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103119 n 40 2012 p artigos papers RESUMO Esses termos expressam tendências no mundo do candomblé que surgiram devido a alterações da tradição intencionalmente introduzidas O artigo debate quatro interpretações importantes desse fenômeno e busca identificar convergências e divergências entre elas a perspectiva construtivista de Beatriz Góis Dantas inovou o debate na década de 1980 na medida em que relacionou entre outras coisas autenticidade com a luta por reconhecimento e contra discriminação Lorand Matory criticaria Dantas a partir da perspectiva do Atlântico Negro e reivindicaria a inclusão do agenciamento negro transnacional na análise da construção da pureza nagô Alejandro Frigerio enfatiza na questão da reafricanização e dessincretização no plano dos processos de conversão individuais enquanto Reginaldo Prandi examina as recentes transformações no contexto de uma análise do mercado religioso Buscando uma compreensão multifacetada do fenômeno o artigo termina propondo a elaboração de uma perspectiva analítica plural que integre os méritos de cada uma das quatro abordagens Palavraschave religião de matriz africana identidade e etnicidade teoria antropológica ABSTRACT These terms stand for tendencies in the candomblé world which occurred as a consequence of intentionally introduced alterations of tradition This article discusses four important interpretations of this phenomenon and tries to identify convergences and divergences between them the constructivist approach of Beatriz Góis Dantas renewed the academic discussion in the 1980ies insofar as she related amongst others authenticity to the struggle for recognition and against discrimination Lorand Matory should critize Dantas from a Black Atlantic perspective and pleads for the inclusion of transnational black agency in the analysis of the construction of nago purity Alejandro Frigerio emphasizes in his studies of reafricanization and anti syncretism the aspect of individual conversion processes while Reginaldo Prandi examines the recent transformations in the context of an analysis of the religious market Searching for a multifaceted comprehension of the phenomenon the article concludes by proposing the elaboration of a plural analytic perspective capable of integrating the merits of each of the four approaches Keywords Black religion identity and ethnicity anthropological theory 40 103 Andreas Hofbauer Doutor em Antropologia Social pela USP atualmente é professor assistente doutor da UNESPMarília Email andreashofbaueruolcombr Pureza nagô reafricanização dessincretização Nago Purity reafricanization and antisyncretism 103119 n 40 2012 p 40 104 Situando a questão Os três conceitos que compõem o título deste pequeno ensaio dizem respeito a processos de afirmação de diferença cultural Não representam nenhuma novidade no mundo das religiões afrobrasileiras no entanto recentemente ganharam relevo Pureza nagô reafricanização e dessincretização não descrevem exatamente o mesmo fenômeno mas quero argumentar aqui que eles apontam numa mesma direção tratase sempre de uma valorização mais ou menos consciente de uma determinada tradição de uma ideia de África e de autenticidade cultural em delimitação a outras tradições religiosas Segundo estatísticas oficiais houve nas últimas décadas um recuo 1 significativo do número de praticantes de religiões de matriz africana Nesse contexto é importante lembrar que muitos adeptos do candomblé e da umbanda evitam por causa das frequentes hostilidades e discriminações admitir sua relação com essas religiões preferindo declararemse católicos Quando se examina mais detidamente os dados estatísticos percebese uma diferenciação interessante foi a umbanda a religião afro brasileira que mais perdeu adeptos enquanto o número dos candomblecistas 2 aumentou consideravelmente E o que chama mais a atenção nessas análises quantitativas é o fato de que dentro do espectro do candomblé são os terreiros que se dizem reafricanizados que mais têm crescido nos últimos tempos Dados quantitativos como esses dãonos evidentemente apenas uma visão distanciada do nosso tema seria necessário p ex problematizar a fronteira entre candomblé e umbanda uma vez que como diversos estudiosos já mostraram o mundo das religiões afrobrasileiras se apresenta como um continuum dentro do qual diversas formas de transição e de sobreposição podem ser observadas O que está no cerne das tendências de africanização De que maneira os terreiros reafricanizados se diferenciam de outros Para responder a tais questões quero num primeiro momento caracterizar alguns elementos das práticas ritualísticas que geralmente são associadas à reafricanização para num segundo momento analisar quatro perspectivas analíticas diferentes e dessa forma procurar aprofundar a compreensão desse fenômeno Como característica fundamental podemos mencionar a busca de dissociar o simbolismo ritualístico do candomblé de qualquer influência católica Combatese sobretudo aquela concepção que associa e mescla divindades africanas com santos católicos Argumentase não raramente como p ex no chamado manifesto contra o sincretismo assinado por cinco importantes ialorixás de Salvador na ocasião da Segunda Conferência Mundial da Tradição Orixá e Cultura em 1983 que o sincretismo era uma estratégia de sobrevivência válida enquanto vigorava o sistema de escravidão mas não se justifica mais na contemporaneidade Constatase que os processos históricos contribuíram para distorcer o caráter verdadeiro da religião africana e entendese que é necessário restaurar a pureza original para devolver ao culto dos orixás a dignidade que perdeu parcialmente durante a escravidão cf CAMPOS 2003 p 4448 cf CONSORTE 1999 p 90 Tais convicções motivam diversos sacerdotes não apenas a retirar dos terreiros as imagens de santos Também o costume de levar oa recéminiciadoa iaô a uma igreja para assistir à missa antes do axexê é agora criticado Algumas casas promovem toques de despedida em que os caboclos até então cultuados são expulsos uma vez que se entende que os caboclos enquanto espíritos ancestrais indígenas constituem um elemento estranho à verdadeira tradição africana cf 3 PRANDI SILVA 1989 p 238 Ocorre porém que não todos os iniciados acompanham as mudanças introduzidas pelos sacerdotes na sua íntegra Há quem não queira abrir mão das tradicionais missas do sétimo dia e há aqueles que não abandonam sua relação ritualística com o caboclo eou com o preto velho Tal realidade revela que nem sempre as reformas conseguem ter o respaldo de toda a comunidade 103119 n 40 2012 p 40 105 terreiro Pode haver resistências geralmente dissimuladas Existem situações em que um ou outro filho de santo continua sendo devoto de um determinado santo ou caboclo sem que o líder religioso tome conhecimento disso Outra preocupação importante das ialorixás e dos babalorixás diz respeito à língua ritualística Muitos se incomodam com o fato de que não entendem as letras das 4 cantigas entoadas durante as cerimônias Desde a década de 1960 diversos sacerdotes frequentam cursos de língua ioruba que num primeiro momento foram organizados não raramente por instituições universitárias Tendo adquirido um conhecimento linguístico básico os sacerdotes sentemse motivados e autorizados a corrigir as cantigas dos orixás Na busca do conhecimento religioso verdadeiro diversos líderes religiosos sobretudo no Sudeste do país procuram ter um contato direto com a África há aqueles que fazem viagens para lugares sagrados na Nigéria e no Benin de onde trazem às 5 vezes objetos sagrados ou até um título honorífico religioso Outro elemento de reforma que pode ser encontrado em vários terreiros são cerimônias de batismo e de casamento Tratase de rituais recentemente inventados que têm como objetivo como admitem diversos líderes oferecer aos adeptos a possibilidade de adquirir no candomblé os mesmos sacramentos que costumavam receber nas igrejas cristãs Pedaço da África transplantado Quero agora aprofundar a discussão acadêmica em torno do tema pureza nagô reafricanização e dessincretização Buscarei apontar os lados fortes e fracos como também certos pontos cegos de cada uma das análises para dessa forma propor uma estratégia analítica plural capaz de integrar diversas perspectivas válidas de abordagem dessa questão complexa As primeiras duas análises concentramse mais nas raízes históricas outras duas abordam acima de tudo a situação atual Quando avaliamos a partir de estudos recentes a história do candomblé podemos perceber uma pluralidade de influências culturais trocas sobreposições continuidades e também descontinuidades Ao lado das irmandades negras destaca se sobretudo a força culturalreligiosa dos calundus rituais religiosos com forte influência bantu que tiveram um papel decisivo no surgimento do candomblé As pesquisas de Parés 2006 revelam que as casas mais antigas de Salvador não foram fundadas por mulheres iorubanas originárias de Ketu como afirmam os mitos de origem mas por africanas provenientes do reino de Daomé Para comprovar essa tese que salienta a importância jeje em detrimento do nagô na fase da formação do candomblé Parés apresenta uma série de dados demográficos etimológicos e antropológicos ele mostra p ex que os documentos mais antigos não falam de orixás 6 termo iorubano mas de voduns termo fonjeje não se referem a Exu mas a Legba Sabemos hoje também que desde muito cedo houve participação de mestiços e até de brancos em rituais do candomblé Além disso formaramse no mundo do candomblé diferentes tradições ritualísticas as chamadas nações que são associadas a origens étnicoculturais distintas Se olharmos para os estudos clássicos do candomblé chama a atenção o fato de que as dinâmicas culturais e as descontinuidades tendem a ser omitidas enquanto as continuidades em nível racial eou cultural são detectadas e enfatizadas Assim Raimundo Nina Rodrigues tido como pai dos estudos afrobrasileiros procurava as raízes raciaisculturais do candomblé e classificava a tradição nagô como mais elevada do que a religiosidade dos bantus Não há espaço aqui para aprofundarmos a reflexão dos clássicos Quero somente comentar algumas análises de Bastide que se revelariam como paradigmáticas no que diz respeito às avaliações da africanidade e da pureza cultural nas religiões afrobrasileiras 103119 n 40 2012 p 40 106 Bastide via no candomblé na tradição nagô o triunfo das normas coletivas que teriam resistido às forças da modernização O candomblé representava portanto para ele uma forma de resistência cultural que indicava continuidade e autenticidade já a tradição bantu recebia uma interpretação totalmente diferente na qual ganham destaque processos de mistura e decadência cultural Assim o pesquisador francês associava o surgimento da umbanda de um lado a uma suposta fluidez e permeabilidade das tradições bantu cf p ex CAPONE 2008 p 270 e de outro a processos de industrialização e urbanização que são avaliados por Bastide como fatores responsáveis pela proletarização do negro bem como pelo processo de desagregação social e de assimilação cultural Diferentemente da macumba umbanda que aparece na análise de Bastide diretamente relacionada com o mundo da modernização o candomblé é apresentado como um mundo uma cultura à parte Com conceitos como enquistamento cultural 7 e princípio de corte Bastide 1985 p 529 buscava argumentar que é possível que duas civilizações coexistam no interior de uma mesma sociedade sem se modificar ao seu contato Percebese nessas abordagens antagônicas que num caso candomblé Bastide aplica os paradigmas da Antropologia clássica a respeito da noção de cultura um todo coerente e funcional etc p 313 cujas referências morais e valorativas poderiam ser avaliadas somente a partir dos seus próprios parâmetros já o outro caso macumba não é mais analisado como forma de resistência cultural ao ser compreendido como parte de um processo de decadência promovido pelo processo de modernização a sua avaliação sofre julgamentos morais que Bastide não admite em relação à religião africana autêntica Escreve Bastide O candomblé era e permanece um meio de controle social um instrumento de solidariedade e de comunhão a macumba resulta no parasitismo social na exploração desavergonhada da credulidade das classes baixas ou no afrouxamento das tendências imorais desde o estupro até frequentemente o assassinato BASTIDE 1985 p 414 Com essas reflexões Bastide contribuiu para consolidar a noção da pureza nagô que se tornaria não somente um importante instrumento no combate à discriminação cf DANTAS 1988 mas também 8 um argumento nas disputas internas das religiões de matriz africana Análises como a de Bastide fortaleceriam também a criação de uma visão mítica da África Na esteira das suas pesquisas muitos estudiosos interessarseiam em resgatar um corpus religioso nagô que emergiria nas análises como uma esfera à parte das relações sociais econômicas e políticas ocultando dessa forma estruturas hierárquicas presentes na sociedade iorubana tradicional como o fenômeno da escravidão a instituição social 9 de iwofa ou ainda a prática de sacrifícios humanos em funerais em homenagem a um 10 nobre falecido Recortes e recriações estratégicas a força dos argumentos antropológicos locais versus o agenciamento negro transnacional A discussão em torno da religiosidade afrobrasileira ganharia um novo impulso importante na década de 1980 com os estudos de Beatriz Góis Dantas que frisava agora diferentemente de Bastide usos estratégicos da tradição cultural religiosa O livro Vovó nagô e papai branco usos e abusos da África no Brasil 1988 de Beatriz Góis Dantas constitui um marco no debate brasileiro sobre a religiosidade afro brasileira uma vez que procura mostrar que a africanidade do candomblé não se deve a uma suposta peculiaridade racial dos seus adeptos nem deve ser entendida como uma sobrevivência continuidade cultural direta da África um verdadeiro pedaço da África transplantado como escreveu Bastide 1985 p 312 no Brasil Mesmo que Dantas não use a noção de agenciamento como um instrumental metodológicoteórico explícito da maneira como Bourdieu 1972 1974 elaborou com a ajuda de conceitos tais como habitus campo capital simbólico etc ou como Sahlins 1981 formulou nas 103119 n 40 2012 p 40 107 suas análises sobre a morte do capitão Cook a partir das suas reflexões sobre a mitopráxis a reavaliação das categorias na ação a relação entre interesse e sentido etc o texto da antropóloga brasileira é marcado por uma clara perspectiva construtivista uma vez que dá relevo à importância dos interesses e estratégias no uso e na avaliação das tradições Desde cedo Dantas questionava que os significados e funções do candomblé pudessem ser explicadas derivadas diretamente a partir dos significados e funções que tiveram originalmente na África sem levar em conta os processos de inserção e adaptação ao contexto brasileiro Ao dar ênfase a uma análise do contexto de interesses e de processos de afirmação de identidades inclusão e exclusão que se articulam no e em torno do mundo do candomblé a sua análise põe implicitamente também em xeque a perspectiva sistêmica clássica de cultura resistência cultural propagada por Bastide Escreve Peter Fry no prefácio do livro Para ela Dantas os terreiros que conhecemos hoje em dia não são simplesmente manifestações da contribuição do negro ao melting pot brasileiro E nem tampouco resultado de um longo e mecânico processo de resistência dos negros contra a dominação dos brancos A autora descarta essas duas histórias oficiais para mostrar que a configuração das religiões afrobrasileiras não se dá apenas através do embate entre brancos dominantes e negros dominados nem tampouco através de uma simples mistura de culturas mas sim através de uma série de alianças e conflitos que entrecruzam as fronteiras entre senhores escravos políticos psiquiatras policiais homens poderosos de negócios pais e 11 mães de santo padres e antropólogos FRY 1988 p 15 Baseandose nas suas pesquisas etnográficas efetuadas em Laranjeiras Sergipe Dantas mostra que certos elementos raspagem de cabeça durante a iniciação reclusão do iniciado derramamento de sangue de um animal sacrificado sobre a cabeça tidos como características fundamentais da ortodoxia africana na Bahia são em Laranjeiras sinal de mistura associados portanto a menor prestígio do que lá Dantas aborda portanto a pureza como uma noção nativa que não pode ser definida fora do contexto das disputas internas no mundo do candomblé O que me parece é que a pureza nagô assim como a etnicidade seria uma categoria nativa utilizada pelos terreiros para marcar suas diferenças e expressar suas rivalidades que se acentuam na medida em que as diferentes formas religiosas se organizam como agências num mercado concorrencial de bens simbólicos BOURDIEU 1974 afirma 12 Dantas ibid p 148 Ao retomar as reflexões que Mary Douglas apresenta na sua obra clássica Pureza e perigo 1966 Dantas constata de forma genérica que há uma relação intrínseca entre a ideia da pureza e as estruturas de poder de uma sociedade ibid p 243 num outro momento do livro avalia que com a inserção do candomblé no circuito capitalista de consumo os bens simbólicos são passíveis de serem transformados em mercadoria e que nesse processo o exóticoestético o africano puro tem atingido o maior valor no mercado ibid p 205 Uma parte central de sua reflexão é porém dedicada à recriação da noção nativa de pureza nagô por meio de influência externa mais especificamente pela participação ativa de antropólogos na defesa de determinadas casas de candomblé Já no seu artigo Repensando a pureza nagô Dantas 1982 p 16 deixa claro que ela se inspirou no trabalho de Patrícia Birman 1980 que seguindo pistas de pesquisas abertas por Yvonne Velho Maggie e de Peter Fry levantou a hipótese de que os africanismos encontrados nos terreiros não seriam realmente práticas sociais africanas mas representações do africano produzidas nos meios acadêmicos no passado representações que ao se difundirem passaram para o senso comum Vovó nagô e papai branco persegue portanto o objetivo de mostrar como na luta contra a discriminação e pela descriminalização do candomblé a noção de pureza nagô foi transformada em 103119 n 40 2012 p 40 108 categoria analítica e como tal estratégia de defesa construída numa relação de cooperação entre antropólogos e líderes das mais prestigiosas casas de candomblé de Salvador repercute sobre o próprio mundo do candomblé Vejamos as próprias palavras da autora ao transformar a pureza nagô categoria nativa utilizada pelos terreiros para marcar suas diferenças e rivalidades em categoria analítica os antropólogos através da construção do modelo nagô contribuíram para a cristalização de conteúdos culturais que passam a ser tomados como expressão máxima de africanidade DANTAS 1988 p 242 243 Num longo capítulo A construção e o significado da pureza nagô Dantas analisa os discursos dos antropólogos pioneiros que se dedicaram a estudar o mundo da religiosidade afrobrasileira