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Texto publicado no livro INDURSKY Freda Unicidade desdobramento fragmentação a trajetória da noção de sujeito em Análise do Discurso In MITTMANN Solange GRIGOLETTO Evandra CAZARIN Ercília Orgs Práticas Discursivas e identitárias Sujeito Língua Porto Alegre Nova Prova PPGLetrasUFRGS 2008 Col Ensaios 22 UNICIDADE DESDOBRAMENTO FRAGMENTAÇÃO A TRAJETÓRIA DA NOÇÃO DE SUJEITO EM ANÁLISE DO DISCURSO Freda INDURSKY Universidade Federal do Rio Grande do Sul De volta à noção de sujeito1 A noção de sujeito no âmbito da Teoria da Análise do Discurso tem sido visitada e revisitada ao longo destes últimos 40 anos Tanto nos textos fundadores da Análise do Discurso AD como nos textos do campo brasileiro da Análise do Discurso ela tem sido objeto de muita atenção e discussão e isto é indicativo de que esta teoria não é um corpo doutrinário cristalizado e estanque Ao contrário Tratase de um quadro teórico que gera reflexão que se interroga constantemente e para o qual a análise não implica a aplicação mecânica de conceitos noções e modelos já formulados anteriormente Esta é uma das características mais marcantes deste quadro teórico questionar as diferentes teorias e questionarse a si própria sem acomodação Esta é uma teoria bastante dinâmica para a qual as análises servem para realimentar a teoria Dizendo de outra forma a teoria está na base das análises que por sua vez retroalimentam a teoria Como é possível perceber em Análise do Discurso ocorre uma inquieta relação que vai em um constante movimento pendular da teoria para análise e desta de volta para a teoria É o que se verá ao longo deste capítulo pois este trabalho não foge à marca específica da AD ele revisita uma vez mais a noção de sujeito buscando dar continuidade a uma reflexão por mim iniciada em trabalhos anteriores sobre esta noção essencial para quem analisa discursos Portanto é a trajetória desta noção em diferentes momentos da construção desta teoria que será traçada com o propósito de acompanhar sua evolução Gostaria de salientar ainda que embora tenha tomado como objeto deste trabalho o sujeito focar a evolução desta noção implica observar a evolução da própria teoria pois esta noção não pode ser examinada de forma estanque e isolada Observála consiste em analisar outras noções que lhe são correlatas tais como formação discursiva ideologia e posiçãosujeito como veremos a seguir ao longo deste trabalho O primeiro esboço de uma teoria nãosubjetiva da subjetividade 1 Este trabalho foi desenvolvido a partir de versão anterior Do desdobramento à fragmentação do sujeito em Análise do Discurso apresentada em uma reunião do GT de AD da ANPOLL e publicado no CDROM Síntese 2 ANPOLL Porto Alegre 2002 Desde os escritos iniciais datados de 19692 Pêcheux formulou sua primeira noção de sujeito Ao contrário de entendêlo como um organismo humano individual GADET HAK 1990 p 82 ele prefere concebêlo como um lugar determinado na estrutura social Em trabalho posterior formulado em coautoria com Cathérine Fuchs em 19753 o sujeito ganhou mais um traço essencial para sua configuração pois os autores passaram a falar em uma teoria da subjetividade de natureza psicanalítica GADET HAK 1990 p164 Mas é somente em sua obra seguinte também de 19754 que Pêcheux vai acrescentar algo muito importante às suas formulações sobre o sujeito propondo o que chamou de uma teoria nãosubjetiva da subjetividade PÊCHEUX 1988 p 133 Com esta formulação que pode parecer inicialmente contraditória o autor dá início à articulação de duas noções inconsciente e ideologia essenciais para entender sua concepção de subjetividade Ou seja ele pretende naquele passo da teoria refletir sobre a subjetividade porém busca uma subjetividade que não se centre no indivíduo plenamente consciente de suas motivações e propósitos Vale dizer o sujeito que o fundador da Teoria da Análise do Discurso convoca é um sujeito que não está na origem do dizer pois é duplamente afetado Pessoalmente e socialmente Na constitutição de sua psiquê este sujeito é dotado de inconsciente E em sua constituição social ele é interpelado pela ideologia É a partir deste laço entre inconsciente e ideologia que o sujeito da análise do discurso se constitui É sob o efeito desta articulação que o sujeito da AD produz seu discurso E esta é a natureza da subjetividade convocada por Pêcheux uma subjetividade nãosubjetiva Cabe de imediato uma pergunta o que significa esta dupla marca na constituição do sujeito Para iniciar a responder a esta indagação é preciso dizer de imediato que o sujeito assim constituído é um sujeito histórico ideológico mas ignora que o é pois é igualmente afetado em sua constituição pelo inconsciente Ou seja o sujeito é interpelado ideologicamente mas não sabe disso e suas práticas discursivas se instauram sob a ilusão de que ele é a origem de seu dizer e domina perfeitamente o que tem a dizer Mas como um sujeito dotado de tais características funciona no discurso Para bem entender essa questão é preciso trabalhar com uma outra noção essencial para a Análise do Discurso Refirome aqui à noção de formação discursiva FD que corresponde a um domínio de saber constituído de enunciados discursivos que representam um modo de relacionarse com a ideologia vigente regulando o que pode e deve ser dito PÊCHEUX 1988 p 160 É através da relação do sujeito com a formação discursiva que se chega ao funcionamento do sujeito do discurso Mais especificamente podese afirmar juntamente com Pêcheux que os indivíduos são interpelados em sujeitos de seu discurso pelas formações discursivas que representam na linguagem as formações ideológicas que lhes são correspondentes PÊCHEUX 1988 p 161 E Pêcheux é mais específico ainda ao 2 Refirome a seu primeiro texto intitulado Analyse automatique du discours que em sua tradução brasileira foi publicado numa coletânea de textos de Pêcheux e colaboradores organizada por Gadet e Hak no livro Por uma análise automática do discurso aparecido em 1990 É a partir de suya tradução que está sendo citado neste trabalho 3 Este texto foi publicado originalmente no número 37 da Revista Langages Ganhou sua publicação brasileira na mesma coletânea referida na nota anterior Está sendo citado com base na tradução 4 Este texto foi publicado originalmente em francês em 1975 com o título Les Vérités de la Palice Em 1988 ganhou tradução brasileira intitulada Semântica e Discurso uma crítica à afirmação do óbvio e é a partir desta tradução que este texto será citado no presente trabalho afirmar que a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação do sujeito com a formação discursiva que o domina isto é na qual ele