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AfroÁsia 28 2002 125146 125 CATOLICISMO NEGRO NO BRASIL SANTOS E MINKISI UMA REFLEXÃO SOBRE MISCIGENAÇÃO CULTURAL Marina de Mello e Souza Os estudos sobre a inserção dos africanos escravizados e seus des cendentes nas Américas têm sido um campo fértil para a reflexão acerca dos processos de sincretismo aculturação transculturação encontro de culturas miscigenação cultural entre várias outras noções que buscam dar conta de situações nas quais novas culturas surgem a partir do con tato entre povos diferentes Desde Nina Rodrigues pesquisador pioneiro dessa área e principalmente a partir de Melville Herskovits que muito contribuiu para a reflexão teórica acerca dos processos de aculturação tem sido destacada a importância de se conhecer as sociedades e culturas de onde vieram os africanos traficados para as Américas para uma me lhor compreensão das chamadas culturas afroamericanas1 Herskovits é peça central no debate sobre a existência de africanismos nas socie dades americanas Seu livro The myth of the negro past é de 1941 mas Este texto é uma versão ampliada da comunicação A construção de uma identidade católica negra no Brasil escravista santos e minkisi uma reflexão sobre miscigenação cultural apresen tada no colóquio organizado por Livio Sansone Elisée Soumonni e Boubacar Barry A cons trução transatlântica das noções de raça cultura negra negritude e antiracismo rumo a um novo diálogo entre pesquisadores na África América Latina e Caribe em novembro de 2002 Gorée Senegal do qual pude participar graças ao apoio financeiro dado pela FAPESP Os co mentários atilados do parecerista da AfroÁsia me ajudaram a dar sua forma atual e aqui agrade ço a ele a leitura feita Professora do Departamento de História FFLCHUSP 1 Nina Rodrigues Os africanos no Brasil 3a ed São Paulo Companhia Editora Nacional 1945 Melville Herskovits The myth of the negro past Boston Beacon Press 1990 126 AfroÁsia 28 2002 125146 nos Estados Unidos seus trabalhos só foram valorizados a partir da dé cada de 1960 No Brasil depois do pioneirismo de Nina Rodrigues Arthur Ramos Edison Carneiro Roger Bastide e Pierre Verger foram autores que pensaram sobre o negro na sociedade brasileira2 Nos anos 1970 Sidney Mintz e Richard Price fundamentados em suas pesquisas de campo no Caribe e no Suriname escreveram juntos um ensaio que influenciou toda uma geração de estudiosos da cultura afroamericana3 A idéia de crioulização é o pano de fundo de suas refle xões nas quais ocupa primeiro plano a preocupação com a chegada do africano no Novo Mundo com a formação de novas comunidades e no vas culturas Mesmo priorizando os processos de transformação os au tores aceitam que eles se dão a partir de bases préexistentes e retomam uma idéia esboçada por Herskovits de que as culturas têm uma gramá tica própria que serve de elemento organizador das novas construções sociais e culturais Nas Américas estas construções resultaram da interação entre grupos de escravos pertencentes a etnias diversas unidos pelos mecanismos do tráfico e pela escravização e grupos de coloniza dores europeus detentores dos instrumentos de poder Do final dos anos 1970 para cá os sistemas sociais e religiosos criados pelas comunidades negras nas Américas têm atraído a atenção dos pesquisadores e são cada vez mais analisados de uma perspectiva que busca fazer conexões entre as culturas de origem dos escravos trazi dos para as Américas e as culturas produzidas nas novas situações A reflexão aqui proposta se enquadra nessa perspectiva de abordagem da religiosidade das comunidades afrodescendentes tomando como foco não os chamados cultos afrobrasileiros e sim o catolicismo exercido por algumas dessas comunidades 2 Roger Bastide Les réligions africaines au Brésil Paris Presses Universitaires de France 1960 e As Américas negras as civilizações africanas no Novo Mundo São Paulo Difel Editora da Universidade de São Paulo 1974 Artur Ramos Introdução à Antropologia Brasileira Rio de Janeiro Edição da Casa do Estudante do Brasil 1943 e As culturas negras no Novo Mundo 4a ed São Paulo Companhia Editora Nacional 1979 Edison Carneiro Antologia do negro bra sileiro Rio de Janeiro Edições de Ouro 1962 Pierre Verger Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos São Paulo Corrupio 1987 3 Sidney Mintz e Richard Price The birth of AfricanAmerican culture an anthropological perspective Boston Beacon Press 1992 AfroÁsia 28 2002 125146 127 Um dos muitos resultados da diáspora africana é a presença de reis negros nas Américas representantes de grupos étnicos específicos presentes no interior de quilombos e de irmandades católicas O estudo das situações em que existiram esses reis ilumina a compreensão de como africanos e europeus interagiram no contexto da colonização americana sob um regime escravista Em trabalho anterior sugeri algumas interpre tações sobre esses reis voltando atenção especial para a adoção do cato licismo ou de alguns de seus elementos por parte tanto de comunidades na África como de afrodescendentes nas Américas4 Foram os estudos de John Thornton que me abriram os olhos para a importância do catoli cismo na África Centroocidental nos séculos XVI XVII e XVIII e a partir deles pude perceber o lugar nada desprezível do catolicismo na relação que os africanos e afrodescendentes brasileiros mantinham com as terras de seus antepassados5 Segundo a análise desenvolvida em meu trabalho seguindo pistas por ele indicadas no Brasil em algumas ocasiões o catolicismo por estar presente na região do antigo reino do Congo desde o final do século XV serviu de ligação com um passado africano que era importante elemento na composição das novas identidades das comunidades afrodescendentes no contexto da diáspora Ao estudar os festejos em torno da coroação de reis do Congo que aconteciam no Bra sil desde o século XVII entendi que estas eram manifestações percebi das de formas diferentes pelos que as realizavam membros da comuni dade negra e por aqueles identificados com a sociedade senhorial de origem lusitana que viam aquelas festas acontecerem mantendo atitudes ora condescendentes ora repressoras Enquanto para uns as festas em torno de reis remetiam a chefias africanas a ritos de entronização à prestação de fidelidades para outros elas se associavam à noção de um império que se estendia pelos quatro cantos do mundo Europa África 4 Marina de Mello e Souza Reis negros no Brasil escravista história da festa de coroação de rei congo Belo Horizonte Editora UFMG 2002 5 John Thornton é um pesquisador que tem dado contribuição decisiva para o estudo do catolicis mo na África CentroOcidental Suas posições freqüentemente iluminadoras podem ser conhe cidas em diversos artigos e livros sobre o tema como The development of an African Catholic Church in the Kingdom of Kongo 14911750 Journal of African History no 25 1984 pp 147167 Early KongoPortuguese relations a new interpretation in David Henige org History in Africa a journal of method nº 8 1981 pp 183204 e Africa and Africans in the Making of the Atlantic World 14001680 Cambridge Cambridge University Press 1992 128 AfroÁsia 28 2002 125146 América e Ásia e que tinha a experiência da catequese na região do antigo reino do Congo como um dos momentos emblemáticos do empe nho evangelizador de Portugal6 No meu entender a penetração dessa festa entre muitas comunidades negras do Brasil principalmente do fi nal do século XVIII a meados do XIX deuse devido a uma combinação de fatores que fizeram com que as comemorações em torno de um rei congo tivessem significados importantes tanto para a comunidade negra como para o grupo senhorial que detinha o poder de permitir ou repri mir as manifestações dos negros7 Ao serem arrancados de seus lugares de origem e escravizados ao deixarem de pertencer a um grupo social no qual construíam suas identi dades ao viverem experiências de grande potencial traumático tanto físico como psicológico ao transporem a grande água e terem que se dobrar ao jugo dos senhores americanos os africanos eram compelidos a se integrarem de uma forma ou de outra às terras às quais chegavam Novas alianças eram feitas novas identificações eram percebidas novas identidades eram construídas sobre bases diversas de aproximação étni ca religiosa da esfera do trabalho da moradia Assim reagrupamentos étnicos compuseram nações pescadores e carregadores se organiza ram em torno das atividades que exerciam vizinhos consolidaram laços de compadrio e se juntaram cultuadores dos orixás os que faziam oferendas aos antepassados e recebiam entidades sobrenaturais sob o toque de tambores Nesse contexto os reis negros presentes em quilombos e grupos de trabalho mas principalmente em irmandades católicas ser viram de importantes catalisadores de algumas comunidades e foram centrais na construção de suas novas identidades Enquanto algumas atividades exercidas por comunidades negras eram proibidas e perseguidas pela administração senhorial e demonizadas 6 Silvia Lara em Significados cruzados as embaixadas de congos na Bahia setecentista in Maria Clementina P Cunha org Carnavais e outras frestas Campinas CecultEditora Unicamp 2001 pp 71100 faz uma análise nessa direção servindo de guia em alguns aspectos da minha interpretação das festas de reis congos em geral 7 No livro mencionado eu utilizo a noção de rei congo como de um elemento aglutinador de dife rentes grupos africanos e afrodescendentes no âmbito do processo de constituição de novas identi dades Manifestação que ganha vigor entre os grupos bantos os festejos de reis do Congo traziam para os africanos a memória da terra natal mitificada e para os colonizadores a lembrança de um império que dominou os mares o comércio e que se empenhou em disseminar a palavra de Cristo AfroÁsia 28 2002 125146 129 pelo discurso cristão mesmo que delas participassem também brancos católicos e às vezes até mesmo padres outras eram em grande parte aceitas pelos agentes da administração colonial pois