientista abordou a natureza desde o início do ponto de vista dquele que a fez e isso não por motivos práticos de aplicabilidade técnica mas exclusivamente pelo motivo teórico de que a certeza do conhecimento não podia ser obtida de outra forma Daime a matéria e eu construirei com ela um mundo isto é daime a matéria e eu vos mostrarei como um mundo foi criado a partir dela60 Essas palavras de Kant resumem a moderna amálgama do produzir e do conhecer pela qual é como se alguns séculos de conhecimento nos moldes da produção fossem necessários como um aprendizado para preparar o homem moderno para produzir aquilo que ele desejava conhecer A produtividade e a criatividade que iriam tornarse os mais altos ideais e inclusive os ídolos da era moderna em seus estágios iniciais são emblemas inerentes ao homo faber ao homem como construtor e fabricante Contudo há outro notável elemento talvez ainda mais significativo na versão moderna dessas faculdades A mudança do por que e do o que para o como implica que os verdadeiros objetos do conhecimento já não podem ser coisas ou movimentos eternos mas processos e que portanto o objeto da ciência já não é a natureza ou o universo mas a história a estória de como vieram a existir a natureza a vida ou o universo Muito antes que a era moderna desenvolvesse sua consciência histórica sem precedentes e o conceito de história se tornasse dominante na filosofia moderna as ciências naturais haviam se transformado em disciplinas históricas até que no século XIX acrescentaram às disciplinas mais antigas da física e da química da zoologia e da botânica as novas ciências naturais da geologia ou história da Terra da biologia ou história da vida da antropologia ou história da vida humana e de modo mais geral a história natural Em todos esses casos o desenvolvimento conceitochave das ciências históricas tornouse o conceito central também das ciências físicas A natureza pelo fato de só poder ser conhecida em processos que o engenho humano a engenhosidade do homo faber podia repetir e reproduzir no experimento tornouse um processo61 e o significado e a importância de todas as coisas naturais particulares decorriam unicamente das funções que elas exerciam no processo global No lugar do conceito do Ser encontramos agora o conceito de Processo E já que é da natureza do Ser aparecer e assim se desvelar é da natureza do Processo permanecer invisível ser algo cuja existência pode apenas ser inferida da presença de certos fenômenos Esse processo foi originariamente o processo de fabricação que desaparece no produto e baseouse na experiência do homo faber que sabia que um processo de produção precede necessariamente a existência efetiva de todo objeto Contudo embora essa insistência no processo de produção e a insistência em considerar todas as coisas como resultado de um processo de fabricação sejam bastante características do homo faber e do seu âmbito de experiência a ênfase exclusiva que a era moderna colocou nele às custas de todo interesse nas coisas nos próprios produtos constitui algo inteiramente novo Na verdade transcende a mentalidade do homem como fazedor de instrumentos e fabricante para quem ao contrário o processo de produção era apenas um meio de atingir um fim No caso do ponto de vista do homo faber era como se o meio o processo de produção ou o desenvolvimento fosse mais importante que o fim o produto acabado O motivo para essa mudança de ênfase é óbvio o cientista criava apenas para conhecer não para produzir coisas e o produto era um mero subproduto um efeito colateral Ainda hoje todos os verdadeiros cientistas concordarão que a aplicabilidade técnica do que eles estão fazendo é um mero subproduto do seu empenho O inteiro significado dessa inversão entre meios e fins permaneceu latente enquanto predominou a visão mecanicista do mundo por excelência a visão de mundo do homo faber Essa visão encontrou sua teoria mais plausível na famosa analogia da relação entre a natureza e Deus com a relação entre o relógio e o relojoeiro O que interessa em nosso contexto não é tanto o fato de que a ideia de Deus no século XVIII era obviamente concebida à imagem do homo faber mas sim que nesse caso o caráter processual da natureza era ainda limitado Embora todas as coisas naturais particulares já houvessem sido engolfadas no processo pelo qual haviam passado a ex istir a natureza como um todo ainda não era um processo e sim o produto final mais ou menos estável de um fabricante divino A imagem do relógio e do relojoeiro é tão impressionantemente apropriada precisamente porque contém tanto a noção de um caráter processual da natureza na imagem dos movimentos do relógio quanto a noção do seu caráter de objeto ainda intacto na imagem do próprio relógio e de seu fabricante Neste ponto é importante lembrar que a suspeita especificamente moderna com relação à capacidade do homem de receber a verdade a desconfiança no dado e portanto a nova confiança na produção e na introspecção inspirada na esperança de que na consciência huma na haja um domínio no qual o conhecimento e a atividade de produzir coincidiriam não decorrem diretamente da descoberta do ponto arquimediano no universo fora da Terra Antes foram as consequências necessárias dessa descoberta para o próprio descobridor na medida em que ele era e continuava a ser uma criatura terrena Esse íntimo relacionamento entre a mentalidade moderna e a reflexão filosófica naturalmente implica que a vitória do homo faber não podia permanecer restrita ao emprego de novos métodos nas ciências naturais ao experimento e à matematização da pesquisa científica Uma das consequências mais plausíveis da dúvida cartesiana era o abandono da tentativa de compreender a natureza e de modo geral adquirir conhecimento acerca de coisas não produzidas pelo homem e ao invés disso o voltarse exclusivamente para as coisas que deviam a existência ao homem De fato foi esse tipo de argumento que fez com que Vico voltasse sua atenção da ciência natural para a história que para ele era a única esfera na qual o homem podia adquirir conhecimento seguro exatamente porque nela lidava apenas com os produtos da atividade humana62 A moderna descoberta da história e da consciência histórica deveu um dos seus maiores impulsos não a um novo entusiasmo pela grandeza do homem por seus feitos e sofrimentos nem à crença de que o significado da existência humana poderia ser encontrado na estória da humanidade mas ao desespero em relação à razão humana que só parecia adequada quando confrontada com objetos produzidos pelo homem Anteriores à moderna descoberta da história mas intimamente conectadas com esta última em seus impulsos foram as tentativas feitas no século XVII no sentido de formular novas filosofias políticas ou melhor de inventar meios e instrumentos com os quais produzir um animal artificial o Commonwealth ou Estado63 Para Hobbes como para Descartes o primeiro motor foi a dúvida 64 e o método escolhido para estabelecer a arte do homem que lhe permitiria produzir e governar seu próprio mundo como Deus produziu e governa o mundo pela arte da natureza é também a introspecção a arte de ler em si próprio pois essa leitura lhe mostrará a similitude entre os pensamentos e paixões de um homem e os pensamentos e paixões de outro Novamente aqui as regras e os critérios mediante os quais construir e julgar essa mais humana de todas as obras de arte65 humanas não se encontram fora do homem não são algo que os homens tenham em comum em uma realidade mundana percebida pelos sentidos ou pela mente São antes encerrados na interioridade do homem abertos somente à introspecção de sorte que sua própria validade baseiase na premissa de que não os objetos das paixões mas as próprias paixões são as mesmas em todos os espécimes do gênero humano Vemos aqui novamente a imagem do re lógio dessa vez aplicada ao corpo humano e em seguida empregada aos movimentos das paixões O estabelecimento do Commonwealth a criação humana de um homem artificial equivale à construção de um autômato uma máquina que se move por meio de molas e rodas como um relógio Em outras palavras o processo que como vimos invadira as ciências naturais por meio do experimento por meio da tentativa de imitar em condições artificiais o processo de produção mediante o qual uma coisa natural veio a existir serve também ou serve melhor como princípio para o agir doing no domínio dos assuntos humanos Pois aqui os processos da vida interior encontrados nas paixões mediante a introspecção podem tornarse critérios e regras para a criação da vida automática daquele homem artificial que é o grande Leviatã Os resultados obtidos na introspecção único método capaz de trazer conhecimento seguro têm lugar na natureza dos movimentos só os objetos dos sentidos permanecem como são e suportam precedem e sobrevivem ao ato da sensação só os objetos das paixões são permanentes e fixos na medida em que não são devorados pela realização de algum desejo apaixonado só os objetos do pensamento mas nunca a própria atividade de pensar encontramse além do movimento e da perecibilidade Os processos portanto e não as ideias os modelos e as formas das coisas a serem criadas tornamse na era moderna os guias das atividades de produzir e de fabricar que são as atividades do homo faber Foi da maior importância a tentativa de Hobbes de introduzir os novos conceitos das atividades de produzir e de calcular na filosofia política ou melhor sua tentativa de aplicar as recémdescobertas aptidões da atividade da produção ao domínio dos assuntos humanos o racionalismo moderno tal como conhecido atualmente armado do suposto antagonismo entre a razão e a paixão jamais encontrou representante mais claro e inflexível No entanto foi precisamente no domínio dos assuntos humanos que a nova filosofia se mostrou deficiente porque por sua própria natureza não podia compreender e nem mesmo acreditar na realidade A ideia de que só aquilo que vou produzir será real perfeitamente verdadeira e legítima no domínio da fabricação é sempre derrotada pelo curso efetivo dos eventos no qual nada acontece com mais frequência que o totalmente inesperado Agir nos moldes da atividade de produzir ou raciocinar nos moldes do cálculo de consequências significa ignorar o inesperado o próprio evento uma vez que seria não razoável ou irracional esperar o que não passa de improbabilidade infinita Mas como o evento constitui a própria textura da realidade no domínio dos assuntos humanos no qual o inteiramente improvável ocorre regularmente é altamente irrealista leválo em conta ou seja não levar em conta algo que ninguém pode calcular de maneira segura A filosofia política da era moderna cujo maior representante é ainda Hobbes soçobra na perplexidade de que o moderno racionalismo é irreal e o realismo moderno é irracional o que é apenas outra maneira de dizer que a realidade e a razão humana se divorciaram O giga ntesco empreendimento de Hegel de reconciliar o espírito com a realidade den Geist mit der Wirklichkeit zu versöhnen reconciliação que é a mais profunda preocupação de todas as modernas teorias da história baseouse na intuição de que a razão moderna soçobrava nos escolhos da realidade O fato de que a moderna alienação do mundo foi suficientemente radical para estenderse até a mais mundana das atividades humanas a obra e a reificação à produção de coisas e à construção do mundo distingue as atitudes e avaliações modernas ainda mais nitidamente daquelas da tradição do que indicaria uma mera inversão de posições entre a contemplação e a ação entre a atividade de pensar e a atividade de agir O rompimento com a contemplação foi consumado não com a promoção do homem fabricante à posição antes ocupada pelo homem contemplativo mas com a introdução do conceito de processo na atividade da produção Comparada a isso a nova e surpreendente ordem hierárquica dentro da vita activa na qual a fabricação passou a ocupar o lugar que antes cabia à ação política é de somenos importância Vimos anteriormente que essa hierarquia já fora de fato embora não expressamente anulada nos primórdios da filosofia política pela profunda suspeita dos filósofos em relação à política em geral e à ação em particular A questão tornase um tanto confusa porque a filosofia dos gregos segue ainda a ordem estabelecida pela pólis mesmo quando se volta contra ela Mas