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XVIII, quase não acontecia fora de uniões sexuais sacramentadas pela Igreja, e durante o século XIX a taxa de ilegitimidade nesses países (nascimentos "ilegítimos", ou seja, filhos havidos por pais que não eram casados no religioso, como proporção do total de nascimentos) geralmente não subia além de 10% - cifra essa muito abaixo do índice nos países ibéricos e na América Latina. Mesmo assim, o enorme aumento dessa taxa desde meados do século XVIII, especialmente nas cidades, causava espanto, e era comumente interpretado como indício de um enfraquecimento dos padrões de moralidade 18. Não é de se surpreender, portanto, que o viajante europeu do século XIX, frente aos baixos índices de casamento religioso e às altas taxas de ilegitimidade que prevaleciam entre os escravos brasileiros (fora de São Paulo), tenha registrado uma impressão de patologia social. A lente distorcida de sua cultura praticamente não lhe permitia outra visão. Já no caso dos observadores brasileiros, teria havido um preconceito cultural diferente, mas não menos contundente. Qualquer um que tenha sentido "Lucinda – a Mucama", um dos romances que integram As Vítimas-Algozes de Joaquim Manoel de Macedo. Publicado em 1869, o romance veicula a mesma imagem negativa que quase todo o discurso encontrava em Couty, mas oferece uma explicação sociológica, não racial, de seu modo de ser. O livro é uma crítica à urbanização, à destruição da família escrava que se acompanha do enfraquecimento dos valores que sempre definiram esse sentido - clima de família branca. Ao contrário da moça, Cândida (a pureza), é um contraponto para a escrava, Lucinda (o demônio), Macedo revela a formação do preconceito de uma sociedade que não responde à educação masculina e feminina nesse nível. Sua cultura mal duvidava que a negra/ mulata, menina honesta deve ser educada. A mulher cativa, "(...) abandonada aos desprezos da escravidão, crescendo no meio da prática dos vícios mais escandalosos e repugnantes, desde a infância, desde a primeira infância testemunhando torpezas de luxúria, e ouvindo a eloquência lodosas da palavra sem freio, fica pervertida muito antes de ter consciência de sua perversão (...)". Já, ao contrário, "a donzella é flor que tem por matiz o recato e o pejo”. Nas boas famílias, "(...) há para as filhas certa especialidade de cuidados que nas mães é religioso culto de amor que vela incessante, como o das sacerdotizas de Vesta que vigiarão o fogo da pureza, e nos pais [é] uma fonte sublime de melindre e de escrúpulos, uma santa exangeração de estremecido noção e (...)". Como resultado de uma vigilância desse tipo por parte de seus pais, “Cândida chegara aos onze anos de idade com a perfeita inocência de sua primeira infância”. Infelizmente, recebeu em seguida a Lucinda de presente, e [foi] a escrava que a arrancou, às risos e às serenas ignorâncias da inocência, ensinando-lhe rudemente teorias sensuais de missão da mulher”. Fica evidente, em tudo isto, que Macedo condenada a formação dada à escrava porque ela não adere por padrão normativo para a educação de uma menina além daquele adotado pelos pais de Cândida. Na valorização da “santa exageração de religião” seus dotes (Candida) seriam defendidos, escravos e de suas filhas. O leitor poderia responder se é lícito através da valorização de nossa religião19. Em certo momento, ele realça a influência de um jogo de relação à presença do escravidão e do trabalho livre que teria marcado a percepção da maioria dos observadores, europeus e brasileiros, sobretudo na segunda metade do século XIX. Vejamos o caso do viajante francês, Charles Ribeyrolles, que visitou as regiões cafeeiras do Rio de Janeiro em 1858. Ribeyrolles enfatiza que “A fome não penetra na senzala. Nela não se morre de inanição como em White Chapel ou Westminister. Mas não existem famílias: há ninhos. Por que se entregaria o pai à santas alegrias do trabalho? Interesse nenhum o liga à terra, nem proveitos lhe advém da colheita. Para ele, o labor representa, a fadiga e o suor. É a escravidão. Por que se desvélam à mesmo em manter limpos os filhos e a morada? Os filhos lhe podem ser arrebatados de uma hora para outra, como pinhões ou os cabritos da fazenda, e ele mesma não têm um interesse objeto. Contudo, existem às vezes, nesses antros, distrações e prazeres bestiais, causados pela embriaguez, onde nunca se fala do passado, que é a dor, nem do futuro porque está remoto. 19Macedo, Joaquim Manoel de, As Vítimas-Algozes. Quadros de Escravidão, 2 Vols., Rio de Janeiro, Typographia Perseverança, 1869. Vol. II, p. 60, 91, 115, 21, 273. de sua exposição e pelo cuidado com que foi pesquisado, queixou-se que “Me estenderia muito demais, se fosse refutar uma por uma as declarações nesse livro [Étude de Biologie Industrielle sur le Café, de Couty, de 1883], que me parecem incorretas, aliás até falsas” 15. Deixemos essa crítica de lado, no entanto, já que haverá quem leia nela a inveja de um pesquisador rival, e concentremos nossa atenção no trecho que Couty dedica à família escrava. Se as mães desalmadas (“negras”, não “escravas”) e as esposas assassinas no texto citado acima já não deixaram o leitor um tanto desconfiado, recuemos algumas páginas no relato de Couty para examinar seu ponto de partida: “Os cidadãos livres da África não têm, como seus irmãos cativos, um desgosto pelo trabalho manual? Eles cultivam as terras tão férteis que estão em sua posse? Não está provado que, quando empregado como trabalhadores, eles correm muito menos mão-de-obra do que o operários brancos? Eles têm ideias de liberdade, enfim nada, esses homens de negro com um forte corpo