é constituído como sujeito idibid p163 Pêcheux mais adiante acrescenta que tal identificação ocorre pelo viés da formasujeito idibidp167 Deste modo a formasujeito tal como formulada nessa etapa da teoria da AD apresentase dotada de bastante unicidade sobretudo quando Pêcheux introduz por vez primeira o que chamou de tomada de posição idibid p171 cujo funcionamento explica nos seguintes termos a tomada de posição resulta de um retorno do Sujeito no sujeito de modo que a nãocoincidência subjetiva que caracteriza a dualidade sujeitoobjeto pela qual o sujeito se separa daquilo de que ele toma consciência e a propósito do que ele toma posição é fundamentalmente homogênea à coincidênciareconhecimento pela qual o sujeito se identifica consigo mesmo com seus semelhantes e com o Sujeito O desdobramento do sujeito como tomada de consciência de seus objetos é uma reduplicação da identificação idibid p 172 Como é possível perceber a partir da citação precedente a formasujeito tal como foi formulada nesse passo da teoria se apresenta dotada de bastante unicidade E isto se reflete fortemente no modo como a formação discursiva é concebida Ou seja pensar a formasujeito dotada de unicidade implica de imediato entender a formação discursiva fechada e homogênea E está formado o círculo a concepção de uma determina a concepção da outra e esta determinação é recíproca O desdobramento da formasujeito Entretanto em outro capítulo dessa mesma obra Pêcheux introduz após longa porém indispensável reconstrução a questão do discurso na formasujeito idib p 213 o que chamou de modalidades da tomada de posição as quais relativizam a reduplicação da identificação tal como acabamos de examinar Vejamos pois em que consiste esta relativização A primeira modalidade remete ao que Pêcheux designou de superposição entre o sujeito do discurso e o sujeito universal da formação discursiva Tal superposição revela uma identificação plena do sujeito do discurso com a formasujeito da FD que afeta o sujeito do discurso caracterizando o discurso do bom sujeito que reflete espontaneamente o Sujeito idibid p 215 Esta superposição entre o sujeito do discurso e a formasujeito revela a unicidade imaginária do sujeito PÊCHEUX 1988 p163 Neste passo percebese que Pêcheux retoma a questão da tomada de posição para relativizála Antes de mais nada não se trata de uma pura tomada de posição mas de uma modalidade de tomada de posição E a isto o autor acrescenta que esta tomada de posição aponta para a unicidade imaginária do sujeito Ou seja Pêcheux entende que esta tomada de posição que parece reduplicar a identificação é apenas uma primeira modalidade de tomada de posição e que quando ela ocorre produz não um sujeito dotado de unidade mas um efeitosujeito id ibid p 167 que se crê na origem do dizer e que portanto produz seu discurso sob a ilusão da unicidade imaginária do sujeito Logo a unicidade do sujeito é da ordem do imaginário Frente a este imaginário Pêcheux vai formular outras duas modalidades de tomada de posição Vejamos inicialmente a segunda modalidade que caracteriza o discurso do que Pêcheux caracterizou como sendo o mau sujeito Explicando melhor esta modalidade ela ocorre quando o sujeito do discurso através de uma tomada de posição se contrapõe à formasujeito que organiza os saberes da FD com a qual o sujeito do discurso se identifica Essa segunda modalidade consiste então em uma separação distanciamento dúvida questionamento contestação revolta idibid p215 em relação aos saberes da forma sujeito conduzindo o sujeito do discurso a contraidentificarse com a formasujeito da formação discursiva que o afeta E é esta modalidade de tomada de posição que coloca o sujeito do discurso na posição de mau sujeito vale dizer aquele que se permite duvidar questionar os saberes e não simplesmente reduplicálos como ocorre na primeira modalidade Como se vê a contraidentificação produz tensão antes de mais nada na e sobre a formasujeito E é a partir dessa tensão que ocorre no interior da própria formasujeito que se pode perceber que a pretendida unicidade da formasujeito é imaginária Ou seja a contraidentificação evidencia que a formasujeito não é dotada de unicidade e isto permite que diferentes modos de com ela identificarse e subjetivarse ocorram Quando o sujeito do discurso ao subjetivarse não se superpõe totalmente à formasujeito ocorre uma identificação parcial que não permite a reduplicação plena do saber da formasujeito Neste caso o efeitosujeito que produz o efeito de bom sujeito na primeira modalidade de tomada de posição cede lugar ao mau sujeito aquele que se identifica mas com reservas com distanciamento com questionamento com dúvidas Está instaurado o desdobramento da formasujeito em suas duas e diferentes modalidades de tomada de posição a do bom sujeito e a do mau sujeito Idib p 2145 Retomarei a questão do desdobramento na próxima seção No momento entretanto interessame ver de que forma o desdobramento da forma sujeito afeta a FD Da mesma forma que a unicidade da formasujeito determina a FD que se apresenta naquele passo fechada e homogênea no presente momento da teoria percebese que do desdobramento da formasujeito deriva a instauração da diferença e da divergência no âmbito da Formação Discursiva E a conseqüência disso é que a formação discursiva não mais se apresenta fortemente fechada e conseqüentemente homogênea Ao contrário a mudança na forma de conceber a formasujeito determina uma nova concepção de FD ela passa a ser dotada de fronteiras suficientemente porosas que permitem que saberes provenientes de outro lugar de outra FD nela penetrem aí introduzindo o diferente eou o divergente que fazem com que este domínio de saber se torne heterogêneo em relação a ele mesmo Ou seja mais uma vez percebemos que a natureza da formasujeito determina a da Formação Discursiva e viceversa A estas duas modalidades Pêcheux acrescenta uma terceira que funciona sob o modo da desidentificação isto é de uma tomada de posição nãosubjetiva que conduz ao trabalho de transformaçãodeslocamento da formasujeito idibid p 217 Ou seja o sujeito do discurso desidentificase de uma formação discursiva e sua respectiva forma sujeito para identificarse com outra formação discursiva e sua formasujeito Entretanto esta desidentificação não representa a liberdade do sujeito do discurso pois como salienta Pêcheux a ideologia não desaparece ao contário ela funciona de certo modo às avessas isto é sobre e contra si mesma através do desaranjorearranjo do complexo das formações ideológicas e das formações discursivas que se encontram intrincadas nesse complexo PÊCHEUX 1988 p217218 E mais adiante nesta mesma obra Pêcheux retoma a