Platão e Aristóteles em seus escritos estritamente filosóficos aos quais naturalmente é preciso recorrer quando se deseja conhecer seus pensamentos mais recônditos tendem a inverter a relação entre obra e ação a favor da obra Assim em uma discussão dos diferentes tipos de cognição em sua Metafísica Aristóteles coloca a dianoia e a epistēmē praktikē a intuição prática e a ciência política em último lugar na hierarquia sobrepondolhes a ciência da fabricação a epistēmē poiētikē que precede imediatamente e leva à theōria ou a contemplação da verdade66 E o motivo d essa predileção na filosofia não é de modo algum a suspeita contra a ação inspirada pela política que antes mencionamos mas a outra suspeita filosoficamente muito mais compulsiva de que a contemplação e a fabricação theōria e poiēsis têm estreita afinidade e não se posicionam em uma oposição inequívoca tal como a que existe entre a contemplação e a ação O ponto crucial de similaridade pelo menos na filosofia grega era o fato de que a contemplação a observação de algo era vista como um elemento inerente também à fabricação n a medida em que a obra do artífice era guiada pela ideia pelo modelo que ele contemplava antes de iniciar o processo de fabricação e depois que este houver terminado primeiro para saber o que produzir e depois para julgar o produto final Historicamente a fonte dessa contemplação que vemos descrita pela primeira vez na escola socrática é pelo menos dupla Por um lado reside na conexão óbvia e consistente com a famosa assertiva de Platão citada por Aristóteles de que o thaumazein a chocante admiração ante o milagre do Ser é o começo de toda filosofia67 Pareceme altamente provável que essa afirmação platônica seja o resultado imediato de uma experiência talvez a mais surpreendente que Sócrates oferecia aos seus discípulos vêlo repetidamente ser dominado de súbito por seus pensamentos e lançado em um estado de absorção a ponto de permanecer completamente imóvel durante muitas horas E parece não menos plausível que essa chocante admiração tenha de ser essencialmente muda isto é que o seu verdadeiro conteúdo tenha de ser intraduzível em palavras Isso explicaria ao menos por que Platão e Aristóteles para os quais o thaumazein era o começo da filosofia concordavam também apesar de tantos e tão decisivos desacordos que algum estado de mudez o estado contemplativo essencialmente mudo fosse o fim da filosofia Na verdade theōria é apenas outra palavra para thaumazein a contemplação da verdade à qual o fi lósofo chega finalmente é a admiração muda filosoficamente purificada com a qual começou Há porém outro aspecto dessa questão que se mostra de modo mais articulado na doutrina das ideias de Platão tanto em seu conteúdo quanto em sua terminologia e em sua exemplificação Estas baseiamse nas experiências do artífice que vê diante de seu olho interno a forma do modelo segundo o qual fabrica o objeto Para Platão esse modelo que o artesanato pode apenas imitar mas não criar não é produto da mente humana mas algo que lhe é dado Como tal possui um grau de permanência e excelência que não é efetivado mas ao contrário deteriorado ao materializarse mediante a obra de mãos humanas A obra torna perecível e deteriora a excelência do que permanecia eterno enquanto era objeto da mera contemplação Portanto a atitude adequada em relação aos modelos que guiam a obra e a fabricação isto é em relação às ideias platônicas é deixálas como são e aparecem ao olho interno da mente Apenas se o homem renunciar à sua capacidade para realizar a obra e nada fizer pode contemplálas e assim participar de sua eternidade Nesse particular a contemplação é bem diferente do estado de embevecimento da admiração com a qual o homem responde ao milagre do Ser como um todo É e continua a ser parte integrante de um processo de fabricação embora se tenha divorciado de toda obra e de todo agir doing nela a contemplação do modelo que agora não mais orientará fazer algum é prolongada e desfrutada por ela mesma Na tradição da filosofia foi este segundo tipo de contemplação que passou a predominar Assim a imobilidade que no estado de admiração muda não é mais que resultado incidental e não intencional da absorção passa a ser a condição e consequentemente a característica proeminente da vita contemplativa Não é a admiração que domina o homem e o lança na imobilidade mas é mediante a cessação consciente da atividade da atividade da produção que o estado contemplativo é atingido Pelo que lemos de fontes medievais sobre as alegrias e deleites da contemplação parece que os filósofos queriam assegurar que o homo faber lhes ouvisse o apelo e arriasse os braços percebendo afinal que o seu maior desejo o desejo de permanência e imortalidade não pode ser satisfeito por seus feitos mas somente quando se compreende que o belo e o eterno não podem ser fabricados Na filosofia de Platão a admiração muda que é o começo e o fim da filosofia juntamente com o amor do filósofo pelo eterno e o desejo do artífice de permanência e imortalidade interpenetramse de tal modo que se tornam quase indiferenciáveis No entanto o próprio fato de que a admiração muda do filósofo parecia uma experiência reservada a poucos ao passo que a mirada contemplativa do artífice era conhecida por muitos contribuiu grandemente para favorecer uma contemplação derivada basicamente das experiências do homo faber E já tivera bastante influência sobre Platão que extraiu seus exemplos do domínio da produção porque eram mais próximos de uma experiência humana mais geral vindo a ter influência ainda maior quando algum tipo de contemplação e meditação foi exigido de todos como no cristianismo medieval Assim não foram basicamente o filósofo e a muda admiração filosófica que moldaram o conceito e a prática da contemplação e a vita contemplativa mas antes o homo faber dissimulado foi o homem produtor e fabricante cuja tarefa é violentar a natureza a fim de construir para si mesmo um lar permanente e que agora era persuadido a renunciar à violência bem como a toda e qualquer atividade a deixar as coisas como são e procurar seu lar na morada contemplativa vizinha do imperecível e do eterno O homo faber pôde ser persuadido a tal mudança de atitude porque conhecia a contemplação e alguns dos seus deleites em sua própria experiência ele não precisava realizar uma completa mudança de ânimo uma verdadeira periagōgē uma reviravolta radical Bastavamlhe arriar os braços e prolongar infinitamente o ato de vislumbrar o eidos a forma eterna e o modelo eterno que antes procurava imitar e cuja excelência e beleza sabia agora que só poderia arruinar com qualquer tentativa de reificação Portanto se a contestação moderna à prioridade da contemplação em relação a todo tipo de atividade não houvesse feito mais que virar de cabeça para baixo a ordem estabelecida entre as atividades de fazer e de observar teria permanecido ainda na estrutura tradicional Essa estrutura porém foi completamente violada quando na compreensão da própria fabricação a ênfase mudou inteiramente passando do produto e do modelo permanente e orientador para o processo de fabricação passando da questão sobre o que uma coisa é e que tipo de coisa deve ser produzida para a questão sobre como e mediante que meios e processos ela veio a existir e poderia ser reproduzida Porque isso implicava ao mesmo tempo que já não se acreditava que a contemplação pudess e obter a verdade e que havia perdido a sua posição na própria vita activa e consequentemente no âmbito da experiência humana c omum 43 A derrota do homo faber e o princípio de felicidade Se se considerarem somente os eventos que levaram à era moderna e se refletir exclusivamente sobre as consequências imediatas da descoberta de Galileu que devem ter atingido as grandes mentes do século XVII com a força coerciva da verdade autoevidente a inversão de posições entre a contemplação e a fabricação ou melhor a eliminação da contemplação do âmbito das atividades humanas significativas é algo quase natural Parece igualmente plausível que essa inversão tenha promovido o homo faber o produtor e fabricante em vez do homem como ator ou do homem como animal laborans à posição mais alta entre as possibilidades humanas E realmente entre as principais características da era moderna desde o seu início até o nosso tempo encontramos as atitudes típicas do homo faber a instrumentalização do mundo a confiança nas ferramentas e na produtividade do fazedor de objetos artificiais a confiança na oniabrangência da categoria meiosfim a convicção de que qualquer assunto pode ser resolvido e qualquer motivação humana reduzida ao princípio da utilidade a soberania que concebe todas as coisas dadas como material e toda a natureza como um imenso tecido do qual podemos cortar qualquer pedaço e tornar a coser como quisermos68 o equacionamento da inteligência com a engenhosidade ou seja o desprezo por qualquer pensamento que não possa ser considerado como primeiro passo para a fabricação de objetos artificiais principalmente de ferramentas para fabricar outras ferramentas e para variar sua fabricação indefinidamente69 e finalmente sua identificação natural da fabricação com a ação Seguir as ramificações dessa mentalidade nos levaria muito longe e não é necessário pois estas são facilmente identificadas nas ciências naturais nas quais o esforço puramente teórico é concebido como resultante do desejo de criar a ordem a partir da mera desordem da desenfreada variedade da natureza70 e nas quais portanto a predileção do homo faber por modelos de coisas a serem produzidas substitui as noções anteriores de harmonia e simplicidade Essa predileção pode ser encontrada na economia clássica cujo mais alto critério é a produtividade e cujo preconceito contra atividades improdutivas é tão forte que o próprio Marx só pôde justificar o seu apelo de justiça para os trabalhadores descrevendo erroneamente a atividade improdutiva do trabalho nos termos da obra e da fabricação E é mais evidente naturalmente nas tendências pragmáticas da filosofia moderna que se caracterizam não apenas pela alienação cartesiana do mundo mas também pela unanimidade com que a filosofia inglesa do século XVII em diante e a filosofia francesa do século XVIII adotaram o princípio da utilidade como a chave que abriria todas as portas à explicação da motivação e do comportamento humanos Falando de um modo geral a mais antiga convicção do homo faber de que o homem é a medida de todas as coisas foi promovida ao posto de um lugarcomum universalmente aceito O que exige explicação não é a moderna estima do homo faber mas o fato de que essa estima tenha sido tão rapidamente seguida da promoção da atividade do trabalho à mais alta posição na ordem hierárquica da vita activa Esta segunda inversão hierárquica dentro da vita activa ocorreu de modo mais gradual e menos dramático que a inversão de posições entre a contemplação e a ação em geral e que a inversão entre a ação e a fabricação em particular A promoção da atividade do trabalho foi precedida por certos desvios e variações da mentalidade tradicional do homo faber altamente característicos da era moderna e que realmente resultaram quase automaticamente da própria natureza dos eventos que deram origem à era moderna O que mudou a mentalidade do homo faber foi a posição central do conceito de processo da modernidade No que diz respeito ao homo faber a moderna mudança de ênfase do o que para o como da própria coisa para o processo de sua fabricação não foi de modo algum pura bênção Ela privou o homem como produtor e construtor daqueles padrões e medidas fixas e permanentes que até a era moderna sempre lhe haviam servido de guias em seu fazer e de critérios para seu julgamento Não foi somente e talvez nem mesmo basicamente o desenvolvimento da sociedade comercial que com a vitória triunfal do valor de troca sobre o valor de uso introduziu em primeiro lugar o princípio da intercambialidade depois a relativização e finalmente a desvalorização de todos os valores Para a mentalidade do homem moderno determinada pelo desenvolvimento da ciência moderna e pelo concomitante desabrochar da moderna filosofia era pelo menos igualmente decisivo que o homem passasse a se considerar parte integrante dos dois processos sobrehumanos e oniabrangentes da natureza e da história ambos aparentemente condenados a progredir