em a experiência venderão, comer dormir e acordar com a experiência de reserva livre responder ordenar. Eles têm ideia clara em questão de propriedade, até essa infeliz questão em sua última consequência episcopal-los, que consideravam o roubo como um modo de ajuste para todos os problemas. Eles têm o julgamento como os outros, mas em relações agitadas, que esses "escravos" em posse produziriam em outras quintas. Os que fazem seus corações, nas rochas cut-off, como aqueles que fazem teoria inclinados com palavras vagas ou com ideias simplorísticas 16”. Ora, o racismo explícito e virulento deste trecho torna o testemunho de Couty extremamente duvidoso. Isto não tem impedido, no entanto, que ele seja um dos autores mais citados sobre a questão da família escrava 17. Em segundo lugar, a visão dos observadores do século XIX provavelmente sofria a interferência de preconceitos culturais. Com respeito aos viajantes, é importante lembrar que a grande maioria dos estrangeiros que escreveram sobre o Brasil, especialmente no século XIX, vinha não da Espanha ou de Portugal, mas de outras nações, do norte e do oeste da Europa (principalmente da França, Suíça, países germânicos e Inglaterra). Ora, nessas nações a reprodução humana, do início do século XVI até meados do 15Learne, C. F. Van Delden, Brazil and Java: Report on Coffee Culture in America, Asia and Africa, Londres e A Hain, W. H. Allen/N. Nijhoff, 1885, p. 253-254 (minha tradução). 16Couty, L’Esclavage, p. 68 (minha tradução). 17Ver Stein, Stanley J., Vassouras: a Brazilian Coffee County, 1850-1900, 2ª ed., Princeton, Princeton University Press, 1985, p. 155; Bastide, As Religiões, Vol. 1, p. 89; Fernandes, A Integração do Negro, Vol. 1, p. 36. as fontes. É curioso, portanto, que pesquisas recentes sobre a família escrava venham mostrando que o casamento de Policarpo e Afra não era exatamente atípico. Na verdade, as uniões sexuais de “longa duração” - não, evidentemente, as de 40 anos, que seriam relativamente raras em qualquer sociedade com altos índices de mortalidade, mas, digamos, as de 10 anos ou mais - eram bastante comuns entre os escravos; como também eram comuns os casos de filhos que não apenas conheciam o pai, mas que passavam os anos formativos na sua companhia. Em Campinas, por exemplo, segundo os manuscritos existentes da “matrícula” (registro) de escravos de 1872-73, nos plantéis com dez ou mais cativos (contendo, talvez, quatro em cada cinco escravos no município), 67% das mulheres acima de 15 anos eram casadas ou viúvas; 87% das mães (com crianças de menos de 15 anos presentes na mesma lista de matrícula) eram casadas ou viúvas; e 82% dos menores de 10 anos viviam junto com os dois pais, e com mãe ou pai viúvo. Pesquisas sobre outros municípios e periodos, utilizando fontes demográficas diferentes, mostram resultados compatíveis ou semelhantes4. É verdade que a maioria dessas pesquisas focalizam localidades em São Paulo, onde os índices de casamento pela Igreja entre escravos eram bem mais altos que em outras províncias. Contudo, há informações que sugerem fortemente que os dados de São Paulo não indicam a existência de 4Slenes, Robert W., “Escravidão e Família: Padrões de Casamento e Estabilidade Familiar numa Comunidade Escrava (Campinas, Século XIX)”, Estudos Econômicos, 17:2 (maio/agosto, 1987), 217-227; Slenes, Robert W., “The Demography and Economics of Brazilian Slavery: 1850-1888”. Tese de Doutorado, Stanford University, 1976, cap. IX. Outros estudos sobre a família escrava são: Graham, Richard, “A Família Escrava no Brasil Colonial”. In, Escravidão, Reforma, e Imperialismo, São Paulo, Perspectiva, 1979, p. 41-57; Costa, Iraci del Nero da, e Luna, Francisco Vidal, “Vela Plácida: Nota sobre Casamentos de Escravos (1727-1826)”, África (Centro de Estudos Africanos da USP), N° 4 (1981), 105-109; Costa, Iraci del Nero da, e Guittiérrez, Horácio, “Nota sobre Casamento de Escravos em São Paulo e no Paraná, (1830)”, História: Questões e Debates, 5:9 (dez., 1984), 313-321; Schwarcz, Stuar B., Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society: Bahia, 1550-1835, Cambridge, Cambridge University Press, 1985, cap. XIII e XIV; Fragoso, Luis R., e Florentino, Manolo G., “Maridos, Filhos e Inocência: Criando Neto de Dona Cabinda: Um Estudo de Famílias Escravas em Paraíba do Sul (c. de 1807-1827)”, Estudos Econômicos, 172 (maio/agosto, 1987), 151-178; Slenes, Alida C., “Vida Familiar dos Escravos em São Paulo no Século XIX: O Caso de Santana de Parnaíba”, ibid., Amerika; Costa, Iraci del Nero da e Luna, F. V. e Schwarcz, Stuart B., “A Família Escrava em Lorena (1801):”, ibid., todas estas notas apontam para conclusões semelhantes a respeito da família escrava nos E.U.A. (Gutman, Herbert G., The Black Family in Slavery and Freedom, 1750-1925, Nova Iorque, Pantheon, 1976). 