Revela que a valorização e desvalorização de determinadas práticas ritualísticas ie tradições religiosas nações feitas em textos acadêmicos hoje tidos como clássicos não se explica somente pelas opções teóricas assumidas para avaliar diferenças raciais culturais mas tinham muito a ver também com as relações 13 pessoais que os pesquisadores mantiveram com determinados líderes religiosos e os 14 seus respectivos terreiros Dantas argumenta p ex que a organização dos primeiros Congressos Afro Brasileiros Recife 1934 Salvador 1937 que reunia cientistas e líderes de importantes terreiros de candomblé foi fundamental para a consagração da nação nagô Na busca por estratégias que protegessem os terreiros da perseguição policial e permitissem conquistar uma maior aceitação do candomblé na sociedade nacional os pesquisadores e lideranças religiosas empenhavamse em apresentar o candomblé como uma autêntica religião africana Ao se prestigiarem certas formas ritualísticas jejenagô particularmente a nação ketu como a tradição religiosa mais pura outras formas consideradas mais sincréticas p ex candomblé de caboclo candomblé de 15 Angola seriam implicitamente menos valorizadas ou até abertamente hostilizadas Assim no primeiro grande encontro organizado por Gilberto Freyre e Ulysses Pernambucano de Mello propôsse a divulgação do calendário de um terreiro nagô pai Anselmo como calendáriomodelo de festas religiosas que serviria também como referência e orientação para as autoridades inclusive para a polícia poderem discernir entre práticas religiosas puras e valiosas e práticas misturadas e portanto desviantes do modelo a ser consagrado DANTAS 1988 p 197 Um dos resultados do segundo congresso foi a fundação de um conselho que buscava reunir os líderes religiosos da Bahia e teve com um dos seus objetivos mais importantes a descriminalização do 16 candomblé A implementação da União das Seitas AfroBrasileiras da Bahia como o Conselho Africano da Bahia devia ser chamado depois da primeira reunião foi comentada por Dantas 1982 p 19 como uma das conquistas do Congresso de 1937 criada com o decisivo apoio do Axê Opô Afonjá com o objetivo expresso de manter a fidelidade dos cultos à tradição africana e de defender a liberdade religiosa dos candomblés CARNEIRO 1940 1938 o que implicaria numa relação formal com as camadas dominantes detentoras do poder A análise de Dantas aponta portanto para uma nova aplicação e dimensão que a noção de pureza nagô ganharia a partir da interação entre cientistas líderes religiosos e elite local deixa de ser moeda usada exclusivamente nas disputas internas do mundo da religiosidade afrobrasileira e será aplicada também para combater atos discriminatórios e para ganhar respeito diante da sociedade e o sucesso dessa estratégia esse é o argumento da autora repercute novamente sobre as disputas internas no mundo do candomblé O antropólogo norteamericano Lorand Matory desenvolveria uma abordagem que constitui de certo modo um contraponto às análises feitas por Dantas Matory parte também de uma crítica aos velhos paradigmas metáforas analíticos Como Dantas opõese àquelas tradições de análise que apresentam a África como uma mera origem como um passado como uma fonte de sobrevivências culturais Critica especificamente a noção de memória coletiva que teria orientado o pensamento de pesquisadores consagrados como p ex Roger Bastide Memória preservação e retenção não são a mesma coisa que interpretar e invocar o passado de forma seletiva e estratégica afirma o Matory 2009 p 161 Esse antropólogo defende portanto uma análise que dê destaque ao agenciamento e vê uma incompatibilidade entre a metáfora 17 da memória e a noção de agency ibid p 162 E mais do que isso ao enfatizar a importância do plano discursivo tende a negar à noção de cultura uma característica tida como fundamental pelos autores clássicos uma fonte de percepção cognição e de ação para a interação social Aquilo que é chamado recorrentemente de memória tradição cultural nos dois lados do Atlântico escreve Matory é na verdade sempre uma função de poder negociação e recriação estratégica 2005 p 70 Diferentemente da antropóloga brasileira Matory escolhe a metáfora do 18 diálogo como orientação teórica das suas análises Ele inspirase na perspectiva do 19 Atlântico Negro desenvolvido por Paul Gilroy 2001 sem deixar de fazer também algumas críticas a ele A ênfase nas trocas culturais entre as diversas diásporas africanas dada por Gilroy teria conseguido minar e falsificar as fronteiras que os imaginários nacionalistas criaram MATORY 2009 p 165 Ao priorizar formas descontínuas de reprodução cultural mostrando como tais processos cortam fronteiras territoriais Gilroy contribuiu para pôr em xeque a metáfora analítica da memória Ao mesmo tempo Matory discorda de Gilroy em dois pontos fundamentais O antropólogo norteamericano acusa o seu colega britânico de desconsiderar o potencial das religiões afroamericanas como um signo fundamental para as definições nativas de autenticidade racial ibid p 167 e de não reconhecer devidamente a participação da África nos processos transterritoriais que ele analisa com tanto afinco A razão para essa lacuna na abordagem de Gilroy deverseia à premissa de que as trocas de experiência diaspóricas tiveram o seu início no momento em que os negros entraram em contato com as ideias do Iluminismo europeu A representação da cultura do Black Atlantic apresentada por Gilroy é essencialmente uma resposta negra à exclusão das promessas do Iluminismo europeu e torna a África irrelevante analisa Matory ibid p 166 Nesse contexto Matory critica de forma genérica a perspectiva dos estudos culturais dos quais Gilroy é um representante eminente por eles concentrarem suas abordagens em escritos e nos comportamentos e ações gestures de agentes sociais extremamente bem formados nos projetos de movimentos culturais reformistas e naquele tipo de arte que é divulgado por editores profissionais pela indústria fonográfica e por museus ibid p 168 Tal postura assumida por Matory expressase evidentemente também na maneira como esse pesquisador aborda o fenômeno da pureza nagô No seu impactante livro Black Atlantic religion 2005 Matory atribui o sucesso da cultura iorubana em toda a América em primeiro lugar a um duradouro transnacional literary movement 2005 p 71 Quem teve um papel de destaque na consolidação desse movimento foram de acordo com essa análise os chamados negros retornados ex escravos que voltaram para a África e acima de tudo aqueles entre eles que oriundos da iorubalândia se dirigiram depois de terem sido formados em escolas missionárias 20 em Freetown Serra Leoa a Lagos onde trabalharam como missionários comerciantes ou na administração colonial Matory mostra que foram eles sobretudo pastores negros com experiência diaspórica os primeiros a fazer registros da história da língua e das tradições locais além de terem elaborado as primeiras traduções da Bíblia Para isso os missionáriostradutores precisaram elaborar um padrão linguístico o que de acordo com Matory contribuiu de forma decisiva para 21 homogeneizar os dialetos locais e criar uma espécie de standard ioruba Por volta de 1890 parte dessa elite negra burguesa residente em Lagos que se sentia discriminada pela política colonial britânica e acompanhava com interesse as lutas dos negros nos EUA contra as leis segregacionistas formou um movimento de cunho nativista que seria chamado de Renascimento Lagosiano De acordo com Matory foi nesse contexto histórico que se articulou e se consolidou a noção da pureza iorubana pureza nagô que incluía a ideia da superioridade dos iorubas em relação a 103119 n 40 2012 p 40 109 outros grupos Num diálogo com outras diásporas negras sobretudo a norteamericana essa intelligentsia local teria reagido a experiências de humilhação e discriminação com a produção de representações idealizadas e essencialistas das tradições locais iorubanas Apropriaramse assim de alguns elementos do discurso discriminatório e das suas categorias usadas contra eles e buscaram atribuirlhes um novo significado afirmativo e positivo na tentativa de consolidar uma estratégia discursiva de autodefesa Tal elite que se via como cristã não chegou a propagar a religião dos orixás nos seus escritos mas prezava os cultos iorubanos como uma herança valiosa dos seus ancestrais De acordo com Matory esses textos criaram uma primeira codificação culturalreligiosa que podia ser apropriada e reinterpretada por seguidores descendentes iorubanos nos dois lados do Atlântico MATORY 2005 p 64 Nesse contexto Matory chama a atenção para o fluxo de viajantes negros que existiu entre a Bahia e o litoral ocidental da África Nigéria e Benin atuais Não somente objetos religiosos e notícias circulavam Matory cita vários líderes religiosos 22 importantes que viajavam Assim p ex Martiniano Eliseu do Bonfim filho de libertos africanos passou onze anos 18751886 em Lagos onde não somente frequentou uma escola presbiteriana mas foi também iniciado no sacerdócio de Ifá De volta à Bahia introduziu elementos ritualísticos que conheceu na África 12 obás de Xangô no Ilê Axé Opô Afonjá ao qual estava ligado Teria portanto importante influência sobre as práticas religiosas nessa prestigiosa casa e tornarseia ainda informante principal do pai dos estudos afrobrasileiros Nina Rodrigues Com essas análises Matory procura mostrar que foram africanos e seus descendentes ligados a um movimento literário transnacional Renascimento Lagosiano que contribuíram tanto para codificar e reificar aquilo que hoje entendemos como cultura iorubana quanto para disseminála Essa análise de Matory visa não somente combater a visão antropológica clássica que concebe as religiões afro americanas como sobrevivências de determinadas tradições culturais mas opõese também explicitamente àquela interpretação segundo a qual a noção da pureza nagô se 23 deve em primeiro lugar à intervenção de intelectuais locais caracterizados por Matory 24 que se apresenta no debate como pesquisador afroamericano como eurobrasileiros MATORY 2005 p 50 Com afirmações desse tipo Matory tende a projetar um mundo dicotomizado entre negros e brancos que como Peter Fry critica numa resenha do livro Black Atlantic Religion dificilmente se adéqua à realidade brasileira incluindo o mundo do candomblé Matory racializa tanto os antropólogos como os adeptos soa a acusação O objetivo de Matory seria não somente chamar a atenção para a importância do agenciamento dos adeptos mas também de apresentálos como protagonistas de um conflito racial O problema é escreve Fry que os líderes religiosos são de todas as cores a raça no Brasil tem mais a ver com o fenótipo do que com o genótipo e o mesmo 25 acontece com aqueles que escrevem sobre eles FRY 2008 p 213 Se Matory pondera com certa razão que explicações como aquela apresentada pela primeira vez pela antropóloga Góis Dantas na década de 1980 tendem a omitir o papel ativo de negros africanos na construção da valorização da tradição nagô ele próprio pode ser acusado de não ter dado a devida importância aos contextos locais que acompanharam a consolidação da tradição do candomblé Não leva em consideração p ex os processos migratórios internos que levam a novas situações que Frigerio chama de diásporas secundárias e que repercutem também sobre as disputas em torno da pureza ritualística provocam inovações ritualísticas e discursivas A acusação que Matory faz a Gilroy em relação à África negligência dos processos internos da África na sua análise dos diálogos transatlânticos pode ser levantada portanto de certa maneira em relação àquilo que ele afirma sobre o Brasil As abordagens de Matory não buscam compreender os processos complexos e ambíguos de inclusão e exclusão do jogo identitário que fizeram inclusive surgir no Brasil outras categorias além do binômio negrobranco e nem se interessam pelo importante papel que a ideia de pureza nagô ganhou no combate a discriminações 103119 n 40 2012 p 40 110 perseguições policiais e criminalização do candomblé que como mostrou Dantas contou com a participação ativa de pesquisadores brasileiros Mercado religioso individualidades exacerbadas e conversões consecutivas Uma outra perspectiva concernente ao tema da africanidade e da pureza ritualística que contempla especialmente processos de transformação recentes no contexto da globalização oferecem os trabalhos de Alejandro Frigerio Esse antropólogo argentino aproximase do tema da reafricanização que ele relaciona diretamente com processos de dessincretização a partir das experiências religiosas pessoais mais exatamente a partir das experiências que envolvem as conversões individuais Frigerio desenvolveu um modelo tipológico que de acordo com ele se aplica a toda diáspora negra americana e que fornece outros subsídios interessantes para entendermos outras facetas das transformações que têm ocorrido no mundo do candomblé Diferentemente de outros pesquisadores esse antropólogo argentino diferencia não somente entre diáspora religiosa primária local onde as religiões de matriz africana teriam surgido em decorrência do tráfico negreiro p ex Salvador Havana e diáspora religiosa secundária aqueles lugares nos quais a difusão religiosa ocorreu por meio de migrações intra e intercontinentais p ex São Paulo Buenos Aires Nova Iorque mas também entre africanização e reafricanização Segundo esse pesquisador muitos adeptos sobretudo nas diásporas secundárias passam ao longo de suas vidas por processos de conversões sucessivas que Frigerio relaciona com aprendizagens cumulativas e com transformações identitárias A africanização seria a primeira fase de transição que aproxima uma pessoa que frequenta uma religião com características sincréticas p ex a umbanda no Brasil o espiritismo em Cuba de uma prática mais africana o candomblé no Brasil a santería em Cuba A reafricanização ocorreria segundo Frigerio quando um seguidor do candomblé santería começa a se sentir insatisfeito com os conhecimentos religiosos obtidos por tradição oral voltandose para a África com o objetivo de fortalecer ou reformar os 26 fundamentos teológicos e ritualísticos de sua religião cf FRIGERIO 2005 p 141 A leitura de estudos etnográficos sobre a cultura iorubana o aprendizado de conhecimentos básicos da língua ioruba eou viagens para a África visitas de lugares sagrados na Nigéria e no Benin a aquisição de objetos sagrados ou até de títulos honoríficos podem ser vistos como um esforço de compensar o sentido déficit de conhecimento mas ao mesmo tempo também como uma estratégia que visa aumentar o prestígio religioso pessoal e até burlar a autoridade das casas baianas que devido à sua longa história e tradição e portanto à sua força axé gozam de excepcional respeito Processos de reafricanização revelamse portanto frequentemente fontes de tensão não é incomum que lideranças religiosas da diáspora primária se sintam desafiadas por tais tendências e acusem os seus protagonistas de falta de fundamento religioso cf p ex as críticas documentadas por Gonçalves da Silva 1995 p 278 de Mãe Stella do Ilê Opô Afonjá a respeito das recorrentes viagens de líderes religiosos 27 brasileiros à África qualificadas por ela como modismo Frigerio procura ainda mostrar que a atuação sociorreligiosa da maioria dos sacerdotes não ligada a processos de africanização ou reafricanização restringese normalmente a um território bem delimitado frequentemente um determinado bairro de uma cidade Essa situação refletirseia inclusive nas representações da tradição religiosa Assim as narrativas reelaboradas no contexto da reafricanização que buscam uma ligação mais direta com a África e distanciamse portanto de discursos regionais e nacionais expressariam acima de tudo o desejo de certos sacerdotes de conquistar um reconhecimento sociorreligioso num plano supralocal para além do bairro onde seu terreiro está instalado Tal reinterpretação da tradição funcionaria portanto também como uma estratégia de transcender as disputas dos contextos locais 28 ibid p 148149 103119 n 40 2012 p 40 111 De acordo com essa visão fenômenos como a promoção de congressos internacionais p ex os Congressos Mundiais de Tradição e Cultura dos Orixás que ocorrem com certa regularidade desde 1981 e a formulação de manifestos contra o sincretismo podem ser entendidos também como uma tentativa de construir uma 29 religião mundial O modelo de Frigerio que dá destaque às experiências pessoais nas conversões religiosas baseiase implicitamente na premissa de que toda a diáspora é marcada por uma hegemonia da religiosidade cristã por valores ocidentais A análise do autor sugere que somente por meio de um longo processo de reeducação religiosa ressocialização descrito por Frigerio como um percurso unidirecional que se dá em duas etapas seria possível que os agentes sociais conseguissem distanciarse desse 30 quadro hegemônico ocidentalcristão De fato não é incomum que ocorram conversões sucessivas em direção à reafricanização tal como concebidas por Frigerio Ao mesmo tempo há também cada vez mais pessoas que circulam entre diversas religiões e entre diversos tipos de terreiros o que revela que as conversões não seguem sempre um esquema linear eou podem também acontecer em direção inversa àquela 31 desenhada pelo modelo de Frigerio Percebese portanto que a noção de africanidade aparece na obra de Frigerio mais como uma categoria descritiva com um conteúdo preestabelecido pelo pesquisador do que como uma categoria disputada como foi tratada já na análise de Dantas sobre pureza nagô ou ainda por reflexões recentes de Palmié 2008 que procuram incorporar também os debates teóricos provocados pela virada linguística O já mencionado sociólogo da religião Reginaldo Prandi examina o fenômeno da africanização acima de tudo no contexto de uma análise do mercado 32 religioso e de processos mais amplos de transformação social Para ele dominava durante muito tempo na sociedade brasileira e também no mundo religioso uma tendência ao embranquecimento Ele tenta mostrar que a umbanda que o pesquisador concebe como um resultado dessa força cultural vivenciou seu apogeu na época da ditadura militar No discurso de muitos praticantes e também no de diversas autoridades a umbanda foi apresentada como a verdadeira religião brasileira Já Renato Ortiz autor do livro emblemático A morte branca do feiticeiro negro 1978 entendia que o sincretismo afrocatólico presente no panteão religioso da umbanda revelaria uma atitude nacionalista que acredita e aposta na integração harmoniosa das raças Na sua argumentação Prandi dá destaque àquele contexto histórico em que a partir de meados do século XX diversos aspectos da cultura negra chegaram por meio de migrantes nordestinos ao Sudeste do país e atribui sobretudo a artistas baianos sua popularização no meio da classe média branca nessa região PRANDI 2004 p 224 De acordo com esse pesquisador foi a competição no mercado religioso o fator principal para que cada vez mais sacerdotes de umbanda começassem a voltarse às raízes africanas da sua religiosidade Esse momento