infinitamente sem jamais alcançar qualquer telos inerente ou aproximarse de qualquer ideia predeterminada Em outras palavras o homo faber tal como emergiu da grande revolução da modernidade embora estivesse para adquirir uma engenhosidade jamais sonhada na invenção de instrumentos para medir o infinitamente grande e o infinitamente pequeno foi privado daquelas medidas permanentes que precedem e sobrevivem ao processo de fabricação e que constituem um absoluto confiável e autêntico em relação à atividade da fabricação Certamente nenhuma outra atividade da vita activa tinha tanto a perder com a eliminação da contemplação do âmbito das capacidades humanas significativas quanto a fabricação Pois ao contrário da ação que consiste em parte no desencadeamento de processos e ao contrário da atividade do trabalho que segue bastante de perto os processos metabólicos da vida biológica a fabricação experimenta os processos caso chegue de algum modo a percebêlos como simples meios para um fim isto é como algo secundário e derivado Além disso nenhuma outra capacidade tinha tanto a perder com a moderna alienação do mundo e a promoção da introspecção a um expediente onipotente para a conquista da natureza quanto aquelas faculdades voltadas basicamente para a construção de um mundo e a produção de coisas mundanas Talvez nada indique mais claramente o fracasso definitivo do homo faber em afirmarse do que a rapidez com que o princípio da utilidade a própria quintessência de sua concepção do mundo foi declarado insuficiente e substituído pelo princípio da maior felicidade do maior número71 Quando isso aconteceu tornouse evidente que a convicção da era moderna de que o homem só pode conhecer aquilo que ele mesmo faz aparentemente tão altamente propícia à plena vitória do homo faber seria invalidada e finalmente abolida pelo princípio ainda mais moderno do processo cujos conceitos e categorias são inteiramente alheios às necessidades e aos ideais do homo faber Pois o princípio da utilidade embora o seu ponto de referência seja claramente o homem que usa a matéria para produzir coisa ainda pressupõe um mundo de objetos de uso em torno do homem no qual o homem se movimenta Se essa relação entre o homem e o mundo deixa de ser segura se as coisas mundanas já não são basicamente consideradas em sua utilidade mas como resultados mais ou menos incidentais do processo de produção que lhes deu existência de sorte que o produto final do processo de produção já não é um fim verdadeiro e a coisa produzida é avaliada não em vista do seu uso predeterminado mas por sua produção de alguma outra coisa então se pode obviamente objetar que seu valor é apenas secundário e um mundo que não contém valores primários tampouco pode conter valores secundários72 Essa radical perda de valores dentro do limitado sistema de referência do homo faber ocorre quase automaticamente assim que ele se define não como o produtor de objetos e construtor do artifício humano que incidentalmente inventa ferramentas mas se considera primordialmente como fazedor de ferramentas e especialmente um produtor de ferramentas para fazer ferramentas que só incidental mente também produz coisas De qualquer modo caso se aplique nesse contexto o princípio da utilidade ele se refere basicamente não a objetos de uso e não ao uso mas ao processo de produção Agora tudo o que ajuda a estimular a produtividade e alivia a dor e o esforço tornase útil Em outras palavras o padrão último de medida não é de forma alguma a utilidade e o uso mas a felicidade isto é a quantidade de dor e de prazer experimentada na produção ou no consumo das coisas A invenção do cálculo da dor e do prazer por Bentham combinou a vantagem de introduzir aparentemente o método matemático nas ciências morais com o atrativo ainda maior de haver encontrado um princípio inteiramente baseado na introspecção A felicidade de Bentham a soma total dos prazeres menos as dores é tanto um sentido interior que sente sensações e permanece desconectado dos objetos do mundo quanto a consciência cartesiana consciente de sua própria atividade Além disso a premissa básica de Bentham de que o que todos os homens possuem em comum não é o mundo mas a uniformidade de sua própria natureza o que se manifesta na uniformidade dos cálculos e na uniformidade com que todos são afetados pela dor e pelo prazer deriva diretamente dos primeiros filósofos da era moderna Para essa filosofia o hedonismo seria uma denominação ainda mais imprópria que para o epicurismo da Antiguidade tardia com o qual o hedonismo moderno tem relação apenas superficial O princípio de todo hedonismo como vimos não é o prazer mas a subtração à dor e Hume que ao contrário de Bentham era ainda um filósofo sabia muito bem que quem quiser fazer do prazer o fim último de toda ação humana é levado a admitir que não o prazer mas a dor não o desejo mas o medo são os seus verdadeiros guias Se perguntares por que alguém deseja a saúde ele responderá prontamente porque a doença é d olorosa Se insistires em saber mais e pedires uma razão pela qual ele odeia a dor é impossível que ele possa apresentar alguma Isso é um fim último que nunca se reporta a qualquer outro objeto73 A razão dessa impossibilidade é que só a dor é inteiramente independente de qualquer objeto que só aquele que sente dor realmente não sente coisa alguma a não ser a si mesmo o prazer não se compraz consigo mesmo mas com algo além de si mesmo A dor é o único sentido interior encontrado pela introspecção que pode rivalizar em sua independência com relação a objetos experienciados com a certeza autoevidente do raciocínio lógico e aritmético Conquanto essa fundamentação última na experiência da dor se aplique tanto às antigas como às mais recentes variedades do hedonismo ela adquire na era moderna ênfase inteiramente diversa e muito maior Pois agora já não é de modo algum o mundo como na Antiguidade que faz com que o homem se refugie dentro de si mesmo para escapar à dor que o mundo lhe possa infligir caso em que tanto a dor como o prazer conservavam ainda muito do seu sentido mundano A antiga alienação do mundo em todas as suas variedades do estoicismo ao epicurismo e então do hedonismo ao cinismo foi inspirada por uma profunda desconfiança do mundo e mobilizada por um veemente impulso para retirarse do envolvimento mundano do infortúnio e da dor infligidos por ele para a segurança de um âmbito interno no qual o simesmo não é exposto a nada além de si próprio Ao contrário suas modernas contrapartidas o puritanismo o sensualismo e o hedonismo de Bentham foram inspiradas por uma desconfiança igualmente profunda do homem como tal foram mobilizadas pela dúvida sobre a adequação dos sentidos humanos para receber a realidade e sobre a adequação da razão humana para receber a ver dade e portanto pela convicção da deficiência ou mesmo depravação da natureza humana Em origem e conteúdo essa depravação não é cristã nem bíblica embora tenha sido naturalmente interpretada em termos de pecado original e é difícil dizer se ela é mais nociva e repugnante quando os puritanos denunciam a corrupção do homem ou quando benthamianos impudentemente aclamam como virtude aquilo que os homens sempre conheceram como vício Enquanto os antigos para convencerse de sua felicidade confiavam na imaginação e na memória a imaginação de dores das quais eles estavam livres ou a memória de prazeres passados em situações de dor profunda os modernos porém necessitavam do cálculo do prazer ou da contabilidade moral puritana de méritos e transgressões para chegar a alguma ilusória certeza matemática de felicidade ou de salvação É claro que essa aritmética moral é inteiramente alheia ao espírito que permeava as escolas filosóficas da Antiguidade tardia Além disso basta que se reflita sobre a rigidez da disciplina autoimposta e a nobreza de caráter que a acompanhava tão manifesta nos que haviam sido formados no estoicismo ou no epicurismo antigos para que se perceba o abismo a separar essas versões do hedonismo do puritanismo do sensualismo e do hedonismo modernos Para essa diferença é quase irrelevante se o caráter moderno é ainda formado pelo antigo farisaísmo tacanho e fanático ou se capitulou ante o egoísmo mais recente autocentrado e autoindulgente com a sua infinita variedade de misérias fúteis O que nos parece mais que duvidoso é que o princípio da maior felicidade teria alcançado seus triunfos intelectuais no mundo de língua inglesa se apenas estivesse em jogo a descoberta discutível de que a natureza colocou a humanidade sob o governo de dois senhores soberanos a dor e o prazer74 ou a ideia absurda de estabelecerse a moral como uma ciência exata isolandose na alma humana aquele sentimento que parece mais facilmente mensurável75 Ocultado por trás dessa e de outras variações menos interessantes da sacralidade do egoísmo e poder ubíquo do interesse próprio correntes a ponto de se tornarem lugarescomuns no século XVIII e no início do XIX encontramos outro ponto de referência que realmente constitui um princípio muito mais poderoso que nenhum cálculo dorprazer jamais poderia proporcionar o princípio da própria vida O que realmente se esperava que a dor e o prazer o medo e o desejo alcançassem em todos esses sistemas não era de forma alguma a felicidade mas a promoção da vida individual ou a garantia da sobrevivência da humanidade Se o moderno egoísmo fosse como pretende ser a implacável busca de prazer ao qual chama de felicidade não careceria daquilo que em todos os sistemas verdadeiramente hedonistas é um elemento indispensável à argumentação uma radical justificação do suicídio Essa carência é sufi ciente para indicar que na verdade estamos lidando com uma filosofia de vida em sua forma mais vulgar e menos crítica Em última análise a vida mesma é o critério supremo ao qual tudo mais se reporta e os interesses do indivíduo bem como os interesses da humanidade são sempre equacionados com a vida individual ou a vida da espécie como se fosse óbvio que a vida é o bem supremo O curioso fracasso do homo faber em afirmarse em condições aparentemente tão extraordinariamente propícias poderia também ser ilustrado por outra revisão filosoficamente ainda mais relevante das crenças tradicionais básicas A crítica radical de Hume do princípio da causalidade que preparou o caminho para a posterior adoção do princípio da evolução foi tida frequentemente como uma das origens da filosofia moderna O princípio da causalidade como o seu duplo axioma central de que tudo o que existe tem de ter uma causa nihil sine causa e de que a causa tem de ser mais perfeita que o seu efeito mais perfeito baseiase como é óbvio inteiramente em experiências no âmbito da fabricação na qual o produtor é superior aos seus produtos Visto nesse contexto o ponto crucial na história intelectual da era moderna ocorreu quando a imagem do desenvolvimento da vida orgânica na qual a evolução de um ser inf erior como o macaco por exemplo pode causar o surgimento de um ser superior como por exemplo o homem apareceu no lugar da imagem do relojoeiro que tem de ser superior a todos os relógios dos quais é a causa Essa mudança implica muito mais que a mera negação da rigidez sem vida de uma visão mecanicista do mundo É como se no conflito latente do século XVII entre os dois métodos que podem ser derivados da descoberta de Galileu o método do experimento e da produção de um lado e o método da introspecção de outro este último estivesse prestes a alcançar uma vitória um tanto tardia Porque o único objeto tangível produzido pela introspecção se é que esta deve produzir algo mais que uma autoconsciência inteiramente vazia é realmente o processo biológico E como essa vida biológica acessível na auto observação é ao mesmo tempo um processo metabólico entre o homem e a natureza é como se a introspecção já não precisasse perderse nos meandros d e uma consciência sem realidade uma vez que encontra dentro do homem não em sua mente mas em seus processos corporais suficiente matéria exterior para ligálo novamente a um mundo exterior A cisão entre sujeito e objeto inerente à consciência humana e irremediável na contraposição cartesiana do homem como res cogitans com um mundo circunvizinho da res extensae desaparece inteiramente no caso de um organismo vivo cuja própria sobrevivência depende da incorporação e do consumo de matéria