adotavam formas ibéricas e católicas ou que por estes eram assim percebidas No primei ro caso estão os calundus nos quais ritos eram realizados em torno de altares que abrigavam objetos mágicoreligiosos havendo a oferenda de sangue de animais bebida e comida ao som de tambores e com a pos sessão de algumas pessoas por entidades sobrenaturais8 No segundo caso estão os cortejos e danças que acompanhavam a coroação de um rei negro pelo padre por ocasião de festas em torno dos santos padroeiros de irmandades nas quais a comunidade negra se agrupava Enquanto os primeiros eram no geral seriamente perseguidos assim como os quilombos e as tentativas de rebelião os segundos eram quase sempre aceitos e muitas vezes estimulados uma vez que eram vistos como formas de inte gração do negro na sociedade colonial escravista Entretanto a repres são ou permissão de uns ou outros desses ritos variava em função das posições de cada agente colonial assim como em função da conjuntura do momento9 Danças que podem ser associadas aos calundus são descritas pelo conde de Povolide em carta de 1780 na qual explica a diferença entre as danças supersticiosas e as danças que ainda que não sejam as mais santas não eram por ele consideradas dignas de uma total reprova ção Essas últimas eram danças que no século XIX e início do XX eram chamadas de batuques e que ainda existem no seio de algumas comuni dades negras muitas vezes conhecidas como jongos Nos conta o conde 8 Ver entre outros textos de João José Reis Magia jeje na Bahia a invasão do Calundu do Pasto de Cachoeira 1785 Revista Brasileira de História v 8 no16 1988 pp 5781 e Nas ma lhas do poder escravista a invasão do candomblé do Accu in João José Reis e Eduardo Silva Negociação e conflito a resistência negra no Brasil escravista São Paulo Companhia das Letras 1989 pp 3261 de Luis Mott Acotundá raízes setecentistas do sincretismo afrobrasi leiro in Escravidão homossexualidade e demonologia São Paulo Ícone Editora 1988 pp 87114 O calunduangola de Luzia Pinta Sabará 1739 Revista IAC no1 1994 pp7382 de Laura de Mello e Souza Revisitando o calundu in Lina Gorenstein e Maria Luiza Tucci Carneiro orgs Ensaios sobre a intolerância inquisição marranismo e antisemitismo ho menagem a Anita Novinski São Paulo Humanitas Fapesp 2002 pp 293317 9 João José Reis é autor que tem pensado sobre o tema da tensão existente entre a permissão e a repressão de práticas das comunidades negras no Brasil em momentos diferentes e sob o mando de administradores com posições diversas como por exemplo em Nas malhas do poder escravista 130 AfroÁsia 28 2002 125146 de Povolide que nessa ocasião os pretos se dividiam em nações e com instrumentos próprios de cada uma dançam e fazem voltas como arle quins e outros dançam com diversos movimentos do corpo que ainda que não sejam as mais inocentes são como fandangos de Castela e fofas de Portugal e os lundus dos brancos e pardos daquele país Quanto às primeiras que chamou de supersticiosas deveriam ser proibidas Ex plicando a diferença entre as duas danças ele escreve Os bailes que entendo serem de uma total reprovação são aque les que os pretos da costa da Mina fazem às escondidas ou em casas ou roças com uma preta mestra com altar de ídolos ado rando bodes vivos e outros feitos de barro untando seus corpos com diversos óleos sangue de galo dando a comer bolos de milho depois de diversas bênçãos supersticiosas fazendo crer aos rústicos que naquelas unções de pão dão fortuna fazem querer bem mulheres a homens e homens a mulheres10 Antes do conde de Povolide Antonil jesuíta italiano que viveu no Brasil de 1681 até sua morte em 1716 já havia defendido uma posição de tolerância com relação a certas festas das comunidades negras Es crevendo para os senhores sobre os escravos diz que Negarlhes totalmente os seus folguedos que são o único alívio do seu cativeiro é querêlos desconsolados e melancólicos de pouca vida e saúde Portanto não lhes estranhem os senhores o criarem seus reis cantar e bailar por algumas horas honesta mente em alguns dias do ano e o alegraremse inocentemente à tarde depois de terem feito pela manhã suas festas de Nossa Senhora do Rosário de São Benedito e do orago da capela do engenho11 Essas posições de administradores e pensadores ligados ao gover no colonial português na América mostram que havia uma tolerância 10 A carta do conde de Povolide José da Cunha Grã Ataíde e Mello 17341792 está transcrita em nota do artigo de Robert C Smith Décadas do Rosário dos Pretos Documentos da irmandade Arquivos no 12 19451951 sendo que o autor o confunde com Martinho de Mello e Castro 17161795 estadista português que sucedeu a Pombal e nunca foi governador de Pernambuco Atualizei a grafia e pontuação da carta 11 João Antonio Andreoni André João Antonil Cultura e opulência do Brasil 2a ed São Paulo Companhia Editora Nacional 1966 p 164 AfroÁsia 28 2002 125146 131 com relação a manifestações de origem africana quando estas se aproxi mavam ou se combinavam com elementos da comunidade senhorial de origem lusitana Mas muitas das motivações que levavam as pessoas a se envolverem em certas festividades a se unirem em torno de um rei simbólico de festa não eram percebidas por aqueles que não partilha vam as mesmas estruturas culturais Dessa forma era desprezada a au toridade que o rei tinha sobre o grupo e a união deste não era vista como ameaçadora principalmente porque se dava no interior de irmandades de culto a determinados santos aprovadas pela Igreja e vigiadas pelos senhores e pelo pároco local O mesmo não se dava com os ritos religio sos de origem africana que mantiveram maior grau de autonomia cultu ral e organizacional e só deixaram de ser abertamente perseguidos no século XX Mas mesmo em celebrações católicas as comunidades negras pro duziam elementos que chocavam e incomodavam o grupo senhorial e principalmente alguns observadores estrangeiros que não estavam acos tumados com as mestiçagens que se iniciaram com os primeiros conta tos ainda na África e se intensificaram na sociedade colonial america na Esse é o caso por exemplo das imagens religiosas que madame Otille Coudreau encontrou num povoado de negros à beira do rio Pacoval no Pará na região da floresta amazônica brasileira Ao registrar o levantamento hidrográfico que fez no interior da Amazônia no início do século XX a cientista francesa expressou os mais estereotipados preconceitos contra as populações afrodescendentes im putandolhes um estado de selvageria e barbárie acusandoos de menti rosos e preguiçosos achandoos fisicamente degenerados Desaprovou como a vila era construída com as cabanas jogadas aqui e ali à beira do rio sem alinhamento e delimitações uns plantando na porta dos outros Nessa aldeia de cerca de 15 casas cobertas de palha que não conhecia a propriedade privada da terra a qual era usada coletivamente pela comu nidade havia uma pequena igreja de chão de terra batida e paredes de barro coberta de telha e com uma cruz de madeira à frente O que chamou a atenção da francesa foram os santos multicoloridos dispostos ao redor da igreja ela não diz se em altares ou não mas sim que alguns eram brancos outros morenos e muitos negros todos de 132 AfroÁsia 28 2002 125146 figura abominável que lhe evocaram uma reunião de Quasímodos Se gundo ela estavam vestidos com restos de saiotes velhos pedaços de tecidos de cores vistosas e tinham ao redor do pescoço colares de contas de vidro ou de sementes Na sua opinião era um sacrilégio que cada uma dessas criaturas tivesse o nome de um santo São Pedro São Benedito Santa Luzia Santa Rosa Santa Sebastiana e uma Nossa Senhora negra Coudreau conta ainda que teve vontade de destruir todos aqueles horro res tão pouco artísticos estátuas que refletiam os costumes daquela gente rebaixada ao menor nível na escala social12 Contribuindo ainda mais para a alteração de tradições católicas e sensibilidades estéticas européias os mocambeiros acompanhavam sem pre suas rezas e festas religiosas com danças realizadas em uma constru ção ao lado da igreja presente em todos os mocambos que a pesquisa dora francesa conheceu na região13 Essa combinação de ritos religiosos e danças ditas profanas é o padrão da maioria das festas religiosas popu lares brasileiras formadas a partir da colonização portuguesa do territó rio onde os colonos encontraram indígenas e para onde trouxeram afri canos Nesse encontro de povos culturas religiões formas de lidar com as coisas deste e do outro mundo uma variedade enorme de combina ções ocorreram As festas em torno de reis negros entre as quais estão as realizadas no Pacoval são fruto dessas combinações presentes também na confecção de objetos mágicoreligiosos como as imagens de santos que Coudreau achou um sacrilégio serem assim chamadas Assim como elegiam reis no seio de irmandades católicas e reali zavam calundus e candomblés em recintos afastados do universo senho rial comunidades negras também confeccionaram objetos usados em uns e outros ritos nos quais incorporaram elementos de suas culturas tradicionais Os santos comparados a Quasímodos certamente foram esculpidos a partir de técnicas e escolhas estéticas próprias dos 12 Otille Coudreau Voyage au Rio Curua 20 nov 1900 7 mars 1901 Paris A Lahure Imprimeur Editeur 1903 p 19 13 Aqui mocambo é uma aldeia de negros geralmente remanescente de quilombos que também eram conhecidos como mocambos Para o caso específico do mocambo do Pacoval ver o estudo de Eurípedes Antonio Funes Nasci nas matas nunca tive senhor História dos mocambos do baixo Amazonas Tese de Doutorado Universidade de São Paulo 1995 e artigo com o mesmo título in João José Reis e Flávio dos Santos Gomes orgs Liberdade por um fio história dos quilombos no Brasil São Paulo Companhia das Letras 1966 pp 467497 AfroÁsia 28 2002 125146 133 mocambeiros que Eurípedes Funes nos ensinou serem descendentes de escravos vindos da África CentroOcidental da região próxima do anti go reino do Congo e de Angola14 As imagens descritas por Coudreau e chamadas de