caracteriza para Prandi o início de um lento processo de africanização que posteriormente levaria alguns 33 sacerdotes a implementar reformas no candomblé A situação atual das religiões afrobrasileiras é avaliada por Prandi no contexto de mudanças drásticas que atingem todas as religiões Num cenário em que a mídia ganha cada vez mais importância na divulgação de conteúdos religiosos escreve esse estudioso as religiões de matriz africana têm perdido terreno As pequenas comunidades raramente mais de 50 pessoas que possuem plena autonomia administrativa ritual e doutrinária e se entendem como famílias de santo teriam grande dificuldade para se proteger dos ataques agressivos das igrejas neopentecostais que apresentam diariamente em canais de televisão controlados por elas cenas de exorcização de entidades religiosas afrobrasileiras Exus 103119 n 40 2012 p 40 112 34 Pombagiras e procurariam dessa forma afastar as pessoas das religiões afro brasileiras e convertêlas ao neopentecostalismo Ao mesmo tempo Prandi acredita que o candomblé sobretudo na sua forma africanizada está mais bem preparado que a umbanda para o mundo contemporâneo Ele apresenta dois argumentos principais para defender seu ponto de vista 1 Numa fase histórica em que o catolicismo está em declínio a âncora sincrética católica pode estar pesando desfavoravelmente para os afrobrasileiros PRANDI 2003 p 19 2 Diferentemente da umbanda clássica cuja concepção cosmológica incorporou uma dicotomia entre o bem e o mal no candomblé articularseia mais claramente o pensamento africano que seria capaz de liberar o indivíduo num mundo despedaçado pelo consumo da razão da ciência e da tecnologia justamente porque não desenvolveu uma teologia moral PRANDI 1996a p 35 2004 p 228 Nesse sentido Prandi caracteriza o candomblé como uma religião aética uma religião voltada para o indivíduo que estaria em sintonia com uma sociedade hedonista narcisista e pós ética PRANDI 1991 p 186 Tal avaliação de Prandi se insere nas suas análises mais abrangentes sobre mudanças pelas quais passariam todas as religiões atualmente Para ele a religião perdeu a prerrogativa de explicar e justificar a vida já não consegue gerar coesão 35 social sua importância estaria passando pouco a pouco para o território do indivíduo De acordo com essa análise o capitalismo avançado já penetrou na lógica de organização das religiões que agora competem entre si pela adesão de clientes Nessa situação os adeptos assumiriam cada vez mais um comportamento consumista 36 em relação às suas experiências religiosas Nem todos os pesquisadores relacionam evidentemente as tendências de africanização com a abertura para a classe média branca e com uma atitude centrada no indivíduo como Prandi tende a fazêlo A antropóloga norteamericana Diana Brown p ex vê um nexo entre disseminação dos templos de candomblé no Sudeste processos de africanização diminuição de seguidores da umbanda e processos de polarização racial Por trás desses processos ela localiza um fortalecimento da consciência racial que remontaria aos anos 1970 quando o ativismo racial conseguiu se reorganizar estimulado pelo fim da ditadura e pela intensificação de contatos com outras diásporas negras Mesmo que Brown saliente tais mudanças estruturais ela lembra ao mesmo tempo que tanto o candomblé como a umbanda apresentam vastos repertórios simbólicos que podem ser interpretados e vivenciados de diversas formas Admite que a classe média branca possa ver no candomblé um aspecto desraizado da cultura brasileira nacional mas ao mesmo tempo é enfática em dizer que certamente para as populações pobres e negras o candomblé possui outros significados BROWN 1994 p XXIII Em oposição a Prandi recusase portanto a reduzir as transformações constatadas a uma única força social e reivindica que se leve em consideração também as diferentes perspectivas subjetivas dos agentes sociais Se as tendências de africanização no candomblé podem ser interpretadas como uma fonte de mobilização étnicoracial como argumenta Brown chama ao mesmo tempo a atenção o fato de que pessoas que se identificam com a militância negra simpatizam geralmente mais com os terreiros tradicionais de Salvador do que com aqueles que promovem reformas radicais de dessincretização A militância negra faz por vezes duras acusações aos reformistas radicais entre os quais há não poucos sacerdotes não negros as inovações ritualísticas teriam como objetivo fundamental a projeção de alguns sacerdotes terreiros em detrimento do respeito das casas tradicionais baianas os processos de intelectualização e elitização promovidos pela reafricanização contribuiriam para que o candomblé atraísse mais pessoas brancas e tenderiam a afastar os terreiros da luta política contra a discriminação racial 103119 n 40 2012 p 40 113 Palavras finais por uma pluralidade de perspectivas analíticas Sabemos que os processos reafricanização atingem ainda um número 37 relativamente pequeno de terreiros e pouco repercutiram na prática de culto na maioria das casas de candomblé Aparentemente a maioria dos sacerdotes que atuam no nível dos bairros se interessa pouco por tais reconstruções ritualísticas Na maioria dos terreiros de candomblé continua predominando uma prática ritualística que não se preocupa muito com reconstruções acadêmicas mas interpreta e aplica de forma contextual maleável e de preferência eficaz as sabedorias cosmológicas das quais se 38 tem conhecimento Nessa maneira de praticar as verdades religiosas associar ou fundir orixá com santo católico ou ainda iniciar pessoas de origens sociais eou étnicas diferentes não constitui nenhuma contradição Embora os sacerdotes que promovem uma política radical de dessincretização e reafricanização sejam como foi dito uma pequena minoria dentro do espectro das religiões de matriz africana no Brasil sabemos também que são eles que contribuem de forma fundamental para conferir ao candomblé uma maior 39 visibilidade na sociedade brasileira Seus contatos com a imprensa e com as universidades possibilitam levar as suas ideias sobre o candomblé e a luta contra a intolerância religiosa para além dos muros dos terreiros É porém difícil avaliar até que ponto o seu discurso sobre a tradição e sobre a relação entre o candomblé e a sociedade ao redor encontrará repercussão no meio das comunidades religiosas Estudos mais recentes têm mostrado que é possível encontrarmos por vezes visões bastante divergentes a respeito de importantes aspectos da crença e das práticas religiosas dentro de um único terreiro Assim ocorre que iniciados em casas que se dizem reafricanizadas não deixam de ser devotos de um determinado santo já outros continuam tendo apreço pelos caboclos Nem todos rompem com a Igreja Católica e não raramente atribuem características tipicamente cristãs às divindades 40 iorubanas e comparamnas com os santos católicos cf MELO 2004 p 147165 Se o orixá é visto e vivenciado como uma divindade africana pura ou se ele é associado de alguma forma também a um santo católico depende aparentemente não somente dos ensinamentos e da postura do líder religioso que iniciou o adepto mas também em boa medida das experiências particulares de vida de cada pessoa e especialmente das experiências pessoais com os outros mundos religiosos conversion careers cf RICHARDSON 1980 Diante dessa situação empírica multifacetada propomos portanto uma perspectiva analítica que procure construir pontes eou canais de comunicação entre as diferentes abordagens teóricas apresentadas aqui Procurei mostrar neste pequeno ensaio que as análises de Dantas Matory Frigerio e Prandi contribuem todas elas à sua maneira para uma melhor compreensão dos temas da pureza nagô da reafricanização e da dessincretização Nenhuma delas abarca ao mesmo tempo toda a complexidade das questões abordadas Se não ocultarmos os diferentes pontos de partida teóricometodológicos dos autores e procurarmos fazer na medida do possível as devidas mediações entre eles penso ser possível que tratemos as abordagens como complementares mais especificamente como níveis explicativos que podem se somar eou sobreporse Verdades etnográficas são verdades parciais partial truths afirma James Clifford no texto introdutório à famosa coletânea Writing Culture 1986 Não precisamos aderir a todas as premissas da perspectiva pósmoderna cliffordiana para consentirmos que não somente os lugares de fala mas também os diferentes enfoques e recortes privilegiados pelos agentes sociais marcam os discursos moldam olhares e abordagens eles são assumidos de forma mais ou menos consciente neles expressamse perspectivas socioculturais opções de ordem ideológica eou teórico metodológica etc 103119 n 40 2012 p 40 114 Na medida em que nossos quatro pesquisadores enfocam e elucidam aspectos diversos do fenômeno suas opções analíticas contribuem para ganharmos uma visão mais multifacetada da nossa questão e podem ser uma inspiração para buscarmos desenvolver perspectivais plurais Este ensaio procura portanto argumentar também que quando p ex um líder religioso busca dessincretizar as práticas ritualísticas essa pretendida reforma pode e deve ser lida a partir de mais de um enfoque A disputa interna por poder e alianças estratégicas na luta contra a discriminação Dantas a força da agência negra Matory trajetórias pessoais de experiência e conversão religiosa Frigerio como também a dinâmica do mercado religioso Prandi podem ser todos eles fatores que atuam sobre e moldam aquilo que os autores chamam de pureza ritualística e de processos de reafricanização Propor uma perspectiva analítica plural não quer dizer dar crédito igual a todos os discursos e a todos os significados atribuídos à realidade Não sugiro que se abra mão do rigor científico quando elaboramos nossas análises mas que admitamos que nenhuma perspectiva teóricometodológica consegue dar conta das mais diversas dimensões da vida sociocultural Penso que o tempo das teorias sistêmicas eou totalizantes definitivamente acabou e que temos de estar abertos para lidar com vários mundos analíticos respeitando a coerência interna de cada um deles paralelamente mesmo que estes possam apresentar tensões entre si Tal estratégia analítica nos auxilia ainda a aplicar uma das lições clássicas da Antropologia a de tentar operar com a diversidade de uma maneira que sirva para abrir nossos horizontes Isso não significa necessariamente que abdiquemos de nossas convicções políticas e de nossos valores mas que estejamos dispostos a expôlos a um encontro intenso com o outro e a revêlos a partir de tal experiência pelo bem de um entendimento menos dogmático e menos etnocêntrico da convivência humana 103119 n 40 2012 p 40 115 NOTAS 1 Se em 1980 as religiões afrobrasileiras constituíam 06 do espectro religioso em 2000 representaram somente 03 de todas as religiões no Brasil De acordo com essas estatísticas as religiões afrobrasileiras perderam entre 1980 e 2000 cerca de cem mil adeptos A maioria aparentemente converteuse a religiões neopentecostais cf PRANDI 2003 p 18 2 Se em 1991 107 mil pessoas se diziam adeptas do candomblé em 2000 foram 140 mil o que significa um aumento de mais de 30 no mesmo período a umbanda perdeu 20 dos seus adeptos No ano de 1991 os candomblecistas constituíam 165 dos adeptos das religiões afrobrasileiras já em 2000 atingiram 244 nessa categoria de religiões PRANDI 2003 p 21 Chama também a atenção o fato de que no Nordeste berço tradicional do candomblé há relativamente menos pessoas que se identificam com as religiões de matriz africana do que no Sul e no Sudeste do país Um levantamento recente 2009 indicou Porto Alegre como aquela capital que apresenta a porcentagem mais alta 217 de adeptos enquanto Salvador ocupa somente o quarto lugar aqui 033 da população se diz seguidora de religiões afrobrasileiras 3 Em alguns terreiros as vestimentas tradicionais do candomblé são trocadas por roupas tidas como mais africanas 4 Há também entre os reformistas uma grande preocupação em redescobrir mitos Para alguns o estudo do sistema oracular de Ifá é fundamental para restaurar um fundamento teológico sólido que no contexto diaspórico marcado pelo regime escravista teria sido em parte perdido Ao mesmo tempo percebese que os ritmos e toques não são geralmente atingidos pelas reformas uma vez que se entende que os elementos musicais não sofreram alterações ao longo dos tempos 5 É comum que os mentores de processos de reafricanização se dediquem à leitura de estudos etnográficos mantenham contatos com universidades escrevam por vezes sobre a sua religião Alguns entre eles entendemse também como pesquisadores Africanizar é sempre intelectualizar afirma Prandi 1991 p 118 6 Parés mostra ainda que muitos termos que se referem a práticas ritualísticas fundamentais de todas as casas de candomblé independentemente da nação à qual pertencem têm uma raiz etimológica jeje p ex os atabaques sagrados rum rumpi lé o quarto de reclusão dos iniciados runcó o altar sagrado peji etc PARÉS 2006 p 144146 Somente no final do século XVIII chegaram grandes contingentes de escravos iorubas à Bahia e teria sido nesse contexto que os jeje perderam aos poucos visibilidade e suas tradições culturais foram de certa maneira incorporadas pelos iorubas 7 Para Capone a noção de princípio de corte abriu o caminho para posteriores conceituações de purificação e de legitimação das tradições ou seja para processos que seriam chamados de reafricanização CAPONE 2008 p 278 8 Bastide não foi evidentemente o único nem o primeiro pesquisador que buscou definir a pureza ritual Além disso devemos lembrar ainda as críticas de Matory que atribui a notável propagação da religião dos orixás inclusive a criação da chamada pureza nagô em primeiro lugar à agência de um movimento iorubano transnacional que recebeu fortes influências dos negros retornados ou seja daqueles exescravos que foram levados pelos britânicos a Serra Leoa cf abaixo 9 Para conseguir um empréstimo ou cobrir uma dívida era comum entre os iorubas dar um parente por exemplo um filho ou a si próprio como penhor Esta pessoa prestaria serviços para o credor por um tempo determinado até que a dívida estivesse quitada Sobre a escravidão entre os iorubas cf Hofbauer 2006 p 297305 10 Estudos mais recentes relacionaram a prática de sacrifícios humanos entre os iorubas com as estruturas aristocráticas a militarização da sociedade o fenômeno da escravidão e inclusive com a religião dos orixás para um aprofundamento desta questão cf OJO 2005 11 Numa resenha recente do livro Black Atlantic Religion de L Matory Fry resume o que seria de acordo com ele o objetivo central do texto de Dantas da seguinte maneira mostrar como a pureza africana varia de lugar para lugar e que a força das casas mais tradicionais de Salvador tem muito a ver com a sua estreita associação com antropólogos e membros da elite econômica e política FRY 2008 p 212 12 No artigo Repensando a pureza nagô Dantas 1982 p 17 tinha formulado essa questão da seguinte maneira Assim como a etnicidade a pureza é uma retórica que tem muito a ver com a estrutura de poder da sociedade Mary Douglas tem mostrado como a ideia de pureza é muitas vezes empregada como uma analogia para expressar a ordem social e como os pares de classificação puromisturado puroimpuro limposujo ordemdesordem se articulam com a ideia de poder formal e nessa articulação os misturados os impuros constituem perigo ameaça à estrutura formal de poder porque dotados de outros poderes DOUGLAS 1976 13 É sabido que Nina Rodrigues e A Ramos ocuparam o cargo de ogã no Gantois e E Carneiro foi convidado a assumir o mesmo cargo religioso no Ilê Axé Opô Afonjá 14 Lembrando o contexto discriminatório com que os terreiros tinham de conviver em 1890 ie dois anos após a abolição o Código Penal art 157 passou a criminalizar práticas de curandeiros feiticeiros espiritistas e cartomantes Dantas chama a atenção para o fato que já Nina Rodrigues expressava sua admiração para com o estado de admirável pureza das sobrevivências morais africanas detectadas nos terreiros jejesnagôs e usava tal avaliação como argumento para combater a perseguição policial Se do ponto de vista teológico católico as práticas religiosas dos nossos negros podem ser capituladas de um erro escreve absolutamente elas não são um crime e não justificam as agressões brutais da polícia de que são vítimas RODRIGUES 1977 p 246 15 O antropólogo norteamericano Pierson que desenvolvia nessa época uma pesquisa na Bahia chegou a defender a ideia de que uma das principais preocupações da recém criada União das Seitas AfroBrasileiras da Bahia como o Conselho Africano da Bahia devia ser chamado depois da primeira reunião deveria ser a eliminação das práticas não ortodoxas apud BRAGA 1995 p 174 De forma muito parecida E Carneiro tampouco achava palavras elogiosas para os cultos bantos A suposta pobreza cultural dos rituais incentivaria abusos e comportamentos recrimináveis Comentando a degradação progressiva dos candomblés de caboclo Carneiro faz a seguinte afirmação Faltalhes a complexidade dos candomblés de nagô ou de africano isto é jejesnagôs A extrema simplicidade ao ritual possibilita o mais largo charlatanismo apud DANTAS 1988 p 187 E ainda Vários destes pais jamais sofreram o processo de feitura de santo São pais sem treino espontâneos distantes da orgânica tradição africana os clandestinos do desprezo nagô São esses pais que mais têm concorrido para a desmoralização dos candomblés entregandose à prática do curandeirismo e da feitiçaria por dinheiro apud DANTAS 1988 p 188 16 Numa carta 1571937 dirigida a Artur Ramos Edson Carneiro um dos idealizadores do segundo Congresso explicita os objetivos políticos desse novo órgão Estou organizando um Conselho Africano da Bahia que ficará encarregado de dirigir a religião negra tirando à polícia essas attribuições Vamos mandar um memorial ao govêrno sic pedindo a liberdade de religião não só esse Conselho onde haverá representantes de todos os candomblés apud BRAGA 1995 p 165 E no primeiro item de um memorial dirigido ao governador da Bahia julho de 1937 E Carneiro fazia questão de reivindicar para o candomblé o status de religião e com isso todos os direitos constitucionais que asseguravam a prática livre do culto religioso Cada povo tem a sua religião a sua maneira especial de adorar a Deus e é o candomblé a organização religiosa dos Negros e dos Homens de Cor da Bahia descendentes dos Negros escravos que lhes deixaram como herança intelectual as várias seitas africanas em que se subdividem as formas religiosas trazidas da África apud BRAGA 1995 p 166 17 So why call such cultural reproduction memory a term that hides rather than highlights the unending struggle over the meaning and usage of gestures monuments words and memories It implies the organic unity of the collective rememberer 103119 n 40 2012 p 40 116 anthropomorphizing society rather than highlighting the heterogeneity strategic conflicts and unequal resources of the rival agents that make up social life MATORY 2009 p 163 18 Matory reconhece semelhanças entre a sua metáfora de diálogo