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História da Arte ·
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DA HISTÓRIA DAS MENTALIDADES À HISTÓRIA DAS CRENÇAS LA POSSESSION DE LOUDUN (1970) Philippe Boutry Tradução: Mariza Romero* Revisão Técnica: Yara And Khoury** Muitas das pessoas reunidas neste Encontro certamente trarão um testemunho pessoal. Este não é o meu caso. Encontrei Michel de Certeau apenas uma vez, rapidamente, em 1984, e tão rapidamente que não ousaria, em outro lugar, trazer essa lembrança. Entretanto, esta contribuição será à sua maneira, um testemunho, o de um estudante de 20 anos que, no verão de 1974, leu com paixão um livro que o marcou: La possession de Loudun. Testemunho que eu gostaria de prolongar e aprofundar em uma série de reflexões, de ordem principalmente historiográfica, que a atenta releitura desse pequeno livro, que é um grande livro, pode inspirar no campo da história religiosa, mesmo se o ponto de referência de minha própria reflexão diga respeito mais ao catolicismo do século XIX, por isso eu temo, pelo qual Michel de Certeau não nutria grande simpatia. Uma (re)leitura Será verossímil, até mesmo concebível, recuperar com alguma aparência de fidelidade, impressões de leitura de mais de dez anos? Não, sem dúvida. É, antes, misturando estreitamente recordações antigas e impressões presentes, que gostaríamos, num Proj. História, São Paulo, (17), nov. 1998 13 primeiro momento, de tentar encontrar um certo número de emoções intelectuais que permanecem vivas na lembrança: breve, uma leitura, no lugar uma releitura. O primeiro elemento que chama a atenção em La possession de Loudun é o modo de escrever: uma articulação particular de texto com seu comentário, do documento com a reflexão que o acompanha. Esta construção atém-se, certamente, às regras de uma coleção, "Archives", então dirigida por Pierre Nora e Jacques Revel (edições Juillard), e da qual La possession de Loudun constituía, em 1970, o 37º volume. Mas uma mesma regra não funciona de igual forma para cada historiador — bastaria comparar o modo de escrita de La possession de Loudun com outros títulos quase contemporâneos, da mesma coleção, como Le roi, de Georges Duby, ou Le Prono de L. Louis XVI, de Albert Soboul. Michel de Certeau, que será tão enfatizado em L'ecriture de l'histoire como em L'absent de l'histoire, está muito consciente disto: O livro de história começa com um pretexto: Edifica-se a partir de duas séries de dados: de um lado, os “ideias” que temos sobre o passado, aquelas que um relato vulnera menos, mas em enceramento nada mais do que mentalidades novas; de outro, documentos, arquivos, vestígios cujos setores reunidos, negligenciando os fundamentos do próprio significado, também reinam. Entre os dois, um domínio do trabalho: a redução de uma trama lançada num texto, um jogo de combinação e descontinuidade cujo lazer reduz o campo histórico, ou a consciência pode fazer recomposições múltiplas. citando apenas um, na mesma linha temática, Robert Mandrou. Papéis, gazetas, processos-verbais; memoriais, “narrações verdadeiras”, “contos verídicos”, correspondências de uso mais ou menos público, formam o essencial da informação de La possession de Loudun e constituem preciosas indicações não tanto sobre o acontecimento em si, mas sobre o discurso que a morte de Grandier agora autoriza. O conjunto dessa literatura é objeto de uma investigação erudita que inclui mapas e até gráficos. Esse gosto pelo texto raro, quase clandestino, essa curiosidade pelos seus modos de produção e de circulação, situam-se num longo trabalho anterior, de edição de textos místicos do século XVII. Mas talvez seja necessário ir além da erudição para aprender com Michel de Certeau o movimento de uma busca inquieta do pensador não é ele quem, em La prise de parole 1 livro escrito em Paris, aos 9 de setembro de 1968, no calor dos acontecimentos, apresenta uma extraordinária “Bibliografia de Maio de 68”, com dezoito páginas, invocando coleções de panfletos e reportagens, para melhor salvaguardar a “revocação da palavra” que ele acabava de viver? Mas, foi talvez nesse mesmo movimento que ele quis anos mais tarde, em La possession de Loudun, sobre a morte de Grandier. A morte parece liberar a palavra. Quando uma exceção termina, uma literatua profícua, prolífica se faz ao lado dela. O tempo secular avança sem suspender sua economia da presença provocada pela morte. Ela descreve os fatos, justifica-os ou condena. Mas, tudo o que diz se conjuga no passado e só se torna possível por um ação