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Filosofia do Direito
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GERARD LEBRUN O QUE É O PODER 1981 Brasiliense ÍNDICE INTRODUÇÃO 3 APRESENTAÇÃO DO MONSTRO 4 O LEVIATÃ CONTRA A CIDADE GREGA 10 O LEVIATÃ E O ESTADO BURGUÊS 20 COMÉDIA LIBERAL 27 ÚLTIMO CHEFE 35 INDICAÇÕES DE LEITURA 44 INTRODUÇÃO As páginas que seguem não pretendem de modo algum constituir uma apresentação exaustiva do conceito de poder na filosofia política Se fosse este o caso eu deveria limitarme a expor um histórico da questão detendome por exemplo nos pensadores medievais cuja importância foi considerável Mas nas dimensões deste livro um tal histórico embora sucinto seria forçosamente superficial Não sou dos que pensam que o estudante de Filosofia deva percorrer em um ano as doutrinas dos PréSocráticos a Heidegger Seria o mesmo que viajar de Boeing para apreciar as paisagens O meu desígnio é mais modesto Partindo de uma palavra de significação tão complexa tenho apenas a intenção de convidar o leitor a desfazerse de alguns preconceitos e abandonar algumas evidências Não a intenção de fazêlo amar o Poder ou de sussurrarlhe que este Poder não é tão ruim quanto se diz mas de fazêlo visitar alguns dos cruzamentos e esquinas em que a palavra Poder se revestiu do sentido a um só tempo vago e maléfico que possui em nossa fala cotidiana e isso graças a deslocamentos conceituais por vezes surpreendentes As palavras abstratas disse Nietzsche são como alforjes nos quais as épocas e as filosofias teriam acumulado as coisas mais heteróclitas E assim a palavra acaba tornandose um tal entrecruzamento de marcas que embaralha todas as pistas A função do genealogista é reencontrar estas pistas E aqui apenas tento despertar a curiosidade genealógica Vale dizer que está ausente destas páginas à preocupação de agradar assim como a de desagradar a qualquer ideologia que seja Às vezes é preciso ferir alguma de passagem às vezes é necessário tomar a liberdade de desmentir outra mas sem intenção polêmica Apenas para diminuir confusões ou equívocos que era nosso propósito dissipar ou afastar Então você só pretende falarnos de uma palavra dirá talvez o futuro leitor já decepcionado Mas o que nos interessa são as coisas é delas que queremos ser informados Mas responderia eu não acreditem que as coisas estejam diante dos seus olhos Quando se trata de coisas abstratas quando se trata deste Poder no qual vocês tomam a liberdade de reunir realidades tão diferentes vocês têm mesmo certeza de estarem lidando com conteúdos identificáveis e localizados Com coisas Estão seguros de não estarem tratando simplesmente com depósitos semânticos É querendo chegar depressa demais às coisas é desprezando as palavras sem inventariar o seu sentido que corremos o risco de cometer alguns enganos desagradáveis Como neste caso acreditar que o Poder seja algo muito simples e por isso seja lícito esperar liquídálo algum dia Desta maneira nasceu no século XIX a crença de que o poder conhecia a sua decadência e de que começara a sua agonia Se estas páginas são dogmáticas é apenas porque denunciam esse mito Compreendo que uns queiram conquistar o poder ou combatêlo ou que se resignem a ele ou o temam ou o detestem O que não compreendo é que se possa subestimar o poder APRESENTAÇÃO DO MONSTRO Cada uma das duas SuperPotências dispõe de um arsenal nuclear capaz de exterminar todos os seres vivos tem assim uma potência de destruição total O Fundo Monetário Internacional quando vem em ajuda de um país em dificuldades está em condições de ditarlhe uma política econômica determinada tem portanto a potência de limitar a soberania deste país A potência é a capacidade de efetuar um desempenho determinado ainda que o ator nunca passe ao ato Desta maneira tornamos a encontrar a velha distinção estabelecida por Aristóteles entre a potência dunamis e o ato ou melhor o efetivo ergon Ou mais exatamente reencontramos um dos sentidos desta distinção Pois constata Aristóteles não é a mesma coisa atribuirse a uma criança ou a um arquiteto a potência de construir uma casa Num caso isto quer dizer que quando a criança tornarse adulto poderá ser um arquiteto quem sabe isto não é impossível No outro caso quer dizer que este arquiteto atualmente sem trabalho construirá uma casa desde que o contratem é seu este poder Por um lado potência designa uma virtualidade por outro uma capacidade determinada que está em condições de exercerse a qualquer momento Era este evidentemente o sentido da palavra potência nos dois exemplos que empreguei acima as SuperPotências e o FMI dispõem de recursos que podem aplicar a qualquer momento No domínio das relações políticas esta potência não de tornarse mas de exercerse é a única que pode interessarnos Com efeito o que é a política A atividade social que se propõe a garantir pela força fundada geralmente no direito a segurança externa e a concórdia interna de uma unidade política particular Julien Freund Questce que la Politique p177 Não é dogmaticamente que eu proponho esta definição outras são possíveis mas simplesmente para ressaltar que sem o uso da noção de força a definição seria visivelmente defeituosa Se numa democracia um partido tem peso político é porque tem força para mobilizar um certo número de eleitores Se um sindicato tem peso político é porque tem força para deflagrar uma greve Assim força não significa necessariamente a posse de meios violentos de coerção mas de meios que me permitam influir no comportamento de outra pessoa A força não é sempre ou melhor é rarissimamente um revólver apontado para alguém pode ser o charme de um ser amado quando me extorque alguma decisão uma relação amorosa é antes de mais nada uma relação de forças cf as Ligações Perigosas de Laclos Em suma a força é a canalização da potência é a sua determinação E é graças a ela que se pode definir a potência na ordem das relações sociais ou mais especificamente políticas Potência Macht significa toda oportunidade de impor a sua própria vontade no interior de uma relação social até mesmo contra resistências pouco importando em que repouse tal oportunidade Não conheço nenhuma definição do poder enquanto fator sóciopolítico que seja superior a esta fórmula de Max Weber Mas então por que falar em poder e não em potência E que poder inclui um elemento suplementar que está ausente de potência Existe poder quando a potência determinada por uma certa força se explicita de uma maneira muito precisa Não sob o modo da ameaça da chantagem etc mas sob o modo da ordem dirigida a alguém que presumese deve cumprila E o que Max Weber chama de Herrschaft e podemos acompanhar Raymond Aron traduzindo este termo como dominação pois assim conservamos a raiz alemã Herr Herr dominus senhor A dominação é segundo Max Weber a probabilidade de que uma ordem com um determinado conteúdo específico seja seguida por um dado grupo de pessoas O que é a dominação Seria um título algo estranho Melhor será por uma questão de comodidade utilizar este conceito weberiano sob o nome de poder desde que o leitor tenha sempre em mente a definição de Weber a que nos referimos Raymond Aron observa que o grande sociólogo Talcott Parsons traduz o termo weberiano Herrschaft por imperative control o que é bastante contestável A noção de imperative control obscurece o confronto entre quem comanda e quem obedece num sistema de ordem imposto Ora as relações de domínio ou de poder institucionalizado não constituem a totalidade do sistema de comportamento socialmente imposto Os costumes leis preconceitos crenças paixões coletivas contribuem também para determinar a ordem social E muito significativa tal edulcoração do sentido de Herrschaft Parsons recusase a considerar o poder como sendo essencialmente uma ação imposta por um ator a um outro ator Segundo ele o political power é a aplicação de uma capacidade generalizada que consiste em obter que os membros da coletividade cumpram obrigações legitimadas em nome de fins coletivos e que eventualmente permite forçar o recalcitrante através de sanções negativas Intencionalmente esta definição minimiza o papel da coerção e elimina o caráter dissýmétrico não igualitário hierárquico em suma do poder E que Parsons considera errônea toda compreensão do poder que o reduza a uma situação marcada pela desigualdade e portanto pelo menos potencialmente conflituosa Segundo ele ter o poder não é basicamente estar em condições de impor a própria vontade contra qualquer resistência E antes dispor de um capital de confiança tal que o grupo delegue aos detentores do poder a realização dos fins coletivos Em suma é dispor de uma autoridade no sentido em que um escritor de renome um pensador ilustre um velho sábio são autoridades no interior de um grupo dado sem que esta autoridade implique uma idéia de coerção Na política a coerção só seria utilizada em casoslimite e a possibilidade de empregála não serviria para definir o imperative control Parsons aqui constitui apenas um exemplo entre tantos outros Na filosofia política de Hegel também encontraremos esta mesma vontade de dissolver o poder no sentido weberiano Hegel nunca deixa de insistir na diferença que existe entre o poder de Estado por um lado e por outro a potência pura e simples blosze Macht e o puro arbítrio leere Willkür do despotismo O déspota é aquele cuja vontade particular e caprichosa vale como lei enquanto o poder de Estado persegue fins que são os da coletividade Apenas excepcionalmente portanto poderia exercerse mediante coerção Assim podese dizer que a crítica de Marx a Hegel anuncia o espírito da crítica dirigida a Parsons pelos weberianos O que devemos pensar desta dissolução do poder na autoridade À primeira vista pode parecer que Parsons descreve adequadamente o exercício do poder nas democracias ocidentais O Presidente ou o PrimeiroMinistro a quem o poder é confiado pelo corpo eleitoral por um período 5 determinado tem o encargo de cuidar dos negócios da Nação e de zelar pela observância da lei E ninguém lhe contesta o direito de exercer tal função Sem dúvida a oposição pode criticar a escolha de seus objetivos e a maneira por que emprega a sua autoridade não questiona porém uma autoridade cujo princípio ela reconheceu Em outras palavras o direito de governar dentro de limites constitucionais que têm Helmut Schmidt Giscard ou Mrs Thatcher está fundado num consenso explícito da nação Marxistas e libertários dirão que este consenso resulta de uma mistificação de uma manipulação das massas etc Ainda que tenham razão não é disso que estamos tratando agora Observo apenas 1º que este poder explicitamente consensual é uma espécie muito determinada de poder que eu saiba ele não existe em todos os países 2º que este tipo de poder parece justificar a quase identificação estabelecida por Parsons entre poder e autoridade Mas podese perguntar se Parsons não confere demasiada importância ao processo democrático no caso de recrutamento dos que são encarregados de tomar decisões Sem dúvida não é nada indiferente que os cidadãos possam ou não escolher os seus governantes sobretudo numa época em que se fossem excluídos da ONU todos os países em que os governantes não são eleitos pelo povo ou não são seriamente eleitos esta honrada assembléia poderia verse quase vazia Mas façamos abstração do processo de recrutamento político pelo menos metodologicamente Quando um cidadão paga os seus impostos requer um alvará de construção cumpre o seu serviço militar etc em suma quando se submete a todas as obrigações que lhe são impostas por qualquer poder de Estado será muito diferente o seu comportamento conforme viva num regime democrático autoritário ou totalitário Não falo é óbvio das tiranias todos me concederão que havendo escolha é preferível fraudar o erário inglês brasileiro ou soviético do que o Tesouro de Idi Amin Dada Feita esta ressalva penso que o comportamento do contribuinte resignado e reclamador ao mesmo tempo deve ser quase idêntico em todas as latitudes Quando pago a minha parcela do imposto é certo que não o faço sob a pressão de um medo pânico mas estou ciente de que um esquecimento me acarretaria uma multa e um esquecimento prolongado produziria sérios aborrecimentos num prazo mais rápido do que se deixasse de pagar o aluguel ao meu locador mas em última análise da mesma ordem Em suma quando me submeto às leis e regulamentos editados pelo poder é sempre porque uma infração significaria a certeza de uma punição para todos em princípio Mas no caso não será um sofisma reduzir a submissão civil à aceitação da autoridade Não sei como Parsons ou os seus discípulos explicariam o que aconteceu em Nova Iorque durante o célebre corte de energia elétrica mas é fato que a certeza da impunidade mostra logo como é frágil o respeito pela autoridade Sem dúvida nunca se deve desconhecer este último fator como fazem os libertários vejamse as declarações dos novos filósofos franceses que apresentam todo Poder como um monstro abominável perante o qual os súditos temerosos e trêmulos sempre dobrariam o joelho Ora vamos a maior parte do tempo os homens vão vivendo de uma forma ou outra com o poder resignamse a ele reconhecemno Contudo será muito apressado concluirmos que a coerção não seja essencial para a obediência política No horizonte desta sempre está presente se não o temor 6 pelo menos a consciência da possível coação mesmo para aqueles e são inúmeros que nunca pensaram sequer em contestar a legitimidade do poder Se concordarem com esta tese vocês deverão aceitar uma segunda que muito logicamente é rejeitada por Talcott Parsons a saber que o poder é mercadoria rara que só podemos possuir às custas de outra pessoa Ou ainda que o poder que possuo é a contrapartida do fato de que alguém não o possui Tomemos o exemplo mais anódino um professor pode ser amigo de seus alunos deixálos chamaremno de você etc Ainda assim detém um poder de darlhes notas que os alunos não têm sobre ele Isto é o essencial E é por isso que só se pode compreender uma relação intersubjetiva em qualquer plano que seja profissional comercial sentimental se for possível responder à questão quem está em posição inferior Quem em posição superior Quem é o soldado Quem é o oficial Se X tem poder é preciso que em algum lugar haja um ou vários Y que sejam desprovidos de tal poder É o que a sociologia norteamericana chama de teoria do poder de soma zero o poder é uma soma fixa tal que o poder de A implica o não poder de B Esta tese ou este pressuposto quando a tese não é expressamente enunciada encontrase em autores tão diferentes ideologicamente como Marx Nietzsche Max Weber Raymond Aron Wright Mills A partir desta base é evidente que as posições podem divergir Uns sustentarão que o poderdominação não é um fenômeno necessariamente vinculado a toda organização política e que só caracteriza uma sociedade sob certas condições patológicas sociedade de classes Os outros e modestamente estas páginas inscrevemse nesta segunda linhagem pensam que nenhuma organização política pelo menos moderna poderia funcionar sem haver dominação e que o único problema político é então saber qual é o melhor modo de determinar e adequar esta última em função é claro dos valores e da escala de valores escolhidos Mas antes de chegarmos a esta bifurcação constatemos que ela só tem sentido se aceitarmos a teoria da soma zero Seria pena que o leitor aceitasse esta tese como óbvia É uma opção que Talcott Parsons não é o único a recusar Recentemente um livro de Michel Foucault A Vontade de Saber mostrou que ele também rejeitava e por razões inteiramente distintas das de Parsons a teoria da soma zero Por isso eu gostaria de resumir três dos seus argumentos 1 Por que reduzir a dominação à proibição à censura à repressão escancarada Por que só pensar no poder enquanto limitador dotado apenas do poder do não produzindo exclusivamente a forma negativa do interdito O poder é menos o controlador de forças que seu produtor e organizador Desde o fim do Século XVI o poder político é antes de mais nada a instância que constitui os súditos sujeitos ao dobrálos a suas pedagogias disciplinares ensino exército etc 2 Se esta verdade ainda passa desapercebida é porque no fundo a representação do poder continua sendo obcecada pela monarquia e pela representação jurídica que esta suscitou Daí a necessidade de decifrar os mecanismos do poder deixando de recorrerse à personagem do Príncipe O poder é instaurador de normas mais que de leis 3 Deixaremos então de representar o poder como uma instância estranha ao corpo social e de opor o poder ao indivíduo Afinal de contas ainda é muito tranquilizante interpretar o poder apenas como um puro limite imposto à liberdade Representação que além disto é muito grosseira Na 7 verdade encontramos as relações de poder funcionando em relações muito distintas na aparência nos processos econômicos nas relações de conhecimento no intercursos sexual De modo que no princípio das relações de poder não existe como matriz geral uma oposição binária e global entre dominantes e dominados Em suma o poder não é um ser alguma coisa que se adquire se toma ou se divide algo que se deixa escapar É o nome atribuído a um conjunto de relações que formigam por toda à parte na espessura do corpo social poder pedagógico pátrio poder poder do policial poder do contramestre poder do psicanalista poder do padre etc etc Por que nestas condições conferir tanta honra ao tradicional e arcaico poder de Estado constituído na época das monarquias absolutas européias Sem pretendermos em tão pouco espaço criticar Foucault podemos contudo perguntar se ao enfocar em seu microscópio os mil pequenos poderes que nos prendem sem o sabermos ele não está se precipitando em depreciar a matriz ordemobediência eu tenho poder portanto você não o tem Quando a questão é compreender como foi e continua sendo possível a resignação quase ilimitada dos homens perante os excessos do poder não basta invocar as disciplinas e as mil fórmulas de adestramento que como mostra Foucault são achados relativamente recentes da modernidade Sua origem e seu sucesso talvez se devam a um sentimento atávico dos deserdados de serem por natureza excluídos do poder estranhos a este talvez derivem da convicção de que oporse a ele seria loucura comparável a oporse aos fenômenos atmosféricos Ainda que o poder não seja uma coisa ele tornase uma pois é assim que a maioria dos homens o representa É preciso situar a tese de Foucault dentro dos seus devidos limites o homem condicionado adestrado pelos poderes é o privilegiado o europeu Não é o colonizado não é o proletário do Terceiro Mundo assim como não era o proletário europeu do Século XIX Estes o poder não pensa sequer em domesticar dominaos e muito de cima Voltamos assim à teoria da soma zero Que o poder político se tenha burocratizado tecnicizado sofisticado a ponto de tornar os súditos obedientes malgrado seu isto é muitas vezes verdade Mas não será este o resultado de uma longa evolução cujo ponto de origem seria o momento em que se tornou óbvio que comunidade política organização da dominação Pois nem sempre foi assim Houve sociedades que se arranjaram sem o Estado observava Engels sociedades que não tinham idéia alguma do Estado nem do poder de Estado E já David Hume notava no seu Tratado da Natureza Humana 1740 que não é absolutamente impossível que os homens mantenham a sociedade por algum tempo sem intervenção do governo Vejam as tribos americanas dizia ele elas nos mostram que os homens são capazes de viver em sociedade sem governo quando os bens e os prazeres da vida são pouco numerosos e de escasso valor O nascimento do poder devese aparentemente às necessidades da guerra Os acampamentos são os verdadeiros pais das cidades E a necessidade do poder impõese quando nas sociedades ampliadas e requintadas as regras de justiça já não têm força suficiente em si próprias para que os homens as respeitem se não houver coerção e quando existem grupos sociais com forte interesse em que a justiça seja ministrada de maneira segura 8 A partir daí diz Hume os homens se acostumam muito rapidamente à obediência cívica de modo que não se deve dizer como fazem os teóricos do Contrato que os homens estejam presos à obediência apenas por sua promessa Isto pode haver acontecido em eras remotas Mas rapidamente o dever de obediência enraizouse por si próprio O poder não deve sua existência às nossas promessas longe disso é ele reconhecido há tanto tempo como uma fatalidade que nos força a cumprilas Assim há muito tempo que ser cidadão ser obediente Como compreender esta equação É ela em todo caso que precede e possibilita o adestramento descrito por Foucault assim como por Hegel que tem muitas análises preciosas a este respeito Ora repetimos esta equação não é um dado da natureza humana Basta o exemplo da Pólis grega para atestálo Nesta comunidade de iguais que visam a uma vida que é potencialmente a melhor Aristóteles a vida pública não é caracterizada pela dominação É na esfera privada relativa à sua família aos seus escravos que o homem se porta como um monarca ou como um despotés senhor de escravos o sentido não é pejorativo em suma como um dominador Mas esta relação não política nada tem a ver com a relação que o homem de Atenas mantém com os homens livres seus concidadãos durante o tempo tão restrito em que tem o encargo de uma magistratura A este respeito só podemos recomendar as análises de Hannah Arendt A distinção entre governantes e governados pertence a uma esfera que precede o domínio político e o que distingue este da esfera econômica do lar é o fato de a cidade pólis basearse no princípio de igualdade não conhecendo diferenciação entre governantes e governados Entre o Passado e o Futuro p 158 Nada é mais apaixonante do que este artigo de H Arendt em que ela mostra como os gregos deixaram aos romanos a incumbência de elaborar o conceito de poder O que os gregos chamavam de arché politiké a um tempo o principio e a direção da Pólis para empregarmos termos provenientes do latim e portanto forçosamente deformadores não é o nosso conceito de poder político Querem um indício Vocês o encontrarão na Política de Aristóteles Livro III cap 6 A prova diz o filósofo de que a arché normalmente se exerce no interesse de todos é que os cidadãos pretendem participar da direção e assumir os encargos cívicos por rodízio É verdade acrescenta ele que as coisas estão mudando o que é um sintoma patológico devido às vantagens materiais que se tira dos bens do Estado ou que se alcança pelo exercícío da archein os homens desejam permanecer continuamente em funções É como se o poder conservasse em permanente boa saúde os que o detêm Brincadeira que não deve ter muita graça para os Presidentes que buscam a reeleição após um mandato de quatro ou até mesmo de sete anos Mas brincadeira que indica o quanto está longe de Aristóteles a idéia de uma dominação suprema que seria a condição de funcionamento da Pólis a idéia de um poder constitutivo da Cidade Esta idéia é a marca de nascência da nossa modernidade política E foi um inglês do Século XVII que a expôs genialmente Thomas Hobbes O LEVIATÃ CONTRA A CIDADE GREGA A primeira marca do príncipe soberano é o poder de dar lei a todos em geral e a cada um em particular Mas isso não basta e é necessário acrescentar sem o consentimento de maior nem igual nem menor que ele O soberano de uma República seja ele uma assembléia ou um homem não está absolutamente sujeito às leis civis Pois tendo o poder de fazer ou desfazer as leis pode quando lhe apraz livrarse desta sujeição revogando as leis que o incomodam e fazendo novas A primeira destas frases é do francês Jean Bodin Os Seis Livros da República 1576 A segunda é de Hobbes no seu Leviatã 1651 Ambos conferem ao Príncipe legítimo uma potência potestas tal que o exercício do seu poder achase como se vê liberto de toda norma ou regra E para medirmos a inovação assim introduzida basta recorrermos à frase de um teólogo do Século XII A diferença entre o príncipe e o tirano é que o príncipe obedece à Lei e governa o seu povo em conformidade com o Direito Ou ainda ao que diz Santo Tomás A vontade humana pode em virtude de uma convenção comum fazer que seja justa uma coisa dentre aquelas que não implicam nenhuma repugnância à justiça natural A teoria da Soberania libera o poder do Príncipe de tais limitações Diz respeito a um poder de Estado que não existe mais ao lado de outros poderes porém infinitamente acima deles Assim entre 1550 e 1650 produzse na Europa uma alteração considerável na situação da autoridade política frente ao corpo social a monarquia tornase absoluta e legisladora E porque adquire este vigor a autoridade tornase capaz de atribuir de cancelar de instituir de redistribuir os direitos Bertrand de Jouvenel No Século XVIII esta evolução encontrase acabada e das instituições medievais que garantiam a pluralidade dos poderes só resta o nome como observa Tocqueville A realeza nada mais tem em comum com a realeza da Idade Média e assume outras prerrogativas ocupa outro lugar afeiçoase a outro espírito inspira outros sentimentos A administração do Estado se expande em todas as partes por sobre os restos dos poderes locais A hierarquia dos funcionários substitui cada vez mais o governo dos nobres O Antigo Regime e a Revolução p 334 Sob que pressão se produziu esta mutação do poder O que ocorreu Certas obras históricas como uma recente do inglês Perry Anderson Lineages of the Absolutist State mostramnos antes de mais nada como tal questão é complexa Que tenha sido essencialmente econômica a motivação desta transformação política é o que poucos historiadores negam Mas quer isso dizer que o absolutismo limitouse a responder às necessidades do capital mercantil e manufatureiro Não terá sido antes uma readequação do aparelho feudal em função de condições novas O que parece inegável é que desde o fim da Idade Média o desenvolvimento da tecnologia comercial e das transações era pouco compatível com o fracionamento dos poderes locais É no fim do Século XIV que nasce um complexo institucional dotado de poder próprio os primeiros exércitos profissionais aparecem no final do Século XIII encarregado de garantir a segurança e a justiça e que se arroga o monopólio da determinação dos direitos e deveres de cada um A partir do Século XVI o paralelismo entre os dois tipos de mutação política ou econômica tornase nítido por um lado a centralização e simultaneamente a burocratização do poder transformando o aparelho estatal do governo dos príncipes por outro lado a expansão da circulação capitalista das mercadorias e uma progressiva perturbação do modo de produção baseado na família Jürgen Habermas Teoria e Prática A Doutrina Clássica da Política Haverá entre estas duas séries uma relação de causalidade ou simplesmente de concomitância A este respeito podemos apenas referirnos às análises prudentíssimas de Perry Anderson Embora empregue conceitos marxistas Anderson não nos permite afirmar sem mais que o absolutismo é o produto da ascensão do capitalismo Melhor será dizermos que esta ascensão do capitalismo foi geralmente veremos que devem fazerse algumas reservas favorecida pela consolidação do absolutismo Em todo caso o que ora nos interessa é a originalidade da nova forma política É a natureza desta variedade de poder político que é nosso objeto e a natureza de um poder não pode ser deduzida das tarefas sociais que ele é levado a cumprir Que o poder soberano não tenha caído do céu certo Mas deixaremos ao historiador o mister de iluminar as estratégias históricas que resultaram nele Os antigos escreve Jean Bodin chamavam de República uma sociedade de homens reunidos para viverem bem e felizes Mas será mesmo este o objetivo primeiro de uma República As Repúblicas só podem cuidar das virtudes morais quando estão amparadas quanto ao que lhes é necessário o econômico passa antes do ético Esta é a primeira diferença entre a concepção moderna e a antiga da Cidade A segunda aparece na definição que Bodin faz da República reto governo de várias famílias e do que lhes é comum havendo um poder soberano O que supõe que se reconheça às famílias às atividades privadas dos homens uma existência própria e mesmo de direito prévia à da Cidade Mas é preciso acrescenta Bodin que haja alguma coisa comum e pública como o domínio público o erário público as ruas as muralhas as leis os costumes a justiça os alugueres as penas pois não existe República se não há nada público Contudo este espaço público é habitado por indivíduos ou grupos famílias que em sua dispersão nunca constituiriam sozinhos uma comunidade entendida como um corpo único Os indivíduos enquanto tais formam apenas uma multidão quer dizer um número de homens distinto pelo lugar das suas residências como o povo da Inglaterra ou o povo da França Hobbes Ora nesse estágio ideal de mera congregação geograficamente determinada o povo não é um corpo político Ainda precisa de uma instância que coordene e unifique os indivíduos É aqui que intervém a noção de potência A República sem potência soberana que una todos os membros e partes e todas as famílias e colégios num corpo já não é mais República Bodin Estamos então em condições de compreender o que é este grande Leviatã que é chamado de República ou Estado Hobbes O que é ele Um homem artificial um genial e gigantesco autômato criado para defesa e proteção dos homens naturais O importante é que esta criação coincide plenamente com a constituição da multidão em um corpo político É como se cada homem dissesse a cada homem Cedo e transfiro meu direito de governarme a mim mesmo a este homem ou a esta assembléia de homens com a condição de transferires a ele teu direito autorizando de maneira semelhante todas as suas ações Feito isto à multidão assim unida numa só pessoa se chama República em latim civitas É esta a geração daquele grande Leviatã Leviatã cap 17 Para que haja corpo político é preciso que as vontades de todos sejam depostas numa única vontade e que exista um depositário da personalidade comum O depositário desta personalidade é chamado soberano e dele se diz que possui poder soberano Todos os restantes são súditos Ibidem Este soberano será um único homem ou uma assembléia cuja vontade é tida e considerada como vontade de cada homem em particular Assim não há comunidade sem unificação não há unificação sem soberania mas também não há soberania sem poder absoluto que não está submetido a nenhum outro e perpétuo sem solução de continuidade Compreendese desta maneira que o portador da soberania seja absolvido do poder das leis isento de seguir as dos seus predecessores e também não esteja preso às leis e ordenações que edite Não haverá pois razão tirada quer do direito natural quer da objeção de consciência quer do dogma religioso etc que autorize um cidadão a oporse ao que seu príncipe ordene exceto para salvar a própria vida dirá Hobbes Por questão de princípio é impossível haver recurso contra um príncipe absolutamente soberano e até mesmo seria absurdo contestar as suas decisões Escutemos mais uma vez Bodin Tal é nosso prazer significa que as leis do príncipe soberano ainda que sejam fundadas em boas razões contudo dependem apenas da sua pura vontade Sem dúvida a lei visa à justiça mas no regime em que há um soberano eu obedeço à lei enquanto ela é a vontade do Príncipe isto é não esqueçamos quer de um homem quer de uma assembléia quer mesmo do povo se vivermos numa democracia não vamos imaginar que esteja em questão apenas a monarquia Assim sendo à primeira vista a teoria da soberania pode passar por mera apologia do despotismo E exatamente esta a censura clássica que foi feita a Hobbes Mas é preciso notar que esta crítica de bom senso negligencia pelo menos duas coisas 1 Que o Soberano tem a tarefa de zelar pela vida boa e cômoda dos súditos e pela sua segurança Se os súditos depuseram em suas mãos o direito de natureza que possuíam foi para escaparem aos perigos da anarquia a guerra de todos contra todos que segundo Hobbes enfrentavam no estado de natureza e o comportamento do Soberano não pode frustrar ou pelo menos frustrar completamente esta expectativa Sem dúvida o poder de que ele dispõe para desincumbirse de sua tarefa protetora é um poder sem freios porque provém da anulação do direito que cada um tinha a defender a sua vida a qualquer preço e o exercício de tal direito pode conduzir o soberano à tirania Mas uma pura tirania poderá subsistir muito tempo Será possível com efeito governar por muito tempo zombando do mínimo de comodidades que deve ser garantido aos súditos Neste sentido a mensagem de Hobbes não é absolutamente conservadora 2 Que se a Soberania pode limitar à sua discrição as minhas liberdades nem por isso ela será o mero exercício de uma força repressiva Não esqueçamos que sem esta força cujos efeitos tantas vezes podem serme desagradáveis não haveria unificação nem povo rigorosamente falando O Soberano é antes de mais nada a única antidesordem eficaz possível é ele ou o caos parafraseando de Gaulle Assim Hobbes antes de Hegel tenta tornarnos inteligível o fato da cumplicidade inevitável entre o súdito e o soberano entre o dominadoprotegido e o dominadorprotetor Não é a troco de nada que os homens aceitam ser confiados ao soberano é em troca da sua segurança e também a partir de Rousseau contra a certeza de que graças a ele terão condições de portarse como sujeitos racionais Tudo isso será mistificação Será mesmo E fato que muita coisa é necessária para que os homens se revoltem obscuramente todos sabem que atentar contra a soberania é colocarse forçosamente numa situação de perigo E isso é tão sabido e notório que nada é mais premente para uma revolução do que instaurar uma nova soberania muitas vezes ainda menos amena do que a recémdestruída Como foi tornado possível este estranho conceito do poder arbítrio enquanto cimento do corpo político À custa de que deslocamentos conceituais É o que pretendemos examinar partindo desta definição hobbesiana da Cidade uma multidão de homens unidos numa pessoa única por um poder comum para sua paz sua defesa e seu proveito comuns RECUSA DA ANTIGA FINALIDADE DO POLÍTICO Segurança e possibilidade de gozar ao máximo em paz de todas as comodidades da vida são estes os dois objetivos que os homens perseguem quando abandonam o estado de natureza e se tornam cidadãos A respeito Rousseau não dirá coisa diferente de Hobbes Qual é o fim da associação política É a conservação e prosperidade dos seus membros Contrato Social livro III cap 9 Ora tais fórmulas destroem completamente a concepção antiga da Pólis Não é verdade dizia Aristóteles que as associações políticas sejam motivadas exclusivamente pela satisfação de interesses materiais mesmo quando não precisam da ajuda dos outros os homens continuam desejando viver em sociedade Política livro III cap 6 A primeira causa de associação dos homens é menos a sua fraqueza do que um instinto de sociabilidade inato em todos Cícero De República Uma cidade digna de seu nome só poderá existir portanto tendo em vista cumprir o bem e deveremos negar o nome de cidade a toda associação