santos pelos mocambeiros eram componentes de um cato licismo negro e podem ser associadas aos minkisi objetos usados em cerimônias mágicoreligiosas de povos dessa mesma região de onde veio a maioria dos antepassados dos habitantes das margens do rio Curuá No mocambo do Pacoval em que Otille Coudreau encontrou as imagens que a fizeram lembrar de uma figura monstruosa de sua própria cultura Eurípedes Funes 95 anos depois assistiu e documentou uma festa realizada em homenagem a São Benedito na qual danças chama das de Cordão do Marambiré seguiam as cerimônias realizadas no inte rior da igreja Seus constituintes formam uma corte em torno do rei do Congo composta por rainhas auxiliares valsares e contramestres que desempenham papéis específicos na condução das coreografias que re gem as danças A autoridade máxima é a do rei do Congo podendo essa dança ser associada às congadas Sua roupa se distingue das outras e ele traz uma coroa na cabeça feita de papelão fibra natural ou lata e uma vara símbolo do seu poder As rainhas e valsares têm capacetes feitos dos mesmos materiais e enfeitados com flores de papel colorido Penas de arara também enfeitam a coroa do rei e os capacetes dos valsares Uma fotografia tirada por Eurípedes Funes nos mostra uma imagem de São Benedito paramentada com um capacete semelhante ao dos valsa res encimado por penas Enfeites de penas em adereços de cabeça também são apontados por observadores das congadas feitas no século XIX em vários lugares do Brasil principalmente em Minas Gerais Vejase por exemplo parte da descrição feita por Francis de Castelnau de uma congada que assistiu em Minas Gerais em 1843 A corte em cujo traje se misturam todas as cores e os enfeites mais extravagantes sentase de cada lado do casal de reis vem depois uma infinidade de outros personagens os mais consi deráveis dos quais eram sem dúvida grandes capitães guerreiros 14 Conforme Funes Nasci nas matas nunca tive senhor p 34 134 AfroÁsia 28 2002 125146 Imagem de madeira de São Benedito fotografada por Eurípedes Antônio Funes em Nasci nas matas nunca tive Senhor História e memória dos mocambos do Baixo Amazonas tese de doutoramento apresentada ao departamento de História FFLCHUSP 1995 vol 1 Fig 9 AfroÁsia 28 2002 125146 135 famosos ou embaixadores de potências longínquas todos paramentados à moda dos selvagens do Brasil com grandes to petes de penas sabres de cavalaria ao lado e escudo no braço15 Mesmo que o cônsul francês tivesse percebido corretamente e os selvagens do Brasil tenham dado sua contribuição à festa negra é mui to mais plausível acreditar que a presença de penas na cabeça fosse con tribuição dos africanos considerandose as informações a seguir Uma fotografia tirada em Angola ou no Congo belga antes de 1922 nos mostra um nganga ou sacerdote com uma imponente coroa de penas Minkisi objetos mágicoreligiosos utilizados em amplas áreas da África Central onde recebem nomes diversos dependendo da região também freqüentemente traziam penas na cabeça Como nos ensina Zdenka Volavkova a confecção de um nkisi passava por dois momentos aquele em que a madeira era esculpida feita por um artesão e um outro no qual o nganga especialista religioso tornava a escultura portadora de forças sobrenaturais nela inserindo conforme ritos específicos uma série de substâncias do mundo vegetal animal e mineral por meio das quais as forças sobrenaturais agiam16 Era nesse momento no qual a um objeto eram atribuídos poderes mágicoreligiosos que as penas eram colocadas nas cabeças das esculturas Théophile Obenga diz que as pe nas ornamentando o penteado de algumas figuras com funções religiosas significavam que o objeto havia sido consagrado por um nganga17 Se gundo John Janzen o uso de penas no alto da cabeça ou saindo fora de uma cabaça ou vasilha muitos minkisi não eram figuras esculpidas mas recipientes que continham as substâncias que lhes davam os poderes sobrenaturais é o indicador mais comum de uma aproximação com o mundo dos espíritos Ainda segundo ele muitos médiuns usam adereços 15 Francis de Castelnau Expedição às regiões centrais da América do Sul São Paulo Compa nhia Editora Nacional 1949 p 172 16 Ver Zdenka Volavkova Nkisi figures of the Lower Congo African Arts no 5 2 1972 p 56 Para uma explicação sobre os minkisi ver Wyatt MacGaffey The eyes of understanding Kongo minkisi in Astonishment and Power Washington National Museum of African Art The Smithsonian Institution Press 1993 p 56 e An Anthology of Kongo Religion primary texts from lower Zaire Lawrence University of Kansas 1974 17 Théophile Obenga Sculpture et société dans lancien Congo Dossiers Histoire et Arqueologie no130 1988 p 3 136 AfroÁsia 28 2002 125146 Nganga Angola ou Congo Belga antes de 1922 em Wyatt Mac Gaffey The eyes of understanding Kongo minkisi Astonishment and Power Washington National Museum of African Art The Smithsonian Intitution Press 1993 p 56 AfroÁsia 28 2002 125146 137 18 John M Janzen 14 Figure nkisi in Expressions of Belief New York Rizzoli 1988 19 Wyatt MacGaffey Complexity astonishment and power the visual vocabulary of Kongo minkisi Journal of Southern African Studies vol 14 no 2 1988 p193 20 A roupa está num museu em Dresden e pode ser vista no livro de Alisa LaGamma Art and Oracle African Art and Rituals of Divination New York Metropolitan Museum of Art 2000 p 57 21 Ver Suzanne Preston Blier Royal Arts of Africa The majesty of form London Laurence King Publishing Calman King 1998 de penas na cabeça para representar sua ligação com os espíritos18 Tam bém Wyatt MacGaffey informa que algumas vezes os minkisi eram equi pados com penas que formavam um adereço de cabeça semelhante ao que o nganga podia usar pois forças espirituais eram associadas a pás saros19 Dessa forma é evidente o lugar de destaque que as penas têm na confecção de objetos que ajudam a comunicação deste com o outro mun do no âmbito do universo cultural de povos bantos da África Centro Ocidental que engloba também o atual Camarões já no limite com a região habitada por povos iorubás Daí uma requintada veste usada em ritos religiosos divinatórios composta de tecido azul anil arrematado com fios de fibra e enfeitada com conchas e búzios à qual acompanha uma máscara de crocodilo encimada por uma tiara de penas20 Uma figura usada em ritos divinatórios entre os senufos da atual Costa do Marfim coroada com uma carreira de penas indica que não só na área cultural banto as penas compõem objetos mágicoreligiosos As penas são em muitas regiões da África presença constante em ritos que permitem que o mundo dos homens e o dos espíritos se comuniquem Nessa relação os chefes têm lugar importante sendo a idéia de realeza sagrada disseminada por toda África subsaariana No golfo do Benim em áreas nas quais predominavam grupos iorubás como os chamamos agora pássaros são insígnias de poder bastante freqüentes estando pre sentes em telhados de moradias de chefes em bastões de mando em adereços de cabeça usados pelos chefes21 Se lembrarmos ainda a presença constante de penas em cocares e outros adereços ameríndios também associados a posições de poder tem poral e religioso e ainda a presença de plumas em chapéus de nobres e reis europeus objetos altamente apreciados pelos chefes africanos e com lugar quase obrigatório nas negociações comerciais entre estes e os eu ropeus podemos pensar que estas penas por estarem presentes em lu 138 AfroÁsia 28 2002 125146 Nkisi Mbumba Maza coletado em Cabinda antes de 1933 acervo do Museu do Homem de Paris A escultura de madeira contém ingredientes ocultos na barriga e na cabeça e outros ingredientes nela pendurados como cabaça pele de cobra tiras de tecido conchas sementes garras chifre fibra trançada Cada um desses ingredientes tem uma função mágica que atribui ao nkisi sua força sobrenatural Em Astonishment and Power p 70 AfroÁsia 28 2002 125146 139 Nksi Nduda coletado na área bacongo antes de 1893 acervo do Staatliches Museum für Völkerkunde Munique Alemanha A escultura de madeira está coberta por tiras de peles de diversos animais traz no pescoço uma fieira de pequenas bolsas de pano contendo ingredientes específicos e um adereço de penas atado à cabeça por uma tira de tecido In Astonishment and Power p 72 140 AfroÁsia 28 2002 125146 Pieu amuleto da região dos Yakas em Angola In Sculpture Angolaise Mémorial de cultures Lisboa Museu Nacional de Etnologia Electa 1994 p 104 AfroÁsia 28 2002 125146 141 gares equivalentes em diferentes culturas tendem a manter um espaço na nova cultura que se forma a partir dos contatos encetados22 Mas como a análise aqui proposta busca apenas fazer conexões entre a comu nidade do Pacoval com os povos aos quais pertenceram seus antepassa dos fixo meus olhos no mundo banto centroocidental de onde veio segundo Eurípedes Funes a maioria dos africanos escravizados que ali se aquilombaram Depois desse passeio por algumas regiões da África percebemos nos panos cordões contas e penas adicionadas às imagens encontradas no Pacoval por Otille Coudreau no início do século XX e por Eurípedes Funes no fim do mesmo século a expressão do encontro entre o catoli cismo e as religiões bantos tradicionais Se em 1901 as imagens da igreja do Pacoval foram comparadas a Quasímodos pela cientista francesa o que a fotografia tirada no final do século XX nos mostra é um santo entalhado em madeira por mãos de artistas populares como uma infini dade de outros o foram tendo como traço diferenciador o tufo de penas que enfeita seu capacete semelhante ao dos valsares Certamente ao lon go dos anos novecentos a comunidade do Pacoval assumiu mais e mais feições brasileiras distanciandose de um passado africano que fora mais preservado enquanto o grupo evitou contatos muito intensos com a soci edade circundante para a qual eram descendentes de escravos fugidos Hoje em dia o que se destaca na religiosidade afrocatólica dos morado res do Pacoval são as danças que acompanham as celebrações dos san tos e que não se restringem às comunidades negras pois são caracterís