irreversível e definitiva. Urbain Grandier foi queimado. (p. 265) É “função da linguagem dizer o ausente”, interroga-se, mais adiante, Michel de Certeau (p. 275)? A observação vale sem dúvida para a própria história — a que se escreve, que se ouve. Porque a marcação que caracteriza o tom desse livro impregna conjuguerelles, Paris, Gallimard-Seuil, 1982, pp. 247-264; Michel de Certeau homenageou Michel Foucault em “Le rire de Michel Foucault” (1984), reunida na sua coleção Histoire et psychanalyse entre science et fiction, Paris, Gallimard, col. Folio, 1987, cap. III. 6 Particularmente as três edições de Montaind, de Pierre Favre, Paris, Desclée de Brouwer, 1967; de Gilles Quispel, de Jean-Joseph Surin, Paris, Desclée de Brouwer, 1963, e da Conrbronneau, de Jean-Joseph Surin, Paris, Desclée de Brouwer, 1966. Análise crítica exemplar da formação e difusão de textos místicos, “L’édition édudé dans l'histoire de la lutte de Surin sur le possédé de Loudun (1616)", em Revue d’anthopologie et de sociogique, t. XLIV, 1962, pp. 391-436, incluída parcialmente em La fable mystigue, t. 1, 1982, e ed. Paris, Gallimard, col. Tel, 1987, cap. VII. 7 Certeau, M. de, L'écriture de l'Histoire, Paris, Mame, col. Reprises, 1973. 16 Proj. História, São Paulo, (17), nov. 1998 ainda em vários níveis o trabalho do historiador, tanto no que concerne à interpretação como à explicitação. Leitura plural, para retomar uma palavra atual, que não pretende esgotar um sentido nem elucidar todos os pontos que permaneceram obscuros, mas sobretudo multiplicar as luminosidades e as perspectivas e determinar através delas o que parece ter sido, para Michel de Certeau, o objeto mais inacessível da história — coloco aqui esta hipótese, e voltarei a ela mais tarde —, um certo tipo de formalidade na ordem dos discursos e das práticas, um certo arranjo, uma certa articulação entre os campos da crença e os da cultura, da sociedade e do poder. Não que ao longo do livro faltem aberturas historiográficas na interpretações esclarecedoras, pelo contrário. Mas a análise política, social ou religiosa das palavras, dos gestos, dos discursos e dos “leitores”, dos indivíduos, das instituições, não tem a virtude de revelar “as figuras do outro”. Essa impossibilidade radical constitui o primeiro argumento da conclusão do livro: A possessão não comporta explicação histórica “verdadeira” porque não é possível saber quem foi movente e por quem (...). O estratag para liberar-se dela consiste em reempenhá-la, recheá-la de no desespero. Não há outro lugar de identificatividade para um indivíduo entre, pela razão de Estado, do demoniocar para a devoção. E esse processo necessariamente nunca parou. (p. 327) O historiador é, assim, à sua maneira, um exorcista: um “Père Tranquille”, para retomar o nome do mais ativo dentre eles, religioso franciscano que morreu por sua vez obecido. Mas esse não é o projeto historiográfico de Michel de Certeau, nem a impressão que se depreende da leitura do seu livro. E essa conclusão em forma de recusa convidou-nos a retomar os temas da introdução: “primeiro tentar compreender” (p. 18). Foi nessa direção que apareceu, talvez pela primeira vez, num estudo histórico francês não técnico, uma pista inicial, apenas esboçada, nunca isolada do texto de analise: a psi- Proj. História, São Paulo, (17), nov. 1998 17 canalise, ou então o que se poderia chamar, com Jacques Nassif, uma “psicologia freudiana”. Discreta, a referência ao Freud de Une névrose démoniaque au XVII siècle? está presente, por meio da iconografia. Os três quadros do pintor Cristophe Haitzmann, de modo um pouco irônico, sem dúvida, servem de introdução freudiana às ilustrações reunidas na obra. Brevemente ainda, este comentário, que se relaciona com a última carta que Urbain Grandier escreveu à sua mãe: o bendito de agora em diante se cala; “com o mesmo gesto, acrescenta Michel de Certeau, ele restitui a palavra à sua mãe, que nunca cessou de ser sua verdadeira detentora” (p. 232). É enfim, o longo capítulo que comenta L'autobiographie, de irmã Jeanne des Anges e sua imperfeita e ambígua mutação de possuída em espiritual: “menina desafortunada”, “pai humilhado”, “mãe absoluta”, “pequenas condescendências”, “pequenas exprovações” e “pequenas invenções”. São todos esses elementos reunidos que sugerem, mesmo ao leitor menos habituado à obra de Freud, a análise de uma “névrose démoniaque” (cap. XIV). Entretanto, essa expressão não se encontra no livro. Mesmo assim, Michel de Certeau a lança hoje aos perdida na corporação dos historiadores, seja jogando