formada com o fim de uma aliança defensiva ou ainda para favorecer as trocas ou impedir as injustiças recíprocas Os homens que formam a cidade não concluem uma mera aliança defensiva contra toda injustiça Aristóteles Política livro III Hobbes leitor dos gregos fez questão de ser o antiAristóteles 13 Como compreender uma tal reviravolta É que há muito tempo já não satisfaz a simples oposição vida privada individualdomínio público entendido como participação na Cidade Fora da sua esfera e da sua família o homem não é mais quem participa da Cidade pertence à sociedade societas isto é ao conjunto das relações jurídicas e econômicas que os indivíduos ou os grupos estabelecem entre si Em outras palavras ele despolitizouse É significativo que Santo Tomás não repita Aristóteles O homem é um animal político mas diga O homem é um animal social Ora a societas não é a cidade é um conjunto de atividades que não têm por objetivo o bem comum e que apenas precisam exercerse no quadro da paz É neste ponto remoto que principia a nossa modernidade quando a comunidade não mais é entendida como congregação de homens que são diretamente encarregados de zelar pelo funcionamento do Todo mas como uma congregação de homens societas a quem seus próprios afazeres ocupam demais para que possam dedicarse aos interesses do Todo e que por isso devem ser protegidos pela instância política em vez de participarem dela O DIREITO É O ÚTIL Hobbes recusase a conceber o direito como distribuição ou repartição de uma ordem Para ele não existem normas preestabelecidas tais que sempre devam ser levadas em conta por quem ministra a justiça E portanto não tem cabimento opor os que julgam objetivamente sem interesse àqueles que julgam em função da sua utilidade O que é o direito Para compreendêlo é preciso retornar ao estado de natureza Este desejo natural de conservarse isto é o que se chama direito ou em latim jus é uma inocente liberdade de empregar o seu poder e a sua força natural No estado de natureza tenho direito a tudo o que quero eu posso fisicamente e nos limites da minha força física apoderarme de tudo o que é bom para mim segundo o meu juízo O direito jus é medido pelo útil utile Nestas condições suponhamos que não exista instância soberana que não haja poder que eu tema Se assim fosse como poderiam os homens guiados apenas pelo sentimento do que lhes é útil aceitar que houvesse arbitragens Vou confiar a um árbitro imparcial o mister de decidir o diferendo que me opõe ao meu próximo O árbitro pronunciase em favor dele Por que deveria eu acatar essa sentença O árbitro dirá que somente considerou o que é Justo em si Mas o Justo em si nunca é mais do que a opinião que ele tem acerca do justo o justo é o que assim parece a cada um de nós E sendo estas as minhas disposições por que respeitaria eu a decisão do árbitro se a tanto não me visse forçado O utilitarismo de Hobbes levao forçosamente a admitir como necessário um poder capaz de decidir e legislar que tenha o seu princípio apenas em si próprio e que não se refira a nenhuma legislação divina ou humana externa a ele A única razão que pode me convencer a obedecer à lei é que ela é a lei é saber que serei castigado se a infringir Se devêssemos obedecer às leis por serem elas boas e se cada um fosse livre para decidir a seu belprazer acerca do valor da lei a obedência não seria mais garantida e por isso já não haveria mais leis 14 Antes da lei não havia injustiça uma ação justa é a que não é praticada contra a lei Em vez de ser medida por uma justiça preexistente é a lei da Cidade que constitui a medida do que é justo Repto lançado a todo o racionalismo de origem grega que Hobbes resume nesta fórmula E a autoridade não a verdade que faz a lei As teorias racionalistas do Estado tentarão corrigir esta áspera sentença apresentando o Estado como o reino da Verdade sobre a terra a encarnação da Justiça o instrumento da verdadeira Liberdade etc Mas é a palavra de Hobbes que apreende em sua pureza a essência da soberania Se os filósofos racionalistas fossem reis em princípio todos os conflitos deveriam ser decididos perante o tribunal da Justiça em si O aborrecido é que seria preciso esperar muito tempo antes que todos os homens se convencessem de que se trata mesmo da Justiça em si e para que eles se submetessem à autoridade do juiz É por isso que os filósofos ao se tornarem reis deixam de ser filósofos ordenam prescrevem ameaçam punem sem perderem tempo convencendo os insensatos da racionalidade dos seus decretos Também eles proclamam Obedeçam ou estarão fritos E apesar das aparências esta fórmula não é necessariamente tirânica Pode sêlo não há dúvida quando o Soberano tem em mira apenas o seu interesse próprio mas há Soberanos que agem em função do que lhes parece constituir o interesse de todos Em contrapartida nada é mais temível do que o Soberano não hobbesiano que declara Obedeçam porque a Razão fala por minha voz Nada é mais temível porque se a desobediência à lei é um crime a desobediência à Razão é um sacrilégio Havendo escolha é preferível obedecer à lei simplesmente porque ela emana do Soberano Em suma a Soberania é o único cimento do corpo político porque os homens nunca foram animais racionais se por isso entendemos animais que se inclinam perante a razão pura A razão é sempre a razão do mais forte mesmo nos diálogos de Platão onde a razão está do lado de quem é mais forte no campeonato dialético E é por isso que a essência do Estado é ser ele soberano O FIM DAS HIERARQUIAS NATURAIS Os homens nunca se entenderão sobre os valores nunca alcançarão a unanimidade para designar quem deles é mais sábio quem o mais virtuoso etc Nada é anormal nisso pois espontaneamente cada qual pensa ter tanto direito quanto qualquer outro a decidir acerca do que é justo ou injusto Espontaneamente cada um pensa ter condições de governar a si próprio E é por isso que não pode haver como pretendia Platão solução racional para os conflitos de valores Se de direito os entendimentos ou as opiniões são iguais quem poderia razoavelmente decidir a não ser quem pretendesse deter o saber acerca do Bem Mas este seria um charlatão A recusa de um mundo dos valores assim se vincula para Hobbes ao postulado da igualdade É uma lei de natureza que todo homem reconheça os outros como seus iguais Assim Hobbes destrói a idéia de uma hierarquia natural segundo a nobreza a sabedoria e toda justificativa para uma sociedade de castas Não é verdade que os homens devam ser distintos e classificados conforme o valor das tarefas das quais por natureza eles teriam que se desincumbir A natureza de Hobbes é a do mecanicismo não é mais a physis teleológica de Aristóteles E este ponto é relevante para a sua concepção do político a A idéia de hierarquia natural supunha a da sociabilidade natural ora não existe sociabilidade natural O único modelo de política é a associação livremente consentida cujos membros se comprometem por juramentos recíprocos de fidelidade Não é este o único tipo de vínculo que possa convir a indivíduos iguais Já se procurou ver nesta representação do social um efeito da crescente importância adquirida pelas relações mercantis cujo pressuposto é a igualdade do comprador e do vendedor Seria excessivo sem dúvida explicar apenas por isso a antropologia de Hobbes Certamente foi mais decisiva a crítica radical que fez ao cosmos de Aristóteles em que cada ser era por assim dizer dirigido por seu fim telos em que lhe era atribuído previamente um lugar próprio no conjunto Desde que este mundo que era ao mesmo tempo uma ordem desaba a comunidade koinônia não mais existe por princípio e o problema político então será encontrar uma solução permitindo que elementos separados por essência retraídos ao seu interesse vital cioso de sua independência sejam integrados apesar de tudo numa totalidade em que se preserve a sua igualdade original É este o problema que será retomado por Rousseau no Contrato Social Hegel considerará sofística uma tal formulação do problema político que começa postulando indivíduos preexistentes a toda Cidade e que só pode compreender a comunidade como o que ultrapassa uma dispersão original de átomos présociais Contudo seja qual for o valor de tal representação é ela a que melhor nos permite apreender o caráter inelutável do poder soberano pois somente um poder comum é capaz de agregar politicamente indivíduos iguais Iguais em sua submissão b No princípio portanto existem apenas indivíduos em luta latente pelo menos que num segundo tempo confiarão ao Estado o cuidado de conservarlhes a vida melhor do que eles próprios seriam capazes Se assim for como observa Leo Strauss em seu Natural Right and History a necessitas do Estado será deduzida em última instância de um direito do indivíudo o de conservar a própria vida Paradoxalmente o Leviatã que logo se tornará o símbolo do Estado autoritário inaugura deste modo um discurso político para o qual a é o indivíduo que é originário e natural e não o Estado b o fato fundamental é um direito e não um dever ou um conjunto de deveres É a partir de Hobbes observa ainda Leo Strauss que se dará ênfase aos direitos naturais e não mais aos deveres naturais Podese concluir com o autor que Hobbes foi o verdadeiro fundador do liberalismo político Pensamos embora sem poder demonstrálo aqui que essa tese é extremada O que é inegável porém é que existe uma ligação entre o advento do indivíduo isolado enquanto peça essencial da construção do político e a promoção de um poder único como condição sine qua non da Cidade Estão ligados também o reconhecimento dos direitos do homem e a ascensão do autoritarismo Evitemos portanto demasiada pressa em alegar que o indivíduo é o outro do Estado que o Estado lhe é hostil por princípio Genealogicamente foi apenas graças à tutela de um poder único e centralizador que o indivíduo se viu capaz de compensar o seu isolamento e de reivindicar a sua condição de indivíduo Talvez compreendamos melhor agora em que medida a teoria da Soberania implicava uma subversão do pensamento político Citando ainda Leo Strauss Para Hobbes o erro fundamental da filosofia política tradicional foi haver postulado que o homem é um animal político e social Rejeitando tal postulado Hobbes admite que o homem é naturalmente um animal apolítico e até mesmo asocial Deveremos partir deste ponto se quisermos compreender por que o poder político não pode ser mera instância de gestão e organização mas sim o detentor permanente de uma força absoluta sem a qual sequer seria possível falar em societas Retomemos com Hobbes o estado de natureza Desde que nele aparece a razão o homem toma consciência da impotência de fato em que é posto pela igualdade das forças em conflito pela igualdade pois até o mais forte pode sofrer um instante de distração ninguém tem suficiente poder para estar seguro de que possa conservarse enquanto permanecer em estado de guerra De que vale então que um homem possa prevenir o mal que os outros venham a lhe infligir se este poder preventivo é de fato tão relativo Por mais imponente que seja o poder dissuasor em mãos de alguém este poder nunca lhe valerá tanto quanto a certeza da paz As leis da natureza deveriam bastar para garantir esta paz elas têm por finalidade proibirnos de sermos nossos próprios juízes e de fixarmos nós mesmos o que nos compete e se resumem em acomodarmonos à convivência com os outros homens Sugerem pois que entremos numa união em que cada qual abdicará dos direitos que não poderiam conservar sem perderem a paz Assim cada homem se compromete a não ser mais agressor o consenso é unânime Mas os compromissos mais solenes serão uma fiança suficiente Todos me asseguram que eu nunca serei atacado Cada um está persuadido de que o pacto atende ao seu interesse Mas quem me garante que os outros não sejam celerados que s6 esperam que eu deponha as armas para se lançarem sobre mim O que tranqüiliza cada uma das Superpotências quanto ao respeito dos acordos SAL T é a assinatura da outra ou serão os satélitesespiões Enquanto os homens se limitarem a fazer promessas perdurará a guerra Enquanto nada garante que os homens observem a lei da Natureza em favor dos outros eles permanecem em estado de guerra Elements of Law I 19 A não ser por estrita estupidez ninguém se satisfaz com simples promessas para perder o medo Por isso sempre temerei enquanto não tiver a certeza de que o medo sentido pelos Outros também me permite finalmente confiar neles ibidem II 1 Até que algum medo mútuo e comum proscreva com segurança o estado de guerra Até que os outros tenham mais a perder rompendo o pacto do que respeitandoo Sem dúvida não é o medo pânico o medo que me faz fugir com quantas pernas tenho que inclina os homens a se confiarem a um Soberano É sim este surdo e ininterrupto medo de todos os outros que se chama desconfiança Ela é engenhosa e capaz de fazernos inventar os meios que no futuro exorcizarão todo medo possível Escutemos o jurista Pufendorf em 1672 É essencial que o medo tome tão bem as suas medidas que todos se coloquem em condição de não ter mais nenhum motivo aparente de temor Quando vamos nos deitar fechamos cuidadosamente a porta do quarto de medo dos ladrões afinal não temos mais medo Assim o medo engenhosamente inventa expedientes para expulsar a si próprio é o que acontece ao estabeleceremse as sociedades civis Como Para justificar a opressão do poder estatal dirão vocês será preciso ter uma idéia assim triste da natureza humana Desta censura Hobbes não foi poupado para apresentar como uma boa nova o nascimento do Leviatã ele devia começar concedendo ao homem um direito natural que nada mais era que a explicitação da força Será espantoso que com tais premissas seja necessário nada mais nada menos que um Soberano absoluto para garantir a cada animal que a paz reinaá no estábulo Lendo Hobbes Malebranche indignase Acreditar que o mais forte tenha direito a tudo sem que jamais ele possa cometer alguma injustiça é certamente incluirse entre os animais e fazer da sociedade uma assembléia de feras brutas E Voltaire fazlhe eco Tendo todos direito a tudo cada um teria direito à vida do seu semelhante Não confundes a potência com o direito Pensas que o poder outorgue o direito e que um filho robusto não tenha que se recriminar por haver assassinado o pai prostrado e decrépito Uma coisa porém é estranha Apesar de todas as maldições que dois séculos fizeram chover sobre Hobbes foi no caminho por ele aberto que enveredou o pensamento político Como escreve P F Moreau Dois séculos imputaram a Hobbes todos os pecados mas se examinarmos mais de perto veremos que só se discutem longamente os pormenores enquanto se reproduz o rigor do argumento hobbesiano Todos admitem o princípio o homem é tudo para o homem é um lobo e também uma defesa contra os lobos Racines du Libéralisme p 53 Quer dizer que a política inaugurada por Hobbes seria a outra face de uma antropologia pessimista para a qual a função essencial da Cidade seria reprimir a malícia humana As coisas não são tão simples Como escreve Kant por melhores e mais apegados ao direito que seja possível imaginar os homens ainda assim a saída do estado de natureza só deverá ser a união numa comum submissão a uma coerção legal externa Em outras palavras o modelo hobbesiano deveria ser mantido independentemente da antropologia de Hobbes Na verdade porém Kant não se priva também ele de criticar Hobbes Hobbes considerou todas as leis até mesmo as leis morais como despóticas isto é como não exigindo o nosso consentimento racional E a este imperium despótico que trata os súditos como crianças ou como servidores Kant opõe o governo patriótico graças ao qual o homem encontra no Estado a sua liberdade numa dependência legal que procede da sua própria vontade legisladora O advento da razão prática parece assim inverter os dados do problema político Hobbes tinha a respeito do O LEVIATÃ E O ESTADO BURGUÊS O conceito de soberania é o indício de uma profunda mutação no pensar a coisa política A cidade antiga que devia orientar os homens para a vida boa cede lugar a um mecanicismo que por piores que se suponha serem os homens garantirá cada um contra todos e será capaz de transformar em cooperação os seus antagonismos O que e admiravelmente expresso por Kant quando afirma que o problema da constituição de um Estado se coloca da maneira seguinte Ordenar de tal forma uma multidão de seres razoáveis que desejam todos leis gerais para a sua conservação mas cada um dos quais está propenso a isentarse delas em segredo e darlhes uma constituição tal que apesar do antagonismo erguido entre eles por suas inclinações passionais eles constituam obstáculo uns aos outros de modo que na vida pública seu comportamento seja como se estas más disposições não existissem Paz Perpétua Politizar o homem não consiste mais em educálo moralmente mas em introduzilo num maquinário que o vergará a fins a paz e a segurança que apenas por suas disposições naturais ele não poderia alcançar O modelo político é assim mecânico e nada mais significativo a este respeito do que a imagem do autômato que Hobbes emprega no início do Leviatã ou a linguagem do equilíbrio de forças que retorna constantemente no Contrato Social de Rousseau ou ainda a metáfora newtoniana como no universo também na cidade a ordem virá da compensação entre atrações e repulsas A verdadeira união escreve Montesquieu é uma união de harmonia que faz que todas as partes por mais compostas que nos pareçam ser concorram para o bem geral da sociedade da mesma forma que as partes deste universo eternamente preso pela ação de umas e pela reação das outras Esta definição da coisa política supõe o que é particularmente evidente em Kant uma percepção do social centrada na atividade econômica dos indivíduos Mas também se prende a uma nova ambição chegar a uma constituição das sociedades que seja regida por leis tão invioláveis quanto as da natureza capaz assim de evitar sejam quais forem as disposições naturais dos homens toda disfunção toda queda na anarquia ou no despotismo estes dois estados apolíticos Como diz uma comentarora alemã de Kant Hella Mandt o que é comum a este filósofo e a Hobbes é conceberem ambos a comunidade humana como uma coisa como uma obra de arte feita de regras jurídicas assentada em si mesma e independente tanto das inclinações quanto das virtudes humanas Ora é óbvio que esta maravilhosa relojoaria só poderá funcionar se for animada por um motor dotado de uma força irresistível e capaz de impedir qualquer deslize na engrenagem É apenas sob esta condição que os comportamentos dos átomos são coordenáveis é apenas sob esta condição que o antagonismo e a concorrência podem metamorfosearse em solidariedade Em suma talvez me diriam vocês o conceito ou o mito da Soberania designa a condição política para a conservação homem uma idéia materialista mecanicista etc a restituição ao homem da sua essência de serracional mudará a fisionomia da Cidade Mas observemos melhor Acontece que Kant distingue a comunidade ética estado em que os homens se encontram reunidos apenas sob leis de virtude não coercitivas e o estado jurídicocivil governo da comunidade por leis que são sempre coercitivas Ora logo a seguir ele assinala que a primeira comunidade não poderia absolutamente ser instituída pelos homens se não tivesse a segunda como base E de fato no Estado kantiano a soberania não conhece limites e é anulado todo direito de resistência Como explicar esta convergência de fato atravessando a dissensão filosófica Qual é segundo Kant o objetivo da união civil É garantir a independência de cada um frente ao arbítrio necessitante de outrem E isto só pode ser realizado por meio de uma legislação encarregada de disciplinar à insociabilidade natural dos homens Tratase de obter um equilíbrio dos direitos de todos em meio ao antagonismo que continua sendo a trama do social Daí a necessidade de um Soberano que me garanta que se a minha liberdade respeitar todas as demais ela não deparará com obstáculos ao seu exercício Assim não se elimina o antagonismo os homens continuam sendo antes de mais nada concorrentes mas vêemse dissuadidos de passar do jogo à guerra da competição à fraude Cada qual está ciente de que por princípio a agressividade dos demais encontrase limitada Sem este saber prévio diz Kant nem mesmo poderia haver algo como uma societas Pois sem ele não teria a certeza de que recusandome a lesar alguém nada tenho a temer por meu próprio direito Assim o poder estatal é a condição para que a reciprocidade dos procedimentos corretos base de uma sociedade racional se torne alguma coisa crível E é por isso que a Soberania é mais uma vez inelutável não porque o homem é apenas um vivente egoísta mas porque é um sujeito racional que entende que o seu direito lhe seja seguramente reconhecido Genialmente Kant atreveuse a ver o que toda a filosofia política de Hegel se esforçará por dissimular que até mesmo o reino da razão está fundado na força O homem é um animal que reclama o seu direito e que não consente de bom grado em cedêlo a nenhum outro por isso ele precisa de um senhor Reflexão 1464 Kant pode indignarse com o despotismo de Hobbes mesmo assim conserva o mecanismo constitutivo do Leviatã Para que seja concebível uma sociedade de sujeitos racionais é preciso antes de mais nada a submissão de todas as vontades à vontade comum representada por um poder absoluto Sem o que não poderei conduzirme de fato como um cidadão não poderei de fato viver como um sujeito racional que se considera igual a todos os demais É por isso que o poder não é uma função qualquer na cidade é a origem da cidade é a causa da sociedade dos associados Sem a soberania ninguém teria aquela confiança mínima que é necessária para que se sinta membro de uma sociedade Dominus originarius esta expressão de Kant significa que o poder é menos aquilo que domina os súditos que aquilo que cria os cidadãos Longe de Kant haver refutado Hobbes é este quem coloca a máscara kantiana Seria então o Leviatã a porta da frente de toda política moderna Se assim fosse o poder político não se reduziria mais ao exercício de uma força repressiva permanente esta seria também e sobretudo a condição sine qua non para haver sociedade O importante não seria a força nela mesma mas o fato de todos sentirem a sua necessidade É o que exprimiu Antonio Gramsci ao analisar a noção de soberania em Bodin Não é o momento da força que interessa a Bodin mas o do consentimento Assim ser cidadão suporia por princípio uma resignação original Mas esta convicção que Hobbes e os seus pósteros pretendem instalarnos não seria efeito de uma astúcia diabólica e funcionamento de uma economia de mercado Concluindo suprimamos esta e suprimiremos ao mesmo tempo a necessidade de um poder de Estado Este é o sentido da interpretação que o professor Macpherson apresenta de Hobbes em seu livro sobre o Individualismo Possessivo Mas esta interpretação depara com algumas dificuldades É fato que Hobbes não demorou a ter má reputação junto às classes dirigentes Como explicar esta reação incoerente do público A resposta de Macpherson é a seguinte para manter a estabilidade da sociedade Hobbes foi longe demais Foi longe demais pois não foi capaz de adivinhar que a solidariedade de classe dos burgueses permitiria economizar um Soberano que perpetuasse a si próprio Por isso a contrario o sucesso de Locke burguês mais lúcido que se opôs à ameaça representada pelo poder soberano de uma pessoa ou de uma assembléia que perpetuam a si próprias Segunda razão invocada por Macpherson para explicar a dissensão entre Hobbes e o seu público Hobbes não consegue oferecer garantias sérias capables de servirem de salvaguardas à propriedade contra as interferências de um Soberano absoluto que perpetue a si próprio li Contudo é sequer possível dizer que Hobbes não consegue tranqüilizar os proprietários Parece que ele nem cogita disso Para ele é o poder soberano apenas que pode dar sentido à noção de propriedade Disso decorre que a propriedade em sua origem só pode haver resultado de uma repartição discricionária efetuada pelo Soberano A propriedade assim conferida a um súdito permitelhe sem dúvida vedar o seu uso a outro súdito mas nunca ao Soberano que em caso de necessidade está perfeitamente fundado a retomar o que deu Pareceme ser muito diferente a este respeito a doutrina de Locke ainda que Macpherson procure atenuar esta diferença Locke concede Segundo Tratado sobre o Governo Civil seções 128131 que ao ingressar na sociedade civil o homem abandona totalmente os dois poderes de que dispunha no estado de natureza a saber a fazer tudo o que julgar conveniente para garantir a sua conservação e b punir as infrações cometidas contra a lei natural Ele consente estas duas renúncias para que se possa realizar o fim capital e principal da associação isto é a conservação das propriedades que para Locke constitui um absoluto Sem dúvida o homem ao associarse submete todas as posses que tem ou que vier a adquirir à jurisdição do governo Mas fica entendido que o poder supremo não pode tomar de nenhum homem qualquer parte do que lhe pertence sem o seu consentimento seção 138 E seria absurdo que o poder supremo pudesse dispor arbitrariamente dos bens de um súdito ou tomar a seu talante uma parte qualquer deles Desta maneira Locke retoma de maneira muito explícita uma doutrina que segundo Hobbes tende à dissolução da República todo particular teria uma propriedade absoluta dos seus bens privando assim o Soberano de todo direito sobre tais coisas Leviatã cap 29 Se Hobbes é revisto e corrigido por Locke como diz Macpherson é preciso confessar que a correção neste ponto é considerável Parece portanto que se deve matizar bastante a tese de Macpherson Sem dúvida a teoria da Soberania é um modelo político que seguramente supunha o surgimento ou a existência de uma sociedade mercantil Mas se tomamos esta teoria em sua forma pura na forma que Hobbes lhe deu 22 é impossível dizer que o poder por ela definido esteja exclusivamente a serviço desta sociedade Hobbes instaura um modelo de dominação política que é condição sine qua non para o funcionamento de toda sociedade moderna No interior deste quadro podem colocarse diferentes figuras de dominação exceto o despotismo entendido como o mando de um homem ou de um grupo em vista apenas do seu interesse e o Estado liberal cujas bases são lançadas por Locke é uma destas figuras mas certamente uma das mais contrárias ao espírito de Hobbes Se me perguntassem qual é a amostra política que melhor corresponde hoje ao modelo hobbesiano eu me arriscaria a responder uma ditadura militar esclarecida instaurada com o intuito de realizar reformas estruturais sócioeconômicas o que quase aconteceu no Peru o que acontece em alguns países da África Negra cujos chefes de Estado não são apenas Bokassas ou Idi Amins Sem dúvida Locke utiliza o maquinário político inventado por Hobbes mas o faz para orientálo no sentido de uma restrição da dominação política e é isto exatamente que trai o espírito de Hobbes Em outras palavras se Locke conserva o esquema da Soberania ele limita ao máximo o modo do seu funcionamento e é então mas só então que o poder é exposto com toda a clareza como nada mais que um fiel instrumento a serviço dos proprietários Não mais como expressão do social mas como uma superestrutura sem maquiagem o poder é confiado a indivíduos que governarão com base num contrato preciso e estreitamente vigiados por seus mandatens Neste sentido Vaughan tem o direito de dizer que o livro de Locke é dirigido não só contra o Leviatã mas contra a própria idéia de Soberania Entre poder de classe e soberania estatal não há identidade alguma embora possa haver convergência Querem um exemplo preciso do momento em que Locke passa a subverter Hobbes em vez de limitarse a corrigilo Para Hobbes é a reaparicação do gládio privado a anarquia que marca a dissolução do corpo político Para Locke ao contrário a união civil deixa de existir quando o cidadão é privado de todo recurso que possa decidir o diferendo que o opõe ao poder Em outras palavras para ele há incompatibilidade entre monarquia absoluta e sociedade civil o súdito frente ao soberano absoluto se recoloca no estado de natureza isto é no estado em que os homens não conhecem juiz comum a quem possam recorrer para que decida acerca dos litígios jurídicos que os opõem Em suma num pensador medo da anarquia no outro medo do despotismo O que serve de índice para duas análises diferentes da noção de poder Locke não mais considera o poder como o núcleo político do social tratase simplesmente de uma instância que exerce uma função social determinada E o que se deve temer acima de tudo é que o poder ultrapasse esta função e que os súditos fiquem privados de recurso contra ele Está portanto no abuso de poder o maior risco de ruína para o corpo político E observa Locke Hobbes se enganava ao sustentar que todos os males que o poder é capaz de causar nada são comparados com a volta ao estado de natureza É o inverso que é verdade o estado de natureza é preferível a um poder que me deixa juridicamente desarmado contra ele O indivíduo que se vê exposto ao poder arbitrário de um único homem que tem cem mil outros a suas ordens encontrase numa situação muito pior do que aquele que está exposto ao poder arbitrário de cem mil homens isolados seção 137 Entre os trombadinhas e a polícia do tirano Locke prefere os trombadinhas 23 Assim não há dúvida de que a cidade de Locke continua a ser determinada pela presença central de um poder mas este está subordinado estritamente à tarefa que lhe incumbe O Estado que garante os direitos dos proprietários não pode ser um Estado absolutamente soberano enquanto cumpre esta função Este é um dos axiomas políticos que se pode retirar de Locke E sob esta forma o axioma não é de modo algum contraditado pela existência de todas as ditaduras que garantiram os interesses dos proprietários ou de certos proprietários se é verdade que o nazismo chegou ao poder ajudado pelos industriais do Ruhr alguns dos quais por sinal logo se arrependeriam de tal apoio é contudo impossível definir o nazismo como o instrumento deles Um poder absoluto pode combinarse com a proteção de interesses econômicos isto não quer dizer que baste este único traço para determinar a sua essência O poder que é necessário para a sociedade de mercado é assim localizado por Locke Como diz J Habermas tratase de uma instituição complementar às trocas do mercado que se regulam por si próprias Com o Estado constitucional burguês delineado por Locke as relações de produção podem prescindir de uma dominação tradicional podem prescindir de uma legitimação vinda de cima Nesta representação o poder é o que deixa funcionar a sociedade não o que a faz funcionar Esta é apenas talvez alguém diga uma representação justificadora que tenta dissimular e dissimular a seus próprios olhos que o poder burguês se reduz a uma dominação de classe Os que defendem esta tese devem fornecer a prova do que afirmam Pois é fato que a dominação burguesa não criou o poder codificado pela Soberania ela o reutilizou o mais das vezes restringindoo Nada permite afirmar sem uma demonstração que exista coincidência entre o poder político criado pela modernidade e a dominação de classe da burguesia É o que nos recorda Bertrand de Jouvenel no seu livro Do Poder especialmente quando analisa o poder como agressor da ordem social Mostra que um poder de Estado teve menos vezes a vocação de colaborar com tal classe ou qual grupo de interesses que a de destruir a força das autoridades sociais que forma uma barreira entre ele e os seus súditos O poder pode defender privilégios mas por questão de princípio não aprecia os privilegiados a pólis antiga constituise contra a organização gentílica as monarquias ocidentais sapam a célula senhorial e abatem o poderio dos senhores feudais foi assim que Tocqueville pôde mostrar de que modo a Revolução Francesa prosseguira e amplificara a obra centralizadora de Richelieu e Luís XIV Não que um poder estatal vise a limitar ou suprimir de forma absoluta os privilégios visa mais exatamente a reconstituir as aristocracias a partir de si próprio a ser o distribuidor dos monopólios Em suma não precisamente garantir a continuidade de uma dominação de classe mas fazer com que esta se exerça em seu proveito Observaremos por sinal que Engels que possuía um bom faro sociológico aproximase muito desta tese na Origem da Família Em todo caso as suas análises matizam consideravelmente o slogan tão famoso quanto simplista segundo o qual o Estado é apenas o biombo da classe dominante O Estado diz Engels é via de regra o Estado da classe mais poderosa economicamente Mas esta regra sofre exceções há períodos em que o Estado fiel das classes em luta conserva por um tempo uma certa independência frente a elas E Engels toma como exemplos à monarquia absoluta da era clássica na França que mantém a balança equilibrada entre 24 nobreza e burguesia e o Segundo Império francês Napoleão III que lançava a burguesia contra o proletariado e o proletariado contra a burguesia Se assim for então o que é o Estado Resposta de Engels um poder nascido da sociedade mas que se coloca acima dela e se lhe torna cada vez mais estranho Vale dizer que o Estado não é automaticamente a marionete da classe dominante e que é preciso reconhecer que a instância do poder político possui uma especificidade É o que nos propõe também Jürgen Habermas pouco suspeito de antimarxismo sistemático é o continuador da Escola de Frankfurt quando critica as tentativas que são feitas sem se proceder a uma revisão do esquema marxista clássico para compreender as mudanças de função havidas no Estado do Século XX O que dizem em linhas gerais os marxistas ortodoxos Que enquanto o Estado liberal se limitava a assegurar a regulação do mercado o atual Estado intervencionista tende a ocupar o lugar do mercado nos pontos em que este não é mais capaz por sua própria dinâmica de tornar possível à continuidade de um processo de acumulação Isto ainda não é suficiente retruca Habermas ainda se desconhece em que medida a crescente substituição do mercado pelo Estado altera a estrutura sóciopolítica Basta prestarmos atenção aos meios pelos quais o Estado nos grandes países capitalistas intervém no jogo econômico subsídios aos setores ameaçados encargos sociais para atender às exigências voltadas para os valores de uso etc para percebermos que o Estado faz mais do que substituir a economia de mercado onde ela desfaiece Já não visa apenas a manter o sistema de mercado ou sequer a corrigir as suas disfunções deve manter o consenso social sem o qual o sistema não poderia mais funcionar especialmente em tempo de crise E por isso a ação do Estado diz Habermas não é mais um mero complemento da economia de mercado nem mesmo sua válvula de segurança o Estado deve garantir ao mesmo tempo a lealdade das massas no quadro da democracia formal e as funções de integração social são novamente confiadas ao sistema político Em Técnica e Ciência como Ideologia é impressionante o que diz Habermas O quadro institucional da