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UNISANTOS
Texto de pré-visualização
O imaginário social dominante no Brasil interpreta o brasileiro como um tipo social homogêneo como no homem cordial de Sérgio Buarque possuindo as mesmas características quase sempre associadas à emocionali dade ao personalismo ao jeitinho independentemente de sua classe ou per tencimento social Tudo acontece como se esses indivíduos essencialmente semelhantes apenas diferissem na renda que ganham e que o progresso econômi co seria portanto o Deus ex machina ao qual caberia resolver problemas como desigualdade marginalização e subcidadania Existe entre nós uma crença fetichista no progresso econômico que faz esperar da expansão do mercado a resolução de todos os nossos problemas sociais O fato de que o Brasil tenha sido o país de maior crescimento econômico do globo entre 1930 e 1980 sem que as taxas de desigualdade marginalização e subcidadania jamais fossem alteradas radicalmente deveria ser um indicativo mais do que evidente do engano dessa pressuposição Isto no entanto não aconteceu e não acontece ainda hoje A ausência de uma adequada problematização dos aspectos de aprendizados coletivos morais e políticos envolvidos na questão da desigual dade e da sua naturalização e conseqüentemente na problemática da cons trução social da subcidadania devese também creio eu à complexa confi guração do campo científico entre nós Inicialmente o essencialismo cultura lista que articula as noções de personalismo familismo e patrimonialismo con tinua hegemônico seja na dimensão do senso comum seja na dimensão da reflexão metódica1 A partir de um paradigma explicativo semelhante àquele NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA OU O QUE É SER GENTE JESSÉ SOUZA O argumento que é fio condutor deste texto é parte de uma discussão desenvolvida em maior detalhe em SOUZA Jessé A Construção Social da Subcidadania Para uma Sociologia Política da Modernidade Periférica Ed UFMG 2003 Agradeço a Faperj pelo financiamen to da pesquisa que viabilizou este artigo 1 Uma discussão crítica em detalhe de diversas variantes desse ponto de partida teórico foi realizada em SOUZA Jessé A Modernização Seletiva Uma Reinterpretação do Dilema Brasileiro Ed UnB 2000 do paradigama culture and personality dominante na sociologia e antropolo gia americanas da primeira metade do século XX2 partese de uma perspecti va culturalista sem adequada vinculação com a eficácia de instituições funda mentais onde a cultura é percebida como uma entidade homogênea tota lizante e autoreferida Seria por conta dessa soberania do passado sobre o pre sente que nos confrontamos com solidariedades verticais baseadas no favor subcidadania para a maior parte da população e abismo material e valorativo entre as classes e as raças que compõem nossa sociedade Paralelamente na outra ponta das teorizações mais conjunturais e de menor nível de abstração a situação milita a favor da construção de um contexto de opacidade em relação às variáveis mais estruturais que envolvem um grau maior de abstração teórica É que em países como o Brasil onde a institucionalização em larga escala das ciências sociais se dá a partir da déca da de 1970 refletindo a tendência mundial da disseminação dos modelos do parcelização do conhecimento a fragmentação dos esquemas explicativos tendem a perder sua relação com qualquer realidade mais ampla Este fato associado à propagação paralela de teorias de médio alcance que renunciam a esclarecer ou tematizar seus próprios pressupostos e escolhas categoriais tendem a inibir a reflexão acerca de realidades que não tenham vínculo ime diato com realidades pragmáticas e conjunturais Por mais bem sucedidos e interessantes que sejam vários desses esforços que recuperam contextos e sentidos históricos e ajudam a mapear empiricamente dados relevantes acer ca da realidade eles não contribuem para renovar a compreensão mais tota lizadora acerca dos princípios estruturantes básicos que perfazem a singula ridade da modernidade periférica dado que seu horizonte categorial rejeita de plano qualquer preocupação com essa dimensão mais abstrata da reflexão teórica O mais das vezes o paradigma personalista e patrimonialista em suas vertentes tradicionais ou contemporâneas e híbridas permanece como a referência implícita da maior parte desse tipo de análise3 LUA NOVA Nº 59 2003 52 2 Uma excelente exposição da préhistória desenvolvimento e contradições internas ao para digma da teoria da modernização pode ser encontrada em KNÖBLWolgang Spielräume der modernizierung Velbrück 2002 3 Mesmo as tentativas mais recentes de construção de um paradigma do hibridismo como uma reação ao inegável dinamismo modernizante de várias sociedades periféricas como a brasileira por exemplo na realidade não abandonam o campo categorial do paradigma per sonalista familista e patrimonialista Em suas versões mais bemsucedidas essas teorizações postulam a convivência de dois princípios de estruturação social um personalista e um indi vidualista os quais no entanto permanecem indeterminados como se tratassem de duas rea lidades paralelas e apesar da dominância silenciosa da variável personalista nesse tipo de abordagem a questão central da articulação e da dominância relativa de cada um desses princípios jamais é explicitamente formulada ou resolvida Como nas versões tradicionais do NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 53 Estou convencido que a tematização dos aspectos socioculturais da desigualdade que permita superar o contexto de opacidade construído pelo fetichismo do progresso econômico exige a construção de um pa radigma teórico alternativo que permita preencher as lacunas e silêncios da configuração científica hegemônica que articula essencialismo cultural por um lado e a fragmentação conjuntural e pragmática da explicação teórica por outro No âmbito da reconstrução que gostaria de levar a cabo neste artigo gostaria de procurar me afastar dos pressupostos do essencialismo culturalista sem no entanto abrir mão de uma perspectiva que contem ple o acesso a realidades culturais e simbólicas E é precisamente nesse contexto que gostaria de incorporar as reflexões de Charles Taylor acerca da singularidade que as questões culturais morais e simbólicas em senti do amplo assumem no mundo moderno Aqui me interessa antes de tudo seu ponto de partida comunitarista como uma hermenêutica do espaço social a partir da sua crítica ao naturalismo que perpassa tanto a prática científica quanto a vida cotidiana como meio de articular precisamente a configuração valorativa implícita ao racionalismo ocidental que dá ensejo como veremos a um tipo específico de hierarquia social e uma também singular noção de reconhecimento social baseada nela Juntamente com a sociologia de Pierre Bourdieu creio encon trar nesses dois autores uma complementariedade fundamental de modo a unir a percepção de configurações valorativas implícitas e intransparentes à consciência cotidiana e ancoradas de modo opaco e inarticulado à eficá cia de algumas instituições do mundo moderno como mercado e Estado com a percepção de signos sociais visíveis que permitam mostrar o íntimo vínculo entre uma hierarquia valorativa que se traveste de universal e neu tra com a produção de uma desigualdade social que tende a se naturalizar tanto no centro quanto na periferia do sistema A articulação da perspecti va desses dois clássicos contemporâneos permite a meus olhos uma refor mulação muito mais sofisticada e útil do tema clássico marxista da ide ologia espontânea do capitalismo seja no contexto central seja no pe riférico paradigma do personalismo o poder de convencimento e o preenchimento das lacunas do argumento é garantido pelo paralelismo com os preconceitos do senso comum dessas sociedades Exemplos recentes de teorias latinoamericanas de hibridismo são as de CAN CLINI Nestor Garcia Culturas híbridas Edusp 1998 e DAMATTA Roberto Carnavais malandros e heróis Zahar 1981 Gostaria de iniciar a discussão com a análise de uma obra de um pensador periférico que segundo penso consegue estabelecer a questão decisiva em pauta nessa problemática ainda que a resposta final seja insa tisfatória tratase da Integração do Negro na Sociedade de Classes de Florestan Fernandes Neste livro Florestan se predispõe a empreender uma análise de como o povo emerge na história brasileira A concentração no negro e no mulato se legitima nesse contexto maior da empreitada teórica posto que foram precisamente esses grupos que tiveram o pior ponto de partida4 na transição da ordem escravocrata à competitiva Desse modo a reflexão de Florestan pode ser ampliada para abranger também os estratos despossuídos e os dependentes em geral e de qualquer cor na medida em que o único elemento que os diferenciava de negros e mulatos era o han dicap adicional do racismo5 O período estudado por Florestan vai de 1880 a 1960 o que dá uma idéia da amplitude do alentado estudo e o horizonte empírico concentrase na cidade de São Paulo permitindo desse modo observar as dificuldades de adaptação dos segmentos marginais na mais burguesa e competitiva das cidades brasileiras O dado essencial de todo o processo de desagregração da ordem servil e senhorial foi como nota corretamente Florestan o abandono do li berto à própria sorte ou azar Os antigos senhores na sua imensa maioria o Estado a Igreja ou qualquer outra instituição jamais se interessaram pelo destino do liberto Este imediatamente depois da abolição se viu respon sável por si e seus familiares sem que dispusesse dos meios materiais ou morais para sobreviver numa nascente economia competitiva de tipo capital ista e burguês Ao negro fora do contexto tradicional restava o desloca mento social na nova ordem Ele não apresentava os pressupostos sociais e psicossociais que são os motivos últimos do sucesso no meio ambiente con correncial Faltavalhe vontade de se ocupar com as funções consideradas degradantes que lhe lembravam o passado pejo que os imigrantes ita lianos por exemplo não tinham não era suficientemente industrioso nem poupador e acima de tudo faltavalhe o aguilhão da ânsia pela riqueza Neste contexto acrescentandose a isto o abandono dos libertos pelos anti LUA NOVA Nº 59 2003 54 4 FERNANDES Florestan A integração do negro na sociedade de classes vol I Ed Ática 1978 p 9 5 Para uma discussão das razões objetivas que permitem essa assimilação ver a parte II de SOUZA Jessé A Construção Social da Subcidadania NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 55 gos donos e pela sociedade como um todo estava de certo modo prefigura do o destino da marginalidade social e da pobreza econômica6 Esse é o quadro que permite compreender o drama social da adap tação do liberto às novas condições E aqui Florestan toca na questão central para todo seu argumento neste artigo nomeadamente a questão da organiza ção psicossocial que é um pressuposto da atividade capitalista e que exige uma présocialização em um sentido prédeterminado a qual faltava em qual quer medida significativa ao exescravo A ânsia em libertarse das condições humilhantes da vida anterior tornavao inclusive especialmente vulnerável a um tipo de comportamento reativo e ressentido em relação às demandas da nova ordem Assim o liberto tendia a confundir as obrigações do contrato de trabalho e não distinguia a venda da força de trabalho da venda dos direitos substantivos à noção de pessoa jurídica livre7 Ademais a recusa a certo tipo de serviço a inconstância no trabalho a indisciplina contra a supervisão o fascínio por ocupações nobilitantes tudo conspirava para o insucesso nas novas condições de vida e para a confirmação do preconceito A tese de Florestan é a de que a família negra não chega a se constituir como uma unidade capaz de exercer as suas virtualidades princi pais de modelação da personalidade básica e controle de comportamentos egoísticos8 Existe aqui nesse tema central da ausência da unidade familiar como instância moral e social básica uma continuidade com a política escravocrata brasileira que sempre procurou impedir qualquer forma orga nizada familiar ou comunitária da parte dos escravos É a continuidade de padrões familiares disruptivos que é percebida corretamente por Florestan como o fator decisivo para a perpetuação das condições de de sorganização social de negros e mulatos Sob todos os aspectos a família desorganizada era a base dos dese quilíbrios e da desorganização da vida em todas as suas dimensões A não socialização adequada de nenhum dos papéis familiares a incerteza e inse gurança social que faziam expulsar de casa as filhas que se perdiam por exemplo tudo militava no sentido de que a família não só não fosse uma base segura para a vida numa sociedade competitiva mas também se transfor masse na causa dos mais variados obstáculos A vida familiar desorganizada aliada à pobreza era responsável por um tipo de individuação ultraegoísta e predatória9 Este tipo de organização da personalidade sobejamente demon 6 FERNANDES idem vol I p20 7 Id ibid p30 8 Id ibid p154 9 Id ibid p230 strada nas entrevistas elencadas no livro produto da desorganização familiar reflete no egoismo e na instrumentalização do outro seja o outro a mul her ou o mais jovem e indefeso uma situação de sobrevivência tão agreste que mina por dentro qualquer vínculo de solidariedade desde o mais bási co na família até o comunitário e associativo mais geral Esse aspecto é fundamental para meu argumento na medida em que o que Florestan está pleiteando é na realidade a meus olhos atribuir à constituição e reprodução de um habitus específico no sentido de Bourdieu a apropriação de esquemas cognitivos e avaliativos transmiti dos e incorporados de modo préreflexivo e automático no ambiente fami liar desde a mais tenra idade permitindo a constituição de redes sociais também préreflexivas e automáticas que cimentam solidariedade e iden tificação por um lado e antipatia e preconceito por outro o lugar funda mental na explicação da marginalidade do negro Este ponto é central posto que se é a reprodução de um habitus precário a causa última da inadaptação e marginalização desses grupos então o problema não é meramente a cor da pele como certas tendências empiricistas acerca da desigualdade brasilera tendem hoje a interpretar Se há preconceito nesse terreno e certamente há e agindo de forma intransparente e virulenta não é antes de tudo um preconceito de cor mas sim um preconceito que se re fere a certo tipo de personalidade julgada como improdutiva e disrupti va para a sociedade como um todo Esse aspecto central não é todavia percebido com clareza por Florestan Sem dúvida ele tem o mérito de apontar na sua busca das causas últimas da marginalidade da população negra as précondições sociais independentes da cor que condicionam a situação de marginalidade Ele percebe por exemplo que as condições de inadaptação da população negra é comparável a dos dependentes rurais brancos10 misturando esses dois ele mentos como compondo em conjunto a gentinha ou a ralé nacional11 A cor da pele nesse contexto age no máximo como uma feri da adicional à autoestima do sujeito em questão mas o núcleo do proble ma é a combinação de abandono e inadaptação destinos que atingiam ambos os grupos independentemente da cor Precisamente por confundir habitus no sentido que estamos utilizando neste texto e que ele próprio havia revelado com tanta argúcia no peso relativo que ele atribui à desor ganização familiar com cor da pele Florestan é levado a imprecisões e LUA NOVA Nº 59 2003 56 10 Id ibid p148 11 Id ibid vol II p280 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 57 paradoxos que se repetem em cascata na sua argumentação Na realidade todo o argumento do livro é tributário da ambigüidade fundamental que confunde os dois aspectos relevados acima em relação à causa fundamen tal da situação de carência e marginalidade do negro Florestan supõe como causa primeira da mesma tanto a escravidão interna dentro do homem que o impede de pensar e agir segundo os imperativos da nova ordem social12 quanto o preconceito de cor13 visto como uma realidade iner cial representando resíduos do passado que penetram na sociedade competitiva e que ele supõe a partir do avanço e desenvolvimento desta estejam destinados a desaparecer14 Esses dois aspectos apesar de interligados são analiticamente duas realidades muito distintas No contexto estamental e adscritivo da sociedade escravocrata a cor funciona como índice tendencialmente abso luto da situação servil ainda que esta também assumisse formas mitigadas como vimos acima Na sociedade competitiva a cor funciona como índice relativo de primitividade sempre em relação ao padrão contingente do tipo humano definido como útil e produtivo no racionalismo ocidental e implementado por suas instituições fundamentais que pode ou não ser confirmado pelo indivíduo ou grupo em questão O próprio Florestan rela ta sobejamente as inúmeras experiências de inadaptação ao novo contexto determinadas em primeiro plano por incapacidade de atender às deman das da disciplina produtiva do capitalismo15 É de extrema importância por razões teóricas e práticas que se tenha clareza com relação a esse ponto A confusão entre estes dois aspec tos é muitas vezes obscurecida por motivos políticos dado que acredi tase a atribuição da marginalidade do negro a causas outras que não a cor e o racismo equivaleria a atribuir a culpa da mesma à sua vítima Ora é precisamente o abandono secular do negro e do dependente de qualquer cor à própria sorte a causa óbvia de sua inadaptação Foi esse abandono que criou condições perversas de eternização de um habitus precário que constrange esses grupos a uma vida marginal e humilhante à margem da sociedade incluída Por outro lado é necessário terse clareza teórica e prática acerca das causas reais da marginalização É precisamente o tipo de explicação que enfatiza o dado secundário da cor que permitiria suposta 12 Id ibid volI p92 13 Id ibid pp 283 e 316 14 Sobre o caráter passageiro e transitório da situação à época FERNANDES idemvol II pp 144 e 156 15 FERNANDES idem vol I pp 19 20 25 26 28 29 30 50 52 58 73 82 mente atribuir a culpa da marginalização unicamente ao preconceito que joga água no moinho da explicação economicista e evolucionista de tipo simples que supõe ser a marginalização algo temporário modificável por altas taxas de crescimento econômico as quais de algum modo obscuro terminaria por incluir todos os setores marginalizados Esse tipo de explicação descura dos aspectos morais e políticos que são imprescindíveis a uma real estratégia inclusiva Em nenhuma das sociedades modernas que logrou homogeneizar e generalizar em medida significativa um tipo humano para todas as classes como uma précondição para uma efetiva e atuante idéia de cidadania conseguiu esse intento como efeito colateral unicamente do desenvolvimento econômico Dentre as sociedades desenvolvidas inclusive é a mais rica dentre elas os EUA a que apresenta maior índice de desigualdade e exclusão16 A marginalização per manente de grupos sociais inteiros tem a ver com a disseminação efetiva de concepções morais e políticas que passam a funcionar como idéiasforça nessas sociedades É a explicação que atribui a marginalidade desses grupos a resíduos a serem corrigidos por variáveis economicamente derivadas dominantes não só em Florestan mas em todo o debate nacional teórico e prático acerca do tema das causas e dos remédios da desigualdade que me lhor contribui para sua permanência e naturalização Na realidade portanto não é a continuação do passado no pre sente inercialmente que está em jogo realidade essa destinada a desa parecer com o desenvolvimento econômico17 mas a redefinição moder na do negro e do dependente ou agregado brasileiro rural e urbano de qualquer cor como imprestável para exercer qualquer atividade rele vante e produtiva no novo contexto que constitui o quadro da nova situ ação de marginalidade A inércia aqui como ocorre tão frequentemente está de fato no lugar de uma explicação A questão que me parece a essencial é de que modo a transição do poder pessoal para o impessoal muda radicalmente as possibilidades de classificação e desclassificação social O que está em jogo nessa passagem e nessa mudança tão radical que expele como imprestáveis os segmentos responsáveis fundamental mente pela produção econômica no regime anterior Para a resposta desta LUA NOVA Nº 59 2003 58 16 Ver SCALON Celi Wahrnehmung von Ungleichheiten eine international vergleichende Analyse in BRUNKHORST Hauke COSTA Sérgio e SOUZA Jessé orgs Die Peripheren Moderne Frankfurt Campus 2003 no prelo 17 FERNANDES idem vol II p144 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 59 questão o tema dos resíduos18 e das inércias especialmente porque esses tais resíduos e inércias se eternizaram e se mostraram de fato ao contrário do que supunha o autor permanentes não avança o nosso co nhecimento Um outro ponto de imprecisão que no fundo duplica a ambi guidade em relação à opção corhabitus é a menção a coisas como mundo branco e mundo negro como se fossem ambos realidades essenciais e independentes e como se a hierarquia valorativa que articulasse essa dis juntiva não fosse na realidade única e subordinasse tanto brancos quan to negros Neste ponto da mesma forma que em relação ao tópico acima poderíamos refrasear a questão que formulamos e nos perguntar afinal o que está por trás das cores especialmente da cor preta que a faz um índice de alguma coisa ao mesmo tempo mais fundamental e menos visível e que se manifesta por trás da cor Não é portanto se estou certo o apego à hierarquia anterior que produz o racismo e o transfere como resíduo à ordem social competitiva Afinal a ordem competitiva também não é neutra nessa dimensão do ponto de partida meritocrático como parece estar implícito no argumento de Florestan A ordem competitiva também tem a sua hierarquia ainda que implícita opaca e intransparente aos atores e é com base nela e não em qualquer resíduo de épocas passadas que tanto negros quanto brancos sem qualificação adequada são desclassificados e marginalizados de forma per manente Não é à toa nesse sentido que a legitimação da marginalização nos depoimentos colimados em todo o livro pelo autor venha sempre acom panhada da menção a aspectos conspícuos da hierarquia valorativa do racionalismo ocidental moderno ausência de ordem disciplina previsibili dade raciocínio prospectivo etc O critério operante de classificaçãodesclas sificação era tão colado na hierarquia valorativa implícita e impessoal da nova ordem social que se reconhecia em vários depoimentos a cor como aspecto secundário Concebiase por exemplo que o negro se misturasse 18 Todo o raciocínio é tributário da sociologia da modernização tal como a conhecemos com sua crença na destruição gradual da tradição percebida precisamente como resíduos e inércias sob a forma de um evolucionismo de tipo simples e etapista Não cabe aqui repe tir argumentos que já formulamos alhures Que seja lembrado apenas que essa assunção eli mina de plano a consideração de sociedades periféricas modernamente singulares que pre cisamente se caracterizam pela perpetuação de situações de marginalidade e exclusão pro duzidas e tornadas opacas e permanentes por condições de legitimação da desigualdade que são eficazes apenas sob précondições especificamente modernas como veremos adiante em maior detalhe com o branco atrasado que está à sua altura moral intelectual19 Florestan no entanto permanece preso à explicação dos resíduos20 e não consegue incorporar vários desses depoimentos ao seu quadro explicativo que se torna crescentemente ambíguo impreciso e inconclusivo A resolução teórica desse embroglio com consequências práti cas nada desprezíveis exige a determinação precisa desse componente misterioso por trás da cor Florestan já aponta o caminho a ser seguido por meio da alusão recorrente em todo o seu trabalho de que o que os negros queriam efetivamente transformarse e ser gente21 O termo nunca é definido claramente nem por Florestan nem por seus informantes Acredito também nesse ponto que para ultrapassarmos o uso meramente retórico desse termo e conferirmos a ele densidade analítica tornase necessário desfazer a confusão entre habitus e cor Afinal o que os próprios informantes entendem por ser gente reflete claramente o que estamos percebendo como as précondições para a formação de um habitus ade quado aos imperativos institucionais da nova ordem independentemente de qualquer cor de pele Um dos sujeitos das histórias de vida que vivia com a mãe e a irmã ao deus dará relata o deslumbramento que sentiu por volta de 1911 ao passar a viver aos dez anos na casa de um ita liano Viu então o que era viver no seio de uma família o que entre eles os italianos era coisa séria Gostava porque comia na mesae podia apreciar em que consistia viver como gente22 No mesmo sentido temos as declarações abaixo Negro é gente e não tem que andar diferente dos outros Ser gente só pode significar ser igual ao branco e para isso é pre ciso proceder como o branco lançandose ativamente na com petição ocupacional23 Mas afinal o que é para além do sentido retórico compreen sível imediatamente de forma inarticulada por cada um de nós mas que apresenta desafios aparentemente intransponíveis logo que pretendemos definilo de forma adequada ser gente É no esclarecimento desse tema central que as contribuições de Taylor e Bourdieu podem nos ajudar A LUA NOVA Nº 59 2003 60 19 FERNANDES idem vol I p300 20 Id ibid pp 144 156 280 181 183 21 Apenas a título de exemplo FERNANDES idem vol I pp 174 e 196 e vol II pp 7 119 120 166 185 187 22 FERNANDES idem vol I p174 23 Id ibid vol II p166 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 61 escolha desses dois autores devese ao fato de que a meus olhos ambos se afastam tanto de uma sociologia subjetivista que reduz a complexidade da realidade social à interação consciente entre seus membros quanto de uma sociologia sistêmica que naturaliza a realidade social e se torna incapaz de perceber seus sentidos opacos e tornados intransparentes à consciência cotidiana e científica ou ainda de uma sociologia que essencializa a dimensão cultural como nas teorias tradicionais e contemporâneas da modernização Para Bordieu e Taylor a sociedade moderna se singulariza pre cisamente pela produção de uma configuração formada pelas ilusões do sentido imediato e cotidiano que Taylor denomina naturalismo e Bour dieu doxa que produzem um desconhecimento específico dos atores acerca de suas próprias condições de vida Também para ambos apenas uma perspectiva hermenêutica genética e reconstrutiva poderia reestabele cer as efetivas ainda que opacas e intransparentes précondições da vida social numa sociedade desse tipo No entanto o desafio concreto aqui é o de articular sistematicamente também as unilateralidades de cada uma das perspectivas estudadas de modo a tornálas operacionais no sentido de per mitir perceber como moralidade e poder se vinculam de modo peculiar no mundo moderno e muito especialmente no contexto periférico Talvez o aspecto que mais explicite as deficiências da teoria bourdiesiana e ponha a nu a necessidade de vinculála a uma teoria objeti va da moralidade como a tayloriana é o radical contextualismo da sua análise da classe trabalhadora francesa que o impede de perceber proces sos coletivos de aprendizado moral que ultrapassam de muito as barreiras de classe Na análise de Bourdieu sobre a produção opaca da desigualdade nas condições das sociedades modernas avançadas como a francesa24 o patamar último da sua análise que fundamenta uma infinidade de dis tinções sociais é a situação de necessidade da classe operária O que mostra o caráter histórico contingente e espaçotemporalmente contextual dessa necessidade é que ela se refere à distinção de hábitos de consumo dentro da dimensão de pacificação social típico do welfare state O que é visto como necessidade nesse contexto comparandose a sociedades periféricas como a brasileira adquire o sentido de consolidação histórica e 24 BOURDIEU Pierre Distinction Harvard University Press 1984 contingente de lutas políticas e aprendizados sociais e morais múltiplos de efetiva e fundamental importância os quais passam desapercebidos enquanto tais para Bourdieu Assim gostaria de propor uma subdivisão interna à categoria do habitus de tal modo a conferirlhe um caráter histórico mais matizado inexistente na análise bourdieusiana e acrescentar portanto uma dimen são genética e diacrônica à temática da constituição do habitus Assim em vez de falar apenas de habitus genericamente aplicandoo a situações específicas de classe num contexto sincrônico como faz Bourdieu acho mais interessante e rico para meus propósitos falar de uma pluralidade de habitus Se o habitus representa a incorporação nos sujeitos de esquemas avaliativos e disposições de comportamento a partir de uma situação socioeconômica estrutural então mudanças fundamentais na estrutura econômicosocial deve implicar conseqüentemente mudanças qualitativas importantes no tipo de habitus para todas as classes sociais envolvidas de algum modo nessas mudanças Esse foi certamente o caso da passagem das sociedades tradi cionais para as sociedades modernas no Ocidente A burguesia como a primeira classe dirigente na história que trabalha logrou romper com a dupla moral típica das sociedades tradicionais baseadas no código da honra e construir pelo menos em uma medida apreciável e significativa uma homogeneização de tipo humano a partir da generalização de sua própria economia emocional domínio da razão sobre as emoções cálcu lo prospectivo autoresponsabilidade etc às classes dominadas Esse processo se deu em todas as sociedades centrais do Ocidente das mais vari adas maneiras Em todas as sociedades que lograram homogeneizar um tipo humano transclassista esse foi um desiderato perseguido de forma consciente e decidida e não deixado a uma suposta ação automática do progresso econômico Assim sendo esse gigantesco processo histórico homogeneizador que posteriormente foi ainda mais aprofundado pelas conquistas sociais e políticas de iniciativa da própria classe trabalhadora o qual certamente não equalizou todas as classes em todas as esferas da vida mas sem dúvida