suas reflexões diante de algumas certezas positivas do Aufklärung Irredentism ou bem afinado esse tipo de elucidação, tipo de dilucidação, que deriva da mística, ou mal humor do decidir, aparece relatado no fim da possessão de Jeanne des Anges encontra-se Jean Joseph Surin, principal representante da corrente mística jesuíta do século XVII, em companhia do qual Michel de Certeau seguiu — dos seus primeiros trabalhos de edição até La fable mystique — um longo e fiel caminho espiritual e intelectual. Linguagem mística, e de uma mística cristã, cuja análise se serve de uma excepcional cultura, tanto das Sagradas Escrituras como teológica, por intermédio da qual as palavras e os gestos dos clérigos, e o discurso religioso no seu conjunto, adquirem consistência cultural, profundidade histórica e hu- en Expérience diu nui, Paris, Flammarion science, 1971; assim como o estudo de Georges Lemoine, “Psychanalyse et historien: une application à l’histoire de Sepure”, in Anndata E.S.C., t. XX, 1965/1, pp. 19-44. Sobre a influência dos Jacques Larcant, af. Michel de Certeau, “Lacan: une éthique de la parole”, in Le défut, n? 12, novembre 1968, pp. 54-69; todas reunidas em Histoire et psychanalyse, cap. VIII. Cf. em interação dos psicanalistas, as reflexões de Dominique Julin, “Expériencia e história do 始nda em Michel de Certeau”, em Le divouce pscyoanalyse”, n? 18, março-abril 1968, p. 52-54. 10 Michel de Certeau, “Ce que Freud fait de l'historai, A propósito de une neurose démoniaque au XVII siede”, in Annales E.S.C., t. 25, 1970/3, pp. 654-674, reunida em L'écriture de l'histoire, op. cit., XI más junto como certo estudo sobre a obra “histórica” de Freud, “La fiction de l’histoire. L écriture de Moise et le monotheisme”, ind., cap. IX. Proj. História, São Paulo, (17), nov. 1998 18 mania. Estas são as palavras de Urbain Grandier sob tortura: “Messeigneurs, attendite et videte si est dolor sicut dolor meus”. Palavras que Michel de Certeau reconhece como sendo as do Servo sofredor e que o sacerdote retoma no ofício das Trevas do Sábado Santo (pp. 255-256). São essas ainda suas últimas palavras na fogueira: “Eu vou agora nascer para o Paraíso”, quando o historiador das crenças capta a derradeira assimilação da Paixão de Grandier à de Cristo (p. 258). É sobretudo a extraordinária empresa de subversão do exorcismo pela linguagem espiritual da “via interior” que ele analisa como exegeta do discurso místico, na direção que exerce Surin junto à irmã Jeanne des Anges — direção que autorizaria a “saída” definitiva do círculo da possessão, traçando, infelizmente, uma nova “carreira” e novas “funções” para a madre superiora. Nesse momento, parece-me que se manifesta mais distintamente uma busca de sentido — busca aninhada (não por acaso) por Michel de Certeau aos dois personagens desta história que ele acompanhou quando escreveu a “história” de Loudun. Mas essa volta não se limita por Grandier e compreende como para Surin a verdade, uma vez que o vencedor do conflito foi Laubardemont, não o homem do cardeal, sobre o qual Michel de Certeau teve aqui inopinadamente uma palavra rigorosa, mas porque a reforma e, em última instância, uma exploração do essencial é fundamental: “A pobreza de Laubardemont aliou-se ao poder, mas também à loucura. Híbrida e orientada como um jogo de inconscientes onde a ambição era o motor [...] Laubardemont non possum tecum vivere secundum suas necessidades” (pp. 281-282). A conclusão do acontecimento de Loudun, tal como exprimem as últimas linhas do livro, é uma articulação nova da crença no mundo. Ligada a um momento, ou seja, à passagem de critérios religiosos para políticos, de uma antropologia cosmológica e celeste para uma organização científica dos objetos naturais ordenados pelo olhar do homem, a possessão de Loudun abre caminho para a estranheza da história, para os reflexos desencadeados por suas alterações e para a questão que se coloca a partir do momento em que surgem, diferentes dos malefícios de antigamente mas tão inquietantes quanto eles, as novas figuras sociais do outro. Da história das mentalidades à história das crenças É partir desta breve apresentação de La possession de Loudun, embora incompleta e parcial, que eu gostaria de, em um segundo momento, estender a análise dessa história, desenvolvendo uma reflexão historiográfica (centrada no ano de 1970) sobre a contribuição de Michel de Certeau no campo mais geral da história religiosa. Há muitas maneiras de abordar um historiador, seja retroagindo as influências intelectuais que determinaram suas direções