sociedade já não coincide diretamente com as relações de produção O Estado e a sociedade não mantêm mais o tipo de relações que a teoria marxista definiria como sendo superestruturabase não é mais possível criticar o sistema de dominação atacando apenas diretamente as relações de produção O que o Século XX deveria assim ternos ensinado é que o Estado não pode mais ser considerado como o guarda de uma ordem cujo desenvolvimento é exterior a ele Acreditar que o Estado político só possa ser a proteção de uma sociedade civil apolítica é confiar demais na representação lockiana do Estado e honrála demais Acreditar que o poder político seja apenas o cão de guarda de uma classe é subestimar todos os recursos de que pode dispor este poder não somente para garantir o seu controle sobre a sociedade civil como ainda para modelála e organizála É o que manifesta o advento no Século XX do que Habermas chama de Sozialstaat de Estado essencialmente intervencionista que já não se apóia simplesmente na base natural de uma economia fundada na propriedade Neste Estado os direitos do homem são postos cada vez menos como esfera da autonomia privada como limites sagrados frente à interferência do poder Estipuladas e determinadas as liberdades são recriadas juridicamente Assim reposta pelo Estado a sociedade civil aparece cada vez mais abertamente como repolitizada Estamos longe do tempo em que Marx zombava de Hegel por este haver pretendido forjar fantasticamente um cidadão que seria irmão do cidadão antigo Não é mais verdade que o Cidadão seja apenas um ente de razão jurídico o fantasma de um homem concreto antes de ser João ou José você é portador de uma cédula de identidade de uma carteira de trabalho etc documentos que qualquer empregador ou qualquer representante da autoridade pode solicitar a todo momento É quase todos os dias que vocês são forçados a dizer sua senha de cidadãos Belos cidadãos que somos dirão vocês excluídos de toda participação política Mas prestem atenção não quero dizer que cidadão no Século XX seja o equivalente de cidadão ateniense Cidadãos enquanto partícipes do poder os eleitores de Reagan ou Giscard o são apenas pouco mais que vocês sem falar nos eleitores de Brejnev A verdade é que em toda parte cidadão quer menos e menos dizer indivíduo político enquanto participante do poder e cada vez mais indivíduo político enquanto codificado pelo poder determinado inteiramente por ele produzido por ele É por isso que a repolitização da sociedade não é absolutamente incompatível com o apolitismo dos indivíduos entendendo por isso a sua exclusão por princípio ou de fato pouco importa da esfera das decisões políticas Assim nunca estivemos em melhores condições para compreender como são pertinentes as análises de Hobbes e também como o Estado liberal foi uma contrafação do modelo hobbesiano Sem dúvida à primeira vista somos tentados a dar razão a Leo Strauss o grande comentador de Hobbes quando o apresenta como o pai do liberalismo Já não é liberal de espírito a dissociação que Hobbes estabelecia entre a lei lex e o direito jus Confundese muitas vezes lex com jus e contudo dificilmente haverá duas palavras que sejam mais contraditórias Pois o direito é a liberdade que nos é deixada pela lei e as leis são as restrições que estabelecemos por acordo comum para restringir as nossas liberdades recíprocas Elements of Law II 9 A lei e o direito diferem exatamente como a obrigação e a liberdade que não poderiam coincidir num único e mesmo ponto Leviatã cap 14 Assim a lei civil é apenas a restrição do direito de todo homem a toda coisa no estado de natureza A atividade legislativa não é outra coisa senão esta restrição a lei não foi traz ida ao mundo para nada mais a não ser limitar a liberdade natural dos indivíduos Leviatã cap 26 Trocar a garantia da minha paz e da minha segurança pela aceitação das obrigações legais Até aqui Hobbes parece efetivamente ser o fundador da visãodomundo liberal Até percebermos por exemplo no capítulo 21 do Leviatã que as leis civis têm menos o papel de reprimir que o de apagar quase completamente esta liberdade natural a única que pode ser propriamente chamada de liberdade A palavra muda de sentido quando Hobbes passa à liberdade dos súditos Que sentido pode ter exatamente esta liberdade Seria o fato de estar isento das leis Então seria o mesmo que pedir a liberdade de estar sujeito à agressão de todos os outros E contudo por absurdo que isto seja é o que pedem os homens A estes insensatos Hobbes vai portanto ensinar em que consiste a verdadeira liberdade dos súditos isto é em que pontos um súdito pode sem cometer injustiça recusar a obediência Esta verdadeira liberdade aparece nos casoslimite quando a instituição ao pôr minha vida em perigo já não atende mais no que me diz respeito à sua destinação racional Mas enquanto minha vida não estiver ameaçada é regra a submissão absoluta à legislação por invasora que esta seja pois não compete a mim mas ao Soberano decidir acerca do alcance dos meios requeridos para a proteção dos súditos Salvo o direito de conservarem suas vidas os homens não têm liberdade essencial que o Estado seja obrigado a respeitar Resta devese dizer que os homens podem valerse da sua liberdade natural nas lacunas da legislação nos pontos que dependem do silêncio da lei comprar vender contratar escolher a residência a profissão a educação dos filhos Mas esta margem de liberdade é pouco apropriada a satisfazer o burguês liberal é excessivamente variável e frágil em algumas épocas maior e noutras menor conforme os que detêm a soberania consideram mais conveniente Nada portanto anunciaria em Hobbes as garantias concedidas pelas instituições aos gozos privados de que falará no século XI X Benjamin Constant apóstolo do liberalismo E seria absurdo ao ver de Hobbes exigir que a jurisdição da Soberania se detenha onde começam a independência e a existência individuais Vejamos em que Hobbes anuncia a politização moderna evocada por Habermas a única coisa que o Estado tem a garantir aos súditos é a segurança deles e as liberdades dos súditos só podem ser as tolerâncias sempre sujeitas à revisão que a instituição outorga Seguramente os liberais como seus irmãos menores os libertários não poderiam conceder isso a Hobbes Em contrapartida os racionalistas Rousseau Kant Hegel praticamente se limitaram a transpor o esquema de Hobbes ainda que tenham criticado às vezes asperamente o seu sistema despótico Sem dúvida para Kant e Hegel não é mais tarefa do Estado salvaguardar a segurança material do cidadão acima de todas as coisas Tornase mais nobre o papel do poder político competelhe organizar o meio em que desabrochará a liberdade do sujeito racional Mas nesta medida o poder continua sendo pensado como a instância encarregada de limitar romper ou mesmo desarraigar o arbítrio dos indivíduos Também aí o fim do poder é conquistar a sociedade é politizála sorrateira e invisivelmente Nosso século parece confirmar como estavam bem fundadas estas análises Quer dizer que Hobbes e os seus sucessores foram os precursores do totalitarismo É certo que não afirmálo é um erro enorme Deixemos a Karl Popper a incumbência de detectar um Hegel totalitário e préfascista neste livro incrivelmente ruim e curiosamente levado a sério por alguns bons espíritos que se chama A Sociedade Aberta e Seus Inimigos O totalitarismo é um modo de poder que exige ou supõe a integração total do sujeitosúdito no Estado a sua total adesão à religião ou à ideologia estatal o pagamento de toda fronteira existente entre Estado e sociedade civil O que certamente não é o que propõem os teóricos clássicos do Estado se o Estado hegeliano é fundador da sociedade ele não pretende absorvêla Deixalhe a sua autonomia aparente e é em surdina que ele prefere manipulála nada mais ridículo que o mito de Hegel apologista do despotismo muito ao contrário a Filosofia do Direito serviu de alvo aos juristas reacionários Mill garantia que as funções relativas ao governo são coisa muito mais vasta num povo atrasado do que num povo adiantado Conclusão o progresso só poderá adelgaçar as funções do Estado este resquício arcaico até a sua completa extinção O fim do Estado é uma das manias do Século XIX O autor destas linhas já se terá percebido não manifesta excessiva ternura pelo marxismo Por isso mesmo faz questão absoluta de frisar como o liberalismo clássico lhe parece ter sido uma posição insustentável já no próprio Século XIX A principal acusação que lhe deve ser feita não é em nossa opinião a que é mais difundida É verdade que o liberalismo só exaltou as liberdades civis na medida em que elas constituem os corolários da sacrossanta liberdade de propriedade é o que J B Say diz expressamente Também é verdade que segundo ele o cidadão só pode ser o proprietário Que só a propriedade torne os homens capazes do exercício dos direitos políticos era um axioma meridianamente claro para Benjamin Constant para Guizot etc Esta posição pode sem dúvida indignar Mas pelo menos não é contraditória Em compensação há um ponto no qual o liberal peca por incoerência Ele vilipendia o poder Considerao como o vil herdeiro da era militar passada Contudo admite que é indispensável mantêlo pelo menos por enquanto como válvula de segurança da economia de mercado Encarao como uma ameaça potencial mas ao mesmo tempo como uma necessária instância protetora Anatole France dizia que a República é o melhor de todos os regimes porque governa pouco Poderia ser este o programa político do liberal enquanto cidadão contra os poderes sob a condição de acrescentarse que este pouco poder é contudo indispensável O liberal como se vê é um homem de quem ter pena porque está às voltas com um problema insolúvel determinar até que ponto pode serrar o galho no qual está sentado sem correr o risco de quebrálo É também por princípio um cidadão insatisfeito Que escureça o horizonte social que cresça o espectro do socialismo e ele se torna partidário de um regime forte Que este se instale suprima as liberdades civis e se interesse de muito perto pelo funcionamento da economia o liberal espuma de indignação e volta a ser homem de esquerda Ou de centroesquerda Uma posição tão incômoda bem poderia decorrer de uma ilusão fundamental Esta me parece consistir num profundo desconhecimento da relação moderna entre o social e o político representada como um antagonismo entre os indivíduos por um lado e o poder enquanto mando por outro Como uma partida que opõe dois times Se espontaneamente o leitor assim pensa a coisa política não tenha dúvidas ele é liberal sem o saber É melhor que feche Marx Lênin e Trotsky e vá logo consultar Benjamin Constant e Herbert Spencer os seus verdadeiros pais espirituais Em que consiste tal ilusão Um texto notável de Durkheim talvez nos ajude a detectála Tratase da crítica que ele faz na Divisão do Trabalho Social à análise do social elaborada por Herbert Spencer Spencer sustenta que a com o desenvolvimento da solidariedade industrial a esfera da ação social isto é do aparelho coercitivo irá restringirse cada vez mais b o único vínculo que permanecerá entre os homens será a troca regulada pela relação de contrato Assim a solidariedade social se reduzirá cada vez mais ao consenso dos interesses ao seu acordo espontâneo Não poderia ser esta objeta Durkheim a solidariedade orgânica distintiva da modernidade Não é esta E é neste ponto que a sua análise se torna apaixonante 31 1 Não nos deixemos enganar pelo abrandamento do direito repressivo recuo da pena de morte etc E observemos que a dominação burocrática do Estado vai crescendo nas sociedades que parecem mais levar em conta os direitos do indivíduo Spencer pretende que a sociedade nos diz cada vez menos Faça isso que ela se contenta em dizer Não faça aquilo Será assim tão certo Por haverse tornado mais insidiosa a intervenção do poder terá diminuído Examinese por exemplo o aumento de sua ação reguladora nas relações de família a família é cada vez menos uma sociedade autônoma no seio da grande sociedade 2 É falso pretender que diminua a importância das funções do Estado à medida que se desenvolve o tipo industrial de sociedade A esfera da atividade individual pode crescer e o poder estatal tornarse menos absoluto mas crescendo também A questão não é diz Durkheim saber se o poder coercitivo é mais intenso ou menos porém se o aparelho regulador de que dispõe o poder se tornou mais volumoso ou menos E a esse respeito não há dúvida possível A incumbência de zelar pela educação da juventude de proteger a saúde geral de pʼresidir ao funcionamento da assistência pública de administrar as vias de transporte e comunicação pouco a pouco ingressa na esfera de ação do órgão central Em conseqüência este se desenvolve e ao mesmo tempo estende progressivamente a toda a superfície do território uma rede cada vez mais cerrada e complexa de ramificações que substituem ou assimilam os órgãos locais preexistentes Serviços de estatística mantêmno informado de tudo o que acontece nas profundezas do organismo Division du Travail Social p 200 Podese dizer sem exagero que estas linhas de Durkheim anunciam um dos principais temas que recentemente Michel Foucault desenvolveu em Vigiar e Punir e nʼA Vontade de Saber o poder moderno não é mais essencialmente uma instância repressiva e transcendete o rei acima dos seus súditos o Estado superior ao indivíduo mas uma instância de controle que envolve o indivíduo mais do que o domina abertamente Podem diminuir as proibições abolirse a pena de morte abrandarse o regime das prisões etc porém o sistema disciplinar a que nos vemos submetidos até em nossa vida privada cresce discreta mas continuamente O Estado moderno é menos abertamente dominador e mais manipulador preocupase menos em reprimir a desobediência do que em prevenila É feito menos para punir do que para disciplinar Isto por sinal foi admiravelmente percebido por Hegel que descreveu na Filosofia do Direito os mecanismos de integração do indivíduo no Estado e cunhou a fórmula Der Staat ist eine List O Estado é uma astúcia O melhor que tenho a fazer a este respeito é citar algumas linhas da conclusão do livro de Philippe Meyer O que outrora foi perseguido ou penalizado o divórcio o aborto a contracepção a variedade a mudança ou a mobilidade é hoje considerado como desprovido de importância ou como simples objeto de uma administração particular na medida em que é o Estado que produz e gere as culturas e as artes de viver os indivíduos desaparecem sob as funções delegadas 33 autêntico desenvolvimento nos lugares que são governados por uma autoridade que não conhece contrapeso Notem bem muitos historiadores modernos do desenvolvimento econômico ocidental dão razão a J B Say Basta compararmos a evolução econômica no Século XVIII de um país sob monarquia limitada a Inglaterra e outro sob a monarquia absoluta a França para sabermos de que lado se encontram as condições mais propícias para o crescimento Este foi favorecido pelo fato de que a monarquia inglesa desde 1624 viuse privada do direito de vender monopólios de que desde 1688 o poder régio controlado pelo Parlamento e pelo poder judiciário não teve mais a liberdade de definir arbitrariamente os direitos de propriedade ou de determinar a seu belprazer a carga fiscal Igualmente é preciso constatar que na Holanda como na Itália do Norte o desenvolvimento precoce do capitalismo achase favorecido pela ausência de um Estado absolutista e centralizado à francesa Parece regra geral que o crescimento econômico se tenha dado em função da liberdade deixada aos particulares pelo aparelho político parece existir um vínculo entre a estagnação econômica e o fato de que a função pública mobilize uma parte mais ampla da população O desenvolvimento supôs uma relativa frouxidão do aparelho político e uma limitação da sua importância social Nada seria mais contestável por conseguinte do que uma tese segundo a qual do Século XVII ao XIX o interesse do Estado e o interesse dos capitalistas teriam convergido automaticamente E já bastaria a verdadeira obsessão antiestatal dos liberais do Século XIX para nos obrigar a desconfiar dos fundamentos desta tese Mas a verdade é que ao tornarse predominante a economia de mercado precisa de um poder capaz de manter as condições do seu funcionamento natural Porém esta função é considerada como sendo puramente negativa do ponto de vista dos atores sociais o mando político é uma tarefa subalterna O liberalismo adota plenamente este preconceito Também ele assim como SaintSimon assim como os socialistas utópicos lança descrédito sobre a idéia de poder enquanto mando Daí este estado permanente de desconfiança e hostilidade defensiva frente ao poder que assinala e critica Auguste Comte no seu Sistema de Política Positiva O governo escreve ele que em todo estado regular de coisas é a cabeça da sociedade o guia e agente da ação geral é sistematicamente despojado por essas doutrinas de todo princípio de atividade Privado de toda participação significativa na vida de conjunto do corpo social é reduzido a um papel absolutamente negativo A ação do corpo social sobre os seus membros é até mesmo vista como devendo limitarse estritamente à manutenção da tranqüilidade pública o que em toda sociedade ativa nunca pôde ser mais que um objeto subalterno A filosofia liberal fundavase numa análise histórica justa Mas subestimando em absoluto o papel do poder estatal foi levada a conclusões que hoje no Século XX parecemnos fantásticas tão fantásticas quanto as predições marxistas relativas ao fim do Estado Como não sorrir hoje das visões do porvir que tinham bons espíritos como os filósofos Stuart Mill e Spencer Em 1861 Stuart 32 Mill garantia que as funções relativas ao governo são coisa muito mais vasta num povo atrasado do que num povo adiantado Conclusão o progresso só poderá adelgaçar as funções do Estado este resquício arcaico até a sua completa extinção O fim do Estado é uma das manias do Século XIX O autor destas linhas já se terá percebido não manifesta excessiva ternura pelo marxismo Por isso mesmo faz questão absoluta de frisar como o liberalismo clássico lhe parece ter sido uma posição insustentável já no próprio Século XIX A principal acusação que lhe deve ser feita não é em nossa opinião a que é mais difundida É verdade que o liberalismo só exaltou as liberdades civis na medida em que elas constituem os corolários da sacrossanta liberdade de propriedade é o que J B Say diz expressamente Também é verdade que segundo ele o cidadão só pode ser o proprietário Que só a propriedade torne os homens capazes do exercício dos direitos políticos era um axioma meridianamente claro para Benjamin Constant para Guizot etc Esta posição pode sem dúvida indignar Mas pelo menos não é contraditória Em compensação há um ponto no qual o liberal peca por incoerência Ele vilipendia o poder Considerao como o vil herdeiro da era militar passada Contudo admite que é indispensável mantêlo pelo menos por enquanto como válvula de segurança da economia de mercado Encarao como uma ameaça potencial mas ao mesmo tempo como uma necessária instância protetora Anatole France dizia que a República é o melhor de todos os regimes porque governa pouco Poderia ser este o programa político do liberal enquanto cidadão contra os poderes sob a condição de acrescentarse que este pouco poder é contudo indispensável O liberal como se vê é um homem de quem ter pena porque está às voltas com um problema insolúvel determinar até que ponto pode serrar o galho no qual está sentado sem correr o risco de quebrálo É também por princípio um cidadão insatisfeito Que escureça o horizonte social que cresça o espectro do socialismo e ele se torna partidário de um regime forte Que este se instale suprima as liberdades civis e se interesse de muito perto pelo funcionamento da economia o liberal espuma de indignação e volta a ser homem de esquerda Ou de centroesquerda Uma posição tão incômoda bem poderia decorrer de uma ilusão fundamental Esta me parece consistir num profundo desconhecimento da relação moderna entre o social e o político representada como um antagonismo entre os indivíduos por um lado e o poder enquanto mando por outro Como uma partida que opõe dois times Se espontaneamente o leitor assim pensa a coisa política não tenha dúvidas ele é liberal sem o saber É melhor que feche Marx Lênin e Trotsky e vá logo consultar Benjamin Constant e Herbert Spencer os seus verdadeiros pais espirituais Em que consiste tal ilusão Um texto notável de Durkheim talvez nos ajude a detectála Tratase da crítica que ele faz na Divisão do Trabalho Social à análise do social elaborada por Herbert Spencer Spencer sustenta que a com o desenvolvimento da solidariedade industrial a esfera da ação social isto é do aparelho coercitivo irá restringirse cada vez mais b o único vínculo que permanecerá entre os homens será a troca regulada pela relação de contrato Assim a solidariedade social se reduzirá cada vez mais ao consenso dos interesses ao seu acordo espontâneo Não poderia ser esta objeta Durkheim a solidariedade orgânica distintiva da modernidade Não é esta E é neste ponto que a sua análise se torna apaixonante 33 1 Não nos deixemos enganar pelo abrandamento do direito repressivo recuo da pena de morte etc E observemos que a dominação burocrática do Estado vai crescendo nas sociedades que parecem mais levar em conta os direitos do indivíduo Spencer pretende que a sociedade nos diz cada vez menos Faça isso que ela se contenta em dizer Não faça aquilo Será assim tão certo Por haverse tornado mais insidiosa a intervenção do poder terá diminuído Examinese por exemplo o aumento de sua ação reguladora nas relações de família a família é cada vez menos uma sociedade autônoma no seio da grande sociedade 2 É falso pretender que diminua a importância das funções do Estado à medida que se desenvolve o tipo industrial de sociedade A esfera da atividade individual pode crescer e o poder estatal tornarse menos absoluto mas crescendo também A questão não é diz Durkheim saber se o poder coercitivo é mais intenso ou menos porém se o aparelho regulador de que dispõe o poder se tornou mais volumoso ou menos E a esse respeito não há dúvida possível A incumbência de zelar pela educação da juventude de proteger a saúde geral de pʼresidir ao funcionamento da assistência pública de administrar as vias de transporte e comunicação pouco a pouco ingressa na esfera de ação do órgão central Em conseqüência este se desenvolve e ao mesmo tempo estende progressivamente a toda a superfície do território uma rede cada vez mais cerrada e complexa de ramificações que substituem ou assimilam os órgãos locais preexistentes Serviços de estatística mantêmno informado de tudo o que acontece nas profundezas do organismo Division du Travail Social p 200 Podese dizer sem exagero que estas linhas de Durkheim anunciam um dos principais temas que recentemente Michel Foucault desenvolveu em Vigiar e Punir e nʼA Vontade de Saber o poder moderno não é mais essencialmente uma instância repressiva e transcendete o rei acima dos seus súditos o Estado superior ao indivíduo mas uma instância de controle que envolve o indivíduo mais do que o domina abertamente Podem diminuir as proibições abolirse a pena de morte abrandarse o regime das prisões etc porém o sistema disciplinar a que nos vemos submetidos até em nossa vida privada cresce discreta mas continuamente O Estado moderno é menos abertamente dominador e mais manipulador preocupase menos em reprimir a desobediência do que em prevenila É feito menos para punir do que para disciplinar Isto por sinal foi admiravelmente percebido por Hegel que descreveu na Filosofia do Direito os mecanismos de integração do indivíduo no Estado e cunhou a fórmula Der Staat ist eine List O Estado é uma astúcia O melhor que tenho a fazer a este respeito é citar algumas linhas da conclusão do livro de Philippe Meyer O que outrora foi perseguido ou penalizado o divórcio o aborto a contracepção a variedade a mudança ou a mobilidade é hoje considerado como desprovido de importância ou como simples objeto de uma administração particular na medida em que é o Estado que produz e gere as culturas e as artes de viver os indivíduos desaparecem sob as funções delegadas autêntico desenvolvimento nos lugares que são governados por uma autoridade que não conhece contrapeso Notem bem muitos historiadores modernos do desenvolvimento econômico ocidental dão razão a J B Say Basta compararmos a evolução econômica no Século XVIII de um país sob monarquia limitada a Inglaterra e outro sob a monarquia absoluta a França para sabermos de que lado se encontram as condições mais propícias para o crescimento Este foi favorecido pelo fato de que a monarquia inglesa desde 1624 viuse privada do direito de vender monopólios de que desde 1688 o poder régio controlado pelo Parlamento e pelo poder judiciário não teve mais a liberdade de definir arbitrariamente os direitos de propriedade ou de determinar a seu belprazer a carga fiscal Igualmente é preciso constatar que na Holanda como na Itália do Norte o desenvolvimento precoce do capitalismo achase favorecido pela ausência de um Estado absolutista e centralizado à francesa Parece regra geral que o crescimento econômico se tenha dado em função da liberdade deixada aos particulares pelo aparelho político parece existir um vínculo entre a estagnação econômica e o fato de que a função pública mobilize uma parte mais ampla da população O desenvolvimento supôs uma relativa frouxidão do aparelho político e uma limitação da sua importância social Nada seria mais contestável por conseguinte do que uma tese segundo a qual do Século XVII ao XIX o interesse do Estado e o interesse dos capitalistas teriam convergido automaticamente E já bastaria a verdadeira obsessão antiestatal dos liberais do Século XIX para nos obrigar a desconfiar dos fundamentos desta tese Mas a verdade é que ao tornarse predominante a economia de mercado precisa de um poder capaz de manter as condições do seu funcionamento natural Porém esta função é considerada como sendo puramente negativa do ponto de vista dos atores sociais o mando político é uma tarefa subalterna O liberalismo adota plenamente este preconceito Também ele assim como SaintSimon assim como os socialistas utópicos lança descrédito sobre a idéia de poder enquanto mando Daí este estado permanente de desconfiança e hostilidade defensiva frente ao poder que assinala e critica Auguste Comte no seu Sistema de Política Positiva O governo escreve ele que em todo estado regular de coisas é a cabeça da sociedade o guia e agente da ação geral é sistematicamente despojado por essas doutrinas de todo princípio de atividade Privado de toda participação significativa na vida de conjunto do corpo social é reduzido a um papel absolutamente negativo A ação do corpo social sobre os seus membros é até mesmo vista como devendo limitarse estritamente à manutenção da tranqüilidade pública o que em toda sociedade ativa nunca pôde ser mais que um objeto subalterno A filosofia liberal fundavase numa análise histórica justa Mas subestimando em absoluto o papel do poder estatal foi levada a conclusões que hoje no Século XX parecemnos fantásticas tão fantásticas quanto as predições marxistas relativas ao fim do Estado Como não sorrir hoje das visões do porvir que tinham bons espíritos como os filósofos Stuart Mill e Spencer Em 1861 Stuart que eles exercem mas que outro poderia exercer em seu lugar O aborto é autorizado não como um ato livremente decidido por uma mulher mas como uma atividade cujos móveis devem estar incluídos num certo número de casos enumerados em lei Diminui o número e a intensidade dos interditos e tabus na exata medida em que a sua transgressão pode ser administrada pelos poderes públicos Como dizêlo melhor Bem sei que estas análises são mais convincentes para um europeu do que para um sulamericano o qual não tem tantas razões para considerar o Estado essencialmente repressivo como coisa do passado Contudo sejam quais forem as diferenças devidas às situações históricas e econômicas não se pode negar a universalidade do fenômeno analisado é verdade que sob ângulos muito diversos por Hegel Durkheim Foucault Excetuandose os casos extremos o poder estatal não pode ser definido como uma máquina monstruosa que cinicamente esmaga os indivíduos acima de tudo é uma máquina que produz os indivíduos e dandolhes bons hábitos institui ou tende cada vez mais a instituir o social Portanto Durkheim tinha razão contra Spencer não existe um adelgaçamento progressivo do poder nas sociedades modernas mas uma transformação e um crescimento do poder O Poder constituído para servir a sociedade é na verdade o seu senhor Ainda mais inconteste porque pretende emanar dela B de Jouvenel Ou Pouvoir p 548 Vocês compreendem melhor agora em que consiste a ilusão na qual assenta o liberalismo Ele parte simplesmente de uma análise sumária e fraudulenta do problema político Pretende reduzilo ao resultado de uma partida Indivíduo vs Estado Ora tratase de uma partida fraudada Pois afinal o que é este indivíduo De onde provém este átomo social zeloso por seus direitos Ele já não foi fabricado sorrateiramente pelo poder Pobres dos revolucionários românticos que não partem desse dado de fato Pobres também das autocracias imbecis que não compreenderam ainda que o melhor meio de neutralizar os revolucionários não é prendêlos mas transformálos em funcionários Quer gostemos quer não o crescente controle do Estado sobre as atividades individuais o que não quer absolutamente dizer totalitarismo é um fenômeno que parece ser irreversível Assim tanto os partidários da livre iniciativa quanto os defensores do homo oeconomicus livre conduzem hoje uma guerra perdida de antemão Isto já vale para as democracias desenvolvidas O que dizer então dos países nos quais uma parte da população não tem garantido sequer o mínimo vital Neles o único problema que se coloca é saber se a gestão capitalista será capaz de atender às exigências mínimas de uma democracia social ou se deverá ceder lugar ao marxismoleninismo Num caso como no outro a estatização relativa ou absoluta aparece como um destino inevitável Ainda a esse respeito Durkheim foi bom profeta ao escrever que não são unicamente as classes inferiores que aspiram ao controle do aparelho político mas também O próprio Estado que à medida que a atividade econômica se torna um fator mais importante da vida geral é levado 35 pela força das coisas a cada vez mais vigiar e regular as suas manifestações Muitos liberais ainda hoje não estão persuadidos desta verdade É que continuam cultivando uma outra ilusão do Século XIX o economicismo isto é a crença de que o funcionamento econômico só pode ser um fator de regulação e estabilização da sociedade a ignorância do fato de que na verdade a liberdade econômica pode tornarse em brevíssimo prazo um fator profundamente perturbador do social e por isso corre o risco de suscitar enquanto reação um poder que se encarregará de corrigir sistematicamente os desequilíbrios por ela produzidos Um poder que se encarregará especialmente de propiciar aos cidadãos um mínimo de segurança A segurança em primeiro lugar regressamos assim ao ideal político de Hobbes à odiosa filosofia execrada pelos liberais do Século XIX Mas o que fazer É o próprio jogo da liberdade econômica que acaba tornando cada vez mais profundamente necessária a intervenção do Estado E isso em nome do interesse público mesmo quando este é concebido à maneira de Benjamin Constant a saber os interesses individuais colocados reciprocamente fora de condições de fazeremse mal O autor pensava em garantir o livre jogo da concorrência Mas se tomarmos esta definição ao pé da letra não será evidente que uma indústria que foi privada de encomendas devido a uma crise internacional ou trabalhadores privados de trabalho representam interesses individuais lesados E a quem podem dirigirse se não ao Estado para obter quer um subsídio quer um saláriodesemprego Assim à medida que o papel do econômico se torna mais invasor e mais complexo o seu funcionamento a tarefa do Estado passa a ser cada vez menos proteger a liberdade de alguns e cada vez mais garantir a segurança do maior número Por quê Por generosidade Por amor aos pobres É óbvio que não por simples instinto de conservação Que a liberdade ou as liberdades sejam aspirações fundamentais do animal humano é uma tolice que devemos tirar da cabeça O liberalismo do Século XIX foi o grande responsável pela propagação deste mito A verdade como nota Bertrand de Jouvenel é que a classe dirigente gozava no Século XIX de uma segurança tão bem assentada que ela só podia desejar a liberdade e assim concedeu às classes inferiores a liberdade que convinha a ela enquanto lhes retirava os meios de proteção dos quais ela própria não necessitava Ou Pouvoir p 560 Um exemplo a greve que durante muito tempo foi enquadrada como atentado à liberdade de trabalho ou como ruptura unilateral de contrato Uma tal gestão política caso se mantivesse só poderia ser suicida entendase uma tal gestão onde ela se mantém só pode ser suicida é bom pôr os pingos nos ii Por quê Porque a liberdade é apenas uma necessidade secundária frente à necessidade primária de segurança ibidem p 550 E a primazia desta necessidade de segurança foi evidenciada pelas grandes crises que abalaram este século Quando o presidente Franklin Roosevelt frente à Grande Depressão dos anos 30 proclamou o seu empenho em fazer respeitar os new human rights enunciou direitos que eram incompatíveis com o liberalismo clássico fundado na livre disposição da propriedade direito ao pleno emprego direito a um salário constante direito de os produtores venderem quantidades estáveis a um preço estável Entre estes new human rights que nenhum Estado responsável pode ignorar e as liberdades dos liberais é preciso escolher Ninguém pode ser favorável à Previdência Social e ao saláriodesemprego e ao mesmo tempo continuar professando um ideal minimalista do 36 Estado É incoerente considerar legítimo o protetorado social e ao mesmo tempo erguerse contra o EstadoMoloch Esta incoerência é especificamente francesa o francês médio é por excelência o ser que encaminha os filhos para o funcionalismo público e clama contra a burocracia e o fisco Em suma se vocês aceitam o que torna fatal a estatização então deixem de bancar as belas almas A maioria considera que o governo age mal mas todos pensam que o governo deve agir sem parar e pôr a mão em tudo Até os que se combatem mais asperamente não deixam de concordar neste ponto Nossos liberais assim como nossos libertários teriam interesse em meditar acerca destas linhas de Tocqueville antes de descreverem a proliferação do poder estatal como efeito de uma sorrateira vontade de potência E esquecer que são os próprios governados o mais das vezes que forçam o Estado a colocarse como instância tutelar e providencial por conseguinte como poder onipotente e onisciente O próprio Foucault nos parece sugerir este erro Quando evoca os direitos incompreensíveis para o sistema jurídico clássico direito à vida à