generalizou e expandiu aspectos fundamentais da igual dade nas dimensões civis políticas e sociais como examinadas por Marshall no seu texto célebre pode ser percebido como um gigantesco processo de aprendizado moral e político de profundas conseqüências É precisamente esse processo histórico de aprendizado coletivo que não é adequadamente tematizado por Bourdieu no seu estudo empíri co acerca da sociedade francesa Ele representa o que gostaria de deno LUA NOVA Nº 59 2003 62 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 63 minar de habitus primário de modo a chamar atenção para esquemas avaliativos e disposições de comportamento objetivamente internalizados e incorporados no sentido bourdieusiano do termo que permite o com partilhamento de uma noção de dignidade efetivamente compartilhada no sentido tayloriano É essa dignidade efetivamente compartilhada por classes que lograram homogeneizar a economia emocional de todos os seus membros numa medida significativa que me parece ser o fundamento pro fundo do reconhecimento social infra e ultrajurídico o qual por sua vez permite a eficácia social da regra jurídica da igualdade e portanto da noção moderna de cidadania É essa dimensão da dignidade comparti lhada no sentido não jurídico de levar o outro em consideração e que Taylor chama de respeito atitudinal25 que tem que estar disseminada de forma efetiva numa sociedade para que possamos dizer que nessa sociedade concreta temos a dimensão jurídica da cidadania e da igualdade garantida pela lei Para que haja eficácia legal da regra de igualdade é necessário que a percepção da igualdade na dimensão da vida cotidiana esteja efetivamente internalizada É essa dimensão que exige portanto um efetivo consenso valorativo transclassista como sua condição de existência que não é percebida enquanto tal por Bourdieu É essa ausência que o permite pen sar as relações entre as classes dominantes e dominadas como relações especulares reativas e de soma zero A radical contextualidade de seu argumento o impede de perceber a importância de conquistas históricas desse tipo de sociedade como a francesa as quais tornamse óbvias por comparação com sociedades periféricas como a brasileira onde tal con senso inexiste Ao chamar a generalização portanto das précondições sociais econômicas e políticas do sujeito útil digno e cidadão no sen tido tayloriano de reconhecido intersubjetivamente como tal de habitus primário eu o faço para diferenciálo analiticamente de duas outras realidades também fundamentais o habitus precário e o que gostaria de denominar habitus secundário O habitus precário seria o limite do habitus primário para baixo ou seja seria aquele tipo de personalidade e de disposições de com portamento que não atendem às demandas objetivas para que seja um indi víduo seja um grupo social possa ser considerado produtivo e útil em uma sociedade de tipo moderno e competitivo podendo gozar de reco nhecimento social com todas as suas dramáticas consequências existenciais e políticas Para alguns autores mesmo sociedades afluentes como a alemã já apresentam agora segmentos de trabalhadores e de pobres que vivem do seguro social precisamente com esses traços de um habitus precário26 na medida em que o que estamos chamando de habitus primário tende a ser definido segundo os novos patamares adequados às recentes transformações da sociedade globalizada e da nova importância do conhecimento No entanto como iremos ver essa definição só ganha o estatuto de um fenô meno de massa permanente em países periféricos como o Brasil O que estamos chamando de habitus secundário tem a ver com o limite do habitus primário para cima ou seja tem a ver com uma fonte de reconhecimento e respeito social que pressupõe no sentido forte do termo a generalização do habitus primário para amplas camadas da população de uma dada sociedade Nesse sentido o habitus secundário já parte da homogeneização dos princípios operantes na determinação do habitus primário e institui por sua vez critérios classificatórios de dis tinção social a partir do que Bourdieu chama de gosto Mas a determi nação conceitual precisa dessa diferenciação triádica da noção de habitus deve ser acoplada à discussão tayloriana das fontes morais ancoradas insti tucionalmente no mundo moderno seja no centro ou na periferia para sua adequada problematização Como a categoria de habitus primário é a mais básica na medida em que é a partir dela que se torna compreensível seus limites para baixo e para cima devemos nos deter ainda um pouco na sua determinação Gostaria de usar as investigações de Reinhardt Kreckel para tentar levar a noção de habitus primário a um patamar mais concreto de análise Parto da pressuposição de que a noção de Kreckel de ideolo gia do desempenho27 permite pensar a dimensão sociológica da pro dução da distinção social a partir da força objetiva da idéia de dignidade do agente racional como proposta por Taylor Afinal as pessoas não são aquinhoadas eqüitativamente com o mesmo reconhecimento social por sua dignidade de agente racional Essa dimensão não é tão rasa como a simples dimensão política dos direitos subjetivos universalizáveis e intercambiáveis sugere A dimensão jurídica da proteção legal é apenas uma das dimensões apesar de fundamental e importantíssima desse processo de reconhecimento Se é o trabalho útil produtivo e disciplina LUA NOVA Nº 59 2003 64 26 BITTLINGMAYER Uwe Transformation der Notwendigkeit prekarisierte habitusfor men als Kehrseite der Wissensgesellschaft pp 225254 in Theorie als Kampf Zur poli tischen Soziologie Pierre Bourdieus EICKELPASCH Rolf et alli orgs Opladen Leske und Budrich 2002 27 KRECKEL Reinhardt Politische Soziologie der sozialen Ungleichheit Frankfurt Campus 1992 pp 67106 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 65 do que parece estar por trás da avaliação objetiva do valor relativo de cada qual nessa dimensão então o potencial encobridor de desigualdades por trás da noção de dignidade do agente racional deve se manifestar mais facilmente nessa dimensão Kreckel chama de ideologia do desempenho a tentativa de elaborar um princípio único para além da mera propriedade econômica a partir do qual se constitui a mais importante forma de legitimação da desigualdade no mundo contemporâneo A idéia subjacente a esse argu mento é que teria que haver um pano de fundo consensual Hinter grundkonsens acerca do valor diferencial dos seres humanos de tal modo que possa existir uma efetiva ainda que subliminarmente produzida legitimação da desigualdade Sem isso o caráter violento e injusto da desigualdade social se manifestaria de forma clara e a olho nu Para ele a ideologia do desempenho baseiase na tríade meri tocrática que envolve qualificação posição e salário Destes a qualifi cação refletindo a extraordinária importância do conhecimento com o desenvolvimento do capitalismo é o primeiro e mais importante ponto que condiciona os outros dois A ideologia do desempenho é uma ideologia na medida em que ela não apenas estimula e premia a capacidade de desempenho objetiva mas legitima o acesso diferencial permanente a chances de vida e apropriação de bens escassos28 Apenas a combinação da tríade da ideologia do desempenho faz do indivíduo um sinalizador com pleto e efetivo do cidadão completo Vollbürger A tríade torna também compreensível por que apenas através da categoria do trabalho é possí vel se assegurar de identidade autoestima e reconhecimento social Nesse sentido o desempenho diferencial no trabalho tem que se referir a um indi víduo e só pode ser conquistado por ele próprio Apenas quando essas pré condições estão dadas pode o indivíduo obter sua identidade pessoal e social de forma completa Isso explica por que uma dona de casa por exemplo passe a ter um status social objetivamente derivado ou seja sua importância e reconhecimento social dependem de seu pertencimento a uma família ou a um marido Ela se torna neste sentido dependente de critérios ads critivos já que no contexto meritocrático da ideologia do desempenho 28 Id ibid p98 ela não possuiria valor autônomo29 A atribuição de respeito social nos papéis sociais de produtor e cidadão passa a ser mediado pela abstração real já produzida por mercado e Estado aos indivíduos pensados como suporte de distinções que estabelecem seu valor relativo A explicitação de Kreckel acerca das précondições para o reconhecimento objetivo dos papéis de produtor e cidadão é importante na medida em que é fundamen tal não apenas referirse ao mundo do mercado e da distribuição de recur sos escassos como perpassado por valores como faz Nancy Fraser30 por exemplo mas é necessário explicitar que valores são esses Afinal vai ser o poder legitimador do que Kreckel chama de ide ologia do desempenho que irá determinar aos sujeitos e grupos sociais excluídos de plano pela ausência dos pressupostos mínimos para uma com petição bem sucedida dessa dimensão objetivamente seu nãoreconheci mento social e sua ausência de autoestima A ideologia do desempenho funcionaria assim como uma espécie de legitimação subpolítica incrustada no cotidiano refletindo a eficácia de princípios funcionais ancorados em instituições opacas e intransparentes como mercado e Estado Ela é intrans parente posto que aparece à consciência cotidiana como se fosse efeito de princípios universais e neutros abertos à competição meritocrática Acho que essa idéia ajuda a conferir concretude àquilo que Taylor chama de fonte moral a partir da noção de self pontual embora seu poder ideológico e produtor de distinções não seja explicitamente tematizado por ele A partir da definição e da constituição de uma ideologia do desempenho como mecanismo legitimador dos papéis de produtor e cidadão que equivalem na reconstrução que estou propondo ao conteúdo do habitus primário é possível compreender melhor o seu limite para baixo ou seja o habitus precário Assim se o habitus primário impli ca um conjunto de predisposições psicossociais refletindo na esfera da personalidade a presença da economia emocional e das précondições cog nitivas para um desempenho adequado ao atendimento das demandas va riáveis no tempo e no espaço do papel de produtor com reflexos diretos no papel do cidadão sob condições capitalistas modernas a ausência dessas précondições em alguma medida significativa implica na consti tuição de um habitus marcado pela precariedade Nesse sentido habitus precário pode referirse tanto a setores mais tradicionais da classe trabalhadora de países desenvolvidos e aflu LUA NOVA Nº 59 2003 66 29 Id ibid p100 30 FRASER Nancy Justice Interruptus Routledge 1997 pp 1140 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 67 entes como a Alemanha como aponta Uwe Bittlingmayer em seu estudo31 incapazes de atender as novas demandas por contínua formação e flexibi lidade da assim chamada sociedade do conhecimento Wissensge sellschaft que exige agora uma ativa acomodação aos novos imperativos econômicos quanto também a secular ralé brasileira tratada no livro de Florestan Fernandes que examinamos acima Nos dois casos a formação de todo um segmento de inadaptados um fenômeno marginal em socie dades como a alemã e um fenômeno de massas numa sociedade periférica como a brasileira é resultante da ampliação da definição do que estamos chamando habitus primário No caso alemão a disparidade entre habi tus primário e habitus precário é causada pelas demandas crescentes por flexibilização o que exige uma economia emocional de tipo peculiar No caso brasileiro o abismo se cria já no limiar do século XIX com a re europeização do pais e se intensifica a partir de 1930 com o início do processo de modernização em grande escala Neste caso a linha divisória passa a ser traçada entre os setores europeizados ou seja os setores que lograram se adaptar às novas demandas produtivas e sociais e os setores não europeizados que tenderam por seu abandono a uma crescente e permanente marginalização Como o princípio básico do consenso transclassista é como vimos o princípio do desempenho e da disciplina a fonte moral do self pontual para Taylor passa a ser a aceitação e internalização generalizada desse princípio que faz com que a inadaptação e a marginalização desses setores possa ser percebida tanto pela sociedade incluída como também pelas próprias vítimas como um fracasso pessoal É também a centrali dade universal do princípio do desempenho com sua conseqüente incor poração préreflexiva que faz com que a reação dos inadaptados se dê num campo de forças que se articula precisamente em relação ao tema do desempenho positivamente pelo reconhecimento da intocabilidade de seu valor intrínseco apesar da própria posição de precariedade e negativa mente pela construção de um estilo de vida reativo ressentido ou aberta mente criminoso e marginal32 Já o limite do habitus primário para cima tem a ver com o fato de que o desempenho diferencial na esfera da produção tem que ser asso ciado a uma estilização da vida peculiar de modo a produzir distinções sociais Ou seja o desempenho diferencial não é apenas nem primaria 31 BITTLINGMAYER Op cit p233 32 FERNANDES Op cit vol I p94 mente talvez uma fonte de valorização social soziale Wertschätzung que estimula os laços de solidariedade social como propõe Axel Honneth33 por exemplo mas também em grande medida uma fonte de distinções sociais que se nutre do contexto de opacidade e de aparente neu tralidade o qual é parte integrante da ideologia do desempenho para o estabelecimento de distinções sociais que tendem a se naturalizar como efeito da opacidade peculiar de suas condições de existência Nesse sentido o que estamos chamando de habitus secun dário seria precisamente o que Bourdieu teria em mente com seu estudo sobre as sutis distinções que analisa no seu Distinctions É nessa dimen são que o gosto passa a ser uma espécie de moeda invisível transfor mando tanto o capital econômico puro quanto muito especialmente o capital cultural travestidos em desempenho diferencial a partir da ilusão do talento inato em um conjunto de signos sociais de distinção legítima a partir dos efeitos típicos do contexto de opacidade em relação às suas condições de possibilidade Mas também aqui é necessário acrescentar a dimensão objeti va da moralidade que permite em última instância todo o processo de fa bricação de distinções sociais a qual é descurada por Bourdieu Assim também o conceito de habitus secundário34 deve ser vinculado a exemplo do que fizemos com os conceitos de habitus primário e precário ao con texto moral ainda que opaco e naturalizado que lhe confere eficácia Se percebemos na ideologia do desempenho enquanto corolário da dig nidade do ser racional do self pontual tayloriano o fundamento moral implícito e naturalizado das duas outras formas de habitus que distin guimos acredito que o habitus secundário possa ser compreendido na sua especificidade antes de tudo a partir da noção tayloriana de expressivi dade e autenticidade O ideal romântico da autenticidade que o Taylor de Sources of the Self interpreta como uma fonte moral alternativa ao self pontual e o LUA NOVA Nº 59 2003 68 33 HONNETH Axel Kampf um Annerkenung Frankfurt Suhrkamp p203 34 Axel Honneth em sua interessante crítica a Bourdieu tende a rejeitar in toto o conceito de habitus dado o componente instrumental e utilitário que o perpassa Ao fazer isto no entan to Honneth corre o risco de jogar a criança fora junto com a água suja do balde como os alemães gostam de dizer em um provérbio popular na medida em que o que me parece impor tante é precisamente reconectar o conceito de habitus com uma instância moral que permita iluminar nas dimensões individual e coletiva também além do dado instrumental que é irre nunciável o tema do aprendizado moral Ver HONNETH Die zerissene Welt der symbolis chen Formen zum kultursoziologischen Werke Pierre Bourdieus in Die Zerrissene Welt des Sozialens Frankfurt Suhrkamp 1990 p171 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 69 princípio do desempenho que o comanda na medida em que implica a reconstrução narrativa de uma identidade singular para a qual não há mo delos préestabelecidos vive o perigo de transformase no seu contrário nas condições atuais O mote do diagnóstico da época levado a cabo por Taylor no seu The Ethics of Authenticity é precisamente a ameaça crescente de trivialização desse ideal do seu conteúdo dialógico e de autoinvenção em favor de uma perspectiva autoreferida simbolizada no que o autor chama de quick fix35 solução rápida O tema do gosto como a base das distinções sociais fundadas no que estamos chamando de habitus secundário compreende tanto o hor izonte da individualização conteudística baseada no ideal da identidade original dialógica e narrativamente constituída quanto o processo de indi viduação superficial baseado no quick fix Bourdieu não percebe a dife rença entre as duas formas já que para ele por força de suas escolhas ca tegoriais a estratégia da distinção é sempre utilitária e instrumental Para meus fins no entanto essa diferença é fundamental Afinal a recuperação da dimensão moral objetiva trabalhada por Taylor é o que explica em últi ma instância o apelo e eficácia social inclusive da versão massificada e pastiche dessa possibilidade de individualização A personificação do gosto para Bordieu serve antes de tudo precisamente para a definição da personalidade distinta uma personali dade que aparece como resultado de qualidades inatas e como expressão de harmonia e beleza e da reconciliação de razão e sensibilidade a definição do indivíduo perfeito e acabado36 As lutas entre as diversas frações de classe se dão precisamente pela determinação da versão socialmente hegemônica do que é uma personalidade distinta e superior A classe tra balhadora que não participa dessas lutas pela definição do critério hegemônico de distinção seria um mero negativo da idéia de personali dade quase como uma nãopessoa como as especulações de Bourdieu acerca da redução dos trabalhadores a pura força física deixa entrever37 Mas é precisamente aqui creio eu que o contextualismo de Bourdieu se mostra em seus limites e em sua perspectiva ahistórica Uma comparação entre as realidades francesa e brasileira pode ilustrar melhor o que imagino a partir da distinção entre habitus primário 35 TAYLOR The Ethics of Authenticity Harvard University Press 1991 p35 36 BOURDIEU Distinction Harvard University Press 1984 p11 37 Id ibid p384 e secundário e a importância desta diferenciação para uma percepção ade quada das especificidades das modernidades central e periférica Desse modo se estou certo seria a efetiva existência de um consenso básico e transclassista representado pela generalização das précondições sociais que possibilitam o compartilhamento efetivo nas sociedades avançadas do que estou chamando de habitus primário que faz com que por exemplo um alemão ou francês de classe média que atropele um seu compatriota das classes baixas seja com altíssima probabilidade efetivamente punido de acordo com a lei Se um brasileiro de classe média atropela um brasileiro pobre da ralé por sua vez as chances de que a lei seja efetivamente apli cada neste caso é ao contrário baixíssima Isso não significa que as pes soas nesse último caso não se importem de alguma maneira com o ocor rido O procedimento policial é geralmente aberto e segue seu trâmite buro crático mas o resultado é na imensa maioria dos casos simples absolvição ou penas dignas de mera contravenção É que na dimensão infra e ultrajurídica do respeito social obje tivo compartilhado socialmente o valor do brasileiro pobre nãoeuropeiza do ou seja que não compartilha da economia emocional do self pontual que é criação cultural contingente da Europa e América do Norte é com parável ao que se confere a um animal doméstico o que caracteriza obje tivamente seu status subhumano Existe em países periféricos como o Brasil toda uma classe de pessoas excluídas e desclassificadas dado que elas não participam do contexto valorativo de fundo o que Taylor chama de dignidade do agente racional o qual é condição de possibilidade para o efetivo compartilhamento por todos da idéia de igualdade nessa dimensão fundamental para a constituição de um habitus que por incorpo rar as características disciplinadoras plásticas e adaptativas básicas para o exercício das funções produtivas no contexto do capitalismo moderno poderíamos chamálo de habitus primário Permitamme precisar ainda um pouco mais essa idéia central para todo meu argumento neste artigo Falo de habitus primário dado que se trata efetivamente de um habitus no sentido que essa noção adquire em Bourdieu São esquemas avaliativos compartilhados objetivamente ainda que opacos e quase sempre irrefletidos e insconscientes que guiam nossa ação e nosso comportamento efetivo no mundo É apenas esse tipo de con senso como que corporal préreflexivo e naturalizado que pode permitir para além da eficácia jurídica uma especie de acordo implícito que sugere como no exemplo do atropelamento no Brasil que algumas pessoas e classes estão acima da lei e outras abaixo dela Existe como que uma rede LUA NOVA Nº 59 2003 70 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 71 invisivel que une desde o policial que abre o inquerito até o juiz que de creta a sentença final passando por advogados testemunhas promotores jornalistas etc que por meio de um acordo implícito e jamais verbalizado terminam por inocentar o atropelador O que liga todas essas intencionali dades individuais de forma subliminar e que conduz ao acordo implícito entre elas é o fato objetivo e ancorado institucionalmente do não valor humano do atropelado posto que é precisamente o valor diferencial entre os seres humanos que está atualizado de forma inarticulada em todas as nossas práticas institucionais e sociais Não se trata de intencionalidade aqui Nenhum brasileiro europeizado de classe média confessaria em sã consciência que considera seus compatriotas das classes baixas nãoeuropeizadas subgente Grande parte dessas pessoas votam em partidos de esquerda e participam de cam panhas contra a fome e coisas do gênero A dimensão aqui é objetiva sub liminar implícita e intransparente Ela é implícita também no sentido de que não precisa ser lingüisticamente mediada ou simbolicamente articula da Ela implica como a idéia de habitus em Bourdieu toda uma visão de mundo e uma hierarquia moral que se sedimenta e se mostra como signo social de forma imperceptível a partir de signos sociais aparentemente sem importância como a inclinação respeitosa e inconsciente do inferior social quando encontra um superior pela tonalidade da voz mais do que pelo que é dito etc O que existe aqui são acordos e consensos sociais mudos e sub liminares mas por isso mesmo tanto mais eficazes que articulam como que por meio de fios invisíveis solidariedades e preconceitos profundos e invisíveis É esse tipo de acordo para usar o exemplo do atropelamento acima que está por trás do fato de que todos os envolvidos no processo policial e judicial na morte por atropelamento do subhomem não europeizado sem qualquer acordo consciente e até contrariando expectati vas explícitas de muitas dessas pessoas terminem por inocentar seu com patriota de classe média Bourdieu não percebe pelo seu radical contextualismo que implica um componente ahistórico a existência do componente transclas sista que faz com que em sociedades como a francesa exista um acordo intersubjetivo e transclassista que pune efetivamente o atropelamento de um francês de classe baixa posto que ele é efetivamente na dimensão sub política e subliminar gente e cidadão pleno e não apenas força física e muscular ou mera tração animal É a existência efetiva desse componente no entanto que explica o fato de que na sociedade francesa numa dimen são fundamental independentemente da pertença a classe todos sejam cidadãos Esse fato não implica por outro lado que não existam outras dimensões da questão da desigualdade que se manifestam de forma tam bém velada e intransparente como tão bem demonstrado por Bourdieu em sua análise da sociedade francesa Mas a temática do gosto como sepa rando as pessoas por vínculos de simpatia e aversão pode e deve ser ana liticamente diferenciada da questão da dignidade fundamental da cidadania jurídica e social que estou associando aqui ao que chamo de habitus primário A distinção a partir do gosto tão magistralmente reconstruída por Bourdieu pressupõe no caso francês um patamar de igualdade efeti va na dimensão tanto do compartilhamento de direitos fundamentais quan to na dimensão do respeito atitudinal de que fala Taylor no sentido de que todos são percebidos como membros úteis ainda que desiguais em ou tras dimensões Em outras palavras à dimensão do que estamos chamando habitus primário se acrescenta uma outra dimensão que também pres supõe a existência de esquemas avaliativos implícitos e insconscientes compartilhados ou seja corresponde a um habitus específico no sentido de Bourdieu como exemplarmente demonstrado por este autor a partir das escolhas do gosto ao qual estamos denominando habitus secundário Essas duas dimensões obviamente se interpenetram de várias maneiras No entanto podemos e devemos separálas analiticamente na medida em que obedecem a lógicas distintas de funcionamento Como diria Taylor as fontes morais são distintas em cada caso No caso do habitus primário o que está em jogo é a efetiva disseminação da noção de dignidade do agente racional que o torna agente produtivo e cidadão pleno Em sociedades avançadas essa disseminação é efetiva e os casos de habitus precário são fenômenos marginais Em sociedades periféricas como a brasileira o habitus precário que implica a existência de redes invisiveis e objetivas que desqualificam os indivíduos e grupos sociais precarizados como subprodutores e subcidadãos e isso sob a forma de uma evidência social insofismável tanto para os privilegiados como para as próprias vítimas da precariedade é um fenômeno de massa e justifica minha tese de que o que diferencia substancialmente esses dois tipos de sociedades é a produção social de uma ralé estrutural nas sociedades periféricas Essa circunstância não elimina que nos dois tipos de sociedade exista a luta pela distinção baseada no que chamo de habitus secundário que tem a ver com a apropri ação seletiva de bens e recursos escassos e constitui contextos cristalizados e tendencialmente permanentes de desigualdade Mas a consolidação efetiva em grau significativo das précondições sociais que permitem a ge LUA NOVA Nº 59 2003 72 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 73 neralização de um habitus primário nas sociedades centrais torna a subci dadania enquanto fenômeno de massa restrito apenas às sociedades pe riféricas marcando sua especificidade como sociedade moderna e chaman do atenção para o conflito de classes específico da periferia O esforço dessa construção múltipla de habitus serve para ultra passar concepções subjetivistas da realidade que reduzem a mesma às interações face a face A situação descrita acima do atropelamento por exemplo seria explicada pelo paradigma personalista hibridista38 a par tir do capital social em relações pessoais do atropelador de classe média que terminaria levando à impunidade Esse é um exemplo típico do des propósito subjetivista de se interpretar sociedades periféricas complexas e dinâmicas como a brasileira como se o papel estruturante coubesse a princípios prémodernos como o capital social em relações pessoais Nesse terreno não há qualquer diferença entre países centrais ou periféricos Relações pessoais são importantes na definição de carreiras e chances individuais de ascensão social tanto num caso como no outro Nos dois tipos de sociedade no entanto os capitais econômico e cultural são estru turantes o que o capital social de relações pessoais não é O conceito de habitus desde que acrescentado de uma concepção não essencialista de moralidade ancorada em instituições fundamentais per mite tanto a percepção dos efeitos sociais de uma hierarquia atualizada de forma implícita e opaca e por isso mesmo tanto mais eficaz quanto a iden tificação do seu potencial segregador e constituidor de relações naturalizadas de desigualdade em várias dimensões variando com o tipo de sociedade analisado Neste sentido esse conceito pareceme um recurso fundamental desde que complementado com uma hermenêutica do sentido e da morali dade como a que Taylor nos oferece É precisamente esse tipo de enfoque teórico alternativo que me parece permitir que se navegue entre as duas mar gens polares de um culturalismo essencialista por um lado e de teorias de médio alcance que perdem qualquer relação com realidades mais abrangentes por outro As conseqüências práticas e políticas desse tipo de diagnóstico alternativo que revaloriza os componentes políticos e sociocul turais relacionados à temática da desigualdade e da sub cidadania certa mente não passam desapercebidas ao leitor atento JESSÉ SOUZA é professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro Iuperj 38 Na versão por exemplo já citada neste trabalho de um Roberto DaMatta NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA OU O QUE É SER GENTE JESSÉ SOUZA Este texto discute e combina algumas teorias contemporâneas sobre a origem e a dinâmica do reconhecimento social como a de Charles Taylor com abordagens socioculturais acerca da temática da desigualdade como as de Pierre Bourdieu e Reinhard Kreckel de modo a aplicálas de forma modificada e produtiva para o esclarecimento de questões centrais da modernidade periférica como os fenômenos da subcidadania e da natu ralização da desigualdade Seu objetivo é elaborar uma concepção teórica alternativa às abordagens personalistas e patrimonialistas desses fenô menos assim como às percepções conjunturais e pragmáticas produto da parcelização e fragmentação do conhecimento que perdem o vínculo com qualquer realidade mais ampla e totalizadora Palavraschave Modernidade periférica reconhecimento social desigualdade pensamento social brasileiro NON RECOGNITION AND UNDERCITIZENSHIP OR WHAT IS IT TO BE A HUMAN BEING This article discusses and matches some contemporary theories on the origin and dynamics of social recognition such as Charles Taylors and sociocultural approaches to the subject of inequality