tica marcante do catolicismo colonial conforme vivido na América por tuguesa Mas específicos das danças realizadas pelas comunidades afro descendentes são os elementos africanos nelas presentes como os rit mos os passos as letras das músicas permeadas de palavras de origem africana e símbolos que mesmo transformados remetem às suas raízes como as penas na cabeça indicando uma ligação com o mundo do além O tema da dominação não pode deixar de estar presente quando falamos de sociedades afrodescendentes nas Américas e certamente as 22 Um dos muitos pontos para os quais o parecerista anônimo da AfroÁsia abriu meus olhos foi este relativo à abrangência da presença de penas e pássaros em insígnias de poder 142 AfroÁsia 28 2002 125146 Kafigeledjo oráculo usado em ritos divinatórios da etnia senufo Costa do Marfim final do século XIX início do XX acervo do Metropolitan Museum of Art New York A escultura de madeira é coberta por um tecido alguns ingredientes pendem amarrados na altura do pescoço um gancho de ferro e um osso de pássaro pendurados em parte do pano fazem as vezes de braços e mãos e a cabeça está coroada por penas e espinhos de porcoespinho In Alisa LaGamma Art and Oracle African Art and Rituals of Divination New York Metropolitan Museum of Art 2000 p 27 AfroÁsia 28 2002 125146 143 atitudes dos representantes da sociedade senhorial entre eles os agentes da Igreja tiveram um papel fundamental nos processos de constituição de novas identidades e novas formas culturais a partir da diáspora afri cana Mas foram os ajustes e opções empreendidos pelos africanos re cémchegados e pelos seus descendentes que definiram as feições das novas culturas que se criaram nas Américas Nesse processo os santos imagens do culto católico absorveram sentidos e papéis das imagens e objetos usados nas religiões bantos tradicionais o que já havia ocorrido na própria África a partir da ação de missionários católicos romanos e da conversão ao catolicismo da elite dirigente do antigo reino do Congo no final do século XV Com a ocupação portuguesa de algumas áreas do território que ficou conhecido como Angola missionários continuaram a agir naquelas regiões sendo alguns dos elementos por eles introduzidos com destaque para objetos usados em cultos religiosos incorporados pelas populações nativas que a eles acoplaram significados pertinentes às suas próprias tradições Se em territórios africanos nos quais era pequeno o espaço ocu pado pelos portugueses e seus agentes entre eles os missionários o catolicismo deixou discretos vestígios no período précolonial na Amé rica portuguesa os africanos muitas vezes a ele se renderam não sem recheálo de contribuições de suas religiões tradicionais Na América eles eram obrigados pela violência pela condição de escravos e de es trangeiros a se sujeitarem às normas dos que mandavam a administra ção colonial portuguesa para a qual a religião católica era importante meio de dominação Várias foram as formas pelas quais o catolicismo foi adotado por comunidades afrodescendentes mas essa área de estu dos recebeu no geral menos atenção do que os cultos religiosos deriva dos de tradições africanas Nina Rodrigues e Arthur Ramos tratam com mais vagar das religiões afrobrasileiras e do conjunto cultural iorubano Roger Bastide quando aborda o catolicismo negro é de maneira super ficial ignorando as motivações das comunidades negras e tomando o catolicismo apenas como uma imposição do universo senhorial incorpo rada geralmente para servir de disfarce a ritos de origem africana Tam bém Pierre Verger por focar apenas a Bahia e a África Ocidental na qual a penetração das religiões cristãs só se deu após o término do tráfi 144 AfroÁsia 28 2002 125146 co de escravos não aborda o cristianismo negro e suas relações com o catolicismo africano dos bantos da África CentroOcidental Só Robert Slenes mais recentemente tem se aprofundado no estudo dos povos des ta região e chamado a atenção para o fato de que muitos escravos que de lá vieram já tinham incorporado elementos de um catolicismo africano termo cunhado por John Thornton23 Eu mesma seguindo as trilhas aber tas principalmente por esses dois autores venho pensando acerca de al guns aspectos do catolicismo africano e do catolicismo afrobrasileiro24 É essa preocupação que me faz prestar atenção no espanto e re pulsa de Otille Coudreau diante das imagens que viu na igreja do mocambo à beira do rio Curuá associadas a Quasímodos aberrações que feriam sua sensibilidade estética educada na Europa com a qual se orientava no mundo Bem antes de ela viver essa experiência na Amazônia brasileira outros europeus tinham tido reações muito parecidas diante dos minkisi que chamavam de fetiches ou de imagens demoníacas como a es sas figuras se referiu Olfer Dapper cujo livro foi publicado em 1676 rudemente esculpidas em madeira e cobertas de trapos sujos como disse J K Tuckey em 1816 e com aparência feroz no entender de H M Stanley em 1895 O tenente Tuckey comparou essas imagens com es pantalhos e missionários católicos e batistas do final do século XIX chamaramnas de indecentes e francamente obscenas25 Um século depois de Coudreau no Brasil e de alguns missionári os que viveram na África CentroOcidental terem tomado conhecimento dessas imagens podemos tentar nos despir do etnocentrismo existente em todas as culturas e tempos e buscar entender as motivações prováveis por trás das opções feitas pelos grupos e pelas pessoas Nesse sentido os estudos sobre os minkisi centroafricanos lançam novas luzes sobre os santos envoltos em panos gastos com colares de contas e sementes e adereços de penas na cabeça À maneira das penas colocadas na cabeça 23 Principalmente em Africa and Africans in the making of the Atlantic World 24 Em Reis negros no Brasil escravista História da festa de coroação de rei congo Santo Antonio de nódepinho e o catolicismo afrobrasileiro Tempo vol 6 no 11 2001 pp 171 188 e História mito e identidade nas festas de reis negros no Brasil séculos XVIII e XIX in István Jancsó e Iris Kantor orgs Festa Cultura a sociabilidade na América portuguesa São Paulo Hucitec Edusp 2001 pp 249260 25 Conforme Volavkova Nkisi figures of the Lower Congo p 52 AfroÁsia 28 2002 125146 145 dos baganga plural de nganga e dos minkisi o adereço de cabeça do São Benedito fotografado no mocambo do Pacoval reforça a conexão entre este mundo e o outro a relação dos homens com o além permitida pelo objeto mágicoreligioso seja ele um santo católico um nkisi ou um produto mestiço do encontro entre as diferentes culturas Na virada do século XIX para o XX as imagens dos santos católicos cultuados por comunidades afrodescendentes que viviam num grau significativo de iso lamento mantendo tradições e maneiras de pensar e sentir próximas das de suas culturas de origem deviam guardar mais proximidade dos minkisi do que hoje em dia Considerando que desde o século XVI missionários católicos vivi am entre povos da região do antigo reino do Congo e de Angola onde se desenvolveram formas africanas de catolicismo e houve a incorporação de objetos do culto cristão às religiões tradicionais percebemos que as mestiçagens culturais nas quais o catolicismo é o elemento dominante podiam estar em curso antes da escravização e da travessia do Atlântico Com isso em mente não é difícil aceitar que os panos e colares que envolviam os santos dispostos ao redor da igreja do mocambo visitado por Coudreau estavam mais próximos dos elementos equivalentes que compunham os minkisi atribuindolhes certos poderes do que das ves tes e jóias que envolviam os santos que habitavam os altares dos senho res que por sua vez também se inseriam no pensamento mágico que permeava a vida cotidiana da Europa préiluminista Santos e minkisi eram objetos de ligação com o mundo do além de onde vinha a solução para os problemas deste mundo Enquanto na cultura popular ibérica na qual o catolicismo se misturou a tradições pagãs os santos eram invocados para afastar epi demias de peste e pragas das plantações trazer chuva e curar as pessoas os minkisi divididos em várias categorias e com especializações própri as eram chamados a identificar malfeitores curar ou provocar doenças garantir a fertilidade da terra e das mulheres Constituídos por escultu ras vasilhames ou amarrações recebiam em ritos conduzidos pelos baganga ingredientes que os tornavam portadores de poderes próprios dos espíritos da natureza ou dos antepassados A eles os santos católicos levados para a África pelos missionários foram associados Na Améri 146 AfroÁsia 28 2002 125146 ca ao reconstituir suas formas de organização e relação com as coisas do mundo terreno e sobrenatural os africanos e seus descendentes recor reram aos santos católicos para neles imprimir elementos de suas cren ças tradicionais utilizandose dos espaços permitidos pela sociedade escravista tal como fizeram com os festejos em torno de um rei negro Ao terem que construir novas instituições os grupos heterogêneos de africanos escravizados recorreram não apenas aos saberes trazidos por determinados indivíduos mas também ao que havia de comum aos sistemas cognitivos das pessoas pertencentes a grupos étnicos diversos Nessa dinâmica entre uma gramática da cultura que serviu de base às novas formações e à ação de pessoas particulares portadoras de conhe cimentos adquiridos em suas terras natais as penas muitas vezes foram mantidas como veículos de ligação entre este mundo e o além Por outro lado ao terem que se inserir numa sociedade dominada pelo colonizador cristão que impunha sua religião traduziramna para seus próprios ter mos atribuindo aos santos significados inacessíveis àqueles que não partilhavam seus códigos culturais Dessa forma os elementos da cultu ra dominante de origem européia ao serem incorporados pelas comuni dades afrodescendentes receberam sentidos por elas criados O caso aqui analisado é exemplo de como o estranhamento pode ser uma boa pista para se alcançar significados não evidentes como nos ensinou Carlo Ginzburg