192 estruturas familiares radicalmente diferentes das que prevaleciam entre os cativos no resto do Brasil, mas simplesmente um maior grau de acesso ao casamento religioso. Enfim, em São Paulo as uniões consensuais entre os escravos teriam sido sacramentadas pela Igreja, e portanto documentadas, mais frequentemente do que em outras províncias. Poderia-se objetar que os dados, sobretudo as informações de tipo censitário como as da matrícula, talvez tenham sido inventados pelos senhores para iludir as autoridades, ou para fingir uma preocupação com a “moralidade” de seus trabalhadores. No entanto, em Campinas a ligação nominativa dos registros de casamento e batismo de escravos com as listas de matrícula - tal como se fez acima entre o assento de batismo de Benedicta em 1862 e a reafirmação do casamento de seus pais, Policarpo e Afra, em 1899 - confirma sem qualquer dúvida a autenticidade dos dados de 1872-73. E ao fazer isso, outras fontes também documentam a existência de um número significativo de casamentos formados 10, 15 ou até mais de 20 anos antes das datas ainda existentes no ano desse registro5. As novas pesquisas sobre a família escrava visam não romantizar a vida no cativeiro. Os índices de casamento entre escravos, a proporção de mães casadas, e a percentagem dos filhos que viviam com os dois pais, eram bem menos altos em Campinas em comparação com o resto do Brasil. No entanto, por seu tamanho e importância, a linhagem familiar entre os cativos escravizados é um fenômeno que persiste em estudos recentes. Estudos sugerem que um número significativo de mulheres em Campinas, por exemplo, terminaram suas vidas nos plantéis onde nasceram e conheceram o único marido que de fato conseguiram manter. A vontade do senhor de obter uma descendência estável era fator decisivo para a formação de uma unidade familiar estável... ou, antes, não havia um motivo econômico suficiente para dissolver a união antes que fossem formadas as famílias6. 5Slenes, Robert W., “The Demography”, e trabalho em andamento. 6Slenes, “Escravidão e Família”, 225. não fosse o caso, uma alta frequência de casamentos monogâmicos não refletiria necessariamente tudo que era permitido pelas normas dos escravos. É importante lembrar que na África a poliginia tende a ser sinal de uma relativa riqueza; em geral, apenas os homens que têm posses suficientes para sustentar uma economia doméstica maior casam-se com mais de uma mulher. Enfim, a prática da poliginia só poderia ter sido pouco comum (independentemente das normas dos escravos) nas condições do cativeiro no Brasil, onde os homens, além de enfrentar uma grande escassez de mulheres, tinham, quase todos, pouquíssimos recursos. O que os estudos recentes sim indicam é que o peso da escravidão, o desequilíbrio numérico entre os sexos e a possível “sobrevivência” de normas favoráveis à poliginia, não destruíram a família negra como instituição. Além disso, e mais importante, esses estudos sugerem fortemente que a união sexual estável constituía a norma cultural no grupo cativo. Quando as condições de vida dos escravos permitiam a formação de relações sociais com uma certa continuidade no tempo (como era o caso nos plantéis com 10 ou mais cativos em lugares como Campinas), muitos deles optavam por uma união. Em suma, o que diz respeito a sexo e família, não há como dizer que, durante todo o percurso escravo, o mundo estava sem sistema de normas, como “desregrados”. Portanto, as teorias de Bastide e Fernandes resumem apenas uma - a respeito do desaparecimento de certas estruturas do ciclo (bantu) e não às evidências nos próprios dados que indicam a prática de escravos, influenciando o senhor/pai branco para reproduzir a fronteira da esposa escrava - simplesmente não procedem. As dúvidas, no entanto, persistem. Como é possível que pesquisadores do porte daqueles que vimos citando possam ter chegado a conclusões tão taxativas - e tão erradas? Será que as fontes que eles utilizaram - os depoimentos de observadores brancos da época da escravidão, sobretudo de viajantes estrangeiros - são mais fidedignas do que os dados demográficos que formam a base principal dos estudos recentes? Ora, essas fontes certamente são coerentes entre si. Elas coincidem no registro de um quadro patológico entre os escravos, e é compreensível que sua “unanimidade” nesse sentido tenha seduzido muitos historiadores. No entanto, no restante deste ensaio quero mostrar que o “desvio” não estava no lar negro, mas no olhar branco. LENITA E OS SEMOVENTES DEVASSOS Numa cena do romance A Carne, de Júlio Ribeiro, publicado em 1888 e situado numa fazenda do oeste paulista ainda na época da escravidão, a protagonista branca, Lenita, presencia a cópula de um touro e uma vaca. Logo em seguida, ela assiste, sem ser percebida, ao encontro amoroso de um 194 jovem casal de escravos. Para Lenita, esse encontro “Era a reprodução do que se tinha passado, havia momentos, mas em escala mais elevada; à cópula instintiva, brutal, feroz, instantânea dos ruminantes, seguia-se o coito humano meditado, lascivo, meigo, vagoaroso”. A cena é um prenúncio da sorte de Lenita. Mais tarde, ela se entrega como amante a Barbosa, jovem filho de fazendeiro. Lenita se interessara pela ciência, através da qual “quisera voar de surto, remontar-se às nuvens”; mas “a CARNE a prenderia à terra, ela tombara, submeter-se; tombara como a negra boçal do capão, submeter- se como a vaca mansa da campina”7. Associar escravos e gado – não apenas como semoventes, categoria codificada em lei, mas como seres sexualmente desregrados – era comum na época. Outros autores, que não diziam romanticas, expressaram-se da mesma maneira que Júlio Ribeiro. Ao visitar a região de Cantagalo na província do Rio de Janeiro no início da década de 1860, o viajante e diplomata suíço J. J. Von Tschudi comentam “a leviandade e inconsciência do negro em tudo que se refere às relações sexuais”. Segundo Tschudi, “É muito raro haver entre os negros casamento celebrado na igreja, mas o fazendeiro permite que os melhores tenham uma, segunda oportunidade, de viverem juntos, até que o capricho mude de direção. O filho sana ár lugar aos filhos de novo casamento; e esposa, jamais união que a perca antes de o perderem. Na Estado esta fe o de , o fazendeiro) não se observa do mais da vez e dois.. Os negros vivem em promiscuidade sexual, como o gado nos pampas”.8 Poucos anos depois, o jurista (e senhor de escravos) Perdigão Malheiro observou que “as escravas, em geral, viviam e vivem em concubinato, ou (o que é pior) em devassidão; o casamento não lhes garante senão por exceção a propagação regular da prole”9. Em 1881, Louis Couty, um francês que residiu vários anos no Brasil e escreveu largamente sobre o café e a escravidão, afirmou (em L'Esclavage au Brésil) que muitos senhores, perante a dificuldade de impor uma ordem moral a seus cativos, decidiram não mais interferir na vida sexual destes. Como resultado, Ribeiro, Júlio, A Carne, Rio de Janeiro, Edições de Ouro, s/d, p. 101, 231. Tschudi, J. J. von, Viagem às Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo, Belo Horizonte, Itatiaia, 1980, p. 57-58. Malheiro, Agostinho Marques Perdigão, A Escravidão no Brasil: Ensaio Histórico, Jurídico, Social, 2 Vols., Petrópolis, Editora Vozes, 1976, Vol. II, p. 129. 