e aquela de Bakhtin mas critica ao mesmo tempo que a metáfora analítica proposta por Bakhtin implica que todos os agentes e todas as culturas mencionadas tenham a mesmo poder equally powerful na produção da cultura local ou regional MATORY 2009 p 169 Ele ao contrário faz questão de mostrar que na construção da todas as culturas afroatlânticas da atualidade os negros anglófonos tiveram uma influência desproporcional e que embora os diálogos transatlânticos tenham atravessado fronteiras territoriais não deixaram de ser também moldados por Estados nações e impérios ibid p 170 The dialogue metaphor is not intended to posit equality of influence or power among the interlocutors just their continuous and meaningful presence in one anothers cultural history and selfconstruction Indeed the two Englishspeaking imperial powers have furnished the means for certain black interlocutores to speak far louder than others ibid p 183 19 Da mesma forma como a perspectiva do Atlântico Negro Gilroy a metáfora do diálogo afroatlântico visaria de acordo com Matory destacar a mobilidade e o agenciamento de negros largamente negligenciados nas análises na criação desse mundo além de enfatizar o papel específico da consciência negra na construção criativa e histórica da distintividade negra MATORY 2009 p 186 20 Antes da fundação da cidade de Freetown em 1787 concebida para receber libertos não existia um termo específico para designar aqueles africanos que hoje são chamados de iorubas 21 Assim Samuel Ajayi Crother primeiro bispo africano da Igreja Anglicana escreve não somente um dicionário da língua ioruba 1843 e uma gramática ioruba 1852 mas edita também juntamente com Samuel Johnson uma tradução da Bíblia 22 Uma outra personagem importante foi Felisberto Sowzer que atuava como babalaô era também maçom e se orgulhava de seus hábitos britânicos Outra ainda foi Lourenço Cardoso comerciante de Lagos que trabalhava como professor de inglês em Salvador e ajudou Nina Rodrigues a traduzir textos escritos em ioruba Teria sido ele quem chamou a atenção do eminente pesquisador para a importância do livro The Yorubaspeaking peoples of the slave coast of West Africa de A B Ellis 1894 23 Outro antropólogo que critica essa visão atribuída a Dantas é Ordep Serra Para ele preocupações com a ortodoxia a pureza ritual a fidelidade às origens não são invenções de intelectuais mas fazem há muito tempo parte do mundo do candomblé SERRA 1995 p 112115 Serra é enfático em afirmar que os diversos terreiros na Bahia jeje ketu ijexá congo e angola se definem como de nação africana a expressão é do povodesanto ibid p 173 Para ele a análise de Dantas tende a exagerar a importância e o prestígio social dos antropólogos ibid p 52 Escreve o antropólogo bahiano O estudo da interação entre o povodesanto dos terreiros nagôs e os intelectuais na Bahia ainda está por ser feito acho que para realizálo é indispensável a superação de alguns pressupostos ingênuos como o da prevalência necessária dos estudiosos como elaboradores de uma ideologia que fundamenta justifica sistematiza uma visão etnocêntrica e a impõe dessa nova forma ao povo dos terreiros para o manipular em seguida em proveito dos setores dominantes da sociedade Pareceme descabido imaginar que essa interação foi uniforme e unilateralmente diretiva ibid p 54 24 Fry faz questão de chamar a atenção para o fato de que nunca tinha ouvido o termo eurobrasileiro no Brasil Não é uma categoria nativa no Brasil 25 Na parte final da resenha Fry analisa a maneira como Matory explica o surgimento do chamado matriarcado cultural no candomblé De acordo com Fry Matory atribui a crescente predominância de mulheres fundamentalmente à interpretação de R Landes que teria projetado sua própria visão norteamericana de matriarcado primitivo Matory no mundo do candomblé Fry expõe aqui a contradição que ele percebe na argumentação de Matory No que diz respeito à consolidação da autenticidade africana Matory faz questão de negar a importância de uma elite de pesquisadores brasileiros ao mesmo tempo relaciona a vitória da ideia do matriarcado cultural com o agenciamento de uma única pesquisadora norteamericana e de seus colegas feministas internacionais FRY 2008 p 213 26 Africanização é mais adequado para definir a passagem da prática de uma variante mais sincrética como a umbanda no Cone Sul ou o espiritismo em Cuba Porto Rico ou nos EUA para uma prática mais africana como o candomblé o batuque ou a santería Reafricanização é um processo sofrido por pessoas já praticantes do candomblé do batuque ou da santería ou outros cultos compatíveis como tambor de mina ou xangô que insatisfeitas como o conhecimento religioso que receberam viramse para a África de hoje especialmente para a região dos iorubás como fonte verdadeira de conhecimento teológico e ritual FRIGERIO 2005 p 141 27 Para Silva 1999 a reafricanização pode assumir duas formas diferentes em alguns casos escreve o antropólogo paulistano é sinônimo de descatolização retirada de práticas católicas do candomblé e em outros é sobretudo além da descatolização uma radicalização da nagocracia em direção a uma desbantualização incluindo uma descaboclização isto é uma retirada do panteão das entidades bantos e dos caboclos Prevalece aqui uma iorubanização seja nos moldes brasileiros ou nos africanos SILVA 1999 p 156 Esse antropólogo mostra com diversos exemplos que processos de reafricanização não foram no Brasil durante muito tempo incompatíveis com o fenômeno do sincretismo 28 Segundo R Prandi sociólogo de religião tendências que almejam dessincretização e reafricanização estão sempre relacionadas com processos de intelectualização cf PRANDI 1999 p 106 Outros pesquisadores cf SILVA AMARAL 1993 p 120 têm chamado a atenção para o fato de que entre os defensores da reafricanização encontramse muitas pessoas de cor de pele mais clara 29 Os próprios organizadores dos Oriṣa World Congresses encabeçados por intelectuais e sacerdotes iorubanos nigerianos assumem ter como objetivo a criação de um fundamento teológico sólido em torno da rica tradição oracular de Ifá que permita estabelecer a religião dos orixás como uma das grandes religiões mundiais cf CAPONE 1999 2004 2011 PALMIÉ 2005 30 Sabemos também que em épocas mais remotas o enaltecimento da africanidade não acarretou necessariamente um afastamento ou até rompimento de crenças associadas ao catolicismo o que põe em xeque a relação um tanto mecanicista que Frigerio estabelece entre reafricanização e dessincretização Assim Martiniano do Bonfim p ex responsável por reformas ritualísticas no Opô Afonjá que introduziram elementos africanos que ele tinha conhecido em Lagos frequentava regularmente sua igreja São Jorge e não tinha dúvida em relação à sua fé católica 31 Não aprofundarei aqui a ideia da conversão em si que tem gerado recentemente um debate teórico no qual Frigerio se posiciona contra certo mainstream nas pesquisas desenvolvidas no Brasil Ao proporem novos conceitos como passagens múltiplos pertencimentos identidades religiosas porosas estudiosos brasileiros como Birman 1996 Negrão 1997 Sanchis 1994 2001 e outros têm questionado até que ponto a noção da conversão consegue explicar a dinâmica que envolveria a vivência religiosa atual no Brasil já Frigerio 2007 defende a validade do conceito de conversão inclusive para o contexto brasileiro critica a compreensão que esses especialistas têm da conversão e relaciona a rejeição do termo com uma tradição intelectual local que caracteriza a cultura sociedade brasileira como essencialmente relacional conciliatória e aberta a misturas e fusões 32 Prandi diferencia entre diferentes fases históricas 1 o momento da sincretização com o catolicismo que levou à formação do candomblé do xangô do tambor de mina e do batuque 2 os anos 1920 e 1930 caracterizados como momento do 103119 n 40 2012 p 40 117 branqueamento que fez surgir a umbanda 3 a fase da africanização a partir dos anos 1960 que nega o sincretismo e busca transformar o candomblé numa religião universal sem barreiras de cor ou origem racial PRANDI 1999 p 93 33 Paralelamente à abertura do candomblé para outras camadas sociais Prandi entende que a partir da década de 1960 o candomblé não pode ser mais considerado uma religião étnica 1996a p 72 esse sociólogo constata que se iniciou um processo de africanização das práticas ritualísticas que envolveria alguns terreiros de candomblé 34 Desde o início da intervenção europeia na África Ocidental a divindade Exu princípio da dinâmica e da sexualidade representado frequentemente como um falo ereto foi associada pelos colonizadores com o diabo A Pombagira pode ser entendida como um Exu feminino que se manifesta em rituais da umbanda 35 Para Prandi a velha religião fonte de transcendência para a sociedade como um todo foi estilhaçada e o novo tipo de religiosidade que estaria se impondo seria uma religião voltada para causas localizadas e reparos específicos PRANDI 1996b p 67 77 36 Para Prandi o fato de que as pessoas passam hoje frequentemente de uma religião para outra seria uma expressão dessa atitude individualista e consumista De acordo com esse pesquisador na década de 1990 uma entre dez pessoas na Grande São Paulo mudava a sua religião num prazo de um ano PRANDI 1996b p 6870 7677 Poucas décadas atrás conversões consecutivas desse tipo eram raras e podiam provocar conflitos intrafamiliares e rupturas na vida da pessoa Prandi mostra que motivações pragmáticas a busca de soluções para problemas individuais para conversões são hoje relativamente bem aceitas uma vez que pertencer a uma religião é tido como uma questão de escolha pessoal PRANDI 2003 p 27 Nem todo mundo concorda evidentemente com essa visão sociológica clássica que projeta um processo de contínua secularização Enquanto alguns pesquisadores defendem de fato a ideia de que estamos assistindo no mundo contemporâneo a um reflorescimento do fenômeno religioso outros especialistas já são mais cautelosos e procuram fazer uma diferenciação Assim Peter Berger p ex afirma que a modernidade não é necessariamente secularizante mas sim necessariamente pluralizante Ela se destacaria não pela ausência de Deus mas pela presença de uma multiplicidade de divindades Berger admite que o pluralismo religioso não é evidentemente um fenômeno totalmente novo mas o seu escopo e a sua intensidade não teriam nenhum precedente na história Seria essa nova qualidade de pluralismo que constitui de fato um desafio para todas as religiões BERGER 2008 p 12 37 Segundo Lépine o processo de reafricanização em São Paulo foi iniciado sobretudo por uma elite de sacerdotes brancos Entre eles há um ou outro que combina a sua atividade de líder religioso com aquela de pesquisador do candomblé De acordo com Lépine a reafricanização do candomblé de São Paulo envolve não mais do que uma dúzia de terreiros LÉPINE 2005 p 128133 38 Eficácia ritualística sempre foi e continua sendo a essência desse tipo de religiosidade é outro argumento articulado recentemente por Max Bondi que busca deslocar a reflexão e a análise sobre a africanidade no candomblé para um outro foco baseandose nas reflexões de M Goldman 2005 e inspirandose em Latour propõe uma abordagem praxeológica que tem como objetivo como o pesquisador afirma move beyond the very question of the construction or invention of Africa within Candomblé then perhaps we can begin to really understand what role and question of Africa is BONDI 2009 p 3 A África não seria usada nos candomblés simplesmente como uma representação mas muito mais como algo que é fundamental para a performance ritualística que é tão central no candomblé escreve Bondi ibid p 12 39 Prandi tem argumentado que o processo de reafricanização implica sempre um processo de intelectualização p ex PRANDI 1991 p 118 Chama a atenção o fato de que no Censo de 2000 o candomblé aparece como a religião cujos adeptos têm o segundo maior nível escolar Esse resultado aponta para uma participação expressiva de pessoas com diplomas universitários já que é sabido que a maioria dos adeptos continua a ser de camadas sociais baixas 40 Um estudo de Consorte 1999 p 84 feito quinze anos depois da proclamação de um manifesto contra o sincretismo assinado por cinco das mais respeitadas ialorixás de Salvador na ocasião da Segunda Conferência Mundial da Tradição Orixá e Cultura 1983 revelou que com exceção do Ilê Axé Opô Afonjá liderado por Mãe Stella as práticas ritualísticas nos terreiros das articuladoras do manifesto não sofreram alterações relevantes isto é não houve reforma E mesmo Mãe Stella teve de se confrontar com certa resistência dentro de casa sobretudo da parte dos mais velhos que não queriam por exemplo abrir mão da tradicional missa que acompanhava habitualmente o axexê REFERÊNCIAS BASTIDE Roger As religiões africanas no Brasil São Paulo Livraria Pioneira 1985 BERGER Peter Secularization falsified First things n 180 17 2008 BIRMAN Patrícia Feitiço carrego e olho grande os males do Brasil são estudo de um centro umbandista numa favela do Rio de Janeiro Dissertação de Mestrado Museu Nacional Rio de Janeiro 1980 BIRMAN Patrícia Cultos de possessão e pentecostalismo no Brasil passagens Religião e Sociedade 17 12 90109 1996 BRAGA Júlio Na gamela do feitiço repressão e resistência nos candomblés da Bahia Salvador EDUFBA 1995 BONDI Max Things of Africa Rethinking Candomblé in Brazil Working Paper n 22009 UCL Department of Anthropology 121 London 2009 BROWN Diana Umbanda religion and politics in urban Brazil New York Columbia University Press 1994 BOURDIEU Pierre Esquisse dune théorie de la pratique précédé de trois études dethnologie kabyle Genebra Librairie Droz 1972 BOURDIEU Pierre A economia das trocas simbólicas São Paulo Perspectiva 1974 CAMPOS Vera Felicidade de Almeida Mãe Stella de Oxóssi Perfil de uma liderança religiosa Rio de Janeiro Zahar 2003 CAPONE Stefania Uma religião para o futuro a rede transnacional dos cultos afroamericanos Estudos afroasiáticos v 36 5772 dez 1999 CAPONE Stefania A busca da África no candomblé tradição e poder no Brasil Rio de Janeiro Pallas Contracapa 2004 CAPONE Stefania Dialogue Roger Bastide and the African American Religions In PALMIÉ Stephan Org Africa of the Americas Beyond the Search for Origins in the Study of AfroAtlantic Religions Boston Brill 2008 CAPONE Stefania Os yoruba do Novo Mundo Religião etnicidade e nacionalismo negro nos Estados Unidos Rio de Janeiro Pallas 2011 CLIFFORD James Introduction Partial truths In CLIFFORD James e MARCUS George E Org Writing culture London University of California Press 126 1986 103119 n 40 2012 p 40 118 CONSORTE Josildeth Gomes Em torno de um manifesto de ialorixás baianas contra o sincretismo In CAROSO Carlos BACELAR Jeferson Org Faces da tradição afrobrasileira Rio de Janeiro Pallas 1999 p 7191 DANTAS Beatriz Góis Repensando a pureza nagô Religião e sociedade n 8 1520 jul 1982 DANTAS Beatriz Góis Vovó nagô e papai branco Rio de Janeiro Graal 1988 DOUGLAS Mary Purity and danger New York Frederick Praeger 1966 FRIGERIO Alejandro Reafricanização em diásporas religiosas secundárias a construção de uma religião mundial Religião e Sociedade v 25 n 2 136160 2005 FRIGERIO Alejandro Analyzing conversion infrom Latin America Theoretical questions methodological dilemmas and comparative data from Brazil and Argentina In STEINGENGA Timothy CLEARY Edward Org Conversion of a continent contemporary religious change in Latin America New Jersey Rutgers University Press 3351 2007 FRY Peter Black Atlantic Religion Tradition Transnationalism and Matriarchy in the AfroBrazilian Candomblé resenha LusoBrazilian Review v 45 n 2 211214 2008 FRY Peter Usos e abusos da África no Brasil Prefácio In DANTAS Beatriz Góis Vovó nagô e papai branco Rio de Janeiro Graal 1988 GILROY Paul O Atlântico negro Modernidade e dupla consciência São Paulo Editora 34 2001 GOLDMAN Márcio Formas de saber e modos do ser multiplicidade e ontologia no candomblé Religião e Sociedade v 25 n 2 102120 2005 HOFBAUER Andreas Uma história de branqueamento ou o negro em questão São Paulo Unesp 2006 LÉPINE Claude Mudanças no candomblé Religião e Sociedade v 25 n 2 121135 2005 MATORY J Lorand Yorubá as rotas e as raízes da nação transatlântica 18301950 Horizontes antropológicos v 4 n 9 263292 1998 MATORY J Lorand Black Atlantic religion Tradition Transnationalism and Matriarchy in the AfroBrazilian candomblé Princeton Princeton University Press 2005 MATORY J Lorand The New World Surrounds an Ocean Theorizing the Live Dialogue between African and African American Cultures In YELVINGTON Kevin A Org AfroAtlantic Dialogues Anthropology in the Diaspora Santa Fe School of American Research Press 2009 MELO Aislan Vieira de A voz dos fiéis no candomblé reafricanizado de São Paulo Dissertação de Mestrado Marília UNESP 2004 NEGRÃO Lísias Nogueira Refazendo antigas e urdindo novas tramas trajetórias do sagrado Religião e Sociedade 18 2 6374 1997 OJO Olatunji Slavery and human sacrifice in Yorubaland Ondo c 187094 Journal of African History 46 379404 2005 ORTIZ Renato A morte branca do feiticeiro negro Petrópolis Vozes 1978 PALMIÉ Stephan Introduction On Predications of Africanity In PALMIÉ Stephan Org Africa of the Americas Beyond the Search for Origins in the Study of AfroAtlantic Religions Boston Brill 2008 PALMIÉ Stephan The cultural work of Yoruba Globalization In FALOLA Toyin Org Christianity and social change in Africa Durham Carolina Academic Press 4381 2005 PARÉS Luis Nicolau A formação do candomblé Campinas Editora da UNICAMP 2006 PRANDI Reginaldo Os candomblés de São Paulo São Paulo Hucitec 1991 PRANDI Reginaldo Herdeiras do axé São Paulo Hucitec 1996a PRANDI Reginaldo Religião paga conversão e serviço Novos Estudos n 45 6577 1996b PRANDI Reginaldo Referências sociais das religiões afrobrasileiras sincretismo branqueamento africanização In CAROSO Carlos BACELAR Jeferson Org Faces da tradição afrobrasileira Rio de Janeiro Pallas 93111 1999 PRANDI Reginaldo As religiões afrobrasileiras e seus seguidores Civitas 3 1 1533 2003 PRANDI Reginaldo O Brasil com axé candomblé e umbanda no mercado religioso Estudos Avançados 18 52 223238 2004 PRANDI Reginaldo SILVA Vagner G Axé São Paulo In MOURA Marcondes Org Meu sinal está no teu corpo escritos sobre a religião dos orixás São Paulo Edicon Edusp 1989 RICHARDSON James Conversion careers Society 17 4750 1980 RODRIGUES Raimundo Nina Os africanos no Brasil São Paulo Nacional 1977 SAHLINS Marshall Historical metaphors and mythical realities structure in the early history of the Sandwich Islands Kingdom Ann Arbor University of Michigan Press 1981 SANCHIS Pierre O repto pentecostal à cultura católicobrasileira In ANTONIAZZI Alberto Org Nem anjos nem demônios interpretações sociológicas do pentecostalismo Petrópolis Vozes 1994 SANCHIS Pierre Religiões religião Alguns problemas do sincretismo religioso no campo religioso brasileiro In SANCHIS Pierre Org Fiéis e cidadãos percursos de sincretismo no Brasil Rio de Janeiro Uerj 2001 SERRA Ordep Águas do rei Petrópolis Rio de Janeiro Vozes Koinonia 1995 SILVA Vagner Gonçalves da Orixás na metrópole Petrópolis RJ Vozes 1995 SILVA Vagner Gonçalves da Reafricanização e sincretismo Interpretações acadêmicas e experiências religiosas In CAROSO Carlos BACELAR Jeferson Org Faces da tradição afrobrasileira Rio de Janeiro Pallas 1999 SILVA Vagner Gonçalves AMARAL Rita de Cássia A cor do axé brancos e negros no candomblé de São Paulo Estudos AfroAsiáticos 25 99124 1993 103119 n 40 2012 p 40 119 120 vivência 40 REVISTA DE ANTROPOLOGIA