exterior O naturalismo versão do materialismo no século XIX aparent emente encontrara na vida o modo de resolver os problemas da filosofia cartesiana e ao mesmo tempo transpor o abismo cada vez maior entre a filosofia e a ciência76 44 A vida como o bem supremo Por mais tentador que seja derivar por simples questão de consistência o moderno conceito de vida das perplexidades que a filosofia moderna se autoinfligiu seria um erro e uma grave injustiça para com a seriedade dos problemas da era moderna se os considerarmos meramente do ponto de vista do desenvolvimento das ideias A derrota do homo faber pode ser explicável em termos da transformação inicial da física em astrofísica das ciências naturais em uma ciência universal O que resta a explicar é por que essa derrota terminou com a vitória do animal laborans por que com a ascensão da vita activa foi precisamente a atividade do trabalho que veio a ser promovida à mais alta posição entre as capacidades do homem ou em outras palavras por que na diversidade da condição humana com suas várias capacidades humanas foi precisamente a vida que predominou sobre todas as outras considerações O motivo pelo qual a vida se afirmou como ponto último de referência na era moderna e permaneceu como bem supremo para a sociedade moderna foi que a moderna inversão de posições ocorreu dentro da textura de uma sociedade cristã cuja crença fundamental na sacralidade da vida sobrevivera à secularização e ao declínio geral da fé cristã que nem mesmo chegaram a abalála Em outras palavras a moderna inversão seguiu sem questionar a mais significativa inversão com a qual o cristianismo irrompera no mundo antigo uma inversão politicamente de alcance ainda maior e pelo menos historicamente mais duradoura que qualquer crença ou conteúdo dogmático específicos Pois a boanova cristã da imortalidade da vida humana individual invertera a antiga relação entre o homem e o mundo promovendo aquilo que era mais mortal a vida humana à posição de imortalidade ocupada até então pelo cosmo Historicamente é mais que provável que a vitória da fé cristã no mundo antigo tenha se devido em grande parte a essa inversão que trouxe esperança para aqueles que sabiam que o seu mundo estava condenado na verdade uma esperança além de toda esperança visto que a nova mensagem prometia uma imortalidade pela qual eles jamais haviam ousado esperar Essa inversão só podia ser desastrosa para a estima e a dignidade da política A atividade política que até então retirara sua maior inspiração da aspiração à imortalidade mundana baixou agora ao nível de uma atividade sujeita à necessidade destinada a remediar de um lado as consequências da pecaminosidade do homem e de outro a atender às carências e interesses legítimos da vida terrena Daí por diante qualquer aspiração à imortalidade só podia ser equacionada com a vanglória toda fama que o mundo pudesse outorgar ao homem era ilusória uma vez que o mundo era ainda mais perecível que o homem e uma luta pela imortalidade mundana era sem sentido visto que a própria vida era imortal Foi precisamente a vida individual que passou então a ocupar a posição antes ocupada pela vida do corpo político e as palavras de Paulo de que a morte é o prêmio do pecado uma vez que a vida se destina a durar para sempre ecoa as palavras de Cícero de que a morte é a recompensa dos pecados cometidos por comunidades políticas que haviam sido construídas para durar por toda a eternidade77 É como se os antigos cristãos pelo menos Paulo que afinal era cidadão romano houvessem conscientemente vazado o seu conceito de imortalidade no modelo romano substituindo a vida política do corpo político pela vida individual Tal como o corpo político possui uma imortalidade apenas potencial que pode ser confiscada em decorrência de transgressões políticas também a vida individual teve confiscada certa vez na queda de Adão a sua imortalidade garantida e agora por meio de Cristo adquiria uma vida nova potencialmente eterna que no entanto podia novamente ser perdida em uma segunda morte mediante o pecado individual Sem dúvida a ênfase cristã na sacralidade da vida faz parte da herança hebraica que já apresentava um notável contraste com as atitudes da Antiguidade o desprezo pagão pelos tormentos impostos pela vida ao homem no trabalho e no parto a figuração invejosa da vida fácil dos deuses o costume de enjeitar os filhos indesejados a convicção de que a vida sem saúde não vale a pena ser vivida de sorte que se considerava por exemplo que o médico desvirtuava a sua vocação ao prolongar a vida quando era impossível para ele restaurar a saúde78 e de que o suicídio é o gesto nobre de desvencilharse de uma vida que se tornou opressiva Contudo basta lembrar a forma como o Decálogo menciona o homicídio sem lhe atribuir gravidade especial em meio a um rol de outras transgressões as quais em nosso modo de pensar mal se podem comparar a esse crime supremo para que se compreenda que nem mesmo o código legal hebraico embora muito mais próximo do nosso que qualquer escala pagã de ofensas fazia da preservação da vida a pedra angular do sistema legal do povo judeu Essa posição intermediária do código legal hebraico situado entre a Antiguidade pagã e todos os sistemas legais cristãos e póscristãos talvez tenha sua explicação no credo hebraico cuja ênfase recai sobre a imortalidade potencial do povo em contraposição à imortalidade pagã do mundo e à imortalidade cristã da vida individual De qualquer forma essa imortalidade cristã atribu ída à pessoa que em sua unicidade começa a vida na Terra através do nascimento resultou não somente no mais óbvio aumento da alémmundanidade mas também em um enorme aumento da importância da vida na Terra O que importa é que o cristianismo com a exceção de especulações heréticas e gnósticas sempre insistiu em que a vida embora não tivesse mais um fim definitivo tinha ainda um começo definido A vida na Terra pode ser apenas o primeiro e mais miserável estágio da vida eterna ainda assim é a vida e sem essa vida que termina com a morte não pode haver vida eterna Talvez resida aí o motivo para o fato indubitável de que somente quando a imortalidade da vida individual passou a ser o credo central da humanidade ocidental isto é somente com o surgimento do cristianismo a vida na Terra passou também a ser o bem supremo do homem A ênfase cristã na sacralidade da vida tendeu a nivelar as antigas distinções e articulações no interior da vita activa tendeu a ver o trabalho a obra e a ação como igualmente sujeitos à necessidade da vida presente Ao mesmo tempo contribuiu para liberar um pouco a atividade do trabalho isto é tudo quanto é necessário para manter o próprio processo biológico do desprezo que a Antiguidade nutria por ela O antigo desprezo pelo escravo menosprezado porque servia apenas às necessidades da vida e se submetia ao domínio do amo por desejar permanecer vivo a qualquer preço não podia de modo algum sobreviver na era cristã Já não era possível menosprezar o escravo como Platão o fazia por não haver cometido suicídio ao invés de submeterse pois permanecer vivo em quaisquer circunstâncias passara a ser um dever sagrado e o suicídio era visto como pior que o homicídio O enterro cristão era negado não ao assassino mas àquele que havia posto fim à sua própria vida Contudo ao contrário do que certos intérpretes modernos pretenderam ler em fontes cristãs não há qualquer indicação da moderna glorificação da atividade do trabalho no Novo Testamento ou em escritores cristãos pré modernos Paulo que foi chamado o apóstolo do trabalho79 não era nada disso e as poucas passagens nas quais se fundamenta tal assertiva ou são dirigidas àqueles que por preguiça comiam o pão do próximo ou recomendam o trabalho como bom meio de evitar problemas isto é reforçam a prescrição geral de uma vida estritamente privada e o alerta contra atividades políticas80 Ainda mais relevante é o fato de que na filosofia cristã mais recente e particularmente em Tomás de Aquino o trabalho tornouse um dever para aqueles que não tinham outro meio de sobrevivência consistindo o dever em manterse vivo e não em trabalhar se fosse possível sustentarse com esmolas tanto melhor Quem ler essas fontes com isenção de modernos preconceitos pró trabalho ficará surpreso ao verificar inclusive quão pouco os Pais da Igreja se aproveitaram da oportunidade óbvia de justificar o trabalho como punição do pecado original Assim Tomás de Aquino não hesita em seguir Aristóteles e não a Bíblia nesse particular ao dizer que só a necessidade de sobrevivência pode compelir ao trabalho manual81 Para ele o trabalho é o modo pelo qual a natureza mantém viva a espécie humana e conclui daí que não é de modo algum necessário que todos os homens ganhem o pão com o suor do rosto antes isso é uma espécie de recurso último e desesperado de resolver o problema ou de cumprir o dever82 Nem mesmo o uso do trabalho como uma forma de evitar os perigos da ociosidade chega a ser descoberta cristã pois já constituía um lugarcomum na moralidade romana Finalmente em completo acordo com as antigas convicções sobre o caráter da atividade do trabalho está o frequente uso cristão da mortificação da carne na qual o trabalho principalmente nos monastérios desempenhava às vezes o mesmo papel de outros dolorosos exercícios e formas de autotortura83 A razão pela qual o cristianismo a despeito de sua insistência na sacralidade da vida e no dever de se permanecer vivo jamais desenvolveu uma filosofia positiva do trabalho reside na inquestionada prioridade atribuída à vita contemplativa sobre todos os tipos de atividade humana Vita contemplativa simpliciter melior est quam vita activa a vida dedicada à contemplação é simplesmente melhor que a vida dedicada à ação e quaisquer que fossem os méritos de uma vida ativa os de uma vida dedicada à contemplação eram mais efetivos e mais poderosos84 É verdade que dificilmente se encontraria tal convicção certamente devida à influência da filosofia grega nas pregações de Jesus de Nazaré contudo mesmo se a filosofia medieval tivesse se mantido mais próxima do espírito dos Evangelhos dificilmente teria encontrado neles algum motivo para glorificar o trabalho85 A única atividade que Jesus de Nazaré recomenda em suas pregações é a ação e a única capacidade que ele salienta é a capacidade de realizar milagres Seja como for a era moderna continuou a operar sob a premissa de que a vida e não o mundo é o bem supremo do homem em suas mais ousadas e radicais revisões e críticas dos conceitos e crenças tradicionais jamais sequer pensou em pôr em dúvida a fundamental inversão de posições que o cristianismo provocou no agonizante mundo antigo Não importa o quão articulados e conscientes foram os pensadores da modernidade em seus ataques contra a tradição a prioridade da vida sobre tudo o mais assumira para eles a condição de uma verdade autoevidente e como tal sobreviveu até nosso mundo atual que já começou a deixar para trás toda a era moderna e a substituir a sociedade de trabalhadores por uma sociedade de empregados Mas embora seja perfeitamente concebível que os desdobramentos que se seguiram à descoberta do ponto arquimediano teriam tomado um rumo completamente diferente se houvessem ocorrido 1700 anos antes quando o mundo e não a vida era ainda o bem supremo do homem não se segue de modo algum que continuemos a viver em um mundo cristão Pois o que importa hoje não é a imortalidade da vida mas o fato de que a vida é o bem supremo E embora esse pressuposto seja certamente de origem cristã para a fé cristã não passa de uma importante circunstância que a acompanha Ademais mesmo se deixarmos de lado os detalhes do dogma cristão e levarmos em conta somente o ânimo geral do cristianismo que consiste na importância da fé é óbvio que nada lhe poderia ser mais prejudicial a esse espírito que o espírito de desconfiança e suspeita da era moderna Sem dúvida em nenhum outro setor a dúvida cartesiana demonstrou mais desastrosa e irremediavelmente a sua eficácia que no âmbito da crença religiosa na qual foi introduzida por Pascal e Kierkegaard os dois maiores pensadores religiosos da modernidade Pois o que minou a fé cristã não foi o ateísmo do século XVIII nem o materialismo do XIX cujos argumentos são frequentemente vulgares e na maior parte das vezes facilmente refutáveis pela teologia