195 “Nas aglomerações [de escravos] nas fazendas, se permite que os dois sexos se misturem durante duas ou três horas toda noite; e não se preocupa em exercer nenhuma vigilância sobre os escravos isolados, nas áreas urbanas. Dessa maneira, a maioria dos filhos de escravos conhecem apenas um de seus pais, a mãe, e esta frequentemente ficaria constrangida se tivesse que preencher um registro civil exato”. Além disso, segundo Couty, havia “muitas negras que não sabem o número de seus filhos”, como também as havia que “nunca se inquietaram para saber aonde [seus filhos] andam”. Por outro lado, quando os escravos uniam-se em matrimônio, a exploração da mulher pelo homem, que transformava a esposa em “sua servidora e sua coisa”, levava esta geralmente a “devolver com usura a falta de afeto” – a tal ponto que os casos de morte de escravos, envenenados por suas mulheres, “chegaram a ser tão frequentes que em quase todas as fazendas foi necessário proibir as viúvas de se casarem de novo, e de impedir que continuassem as relações sexuais”10. Há declarações semelhantes para a primeira metade do século XIX. Johann Moritz Rugendas, viajante e artista bávaro, afirmou em 1835 que os senhores “facilitam os casamentos, ou, pelo menos, jamais é tem um impedem (...) que as relações entre escravos do sexo feminino e do sexo masculino tornem a ausência severa e observância da moral de um preenchês e a consciência na fidelidade conjugal”11. Na mesma década, Jean Baptiste Debret, artista e observador francês de longa residência no Brasil, observou que, “Como um proprietário de escravos não pode, sem ir de encontro à natureza, impedir aos negros de freqüentarem as negras, tem-se por hábito, nas grandes propriedades, reservar uma negra para cada quatro homens; cabe-lhes arranjar-se para compartilharem sossegadamente o fruto dessa concessão, feita tanto para evitar os pretextos de fuga como em vista de uma procriação destinada a equilibrar os efeitos da mortalidade”12. O depoimento de Debret é um tanto ambíguo – pode ser uma simples observação demográfica ou uma sugestão de promiscuidade – como também o é outro trecho no livro desse viajante, onde a negra é descrita como “extraordinariamente sensual, embora fiel e casta no casamento”13. Os demais au- Couty, Louis, L’Esclavage au Brésil, Paris, Librairie de Guillaumin et Cie., 1881, p. 74-75 (minha tradução). Rugendas, João Maurício [Johann Moritz], Viagem Pitoresca Através da Brasil, 4ª ed., São Paulo, Martins, 1949, p. 180. 12 Debret, Jean Baptiste, Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, 3 Vols. em 2 Tomo, Belo Horizonte, Itatiaia, 1978, Tomo I, Vol. II, p. 268. 13 Ibid., Tomo II, Vol. III, p. 202. 196 tores, no entanto, não deixam lugar para dúvidas. Junto com alguns outros observadores da época, criaram a imagem de devassidão que ainda marca o comportamento sexual e a vida familiar dos escravos na maioria dos livros de história. Imagem, no mínimo, suspeita. Na verdade, os relatos que tratam da vida íntima do escravo são escassos e curtos; pior ainda, sofrem restrições que os tornam muito pouco confiáveis. Os livros de viajantes, de onde vêm quase todas as citações acima, são extremamente úteis quando descrevem aspectos da cultura material que são facilmente visíveis e pouco ambíguos (por exemplo, a estrutura, disposição e divisão interna das senzalas nas fazendas visitadas). Só muito menos confiáveis, no entanto, quando opinam sobre a vida íntima de todo um grupo social, ainda mais de um grupo “exótico” como os escravos. George Gardner, um inglês que viajou pelo interior do Brasil em 1836, não poupava críticas aos, “(...) viajantes, en passant, que derivaram seu conhecimento de outros, e não da observação pessoal. As histórias mais ridículas são contadas pelos residentes europeus a estrangeiros recém- chegados, como tem onde aceitar por experiência própria”14. Mesmo um viajante criterioso, como a maioria daqueles citados acima, dificilmente conseguiria livrar suas observações sobre a família escrava da influência de ideias preconcebidas, suas próprias e as de seus informantes. Por outro lado, o autor brasileiro, de um modo geral, não estaria em condições muito melhores. Embora não estivesse no Brasil em en passant, e pudesse, portanto, reconhecer e descartar “as histórias mais ridículas” sobre o país, ainda assim era quase tão distante dos escravos, em seu modo de ser e de perceber, quanto o viajante. Quais seriam algumas das imagens prévias, estampadas na retina, que teriam atrapalhado a visão do observador estrangeiro e do nacional, quando confrontados com o escravo? Em primeiro lugar, haveria uma imagem deformada do próprio negro, produzida por um racismo extremado do qual seria raro, nessa época, o viajante europeu ou o brasileiro bem nascido que escapasse. Vejamos, por exemplo, o caso de Louis Couty, citado acima, que deixou o que é provavelmente o relato mais extenso que temos (menos de duas páginas) sobre a família escrava. Na verdade, mesmo sem considerar seu ideário racial, já existem razões para questionar a idoneidade desse observador. Um contemporâneo de Couty, o holandês C. F. Van Delden Laënne, cujo estudo da indústria cafeeira no Brasil prima pela meticulosidade 14 Gardner, George, Travels in the Interior of Brazil, (...) During the Years 1836-1841, Boston, Milford House, 1973, p. 14 (minha tradução). 197