felicidade ao corpo à saúde à satisfação das necessidades apresentaos como reivindicações opostas pelos oprimidos aos novos procedimentos do poder Volonté de Savoir p 191 Mas o que a história nos ensina é que estes direitos só podem ser satisfeitos à custa de um crescimento do poder estatal Como analisar de outra forma por exemplo o socialismo sueco A expressão mundo livre sem dúvida tem um sentido quando a opomos a mundo totalitário Mas não nos enganemos até mesmo nos países ditos livres do Ocidente capitalista a liberdade declina tanto como realidade jurídica quanto como ideal político E a visão premonitória de Tocqueville em 1840 está a caminho de realizarse lentamente Assistimos ao advento de um novo despotismo menos tirânico que administrativo Liberal mas liberal de uma espécie inteiramente nova Alexis de Tocqueville na conclusão de sua obraprima A Democracia na América 18351840 mostrase um dos raros espíritos do Século XIX a entrever o que poderia ser o século seguinte Passemoslhe a palavra Após ter assim tomado em suas mãos poderosas cada indivíduo e após terlhes dado a forma que bem quis o soberano estende os braços sobre toda a sociedade cobrelhe a superfície com uma rede de pequenas regras complicadas minuciosas e uniformes através das quais os espíritos mais originais e as almas mais vigorosas não conseguiriam aparecer para sobressair na massa não dobra as vontades amoleceas inclinaas e as dirige raramente força a agir mas opõese freqüentemente à ação não destrói impede o nascimento não tiraniza atrapalha comprime enerva arrefece embota reduz enfim cada nação a nada mais ser que uma manada de animais tímidos e industriosos cujo pastor é o governo Como evitar que surja o despotismo administrativo numa democracia Era esta a questão que seduzia Tocqueville e que também se poderia enunciar da maneira seguinte sob que condições a palavra democracia pode não ser um engodo Como combinar as suas duas componentes demos povo e kratein exercer o poder de modo que nem uma nem outra nem o povo soberano nem o poder seja esvaziada do seu sentido Há muitas chances de que o problema seja insolúvel e de que a nossa época só nos permita escolher entre as oligarquias menos ruins Mas antes de aí chegarmos ainda devemos denunciar algumas ilusões A tarefa do filósofo não é incutir esperança mas criticar os problemas que julga estarem mal situados O ÚLTIMO CHEFE Passemos mais um momento por favor em companhia de Tocqueville É ambígua a sua maneira de empregar a palavra democracia O mais das vezes designa o estado social caracterizado pela ausência de uma hierarquia de nobres como nos Estados do Antigo Regime e pela tendência a igualizar as condições De modo que se pode conceber tanto uma tirania democrática quanto uma liberdade democrática Mas politicamente Tocqueville recusase a chamar democrático um governo absoluto em que o povo não tem nenhum papel nos negócios ainda que as leis sejam feitas de modo a favorecer na medida do possível o seu bemestar Ora o drama é que as sociedades democráticas correm um forte risco de secretar esse tipo de poder O que eu mais receio no futuro afirma Tocqueville é a omissão dos cidadãos em favor de um poder tutelar e o fato de que os representantes deste poder sejam eleitos pelo sufrágio universal não altera coisa nenhuma Depois de renunciarem a todo poder político concreto mesmo em pequena escala como os homens ainda seriam capazes de tomar decisões políticas em grande escala A origem deste perigo é o individualismo que se desenvolve nas sociedades democráticas e a tentação que por isso se oferece ao poder para que se valha do isolamento e da fraqueza dos indivíduos O único remédio possível é a liberdade política entendida como a participação efetiva dos cidadãos nos negócios públicos Só ela pode impedir a atomização do tecido social que favorece o despotismo e que a filosofia política dos Modernos desde Hobbes toma como um dado de fato neste ponto Tocqueville encontra Hegel Foi assim que os norteamericanos venceram o individualismo que era gerado pela igualdade conferindo a cada porção do território uma vida política a fim de multiplicar ao infinito as ocasiões para os cidadãos agirem em conjunto e fazêlos sentir todos os dias que dependem uns dos outros O problema político moderno consiste portanto em reconstituirse artificialmente a sociedade como uma comunidade orgânica para assim entravar a propensão dos povos democráticos a esfarelaremse em indivíduos e impedilos de deslizarem para a centralização políticoadministrativa Em suma impedilos de seguirem o exemplo francês É possível que a hipercentralização seja conveniente a um povo que foi educado politicamente por Richelieu pelos jacobinos e por Napoleão mas então por favor parem de nos falar em vocação democrática francesa a pretexto de que os parisienses tomaram a Bastilha num dia de julho de 1789 É esta uma das maiores mistificações históricas que conheço e constato que os alemães a despeito dos racistas germanófobos souberam adaptarse sem nenhuma dificuldade aos costumes democráticos de estilo anglosaxão Tocqueville limitase a dar continuidade à inspiração liberal De forma alguma Os liberais preocupavamse antes de mais nada com a independência dos agentes econômicos Por isso voltavam toda sua desconfiança contra o poder enquanto mando na medida em que este ameaça entravar a iniciativa privada do indivíduo não a sua iniciativa política em que ameaça interferir na sua esfera de decisão pessoal e não de decisão política O que interessa ao liberal é que a sociedade civil possa cuidar tranquilamente dos seus negócios e não que ela exerça uma função propriamente política A posição de Tocqueville é muito diferente Em 1789 afirma vocês destruíram a sociedade hierárquica Muito bem Mas se vocês não substituíram a hierarquia pela associação então a sua sociedade carecerá de força política será inteiramente manipulável pelo poder E aos liberais clássicos Tocqueville diz vocês podem muito bem protestar contra as intervenções tão evidentes de um Estado centralizador mas não vêem que esse intervencionismo é suscitado pelo vazio político que se criou na sociedade É o que os legisladores americanos habilmente viram que era preciso conferir à sociedade um poder de iniciativa política Assim o poder que um juiz tem nos Estados Unidos de declarar que uma lei é contrária à Constituição tornao portador de um imenso poder político Seria vão acrescenta Tocqueville procurar o equivalente de tais disposições na França onde a possibilidade de questionar a vontade do legislador é praticamente negada à sociedade Em outras palavras o mérito imenso da democracia política americana segundo Tocqueville é que ela se esforça por combater aquilo mesmo que torna o poder infinitamente perigoso Não o fato de ele mandar mas o fato de que pode tomar conta da sociedade Não o fato de controlar mas o fato de que pode privar os indivíduos de qualquer iniciativa política e até do desejo de tomarem iniciativas Desta maneira Tocqueville principia uma análise do poder político da qual o mínimo a dizer é que é rara no século XIX Para a mentalidade corrente no século XIX o poder palavra quase inevitavelmente pejorativa significa mandar Não é tanto a faculdade de fazer cumprir as suas decisões é a faculdade do belprazer Este poder uns propõem eliminálo simplesmente outros submetêlo a uma vigilância estrita e todos concordam que o melhor seria substituílo por uma gestão científica por uma administração finalmente racional Leiam SaintSimon que talvez seja a fonte principal destas utopias Aproximase o fim da dominação política prediz ele a organização científica da sociedade lhe sucederá Uma vez livres dos atores políticos parasitas reis príncipes magistrados policiais etc os atores econômicos os únicos sérios tomarão as coisas em suas mãos Será a vez dos produtores isto é dos industriais e da classe laboriosa misturados Não riam demais Marx a este respeito será apenas um SaintSimon corrigido Ora quem assim define levianamente o poder político apenas pelo mando pela opressão brutal deixa de perguntar se porventura este poder político ainda mais desdenhado que execrado não disporia de outros recursos de estratégias mais requintadas para investir a sociedade É isto o que Tocqueville ao contrário percebeu genialmente enquanto a maior parte dos seus contemporâneos pensava que seria relativamente fácil liquidar um poder político que haviam definido da maneira mais superficial possível Desta forma não só tornavam possível o novo despotismo mas alguns entusiasmados até iriam trabalhar pelo seu advento sem o saberem É óbvio que estou me referindo aos socialistas Mas insisto sem o saberem Pois considero inteiramente estúpido pretender como faz tanto a nova esquerda quanto à velha direita que Marx tenha sido um feroz partidário do Estado o maquiavélico fabricante do Gulag etc Deste ponto de vista é outra coisa muito diferente que deve ser criticada em Marx como em seus contemporâneos é haver desconhecido a essência e a amplidão do fenômeno político e por conseguinte do poder político e por isso haver acreditado piamente que uma vez quebrada a velha máquina de dominação já meio arcaica que tinha ante os olhos adviria sem muitas dificuldades o reino da liberdade Notem bem esta ilusão era nutrida por um diagnóstico extremamente justo Marx era sensível ao fato de que o velho aparelho de poder mesmo depois de remendado pela burguesia conquistadora continuava incapaz de enfrentar a mudança sócioeconômica que se anunciava Impressionavao a desproporção entre o alcance do poder técnico e a precariedade do quadro institucional mero instrumento de dominação para o diaadia cada vez mais anacrônico Como diz muito bem Jürgen Habermas o objetivo de sua crítica era transformar a adaptação secundária do poder institucional ao crescimento econômico em uma adaptação ativa e também obter o controle sobre a evolução estrutural da sociedade Théorie et Pratique li p 130 Só então os homens farão a sua história com plena consciência e vontade O que Marx não viu é que este controle sobre as condições de produção poderia perfeitamente ser exercido por um SuperEstado Por que então não viu uma coisa que hoje nos parece tão óbvia É neste ponto que intervém uma vez mais um dos principais preconceitos do Século XIX a subestimação do político Marx reduzia o poder político a uma instância opressora encarregada de manter as condições de funcionamento de um sistema de produção anárquico acoplado a um sistema de distribuição iníquo Assim parecialhe evidente que uma vez suprimida radicalmente a desordem o guarda da desordem não teria mais condições de reaparecer Em outras palavras que a instituição da propriedade coletiva dos meios de produção suprimiria ipso facto a instância do Estado para só deixar lugar a um problema técnico de planejamento Como se uma certa organização da produção e da repartição dos recursos por melhor que fosse pudesse algum dia suprimir o problema propriamente político a saber quem governa como são recrutados os governantes como o poder é exercido qual é a relação entre governantes e governados Raymond Aron Etapes de la pensée sociologique p 199 Pareceme que foi porque o marxismo teórico do século XIX tornou fútil a idéia do poder político que o marxismo prático do século XX se viu capaz de transformar o poder político na excrescência que se conhece Poderíamos dar muitos exemplos desta despreocupação pelo problema do poder É o caso da oposição abstrata para não dizermos outra coisa entre aparelho de Estado e centralização que encontramos no Dezoito Brumário de Marx A centralização política de que necessita a sociedade moderna só pode erguerse sobre as ruínas do aparelho governamental militar e burocrático A destruição do aparelho de Estado não porá em perigo a centralização Mas quem efetuará esta centralização Que mecanismo político ela implicará Mistério Esta distinção entre boa centralização e mau aparelho de Estado é retomada por Lênin Vejamse estas linhas que nos permitem adivinhar o que será substituindo o Estado opressor a organização racional que por sinal já existe em embrião no Estado capitalista Além do aparelho opressor por excelência exército permanente polícia funcionários existe no Estado contemporâneo um aparelho muito intimamente ligado aos bancos e cartéis e que efetua um vasto trabalho de 40 estatística e registro Este aparelho não pode nem deve ser destruído A sua submissão aos capitalistas deve terminar ele deve ser submetido aos sovietes Os grandes bancos constituem o aparelho de Estado de que necessitamos para construirmos o socialismo e que tomamos já pronto do capitalismo Ora é tão inocente este legado técnico que se pretende herdar do Estado burguês Ele já não conteria a própria essência do poder opressor Como também são cegos à autonomia da ordem política os revisionistas não se mostram mais clarividentes Uma vez depurado dos seus elementos opressores e arcaicos pensam eles o Estado tal como existe será um excelente instrumento posto à disposição do socialismo É o que professam Bernstein a partir de 1898 e Kautsky a partir de 1917 Vejamos as coisas de frente dizem eles o capitalismo aprendeu a resistir às crises proletarização não é sinônimo de pauperização e finalmente as instituições burguesas cada vez mais fornecem ao proletariado meios de intervenção política até mesmo a esperança de acesso ao poder Assim por que deveria o Estado continuar sendo o defensor dos privilegiados Por que não deveria ele pelo simples jogo do sufrágio universal e das conquistas sindicais tornarse um Estado democrático no qual desapareceria a dominação de classe Desnecessário dizer quanto os ortodoxos amaldiçoam esta tese embora Engels a tenha defendido abertamente no fim de sua vida em textos sobre os quais habitualmente se joga um véu pudico Mas é só a despreocupação política que ora me interessa O que diz Kautsky Que no dia em que organizações pertencentes à classe operária forem colocadas no lugar dos capitalistas e preencherem as mesmas funções que estes tão bem quanto eles se não melhor o Estado democrático que já existe em embrião fil1almente tomará forma O mal não reside portanto no aparelho governamental mas no egoísmo dos proprietários que nele se instalaram O Estado democrático moderno distinguese dos precedentes porque a utilização do aparelho governamental pelas classes exploradoras não pertence a sua essência não é inseparável desta Ao contrário o Estado democrático tende a não ser o órgão de uma minoria como acontecia com os regimes precedentes mas o da maioria da população isto é das classes laboriosas Se é contudo o órgão de uma minoria de exploradores a causa não está em sua natureza própria mas na falta de unidade das classes laboriosas etc Em suma evitemos confundir o Estado organização da sociedade dotada do poder executivo com os exploradores que o monopolizaram Uma vez eliminados estes e substituídos pelos representantes da maioria da população só teremos a tratar com uma sadia organização democrática Mas recolocase a mesma questão Quem se encarregará desta organização Mais concretamente como ela se efeturá E acima de tudo será o poder estatal um instrumento tão neutro que baste confiálo a novos mandatários para tornálo democrático O mais benigno dos resultados prováveis não se ia uma tecnocracia dirigida por uma nova elite se não por uma nova classe Na verdade se caracterizamos a democracia pela existência de um controle efetivo mínimo dos governados sobre o poder é duvidoso que na prática o socialismo se concilie perfeitamente com um regime democrático Na melhor das hipóteses a burocracia por ele desenvolvida casará mal com um 41 controle permanente das bases como se diz Afirmando isto a última das minhas intenções seria retomar o velho discurso liberal e lançar o anátema sobre o socialismo Limitome a assinalar seguindo Schumpeter esse grande economista que considerava o socialismo como sendo ao mesmo tempo inevitável e conciliável com a democracia que socialismo e democracia não apenas não são forçosamente ligados mas são também conceitos estranhos um ao outro um diz respeito à organização da produção e da repartição dos recursos o outro referese a um certo modo de organizar o poder Por conseguinte não há dúvida de que estes dois conceitos não se excluem em princípio mas também não se implicam reciprocamente Parecenos que na verdade o marxismo não escapa à ilusão do século XIX tão bem formulada pelo liberal Herbert Spencer Na forma de sociedade para a qual progredimos o governo será reduzido ao mínimo e a liberdade individual elevada ao grau mais alto Na Miséria da Filosofia Marx prevê uma nova ordem em que não haverá mais classes nem conflitos de classes em que as evoluções sociais deixarão de ser revoluções políticas E também escreve A queda da antiga sociedade dará lugar à dominação de uma nova classe que encontraria o seu apogeu numa nova autoridade política Não Que o leitor julgue o valor dessa profecia Mas não esqueçamos que Marx só se interessava pela política e muito não há dúvida sabese como lhe parecia essencial a formação de um partido do proletariado tendo em vista a revolução que terminaria suprimindo o poder político A conquista deste pelo proletariado deveria culminar na abolição das classes portanto na abolição do Estado político o qual é somente a expressão de uma dominação de classe Quando ainda em 1920 Bukharin brilhante teórico bolchevista e filho dileto de Lênin pinta um quadro idílico da sociedade comunista em gestação garante que todos os homens trabalharão conformandose espontaneamente às diretrizes dos departamentos de contabilidade e dos escritórios de estatística assim como os músicos numa orquestra se regem pela batuta do maestro e sem que sejam necessários ministros prisões leis decretos sic Os indivíduos então não terão mais que dirigir outros terão apenas que conduzir as locomotivas as ferramentas as máquinas ABC do Comunismo Fim dos dominadores e dos dominados fim do poder de um homem sobre outro homem Reconhecese aqui a quimera com que se embriagou o século XIX O sonho dos fracos como teria dito Nietzsche Recusar a irredutível necessidade de uma ordem política enquanto tal negar em especial que as relações de poder sejam condição de funcionamento de qualquer cidade moderna é sem dúvida a mais generosa das tentações mas também uma das mais perigosas Tentação compreensível pois temos certamente todas as desculpas para assimilar poder a extorsão Nasce daí a idéia de extirpar de vez por todas o poder político Idéia radical que foi revigorada nos dias de hoje o espetáculo dos totalitarismos tem de tudo para fazernos inimigos de qualquer poder isto é libertários No século XIX esta idéia se impunha por uma razão diferente a preponderância evidenciada do econômico inclinava os espíritos a considerar a instância do poder político como arcaica e supérflua Contudo é fato que uma doutrina antiestatal gerou um estatismo reforçado Tratarseá apenas de um desvio com relação ao espírito desta doutrina Consolaria crêlo Mas outra hipótese é possível a saber que a negação precipitada da necessidade do poder político levou Marx a identificálo com o controle sobre os meios de produção Tese sedutora dela decorre que a 42 subversão das relações de produção deverá bastar a médio prazo para varrer a figura de dominação que só servia para manter um regime bem determinado de exploração e açambarcamento Mas podese identificar sem mais o controle sobre os meios de produção com o poder político Esta é a questão Determinase adequada e exaustivamente a natureza do Estado burguês quando este é reduzido a mero servidor dos interesses capitalistas supondose aliás que estes últimos sejam sempre mais ou menos convergentes É inegável que em certos países especialmente nos Estados Unidos ocorre uma osmose entre o pessoal político e os capitalistas ou os dirigentes das grandes empresas É verdade que um destes últimos Forrestal passou à posteridade proclamando nos anos 50 que O que é bom para a General Motors é bom para os Estados Unidos Contudo o entrelaçamento dos interesses econômicos e do poder nos regimes burgueses ainda não permite afirmar como dogma que o poder político seja apenas a sombra dos interesses dos proprietários Num livro publicado em 1960 e que já constitui um clássico Classes e Conflitos de Classes nas Sociedades Industriais o sociólogo alemão Ralf Dahrendorf empenhavase em mostrar que não existe nenhuma lei universal vinculando poder econômico e poder político O proverbial poder do dinheiro não nos autoriza a confundir a função de produção e aquisição dos bens com a que consiste em determinar a conduta dos homens Por considerável que possa ser a interferência de propriedade e poder será apressado identificálos de maneira absoluta Sem dúvida escreve Dahrendorf a posse da autoridade vem acompanhada o mais das vezes dentro de certos limites e salvo algumas exceções notáveis de uma renda elevada e um alto prestígio enquanto inversamente a não participação na autoridade conjugase com um prestígio e renda relativamente baixos trad franc p 141 Será esta uma razão para identificarmos sem mais a relação entre governantes e governados com uma dominação de classe O fato de que nos regimes burgueses os capitalistas tenham um peso nas decisões do poder e muitas vezes participem dele diretamente ou por intermédio de homens de confiança não significa que o poder seja um mecanismo montado exclusivamente para as necessidades da sua dominação Importa distinguir em si elites capitalistas e elites governamentais embora repetimos esta distinção pareça muito artificial em certos países e certas épocas As elites capitalistas ou gerenciais podem ser grupos extremamente poderosos na sociedade podem até mesmo exercer um controle parcial sobre governos e assembléias tudo isto apenas salienta a importância das elites governamentais Todas as decisões são tomadas ora por elas ora por seu intermédio ibidem p305 Não faltam pesquisas empíricas para sugerirnos pelo menos a verossimilhança dessa tese Mas sem dúvida elas nunca convencerão aqueles que por princípio entendem cifrar economicamente toda realidade social e política Para eles renunciar à codificação econômica do poder seria o mesmo que rumar pouco a pouco de recuo em recuo até a derrocada Com efeito seria preciso abandonar a pretensão de definir as classes sociais segundo sua relação com os meios de produção depois desistir de sustentar que a existência das classes esteja ligada à da propriedade privada renunciar portanto a vêlas como agrupamentos meramente econômicos e assim sejamos coerentes reconhecer com Schumpeter que o conceito de classe não tem nenhuma ligação com a propriedade privada que na verdade o socialismo nada tem a ver com a existência ou inexistência de classes sociais e que depois de instaurado poderia ocasionar lutas de novas classes Fui adiante do meu assunto Queria somente mostrar que o marxismo não poderia abandonar sua definição redutora do poder político sem aceitar que o seu edifício desabe Nem o Concílio Vaticano II renunciou à divindade de Cristo É verdade que convidando o leitor a questionar a validade da identificação que já se tornou popular do poder político com o poderio econômico parecemos orientarnos para uma interpretação lenitiva do poder político tal como ele existe Criticando a concepção clássica do marxismo abandonamos a idéia de um poder político que seria essencialmente ilegítimo Parecemos retomar o canto das sereias ou o latido dos cães de guarda como quiserem E verdade o poder é coercitivo mas olhemno melhor não é este o preço a pagar por sua utilidade Pela unificação da comunidade que ele garante de forma permanente Por nossa segurança mínima que ele mantém É mais ou menos o que dizia Hegel aos seus ouvintes num belíssimo apêndice a um parágrafo da Filosofia do Direito vocês que tomam O Estado por um instrumento de opressão e não param de deplorar em nome da liberdade do pio indivíduo os crimes cometidos pelo poder sequer tomam consciência de que é ele o elemento fora do qual vocês não poderiam viver nem sequer percebem que à noite podem passear nas ruas com toda a tranqüilidade duvido que os mais ortodoxos hegelianos do Rio ou de São Paulo retomassem hoje este último argumento Em suma ao recusarmos a concepção marxista do poder não estaremos voltando a ser bem comportados hegelianos Ou ainda fiéis de Talcott Parsons e de sua escola Já vou avisando que não é nada disso e é por isso que gostaria de evocar algumas das teses de Parsons Nada permite compreender melhor a filosofia política que sustenta a obra de Parsons do que a polêmica que manteve com Wright Mills depois que este publicou a Elite do Poder Mills segundo ele não prestou atenção à função do poder isto é obter dos membros da coletividade o cumprimento de obrigações legítimas em nome de fins coletivos Não viu que o poder político moderno se fundava cada vez mais explicitamente no consensus omnium na confiança de todos mais que na força O poder normalmente pelo menos não é um instrumento manipulado por elites guiadas por seus interesses mas uma função de que se desincumbem profissionais apoiados pôr seus mandatários Foi portanto por compartilhar a visão conflituosa de Max Weber que Wright Mills acreditouse capaz de definir o poder como a possibilidade conferida a um grupo os detentores do poder para conseguir o que deseja impedindo outro grupo os excluídos do poder de obter o que deseja Segundo Parsons esta definição toma por essencial o que é apenas secundário Em outras palavras Parsons tende a dissolver o poder em relação de fato entre os que mandam e os que executam na autoridade entendida como a capacidade que certos indivíduos possuem por seu papel ou função de fixar obrigações ou exigir seu cumprimento a autoridade do recebedor ou de qualquer funcionário a quem chamamos autoridade O poder no sentido forte seria apenas o recurso último que intervém quando a autoridade é desacatada Já formulamos algumas reservas quanto à antropologia otimista pressuposta por essa tese Não é nada evidente que os homens sejam espontaneamente levados a considerar o poder como o exercício de uma função à qual é razoável que obedeçam Nem que eles se submetam a ele acima de tudo por saberem que o seu interesse profundo é colaborarem para alcançar objetivos impostos pelos fins coletivos De resto como observa Pierre Birnbaum em sua análise do pensamento de Parsons La Fin du Politique acontece que o bem comum em prol do qual o poder trabalha depende como confessa o próprio Parsons do sistema de valores instituídos na sociedade quer dizer que ele é definido exclusivamente segundo os valores que legitimam o funcionamento atual do capitalismo Assim por que estranhar se muitos não reconhecem como seu este bem comum Mesmo nos países democráticos desenvolvidos com exceção dos Estados Unidos e da Alemanha nunca temos mais que sociedades consensuais muito frágeis É possível na verdade considerar o consenso como a norma de funcionamento de uma comunidade política E encarar como patológicas as sociedades cujo funcionamento se vê entravado pelas tensões sociais e ideológicas São estas as questões que Dahrendorl dirige a Parsons e após exame parecelhe difícil conceder a este último que uma sociedade seja essencialmente uma estrutura estável e permanente de elementos bem integrados e fundada no consenso dos seus membros quanto aos valores Assim como a melhor constituição cuja fórmula os pensadores gregos do século IV aC procuravam encontrar também a sociedade integrada regida por um poder mínimo parece constituir na melhor das hipóteses apenas uma Idéia reguladora Quando Dahrendorl opõe este modelo ao modelo coercitivo O conflito social é onipresente toda sociedade está fundada na coerção de uns membros seus sobre outros bem parece que esta segunda percepção do social seja um instrumento de análise mais fecundo Embora o modelo marxista negue a natureza original do poder político vemos que se afasta menos dos dados observáveis que o modelo integracionista pelo menos reconhece que o papel coercitivo do Estado não é absolutamente secundário e que o conflito social existe de direito enquanto durar a propriedade privada dos meios de produção Deixemos de lado esta última precisão encorajadora mas muito contestável Resta que desta maneira o poder político não se encontra dissolvido num reino da Lei num funcionamento racional em si e normalmente não coercitivo que ele não é mais percebido como o pacífico primeiro motor de uma sociedade na qual o seremcomum dos grupos e das classes não cria em si nenhuma dificuldade O modelo coercitivo levanos de volta à inegável fronteira entre os detentores e os excluídos fronteira esta que é inseparável da relação de poder O erro está não resta dúvida em pretender identificar depressa demais os detentores Mas iria muito longe na denúncia de tal erro quem recusasse a equação poder coerção e procurasse diluir o poder numa autoridade livre e racionalmente consentida por todos ou quase todos O poder não é um caso extremo de exercício da autoridade ao contrário é a sua violência quando em surdina que torna possível uma aparência de autoridade cortês e benevolente E isso em qualquer sociedade que seja Mas se assim for o que pensar então do modelo de Hobbes Se concretamente o poder sempre supõe a dominação do grande número por uma elite que confunde inevitavelmente muitas vezes com toda a boafé os seus objetivos próprios com o que ela chama de bem comum será difícil apresentálo como a figura normal da comunidade política em geral Congregarse numa cidade seria fatalmente tornarse presa de dominadores egoístas inteligentes ou não porém sempre egoístas seja qual for o discurso que eles empreguem e pelo qual enganamse a si mesmos Somos tentados a recuar diante desta conclusão Somos tentados uma vez mais a imaginar a qualquer preço um além para a comunidade cimentada pelo poder Isto não será normal Até as crianças exigem que as histórias que lhes contamos terminem bem observava Hegel bom entendedor em matéria de happy ends Se o pensamento alemão posterior a Kant sentir saudades da Grécia e da bela cidade ética se Hegel se acreditou capaz de esperar transpor a Cidade harmoniosa para o solo da modernidade foi sem dúvida por ser difícil especialmente para os intelectuais aceitar o Estado como ele é e ter ao mesmo tempo coragem de encarar a potência que o movimenta existem coisas cuja obscenidade é insuportável Por isso é preciso tentar escapar a qualquer custo deste paradoxo que Kant enunciava O homem é um ser que precisa de um chefe Até os homens que acreditam dominar também precisam de tal chefe e eles são pouco capazes de se valerem desta sua chefia se finalmente é um homem quem deve ser o último chefe Reflexão nº 1398 Ora se este último chefe nunca pode deixar de ser um homem ou um grupo de homens é preciso reconhecer não só que não há comunidade sem soberania como também que não existe poder soberano sem uma elite que domine É preciso conceder a Vilfredo Pareto que a história das sociedades humanas é em grande parte a história da sucessão das aristocracias frase que não é nada reacionária a aristocracia pode perfeitamente ser uma burocracia socialista A questão assim será unicamente saber em cada caso determinado quais são os chefes menos piores que podemos esperar ou por que tipo de chefia devemos militar Assim seriam ditas as coisas por quem não se sentisse obrigado a ceder à tagarelíce ideológica Um poder burguês teria a coragem de dizer Sim nós favoreceremos os capitalistas sim seremos generosos com eles em matéria fiscal para não prejudicar os seus investimentos mas e daí Vocês lucrarão com isso Um poder socialista teria a coragem de dizer Não nós não viemos trazerlhes a liberdade de informação nem o pluralismo partidário não vocês praticamente não terão voz no capítulo mas e daí A sua segurança cotidiana estará garantida Não é este porém o discurso dos poderes nem sequer daqueles cujas elites possuem uma idéia mínima do que seja o 46 bem comum Até estes devem mentir devem apresentarse como defensores da liberdade ou como vanguarda do proletariado Suponhamos porém este minuto de verdade Suponhamos que os poderes larguem essa sua linguagem maligna e se apresentem de peito aberto como vontades de potência não disfarçadas por que se envergonhar Os homens talvez se tornassem espíritos livres Parariam de vituperar o Poder e se perguntariam quem é capaz num dado momento de exercêlo com menor detrimento de todos aqueles que por princípio são excluídos dele Não depositariam mais as suas esperanças totalmente no dia em que o poder não passasse de uma triste lembrança mas agiriam para que os dominadores do futuro estivessem mais perto do Soberano hobbesiano do que do tirano O poder não seria mais um escândalo ideológico porém única e francamente uma questão política Mas como esta rude franqueza poderá ser possível num mundo que foi e continua a ser educado pelo racionalismo grego e pelo cristianismo 47 INDICAÇÕES DE LEITURA Os clássicos da questão THOMAS HOBBES Leviatã LEO STRAUSS The Political Philosophy of Thomas Hobbes its Basis and Genesis JEANJACQUES ROUSSEAU O Contrato Social EMMANUEL KANT A Doutrinado Direito HEGEL Os Princípios da Filosofia do Direito Uma excelente formulação da problemática política clássica LEO STRAUSS Natural Right and History de University of Chicago Press JÜRGEN HABERMAS Teoria e Prática TOCQUEVILLE devese ler a excelente seleção apresentada na coleção Os Pensadores Uma boa iniciação acerca das relações e rupturas entre os pensamentos políticos antigo e moderno está no livro de HANNAH ARENDT Entre o Passado e o Futuro editora Perspectiva Sobre a essência da política JULIEN FREUND Questce que la Politique RAYMOND ARON Estudos Politiques HAROLD LASKI A Grammar of Politics 1934 MAX WEBER O Cientista e o Político JULIEN FREUND Essais sur la Théorie de la Science Plon Sobre o nascimento e a extensão do poder político BERTRAND DE JOUVENEL Du Pouvoir eles Débuts de Ittat Moderne Para um ponto de vista marxista ANTONIO GRAMSCI Notas sobre Maquiavel a Política e o Estado Moderno PERRY ANDERSON Lineages of the Absolutist State Sobre o liberalismo clássico LOCKE Segundo Tratado do Governo Civil PIERRE FRANÇOIS MOREAU Les Racines du Libéralisme Seuil Sobre as doutrinas norteamericanas a que nos referimos WRIGHT MILLS A Elite do Poder TALCOTT PARSONS The Social System Free Press 1951 On the concept of political power in Politics and Social Structure 1969 PIERRE BIRNBAUM La Fin du Politique Seuil RALF DAHRENDORF Class and Class Conflict in Industrial Society MICHEL FOUCAULT Vigiar e Punir Vontade de Saber 1º vol História da Sexualidade Graal 1977 SOBRE O AUTOR Gerárd Lebrun nasceu em Paris em 1930 Professor do Departamento de Filosofia da USP desde sua chegada ao Brasil na década de 50 leciona também no programa de pósgraduação em Lógica e Filosofia da Ciência da UNICAMP Publicou Kant et lafin de la metaphisyque Armand Colin 1970 La Patience du concept Gallimard 1972 Passeios ao léu Brasiliense 1983 Pascal Brasiliense Coleção Encanto Radical 1983 O avesso da dialética Companhia da Letras 1988