such as Pierre Bourdieus and Reinhard Kreckels in order to apply them in a modified and productive way to central matters of peripheral modernity such as the undercitizenship and the naturalization of inequality Its aim is to develop an alternative conception to the patrimonialist and personalist approach es to the subject as well as to shortrange and pragmatic perceptions which are the result of the partition and fragmentation of knowledge unconcerned about understanding a more embracing reality Keywords Peripheral modernity social recognition inequali ty Brazilian social thought RESUMOSABSTRACTS 19 Pierre Clastres 19341977 Ovídio de Abreu Filho Introdução A experiência direta do terreno as monografias dos pesquisadores e as mais antigas crônicas não deixam nenhuma dúvida sobre isso se existe alguma coisa completamente estranha a um índio é a ideia de dar U11 ordem ou de ter de obedecer Clastres 2003 28 O nome de Pierre Clastres permanece ligado à ideia de sociedade contra o I tado Ideia de origem etnológica porque foi certamente determinada por problema conceitos desenvolvidos no campo da antropologia Mas isto não impede que se imagi que ela também tenha sido suscitada por questões filosóficas e talvez por inquietaçê provenientes de experiências políticas exteriores ao domínio do pensamento propr mente antropológico 1 O jovem Clastres2 não pode ter sido indiferente às duas grandes guerras mundi que dividiram e devastaram o continente europeu nem às guerras coloniais em particul a Guerra da Argélia Muito menos ainda ao nazismo e aos fascismos que expuseram âmbito mesmo da civilização ocidental sua radical intolerância à diferença desta manifestada no holocausto dos judeus e na perseguição assassina de outras minori como ciganos homossexuais doentes mentais etc Como outros cientistas e filósofi ele deve ter observado com atenção inquieta que a Segunda Guerra vencida pelas for aliadas racionais e democratas concluiuse com um genocídio atômico com os bomb leios de Hiroshima e Nagasaki Mas isto não é tudo pois há algo ainda mais decisi uma decepção com a promessa comunista a esperança aberta pela revolução soviética possibilidade de um novo mundo mundo comunista sem classes e sem Estado cila com o stalinismo e com a violência do Estado soviético contra qualquer resistêrn Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ Professor do Departamento Antropologia e do Programa de PósGraduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense UF 282 interna ao seu domínio O movimento comunista dividese em tendências divergentes o marxismo perde sua aura revolucionária e revela sua face de ideologia de partido e de Estado Uma enorme desconfiança incide sobre a dialética o homem e a razão Foi o drama de 1956 a invasão da Hungria e o anúncio oficial por Khrushchev dos crimes de Stalin que modificou o agenciamento político e existencial dos quatro estudantes de filosofia militantes comunistas da célula do PC da Sorbonne em torno de François Châtelet Pierre Clastres Lucien Sebag Michel Cartry e Alfred Adler fa zendoos passar da filosofia para a etnologia Cartry e Adler orientaram suas pesquisas para a África com Marcel Griaule Clastres e Sebag escolheram a América com Alfred Métraux e Claude LéviStrauss Segundo uma ordenação retomada por LéviStrauss cf ensaio neste livro a an tropologia comporta três dimensões Ela começa como etnografia observação e descri ção de uma sociedade ou grupo particular ela continua como etnologia pela aplicação do método comparativo que necessariamente mobiliza um conjunto de pesquisas etno gráficas conquista uma primeira síntese sempre parcial que pode ser geográfica histó rica ou sistemática e finalmente ampliando seu espectro comparativo a antropologia alcança a última etapa da síntese com a conquista de universais culturais Observese que neste esquema a palavra antropologia aparece duas vezes uma primeira vez desig nando uma extremidade da série significando a síntese final momento da deter minação de universais da Cultura e uma outra vez como categoria que subsume as três dimensões do conhecimento antropológico Há aí a indicação de que na antropologia de LéviStrauss as análises etnográficas e etnológicas são conectadas no projeto de determinação de universais fornecendo os elementos a serem inte grados numa nova função de universalização função simbólica que rechaça além de qualquer teleologia histórica as essências inteligíveis e as instâncias subjetivas sejam elas metafísicas ou transcendentais Havia nessa atitude estruturalista mais do que a promessa de um novo pensamen to capaz de afirmar a alteridade como tal pois com efeito as análises apresentadas por LéviStrauss nas Estruturas elementares do parentesco 1949 no Totemismo hoje 1962 no Pensamento selvagem 1962 e também nas Mitológicas 1944 1967 1968 1971 revela vam respectivamente a universalidade da proibição do incesto a regra por excelência ie qualquer sociedade humana e sobretudo a universalidade de uma função simbóli a como potência subjacente a qualquer sistema de classificação e a qualquer forma de pensamento inclusive do pensamento científico As Mitológicas dissolvem a oposição io logos e do mito demonstram não ser mais possível opor o mito ao real como ficção rrem ao racional como absurdo Fulgurava o desembaraço de uma antropologia hábil 283 em determinar ordens simbólicas inconscientes irredutíveis ao primado da identidade sobre a diferença e às oposições entre o eu e o outro a natureza e a cultura o sensível e o inteligível a razão e o desatino a humanidade e a vida A radicalidade do pensamento de LéviStrauss foi plenamente percebida e sauda da na definição da originalidade da antropologia assim formulada pelo filósofo Maurice MerleauPonty A etnologia não é uma especialidade definida por um objeto particular as sociedades primitivas é uma maneira de pensar aquela que se impõe quando o objeto é o outro e exige de nós que nos transformemos 2010 1451 Neste ponto extremo o pensamento de LéviStrauss tocou profundamente Clastres que ao seu modo também almeja uma nova antropologia capaz de estabelecer um diálogo entre a civilização oci dental e as civilizações primitivas Não qualquer etnologia não a etnologia clássica que repete no seu exercício a partilha estabelecida pela razão ocidental entre razão e desati no que ao ignorar a linguagem própria das civilizações primitivas extingue qualquer possibilidade de diálogo Não a antropologia evolucionista mas como disse Clastres a propósito da antropologia de LéviStrauss uma outra etnologia à qual seu saber permi tisse forjar uma nova linguagem infinitamente mais rica uma etnologia que superando a oposição tão central em torno da qual se edificou e se afirmou nossa civilização se transformaria ela mesma num novo pensamento CLASTRES 1968 90 Contudo nem marxista nem estruturalista não é para o domínio das universali dades que se encaminham as pesquisas de Clastres Seu pensamento se orienta por uma outra questão que determina que comece por um questionamento políticoepistemológi co da partilha imposta pela razão ocidental A antropologia de Clastres tem o sentido de redefinir os termos e de questionar o valor dos valores que avaliam as sociedades primiti vas pelo padrão da civilização ocidental que dispõe toda alteridade no campo da desrazão Diante desta partilha teórica e prática infamante Clastres emite um grito que não cessará de ressoar ao longo de sua obra é preciso levar a sério as sociedades pri mitivas A este grito corresponde um novo conceito de sociedade primitiva Na sua formulação mais concisa este conceito pode ser assim enunciado as sociedades pri mitivas são sociedades sem Estado e as sociedades sem Estado são sociedades contra o Estado Evidentemente a este novo conceito corresponde uma outra perspectiva que altera o sentido dominante relacionado à ideia de etnologia Desde essa nova orientação a palavra etnologia não designa mais uma primeira síntese delimitada exteriormente por um balizamento geográfico ou histórico à espera de uma outra mais verdadeira por que mais universal A antropologia política de Clastres é sobretudo uma etnologia Não porque seja parcial no sentido de apenas circunscrever um subconjunto da experiência humana mas porque é sob uma nova orientação etnológica que se pode contemplar uma diferença radical que introduz uma rachadura incontornável no conjunto das sociedades humanas entre o antes da liberdade e o depois da servidão No lugar da partilha da razão ocidental que opõe primitivos e civilizados sociedades sem Estado e sociedades 284 com Estado Clastres declara uma outra diferença etnológica entre Sociedades contra o Estado e Sociedades de Estado Esta afirmação envolve uma dimensão genealógica um questionamento do sen tido e do valor da Razão ocidental que prejulga e desqualifica qualquer outra forma de pensamento e de vida Que forças se exprimem e que vontade se manifesta na panilha da razão Uma genealogia do Ocidente Conforme sua narrativa dominante a metafísica ocidental desde Platão tem como projeto alcançar a ciência dizer as coisas tal como elas são tem como prática elaborar um discurso capaz de legitimarse de modo imanente tem como objeto o Ser como instrumento a razão e como objetivo reduzir a violência e mostrar que ela é insensatez Em decorrência desse projeto porque nunca deixou de ostentar esse ideal a civilização ocidental se concede uma posição transcendente com respeito às demais culturas Contudo o colonialismo europeu o genocídio e o etnocídio persistentes como po lítica contra os indígenas das Américas exibem segundo a análise atenta de Clastres a violência como elemento imanente ao humanismo e à civilização ocidental E contra riando a promessa da metafísica e a presunção ocidental o que se constata é a estranha vizinhança entre violência e razão na qual a primeira aparece como condição e meio da segunda Ou seja segundo esta análise a violência não é o negativo da razão muito ao contrário de fato a razão necessita da violência para desdobrarse como de direito se deve apontar para uma violência imanente à própria razão ocidental à sua atitude de depre ciar e de segregar toda alteridade e toda diferença remetendoas ao campo do desatino O fato é que a civilização ocidental não se inclui no cenário das demais experiên cias humanas seu desdobramento é sempre contra o outro jogando qualquer alteridade no campo da desrazão Essa atitude foi relacionada na antropologia a um elemento gené tico imanente à essência da cultura em geral a um princípio que estaria na base de uma tendência universal de depreciar a alteridade O etnocentrismo seria esse princípio que constrange toda cultura a avaliar as demais pelo seu próprio padrão Contudo um pen samento que problematiza os fundamentos mesmos da ideia que opõe o Ocidente como razão e o resto como desatino não pode se contentar com uma compreensão abstrata do etnocentrismo Não é porque toda cultura se configura como ponto de vista determinado por um sistema complexo de referências composto de julgamentos de valor motivações conscientes e inconscientes que conforma a percepção de outras culturas que se deve concluir que todos os pontos de vista sobre o outro se equivalem Avaliada desde o horizonte dessa nova diferenciação que distingue dois tipos fundamentais de sociedades a ideia de etnocentrismo deve ser dramatizada Quando referido ao novo sentido da partilha à diferença irredutível entre sociedades de Estado e 285 sociedades contra o Estado o etnocentrismo não pode mais ser pensado como uma pro priedade universal da vida cultural em geral O conceito de etnocentrismo é diferenciado e admite a determinação de tipos de etnocentrismo Como diz Clastres se toda cultura é etnocêntrica somente a cultura ocidental é etnocida 2004 81 ou seja se toda cultura tende a depreciar o outro somente algumas conduzem essa depreciação a uma política de aniquilamento dos outros modos de vida O que distingue efetivamente a cultura ocidental O que faz com que a cultura ocidental seja necessariamente etnocida Eis a questão que segundo Clastres permite ultrapassar uma compreensão abstrata do etnocentrismo que desconsidera suas diferen ças concretas A esse respeito Clastres associa a cultura ocidental a duas circunscrições fundamentais o Estado e o capitalismo O conceito de etnocídio diferentemente do conceito de genocídio que remete à ideia de raça e à vontade de extermínio de uma minoria étnica referese à ideia de cultura e à vontade de destruição de outros modos de vida e de pensamento Em ambos os casos tratase da negação da alteridade ora dirigida ao corpo ora à alma do outro Morte sempre morte da alteridade Mas se o genocídio exprime no dizer de Clastres um desejo de absoluta supressão física do outro o etnocídio exprime o princípio de apli cação de um projeto de redução espiritual do Outro ao Mesmo Resta ainda um ponto fundamental anotado por Clastres a civilização ocidental é etnocida em primeiro lugar no interior dela mesma O Estado nacional por exemplo deve tudo homogeneizar impor uma língua oficial uma religião oficial uma adminis tração unificada contra todas as particularidades locais etc Esta observação permite que Clastres vá ainda mais longe na elucidação das relações entre o etnocídio e o Estado o primeiro não é um simples componente do segundo há um vínculo mais profundo entre o desejo etnocida e o desejo de Estado O etnocídio argumenta Clastres é uma prática logicamente conforme à essência do Estado uma vez que ambos correspondem ao exer cício de forças centrípetas que conduzem à dissolução do múltiplo no Um Nesse nível formal Clastres constata que a prática etnocida e a máquina estatal funcionam da mesma ma neira e produzem os mesmos efeitos sob as espécies da civilização oci dental ou do Estado revelamse sempre a vontade de redução da diferen ça e da alteridade o sentido e o gosto do idêntico e do Um CLASTRES 2004 83 A reflexão de Clastres sobre os vínculos do etnocídio com as culturas ocidentais não se restringe a apontar essa sua conformidade com o Estado Sua análise pondera as diferenças concretas entre tipos de Estado e afirma que a diferença pertinente entre os estados bárbaros Império Inca antigo Egito despotismos orientais etc e os estados civilizados democracias totalitarismos e ditaduras diversas aquela que torna o etno cídio sem limites está para ele no seu regime de produção no capitalismo 286 a sociedade industrial a mais formidável máquina de produzir é por isso mesmo a mais terrível máquina de destruir Raças sociedades indi víduos espaço natureza mares florestas subsolo tudo é útil tudo deve ser utilizado tudo deve ser produtivo de uma produtividade elevada ao seu limite máximo de intensidade CLASTRES 1980 86 Fica então elucidado por Clastres que a escolha deixada pelo Ocidente civilização de Estado e sociedade capitalista às demais sociedades humanas era um dilema ou ceder à produção ou desaparecer ou etnocídio ou genocídio CLASTRES 2004 86 Diante disto como não desconfiar que a intolerância obstinada do humanismo não exprima uma impossibilidade estrutural da cultura ocidental de entrar em diálogo com outras culturas E como deixar de prolongar essa desconfiança até a própria antro pologia Como poderia ela ficar totalmente imune a essa intolerância constitutiva da cultural ocidental A ideia de sociedade contra o Estado A antropologia política de Clastres assumiu o desafio de pensar o que se ofereceu como inconcebível para o pensamento europeu a sociedade primitiva percebida como lugar de uma diferença absoluta como espaço estranho e impensável da ausência ausência de tudo o que constitui o universo sociocultural dos observadores mundo sem hierarquia homens que não obedecem a ninguém sociedade indiferente à posse e à riqueza chefes que não mandam culturas sem moral porque ignoram o pecado sociedades sem classes sociedades sem Estado etc CLASTRES 2004 234 Essa percepção dos conquistadores e dos primeiros viajantes delineou a visão de povos sem fé sem lei e sem rei que reaparece na antropologia clássica não mais como espanto primeiro mas domesticada em discursos com pretensão científica Visões evolu cionistas naturalistas economicistas marxistas etc compartilham uma imagem domi nante imagem dogmática do pensamento antropológico que reveste de incompletude as sociedades primitivas estas são sociedades mutiladas sociedades sem Estado socieda des sem escrita sociedades sem história sociedades sem desenvolvimento tecnológico sociedades de economia de subsistência sem mercado etc Clastres respondeu a esse desafio com a ideia de sociedade contra o Estado Essa ideia contém dois movimentos e desdobrase em dois tempos Ela envolve inicialmente uma concordância mas essa aquiescência diabólica em sua aparente inocência se pro longa numa afirmação que questiona a imagem dogmática do pensamento antropológi co Sim de fato as sociedades primitivas são sociedades sem Estado mas há um outro sim uma outra afirmação que exprime uma reviravolta profunda e decisiva de direito as sociedades sem Estado são sociedades contra o Estado O que se passa com essa redu plicação da afirmação 287 A ideia de sociedade contra o Estado ao envolver nela essa dupla afirmação in troduz a dimensão do desejo no conceito mesmo de sociedade primitiva A segunda afirmação revela um outro desejo o desejo dos selvagens irredutível à falta de algo que não se possui e que se almeja Um desejo afirmador imanente positivo constituinte de uma maneira de viver A ideia de sociedade contra o Estado traz à tona um desejo produtivo o desejo selvagem do múltiplo que constitui a sociedade primitiva como so ciedade indivisa que avessa a qualquer vontade de comandar ou de obedecer recusa na sua essência mesma a possibilidade de sua divisão Esse desejo afirmativo e criador ima nente ao exercício e ao ser da sociedade primitiva envolve no seu funcionamento por assim dizer molecular uma potência de antecipação e de evitação de todo movimento que possa vir a favorecer o nascimento de uma vontade de comandar e de obedecer que possa vir a ameaçar a integridade da sua organização indivisa que possa vir a ocasionar a emergência do poder coercitivo ou seja do Estado Conduzir a análise até essa dimensão talvez seja condição para que se possa levar a sério os selvagens Pois o que se vê nessa dimensão não é mais o vazio de uma ausência presumida pela fórmula sociedades sem Estado mas antes a vitalidade do pensamento dos selvagens e a consistência sociopolí tica das sociedades primitivas Há ainda um outro aspecto importante A distinção entre dois tipos de sociedade absolutamente irredutíveis um ao outro sociedades sem Estado e sociedades contra o Estado recoloca para Clastres o problema da passagem de um tipo ao outro Com o abandono de qualquer explicação apoiada em pressupostos evolucionistas continuístas teleológicos o aparecimento do Estado tornase enigmático Neste ponto revelasera dical o afastamento entre o pensamento de Clastres e o marxismo pois Clastres recusa o encadeamento mecânico disposto na seguinte série causal o desenvolvimento das forças produtivas determina o aparecimento das classes sociais e do seu regime de exploração que por sua vez requer e condiciona como modificação superestrutura o surgimento do Estado Posto fora de todo encadeamento mecânico de causas o Estado perde sua necessidade histórica e sua emergência ou existência desponta e persiste como aconte cimento não elucidado Com efeito a ideia de sociedade contra o Estado subverte a lógica que subordina a compreensão das sociedades primitivas ao modelo do Estado com ela Clastres afirma a universalidade do poder político e o caráter apenas regional da concepção ocidental do poder Quando a questão da origem do Estado deixa de se encadear com a questão do surgimento do estado de sociedade é o Estado como problema que se põe a girar em torno das sociedades contra o Estado Não se trata mais de estimar as sociedades sem Estado do ponto de vista das sociedades contra o Estado Assim a ideia de sociedades contra o Estado remete as sociedades sem Estado às sociedades com Estado não como ao seu destino ou como objetivo final da humanidade mas sob a forma de problema Qual é a origem do Estado 288 A ideia de sociedade contra o Estado desdobrase portanto em dois problemas distintos e relacionados Como fazem as sociedades primitivas para não ter Estado e de onde provém o Estado A articulação desses problemas eleva diz Clastres a etnolo gia à dimensão de uma teoria geral a construir da sociedade e da história É importante sublinhar o a construir Em todo caso Clastres imagina essa teoria como uma antropo logia política geral que se delineia em duas grandes interrogações l O que é o poder político Isto é O que é a sociedade e 2 Como se passa do poder político não coercitivo ao poder político coercitivo Isto é O que é a história CLASTRES 2003 39 Se a ideia de sociedade contra o Estado comporta no seu horizonte estes dois problemas a obra de Clastres não pode perdêlos de vista mesmo que ela não ofereça a eles uma res posta direta Por que então Clastres conserva essas interrogações que ele reconhece não ser ainda capaz de responder A ausência de respostas a esses problemas talvez tenha o sentido de ressaltar o Acontecimento inominável 3 que racha a humanidade entre um antes e um depois da servidão voluntária entre um antes e um depois do Estado mantendo sob suspeita toda tentativa de suturar essa rachadura toda resposta continuísta e toda integração hu manista etnocida De todo modo além desse sentido o reconhecimento da incapacidade de res ponder a essas interrogações reorienta o olhar de Clastres se parece ainda impossí vel determinar as condições de aparecimento do Estado podemos em troca precisar as condições de seu não aparecimento CLASTRES 2003 222 Essa reconversão é mais profunda pois com ela o problema da origem do Estado muda de estatuto deixa de ser um problema de antropologia geral e tornase um problema etnográfico recolado pela pesquisa etnográfica e pela análise etnológica da filosofia e das instituições políticas dos selvagens O mais relevante passa a ser investigar se e como esse problema concerne às sociedades primitivas Talvez por isso a partir dessa nova perspectiva as instituições pri mitivas apareçam para Clastres como objetos multifacetados agendamentos complexos de forças e movimentos divergentes O paradoxo da chefia indígena Um ano antes de sua partida para os Guayaki do Paraguai4 Pierre Clastres escreve Troca e poder filosofia da chefia indígena seu primeiro ensaio de etnologia que con tém como que contraído o programa de sua pesquisa futura Se é possível como foi dito compreender a obra de Clastres como um rigoroso desdobramento da ideia de socie dade contra o Estado devese considerar que essa ideia aparece pela primeira vez com caráter de esboço neste seu artigo cujo problema é entender o sentido e o funcionamen to de uma estranha instituição presente na grande maioria das sociedades americanas a instituição de uma chefia destituída de poder de comando 289 Clastres se recusa a ver nisso nessa ausência de poder de comando do chefe indí gena a evidência de uma falta a prova de que as sociedades primitivas carecem de uma efetiva organização política Por isso recusando as interpretações vigentes na literatura visando lançar um novo olhar sobre os materiais diversos compilados no Handbook oj SouthAmerican Indians Clastres aborda a chefia indígena não como um elemento exótico destituído de sentido mas como um elemento que solicita o seguinte problema Como pensar essa disjunção entre a chefia e o poder Arrancada do enquadramento evolucionista que situa as sociedades primitivas numa linha evolutiva num estágio de evolução prépolítico a instituição da chefia indí gena força o antropólogo a interrogar o sentido da estranha persistência de um poder quase impotente de uma chefia sem autoridade de uma instituição que funciona sem conteúdo CLASTRES 2003 47 Desta forma Clastres retoma a caracterização mera mente descritiva proposta por Robert Lowie para interrogar sistematicamente o sentido da chefia indígena Segundo essa descrição o chefe deve exercer uma função moderado ra visando cuidar da unidade do grupo ser um bom orador e generoso com seus bens tendo o privilégio da poliginia Clastres introduz uma ordem nesta lista Primeiro distingue o exercício da chefia dos elementos associados ao chefe O exercício efetivo da chefia exibe a face positiva do chefe como apaziguador e como organizador das atividades econômicas e das ce rimônias A análise dos elementos associados ao chefe dom oratório generosidade e poliginia revela que esses elementos são os mesmos cuja troca constitui a sociedade como tal e que sancionam a passagem da natureza para a cultura Clastres assinala uma diferença de nível entre esses dois conjuntos de elementos e considera que não se deve confundir o nível empírico da instituição que diz respeito ao exercício efetivo da chefiai com o nível transcendental da instituição que diz respeito ao conjunto das prestações e das contraprestações que organizam as relações entre a estrutura social e a instituição política da chefia O que se observa no primeiro nível é a aparente falta de sentido da instituição que exibe um chefe prestigioso mas submetido à vontade do grupo e sem qualquer poder decisório A observação do segundo nível mostra que as condições de possibilidade da chefia indígena concernem aos três níveis fundamentais da troca de bens de mulheres e de palavras Contudo uma análise atenta evidencia que a chefia indígena nesses três níveis fundamentais rompe com o princípio da reciprocidade o chefe recebe mais mu lheres do que retribui doa mais bens do que recebe e monopoliza o exercício do discurso sem interlocutores Assim paradoxalmente no nível transcendental da instituição no qual o poder se relaciona com os três níveis estruturais da sociedade o chefe transgride o princípio da reciprocidade que condiciona a instauração da ordem cultural Perspicácia da análise de Clastres em ter evidenciado a ruptura da chefia com o princípio de reciprocidade Agudeza de espírito em ter decifrado o sentido paradoxal 290 de tão grande dissonância entre a ordem política e a ordem cultural Nessa dimensão de contestação da cultura a chefia não pode se configurar como uma instituição com sentido unívoco em conformidade absoluta com a ordem cultural E ainda menos o chefe pode ter um sentido não ambíguo pois é um personagem prestigioso mas tam bém perigoso Ambivalência da chefia ambivalência do chefe Positividade da política primitiva pois se a chefia é o lugar no qual a reciprocidade cessa de regular a circulação das mulheres dos bens e da linguagem a esfera política deve aparecer como exterior e como antagônica à estrutura do grupo é na relação negativa mantida com o grupo que se enraíza a impotência da função política a rejeição desta para o exterior da sociedade é o próprio meio de reduzila à impotência CLASTRES 2003 59 Esta proposição ace na para outra mais decisiva que relaciona o sentido da chefia a uma intencionalidade sociológica inconsciente a relação do poder com a troca por ser negativa não deixa de nos mostrar que é ao nível mais profundo da estrutura social lugar da constituição inconsciente de suas dimensões de onde advém e onde se encerra a problemática desse poder Em outros termos é a própria cultura como diferença maior com a natureza que se investe na recusa desse poder CLASTRES 2003 6061 E nessa dimensão desvelase uma identificação essencial do poder coercitivo e da natureza As sociedades primitivas colocam assim em seus próprios termos a questão do poder o poder coercitivo transcendente aparece como contestação da própria cultura Há aí um pensamento distinto das filosofias políticas ocidentais especialmente a de Hobbes o Estado é remetido não à origem do estado de sociedade à cultura mas ao des regramento da natureza Com efeito Clastres relaciona a constituição da esfera política primitiva a uma intuição de que o poder é em sua essência coerção que a atividade unificadora da função política se exerceria não a partir da estrutura da sociedade e conforme a ela mas a partir de um mais além incontrolável e contra ela que o poder em sua natureza não é senão um álibi furtivo da natureza em seu poder CLASTRES 2003 61 Clastres vê na intuição dessa ameaça o pressentimento de que a transcendência de um poder encerra um risco mortal para o grupo Ao considerar essa intuição e esse pressen timento ele propõe a hipótese de que as sociedades primitivas instituem sua esfera política como um verdadeiro mecanismo de defesa contra a emergência de um poder transcenden te pois no domínio da política primitiva a chefia é apenas lugar aparente do poder o lugar real é o próprio corpo social que o detém e o exerce como unidade indivisa As sociedades primitivas instituem a chefia para mostrar o poder como negativida de a ser controlada Nelas o chefe permanece sempre numa relação de dependência real com o grupo sempre na posição de devedor em relação ao grupo sempre numa relação de 291 subordinação com respeito ao grupo O chefe é aquele que está obrigado a falar e a ser gene roso sob pena de ser abandonado pelo grupo Sobretudo o privilégio da poliginia mantém o chefe endividado e aprisionado ao grupo A filosofia da chefia indígena diferentemente da filosofia de Hobbes associa o po der coercitivo a virtualidade do Estado ao ressurgimento caótico da natureza ou seja à destruição da cultura A análise de Clastres cessa quando discerne no âmago da chefia in dígena o desejo das sociedades selvagens de perseverarem na indivisão essa vontade de estabelecer instituições que funcionem corno maneiras de evitar a aparição de um poder separado fundado sobre a coerção Sutileza da política primitiva que determina a chefia corno instituição contra o Estado instância de antecipação e conjuração da emergência do poder coercitivo o verdadeiro negativo da sociedade primitiva Arqueologia da violência a guerra nas sociedades primitivas Clastres procede nos seus últimos escritos reunidos postumamente no livro Ar queologia da violência pesquisas de antropologia política publicado em 1980 do mesmo modo que procedeu no seu primeiro texto e em todos os outros que escreveu Corno já foi dito ele começa por extrair o fato etnográfico dos clichês que o recobrem Após esse trabalho de