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Já no caso dos observadores brasileiros, teria havido um preconceito cultural diferente, mas não menos contundente. Qualquer um que tenha sentido "Lucinda – a Mucama", um dos romances que integram As Vítimas-Algozes de Joaquim Manoel de Macedo. Publicado em 1869, o romance veicula a mesma imagem negativa que quase todo o discurso encontrava em Couty, mas oferece uma explicação sociológica, não racial, de seu modo de ser. O livro é uma crítica à urbanização, à destruição da família escrava que se acompanha do enfraquecimento dos valores que sempre definiram esse sentido - clima de família branca. Ao contrário da moça, Cândida (a pureza), é um contraponto para a escrava, Lucinda (o demônio), Macedo revela a formação do preconceito de uma sociedade que não responde à educação masculina e feminina nesse nível. Sua cultura mal duvidava que a negra/ mulata, menina honesta deve ser educada. A mulher cativa, "(...) abandonada aos desprezos da escravidão, crescendo no meio da prática dos vícios mais escandalosos e repugnantes, desde a infância, desde a primeira infância testemunhando torpezas de luxúria, e ouvindo a eloquência lodosas da palavra sem freio, fica pervertida muito antes de ter consciência de sua perversão (...)". Já, ao contrário, "a donzella é flor que tem por matiz o recato e o pejo”. Nas boas famílias, "(...) há para as filhas certa especialidade de cuidados que nas mães é religioso culto de amor que vela incessante, como o das sacerdotizas de Vesta que vigiarão o fogo da pureza, e nos pais [é] uma fonte sublime de melindre e de escrúpulos, uma santa exangeração de estremecido noção e (...)". Como resultado de uma vigilância desse tipo por parte de seus pais, “Cândida chegara aos onze anos de idade com a perfeita inocência de sua primeira infância”. Infelizmente, recebeu em seguida a Lucinda de presente, e [foi] a escrava que a arrancou, às risos e às serenas ignorâncias da inocência, ensinando-lhe rudemente teorias sensuais de missão da mulher”. Fica evidente, em tudo isto, que Macedo condenada a formação dada à escrava porque ela não adere por padrão normativo para a educação de uma menina além daquele adotado pelos pais de Cândida. Na valorização da “santa exageração de religião” seus dotes (Candida) seriam defendidos, escravos e de suas filhas. O leitor poderia responder se é lícito através da valorização de nossa religião19. Em certo momento, ele realça a influência de um jogo de relação à presença do escravidão e do trabalho livre que teria marcado a percepção da maioria dos observadores, europeus e brasileiros, sobretudo na segunda metade do século XIX. Vejamos o caso do viajante francês, Charles Ribeyrolles, que visitou as regiões cafeeiras do Rio de Janeiro em 1858. Ribeyrolles enfatiza que “A fome não penetra na senzala. Nela não se morre de inanição como em White Chapel ou Westminister. Mas não existem famílias: há ninhos. Por que se entregaria o pai à santas alegrias do trabalho? Interesse nenhum o liga à terra, nem proveitos lhe advém da colheita. Para ele, o labor representa, a fadiga e o suor. É a escravidão. Por que se desvélam à mesmo em manter limpos os filhos e a morada? Os filhos lhe podem ser arrebatados de uma hora para outra, como pinhões ou os cabritos da fazenda, e ele mesma não têm um interesse objeto. Contudo, existem às vezes, nesses antros, distrações e prazeres bestiais, causados pela embriaguez, onde nunca se fala do passado, que é a dor, nem do futuro porque está remoto. 19Macedo, Joaquim Manoel de, As Vítimas-Algozes. Quadros de Escravidão, 2 Vols., Rio de Janeiro, Typographia Perseverança, 1869. Vol. II, p. 60, 91, 115, 21, 273. de sua exposição e pelo cuidado com que foi pesquisado, queixou-se que “Me estenderia muito demais, se fosse refutar uma por uma as declarações nesse livro [Étude de Biologie Industrielle sur le Café, de Couty, de 1883], que me parecem incorretas, aliás até falsas” 15. Deixemos essa crítica de lado, no entanto, já que haverá quem leia nela a inveja de um pesquisador rival, e concentremos nossa atenção no trecho que Couty dedica à família escrava. Se as mães desalmadas (“negras”, não “escravas”) e as esposas assassinas no texto citado acima já não deixaram o leitor um tanto desconfiado, recuemos algumas páginas no relato de Couty para examinar seu ponto de partida: “Os cidadãos livres da África não têm, como seus irmãos cativos, um desgosto pelo trabalho manual? Eles cultivam as terras tão férteis que estão em sua posse? Não está provado que, quando empregado como trabalhadores, eles correm muito menos mão-de-obra do que o operários brancos? Eles têm ideias de liberdade, enfim nada, esses homens de negro com um forte corpo em a experiência venderão, comer dormir e acordar com a experiência de reserva livre responder ordenar. Eles têm ideia clara em questão de propriedade, até essa infeliz questão em sua última consequência episcopal-los, que consideravam o roubo como um modo de ajuste para todos os problemas. Eles têm o julgamento como os outros, mas em relações agitadas, que esses "escravos" em posse produziriam em outras quintas. Os que fazem seus corações, nas rochas cut-off, como