questão da desidentificação explicando que ela não implica um processo de desassujeitamento uma dessubjetivização ou um apagamento do sujeito o sentido não morre o sujeito não desaparece A repercussão consiste num trabalho na e sobre a formasujeito do discurso PÊCHEUX 1988 p269 Com base no que nos diz Pêcheux podemos afirmar que a desidentificação do sujeito do discurso em relação à FD em que estava inscrito não representa a conquista da tão sonhada liberdade por parte deste sujeito Diria mesmo que o analista de discurso que entendesse assim o movimento de desidentificação estaria sendo vítima do que Pêcheux chamou de efeito Münchhausen idibidem p 3037 Desidentificarse implica não mais estar identificado com uma determinada formação discursiva porque de fato este mesmo sujeito já identificouse com uma outra formação discursiva Esta modalidade de desidentificação permiteme tecer as três observações que seguem 1 a modalidade de desidentificação sinaliza que existe um certo espaço de liberdade de manobra para o sujeito do discurso O que se faz necessário é entender a natureza e a dimensão desta liberdade Não se trata de submeterse à ilusão de liberdade tal como acabo de sinalizar no parágrafo precedente Ou seja o homem é um animal ideológico idbid p 152 e como tal sempre está identificado a alguma ideologia seja ela qual for No entanto há aí uma pequena brecha que indica com clareza que o homem tem uma certa margem de movimentação e que não está condenado a manterse para sempre identificado com o mesmo domínio de saber E isto ocorre porque como Pêcheux mesmo sinalizou não há ritual sem falhas idibid p 301 Em um determinado momento sob o efeito de determinadas condições de produção o sujeito do discurso pode romper com o domínio de saber em que estava inscrito e em conseqüência identificarse com outra FD Esta capacidade de migrar de um domínio de saber para outro indica o espaço e a dimensão de sua liberdade 2 o que acabo de afirmar permiteme formular a segunda observação quando o sujeito do discurso desidentificase de uma determinada FD é porque de forma inconsciente ele já está identificado com outro domínio de saber 3 as duas observações anteriores por sua vez sustentam esta última pois entendo que o movimento de desidentificação é de mesma natureza que o movimento de identificação e se dá sob o efeito do laço constitutivo entre inconsciente e ideologia ao qual me referi anteriormente Através das duas últimas modalidades de tomada de posição examinadas mais acima a contraidentificação e a desidentificação percebese que a unidade imaginária e a homogeneidade da formasujeito tal como foi esboçada inicialmente e reafirmada pela primeira modalidade de identificação ficam bastante relativizadas Ou seja em decorrência do desdobramento da formasujeito podese entender que o sujeito da AD é um sujeito dividido e em decorrência disso a FD que o abriga passa a ser um domínio onde há espaço para a diferença e a divergência tornandose igualmente heterogênea não idêntica a si mesma Nunca é demasiado salientar com base no que precede que estas duas noções formasujeito e formação discursiva encontramse fortemente entrelaçadas tanto em sua formulação teórica inicial como em sua evolução Vale dizer que a heterogeneidade da formação discursiva é decorrência do desdobramento da formasujeito Ou seja uma formação discursiva homogênea só pode produzir uma formasujeito atravessada pelo imaginário de unicidade deste sujeito enquanto uma formação discursiva heterogênea produz como conseqüência natural a heterogeneidade da formasujeito que a organiza Do desdobramento à fragmentação da formasujeito Para examinar essa questão vale igualmente mobilizar um outro trabalho de Pêcheux datado de 19805 intitulado Remontémonos de Foucault a Spinoza Nele Pêcheux rediscute a noção de ideologia e a partir dela a noção de formação discursiva Ele afirma que uma ideologia é não idêntica a si mesma só existe sob a modalidade da divisão e não se realiza a não ser na contradição que com ela organiza a unidade e a luta dos contrários PÊCHEUX 1980 p192 E mais adiante acrescenta que a propósito da ideologia tratase de pensar a contradição de dois mundos em um só idibid p 195 Como se vê Pêcheux introduz a diferença e a divisão como propriedades da ideologia ela é heterogênea e vive sob o signo da contradição Ora se a ideologia não é idêntica a si mesma o que dizer da formação discursiva que representa no discurso suas estreitas relações com a ideologia Cabe ao próprio Pêcheux responder a esta questão Segundo o autor parece que é na modalidade pela qual se designam em palavras e em escritos estas coisas ao mesmo tempo idênticas e divididas que se especifica o que se pode sem inconveniente continuar chamando formação discursiva idibidp196 Vale dizer pois que se a ideologia não é idêntica a si mesma a formação discursiva por razões similares também é ao mesmo tempo idêntica e dividida Ou seja as fronteiras de uma formação discursiva são suficientemente porosas para permitirem que saberes oriundos de outras formações discursivas aí se façam presentes Em conseqüência disso seu domínio de saber é freqüentemente atravessadoinvadido por saberes provenientes de outras formações discursivas de outra formasujeito de outras posições sujeito comportando por conseguinte igualdade mas também diferença e divergência sendo pois a contradição o que se instaura aí em lugar de igualdade de sentidos e unicidade do sujeito Como é possível constatar a fragmentação da formasujeito determina a heterogeneidade da formação discursiva que é por ela organizada Por outro lado se a formação discursiva apresentase assim constituída então a formasujeito que a organiza também é heterogênea em relação a si mesma o que significa 5 Originalmente este trabalho foi apresentado em 1977 em um Congresso sobre o Discurso Político organizado no México Posteriormente foi publicado em 1980 em livro de mesmo título organizado por Mário Toledo Somente em 1990 foi publicado em francês em livro organizado por Denise Maldidier Linquiétude du Discours Neste trabalho esse texto será citado a partir de sua publicação mexicana afirmar que a formasujeito abriga a diferença e a ambigüidade em seu interior Só assim é possível pensar em uma formação discursiva heterogênea que continua comportando um sujeito histórico para ordenálaorganizála De tal modo que é possível pensar esse sujeito histórico como um sujeito dividido entre as diferentes posiçõessujeito que a interpelação ideológica lhe faculta pois como afirma Courtine chamarseá domínio da formasujeito o conjunto das diferentes posições de sujeito em uma formação discursiva como modalidades particulares