de pesquisa, seja confrontando sua experiência com a de outros pesquisadores com a mesma preocupação, seja tentando extrair da configuração de sua obra uma coerência, uma continuidade ou uma lógica de evolução. É desse último ponto que eu gostaria de partir, porque, talvez, ele se vincule melhor ao itinerário de um homem do que à evolução de um saber ou de uma problemática. Ora, a organização da bibliografia de Michel de Certeau se apresenta como um exercício difícil e cheio de ciladas. Primeiro por sua extensão: mais ou menos dezenove obras, editadas ou redigidas por ele ou em colaboração; mais de quatorze textos dispersos em revistas e publicações. Em segundo lugar porque grande parte desses textos foram reutilizados tais quais, retomando e reelaborados, ou (para retomar um termo do próprio autor) emergindo mais ou menos parcialmente, em sua complexidade e em sua diversidade, a bibliografia de Michel de Certeau deixa transparecer com notável nitidez a coerência de um itinerário corno ponto de partida ou fim (fim de uma existência e não de uma obra), uma transição iniciada na edição de Memorial, de Pierre Favre, em 1960, à de Guide spirituel, e de Correspondance, de Surin, em 1963 e 1966, até La fable mystique em 1992. Entre esses dois extremos, se desenha um conjunto de textos, pesquisas, posicionamentos que vão da reflexão historiográfica à etnologia, da psicanálise à crise contemporânea do cristianismo, da repressão à feitiçaria e à destruição dos dialetos, da linguística à teologia, da cultura erudita à cotidiana. Um Charles Péguy de hoje poderia escrever: uma mística, e políticas. Mas ele estaria equivocado. Porque a coerência dessas abordagens plurais e a inspiração central de uma vida de intelectual me parecem — é esta hipótese que eu gostaria de defender e aprofundar — mais fortes e mais fecundos do que poderiam parecer à primeira vista, por mais fundamental que possa ter sido a ruptura, ou melhor, a abertura que se manifestou subitamente na reflexão de Michel de Certeau no decurso dos anos 60. 11 Sua bibliografia, estabelecida por Luce Girard, será publicada em um número duplo, dedicado à sua obra, Recherches de science religieuse, t. LXXVI, 1988. 12 No que concerne aos anos que precederam La possession de Loudun, é essencial das contribuições de Michel de Certeau estar reunido em Revue d’eschatologie et de mystique; em Revue d’histoire de la spiritualité e em Christus, Études et Esprit. Aqui, um texto poderia trazer algum esclarecimento. Ele foi extraído de um número especial da revista Christus, dirigida por Michel de Certeau e François Roustang, sobre o tema da solidão, ou seja, a dificuldade ou impossibilidade da comunicação. Texto datado (1963-64), tanto na biografia intelectual do seu autor como na história do catolicismo francês pós Concílio Vaticano II (do qual ele deriva em muitos aspectos), em que já se pode facilmente notar o conjunto dos temas que Michel de Certeau irá desenvolver nos anos seguintes. Um dos capítulos — “Le désert de l’apôtre” — é dedicado à experiência missionária. Para ilustrar o percurso interno daquele que traz o Evangelho para o outro, ele se apóia em Lévi-Strauss e Paul Ricœur, como também nos testemunhos dos missionários ou, ainda, na obra de Madeleine Delbrêl, Ville marxiste, terre de mission. Leva-se a propósito luz “tempos purificados”, que constituem para o missionário “a passagem pela objevação”, que ele trata, para ele, de uma “escola de responsabilidade”. Nessa situação, está seu drama ou cruzamento, em que se pode ser outro como”, resume Michel de Certeau. Os modelos de pesquisa originários de análise sociológica e psicológica. Ao colocar em relevo os indicadores que lhe permitiram focalizar e determinar essa terra incógnita — signos lendários de novas trajetórias, seu transfigurado, simbolismo iconográfico ou histórico, etc., ele vê essas novas possibilidades. E tornando precisa a natureza desse percurso espiritual e intelectual: Tal como o conjunto, o missionário toma consciência de profundidades diferentes mas de igual natureza, em que se encerra sua própria mentalidade. Ele também está colocado diante dessa fato perturbador que contrasta com seus postulados simplificadores: a pluralidade dos universos mentais. Esses mundos estão separados por fraturas que, tanto mais reais quanto menos explícitas. Enfraquedos coletivas aprofundam essas rachaduras entre os grupos levando a uma descoberta. O homem é outro que o homem, ele mesmo. Esse texto, tão circunstanciado, enuncou com uma notável acuidade, às vésperas da grande revolução das ciências humanas, as lógicas e as vias de uma abertura cultural, de uma explosão da interrogação religiosa em direção à horizontes antropológicos, 14 “Le désert de l’apôtre”, op. cit. pp. 60-1. linguísticos, psicológicos (a psicanálise virá mais tarde), sociais, filosóficos ou ideológi- cos. O que está em jogo é uma crença que descobre o outro, quer dizer, seu próprio limite, sob a forma antropológica de uma recusa de universalidade. 