aqueles que fazem teoria inclinados com palavras vagas ou com ideias simplorísticas 16”. Ora, o racismo explícito e virulento deste trecho torna o testemunho de Couty extremamente duvidoso. Isto não tem impedido, no entanto, que ele seja um dos autores mais citados sobre a questão da família escrava 17. Em segundo lugar, a visão dos observadores do século XIX provavelmente sofria a interferência de preconceitos culturais. Com respeito aos viajantes, é importante lembrar que a grande maioria dos estrangeiros que escreveram sobre o Brasil, especialmente no século XIX, vinha não da Espanha ou de Portugal, mas de outras nações, do norte e do oeste da Europa (principalmente da França, Suíça, países germânicos e Inglaterra). Ora, nessas nações a reprodução humana, do início do século XVI até meados do 15Learne, C. F. Van Delden, Brazil and Java: Report on Coffee Culture in America, Asia and Africa, Londres e A Hain, W. H. Allen/N. Nijhoff, 1885, p. 253-254 (minha tradução). 16Couty, L’Esclavage, p. 68 (minha tradução). 17Ver Stein, Stanley J., Vassouras: a Brazilian Coffee County, 1850-1900, 2ª ed., Princeton, Princeton University Press, 1985, p. 155; Bastide, As Religiões, Vol. 1, p. 89; Fernandes, A Integração do Negro, Vol. 1, p. 36. as fontes. É curioso, portanto, que pesquisas recentes sobre a família escrava venham mostrando que o casamento de Policarpo e Afra não era exatamente atípico. Na verdade, as uniões sexuais de “longa duração” - não, evidentemente, as de 40 anos, que seriam relativamente raras em qualquer sociedade com altos índices de mortalidade, mas, digamos, as de 10 anos ou mais - eram bastante comuns entre os escravos; como também eram comuns os casos de filhos que não apenas conheciam o pai, mas que passavam os anos formativos na sua companhia. Em Campinas, por exemplo, segundo os manuscritos existentes da “matrícula” (registro) de escravos de 1872-73, nos plantéis com dez ou mais cativos (contendo, talvez, quatro em cada cinco escravos no município), 67% das mulheres acima de 15 anos eram casadas ou viúvas; 87% das mães (com crianças de menos de 15 anos presentes na mesma lista de matrícula) eram casadas ou viúvas; e 82% dos menores de 10 anos viviam junto com os dois pais, e com mãe ou pai viúvo. Pesquisas sobre outros municípios e periodos, utilizando fontes demográficas diferentes, mostram resultados compatíveis ou semelhantes4. É verdade que a maioria dessas pesquisas focalizam localidades em São Paulo, onde os índices de casamento pela Igreja entre escravos eram bem mais altos que em outras províncias. Contudo, há informações que sugerem fortemente que os dados de São Paulo não indicam a existência de 4Slenes, Robert W., “Escravidão e Família: Padrões de Casamento e Estabilidade Familiar numa Comunidade Escrava (Campinas, Século XIX)”, Estudos Econômicos, 17:2 (maio/agosto, 1987), 217-227; Slenes, Robert W., “The Demography and Economics of Brazilian Slavery: 1850-1888”. Tese de Doutorado, Stanford University, 1976, cap. IX. Outros estudos sobre a família escrava são: Graham, Richard, “A Família Escrava no Brasil Colonial”. In, Escravidão, Reforma, e Imperialismo, São Paulo, Perspectiva, 1979, p. 41-57; Costa, Iraci del Nero da, e Luna, Francisco Vidal, “Vela Plácida: Nota sobre Casamentos de Escravos (1727-1826)”, África (Centro de Estudos Africanos da USP), N° 4 (1981), 105-109; Costa, Iraci del Nero da, e Guittiérrez, Horácio, “Nota sobre Casamento de Escravos em São Paulo e no Paraná, (1830)”, História: Questões e Debates, 5:9 (dez., 1984), 313-321; Schwarcz, Stuar B., Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society: Bahia, 1550-1835, Cambridge, Cambridge University Press, 1985, cap. XIII e XIV; Fragoso, Luis R., e Florentino, Manolo G., “Maridos, Filhos e Inocência: Criando Neto de Dona Cabinda: Um Estudo de Famílias Escravas em Paraíba do Sul (c. de 1807-1827)”, Estudos Econômicos, 172 (maio/agosto, 1987), 151-178; Slenes, Alida C., “Vida Familiar dos Escravos em São Paulo no Século XIX: O Caso de Santana de Parnaíba”, ibid., Amerika; Costa, Iraci del Nero da e Luna, F. V. e Schwarcz, Stuart B., “A Família Escrava em Lorena (1801):”, ibid., todas estas notas apontam para conclusões semelhantes a respeito da família escrava nos E.U.A. (Gutman, Herbert G., The Black Family in Slavery and Freedom, 1750-1925, Nova Iorque, Pantheon, 1976). 192 estruturas familiares radicalmente diferentes das que prevaleciam entre os cativos no resto do Brasil, mas simplesmente um maior grau de acesso ao casamento religioso. Enfim, em São Paulo as uniões consensuais entre os escravos teriam sido sacramentadas pela Igreja, e portanto documentadas, mais frequentemente do que em outras províncias. Poderia-se objetar que os dados, sobretudo as informações de tipo censitário como as da matrícula, talvez tenham sido inventados pelos senhores para iludir as autoridades, ou para fingir uma preocupação com a “moralidade” de seus trabalhadores. No entanto, em Campinas a ligação nominativa dos registros de casamento e batismo de escravos com as listas de matrícula - tal como se fez acima entre o assento de batismo de Benedicta em 1862 e a reafirmação do casamento de seus pais, Policarpo e Afra, em 1899 - confirma sem qualquer dúvida a autenticidade dos dados de 1872-73. E ao fazer isso, outras fontes também documentam a existência de um número significativo de casamentos formados 10, 15 ou até mais de 20 anos antes das datas ainda existentes no ano desse registro5. As novas pesquisas sobre a família escrava visam não romantizar a vida no cativeiro. Os índices de casamento entre escravos, a proporção de mães casadas, e a percentagem dos filhos que viviam com os dois pais, eram bem menos altos em Campinas em comparação com o resto do Brasil. No entanto, por seu tamanho e importância, a linhagem familiar entre os cativos escravizados é um fenômeno que persiste em estudos recentes. Estudos sugerem que um número significativo de mulheres em Campinas, por exemplo, terminaram suas vidas nos plantéis onde nasceram e conheceram o único marido que de fato conseguiram manter. A vontade do senhor de obter uma descendência estável era fator decisivo para a formação de uma unidade familiar estável... ou, antes, não havia um motivo econômico suficiente para dissolver a união antes que fossem formadas as famílias6. 