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103119 n 40 2012 p artigos papers RESUMO Esses termos expressam tendências no mundo do candomblé que surgiram devido a alterações da tradição intencionalmente introduzidas O artigo debate quatro interpretações importantes desse fenômeno e busca identificar convergências e divergências entre elas a perspectiva construtivista de Beatriz Góis Dantas inovou o debate na década de 1980 na medida em que relacionou entre outras coisas autenticidade com a luta por reconhecimento e contra discriminação Lorand Matory criticaria Dantas a partir da perspectiva do Atlântico Negro e reivindicaria a inclusão do agenciamento negro transnacional na análise da construção da pureza nagô Alejandro Frigerio enfatiza na questão da reafricanização e dessincretização no plano dos processos de conversão individuais enquanto Reginaldo Prandi examina as recentes transformações no contexto de uma análise do mercado religioso Buscando uma compreensão multifacetada do fenômeno o artigo termina propondo a elaboração de uma perspectiva analítica plural que integre os méritos de cada uma das quatro abordagens Palavraschave religião de matriz africana identidade e etnicidade teoria antropológica ABSTRACT These terms stand for tendencies in the candomblé world which occurred as a consequence of intentionally introduced alterations of tradition This article discusses four important interpretations of this phenomenon and tries to identify convergences and divergences between them the constructivist approach of Beatriz Góis Dantas renewed the academic discussion in the 1980ies insofar as she related amongst others authenticity to the struggle for recognition and against discrimination Lorand Matory should critize Dantas from a Black Atlantic perspective and pleads for the inclusion of transnational black agency in the analysis of the construction of nago purity Alejandro Frigerio emphasizes in his studies of reafricanization and anti syncretism the aspect of individual conversion processes while Reginaldo Prandi examines the recent transformations in the context of an analysis of the religious market Searching for a multifaceted comprehension of the phenomenon the article concludes by proposing the elaboration of a plural analytic perspective capable of integrating the merits of each of the four approaches Keywords Black religion identity and ethnicity anthropological theory 40 103 Andreas Hofbauer Doutor em Antropologia Social pela USP atualmente é professor assistente doutor da UNESPMarília Email andreashofbaueruolcombr Pureza nagô reafricanização dessincretização Nago Purity reafricanization and antisyncretism 103119 n 40 2012 p 40 104 Situando a questão Os três conceitos que compõem o título deste pequeno ensaio dizem respeito a processos de afirmação de diferença cultural Não representam nenhuma novidade no mundo das religiões afrobrasileiras no entanto recentemente ganharam relevo Pureza nagô reafricanização e dessincretização não descrevem exatamente o mesmo fenômeno mas quero argumentar aqui que eles apontam numa mesma direção tratase sempre de uma valorização mais ou menos consciente de uma determinada tradição de uma ideia de África e de autenticidade cultural em delimitação a outras tradições religiosas Segundo estatísticas oficiais houve nas últimas décadas um recuo 1 significativo do número de praticantes de religiões de matriz africana Nesse contexto é importante lembrar que muitos adeptos do candomblé e da umbanda evitam por causa das frequentes hostilidades e discriminações admitir sua relação com essas religiões preferindo declararemse católicos Quando se examina mais detidamente os dados estatísticos percebese uma diferenciação interessante foi a umbanda a religião afro brasileira que mais perdeu adeptos enquanto o número dos candomblecistas 2 aumentou consideravelmente E o que chama mais a atenção nessas análises quantitativas é o fato de que dentro do espectro do candomblé são os terreiros que se dizem reafricanizados que mais têm crescido nos últimos tempos Dados quantitativos como esses dãonos evidentemente apenas uma visão distanciada do nosso tema seria necessário p ex problematizar a fronteira entre candomblé e umbanda uma vez que como diversos estudiosos já mostraram o mundo das religiões afrobrasileiras se apresenta como um continuum dentro do qual diversas formas de transição e de sobreposição podem ser observadas O que está no cerne das tendências de africanização De que maneira os terreiros reafricanizados se diferenciam de outros Para responder a tais questões quero num primeiro momento caracterizar alguns elementos das práticas ritualísticas que geralmente são associadas à reafricanização para num segundo momento analisar quatro perspectivas analíticas diferentes e dessa forma procurar aprofundar a compreensão desse fenômeno Como característica fundamental podemos mencionar a busca de dissociar o simbolismo ritualístico do candomblé de qualquer influência católica Combatese sobretudo aquela concepção que associa e mescla divindades africanas com santos católicos Argumentase não raramente como p ex no chamado manifesto contra o sincretismo assinado por cinco importantes ialorixás de Salvador na ocasião da Segunda Conferência Mundial da Tradição Orixá e Cultura em 1983 que o sincretismo era uma estratégia de sobrevivência válida enquanto vigorava o sistema de escravidão mas não se justifica mais na contemporaneidade Constatase que os processos históricos contribuíram para distorcer o caráter verdadeiro da religião africana e entendese que é necessário restaurar a pureza original para devolver ao culto dos orixás a dignidade que perdeu parcialmente durante a escravidão cf CAMPOS 2003 p 4448 cf CONSORTE 1999 p 90 Tais convicções motivam diversos sacerdotes não apenas a retirar dos terreiros as imagens de santos Também o costume de levar oa recéminiciadoa iaô a uma igreja para assistir à missa antes do axexê é agora criticado Algumas casas promovem toques de despedida em que os caboclos até então cultuados são expulsos uma vez que se entende que os caboclos enquanto espíritos ancestrais indígenas constituem um elemento estranho à verdadeira tradição africana cf 3 PRANDI SILVA 1989 p 238 Ocorre porém que não todos os iniciados acompanham as mudanças introduzidas pelos sacerdotes na sua íntegra Há quem não queira abrir mão das tradicionais missas do sétimo dia e há aqueles que não abandonam sua relação ritualística com o caboclo eou com o preto velho Tal realidade revela que nem sempre as reformas conseguem ter o respaldo de toda a comunidade 103119 n 40 2012 p 40 105 terreiro Pode haver resistências geralmente dissimuladas Existem situações em que um ou outro filho de santo continua sendo devoto de um determinado santo ou caboclo sem que o líder religioso tome conhecimento disso Outra preocupação importante das ialorixás e dos babalorixás diz respeito à língua ritualística Muitos se incomodam com o fato de que não entendem as letras das 4 cantigas entoadas durante as cerimônias Desde a década de 1960 diversos sacerdotes frequentam cursos de língua ioruba que num primeiro momento foram organizados não raramente por instituições universitárias Tendo adquirido um conhecimento linguístico básico os sacerdotes sentemse motivados e autorizados a corrigir as cantigas dos orixás Na busca do conhecimento religioso verdadeiro diversos líderes religiosos sobretudo no Sudeste do país procuram ter um contato direto com a África há aqueles que fazem viagens para lugares sagrados na Nigéria e no Benin de onde trazem às 5 vezes objetos sagrados ou até um título honorífico religioso Outro elemento de reforma que pode ser encontrado em vários terreiros são cerimônias de batismo e de casamento Tratase de rituais recentemente inventados que têm como objetivo como admitem diversos líderes oferecer aos adeptos a possibilidade de adquirir no candomblé os mesmos sacramentos que costumavam receber nas igrejas cristãs Pedaço da África transplantado Quero agora aprofundar a discussão acadêmica em torno do tema pureza nagô reafricanização e dessincretização Buscarei apontar os lados fortes e fracos como também certos pontos cegos de cada uma das análises para dessa forma propor uma estratégia analítica plural capaz de integrar diversas perspectivas válidas de abordagem dessa questão complexa As primeiras duas análises concentramse mais nas raízes históricas outras duas abordam acima de tudo a situação atual Quando avaliamos a partir de estudos recentes a história do candomblé podemos perceber uma pluralidade de influências culturais trocas sobreposições continuidades e também descontinuidades Ao lado das irmandades negras destaca se sobretudo a força culturalreligiosa dos calundus rituais religiosos com forte influência bantu que tiveram um papel decisivo no surgimento do candomblé As pesquisas de Parés 2006 revelam que as casas mais antigas de Salvador não foram fundadas por mulheres iorubanas originárias de Ketu como afirmam os mitos de origem mas por africanas provenientes do reino de Daomé Para comprovar essa tese que salienta a importância jeje em detrimento do nagô na fase da formação do candomblé Parés apresenta uma série de dados demográficos etimológicos e antropológicos ele mostra p ex que os documentos mais antigos não falam de orixás 6 termo iorubano mas de voduns termo fonjeje não se referem a Exu mas a Legba Sabemos hoje também que desde muito cedo houve participação de mestiços e até de brancos em rituais do candomblé Além disso formaramse no mundo do candomblé diferentes tradições ritualísticas as chamadas nações que são associadas a origens étnicoculturais distintas Se olharmos para os estudos clássicos do candomblé chama a atenção o fato de que as dinâmicas culturais e as descontinuidades tendem a ser omitidas enquanto as continuidades em nível racial eou cultural são detectadas e enfatizadas Assim Raimundo Nina Rodrigues tido como pai dos estudos afrobrasileiros procurava as raízes raciaisculturais do candomblé e classificava a tradição nagô como mais elevada do que a religiosidade dos bantus Não há espaço aqui para aprofundarmos a reflexão dos clássicos Quero somente comentar algumas análises de Bastide que se revelariam como paradigmáticas no que diz respeito às avaliações da africanidade e da pureza cultural nas religiões afrobrasileiras 103119 n 40 2012 p 40 106 Bastide via no candomblé na tradição nagô o triunfo das normas coletivas que teriam resistido às forças da modernização O candomblé representava portanto para ele uma forma de resistência cultural que indicava continuidade e autenticidade já a tradição bantu recebia uma interpretação totalmente diferente na qual ganham destaque processos de mistura e decadência cultural Assim o pesquisador francês associava o surgimento da umbanda de um lado a uma suposta fluidez e permeabilidade das tradições bantu cf p ex CAPONE 2008 p 270 e de outro a processos de industrialização e urbanização que são avaliados por Bastide como fatores responsáveis pela proletarização do negro bem como pelo processo de desagregação social e de assimilação cultural Diferentemente da macumba umbanda que aparece na análise de Bastide diretamente relacionada com o mundo da modernização o candomblé é apresentado como um mundo uma cultura à parte Com conceitos como enquistamento cultural 7 e princípio de corte Bastide 1985 p 529 buscava argumentar que é possível que duas civilizações coexistam no interior de uma mesma sociedade sem se modificar ao seu contato Percebese nessas abordagens antagônicas que num caso candomblé Bastide aplica os paradigmas da Antropologia clássica a respeito da noção de cultura um todo coerente e funcional etc p 313 cujas referências morais e valorativas poderiam ser avaliadas somente a partir dos seus próprios parâmetros já o outro caso macumba não é mais analisado como forma de resistência cultural ao ser compreendido como parte de um processo de decadência promovido pelo processo de modernização a sua avaliação sofre julgamentos morais que Bastide não admite em relação à religião africana autêntica Escreve Bastide O candomblé era e permanece um meio de controle social um instrumento de solidariedade e de comunhão a macumba resulta no parasitismo social na exploração desavergonhada da credulidade das classes baixas ou no afrouxamento das tendências imorais desde o estupro até frequentemente o assassinato BASTIDE 1985 p 414 Com essas reflexões Bastide contribuiu para consolidar a noção da pureza nagô que se tornaria não somente um importante instrumento no combate à discriminação cf DANTAS 1988 mas também 8 um argumento nas disputas internas das religiões de matriz africana Análises como a de Bastide fortaleceriam também a criação de uma visão mítica da África Na esteira das suas pesquisas muitos estudiosos interessarseiam em resgatar um corpus religioso nagô que emergiria nas análises como uma esfera à parte das relações sociais econômicas e políticas ocultando dessa forma estruturas hierárquicas presentes na sociedade iorubana tradicional como o fenômeno da escravidão a instituição social 9 de iwofa ou ainda a prática de sacrifícios humanos em funerais em homenagem a um 10 nobre falecido Recortes e recriações estratégicas a força dos argumentos antropológicos locais versus o agenciamento negro transnacional A discussão em torno da religiosidade afrobrasileira ganharia um novo impulso importante na década de 1980 com os estudos de Beatriz Góis Dantas que frisava agora diferentemente de Bastide usos estratégicos da tradição cultural religiosa O livro Vovó nagô e papai branco usos e abusos da África no Brasil 1988 de Beatriz Góis Dantas constitui um marco no debate brasileiro sobre a religiosidade afro brasileira uma vez que procura mostrar que a africanidade do candomblé não se deve a uma suposta peculiaridade racial dos seus adeptos nem deve ser entendida como uma sobrevivência continuidade cultural direta da África um verdadeiro pedaço da África transplantado como escreveu Bastide 1985 p 312 no Brasil Mesmo que Dantas não use a noção de agenciamento como um instrumental metodológicoteórico explícito da maneira como Bourdieu 1972 1974 elaborou com a ajuda de conceitos tais como habitus campo capital simbólico etc ou como Sahlins 1981 formulou nas 103119 n 40 2012 p 40 107 suas análises sobre a morte do capitão Cook a partir das suas reflexões sobre a mitopráxis a reavaliação das categorias na ação a relação entre interesse e sentido etc o texto da antropóloga brasileira é marcado por uma clara perspectiva construtivista uma vez que dá relevo à importância dos interesses e estratégias no uso e na avaliação das tradições Desde cedo Dantas questionava que os significados e funções do candomblé pudessem ser explicadas derivadas diretamente a partir dos significados e funções que tiveram originalmente na África sem levar em conta os processos de inserção e adaptação ao contexto brasileiro Ao dar ênfase a uma análise do contexto de interesses e de processos de afirmação de identidades inclusão e exclusão que se articulam no e em torno do mundo do candomblé a sua análise põe implicitamente também em xeque a perspectiva sistêmica clássica de cultura resistência cultural propagada por Bastide Escreve Peter Fry no prefácio do livro Para ela Dantas os terreiros que conhecemos hoje em dia não são simplesmente manifestações da contribuição do negro ao melting pot brasileiro E nem tampouco resultado de um longo e mecânico processo de resistência dos negros contra a dominação dos brancos A autora descarta essas duas histórias oficiais para mostrar que a configuração das religiões afrobrasileiras não se dá apenas através do embate entre brancos dominantes e negros dominados nem tampouco através de uma simples mistura de culturas mas sim através de uma série de alianças e conflitos que entrecruzam as fronteiras entre senhores escravos políticos psiquiatras policiais homens poderosos de negócios pais e 11 mães de santo padres e antropólogos FRY 1988 p 15 Baseandose nas suas pesquisas etnográficas efetuadas em Laranjeiras Sergipe Dantas mostra que certos elementos raspagem de cabeça durante a iniciação reclusão do iniciado derramamento de sangue de um animal sacrificado sobre a cabeça tidos como características fundamentais da ortodoxia africana na Bahia são em Laranjeiras sinal de mistura associados portanto a menor prestígio do que lá Dantas aborda portanto a pureza como uma noção nativa que não pode ser definida fora do contexto das disputas internas no mundo do candomblé O que me parece é que a pureza nagô assim como a etnicidade seria uma categoria nativa utilizada pelos terreiros para marcar suas diferenças e expressar suas rivalidades que se acentuam na medida em que as diferentes formas religiosas se organizam como agências num mercado concorrencial de bens simbólicos BOURDIEU 1974 afirma 12 Dantas ibid p 148 Ao retomar as reflexões que Mary Douglas apresenta na sua obra clássica Pureza e perigo 1966 Dantas constata de forma genérica que há uma relação intrínseca entre a ideia da pureza e as estruturas de poder de uma sociedade ibid p 243 num outro momento do livro avalia que com a inserção do candomblé no circuito capitalista de consumo os bens simbólicos são passíveis de serem transformados em mercadoria e que nesse processo o exóticoestético o africano puro tem atingido o maior valor no mercado ibid p 205 Uma parte central de sua reflexão é porém dedicada à recriação da noção nativa de pureza nagô por meio de influência externa mais especificamente pela participação ativa de antropólogos na defesa de determinadas casas de candomblé Já no seu artigo Repensando a pureza nagô Dantas 1982 p 16 deixa claro que ela se inspirou no trabalho de Patrícia Birman 1980 que seguindo pistas de pesquisas abertas por Yvonne Velho Maggie e de Peter Fry levantou a hipótese de que os africanismos encontrados nos terreiros não seriam realmente práticas sociais africanas mas representações do africano produzidas nos meios acadêmicos no passado representações que ao se difundirem passaram para o senso comum Vovó nagô e papai branco persegue portanto o objetivo de mostrar como na luta contra a discriminação e pela descriminalização do candomblé a noção de pureza nagô foi transformada em 103119 n 40 2012 p 40 108 categoria analítica e como tal estratégia de defesa construída numa relação de cooperação entre antropólogos e líderes das mais prestigiosas casas de candomblé de Salvador repercute sobre o próprio mundo do candomblé Vejamos as próprias palavras da autora ao transformar a pureza nagô categoria nativa utilizada pelos terreiros