15 É uma crença que se abre e ao mesmo tempo se fecha: no belo texto que Michel de Certeau dedicou ao Brasil de Jean de Léry, 16 alguns anos mais tarde, o outro será tudo, será a missão — e, por meio dela, toda referência explícita a uma transcendência como fundamento do sentido 17 —, a missão ausente. Desde o trabalho sobre a mística, às vésperas dos anos 60, até a abordagem plural de La possession de Loudun, em 1970, ilumina-se um percurso que não segue apenas o itinerário biográfico de Jean Joseph Surin. Ele passa ainda por um enfron- tamento polêmico em torno da noção de cultura popular, que é necessário evocar breve- mente. O objeto será, como se sabe, Magistrats et sorciers, publicado em 1968, por Robert Mandrou. 18 Em 1969, Michel de Certeau dedica à obra uma longa resenha de vinte páginas na Revue d'histoire de l'Eglise de France. 19 Sob os cumprimentos, não foram apenas (normais - “Por ter viajado pela nossa literatura múltipla do livro” (p. 315), um tipo de laudo (auto)biográfico essencial para uma história do livro” (p. 307); um adendo: “É um grande livro; um livro que somente pode surgir pela forma rigorosa e científica com que é abordado” (p. 307); ou ainda, certa circunspecção sobre “a importância do tema e da contribuição do livro do Sr. Mandrou” (p. 319) - manifesta-se a crítica; ou melhor dizendo, uma insatisfação intelectual, uma decepção.»20 — __________ 15 “Há [...] uma determinação histórica do cristianismo”, afirma, alguns anos mais tarde, Michel de Certeau (in Le Christianisme éclaté, entretien avec Jean-Marie Domenach, Paris, Seuil, 1974, pp. 43-44). “Donde em conclusão imediatamente, para ser claro, que ele não é tão importante o que, nessa é universal”. 16 “Ethno-graphie. L'utraité, ou l'espace de l’ovate: Léry”, in L’Ecriture de l’histoire, op. cit.; pp. 215-249. 17 “A Terra que Deus habita sem que saibam”, onde “em cada lugar, em cada vida, está Cristo” (“Le désert de l’équité” op. cit., pp. 616 e 841. 18 Robert Mandrou, “Magistrats et sorciers en France au XVII e siècle”, in Revue d’histoire de l’Eglise de France, t. LIV, 1969, pp. 308-349; texto retomado em L’écriture de l’histoire, cap. I. As referências em caracteres itálicos e entre parênteses, incluídas no texto e nas notas, são relativas a esse artigo. 19 Michel de Certeau, “Une mutation culture et religion: les magistrats devant les socieres du XVII siècle”, in Revue d’histoire de l’Eglise de France, t. LIV, 1969, pp. 308-319; texto retomado em L’écriture de l’histoire, cap. I. As referências em caracteres itálicos e entre parênteses incluídas no texto e na nota são relativas a este artigo. 20 “Lamentos que R. Mandrou”op. 345, nota 10; “R. Mandrou traz muitos elementos novos, que talvez 22 Proj. História, São Paulo, (17), nov. 1998
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Não que ao longo do livro faltem aberturas historiográficas na interpretações esclarecedoras, pelo contrário. Mas a análise política, social ou religiosa das palavras, dos gestos, dos discursos e dos “leitores”, dos indivíduos, das instituições, não tem a virtude de revelar “as figuras do outro”. Essa impossibilidade radical constitui o primeiro argumento da conclusão do livro: A possessão não comporta explicação histórica “verdadeira” porque não é possível saber quem foi movente e por quem (...). O estratag para liberar-se dela consiste em reempenhá-la, recheá-la de no desespero. Não há outro lugar de identificatividade para um indivíduo entre, pela razão de Estado, do demoniocar para a devoção. E esse processo necessariamente nunca parou. (p. 327) O historiador é, assim, à sua maneira, um exorcista: um “Père Tranquille”, para retomar o nome do mais ativo dentre eles, religioso franciscano que morreu por sua vez obecido. Mas esse não é o projeto historiográfico de Michel de Certeau, nem a impressão que se depreende da leitura do seu livro. E essa conclusão em forma de recusa convidou-nos a retomar os temas da introdução: “primeiro tentar compreender” (p. 18). Foi nessa direção que apareceu, talvez pela primeira vez, num estudo histórico francês não técnico, uma pista