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AfroÁsia 28 2002 125146 125 CATOLICISMO NEGRO NO BRASIL SANTOS E MINKISI UMA REFLEXÃO SOBRE MISCIGENAÇÃO CULTURAL Marina de Mello e Souza Os estudos sobre a inserção dos africanos escravizados e seus des cendentes nas Américas têm sido um campo fértil para a reflexão acerca dos processos de sincretismo aculturação transculturação encontro de culturas miscigenação cultural entre várias outras noções que buscam dar conta de situações nas quais novas culturas surgem a partir do con tato entre povos diferentes Desde Nina Rodrigues pesquisador pioneiro dessa área e principalmente a partir de Melville Herskovits que muito contribuiu para a reflexão teórica acerca dos processos de aculturação tem sido destacada a importância de se conhecer as sociedades e culturas de onde vieram os africanos traficados para as Américas para uma me lhor compreensão das chamadas culturas afroamericanas1 Herskovits é peça central no debate sobre a existência de africanismos nas socie dades americanas Seu livro The myth of the negro past é de 1941 mas Este texto é uma versão ampliada da comunicação A construção de uma identidade católica negra no Brasil escravista santos e minkisi uma reflexão sobre miscigenação cultural apresen tada no colóquio organizado por Livio Sansone Elisée Soumonni e Boubacar Barry A cons trução transatlântica das noções de raça cultura negra negritude e antiracismo rumo a um novo diálogo entre pesquisadores na África América Latina e Caribe em novembro de 2002 Gorée Senegal do qual pude participar graças ao apoio financeiro dado pela FAPESP Os co mentários atilados do parecerista da AfroÁsia me ajudaram a dar sua forma atual e aqui agrade ço a ele a leitura feita Professora do Departamento de História FFLCHUSP 1 Nina Rodrigues Os africanos no Brasil 3a ed São Paulo Companhia Editora Nacional 1945 Melville Herskovits The myth of the negro past Boston Beacon Press 1990 126 AfroÁsia 28 2002 125146 nos Estados Unidos seus trabalhos só foram valorizados a partir da dé cada de 1960 No Brasil depois do pioneirismo de Nina Rodrigues Arthur Ramos Edison Carneiro Roger Bastide e Pierre Verger foram autores que pensaram sobre o negro na sociedade brasileira2 Nos anos 1970 Sidney Mintz e Richard Price fundamentados em suas pesquisas de campo no Caribe e no Suriname escreveram juntos um ensaio que influenciou toda uma geração de estudiosos da cultura afroamericana3 A idéia de crioulização é o pano de fundo de suas refle xões nas quais ocupa primeiro plano a preocupação com a chegada do africano no Novo Mundo com a formação de novas comunidades e no vas culturas Mesmo priorizando os processos de transformação os au tores aceitam que eles se dão a partir de bases préexistentes e retomam uma idéia esboçada por Herskovits de que as culturas têm uma gramá tica própria que serve de elemento organizador das novas construções sociais e culturais Nas Américas estas construções resultaram da interação entre grupos de escravos pertencentes a etnias diversas unidos pelos mecanismos do tráfico e pela escravização e grupos de coloniza dores europeus detentores dos instrumentos de poder Do final dos anos 1970 para cá os sistemas sociais e religiosos criados pelas comunidades negras nas Américas têm atraído a atenção dos pesquisadores e são cada vez mais analisados de uma perspectiva que busca fazer conexões entre as culturas de origem dos escravos trazi dos para as Américas e as culturas produzidas nas novas situações A reflexão aqui proposta se enquadra nessa perspectiva de abordagem da religiosidade das comunidades afrodescendentes tomando como foco não os chamados cultos afrobrasileiros e sim o catolicismo exercido por algumas dessas comunidades 2 Roger Bastide Les réligions africaines au Brésil Paris Presses Universitaires de France 1960 e As Américas negras as civilizações africanas no Novo Mundo São Paulo Difel Editora da Universidade de São Paulo 1974 Artur Ramos Introdução à Antropologia Brasileira Rio de Janeiro Edição da Casa do Estudante do Brasil 1943 e As culturas negras no Novo Mundo 4a ed São Paulo Companhia Editora Nacional 1979 Edison Carneiro Antologia do negro bra sileiro Rio de Janeiro Edições de Ouro 1962 Pierre Verger Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos São Paulo Corrupio 1987 3 Sidney Mintz e Richard Price The birth of AfricanAmerican culture an anthropological perspective Boston Beacon Press 1992 AfroÁsia 28 2002 125146 127 Um dos muitos resultados da diáspora africana é a presença de reis negros nas Américas representantes de grupos étnicos específicos presentes no interior de quilombos e de irmandades católicas O estudo das situações em que existiram esses reis ilumina a compreensão de como africanos e europeus interagiram no contexto da colonização americana sob um regime escravista Em trabalho anterior sugeri algumas interpre tações sobre esses reis voltando atenção especial para a adoção do cato licismo ou de alguns de seus elementos por parte tanto de comunidades na África como de afrodescendentes nas Américas4 Foram os estudos de John Thornton que me abriram os olhos para a importância do catoli cismo na África Centroocidental nos séculos XVI XVII e XVIII e a partir deles pude perceber o lugar nada desprezível do catolicismo na relação que os africanos e afrodescendentes brasileiros mantinham com as terras de seus antepassados5 Segundo a análise desenvolvida em meu trabalho seguindo pistas por ele indicadas no Brasil em algumas ocasiões o catolicismo por estar presente na região do antigo reino do Congo desde o final do século XV serviu de ligação com um passado africano que era importante elemento na composição das novas identidades das comunidades afrodescendentes no contexto da diáspora Ao estudar os festejos em torno da coroação de reis do Congo que aconteciam no Bra sil desde o século XVII entendi que estas eram manifestações percebi das de formas diferentes pelos que as realizavam membros da comuni dade negra e por aqueles identificados com a sociedade senhorial de origem lusitana que viam aquelas festas acontecerem mantendo atitudes ora condescendentes ora repressoras Enquanto para uns as festas em torno de reis remetiam a chefias africanas a ritos de entronização à prestação de fidelidades para outros elas se associavam à noção de um império que se estendia pelos quatro cantos do mundo Europa África 4 Marina de Mello e Souza Reis negros no Brasil escravista história da festa de coroação de rei congo Belo Horizonte Editora UFMG 2002 5 John Thornton é um pesquisador que tem dado contribuição decisiva para o estudo do catolicis mo na África CentroOcidental Suas posições freqüentemente iluminadoras podem ser conhe cidas em diversos artigos e livros sobre o tema como The development of an African Catholic Church in the Kingdom of Kongo 14911750 Journal of African History no 25 1984 pp 147167 Early KongoPortuguese relations a new interpretation in David Henige org History in Africa a journal of method nº 8 1981 pp 183204 e Africa and Africans in the Making of the Atlantic World 14001680 Cambridge Cambridge University Press 1992 128 AfroÁsia 28 2002 125146 América e Ásia e que tinha a experiência da catequese na região do antigo reino do Congo como um dos momentos emblemáticos do empe nho evangelizador de Portugal6 No meu entender a penetração dessa festa entre muitas comunidades negras do Brasil principalmente do fi nal do século XVIII a meados do XIX deuse devido a uma combinação de fatores que fizeram com que as comemorações em torno de um rei congo tivessem significados importantes tanto para a comunidade negra como para o grupo senhorial que detinha o poder de permitir ou repri mir as manifestações dos negros7 Ao serem arrancados de seus lugares de origem e escravizados ao deixarem de pertencer a um grupo social no qual construíam suas identi dades ao viverem experiências de grande potencial traumático tanto físico como psicológico ao transporem a grande água e terem que se dobrar ao jugo dos senhores americanos os africanos eram compelidos a se integrarem de uma forma ou de outra às terras às quais chegavam Novas alianças eram feitas novas identificações eram percebidas novas identidades eram construídas sobre bases diversas de aproximação étni ca religiosa da esfera do trabalho da moradia Assim reagrupamentos étnicos compuseram nações pescadores e carregadores se organiza ram em torno das atividades que exerciam vizinhos consolidaram laços de compadrio e se juntaram cultuadores dos orixás os que faziam oferendas aos antepassados e recebiam entidades sobrenaturais sob o toque de tambores Nesse contexto os reis negros presentes em quilombos e grupos de trabalho mas principalmente em irmandades católicas ser viram de importantes catalisadores de algumas comunidades e foram centrais na construção de suas novas identidades Enquanto algumas atividades exercidas por comunidades negras eram proibidas e perseguidas pela administração senhorial e demonizadas 6 Silvia Lara em Significados cruzados as embaixadas de congos na Bahia setecentista in Maria Clementina P Cunha org Carnavais e outras frestas Campinas CecultEditora Unicamp 2001 pp 71100 faz uma análise nessa direção servindo de guia em alguns aspectos da minha interpretação das festas de reis congos em geral 7 No livro mencionado eu utilizo a noção de rei congo como de um elemento aglutinador de dife rentes grupos africanos e afrodescendentes no âmbito do processo de constituição de novas identi dades Manifestação que ganha vigor entre os grupos bantos os festejos de reis do Congo traziam para os africanos a memória da terra natal mitificada e para os colonizadores a lembrança de um império que dominou os mares o comércio e que se empenhou em disseminar a palavra de Cristo AfroÁsia 28 2002 125146 129 pelo discurso cristão mesmo que delas participassem também brancos católicos e às vezes até mesmo padres outras eram em grande parte aceitas pelos agentes da administração colonial pois