desbastamento o fato ressurge corno objeto problemático e corno instituição positiva que incita o pensamento a questionar as imagens existentes sobre as sociedades primitivas Assim de caso em caso considerando a chefia o riso indígena a iniciação o profetismo tupiguarani a guerra etc Clastres estende e aprofunda o seu pensamento sobre o ser da sociedade primitiva No ensa10 Arqueologia da violência a guerra nas sociedades primitivas ao in terrogar a guerra em sua positividade Clastres apresenta a sua mais rica descrição do funcionamento sociopolítico da sociedade primitiva enquanto sociedade contra o Estado Neste caso o fato incontornável é a paixão dos primitivos pela guerra amplamen te noticiada por exploradores missionários mercadores ou viajantes nas mais diversas regiões do planeta Considerando essa massa de documentos Clastres não hesita em afir mar que a guerra apresenta nas sociedades sem Estado urna dimensão de universalidade as sociedades primitivas são sociedades guerreiras são sociedades voltadas para a guerra E não deixa de assinalar que essa primeira imagem das sociedades primitivas ressoa na filosofia política de Thomas Hobbes corno confirmação empírica de sua especulação fi losófica que opõe ao estado de sociedade que é para ele sociedade do Estado um estado de natureza que se distingue pela guerra de todos contra todos Clastres assinala o inesperado desaparecimento da guerra no discurso da etnologia recente que segundo ele se explica pelo fato de que as sociedades primitivas quando se tornam objeto de estudo já estão desfiguradas a caminho da morte instaladas num paci fismo forçado pelos estados nacionais Mas ele acrescenta ainda urna outra razão interna 292 à história da disciplina tratase da produção e da difusão de um conjunto de discursos que tendem a excluir a guerra do domínio das relações sociais Clastres destaca inicialmente a concepção naturalista de LeroiGourhan que apresenta a guerra como um comportamento de agressão inscrito na realidade biológica do homem Inerente ao homem como ser natural a agressividade encontra sua finalida de na subsistência Codificada socialmente a agressão manifestase na caça e na guerra pensada como um análogo da caça Os caçadores tornamse guerreiros e os guerreiros detentores da força armada dominam o restante da comunidade O social é reduzido ao natural ao biológico O cortejo reducionista prossegue com um discurso economicista que qualifica a economia primitiva como economia de subsistência economia que seria incapaz em decorrência de seu subdesenvolvimento tecnológico de responder aos desafios de um meio natural que ela não consegue dominar Sociedade da miséria sobre esse fundo sob a ação da concorrência vital prosperaria o fenômeno da guerra Clastres observa que esse discurso enunciado científico do postulado popular ajustase perfeitamente à antro pologia marxista e ao marxismo propriamente dito que como teoria da história fundada na tendência das forças produtivas ao desenvolvimento deve atribuirse como poto de apoio uma espécie de grau zero das forças produtivas é exatamente a economia primitiva pensada desde então como economia da miséria como economia que querendo sair da miséria tenderá a desenvolver suas forças produtivas CLASTRES 2004 226 Clastres ataca esses discursos economicistas logicamente tão bemarranjados com uma pergunta muito simples É a economia primitiva sim ou não uma economia da miséria E responde que as pesquisas mais escrupulosas da antropologia econômica de monstram que a economia dos selvagens permite uma satisfação total das necessidades materiais da sociedade ao preço de um tempo reduzido de atividade de produção e de uma baixa intensidade dessa atividade a sociedade primitiva seletiva na determinação de suas necessidades em vez de consumirse na luta pela sobrevivência são segundo a fórmula de Marshall Sahlins 1972 cf ensaio neste livro as primeiras sociedades de abundância E acrescenta ainda considerando o pequeno tempo dedicado à produção as sociedades primitivas são verdadeiras sociedades de lazer Isto posto a explicação econo mista da guerra perde seu ponto de apoio e o econômico não pode mais explicar a guerra Há ainda o discurso estruturalista Este situa a guerra no âmbito das relações so ciais mas não é capaz de pensar a guerra em si mesma A lógica da reciprocidade subor dina a guerra à troca as guerras são trocas malsucedidas e a troca são guerras potenciais pacificamente resolvidas Neste discurso que equaciona o ser da sociedade primitiva como um serparaatroca a guerra não possui em si mesma nenhuma positividade e 293 não apresenta consistência institucional alguma Tudo estaria muito bem diz Clastres se não fosse a inadequação desse discurso à realidade etnográfica à quase universalidade do fenômeno da guerra primitiva Clastres contrapõe a posição de Hobbes a sociedade primitiva como guerra de todos contra todos e a de LéviStrauss a sociedade primitiva é a troca de todos com todos e recusa as duas A sociedade primitiva é o espaço da troca e é também o lu gar da violência a guerra tanto quanto a troca pertence ao ser social primitivo Não se pode e é o que é preciso estabelecer pensar a sociedade primitiva sem pensar a guerra CLASTRES 2004 231 Não há nessa proposição conciliação nem com Hobbes nem com LéviStrauss E sobretudo o erro de LéviStrauss está na confusão dos planos em que se situam a troca e a guerra na sociedade primitiva Ao recusar a hipótese do continuísmo econômico que apresenta a pretensa miséria primitiva como causa de uma suposta concorrência vital entre os grupos primitivos e ao questionar o continuísmo lógico que faz da guerra um acidente que vem conturbar o funcionamento da lógica da reciprocidade Clastres isola o fato da guerra prepara o terreno para afirmar a guerra como instituição política Esse isolamento da guerra como instituição politicamente consistente e plenamente social força novamente o pensamento a examinar o ser da sociedade primitiva A sociedade primitiva é indivisa não conhece a separação entre senhores e sú ditos nem a distinção entre proprietários e não proprietários e funciona de maneira a impedir a desigualdade a exploração e a divisão A sociedade primitiva é uma multipli cidade de comunidades locais que estendem sua codificação sobre um território com preendido como espaço exclusivo de exercício dos direitos comunitários Todas orienta das por um ideal de autarquia econômica e de independência política Esse ideal implica um movimento de exclusão pois é contra as outras comunidades que cada sociedade afirma seu direito privilegiado sobre um território determinado Com efeito os ideais de autarquia econômica e de independência política mostram que as relações de cada comunidade com os grupos vizinhos é sobretudo imanente à ordem política irredutível a uma determinação de ordem econômica A sociedade primitiva é segundo a análise de Clastres ao mesmo tempo totalidade e unidade Cada comunidade enquanto indivisa pode se pensar como um Nós Esse Nós por sua vez se pensa como totalidade na relação igual que mantém com os Nós equivalentes que constituem as outras aldeias tribos bandos etc A comunidade primitiva pode se afirmar como totalidade porque se institui como unidade ela é um todo finito porque é um Nós indiviso CLASTRES 2004 237238 Contudo esses ideais não isolam as comunidades locais ao contrário eles supõem e mobilizam um sistema dinâmico de relações que está necessariamente em movimen to perpétuo A comunidade primitiva ao invés de permanecer fechada em si mesma 294 abrese para as outras na intensidade extrema da nolênu gucreia C2 e conduzido aos seguintes problemas Como pensar ao mesmo tem s e i A guerra é um simples acidente ou é uma condição estruturante da s7ie tiva Eis que Clastres se vê nesse ponto obrigado a voltar às ideias de Hoites e i LéviStrauss para recusar esses dois modelos e escapar da cilada que se monta quando se orienta essa contraposição para constranger o pensamento da sociedade primitia à seguinte alternativa a guerra de todos contra todos ou a troca de todos com todos A hipótese de LéviStrauss segundo a compreensão de Clastres é uma lógica da identificação ela entra em contradição com a lógica da sociedade primitiva a comuni dade primitiva recusa identificarse com as outras perder sua diferença e a capacidade de se pensar como autônoma Essa recusa da lógica da identificação manifesta uma lógica centrífuga imanente à sociedade primitiva que mantém as comunidades lo cais na dispersão que lhes é própria Tratase de uma lógica sociológica Há imanente à sociedade primitiva uma lógica centrífuga da atomiza ção da dispersão da cisão de modo que cada comunidade tem necessi dade para se pensar como tal como totalidade una da figura oposta do estrangeiro ou do inimigo e assim a possibilidade da violência está ins crita de antemão no ser social primitivo a guerra é uma estrutura universal da sociedade primitiva e não o fracasso acidental de uma troca malsucedida CLASTRES 2004 239 Nesse sentido Clastres pode considerar a guerra primitiva como uma instituição plenamente política social e não natural uma política do múltiplo orientada contra o surgimento do Um uma política constitutiva não do estado de sociedade em geral mas do dinamismo das sociedades sem Estado das sociedades contra o Estado Clastres pondera que se a sociedade primitiva não pode consistir na paz universal que alienaria a sua liberdade ela também não pode se entregar à guerra total que aboli ria a sua igualdade Com efeito diz ele O ser social tem portanto simultaneamente necessidade da troca e da guerra para poder a uma só vez conjugar o ponto de honra autonomista e a recusa da divisão É com essa dupla exigência que se relacionam o es tatuto e a função da troca e da guerra que se desdobram em planos diferentes CLASTRES 2004 240 Esta posição não significa o reconhecimento de uma continuidade que asseguraria a passagem da guerra à troca ou viceversa A novidade da análise de Clastres está em mostrar que a guerra e a troca dizem respeito a duas estruturas diferentes e a funções es pecíficas Além disso Clastres considera fundamental dizer que nas sociedades primitivas a guerra como estrutura subordina a troca como função Assim para ele a guerra opera uma imediata classificação do povo em amigos e inimigos Portanto se a comunidade primitiva tem necessidade de aliados é porque ela tem inimigos De todo modo o fundamental é que o dispositivo da guerra divide os 295 Outros em aliados e inimigos Desta forma entre o Eu e o Outro como inimigo há o aliado político O aliado político demonstra a prevalência da guerra sobre a troca pois ele revela que é a guerra como estratégia das comunidades para se preservarem autônomas e para se conservarem indivisas que determina a aliança como tática A aliança política não pode aparecer no texto de Clastres como o oposto da guerra pois na prática efetiva ela é requerida pela guerra real E essa subordinação se confirma quando Clastres mostra que o princípio da reciprocidade nas sociedades primitivas articula grupos reunidos nas redes de aliança políticas e só impera nessas redes Clastres critica LéviStrauss por ele não ter diferenciado o nível propriamente antropológico a troca exogâmica de mulheres requerida pela proibição do incesto que instaura a cultura do nível político os regimes de troca entre os grupos humanos como viventes políticos Em outros termos LéviStrauss confundiria a reciprocidade fundadora da cultura com a troca como modo de relação entre grupos sociais Clastres que não fala do horizonte da humanidade insiste na originalidade da sociedade primi tiva que ao desenvolver uma estratégia destinada a reduzir ao máximo possível a neces sidade da troca não é em absoluto a sociedade para a troca mas antes pelo contrário sociedade contra a troca CLASTRES 2004 243 Clastres desvenda uma relação sistemática entre a guerra como política externa da sociedade primitiva e o respeito à lei ancestral como garantia de sua política interna em favor da indivisão social De um lado diz ele a sociedade primitiva quer perseverar em seu ser manter sua indi visão Tal é tanto no plano econômico impossibilidade de acumular riquezas quanto no plano da relação de poder o chefe existe mas não manda a política interna da sociedade primitiva conservarse corno Nós indiviso corno totalidade una CLASTRES 2004 246 De outro lado ele mostra que o desejo das comunidades locais de assegurarem sua indivisão implica a hostilidade a guerra entre as comunidades indivisas Portanto nas sociedades primitivas a indivisão interna e a oposição externa se conjugam uma é condição da outra A guerra é seu fundamento a própria vida de seu ser sua finalidade a sociedade primitiva é sociedade para a guerra ela é por essência guerreira CLAS TRES 2004 247 E ela é essencialmente guerreira porque a guerra primitiva é a mani festação de uma lógica centrífuga uma lógica do múltiplo Enquanto expressão de uma força centrífuga e de uma lógica do múltiplo a guerra primitiva resiste à força centrípeta à lógica da unificação à lógica do Um ou seja ao Estado Mais uma vez a análise de Clastres termina quando ela relaciona a descrição da complexidade de uma instituição no caso a guerra como estrutura da sociedade primi tia com um nível mais profundo relativo ao desejo coletivo que anima a vida da socie dade primitiva Clastres termina quando conecta a guerra primitiva com o desejo das 2 sociedades selvagens de perseverarem na indivisão Estabelecida esta conexão a guerra primitiva aparece como mais um dispositivo que exprime o desejo que constitui a socie dade primitiva como sociedade contra o Estado E assim diante da presunção etnocida da civilização ocidental a obra de Clastres renova a cada livro e a cada ensaio o desejo de dar o testemunho etnológico da existência e consistência milenar das sociedades contra o Estado Notas 1 Não se pode deixar de mencionar embora não seja o tema deste ensaio a importância da obra de Clastres para a antropologia brasileira Confirase a esse respeito o ensaio de Tânia Stolze Lima e Mareio Goldman publicado como prefácio da edição brasileira do livro A sociedade contra o Estado e o posfácio da edição brasileira do livro Arqueologia da violência intitulado Intempestivo ainda de Eduardo Viveiros de Castro 2 Pierre Clastres nasce em Paris em 1934 Faz seus estudos de filosofia na Sorbonne formandose em 1957 Acompanha os cursos de LéviStrauss no Collége de France a partir de 1960 Foi diretor de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique CNRS e membro do Laboratoire Anthropologie Sociale do Collége de Fran ce Morre aos 43 anos em um acidente de carro em uma estrada de Cévennes 3 Sobre este ponto cf o ensaio Liberdade mal encontro inominável publicado no livro Arqueologia da violência 2004 Pierre Clastres foi um pesquisador de campo Fez investigação etnográfica com os índios Guayaki do Para guai 0aneiro de 1963 a janeiro de 1964 com os Guarani do Paraguai 1965 com os Chulupi do Paraguai 1966 e 1968 com os Yanomami da Venezuela quatro meses entre 1970 e 1971 e com os Guarani do Estado de São Paulo 1974 Obras selecionadas de Pierre Clastres Arqueologia da violência Pesquisas de Antropologia Política 1977 São Paulo Cosac N aify 2004 A sociedade contra o Estado 1974 São Paulo Cosac Naify 2003 Crônica dos índios Guayaki O que sabem os Aché caçadores nômades do Paraguai 1972 São Paulo Ed 34 1995 A fala sagrada Mitos e cantos dos índios Guarani 1974 Campinas Papirus 1990 Trad de Nícia A Bonati Referências CLASTRES P Arqueologia da violência Pesquisas de Antropologia Política São Paulo Cosac N aify 2004 A sociedade contra o Estado São Paulo Cosac Naify 2003 Crônica dos índios Guayaki O que sabem os Aché caçadores nômades do Para guai São Paulo Ed 34 1995 297 A fala sagrada Mitos e cantos dos índios Guarani Campinas Papirus 1990 Trad de NA Bonati Entre silêncio e diálogo ln LÉVISTRAUSS C EArc documentos São Paulo Documentos 1968 CLASTRES P GUACHET M AD LER A LIZOT J Guerra religião e poder Lis boa Ed 70 1980 GRP 298 Fichamento dos dois textos anexos destacando e comentando 10 frases de cada texto Não é necessário fazer nenhum tipo de relação entre eles tratase de fichamento individual Pierre Clastres 19341977 Ovídio de Abreu Filho O autor aponta a associação do nome de Pierre Clastres à ideia de sociedade contra o Estado Apesar dessa ideia ter origem etnológica Abreu Filho defende que ela também está relacionada a questões filosóficas e também por inquietações advindas de experiências políticas exteriores ao domínio do pensamento propriamente antropológico Uma vez que Clastres foi influenciado por LéviStrauss o autor apresenta as três dimensões da antropologia defendidas por ele Ela começa como etnografia observação e descrição de uma sociedade ou grupo particular ela continua como etnologia pela aplicação do método comparativo que necessariamente mobiliza um conjunto de pesquisas etnográficas conquista uma primeira síntese sempre parcial que pode ser geográfica histórica ou sistemática e finalmente ampliando seu espectro comparativo a antropologia alcança a última etapa da síntese com a conquista de universais culturais ABREU FILHO 2015 p 283 O autor entende que assim como LéviStrauss Clastres tinha o intuito de criar uma nova antropologia que pudesse gerar um diálogo entre a civilização ocidental e as civilizações primitivas Não a antropologia evolucionista mas como disse Clastres a propósito da antropologia de LéviStrauss uma outra etnologia à qual seu saber permitisse forjar uma nova linguagem infinitamente mais rica uma etnologia que superando a oposição tão central em torno da qual se edificou e se afirmou nossa civilização se transformaria ela mesma num novo pensamento CLASTRES 1968 90 ABREU FILHO 2015 p 284 Segundo Abreu Filho a antropologia proposta por Clastres pretende redirecionar os termos e questionar o valor dos valores que avaliam as sociedades primitivas a partir do padrão da civilização ocidental que possui toda particularidade no campo da desrazão Diante desta partilha teórica e prática infamante Clastres emite um grito que não cessará de ressoar ao longo de sua obra é preciso levar a sério as sociedades primitivas A este grito corresponde um novo conceito de sociedade primitiva Na sua formulação mais concisa este conceito pode ser assim enunciado as sociedades primitivas são sociedades sem Estado e as sociedades sem Estado são sociedades contra o Estado ABREU FILHO 2015 p 284 O autor defende que a antropologia de Clastres consiste em uma etnologia que diferencia Sociedades contra o Estado e Sociedades de Estado o colonialismo europeu o genocídio e o etnocídio persistentes como política contra os indígenas das Américas exibem segundo a análise atenta de Clastres a violência como elemento imanente ao humanismo e à civilização ocidental O fato é que a civilização ocidental não se inclui no cenário das demais experiências humanas seu desdobramento é sempre contra o outro jogando qualquer alteridade no campo da desrazão ABREU FILHO 2015 p 285 Uma vez que o etnocentrismo aponta dois tipos de sociedades distintas para o autor é necessário dramatizar a ideia de etnocentrismo Quando referido ao novo sentido da partilha à diferença irredutível entre sociedades de Estado e sociedades contra o Estado o etnocentrismo não pode mais ser pensado como uma propriedade universal da vida cultural em geral O conceito de etnocentrismo é diferenciado e admite a determinação de tipos de etnocentrismo Como diz Clastres se toda cultura é etnocêntrica somente a cultura ocidental é etnocida 2004 81 ou seja se toda cultura tende a depreciar o outro somente algumas conduzem essa depreciação a uma política de aniquilamento dos outros modos de vida ABREU FILHO 2015 p 285286 O autor ainda introduz a ideia de etnocídio que consiste na ideia de cultura e desejo de destruição de outros modos de vida e de pensamento Nessa perspectiva o autor aponta que segundo Clastres a civilização ocidental é etnocida em primeiro lugar no interior dela mesma O Estado nacional por exemplo deve tudo homogeneizar impor uma língua oficial uma religião oficial uma administração unificada contra todas as particularidades locais etc ABREU FILHO 2015 p 286 Para Abreu Filho a antropologia política de Clastres tornouse desafiadora em relação ao pensamento europeu Sendo assim Clastres respondeu a esse desafio com a ideia de sociedade contra o Estado Essa ideia contém dois movimentos e desdobrase em dois tempos Ela envolve inicialmente uma concordância mas essa aquiescência diabólica em sua aparente inocência se prolonga numa afirmação que questiona a imagem dogmática do pensamento antropológico Sim de fato as sociedades primitivas são sociedades sem Estado mas há um outro sim uma outra afirmação que exprime uma reviravolta profunda e decisiva de direito as sociedades sem Estado são sociedades contra o Estado ABREU FILHO 2015 p 287 Segundo o autor a diferença proposta por Clastres entre sociedades sem Estado e sociedades contra o Estado evidencia o problema na transição de uma para a outra Com o abandono de qualquer explicação apoiada em pressupostos evolucionistas continuístas teleológicos o aparecimento do Estado tornase enigmático Neste ponto revelase radical o afastamento entre o pensamento de Clastres e o marxismo pois Clastres recusa o encadeamento mecânico disposto na seguinte série causal o desenvolvimento das forças produtivas determina o aparecimento das classes sociais e do seu regime de exploração que por sua vez requer e condiciona como modificação superestrutura o surgimento do Estado Posto fora de todo encadeamento mecânico de causas o Estado perde sua necessidade histórica e sua emergência ou existência desponta e persiste como acontecimento não elucidado ABREU FILHO 2015 p 288 Clastres vai de encontro aos clichês em torno do fato etnográfico Após esse trabalho de desbastamento o fato ressurge corno objeto problemático e corno instituição positiva que incita o pensamento a questionar as imagens existentes sobre as sociedades primitivas ABREU FILHO 2015 p 292 O autor apresenta a postura de Clastres em relação à sociedade primitiva que se diferencia tanto da concepção hobbesiana quanto da de LéviStrauss Para Clastres A sociedade primitiva é o espaço da troca e é também o lugar da violência a guerra tanto quanto a troca pertence ao ser social primitivo Não se pode e é o que é preciso estabelecer pensar a sociedade primitiva sem pensar a guerra CLASTRES 2004 231 ABREU FILHO 2015 p 292 Por fim para Abreu Filho a análise de Clastres se esgota quando ele associa a guerra primitiva à vontade das sociedades selvagens em perseverar na indivisão Estabelecida esta conexão a guerra primitiva aparece como mais um dispositivo que exprime o desejo que constitui a sociedade primitiva como sociedade contra o Estado E assim diante da presunção etnocida da civilização ocidental a obra de Clastres renova a cada livro e a cada ensaio o desejo de dar o testemunho etnológico da existência e consistência milenar das sociedades contra o Estado ABREU FILHO 2015 p 296297 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA OU O QUE É SER GENTE JESSÉ SOUZA O imaginário social dominante no Brasil interpreta o brasileiro como um tipo social homogêneo como no homem cordial de Sérgio Buarque possuindo as mesmas características quase sempre associadas à emocionalidade ao personalismo ao jeitinho independentemente de sua classe ou pertencimento social SOUZA P 51 O autor inicia o texto a partir de uma crítica à homogeneização da sociedade que não leva em conta a desigualdade marginalização e subcidadania que apesar do desenvolvimento econômico seguem presentes na sociedade Souza defende um paradigma teórico alternativo capaz de suprir as falhas deixadas pelas teorias tradicionais que se baseiam no essencialismo cultural fragmentação conjuntural e pragmática da explicação teórica Por mais bem sucedidos e interessantes que sejam vários desses esforços que recuperam contextos e sentidos históricos e ajudam a mapear empiricamente dados relevantes acerca da realidade eles não contribuem para renovar a compreensão mais totalizadora acerca dos princípios estruturantes básicos que perfazem a singularidade da modernidade periférica dado que seu horizonte categorial rejeita de plano qualquer preocupação com essa dimensão mais abstrata da reflexão teórica SOUZA P 52 Nesse sentido o autor utiliza as perspectivas de Charles Taylor e Pierre Bourdieu para fundamentar suas reflexões possibilitando uma reformulação muito mais elaborada em relação ao tema clássico marxista da ideologia espontânea do capitalismo tanto no contexto central quanto no periférico creio encontrar nesses dois autores uma complementariedade fundamental de modo a unir a percepção de configurações valorativas implícitas e intransparentes à consciência cotidiana e ancoradas de modo opaco e inarticulado à eficácia de algumas instituições do mundo moderno como mercado e Estado com a percepção de signos sociais visíveis que permitam mostrar o íntimo vínculo entre uma hierarquia valorativa que se traveste de universal e neutra com a produção de uma desigualdade social que tende a se naturalizar tanto no centro quanto na periferia do sistema SOUZA P 53 Apesar de reconhecer lacunas na obra de Florestan Fernandes o autor faz uso de sua tese para fazer uma reflexão sobre o surgimento do povo na história brasileira Florestan toca na questão central para todo seu argumento neste artigo nomeadamente a questão da organização psicossocial que é um pressuposto da atividade capitalista e que exige uma présocialização em um sentido prédeterminado a qual faltava em qualquer medida significativa ao exescravo SOUZA P 54 Para Souza a desestruturação familiar abordada por Fernandes como ponto fundamental para a manutenção da desorganização social existente para negros e mulatos Esse aspecto é fundamental para meu argumento na medida em que o que Florestan está pleiteando é na realidade a meus olhos atribuir à constituição e reprodução de um habitus específico no sentido de Bourdieu a apropriação de esquemas cognitivos e avaliativos transmitidos e incorporados de modo préreflexivo e automático no ambiente familiar desde a mais tenra idade permitindo a constituição de redes sociais também préreflexivas e automáticas que cimentam solidariedade e identificação por um lado e antipatia e preconceito por outro o lugar fundamental na explicação da marginalidade do negro SOUZA P 56 Souza argumenta que nenhuma sociedade moderna foi capaz de generalizar o ser humano atribuindolhe uma précondição para a cidadania como fruto do desenvolvimento econômico Dentre as sociedades desenvolvidas inclusive é a mais rica dentre elas os EUA a que apresenta maior índice de desigualdade e exclusão A marginalização permanente de grupos sociais inteiros tem a ver com a disseminação efetiva de concepções morais e políticas que passam a funcionar como idéiasforça nessas sociedades SOUZA P 58 O autor defende que a explicação que entende que a superação dessa condição de marginalidade que enxerga esses indivíduos como resíduos ocorre por meios econômicos deve ser mudada pois ela contribui para a manutenção dessa situação não é a continuação do passado no presente inercialmente que está em jogo realidade essa destinada a desaparecer com o desenvolvimento econômico mas a redefinição moderna do negro como imprestável para exercer qualquer atividade relevante e produtiva no novo contexto que constitui o quadro da nova situação de marginalidade SOUZA P 58 Souza questiona o que ser gente para além do sentido retórico Para tal ele defende as reflexões elaboradas por Taylor e Bourdieu Para Bordieu e Taylor a sociedade moderna se singulariza precisamente pela produção de uma configuração formada pelas ilusões do sentido imediato e cotidiano que Taylor denomina naturalismo e Bourdieu doxa que produzem um desconhecimento específico dos atores acerca de suas próprias condições de vida para ambos apenas uma perspectiva hermenêutica genética e reconstrutiva poderia reestabelecer as efetivas ainda que opacas e intransparentes précondições da vida social numa sociedade desse tipo SOUZA P 61 O autor apresenta uma divisão do conceito habitus atribuindo a ele um atributo histórico e uma dimensão genética e diacrônica que ultrapassa as reflexões de Bourdieu Além disso o autor reconhece a necessidade de uma análise transclassista pois segundo ele essa lacuna dificulta analisar as relações entre as classes dominantes e dominadas Se o habitus representa a incorporação nos sujeitos de esquemas avaliativos e disposições de comportamento a partir de uma situação socioeconômica estrutural então mudanças fundamentais na estrutura econômicosocial deve implicar conseqüentemente mudanças qualitativas importantes no tipo de habitus para todas as classes sociais envolvidas de algum modo nessas mudanças SOUZA P 62 Nessa perspectiva Souza apresenta o conceito habitus como habitus precário e habitus secundário habitus secundário tem a ver com o limite do habitus primário para cima ou seja tem a ver com uma fonte de reconhecimento e respeito social que pressupõe no sentido forte do termo a generalização do habitus primário para amplas camadas da população de uma dada sociedade SOUZA P 64 se o habitus primário implica um conjunto de predisposições psicossociais refletindo na esfera da personalidade a presença da economia emocional e das précondições cognitivas para um desempenho adequado ao atendimento das demandas variáveis no tempo e no espaço do papel de produtor com reflexos diretos no papel do cidadão sob condições capitalistas modernas a ausência dessas précondições em alguma medida significativa implica na constituição de um habitus marcado pela precariedade SOUZA P 66 De acordo com Souza essa divisão do conceito de habitus tem a função de ir além das concepções subjetivistas da realidade que reduzem a mesma às interações face a face O conceito de habitus desde que acrescentado de uma concepção não essencialista de moralidade ancorada em instituições fundamentais permite tanto a percepção dos efeitos sociais de uma hierarquia atualizada de forma implícita e opaca e por isso mesmo tanto mais eficaz quanto a identificação do seu potencial segregador e constituidor de relações naturalizadas de desigualdade em várias dimensões variando com o tipo de sociedade analisado SOUZA P 73