para marcar suas diferenças e rivalidades em categoria analítica os antropólogos através da construção do modelo nagô contribuíram para a cristalização de conteúdos culturais que passam a ser tomados como expressão máxima de africanidade DANTAS 1988 p 242 243 Num longo capítulo A construção e o significado da pureza nagô Dantas analisa os discursos dos antropólogos pioneiros que se dedicaram a estudar o mundo da religiosidade afrobrasileira Revela que a valorização e desvalorização de determinadas práticas ritualísticas ie tradições religiosas nações feitas em textos acadêmicos hoje tidos como clássicos não se explica somente pelas opções teóricas assumidas para avaliar diferenças raciais culturais mas tinham muito a ver também com as relações 13 pessoais que os pesquisadores mantiveram com determinados líderes religiosos e os 14 seus respectivos terreiros Dantas argumenta p ex que a organização dos primeiros Congressos Afro Brasileiros Recife 1934 Salvador 1937 que reunia cientistas e líderes de importantes terreiros de candomblé foi fundamental para a consagração da nação nagô Na busca por estratégias que protegessem os terreiros da perseguição policial e permitissem conquistar uma maior aceitação do candomblé na sociedade nacional os pesquisadores e lideranças religiosas empenhavamse em apresentar o candomblé como uma autêntica religião africana Ao se prestigiarem certas formas ritualísticas jejenagô particularmente a nação ketu como a tradição religiosa mais pura outras formas consideradas mais sincréticas p ex candomblé de caboclo candomblé de 15 Angola seriam implicitamente menos valorizadas ou até abertamente hostilizadas Assim no primeiro grande encontro organizado por Gilberto Freyre e Ulysses Pernambucano de Mello propôsse a divulgação do calendário de um terreiro nagô pai Anselmo como calendáriomodelo de festas religiosas que serviria também como referência e orientação para as autoridades inclusive para a polícia poderem discernir entre práticas religiosas puras e valiosas e práticas misturadas e portanto desviantes do modelo a ser consagrado DANTAS 1988 p 197 Um dos resultados do segundo congresso foi a fundação de um conselho que buscava reunir os líderes religiosos da Bahia e teve com um dos seus objetivos mais importantes a descriminalização do 16 candomblé A implementação da União das Seitas AfroBrasileiras da Bahia como o Conselho Africano da Bahia devia ser chamado depois da primeira reunião foi comentada por Dantas 1982 p 19 como uma das conquistas do Congresso de 1937 criada com o decisivo apoio do Axê Opô Afonjá com o objetivo expresso de manter a fidelidade dos cultos à tradição africana e de defender a liberdade religiosa dos candomblés CARNEIRO 1940 1938 o que implicaria numa relação formal com as camadas dominantes detentoras do poder A análise de Dantas aponta portanto para uma nova aplicação e dimensão que a noção de pureza nagô ganharia a partir da interação entre cientistas líderes religiosos e elite local deixa de ser moeda usada exclusivamente nas disputas internas do mundo da religiosidade afrobrasileira e será aplicada também para combater atos discriminatórios e para ganhar respeito diante da sociedade e o sucesso dessa estratégia esse é o argumento da autora repercute novamente sobre as disputas internas no mundo do candomblé O antropólogo norteamericano Lorand Matory desenvolveria uma abordagem que constitui de certo modo um contraponto às análises feitas por Dantas Matory parte também de uma crítica aos velhos paradigmas metáforas analíticos Como Dantas opõese àquelas tradições de análise que apresentam a África como uma mera origem como um passado como uma fonte de sobrevivências culturais Critica especificamente a noção de memória coletiva que teria orientado o pensamento de pesquisadores consagrados como p ex Roger Bastide Memória preservação e retenção não são a mesma coisa que interpretar e invocar o passado de forma seletiva e estratégica afirma o Matory 2009 p 161 Esse antropólogo defende portanto uma análise que dê destaque ao agenciamento e vê uma incompatibilidade entre a metáfora 17 da memória e a noção de agency ibid p 162 E mais do que isso ao enfatizar a importância do plano discursivo tende a negar à noção de cultura uma característica tida como fundamental pelos autores clássicos uma fonte de percepção cognição e de ação para a interação social Aquilo que é chamado recorrentemente de memória tradição cultural nos dois lados do Atlântico escreve Matory é na verdade sempre uma função de poder negociação e recriação estratégica 2005 p 70 Diferentemente da antropóloga brasileira Matory escolhe a metáfora do 18 diálogo como orientação teórica das suas análises Ele inspirase na perspectiva do 19 Atlântico Negro desenvolvido por Paul Gilroy 2001 sem deixar de fazer também algumas críticas a ele A ênfase nas trocas culturais entre as diversas diásporas africanas dada por Gilroy teria conseguido minar e falsificar as fronteiras que os imaginários nacionalistas criaram MATORY 2009 p 165 Ao priorizar formas descontínuas de reprodução cultural mostrando como tais processos cortam fronteiras territoriais Gilroy contribuiu para pôr em xeque a metáfora analítica da memória Ao mesmo tempo Matory discorda de Gilroy em dois pontos fundamentais O antropólogo norteamericano acusa o seu colega britânico de desconsiderar o potencial das religiões afroamericanas como um signo fundamental para as definições nativas de autenticidade racial ibid p 167 e de não reconhecer devidamente a participação da África nos processos transterritoriais que ele analisa com tanto afinco A razão para essa lacuna na abordagem de Gilroy deverseia à premissa de que as trocas de experiência diaspóricas tiveram o seu início no momento em que os negros entraram em contato com as ideias do Iluminismo europeu A representação da cultura do Black Atlantic apresentada por Gilroy é essencialmente uma resposta negra à exclusão das promessas do Iluminismo europeu e torna a África irrelevante analisa Matory ibid p 166 Nesse contexto Matory critica de forma genérica a perspectiva dos estudos culturais dos quais Gilroy é um representante eminente por eles concentrarem suas abordagens em escritos e nos comportamentos e ações gestures de agentes sociais extremamente bem formados nos projetos de movimentos culturais reformistas e naquele tipo de arte que é divulgado por editores profissionais pela indústria fonográfica e por museus ibid p 168 Tal postura assumida por Matory expressase evidentemente também na maneira como esse pesquisador aborda o fenômeno da pureza nagô No seu impactante livro Black Atlantic religion 2005 Matory atribui o sucesso da cultura iorubana em toda a América em primeiro lugar a um duradouro transnacional literary movement 2005 p 71 Quem teve um papel de destaque na consolidação desse movimento foram de acordo com essa análise os chamados negros retornados ex escravos que voltaram para a África e acima de tudo aqueles entre eles que oriundos da iorubalândia se dirigiram depois de terem sido formados em escolas missionárias 20 em Freetown Serra Leoa a Lagos onde trabalharam como missionários comerciantes ou na administração colonial Matory mostra que foram eles sobretudo pastores negros com experiência diaspórica os primeiros a fazer registros da história da língua e das tradições locais além de terem elaborado as primeiras traduções da Bíblia Para isso os missionáriostradutores precisaram elaborar um padrão linguístico o que de acordo com Matory contribuiu de forma decisiva para 21 homogeneizar os dialetos locais e criar uma espécie de standard ioruba Por volta de 1890 parte dessa elite negra burguesa residente em Lagos que se sentia discriminada pela política colonial britânica e acompanhava com interesse as lutas dos negros nos EUA contra as leis segregacionistas formou um movimento de cunho nativista que seria chamado de Renascimento Lagosiano De acordo com Matory foi nesse contexto histórico que se articulou e se consolidou a noção da pureza iorubana pureza nagô que incluía a ideia da superioridade dos iorubas em relação a 103119 n 40 2012 p 40 109 outros grupos Num diálogo com outras diásporas negras sobretudo a norteamericana essa intelligentsia local teria reagido a experiências de humilhação e discriminação com a produção de representações idealizadas e essencialistas das tradições locais iorubanas Apropriaramse assim de alguns elementos do discurso discriminatório e das suas categorias usadas contra eles e buscaram atribuirlhes um novo significado afirmativo e positivo na tentativa de consolidar uma estratégia discursiva de autodefesa Tal elite que se via como cristã não chegou a propagar a religião dos orixás nos seus escritos mas prezava os cultos iorubanos como uma herança valiosa dos seus ancestrais De acordo com Matory esses textos criaram uma primeira codificação culturalreligiosa que podia ser apropriada e reinterpretada por seguidores descendentes iorubanos nos dois lados do Atlântico MATORY 2005 p 64 Nesse contexto Matory chama a atenção para o fluxo de viajantes negros que existiu entre a Bahia e o litoral ocidental da África Nigéria e Benin atuais Não somente objetos religiosos e notícias circulavam Matory cita vários líderes religiosos 22 importantes que viajavam Assim p ex Martiniano Eliseu do Bonfim filho de libertos africanos passou onze anos 18751886 em Lagos onde não somente frequentou uma escola presbiteriana mas foi também iniciado no sacerdócio de Ifá De volta à Bahia introduziu elementos ritualísticos que conheceu na África 12 obás de Xangô no Ilê Axé Opô Afonjá ao qual estava ligado Teria portanto importante influência sobre as práticas religiosas nessa prestigiosa casa e tornarseia ainda informante principal do pai dos estudos afrobrasileiros Nina Rodrigues Com essas análises Matory procura mostrar que foram africanos e seus descendentes ligados a um movimento literário transnacional Renascimento Lagosiano que contribuíram tanto para codificar e reificar aquilo que hoje entendemos como cultura iorubana quanto para disseminála Essa análise de Matory visa não somente combater a visão antropológica clássica que concebe as religiões afro americanas como sobrevivências de determinadas tradições culturais mas opõese também explicitamente àquela interpretação segundo a qual a noção da pureza nagô se 23 deve em primeiro lugar à intervenção de intelectuais locais caracterizados por Matory 24 que se apresenta no debate como pesquisador afroamericano como eurobrasileiros MATORY 2005 p 50 Com afirmações desse tipo Matory tende a projetar um mundo dicotomizado entre negros e brancos que como Peter Fry critica numa resenha do livro Black Atlantic Religion dificilmente se adéqua à realidade brasileira incluindo o mundo do candomblé Matory racializa tanto os antropólogos como os adeptos soa a acusação O objetivo de Matory seria não somente chamar a atenção para a importância do agenciamento dos adeptos mas também de apresentálos como protagonistas de um conflito racial O problema é escreve Fry que os líderes religiosos são de todas as cores a raça no Brasil tem mais a ver com o fenótipo do que com o genótipo e o mesmo 25 acontece com aqueles que escrevem sobre eles FRY 2008 p 213 Se Matory pondera com certa razão que explicações como aquela apresentada pela primeira vez pela antropóloga Góis Dantas na década de 1980 tendem a omitir o papel ativo de negros africanos na construção da valorização da tradição nagô ele próprio pode ser acusado de não ter dado a devida importância aos contextos locais que acompanharam a consolidação da tradição do candomblé Não leva em consideração p ex os processos migratórios internos que levam a novas situações que Frigerio chama de diásporas secundárias e que repercutem também sobre as disputas em torno da pureza ritualística provocam inovações ritualísticas e discursivas A acusação que Matory faz a Gilroy em relação à África negligência dos processos internos da África na sua análise dos diálogos transatlânticos pode ser levantada portanto de certa maneira em relação àquilo que ele afirma sobre o Brasil As abordagens de Matory não buscam compreender os processos complexos e ambíguos de inclusão e exclusão do jogo identitário que fizeram inclusive surgir no Brasil outras categorias além do binômio negrobranco e nem se interessam pelo importante papel que a ideia de pureza nagô ganhou no combate a discriminações 103119 n 40 2012 p 40 110 perseguições policiais e criminalização do candomblé que como mostrou Dantas contou com a participação ativa de pesquisadores brasileiros Mercado religioso individualidades exacerbadas e conversões consecutivas Uma outra perspectiva concernente ao tema da africanidade e da pureza ritualística que contempla especialmente processos de transformação recentes no contexto da globalização oferecem os trabalhos de Alejandro Frigerio Esse antropólogo argentino aproximase do tema da reafricanização que ele relaciona diretamente com processos de dessincretização a partir das experiências religiosas pessoais mais exatamente a partir das experiências que envolvem as conversões individuais Frigerio desenvolveu um modelo tipológico que de acordo com ele se aplica a toda diáspora negra americana e que fornece outros subsídios interessantes para entendermos outras facetas das transformações que têm ocorrido no mundo do candomblé Diferentemente de outros pesquisadores esse antropólogo argentino diferencia não somente entre diáspora religiosa primária local onde as religiões de matriz africana teriam surgido em decorrência do tráfico negreiro p ex Salvador Havana e diáspora religiosa secundária aqueles lugares nos quais a difusão religiosa ocorreu por meio de migrações intra e intercontinentais p ex São Paulo Buenos Aires Nova Iorque mas também entre africanização e reafricanização Segundo esse pesquisador muitos adeptos sobretudo nas diásporas secundárias passam ao longo de suas vidas por processos de conversões sucessivas que Frigerio relaciona com aprendizagens cumulativas e com transformações identitárias A africanização seria a primeira fase de transição que aproxima uma pessoa que frequenta uma religião com características sincréticas p ex a umbanda no Brasil o espiritismo em Cuba de uma prática mais africana o candomblé no Brasil a santería em Cuba A reafricanização ocorreria segundo Frigerio quando um seguidor do candomblé santería começa a se sentir insatisfeito com os conhecimentos religiosos obtidos por tradição oral voltandose para a África com o objetivo de fortalecer ou reformar os 26 fundamentos teológicos e ritualísticos de sua religião cf FRIGERIO 2005 p 141 A leitura de estudos etnográficos sobre a cultura iorubana o aprendizado de conhecimentos básicos da língua ioruba eou viagens para a África visitas de lugares sagrados na Nigéria e no Benin a aquisição de objetos sagrados ou até de títulos honoríficos podem ser vistos como um esforço de compensar o sentido déficit de conhecimento mas ao mesmo tempo também como uma estratégia que visa aumentar o prestígio religioso pessoal e até burlar a autoridade das casas baianas que devido à sua longa história e tradição e portanto à sua força axé gozam de excepcional respeito Processos de reafricanização revelamse portanto frequentemente fontes de tensão não é incomum que lideranças religiosas da diáspora primária se sintam desafiadas por tais tendências e acusem os seus protagonistas de falta de fundamento religioso cf p ex as críticas documentadas por Gonçalves da Silva 1995 p 278 de Mãe Stella do Ilê Opô Afonjá a respeito das recorrentes viagens de líderes religiosos 27 brasileiros à África qualificadas por ela como modismo Frigerio procura ainda mostrar que a atuação sociorreligiosa da maioria dos sacerdotes não ligada a processos de africanização ou reafricanização restringese normalmente a um território bem delimitado frequentemente um determinado bairro de uma cidade Essa situação refletirseia inclusive nas representações da tradição religiosa Assim as narrativas reelaboradas no contexto da reafricanização que buscam uma ligação mais direta com a África e distanciamse portanto de discursos regionais e nacionais expressariam acima de tudo o desejo de certos sacerdotes de conquistar um reconhecimento sociorreligioso num plano supralocal para além do bairro onde seu terreiro está instalado Tal reinterpretação da tradição funcionaria portanto também como uma estratégia de transcender as disputas dos contextos locais 28 ibid p 148149 103119 n 40 2012 p 40 111 De acordo com essa visão fenômenos como a promoção de congressos internacionais p ex os Congressos Mundiais de Tradição e Cultura dos Orixás que ocorrem com certa regularidade desde 1981 e a formulação de manifestos contra o sincretismo podem ser entendidos também como uma tentativa de construir uma 29 religião mundial O modelo de Frigerio que dá destaque às experiências pessoais nas conversões religiosas baseiase implicitamente na premissa de que toda a diáspora é marcada por uma hegemonia da religiosidade cristã por valores ocidentais A análise do autor sugere que somente por meio de um longo processo de reeducação religiosa ressocialização descrito por Frigerio como um percurso unidirecional que se dá em duas etapas seria possível que os agentes sociais conseguissem distanciarse desse 30 quadro hegemônico ocidentalcristão De fato não é incomum que ocorram conversões sucessivas em direção à reafricanização tal como concebidas por Frigerio Ao mesmo tempo há também cada vez mais pessoas que circulam entre diversas religiões e entre diversos tipos de terreiros o que revela que as conversões não seguem sempre um esquema linear eou podem também acontecer em direção inversa àquela 31 desenhada pelo modelo de Frigerio Percebese portanto que a noção de africanidade aparece na obra de Frigerio mais como uma categoria descritiva com um conteúdo preestabelecido pelo pesquisador do que como uma categoria disputada como foi tratada já na análise de Dantas sobre pureza nagô ou ainda por reflexões recentes de Palmié 2008 que procuram incorporar também os debates teóricos provocados pela virada linguística O já mencionado sociólogo da religião Reginaldo Prandi examina o fenômeno da africanização acima de tudo no contexto de uma análise do mercado 32 religioso e de processos mais amplos de transformação social Para ele dominava durante muito tempo na sociedade brasileira e também no mundo religioso uma tendência ao embranquecimento Ele tenta mostrar que a umbanda que o pesquisador concebe como um resultado dessa força cultural vivenciou seu apogeu na época da ditadura militar No discurso de muitos praticantes e também no de diversas autoridades a umbanda foi apresentada como a verdadeira religião brasileira Já Renato Ortiz autor do livro emblemático A morte branca do feiticeiro negro 1978 entendia que o sincretismo afrocatólico presente no panteão religioso da umbanda revelaria uma atitude nacionalista que acredita e aposta na integração harmoniosa das raças Na sua argumentação Prandi dá destaque àquele contexto histórico em que a partir de