inicial, apenas esboçada, nunca isolada do texto de analise: a psi- Proj. História, São Paulo, (17), nov. 1998 17 canalise, ou então o que se poderia chamar, com Jacques Nassif, uma “psicologia freudiana”. Discreta, a referência ao Freud de Une névrose démoniaque au XVII siècle? está presente, por meio da iconografia. Os três quadros do pintor Cristophe Haitzmann, de modo um pouco irônico, sem dúvida, servem de introdução freudiana às ilustrações reunidas na obra. Brevemente ainda, este comentário, que se relaciona com a última carta que Urbain Grandier escreveu à sua mãe: o bendito de agora em diante se cala; “com o mesmo gesto, acrescenta Michel de Certeau, ele restitui a palavra à sua mãe, que nunca cessou de ser sua verdadeira detentora” (p. 232). É enfim, o longo capítulo que comenta L'autobiographie, de irmã Jeanne des Anges e sua imperfeita e ambígua mutação de possuída em espiritual: “menina desafortunada”, “pai humilhado”, “mãe absoluta”, “pequenas condescendências”, “pequenas exprovações” e “pequenas invenções”. São todos esses elementos reunidos que sugerem, mesmo ao leitor menos habituado à obra de Freud, a análise de uma “névrose démoniaque” (cap. XIV). Entretanto, essa expressão não se encontra no livro. Mesmo assim, Michel de Certeau a lança hoje aos perdida na corporação dos historiadores, seja jogando suas reflexões diante de algumas certezas positivas do Aufklärung Irredentism ou bem afinado esse tipo de elucidação, tipo de dilucidação, que deriva da mística, ou mal humor do decidir, aparece relatado no fim da possessão de Jeanne des Anges encontra-se Jean Joseph Surin, principal representante da corrente mística jesuíta do século XVII, em companhia do qual Michel de Certeau seguiu — dos seus primeiros trabalhos de edição até La fable mystique — um longo e fiel caminho espiritual e intelectual. Linguagem mística, e de uma mística cristã, cuja análise se serve de uma excepcional cultura, tanto das Sagradas Escrituras como teológica, por intermédio da qual as palavras e os gestos dos clérigos, e o discurso religioso no seu conjunto, adquirem consistência cultural, profundidade histórica e hu- en Expérience diu nui, Paris, Flammarion science, 1971; assim como o estudo de Georges Lemoine, “Psychanalyse et historien: une application à l’histoire de Sepure”, in Anndata E.S.C., t. XX, 1965/1, pp. 19-44. Sobre a influência dos Jacques Larcant, af. Michel de Certeau, “Lacan: une éthique de la parole”, in Le défut, n? 12, novembre 1968, pp. 54-69; todas reunidas em Histoire et psychanalyse, cap. VIII. Cf. em interação dos psicanalistas, as reflexões de Dominique Julin, “Expériencia e história do 始nda em Michel de Certeau”, em Le divouce pscyoanalyse”, n? 18, março-abril 1968, p. 52-54. 10 Michel de Certeau, “Ce que Freud fait de l'historai, A propósito de une neurose démoniaque au XVII siede”, in Annales E.S.C., t. 25, 1970/3, pp. 654-674, reunida em L'écriture de l'histoire, op. cit., XI más junto como certo estudo sobre a obra “histórica” de Freud, “La fiction de l’histoire. L écriture de Moise et le monotheisme”, ind., cap. IX. Proj. História, São Paulo, (17), nov. 1998 18 mania. Estas são as palavras de Urbain Grandier sob tortura: “Messeigneurs, attendite et videte si est dolor sicut dolor meus”. Palavras que Michel de Certeau reconhece como sendo as do Servo sofredor e que o sacerdote retoma no ofício das Trevas do Sábado Santo (pp. 255-256). São essas ainda suas últimas palavras na fogueira: “Eu vou agora nascer para o Paraíso”, quando o historiador das crenças capta a derradeira assimilação da Paixão de Grandier à de Cristo (p. 258). É sobretudo a extraordinária empresa de subversão do exorcismo pela linguagem espiritual da “via interior” que ele analisa como exegeta do discurso místico, na direção que exerce Surin junto à irmã Jeanne des Anges — direção que autorizaria a “saída” definitiva do círculo da possessão, traçando, infelizmente, uma nova “carreira” e novas “funções” para a madre superiora. Nesse momento, parece-me que se manifesta mais distintamente uma busca de sentido — busca aninhada (não por acaso) por Michel de Certeau aos dois personagens desta história que ele acompanhou quando escreveu a “história” de Loudun. Mas essa volta não se limita por Grandier e compreende como para Surin a verdade, uma vez que o vencedor do conflito foi Laubardemont, não o homem do cardeal, sobre o qual Michel de Certeau teve aqui inopinadamente uma palavra rigorosa, mas porque a reforma e, em última instância, uma exploração do essencial é fundamental: “A pobreza