tradicional mas antes o duvidoso interesse pela salvação em homens genuinamente religiosos a cujos olhos o conteúdo e a promessa tradicionais do cristianismo se haviam tornado a bsurdos Tal como não sabemos o que teria sucedido se o ponto arquimediano houvesse sido descoberto antes do surgimento do cristianismo não estamos em posição de determinar qual teria sido o destino do cristianismo se o grande despertar da Renascença não tivesse sido interrompido por esse evento Antes de Galileu todos os caminhos pareciam ainda abertos Se pensarmos em Leonardo da Vinci poderemos perfeitamente imaginar que em todo caso o desenvolvimento da humanidade teria sido inevitavelmente ultrapassado por uma revolução técnica É bem possível que isso levasse ao voo à realização de um dos mais antigos e persistentes sonhos do homem mas dificilmente teria levado ao universo é bem possível que realizasse a unificação da Terra mas dificilmente teria realizado a transformação da matéria em energia e a aventura no universo microscópico A única coisa de que podemos estar seguros é de que a coincidência da inversão de posições entre o fazer e o contemplar com a inversão precedente entre a vida e o mundo veio a ser o ponto de partida para todo o desenvolvimento moderno Foi só quando perdeu o seu ponto de referência na vita contemplativa que a vita activa pôde tornarse vida ativa no sentido pleno do termo e foi somente porque essa vida ativa se manteve ligada à vida como seu único ponto de referência que a vida como tal o trabalhoso metabolismo do homem com a natureza tornouse ativa e exibiu toda a sua fertilidade 45 A vitória do animal laborans Avitória do animal laborans jamais teria sido completa se o processo de secularização a moderna perda da fé como decorrência inevitável da dúvida cartesiana não houvesse despojado a vida individual de sua imortalidade ou pelo menos da certeza da imortalidade A vida individual voltou a ser mortal tã o mortal quanto o fora na Antiguidade e o mundo passou a ser ainda menos estável menos permanente e portanto menos confiável do que o fora durante a era cristã Ao perder a certeza de um mundo futuro o homem moderno foi arremessado para dentro de si mesmo e não para este mundo longe de crer que este mundo pudesse ser potencialmente imortal ele não estava sequer seguro de que fosse real E na medida em que teve de admitir que era real no otimismo acrítico e aparentemente despreocupado de uma ciência em contínuo progresso afastavase da Terra para um ponto muito mais distante do que qualquer alémmundanidade cristã jamais o havia levado Qualquer que seja o sentido atribuído à palavra secular no uso corrente historicamente ele não pode ser equacionado com mundanidade em todo caso o homem moderno não ganhou este mundo ao perder o outro e tampouco a rigor ganhou a vida foi empurrado de volta para ela arremessado na interioridade fechada da introspecção na qual o máximo que ele poderia experienciar seriam os processos vazios do cálculo da mente o jogo da mente consigo mesma Os únicos conteúdos que sobraram foram os apetites e os desejos os anseios sem sentido de seu corpo que ele confundia com a paixão e que considerava não razoáveis por julgar não poder arrazoar com eles isto é calculálos Agora a única coisa que podia ser potencialmente imortal tão imortal quanto fora o corpo político na Antiguidade ou a vida individual na Idade Média era a própria vida isto é o processo vital possivelmente eterno da espécie humana Vimos anteriormente que no surgimento da sociedade foi a vida da espécie que em última análise se afirmou Teoricamente o ponto de inflexão da insistência sobre a vida egoísta do indivíduo nos primeiros estágios da era moderna para a ênfase posterior na vida social e no homem socializado Marx ocorreu quando Marx transformou a noção mais grosseira da economia clássica de que todos os homens na medida em que agem de algum modo agem por razões de interesse próprio em forças de interesse que informam movimentam e dirigem as classes da sociedade e mediante seus conflitos dirigem a sociedade como um todo A humanidade socializada é aquele estado da sociedade no qual impera somente um interesse e o sujeito desse interesse são as classes ou o gênero humano mas não o homem nem os homens O importante é que agora mesmo o último vestígio de ação que havia no que os homens faziam a motivação implicada no interesse próprio desapareceu O que restava era uma força natural a força do próprio processo vital à qual todos os homens e todas as atividades humanas estavam igualmente sujeitos o próprio processo de pensar é um processo natural86 e cujo único objetivo se é que tinha algum objetivo era a sobrevivência da espécie animal humana Nenhuma das capacidades superiores do homem era agora necessária para conectar a vida individual à vida da espécie a vida individual tornarase parte do processo vital e o necessário era apenas trabalhar isto é garantir a continuidade da vida de cada um e de sua família Tudo o que não fosse necessário não exigido pelo metabolismo da vida com a natureza era supérfluo ou só podia ser justificado em termos de alguma peculiaridade da vida humana em oposição à vida animal de sorte que se considerou que Milton escrevera o seu Paraíso perdido pelos mesmos motivos e em decorrência de anseios semelhantes aos que compelem o bichodaseda a produzir seda Se compararmos o mundo moderno com o mundo do passado veremos que a perda da experiência humana acarretada por esse desdobramento é extraordinariamente marcante Não foi apenas e nem sequer basicamente a contemplação que se tornou uma experiência inteiramente destituída de signifi cado O próprio pensamento quando se tornou um cálculo de consequências passou a ser uma função do cérebro com o resultado de que se descobriu que os instrumentos eletrônicos exercem essa função muitíssimo melhor do que nós A ação logo passou a ser e ainda é concebida em termos de produzir e de fabricar exceto que o produzir dada a sua mundanidade e inerente indiferença à vida era agora visto como apenas uma outra forma de trabalho como uma função mais complicada mas não mais misteriosa do processo vital Entrementes demonstramos ser suficientemente engenhosos para descobrir meios de atenuar as labutas e penas da vida ao ponto de a eliminação do trabalho do âmbito das atividades humanas já não poder ser considerada utópica Pois mesmo agora trabalho é uma palavra muito elevada muito ambiciosa para o que estamos fazendo ou pensamos que estamos fazendo no mundo em que passamos a viver O último estágio da sociedade de trabalhadores o qual é a sociedade de empregados requer de seus membros um funcionamento puramente automático como se a vida individual realmente houvesse sido submersa no processo vital global da espécie e a única decisão ativa exigida do indivíduo fosse deixarse levar por assim dizer abandonar a sua individualidade as dores e as penas de viver ainda sentidas individualmente e aquiescer a um tipo funcional entorpecido e tranquilizado de comportamento O problema com as modernas teorias do comportamentalismo não é que estejam erradas mas sim que possam tornarse verdadeiras que realmente constituam a melhor conceituação possível de certas tendências óbvias da sociedade moderna É perfeitamente concebível que a era moderna que teve início com um surto tão promissor e tão sem precedentes de atividade humana venha a terminar na passividade mais mortal e estéril que a história jamais conheceu Mas há outros indícios mais graves do perigo de que o homem possa estar disposto e realmente esteja a ponto de converterse naquela espécie animal da qual desde Darwin ele imagina descender Se para concluir voltarmos uma vez mais à descoberta do ponto arquimediano e aplicálo como Kafa advertiu que não o fizéssemos ao próprio homem e ao que ele está fazendo neste planeta tornase imediatamente evidente que todas as suas atividades vistas de um ponto de observação suficientemente remoto no universo apareceriam não como atividades mas como processos de sorte que como disse recentemente um cientista a moderna motorização pareceria um processo de mutação biológica no qual os corpos humanos começam gradualmente a ser revestidos por uma carapaça de aço Para o observador situado no universo tal mutação não seria mais nem menos misteriosa que aquela que ocorre hoje diante de nossos olhos naque les pequenos organismos vivos que combatemos com antibióticos e que misteriosamente produzem novas variedades para resistir a nós Podese ver quão profundamente arraigado é esse uso do ponto arquimediano contra nós mesmos nas próprias metáforas que dominam atualmente o pensamento científico O motivo pelo qual os cientistas podem falar da vida do átomo no qual cada partícula tem aparentemente a liberdade de comportarse como quiser e onde as leis que governam esses movimentos são as mesmas leis estatísticas que segundo os cientistas sociais governam o comportamento humano e fazem a multidão comportarse como tem de se comportar por mais livre em suas opções que pareça cada partícula individual o motivo em outras palavras pelo qual o comportamento da partícula infinitamente pequena é não apenas semelhante em sua forma ao sistema planetário tal como aparece a nós mas se assemelha às formas de vida e de comportamento na sociedade humana é naturalmente que observamos essa sociedade e vivemos nela como se estivéssemos tão longe de nossa própria existência humana como estamos do infinitamente pequeno e do imensamente grande os quais mesmo que pudessem ser percebidos pelos instrumentos mais refinados estão demasiado afastados de nós para fazer parte de nossa experiência Não é preciso dizer que isso não significa que o homem moderno tenha perdido suas capacidades ou esteja a ponto de perdêlas Digam o que disserem a sociologia a psicologia e a antropologia acerca do animal social os homens persistem em produzir fabricar e construir embora essas faculdades se limitem cada vez mais aos talentos do artista de sorte que as concomitantes experiências de mundanidade escapam cada vez mais ao alcance da experiência humana comum87 Analogamente retemos ainda a capacidade de agir pelo menos no sentido de desencadear processos embora essa capacidade tenha se tornado prerrogativa exclusiva dos cientistas que ampliaram o domínio dos assuntos humanos ao ponto de extinguirem a consagrada linha divisória e protetora entre a natureza e o mundo humano Em vista de tais façanhas realizadas durante séculos na invisível quietude dos laboratórios parece bastante adequado que os feitos desses cientistas tenham afinal adquirido maior valor como notícia e sejam de maior significação política que as realizações administrativas e diplomáticas da maioria dos chamados estadistas É certamente irônico o fato de que aqueles a quem a opinião persistentemente considerou como os menos práticos e menos políticos me mbros da sociedade tenham se demonstrado os únicos a ainda saber como agir e como agir em concerto Pois suas primeiras organizações fundadas por eles no século XVII para conquistar a natureza e nas quais desenvolveram seus próprios padrões morais e seu próprio código de honra não apenas sobreviveram a todas as vicissitudes da era moderna mas tornaramse um dos mais potentes grupos geradores de poder em toda a história Mas a ação dos cientistas uma vez que eles agem na natureza do ponto de vista do universo e não na teia de relações humanas carece do caráter revelador da ação e da capacidade de produzir estórias e tornarse histórica caráter e capacidade que constituem juntos a própria fonte da qual brota a significância que ilumina a existência humana Sob esse aspecto existencialmente mais importante também a ação passou a ser uma experiência limitada a um pequeno grupo de privilegiados e esses poucos que ainda sabem o que signifi ca agir talvez sejam ainda menos numerosos que os artistas e sua experiência ainda mais rara que a experiência genuína do mundo e do amor ao mundo Finalmente a atividade de pensar que seguindo tanto a tradição prémoderna quanto a moderna omitimos de nossa reconsideração da vita activa ainda é possível e sem dúvida está presente onde quer que os homens vivam em condições de liberdade política Infelizmente e ao contrário do que correntemente se supõe sobre a proverbial independência dos pensadores em sua torre de marfim nenhuma outra capacidade