5Slenes, Robert W., “The Demography”, e trabalho em andamento. 6Slenes, “Escravidão e Família”, 225. não fosse o caso, uma alta frequência de casamentos monogâmicos não refletiria necessariamente tudo que era permitido pelas normas dos escravos. É importante lembrar que na África a poliginia tende a ser sinal de uma relativa riqueza; em geral, apenas os homens que têm posses suficientes para sustentar uma economia doméstica maior casam-se com mais de uma mulher. Enfim, a prática da poliginia só poderia ter sido pouco comum (independentemente das normas dos escravos) nas condições do cativeiro no Brasil, onde os homens, além de enfrentar uma grande escassez de mulheres, tinham, quase todos, pouquíssimos recursos. O que os estudos recentes sim indicam é que o peso da escravidão, o desequilíbrio numérico entre os sexos e a possível “sobrevivência” de normas favoráveis à poliginia, não destruíram a família negra como instituição. Além disso, e mais importante, esses estudos sugerem fortemente que a união sexual estável constituía a norma cultural no grupo cativo. Quando as condições de vida dos escravos permitiam a formação de relações sociais com uma certa continuidade no tempo (como era o caso nos plantéis com 10 ou mais cativos em lugares como Campinas), muitos deles optavam por uma união. Em suma, o que diz respeito a sexo e família, não há como dizer que, durante todo o percurso escravo, o mundo estava sem sistema de normas, como “desregrados”. Portanto, as teorias de Bastide e Fernandes resumem apenas uma - a respeito do desaparecimento de certas estruturas do ciclo (bantu) e não às evidências nos próprios dados que indicam a prática de escravos, influenciando o senhor/pai branco para reproduzir a fronteira da esposa escrava - simplesmente não procedem. As dúvidas, no entanto, persistem. Como é possível que pesquisadores do porte daqueles que vimos citando possam ter chegado a conclusões tão taxativas - e tão erradas? Será que as fontes que eles utilizaram - os depoimentos de observadores brancos da época da escravidão, sobretudo de viajantes estrangeiros - são mais fidedignas do que os dados demográficos que formam a base principal dos estudos recentes? Ora, essas fontes certamente são coerentes entre si. Elas coincidem no registro de um quadro patológico entre os escravos, e é compreensível que sua “unanimidade” nesse sentido tenha seduzido muitos historiadores. No entanto, no restante deste ensaio quero mostrar que o “desvio” não estava no lar negro, mas no olhar branco. LENITA E OS SEMOVENTES DEVASSOS Numa cena do romance A Carne, de Júlio Ribeiro, publicado em 1888 e situado numa fazenda do oeste paulista ainda na época da escravidão, a protagonista branca, Lenita, presencia a cópula de um touro e uma vaca. Logo em seguida, ela assiste, sem ser percebida, ao encontro amoroso de um 194 jovem casal de escravos. Para Lenita, esse encontro “Era a reprodução do que se tinha passado, havia momentos, mas em escala mais elevada; à cópula instintiva, brutal, feroz, instantânea dos ruminantes, seguia-se o coito humano meditado, lascivo, meigo, vagoaroso”. A cena é um prenúncio da sorte de Lenita. Mais tarde, ela se entrega como amante a Barbosa, jovem filho de fazendeiro. Lenita se interessara pela ciência, através da qual “quisera voar de surto, remontar-se às nuvens”; mas “a CARNE a prenderia à terra, ela tombara, submeter-se; tombara como a negra boçal do capão, submeter- se como a vaca mansa da campina”7. Associar escravos e gado – não apenas como semoventes, categoria codificada em lei, mas como seres sexualmente desregrados – era comum na época. Outros autores, que não diziam romanticas, expressaram-se da mesma maneira que Júlio Ribeiro. Ao visitar a região de Cantagalo na província do Rio de Janeiro no início da década de 1860, o viajante e diplomata suíço J. J. Von Tschudi comentam “a leviandade e inconsciência do negro em tudo que se refere às relações sexuais”. Segundo Tschudi, “É muito raro haver entre os negros casamento celebrado na igreja, mas o fazendeiro permite que os melhores tenham uma, segunda oportunidade, de viverem juntos, até que o capricho mude de direção. O filho sana ár lugar aos filhos de novo casamento; e esposa, jamais união que a perca antes de o perderem. Na Estado esta fe o de , o fazendeiro) não se observa do mais da vez e dois.. Os negros vivem em promiscuidade sexual, como o gado nos pampas”.8 Poucos anos depois, o jurista (e senhor de escravos) Perdigão Malheiro observou que “as escravas, em geral, viviam e vivem em concubinato, ou (o que é pior) em devassidão; o casamento não lhes garante senão por exceção a propagação regular da prole”9. Em 1881, Louis Couty, um francês que residiu vários anos no Brasil e escreveu largamente sobre o café e a escravidão, afirmou (em L'Esclavage au Brésil) que muitos senhores, perante a dificuldade de impor uma ordem moral a seus cativos, decidiram não mais interferir na vida sexual destes. Como resultado, Ribeiro, Júlio, A Carne, Rio de Janeiro, Edições de Ouro, s/d, p. 101, 231. Tschudi, J. J. von, Viagem às Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo, Belo Horizonte, Itatiaia, 1980, p. 57-58. Malheiro, Agostinho Marques Perdigão, A Escravidão no Brasil: Ensaio Histórico, Jurídico, Social, 2 Vols., Petrópolis, Editora Vozes, 1976, Vol. II, p. 129. 