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Antropologia Social
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Bazar do Tempo 2021 Rita Segato 2013 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei n 9610 de 1221998 É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora Este livro foi revisado segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 em vigor no Brasil desde 2009 EDIÇÃO Ana Cecilia Impellizieri Martins ASSISTENTE EDITORIAL Clarice Goulart TRADUÇÃO Danú Gontijo e Danielli Jatobá REVISÃO Maria Clara Antonio Jeronimo PROJETO GRÁFICO E CAPA Violaine Cadinot DIAGRAMAÇÃO Cumbuca Studio IMAGEM DE CAPA Ama com criança ao colo Catarina e o menino Luís Pereira de Carvalho Autoria não identificada Museu ImperialIbram CIPBrasil Catalogação na Publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ S456c Segato Rita 1951 Crítica da colonialidade em oito ensaios e uma antropologia por demanda Rita Segato tradução Danielli Jatobá Danú Gontijo 1 ed Rio de Janeiro Bazar do Tempo 2021 Rita Segato 1 Tradução de Crítica da colonialidade en ocho ensayos Inclui bibliografia Prefácio ISBN 9786586719628 1 Antropologia 2 Póscolonialismo 3 Descolonização I Jatobá Danielli II Gontijo Danú III Título IV Série 2172266 Camila Donis Hartmann Bibliotecária CRB76472 BAZAR DO TEMPO PRODUÇÕES E EMPREENDIMENTOS CULTURAIS LTDA Rua General Dionísio 53 Humaitá 22271050 Rio de Janeiro RJ contatobazardotempocombr wwwbazardotempocombr Que cada povo teça os fios de sua história um diálogo tenso com a colonialidade legislativa dos salvadores da infância indígena O primeiro direito do ser humano é ter um povo Suportes e limites para a construção de um argumento difícil Em agosto de 2007 fui convocada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados do Congresso Nacional brasileiro para apresentar um argumento de cunho antropológico com a finalidade de explicar a parlamentares sobre o tema do assim chamado infanticídio indígena A explicação era necessária para que pudessem decidir seu posicionamento à hora da iminente votação de uma lei que criminalizaria tal prática Neste artigo detalho o conjunto de considerações e conhecimentos que envolveram a preparação da minha argumentação para a ocasião apresento o texto com o qual questionei a aprovação do projeto de lei e apresento as conclusões de alcance teórico que surgiram no processo de sua elaboração 165 ao finalizar o exercício retórico cuja confecção aqui descrevo as categorias povo e história haviamse imposto como as únicas capazes de permitir a defesa de um processo de devolução do exercício da justiça própria às comunidades indígenas por parte do Estado nacional Ao receber o convite percebi que teria de tecer minhas considerações de forma complexa obedecendo ao princípio que eu mesma havia estabelecido ao falar de uma antropologia cujo lema deveria ser a partir de agora permanecer disponível para as demandas de suas e seus estudados e consciente para o padrão de colonialidade típico da intervenção do Estado na vida das comunidades A intervenção legislativa foi sem dúvida uma dessas formas de intrusão O primeiro problema é que me encontrava dividida entre dois discursos diferentes e opostos ambos vindos de mulheres indígenas e dos quais eu tinha conhecimento Um deles era o repúdio que na primeira reunião extraordinária da recémcriada Comissão Nacional de Política Indigenista CNPI realizada nos dias 12 e 13 de julho de 2007 a Subcomissão de Gênero Infância e Juventude havia manifestado a respeito dessa lei O segundo discurso era a queixa apresentada por uma mulher indígena Edna Luiza Alves Yawanawa da região fronteiriça entre Brasil e Peru no estado do Acre Ela durante a oficina de direitos humanos para mulheres indígenas que assessorei e conduzi em 2002 para a Fundação Nacional do Índio Funai havia descrito a norma do infanticídio compulsório de um dos gêmeos entre os Yawanawá como fonte de intenso sofrimento para a mãe por isso também vítima da violência daquele preceito Essa era em sua experiência uma das contradições difíceis de 166 resolver entre o direito à autonomia cultural e o direito das mulheres Tinha portanto diante de mim a ingrata tarefa de argumentar contra aquela lei mas ao mesmo tempo fazer também construir um argumento baseado em considerações Estado nacional com forte