de identificação do sujeito da enunciação ao sujeito do saber COURTINE 1981 p 51 Pêcheux já havia sinalizado como vimos na seção anterior que a formasujeito podia desdobrarse entre o bom e o mau sujeito Mas à medida que as análises continuaram a ser feitas percebeuse que este desdobramento é ainda muito ideal De fato a forma sujeito tem capacidade de dividirse em um número maior de posições de sujeito É a esta possibilidade que designo de fragmentação da formasujeito Claro está que não se trata mais de uma formasujeito dotada de unicidade estamos diante de um conjunto de diferentes posições de sujeito e não apenas duas e é esse elenco de posiçõessujeito que vai dar conta da formasujeito Por outro lado uma formasujeito fragmentada abre espaço não só para o semelhante mas também para o diferente o divergente o estranho daí decorrendo uma formação discursiva heterogênea cujo traço marcante é a contradição que lhe é constitutiva E cada uma destas características assinala diferentes posiçõessujeito no interior da FD Dito diferentemente cada uma destas posiçõessujeito indicam diferentes modos de se relacionar com a formasujeito e através dela com a ideologia Conseqüências da fragmentação da formasujeito A fragmentação da formasujeito tal como vimos na seção anterior traz algumas conseqüências das quais passo a me ocupar a seguir A primeira nos conduz a pensar especificamente sobre o conjunto de posições sujeito que se desenham no interior da FD Posto que não há apenas duas posiçõessujeito como pensar as tomadas de posição que abrem espaço ao que Pêcheux chamou de bom sujeito e mau sujeito A questão que precede pretende questionar se ainda é possível pensar nestes termos No meu entender há alguns deslocamentos que se fazem necessários mas em essência estas posições ainda se sustentam Ou seja se há um conjunto de posições sujeito e não apenas duas apenas uma delas remete ao que Pêcheux designou de bom sujeito aquele que ao identificarse plenamente com a formasujeito superpondoselhe plenamente reduplica seu saber Entendo que esta posiçãosujeito se constitui em uma posiçãosujeito dominante em relação às demais posições em que a formasujeito se fragmenta A partir disso se estabelece a segunda conseqüência o sujeito do discurso ao identificarse com uma FD não mais o faz a partir de sua identificação com a forma sujeito pois esta é heterogênea e fragmentada Em conseqüência disso o sujeito se identifica com a FD através de uma de suas posiçõessujeito e por seu viés com a forma sujeito Assim entendida a formasujeito e sua fragmentação podese inferir que se o sujeito do discurso se identifica com a posiçãosujeito dominante ele instaura o que Pêcheux chamou de efeitosujeito Ou seja o sujeito do discurso se superpõe aos saberes que emanam desta posiçãosujeito e em decorrência desta plena identificação ele se constitui como um bom sujeito As outras posiçõessujeito vão se distanciando gradativamente dos saberes organizados pela posiçãosujeito dominante e se constituem no que Pêcheux chamou de mau sujeito Vale dizer quando os saberes que emanam das demais posiçõessujeito sinalizam diferenças questionamentos divergências em relação aos saberes que emanam da posiçãosujeito dominante elas travam entre si uma relação de intersubjetividade falante Pêcheux 1988 p 1723 E a intersubjetividade que se estabelece entre a posição sujeito dominante e as demais é quase sempre muito tensa Por outro lado quando um sujeito do discurso se identifica com uma determinada FD através dos saberes produzidos a partir de uma posiçãosujeito diferente da posição sujeito dominante ele se constitui como um mau sujeito O que equivale a dizer que neste caso a superposição não é plena Os questionamentos do sujeito não o permitem e em função deles vão surgindo as diferenças no interior da FD trazendo heterogeneidade para o âmbito da formasujeito e da FD que ela organiza Como se vê pelo que precede as noções de bom e mau sujeito não desaparecem mas mudam de natureza no interior da problemática desenhada pela noção de sujeito no âmbito desta teoria A terceira conseqüência é decorrente da natureza fragmentada da formasujeito Dizendo de outra forma se a formasujeito fragmentouse não é mais possível a um sujeito de discurso identificarse diretamente com a formasujeito Para com ela identificarse impõese que o sujeito do discurso se identifique inicialmente com o saber emanado de uma determinada posiçãosujeito para a partir deste lugar discursivo identificarse com a formasujeito e através dela com a formação discursiva que o afeta Como é possível perceber a identificação simbólica do sujeito com a FD se faz de forma fragmentada também ou seja o sujeito do discurso não pode mais identificarse com a totalidade dos saberes da FD que o afeta Esta identificação continua ocorrendo mas apenas com uma parcela dos saberes desta FD Por fim fazse necessário um breve comentário sobre as modalidades do bom e do mau sujeito Quando Pêcheux introduziu estas modalidades elas satisfizeram plenamente a necessidade de reverdesfazer o imaginário de unicidade existente em torno da forma sujeito Por conseguinte desdobrar a formasujeito nestas duas modalidades de tomada de posição foi suficiente para mostrar que esta unicidade era absolutamente ilusória Entretanto as análises discursivas que têm sido realizadas desde então apontam que de fato este desdobramento binário freqüentemente não dá conta das diferenças que se instauram no interior de uma formasujeito Por conseguinte a designação de posição sujeito tal como formulada por Courtine pareceme melhor dar conta desta questão O mau sujeito de fato pode ser representado por várias posiçõessujeito e não apenas por uma que venham a estabelecer uma relação de contraponto com a posiçãosujeito dominante A fragmentação da formasujeito e a movimentação dos sentidos análises Para maior clareza do que precede vou trazer algumas análises6 Para tanto inicialmente vou retomar brevemente duas modalidades de tomada de posição examinadas mais acima Interessame considerar primeiramente a modalidade de desidentificação A desidentificação no meu entender pode ocorrer de dois modos diferentes O primeiro consiste na desidentificação por parte do sujeito do discurso de uma forma sujeito e sua identificação com uma outra formasujeito já existente Essa operação de desidentificação aponta para o movimento que se estabelece no âmbito do complexo de formações discursivas com dominante a que Pêcheux se refere quando trata desta questão Pêcheux 1988 p 217 E nisso não há nada de novo Por por essa razão não vou determe nessa questão nem apresentar análises para ilustrála O segundo modo de desidentificação