195 “Nas aglomerações [de escravos] nas fazendas, se permite que os dois sexos se misturem durante duas ou três horas toda noite; e não se preocupa em exercer nenhuma vigilância sobre os escravos isolados, nas áreas urbanas. Dessa maneira, a maioria dos filhos de escravos conhecem apenas um de seus pais, a mãe, e esta frequentemente ficaria constrangida se tivesse que preencher um registro civil exato”. Além disso, segundo Couty, havia “muitas negras que não sabem o número de seus filhos”, como também as havia que “nunca se inquietaram para saber aonde [seus filhos] andam”. Por outro lado, quando os escravos uniam-se em matrimônio, a exploração da mulher pelo homem, que transformava a esposa em “sua servidora e sua coisa”, levava esta geralmente a “devolver com usura a falta de afeto” – a tal ponto que os casos de morte de escravos, envenenados por suas mulheres, “chegaram a ser tão frequentes que em quase todas as fazendas foi necessário proibir as viúvas de se casarem de novo, e de impedir que continuassem as relações sexuais”10. Há declarações semelhantes para a primeira metade do século XIX. Johann Moritz Rugendas, viajante e artista bávaro, afirmou em 1835 que os senhores “facilitam os casamentos, ou, pelo menos, jamais é tem um impedem (...) que as relações entre escravos do sexo feminino e do sexo masculino tornem a ausência severa e observância da moral de um preenchês e a consciência na fidelidade conjugal”11. Na mesma década, Jean Baptiste Debret, artista e observador francês de longa residência no Brasil, observou que, “Como um proprietário de escravos não pode, sem ir de encontro à natureza, impedir aos negros de freqüentarem as negras, tem-se por hábito, nas grandes propriedades, reservar uma negra para cada quatro homens; cabe-lhes arranjar-se para compartilharem sossegadamente o fruto dessa concessão, feita tanto para evitar os pretextos de fuga como em vista de uma procriação destinada a equilibrar os efeitos da mortalidade”12. O depoimento de Debret é um tanto ambíguo – pode ser uma simples observação demográfica ou uma sugestão de promiscuidade – como também o é outro trecho no livro desse viajante, onde a negra é descrita como “extraordinariamente sensual, embora fiel e casta no casamento”13. Os demais au- Couty, Louis, L’Esclavage au Brésil, Paris, Librairie de Guillaumin et Cie., 1881, p. 74-75 (minha tradução). Rugendas, João Maurício [Johann Moritz], Viagem Pitoresca Através da Brasil, 4ª ed., São Paulo, Martins, 1949, p. 180. 12 Debret, Jean Baptiste, Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, 3 Vols. em 2 Tomo, Belo Horizonte, Itatiaia, 1978, Tomo I, Vol. II, p. 268. 13 Ibid., Tomo II, Vol. III, p. 202. 196 tores, no entanto, não deixam lugar para dúvidas. Junto com alguns outros observadores da época, criaram a imagem de devassidão que ainda marca o comportamento sexual e a vida familiar dos escravos na maioria dos livros de história. Imagem, no mínimo, suspeita. Na verdade, os relatos que tratam da vida íntima do escravo são escassos e curtos; pior ainda, sofrem restrições que os tornam muito pouco confiáveis. Os livros de viajantes, de onde vêm quase todas as citações acima, são extremamente úteis quando descrevem aspectos da cultura material que são facilmente visíveis e pouco ambíguos (por exemplo, a estrutura, disposição e divisão interna das senzalas nas fazendas visitadas). Só muito menos confiáveis, no entanto, quando opinam sobre a vida íntima de todo um grupo social, ainda mais de um grupo “exótico” como os escravos. George Gardner, um inglês que viajou pelo interior do Brasil em 1836, não poupava críticas aos, “(...) viajantes, en passant, que derivaram seu conhecimento de outros, e não da observação pessoal. As histórias mais ridículas são contadas pelos residentes europeus a estrangeiros recém- chegados, como tem onde aceitar por experiência própria”14. Mesmo um viajante criterioso, como a maioria daqueles citados acima, dificilmente conseguiria livrar suas observações sobre a família escrava da influência de ideias preconcebidas, suas próprias e as de seus informantes. Por outro lado, o autor brasileiro, de um modo geral, não estaria em condições muito melhores. Embora não estivesse no Brasil em en passant, e pudesse, portanto, reconhecer e descartar “as histórias mais ridículas” sobre o país, ainda assim era quase tão distante dos escravos, em seu modo de ser e de perceber, quanto o viajante. Quais seriam algumas das imagens prévias, estampadas na retina, que teriam atrapalhado a visão do observador estrangeiro e do nacional, quando confrontados com o escravo? Em primeiro lugar, haveria uma imagem deformada do próprio negro, produzida por um racismo extremado do qual seria raro, nessa época, o viajante europeu ou o brasileiro bem nascido que escapasse. Vejamos, por exemplo, o caso de Louis Couty, citado acima, que deixou o que é provavelmente o relato mais extenso que temos (menos de duas páginas) sobre a família escrava. Na verdade, mesmo sem considerar seu ideário racial, já existem razões para questionar a idoneidade desse observador. Um contemporâneo de Couty, o holandês C. F. Van Delden Laënne, cujo estudo da indústria cafeeira no Brasil prima pela meticulosidade 14 Gardner, George, Travels in the Interior of Brazil, (...) During the Years 1836-1841, Boston, Milford House, 1973, p. 14 (minha tradução). 197