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O imaginário social dominante no Brasil interpreta o brasileiro como um tipo social homogêneo como no homem cordial de Sérgio Buarque possuindo as mesmas características quase sempre associadas à emocionali dade ao personalismo ao jeitinho independentemente de sua classe ou per tencimento social Tudo acontece como se esses indivíduos essencialmente semelhantes apenas diferissem na renda que ganham e que o progresso econômi co seria portanto o Deus ex machina ao qual caberia resolver problemas como desigualdade marginalização e subcidadania Existe entre nós uma crença fetichista no progresso econômico que faz esperar da expansão do mercado a resolução de todos os nossos problemas sociais O fato de que o Brasil tenha sido o país de maior crescimento econômico do globo entre 1930 e 1980 sem que as taxas de desigualdade marginalização e subcidadania jamais fossem alteradas radicalmente deveria ser um indicativo mais do que evidente do engano dessa pressuposição Isto no entanto não aconteceu e não acontece ainda hoje A ausência de uma adequada problematização dos aspectos de aprendizados coletivos morais e políticos envolvidos na questão da desigual dade e da sua naturalização e conseqüentemente na problemática da cons trução social da subcidadania devese também creio eu à complexa confi guração do campo científico entre nós Inicialmente o essencialismo cultura lista que articula as noções de personalismo familismo e patrimonialismo con tinua hegemônico seja na dimensão do senso comum seja na dimensão da reflexão metódica1 A partir de um paradigma explicativo semelhante àquele NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA OU O QUE É SER GENTE JESSÉ SOUZA O argumento que é fio condutor deste texto é parte de uma discussão desenvolvida em maior detalhe em SOUZA Jessé A Construção Social da Subcidadania Para uma Sociologia Política da Modernidade Periférica Ed UFMG 2003 Agradeço a Faperj pelo financiamen to da pesquisa que viabilizou este artigo 1 Uma discussão crítica em detalhe de diversas variantes desse ponto de partida teórico foi realizada em SOUZA Jessé A Modernização Seletiva Uma Reinterpretação do Dilema Brasileiro Ed UnB 2000 do paradigama culture and personality dominante na sociologia e antropolo gia americanas da primeira metade do século XX2 partese de uma perspecti va culturalista sem adequada vinculação com a eficácia de instituições funda mentais onde a cultura é percebida como uma entidade homogênea tota lizante e autoreferida Seria por conta dessa soberania do passado sobre o pre sente que nos confrontamos com solidariedades verticais baseadas no favor subcidadania para a maior parte da população e abismo material e valorativo entre as classes e as raças que compõem nossa sociedade Paralelamente na outra ponta das teorizações mais conjunturais e de menor nível de abstração a situação milita a favor da construção de um contexto de opacidade em relação às variáveis mais estruturais que envolvem um grau maior de abstração teórica É que em países como o Brasil onde a institucionalização em larga escala das ciências sociais se dá a partir da déca da de 1970 refletindo a tendência mundial da disseminação dos modelos do parcelização do conhecimento a fragmentação dos esquemas explicativos tendem a perder sua relação com qualquer realidade mais ampla Este fato associado à propagação paralela de teorias de médio alcance que renunciam a esclarecer ou tematizar seus próprios pressupostos e escolhas categoriais tendem a inibir a reflexão acerca de realidades que não tenham vínculo ime diato com realidades pragmáticas e conjunturais Por mais bem sucedidos e interessantes que sejam vários desses esforços que recuperam contextos e sentidos históricos e ajudam a mapear empiricamente dados relevantes acer ca da realidade eles não contribuem para renovar a compreensão mais tota lizadora acerca dos princípios estruturantes básicos que perfazem a singula ridade da modernidade periférica dado que seu horizonte categorial rejeita de plano qualquer preocupação com essa dimensão mais abstrata da reflexão teórica O mais das vezes o paradigma personalista e patrimonialista em suas vertentes tradicionais ou contemporâneas e híbridas permanece como a referência implícita da maior parte desse tipo de análise3 LUA NOVA Nº 59 2003 52 2 Uma excelente exposição da préhistória desenvolvimento e contradições internas ao para digma da teoria da modernização pode ser encontrada em KNÖBLWolgang Spielräume der modernizierung Velbrück 2002 3 Mesmo as tentativas mais recentes de construção de um paradigma do hibridismo como uma reação ao inegável dinamismo modernizante de várias sociedades periféricas como a brasileira por exemplo na realidade não abandonam o campo categorial do paradigma per sonalista familista e patrimonialista Em suas versões mais bemsucedidas essas teorizações postulam a convivência de dois princípios de estruturação social um personalista e um indi vidualista os quais no entanto permanecem indeterminados como se tratassem de duas rea lidades paralelas e apesar da dominância silenciosa da variável personalista nesse tipo de abordagem a questão central da articulação e da dominância relativa de cada um desses princípios jamais é explicitamente formulada ou resolvida Como nas versões tradicionais do NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 53 Estou convencido que a tematização dos aspectos socioculturais da desigualdade que permita superar o contexto de opacidade construído pelo fetichismo do progresso econômico exige a construção de um pa radigma teórico alternativo que permita preencher as lacunas e silêncios da configuração científica hegemônica que articula essencialismo cultural por um lado e a fragmentação conjuntural e pragmática da explicação teórica por outro No âmbito da reconstrução que gostaria de levar a cabo neste artigo gostaria de procurar me afastar dos pressupostos do essencialismo culturalista sem no entanto abrir mão de uma perspectiva que contem ple o acesso a realidades culturais e simbólicas E é precisamente nesse contexto que gostaria de incorporar as reflexões de Charles Taylor acerca da singularidade que as questões culturais morais e simbólicas em senti do amplo assumem no mundo moderno Aqui me interessa antes de tudo seu ponto de partida comunitarista como uma hermenêutica do espaço social a partir da sua crítica ao naturalismo que perpassa tanto a prática científica quanto a vida cotidiana como meio de articular precisamente a configuração valorativa implícita ao racionalismo ocidental que dá ensejo como veremos a um tipo específico de hierarquia social e uma também singular noção de reconhecimento social baseada nela Juntamente com a sociologia de Pierre Bourdieu creio encon trar nesses dois autores uma complementariedade fundamental de modo a unir a percepção de configurações valorativas implícitas e intransparentes à consciência cotidiana e ancoradas de modo opaco e inarticulado à eficá cia de algumas instituições do mundo moderno como mercado e Estado com a percepção de signos sociais visíveis que permitam mostrar o íntimo vínculo entre uma hierarquia valorativa que se traveste de universal e neu tra com a produção de uma desigualdade social que tende a se naturalizar tanto no centro quanto na periferia do sistema A articulação da perspecti va desses dois clássicos contemporâneos permite a meus olhos uma refor mulação muito mais sofisticada e útil do tema clássico marxista da ide ologia espontânea do capitalismo seja no contexto central seja no pe riférico paradigma do personalismo o poder de convencimento e o preenchimento das lacunas do argumento é garantido pelo paralelismo com os preconceitos do senso comum dessas sociedades Exemplos recentes de teorias latinoamericanas de hibridismo são as de CAN CLINI Nestor Garcia Culturas híbridas Edusp 1998 e DAMATTA Roberto Carnavais malandros e heróis Zahar 1981 Gostaria de iniciar a discussão com a análise de uma obra de um pensador periférico que segundo penso consegue estabelecer a questão decisiva em pauta nessa problemática ainda que a resposta final seja insa tisfatória tratase da Integração do Negro na Sociedade de Classes de Florestan Fernandes Neste livro Florestan se predispõe a empreender uma análise de como o povo emerge na história brasileira A concentração no negro e no mulato se legitima nesse contexto maior da empreitada teórica posto que foram precisamente esses grupos que tiveram o pior ponto de partida4 na transição da ordem escravocrata à competitiva Desse modo a reflexão de Florestan pode ser ampliada para abranger também os estratos despossuídos e os dependentes em geral e de qualquer cor na medida em que o único elemento que os diferenciava de negros e mulatos era o han dicap adicional do racismo5 O período estudado por Florestan vai de 1880 a 1960 o que dá uma idéia da amplitude do alentado estudo e o horizonte empírico concentrase na cidade de São Paulo permitindo desse modo observar as dificuldades de adaptação dos segmentos marginais na mais burguesa e competitiva das cidades brasileiras O dado essencial de todo o processo de desagregração da ordem servil e senhorial foi como nota corretamente Florestan o abandono do li berto à própria sorte ou azar Os antigos senhores na sua imensa maioria o Estado a Igreja ou qualquer outra instituição jamais se interessaram pelo destino do liberto Este imediatamente depois da abolição se viu respon sável por si e seus familiares sem que dispusesse dos meios materiais ou morais para sobreviver numa nascente economia competitiva de tipo capital ista e burguês Ao negro fora do contexto tradicional restava o desloca mento social na nova ordem Ele não apresentava os pressupostos sociais e psicossociais que são os motivos últimos do sucesso no meio ambiente con correncial Faltavalhe vontade de se ocupar com as funções consideradas degradantes que lhe lembravam o passado pejo que os imigrantes ita lianos por exemplo não tinham não era suficientemente industrioso nem poupador e acima de tudo faltavalhe o aguilhão da ânsia pela riqueza Neste contexto acrescentandose a isto o abandono dos libertos pelos anti LUA NOVA Nº 59 2003 54 4 FERNANDES Florestan A integração do negro na sociedade de classes vol I Ed Ática 1978 p 9 5 Para uma discussão das razões objetivas que permitem essa assimilação ver a parte II de SOUZA Jessé A Construção Social da Subcidadania NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 55 gos donos e pela sociedade como um todo estava de certo modo prefigura do o destino da marginalidade social e da pobreza econômica6 Esse é o quadro que permite compreender o drama social da adap tação do liberto às novas condições E aqui Florestan toca na questão central para todo seu argumento neste artigo nomeadamente a questão da organiza ção psicossocial que é um pressuposto da atividade capitalista e que exige uma présocialização em um sentido prédeterminado a qual faltava em qual quer medida significativa ao exescravo A ânsia em libertarse das condições humilhantes da vida anterior tornavao inclusive especialmente vulnerável a um tipo de comportamento reativo e ressentido em relação às demandas da nova ordem Assim o liberto tendia a confundir as obrigações do contrato de trabalho e não distinguia a venda da força de trabalho da venda dos direitos substantivos à noção de pessoa jurídica livre7 Ademais a recusa a certo tipo de serviço a inconstância no trabalho a indisciplina contra a supervisão o fascínio por ocupações nobilitantes tudo conspirava para o insucesso nas novas condições de vida e para a confirmação do preconceito A tese de Florestan é a de que a família negra não chega a se constituir como uma unidade capaz de exercer as suas virtualidades princi pais de modelação da personalidade básica e controle de comportamentos egoísticos8 Existe aqui nesse tema central da ausência da unidade familiar como instância moral e social básica uma continuidade com a política escravocrata brasileira que sempre procurou impedir qualquer forma orga nizada familiar ou comunitária da parte dos escravos É a continuidade de padrões familiares disruptivos que é percebida corretamente por Florestan como o fator decisivo para a perpetuação das condições de de sorganização social de negros e mulatos Sob todos os aspectos a família desorganizada era a base dos dese quilíbrios e da desorganização da vida em todas as suas dimensões A não socialização adequada de nenhum dos papéis familiares a incerteza e inse gurança social que faziam expulsar de casa as filhas que se perdiam por exemplo tudo militava no sentido de que a família não só não fosse uma base segura para a vida numa sociedade competitiva mas também se transfor masse na causa dos mais variados obstáculos A vida familiar desorganizada aliada à pobreza era responsável por um tipo de individuação ultraegoísta e predatória9 Este tipo de organização da personalidade sobejamente demon 6 FERNANDES idem vol I p20 7 Id ibid p30 8 Id ibid p154 9 Id ibid p230 strada nas entrevistas elencadas no livro produto da desorganização familiar reflete no egoismo e na instrumentalização do outro seja o outro a mul her ou o mais jovem e indefeso uma situação de sobrevivência tão agreste que mina por dentro qualquer vínculo de solidariedade desde o mais bási co na família até o comunitário e associativo mais geral Esse aspecto é fundamental para meu argumento na medida em que o que Florestan está pleiteando é na realidade a meus olhos atribuir à constituição e reprodução de um habitus específico no sentido de Bourdieu a apropriação de esquemas cognitivos e avaliativos transmiti dos e incorporados de modo préreflexivo e automático no ambiente fami liar desde a mais tenra idade permitindo a constituição de redes sociais também préreflexivas e automáticas que cimentam solidariedade e iden tificação por um lado e antipatia e preconceito por outro o lugar funda mental na explicação da marginalidade do negro Este ponto é central posto que se é a reprodução de um habitus precário a causa última da inadaptação e marginalização desses grupos então o problema não é meramente a cor da pele como certas tendências empiricistas acerca da desigualdade brasilera tendem hoje a interpretar Se há preconceito nesse terreno e certamente há e agindo de forma intransparente e virulenta não é antes de tudo um preconceito de cor mas sim um preconceito que se re fere a certo tipo de personalidade julgada como improdutiva e disrupti va para a sociedade como um todo Esse aspecto central não é todavia percebido com clareza por Florestan Sem dúvida ele tem o mérito de apontar na sua busca das causas últimas da marginalidade da população negra as précondições sociais independentes da cor que condicionam a situação de marginalidade Ele percebe por exemplo que as condições de inadaptação da população negra é comparável a dos dependentes rurais brancos10 misturando esses dois ele mentos como compondo em conjunto a gentinha ou a ralé nacional11 A cor da pele nesse contexto age no máximo como uma feri da adicional à autoestima do sujeito em questão mas o núcleo do proble ma é a combinação de abandono e inadaptação destinos que atingiam ambos os grupos independentemente da cor Precisamente por confundir habitus no sentido que estamos utilizando neste texto e que ele próprio havia revelado com tanta argúcia no peso relativo que ele atribui à desor ganização familiar com cor da pele Florestan é levado a imprecisões e LUA NOVA Nº 59 2003 56 10 Id ibid p148 11 Id ibid vol II p280 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 57 paradoxos que se repetem em cascata na sua argumentação Na realidade todo o argumento do livro é tributário da ambigüidade fundamental que confunde os dois aspectos relevados acima em relação à causa fundamen tal da situação de carência e marginalidade do negro Florestan supõe como causa primeira da mesma tanto a escravidão interna dentro do homem que o impede de pensar e agir segundo os imperativos da nova ordem social12 quanto o preconceito de cor13 visto como uma realidade iner cial representando resíduos do passado que penetram na sociedade competitiva e que ele supõe a partir do avanço e desenvolvimento desta estejam destinados a desaparecer14 Esses dois aspectos apesar de interligados são analiticamente duas realidades muito distintas No contexto estamental e adscritivo da sociedade escravocrata a cor funciona como índice tendencialmente abso luto da situação servil ainda que esta também assumisse formas mitigadas como vimos acima Na sociedade competitiva a cor funciona como índice relativo de primitividade sempre em relação ao padrão contingente do tipo humano definido como útil e produtivo no racionalismo ocidental e implementado por suas instituições fundamentais que pode ou não ser confirmado pelo indivíduo ou grupo em questão O próprio Florestan rela ta sobejamente as inúmeras experiências de inadaptação ao novo contexto determinadas em primeiro plano por incapacidade de atender às deman das da disciplina produtiva do capitalismo15 É de extrema importância por razões teóricas e práticas que se tenha clareza com relação a esse ponto A confusão entre estes dois aspec tos é muitas vezes obscurecida por motivos políticos dado que acredi tase a atribuição da marginalidade do negro a causas outras que não a cor e o racismo equivaleria a atribuir a culpa da mesma à sua vítima Ora é precisamente o abandono secular do negro e do dependente de qualquer cor à própria sorte a causa óbvia de sua inadaptação Foi esse abandono que criou condições perversas de eternização de um habitus precário que constrange esses grupos a uma vida marginal e humilhante à margem da sociedade incluída Por outro lado é necessário terse clareza teórica e prática acerca das causas reais da marginalização É precisamente o tipo de explicação que enfatiza o dado secundário da cor que permitiria suposta 12 Id ibid volI p92 13 Id ibid pp 283 e 316 14 Sobre o caráter passageiro e transitório da situação à época FERNANDES idemvol II pp 144 e 156 15 FERNANDES idem vol I pp 19 20 25 26 28 29 30 50 52 58 73 82 mente atribuir a culpa da marginalização unicamente ao preconceito que joga água no moinho da explicação economicista e evolucionista de tipo simples que supõe ser a marginalização algo temporário modificável por altas taxas de crescimento econômico as quais de algum modo obscuro terminaria por incluir todos os setores marginalizados Esse tipo de explicação descura dos aspectos morais e políticos que são imprescindíveis a uma real estratégia inclusiva Em nenhuma das sociedades modernas que logrou homogeneizar e generalizar em medida significativa um tipo humano para todas as classes como uma précondição para uma efetiva e atuante idéia de cidadania conseguiu esse intento como efeito colateral unicamente do desenvolvimento econômico Dentre as sociedades desenvolvidas inclusive é a mais rica dentre elas os EUA a que apresenta maior índice de desigualdade e exclusão16 A marginalização per manente de grupos sociais inteiros tem a ver com a disseminação efetiva de concepções morais e políticas que passam a funcionar como idéiasforça nessas sociedades É a explicação que atribui a marginalidade desses grupos a resíduos a serem corrigidos por variáveis economicamente derivadas dominantes não só em Florestan mas em todo o debate nacional teórico e prático acerca do tema das causas e dos remédios da desigualdade que me lhor contribui para sua permanência e naturalização Na realidade portanto não é a continuação do passado no pre sente inercialmente que está em jogo realidade essa destinada a desa parecer com o desenvolvimento econômico17 mas a redefinição moder na do negro e do dependente ou agregado brasileiro rural e urbano de qualquer cor como imprestável para exercer qualquer atividade rele vante e produtiva no novo contexto que constitui o quadro da nova situ ação de marginalidade A inércia aqui como ocorre tão frequentemente está de fato no lugar de uma explicação A questão que me parece a essencial é de que modo a transição do poder pessoal para o impessoal muda radicalmente as possibilidades de classificação e desclassificação social O que está em jogo nessa passagem e nessa mudança tão radical que expele como imprestáveis os segmentos responsáveis fundamental mente pela produção econômica no regime anterior Para a resposta desta LUA NOVA Nº 59 2003 58 16 Ver SCALON Celi Wahrnehmung von Ungleichheiten eine international vergleichende Analyse in BRUNKHORST Hauke COSTA Sérgio e SOUZA Jessé orgs Die Peripheren Moderne Frankfurt Campus 2003 no prelo 17 FERNANDES idem vol II p144 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 59 questão o tema dos resíduos18 e das inércias especialmente porque esses tais resíduos e inércias se eternizaram e se mostraram de fato ao contrário do que supunha o autor permanentes não avança o nosso co nhecimento Um outro ponto de imprecisão que no fundo duplica a ambi guidade em relação à opção corhabitus é a menção a coisas como mundo branco e mundo negro como se fossem ambos realidades essenciais e independentes e como se a hierarquia valorativa que articulasse essa dis juntiva não fosse na realidade única e subordinasse tanto brancos quan to negros Neste ponto da mesma forma que em relação ao tópico acima poderíamos refrasear a questão que formulamos e nos perguntar afinal o que está por trás das cores especialmente da cor preta que a faz um índice de alguma coisa ao mesmo tempo mais fundamental e menos visível e que se manifesta por trás da cor Não é portanto se estou certo o apego à hierarquia anterior que produz o racismo e o transfere como resíduo à ordem social competitiva Afinal a ordem competitiva também não é neutra nessa dimensão do ponto de partida meritocrático como parece estar implícito no argumento de Florestan A ordem competitiva também tem a sua hierarquia ainda que implícita opaca e intransparente aos atores e é com base nela e não em qualquer resíduo de épocas passadas que tanto negros quanto brancos sem qualificação adequada são desclassificados e marginalizados de forma per manente Não é à toa nesse sentido que a legitimação da marginalização nos depoimentos colimados em todo o livro pelo autor venha sempre acom panhada da menção a aspectos conspícuos da hierarquia valorativa do racionalismo ocidental moderno ausência de ordem disciplina previsibili dade raciocínio prospectivo etc O critério operante de classificaçãodesclas sificação era tão colado na hierarquia valorativa implícita e impessoal da nova ordem social que se reconhecia em vários depoimentos a cor como aspecto secundário Concebiase por exemplo que o negro se misturasse 18 Todo o raciocínio é tributário da sociologia da modernização tal como a conhecemos com sua crença na destruição gradual da tradição percebida precisamente como resíduos e inércias sob a forma de um evolucionismo de tipo simples e etapista Não cabe aqui repe tir argumentos que já formulamos alhures Que seja lembrado apenas que essa assunção eli mina de plano a consideração de sociedades periféricas modernamente singulares que pre cisamente se caracterizam pela perpetuação de situações de marginalidade e exclusão pro duzidas e tornadas opacas e permanentes por condições de legitimação da desigualdade que são eficazes apenas sob précondições especificamente modernas como veremos adiante em maior detalhe com o branco atrasado que está à sua altura moral intelectual19 Florestan no entanto permanece preso à explicação dos resíduos20 e não consegue incorporar vários desses depoimentos ao seu quadro explicativo que se torna crescentemente ambíguo impreciso e inconclusivo A resolução teórica desse embroglio com consequências práti cas nada desprezíveis exige a determinação precisa desse componente misterioso por trás da cor Florestan já aponta o caminho a ser seguido por meio da alusão recorrente em todo o seu trabalho de que o que os negros queriam efetivamente transformarse e ser gente21 O termo nunca é definido claramente nem por Florestan nem por seus informantes Acredito também nesse ponto que para ultrapassarmos o uso meramente retórico desse termo e conferirmos a ele densidade analítica tornase necessário desfazer a confusão entre habitus e cor Afinal o que os próprios informantes entendem por ser gente reflete claramente o que estamos percebendo como as précondições para a formação de um habitus ade quado aos imperativos institucionais da nova ordem independentemente de qualquer cor de pele Um dos sujeitos das histórias de vida que vivia com a mãe e a irmã ao deus dará relata o deslumbramento que sentiu por volta de 1911 ao passar a viver aos dez anos na casa de um ita liano Viu então o que era viver no seio de uma família o que entre eles os italianos era coisa séria Gostava porque comia na mesae podia apreciar em que consistia viver como gente22 No mesmo sentido temos as declarações abaixo Negro é gente e não tem que andar diferente dos outros Ser gente só pode significar ser igual ao branco e para isso é pre ciso proceder como o branco lançandose ativamente na com petição ocupacional23 Mas afinal o que é para além do sentido retórico compreen sível imediatamente de forma inarticulada por cada um de nós mas que apresenta desafios aparentemente intransponíveis logo que pretendemos definilo de forma adequada ser gente É no esclarecimento desse tema central que as contribuições de Taylor e Bourdieu podem nos ajudar A LUA NOVA Nº 59 2003 60 19 FERNANDES idem vol I p300 20 Id ibid pp 144 156 280 181 183 21 Apenas a título de exemplo FERNANDES idem vol I pp 174 e 196 e vol II pp 7 119 120 166 185 187 22 FERNANDES idem vol I p174 23 Id ibid vol II p166 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 61 escolha desses dois autores devese ao fato de que a meus olhos ambos se afastam tanto de uma sociologia subjetivista que reduz a complexidade da realidade social à interação consciente entre seus membros quanto de uma sociologia sistêmica que naturaliza a realidade social e se torna incapaz de perceber seus sentidos opacos e tornados intransparentes à consciência cotidiana e científica ou ainda de uma sociologia que essencializa a dimensão cultural como nas teorias tradicionais e contemporâneas da modernização Para Bordieu e Taylor a sociedade moderna se singulariza pre cisamente pela produção de uma configuração formada pelas ilusões do sentido imediato e cotidiano que Taylor denomina naturalismo e Bour dieu doxa que produzem um desconhecimento específico dos atores acerca de suas próprias condições de vida Também para ambos apenas uma perspectiva hermenêutica genética e reconstrutiva poderia reestabele cer as efetivas ainda que opacas e intransparentes précondições da vida social numa sociedade desse tipo No entanto o desafio concreto aqui é o de articular sistematicamente também as unilateralidades de cada uma das perspectivas estudadas de modo a tornálas operacionais no sentido de per mitir perceber como moralidade e poder se vinculam de modo peculiar no mundo moderno e muito especialmente no contexto periférico Talvez o aspecto que mais explicite as deficiências da teoria bourdiesiana e ponha a nu a necessidade de vinculála a uma teoria objeti va da moralidade como a tayloriana é o radical contextualismo da sua análise da classe trabalhadora francesa que o impede de perceber proces sos coletivos de aprendizado moral que ultrapassam de muito as barreiras de classe Na análise de Bourdieu sobre a produção opaca da desigualdade nas condições das sociedades modernas avançadas como a francesa24 o patamar último da sua análise que fundamenta uma infinidade de dis tinções sociais é a situação de necessidade da classe operária O que mostra o caráter histórico contingente e espaçotemporalmente contextual dessa necessidade é que ela se refere à distinção de hábitos de consumo dentro da dimensão de pacificação social típico do welfare state O que é visto como necessidade nesse contexto comparandose a sociedades periféricas como a brasileira adquire o sentido de consolidação histórica e 24 BOURDIEU Pierre Distinction Harvard University Press 1984 contingente de lutas políticas e aprendizados sociais e morais múltiplos de efetiva e fundamental importância os quais passam desapercebidos enquanto tais para Bourdieu Assim gostaria de propor uma subdivisão interna à categoria do habitus de tal modo a conferirlhe um caráter histórico mais matizado inexistente na análise bourdieusiana e acrescentar portanto uma dimen são genética e diacrônica à temática da constituição do habitus Assim em vez de falar apenas de habitus genericamente aplicandoo a situações específicas de classe num contexto sincrônico como faz Bourdieu acho mais interessante e rico para meus propósitos falar de uma pluralidade de habitus Se o habitus representa a incorporação nos sujeitos de esquemas avaliativos e disposições de comportamento a partir de uma situação socioeconômica estrutural então mudanças fundamentais na estrutura econômicosocial deve implicar conseqüentemente mudanças qualitativas importantes no tipo de habitus para todas as classes sociais envolvidas de algum modo nessas mudanças Esse foi certamente o caso da passagem das sociedades tradi cionais para as sociedades modernas no Ocidente A burguesia como a primeira classe dirigente na história que trabalha logrou romper com a dupla moral típica das sociedades tradicionais baseadas no código da honra e construir pelo menos em uma medida apreciável e significativa uma homogeneização de tipo humano a partir da generalização de sua própria economia emocional domínio da razão sobre as emoções cálcu lo prospectivo autoresponsabilidade etc às classes dominadas Esse processo se deu em todas as sociedades centrais do Ocidente das mais vari adas maneiras Em todas as sociedades que lograram homogeneizar um tipo humano transclassista esse foi um desiderato perseguido de forma consciente e decidida e não deixado a uma suposta ação automática do progresso econômico Assim sendo esse gigantesco processo histórico homogeneizador que posteriormente foi ainda mais aprofundado pelas conquistas sociais e políticas de iniciativa da própria classe trabalhadora o qual certamente não equalizou todas as classes em todas as esferas da vida mas sem dúvida