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GERARD LEBRUN O QUE É O PODER 1981 Brasiliense ÍNDICE INTRODUÇÃO 3 APRESENTAÇÃO DO MONSTRO 4 O LEVIATÃ CONTRA A CIDADE GREGA 10 O LEVIATÃ E O ESTADO BURGUÊS 20 COMÉDIA LIBERAL 27 ÚLTIMO CHEFE 35 INDICAÇÕES DE LEITURA 44 INTRODUÇÃO As páginas que seguem não pretendem de modo algum constituir uma apresentação exaustiva do conceito de poder na filosofia política Se fosse este o caso eu deveria limitarme a expor um histórico da questão detendome por exemplo nos pensadores medievais cuja importância foi considerável Mas nas dimensões deste livro um tal histórico embora sucinto seria forçosamente superficial Não sou dos que pensam que o estudante de Filosofia deva percorrer em um ano as doutrinas dos PréSocráticos a Heidegger Seria o mesmo que viajar de Boeing para apreciar as paisagens O meu desígnio é mais modesto Partindo de uma palavra de significação tão complexa tenho apenas a intenção de convidar o leitor a desfazerse de alguns preconceitos e abandonar algumas evidências Não a intenção de fazêlo amar o Poder ou de sussurrarlhe que este Poder não é tão ruim quanto se diz mas de fazêlo visitar alguns dos cruzamentos e esquinas em que a palavra Poder se revestiu do sentido a um só tempo vago e maléfico que possui em nossa fala cotidiana e isso graças a deslocamentos conceituais por vezes surpreendentes As palavras abstratas disse Nietzsche são como alforjes nos quais as épocas e as filosofias teriam acumulado as coisas mais heteróclitas E assim a palavra acaba tornandose um tal entrecruzamento de marcas que embaralha todas as pistas A função do genealogista é reencontrar estas pistas E aqui apenas tento despertar a curiosidade genealógica Vale dizer que está ausente destas páginas à preocupação de agradar assim como a de desagradar a qualquer ideologia que seja Às vezes é preciso ferir alguma de passagem às vezes é necessário tomar a liberdade de desmentir outra mas sem intenção polêmica Apenas para diminuir confusões ou equívocos que era nosso propósito dissipar ou afastar Então você só pretende falarnos de uma palavra dirá talvez o futuro leitor já decepcionado Mas o que nos interessa são as coisas é delas que queremos ser informados Mas responderia eu não acreditem que as coisas estejam diante dos seus olhos Quando se trata de coisas abstratas quando se trata deste Poder no qual vocês tomam a liberdade de reunir realidades tão diferentes vocês têm mesmo certeza de estarem lidando com conteúdos identificáveis e localizados Com coisas Estão seguros de não estarem tratando simplesmente com depósitos semânticos É querendo chegar depressa demais às coisas é desprezando as palavras sem inventariar o seu sentido que corremos o risco de cometer alguns enganos desagradáveis Como neste caso acreditar que o Poder seja algo muito simples e por isso seja lícito esperar liquídálo algum dia Desta maneira nasceu no século XIX a crença de que o poder conhecia a sua decadência e de que começara a sua agonia Se estas páginas são dogmáticas é apenas porque denunciam esse mito Compreendo que uns queiram conquistar o poder ou combatêlo ou que se resignem a ele ou o temam ou o detestem O que não compreendo é que se possa subestimar o poder APRESENTAÇÃO DO MONSTRO Cada uma das duas SuperPotências dispõe de um arsenal nuclear capaz de exterminar todos os seres vivos tem assim uma potência de destruição total O Fundo Monetário Internacional quando vem em ajuda de um país em dificuldades está em condições de ditarlhe uma política econômica determinada tem portanto a potência de limitar a soberania deste país A potência é a capacidade de efetuar um desempenho determinado ainda que o ator nunca passe ao ato Desta maneira tornamos a encontrar a velha distinção estabelecida por Aristóteles entre a potência dunamis e o ato ou melhor o efetivo ergon Ou mais exatamente reencontramos um dos sentidos desta distinção Pois constata Aristóteles não é a mesma coisa atribuirse a uma criança ou a um arquiteto a potência de construir uma casa Num caso isto quer dizer que quando a criança tornarse adulto poderá ser um arquiteto quem sabe isto não é impossível No outro caso quer dizer que este arquiteto atualmente sem trabalho construirá uma casa desde que o contratem é seu este poder Por um lado potência designa uma virtualidade por outro uma capacidade determinada que está em condições de exercerse a qualquer momento Era este evidentemente o sentido da palavra potência nos dois exemplos que empreguei acima as SuperPotências e o FMI dispõem de recursos que podem aplicar a qualquer momento No domínio das relações políticas esta potência não de tornarse mas de exercerse é a única que pode interessarnos Com efeito o que é a política A atividade social que se propõe a garantir pela força fundada geralmente no direito a segurança externa e a concórdia interna de uma unidade política particular Julien Freund Questce que la Politique p177 Não é dogmaticamente que eu proponho esta definição outras são possíveis mas simplesmente para ressaltar que sem o uso da noção de força a definição seria visivelmente defeituosa Se numa democracia um partido tem peso político é porque tem força para mobilizar um certo número de eleitores Se um sindicato tem peso político é porque tem força para deflagrar uma greve Assim força não significa necessariamente a posse de meios violentos de coerção mas de meios que me permitam influir no comportamento de outra pessoa A força não é sempre ou melhor é rarissimamente um revólver apontado para alguém pode ser o charme de um ser amado quando me extorque alguma decisão uma relação amorosa é antes de mais nada uma relação de forças cf as Ligações Perigosas de Laclos Em suma a força é a canalização da potência é a sua determinação E é graças a ela que se pode definir a potência na ordem das relações sociais ou mais especificamente políticas Potência Macht significa toda oportunidade de impor a sua própria vontade no interior de uma relação social até mesmo contra resistências pouco importando em que repouse tal oportunidade Não conheço nenhuma definição do poder enquanto fator sóciopolítico que seja superior a esta fórmula de Max Weber Mas então por que falar em poder e não em potência E que poder inclui um elemento suplementar que está ausente de potência Existe poder quando a potência determinada por uma certa força se explicita de uma maneira muito precisa Não sob o modo da ameaça da chantagem etc mas sob o modo da ordem dirigida a alguém que presumese deve cumprila E o que Max Weber chama de Herrschaft e podemos acompanhar Raymond Aron traduzindo este termo como dominação pois assim conservamos a raiz alemã Herr Herr dominus senhor A dominação é segundo Max Weber a probabilidade de que uma ordem com um determinado conteúdo específico seja seguida por um dado grupo de pessoas O que é a dominação Seria um título algo estranho Melhor será por uma questão de comodidade utilizar este conceito weberiano sob o nome de poder desde que o leitor tenha sempre em mente a definição de Weber a que nos referimos Raymond Aron observa que o grande sociólogo Talcott Parsons traduz o termo weberiano Herrschaft por imperative control o que é bastante contestável A noção de imperative control obscurece o confronto entre quem comanda e quem obedece num sistema de ordem imposto Ora as relações de domínio ou de poder institucionalizado não constituem a totalidade do sistema de comportamento socialmente imposto Os costumes leis preconceitos crenças paixões coletivas contribuem também para determinar a ordem social E muito significativa tal edulcoração do sentido de Herrschaft Parsons recusase a considerar o poder como sendo essencialmente uma ação imposta por um ator a um outro ator Segundo ele o political power é a aplicação de uma capacidade generalizada que consiste em obter que os membros da coletividade cumpram obrigações legitimadas em nome de fins coletivos e que eventualmente permite forçar o recalcitrante através de sanções negativas Intencionalmente esta definição minimiza o papel da coerção e elimina o caráter dissýmétrico não igualitário hierárquico em suma do poder E que Parsons considera errônea toda compreensão do poder que o reduza a uma situação marcada pela desigualdade e portanto pelo menos potencialmente conflituosa Segundo ele ter o poder não é basicamente estar em condições de impor a própria vontade contra qualquer resistência E antes dispor de um capital de confiança tal que o grupo delegue aos detentores do poder a realização dos fins coletivos Em suma é dispor de uma autoridade no sentido em que um escritor de renome um pensador ilustre um velho sábio são autoridades no interior de um grupo dado sem que esta autoridade implique uma idéia de coerção Na política a coerção só seria utilizada em casoslimite e a possibilidade de empregála não serviria para definir o imperative control Parsons aqui constitui apenas um exemplo entre tantos outros Na filosofia política de Hegel também encontraremos esta mesma vontade de dissolver o poder no sentido weberiano Hegel nunca deixa de insistir na diferença que existe entre o poder de Estado por um lado e por outro a potência pura e simples blosze Macht e o puro arbítrio leere Willkür do despotismo O déspota é aquele cuja vontade particular e caprichosa vale como lei enquanto o poder de Estado persegue fins que são os da coletividade Apenas excepcionalmente portanto poderia exercerse mediante coerção Assim podese dizer que a crítica de Marx a Hegel anuncia o espírito da crítica dirigida a Parsons pelos weberianos O que devemos pensar desta dissolução do poder na autoridade À primeira vista pode parecer que Parsons descreve adequadamente o exercício do poder nas democracias ocidentais O Presidente ou o PrimeiroMinistro a quem o poder é confiado pelo corpo eleitoral por um período 5 determinado tem o encargo de cuidar dos negócios da Nação e de zelar pela observância da lei E ninguém lhe contesta o direito de exercer tal função Sem dúvida a oposição pode criticar a escolha de seus objetivos e a maneira por que emprega a sua autoridade não questiona porém uma autoridade cujo princípio ela reconheceu Em outras palavras o direito de governar dentro de limites constitucionais que têm Helmut Schmidt Giscard ou Mrs Thatcher está fundado num consenso explícito da nação Marxistas e libertários dirão que este consenso resulta de uma mistificação de uma manipulação das massas etc Ainda que tenham razão não é disso que estamos tratando agora Observo apenas 1º que este poder explicitamente consensual é uma espécie muito determinada de poder que eu saiba ele não existe em todos os países 2º que este tipo de poder parece justificar a quase identificação estabelecida por Parsons entre poder e autoridade Mas podese perguntar se Parsons não confere demasiada importância ao processo democrático no caso de recrutamento dos que são encarregados de tomar decisões Sem dúvida não é nada indiferente que os cidadãos possam ou não escolher os seus governantes sobretudo numa época em que se fossem excluídos da ONU todos os países em que os governantes não são eleitos pelo povo ou não são seriamente eleitos esta honrada assembléia poderia verse quase vazia Mas façamos abstração do processo de recrutamento político pelo menos metodologicamente Quando um cidadão paga os seus impostos requer um alvará de construção cumpre o seu serviço militar etc em suma quando se submete a todas as obrigações que lhe são impostas por qualquer poder de Estado será muito diferente o seu comportamento conforme viva num regime democrático autoritário ou totalitário Não falo é óbvio das tiranias todos me concederão que havendo escolha é preferível fraudar o erário inglês brasileiro ou soviético do que o Tesouro de Idi Amin Dada Feita esta ressalva penso que o comportamento do contribuinte resignado e reclamador ao mesmo tempo deve ser quase idêntico em todas as latitudes Quando pago a minha parcela do imposto é certo que não o faço sob a pressão de um medo pânico mas estou ciente de que um esquecimento me acarretaria uma multa e um esquecimento prolongado produziria sérios aborrecimentos num prazo mais rápido do que se deixasse de pagar o aluguel ao meu locador mas em última análise da mesma ordem Em suma quando me submeto às leis e regulamentos editados pelo poder é sempre porque uma infração significaria a certeza de uma punição para todos em princípio Mas no caso não será um sofisma reduzir a submissão civil à aceitação da autoridade Não sei como Parsons ou os seus discípulos explicariam o que aconteceu em Nova Iorque durante o célebre corte de energia elétrica mas é fato que a certeza da impunidade mostra logo como é frágil o respeito pela autoridade Sem dúvida nunca se deve desconhecer este último fator como fazem os libertários vejamse as declarações dos novos filósofos franceses que apresentam todo Poder como um monstro abominável perante o qual os súditos temerosos e trêmulos sempre dobrariam o joelho Ora vamos a maior parte do tempo os homens vão vivendo de uma forma ou outra com o poder resignamse a ele reconhecemno Contudo será muito apressado concluirmos que a coerção não seja essencial para a obediência política No horizonte desta sempre está presente se não o temor 6 pelo menos a consciência da possível coação mesmo para aqueles e são inúmeros que nunca pensaram sequer em contestar a legitimidade do poder Se concordarem com esta tese vocês deverão aceitar uma segunda que muito logicamente é rejeitada por Talcott Parsons a saber que o poder é mercadoria rara que só podemos possuir às custas de outra pessoa Ou ainda que o poder que possuo é a contrapartida do fato de que alguém não o possui Tomemos o exemplo mais anódino um professor pode ser amigo de seus alunos deixálos chamaremno de você etc Ainda assim detém um poder de darlhes notas que os alunos não têm sobre ele Isto é o essencial E é por isso que só se pode compreender uma relação intersubjetiva em qualquer plano que seja profissional comercial sentimental se for possível responder à questão quem está em posição inferior Quem em posição superior Quem é o soldado Quem é o oficial Se X tem poder é preciso que em algum lugar haja um ou vários Y que sejam desprovidos de tal poder É o que a sociologia norteamericana chama de teoria do poder de soma zero o poder é uma soma fixa tal que o poder de A implica o não poder de B Esta tese ou este pressuposto quando a tese não é expressamente enunciada encontrase em autores tão diferentes ideologicamente como Marx Nietzsche Max Weber Raymond Aron Wright Mills A partir desta base é evidente que as posições podem divergir Uns sustentarão que o poderdominação não é um fenômeno necessariamente vinculado a toda organização política e que só caracteriza uma sociedade sob certas condições patológicas sociedade de classes Os outros e modestamente estas páginas inscrevemse nesta segunda linhagem pensam que nenhuma organização política pelo menos moderna poderia funcionar sem haver dominação e que o único problema político é então saber qual é o melhor modo de determinar e adequar esta última em função é claro dos valores e da escala de valores escolhidos Mas antes de chegarmos a esta bifurcação constatemos que ela só tem sentido se aceitarmos a teoria da soma zero Seria pena que o leitor aceitasse esta tese como óbvia É uma opção que Talcott Parsons não é o único a recusar Recentemente um livro de Michel Foucault A Vontade de Saber mostrou que ele também rejeitava e por razões inteiramente distintas das de Parsons a teoria da soma zero Por isso eu gostaria de resumir três dos seus argumentos 1 Por que reduzir a dominação à proibição à censura à repressão escancarada Por que só pensar no poder enquanto limitador dotado apenas do poder do não produzindo exclusivamente a forma negativa do interdito O poder é menos o controlador de forças que seu produtor e organizador Desde o fim do Século XVI o poder político é antes de mais nada a instância que constitui os súditos sujeitos ao dobrálos a suas pedagogias disciplinares ensino exército etc 2 Se esta verdade ainda passa desapercebida é porque no fundo a representação do poder continua sendo obcecada pela monarquia e pela representação jurídica que esta suscitou Daí a necessidade de decifrar os mecanismos do poder deixando de recorrerse à personagem do Príncipe O poder é instaurador de normas mais que de leis 3 Deixaremos então de representar o poder como uma instância estranha ao corpo social e de opor o poder ao indivíduo Afinal de contas ainda é muito tranquilizante interpretar o poder apenas como um puro limite imposto à liberdade Representação que além disto é muito grosseira Na 7 verdade encontramos as relações de poder funcionando em relações muito distintas na aparência nos processos econômicos nas relações de conhecimento no intercursos sexual De modo que no princípio das relações de poder não existe como matriz geral uma oposição binária e global entre dominantes e dominados Em suma o poder não é um ser alguma coisa que se adquire se toma ou se divide algo que se deixa escapar É o nome atribuído a um conjunto de relações que formigam por toda à parte na espessura do corpo social poder pedagógico pátrio poder poder do policial poder do contramestre poder do psicanalista poder do padre etc etc Por que nestas condições conferir tanta honra ao tradicional e arcaico poder de Estado constituído na época das monarquias absolutas européias Sem pretendermos em tão pouco espaço criticar Foucault podemos contudo perguntar se ao enfocar em seu microscópio os mil pequenos poderes que nos prendem sem o sabermos ele não está se precipitando em depreciar a matriz ordemobediência eu tenho poder portanto você não o tem Quando a questão é compreender como foi e continua sendo possível a resignação quase ilimitada dos homens perante os excessos do poder não basta invocar as disciplinas e as mil fórmulas de adestramento que como mostra Foucault são achados relativamente recentes da modernidade Sua origem e seu sucesso talvez se devam a um sentimento atávico dos deserdados de serem por natureza excluídos do poder estranhos a este talvez derivem da convicção de que oporse a ele seria loucura comparável a oporse aos fenômenos atmosféricos Ainda que o poder não seja uma coisa ele tornase uma pois é assim que a maioria dos homens o representa É preciso situar a tese de Foucault dentro dos seus devidos limites o homem condicionado adestrado pelos poderes é o privilegiado o europeu Não é o colonizado não é o proletário do Terceiro Mundo assim como não era o proletário europeu do Século XIX Estes o poder não pensa sequer em domesticar dominaos e muito de cima Voltamos assim à teoria da soma zero Que o poder político se tenha burocratizado tecnicizado sofisticado a ponto de tornar os súditos obedientes malgrado seu isto é muitas vezes verdade Mas não será este o resultado de uma longa evolução cujo ponto de origem seria o momento em que se tornou óbvio que comunidade política organização da dominação Pois nem sempre foi assim Houve sociedades que se arranjaram sem o Estado observava Engels sociedades que não tinham idéia alguma do Estado nem do poder de Estado E já David Hume notava no seu Tratado da Natureza Humana 1740 que não é absolutamente impossível que os homens mantenham a sociedade por algum tempo sem intervenção do governo Vejam as tribos americanas dizia ele elas nos mostram que os homens são capazes de viver em sociedade sem governo quando os bens e os prazeres da vida são pouco numerosos e de escasso valor O nascimento do poder devese aparentemente às necessidades da guerra Os acampamentos são os verdadeiros pais das cidades E a necessidade do poder impõese quando nas sociedades ampliadas e requintadas as regras de justiça já não têm força suficiente em si próprias para que os homens as respeitem se não houver coerção e quando existem grupos sociais com forte interesse em que a justiça seja ministrada de maneira segura 8 A partir daí diz Hume os homens se acostumam muito rapidamente à obediência cívica de modo que não se deve dizer como fazem os teóricos do Contrato que os homens estejam presos à obediência apenas por sua promessa Isto pode haver acontecido em eras remotas Mas rapidamente o dever de obediência enraizouse por si próprio O poder não deve sua existência às nossas promessas longe disso é ele reconhecido há tanto tempo como uma fatalidade que nos força a cumprilas Assim há muito tempo que ser cidadão ser obediente Como compreender esta equação É ela em todo caso que precede e possibilita o adestramento descrito por Foucault assim como por Hegel que tem muitas análises preciosas a este respeito Ora repetimos esta equação não é um dado da natureza humana Basta o exemplo da Pólis grega para atestálo Nesta comunidade de iguais que visam a uma vida que é potencialmente a melhor Aristóteles a vida pública não é caracterizada pela dominação É na esfera privada relativa à sua família aos seus escravos que o homem se porta como um monarca ou como um despotés senhor de escravos o sentido não é pejorativo em suma como um dominador Mas esta relação não política nada tem a ver com a relação que o homem de Atenas mantém com os homens livres seus concidadãos durante o tempo tão restrito em que tem o encargo de uma magistratura A este respeito só podemos recomendar as análises de Hannah Arendt A distinção entre governantes e governados pertence a uma esfera que precede o domínio político e o que distingue este da esfera econômica do lar é o fato de a cidade pólis basearse no princípio de igualdade não conhecendo diferenciação entre governantes e governados Entre o Passado e o Futuro p 158 Nada é mais apaixonante do que este artigo de H Arendt em que ela mostra como os gregos deixaram aos romanos a incumbência de elaborar o conceito de poder O que os gregos chamavam de arché politiké a um tempo o principio e a direção da Pólis para empregarmos termos provenientes do latim e portanto forçosamente deformadores não é o nosso conceito de poder político Querem um indício Vocês o encontrarão na Política de Aristóteles Livro III cap 6 A prova diz o filósofo de que a arché normalmente se exerce no interesse de todos é que os cidadãos pretendem participar da direção e assumir os encargos cívicos por rodízio É verdade acrescenta ele que as coisas estão mudando o que é um sintoma patológico devido às vantagens materiais que se tira dos bens do Estado ou que se alcança pelo exercícío da archein os homens desejam permanecer continuamente em funções É como se o poder conservasse em permanente boa saúde os que o detêm Brincadeira que não deve ter muita graça para os Presidentes que buscam a reeleição após um mandato de quatro ou até mesmo de sete anos Mas brincadeira que indica o quanto está longe de Aristóteles a idéia de uma dominação suprema que seria a condição de funcionamento da Pólis a idéia de um poder constitutivo da Cidade Esta idéia é a marca de nascência da nossa modernidade política E foi um inglês do Século XVII que a expôs genialmente Thomas Hobbes O LEVIATÃ CONTRA A CIDADE GREGA A primeira marca do príncipe soberano é o poder de dar lei a todos em geral e a cada um em particular Mas isso não basta e é necessário acrescentar sem o consentimento de maior nem igual nem menor que ele O soberano de uma República seja ele uma assembléia ou um homem não está absolutamente sujeito às leis civis Pois tendo o poder de fazer ou desfazer as leis pode quando lhe apraz livrarse desta sujeição revogando as leis que o incomodam e fazendo novas A primeira destas frases é do francês Jean Bodin Os Seis Livros da República 1576 A segunda é de Hobbes no seu Leviatã 1651 Ambos conferem ao Príncipe legítimo uma potência potestas tal que o exercício do seu poder achase como se vê liberto de toda norma ou regra E para medirmos a inovação assim introduzida basta recorrermos à frase de um teólogo do Século XII A diferença entre o príncipe e o tirano é que o príncipe obedece à Lei e governa o seu povo em conformidade com o Direito Ou ainda ao que diz Santo Tomás A vontade humana pode em virtude de uma convenção comum fazer que seja justa uma coisa dentre aquelas que não implicam nenhuma repugnância à justiça natural A teoria da Soberania libera o poder do Príncipe de tais limitações Diz respeito a um poder de Estado que não existe mais ao lado de outros poderes porém infinitamente acima deles Assim entre 1550 e 1650 produzse na Europa uma alteração considerável na situação da autoridade política frente ao corpo social a monarquia tornase absoluta e legisladora E porque adquire este vigor a autoridade tornase capaz de atribuir de cancelar de instituir de redistribuir os direitos Bertrand de Jouvenel No Século XVIII esta evolução encontrase acabada e das instituições medievais que garantiam a pluralidade dos poderes só resta o nome como observa Tocqueville A realeza nada mais tem em comum com a realeza da Idade Média e assume outras prerrogativas ocupa outro lugar afeiçoase a outro espírito inspira outros sentimentos A administração do Estado se expande em todas as partes por sobre os restos dos poderes locais A hierarquia dos funcionários substitui cada vez mais o governo dos nobres O Antigo Regime e a Revolução p 334 Sob que pressão se produziu esta mutação do poder O que ocorreu Certas obras históricas como uma recente do inglês Perry Anderson Lineages of the Absolutist State mostramnos antes de mais nada como tal questão é complexa Que tenha sido essencialmente econômica a motivação desta transformação política é o que poucos historiadores negam Mas quer isso dizer que o absolutismo limitouse a responder às necessidades do capital mercantil e manufatureiro Não terá sido antes uma readequação do aparelho feudal em função de condições novas O que parece inegável é que desde o fim da Idade Média o desenvolvimento da tecnologia comercial e das transações era pouco compatível com o fracionamento dos poderes locais É no fim do Século XIV que nasce um complexo institucional dotado de poder próprio os primeiros exércitos profissionais aparecem no final do Século XIII encarregado de garantir a segurança e a justiça e que se arroga o monopólio da determinação dos direitos e deveres de cada um A partir do Século XVI o paralelismo entre os dois tipos de mutação política ou econômica tornase nítido por um lado a centralização e simultaneamente a burocratização do poder transformando o aparelho estatal do governo dos príncipes por outro lado a expansão da circulação capitalista das mercadorias e uma progressiva perturbação do modo de produção baseado na família Jürgen Habermas Teoria e Prática A Doutrina Clássica da Política Haverá entre estas duas séries uma relação de causalidade ou simplesmente de concomitância A este respeito podemos apenas referirnos às análises prudentíssimas de Perry Anderson Embora empregue conceitos marxistas Anderson não nos permite afirmar sem mais que o absolutismo é o produto da ascensão do capitalismo Melhor será dizermos que esta ascensão do capitalismo foi geralmente veremos que devem fazerse algumas reservas favorecida pela consolidação do absolutismo Em todo caso o que ora nos interessa é a originalidade da nova forma política É a natureza desta variedade de poder político que é nosso objeto e a natureza de um poder não pode ser deduzida das tarefas sociais que ele é levado a cumprir Que o poder soberano não tenha caído do céu certo Mas deixaremos ao historiador o mister de iluminar as estratégias históricas que resultaram nele Os antigos escreve Jean Bodin chamavam de República uma sociedade de homens reunidos para viverem bem e felizes Mas será mesmo este o objetivo primeiro de uma República As Repúblicas só podem cuidar das virtudes morais quando estão amparadas quanto ao que lhes é necessário o econômico passa antes do ético Esta é a primeira diferença entre a concepção moderna e a antiga da Cidade A segunda aparece na definição que Bodin faz da República reto governo de várias famílias e do que lhes é comum havendo um poder soberano O que supõe que se reconheça às famílias às atividades privadas dos homens uma existência própria e mesmo de direito prévia à da Cidade Mas é preciso acrescenta Bodin que haja alguma coisa comum e pública como o domínio público o erário público as ruas as muralhas as leis os costumes a justiça os alugueres as penas pois não existe República se não há nada público Contudo este espaço público é habitado por indivíduos ou grupos famílias que em sua dispersão nunca constituiriam sozinhos uma comunidade entendida como um corpo único Os indivíduos enquanto tais formam apenas uma multidão quer dizer um número de homens distinto pelo lugar das suas residências como o povo da Inglaterra ou o povo da França Hobbes Ora nesse estágio ideal de mera congregação geograficamente determinada o povo não é um corpo político Ainda precisa de uma instância que coordene e unifique os indivíduos É aqui que intervém a noção de potência A República sem potência soberana que una todos os membros e partes e todas as famílias e colégios num corpo já não é mais República Bodin Estamos então em condições de compreender o que é este grande Leviatã que é chamado de República ou Estado Hobbes O que é ele Um homem artificial um genial e gigantesco autômato criado para defesa e proteção dos homens naturais O importante é que esta criação coincide plenamente com a constituição da multidão em um corpo político É como se cada homem dissesse a cada homem Cedo e transfiro meu direito de governarme a mim mesmo a este homem ou a esta assembléia de homens com a condição de transferires a ele teu direito autorizando de maneira semelhante todas as suas ações Feito isto à multidão assim unida numa só pessoa se chama República em latim civitas É esta a geração daquele grande Leviatã Leviatã cap 17 Para que haja corpo político é preciso que as vontades de todos sejam depostas numa única vontade e que exista um depositário da personalidade comum O depositário desta personalidade é chamado soberano e dele se diz que possui poder soberano Todos os restantes são súditos Ibidem Este soberano será um único homem ou uma assembléia cuja vontade é tida e considerada como vontade de cada homem em particular Assim não há comunidade sem unificação não há unificação sem soberania mas também não há soberania sem poder absoluto que não está submetido a nenhum outro e perpétuo sem solução de continuidade Compreendese desta maneira que o portador da soberania seja absolvido do poder das leis isento de seguir as dos seus predecessores e também não esteja preso às leis e ordenações que edite Não haverá pois razão tirada quer do direito natural quer da objeção de consciência quer do dogma religioso etc que autorize um cidadão a oporse ao que seu príncipe ordene exceto para salvar a própria vida dirá Hobbes Por questão de princípio é impossível haver recurso contra um príncipe absolutamente soberano e até mesmo seria absurdo contestar as suas decisões Escutemos mais uma vez Bodin Tal é nosso prazer significa que as leis do príncipe soberano ainda que sejam fundadas em boas razões contudo dependem apenas da sua pura vontade Sem dúvida a lei visa à justiça mas no regime em que há um soberano eu obedeço à lei enquanto ela é a vontade do Príncipe isto é não esqueçamos quer de um homem quer de uma assembléia quer mesmo do povo se vivermos numa democracia não vamos imaginar que esteja em questão apenas a monarquia Assim sendo à primeira vista a teoria da soberania pode passar por mera apologia do despotismo E exatamente esta a censura clássica que foi feita a Hobbes Mas é preciso notar que esta crítica de bom senso negligencia pelo menos duas coisas 1 Que o Soberano tem a tarefa de zelar pela vida boa e cômoda dos súditos e pela sua segurança Se os súditos depuseram em suas mãos o direito de natureza que possuíam foi para escaparem aos perigos da anarquia a guerra de todos contra todos que segundo Hobbes enfrentavam no estado de natureza e o comportamento do Soberano não pode frustrar ou pelo menos frustrar completamente esta expectativa Sem dúvida o poder de que ele dispõe para desincumbirse de sua tarefa protetora é um poder sem freios porque provém da anulação do direito que cada um tinha a defender a sua vida a qualquer preço e o exercício de tal direito pode conduzir o soberano à tirania Mas uma pura tirania poderá subsistir muito tempo Será possível com efeito governar por muito tempo zombando do mínimo de comodidades que deve ser garantido aos súditos Neste sentido a mensagem de Hobbes não é absolutamente conservadora 2 Que se a Soberania pode limitar à sua discrição as minhas liberdades nem por isso ela será o mero exercício de uma força repressiva Não esqueçamos que sem esta força cujos efeitos tantas vezes podem serme desagradáveis não haveria unificação nem povo rigorosamente falando O Soberano é antes de mais nada a única antidesordem eficaz possível é ele ou o caos parafraseando de Gaulle Assim Hobbes antes de Hegel tenta tornarnos inteligível o fato da cumplicidade inevitável entre o súdito e o soberano entre o dominadoprotegido e o dominadorprotetor Não é a troco de nada que os homens aceitam ser confiados ao soberano é em troca da sua segurança e também a partir de Rousseau contra a certeza de que graças a ele terão condições de portarse como sujeitos racionais Tudo isso será mistificação Será mesmo E fato que muita coisa é necessária para que os homens se revoltem obscuramente todos sabem que atentar contra a soberania é colocarse forçosamente numa situação de perigo E isso é tão sabido e notório que nada é mais premente para uma revolução do que instaurar uma nova soberania muitas vezes ainda menos amena do que a recémdestruída Como foi tornado possível este estranho conceito do poder arbítrio enquanto cimento do corpo político À custa de que deslocamentos conceituais É o que pretendemos examinar partindo desta definição hobbesiana da Cidade uma multidão de homens unidos numa pessoa única por um poder comum para sua paz sua defesa e seu proveito comuns RECUSA DA ANTIGA FINALIDADE DO POLÍTICO Segurança e possibilidade de gozar ao máximo em paz de todas as comodidades da vida são estes os dois objetivos que os homens perseguem quando abandonam o estado de natureza e se tornam cidadãos A respeito Rousseau não dirá coisa diferente de Hobbes Qual é o fim da associação política É a conservação e prosperidade dos seus membros Contrato Social livro III cap 9 Ora tais fórmulas destroem completamente a concepção antiga da Pólis Não é verdade dizia Aristóteles que as associações políticas sejam motivadas exclusivamente pela satisfação de interesses materiais mesmo quando não precisam da ajuda dos outros os homens continuam desejando viver em sociedade Política livro III cap 6 A primeira causa de associação dos homens é menos a sua fraqueza do que um instinto de sociabilidade inato em todos Cícero De República Uma cidade digna de seu nome só poderá existir portanto tendo em vista cumprir o bem e deveremos negar o nome de cidade a toda associação formada com o fim de uma aliança