meados do século XX diversos aspectos da cultura negra chegaram por meio de migrantes nordestinos ao Sudeste do país e atribui sobretudo a artistas baianos sua popularização no meio da classe média branca nessa região PRANDI 2004 p 224 De acordo com esse pesquisador foi a competição no mercado religioso o fator principal para que cada vez mais sacerdotes de umbanda começassem a voltarse às raízes africanas da sua religiosidade Esse momento caracteriza para Prandi o início de um lento processo de africanização que posteriormente levaria alguns 33 sacerdotes a implementar reformas no candomblé A situação atual das religiões afrobrasileiras é avaliada por Prandi no contexto de mudanças drásticas que atingem todas as religiões Num cenário em que a mídia ganha cada vez mais importância na divulgação de conteúdos religiosos escreve esse estudioso as religiões de matriz africana têm perdido terreno As pequenas comunidades raramente mais de 50 pessoas que possuem plena autonomia administrativa ritual e doutrinária e se entendem como famílias de santo teriam grande dificuldade para se proteger dos ataques agressivos das igrejas neopentecostais que apresentam diariamente em canais de televisão controlados por elas cenas de exorcização de entidades religiosas afrobrasileiras Exus 103119 n 40 2012 p 40 112 34 Pombagiras e procurariam dessa forma afastar as pessoas das religiões afro brasileiras e convertêlas ao neopentecostalismo Ao mesmo tempo Prandi acredita que o candomblé sobretudo na sua forma africanizada está mais bem preparado que a umbanda para o mundo contemporâneo Ele apresenta dois argumentos principais para defender seu ponto de vista 1 Numa fase histórica em que o catolicismo está em declínio a âncora sincrética católica pode estar pesando desfavoravelmente para os afrobrasileiros PRANDI 2003 p 19 2 Diferentemente da umbanda clássica cuja concepção cosmológica incorporou uma dicotomia entre o bem e o mal no candomblé articularseia mais claramente o pensamento africano que seria capaz de liberar o indivíduo num mundo despedaçado pelo consumo da razão da ciência e da tecnologia justamente porque não desenvolveu uma teologia moral PRANDI 1996a p 35 2004 p 228 Nesse sentido Prandi caracteriza o candomblé como uma religião aética uma religião voltada para o indivíduo que estaria em sintonia com uma sociedade hedonista narcisista e pós ética PRANDI 1991 p 186 Tal avaliação de Prandi se insere nas suas análises mais abrangentes sobre mudanças pelas quais passariam todas as religiões atualmente Para ele a religião perdeu a prerrogativa de explicar e justificar a vida já não consegue gerar coesão 35 social sua importância estaria passando pouco a pouco para o território do indivíduo De acordo com essa análise o capitalismo avançado já penetrou na lógica de organização das religiões que agora competem entre si pela adesão de clientes Nessa situação os adeptos assumiriam cada vez mais um comportamento consumista 36 em relação às suas experiências religiosas Nem todos os pesquisadores relacionam evidentemente as tendências de africanização com a abertura para a classe média branca e com uma atitude centrada no indivíduo como Prandi tende a fazêlo A antropóloga norteamericana Diana Brown p ex vê um nexo entre disseminação dos templos de candomblé no Sudeste processos de africanização diminuição de seguidores da umbanda e processos de polarização racial Por trás desses processos ela localiza um fortalecimento da consciência racial que remontaria aos anos 1970 quando o ativismo racial conseguiu se reorganizar estimulado pelo fim da ditadura e pela intensificação de contatos com outras diásporas negras Mesmo que Brown saliente tais mudanças estruturais ela lembra ao mesmo tempo que tanto o candomblé como a umbanda apresentam vastos repertórios simbólicos que podem ser interpretados e vivenciados de diversas formas Admite que a classe média branca possa ver no candomblé um aspecto desraizado da cultura brasileira nacional mas ao mesmo tempo é enfática em dizer que certamente para as populações pobres e negras o candomblé possui outros significados BROWN 1994 p XXIII Em oposição a Prandi recusase portanto a reduzir as transformações constatadas a uma única força social e reivindica que se leve em consideração também as diferentes perspectivas subjetivas dos agentes sociais Se as tendências de africanização no candomblé podem ser interpretadas como uma fonte de mobilização étnicoracial como argumenta Brown chama ao mesmo tempo a atenção o fato de que pessoas que se identificam com a militância negra simpatizam geralmente mais com os terreiros tradicionais de Salvador do que com aqueles que promovem reformas radicais de dessincretização A militância negra faz por vezes duras acusações aos reformistas radicais entre os quais há não poucos sacerdotes não negros as inovações ritualísticas teriam como objetivo fundamental a projeção de alguns sacerdotes terreiros em detrimento do respeito das casas tradicionais baianas os processos de intelectualização e elitização promovidos pela reafricanização contribuiriam para que o candomblé atraísse mais pessoas brancas e tenderiam a afastar os terreiros da luta política contra a discriminação racial 103119 n 40 2012 p 40 113 Palavras finais por uma pluralidade de perspectivas analíticas Sabemos que os processos reafricanização atingem ainda um número 37 relativamente pequeno de terreiros e pouco repercutiram na prática de culto na maioria das casas de candomblé Aparentemente a maioria dos sacerdotes que atuam no nível dos bairros se interessa pouco por tais reconstruções ritualísticas Na maioria dos terreiros de candomblé continua predominando uma prática ritualística que não se preocupa muito com reconstruções acadêmicas mas interpreta e aplica de forma contextual maleável e de preferência eficaz as sabedorias cosmológicas das quais se 38 tem conhecimento Nessa maneira de praticar as verdades religiosas associar ou fundir orixá com santo católico ou ainda iniciar pessoas de origens sociais eou étnicas diferentes não constitui nenhuma contradição Embora os sacerdotes que promovem uma política radical de dessincretização e reafricanização sejam como foi dito uma pequena minoria dentro do espectro das religiões de matriz africana no Brasil sabemos também que são eles que contribuem de forma fundamental para conferir ao candomblé uma maior 39 visibilidade na sociedade brasileira Seus contatos com a imprensa e com as universidades possibilitam levar as suas ideias sobre o candomblé e a luta contra a intolerância religiosa para além dos muros dos terreiros É porém difícil avaliar até que ponto o seu discurso sobre a tradição e sobre a relação entre o candomblé e a sociedade ao redor encontrará repercussão no meio das comunidades religiosas Estudos mais recentes têm mostrado que é possível encontrarmos por vezes visões bastante divergentes a respeito de importantes aspectos da crença e das práticas religiosas dentro de um único terreiro Assim ocorre que iniciados em casas que se dizem reafricanizadas não deixam de ser devotos de um determinado santo já outros continuam tendo apreço pelos caboclos Nem todos rompem com a Igreja Católica e não raramente atribuem características tipicamente cristãs às divindades 40 iorubanas e comparamnas com os santos católicos cf MELO 2004 p 147165 Se o orixá é visto e vivenciado como uma divindade africana pura ou se ele é associado de alguma forma também a um santo católico depende aparentemente não somente dos ensinamentos e da postura do líder religioso que iniciou o adepto mas também em boa medida das experiências particulares de vida de cada pessoa e especialmente das experiências pessoais com os outros mundos religiosos conversion careers cf RICHARDSON 1980 Diante dessa situação empírica multifacetada propomos portanto uma perspectiva analítica que procure construir pontes eou canais de comunicação entre as diferentes abordagens teóricas apresentadas aqui Procurei mostrar neste pequeno ensaio que as análises de Dantas Matory Frigerio e Prandi contribuem todas elas à sua maneira para uma melhor compreensão dos temas da pureza nagô da reafricanização e da dessincretização Nenhuma delas abarca ao mesmo tempo toda a complexidade das questões abordadas Se não ocultarmos os diferentes pontos de partida teóricometodológicos dos autores e procurarmos fazer na medida do possível as devidas mediações entre eles penso ser possível que tratemos as abordagens como complementares mais especificamente como níveis explicativos que podem se somar eou sobreporse Verdades etnográficas são verdades parciais partial truths afirma James Clifford no texto introdutório à famosa coletânea Writing Culture 1986 Não precisamos aderir a todas as premissas da perspectiva pósmoderna cliffordiana para consentirmos que não somente os lugares de fala mas também os diferentes enfoques e recortes privilegiados pelos agentes sociais marcam os discursos moldam olhares e abordagens eles são assumidos de forma mais ou menos consciente neles expressamse perspectivas socioculturais opções de ordem ideológica eou teórico metodológica etc 103119 n 40 2012 p 40 114 Na medida em que nossos quatro pesquisadores enfocam e elucidam aspectos diversos do fenômeno suas opções analíticas contribuem para ganharmos uma visão mais multifacetada da nossa questão e podem ser uma inspiração para buscarmos desenvolver perspectivais plurais Este ensaio procura portanto argumentar também que quando p ex um líder religioso busca dessincretizar as práticas ritualísticas essa pretendida reforma pode e deve ser lida a partir de mais de um enfoque A disputa interna por poder e alianças estratégicas na luta contra a discriminação Dantas a força da agência negra Matory trajetórias pessoais de experiência e conversão religiosa Frigerio como também a dinâmica do mercado religioso Prandi podem ser todos eles fatores que atuam sobre e moldam aquilo que os autores chamam de pureza ritualística e de processos de reafricanização Propor uma perspectiva analítica plural não quer dizer dar crédito igual a todos os discursos e a todos os significados atribuídos à realidade Não sugiro que se abra mão do rigor científico quando elaboramos nossas análises mas que admitamos que nenhuma perspectiva teóricometodológica consegue dar conta das mais diversas dimensões da vida sociocultural Penso que o tempo das teorias sistêmicas eou totalizantes definitivamente acabou e que temos de estar abertos para lidar com vários mundos analíticos respeitando a coerência interna de cada um deles paralelamente mesmo que estes possam apresentar tensões entre si Tal estratégia analítica nos auxilia ainda a aplicar uma das lições clássicas da Antropologia a de tentar operar com a diversidade de uma maneira que sirva para abrir nossos horizontes Isso não significa necessariamente que abdiquemos de nossas convicções políticas e de nossos valores mas que estejamos dispostos a expôlos a um encontro intenso com o outro e a revêlos a partir de tal experiência pelo bem de um entendimento menos dogmático e menos etnocêntrico da convivência humana 103119 n 40 2012 p 40 115 NOTAS 1 Se em 1980 as religiões afrobrasileiras constituíam 06 do espectro religioso em 2000 representaram somente 03 de todas as religiões no Brasil De acordo com essas estatísticas as religiões afrobrasileiras perderam entre 1980 e 2000 cerca de cem mil adeptos A maioria aparentemente converteuse a religiões neopentecostais cf PRANDI 2003 p 18 2 Se em 1991 107 mil pessoas se diziam adeptas do candomblé em 2000 foram 140 mil o que significa um aumento de mais de 30 no mesmo período a umbanda perdeu 20 dos seus adeptos No ano de 1991 os candomblecistas constituíam 165 dos adeptos das religiões afrobrasileiras já em 2000 atingiram 244 nessa categoria de religiões PRANDI 2003 p 21 Chama também a atenção o fato de que no Nordeste berço tradicional do candomblé há relativamente menos pessoas que se identificam com as religiões de matriz africana do que no Sul e no Sudeste do país Um levantamento recente 2009 indicou Porto Alegre como aquela capital que apresenta a porcentagem mais alta 217 de adeptos enquanto Salvador ocupa somente o quarto lugar aqui 033 da população se diz seguidora de religiões afrobrasileiras 3 Em alguns terreiros as vestimentas tradicionais do candomblé são trocadas por roupas tidas como mais africanas 4 Há também entre os reformistas uma grande preocupação em redescobrir mitos Para alguns o estudo do sistema oracular de Ifá é fundamental para restaurar um fundamento teológico sólido que no contexto diaspórico marcado pelo regime escravista teria sido em parte perdido Ao mesmo tempo percebese que os ritmos e toques não são geralmente atingidos pelas reformas uma vez que se entende que os elementos musicais não sofreram alterações ao longo dos tempos 5 É comum que os mentores de processos de reafricanização se dediquem à leitura de estudos etnográficos mantenham contatos com universidades escrevam por vezes sobre a sua religião Alguns entre eles entendemse também como pesquisadores Africanizar é sempre intelectualizar afirma Prandi 1991 p 118 6 Parés mostra ainda que muitos termos que se referem a práticas ritualísticas fundamentais de todas as casas de candomblé independentemente da nação à qual pertencem têm uma raiz etimológica jeje p ex os atabaques sagrados rum rumpi lé o quarto de reclusão dos iniciados runcó o altar sagrado peji etc PARÉS 2006 p 144146 Somente no final do século XVIII chegaram grandes contingentes de escravos iorubas à Bahia e teria sido nesse contexto que os jeje perderam aos poucos visibilidade e suas tradições culturais foram de certa maneira incorporadas pelos iorubas 7 Para Capone a noção de princípio de corte abriu o caminho para posteriores conceituações de purificação e de legitimação das tradições ou seja para processos que seriam chamados de reafricanização CAPONE 2008 p 278 8 Bastide não foi evidentemente o único nem o primeiro pesquisador que buscou definir a pureza ritual Além disso devemos lembrar ainda as críticas de Matory que atribui a notável propagação da religião dos orixás inclusive a criação da chamada pureza nagô em primeiro lugar à agência de um movimento iorubano transnacional que recebeu fortes influências dos negros retornados ou seja daqueles exescravos que foram levados pelos britânicos a Serra Leoa cf abaixo 9 Para conseguir um empréstimo ou cobrir uma dívida era comum entre os iorubas dar um parente por exemplo um filho ou a si próprio como penhor Esta pessoa prestaria serviços para o credor por um tempo determinado até que a dívida estivesse quitada Sobre a escravidão entre os iorubas cf Hofbauer 2006 p 297305 10 Estudos mais recentes relacionaram a prática de sacrifícios humanos entre os iorubas com as estruturas aristocráticas a militarização da sociedade o fenômeno da escravidão e inclusive com a religião dos orixás para um aprofundamento desta questão cf OJO 2005 11 Numa resenha recente do livro Black Atlantic Religion de L Matory Fry resume o que seria de acordo com ele o objetivo central do texto de Dantas da seguinte maneira mostrar como a pureza africana varia de lugar para lugar e que a força das casas mais tradicionais de Salvador tem muito a ver com a sua estreita associação com antropólogos e membros da elite econômica e política FRY 2008 p 212 12 No artigo Repensando a pureza nagô Dantas 1982 p 17 tinha formulado essa questão da seguinte maneira Assim como a etnicidade a pureza é uma retórica que tem muito a ver com a estrutura de poder da sociedade Mary Douglas tem mostrado como a ideia de pureza é muitas vezes empregada como uma analogia para expressar a ordem social e como os pares de classificação puromisturado puroimpuro limposujo ordemdesordem se articulam com a ideia de poder formal e nessa articulação os misturados os impuros constituem perigo ameaça à estrutura formal de poder porque dotados de outros poderes DOUGLAS 1976 13 É sabido que Nina Rodrigues e A Ramos ocuparam o cargo de ogã no Gantois e E Carneiro foi convidado a assumir o mesmo cargo religioso no Ilê Axé Opô Afonjá 14 Lembrando o contexto discriminatório com que os terreiros tinham de conviver em 1890 ie dois anos após a abolição o Código Penal art 157 passou a criminalizar práticas de curandeiros feiticeiros espiritistas e cartomantes Dantas chama a atenção para o fato que já Nina Rodrigues expressava sua admiração para com o estado de admirável pureza das sobrevivências morais africanas detectadas nos terreiros jejesnagôs e usava tal avaliação como argumento para combater a perseguição policial Se do ponto de vista teológico católico as práticas religiosas dos nossos negros podem ser capituladas de um erro escreve absolutamente elas não são um crime e não justificam as agressões brutais da polícia de que são vítimas RODRIGUES 1977 p 246 15 O antropólogo norteamericano Pierson que desenvolvia nessa época uma pesquisa na Bahia chegou a defender a ideia de que uma das principais preocupações da recém criada União das Seitas AfroBrasileiras da Bahia como o Conselho Africano da Bahia devia ser chamado depois da primeira reunião deveria ser a eliminação das práticas não ortodoxas apud BRAGA 1995 p 174 De forma muito parecida E Carneiro tampouco achava palavras elogiosas para os cultos bantos A suposta pobreza cultural dos rituais incentivaria abusos e comportamentos recrimináveis Comentando a degradação progressiva dos candomblés de caboclo Carneiro faz a seguinte afirmação Faltalhes a complexidade dos candomblés de nagô ou de africano isto é jejesnagôs A extrema simplicidade ao ritual possibilita o mais largo charlatanismo apud DANTAS 1988 p 187 E ainda Vários destes pais jamais sofreram o processo de feitura de santo São pais sem treino espontâneos distantes da orgânica tradição africana os clandestinos do desprezo nagô São esses pais que mais têm concorrido para a desmoralização dos candomblés entregandose à prática do curandeirismo e da feitiçaria por dinheiro apud DANTAS 1988 p 188 16 Numa carta 1571937 dirigida a Artur Ramos Edson Carneiro um dos idealizadores do segundo Congresso explicita os objetivos políticos desse novo órgão Estou organizando um Conselho Africano da Bahia que ficará encarregado de dirigir a religião negra tirando à polícia essas attribuições Vamos mandar um memorial ao govêrno sic pedindo a liberdade de religião não só esse Conselho onde haverá representantes de todos os candomblés apud BRAGA 1995 p 165 E no primeiro item de um memorial dirigido ao governador da Bahia julho de 1937 E Carneiro fazia questão de reivindicar para o candomblé o status de religião e com isso todos os direitos constitucionais que asseguravam a prática livre do culto religioso Cada povo tem a sua religião a sua maneira especial de adorar a Deus e é o candomblé a organização religiosa dos Negros e dos Homens de Cor da Bahia descendentes dos Negros escravos que lhes deixaram como herança intelectual as várias seitas africanas em que se subdividem as formas religiosas trazidas da África apud BRAGA 1995 p 166 17 So why call such cultural reproduction memory a