adotavam formas ibéricas e católicas ou que por estes eram assim percebidas No primei ro caso estão os calundus nos quais ritos eram realizados em torno de altares que abrigavam objetos mágicoreligiosos havendo a oferenda de sangue de animais bebida e comida ao som de tambores e com a pos sessão de algumas pessoas por entidades sobrenaturais8 No segundo caso estão os cortejos e danças que acompanhavam a coroação de um rei negro pelo padre por ocasião de festas em torno dos santos padroeiros de irmandades nas quais a comunidade negra se agrupava Enquanto os primeiros eram no geral seriamente perseguidos assim como os quilombos e as tentativas de rebelião os segundos eram quase sempre aceitos e muitas vezes estimulados uma vez que eram vistos como formas de inte gração do negro na sociedade colonial escravista Entretanto a repres são ou permissão de uns ou outros desses ritos variava em função das posições de cada agente colonial assim como em função da conjuntura do momento9 Danças que podem ser associadas aos calundus são descritas pelo conde de Povolide em carta de 1780 na qual explica a diferença entre as danças supersticiosas e as danças que ainda que não sejam as mais santas não eram por ele consideradas dignas de uma total reprova ção Essas últimas eram danças que no século XIX e início do XX eram chamadas de batuques e que ainda existem no seio de algumas comuni dades negras muitas vezes conhecidas como jongos Nos conta o conde 8 Ver entre outros textos de João José Reis Magia jeje na Bahia a invasão do Calundu do Pasto de Cachoeira 1785 Revista Brasileira de História v 8 no16 1988 pp 5781 e Nas ma lhas do poder escravista a invasão do candomblé do Accu in João José Reis e Eduardo Silva Negociação e conflito a resistência negra no Brasil escravista São Paulo Companhia das Letras 1989 pp 3261 de Luis Mott Acotundá raízes setecentistas do sincretismo afrobrasi leiro in Escravidão homossexualidade e demonologia São Paulo Ícone Editora 1988 pp 87114 O calunduangola de Luzia Pinta Sabará 1739 Revista IAC no1 1994 pp7382 de Laura de Mello e Souza Revisitando o calundu in Lina Gorenstein e Maria Luiza Tucci Carneiro orgs Ensaios sobre a intolerância inquisição marranismo e antisemitismo ho menagem a Anita Novinski São Paulo Humanitas Fapesp 2002 pp 293317 9 João José Reis é autor que tem pensado sobre o tema da tensão existente entre a permissão e a repressão de práticas das comunidades negras no Brasil em momentos diferentes e sob o mando de administradores com posições diversas como por exemplo em Nas malhas do poder escravista 130 AfroÁsia 28 2002 125146 de Povolide que nessa ocasião os pretos se dividiam em nações e com instrumentos próprios de cada uma dançam e fazem voltas como arle quins e outros dançam com diversos movimentos do corpo que ainda que não sejam as mais inocentes são como fandangos de Castela e fofas de Portugal e os lundus dos brancos e pardos daquele país Quanto às primeiras que chamou de supersticiosas deveriam ser proibidas Ex plicando a diferença entre as duas danças ele escreve Os bailes que entendo serem de uma total reprovação são aque les que os pretos da costa da Mina fazem às escondidas ou em casas ou roças com uma preta mestra com altar de ídolos ado rando bodes vivos e outros feitos de barro untando seus corpos com diversos óleos sangue de galo dando a comer bolos de milho depois de diversas bênçãos supersticiosas fazendo crer aos rústicos que naquelas unções de pão dão fortuna fazem querer bem mulheres a homens e homens a mulheres10 Antes do conde de Povolide Antonil jesuíta italiano que viveu no Brasil de 1681 até sua morte em 1716 já havia defendido uma posição de tolerância com relação a certas festas das comunidades negras Es crevendo para os senhores sobre os escravos diz que Negarlhes totalmente os seus folguedos que são o único alívio do seu cativeiro é querêlos desconsolados e melancólicos de pouca vida e saúde Portanto não lhes estranhem os senhores o criarem seus reis cantar e bailar por algumas horas honesta mente em alguns dias do ano e o alegraremse inocentemente à tarde depois de terem feito pela manhã suas festas de Nossa Senhora do Rosário de São Benedito e do orago da capela do engenho11 Essas posições de administradores e pensadores ligados ao gover no colonial português na América mostram que havia uma tolerância 10 A carta do conde de Povolide José da Cunha Grã Ataíde e Mello 17341792 está transcrita em nota do artigo de Robert C Smith Décadas do Rosário dos Pretos Documentos da irmandade Arquivos no 12 19451951 sendo que o autor o confunde com Martinho de Mello e Castro 17161795 estadista português que sucedeu a Pombal e nunca foi governador de Pernambuco Atualizei a grafia e pontuação da carta 11 João Antonio Andreoni André João Antonil Cultura e opulência do Brasil 2a ed São Paulo Companhia Editora Nacional 1966 p 164 AfroÁsia 28 2002 125146 131 com relação a manifestações de origem africana quando estas se aproxi mavam ou se combinavam com elementos da comunidade senhorial de origem lusitana Mas muitas das motivações que levavam as pessoas a se envolverem em certas festividades a se unirem em torno de um rei simbólico de festa não eram percebidas por aqueles que não partilha vam as mesmas estruturas culturais Dessa forma era desprezada a au toridade que o rei tinha sobre o grupo e a união deste não era vista como ameaçadora principalmente porque se dava no interior de irmandades de culto a determinados santos aprovadas pela Igreja e vigiadas pelos senhores e pelo pároco local O mesmo não se dava com os ritos religio sos de origem africana que mantiveram maior grau de autonomia cultu ral e organizacional e só deixaram de ser abertamente perseguidos no século XX Mas mesmo em celebrações católicas as comunidades negras pro duziam elementos que chocavam e incomodavam o grupo senhorial e principalmente alguns observadores estrangeiros que não estavam acos tumados com as mestiçagens que se iniciaram com os primeiros conta tos ainda na África e se intensificaram na sociedade colonial america na Esse é o caso por exemplo das imagens religiosas que madame Otille Coudreau encontrou num povoado de negros à beira do rio Pacoval no Pará na região da floresta amazônica brasileira Ao registrar o levantamento hidrográfico que fez no interior da Amazônia no início do século XX a cientista francesa expressou os mais estereotipados preconceitos contra as populações afrodescendentes im putandolhes um estado de selvageria e barbárie acusandoos de menti rosos e preguiçosos achandoos fisicamente degenerados Desaprovou como a vila era construída com as cabanas jogadas aqui e ali à beira do rio sem alinhamento e delimitações uns plantando na porta dos outros Nessa aldeia de cerca de 15 casas cobertas de palha que não conhecia a propriedade privada da terra a qual era usada coletivamente pela comu nidade havia uma pequena igreja de chão de terra batida e paredes de barro coberta de telha e com uma cruz de madeira à frente O que chamou a atenção da francesa foram os santos multicoloridos dispostos ao redor da igreja ela não diz se em altares ou não mas sim que alguns eram brancos outros morenos e muitos negros todos de 132 AfroÁsia 28 2002 125146 figura abominável que lhe evocaram uma reunião de Quasímodos Se gundo ela estavam vestidos com restos de saiotes velhos pedaços de tecidos de cores vistosas e tinham ao redor do pescoço colares de contas de vidro ou de sementes Na sua opinião era um sacrilégio que cada uma dessas criaturas tivesse o nome de um santo São Pedro São Benedito Santa Luzia Santa Rosa Santa Sebastiana e uma Nossa Senhora negra Coudreau conta ainda que teve vontade de destruir todos aqueles horro res tão pouco artísticos estátuas que refletiam os costumes daquela gente rebaixada ao menor nível na escala social12 Contribuindo ainda mais para a alteração de tradições católicas e sensibilidades estéticas européias os mocambeiros acompanhavam sem pre suas rezas e festas religiosas com danças realizadas em uma constru ção ao lado da igreja presente em todos os mocambos que a pesquisa dora francesa conheceu na região13 Essa combinação de ritos religiosos e danças ditas profanas é o padrão da maioria das festas religiosas popu lares brasileiras formadas a partir da colonização portuguesa do territó rio onde os colonos encontraram indígenas e para onde trouxeram afri canos Nesse encontro de povos culturas religiões formas de lidar com as coisas deste e do outro mundo uma variedade enorme de combina ções ocorreram As festas em torno de reis negros entre as quais estão as realizadas no Pacoval são fruto dessas combinações presentes também na confecção de objetos mágicoreligiosos como as imagens de santos que Coudreau achou um sacrilégio serem assim chamadas Assim como elegiam reis no seio de irmandades católicas e reali zavam calundus e candomblés em recintos afastados do universo senho rial comunidades negras também confeccionaram objetos usados em uns e outros ritos nos quais incorporaram elementos de suas culturas tradicionais Os santos comparados a Quasímodos certamente foram esculpidos a partir de técnicas e escolhas estéticas próprias dos 12 Otille Coudreau Voyage au Rio Curua 20 nov 1900 7 mars 1901 Paris A Lahure Imprimeur Editeur 1903 p 19 13 Aqui mocambo é uma aldeia de negros geralmente remanescente de quilombos que também eram conhecidos como mocambos Para o caso específico do mocambo do Pacoval ver o estudo de Eurípedes Antonio Funes Nasci nas matas nunca tive senhor História dos mocambos do baixo Amazonas Tese de Doutorado Universidade de São Paulo 1995 e artigo com o mesmo título in João José Reis e Flávio dos Santos Gomes orgs Liberdade por um fio história dos quilombos no Brasil São Paulo Companhia das Letras 1966 pp 467497 AfroÁsia 28 2002 125146 133 mocambeiros que Eurípedes Funes nos ensinou serem descendentes de escravos vindos da África CentroOcidental da região próxima do anti go reino do Congo e de Angola14 As imagens descritas por Coudreau e chamadas de