defensiva ou ainda para favorecer as trocas ou impedir as injustiças recíprocas Os homens que formam a cidade não concluem uma mera aliança defensiva contra toda injustiça Aristóteles Política livro III Hobbes leitor dos gregos fez questão de ser o antiAristóteles 13 Como compreender uma tal reviravolta É que há muito tempo já não satisfaz a simples oposição vida privada individualdomínio público entendido como participação na Cidade Fora da sua esfera e da sua família o homem não é mais quem participa da Cidade pertence à sociedade societas isto é ao conjunto das relações jurídicas e econômicas que os indivíduos ou os grupos estabelecem entre si Em outras palavras ele despolitizouse É significativo que Santo Tomás não repita Aristóteles O homem é um animal político mas diga O homem é um animal social Ora a societas não é a cidade é um conjunto de atividades que não têm por objetivo o bem comum e que apenas precisam exercerse no quadro da paz É neste ponto remoto que principia a nossa modernidade quando a comunidade não mais é entendida como congregação de homens que são diretamente encarregados de zelar pelo funcionamento do Todo mas como uma congregação de homens societas a quem seus próprios afazeres ocupam demais para que possam dedicarse aos interesses do Todo e que por isso devem ser protegidos pela instância política em vez de participarem dela O DIREITO É O ÚTIL Hobbes recusase a conceber o direito como distribuição ou repartição de uma ordem Para ele não existem normas preestabelecidas tais que sempre devam ser levadas em conta por quem ministra a justiça E portanto não tem cabimento opor os que julgam objetivamente sem interesse àqueles que julgam em função da sua utilidade O que é o direito Para compreendêlo é preciso retornar ao estado de natureza Este desejo natural de conservarse isto é o que se chama direito ou em latim jus é uma inocente liberdade de empregar o seu poder e a sua força natural No estado de natureza tenho direito a tudo o que quero eu posso fisicamente e nos limites da minha força física apoderarme de tudo o que é bom para mim segundo o meu juízo O direito jus é medido pelo útil utile Nestas condições suponhamos que não exista instância soberana que não haja poder que eu tema Se assim fosse como poderiam os homens guiados apenas pelo sentimento do que lhes é útil aceitar que houvesse arbitragens Vou confiar a um árbitro imparcial o mister de decidir o diferendo que me opõe ao meu próximo O árbitro pronunciase em favor dele Por que deveria eu acatar essa sentença O árbitro dirá que somente considerou o que é Justo em si Mas o Justo em si nunca é mais do que a opinião que ele tem acerca do justo o justo é o que assim parece a cada um de nós E sendo estas as minhas disposições por que respeitaria eu a decisão do árbitro se a tanto não me visse forçado O utilitarismo de Hobbes levao forçosamente a admitir como necessário um poder capaz de decidir e legislar que tenha o seu princípio apenas em si próprio e que não se refira a nenhuma legislação divina ou humana externa a ele A única razão que pode me convencer a obedecer à lei é que ela é a lei é saber que serei castigado se a infringir Se devêssemos obedecer às leis por serem elas boas e se cada um fosse livre para decidir a seu belprazer acerca do valor da lei a obedência não seria mais garantida e por isso já não haveria mais leis 14 Antes da lei não havia injustiça uma ação justa é a que não é praticada contra a lei Em vez de ser medida por uma justiça preexistente é a lei da Cidade que constitui a medida do que é justo Repto lançado a todo o racionalismo de origem grega que Hobbes resume nesta fórmula E a autoridade não a verdade que faz a lei As teorias racionalistas do Estado tentarão corrigir esta áspera sentença apresentando o Estado como o reino da Verdade sobre a terra a encarnação da Justiça o instrumento da verdadeira Liberdade etc Mas é a palavra de Hobbes que apreende em sua pureza a essência da soberania Se os filósofos racionalistas fossem reis em princípio todos os conflitos deveriam ser decididos perante o tribunal da Justiça em si O aborrecido é que seria preciso esperar muito tempo antes que todos os homens se convencessem de que se trata mesmo da Justiça em si e para que eles se submetessem à autoridade do juiz É por isso que os filósofos ao se tornarem reis deixam de ser filósofos ordenam prescrevem ameaçam punem sem perderem tempo convencendo os insensatos da racionalidade dos seus decretos Também eles proclamam Obedeçam ou estarão fritos E apesar das aparências esta fórmula não é necessariamente tirânica Pode sêlo não há dúvida quando o Soberano tem em mira apenas o seu interesse próprio mas há Soberanos que agem em função do que lhes parece constituir o interesse de todos Em contrapartida nada é mais temível do que o Soberano não hobbesiano que declara Obedeçam porque a Razão fala por minha voz Nada é mais temível porque se a desobediência à lei é um crime a desobediência à Razão é um sacrilégio Havendo escolha é preferível obedecer à lei simplesmente porque ela emana do Soberano Em suma a Soberania é o único cimento do corpo político porque os homens nunca foram animais racionais se por isso entendemos animais que se inclinam perante a razão pura A razão é sempre a razão do mais forte mesmo nos diálogos de Platão onde a razão está do lado de quem é mais forte no campeonato dialético E é por isso que a essência do Estado é ser ele soberano O FIM DAS HIERARQUIAS NATURAIS Os homens nunca se entenderão sobre os valores nunca alcançarão a unanimidade para designar quem deles é mais sábio quem o mais virtuoso etc Nada é anormal nisso pois espontaneamente cada qual pensa ter tanto direito quanto qualquer outro a decidir acerca do que é justo ou injusto Espontaneamente cada um pensa ter condições de governar a si próprio E é por isso que não pode haver como pretendia Platão solução racional para os conflitos de valores Se de direito os entendimentos ou as opiniões são iguais quem poderia razoavelmente decidir a não ser quem pretendesse deter o saber acerca do Bem Mas este seria um charlatão A recusa de um mundo dos valores assim se vincula para Hobbes ao postulado da igualdade É uma lei de natureza que todo homem reconheça os outros como seus iguais Assim Hobbes destrói a idéia de uma hierarquia natural segundo a nobreza a sabedoria e toda justificativa para uma sociedade de castas Não é verdade que os homens devam ser distintos e classificados conforme o valor das tarefas das quais por natureza eles teriam que se desincumbir A natureza de Hobbes é a do mecanicismo não é mais a physis teleológica de Aristóteles E este ponto é relevante para a sua concepção do político a A idéia de hierarquia natural supunha a da sociabilidade natural ora não existe sociabilidade natural O único modelo de política é a associação livremente consentida cujos membros se comprometem por juramentos recíprocos de fidelidade Não é este o único tipo de vínculo que possa convir a indivíduos iguais Já se procurou ver nesta representação do social um efeito da crescente importância adquirida pelas relações mercantis cujo pressuposto é a igualdade do comprador e do vendedor Seria excessivo sem dúvida explicar apenas por isso a antropologia de Hobbes Certamente foi mais decisiva a crítica radical que fez ao cosmos de Aristóteles em que cada ser era por assim dizer dirigido por seu fim telos em que lhe era atribuído previamente um lugar próprio no conjunto Desde que este mundo que era ao mesmo tempo uma ordem desaba a comunidade koinônia não mais existe por princípio e o problema político então será encontrar uma solução permitindo que elementos separados por essência retraídos ao seu interesse vital cioso de sua independência sejam integrados apesar de tudo numa totalidade em que se preserve a sua igualdade original É este o problema que será retomado por Rousseau no Contrato Social Hegel considerará sofística uma tal formulação do problema político que começa postulando indivíduos preexistentes a toda Cidade e que só pode compreender a comunidade como o que ultrapassa uma dispersão original de átomos présociais Contudo seja qual for o valor de tal representação é ela a que melhor nos permite apreender o caráter inelutável do poder soberano pois somente um poder comum é capaz de agregar politicamente indivíduos iguais Iguais em sua submissão b No princípio portanto existem apenas indivíduos em luta latente pelo menos que num segundo tempo confiarão ao Estado o cuidado de conservarlhes a vida melhor do que eles próprios seriam capazes Se assim for como observa Leo Strauss em seu Natural Right and History a necessitas do Estado será deduzida em última instância de um direito do indivíudo o de conservar a própria vida Paradoxalmente o Leviatã que logo se tornará o símbolo do Estado autoritário inaugura deste modo um discurso político para o qual a é o indivíduo que é originário e natural e não o Estado b o fato fundamental é um direito e não um dever ou um conjunto de deveres É a partir de Hobbes observa ainda Leo Strauss que se dará ênfase aos direitos naturais e não mais aos deveres naturais Podese concluir com o autor que Hobbes foi o verdadeiro fundador do liberalismo político Pensamos embora sem poder demonstrálo aqui que essa tese é extremada O que é inegável porém é que existe uma ligação entre o advento do indivíduo isolado enquanto peça essencial da construção do político e a promoção de um poder único como condição sine qua non da Cidade Estão ligados também o reconhecimento dos direitos do homem e a ascensão do autoritarismo Evitemos portanto demasiada pressa em alegar que o indivíduo é o outro do Estado que o Estado lhe é hostil por princípio Genealogicamente foi apenas graças à tutela de um poder único e centralizador que o indivíduo se viu capaz de compensar o seu isolamento e de reivindicar a sua condição de indivíduo Talvez compreendamos melhor agora em que medida a teoria da Soberania implicava uma subversão do pensamento político Citando ainda Leo Strauss Para Hobbes o erro fundamental da filosofia política tradicional foi haver postulado que o homem é um animal político e social Rejeitando tal postulado Hobbes admite que o homem é naturalmente um animal apolítico e até mesmo asocial Deveremos partir deste ponto se quisermos compreender por que o poder político não pode ser mera instância de gestão e organização mas sim o detentor permanente de uma força absoluta sem a qual sequer seria possível falar em societas Retomemos com Hobbes o estado de natureza Desde que nele aparece a razão o homem toma consciência da impotência de fato em que é posto pela igualdade das forças em conflito pela igualdade pois até o mais forte pode sofrer um instante de distração ninguém tem suficiente poder para estar seguro de que possa conservarse enquanto permanecer em estado de guerra De que vale então que um homem possa prevenir o mal que os outros venham a lhe infligir se este poder preventivo é de fato tão relativo Por mais imponente que seja o poder dissuasor em mãos de alguém este poder nunca lhe valerá tanto quanto a certeza da paz As leis da natureza deveriam bastar para garantir esta paz elas têm por finalidade proibirnos de sermos nossos próprios juízes e de fixarmos nós mesmos o que nos compete e se resumem em acomodarmonos à convivência com os outros homens Sugerem pois que entremos numa união em que cada qual abdicará dos direitos que não poderiam conservar sem perderem a paz Assim cada homem se compromete a não ser mais agressor o consenso é unânime Mas os compromissos mais solenes serão uma fiança suficiente Todos me asseguram que eu nunca serei atacado Cada um está persuadido de que o pacto atende ao seu interesse Mas quem me garante que os outros não sejam celerados que s6 esperam que eu deponha as armas para se lançarem sobre mim O que tranqüiliza cada uma das Superpotências quanto ao respeito dos acordos SAL T é a assinatura da outra ou serão os satélitesespiões Enquanto os homens se limitarem a fazer promessas perdurará a guerra Enquanto nada garante que os homens observem a lei da Natureza em favor dos outros eles permanecem em estado de guerra Elements of Law I 19 A não ser por estrita estupidez ninguém se satisfaz com simples promessas para perder o medo Por isso sempre temerei enquanto não tiver a certeza de que o medo sentido pelos Outros também me permite finalmente confiar neles ibidem II 1 Até que algum medo mútuo e comum proscreva com segurança o estado de guerra Até que os outros tenham mais a perder rompendo o pacto do que respeitandoo Sem dúvida não é o medo pânico o medo que me faz fugir com quantas pernas tenho que inclina os homens a se confiarem a um Soberano É sim este surdo e ininterrupto medo de todos os outros que se chama desconfiança Ela é engenhosa e capaz de fazernos inventar os meios que no futuro exorcizarão todo medo possível Escutemos o jurista Pufendorf em 1672 É essencial que o medo tome tão bem as suas medidas que todos se coloquem em condição de não ter mais nenhum motivo aparente de temor Quando vamos nos deitar fechamos cuidadosamente a porta do quarto de medo dos ladrões afinal não temos mais medo Assim o medo engenhosamente inventa expedientes para expulsar a si próprio é o que acontece ao estabeleceremse as sociedades civis Como Para justificar a opressão do poder estatal dirão vocês será preciso ter uma idéia assim triste da natureza humana Desta censura Hobbes não foi poupado para apresentar como uma boa nova o nascimento do Leviatã ele devia começar concedendo ao homem um direito natural que nada mais era que a explicitação da força Será espantoso que com tais premissas seja necessário nada mais nada menos que um Soberano absoluto para garantir a cada animal que a paz reinaá no estábulo Lendo Hobbes Malebranche indignase Acreditar que o mais forte tenha direito a tudo sem que jamais ele possa cometer alguma injustiça é certamente incluirse entre os animais e fazer da sociedade uma assembléia de feras brutas E Voltaire fazlhe eco Tendo todos direito a tudo cada um teria direito à vida do seu semelhante Não confundes a potência com o direito Pensas que o poder outorgue o direito e que um filho robusto não tenha que se recriminar por haver assassinado o pai prostrado e decrépito Uma coisa porém é estranha Apesar de todas as maldições que dois séculos fizeram chover sobre Hobbes foi no caminho por ele aberto que enveredou o pensamento político Como escreve P F Moreau Dois séculos imputaram a Hobbes todos os pecados mas se examinarmos mais de perto veremos que só se discutem longamente os pormenores enquanto se reproduz o rigor do argumento hobbesiano Todos admitem o princípio o homem é tudo para o homem é um lobo e também uma defesa contra os lobos Racines du Libéralisme p 53 Quer dizer que a política inaugurada por Hobbes seria a outra face de uma antropologia pessimista para a qual a função essencial da Cidade seria reprimir a malícia humana As coisas não são tão simples Como escreve Kant por melhores e mais apegados ao direito que seja possível imaginar os homens ainda assim a saída do estado de natureza só deverá ser a união numa comum submissão a uma coerção legal externa Em outras palavras o modelo hobbesiano deveria ser mantido independentemente da antropologia de Hobbes Na verdade porém Kant não se priva também ele de criticar Hobbes Hobbes considerou todas as leis até mesmo as leis morais como despóticas isto é como não exigindo o nosso consentimento racional E a este imperium despótico que trata os súditos como crianças ou como servidores Kant opõe o governo patriótico graças ao qual o homem encontra no Estado a sua liberdade numa dependência legal que procede da sua própria vontade legisladora O advento da razão prática parece assim inverter os dados do problema político Hobbes tinha a respeito do O LEVIATÃ E O ESTADO BURGUÊS O conceito de soberania é o indício de uma profunda mutação no pensar a coisa política A cidade antiga que devia orientar os homens para a vida boa cede lugar a um mecanicismo que por piores que se suponha serem os homens garantirá cada um contra todos e será capaz de transformar em cooperação os seus antagonismos O que e admiravelmente expresso por Kant quando afirma que o problema da constituição de um Estado se coloca da maneira seguinte Ordenar de tal forma uma multidão de seres razoáveis que desejam todos leis gerais para a sua conservação mas cada um dos quais está propenso a isentarse delas em segredo e darlhes uma constituição tal que apesar do antagonismo erguido entre eles por suas inclinações passionais eles constituam obstáculo uns aos outros de modo que na vida pública seu comportamento seja como se estas más disposições não existissem Paz Perpétua Politizar o homem não consiste mais em educálo moralmente mas em introduzilo num maquinário que o vergará a fins a paz e a segurança que apenas por suas disposições naturais ele não poderia alcançar O modelo político é assim mecânico e nada mais significativo a este respeito do que a imagem do autômato que Hobbes emprega no início do Leviatã ou a linguagem do equilíbrio de forças que retorna constantemente no Contrato Social de Rousseau ou ainda a metáfora newtoniana como no universo também na cidade a ordem virá da compensação entre atrações e repulsas A verdadeira união escreve Montesquieu é uma união de harmonia que faz que todas as partes por mais compostas que nos pareçam ser concorram para o bem geral da sociedade da mesma forma que as partes deste universo eternamente preso pela ação de umas e pela reação das outras Esta definição da coisa política supõe o que é particularmente evidente em Kant uma percepção do social centrada na atividade econômica dos indivíduos Mas também se prende a uma nova ambição chegar a uma constituição das sociedades que seja regida por leis tão invioláveis quanto as da natureza capaz assim de evitar sejam quais forem as disposições naturais dos homens toda disfunção toda queda na anarquia ou no despotismo estes dois estados apolíticos Como diz uma comentarora alemã de Kant Hella Mandt o que é comum a este filósofo e a Hobbes é conceberem ambos a comunidade humana como uma coisa como uma obra de arte feita de regras jurídicas assentada em si mesma e independente tanto das inclinações quanto das virtudes humanas Ora é óbvio que esta maravilhosa relojoaria só poderá funcionar se for animada por um motor dotado de uma força irresistível e capaz de impedir qualquer deslize na engrenagem É apenas sob esta condição que os comportamentos dos átomos são coordenáveis é apenas sob esta condição que o antagonismo e a concorrência podem metamorfosearse em solidariedade Em suma talvez me diriam vocês o conceito ou o mito da Soberania designa a condição política para a conservação homem uma idéia materialista mecanicista etc a restituição ao homem da sua essência de serracional mudará a fisionomia da Cidade Mas observemos melhor Acontece que Kant distingue a comunidade ética estado em que os homens se encontram reunidos apenas sob leis de virtude não coercitivas e o estado jurídicocivil governo da comunidade por leis que são sempre coercitivas Ora logo a seguir ele assinala que a primeira comunidade não poderia absolutamente ser instituída pelos homens se não tivesse a segunda como base E de fato no Estado kantiano a soberania não conhece limites e é anulado todo direito de resistência Como explicar esta convergência de fato atravessando a dissensão filosófica Qual é segundo Kant o objetivo da união civil É garantir a independência de cada um frente ao arbítrio necessitante de outrem E isto só pode ser realizado por meio de uma legislação encarregada de disciplinar à insociabilidade natural dos homens Tratase de obter um equilíbrio dos direitos de todos em meio ao antagonismo que continua sendo a trama do social Daí a necessidade de um Soberano que me garanta que se a minha liberdade respeitar todas as demais ela não deparará com obstáculos ao seu exercício Assim não se elimina o antagonismo os homens continuam sendo antes de mais nada concorrentes mas vêemse dissuadidos de passar do jogo à guerra da competição à fraude Cada qual está ciente de que por princípio a agressividade dos demais encontrase limitada Sem este saber prévio diz Kant nem mesmo poderia haver algo como uma societas Pois sem ele não teria a certeza de que recusandome a lesar alguém nada tenho a temer por meu próprio direito Assim o poder estatal é a condição para que a reciprocidade dos procedimentos corretos base de uma sociedade racional se torne alguma coisa crível E é por isso que a Soberania é mais uma vez inelutável não porque o homem é apenas um vivente egoísta mas porque é um sujeito racional que entende que o seu direito lhe seja seguramente reconhecido Genialmente Kant atreveuse a ver o que toda a filosofia política de Hegel se esforçará por dissimular que até mesmo o reino da razão está fundado na força O homem é um animal que reclama o seu direito e que não consente de bom grado em cedêlo a nenhum outro por isso ele precisa de um senhor Reflexão 1464 Kant pode indignarse com o despotismo de Hobbes mesmo assim conserva o mecanismo constitutivo do Leviatã Para que seja concebível uma sociedade de sujeitos racionais é preciso antes de mais nada a submissão de todas as vontades à vontade comum representada por um poder absoluto Sem o que não poderei conduzirme de fato como um cidadão não poderei de fato viver como um sujeito racional que se considera igual a todos os demais É por isso que o poder não é uma função qualquer na cidade é a origem da cidade é a causa da sociedade dos associados Sem a soberania ninguém teria aquela confiança mínima que é necessária para que se sinta membro de uma sociedade Dominus originarius esta expressão de Kant significa que o poder é menos aquilo que domina os súditos que aquilo que cria os cidadãos Longe de Kant haver refutado Hobbes é este quem coloca a máscara kantiana Seria então o Leviatã a porta da frente de toda política moderna Se assim fosse o poder político não se reduziria mais ao exercício de uma força repressiva permanente esta seria também e sobretudo a condição sine qua non para haver sociedade O importante não seria a força nela mesma mas o fato de todos sentirem a sua necessidade É o que exprimiu Antonio Gramsci ao analisar a noção de soberania em Bodin Não é o momento da força que interessa a Bodin mas o do consentimento Assim ser cidadão suporia por princípio uma resignação original Mas esta convicção que Hobbes e os seus pósteros pretendem instalarnos não seria efeito de uma astúcia diabólica e funcionamento de uma economia de mercado Concluindo suprimamos esta e suprimiremos ao mesmo tempo a necessidade de um poder de Estado Este é o sentido da interpretação que o professor Macpherson apresenta de Hobbes em seu livro sobre o Individualismo Possessivo Mas esta interpretação depara com algumas dificuldades É fato que Hobbes não demorou a ter má reputação junto às classes dirigentes Como explicar esta reação incoerente do público A resposta de Macpherson é a seguinte para manter a estabilidade da sociedade Hobbes foi longe demais Foi longe demais pois não foi capaz de adivinhar que a solidariedade de classe dos burgueses permitiria economizar um Soberano que perpetuasse a si próprio Por isso a contrario o sucesso de Locke burguês mais lúcido que se opôs à ameaça representada pelo poder soberano de uma pessoa ou de uma assembléia que perpetuam a si próprias Segunda razão invocada por Macpherson para explicar a dissensão entre Hobbes e o seu público Hobbes não consegue oferecer garantias sérias capables de servirem de salvaguardas à propriedade contra as interferências de um Soberano absoluto que perpetue a si próprio li Contudo é sequer possível dizer que Hobbes não consegue tranqüilizar os proprietários Parece que ele nem cogita disso Para ele é o poder soberano apenas que pode dar sentido à noção de propriedade Disso decorre que a propriedade em sua origem só pode haver resultado de uma repartição discricionária efetuada pelo Soberano A propriedade assim conferida a um súdito permitelhe sem dúvida vedar o seu uso a outro súdito mas nunca ao Soberano que em caso de necessidade está perfeitamente fundado a retomar o que deu Pareceme ser muito diferente a este respeito a doutrina de Locke ainda que Macpherson procure atenuar esta diferença Locke concede Segundo Tratado sobre o Governo Civil seções 128131 que ao ingressar na sociedade civil o homem abandona totalmente os dois poderes de que dispunha no estado de natureza a saber a fazer tudo o que julgar conveniente para garantir a sua conservação e b punir as infrações cometidas contra a lei natural Ele consente estas duas renúncias para que se possa realizar o fim capital e principal da associação isto é a conservação das propriedades que para Locke constitui um absoluto Sem dúvida o homem ao associarse submete todas as posses que tem ou que vier a adquirir à jurisdição do governo Mas fica entendido que o poder supremo não pode tomar de nenhum homem qualquer parte do que lhe pertence sem o seu consentimento seção 138 E seria absurdo que o poder supremo pudesse dispor arbitrariamente dos bens de um súdito ou tomar a seu talante uma parte qualquer deles Desta maneira Locke retoma de maneira muito explícita uma doutrina que segundo Hobbes tende à dissolução da República todo particular teria uma propriedade absoluta dos seus bens privando assim o Soberano de todo direito sobre tais coisas Leviatã cap 29 Se Hobbes é revisto e corrigido por Locke como diz Macpherson é preciso confessar que a correção neste ponto é considerável Parece portanto que se deve matizar bastante a tese de Macpherson Sem dúvida a teoria da Soberania é um modelo político que seguramente supunha o surgimento ou a existência de uma sociedade mercantil Mas se tomamos esta teoria em sua forma pura na forma que Hobbes lhe deu 22 é impossível dizer que o poder por ela definido esteja exclusivamente a serviço desta sociedade Hobbes instaura um modelo de dominação política que é condição sine qua non para o funcionamento de toda sociedade moderna No interior deste quadro podem colocarse diferentes figuras de dominação exceto o despotismo entendido como o mando de um homem ou de um grupo em vista apenas do seu interesse e o Estado liberal cujas bases são lançadas por Locke é uma destas figuras mas certamente uma das mais contrárias ao espírito de Hobbes Se me perguntassem qual é a amostra política que melhor corresponde hoje ao modelo hobbesiano eu me arriscaria a responder uma ditadura militar esclarecida instaurada com o intuito de realizar reformas estruturais sócioeconômicas o que quase aconteceu no Peru o que acontece em alguns países da África Negra cujos chefes de Estado não são apenas Bokassas ou Idi Amins Sem dúvida Locke utiliza o maquinário político inventado por Hobbes mas o faz para orientálo no sentido de uma restrição da dominação política e é isto exatamente que trai o espírito de Hobbes Em outras palavras se Locke conserva o esquema da Soberania ele limita ao máximo o modo do seu funcionamento e é então mas só então que o poder é exposto com toda a clareza como nada mais que um fiel instrumento a serviço dos proprietários Não mais como expressão do social mas como uma superestrutura sem maquiagem o poder é confiado a indivíduos que governarão com base num contrato preciso e estreitamente vigiados por seus mandatens Neste sentido Vaughan tem o direito de dizer que o livro de Locke é dirigido não só contra o Leviatã mas contra a própria idéia de Soberania Entre poder de classe e soberania estatal não há identidade alguma embora possa haver convergência Querem um exemplo preciso do momento em que Locke passa a subverter Hobbes em vez de limitarse a corrigilo Para Hobbes é a reaparicação do gládio privado a anarquia que marca a dissolução do corpo político Para Locke ao contrário a união civil deixa de existir quando o cidadão é privado de todo recurso que possa decidir o diferendo que o opõe ao poder Em outras palavras para ele há incompatibilidade entre monarquia absoluta e sociedade civil o súdito frente ao soberano absoluto se recoloca no estado de natureza isto é no estado em que os homens não conhecem juiz comum a quem possam recorrer para que decida acerca dos litígios jurídicos que os opõem Em suma num pensador medo da anarquia no outro medo do despotismo O que serve de índice para duas análises diferentes da noção de poder Locke não mais considera o poder como o núcleo político do social tratase simplesmente de uma instância que exerce uma função social determinada E o que se deve temer acima de tudo é que o poder ultrapasse esta função e que os súditos fiquem privados de recurso contra ele Está portanto no abuso de poder o maior risco de ruína para o corpo político E observa Locke Hobbes se enganava ao sustentar que todos os males que o poder é capaz de causar nada são comparados com a volta ao estado de natureza É o inverso que é verdade o estado de natureza é preferível a um poder que me deixa juridicamente desarmado contra ele O indivíduo que se vê exposto ao poder arbitrário de um único homem que tem cem mil outros a suas ordens encontrase numa situação muito pior do que aquele que está exposto ao poder arbitrário de cem mil homens isolados seção 137 Entre os trombadinhas e a polícia do tirano Locke prefere os trombadinhas 23 Assim não há dúvida de que a cidade de Locke continua a ser determinada pela presença central de um poder mas este está subordinado estritamente à tarefa que lhe incumbe O Estado que garante os direitos dos proprietários não pode ser um Estado absolutamente soberano enquanto cumpre esta função Este é um dos axiomas políticos que se pode retirar de Locke E sob esta forma o axioma não é de modo algum contraditado pela existência de todas as ditaduras que garantiram os interesses dos proprietários ou de certos proprietários se é verdade que o nazismo chegou ao poder ajudado pelos industriais do Ruhr alguns dos quais por sinal logo se arrependeriam de tal apoio é contudo impossível definir o nazismo como o instrumento deles Um poder absoluto pode combinarse com a proteção de interesses econômicos isto não quer dizer que baste este único traço para determinar a sua essência O poder que é necessário para a sociedade de mercado é assim localizado por Locke Como diz J Habermas tratase de uma instituição complementar às trocas do mercado que se regulam por si próprias Com o Estado constitucional burguês delineado por Locke as relações de produção podem prescindir de uma dominação tradicional podem prescindir de uma legitimação vinda de cima Nesta representação o poder é o que deixa funcionar a sociedade não o que a faz funcionar Esta é apenas talvez alguém diga uma representação justificadora que tenta dissimular e dissimular a seus próprios olhos que o poder burguês se reduz a uma dominação de classe Os que defendem esta tese devem fornecer a prova do que afirmam Pois é fato que a dominação burguesa não criou o poder codificado pela Soberania ela o reutilizou o mais das vezes restringindoo Nada permite afirmar sem uma demonstração que exista coincidência entre o poder político criado pela modernidade e a dominação de classe da burguesia É o que nos recorda Bertrand de Jouvenel no seu livro Do Poder especialmente quando analisa o poder como agressor da ordem social Mostra que um poder de Estado teve menos vezes a vocação de colaborar com tal classe ou qual grupo de interesses que a de destruir a força das autoridades sociais que forma uma barreira entre ele e os seus súditos O poder pode defender privilégios mas por questão de princípio não aprecia os privilegiados a pólis antiga constituise contra a organização gentílica as monarquias ocidentais sapam a célula senhorial e abatem o poderio dos senhores feudais foi assim que Tocqueville pôde mostrar de que modo a Revolução Francesa prosseguira e amplificara a obra centralizadora de Richelieu e Luís XIV Não que um poder estatal vise a limitar ou suprimir de forma absoluta os privilégios visa mais exatamente a reconstituir as aristocracias a partir de si próprio a ser o distribuidor dos monopólios Em suma não precisamente garantir a continuidade de uma dominação de classe mas fazer com que esta se exerça em seu proveito Observaremos por sinal que Engels que possuía um bom faro sociológico aproximase muito desta tese na Origem da Família Em todo caso as suas análises matizam consideravelmente o slogan tão famoso quanto simplista segundo o qual o Estado é apenas o biombo da classe dominante O Estado diz Engels é via de regra o Estado da classe mais poderosa economicamente Mas esta regra sofre exceções há períodos em que o Estado fiel das classes em luta conserva por um tempo uma certa independência frente a elas E Engels toma como exemplos à monarquia absoluta da era clássica na França que mantém a balança equilibrada entre 24 nobreza e burguesia e o Segundo Império francês Napoleão III que lançava a burguesia contra o proletariado e o proletariado contra a burguesia Se assim for então o que é o Estado Resposta de Engels um poder nascido da sociedade mas que se coloca acima dela e se lhe torna cada vez mais estranho Vale dizer que o Estado não é automaticamente a marionete da classe dominante e que é preciso reconhecer que a instância do poder político possui uma especificidade É o que nos propõe também Jürgen Habermas pouco suspeito de antimarxismo sistemático é o continuador da Escola de Frankfurt quando critica as tentativas que são feitas sem se proceder a uma revisão do esquema marxista clássico para compreender as mudanças de função havidas no Estado do Século XX O que dizem em linhas gerais os marxistas ortodoxos Que enquanto o Estado liberal se limitava a assegurar a regulação do mercado o atual Estado intervencionista tende a ocupar o lugar do mercado nos pontos em que este não é mais capaz por sua própria dinâmica de tornar possível à continuidade de um processo de acumulação Isto ainda não é suficiente retruca Habermas ainda se desconhece em que medida a crescente substituição do mercado pelo Estado altera a estrutura sóciopolítica Basta prestarmos atenção aos meios pelos quais o Estado nos grandes países capitalistas intervém no jogo econômico subsídios aos setores ameaçados encargos sociais para atender às exigências voltadas para os valores de uso etc para percebermos que o Estado faz mais do que substituir a economia de mercado onde ela desfaiece Já não visa apenas a manter o sistema de mercado ou sequer a corrigir as suas disfunções deve manter o consenso social sem o qual o sistema não poderia mais funcionar especialmente em tempo de crise E por isso a ação do Estado diz Habermas não é mais um mero complemento da economia de mercado nem mesmo sua válvula de segurança o Estado deve garantir ao mesmo tempo a lealdade das massas no quadro da democracia formal e as funções de integração social são novamente confiadas ao sistema político Em Técnica e Ciência como Ideologia é impressionante o que diz Habermas O quadro institucional da sociedade já não coincide diretamente