generalizou e expandiu aspectos fundamentais da igual dade nas dimensões civis políticas e sociais como examinadas por Marshall no seu texto célebre pode ser percebido como um gigantesco processo de aprendizado moral e político de profundas conseqüências É precisamente esse processo histórico de aprendizado coletivo que não é adequadamente tematizado por Bourdieu no seu estudo empíri co acerca da sociedade francesa Ele representa o que gostaria de deno LUA NOVA Nº 59 2003 62 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 63 minar de habitus primário de modo a chamar atenção para esquemas avaliativos e disposições de comportamento objetivamente internalizados e incorporados no sentido bourdieusiano do termo que permite o com partilhamento de uma noção de dignidade efetivamente compartilhada no sentido tayloriano É essa dignidade efetivamente compartilhada por classes que lograram homogeneizar a economia emocional de todos os seus membros numa medida significativa que me parece ser o fundamento pro fundo do reconhecimento social infra e ultrajurídico o qual por sua vez permite a eficácia social da regra jurídica da igualdade e portanto da noção moderna de cidadania É essa dimensão da dignidade comparti lhada no sentido não jurídico de levar o outro em consideração e que Taylor chama de respeito atitudinal25 que tem que estar disseminada de forma efetiva numa sociedade para que possamos dizer que nessa sociedade concreta temos a dimensão jurídica da cidadania e da igualdade garantida pela lei Para que haja eficácia legal da regra de igualdade é necessário que a percepção da igualdade na dimensão da vida cotidiana esteja efetivamente internalizada É essa dimensão que exige portanto um efetivo consenso valorativo transclassista como sua condição de existência que não é percebida enquanto tal por Bourdieu É essa ausência que o permite pen sar as relações entre as classes dominantes e dominadas como relações especulares reativas e de soma zero A radical contextualidade de seu argumento o impede de perceber a importância de conquistas históricas desse tipo de sociedade como a francesa as quais tornamse óbvias por comparação com sociedades periféricas como a brasileira onde tal con senso inexiste Ao chamar a generalização portanto das précondições sociais econômicas e políticas do sujeito útil digno e cidadão no sen tido tayloriano de reconhecido intersubjetivamente como tal de habitus primário eu o faço para diferenciálo analiticamente de duas outras realidades também fundamentais o habitus precário e o que gostaria de denominar habitus secundário O habitus precário seria o limite do habitus primário para baixo ou seja seria aquele tipo de personalidade e de disposições de com portamento que não atendem às demandas objetivas para que seja um indi víduo seja um grupo social possa ser considerado produtivo e útil em uma sociedade de tipo moderno e competitivo podendo gozar de reco nhecimento social com todas as suas dramáticas consequências existenciais e políticas Para alguns autores mesmo sociedades afluentes como a alemã já apresentam agora segmentos de trabalhadores e de pobres que vivem do seguro social precisamente com esses traços de um habitus precário26 na medida em que o que estamos chamando de habitus primário tende a ser definido segundo os novos patamares adequados às recentes transformações da sociedade globalizada e da nova importância do conhecimento No entanto como iremos ver essa definição só ganha o estatuto de um fenô meno de massa permanente em países periféricos como o Brasil O que estamos chamando de habitus secundário tem a ver com o limite do habitus primário para cima ou seja tem a ver com uma fonte de reconhecimento e respeito social que pressupõe no sentido forte do termo a generalização do habitus primário para amplas camadas da população de uma dada sociedade Nesse sentido o habitus secundário já parte da homogeneização dos princípios operantes na determinação do habitus primário e institui por sua vez critérios classificatórios de dis tinção social a partir do que Bourdieu chama de gosto Mas a determi nação conceitual precisa dessa diferenciação triádica da noção de habitus deve ser acoplada à discussão tayloriana das fontes morais ancoradas insti tucionalmente no mundo moderno seja no centro ou na periferia para sua adequada problematização Como a categoria de habitus primário é a mais básica na medida em que é a partir dela que se torna compreensível seus limites para baixo e para cima devemos nos deter ainda um pouco na sua determinação Gostaria de usar as investigações de Reinhardt Kreckel para tentar levar a noção de habitus primário a um patamar mais concreto de análise Parto da pressuposição de que a noção de Kreckel de ideolo gia do desempenho27 permite pensar a dimensão sociológica da pro dução da distinção social a partir da força objetiva da idéia de dignidade do agente racional como proposta por Taylor Afinal as pessoas não são aquinhoadas eqüitativamente com o mesmo reconhecimento social por sua dignidade de agente racional Essa dimensão não é tão rasa como a simples dimensão política dos direitos subjetivos universalizáveis e intercambiáveis sugere A dimensão jurídica da proteção legal é apenas uma das dimensões apesar de fundamental e importantíssima desse processo de reconhecimento Se é o trabalho útil produtivo e disciplina LUA NOVA Nº 59 2003 64 26 BITTLINGMAYER Uwe Transformation der Notwendigkeit prekarisierte habitusfor men als Kehrseite der Wissensgesellschaft pp 225254 in Theorie als Kampf Zur poli tischen Soziologie Pierre Bourdieus EICKELPASCH Rolf et alli orgs Opladen Leske und Budrich 2002 27 KRECKEL Reinhardt Politische Soziologie der sozialen Ungleichheit Frankfurt Campus 1992 pp 67106 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 65 do que parece estar por trás da avaliação objetiva do valor relativo de cada qual nessa dimensão então o potencial encobridor de desigualdades por trás da noção de dignidade do agente racional deve se manifestar mais facilmente nessa dimensão Kreckel chama de ideologia do desempenho a tentativa de elaborar um princípio único para além da mera propriedade econômica a partir do qual se constitui a mais importante forma de legitimação da desigualdade no mundo contemporâneo A idéia subjacente a esse argu mento é que teria que haver um pano de fundo consensual Hinter grundkonsens acerca do valor diferencial dos seres humanos de tal modo que possa existir uma efetiva ainda que subliminarmente produzida legitimação da desigualdade Sem isso o caráter violento e injusto da desigualdade social se manifestaria de forma clara e a olho nu Para ele a ideologia do desempenho baseiase na tríade meri tocrática que envolve qualificação posição e salário Destes a qualifi cação refletindo a extraordinária importância do conhecimento com o desenvolvimento do capitalismo é o primeiro e mais importante ponto que condiciona os outros dois A ideologia do desempenho é uma ideologia na medida em que ela não apenas estimula e premia a capacidade de desempenho objetiva mas legitima o acesso diferencial permanente a chances de vida e apropriação de bens escassos28 Apenas a combinação da tríade da ideologia do desempenho faz do indivíduo um sinalizador com pleto e efetivo do cidadão completo Vollbürger A tríade torna também compreensível por que apenas através da categoria do trabalho é possí vel se assegurar de identidade autoestima e reconhecimento social Nesse sentido o desempenho diferencial no trabalho tem que se referir a um indi víduo e só pode ser conquistado por ele próprio Apenas quando essas pré condições estão dadas pode o indivíduo obter sua identidade pessoal e social de forma completa Isso explica por que uma dona de casa por exemplo passe a ter um status social objetivamente derivado ou seja sua importância e reconhecimento social dependem de seu pertencimento a uma família ou a um marido Ela se torna neste sentido dependente de critérios ads critivos já que no contexto meritocrático da ideologia do desempenho 28 Id ibid p98 ela não possuiria valor autônomo29 A atribuição de respeito social nos papéis sociais de produtor e cidadão passa a ser mediado pela abstração real já produzida por mercado e Estado aos indivíduos pensados como suporte de distinções que estabelecem seu valor relativo A explicitação de Kreckel acerca das précondições para o reconhecimento objetivo dos papéis de produtor e cidadão é importante na medida em que é fundamen tal não apenas referirse ao mundo do mercado e da distribuição de recur sos escassos como perpassado por valores como faz Nancy Fraser30 por exemplo mas é necessário explicitar que valores são esses Afinal vai ser o poder legitimador do que Kreckel chama de ide ologia do desempenho que irá determinar aos sujeitos e grupos sociais excluídos de plano pela ausência dos pressupostos mínimos para uma com petição bem sucedida dessa dimensão objetivamente seu nãoreconheci mento social e sua ausência de autoestima A ideologia do desempenho funcionaria assim como uma espécie de legitimação subpolítica incrustada no cotidiano refletindo a eficácia de princípios funcionais ancorados em instituições opacas e intransparentes como mercado e Estado Ela é intrans parente posto que aparece à consciência cotidiana como se fosse efeito de princípios universais e neutros abertos à competição meritocrática Acho que essa idéia ajuda a conferir concretude àquilo que Taylor chama de fonte moral a partir da noção de self pontual embora seu poder ideológico e produtor de distinções não seja explicitamente tematizado por ele A partir da definição e da constituição de uma ideologia do desempenho como mecanismo legitimador dos papéis de produtor e cidadão que equivalem na reconstrução que estou propondo ao conteúdo do habitus primário é possível compreender melhor o seu limite para baixo ou seja o habitus precário Assim se o habitus primário impli ca um conjunto de predisposições psicossociais refletindo na esfera da personalidade a presença da economia emocional e das précondições cog nitivas para um desempenho adequado ao atendimento das demandas va riáveis no tempo e no espaço do papel de produtor com reflexos diretos no papel do cidadão sob condições capitalistas modernas a ausência dessas précondições em alguma medida significativa implica na consti tuição de um habitus marcado pela precariedade Nesse sentido habitus precário pode referirse tanto a setores mais tradicionais da classe trabalhadora de países desenvolvidos e aflu LUA NOVA Nº 59 2003 66 29 Id ibid p100 30 FRASER Nancy Justice Interruptus Routledge 1997 pp 1140 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 67 entes como a Alemanha como aponta Uwe Bittlingmayer em seu estudo31 incapazes de atender as novas demandas por contínua formação e flexibi lidade da assim chamada sociedade do conhecimento Wissensge sellschaft que exige agora uma ativa acomodação aos novos imperativos econômicos quanto também a secular ralé brasileira tratada no livro de Florestan Fernandes que examinamos acima Nos dois casos a formação de todo um segmento de inadaptados um fenômeno marginal em socie dades como a alemã e um fenômeno de massas numa sociedade periférica como a brasileira é resultante da ampliação da definição do que estamos chamando habitus primário No caso alemão a disparidade entre habi tus primário e habitus precário é causada pelas demandas crescentes por flexibilização o que exige uma economia emocional de tipo peculiar No caso brasileiro o abismo se cria já no limiar do século XIX com a re europeização do pais e se intensifica a partir de 1930 com o início do processo de modernização em grande escala Neste caso a linha divisória passa a ser traçada entre os setores europeizados ou seja os setores que lograram se adaptar às novas demandas produtivas e sociais e os setores não europeizados que tenderam por seu abandono a uma crescente e permanente marginalização Como o princípio básico do consenso transclassista é como vimos o princípio do desempenho e da disciplina a fonte moral do self pontual para Taylor passa a ser a aceitação e internalização generalizada desse princípio que faz com que a inadaptação e a marginalização desses setores possa ser percebida tanto pela sociedade incluída como também pelas próprias vítimas como um fracasso pessoal É também a centrali dade universal do princípio do desempenho com sua conseqüente incor poração préreflexiva que faz com que a reação dos inadaptados se dê num campo de forças que se articula precisamente em relação ao tema do desempenho positivamente pelo reconhecimento da intocabilidade de seu valor intrínseco apesar da própria posição de precariedade e negativa mente pela construção de um estilo de vida reativo ressentido ou aberta mente criminoso e marginal32 Já o limite do habitus primário para cima tem a ver com o fato de que o desempenho diferencial na esfera da produção tem que ser asso ciado a uma estilização da vida peculiar de modo a produzir distinções sociais Ou seja o desempenho diferencial não é apenas nem primaria 31 BITTLINGMAYER Op cit p233 32 FERNANDES Op cit vol I p94 mente talvez uma fonte de valorização social soziale Wertschätzung que estimula os laços de solidariedade social como propõe Axel Honneth33 por exemplo mas também em grande medida uma fonte de distinções sociais que se nutre do contexto de opacidade e de aparente neu tralidade o qual é parte integrante da ideologia do desempenho para o estabelecimento de distinções sociais que tendem a se naturalizar como efeito da opacidade peculiar de suas condições de existência Nesse sentido o que estamos chamando de habitus secun dário seria precisamente o que Bourdieu teria em mente com seu estudo sobre as sutis distinções que analisa no seu Distinctions É nessa dimen são que o gosto passa a ser uma espécie de moeda invisível transfor mando tanto o capital econômico puro quanto muito especialmente o capital cultural travestidos em desempenho diferencial a partir da ilusão do talento inato em um conjunto de signos sociais de distinção legítima a partir dos efeitos típicos do contexto de opacidade em relação às suas condições de possibilidade Mas também aqui é necessário acrescentar a dimensão objeti va da moralidade que permite em última instância todo o processo de fa bricação de distinções sociais a qual é descurada por Bourdieu Assim também o conceito de habitus secundário34 deve ser vinculado a exemplo do que fizemos com os conceitos de habitus primário e precário ao con texto moral ainda que opaco e naturalizado que lhe confere eficácia Se percebemos na ideologia do desempenho enquanto corolário da dig nidade do ser racional do self pontual tayloriano o fundamento moral implícito e naturalizado das duas outras formas de habitus que distin guimos acredito que o habitus secundário possa ser compreendido na sua especificidade antes de tudo a partir da noção tayloriana de expressivi dade e autenticidade O ideal romântico da autenticidade que o Taylor de Sources of the Self interpreta como uma fonte moral alternativa ao self pontual e o LUA NOVA Nº 59 2003 68 33 HONNETH Axel Kampf um Annerkenung Frankfurt Suhrkamp p203 34 Axel Honneth em sua interessante crítica a Bourdieu tende a rejeitar in toto o conceito de habitus dado o componente instrumental e utilitário que o perpassa Ao fazer isto no entan to Honneth corre o risco de jogar a criança fora junto com a água suja do balde como os alemães gostam de dizer em um provérbio popular na medida em que o que me parece impor tante é precisamente reconectar o conceito de habitus com uma instância moral que permita iluminar nas dimensões individual e coletiva também além do dado instrumental que é irre nunciável o tema do aprendizado moral Ver HONNETH Die zerissene Welt der symbolis chen Formen zum kultursoziologischen Werke Pierre Bourdieus in Die Zerrissene Welt des Sozialens Frankfurt Suhrkamp 1990 p171 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 69 princípio do desempenho que o comanda na medida em que implica a reconstrução narrativa de uma identidade singular para a qual não há mo delos préestabelecidos vive o perigo de transformase no seu contrário nas condições atuais O mote do diagnóstico da época levado a cabo por Taylor no seu The Ethics of Authenticity é precisamente a ameaça crescente de trivialização desse ideal do seu conteúdo dialógico e de autoinvenção em favor de uma perspectiva autoreferida simbolizada no que o autor chama de quick fix35 solução rápida O tema do gosto como a base das distinções sociais fundadas no que estamos chamando de habitus secundário compreende tanto o hor izonte da individualização conteudística baseada no ideal da identidade original dialógica e narrativamente constituída quanto o processo de indi viduação superficial baseado no quick fix Bourdieu não percebe a dife rença entre as duas formas já que para ele por força de suas escolhas ca tegoriais a estratégia da distinção é sempre utilitária e instrumental Para meus fins no entanto essa diferença é fundamental Afinal a recuperação da dimensão moral objetiva trabalhada por Taylor é o que explica em últi ma instância o apelo e eficácia social inclusive da versão massificada e pastiche dessa possibilidade de individualização A personificação do gosto para Bordieu serve antes de tudo precisamente para a definição da personalidade distinta uma personali dade que aparece como resultado de qualidades inatas e como expressão de harmonia e beleza e da reconciliação de razão e sensibilidade a definição do indivíduo perfeito e acabado36 As lutas entre as diversas frações de classe se dão precisamente pela determinação da versão socialmente hegemônica do que é uma personalidade distinta e superior A classe tra balhadora que não participa dessas lutas pela definição do critério hegemônico de distinção seria um mero negativo da idéia de personali dade quase como uma nãopessoa como as especulações de Bourdieu acerca da redução dos trabalhadores a pura força física deixa entrever37 Mas é precisamente aqui creio eu que o contextualismo de Bourdieu se mostra em seus limites e em sua perspectiva ahistórica Uma comparação entre as realidades francesa e brasileira pode ilustrar melhor o que imagino a partir da distinção entre habitus primário 35 TAYLOR The Ethics of Authenticity Harvard University Press 1991 p35 36 BOURDIEU Distinction Harvard University Press 1984 p11 37 Id ibid p384 e secundário e a importância desta diferenciação para uma percepção ade quada das especificidades das modernidades central e periférica Desse modo se estou certo seria a efetiva existência de um consenso básico e transclassista representado pela generalização das précondições sociais que possibilitam o compartilhamento efetivo nas sociedades avançadas do que estou chamando de habitus primário que faz com que por exemplo um alemão ou francês de classe média que atropele um seu compatriota das classes baixas seja com altíssima probabilidade efetivamente punido de acordo com a lei Se um brasileiro de classe média atropela um brasileiro pobre da ralé por sua vez as chances de que a lei seja efetivamente apli cada neste caso é ao contrário baixíssima Isso não significa que as pes soas nesse último caso não se importem de alguma maneira com o ocor rido O procedimento policial é geralmente aberto e segue seu trâmite buro crático mas o resultado é na imensa maioria dos casos simples absolvição ou penas dignas de mera contravenção É que na dimensão infra e ultrajurídica do respeito social obje tivo compartilhado socialmente o valor do brasileiro pobre nãoeuropeiza do ou seja que não compartilha da economia emocional do self pontual que é criação cultural contingente da Europa e América do Norte é com parável ao que se confere a um animal doméstico o que caracteriza obje tivamente seu status subhumano Existe em países periféricos como o Brasil toda uma classe de pessoas excluídas e desclassificadas dado que elas não participam do contexto valorativo de fundo o que Taylor chama de dignidade do agente racional o qual é condição de possibilidade para o efetivo compartilhamento por todos da idéia de igualdade nessa dimensão fundamental para a constituição de um habitus que por incorpo rar as características disciplinadoras plásticas e adaptativas básicas para o exercício das funções produtivas no contexto do capitalismo moderno poderíamos chamálo de habitus primário Permitamme precisar ainda um pouco mais essa idéia central para todo meu argumento neste artigo Falo de habitus primário dado que se trata efetivamente de um habitus no sentido que essa noção adquire em Bourdieu São esquemas avaliativos compartilhados objetivamente ainda que opacos e quase sempre irrefletidos e insconscientes que guiam nossa ação e nosso comportamento efetivo no mundo É apenas esse tipo de con senso como que corporal préreflexivo e naturalizado que pode permitir para além da eficácia jurídica uma especie de acordo implícito que sugere como no exemplo do atropelamento no Brasil que algumas pessoas e classes estão acima da lei e outras abaixo dela Existe como que uma rede LUA NOVA Nº 59 2003 70 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 71 invisivel que une desde o policial que abre o inquerito até o juiz que de creta a sentença final passando por advogados testemunhas promotores jornalistas etc que por meio de um acordo implícito e jamais verbalizado terminam por inocentar o atropelador O que liga todas essas intencionali dades individuais de forma subliminar e que conduz ao acordo implícito entre elas é o fato objetivo e ancorado institucionalmente do não valor humano do atropelado posto que é precisamente o valor diferencial entre os seres humanos que está atualizado de forma inarticulada em todas as nossas práticas institucionais e sociais Não se trata de intencionalidade aqui Nenhum brasileiro europeizado de classe média confessaria em sã consciência que considera seus compatriotas das classes baixas nãoeuropeizadas subgente Grande parte dessas pessoas votam em partidos de esquerda e participam de cam panhas contra a fome e coisas do gênero A dimensão aqui é objetiva sub liminar implícita e intransparente Ela é implícita também no sentido de que não precisa ser lingüisticamente mediada ou simbolicamente articula da Ela implica como a idéia de habitus em Bourdieu toda uma visão de mundo e uma hierarquia moral que se sedimenta e se mostra como signo social de forma imperceptível a partir de signos sociais aparentemente sem importância como a inclinação respeitosa e inconsciente do inferior social quando encontra um superior pela tonalidade da voz mais do que pelo que é dito etc O que existe aqui são acordos e consensos sociais mudos e sub liminares mas por isso mesmo tanto mais eficazes que articulam como que por meio de fios invisíveis solidariedades e preconceitos profundos e invisíveis É esse tipo de acordo para usar o exemplo do atropelamento acima que está por trás do fato de que todos os envolvidos no processo policial e judicial na morte por atropelamento do subhomem não europeizado sem qualquer acordo consciente e até contrariando expectati vas explícitas de muitas dessas pessoas terminem por inocentar seu com patriota de classe média Bourdieu não percebe pelo seu radical contextualismo que implica um componente ahistórico a existência do componente transclas sista que faz com que em sociedades como a francesa exista um acordo intersubjetivo e transclassista que pune efetivamente o atropelamento de um francês de classe baixa posto que ele é efetivamente na dimensão sub política e subliminar gente e cidadão pleno e não apenas força física e muscular ou mera tração animal É a existência efetiva desse componente no entanto que explica o fato de que na sociedade francesa numa dimen são fundamental independentemente da pertença a classe todos sejam cidadãos Esse fato não implica por outro lado que não existam outras dimensões da questão da desigualdade que se manifestam de forma tam bém velada e intransparente como tão bem demonstrado por Bourdieu em sua análise da sociedade francesa Mas a temática do gosto como sepa rando as pessoas por vínculos de simpatia e aversão pode e deve ser ana liticamente diferenciada da questão da dignidade fundamental da cidadania jurídica e social que estou associando aqui ao que chamo de habitus primário A distinção a partir do gosto tão magistralmente reconstruída por Bourdieu pressupõe no caso francês um patamar de igualdade efeti va na dimensão tanto do compartilhamento de direitos fundamentais quan to na dimensão do respeito atitudinal de que fala Taylor no sentido de que todos são percebidos como membros úteis ainda que desiguais em ou tras dimensões Em outras palavras à dimensão do que estamos chamando habitus primário se acrescenta uma outra dimensão que também pres supõe a existência de esquemas avaliativos implícitos e insconscientes compartilhados ou seja corresponde a um habitus específico no sentido de Bourdieu como exemplarmente demonstrado por este autor a partir das escolhas do gosto ao qual estamos denominando habitus secundário Essas duas dimensões obviamente se interpenetram de várias maneiras No entanto podemos e devemos separálas analiticamente na medida em que obedecem a lógicas distintas de funcionamento Como diria Taylor as fontes morais são distintas em cada caso No caso do habitus primário o que está em jogo é a efetiva disseminação da noção de dignidade do agente racional que o torna agente produtivo e cidadão pleno Em sociedades avançadas essa disseminação é efetiva e os casos de habitus precário são fenômenos marginais Em sociedades periféricas como a brasileira o habitus precário que implica a existência de redes invisiveis e objetivas que desqualificam os indivíduos e grupos sociais precarizados como subprodutores e subcidadãos e isso sob a forma de uma evidência social insofismável tanto para os privilegiados como para as próprias vítimas da precariedade é um fenômeno de massa e justifica minha tese de que o que diferencia substancialmente esses dois tipos de sociedades é a produção social de uma ralé estrutural nas sociedades periféricas Essa circunstância não elimina que nos dois tipos de sociedade exista a luta pela distinção baseada no que chamo de habitus secundário que tem a ver com a apropri ação seletiva de bens e recursos escassos e constitui contextos cristalizados e tendencialmente permanentes de desigualdade Mas a consolidação efetiva em grau significativo das précondições sociais que permitem a ge LUA NOVA Nº 59 2003 72 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA 73 neralização de um habitus primário nas sociedades centrais torna a subci dadania enquanto fenômeno de massa restrito apenas às sociedades pe riféricas marcando sua especificidade como sociedade moderna e chaman do atenção para o conflito de classes específico da periferia O esforço dessa construção múltipla de habitus serve para ultra passar concepções subjetivistas da realidade que reduzem a mesma às interações face a face A situação descrita acima do atropelamento por exemplo seria explicada pelo paradigma personalista hibridista38 a par tir do capital social em relações pessoais do atropelador de classe média que terminaria levando à impunidade Esse é um exemplo típico do des propósito subjetivista de se interpretar sociedades periféricas complexas e dinâmicas como a brasileira como se o papel estruturante coubesse a princípios prémodernos como o capital social em relações pessoais Nesse terreno não há qualquer diferença entre países centrais ou periféricos Relações pessoais são importantes na definição de carreiras e chances individuais de ascensão social tanto num caso como no outro Nos dois tipos de sociedade no entanto os capitais econômico e cultural são estru turantes o que o capital social de relações pessoais não é O conceito de habitus desde que acrescentado de uma concepção não essencialista de moralidade ancorada em instituições fundamentais per mite tanto a percepção dos efeitos sociais de uma hierarquia atualizada de forma implícita e opaca e por isso mesmo tanto mais eficaz quanto a iden tificação do seu potencial segregador e constituidor de relações naturalizadas de desigualdade em várias dimensões variando com o tipo de sociedade analisado Neste sentido esse conceito pareceme um recurso fundamental desde que complementado com uma hermenêutica do sentido e da morali dade como a que Taylor nos oferece É precisamente esse tipo de enfoque teórico alternativo que me parece permitir que se navegue entre as duas mar gens polares de um culturalismo essencialista por um lado e de teorias de médio alcance que perdem qualquer relação com realidades mais abrangentes por outro As conseqüências práticas e políticas desse tipo de diagnóstico alternativo que revaloriza os componentes políticos e sociocul turais relacionados à temática da desigualdade e da sub cidadania certa mente não passam desapercebidas ao leitor atento JESSÉ SOUZA é professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro Iuperj 38 Na versão por exemplo já citada neste trabalho de um Roberto DaMatta NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA OU O QUE É SER GENTE JESSÉ SOUZA Este texto discute e combina algumas teorias contemporâneas sobre a origem e a dinâmica do reconhecimento social como a de Charles Taylor com abordagens socioculturais acerca da temática da desigualdade como as de Pierre Bourdieu e Reinhard Kreckel de modo a aplicálas de forma modificada e produtiva para o esclarecimento de questões centrais da modernidade periférica como os fenômenos da subcidadania e da natu ralização da desigualdade Seu objetivo é elaborar uma concepção teórica alternativa às abordagens personalistas e patrimonialistas desses fenô menos assim como às percepções conjunturais e pragmáticas produto da parcelização e fragmentação do conhecimento que perdem o vínculo com qualquer realidade mais ampla e totalizadora Palavraschave Modernidade periférica reconhecimento social desigualdade pensamento social brasileiro NON RECOGNITION AND UNDERCITIZENSHIP OR WHAT IS IT TO BE A HUMAN BEING This article discusses and matches some contemporary theories on the origin and dynamics of social recognition such as Charles Taylors and sociocultural approaches to the subject of inequality such