de Laubardemont aliou-se ao poder, mas também à loucura. Híbrida e orientada como um jogo de inconscientes onde a ambição era o motor [...] Laubardemont non possum tecum vivere secundum suas necessidades” (pp. 281-282). A conclusão do acontecimento de Loudun, tal como exprimem as últimas linhas do livro, é uma articulação nova da crença no mundo. Ligada a um momento, ou seja, à passagem de critérios religiosos para políticos, de uma antropologia cosmológica e celeste para uma organização científica dos objetos naturais ordenados pelo olhar do homem, a possessão de Loudun abre caminho para a estranheza da história, para os reflexos desencadeados por suas alterações e para a questão que se coloca a partir do momento em que surgem, diferentes dos malefícios de antigamente mas tão inquietantes quanto eles, as novas figuras sociais do outro. Da história das mentalidades à história das crenças É partir desta breve apresentação de La possession de Loudun, embora incompleta e parcial, que eu gostaria de, em um segundo momento, estender a análise dessa história, desenvolvendo uma reflexão historiográfica (centrada no ano de 1970) sobre a contribuição de Michel de Certeau no campo mais geral da história religiosa. Há muitas maneiras de abordar um historiador, seja retroagindo as influências intelectuais que determinaram suas direções de pesquisa, seja confrontando sua experiência com a de outros pesquisadores com a mesma preocupação, seja tentando extrair da configuração de sua obra uma coerência, uma continuidade ou uma lógica de evolução. É desse último ponto que eu gostaria de partir, porque, talvez, ele se vincule melhor ao itinerário de um homem do que à evolução de um saber ou de uma problemática. Ora, a organização da bibliografia de Michel de Certeau se apresenta como um exercício difícil e cheio de ciladas. Primeiro por sua extensão: mais ou menos dezenove obras, editadas ou redigidas por ele ou em colaboração; mais de quatorze textos dispersos em revistas e publicações. Em segundo lugar porque grande parte desses textos foram reutilizados tais quais, retomando e reelaborados, ou (para retomar um termo do próprio autor) emergindo mais ou menos parcialmente, em sua complexidade e em sua diversidade, a bibliografia de Michel de Certeau deixa transparecer com notável nitidez a coerência de um itinerário corno ponto de partida ou fim (fim de uma existência e não de uma obra), uma transição iniciada na edição de Memorial, de Pierre Favre, em 1960, à de Guide spirituel, e de Correspondance, de Surin, em 1963 e 1966, até La fable mystique em 1992. Entre esses dois extremos, se desenha um conjunto de textos, pesquisas, posicionamentos que vão da reflexão historiográfica à etnologia, da psicanálise à crise contemporânea do cristianismo, da repressão à feitiçaria e à destruição dos dialetos, da linguística à teologia, da cultura erudita à cotidiana. Um Charles Péguy de hoje poderia escrever: uma mística, e políticas. Mas ele estaria equivocado. Porque a coerência dessas abordagens plurais e a inspiração central de uma vida de intelectual me parecem — é esta hipótese que eu gostaria de defender e aprofundar — mais fortes e mais fecundos do que poderiam parecer à primeira vista, por mais fundamental que possa ter sido a ruptura, ou melhor, a abertura que se manifestou subitamente na reflexão de Michel de Certeau no decurso dos anos 60. 11 Sua bibliografia, estabelecida por Luce Girard, será publicada em um número duplo, dedicado à sua obra, Recherches de science religieuse, t. LXXVI, 1988. 12 No que concerne aos anos que precederam La possession de Loudun, é essencial das contribuições de Michel de Certeau estar reunido em Revue d’eschatologie et de mystique; em Revue d’histoire de la spiritualité e em Christus, Études et Esprit. Aqui, um texto poderia trazer algum esclarecimento. Ele foi extraído de um número especial da revista Christus, dirigida por Michel de Certeau e François Roustang, sobre o tema da solidão, ou seja, a dificuldade ou impossibilidade da comunicação. Texto datado (1963-64), tanto na biografia intelectual do seu autor como na história do catolicismo francês pós Concílio Vaticano II (do qual ele deriva em muitos aspectos), em que já se pode facilmente notar o conjunto dos temas que Michel de Certeau irá desenvolver nos anos seguintes. Um dos capítulos — “Le désert de l’apôtre” — é dedicado à experiência missionária. Para ilustrar o percurso interno daquele que traz o Evangelho para o outro, ele se apóia em Lévi-Strauss e Paul Ricœur, como também nos testemunhos dos