apóiase no que Pêcheux 19907 chamou em um outro texto seu de acontecimento discursivo que se institui no exato momento em que o sujeito do discurso rompe com um domínio de saber já instituído e com o qual estava identificado até então para identificarse com um novo domínio de saber que está em processo de constituição Ou seja não se trata da simples migração de uma FD instituída para outra igualmente já instituída tal como foi referido no parágrafo anterior O que está em pauta aqui é o momento exato do surgimento de uma nova FD e de sua formasujeito no momento mesmo em que o acontecimento que lhe dá origem ocorre A captação deste momento de constituição de um novo domínio de saber pode ser observada pela agitação nas filiações de sentido Dito de outra forma tratase de uma movimentação uma deriva muito intensa dos sentidos em decorrência da qual dáse o surgimento de um novo domínio de saber Esse movimento em direção ao novo ao inusitado esse movimento de ruptura marca um momento pontual único fugaz irrepetível o qual registra não só o surgimento de um novo domínio de saber mas também de uma nova formasujeito Ou se preferirmos de um novo sujeito histórico ideológico Como é possível perceber o acontecimento discursivo não se dá a partir do nada Ele ocorre a partir de um domínio de saber já existente em relação ao qual ocorre ruptura Para exemplificar um processo de desidentificação dessa natureza podemos considerar o surgimento da Formação Discursiva dos Sem Terra na qual se inscrevem todos aqueles que lutam pela redistribuição da terra no Brasil Tratase de um domínio de saber que surge para se contrapor à Formação Discursiva dos Latifundiários Estes são dois domínios de saber antagônicos que contrapõem fortemente duas formassujeito igualmente antagônicas as quais determinam sentidos opostos sobre a questão da terra sentidos estes que se constroem por exclusão cada um deles remetendo a apenas um desses dois domínios de saber Ou seja tais sentidos se rejeitam mutuamente 6 Estas análises foram retiradas de trabalhos anteriores No presente trabalho elas servem apenas para ilustrar a questão teórica que está em tela Para melhor acompanhar tais questões ver O entrelaçamento entre o político o jurídico e a ética no discurso dosobre o MST uma questão de lugarfronteira artigo publicado no número 12 da Revista da ANPOLL 7 Os textos aqui referenciados remetem a um conjunto de conferências proferidas nos Estados Unidos em 1983 Em 1990 foram publicadas em francês com o título de Discours Structure ou événement no livro Linquiétude du discours organizado por Denise Maldidier e concomitantemente no Brasil no livro Discurso estrutura ou acontecimento Estas formações discursivas polarizamse mobilizandose em torno de dois enunciados discursivos que se excluem remetendo cada um deles a um desses dois domínios de saber Por um lado os semterra bradam pelo direito à terra8 Por outro lado os latifundiários defendem o direito de propriedade9 Esse embate em torno do direito à terra representa o acontecimento histórico que dá origem ao acontecimento discursivo que sinaliza o surgimento de um novo sujeito histórico e político o sujeito Sem Terra Mas vejamos de onde vem este sujeito Num momento anterior ao acontecimento discursivo que deu origem a este novo domínio de saber o trabalhador rural que não possuía terra mas que trabalhava na terra de seus patrões inscreviase em uma posição sujeito no interior da formação discursiva que afetava os latifundiários e a ela se submetia reconhecendo o direito de propriedade conferido aos proprietários rurais Nessa fase os saberes sobre a terra embora fortemente heterogêneos se inscreviam em uma única formação discursiva Entretanto num determinado momento da conjuntura histórica do Brasil o trabalhador rural desidentificouse da formação discursiva em que estava inscrito anteriormente e na qual são produzidos os saberes sobre o direito de propriedade A partir deste momento começam a surgir novos sentidos sobre a propriedade da terra e estes novos sentidos marcam uma agitação muito forte nas fileiras dos sentidos já instituídos em torno desta questão Estes novos sentidos vão entrar em linha de colisão com os sentidos da FD em que se inscrevem os proprietários rurais Nesse embate o trabalhador rural já não reconhece mais o sentido instituído proveniente do discurso jurídico direito de propriedade o qual coloca o proprietário rural como sujeito de direito dele excluindo os trabalhadores rurais Este questionamento tornase tão contundente e radical que conduz de fato o trabalhador rural a desidentificarse por completo dos sentidos que circulam nesta FD historicamente instituída rompendo com seus saberes sobre a terra E neste movimento de desidentificação os sentidos sobre a questão da terra com os quais este sujeito não mais se identifica entram em deriva da qual vai surgir um novo domínio de saber O enunciado direito de propriedade se ressignifica dando surgimento a um novo sentido o direito à terra até então impensável Este novo sentido vai inaugurar um novo espaço de dizer vai abrigar novos sentidos sobre a questão da terra os quais se inscrevem no novo domínio de saber o dos SemTerra organizado por uma nova forma sujeito Esse é o acontecimento discursivo ruptura com uma formação discursiva historicamente instituída desidentificação da formasujeito que organiza os saberes do referido domínio de saber e o surgimento de uma nova FD e de uma nova formasujeito o que provoca necessariamente movimentação e reordenamento dos sentidos no espaço de memória sobre os saberes que se organizam em torno da questão da terra E nesta deriva no trabalho do sentidos sobre os sentidos o sentido direito de propriedade dá lugar ao direito à terra 8 Esse sentido pode ser construído com base no Art5o da Constituição Nele podemos ler Todos são iguais perante à lei sem distinções de qualquer natureza garantindose aos brasileiros a inviolabilidade do direito à propriedade Acrescentese a isso o teor do inciso XIII que determina que a propriedade atenderá a sua função social 9 Esse sentido também se fundamenta no Art 5o inciso XII é garantido o direito de propriedade Vale dizer que o direito é consolidado garantido pela lei Acontecimento discursivo ou acontecimento enunciativo A forma de acontecimento que acabamos de descrever remete para a descrição clássica de acontecimento discursivo proposta por Pêcheux 1990 Mas nem todo deslizamento de sentidos determina uma ruptura dessa ordem uma desidentificação tão plena Ou seja nem todos os sentidos que deslizam provocam ruptura com os sentidos já instituídos provocando desidentificação do sujeito do discurso com a formasujeito