humana é tão vulnerável e é realmente muito mais fácil agir do que pensar em condições de tirania Como experiência vívida sempre se supôs talvez erradamente que a atividade de pensar era conhecida apenas por uns poucos Talvez não seja presunçoso acreditar que esses poucos não são menos numerosos em nosso tempo Isso pode ser irrelevante ou possuir uma relevância limitada para o futuro do mundo mas não é irrelevante para o futuro do homem Pois se as várias atividades no interior da vita activa não podem ser submetidas a nenhum outro teste senão o da experiência de se estar ativo a nenhuma outra medida senão a do alcance da pura atividade a atividade de pensar como tal bem que poderia superar a todas elas Quem quer que tenha alguma experiência nessa matéria saberá quão correto estava Catão quando disse Numquam se plus agere quam nihil cum ageret numquam minus solum esse quam cum solus esset Nunca se está mais ativo que quando nada se faz nunca se está menos só que quando se está consigo mesmo 1 Ao que parece a expressão scienza nuova ocorre pela primeira vez na obra de Niccolò Tartaglia matemático italiano do século XVI que criou a nova ciência da balística que ele defende ter descoberto porque foi o primeiro a aplicar o raciocínio geométrico ao movimento dos projéteis Devo essa informação ao professor Alexandre Koyré Mais importante para o nosso contexto é o fato de que Galileu em Sidereus Nuncius 1610 insiste na absoluta novidade de suas descobertas atitude que no entanto fica ainda muito aquém da alegação de Hobbes a filosofia política tem a mesma idade que o meu livro De Cive English works Ed Molesworth 1839 I ix ou da convicção de Descartes de que nenhum filósofo antes dele lograra êxito na filosofia Lettre au traducteur pouvant servir de préface in Les principes de la philosophie Do século XVII em diante a insistência na novidade absoluta e a rejeição de toda a tradição tornaramse lugarcomum Karl Jaspers Descartes und die Philosophie 2 ed 1948 p 61 ss ressalta a diferença entre a filosofia da Renascença na qual Drang nach Geltung der originalen Persönlichkeit das Neusein als Auszeichnung verlangte e a ciência moderna na qual sich das Wort neu als sachliches Wertpraedikat verbreitet No mesmo contexto ele mostra como difere em significação a pretensão de novidade na ciência e na filosofia Sem dúvida Descartes apresentou sua filosofia como um cientista pode apresentar uma nova descoberta científica Assim é que ele escreve a respeito de suas considérations Je ne mérite point plus de gloire de les avoir trouvées que ferait un passant davoir rencontré par bonheur à ses pieds quelque riche trésor que la diligence de plusieurs aurait inutilement cherché longtemps auparavant La recherche de la vérité Ed Pléiade p 669 2 Não quero com isso negar a grandeza da descoberta feita por Max Weber da enorme força que resulta de uma além mundanidade dirigida para o mundo cf Protestant ethics and the spirit of capitalism in Religionssoziologie 1920 v I Na opinião de Weber o ethos do trabalho dos protestantes foi precedido por certos aspectos da ética monástica e realmente podese ver um primeiro germe de tais atitudes na famosa distinção que Agostinho fazia entre uti e frui entre as coisas deste mundo que podemos usar mas não podemos fruir e as coisas do outro mundo que podem ser desfrutadas por elas mesmas O aumento do poder do homem sobre as coisas deste mundo resulta em ambos os casos da distância que ele colocar entre ele mesmo e o mundo ou seja da alienação do mundo 3 A razão mais frequentemente apresentada para a surpreendente recuperação da Alemanha no pósguerra que ela não tinha de arcar com um orçamento militar é inconclusiva por duas razões em primeiro lugar a Alemanha teve de pagar durante anos os custos da ocupação que totalizavam uma quantia quase igual ao orçamento militar completo em segundo lugar considerase em outras economias que a produção bélica é o maior fator isolado de prosperidade no pósguerra Além do mais o que desejo demonstrar poderia ser igualmente bem ilustrado pelo fenômeno comum e excêntrico de que a prosperidade está intimamente conectada com a produção inútil dos meios de destruição de bens produzidos para serem desperdiçados seja porque são utilizados para a destruição e esse é o caso mais comum seja porque são destruídos assim que se tornam obsoletos 4 Na obra do jovem Marx há vários indícios de que ele não ignorava completamente as implicações da alienação do mundo na economia capitalista Assim em um artigo de 1842 Debatten über das Holzdiebstahlsgesetz cf MarxEngels Gesamtausgabe Berlim 1932 parte I v I p 266 ss ele critica uma lei contra o roubo não só porque a oposição formal entre proprietário e ladrão não leva em conta as necessidades humanas o fato de que o ladrão que usa a lenha precisa dela com mais urgência que o dono que a vende e portanto desumaniza os homens equacionando o usuário e o vendedor da lenha como donos da lenha mas também porque a própria natureza da lenha é eliminada Uma lei que considera os homens somente como donos de propriedade considera as coisas somente como propriedades e as propriedades somente como objetos de troca e não como objetos de uso Foi provavelmente Aristóteles quem sugeriu a Marx que as coisas são desnaturadas quando usadas para fins de troca e quem observou que embora uma pessoa possa querer um sapato para usálo ou trocálo é contra a natureza do sapato ser trocado pois um sapato não é feito para ser objeto de troca Política 1257a8 Cabe notar incidentalmente que a influência de Aristóteles no estilo do pensamento de Marx pareceme quase tão característica e decisiva quanto a influência da filosofia de Hegel Contudo essas considerações ocasionais têm um papel secundário em sua obra que permaneceu firmemente arraigada no extremo subjetivismo da era moderna Em sua sociedade ideal na qual os homens produziriam como seres humanos a alienação do mundo é ainda mais presente do que antes pois em tal sociedade eles seriam capazes de objetivar vergegenständlichen sua individualidade sua peculiaridade para confirmar e efetivar seu verdadeiro ser Unsere Produktionen wären ebensolviele Spiegel woraus unser Wesen sich entgegen leuchtete Aus den Exzerptheften 18441845 em Gesamtausgabe parte I v III p 54647 5 É obvio que essas condições são bem diferentes das atuais hoje o trabalhador diarista já se tornou um assalariado semanal e em um futuro provavelmente não muito remoto um salário anual garantido provavelmente eliminará completamente tais condições iniciais 6 A N Whitehead Science and the modern world Ed Pelican 1926 p 12 7 Sigo aqui a excelente exposição recente da história correlata do pensamento filosófico e científico na revolução do século XVII de Alexandre Koyré From the closed world to the infinite universe 1957 p 43 ss Do mundo fechado ao universo infinito 4 ed Rio de Janeiro Forense Universitária 2006 8 Cf PM Schuhl Machinisme et philosophie 1947 p 2829 9 E A Burtt Metaphysical foundations of modern science Ed Anchor p 38 cf Koyré From the closed world to the infinite universe p 55 que afirma que a influência de Bruno só se fez sentir após as grandes descobertas telescópicas de Galileu 10 O primeiro a salvar os fenômenos pressupondo que o céu está em repouso mas a Terra gira em uma órbita oblíqua ao mesmo tempo em que tem um movimento de rotação em torno do próprio eixo foi Aristarco de Samos no século III aC e o primeiro a conceber uma estrutura atômica da matéria foi Demócrito de Abdera no século V aC Em S Sambursky The Physical World of the Greeks 1956 encontrase um relato muito instrutivo do mundo físico dos gregos do ponto de vista da ciência moderna 11 O próprio Galileu Sider eus Nuncius 1610 ressaltou este ponto Qualquer pessoa pode saber com a certeza da percepção sensorial que a Lua não é de modo algum dotada de superfície lisa e plana etc citado por Koyré From the closed world to the infinite universe p 89 12 Posição semelhante foi a do teólogo luterano Osiander de Nuremberg que escreveu em uma introdução à obra póstuma de Copérnico Das revoluções dos corpos celestes 1546 o seguinte As hipóteses contidas neste livro não são necessariamente verdadeiras nem mesmo prováveis Só uma coisa importa Elas têm de levar mediante o cálculo a resultados que estejam de acordo com os fenômenos observados Ambas as citações são feitas por Philipp Frank Philosophical uses of science Bulletin of atomic scientists v XIII n 4 abril de 1957 13 Burtt Metaphysical foundations of modern science p 58 14 Bertrand Russell A free mans worship in Mysticism and Logic 1918 p 46 15 Segundo cita J W N Sullivan Limitations of science Ed Mentor p 141 16 O físico alemão Werner Heisenberg expressou esse pensamento em diversas publicações recentes Por exemplo Wenn man versucht von der Situation in der modernen Naturwissenschaft ausgehend sich zu den in Bewegung geratenen Fundamenten vorzutasten so hat man den Eindruck dass zum erstenmal im Laufe der Geschichte der Mensch auf dieser Erde nur noch sich selbst gegenübersteht dass wir gewissermassen immer nur uns selbst begegnen Das Naturbild der heutigen Physik 1955 p 1718 O argumento de Heisenberg é o de que o objeto observado não tem existência independente da do sujeito que observa Durch die Art der Beobachtung wird entschieden welche Züge der Natur bestimmt werden und welche wir durch unsere Beobachtungen verwischen Wandlugen in den Grundlagen der Naturwissenschaft 1949 p 67 17 Whitehead Science and the modern world p 120 18 Um dos primeiros ensaios de Ernst Cassirer Einsteins theory of relativity Dover Publications 1953 ressalta enfaticamente essa continuidade entre a ciência do século XVII e a do século XX 19 J Bronowski em um artigo intitulado Science and human values ressalta o papel da metáfora no pensamento de importantes cientistas cf Nation 29 de dezembro de 1956 20 Burtt Metaphysical foundations of modern science p 44 21 Ibid p 106 22 Bertrand Russell citado por J W N Sullivan Limitations of science p 144 Conferir também a distinção feita por Whitehead entre o tradicional método científico de classificação e a moderna abordagem da mensuração o primeiro acompanha as realidades objetivas cujo princípio se encontra na alteridade da natureza o segundo é inteiramente subjetivo independente de qualidades e exige apenas que seja dada uma m ultiplicidade de objetos 23 Leibniz Discours de métaphysique n 6 24 Sigo aqui a apresentação feita por Werner Heisenberg Elementarteile der Materie in Vom Atom zum Weltsystem 1954 25 Bronowski Science and human values 26 A fundação e a história inicial da Royal Society são bastante sugestivas Quando ela foi fundada seus membros se comprometiam a não participar de questões alheias ao escopo que lhe fora prescrito pelo rei e principalmente não se envolver em disputas políticas ou religiosas Somos tentados a concluir que foi então que nasce u o moderno ideal científico de objetividade o que sugeriria que sua origem é política e não científica Além disso é digna de nota a circunstância de que os cientistas tenham desde o início julgado necessário se organizar em uma sociedade e o fato de que a obra realizada no âmbito da Royal Society veio a ser vastamente mais importante que a obra feita fora dela demonstrou o quanto estavam certos Uma sociedade seja de políticos seja de cientistas que abjuraram a política é sempre uma instituição política sempre que os homens se orga nizam pretendem agir e adquirir poder Nenhuma obra científica em equipe é ciência pura quer seu objetivo seja atuar sobre a sociedade e garantir aos seus membros uma posição segura dentro dela ou como foi e ainda é em grande parte o caso da pesquisa organizada nas ciências naturais agir em conjunto e em concerto visando a conquistar a natureza Realmente como observou Whitehead certa vez não foi por acaso que uma era científica transformouse em uma era de organização O pensamento organizado é a base da ação organizada E somos tentados a acrescentar não porque o pensamento seja a base da ação mas antes porque a ciência moderna como organização do pensamento introduziu um elemento de ação na ati vidade de pensar Cf The aims of education Ed Mentor p 106107 27 Karl Jaspers em sua magistral interpretação da filosofia cartesiana insiste na estranha inépcia das ideias científicas de Descartes sua fal ta de compreensão do espírito da ciência