term that hides rather than highlights the unending struggle over the meaning and usage of gestures monuments words and memories It implies the organic unity of the collective rememberer 103119 n 40 2012 p 40 116 anthropomorphizing society rather than highlighting the heterogeneity strategic conflicts and unequal resources of the rival agents that make up social life MATORY 2009 p 163 18 Matory reconhece semelhanças entre a sua metáfora de diálogo e aquela de Bakhtin mas critica ao mesmo tempo que a metáfora analítica proposta por Bakhtin implica que todos os agentes e todas as culturas mencionadas tenham a mesmo poder equally powerful na produção da cultura local ou regional MATORY 2009 p 169 Ele ao contrário faz questão de mostrar que na construção da todas as culturas afroatlânticas da atualidade os negros anglófonos tiveram uma influência desproporcional e que embora os diálogos transatlânticos tenham atravessado fronteiras territoriais não deixaram de ser também moldados por Estados nações e impérios ibid p 170 The dialogue metaphor is not intended to posit equality of influence or power among the interlocutors just their continuous and meaningful presence in one anothers cultural history and selfconstruction Indeed the two Englishspeaking imperial powers have furnished the means for certain black interlocutores to speak far louder than others ibid p 183 19 Da mesma forma como a perspectiva do Atlântico Negro Gilroy a metáfora do diálogo afroatlântico visaria de acordo com Matory destacar a mobilidade e o agenciamento de negros largamente negligenciados nas análises na criação desse mundo além de enfatizar o papel específico da consciência negra na construção criativa e histórica da distintividade negra MATORY 2009 p 186 20 Antes da fundação da cidade de Freetown em 1787 concebida para receber libertos não existia um termo específico para designar aqueles africanos que hoje são chamados de iorubas 21 Assim Samuel Ajayi Crother primeiro bispo africano da Igreja Anglicana escreve não somente um dicionário da língua ioruba 1843 e uma gramática ioruba 1852 mas edita também juntamente com Samuel Johnson uma tradução da Bíblia 22 Uma outra personagem importante foi Felisberto Sowzer que atuava como babalaô era também maçom e se orgulhava de seus hábitos britânicos Outra ainda foi Lourenço Cardoso comerciante de Lagos que trabalhava como professor de inglês em Salvador e ajudou Nina Rodrigues a traduzir textos escritos em ioruba Teria sido ele quem chamou a atenção do eminente pesquisador para a importância do livro The Yorubaspeaking peoples of the slave coast of West Africa de A B Ellis 1894 23 Outro antropólogo que critica essa visão atribuída a Dantas é Ordep Serra Para ele preocupações com a ortodoxia a pureza ritual a fidelidade às origens não são invenções de intelectuais mas fazem há muito tempo parte do mundo do candomblé SERRA 1995 p 112115 Serra é enfático em afirmar que os diversos terreiros na Bahia jeje ketu ijexá congo e angola se definem como de nação africana a expressão é do povodesanto ibid p 173 Para ele a análise de Dantas tende a exagerar a importância e o prestígio social dos antropólogos ibid p 52 Escreve o antropólogo bahiano O estudo da interação entre o povodesanto dos terreiros nagôs e os intelectuais na Bahia ainda está por ser feito acho que para realizálo é indispensável a superação de alguns pressupostos ingênuos como o da prevalência necessária dos estudiosos como elaboradores de uma ideologia que fundamenta justifica sistematiza uma visão etnocêntrica e a impõe dessa nova forma ao povo dos terreiros para o manipular em seguida em proveito dos setores dominantes da sociedade Pareceme descabido imaginar que essa interação foi uniforme e unilateralmente diretiva ibid p 54 24 Fry faz questão de chamar a atenção para o fato de que nunca tinha ouvido o termo eurobrasileiro no Brasil Não é uma categoria nativa no Brasil 25 Na parte final da resenha Fry analisa a maneira como Matory explica o surgimento do chamado matriarcado cultural no candomblé De acordo com Fry Matory atribui a crescente predominância de mulheres fundamentalmente à interpretação de R Landes que teria projetado sua própria visão norteamericana de matriarcado primitivo Matory no mundo do candomblé Fry expõe aqui a contradição que ele percebe na argumentação de Matory No que diz respeito à consolidação da autenticidade africana Matory faz questão de negar a importância de uma elite de pesquisadores brasileiros ao mesmo tempo relaciona a vitória da ideia do matriarcado cultural com o agenciamento de uma única pesquisadora norteamericana e de seus colegas feministas internacionais FRY 2008 p 213 26 Africanização é mais adequado para definir a passagem da prática de uma variante mais sincrética como a umbanda no Cone Sul ou o espiritismo em Cuba Porto Rico ou nos EUA para uma prática mais africana como o candomblé o batuque ou a santería Reafricanização é um processo sofrido por pessoas já praticantes do candomblé do batuque ou da santería ou outros cultos compatíveis como tambor de mina ou xangô que insatisfeitas como o conhecimento religioso que receberam viramse para a África de hoje especialmente para a região dos iorubás como fonte verdadeira de conhecimento teológico e ritual FRIGERIO 2005 p 141 27 Para Silva 1999 a reafricanização pode assumir duas formas diferentes em alguns casos escreve o antropólogo paulistano é sinônimo de descatolização retirada de práticas católicas do candomblé e em outros é sobretudo além da descatolização uma radicalização da nagocracia em direção a uma desbantualização incluindo uma descaboclização isto é uma retirada do panteão das entidades bantos e dos caboclos Prevalece aqui uma iorubanização seja nos moldes brasileiros ou nos africanos SILVA 1999 p 156 Esse antropólogo mostra com diversos exemplos que processos de reafricanização não foram no Brasil durante muito tempo incompatíveis com o fenômeno do sincretismo 28 Segundo R Prandi sociólogo de religião tendências que almejam dessincretização e reafricanização estão sempre relacionadas com processos de intelectualização cf PRANDI 1999 p 106 Outros pesquisadores cf SILVA AMARAL 1993 p 120 têm chamado a atenção para o fato de que entre os defensores da reafricanização encontramse muitas pessoas de cor de pele mais clara 29 Os próprios organizadores dos Oriṣa World Congresses encabeçados por intelectuais e sacerdotes iorubanos nigerianos assumem ter como objetivo a criação de um fundamento teológico sólido em torno da rica tradição oracular de Ifá que permita estabelecer a religião dos orixás como uma das grandes religiões mundiais cf CAPONE 1999 2004 2011 PALMIÉ 2005 30 Sabemos também que em épocas mais remotas o enaltecimento da africanidade não acarretou necessariamente um afastamento ou até rompimento de crenças associadas ao catolicismo o que põe em xeque a relação um tanto mecanicista que Frigerio estabelece entre reafricanização e dessincretização Assim Martiniano do Bonfim p ex responsável por reformas ritualísticas no Opô Afonjá que introduziram elementos africanos que ele tinha conhecido em Lagos frequentava regularmente sua igreja São Jorge e não tinha dúvida em relação à sua fé católica 31 Não aprofundarei aqui a ideia da conversão em si que tem gerado recentemente um debate teórico no qual Frigerio se posiciona contra certo mainstream nas pesquisas desenvolvidas no Brasil Ao proporem novos conceitos como passagens múltiplos pertencimentos identidades religiosas porosas estudiosos brasileiros como Birman 1996 Negrão 1997 Sanchis 1994 2001 e outros têm questionado até que ponto a noção da conversão consegue explicar a dinâmica que envolveria a vivência religiosa atual no Brasil já Frigerio 2007 defende a validade do conceito de conversão inclusive para o contexto brasileiro critica a compreensão que esses especialistas têm da conversão e relaciona a rejeição do termo com uma tradição intelectual local que caracteriza a cultura sociedade brasileira como essencialmente relacional conciliatória e aberta a misturas e fusões 32 Prandi diferencia entre diferentes fases históricas 1 o momento da sincretização com o catolicismo que levou à formação do candomblé do xangô do tambor de mina e do batuque 2 os anos 1920 e 1930 caracterizados como momento do 103119 n 40 2012 p 40 117 branqueamento que fez surgir a umbanda 3 a fase da africanização a partir dos anos 1960 que nega o sincretismo e busca transformar o candomblé numa religião universal sem barreiras de cor ou origem racial PRANDI 1999 p 93 33 Paralelamente à abertura do candomblé para outras camadas sociais Prandi entende que a partir da década de 1960 o candomblé não pode ser mais considerado uma religião étnica 1996a p 72 esse sociólogo constata que se iniciou um processo de africanização das práticas ritualísticas que envolveria alguns terreiros de candomblé 34 Desde o início da intervenção europeia na África Ocidental a divindade Exu princípio da dinâmica e da sexualidade representado frequentemente como um falo ereto foi associada pelos colonizadores com o diabo A Pombagira pode ser entendida como um Exu feminino que se manifesta em rituais da umbanda 35 Para Prandi a velha religião fonte de transcendência para a sociedade como um todo foi estilhaçada e o novo tipo de religiosidade que estaria se impondo seria uma religião voltada para causas localizadas e reparos específicos PRANDI 1996b p 67 77 36 Para Prandi o fato de que as pessoas passam hoje frequentemente de uma religião para outra seria uma expressão dessa atitude individualista e consumista De acordo com esse pesquisador na década de 1990 uma entre dez pessoas na Grande São Paulo mudava a sua religião num prazo de um ano PRANDI 1996b p 6870 7677 Poucas décadas atrás conversões consecutivas desse tipo eram raras e podiam provocar conflitos intrafamiliares e rupturas na vida da pessoa Prandi mostra que motivações pragmáticas a busca de soluções para problemas individuais para conversões são hoje relativamente bem aceitas uma vez que pertencer a uma religião é tido como uma questão de escolha pessoal PRANDI 2003 p 27 Nem todo mundo concorda evidentemente com essa visão sociológica clássica que projeta um processo de contínua secularização Enquanto alguns pesquisadores defendem de fato a ideia de que estamos assistindo no mundo contemporâneo a um reflorescimento do fenômeno religioso outros especialistas já são mais cautelosos e procuram fazer uma diferenciação Assim Peter Berger p ex afirma que a modernidade não é necessariamente secularizante mas sim necessariamente pluralizante Ela se destacaria não pela ausência de Deus mas pela presença de uma multiplicidade de divindades Berger admite que o pluralismo religioso não é evidentemente um fenômeno totalmente novo mas o seu escopo e a sua intensidade não teriam nenhum precedente na história Seria essa nova qualidade de pluralismo que constitui de fato um desafio para todas as religiões BERGER 2008 p 12 37 Segundo Lépine o processo de reafricanização em São Paulo foi iniciado sobretudo por uma elite de sacerdotes brancos Entre eles há um ou outro que combina a sua atividade de líder religioso com aquela de pesquisador do candomblé De acordo com Lépine a reafricanização do candomblé de São Paulo envolve não mais do que uma dúzia de terreiros LÉPINE 2005 p 128133 38 Eficácia ritualística sempre foi e continua sendo a essência desse tipo de religiosidade é outro argumento articulado recentemente por Max Bondi que busca deslocar a reflexão e a análise sobre a africanidade no candomblé para um outro foco baseandose nas reflexões de M Goldman 2005 e inspirandose em Latour propõe uma abordagem praxeológica que tem como objetivo como o pesquisador afirma move beyond the very question of the construction or invention of Africa within Candomblé then perhaps we can begin to really understand what role and question of Africa is BONDI 2009 p 3 A África não seria usada nos candomblés simplesmente como uma representação mas muito mais como algo que é fundamental para a performance ritualística que é tão central no candomblé escreve Bondi ibid p 12 39 Prandi tem argumentado que o processo de reafricanização implica sempre um processo de intelectualização p ex PRANDI 1991 p 118 Chama a atenção o fato de que no Censo de 2000 o candomblé aparece como a religião cujos adeptos têm o segundo maior nível escolar Esse resultado aponta para uma participação expressiva de pessoas com diplomas universitários já que é sabido que a maioria dos adeptos continua a ser de camadas sociais baixas 40 Um estudo de Consorte 1999 p 84 feito quinze anos depois da proclamação de um manifesto contra o sincretismo assinado por cinco das mais respeitadas ialorixás de Salvador na ocasião da Segunda Conferência Mundial da Tradição Orixá e Cultura 1983 revelou que com exceção do Ilê Axé Opô Afonjá liderado por Mãe Stella as práticas ritualísticas nos terreiros das articuladoras do manifesto não sofreram alterações relevantes isto é não houve reforma E mesmo Mãe Stella teve de se confrontar com certa resistência dentro de casa sobretudo da parte dos mais velhos que não queriam por exemplo abrir mão da tradicional missa que acompanhava habitualmente o axexê REFERÊNCIAS BASTIDE Roger As religiões africanas no Brasil São Paulo Livraria Pioneira 1985 BERGER Peter Secularization falsified First things n 180 17 2008 BIRMAN Patrícia Feitiço carrego e olho grande os males do Brasil são estudo de um centro umbandista numa favela do Rio de Janeiro Dissertação de Mestrado Museu Nacional Rio de Janeiro 1980 BIRMAN Patrícia Cultos de possessão e pentecostalismo no Brasil passagens Religião e Sociedade 17 12 90109 1996 BRAGA Júlio Na gamela do feitiço repressão e resistência nos candomblés da Bahia Salvador EDUFBA 1995 BONDI Max Things of Africa Rethinking Candomblé in Brazil Working Paper n 22009 UCL Department of Anthropology 121 London 2009 BROWN Diana Umbanda religion and politics in urban Brazil New York Columbia University Press 1994 BOURDIEU Pierre Esquisse dune théorie de la pratique précédé de trois études dethnologie kabyle Genebra Librairie Droz 1972 BOURDIEU Pierre A economia das trocas simbólicas São Paulo Perspectiva 1974 CAMPOS Vera Felicidade de Almeida Mãe Stella de Oxóssi Perfil de uma liderança religiosa Rio de Janeiro Zahar 2003 CAPONE Stefania Uma religião para o futuro a rede transnacional dos cultos afroamericanos Estudos afroasiáticos v 36 5772 dez 1999 CAPONE Stefania A busca da África no candomblé tradição e poder no Brasil Rio de Janeiro Pallas Contracapa 2004 CAPONE Stefania Dialogue Roger Bastide and the African American Religions In PALMIÉ Stephan Org Africa of the Americas Beyond the Search for Origins in the Study of AfroAtlantic Religions Boston Brill 2008 CAPONE Stefania Os yoruba do Novo Mundo Religião etnicidade e nacionalismo negro nos Estados Unidos Rio de Janeiro Pallas 2011 CLIFFORD James Introduction Partial truths In CLIFFORD James e MARCUS George E Org Writing culture London University of California Press 126 1986 103119 n 40 2012 p 40 118 CONSORTE Josildeth Gomes Em torno de um manifesto de ialorixás baianas contra o sincretismo In CAROSO Carlos BACELAR Jeferson Org Faces da tradição afrobrasileira Rio de Janeiro Pallas 1999 p 7191 DANTAS Beatriz Góis Repensando a pureza nagô Religião e sociedade n 8 1520 jul 1982 DANTAS Beatriz Góis Vovó nagô e papai branco Rio de Janeiro Graal 1988 DOUGLAS Mary Purity and danger New York Frederick Praeger 1966 FRIGERIO Alejandro Reafricanização em diásporas religiosas secundárias a construção de uma religião mundial Religião e Sociedade v 25 n 2 136160 2005 FRIGERIO Alejandro Analyzing conversion infrom Latin America Theoretical questions methodological dilemmas and comparative data from Brazil and Argentina In STEINGENGA Timothy CLEARY Edward Org Conversion of a continent contemporary religious change in Latin America New Jersey Rutgers University Press 3351 2007 FRY Peter Black Atlantic Religion Tradition Transnationalism and Matriarchy in the AfroBrazilian Candomblé resenha LusoBrazilian Review v 45 n 2 211214 2008 FRY Peter Usos e abusos da África no Brasil Prefácio In DANTAS Beatriz Góis Vovó nagô e papai branco Rio de Janeiro Graal 1988 GILROY Paul O Atlântico negro Modernidade e dupla consciência São Paulo Editora 34 2001 GOLDMAN Márcio Formas de saber e modos do ser multiplicidade e ontologia no candomblé Religião e Sociedade v 25 n 2 102120 2005 HOFBAUER Andreas Uma história de branqueamento ou o negro em questão São Paulo Unesp 2006 LÉPINE Claude Mudanças no candomblé Religião e Sociedade v 25 n 2 121135 2005 MATORY J Lorand Yorubá as rotas e as raízes da nação transatlântica 18301950 Horizontes antropológicos v 4 n 9 263292 1998 MATORY J Lorand Black Atlantic religion Tradition Transnationalism and Matriarchy in the AfroBrazilian candomblé Princeton Princeton University Press 2005 MATORY J Lorand The New World Surrounds an Ocean Theorizing the Live Dialogue between African and African American Cultures In YELVINGTON Kevin A Org AfroAtlantic Dialogues Anthropology in the Diaspora Santa Fe School of American Research Press 2009 MELO Aislan Vieira de A voz dos fiéis no candomblé reafricanizado de São Paulo Dissertação de Mestrado Marília UNESP 2004 NEGRÃO Lísias Nogueira Refazendo antigas e urdindo novas tramas trajetórias do sagrado Religião e Sociedade 18 2 6374 1997 OJO Olatunji Slavery and human sacrifice in Yorubaland Ondo c 187094 Journal of African History 46 379404 2005 ORTIZ Renato A morte branca do feiticeiro negro Petrópolis Vozes 1978 PALMIÉ Stephan Introduction On Predications of Africanity In PALMIÉ Stephan Org Africa of the Americas Beyond the Search for Origins in the Study of AfroAtlantic Religions Boston Brill 2008 PALMIÉ Stephan The cultural work of Yoruba Globalization In FALOLA Toyin Org Christianity and social change in Africa Durham Carolina Academic Press 4381 2005 PARÉS Luis Nicolau A formação do candomblé Campinas Editora da UNICAMP 2006 PRANDI Reginaldo Os candomblés de São Paulo São Paulo Hucitec 1991 PRANDI Reginaldo Herdeiras do axé São Paulo Hucitec 1996a PRANDI Reginaldo Religião paga conversão e serviço Novos Estudos n 45 6577 1996b PRANDI Reginaldo Referências sociais das religiões afrobrasileiras sincretismo branqueamento africanização In CAROSO Carlos BACELAR Jeferson Org Faces da tradição afrobrasileira Rio de Janeiro Pallas 93111 1999 PRANDI Reginaldo As religiões afrobrasileiras e seus seguidores Civitas 3 1 1533 2003 PRANDI Reginaldo O Brasil com axé candomblé e umbanda no mercado religioso Estudos Avançados 18 52 223238 2004 PRANDI Reginaldo SILVA Vagner G Axé São Paulo In MOURA Marcondes Org Meu sinal está no teu corpo escritos sobre a religião dos orixás São Paulo Edicon Edusp 1989 RICHARDSON James Conversion careers Society 17 4750 1980 RODRIGUES Raimundo Nina Os africanos no Brasil São Paulo Nacional 1977 SAHLINS Marshall Historical metaphors and mythical realities structure in the early history of the Sandwich Islands Kingdom Ann Arbor University of Michigan 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