e conseqüentemente com a FD e a instauração de uma nova FD A pergunta que se coloca então é quando ocorre movimentação dos sentidos no interior de uma FD mas sem desidentificação com a formasujeito que a organiza que tipo de movimentação se instaura Qual é a sua natureza Que conseqüências tal movimentação acarreta Para responder a estes questionamentos volto às análises Para tanto vou tomar mais uma vez o discurso dos trabalhadores SemTerra para mostrar como a dispersão das posiçõessujeito opera nesse discurso aí instaurando a diferença e a divergência de sentidos E para tanto vou examinar a questão das dissidências em relação ao discurso do MST Das ações lideradas por dissidentes do MST10 uma das mais marcantes foi a ocupação da Fazenda Santa Elina em Corumbiara Rondônia Essa ocupação foi decidida em abril de 1995 pelos dissidentes do MST que pretendem ser os que fazem o movimento FSP 030995 p116 tal como julga Cícero Ferreira Neto lider de Corumbiara que ajudou a fundar o MST e hoje dele se afastou A ocupação foi decidida à revelia do MST que não concordava com essa ação por considerar a fazenda produtiva A dissidência não concordando com essa avaliação ocupou a Santa Elina o que provocou um grande confronto Posteriormente em entrevista concedida à Folha de São Paulo em 24 de setembro de 1995 Cícero Ferreira Neto afirmou que o confronto de Corumbiara virou uma nova referência do Movimento semterra A luta pela terra não é só do MST O MST não abarca todos os semterra Como é possível perceber a partir da breve síntese daqueles episódios há aí uma voz fortemente discordante que entra em colisão com as decisões emanadas do MST num evidente movimento de contraidentificação com alguns de seus saberes Ou seja neste movimento de contraidentificação do sujeito do discurso não há mais espaço para uma plena e perfeita superposição entre ele e os saberes que emanam da formasujeito como ocorreria se tivesse havido uma superposição entre este sujeito do discurso e a forma sujeito Em decorência disso o sujeito do discurso não mais reduplica totalmente estes saberes E no movimento de constituição de sua subjetividade ele surge como o mau sujeito aquele que se permite questionar tais saberes E assim procedendo instaura uma relação tensa no interior da FD e de sua formasujeito Entretanto cabe frisar que a contraidentificação não se dá em relação à forma sujeito tomada como um todo pois se assim fosse isto daria origem a uma nova FD tal 10 As análises apresentadas nesta seção foram desenvolvidas em dois outros trabalhos O primeiro intitulado Trabalhadores rurais e heterogeneidade discursiva apresentado em reunião do GT de AD da ANPOLL durante o XIII Encontro Nacional da ANPOLL e publicado no CDROM Síntese Niterói 2000 E o outro intitulado Identificaão e contraidentificação diferentes modalidades de subjetivição no discurso dosobre o MST e publicado no livro organizado por Mariani A escrita e os escritos reflexões em análise do discurso e psicanálise Aqui elas entram apenas a título de exemplificação como ocorreu com a deriva de sentidos que conduziu do direito de propriedade à direito à terra como vimos na análise realizada na seção anterior No presente caso dáse um deslocamento mais especificamente um distanciamento em relação a alguns saberes que emanam da formasujeito o que vai dar origem à fragmentação da mesma Em função disso podese afirmar que a contraidentificação ocorre em relação à posiçãosujeito dominante onde se inscreve o MST nesse domínio de saber A convivência dessas duas posiçõessujeito a dominante e a dissidente mostra que esta FD é heterogênea e que nela não há lugar apenas para a reprodução dos mesmos sentidos O sentido diferente discordante tem aí garantido seu lugar de inscrição Ambas as posições se inscrevem na formação discursiva dos SemTerra e através destas duas posiçõessujeito divergentes dá se a inscrição de diferentes formas de realização da subjetividade no âmbito da mesma formação discursiva as quais passam a travar entre si o que Pêcheux chamou de intersubjetividade falante como vimos mais acima ao tratarmos da fragmentação da formasujeito Dito de outra forma estas duas posiçõessujeito mostram diferentes modos de se relacionar com a ideologia sem entretanto romper com o domínio de saber em que se inscrevem Por trás do efeito do dissenso produzido pela fragmentação da formasujeito nessas duas diferentes posiçõessujeito a luta pela terra reúne essas posições de sujeito aparentemente dispersas e as coloca em relação de identificação com o saber desse domínio a luta pelo direito à terra as une É isso que lhes permite inscreveremse na mesma formação discursiva e relacionaremse mesmo que de modo conflitante com a mesma formasujeito o sujeito Sem Terra Como podese perceber pelos exemplos examinados acima a diferença que marca as duas modalidades de tomada de posição mobilizadas pelo discurso dos SemTerra a contraidentificação e a desidentificação funcionam de forma totalmente diferente Vejamos em que consiste esta diferença A desidentificação está na origem dos novos sentidos que até então não eram possíveis de ser pensados sentidos esses que derivam do direito de propriedade a direito à terra E esta deriva dos sentidos vai muito além de uma diferençadivergência no interior do mesmo domínio de saber como vimos no exemplo que analisamos da contra identificação A diferença que a desidentificação instaura é da ordem do antagonismo e os sentidos que dela derivam não podem mais ter por sede o mesmo domínio em que os saberes dos latifundiários se inscrevem Os novos sentidos que resultam desta deriva determinam o surgimento de um novo domínio de saber organizados por uma nova forma sujeito Tratase do surgimento de um novo sujeito histórico Já a contraidentificação dos dissidentes do MST não os retira da FD dos Sem Terra apenas introduz no interior deste domínio de saber diferentes modos de lidar com os saberes desta FD e com a ideologia que perpessa a luta pela terra Os dissidentes constituem uma posiçãosujeito diferente mas sempre identificada com a mesma formasujeito com que se identifica a posiçãosujeito dominante em que se inscreve o discurso do MST Dito diferentemente enquanto a desidentificação dos Sem Terra em relação à FD dos Latifundiários determina uma ruptura que conduz ao surgimento de uma nova FD e de uma nova formasujeito no caso do surgimento da posiçãosujeito dissidente da FD dos SemTerra não se dá uma ruptura O que ocorre é um relacionamento tenso do sujeito do discurso com a formasujeito deste domínio de saber e conseqüentemente com o modo de se relacionar com a ideologia Essa tensão vai estar na origem da fragmentação da forma