moderna e de sua tendência de aceitar teorias acriticamente e sem provas tangíveis o que já havia surpreendido Spinoza Descartes und die Philosophie esp p 50 ss e 93 ss 28 Cf Newton Mathematical principles of nautral philosophy trad Motte 1803 II 314 29 Entre as primeiras publicações de Kant havia uma Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels 30 Conferir a carta de Descartes a Mersenne de novembro de 1633 31 Nestas palavras Galileu expressa sua admiração por Copérnico e Aristarco cuja razão era capaz de violentar de tal forma os seus sentidos e a despeito disso tornarse a concubina de sua credulidade Dialogues concerning the two systems of the world trad Salusbury 1661 p 301 31a Demócrito após haver afirmado que na realidade não existe branco nem preto nem amargo nem doce acrescentou Pobre mente retiras teus argumentos nos sentidos e depois queres derrotálos Tua vitória será tua derrota Diels Fragmente der Vorsokratiker 4 ed 1922 frag B125 32 Cf Johannes Climacus oder De omnibus dubitandum est um dos primeiros manuscritos de Kierkegaard e talvez ainda a mais profunda interpretação da dúvida cartesiana Narra sob a forma de uma autobiografia espiritual como aprendeu sobre Descartes a partir de Hegel e como lamentou então não ter começado seus estudos filosóficos com as obras cartesianas Esse pequeno tratado na edição dinamarquesa das Collected Works Copenhague 1909 v IV está disponível em uma tradução para o alemão Darmstadt 1948 33 Pascal reconhecia claramente a íntima relação entre a confiança nos sentidos e a confiança na razão existente no tradicional conceito de verdade Segundo ele Ces deux principes de vérité la raison et les sens outre quils manquent chacun de sincérité sabusent réciproquement lun et lautre Les sens abusent la raison par de fausses apparences et cette même piperie quils apportent à la raison ils la reçoivent delle à leur tour elle sen revanche Les passions de lâme troublent les sens et leur font des impressions fausses Ils mentent et se trompent à lenvi Pensées Ed Pléiade 1950 n 92 p 489 A famosa aposta de Pascal de que certamente arriscaria menos acreditando no que o cristianismo tinha a ensinar acerca do além do que desacreditando demonstra suficientemente o interrelacionamento existente entre a verdade sensorial e racional e a verdade da revelação divina Para Pascal como para Descartes Deus é un Dieu caché ibid n 366 p 923 que não se revela mas cuja existência e até bondade são as únicas garantias hipotéticas de que a vida humana não é um sonho o pesadelo cartesiano repetese em Pascal ibid n 380 p 928 e de que o conhecimento humano não é uma fraude divina 34 Max Weber que a despeito de certos erros no detalhe a esta altura já corrigidos é ainda o único historiador que levantou a questão da era moderna com a profundidade e a relevância correspondentes à sua importância percebeu também que não fora uma simples perda de fé a causa da inversão na valoração da obra e do trabalho mas sim a perda da certitudo salutis a certeza da salvação Em nosso contexto poderia parecer que esta foi apenas uma dentre as muitas certezas que se perderam com o advento da era moderna 35 É certamente bastante surpreendente que nenhuma das principais religiões com a exceção do zoroastrismo jamais tenha incluído o ato de mentir como tal entre os pecados mortais Não só não existe nenhum mandamento que diga não mentirás pois o outro não prestarás falso testemunho contra o teu próximo tem evidentemente outra natureza como também parece que antes da moralidade puritana ninguém jamais considerou as mentiras como ofensas sérias 36 Esse é o ponto principal do artigo de Bronowski citado retro 37 De uma carta de Descartes a Henry More citado por Koyré From the closed world to the infinite universe p 117 38 No diálogo La recherche de la vérité par la lumière naturelle no qual Descartes expõe suas intuições fundamentais sem formalidade técnica a posição central da dúvida é ainda mais evidente que em suas outras obras Assim Eudoxe que representa Descartes explica Vous pouvez douter avec raison de toutes les choses dont la connaissance ne vous vient que par loffice des sens mais pouvezvouz douter de votre doute et rester incertain si vous doutez ou non vous qui doutez vous êtes et cela est si vrai que vous nen pouvez douter davantage Ed Pléiade p 680 39 Je doute donc je suis ou bien ce qui est la même chose je pense donc je suis ibid p 687 Na verdade o pensamento em Descartes tem um mero caráter derivativo Car sil est vrai que je doute comme je nen puis douter il est également vrai que je pense en effet douter estil autre chose que penser dune certaine manière ibid p 686 A ideia principal dessa filosofia não é de modo algum que eu não seria capaz de pensar sem existir mas sim que nous ne saurions douter sans être et que cela est la première connaissance certaine quon peut acquérir Principes Ed Pléiade parte I seção 7 O próprio argumento certamente não é novo Pode ser encontrado por exemplo quase palavra por palavra em Agostinho De libero arbitrio cap 3 mas sem a implicação de que esta é a única certeza contra a possibilidade de um Dieu trompeur e de modo geral sem constituir o real fundamento de um sistema filosófico 40 O fato de que cogito ergo sum contém um erro de lógica que como observou Nietzsche se deveria dizer cogito ergo cogitationes sunt e que portanto o discernimento mental expresso no cogito não prova que eu existo mas somente que a consciência existe é outra questão sem interesse para o nosso contexto cf Nietzsche Wille zur Macht n 484 41 Essa qualidade de Deus como um deux ex machina como a única solução possível para a dúvida universal é especialmente evidente nas Méditations de Descartes Diz ele na terceira meditação a fim de eliminar a causa da dúvida je dois examiner sil y a un Dieu et si je trouve quil y en ait un je dois aussi examiner sil peut être trompeur car sans la connaissance de ces deux vérités je ne voix pas que je puisse jamais être certain daucune chose E conclui ao fim da quinta meditação Ainsi je reconnais très clairement que la certitude et la vérité de toute science dépend de la seule connaissance du vrai Dieu en sorte quavant que je le connusse je ne pouvais savoir parfaitement aucune autre chose Ed Pléiade p 177 208 42 A N Whitehead The concept of nature Ed Ann Arbor p 32 43 Ibid p 43 O primeiro a comentar e criticar a ausência do senso comum em Descartes foi Vico cf De nostri temporis studiorum ratione cap 3 44 Essa transformação do senso comum em um senso interior é característica de toda a era moderna na língua alemã a diferença entre Gemeinsinn palavra mais antiga e a expressão mais recente gesunder Menschenverstand que a substituiu indica essa mudança 45 Essa transferência do ponto arquimediano para dentro do próprio homem foi uma operação que Descartes realizou conscientemente Car à partir de ce doute universel comme à partir dun point fixe et immobile je me suis proposé de faire dériver la connaissance de Dieu de vousmêmes et de toutes les choses qui existent dans le monde Recherche de la vérité p 680 46 Frank Philosophical uses of science define a ciência por sua tarefa de produzir os fenômenos observáreis desejados 47 A esperança de Ernst Cassirer de que a dúvida é dominada ao ser excedida e de que a teoria da relatividade libertaria a mente humana de seu último resíduo terreno ou seja do antropomorfismo inerente ao modo como fazemos medições empíricas do espaço e do tempo Einsteins theory of relativity p 389 382 não se realizou pelo contrário a dúvida vem aumentando nas últimas décadas não quanto à validade dos enunciados científicos mas quanto à inteligibilidade dos dados científicos 48 Ibid p 443 49 Hermann Minkowski Raum und Zeit in Lorenz Einstein e Minkowski Das Relativitätsprinzip 1913 citado por Cassirer Einsteins theory of relativity p 419 50 E essa dúvida não é atenuada se for acrescentada uma outra coincidência a coincidência entre lógica e realidade No que concerne à lógica parece de fato evidente que se os elétrons tivessem de elucidar as qualidades sensoriais da matéria não poderiam propriamente possuir essas qualidades sensoriais uma vez que nesse caso a questão sobre a causa dessas qualidades teria sido apenas afastada mais um passo mas não resolvida Heisenberg Wandlungen in den Grundlagen der Naturwissenschaft p 66 Nossa suspeita é provocada pelo fato de que somente quando os cientistas no decorrer do tempo se deram conta dessa necessidade lógica vieram a descobrir que a matéria não possuía qualidade alguma e portanto já não podia ser chamada de matéria 51 Nas palavras de Erwin Schrödinger À medida que os olhos de nossa mente penetram distâncias cada vez menores e tempos cada vez mais curtos vemos a natureza comportarse de modo tão inteiramente diverso daquilo que observamos em corpos visíveis e palpáveis de nosso ambiente que nenhum modelo concebido à base de nossas experiências em larga escala pode jamais ser verdadeiro Science and humanism 1952 p 25 52 Heisenberg Wandlungen in den Grundlagen p 64 53 O melhor exemplo disso é uma afirmação de Planck citado em um esclarecedor artigo de Simone Weil publicado com o pseudônimo de Emil Novis sob o título Réflexions à propos de la théorie des quanta in Cahiers du Sud dezembro de 1942 que na tradução francesa diz o seguinte Le créateur dune hypothèse dispose de possibilités pratiquement ilimitées il est aussi peu lié par le fonctionnement des organes de ses sens quil ne lest par celui des instruments dont il se sert On peut même dire quil se crée une géométrie à sa fantasie Cest pourquoi aussi jamais des mesures ne pourront confirmer ni infirmer directement une hypothèse elles pourront seulement en faire ressortir la convenance plus ou moins grande Adiante Simone Weil assinala minuciosamente como algo infiniment plus précieux que a ciência está comprometida nessa crise a noção de verdade Passalhe despercebido porém o fato de que a maior perplexidade desse estado de coisas decorre do fato inegável de que essas hipóteses funcionam work Devo a uma exaluna minha Srta Beverly Woodward a referência a esse artigo pouco divulgado 54 Schrödinger Science and humanism p 26 55 Science and the modern world p 116 56 Na Carta sétima 341C rhēton gar oudamōs estin hōs alla mathēmata pois jamais pode ser expresso em palavras como as outras coisas que aprendemos 57 Conferir especialmente Ética Nicomaquéia 1142a25 ss e 1143a36 ss A tradução inglesa corrente distorce o significado porque traduz logos como razão ou argumento 58 É particularmente o emprego por Platão das palavras eidōlon e skia na alegoria da Caverna que faz com que a narrativa seja lida como uma inversão de Homero e uma réplica a este pois estas são as palavraschave da descrição que Homero faz do Hades na Odisséia 59 Whitehead Science and the modern world p 116117 60 Gebet mir Materie ich will eine Welt daraus bauen das ist gebet mir Materie ich will euch zeigen wie eine Welt daraus entstehen soll conferir o prefácio de Kant à sua Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels 61 Entre os axiomas da moderna ciência natural em todos os seus ramos estão os seguintes a natureza é um processo e portanto o fato último para a percepção sensorial é o evento a ciência natural lida somente com ocorrências acontecimentos ou eventos mas não com coisas fora dos acontecimentos nada existe cf Whitehead The concept of nature p 53 15 66 62 Vico De nostri temporis studiorum ratione cap 4 diz explicitamente por que abandonou a ciência natural O verdadeiro conhecimento da natureza é impossível uma vez que esta foi criada por Deus e não pelo homem Deus pode conhecer a natureza com a mesma certeza com que o homem conhece a geometria Geometrica demonstramus quia facimus si physica demonstrare possemus faceremus Podemos demonstrar a geometria porque a fazemos para demonstrar a física teríamos de fazêla Esse pequeno tratado escrito mais de 15 anos antes da primeira edição da Scienza Nuova 1725 é interessante sob vário s aspectos Vico critica todas as ciências existentes mas ainda não em benefício de sua nova ciência da história o que ele recomenda é o estudo da ciência moral e política que julgava ser indevidamente negligenciada A ideia de que a história é feita pelo homem tal como a natureza é feita por Deus deve terlhe ocorrido muito mais tarde Esse desdobramento biográfico embora