as Pierre Bourdieus and Reinhard Kreckels in order to apply them in a modified and productive way to central matters of peripheral modernity such as the undercitizenship and the naturalization of inequality Its aim is to develop an alternative conception to the patrimonialist and personalist approach es to the subject as well as to shortrange and pragmatic perceptions which are the result of the partition and fragmentation of knowledge unconcerned about understanding a more embracing reality Keywords Peripheral modernity social recognition inequali ty Brazilian social thought RESUMOSABSTRACTS 19 Pierre Clastres 19341977 Ovídio de Abreu Filho Introdução A experiência direta do terreno as monografias dos pesquisadores e as mais antigas crônicas não deixam nenhuma dúvida sobre isso se existe alguma coisa completamente estranha a um índio é a ideia de dar U11 ordem ou de ter de obedecer Clastres 2003 28 O nome de Pierre Clastres permanece ligado à ideia de sociedade contra o I tado Ideia de origem etnológica porque foi certamente determinada por problema conceitos desenvolvidos no campo da antropologia Mas isto não impede que se imagi que ela também tenha sido suscitada por questões filosóficas e talvez por inquietaçê provenientes de experiências políticas exteriores ao domínio do pensamento propr mente antropológico 1 O jovem Clastres2 não pode ter sido indiferente às duas grandes guerras mundi que dividiram e devastaram o continente europeu nem às guerras coloniais em particul a Guerra da Argélia Muito menos ainda ao nazismo e aos fascismos que expuseram âmbito mesmo da civilização ocidental sua radical intolerância à diferença desta manifestada no holocausto dos judeus e na perseguição assassina de outras minori como ciganos homossexuais doentes mentais etc Como outros cientistas e filósofi ele deve ter observado com atenção inquieta que a Segunda Guerra vencida pelas for aliadas racionais e democratas concluiuse com um genocídio atômico com os bomb leios de Hiroshima e Nagasaki Mas isto não é tudo pois há algo ainda mais decisi uma decepção com a promessa comunista a esperança aberta pela revolução soviética possibilidade de um novo mundo mundo comunista sem classes e sem Estado cila com o stalinismo e com a violência do Estado soviético contra qualquer resistêrn Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ Professor do Departamento Antropologia e do Programa de PósGraduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense UF 282 interna ao seu domínio O movimento comunista dividese em tendências divergentes o marxismo perde sua aura revolucionária e revela sua face de ideologia de partido e de Estado Uma enorme desconfiança incide sobre a dialética o homem e a razão Foi o drama de 1956 a invasão da Hungria e o anúncio oficial por Khrushchev dos crimes de Stalin que modificou o agenciamento político e existencial dos quatro estudantes de filosofia militantes comunistas da célula do PC da Sorbonne em torno de François Châtelet Pierre Clastres Lucien Sebag Michel Cartry e Alfred Adler fa zendoos passar da filosofia para a etnologia Cartry e Adler orientaram suas pesquisas para a África com Marcel Griaule Clastres e Sebag escolheram a América com Alfred Métraux e Claude LéviStrauss Segundo uma ordenação retomada por LéviStrauss cf ensaio neste livro a an tropologia comporta três dimensões Ela começa como etnografia observação e descri ção de uma sociedade ou grupo particular ela continua como etnologia pela aplicação do método comparativo que necessariamente mobiliza um conjunto de pesquisas etno gráficas conquista uma primeira síntese sempre parcial que pode ser geográfica histó rica ou sistemática e finalmente ampliando seu espectro comparativo a antropologia alcança a última etapa da síntese com a conquista de universais culturais Observese que neste esquema a palavra antropologia aparece duas vezes uma primeira vez desig nando uma extremidade da série significando a síntese final momento da deter minação de universais da Cultura e uma outra vez como categoria que subsume as três dimensões do conhecimento antropológico Há aí a indicação de que na antropologia de LéviStrauss as análises etnográficas e etnológicas são conectadas no projeto de determinação de universais fornecendo os elementos a serem inte grados numa nova função de universalização função simbólica que rechaça além de qualquer teleologia histórica as essências inteligíveis e as instâncias subjetivas sejam elas metafísicas ou transcendentais Havia nessa atitude estruturalista mais do que a promessa de um novo pensamen to capaz de afirmar a alteridade como tal pois com efeito as análises apresentadas por LéviStrauss nas Estruturas elementares do parentesco 1949 no Totemismo hoje 1962 no Pensamento selvagem 1962 e também nas Mitológicas 1944 1967 1968 1971 revela vam respectivamente a universalidade da proibição do incesto a regra por excelência ie qualquer sociedade humana e sobretudo a universalidade de uma função simbóli a como potência subjacente a qualquer sistema de classificação e a qualquer forma de pensamento inclusive do pensamento científico As Mitológicas dissolvem a oposição io logos e do mito demonstram não ser mais possível opor o mito ao real como ficção rrem ao racional como absurdo Fulgurava o desembaraço de uma antropologia hábil 283 em determinar ordens simbólicas inconscientes irredutíveis ao primado da identidade sobre a diferença e às oposições entre o eu e o outro a natureza e a cultura o sensível e o inteligível a razão e o desatino a humanidade e a vida A radicalidade do pensamento de LéviStrauss foi plenamente percebida e sauda da na definição da originalidade da antropologia assim formulada pelo filósofo Maurice MerleauPonty A etnologia não é uma especialidade definida por um objeto particular as sociedades primitivas é uma maneira de pensar aquela que se impõe quando o objeto é o outro e exige de nós que nos transformemos 2010 1451 Neste ponto extremo o pensamento de LéviStrauss tocou profundamente Clastres que ao seu modo também almeja uma nova antropologia capaz de estabelecer um diálogo entre a civilização oci dental e as civilizações primitivas Não qualquer etnologia não a etnologia clássica que repete no seu exercício a partilha estabelecida pela razão ocidental entre razão e desati no que ao ignorar a linguagem própria das civilizações primitivas extingue qualquer possibilidade de diálogo Não a antropologia evolucionista mas como disse Clastres a propósito da antropologia de LéviStrauss uma outra etnologia à qual seu saber permi tisse forjar uma nova linguagem infinitamente mais rica uma etnologia que superando a oposição tão central em torno da qual se edificou e se afirmou nossa civilização se transformaria ela mesma num novo pensamento CLASTRES 1968 90 Contudo nem marxista nem estruturalista não é para o domínio das universali dades que se encaminham as pesquisas de Clastres Seu pensamento se orienta por uma outra questão que determina que comece por um questionamento políticoepistemológi co da partilha imposta pela razão ocidental A antropologia de Clastres tem o sentido de redefinir os termos e de questionar o valor dos valores que avaliam as sociedades primiti vas pelo padrão da civilização ocidental que dispõe toda alteridade no campo da desrazão Diante desta partilha teórica e prática infamante Clastres emite um grito que não cessará de ressoar ao longo de sua obra é preciso levar a sério as sociedades pri mitivas A este grito corresponde um novo conceito de sociedade primitiva Na sua formulação mais concisa este conceito pode ser assim enunciado as sociedades pri mitivas são sociedades sem Estado e as sociedades sem Estado são sociedades contra o Estado Evidentemente a este novo conceito corresponde uma outra perspectiva que altera o sentido dominante relacionado à ideia de etnologia Desde essa nova orientação a palavra etnologia não designa mais uma primeira síntese delimitada exteriormente por um balizamento geográfico ou histórico à espera de uma outra mais verdadeira por que mais universal A antropologia política de Clastres é sobretudo uma etnologia Não porque seja parcial no sentido de apenas circunscrever um subconjunto da experiência humana mas porque é sob uma nova orientação etnológica que se pode contemplar uma diferença radical que introduz uma rachadura incontornável no conjunto das sociedades humanas entre o antes da liberdade e o depois da servidão No lugar da partilha da razão ocidental que opõe primitivos e civilizados sociedades sem Estado e sociedades 284 com Estado Clastres declara uma outra diferença etnológica entre Sociedades contra o Estado e Sociedades de Estado Esta afirmação envolve uma dimensão genealógica um questionamento do sen tido e do valor da Razão ocidental que prejulga e desqualifica qualquer outra forma de pensamento e de vida Que forças se exprimem e que vontade se manifesta na panilha da razão Uma genealogia do Ocidente Conforme sua narrativa dominante a metafísica ocidental desde Platão tem como projeto alcançar a ciência dizer as coisas tal como elas são tem como prática elaborar um discurso capaz de legitimarse de modo imanente tem como objeto o Ser como instrumento a razão e como objetivo reduzir a violência e mostrar que ela é insensatez Em decorrência desse projeto porque nunca deixou de ostentar esse ideal a civilização ocidental se concede uma posição transcendente com respeito às demais culturas Contudo o colonialismo europeu o genocídio e o etnocídio persistentes como po lítica contra os indígenas das Américas exibem segundo a análise atenta de Clastres a violência como elemento imanente ao humanismo e à civilização ocidental E contra riando a promessa da metafísica e a presunção ocidental o que se constata é a estranha vizinhança entre violência e razão na qual a primeira aparece como condição e meio da segunda Ou seja segundo esta análise a violência não é o negativo da razão muito ao contrário de fato a razão necessita da violência para desdobrarse como de direito se deve apontar para uma violência imanente à própria razão ocidental à sua atitude de depre ciar e de segregar toda alteridade e toda diferença remetendoas ao campo do desatino O fato é que a civilização ocidental não se inclui no cenário das demais experiên cias humanas seu desdobramento é sempre contra o outro jogando qualquer alteridade no campo da desrazão Essa atitude foi relacionada na antropologia a um elemento gené tico imanente à essência da cultura em geral a um princípio que estaria na base de uma tendência universal de depreciar a alteridade O etnocentrismo seria esse princípio que constrange toda cultura a avaliar as demais pelo seu próprio padrão Contudo um pen samento que problematiza os fundamentos mesmos da ideia que opõe o Ocidente como razão e o resto como desatino não pode se contentar com uma compreensão abstrata do etnocentrismo Não é porque toda cultura se configura como ponto de vista determinado por um sistema complexo de referências composto de julgamentos de valor motivações conscientes e inconscientes que conforma a percepção de outras culturas que se deve concluir que todos os pontos de vista sobre o outro se equivalem Avaliada desde o horizonte dessa nova diferenciação que distingue dois tipos fundamentais de sociedades a ideia de etnocentrismo deve ser dramatizada Quando referido ao novo sentido da partilha à diferença irredutível entre sociedades de Estado e 285 sociedades contra o Estado o etnocentrismo não pode mais ser pensado como uma pro priedade universal da vida cultural em geral O conceito de etnocentrismo é diferenciado e admite a determinação de tipos de etnocentrismo Como diz Clastres se toda cultura é etnocêntrica somente a cultura ocidental é etnocida 2004 81 ou seja se toda cultura tende a depreciar o outro somente algumas conduzem essa depreciação a uma política de aniquilamento dos outros modos de vida O que distingue efetivamente a cultura ocidental O que faz com que a cultura ocidental seja necessariamente etnocida Eis a questão que segundo Clastres permite ultrapassar uma compreensão abstrata do etnocentrismo que desconsidera suas diferen ças concretas A esse respeito Clastres associa a cultura ocidental a duas circunscrições fundamentais o Estado e o capitalismo O conceito de etnocídio diferentemente do conceito de genocídio que remete à ideia de raça e à vontade de extermínio de uma minoria étnica referese à ideia de cultura e à vontade de destruição de outros modos de vida e de pensamento Em ambos os casos tratase da negação da alteridade ora dirigida ao corpo ora à alma do outro Morte sempre morte da alteridade Mas se o genocídio exprime no dizer de Clastres um desejo de absoluta supressão física do outro o etnocídio exprime o princípio de apli cação de um projeto de redução espiritual do Outro ao Mesmo Resta ainda um ponto fundamental anotado por Clastres a civilização ocidental é etnocida em primeiro lugar no interior dela mesma O Estado nacional por exemplo deve tudo homogeneizar impor uma língua oficial uma religião oficial uma adminis tração unificada contra todas as particularidades locais etc Esta observação permite que Clastres vá ainda mais longe na elucidação das relações entre o etnocídio e o Estado o primeiro não é um simples componente do segundo há um vínculo mais profundo entre o desejo etnocida e o desejo de Estado O etnocídio argumenta Clastres é uma prática logicamente conforme à essência do Estado uma vez que ambos correspondem ao exer cício de forças centrípetas que conduzem à dissolução do múltiplo no Um Nesse nível formal Clastres constata que a prática etnocida e a máquina estatal funcionam da mesma ma neira e produzem os mesmos efeitos sob as espécies da civilização oci dental ou do Estado revelamse sempre a vontade de redução da diferen ça e da alteridade o sentido e o gosto do idêntico e do Um CLASTRES 2004 83 A reflexão de Clastres sobre os vínculos do etnocídio com as culturas ocidentais não se restringe a apontar essa sua conformidade com o Estado Sua análise pondera as diferenças concretas entre tipos de Estado e afirma que a diferença pertinente entre os estados bárbaros Império Inca antigo Egito despotismos orientais etc e os estados civilizados democracias totalitarismos e ditaduras diversas aquela que torna o etno cídio sem limites está para ele no seu regime de produção no capitalismo 286 a sociedade industrial a mais formidável máquina de produzir é por isso mesmo a mais terrível máquina de destruir Raças sociedades indi víduos espaço natureza mares florestas subsolo tudo é útil tudo deve ser utilizado tudo deve ser produtivo de uma produtividade elevada ao seu limite máximo de intensidade CLASTRES 1980 86 Fica então elucidado por Clastres que a escolha deixada pelo Ocidente civilização de Estado e sociedade capitalista às demais sociedades humanas era um dilema ou ceder à produção ou desaparecer ou etnocídio ou genocídio CLASTRES 2004 86 Diante disto como não desconfiar que a intolerância obstinada do humanismo não exprima uma impossibilidade estrutural da cultura ocidental de entrar em diálogo com outras culturas E como deixar de prolongar essa desconfiança até a própria antro pologia Como poderia ela ficar totalmente imune a essa intolerância constitutiva da cultural ocidental A ideia de sociedade contra o Estado A antropologia política de Clastres assumiu o desafio de pensar o que se ofereceu como inconcebível para o pensamento europeu a sociedade primitiva percebida como lugar de uma diferença absoluta como espaço estranho e impensável da ausência ausência de tudo o que constitui o universo sociocultural dos observadores mundo sem hierarquia homens que não obedecem a ninguém sociedade indiferente à posse e à riqueza chefes que não mandam culturas sem moral porque ignoram o pecado sociedades sem classes sociedades sem Estado etc CLASTRES 2004 234 Essa percepção dos conquistadores e dos primeiros viajantes delineou a visão de povos sem fé sem lei e sem rei que reaparece na antropologia clássica não mais como espanto primeiro mas domesticada em discursos com pretensão científica Visões evolu cionistas naturalistas economicistas marxistas etc compartilham uma imagem domi nante imagem dogmática do pensamento antropológico que reveste de incompletude as sociedades primitivas estas são sociedades mutiladas sociedades sem Estado socieda des sem escrita sociedades sem história sociedades sem desenvolvimento tecnológico sociedades de economia de subsistência sem mercado etc Clastres respondeu a esse desafio com a ideia de sociedade contra o Estado Essa ideia contém dois movimentos e desdobrase em dois tempos Ela envolve inicialmente uma concordância mas essa aquiescência diabólica em sua aparente inocência se pro longa numa afirmação que questiona a imagem dogmática do pensamento antropológi co Sim de fato as sociedades primitivas são sociedades sem Estado mas há um outro sim uma outra afirmação que exprime uma reviravolta profunda e decisiva de direito as sociedades sem Estado são sociedades contra o Estado O que se passa com essa redu plicação da afirmação 287 A ideia de sociedade contra o Estado ao envolver nela essa dupla afirmação in troduz a dimensão do desejo no conceito mesmo de sociedade primitiva A segunda afirmação revela um outro desejo o desejo dos selvagens irredutível à falta de algo que não se possui e que se almeja Um desejo afirmador imanente positivo constituinte de uma maneira de viver A ideia de sociedade contra o Estado traz à tona um desejo produtivo o desejo selvagem do múltiplo que constitui a sociedade primitiva como so ciedade indivisa que avessa a qualquer vontade de comandar ou de obedecer recusa na sua essência mesma a possibilidade de sua divisão Esse desejo afirmativo e criador ima nente ao exercício e ao ser da sociedade primitiva envolve no seu funcionamento por assim dizer molecular uma potência de antecipação e de evitação de todo movimento que possa vir a favorecer o nascimento de uma vontade de comandar e de obedecer que possa vir a ameaçar a integridade da sua organização indivisa que possa vir a ocasionar a emergência do poder coercitivo ou seja do Estado Conduzir a análise até essa dimensão talvez seja condição para que se possa levar a sério os selvagens Pois o que se vê nessa dimensão não é mais o vazio de uma ausência presumida pela fórmula sociedades sem Estado mas antes a vitalidade do pensamento dos selvagens e a consistência sociopolí tica das sociedades primitivas Há ainda um outro aspecto importante A distinção entre dois tipos de sociedade absolutamente irredutíveis um ao outro sociedades sem Estado e sociedades contra o Estado recoloca para Clastres o problema da passagem de um tipo ao outro Com o abandono de qualquer explicação apoiada em pressupostos evolucionistas continuístas teleológicos o aparecimento do Estado tornase enigmático Neste ponto revelasera dical o afastamento entre o pensamento de Clastres e o marxismo pois Clastres recusa o encadeamento mecânico disposto na seguinte série causal o desenvolvimento das forças produtivas determina o aparecimento das classes sociais e do seu regime de exploração que por sua vez requer e condiciona como modificação superestrutura o surgimento do Estado Posto fora de todo encadeamento mecânico de causas o Estado perde sua necessidade histórica e sua emergência ou existência desponta e persiste como aconte cimento não elucidado Com efeito a ideia de sociedade contra o Estado subverte a lógica que subordina a compreensão das sociedades primitivas ao modelo do Estado com ela Clastres afirma a universalidade do poder político e o caráter apenas regional da concepção ocidental do poder Quando a questão da origem do Estado deixa de se encadear com a questão do surgimento do estado de sociedade é o Estado como problema que se põe a girar em torno das sociedades contra o Estado Não se trata mais de estimar as sociedades sem Estado do ponto de vista das sociedades contra o Estado Assim a ideia de sociedades contra o Estado remete as sociedades sem Estado às sociedades com Estado não como ao seu destino ou como objetivo final da humanidade mas sob a forma de problema Qual é a origem do Estado 288 A ideia de sociedade contra o Estado desdobrase portanto em dois problemas distintos e relacionados Como fazem as sociedades primitivas para não ter Estado e de onde provém o Estado A articulação desses problemas eleva diz Clastres a etnolo gia à dimensão de uma teoria geral a construir da sociedade e da história É importante sublinhar o a construir Em todo caso Clastres imagina essa teoria como uma antropo logia política geral que se delineia em duas grandes interrogações l O que é o poder político Isto é O que é a sociedade e 2 Como se passa do poder político não coercitivo ao poder político coercitivo Isto é O que é a história CLASTRES 2003 39 Se a ideia de sociedade contra o Estado comporta no seu horizonte estes dois problemas a obra de Clastres não pode perdêlos de vista mesmo que ela não ofereça a eles uma res posta direta Por que então Clastres conserva essas interrogações que ele reconhece não ser ainda capaz de responder A ausência de respostas a esses problemas talvez tenha o sentido de ressaltar o Acontecimento inominável 3 que racha a humanidade entre um antes e um depois da servidão voluntária entre um antes e um depois do Estado mantendo sob suspeita toda tentativa de suturar essa rachadura toda resposta continuísta e toda integração hu manista etnocida De todo modo além desse sentido o reconhecimento da incapacidade de res ponder a essas interrogações reorienta o olhar de Clastres se parece ainda impossí vel determinar as condições de aparecimento do Estado podemos em troca precisar as condições de seu não aparecimento CLASTRES 2003 222 Essa reconversão é mais profunda pois com ela o problema da origem do Estado muda de estatuto deixa de ser um problema de antropologia geral e tornase um problema etnográfico recolado pela pesquisa etnográfica e pela análise etnológica da filosofia e das instituições políticas dos selvagens O mais relevante passa a ser investigar se e como esse problema concerne às sociedades primitivas Talvez por isso a partir dessa nova perspectiva as instituições pri mitivas apareçam para Clastres como objetos multifacetados agendamentos complexos de forças e movimentos divergentes O paradoxo da chefia indígena Um ano antes de sua partida para os Guayaki do Paraguai4 Pierre Clastres escreve Troca e poder filosofia da chefia indígena seu primeiro ensaio de etnologia que con tém como que contraído o programa de sua pesquisa futura Se é possível como foi dito compreender a obra de Clastres como um rigoroso desdobramento da ideia de socie dade contra o Estado devese considerar que essa ideia aparece pela primeira vez com caráter de esboço neste seu artigo cujo problema é entender o sentido e o funcionamen to de uma estranha instituição presente na grande maioria das sociedades americanas a instituição de uma chefia destituída de poder de comando 289 Clastres se recusa a ver nisso nessa ausência de poder de comando do chefe indí gena a evidência de uma falta a prova de que as sociedades primitivas carecem de uma efetiva organização política Por isso recusando as interpretações vigentes na literatura visando lançar um novo olhar sobre os materiais diversos compilados no Handbook oj SouthAmerican Indians Clastres aborda a chefia indígena não como um elemento exótico destituído de sentido mas como um elemento que solicita o seguinte problema Como pensar essa disjunção entre a chefia e o poder Arrancada do enquadramento evolucionista que situa as sociedades primitivas numa linha evolutiva num estágio de evolução prépolítico a instituição da chefia indí gena força o antropólogo a interrogar o sentido da estranha persistência de um poder quase impotente de uma chefia sem autoridade de uma instituição que funciona sem conteúdo CLASTRES 2003 47 Desta forma Clastres retoma a caracterização mera mente descritiva proposta por Robert Lowie para interrogar sistematicamente o sentido da chefia indígena Segundo essa descrição o chefe deve exercer uma função moderado ra visando cuidar da unidade do grupo ser um bom orador e generoso com seus bens tendo o privilégio da poliginia Clastres introduz uma ordem nesta lista Primeiro distingue o exercício da chefia dos elementos associados ao chefe O exercício efetivo da chefia exibe a face positiva do chefe como apaziguador e como organizador das atividades econômicas e das ce rimônias A análise dos elementos associados ao chefe dom oratório generosidade e poliginia revela que esses elementos são os mesmos cuja troca constitui a sociedade como tal e que sancionam a passagem da natureza para a cultura Clastres assinala uma diferença de nível entre esses dois conjuntos de elementos e considera que não se deve confundir o nível empírico da instituição que diz respeito ao exercício efetivo da chefiai com o nível transcendental da instituição que diz respeito ao conjunto das prestações e das contraprestações que organizam as relações entre a estrutura social e a instituição política da chefia O que se observa no primeiro nível é a aparente falta de sentido da instituição que exibe um chefe prestigioso mas submetido à vontade do grupo e sem qualquer poder decisório A observação do segundo nível mostra que as condições de possibilidade da chefia indígena concernem aos três níveis fundamentais da troca de bens de mulheres e de palavras Contudo uma análise atenta evidencia que a chefia indígena nesses três níveis fundamentais rompe com o princípio da reciprocidade o chefe recebe mais mu lheres do que retribui doa mais bens do que recebe e monopoliza o exercício do discurso sem interlocutores Assim paradoxalmente no nível transcendental da instituição no qual o poder se relaciona com os três níveis estruturais da sociedade o chefe transgride o princípio da reciprocidade que condiciona a instauração da ordem cultural Perspicácia da análise de Clastres em ter evidenciado a ruptura da chefia com o princípio de reciprocidade Agudeza de espírito em ter decifrado o sentido paradoxal 290 de tão grande dissonância entre a ordem política e a ordem cultural Nessa dimensão de contestação da cultura a chefia não pode se configurar como uma instituição com sentido unívoco em conformidade absoluta com a ordem cultural E ainda menos o chefe pode ter um sentido não ambíguo pois é um personagem prestigioso mas tam bém perigoso Ambivalência da chefia ambivalência do chefe Positividade da política primitiva pois se a chefia é o lugar no qual a reciprocidade cessa de regular a circulação das mulheres dos bens e da linguagem a esfera política deve aparecer como exterior e como antagônica à estrutura do grupo é na relação negativa mantida com o grupo que se enraíza a impotência da função política a rejeição desta para o exterior da sociedade é o próprio meio de reduzila à impotência CLASTRES 2003 59 Esta proposição ace na para outra mais decisiva que relaciona o sentido da chefia a uma intencionalidade sociológica inconsciente a relação do poder com a troca por ser negativa não deixa de nos mostrar que é ao nível mais profundo da estrutura social lugar da constituição inconsciente de suas dimensões de onde advém e onde se encerra a problemática desse poder Em outros termos é a própria cultura como diferença maior com a natureza que se investe na recusa desse poder CLASTRES 2003 6061 E nessa dimensão desvelase uma identificação essencial do poder coercitivo e da natureza As sociedades primitivas colocam assim em seus próprios termos a questão do poder o poder coercitivo transcendente aparece como contestação da própria cultura Há aí um pensamento distinto das filosofias políticas ocidentais especialmente a de Hobbes o Estado é remetido não à origem do estado de sociedade à cultura mas ao des regramento da natureza Com efeito Clastres relaciona a constituição da esfera política primitiva a uma intuição de que o poder é em sua essência coerção que a atividade unificadora da função política se exerceria não a partir da estrutura da sociedade e conforme a ela mas a partir de um mais além incontrolável e contra ela que o poder em sua natureza não é senão um álibi furtivo da natureza em seu poder CLASTRES 2003 61 Clastres vê na intuição dessa ameaça o pressentimento de que a transcendência de um poder encerra um risco mortal para o grupo Ao considerar essa intuição e esse pressen timento ele propõe a hipótese de que as sociedades primitivas instituem sua esfera política como um verdadeiro mecanismo de defesa contra a emergência de um poder transcenden te pois no domínio da política primitiva a chefia é apenas lugar aparente do poder o lugar real é o próprio corpo social que o detém e o exerce como unidade indivisa As sociedades primitivas instituem a chefia para mostrar o poder como negativida de a ser controlada Nelas o chefe permanece sempre numa relação de dependência real com o grupo sempre na posição de devedor em relação ao grupo sempre numa relação de 291 subordinação com respeito ao grupo O chefe é aquele que está obrigado a falar e a ser gene roso sob pena de ser abandonado pelo grupo Sobretudo o privilégio da poliginia mantém o chefe endividado e aprisionado ao grupo A filosofia da chefia indígena diferentemente da filosofia de Hobbes associa o po der coercitivo a virtualidade do Estado ao ressurgimento caótico da natureza ou seja à destruição da cultura A análise de Clastres cessa quando discerne no âmago da chefia in dígena o desejo das sociedades selvagens de perseverarem na indivisão essa vontade de estabelecer instituições que funcionem corno maneiras de evitar a aparição de um poder separado fundado sobre a coerção Sutileza da política primitiva que determina a chefia corno instituição contra o Estado instância de antecipação e conjuração da emergência do poder coercitivo o verdadeiro negativo da sociedade primitiva Arqueologia da violência a guerra nas sociedades primitivas Clastres procede nos seus últimos escritos reunidos postumamente no livro Ar queologia da violência pesquisas de antropologia política publicado em 1980 do mesmo modo que procedeu no seu primeiro texto e em todos os outros que escreveu Corno já foi dito ele começa por extrair o fato etnográfico dos clichês que o recobrem Após esse trabalho de desbastamento