sujeito Resta ainda uma questão para debater então só há acontecimento quando ocorre ruptura com uma FD já instituída Penso que aqui há espaço para reflexão e teorização Inicialmente devo dizer que não acredito que os acontecimentos discursivos se multipliquem indefinidamente nem que instituam uma prática corriqueira Mas penso que certas movimentações de sentido se produzem sem determinar rupturas com a FD Nesse caso a tensão que se estabelece é em relação com a posiçãosujeito dominante daquela FD e não com a formasujeito Foi isto o que ocorreu no caso examinado mais acima sobre o surgimento de uma posiçãosujeito dissidente em relação à posiçãosujeito dominante no interior da FD dos Sem Terra Assim quando certos dizeres até então interditados em uma determinada FD são apropriados e incorporados ao seu saber ocorre um reordenamentomodificaçãoestranhamento muito intensos nos seus dizeres e seus sentidos E quando isto se dá podemos estar presenciando a instauração de uma nova posição sujeito que vai se relacionar de modo tenso com as diferentesposições sujeito em que se desdobra a formasujeito daquela FD sobretudo com a posiçãosujeito dominante sem entretanto com ela romper Tal fato me permite avançar uma outra questão a simples instauração de uma nova posiçãosujeito no interior de uma FD tal como vimos na análise anterior não é suficiente para produzir um acontecimento Para que haja acontecimento fazse necessário que essa nova posiçãosujeito ao se constituir se instaure produzindo sentidos antes interditados no seu domínio de saber E mais esta nova posiçãosujeito convive com as demais instituindo muito mais que a diferença Ela conduz ao estranhamento à tensão interna às fronteiras da FD em que está inscrita Creio que o surgimento de uma nova posiçãosujeito com tais características seja capaz de instaurar um acontecimento mas este acontecimento não é da mesma natureza de um acontecimento discursivo tal como o caracterizou Pêcheux Neste caso entendo que se trata de um acontecimento enunciativo no interior de uma formação discursiva O acontecimento discursivo é de natureza diversa do acontecimento enunciativo enquanto no acontecimento discursivo ocorre uma desidentificação com a formasujeito a qual está na origem da ruptura com a referida formasujeito no acontecimento enunciativo estamos diante de uma contraidentificação com a posiçãosujeito dominante a qual está na origem do afrontamento com os saberes que emanam desta posiçãosujeito dominante no interior de uma formação discursiva No primeiro caso ocorre antagonismo e ruptura No segundo caso afrontamento com fragmentação da formasujeito No primeiro caso tais saberes são excludentes No segundo caso estes saberes convivem embora de forma conflitante e tensa No primeiro caso estamos face a diferenças que decorrem do trabalho dana formasujeito como um todo No segundo caso estamos face a divergências decorrentes do trabalho dana posiçãosujeito dominante e instauração do estranhamento no interior da FD Quando a ruptura se dá em relação à formasujeito e seus saberes o resultado desta ruptura será o surgimento de uma nova formasujeito e a constituição de um novo domínio de saber Isto autoriza a dizer que junto com ela vai se instituir uma nova formação discursiva e novos modos de significar que estarão em confronto com a FD em relação à qual se deu a ruptura Já quando o afrontamento ocorre em relação à posiçãosujeito dominante de uma formação discursiva heterogênea o resultado desta tensão será o surgimento de uma nova posiçãosujeito a qual entra em relação de confronto com a posiçãosujeito dominante em relação à qual se deu a instauração do estranhamento dando lugar ao surgimento de uma nova subjetividade contraditória no interior da mesma formação discursiva Qual é então a diferença entre estes dois acontecimentos O acontecimento discursivo determina o surgimento de uma nova formasujeito e por conseguinte de uma nova formação discursiva Vale dizer a ruptura é radical e definitiva o sujeito não suporta mais os saberes da FD em que se inscrevia e com ela se desidentifica dela se retirando Este movimento o conduz necessariamente para a instauração de uma nova FD e à produção de novos saberes Este é o acontecimento discursivo Já o acontecimento enunciativo implica apenas a instauração de uma nova posição sujeito no interior de uma mesma FD Dito de outra forma surge aí uma nova fragmentação em relação à formasujeito ou seja surge aí um novo modo de enunciar os sentidos no interior de uma formação discursiva mas este novo modo não opera pelo viés da ruptura com a formação discursiva e com a formasujeito Seu funcionamento se dá pelo viés da tensão e do estranhamento com esta formasujeito Ou seja este conflito é interno à FD e se dá em relação aos modos enunciativos de uma determinada posiçãosujeito geralmente dominante Surgem novos saberes provenientes de outro lugar no interior de uma mesma FD e estes aí acarretam um forte estranhamento Este é o acontecimento enunciativo Enquanto o acontecimento discursivo remete para fora é externo à formação discursiva que lhe dá origem instaurando um novo sujeito histórico o acontecimento enunciativo provoca a fragmentação da formasujeito e se dá por conseguinte no interior da própria formação discursiva dando origem a uma nova posiçãosujeito A ruptura com a formação discursiva e com sua formasujeito foi designada por Pêcheux de acontecimento discursivo Proponho pois que a fragmentação da formasujeito e o conseqüente surgimento de uma nova posiçãosujeito que instaure o estranhamento nos processos discursivos de uma formação discursiva seja designada de acontecimento enunciativo O melhor exemplo que tenho de um acontecimento enunciativo de tal natureza é o surgimento da posiçãosujeito da Teologia da Libertação TL no âmbito da Formação Discursiva Católica11 Essa posiçãosujeito estabelece uma movimentação muito intensa nos sentidos nessa FD ao apropriarse de saberes provenientes da Formação Discursiva Marxista e incorporálos aos sabere da Formação Discursiva Católica No caso em questão a aproximação dos saberes marxistas aos saberes católicos provoca uma movimentação muito intensa neste domínio de saber e determina a reorganização dos saberes dessa FD Essa nova posiçãosujeito a da Teologia da Libertação traz para dentro da FD Católica a preocupação com o social O ponto de encontro desses dois domínios de saber provoca um 11 Esta reflexão foi desenvolvida a partir das análises realizadas por Jeane Maria Hanauer em sua dissertação de mestrado intitulada A Teologia da Libertação e o conflito com o Vaticano análise de uma formação discursiva em processo de reconfiguração elaborada sob