com as relações de produção O Estado e a sociedade não mantêm mais o tipo de relações que a teoria marxista definiria como sendo superestruturabase não é mais possível criticar o sistema de dominação atacando apenas diretamente as relações de produção O que o Século XX deveria assim ternos ensinado é que o Estado não pode mais ser considerado como o guarda de uma ordem cujo desenvolvimento é exterior a ele Acreditar que o Estado político só possa ser a proteção de uma sociedade civil apolítica é confiar demais na representação lockiana do Estado e honrála demais Acreditar que o poder político seja apenas o cão de guarda de uma classe é subestimar todos os recursos de que pode dispor este poder não somente para garantir o seu controle sobre a sociedade civil como ainda para modelála e organizála É o que manifesta o advento no Século XX do que Habermas chama de Sozialstaat de Estado essencialmente intervencionista que já não se apóia simplesmente na base natural de uma economia fundada na propriedade Neste Estado os direitos do homem são postos cada vez menos como esfera da autonomia privada como limites sagrados frente à interferência do poder Estipuladas e determinadas as liberdades são recriadas juridicamente Assim reposta pelo Estado a sociedade civil aparece cada vez mais abertamente como repolitizada Estamos longe do tempo em que Marx zombava de Hegel por este haver pretendido forjar fantasticamente um cidadão que seria irmão do cidadão antigo Não é mais verdade que o Cidadão seja apenas um ente de razão jurídico o fantasma de um homem concreto antes de ser João ou José você é portador de uma cédula de identidade de uma carteira de trabalho etc documentos que qualquer empregador ou qualquer representante da autoridade pode solicitar a todo momento É quase todos os dias que vocês são forçados a dizer sua senha de cidadãos Belos cidadãos que somos dirão vocês excluídos de toda participação política Mas prestem atenção não quero dizer que cidadão no Século XX seja o equivalente de cidadão ateniense Cidadãos enquanto partícipes do poder os eleitores de Reagan ou Giscard o são apenas pouco mais que vocês sem falar nos eleitores de Brejnev A verdade é que em toda parte cidadão quer menos e menos dizer indivíduo político enquanto participante do poder e cada vez mais indivíduo político enquanto codificado pelo poder determinado inteiramente por ele produzido por ele É por isso que a repolitização da sociedade não é absolutamente incompatível com o apolitismo dos indivíduos entendendo por isso a sua exclusão por princípio ou de fato pouco importa da esfera das decisões políticas Assim nunca estivemos em melhores condições para compreender como são pertinentes as análises de Hobbes e também como o Estado liberal foi uma contrafação do modelo hobbesiano Sem dúvida à primeira vista somos tentados a dar razão a Leo Strauss o grande comentador de Hobbes quando o apresenta como o pai do liberalismo Já não é liberal de espírito a dissociação que Hobbes estabelecia entre a lei lex e o direito jus Confundese muitas vezes lex com jus e contudo dificilmente haverá duas palavras que sejam mais contraditórias Pois o direito é a liberdade que nos é deixada pela lei e as leis são as restrições que estabelecemos por acordo comum para restringir as nossas liberdades recíprocas Elements of Law II 9 A lei e o direito diferem exatamente como a obrigação e a liberdade que não poderiam coincidir num único e mesmo ponto Leviatã cap 14 Assim a lei civil é apenas a restrição do direito de todo homem a toda coisa no estado de natureza A atividade legislativa não é outra coisa senão esta restrição a lei não foi traz ida ao mundo para nada mais a não ser limitar a liberdade natural dos indivíduos Leviatã cap 26 Trocar a garantia da minha paz e da minha segurança pela aceitação das obrigações legais Até aqui Hobbes parece efetivamente ser o fundador da visãodomundo liberal Até percebermos por exemplo no capítulo 21 do Leviatã que as leis civis têm menos o papel de reprimir que o de apagar quase completamente esta liberdade natural a única que pode ser propriamente chamada de liberdade A palavra muda de sentido quando Hobbes passa à liberdade dos súditos Que sentido pode ter exatamente esta liberdade Seria o fato de estar isento das leis Então seria o mesmo que pedir a liberdade de estar sujeito à agressão de todos os outros E contudo por absurdo que isto seja é o que pedem os homens A estes insensatos Hobbes vai portanto ensinar em que consiste a verdadeira liberdade dos súditos isto é em que pontos um súdito pode sem cometer injustiça recusar a obediência Esta verdadeira liberdade aparece nos casoslimite quando a instituição ao pôr minha vida em perigo já não atende mais no que me diz respeito à sua destinação racional Mas enquanto minha vida não estiver ameaçada é regra a submissão absoluta à legislação por invasora que esta seja pois não compete a mim mas ao Soberano decidir acerca do alcance dos meios requeridos para a proteção dos súditos Salvo o direito de conservarem suas vidas os homens não têm liberdade essencial que o Estado seja obrigado a respeitar Resta devese dizer que os homens podem valerse da sua liberdade natural nas lacunas da legislação nos pontos que dependem do silêncio da lei comprar vender contratar escolher a residência a profissão a educação dos filhos Mas esta margem de liberdade é pouco apropriada a satisfazer o burguês liberal é excessivamente variável e frágil em algumas épocas maior e noutras menor conforme os que detêm a soberania consideram mais conveniente Nada portanto anunciaria em Hobbes as garantias concedidas pelas instituições aos gozos privados de que falará no século XI X Benjamin Constant apóstolo do liberalismo E seria absurdo ao ver de Hobbes exigir que a jurisdição da Soberania se detenha onde começam a independência e a existência individuais Vejamos em que Hobbes anuncia a politização moderna evocada por Habermas a única coisa que o Estado tem a garantir aos súditos é a segurança deles e as liberdades dos súditos só podem ser as tolerâncias sempre sujeitas à revisão que a instituição outorga Seguramente os liberais como seus irmãos menores os libertários não poderiam conceder isso a Hobbes Em contrapartida os racionalistas Rousseau Kant Hegel praticamente se limitaram a transpor o esquema de Hobbes ainda que tenham criticado às vezes asperamente o seu sistema despótico Sem dúvida para Kant e Hegel não é mais tarefa do Estado salvaguardar a segurança material do cidadão acima de todas as coisas Tornase mais nobre o papel do poder político competelhe organizar o meio em que desabrochará a liberdade do sujeito racional Mas nesta medida o poder continua sendo pensado como a instância encarregada de limitar romper ou mesmo desarraigar o arbítrio dos indivíduos Também aí o fim do poder é conquistar a sociedade é politizála sorrateira e invisivelmente Nosso século parece confirmar como estavam bem fundadas estas análises Quer dizer que Hobbes e os seus sucessores foram os precursores do totalitarismo É certo que não afirmálo é um erro enorme Deixemos a Karl Popper a incumbência de detectar um Hegel totalitário e préfascista neste livro incrivelmente ruim e curiosamente levado a sério por alguns bons espíritos que se chama A Sociedade Aberta e Seus Inimigos O totalitarismo é um modo de poder que exige ou supõe a integração total do sujeitosúdito no Estado a sua total adesão à religião ou à ideologia estatal o pagamento de toda fronteira existente entre Estado e sociedade civil O que certamente não é o que propõem os teóricos clássicos do Estado se o Estado hegeliano é fundador da sociedade ele não pretende absorvêla Deixalhe a sua autonomia aparente e é em surdina que ele prefere manipulála nada mais ridículo que o mito de Hegel apologista do despotismo muito ao contrário a Filosofia do Direito serviu de alvo aos juristas reacionários Mill garantia que as funções relativas ao governo são coisa muito mais vasta num povo atrasado do que num povo adiantado Conclusão o progresso só poderá adelgaçar as funções do Estado este resquício arcaico até a sua completa extinção O fim do Estado é uma das manias do Século XIX O autor destas linhas já se terá percebido não manifesta excessiva ternura pelo marxismo Por isso mesmo faz questão absoluta de frisar como o liberalismo clássico lhe parece ter sido uma posição insustentável já no próprio Século XIX A principal acusação que lhe deve ser feita não é em nossa opinião a que é mais difundida É verdade que o liberalismo só exaltou as liberdades civis na medida em que elas constituem os corolários da sacrossanta liberdade de propriedade é o que J B Say diz expressamente Também é verdade que segundo ele o cidadão só pode ser o proprietário Que só a propriedade torne os homens capazes do exercício dos direitos políticos era um axioma meridianamente claro para Benjamin Constant para Guizot etc Esta posição pode sem dúvida indignar Mas pelo menos não é contraditória Em compensação há um ponto no qual o liberal peca por incoerência Ele vilipendia o poder Considerao como o vil herdeiro da era militar passada Contudo admite que é indispensável mantêlo pelo menos por enquanto como válvula de segurança da economia de mercado Encarao como uma ameaça potencial mas ao mesmo tempo como uma necessária instância protetora Anatole France dizia que a República é o melhor de todos os regimes porque governa pouco Poderia ser este o programa político do liberal enquanto cidadão contra os poderes sob a condição de acrescentarse que este pouco poder é contudo indispensável O liberal como se vê é um homem de quem ter pena porque está às voltas com um problema insolúvel determinar até que ponto pode serrar o galho no qual está sentado sem correr o risco de quebrálo É também por princípio um cidadão insatisfeito Que escureça o horizonte social que cresça o espectro do socialismo e ele se torna partidário de um regime forte Que este se instale suprima as liberdades civis e se interesse de muito perto pelo funcionamento da economia o liberal espuma de indignação e volta a ser homem de esquerda Ou de centroesquerda Uma posição tão incômoda bem poderia decorrer de uma ilusão fundamental Esta me parece consistir num profundo desconhecimento da relação moderna entre o social e o político representada como um antagonismo entre os indivíduos por um lado e o poder enquanto mando por outro Como uma partida que opõe dois times Se espontaneamente o leitor assim pensa a coisa política não tenha dúvidas ele é liberal sem o saber É melhor que feche Marx Lênin e Trotsky e vá logo consultar Benjamin Constant e Herbert Spencer os seus verdadeiros pais espirituais Em que consiste tal ilusão Um texto notável de Durkheim talvez nos ajude a detectála Tratase da crítica que ele faz na Divisão do Trabalho Social à análise do social elaborada por Herbert Spencer Spencer sustenta que a com o desenvolvimento da solidariedade industrial a esfera da ação social isto é do aparelho coercitivo irá restringirse cada vez mais b o único vínculo que permanecerá entre os homens será a troca regulada pela relação de contrato Assim a solidariedade social se reduzirá cada vez mais ao consenso dos interesses ao seu acordo espontâneo Não poderia ser esta objeta Durkheim a solidariedade orgânica distintiva da modernidade Não é esta E é neste ponto que a sua análise se torna apaixonante 31 1 Não nos deixemos enganar pelo abrandamento do direito repressivo recuo da pena de morte etc E observemos que a dominação burocrática do Estado vai crescendo nas sociedades que parecem mais levar em conta os direitos do indivíduo Spencer pretende que a sociedade nos diz cada vez menos Faça isso que ela se contenta em dizer Não faça aquilo Será assim tão certo Por haverse tornado mais insidiosa a intervenção do poder terá diminuído Examinese por exemplo o aumento de sua ação reguladora nas relações de família a família é cada vez menos uma sociedade autônoma no seio da grande sociedade 2 É falso pretender que diminua a importância das funções do Estado à medida que se desenvolve o tipo industrial de sociedade A esfera da atividade individual pode crescer e o poder estatal tornarse menos absoluto mas crescendo também A questão não é diz Durkheim saber se o poder coercitivo é mais intenso ou menos porém se o aparelho regulador de que dispõe o poder se tornou mais volumoso ou menos E a esse respeito não há dúvida possível A incumbência de zelar pela educação da juventude de proteger a saúde geral de pʼresidir ao funcionamento da assistência pública de administrar as vias de transporte e comunicação pouco a pouco ingressa na esfera de ação do órgão central Em conseqüência este se desenvolve e ao mesmo tempo estende progressivamente a toda a superfície do território uma rede cada vez mais cerrada e complexa de ramificações que substituem ou assimilam os órgãos locais preexistentes Serviços de estatística mantêmno informado de tudo o que acontece nas profundezas do organismo Division du Travail Social p 200 Podese dizer sem exagero que estas linhas de Durkheim anunciam um dos principais temas que recentemente Michel Foucault desenvolveu em Vigiar e Punir e nʼA Vontade de Saber o poder moderno não é mais essencialmente uma instância repressiva e transcendete o rei acima dos seus súditos o Estado superior ao indivíduo mas uma instância de controle que envolve o indivíduo mais do que o domina abertamente Podem diminuir as proibições abolirse a pena de morte abrandarse o regime das prisões etc porém o sistema disciplinar a que nos vemos submetidos até em nossa vida privada cresce discreta mas continuamente O Estado moderno é menos abertamente dominador e mais manipulador preocupase menos em reprimir a desobediência do que em prevenila É feito menos para punir do que para disciplinar Isto por sinal foi admiravelmente percebido por Hegel que descreveu na Filosofia do Direito os mecanismos de integração do indivíduo no Estado e cunhou a fórmula Der Staat ist eine List O Estado é uma astúcia O melhor que tenho a fazer a este respeito é citar algumas linhas da conclusão do livro de Philippe Meyer O que outrora foi perseguido ou penalizado o divórcio o aborto a contracepção a variedade a mudança ou a mobilidade é hoje considerado como desprovido de importância ou como simples objeto de uma administração particular na medida em que é o Estado que produz e gere as culturas e as artes de viver os indivíduos desaparecem sob as funções delegadas 33 autêntico desenvolvimento nos lugares que são governados por uma autoridade que não conhece contrapeso Notem bem muitos historiadores modernos do desenvolvimento econômico ocidental dão razão a J B Say Basta compararmos a evolução econômica no Século XVIII de um país sob monarquia limitada a Inglaterra e outro sob a monarquia absoluta a França para sabermos de que lado se encontram as condições mais propícias para o crescimento Este foi favorecido pelo fato de que a monarquia inglesa desde 1624 viuse privada do direito de vender monopólios de que desde 1688 o poder régio controlado pelo Parlamento e pelo poder judiciário não teve mais a liberdade de definir arbitrariamente os direitos de propriedade ou de determinar a seu belprazer a carga fiscal Igualmente é preciso constatar que na Holanda como na Itália do Norte o desenvolvimento precoce do capitalismo achase favorecido pela ausência de um Estado absolutista e centralizado à francesa Parece regra geral que o crescimento econômico se tenha dado em função da liberdade deixada aos particulares pelo aparelho político parece existir um vínculo entre a estagnação econômica e o fato de que a função pública mobilize uma parte mais ampla da população O desenvolvimento supôs uma relativa frouxidão do aparelho político e uma limitação da sua importância social Nada seria mais contestável por conseguinte do que uma tese segundo a qual do Século XVII ao XIX o interesse do Estado e o interesse dos capitalistas teriam convergido automaticamente E já bastaria a verdadeira obsessão antiestatal dos liberais do Século XIX para nos obrigar a desconfiar dos fundamentos desta tese Mas a verdade é que ao tornarse predominante a economia de mercado precisa de um poder capaz de manter as condições do seu funcionamento natural Porém esta função é considerada como sendo puramente negativa do ponto de vista dos atores sociais o mando político é uma tarefa subalterna O liberalismo adota plenamente este preconceito Também ele assim como SaintSimon assim como os socialistas utópicos lança descrédito sobre a idéia de poder enquanto mando Daí este estado permanente de desconfiança e hostilidade defensiva frente ao poder que assinala e critica Auguste Comte no seu Sistema de Política Positiva O governo escreve ele que em todo estado regular de coisas é a cabeça da sociedade o guia e agente da ação geral é sistematicamente despojado por essas doutrinas de todo princípio de atividade Privado de toda participação significativa na vida de conjunto do corpo social é reduzido a um papel absolutamente negativo A ação do corpo social sobre os seus membros é até mesmo vista como devendo limitarse estritamente à manutenção da tranqüilidade pública o que em toda sociedade ativa nunca pôde ser mais que um objeto subalterno A filosofia liberal fundavase numa análise histórica justa Mas subestimando em absoluto o papel do poder estatal foi levada a conclusões que hoje no Século XX parecemnos fantásticas tão fantásticas quanto as predições marxistas relativas ao fim do Estado Como não sorrir hoje das visões do porvir que tinham bons espíritos como os filósofos Stuart Mill e Spencer Em 1861 Stuart 32 Mill garantia que as funções relativas ao governo são coisa muito mais vasta num povo atrasado do que num povo adiantado Conclusão o progresso só poderá adelgaçar as funções do Estado este resquício arcaico até a sua completa extinção O fim do Estado é uma das manias do Século XIX O autor destas linhas já se terá percebido não manifesta excessiva ternura pelo marxismo Por isso mesmo faz questão absoluta de frisar como o liberalismo clássico lhe parece ter sido uma posição insustentável já no próprio Século XIX A principal acusação que lhe deve ser feita não é em nossa opinião a que é mais difundida É verdade que o liberalismo só exaltou as liberdades civis na medida em que elas constituem os corolários da sacrossanta liberdade de propriedade é o que J B Say diz expressamente Também é verdade que segundo ele o cidadão só pode ser o proprietário Que só a propriedade torne os homens capazes do exercício dos direitos políticos era um axioma meridianamente claro para Benjamin Constant para Guizot etc Esta posição pode sem dúvida indignar Mas pelo menos não é contraditória Em compensação há um ponto no qual o liberal peca por incoerência Ele vilipendia o poder Considerao como o vil herdeiro da era militar passada Contudo admite que é indispensável mantêlo pelo menos por enquanto como válvula de segurança da economia de mercado Encarao como uma ameaça potencial mas ao mesmo tempo como uma necessária instância protetora Anatole France dizia que a República é o melhor de todos os regimes porque governa pouco Poderia ser este o programa político do liberal enquanto cidadão contra os poderes sob a condição de acrescentarse que este pouco poder é contudo indispensável O liberal como se vê é um homem de quem ter pena porque está às voltas com um problema insolúvel determinar até que ponto pode serrar o galho no qual está sentado sem correr o risco de quebrálo É também por princípio um cidadão insatisfeito Que escureça o horizonte social que cresça o espectro do socialismo e ele se torna partidário de um regime forte Que este se instale suprima as liberdades civis e se interesse de muito perto pelo funcionamento da economia o liberal espuma de indignação e volta a ser homem de esquerda Ou de centroesquerda Uma posição tão incômoda bem poderia decorrer de uma ilusão fundamental Esta me parece consistir num profundo desconhecimento da relação moderna entre o social e o político representada como um antagonismo entre os indivíduos por um lado e o poder enquanto mando por outro Como uma partida que opõe dois times Se espontaneamente o leitor assim pensa a coisa política não tenha dúvidas ele é liberal sem o saber É melhor que feche Marx Lênin e Trotsky e vá logo consultar Benjamin Constant e Herbert Spencer os seus verdadeiros pais espirituais Em que consiste tal ilusão Um texto notável de Durkheim talvez nos ajude a detectála Tratase da crítica que ele faz na Divisão do Trabalho Social à análise do social elaborada por Herbert Spencer Spencer sustenta que a com o desenvolvimento da solidariedade industrial a esfera da ação social isto é do aparelho coercitivo irá restringirse cada vez mais b o único vínculo que permanecerá entre os homens será a troca regulada pela relação de contrato Assim a solidariedade social se reduzirá cada vez mais ao consenso dos interesses ao seu acordo espontâneo Não poderia ser esta objeta Durkheim a solidariedade orgânica distintiva da modernidade Não é esta E é neste ponto que a sua análise se torna apaixonante 33 1 Não nos deixemos enganar pelo abrandamento do direito repressivo recuo da pena de morte etc E observemos que a dominação burocrática do Estado vai crescendo nas sociedades que parecem mais levar em conta os direitos do indivíduo Spencer pretende que a sociedade nos diz cada vez menos Faça isso que ela se contenta em dizer Não faça aquilo Será assim tão certo Por haverse tornado mais insidiosa a intervenção do poder terá diminuído Examinese por exemplo o aumento de sua ação reguladora nas relações de família a família é cada vez menos uma sociedade autônoma no seio da grande sociedade 2 É falso pretender que diminua a importância das funções do Estado à medida que se desenvolve o tipo industrial de sociedade A esfera da atividade individual pode crescer e o poder estatal tornarse menos absoluto mas crescendo também A questão não é diz Durkheim saber se o poder coercitivo é mais intenso ou menos porém se o aparelho regulador de que dispõe o poder se tornou mais volumoso ou menos E a esse respeito não há dúvida possível A incumbência de zelar pela educação da juventude de proteger a saúde geral de pʼresidir ao funcionamento da assistência pública de administrar as vias de transporte e comunicação pouco a pouco ingressa na esfera de ação do órgão central Em conseqüência este se desenvolve e ao mesmo tempo estende progressivamente a toda a superfície do território uma rede cada vez mais cerrada e complexa de ramificações que substituem ou assimilam os órgãos locais preexistentes Serviços de estatística mantêmno informado de tudo o que acontece nas profundezas do organismo Division du Travail Social p 200 Podese dizer sem exagero que estas linhas de Durkheim anunciam um dos principais temas que recentemente Michel Foucault desenvolveu em Vigiar e Punir e nʼA Vontade de Saber o poder moderno não é mais essencialmente uma instância repressiva e transcendete o rei acima dos seus súditos o Estado superior ao indivíduo mas uma instância de controle que envolve o indivíduo mais do que o domina abertamente Podem diminuir as proibições abolirse a pena de morte abrandarse o regime das prisões etc porém o sistema disciplinar a que nos vemos submetidos até em nossa vida privada cresce discreta mas continuamente O Estado moderno é menos abertamente dominador e mais manipulador preocupase menos em reprimir a desobediência do que em prevenila É feito menos para punir do que para disciplinar Isto por sinal foi admiravelmente percebido por Hegel que descreveu na Filosofia do Direito os mecanismos de integração do indivíduo no Estado e cunhou a fórmula Der Staat ist eine List O Estado é uma astúcia O melhor que tenho a fazer a este respeito é citar algumas linhas da conclusão do livro de Philippe Meyer O que outrora foi perseguido ou penalizado o divórcio o aborto a contracepção a variedade a mudança ou a mobilidade é hoje considerado como desprovido de importância ou como simples objeto de uma administração particular na medida em que é o Estado que produz e gere as culturas e as artes de viver os indivíduos desaparecem sob as funções delegadas autêntico desenvolvimento nos lugares que são governados por uma autoridade que não conhece contrapeso Notem bem muitos historiadores modernos do desenvolvimento econômico ocidental dão razão a J B Say Basta compararmos a evolução econômica no Século XVIII de um país sob monarquia limitada a Inglaterra e outro sob a monarquia absoluta a França para sabermos de que lado se encontram as condições mais propícias para o crescimento Este foi favorecido pelo fato de que a monarquia inglesa desde 1624 viuse privada do direito de vender monopólios de que desde 1688 o poder régio controlado pelo Parlamento e pelo poder judiciário não teve mais a liberdade de definir arbitrariamente os direitos de propriedade ou de determinar a seu belprazer a carga fiscal Igualmente é preciso constatar que na Holanda como na Itália do Norte o desenvolvimento precoce do capitalismo achase favorecido pela ausência de um Estado absolutista e centralizado à francesa Parece regra geral que o crescimento econômico se tenha dado em função da liberdade deixada aos particulares pelo aparelho político parece existir um vínculo entre a estagnação econômica e o fato de que a função pública mobilize uma parte mais ampla da população O desenvolvimento supôs uma relativa frouxidão do aparelho político e uma limitação da sua importância social Nada seria mais contestável por conseguinte do que uma tese segundo a qual do Século XVII ao XIX o interesse do Estado e o interesse dos capitalistas teriam convergido automaticamente E já bastaria a verdadeira obsessão antiestatal dos liberais do Século XIX para nos obrigar a desconfiar dos fundamentos desta tese Mas a verdade é que ao tornarse predominante a economia de mercado precisa de um poder capaz de manter as condições do seu funcionamento natural Porém esta função é considerada como sendo puramente negativa do ponto de vista dos atores sociais o mando político é uma tarefa subalterna O liberalismo adota plenamente este preconceito Também ele assim como SaintSimon assim como os socialistas utópicos lança descrédito sobre a idéia de poder enquanto mando Daí este estado permanente de desconfiança e hostilidade defensiva frente ao poder que assinala e critica Auguste Comte no seu Sistema de Política Positiva O governo escreve ele que em todo estado regular de coisas é a cabeça da sociedade o guia e agente da ação geral é sistematicamente despojado por essas doutrinas de todo princípio de atividade Privado de toda participação significativa na vida de conjunto do corpo social é reduzido a um papel absolutamente negativo A ação do corpo social sobre os seus membros é até mesmo vista como devendo limitarse estritamente à manutenção da tranqüilidade pública o que em toda sociedade ativa nunca pôde ser mais que um objeto subalterno A filosofia liberal fundavase numa análise histórica justa Mas subestimando em absoluto o papel do poder estatal foi levada a conclusões que hoje no Século XX parecemnos fantásticas tão fantásticas quanto as predições marxistas relativas ao fim do Estado Como não sorrir hoje das visões do porvir que tinham bons espíritos como os filósofos Stuart Mill e Spencer Em 1861 Stuart que eles exercem mas que outro poderia exercer em seu lugar O aborto é autorizado não como um ato livremente decidido por uma mulher mas como uma atividade cujos móveis devem estar incluídos num certo número de casos enumerados em lei Diminui o número e a intensidade dos interditos e tabus na exata medida em que a sua transgressão pode ser administrada pelos poderes públicos Como dizêlo melhor Bem sei que estas análises são mais convincentes para um europeu do que para um sulamericano o qual não tem tantas razões para considerar o Estado essencialmente repressivo como coisa do passado Contudo sejam quais forem as diferenças devidas às situações históricas e econômicas não se pode negar a universalidade do fenômeno analisado é verdade que sob ângulos muito diversos por Hegel Durkheim Foucault Excetuandose os casos extremos o poder estatal não pode ser definido como uma máquina monstruosa que cinicamente esmaga os indivíduos acima de tudo é uma máquina que produz os indivíduos e dandolhes bons hábitos institui ou tende cada vez mais a instituir o social Portanto Durkheim tinha razão contra Spencer não existe um adelgaçamento progressivo do poder nas sociedades modernas mas uma transformação e um crescimento do poder O Poder constituído para servir a sociedade é na verdade o seu senhor Ainda mais inconteste porque pretende emanar dela B de Jouvenel Ou Pouvoir p 548 Vocês compreendem melhor agora em que consiste a ilusão na qual assenta o liberalismo Ele parte simplesmente de uma análise sumária e fraudulenta do problema político Pretende reduzilo ao resultado de uma partida Indivíduo vs Estado Ora tratase de uma partida fraudada Pois afinal o que é este indivíduo De onde provém este átomo social zeloso por seus direitos Ele já não foi fabricado sorrateiramente pelo poder Pobres dos revolucionários românticos que não partem desse dado de fato Pobres também das autocracias imbecis que não compreenderam ainda que o melhor meio de neutralizar os revolucionários não é prendêlos mas transformálos em funcionários Quer gostemos quer não o crescente controle do Estado sobre as atividades individuais o que não quer absolutamente dizer totalitarismo é um fenômeno que parece ser irreversível Assim tanto os partidários da livre iniciativa quanto os defensores do homo oeconomicus livre conduzem hoje uma guerra perdida de antemão Isto já vale para as democracias desenvolvidas O que dizer então dos países nos quais uma parte da população não tem garantido sequer o mínimo vital Neles o único problema que se coloca é saber se a gestão capitalista será capaz de atender às exigências mínimas de uma democracia social ou se deverá ceder lugar ao marxismoleninismo Num caso como no outro a estatização relativa ou absoluta aparece como um destino inevitável Ainda a esse respeito Durkheim foi bom profeta ao escrever que não são unicamente as classes inferiores que aspiram ao controle do aparelho político mas também O próprio Estado que à medida que a atividade econômica se torna um fator mais importante da vida geral é levado 35 pela força das coisas a cada vez mais vigiar e regular as suas manifestações Muitos liberais ainda hoje não estão persuadidos desta verdade É que continuam cultivando uma outra ilusão do Século XIX o economicismo isto é a crença de que o funcionamento econômico só pode ser um fator de regulação e estabilização da sociedade a ignorância do fato de que na verdade a liberdade econômica pode tornarse em brevíssimo prazo um fator profundamente perturbador do social e por isso corre o risco de suscitar enquanto reação um poder que se encarregará de corrigir sistematicamente os desequilíbrios por ela produzidos Um poder que se encarregará especialmente de propiciar aos cidadãos um mínimo de segurança A segurança em primeiro lugar regressamos assim ao ideal político de Hobbes à odiosa filosofia execrada pelos liberais do Século XIX Mas o que fazer É o próprio jogo da liberdade econômica que acaba tornando cada vez mais profundamente necessária a intervenção do Estado E isso em nome do interesse público mesmo quando este é concebido à maneira de Benjamin Constant a saber os interesses individuais colocados reciprocamente fora de condições de fazeremse mal O autor pensava em garantir o livre jogo da concorrência Mas se tomarmos esta definição ao pé da letra não será evidente que uma indústria que foi privada de encomendas devido a uma crise internacional ou trabalhadores privados de trabalho representam interesses individuais lesados E a quem podem dirigirse se não ao Estado para obter quer um subsídio quer um saláriodesemprego Assim à medida que o papel do econômico se torna mais invasor e mais complexo o seu funcionamento a tarefa do Estado passa a ser cada vez menos proteger a liberdade de alguns e cada vez mais garantir a segurança do maior número Por quê Por generosidade Por amor aos pobres É óbvio que não por simples instinto de conservação Que a liberdade ou as liberdades sejam aspirações fundamentais do animal humano é uma tolice que devemos tirar da cabeça O liberalismo do Século XIX foi o grande responsável pela propagação deste mito A verdade como nota Bertrand de Jouvenel é que a classe dirigente gozava no Século XIX de uma segurança tão bem assentada que ela só podia desejar a liberdade e assim concedeu às classes inferiores a liberdade que convinha a ela enquanto lhes retirava os meios de proteção dos quais ela própria não necessitava Ou Pouvoir p 560 Um exemplo a greve que durante muito tempo foi enquadrada como atentado à liberdade de trabalho ou como ruptura unilateral de contrato Uma tal gestão política caso se mantivesse só poderia ser suicida entendase uma tal gestão onde ela se mantém só pode ser suicida é bom pôr os pingos nos ii Por quê Porque a liberdade é apenas uma necessidade secundária frente à necessidade primária de segurança ibidem p 550 E a primazia desta necessidade de segurança foi evidenciada pelas grandes crises que abalaram este século Quando o presidente Franklin Roosevelt frente à Grande Depressão dos anos 30 proclamou o seu empenho em fazer respeitar os new human rights enunciou direitos que eram incompatíveis com o liberalismo clássico fundado na livre disposição da propriedade direito ao pleno emprego direito a um salário constante direito de os produtores venderem quantidades estáveis a um preço estável Entre estes new human rights que nenhum Estado responsável pode ignorar e as liberdades dos liberais é preciso escolher Ninguém pode ser favorável à Previdência Social e ao saláriodesemprego e ao mesmo tempo continuar professando um ideal minimalista do 36 Estado É incoerente considerar legítimo o protetorado social e ao mesmo tempo erguerse contra o EstadoMoloch Esta incoerência é especificamente francesa o francês médio é por excelência o ser que encaminha os filhos para o funcionalismo público e clama contra a burocracia e o fisco Em suma se vocês aceitam o que torna fatal a estatização então deixem de bancar as belas almas A maioria considera que o governo age mal mas todos pensam que o governo deve agir sem parar e pôr a mão em tudo Até os que se combatem mais asperamente não deixam de concordar neste ponto Nossos liberais assim como nossos libertários teriam interesse em meditar acerca destas linhas de Tocqueville antes de descreverem a proliferação do poder estatal como efeito de uma sorrateira vontade de potência E esquecer que são os próprios governados o mais das vezes que forçam o Estado a colocarse como instância tutelar e providencial por conseguinte como poder onipotente e onisciente O próprio Foucault nos parece sugerir este erro Quando evoca os direitos incompreensíveis para o sistema jurídico clássico direito à vida à felicidade ao corpo à saúde à satisfação