santos pelos mocambeiros eram componentes de um cato licismo negro e podem ser associadas aos minkisi objetos usados em cerimônias mágicoreligiosas de povos dessa mesma região de onde veio a maioria dos antepassados dos habitantes das margens do rio Curuá No mocambo do Pacoval em que Otille Coudreau encontrou as imagens que a fizeram lembrar de uma figura monstruosa de sua própria cultura Eurípedes Funes 95 anos depois assistiu e documentou uma festa realizada em homenagem a São Benedito na qual danças chama das de Cordão do Marambiré seguiam as cerimônias realizadas no inte rior da igreja Seus constituintes formam uma corte em torno do rei do Congo composta por rainhas auxiliares valsares e contramestres que desempenham papéis específicos na condução das coreografias que re gem as danças A autoridade máxima é a do rei do Congo podendo essa dança ser associada às congadas Sua roupa se distingue das outras e ele traz uma coroa na cabeça feita de papelão fibra natural ou lata e uma vara símbolo do seu poder As rainhas e valsares têm capacetes feitos dos mesmos materiais e enfeitados com flores de papel colorido Penas de arara também enfeitam a coroa do rei e os capacetes dos valsares Uma fotografia tirada por Eurípedes Funes nos mostra uma imagem de São Benedito paramentada com um capacete semelhante ao dos valsa res encimado por penas Enfeites de penas em adereços de cabeça também são apontados por observadores das congadas feitas no século XIX em vários lugares do Brasil principalmente em Minas Gerais Vejase por exemplo parte da descrição feita por Francis de Castelnau de uma congada que assistiu em Minas Gerais em 1843 A corte em cujo traje se misturam todas as cores e os enfeites mais extravagantes sentase de cada lado do casal de reis vem depois uma infinidade de outros personagens os mais consi deráveis dos quais eram sem dúvida grandes capitães guerreiros 14 Conforme Funes Nasci nas matas nunca tive senhor p 34 134 AfroÁsia 28 2002 125146 Imagem de madeira de São Benedito fotografada por Eurípedes Antônio Funes em Nasci nas matas nunca tive Senhor História e memória dos mocambos do Baixo Amazonas tese de doutoramento apresentada ao departamento de História FFLCHUSP 1995 vol 1 Fig 9 AfroÁsia 28 2002 125146 135 famosos ou embaixadores de potências longínquas todos paramentados à moda dos selvagens do Brasil com grandes to petes de penas sabres de cavalaria ao lado e escudo no braço15 Mesmo que o cônsul francês tivesse percebido corretamente e os selvagens do Brasil tenham dado sua contribuição à festa negra é mui to mais plausível acreditar que a presença de penas na cabeça fosse con tribuição dos africanos considerandose as informações a seguir Uma fotografia tirada em Angola ou no Congo belga antes de 1922 nos mostra um nganga ou sacerdote com uma imponente coroa de penas Minkisi objetos mágicoreligiosos utilizados em amplas áreas da África Central onde recebem nomes diversos dependendo da região também freqüentemente traziam penas na cabeça Como nos ensina Zdenka Volavkova a confecção de um nkisi passava por dois momentos aquele em que a madeira era esculpida feita por um artesão e um outro no qual o nganga especialista religioso tornava a escultura portadora de forças sobrenaturais nela inserindo conforme ritos específicos uma série de substâncias do mundo vegetal animal e mineral por meio das quais as forças sobrenaturais agiam16 Era nesse momento no qual a um objeto eram atribuídos poderes mágicoreligiosos que as penas eram colocadas nas cabeças das esculturas Théophile Obenga diz que as pe nas ornamentando o penteado de algumas figuras com funções religiosas significavam que o objeto havia sido consagrado por um nganga17 Se gundo John Janzen o uso de penas no alto da cabeça ou saindo fora de uma cabaça ou vasilha muitos minkisi não eram figuras esculpidas mas recipientes que continham as substâncias que lhes davam os poderes sobrenaturais é o indicador mais comum de uma aproximação com o mundo dos espíritos Ainda segundo ele muitos médiuns usam adereços 15 Francis de Castelnau Expedição às regiões centrais da América do Sul São Paulo Compa nhia Editora Nacional 1949 p 172 16 Ver Zdenka Volavkova Nkisi figures of the Lower Congo African Arts no 5 2 1972 p 56 Para uma explicação sobre os minkisi ver Wyatt MacGaffey The eyes of understanding Kongo minkisi in Astonishment and Power Washington National Museum of African Art The Smithsonian Institution Press 1993 p 56 e An Anthology of Kongo Religion primary texts from lower Zaire Lawrence University of Kansas 1974 17 Théophile Obenga Sculpture et société dans lancien Congo Dossiers Histoire et Arqueologie no130 1988 p 3 136 AfroÁsia 28 2002 125146 Nganga Angola ou Congo Belga antes de 1922 em Wyatt Mac Gaffey The eyes of understanding Kongo minkisi Astonishment and Power Washington National Museum of African Art The Smithsonian Intitution Press 1993 p 56 AfroÁsia 28 2002 125146 137 18 John M Janzen 14 Figure nkisi in Expressions of Belief New York Rizzoli 1988 19 Wyatt MacGaffey Complexity astonishment and power the visual vocabulary of Kongo minkisi Journal of Southern African Studies vol 14 no 2 1988 p193 20 A roupa está num museu em Dresden e pode ser vista no livro de Alisa LaGamma Art and Oracle African Art and Rituals of Divination New York Metropolitan Museum of Art 2000 p 57 21 Ver Suzanne Preston Blier Royal Arts of Africa The majesty of form London Laurence King Publishing Calman King 1998 de penas na cabeça para representar sua ligação com os espíritos18 Tam bém Wyatt MacGaffey informa que algumas vezes os minkisi eram equi pados com penas que formavam um adereço de cabeça semelhante ao que o nganga podia usar pois forças espirituais eram associadas a pás saros19 Dessa forma é evidente o lugar de destaque que as penas têm na confecção de objetos que ajudam a comunicação deste com o outro mun do no âmbito do universo cultural de povos bantos da África Centro Ocidental que engloba também o atual Camarões já no limite com a região habitada por povos iorubás Daí uma requintada veste usada em ritos religiosos divinatórios composta de tecido azul anil arrematado com fios de fibra e enfeitada com conchas e búzios à qual acompanha uma máscara de crocodilo encimada por uma tiara de penas20 Uma figura usada em ritos divinatórios entre os senufos da atual Costa do Marfim coroada com uma carreira de penas indica que não só na área cultural banto as penas compõem objetos mágicoreligiosos As penas são em muitas regiões da África presença constante em ritos que permitem que o mundo dos homens e o dos espíritos se comuniquem Nessa relação os chefes têm lugar importante sendo a idéia de realeza sagrada disseminada por toda África subsaariana No golfo do Benim em áreas nas quais predominavam grupos iorubás como os chamamos agora pássaros são insígnias de poder bastante freqüentes estando pre sentes em telhados de moradias de chefes em bastões de mando em adereços de cabeça usados pelos chefes21 Se lembrarmos ainda a presença constante de penas em cocares e outros adereços ameríndios também associados a posições de poder tem poral e religioso e ainda a presença de plumas em chapéus de nobres e reis europeus objetos altamente apreciados pelos chefes africanos e com lugar quase obrigatório nas negociações comerciais entre estes e os eu ropeus podemos pensar que estas penas por estarem presentes em lu 138 AfroÁsia 28 2002 125146 Nkisi Mbumba Maza coletado em Cabinda antes de 1933 acervo do Museu do Homem de Paris A escultura de madeira contém ingredientes ocultos na barriga e na cabeça e outros ingredientes nela pendurados como cabaça pele de cobra tiras de tecido conchas sementes garras chifre fibra trançada Cada um desses ingredientes tem uma função mágica que atribui ao nkisi sua força sobrenatural Em Astonishment and Power p 70 AfroÁsia 28 2002 125146 139 Nksi Nduda coletado na área bacongo antes de 1893 acervo do Staatliches Museum für Völkerkunde Munique Alemanha A escultura de madeira está coberta por tiras de peles de diversos animais traz no pescoço uma fieira de pequenas bolsas de pano contendo ingredientes específicos e um adereço de penas atado à cabeça por uma tira de tecido In Astonishment and Power p 72 140 AfroÁsia 28 2002 125146 Pieu amuleto da região dos Yakas em Angola In Sculpture Angolaise Mémorial de cultures Lisboa Museu Nacional de Etnologia Electa 1994 p 104 AfroÁsia 28 2002 125146 141 gares equivalentes em diferentes culturas tendem a manter um espaço na nova cultura que se forma a partir dos contatos encetados22 Mas como a análise aqui proposta busca apenas fazer conexões entre a comu nidade do Pacoval com os povos aos quais pertenceram seus antepassa dos fixo meus olhos no mundo banto centroocidental de onde veio segundo Eurípedes Funes a maioria dos africanos escravizados que ali se aquilombaram Depois desse passeio por algumas regiões da África percebemos nos panos cordões contas e penas adicionadas às imagens encontradas no Pacoval por Otille Coudreau no início do século XX e por Eurípedes Funes no fim do mesmo século a expressão do encontro entre o catoli cismo e as religiões bantos tradicionais Se em 1901 as imagens da igreja do Pacoval foram comparadas a Quasímodos pela cientista francesa o que a fotografia tirada no final do século XX nos mostra é um santo entalhado em madeira por mãos de artistas populares como uma infini dade de outros o foram tendo como traço diferenciador o tufo de penas que enfeita seu capacete semelhante ao dos valsares Certamente ao lon go dos anos novecentos a comunidade do Pacoval assumiu mais e mais feições brasileiras distanciandose de um passado africano que fora mais preservado enquanto o grupo evitou contatos muito intensos com a soci edade circundante para a qual eram descendentes de escravos fugidos Hoje em dia o que se destaca na religiosidade afrocatólica dos morado res do Pacoval são as danças que acompanham as celebrações dos san tos e que não se restringem às comunidades negras pois são caracterís