bastante extraordinário no início do século XVIII tornouse a regra 100 anos depois sempre que a era moderna tinha razão de esperar por uma nova filosofia política recebia ao invés uma filosofia da história 63 Introdução de Hobbes a seu Leviatã 64 Conferir a excelente introdução de Michael Oakeshott ao Leviatã Blackwells Political Texts p xiv 65 Ibid p lxiv 66 Metafísica 1025b25 ff 1064a17 ff 67 Quanto a Platão conferir Teeteto 155 Mala gar philosophou touto to pathos to thaumazein ou gar allē archē philosophias ē hautē Pois admiração é o de que mais padece o filósofo e a filosofia não tem outro início senão esse Aristóteles que no início de sua Metafísica 982b12 ss parece repetir Platão quase textualmente Pois é devido a sua admiração que os homens começam a filosofar tanto hoje como pela primeira vez emprega essa admiração de um modo completamente diferente para ele o verdadeiro impulso para o filosofar reside no desejo de fugir da ignorância 68 Henri Bergson Évolution créatrice 1948 p 157 Uma análise da posição de Bergson na filosofia moderna nos desviaria para muito longe Mas sua insistência na prioridade do homo faber sobre o homo sapiens e na fabricação como origem da inteligência humana assim como sua enfática oposição entre vida e inteligência são muito sugestivas A filosofia de Bergson poderia facilmente ser interpretada como um estudo de caso sobre como a convicção inicial da era moderna quanto à relativa superioridade do produzir sobre a atividade de pensar foi em seguida suplantada e aniquilada pela sua convicção mais recente da absoluta superioridade da vida sobre tudo o mais Por haver u nido ambos os elementos o próprio Bergson pôde exercer uma influência tão decisiva sobre os primórdios das teorias do trabalho na França Não só as primeiras obras de Édouard Berth e Georges Sorel mas também o Homo faber 1929 de Adriano Tilgher devem sua terminologia principalmente a Bergson o mesmo se aplica ainda a LÊtre et le travail 1949 de Jules Vuillemin embora este como quase todos os autores franceses da atualidade pensem principalmente em termos hegelianos 69 Bergson Évolution créatrice p 140 70 Bronowski Science and human values 71 A fórmula de Jeremy Bentham em An introduction to the principles of moral and l egislation 1789 lhe foi sugerida por Joseph Priestley e assemelhavase muito a la massima felicità divisa nel maggior numero de Beccaria Introdução de Laurence J Lafl eur à Ed Hafner Segundo Élie Halévy The growth of philosophic radicalism Beacon Press 1955 tanto Beccaria quanto Bentham deviam muito à obra De lesprit de Helvetius 72 Lafleur Introdução a An introduction to the principles of m oral and legislation de Bentham Ed Hafner p xi O próprio Bentham manifesta sua insatisfação com uma filosofia meramente utilitária na nota acrescentada a uma edição posterior de sua obra Ed Halfner p 1 A palavra utilidade não indica tão claramente as ideias de prazer e dor quanto as palavras felicidade e ventura happiness and felicity o fazem Sua prin cipal objeção é que a utilidade não é mensurável e portanto não nos leva a considerar o número sem o qual a formação do critério de certo e errado seria impossível Bentham deriva seu princípio de felicidade do princípio de utilidade divorciando o conceito de utilidade da noção de uso cf cap 1 3 Essa separação constitui um ponto de inflexão na história do utilitarismo Pois embora seja verdade que o princípio de utilidade havia sido relacionado fundamentalm ente ao ego antes de Bentham foi somente Bentham que esvaziou radicalmente a ideia de utilidade de qualquer referência a um mundo independente constituído de coisas de uso e assim transformou verdadeiramente o utilitarismo em um egoísmo universalizado Halévy 73 Citado por Halévy The growth of philosophic radicalism p 13 74 Tratase naturalmente da primeira sentença de Principles of morals and legislation A famosa frase é copiada de Helvétius quase palavra por palavra Halévy The growth of philosophic radicalism p 26 Halévy observa acertadamente que era natural que uma ideia corrente tendesse a encontrar em toda parte expressão nas mesmas fórmulas p 22 Aliás esse fato mostra claramente que os autores de que tratamos aqui não são filósofos pois por mais correntes que certas ideias possam ser em determinado período jamais existiram dois filósofos que pudessem chegar a fo rmulações idênticas sem copiar um do outro 75 Bentham Principles of morals and legislation p 15 76 Os maiores representantes da moderna filosofia da vida são Marx Nietzsche e Bergson na medida em que todos três equacionam a Vida ao Ser Para esse equacionamento baseiamse na introspecção e a vida é realmente o único ser que o homem pode perceber quando examina somente a si mesmo A diferença entre os três e os filósofos que os precederam na era moderna é que a vida se lhes afigura mais ativa e mais produtiva que a consciência que ainda parece relacionarse demais com a contemplação e com o antigo ideal de verdade Este último estágio da filosofia moderna talvez possa ser mais bem descrito como a rebelião dos filósofos contra a fi losofia rebelião que começando em Kierkegaard e terminando no existencialismo parece à primeira vista dar ênfase à ação e não à contemplação Mas em uma análise mais detida nenhum desses filósofos está realmente interessado na ação como tal Podemos aqui deixar de lado Kierkegaard com sua ação não mundana dirigida para o íntimo do homem Nietzsche e Bergson descrev em a ação em termos de fabricação o homo faber em lugar do homo sapiens tal como Marx concebe a ação em termos de produção e descre ve o trabalho em termos de obra Porém o ponto último de referência deles não é a obra e a mundanidade como também não é a ação é a vida e a fertilidade da vida 77 Cícero observa Civitatibus autem mors ipsa poena est debet enim constituta sic esse civitas ut aeterna sit De re publica iii 23 Quanto à convicção na Antiguidade de que um corpo político bem fundado devia ser imortal conferir também Platão Leis 713 em que se recomenda aos fundadores de uma nova pólis que imitem o lado imortal do homem hoson en hēmin athanasias enest 78 Cf Platão República 405C 79 Pelo dominicano Bernard Allo Le travail daprès St Paul 1914 Entre os defensores da origem cristã da moderna glorificação do trabalho estão na França Étienne Borne e François Henry Le travail et lhomme 1937 na Alemanha Karl Müller Die Arbeit Nach moralphilosophischen Grundsätzen des heiligen Thomas von Aquino 1912 Mais r ecentemente Jacques Leclercq de Louvain cujo quarto livro de suas Leçons de droit naturel intitulado Travail propriété 1946 é uma das obras mais valiosas e interessantes para a filosofia do trabalho retificou essa má interpretação das fontes cristãs Le christianisme na pas changé grandchose à lestime du travail e na obra de Tomás de Aquino la not ion du travail napparaît que fort accidentellement p 6162 80 Cf I Ts 4912 e II Ts 3812 81 Summa contra Gentiles iii 135 Sola enim necessitas victus cogit manibus operari 82 Suma teológica ii 2 187 3 5 83 Nas regras monásticas principalmente na ora et labora de Bento o trabalho é recomendado como modo de combater as tentações de um corpo ocioso cf cap 48 da regra Na chamada regra de Agostinho Epistolae 211 o trabalho é considerado uma lei da natureza e não punição ao pecado Agostinho recomenda o trabalho manual emprega as palavras opera e labor como sinônimos em oposição a otium por três motivos ajuda a combater as tentações da ociosidade ajuda os monastérios a cumprir seu dever de caridade para com os pobres e favorece a contemplação por não ocupar indevidamente o espírito como o fazem outras ocupações como a compra e a venda de mercadorias Quanto ao papel do trabalho dos monastérios comparar com Étienne Delaruelle Le travail dans les règles monastiques occidentales du 4e au 9e siècle Journal de psychologie normale et pathologique v XLI n 1 1948 À parte essas considerações formais é bastante típico que os Solitários de Port Royal ao procurarem um instrumento de punição realmente eficaz tenham pensado imediatamente no trabalho cf Lucien Fèbre Travail évolution dun mot et dune idée Journal de psychologie normale et pathologique v XLI n 1 1948 84 Tomás de Aquino Suma teológica ii 2 182 1 2 Ao insistir na absoluta superioridade da vita contemplativa Tomás de Aquino difere de Agostinho de modo característico uma vez que este últim o recomenda a inquisitio aut inventio veritatis ut in ea quisque proficiat pesquisa ou descoberta da verdade de modo que alguém dela possa beneficiarse A cidade de Deus xix 19 E sta porém é pouco mais que a diferença entre um pensador cristão formado pela filosofia grega e outro formado pela filosofia romana 85 Os Evangelhos preocupamse com o mal de possuir bens terrenos não em louvar o trabalho ou os trabalhadores conferir especialmente Mt 61932 192124 Mc 419 Lc 62034 182225 At 43235 86 Em uma carta de Marx a Kugelmann de julho de 1868 87 Essa mundanidade intrínseca do artista não se altera naturalmente quando uma arte não objetiva substitui a representação das coisas confundir essa não objetividade com subjetividade na qual o artista sente que deve expressarse a si mesmo seus sentimentos subjetivos é típico dos charlatães não dos artistas O artista quer seja pintor escultor poeta ou músico produz obje tos mundanos e sua reificação nada tem em comum com a prática da expressão altamente discutível e de qualquer forma inteiramente inartística Ao contrário da arte abstrata a arte expressionista é uma contradição nos termos AGRADECIMENTOS O presente estudo resultou de uma série de conferências realizadas sob os auspícios da Charles R Walgreen Foundation em abril de 1956 na Universidade de Chicago com o título Vita activa Nos estágios iniciais dest e trabalho que remontam ao início da década de 1950 recebi uma subvenção da Simon Guggenheim Memorial Foundation e na fase final fui auxiliada imensamente por uma subvenção da Rockefeller Foundation No outono de 1953 o Christian Gauss Seminar in Criticism da Princeton University ofereceume a oportunidade de apresentar algumas de minhas ideias em uma série de conferências com o título Karl Marx e a tradição do pensamento político Ainda hoje sou muito grata pela paciência e pelo incentivo com os quais essas primeiras tentativas foram acolhidas e pela vívida troca de ideias com autores dos Estados Unidos e do exterior para a qual aquele seminário único nesse particular constitui uma excelente caixa de ressonância Rose Feitelson que tem me ajudado desde que comecei a publicar minhas obras nos Estados Unidos mais uma vez concedeume grande assistência no preparo do manuscrito e do índice Não encontro palavras para agradecerlhe o auxílio que ela vem me prestando há mais de 12 anos Hannah Arendt Friedrich Nietzsche Introdução à Filosofia A Ciência da Política Uma Introdução A Ciência da Política As Razões do Direito Atienza Manuek 9788530955700 300 páginas Compre agora e leia Manuel Atienza Catedrático de Direito e professor na Faculdade de Direito da Universidade de Alicante na universidade Pompeu FaTeama de que trata este livro a argumentação jurídica interessame há muito tempo e por várias razões A mais importante é que não concebo e por isso não iria tampouco pôr em prática a filosofia do Direito como uma disciplina fechada em si mesma e elaborada não apenas por mas também para filósofos do Direito Na minha opinião a filosofia do Direito deve cumprir uma função de intermediação entre o saberes e as práticas jurídicas por um lado e o resto das práticas e saberes sociais por outro Isso significa também que os destinatários dos textos de filosofia do Direito não deveriam ser apenas outros filósofos do Direito mas também e até fundamentalmente os cultivadores de outras disciplinas jurídicas ou não assim como os juristas com atuação prática e os estudantes de Direitobra Barcelona Centro de Estudos Constitucionais Madri e Instituto Tecnológico do México Compre agora e leia História do Direito Brasileiro Marcos Rui de Figueiredo 9788530955649 676 páginas Compre agora e leia Nossa História do Direito Brasileiro pode ser considerada uma obra de ciência e um texto escolar Alicerçada nas confidências seguras das fontes e muito reflectida do ponto de vista doutrinal repousa no m odo histórico de pensar o direito e percorre os diferentes modos como a história o foi pensando Compre agora e leia