minha orientação e defendida no âmbito do programa de PósGraduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em outubro de 2000 reordenamento da memória dessas duas FD e em que pese o efeito de sentido de estranhamento que tais novos sentidos podem aí provocar esses saberes passam a coabitar com os outros que lhe são próprios Ou seja a posiçãosujeito da TL não rompe com a FD Católica não institui uma nova FD não rompe com a formasujeito da FD Católica Entretanto ela provoca a fragmentação da formasujeito da FD Católica e a instauração de uma nova posiçãosujeito a da Teologia da Libertação responsável pela inscrição de novos sentidos provenientes da FD Marxista no âmbito do dizível da FD Católica Essa nova posiçãosujeito representa a inscrição de uma nova posição subjetiva no interior da FD Católica responsável pela enunciação do novo do impensável proveniente de um lugar proibido indizível Sentidos até então interditados neste domínio de saber passam a aí serem enunciados provocando estranhamento e desconforto Assim o surgimento dessa nova posição subjetiva provoca o que penso poder designar por acontecimento enunciativo no interior da FD Católica A partir dos dois exemplos de contraidentificação aqui examinados creio que é possível mostrar que nem toda a contraidentificação está na origem de um acontecimento enunciativo No caso da posiçãosujeito dos dissidentes em relação à posiçãosujeito dominante do MST ocorre a fragmentação da formasujeito mas não percebo nesta fragmentação um foco de estranhamento e desconforto Há aí uma nova posiçãosujeito seguramente mas ela não constitui em meu entender um acontecimento enunciativo no interior da FD dos Sem Terra Já a posiçãosujeito da TL originária da fragmentação da formasujeito da FD Católica traz para dentro desta FD sentidos que lhe são totalmente estranhos impensáveis e que geram neste domínio de saber estranhamento e desconforto E é esta característica que faz dessa nova posiçãosujeito um acontecimento enunciativo Vale dizer no meu entender o acontecimento enunciativo é da ordem da raridade da mesma forma que o é o acontecimento discursivo Produzindo um efeito de conclusão Como é possível perceber para acompanhar esta trajetória da noção de sujeito em AD fezse necessário revisitar a noção de formação discursiva Não há como examinar uma sem mobilizar a outra O sujeito tal como examinado ao longo deste trabalho mostrase mais que desdobrado Ele é um sujeito dividido em relação a si mesmo por conseguinte heterogêneo e disperso em relação aos saberes da FD em que se inscreve e em relação aos sentidos que mobiliza de que se apropria e que produz constituindo esta forma de subjetividade que estou chamando de fragmentação do sujeito em AD Vale salientar ainda antes de encerrar esta discussão que a noção de sujeito assim concebida mostra com muita clareza que aquilo que alguns chamam de ponto de vista é obrigatoriamente nesta teoria o ponto de vista de um sujeito tal como delineado ao longo deste trabalho e não o ponto de vista de um indivíduo livre pensador e dono absoluto de seus posicionamentos Dito de outra maneira o ponto de vista do sujeito significa para a Teoria da AD a tomada de posição que o sujeito do discurso faz identificandose com os saberes provenientes de uma posiçãosujeito inscrita em uma determinada FD Dessa forma o ponto de vista de um sujeito histórico se caracteriza por tomadas de posição a favor de certos saberes que préexistem ao seu dizer e contra outros saberes que igualmente o precedem e estes movimentos de identificação de contraidentificação ou desidentificação mostram que a constituição do sentido juntase à constituição do sujeito PÊCHEUX 1988 p 154 Ou seja o sujeito identificase com um determinado sentido e se contrapõe a outros em função de sua interpelação ideológica que está na origem de seu estatuto de sujeito de sua identificação com determinada FD e com uma posiçãosujeito É em função do que precede que é possível perceber porque os sentidos que se constituem a partir da FD que afeta o dizer do sujeito se lhe afiguram absolutamente evidentes Tal fato mostra igualmente que a constituição do sentido é contemporânea da constituição do sujeito E esse efeito de evidência decorre do que Pêcheux chamou de teatro da consciência idibid p154 Vale dizer o indivíduo ao ser interpelado pela ideologia constituise em sujeito e com isso cria as condições necessárias para a produção de sentido e seus efeitos de evidência Estamos pois frente a um entrelaçamento inextricável a interpelação do indivíduo em sujeito sua identificação com uma FD sua inscrição em determinada posiçãosujeito e a constituição do efeito de evidência dos sentidos Como se vê a noção de sujeito nesta teoria convoca outras noções para poder ser pensada E estas noções tecem entre si uma rede teórica muito solidária trabalhar com uma delas implica examinar todo um conjunto de noções que se entretecem se cruzam se mesclam Para os efeitos deste trabalho foi estabelecido um recorte teórico Outras noções poderiam ter sido mobilizadas para examinar esta teia teórica mas isto já seria uma outra viagem Encerro pois esta discussão mesmo que o faça provavelmente de forma bastante provisória só para não dizerem que não concluí BIBLIOGRAFIA COURTINE JeanJacques Analyse du discours politique Langages Paris n62 juin 1981 HANAUER Jeane A teologia da libertação e o conflito com o Vaticano análise de uma formação discursiva em processo de reconstituição Dissertação de mestrado Programa de PósGraduação em Letras UFRGS out 2000 INDURSKY Freda Trabalhadores rurais e heterogeneidade discrsiva Niterói ANPOLL CDROM Sínteses 2000 Do desdobramento à fragmentação do sujeito em Análise do Discurso Porto Alegre ANPOLL Síntese 2 2002 O entrelaçamento entre o político o jurídico e a ética no discurso dosobre o MST uma questão de lugarfronteira São Paulo Revista da ANPOLL n12 p111131 Janjun 2002 Identificação e contraidentificação diferentes modalidades de subjetivização no discurso dosobre o MST In MARIANI Bethania Org A escrita e os escritos reflexões em análise do discurso e psicanálise São Carlos Clara Luz 2006 PÊCHEUX M Análise automática do Discurso In GADET F HAK Torg Por uma análise automática do discurso Campinas Ed da UNICAMP 1990 Semântica e Discurso uma crítica à afirmação do óbvio Campinas Ed da UNICAMP 1988 Remontémonos de Foucault à Spinoza In TOLEDO Mario Monteforte El discurso político México Nueva Imagen 1980 FUCHS C A propósito da análise automática do discurso atualização e perspectivas In GADET F HAK T org Por uma análise automática do discurso Campinas Edda UNICAMP 1990 Discurso estrutura ou acontecimento Campinas Pontes 1990