missionários ou, ainda, na obra de Madeleine Delbrêl, Ville marxiste, terre de mission. Leva-se a propósito luz “tempos purificados”, que constituem para o missionário “a passagem pela objevação”, que ele trata, para ele, de uma “escola de responsabilidade”. Nessa situação, está seu drama ou cruzamento, em que se pode ser outro como”, resume Michel de Certeau. Os modelos de pesquisa originários de análise sociológica e psicológica. Ao colocar em relevo os indicadores que lhe permitiram focalizar e determinar essa terra incógnita — signos lendários de novas trajetórias, seu transfigurado, simbolismo iconográfico ou histórico, etc., ele vê essas novas possibilidades. E tornando precisa a natureza desse percurso espiritual e intelectual: Tal como o conjunto, o missionário toma consciência de profundidades diferentes mas de igual natureza, em que se encerra sua própria mentalidade. Ele também está colocado diante dessa fato perturbador que contrasta com seus postulados simplificadores: a pluralidade dos universos mentais. Esses mundos estão separados por fraturas que, tanto mais reais quanto menos explícitas. Enfraquedos coletivas aprofundam essas rachaduras entre os grupos levando a uma descoberta. O homem é outro que o homem, ele mesmo. Esse texto, tão circunstanciado, enuncou com uma notável acuidade, às vésperas da grande revolução das ciências humanas, as lógicas e as vias de uma abertura cultural, de uma explosão da interrogação religiosa em direção à horizontes antropológicos, 14 “Le désert de l’apôtre”, op. cit. pp. 60-1. linguísticos, psicológicos (a psicanálise virá mais tarde), sociais, filosóficos ou ideológi- cos. O que está em jogo é uma crença que descobre o outro, quer dizer, seu próprio limite, sob a forma antropológica de uma recusa de universalidade. 15 É uma crença que se abre e ao mesmo tempo se fecha: no belo texto que Michel de Certeau dedicou ao Brasil de Jean de Léry, 16 alguns anos mais tarde, o outro será tudo, será a missão — e, por meio dela, toda referência explícita a uma transcendência como fundamento do sentido 17 —, a missão ausente. Desde o trabalho sobre a mística, às vésperas dos anos 60, até a abordagem plural de La possession de Loudun, em 1970, ilumina-se um percurso que não segue apenas o itinerário biográfico de Jean Joseph Surin. Ele passa ainda por um enfron- tamento polêmico em torno da noção de cultura popular, que é necessário evocar breve- mente. O objeto será, como se sabe, Magistrats et sorciers, publicado em 1968, por Robert Mandrou. 18 Em 1969, Michel de Certeau dedica à obra uma longa resenha de vinte páginas na Revue d'histoire de l'Eglise de France. 19 Sob os cumprimentos, não foram apenas (normais - “Por ter viajado pela nossa literatura múltipla do livro” (p. 315), um tipo de laudo (auto)biográfico essencial para uma história do livro” (p. 307); um adendo: “É um grande livro; um livro que somente pode surgir pela forma rigorosa e científica com que é abordado” (p. 307); ou ainda, certa circunspecção sobre “a importância do tema e da contribuição do livro do Sr. Mandrou” (p. 319) - manifesta-se a crítica; ou melhor dizendo, uma insatisfação intelectual, uma decepção.»20 — __________ 15 “Há [...] uma determinação histórica do cristianismo”, afirma, alguns anos mais tarde, Michel de Certeau (in Le Christianisme éclaté, entretien avec Jean-Marie Domenach, Paris, Seuil, 1974, pp. 43-44). “Donde em conclusão imediatamente, para ser claro, que ele não é tão importante o que, nessa é universal”. 16 “Ethno-graphie. L'utraité, ou l'espace de l’ovate: Léry”, in L’Ecriture de l’histoire, op. cit.; pp. 215-249. 17 “A Terra que Deus habita sem que saibam”, onde “em cada lugar, em cada vida, está Cristo” (“Le désert de l’équité” op. cit., pp. 616 e 841. 18 Robert Mandrou, “Magistrats et sorciers en France au XVII e siècle”, in Revue d’histoire de l’Eglise de France, t. LIV, 1969, pp. 308-349; texto retomado em L’écriture de l’histoire, cap. I. As referências em caracteres itálicos e entre parênteses, incluídas no texto e nas notas, são relativas a esse artigo. 19 Michel de Certeau, “Une mutation culture et religion: les magistrats devant les socieres du XVII siècle”, in Revue d’histoire de l’Eglise de France, t. LIV, 1969, pp. 308-319; texto retomado em L’écriture de l’histoire, cap. I. As referências em caracteres itálicos e entre parênteses incluídas no texto e na nota são relativas a este artigo. 20 “Lamentos que R. Mandrou”op. 345, nota 10; “R. Mandrou traz muitos elementos novos, que talvez 22 Proj. História, São Paulo, (17), nov. 1998