tica marcante do catolicismo colonial conforme vivido na América por tuguesa Mas específicos das danças realizadas pelas comunidades afro descendentes são os elementos africanos nelas presentes como os rit mos os passos as letras das músicas permeadas de palavras de origem africana e símbolos que mesmo transformados remetem às suas raízes como as penas na cabeça indicando uma ligação com o mundo do além O tema da dominação não pode deixar de estar presente quando falamos de sociedades afrodescendentes nas Américas e certamente as 22 Um dos muitos pontos para os quais o parecerista anônimo da AfroÁsia abriu meus olhos foi este relativo à abrangência da presença de penas e pássaros em insígnias de poder 142 AfroÁsia 28 2002 125146 Kafigeledjo oráculo usado em ritos divinatórios da etnia senufo Costa do Marfim final do século XIX início do XX acervo do Metropolitan Museum of Art New York A escultura de madeira é coberta por um tecido alguns ingredientes pendem amarrados na altura do pescoço um gancho de ferro e um osso de pássaro pendurados em parte do pano fazem as vezes de braços e mãos e a cabeça está coroada por penas e espinhos de porcoespinho In Alisa LaGamma Art and Oracle African Art and Rituals of Divination New York Metropolitan Museum of Art 2000 p 27 AfroÁsia 28 2002 125146 143 atitudes dos representantes da sociedade senhorial entre eles os agentes da Igreja tiveram um papel fundamental nos processos de constituição de novas identidades e novas formas culturais a partir da diáspora afri cana Mas foram os ajustes e opções empreendidos pelos africanos re cémchegados e pelos seus descendentes que definiram as feições das novas culturas que se criaram nas Américas Nesse processo os santos imagens do culto católico absorveram sentidos e papéis das imagens e objetos usados nas religiões bantos tradicionais o que já havia ocorrido na própria África a partir da ação de missionários católicos romanos e da conversão ao catolicismo da elite dirigente do antigo reino do Congo no final do século XV Com a ocupação portuguesa de algumas áreas do território que ficou conhecido como Angola missionários continuaram a agir naquelas regiões sendo alguns dos elementos por eles introduzidos com destaque para objetos usados em cultos religiosos incorporados pelas populações nativas que a eles acoplaram significados pertinentes às suas próprias tradições Se em territórios africanos nos quais era pequeno o espaço ocu pado pelos portugueses e seus agentes entre eles os missionários o catolicismo deixou discretos vestígios no período précolonial na Amé rica portuguesa os africanos muitas vezes a ele se renderam não sem recheálo de contribuições de suas religiões tradicionais Na América eles eram obrigados pela violência pela condição de escravos e de es trangeiros a se sujeitarem às normas dos que mandavam a administra ção colonial portuguesa para a qual a religião católica era importante meio de dominação Várias foram as formas pelas quais o catolicismo foi adotado por comunidades afrodescendentes mas essa área de estu dos recebeu no geral menos atenção do que os cultos religiosos deriva dos de tradições africanas Nina Rodrigues e Arthur Ramos tratam com mais vagar das religiões afrobrasileiras e do conjunto cultural iorubano Roger Bastide quando aborda o catolicismo negro é de maneira super ficial ignorando as motivações das comunidades negras e tomando o catolicismo apenas como uma imposição do universo senhorial incorpo rada geralmente para servir de disfarce a ritos de origem africana Tam bém Pierre Verger por focar apenas a Bahia e a África Ocidental na qual a penetração das religiões cristãs só se deu após o término do tráfi 144 AfroÁsia 28 2002 125146 co de escravos não aborda o cristianismo negro e suas relações com o catolicismo africano dos bantos da África CentroOcidental Só Robert Slenes mais recentemente tem se aprofundado no estudo dos povos des ta região e chamado a atenção para o fato de que muitos escravos que de lá vieram já tinham incorporado elementos de um catolicismo africano termo cunhado por John Thornton23 Eu mesma seguindo as trilhas aber tas principalmente por esses dois autores venho pensando acerca de al guns aspectos do catolicismo africano e do catolicismo afrobrasileiro24 É essa preocupação que me faz prestar atenção no espanto e re pulsa de Otille Coudreau diante das imagens que viu na igreja do mocambo à beira do rio Curuá associadas a Quasímodos aberrações que feriam sua sensibilidade estética educada na Europa com a qual se orientava no mundo Bem antes de ela viver essa experiência na Amazônia brasileira outros europeus tinham tido reações muito parecidas diante dos minkisi que chamavam de fetiches ou de imagens demoníacas como a es sas figuras se referiu Olfer Dapper cujo livro foi publicado em 1676 rudemente esculpidas em madeira e cobertas de trapos sujos como disse J K Tuckey em 1816 e com aparência feroz no entender de H M Stanley em 1895 O tenente Tuckey comparou essas imagens com es pantalhos e missionários católicos e batistas do final do século XIX chamaramnas de indecentes e francamente obscenas25 Um século depois de Coudreau no Brasil e de alguns missionári os que viveram na África CentroOcidental terem tomado conhecimento dessas imagens podemos tentar nos despir do etnocentrismo existente em todas as culturas e tempos e buscar entender as motivações prováveis por trás das opções feitas pelos grupos e pelas pessoas Nesse sentido os estudos sobre os minkisi centroafricanos lançam novas luzes sobre os santos envoltos em panos gastos com colares de contas e sementes e adereços de penas na cabeça À maneira das penas colocadas na cabeça 23 Principalmente em Africa and Africans in the making of the Atlantic World 24 Em Reis negros no Brasil escravista História da festa de coroação de rei congo Santo Antonio de nódepinho e o catolicismo afrobrasileiro Tempo vol 6 no 11 2001 pp 171 188 e História mito e identidade nas festas de reis negros no Brasil séculos XVIII e XIX in István Jancsó e Iris Kantor orgs Festa Cultura a sociabilidade na América portuguesa São Paulo Hucitec Edusp 2001 pp 249260 25 Conforme Volavkova Nkisi figures of the Lower Congo p 52 AfroÁsia 28 2002 125146 145 dos baganga plural de nganga e dos minkisi o adereço de cabeça do São Benedito fotografado no mocambo do Pacoval reforça a conexão entre este mundo e o outro a relação dos homens com o além permitida pelo objeto mágicoreligioso seja ele um santo católico um nkisi ou um produto mestiço do encontro entre as diferentes culturas Na virada do século XIX para o XX as imagens dos santos católicos cultuados por comunidades afrodescendentes que viviam num grau significativo de iso lamento mantendo tradições e maneiras de pensar e sentir próximas das de suas culturas de origem deviam guardar mais proximidade dos minkisi do que hoje em dia Considerando que desde o século XVI missionários católicos vivi am entre povos da região do antigo reino do Congo e de Angola onde se desenvolveram formas africanas de catolicismo e houve a incorporação de objetos do culto cristão às religiões tradicionais percebemos que as mestiçagens culturais nas quais o catolicismo é o elemento dominante podiam estar em curso antes da escravização e da travessia do Atlântico Com isso em mente não é difícil aceitar que os panos e colares que envolviam os santos dispostos ao redor da igreja do mocambo visitado por Coudreau estavam mais próximos dos elementos equivalentes que compunham os minkisi atribuindolhes certos poderes do que das ves tes e jóias que envolviam os santos que habitavam os altares dos senho res que por sua vez também se inseriam no pensamento mágico que permeava a vida cotidiana da Europa préiluminista Santos e minkisi eram objetos de ligação com o mundo do além de onde vinha a solução para os problemas deste mundo Enquanto na cultura popular ibérica na qual o catolicismo se misturou a tradições pagãs os santos eram invocados para afastar epi demias de peste e pragas das plantações trazer chuva e curar as pessoas os minkisi divididos em várias categorias e com especializações própri as eram chamados a identificar malfeitores curar ou provocar doenças garantir a fertilidade da terra e das mulheres Constituídos por escultu ras vasilhames ou amarrações recebiam em ritos conduzidos pelos baganga ingredientes que os tornavam portadores de poderes próprios dos espíritos da natureza ou dos antepassados A eles os santos católicos levados para a África pelos missionários foram associados Na Améri 146 AfroÁsia 28 2002 125146 ca ao reconstituir suas formas de organização e relação com as coisas do mundo terreno e sobrenatural os africanos e seus descendentes recor reram aos santos católicos para neles imprimir elementos de suas cren ças tradicionais utilizandose dos espaços permitidos pela sociedade escravista tal como fizeram com os festejos em torno de um rei negro Ao terem que construir novas instituições os grupos heterogêneos de africanos escravizados recorreram não apenas aos saberes trazidos por determinados indivíduos mas também ao que havia de comum aos sistemas cognitivos das pessoas pertencentes a grupos étnicos diversos Nessa dinâmica entre uma gramática da cultura que serviu de base às novas formações e à ação de pessoas particulares portadoras de conhe cimentos adquiridos em suas terras natais as penas muitas vezes foram mantidas como veículos de ligação entre este mundo e o além Por outro lado ao terem que se inserir numa sociedade dominada pelo colonizador cristão que impunha sua religião traduziramna para seus próprios ter mos atribuindo aos santos significados inacessíveis àqueles que não partilhavam seus códigos culturais Dessa forma os elementos da cultu ra dominante de origem européia ao serem incorporados pelas comuni dades afrodescendentes receberam sentidos por elas criados O caso aqui analisado é exemplo de como o estranhamento pode ser uma boa pista para se alcançar significados não evidentes como nos ensinou Carlo Ginzburg