o fato ressurge corno objeto problemático e corno instituição positiva que incita o pensamento a questionar as imagens existentes sobre as sociedades primitivas Assim de caso em caso considerando a chefia o riso indígena a iniciação o profetismo tupiguarani a guerra etc Clastres estende e aprofunda o seu pensamento sobre o ser da sociedade primitiva No ensa10 Arqueologia da violência a guerra nas sociedades primitivas ao in terrogar a guerra em sua positividade Clastres apresenta a sua mais rica descrição do funcionamento sociopolítico da sociedade primitiva enquanto sociedade contra o Estado Neste caso o fato incontornável é a paixão dos primitivos pela guerra amplamen te noticiada por exploradores missionários mercadores ou viajantes nas mais diversas regiões do planeta Considerando essa massa de documentos Clastres não hesita em afir mar que a guerra apresenta nas sociedades sem Estado urna dimensão de universalidade as sociedades primitivas são sociedades guerreiras são sociedades voltadas para a guerra E não deixa de assinalar que essa primeira imagem das sociedades primitivas ressoa na filosofia política de Thomas Hobbes corno confirmação empírica de sua especulação fi losófica que opõe ao estado de sociedade que é para ele sociedade do Estado um estado de natureza que se distingue pela guerra de todos contra todos Clastres assinala o inesperado desaparecimento da guerra no discurso da etnologia recente que segundo ele se explica pelo fato de que as sociedades primitivas quando se tornam objeto de estudo já estão desfiguradas a caminho da morte instaladas num paci fismo forçado pelos estados nacionais Mas ele acrescenta ainda urna outra razão interna 292 à história da disciplina tratase da produção e da difusão de um conjunto de discursos que tendem a excluir a guerra do domínio das relações sociais Clastres destaca inicialmente a concepção naturalista de LeroiGourhan que apresenta a guerra como um comportamento de agressão inscrito na realidade biológica do homem Inerente ao homem como ser natural a agressividade encontra sua finalida de na subsistência Codificada socialmente a agressão manifestase na caça e na guerra pensada como um análogo da caça Os caçadores tornamse guerreiros e os guerreiros detentores da força armada dominam o restante da comunidade O social é reduzido ao natural ao biológico O cortejo reducionista prossegue com um discurso economicista que qualifica a economia primitiva como economia de subsistência economia que seria incapaz em decorrência de seu subdesenvolvimento tecnológico de responder aos desafios de um meio natural que ela não consegue dominar Sociedade da miséria sobre esse fundo sob a ação da concorrência vital prosperaria o fenômeno da guerra Clastres observa que esse discurso enunciado científico do postulado popular ajustase perfeitamente à antro pologia marxista e ao marxismo propriamente dito que como teoria da história fundada na tendência das forças produtivas ao desenvolvimento deve atribuirse como poto de apoio uma espécie de grau zero das forças produtivas é exatamente a economia primitiva pensada desde então como economia da miséria como economia que querendo sair da miséria tenderá a desenvolver suas forças produtivas CLASTRES 2004 226 Clastres ataca esses discursos economicistas logicamente tão bemarranjados com uma pergunta muito simples É a economia primitiva sim ou não uma economia da miséria E responde que as pesquisas mais escrupulosas da antropologia econômica de monstram que a economia dos selvagens permite uma satisfação total das necessidades materiais da sociedade ao preço de um tempo reduzido de atividade de produção e de uma baixa intensidade dessa atividade a sociedade primitiva seletiva na determinação de suas necessidades em vez de consumirse na luta pela sobrevivência são segundo a fórmula de Marshall Sahlins 1972 cf ensaio neste livro as primeiras sociedades de abundância E acrescenta ainda considerando o pequeno tempo dedicado à produção as sociedades primitivas são verdadeiras sociedades de lazer Isto posto a explicação econo mista da guerra perde seu ponto de apoio e o econômico não pode mais explicar a guerra Há ainda o discurso estruturalista Este situa a guerra no âmbito das relações so ciais mas não é capaz de pensar a guerra em si mesma A lógica da reciprocidade subor dina a guerra à troca as guerras são trocas malsucedidas e a troca são guerras potenciais pacificamente resolvidas Neste discurso que equaciona o ser da sociedade primitiva como um serparaatroca a guerra não possui em si mesma nenhuma positividade e 293 não apresenta consistência institucional alguma Tudo estaria muito bem diz Clastres se não fosse a inadequação desse discurso à realidade etnográfica à quase universalidade do fenômeno da guerra primitiva Clastres contrapõe a posição de Hobbes a sociedade primitiva como guerra de todos contra todos e a de LéviStrauss a sociedade primitiva é a troca de todos com todos e recusa as duas A sociedade primitiva é o espaço da troca e é também o lu gar da violência a guerra tanto quanto a troca pertence ao ser social primitivo Não se pode e é o que é preciso estabelecer pensar a sociedade primitiva sem pensar a guerra CLASTRES 2004 231 Não há nessa proposição conciliação nem com Hobbes nem com LéviStrauss E sobretudo o erro de LéviStrauss está na confusão dos planos em que se situam a troca e a guerra na sociedade primitiva Ao recusar a hipótese do continuísmo econômico que apresenta a pretensa miséria primitiva como causa de uma suposta concorrência vital entre os grupos primitivos e ao questionar o continuísmo lógico que faz da guerra um acidente que vem conturbar o funcionamento da lógica da reciprocidade Clastres isola o fato da guerra prepara o terreno para afirmar a guerra como instituição política Esse isolamento da guerra como instituição politicamente consistente e plenamente social força novamente o pensamento a examinar o ser da sociedade primitiva A sociedade primitiva é indivisa não conhece a separação entre senhores e sú ditos nem a distinção entre proprietários e não proprietários e funciona de maneira a impedir a desigualdade a exploração e a divisão A sociedade primitiva é uma multipli cidade de comunidades locais que estendem sua codificação sobre um território com preendido como espaço exclusivo de exercício dos direitos comunitários Todas orienta das por um ideal de autarquia econômica e de independência política Esse ideal implica um movimento de exclusão pois é contra as outras comunidades que cada sociedade afirma seu direito privilegiado sobre um território determinado Com efeito os ideais de autarquia econômica e de independência política mostram que as relações de cada comunidade com os grupos vizinhos é sobretudo imanente à ordem política irredutível a uma determinação de ordem econômica A sociedade primitiva é segundo a análise de Clastres ao mesmo tempo totalidade e unidade Cada comunidade enquanto indivisa pode se pensar como um Nós Esse Nós por sua vez se pensa como totalidade na relação igual que mantém com os Nós equivalentes que constituem as outras aldeias tribos bandos etc A comunidade primitiva pode se afirmar como totalidade porque se institui como unidade ela é um todo finito porque é um Nós indiviso CLASTRES 2004 237238 Contudo esses ideais não isolam as comunidades locais ao contrário eles supõem e mobilizam um sistema dinâmico de relações que está necessariamente em movimen to perpétuo A comunidade primitiva ao invés de permanecer fechada em si mesma 294 abrese para as outras na intensidade extrema da nolênu gucreia C2 e conduzido aos seguintes problemas Como pensar ao mesmo tem s e i A guerra é um simples acidente ou é uma condição estruturante da s7ie tiva Eis que Clastres se vê nesse ponto obrigado a voltar às ideias de Hoites e i LéviStrauss para recusar esses dois modelos e escapar da cilada que se monta quando se orienta essa contraposição para constranger o pensamento da sociedade primitia à seguinte alternativa a guerra de todos contra todos ou a troca de todos com todos A hipótese de LéviStrauss segundo a compreensão de Clastres é uma lógica da identificação ela entra em contradição com a lógica da sociedade primitiva a comuni dade primitiva recusa identificarse com as outras perder sua diferença e a capacidade de se pensar como autônoma Essa recusa da lógica da identificação manifesta uma lógica centrífuga imanente à sociedade primitiva que mantém as comunidades lo cais na dispersão que lhes é própria Tratase de uma lógica sociológica Há imanente à sociedade primitiva uma lógica centrífuga da atomiza ção da dispersão da cisão de modo que cada comunidade tem necessi dade para se pensar como tal como totalidade una da figura oposta do estrangeiro ou do inimigo e assim a possibilidade da violência está ins crita de antemão no ser social primitivo a guerra é uma estrutura universal da sociedade primitiva e não o fracasso acidental de uma troca malsucedida CLASTRES 2004 239 Nesse sentido Clastres pode considerar a guerra primitiva como uma instituição plenamente política social e não natural uma política do múltiplo orientada contra o surgimento do Um uma política constitutiva não do estado de sociedade em geral mas do dinamismo das sociedades sem Estado das sociedades contra o Estado Clastres pondera que se a sociedade primitiva não pode consistir na paz universal que alienaria a sua liberdade ela também não pode se entregar à guerra total que aboli ria a sua igualdade Com efeito diz ele O ser social tem portanto simultaneamente necessidade da troca e da guerra para poder a uma só vez conjugar o ponto de honra autonomista e a recusa da divisão É com essa dupla exigência que se relacionam o es tatuto e a função da troca e da guerra que se desdobram em planos diferentes CLASTRES 2004 240 Esta posição não significa o reconhecimento de uma continuidade que asseguraria a passagem da guerra à troca ou viceversa A novidade da análise de Clastres está em mostrar que a guerra e a troca dizem respeito a duas estruturas diferentes e a funções es pecíficas Além disso Clastres considera fundamental dizer que nas sociedades primitivas a guerra como estrutura subordina a troca como função Assim para ele a guerra opera uma imediata classificação do povo em amigos e inimigos Portanto se a comunidade primitiva tem necessidade de aliados é porque ela tem inimigos De todo modo o fundamental é que o dispositivo da guerra divide os 295 Outros em aliados e inimigos Desta forma entre o Eu e o Outro como inimigo há o aliado político O aliado político demonstra a prevalência da guerra sobre a troca pois ele revela que é a guerra como estratégia das comunidades para se preservarem autônomas e para se conservarem indivisas que determina a aliança como tática A aliança política não pode aparecer no texto de Clastres como o oposto da guerra pois na prática efetiva ela é requerida pela guerra real E essa subordinação se confirma quando Clastres mostra que o princípio da reciprocidade nas sociedades primitivas articula grupos reunidos nas redes de aliança políticas e só impera nessas redes Clastres critica LéviStrauss por ele não ter diferenciado o nível propriamente antropológico a troca exogâmica de mulheres requerida pela proibição do incesto que instaura a cultura do nível político os regimes de troca entre os grupos humanos como viventes políticos Em outros termos LéviStrauss confundiria a reciprocidade fundadora da cultura com a troca como modo de relação entre grupos sociais Clastres que não fala do horizonte da humanidade insiste na originalidade da sociedade primi tiva que ao desenvolver uma estratégia destinada a reduzir ao máximo possível a neces sidade da troca não é em absoluto a sociedade para a troca mas antes pelo contrário sociedade contra a troca CLASTRES 2004 243 Clastres desvenda uma relação sistemática entre a guerra como política externa da sociedade primitiva e o respeito à lei ancestral como garantia de sua política interna em favor da indivisão social De um lado diz ele a sociedade primitiva quer perseverar em seu ser manter sua indi visão Tal é tanto no plano econômico impossibilidade de acumular riquezas quanto no plano da relação de poder o chefe existe mas não manda a política interna da sociedade primitiva conservarse corno Nós indiviso corno totalidade una CLASTRES 2004 246 De outro lado ele mostra que o desejo das comunidades locais de assegurarem sua indivisão implica a hostilidade a guerra entre as comunidades indivisas Portanto nas sociedades primitivas a indivisão interna e a oposição externa se conjugam uma é condição da outra A guerra é seu fundamento a própria vida de seu ser sua finalidade a sociedade primitiva é sociedade para a guerra ela é por essência guerreira CLAS TRES 2004 247 E ela é essencialmente guerreira porque a guerra primitiva é a mani festação de uma lógica centrífuga uma lógica do múltiplo Enquanto expressão de uma força centrífuga e de uma lógica do múltiplo a guerra primitiva resiste à força centrípeta à lógica da unificação à lógica do Um ou seja ao Estado Mais uma vez a análise de Clastres termina quando ela relaciona a descrição da complexidade de uma instituição no caso a guerra como estrutura da sociedade primi tia com um nível mais profundo relativo ao desejo coletivo que anima a vida da socie dade primitiva Clastres termina quando conecta a guerra primitiva com o desejo das 2 sociedades selvagens de perseverarem na indivisão Estabelecida esta conexão a guerra primitiva aparece como mais um dispositivo que exprime o desejo que constitui a socie dade primitiva como sociedade contra o Estado E assim diante da presunção etnocida da civilização ocidental a obra de Clastres renova a cada livro e a cada ensaio o desejo de dar o testemunho etnológico da existência e consistência milenar das sociedades contra o Estado Notas 1 Não se pode deixar de mencionar embora não seja o tema deste ensaio a importância da obra de Clastres para a antropologia brasileira Confirase a esse respeito o ensaio de Tânia Stolze Lima e Mareio Goldman publicado como prefácio da edição brasileira do livro A sociedade contra o Estado e o posfácio da edição brasileira do livro Arqueologia da violência intitulado Intempestivo ainda de Eduardo Viveiros de Castro 2 Pierre Clastres nasce em Paris em 1934 Faz seus estudos de filosofia na Sorbonne formandose em 1957 Acompanha os cursos de LéviStrauss no Collége de France a partir de 1960 Foi diretor de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique CNRS e membro do Laboratoire Anthropologie Sociale do Collége de Fran ce Morre aos 43 anos em um acidente de carro em uma estrada de Cévennes 3 Sobre este ponto cf o ensaio Liberdade mal encontro inominável publicado no livro Arqueologia da violência 2004 Pierre Clastres foi um pesquisador de campo Fez investigação etnográfica com os índios Guayaki do Para guai 0aneiro de 1963 a janeiro de 1964 com os Guarani do Paraguai 1965 com os Chulupi do Paraguai 1966 e 1968 com os Yanomami da Venezuela quatro meses entre 1970 e 1971 e com os Guarani do Estado de São Paulo 1974 Obras selecionadas de Pierre Clastres Arqueologia da violência Pesquisas de Antropologia Política 1977 São Paulo Cosac N aify 2004 A sociedade contra o Estado 1974 São Paulo Cosac Naify 2003 Crônica dos índios Guayaki O que sabem os Aché caçadores nômades do Paraguai 1972 São Paulo Ed 34 1995 A fala sagrada Mitos e cantos dos índios Guarani 1974 Campinas Papirus 1990 Trad de Nícia A Bonati Referências CLASTRES P Arqueologia da violência Pesquisas de Antropologia Política São Paulo Cosac N aify 2004 A sociedade contra o Estado São Paulo Cosac Naify 2003 Crônica dos índios Guayaki O que sabem os Aché caçadores nômades do Para guai São Paulo Ed 34 1995 297 A fala sagrada Mitos e cantos dos índios Guarani Campinas Papirus 1990 Trad de NA Bonati Entre silêncio e diálogo ln LÉVISTRAUSS C EArc documentos São Paulo Documentos 1968 CLASTRES P GUACHET M AD LER A LIZOT J Guerra religião e poder Lis boa Ed 70 1980 GRP 298 Fichamento dos dois textos anexos destacando e comentando 10 frases de cada texto Não é necessário fazer nenhum tipo de relação entre eles tratase de fichamento individual Pierre Clastres 19341977 Ovídio de Abreu Filho O autor aponta a associação do nome de Pierre Clastres à ideia de sociedade contra o Estado Apesar dessa ideia ter origem etnológica Abreu Filho defende que ela também está relacionada a questões filosóficas e também por inquietações advindas de experiências políticas exteriores ao domínio do pensamento propriamente antropológico Uma vez que Clastres foi influenciado por LéviStrauss o autor apresenta as três dimensões da antropologia defendidas por ele Ela começa como etnografia observação e descrição de uma sociedade ou grupo particular ela continua como etnologia pela aplicação do método comparativo que necessariamente mobiliza um conjunto de pesquisas etnográficas conquista uma primeira síntese sempre parcial que pode ser geográfica histórica ou sistemática e finalmente ampliando seu espectro comparativo a antropologia alcança a última etapa da síntese com a conquista de universais culturais ABREU FILHO 2015 p 283 O autor entende que assim como LéviStrauss Clastres tinha o intuito de criar uma nova antropologia que pudesse gerar um diálogo entre a civilização ocidental e as civilizações primitivas Não a antropologia evolucionista mas como disse Clastres a propósito da antropologia de LéviStrauss uma outra etnologia à qual seu saber permitisse forjar uma nova linguagem infinitamente mais rica uma etnologia que superando a oposição tão central em torno da qual se edificou e se afirmou nossa civilização se transformaria ela mesma num novo pensamento CLASTRES 1968 90 ABREU FILHO 2015 p 284 Segundo Abreu Filho a antropologia proposta por Clastres pretende redirecionar os termos e questionar o valor dos valores que avaliam as sociedades primitivas a partir do padrão da civilização ocidental que possui toda particularidade no campo da desrazão Diante desta partilha teórica e prática infamante Clastres emite um grito que não cessará de ressoar ao longo de sua obra é preciso levar a sério as sociedades primitivas A este grito corresponde um novo conceito de sociedade primitiva Na sua formulação mais concisa este conceito pode ser assim enunciado as sociedades primitivas são sociedades sem Estado e as sociedades sem Estado são sociedades contra o Estado ABREU FILHO 2015 p 284 O autor defende que a antropologia de Clastres consiste em uma etnologia que diferencia Sociedades contra o Estado e Sociedades de Estado o colonialismo europeu o genocídio e o etnocídio persistentes como política contra os indígenas das Américas exibem segundo a análise atenta de Clastres a violência como elemento imanente ao humanismo e à civilização ocidental O fato é que a civilização ocidental não se inclui no cenário das demais experiências humanas seu desdobramento é sempre contra o outro jogando qualquer alteridade no campo da desrazão ABREU FILHO 2015 p 285 Uma vez que o etnocentrismo aponta dois tipos de sociedades distintas para o autor é necessário dramatizar a ideia de etnocentrismo Quando referido ao novo sentido da partilha à diferença irredutível entre sociedades de Estado e sociedades contra o Estado o etnocentrismo não pode mais ser pensado como uma propriedade universal da vida cultural em geral O conceito de etnocentrismo é diferenciado e admite a determinação de tipos de etnocentrismo Como diz Clastres se toda cultura é etnocêntrica somente a cultura ocidental é etnocida 2004 81 ou seja se toda cultura tende a depreciar o outro somente algumas conduzem essa depreciação a uma política de aniquilamento dos outros modos de vida ABREU FILHO 2015 p 285286 O autor ainda introduz a ideia de etnocídio que consiste na ideia de cultura e desejo de destruição de outros modos de vida e de pensamento Nessa perspectiva o autor aponta que segundo Clastres a civilização ocidental é etnocida em primeiro lugar no interior dela mesma O Estado nacional por exemplo deve tudo homogeneizar impor uma língua oficial uma religião oficial uma administração unificada contra todas as particularidades locais etc ABREU FILHO 2015 p 286 Para Abreu Filho a antropologia política de Clastres tornouse desafiadora em relação ao pensamento europeu Sendo assim Clastres respondeu a esse desafio com a ideia de sociedade contra o Estado Essa ideia contém dois movimentos e desdobrase em dois tempos Ela envolve inicialmente uma concordância mas essa aquiescência diabólica em sua aparente inocência se prolonga numa afirmação que questiona a imagem dogmática do pensamento antropológico Sim de fato as sociedades primitivas são sociedades sem Estado mas há um outro sim uma outra afirmação que exprime uma reviravolta profunda e decisiva de direito as sociedades sem Estado são sociedades contra o Estado ABREU FILHO 2015 p 287 Segundo o autor a diferença proposta por Clastres entre sociedades sem Estado e sociedades contra o Estado evidencia o problema na transição de uma para a outra Com o abandono de qualquer explicação apoiada em pressupostos evolucionistas continuístas teleológicos o aparecimento do Estado tornase enigmático Neste ponto revelase radical o afastamento entre o pensamento de Clastres e o marxismo pois Clastres recusa o encadeamento mecânico disposto na seguinte série causal o desenvolvimento das forças produtivas determina o aparecimento das classes sociais e do seu regime de exploração que por sua vez requer e condiciona como modificação superestrutura o surgimento do Estado Posto fora de todo encadeamento mecânico de causas o Estado perde sua necessidade histórica e sua emergência ou existência desponta e persiste como acontecimento não elucidado ABREU FILHO 2015 p 288 Clastres vai de encontro aos clichês em torno do fato etnográfico Após esse trabalho de desbastamento o fato ressurge corno objeto problemático e corno instituição positiva que incita o pensamento a questionar as imagens existentes sobre as sociedades primitivas ABREU FILHO 2015 p 292 O autor apresenta a postura de Clastres em relação à sociedade primitiva que se diferencia tanto da concepção hobbesiana quanto da de LéviStrauss Para Clastres A sociedade primitiva é o espaço da troca e é também o lugar da violência a guerra tanto quanto a troca pertence ao ser social primitivo Não se pode e é o que é preciso estabelecer pensar a sociedade primitiva sem pensar a guerra CLASTRES 2004 231 ABREU FILHO 2015 p 292 Por fim para Abreu Filho a análise de Clastres se esgota quando ele associa a guerra primitiva à vontade das sociedades selvagens em perseverar na indivisão Estabelecida esta conexão a guerra primitiva aparece como mais um dispositivo que exprime o desejo que constitui a sociedade primitiva como sociedade contra o Estado E assim diante da presunção etnocida da civilização ocidental a obra de Clastres renova a cada livro e a cada ensaio o desejo de dar o testemunho etnológico da existência e consistência milenar das sociedades contra o Estado ABREU FILHO 2015 p 296297 NÃO RECONHECIMENTO E SUBCIDADANIA OU O QUE É SER GENTE JESSÉ SOUZA O imaginário social dominante no Brasil interpreta o brasileiro como um tipo social homogêneo como no homem cordial de Sérgio Buarque possuindo as mesmas características quase sempre associadas à emocionalidade ao personalismo ao jeitinho independentemente de sua classe ou pertencimento social SOUZA P 51 O autor inicia o texto a partir de uma crítica à homogeneização da sociedade que não leva em conta a desigualdade marginalização e subcidadania que apesar do desenvolvimento econômico seguem presentes na sociedade Souza defende um paradigma teórico alternativo capaz de suprir as falhas deixadas pelas teorias tradicionais que se baseiam no essencialismo cultural fragmentação conjuntural e pragmática da explicação teórica Por mais bem sucedidos e interessantes que sejam vários desses esforços que recuperam contextos e sentidos históricos e ajudam a mapear empiricamente dados relevantes acerca da realidade eles não contribuem para renovar a compreensão mais totalizadora acerca dos princípios estruturantes básicos que perfazem a singularidade da modernidade periférica dado que seu horizonte categorial rejeita de plano qualquer preocupação com essa dimensão mais abstrata da reflexão teórica SOUZA P 52 Nesse sentido o autor utiliza as perspectivas de Charles Taylor e Pierre Bourdieu para fundamentar suas reflexões possibilitando uma reformulação muito mais elaborada em relação ao tema clássico marxista da ideologia espontânea do capitalismo tanto no contexto central quanto no periférico creio encontrar nesses dois autores uma complementariedade fundamental de modo a unir a percepção de configurações valorativas implícitas e intransparentes à consciência cotidiana e ancoradas de modo opaco e inarticulado à eficácia de algumas instituições do mundo moderno como mercado e Estado com a percepção de signos sociais visíveis que permitam mostrar o íntimo vínculo entre uma hierarquia valorativa que se traveste de universal e neutra com a produção de uma desigualdade social que tende a se naturalizar tanto no centro quanto na periferia do sistema SOUZA P 53 Apesar de reconhecer lacunas na obra de Florestan Fernandes o autor faz uso de sua tese para fazer uma reflexão sobre o surgimento do povo na história brasileira Florestan toca na questão central para todo seu argumento neste artigo nomeadamente a questão da organização psicossocial que é um pressuposto da atividade capitalista e que exige uma présocialização em um sentido prédeterminado a qual faltava em qualquer medida significativa ao exescravo SOUZA P 54 Para Souza a desestruturação familiar abordada por Fernandes como ponto fundamental para a manutenção da desorganização social existente para negros e mulatos Esse aspecto é fundamental para meu argumento na medida em que o que Florestan está pleiteando é na realidade a meus olhos atribuir à constituição e reprodução de um habitus específico no sentido de Bourdieu a apropriação de esquemas cognitivos e avaliativos transmitidos e incorporados de modo préreflexivo e automático no ambiente familiar desde a mais tenra idade permitindo a constituição de redes sociais também préreflexivas e automáticas que cimentam solidariedade e identificação por um lado e antipatia e preconceito por outro o lugar fundamental na explicação da marginalidade do negro SOUZA P 56 Souza argumenta que nenhuma sociedade moderna foi capaz de generalizar o ser humano atribuindolhe uma précondição para a cidadania como fruto do desenvolvimento econômico Dentre as sociedades desenvolvidas inclusive é a mais rica dentre elas os EUA a que apresenta maior índice de desigualdade e exclusão A marginalização permanente de grupos sociais inteiros tem a ver com a disseminação efetiva de concepções morais e políticas que passam a funcionar como idéiasforça nessas sociedades SOUZA P 58 O autor defende que a explicação que entende que a superação dessa condição de marginalidade que enxerga esses indivíduos como resíduos ocorre por meios econômicos deve ser mudada pois ela contribui para a manutenção dessa situação não é a continuação do passado no presente inercialmente que está em jogo realidade essa destinada a desaparecer com o desenvolvimento econômico mas a redefinição moderna do negro como imprestável para exercer qualquer atividade relevante e produtiva no novo contexto que constitui o quadro da nova situação de marginalidade SOUZA P 58 Souza questiona o que ser gente para além do sentido retórico Para tal ele defende as reflexões elaboradas por Taylor e Bourdieu Para Bordieu e Taylor a sociedade moderna se singulariza precisamente pela produção de uma configuração formada pelas ilusões do sentido imediato e cotidiano que Taylor denomina naturalismo e Bourdieu doxa que produzem um desconhecimento específico dos atores acerca de suas próprias condições de vida para ambos apenas uma perspectiva hermenêutica genética e reconstrutiva poderia reestabelecer as efetivas ainda que opacas e intransparentes précondições da vida social numa sociedade desse tipo SOUZA P 61 O autor apresenta uma divisão do conceito habitus atribuindo a ele um atributo histórico e uma dimensão genética e diacrônica que ultrapassa as reflexões de Bourdieu Além disso o autor reconhece a necessidade de uma análise transclassista pois segundo ele essa lacuna dificulta analisar as relações entre as classes dominantes e dominadas Se o habitus representa a incorporação nos sujeitos de esquemas avaliativos e disposições de comportamento a partir de uma situação socioeconômica estrutural então mudanças fundamentais na estrutura econômicosocial deve implicar conseqüentemente mudanças qualitativas importantes no tipo de habitus para todas as classes sociais envolvidas de algum modo nessas mudanças SOUZA P 62 Nessa perspectiva Souza apresenta o conceito habitus como habitus precário e habitus secundário habitus secundário tem a ver com o limite do habitus primário para cima ou seja tem a ver com uma fonte de reconhecimento e respeito social que pressupõe no sentido forte do termo a generalização do habitus primário para amplas camadas da população de uma dada sociedade SOUZA P 64 se o habitus primário implica um conjunto de predisposições psicossociais refletindo na esfera da personalidade a presença da economia emocional e das précondições cognitivas para um desempenho adequado ao atendimento das demandas variáveis no tempo e no espaço do papel de produtor com reflexos diretos no papel do cidadão sob condições capitalistas modernas a ausência dessas précondições em alguma medida significativa implica na constituição de um habitus marcado pela precariedade SOUZA P 66 De acordo com Souza essa divisão do conceito de habitus tem a função de ir além das concepções subjetivistas da realidade que reduzem a mesma às interações face a face O conceito de habitus desde que acrescentado de uma concepção não essencialista de moralidade ancorada em instituições fundamentais permite tanto a percepção dos efeitos sociais de uma hierarquia atualizada de forma implícita e opaca e por isso mesmo tanto mais eficaz quanto a identificação do seu potencial segregador e constituidor de relações naturalizadas de desigualdade em várias dimensões variando com o tipo de sociedade analisado SOUZA P 73