das necessidades apresentaos como reivindicações opostas pelos oprimidos aos novos procedimentos do poder Volonté de Savoir p 191 Mas o que a história nos ensina é que estes direitos só podem ser satisfeitos à custa de um crescimento do poder estatal Como analisar de outra forma por exemplo o socialismo sueco A expressão mundo livre sem dúvida tem um sentido quando a opomos a mundo totalitário Mas não nos enganemos até mesmo nos países ditos livres do Ocidente capitalista a liberdade declina tanto como realidade jurídica quanto como ideal político E a visão premonitória de Tocqueville em 1840 está a caminho de realizarse lentamente Assistimos ao advento de um novo despotismo menos tirânico que administrativo Liberal mas liberal de uma espécie inteiramente nova Alexis de Tocqueville na conclusão de sua obraprima A Democracia na América 18351840 mostrase um dos raros espíritos do Século XIX a entrever o que poderia ser o século seguinte Passemoslhe a palavra Após ter assim tomado em suas mãos poderosas cada indivíduo e após terlhes dado a forma que bem quis o soberano estende os braços sobre toda a sociedade cobrelhe a superfície com uma rede de pequenas regras complicadas minuciosas e uniformes através das quais os espíritos mais originais e as almas mais vigorosas não conseguiriam aparecer para sobressair na massa não dobra as vontades amoleceas inclinaas e as dirige raramente força a agir mas opõese freqüentemente à ação não destrói impede o nascimento não tiraniza atrapalha comprime enerva arrefece embota reduz enfim cada nação a nada mais ser que uma manada de animais tímidos e industriosos cujo pastor é o governo Como evitar que surja o despotismo administrativo numa democracia Era esta a questão que seduzia Tocqueville e que também se poderia enunciar da maneira seguinte sob que condições a palavra democracia pode não ser um engodo Como combinar as suas duas componentes demos povo e kratein exercer o poder de modo que nem uma nem outra nem o povo soberano nem o poder seja esvaziada do seu sentido Há muitas chances de que o problema seja insolúvel e de que a nossa época só nos permita escolher entre as oligarquias menos ruins Mas antes de aí chegarmos ainda devemos denunciar algumas ilusões A tarefa do filósofo não é incutir esperança mas criticar os problemas que julga estarem mal situados O ÚLTIMO CHEFE Passemos mais um momento por favor em companhia de Tocqueville É ambígua a sua maneira de empregar a palavra democracia O mais das vezes designa o estado social caracterizado pela ausência de uma hierarquia de nobres como nos Estados do Antigo Regime e pela tendência a igualizar as condições De modo que se pode conceber tanto uma tirania democrática quanto uma liberdade democrática Mas politicamente Tocqueville recusase a chamar democrático um governo absoluto em que o povo não tem nenhum papel nos negócios ainda que as leis sejam feitas de modo a favorecer na medida do possível o seu bemestar Ora o drama é que as sociedades democráticas correm um forte risco de secretar esse tipo de poder O que eu mais receio no futuro afirma Tocqueville é a omissão dos cidadãos em favor de um poder tutelar e o fato de que os representantes deste poder sejam eleitos pelo sufrágio universal não altera coisa nenhuma Depois de renunciarem a todo poder político concreto mesmo em pequena escala como os homens ainda seriam capazes de tomar decisões políticas em grande escala A origem deste perigo é o individualismo que se desenvolve nas sociedades democráticas e a tentação que por isso se oferece ao poder para que se valha do isolamento e da fraqueza dos indivíduos O único remédio possível é a liberdade política entendida como a participação efetiva dos cidadãos nos negócios públicos Só ela pode impedir a atomização do tecido social que favorece o despotismo e que a filosofia política dos Modernos desde Hobbes toma como um dado de fato neste ponto Tocqueville encontra Hegel Foi assim que os norteamericanos venceram o individualismo que era gerado pela igualdade conferindo a cada porção do território uma vida política a fim de multiplicar ao infinito as ocasiões para os cidadãos agirem em conjunto e fazêlos sentir todos os dias que dependem uns dos outros O problema político moderno consiste portanto em reconstituirse artificialmente a sociedade como uma comunidade orgânica para assim entravar a propensão dos povos democráticos a esfarelaremse em indivíduos e impedilos de deslizarem para a centralização políticoadministrativa Em suma impedilos de seguirem o exemplo francês É possível que a hipercentralização seja conveniente a um povo que foi educado politicamente por Richelieu pelos jacobinos e por Napoleão mas então por favor parem de nos falar em vocação democrática francesa a pretexto de que os parisienses tomaram a Bastilha num dia de julho de 1789 É esta uma das maiores mistificações históricas que conheço e constato que os alemães a despeito dos racistas germanófobos souberam adaptarse sem nenhuma dificuldade aos costumes democráticos de estilo anglosaxão Tocqueville limitase a dar continuidade à inspiração liberal De forma alguma Os liberais preocupavamse antes de mais nada com a independência dos agentes econômicos Por isso voltavam toda sua desconfiança contra o poder enquanto mando na medida em que este ameaça entravar a iniciativa privada do indivíduo não a sua iniciativa política em que ameaça interferir na sua esfera de decisão pessoal e não de decisão política O que interessa ao liberal é que a sociedade civil possa cuidar tranquilamente dos seus negócios e não que ela exerça uma função propriamente política A posição de Tocqueville é muito diferente Em 1789 afirma vocês destruíram a sociedade hierárquica Muito bem Mas se vocês não substituíram a hierarquia pela associação então a sua sociedade carecerá de força política será inteiramente manipulável pelo poder E aos liberais clássicos Tocqueville diz vocês podem muito bem protestar contra as intervenções tão evidentes de um Estado centralizador mas não vêem que esse intervencionismo é suscitado pelo vazio político que se criou na sociedade É o que os legisladores americanos habilmente viram que era preciso conferir à sociedade um poder de iniciativa política Assim o poder que um juiz tem nos Estados Unidos de declarar que uma lei é contrária à Constituição tornao portador de um imenso poder político Seria vão acrescenta Tocqueville procurar o equivalente de tais disposições na França onde a possibilidade de questionar a vontade do legislador é praticamente negada à sociedade Em outras palavras o mérito imenso da democracia política americana segundo Tocqueville é que ela se esforça por combater aquilo mesmo que torna o poder infinitamente perigoso Não o fato de ele mandar mas o fato de que pode tomar conta da sociedade Não o fato de controlar mas o fato de que pode privar os indivíduos de qualquer iniciativa política e até do desejo de tomarem iniciativas Desta maneira Tocqueville principia uma análise do poder político da qual o mínimo a dizer é que é rara no século XIX Para a mentalidade corrente no século XIX o poder palavra quase inevitavelmente pejorativa significa mandar Não é tanto a faculdade de fazer cumprir as suas decisões é a faculdade do belprazer Este poder uns propõem eliminálo simplesmente outros submetêlo a uma vigilância estrita e todos concordam que o melhor seria substituílo por uma gestão científica por uma administração finalmente racional Leiam SaintSimon que talvez seja a fonte principal destas utopias Aproximase o fim da dominação política prediz ele a organização científica da sociedade lhe sucederá Uma vez livres dos atores políticos parasitas reis príncipes magistrados policiais etc os atores econômicos os únicos sérios tomarão as coisas em suas mãos Será a vez dos produtores isto é dos industriais e da classe laboriosa misturados Não riam demais Marx a este respeito será apenas um SaintSimon corrigido Ora quem assim define levianamente o poder político apenas pelo mando pela opressão brutal deixa de perguntar se porventura este poder político ainda mais desdenhado que execrado não disporia de outros recursos de estratégias mais requintadas para investir a sociedade É isto o que Tocqueville ao contrário percebeu genialmente enquanto a maior parte dos seus contemporâneos pensava que seria relativamente fácil liquidar um poder político que haviam definido da maneira mais superficial possível Desta forma não só tornavam possível o novo despotismo mas alguns entusiasmados até iriam trabalhar pelo seu advento sem o saberem É óbvio que estou me referindo aos socialistas Mas insisto sem o saberem Pois considero inteiramente estúpido pretender como faz tanto a nova esquerda quanto à velha direita que Marx tenha sido um feroz partidário do Estado o maquiavélico fabricante do Gulag etc Deste ponto de vista é outra coisa muito diferente que deve ser criticada em Marx como em seus contemporâneos é haver desconhecido a essência e a amplidão do fenômeno político e por conseguinte do poder político e por isso haver acreditado piamente que uma vez quebrada a velha máquina de dominação já meio arcaica que tinha ante os olhos adviria sem muitas dificuldades o reino da liberdade Notem bem esta ilusão era nutrida por um diagnóstico extremamente justo Marx era sensível ao fato de que o velho aparelho de poder mesmo depois de remendado pela burguesia conquistadora continuava incapaz de enfrentar a mudança sócioeconômica que se anunciava Impressionavao a desproporção entre o alcance do poder técnico e a precariedade do quadro institucional mero instrumento de dominação para o diaadia cada vez mais anacrônico Como diz muito bem Jürgen Habermas o objetivo de sua crítica era transformar a adaptação secundária do poder institucional ao crescimento econômico em uma adaptação ativa e também obter o controle sobre a evolução estrutural da sociedade Théorie et Pratique li p 130 Só então os homens farão a sua história com plena consciência e vontade O que Marx não viu é que este controle sobre as condições de produção poderia perfeitamente ser exercido por um SuperEstado Por que então não viu uma coisa que hoje nos parece tão óbvia É neste ponto que intervém uma vez mais um dos principais preconceitos do Século XIX a subestimação do político Marx reduzia o poder político a uma instância opressora encarregada de manter as condições de funcionamento de um sistema de produção anárquico acoplado a um sistema de distribuição iníquo Assim parecialhe evidente que uma vez suprimida radicalmente a desordem o guarda da desordem não teria mais condições de reaparecer Em outras palavras que a instituição da propriedade coletiva dos meios de produção suprimiria ipso facto a instância do Estado para só deixar lugar a um problema técnico de planejamento Como se uma certa organização da produção e da repartição dos recursos por melhor que fosse pudesse algum dia suprimir o problema propriamente político a saber quem governa como são recrutados os governantes como o poder é exercido qual é a relação entre governantes e governados Raymond Aron Etapes de la pensée sociologique p 199 Pareceme que foi porque o marxismo teórico do século XIX tornou fútil a idéia do poder político que o marxismo prático do século XX se viu capaz de transformar o poder político na excrescência que se conhece Poderíamos dar muitos exemplos desta despreocupação pelo problema do poder É o caso da oposição abstrata para não dizermos outra coisa entre aparelho de Estado e centralização que encontramos no Dezoito Brumário de Marx A centralização política de que necessita a sociedade moderna só pode erguerse sobre as ruínas do aparelho governamental militar e burocrático A destruição do aparelho de Estado não porá em perigo a centralização Mas quem efetuará esta centralização Que mecanismo político ela implicará Mistério Esta distinção entre boa centralização e mau aparelho de Estado é retomada por Lênin Vejamse estas linhas que nos permitem adivinhar o que será substituindo o Estado opressor a organização racional que por sinal já existe em embrião no Estado capitalista Além do aparelho opressor por excelência exército permanente polícia funcionários existe no Estado contemporâneo um aparelho muito intimamente ligado aos bancos e cartéis e que efetua um vasto trabalho de 40 estatística e registro Este aparelho não pode nem deve ser destruído A sua submissão aos capitalistas deve terminar ele deve ser submetido aos sovietes Os grandes bancos constituem o aparelho de Estado de que necessitamos para construirmos o socialismo e que tomamos já pronto do capitalismo Ora é tão inocente este legado técnico que se pretende herdar do Estado burguês Ele já não conteria a própria essência do poder opressor Como também são cegos à autonomia da ordem política os revisionistas não se mostram mais clarividentes Uma vez depurado dos seus elementos opressores e arcaicos pensam eles o Estado tal como existe será um excelente instrumento posto à disposição do socialismo É o que professam Bernstein a partir de 1898 e Kautsky a partir de 1917 Vejamos as coisas de frente dizem eles o capitalismo aprendeu a resistir às crises proletarização não é sinônimo de pauperização e finalmente as instituições burguesas cada vez mais fornecem ao proletariado meios de intervenção política até mesmo a esperança de acesso ao poder Assim por que deveria o Estado continuar sendo o defensor dos privilegiados Por que não deveria ele pelo simples jogo do sufrágio universal e das conquistas sindicais tornarse um Estado democrático no qual desapareceria a dominação de classe Desnecessário dizer quanto os ortodoxos amaldiçoam esta tese embora Engels a tenha defendido abertamente no fim de sua vida em textos sobre os quais habitualmente se joga um véu pudico Mas é só a despreocupação política que ora me interessa O que diz Kautsky Que no dia em que organizações pertencentes à classe operária forem colocadas no lugar dos capitalistas e preencherem as mesmas funções que estes tão bem quanto eles se não melhor o Estado democrático que já existe em embrião fil1almente tomará forma O mal não reside portanto no aparelho governamental mas no egoísmo dos proprietários que nele se instalaram O Estado democrático moderno distinguese dos precedentes porque a utilização do aparelho governamental pelas classes exploradoras não pertence a sua essência não é inseparável desta Ao contrário o Estado democrático tende a não ser o órgão de uma minoria como acontecia com os regimes precedentes mas o da maioria da população isto é das classes laboriosas Se é contudo o órgão de uma minoria de exploradores a causa não está em sua natureza própria mas na falta de unidade das classes laboriosas etc Em suma evitemos confundir o Estado organização da sociedade dotada do poder executivo com os exploradores que o monopolizaram Uma vez eliminados estes e substituídos pelos representantes da maioria da população só teremos a tratar com uma sadia organização democrática Mas recolocase a mesma questão Quem se encarregará desta organização Mais concretamente como ela se efeturá E acima de tudo será o poder estatal um instrumento tão neutro que baste confiálo a novos mandatários para tornálo democrático O mais benigno dos resultados prováveis não se ia uma tecnocracia dirigida por uma nova elite se não por uma nova classe Na verdade se caracterizamos a democracia pela existência de um controle efetivo mínimo dos governados sobre o poder é duvidoso que na prática o socialismo se concilie perfeitamente com um regime democrático Na melhor das hipóteses a burocracia por ele desenvolvida casará mal com um 41 controle permanente das bases como se diz Afirmando isto a última das minhas intenções seria retomar o velho discurso liberal e lançar o anátema sobre o socialismo Limitome a assinalar seguindo Schumpeter esse grande economista que considerava o socialismo como sendo ao mesmo tempo inevitável e conciliável com a democracia que socialismo e democracia não apenas não são forçosamente ligados mas são também conceitos estranhos um ao outro um diz respeito à organização da produção e da repartição dos recursos o outro referese a um certo modo de organizar o poder Por conseguinte não há dúvida de que estes dois conceitos não se excluem em princípio mas também não se implicam reciprocamente Parecenos que na verdade o marxismo não escapa à ilusão do século XIX tão bem formulada pelo liberal Herbert Spencer Na forma de sociedade para a qual progredimos o governo será reduzido ao mínimo e a liberdade individual elevada ao grau mais alto Na Miséria da Filosofia Marx prevê uma nova ordem em que não haverá mais classes nem conflitos de classes em que as evoluções sociais deixarão de ser revoluções políticas E também escreve A queda da antiga sociedade dará lugar à dominação de uma nova classe que encontraria o seu apogeu numa nova autoridade política Não Que o leitor julgue o valor dessa profecia Mas não esqueçamos que Marx só se interessava pela política e muito não há dúvida sabese como lhe parecia essencial a formação de um partido do proletariado tendo em vista a revolução que terminaria suprimindo o poder político A conquista deste pelo proletariado deveria culminar na abolição das classes portanto na abolição do Estado político o qual é somente a expressão de uma dominação de classe Quando ainda em 1920 Bukharin brilhante teórico bolchevista e filho dileto de Lênin pinta um quadro idílico da sociedade comunista em gestação garante que todos os homens trabalharão conformandose espontaneamente às diretrizes dos departamentos de contabilidade e dos escritórios de estatística assim como os músicos numa orquestra se regem pela batuta do maestro e sem que sejam necessários ministros prisões leis decretos sic Os indivíduos então não terão mais que dirigir outros terão apenas que conduzir as locomotivas as ferramentas as máquinas ABC do Comunismo Fim dos dominadores e dos dominados fim do poder de um homem sobre outro homem Reconhecese aqui a quimera com que se embriagou o século XIX O sonho dos fracos como teria dito Nietzsche Recusar a irredutível necessidade de uma ordem política enquanto tal negar em especial que as relações de poder sejam condição de funcionamento de qualquer cidade moderna é sem dúvida a mais generosa das tentações mas também uma das mais perigosas Tentação compreensível pois temos certamente todas as desculpas para assimilar poder a extorsão Nasce daí a idéia de extirpar de vez por todas o poder político Idéia radical que foi revigorada nos dias de hoje o espetáculo dos totalitarismos tem de tudo para fazernos inimigos de qualquer poder isto é libertários No século XIX esta idéia se impunha por uma razão diferente a preponderância evidenciada do econômico inclinava os espíritos a considerar a instância do poder político como arcaica e supérflua Contudo é fato que uma doutrina antiestatal gerou um estatismo reforçado Tratarseá apenas de um desvio com relação ao espírito desta doutrina Consolaria crêlo Mas outra hipótese é possível a saber que a negação precipitada da necessidade do poder político levou Marx a identificálo com o controle sobre os meios de produção Tese sedutora dela decorre que a 42 subversão das relações de produção deverá bastar a médio prazo para varrer a figura de dominação que só servia para manter um regime bem determinado de exploração e açambarcamento Mas podese identificar sem mais o controle sobre os meios de produção com o poder político Esta é a questão Determinase adequada e exaustivamente a natureza do Estado burguês quando este é reduzido a mero servidor dos interesses capitalistas supondose aliás que estes últimos sejam sempre mais ou menos convergentes É inegável que em certos países especialmente nos Estados Unidos ocorre uma osmose entre o pessoal político e os capitalistas ou os dirigentes das grandes empresas É verdade que um destes últimos Forrestal passou à posteridade proclamando nos anos 50 que O que é bom para a General Motors é bom para os Estados Unidos Contudo o entrelaçamento dos interesses econômicos e do poder nos regimes burgueses ainda não permite afirmar como dogma que o poder político seja apenas a sombra dos interesses dos proprietários Num livro publicado em 1960 e que já constitui um clássico Classes e Conflitos de Classes nas Sociedades Industriais o sociólogo alemão Ralf Dahrendorf empenhavase em mostrar que não existe nenhuma lei universal vinculando poder econômico e poder político O proverbial poder do dinheiro não nos autoriza a confundir a função de produção e aquisição dos bens com a que consiste em determinar a conduta dos homens Por considerável que possa ser a interferência de propriedade e poder será apressado identificálos de maneira absoluta Sem dúvida escreve Dahrendorf a posse da autoridade vem acompanhada o mais das vezes dentro de certos limites e salvo algumas exceções notáveis de uma renda elevada e um alto prestígio enquanto inversamente a não participação na autoridade conjugase com um prestígio e renda relativamente baixos trad franc p 141 Será esta uma razão para identificarmos sem mais a relação entre governantes e governados com uma dominação de classe O fato de que nos regimes burgueses os capitalistas tenham um peso nas decisões do poder e muitas vezes participem dele diretamente ou por intermédio de homens de confiança não significa que o poder seja um mecanismo montado exclusivamente para as necessidades da sua dominação Importa distinguir em si elites capitalistas e elites governamentais embora repetimos esta distinção pareça muito artificial em certos países e certas épocas As elites capitalistas ou gerenciais podem ser grupos extremamente poderosos na sociedade podem até mesmo exercer um controle parcial sobre governos e assembléias tudo isto apenas salienta a importância das elites governamentais Todas as decisões são tomadas ora por elas ora por seu intermédio ibidem p305 Não faltam pesquisas empíricas para sugerirnos pelo menos a verossimilhança dessa tese Mas sem dúvida elas nunca convencerão aqueles que por princípio entendem cifrar economicamente toda realidade social e política Para eles renunciar à codificação econômica do poder seria o mesmo que rumar pouco a pouco de recuo em recuo até a derrocada Com efeito seria preciso abandonar a pretensão de definir as classes sociais segundo sua relação com os meios de produção depois desistir de sustentar que a existência das classes esteja ligada à da propriedade privada renunciar portanto a vêlas como agrupamentos meramente econômicos e assim sejamos coerentes reconhecer com Schumpeter que o conceito de classe não tem nenhuma ligação com a propriedade privada que na verdade o socialismo nada tem a ver com a existência ou inexistência de classes sociais e que depois de instaurado poderia ocasionar lutas de novas classes Fui adiante do meu assunto Queria somente mostrar que o marxismo não poderia abandonar sua definição redutora do poder político sem aceitar que o seu edifício desabe Nem o Concílio Vaticano II renunciou à divindade de Cristo É verdade que convidando o leitor a questionar a validade da identificação que já se tornou popular do poder político com o poderio econômico parecemos orientarnos para uma interpretação lenitiva do poder político tal como ele existe Criticando a concepção clássica do marxismo abandonamos a idéia de um poder político que seria essencialmente ilegítimo Parecemos retomar o canto das sereias ou o latido dos cães de guarda como quiserem E verdade o poder é coercitivo mas olhemno melhor não é este o preço a pagar por sua utilidade Pela unificação da comunidade que ele garante de forma permanente Por nossa segurança mínima que ele mantém É mais ou menos o que dizia Hegel aos seus ouvintes num belíssimo apêndice a um parágrafo da Filosofia do Direito vocês que tomam O Estado por um instrumento de opressão e não param de deplorar em nome da liberdade do pio indivíduo os crimes cometidos pelo poder sequer tomam consciência de que é ele o elemento fora do qual vocês não poderiam viver nem sequer percebem que à noite podem passear nas ruas com toda a tranqüilidade duvido que os mais ortodoxos hegelianos do Rio ou de São Paulo retomassem hoje este último argumento Em suma ao recusarmos a concepção marxista do poder não estaremos voltando a ser bem comportados hegelianos Ou ainda fiéis de Talcott Parsons e de sua escola Já vou avisando que não é nada disso e é por isso que gostaria de evocar algumas das teses de Parsons Nada permite compreender melhor a filosofia política que sustenta a obra de Parsons do que a polêmica que manteve com Wright Mills depois que este publicou a Elite do Poder Mills segundo ele não prestou atenção à função do poder isto é obter dos membros da coletividade o cumprimento de obrigações legítimas em nome de fins coletivos Não viu que o poder político moderno se fundava cada vez mais explicitamente no consensus omnium na confiança de todos mais que na força O poder normalmente pelo menos não é um instrumento manipulado por elites guiadas por seus interesses mas uma função de que se desincumbem profissionais apoiados pôr seus mandatários Foi portanto por compartilhar a visão conflituosa de Max Weber que Wright Mills acreditouse capaz de definir o poder como a possibilidade conferida a um grupo os detentores do poder para conseguir o que deseja impedindo outro grupo os excluídos do poder de obter o que deseja Segundo Parsons esta definição toma por essencial o que é apenas secundário Em outras palavras Parsons tende a dissolver o poder em relação de fato entre os que mandam e os que executam na autoridade entendida como a capacidade que certos indivíduos possuem por seu papel ou função de fixar obrigações ou exigir seu cumprimento a autoridade do recebedor ou de qualquer funcionário a quem chamamos autoridade O poder no sentido forte seria apenas o recurso último que intervém quando a autoridade é desacatada Já formulamos algumas reservas quanto à antropologia otimista pressuposta por essa tese Não é nada evidente que os homens sejam espontaneamente levados a considerar o poder como o exercício de uma função à qual é razoável que obedeçam Nem que eles se submetam a ele acima de tudo por saberem que o seu interesse profundo é colaborarem para alcançar objetivos impostos pelos fins coletivos De resto como observa Pierre Birnbaum em sua análise do pensamento de Parsons La Fin du Politique acontece que o bem comum em prol do qual o poder trabalha depende como confessa o próprio Parsons do sistema de valores instituídos na sociedade quer dizer que ele é definido exclusivamente segundo os valores que legitimam o funcionamento atual do capitalismo Assim por que estranhar se muitos não reconhecem como seu este bem comum Mesmo nos países democráticos desenvolvidos com exceção dos Estados Unidos e da Alemanha nunca temos mais que sociedades consensuais muito frágeis É possível na verdade considerar o consenso como a norma de funcionamento de uma comunidade política E encarar como patológicas as sociedades cujo funcionamento se vê entravado pelas tensões sociais e ideológicas São estas as questões que Dahrendorl dirige a Parsons e após exame parecelhe difícil conceder a este último que uma sociedade seja essencialmente uma estrutura estável e permanente de elementos bem integrados e fundada no consenso dos seus membros quanto aos valores Assim como a melhor constituição cuja fórmula os pensadores gregos do século IV aC procuravam encontrar também a sociedade integrada regida por um poder mínimo parece constituir na melhor das hipóteses apenas uma Idéia reguladora Quando Dahrendorl opõe este modelo ao modelo coercitivo O conflito social é onipresente toda sociedade está fundada na coerção de uns membros seus sobre outros bem parece que esta segunda percepção do social seja um instrumento de análise mais fecundo Embora o modelo marxista negue a natureza original do poder político vemos que se afasta menos dos dados observáveis que o modelo integracionista pelo menos reconhece que o papel coercitivo do Estado não é absolutamente secundário e que o conflito social existe de direito enquanto durar a propriedade privada dos meios de produção Deixemos de lado esta última precisão encorajadora mas muito contestável Resta que desta maneira o poder político não se encontra dissolvido num reino da Lei num funcionamento racional em si e normalmente não coercitivo que ele não é mais percebido como o pacífico primeiro motor de uma sociedade na qual o seremcomum dos grupos e das classes não cria em si nenhuma dificuldade O modelo coercitivo levanos de volta à inegável fronteira entre os detentores e os excluídos fronteira esta que é inseparável da relação de poder O erro está não resta dúvida em pretender identificar depressa demais os detentores Mas iria muito longe na denúncia de tal erro quem recusasse a equação poder coerção e procurasse diluir o poder numa autoridade livre e racionalmente consentida por todos ou quase todos O poder não é um caso extremo de exercício da autoridade ao contrário é a sua violência quando em surdina que torna possível uma aparência de autoridade cortês e benevolente E isso em qualquer sociedade que seja Mas se assim for o que pensar então do modelo de Hobbes Se concretamente o poder sempre supõe a dominação do grande número por uma elite que confunde inevitavelmente muitas vezes com toda a boafé os seus objetivos próprios com o que ela chama de bem comum será difícil apresentálo como a figura normal da comunidade política em geral Congregarse numa cidade seria fatalmente tornarse presa de dominadores egoístas inteligentes ou não porém sempre egoístas seja qual for o discurso que eles empreguem e pelo qual enganamse a si mesmos Somos tentados a recuar diante desta conclusão Somos tentados uma vez mais a imaginar a qualquer preço um além para a comunidade cimentada pelo poder Isto não será normal Até as crianças exigem que as histórias que lhes contamos terminem bem observava Hegel bom entendedor em matéria de happy ends Se o pensamento alemão posterior a Kant sentir saudades da Grécia e da bela cidade ética se Hegel se acreditou capaz de esperar transpor a Cidade harmoniosa para o solo da modernidade foi sem dúvida por ser difícil especialmente para os intelectuais aceitar o Estado como ele é e ter ao mesmo tempo coragem de encarar a potência que o movimenta existem coisas cuja obscenidade é insuportável Por isso é preciso tentar escapar a qualquer custo deste paradoxo que Kant enunciava O homem é um ser que precisa de um chefe Até os homens que acreditam dominar também precisam de tal chefe e eles são pouco capazes de se valerem desta sua chefia se finalmente é um homem quem deve ser o último chefe Reflexão nº 1398 Ora se este último chefe nunca pode deixar de ser um homem ou um grupo de homens é preciso reconhecer não só que não há comunidade sem soberania como também que não existe poder soberano sem uma elite que domine É preciso conceder a Vilfredo Pareto que a história das sociedades humanas é em grande parte a história da sucessão das aristocracias frase que não é nada reacionária a aristocracia pode perfeitamente ser uma burocracia socialista A questão assim será unicamente saber em cada caso determinado quais são os chefes menos piores que podemos esperar ou por que tipo de chefia devemos militar Assim seriam ditas as coisas por quem não se sentisse obrigado a ceder à tagarelíce ideológica Um poder burguês teria a coragem de dizer Sim nós favoreceremos os capitalistas sim seremos generosos com eles em matéria fiscal para não prejudicar os seus investimentos mas e daí Vocês lucrarão com isso Um poder socialista teria a coragem de dizer Não nós não viemos trazerlhes a liberdade de informação nem o pluralismo partidário não vocês praticamente não terão voz no capítulo mas e daí A sua segurança cotidiana estará garantida Não é este porém o discurso dos poderes nem sequer daqueles cujas elites possuem uma idéia mínima do que seja o 46 bem comum Até estes devem mentir devem apresentarse como defensores da liberdade ou como vanguarda do proletariado Suponhamos porém este minuto de verdade Suponhamos que os poderes larguem essa sua linguagem maligna e se apresentem de peito aberto como vontades de potência não disfarçadas por que se envergonhar Os homens talvez se tornassem espíritos livres Parariam de vituperar o Poder e se perguntariam quem é capaz num dado momento de exercêlo com menor detrimento de todos aqueles que por princípio são excluídos dele Não depositariam mais as suas esperanças totalmente no dia em que o poder não passasse de uma triste lembrança mas agiriam para que os dominadores do futuro estivessem mais perto do Soberano hobbesiano do que do tirano O poder não seria mais um escândalo ideológico porém única e francamente uma questão política Mas como esta rude franqueza poderá ser possível num mundo que foi e continua a ser educado pelo racionalismo grego e pelo cristianismo 47 INDICAÇÕES DE LEITURA Os clássicos da questão THOMAS HOBBES Leviatã LEO STRAUSS The Political Philosophy of Thomas Hobbes its Basis and Genesis JEANJACQUES ROUSSEAU O Contrato Social EMMANUEL KANT A Doutrinado Direito HEGEL Os Princípios da Filosofia do Direito Uma excelente formulação da problemática política clássica LEO STRAUSS Natural Right and History de University of Chicago Press JÜRGEN HABERMAS Teoria e Prática TOCQUEVILLE devese ler a excelente seleção apresentada na coleção Os Pensadores Uma boa iniciação acerca das relações e rupturas entre os pensamentos políticos antigo e moderno está no livro de HANNAH ARENDT Entre o Passado e o Futuro editora Perspectiva Sobre a essência da política JULIEN FREUND Questce que la Politique RAYMOND ARON Estudos Politiques HAROLD LASKI A Grammar of Politics 1934 MAX WEBER O Cientista e o Político JULIEN FREUND Essais sur la Théorie de la Science Plon Sobre o nascimento e a extensão do poder político BERTRAND DE JOUVENEL Du Pouvoir eles Débuts de Ittat Moderne Para um ponto de vista marxista ANTONIO GRAMSCI Notas sobre Maquiavel a Política e o Estado Moderno PERRY ANDERSON Lineages of the Absolutist State Sobre o liberalismo clássico LOCKE Segundo Tratado do Governo Civil PIERRE FRANÇOIS MOREAU Les Racines du Libéralisme Seuil Sobre as doutrinas norteamericanas a que nos referimos WRIGHT MILLS A Elite do Poder TALCOTT PARSONS The Social System Free Press 1951 On the concept of political power in Politics and Social Structure 1969 PIERRE BIRNBAUM La Fin du Politique Seuil RALF DAHRENDORF Class and Class Conflict in Industrial Society MICHEL FOUCAULT Vigiar e Punir Vontade de Saber 1º vol História da Sexualidade Graal 1977 SOBRE O AUTOR Gerárd Lebrun nasceu em Paris em 1930 Professor do Departamento de Filosofia da USP desde sua chegada ao Brasil na década de 50 leciona também no programa de pósgraduação em Lógica e Filosofia da Ciência da UNICAMP Publicou Kant et lafin de la metaphisyque Armand Colin 1970 La Patience du concept Gallimard 1972 Passeios ao léu Brasiliense 1983 Pascal Brasiliense Coleção Encanto Radical 1983 O avesso da dialética Companhia da Letras 1988