influência cristã herdeiro da administração colonial ultramarina e estruturado por um padrão formado em sua grande maioria por homens brancos muitos dos quais proprietários de terras em localidades com presença indígena e no caso dessa lei representados pela agressiva Frente Parlamentar Evangélica cujos membros são muito articulados entre si e atores fortemente mancomunados na política brasileira Foi justamente um membro dessa Frente Parlamentar Evangélica o proponente do Projeto de Lei nº 1057 de 2007 em discussão Henrique Afonso deputado federal do Partido dos Trabalhadores PT pelo estado do Acre e membro da Igreja Presbiteriana do Brasil Se por um lado amparavame a Constituição Federal de 1988 e a ratificação pelo Brasil em 2002 da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho OIT com sua defesa do direito indígena à diferença por outro a defesa da vida apresentavase como um limite intransponível para qualquer tentativa de relativizar o Direito Com efeito a Constituição de 1988 especialmente no artigo 231 e nos artigos 210 215 e 216 reconhece e garante a existência da diversidade de culturas no interior da nação e o direito à pluralidade de formas particulares de organização social A partir dessa visão constitucional pluralista da ordem cultural intérpretes como Marés de Souza Filho e Carvalho Dantas afirmam que a Carta de 1988 assenta as bases para o exercício progressivo dos direitos próprios por parte das sociedades indígenas no Brasil Além disso a ratificação da Convenção 169 da OIT em 2002 foi um passo adiante no caminho do reconhecimento das justiças próprias embora a norma constituídinária ali apesar de adquirir o status de lei devido a sua inclusão na legislação a partir do processo de constitucionalização do instrumento jurídico internacional siga limitada pela obrigatoriedade de respeitar as normas do ordenamento jurídico nacional e dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos Porém por razões que não podem ser examinadas aqui e apesar de contar hoje com aproximadamente 220 sociedades indígenas e um número total de aproximadamente 800 mil indígenas 05 da população o Brasil está muito longe de um efetivo pluralismo institucional e ainda mais distante da elaboração de pautas de articulação entre o direito estatal e os direitos próprios como ocorre na Colômbia e na Bolívia As próprias comunidades indígenas não demandam do Estado a devolução do exercício da justiça com o mesmo empenho com que demandam a identificação e demarcação de seus territórios nem têm nítido o que significaria essa restituição no processo de reconstrução de suas autonomias Não há investigação suficiente a esse respeito mas esse atraso no tocante às tão inaceitáveis como a eliminação de crianças Estávamos sem dúvida perante um caso limítrofe para a defesa do valor da pluralidade Essa dificuldade era agravada pela quantidade de material jornalístico de diversos tipos que as organizações religiosas tinham divulgado sobre crianças que alegavam ter resgatado da morte estratégia que culminou na interrupção da audiência pública para permitir a entrada de um contingente de dez crianças com algumas mães muitas das quais com diferentes graus de deficiências para mostrar gratidão à organização que afirmava têlas salvado de morrer nas mãos de suas respectivas sociedades Atini Voz pela vida uma organização não governamental ONG evangélica local mas com ramificações internacionais em rádios e sites de internet em inglês estava por trás dessa demonstração de poder de comunicação social e mídia e chegou a produzir um pequeno manual ou cartilha chamada O direito de viver da série Os direitos da criança O folheto dedicado a Muwaji Suruwaha mulher indígena que enfrentou as tradições de seu povo e a burocracia do mundo de fora para garantir o direito à vida de sua filha lganani que sofre de paralisia cerebral incluía as seguintes legendas alusivas às situações em que várias sociedades indígenas supostamente cometem infantícidio Nenhuma criança é igual a outra mas todos têm os mesmos direitos O direito da criança é mais importante do que sua cultura É dever da comunidade proteger suas crianças Os gêmeos têm direito a viver Filhos de mãe solteira têm direito a viver Crianças com problemas mentais têm direito a viver Crianças especiais que nascem com algum problema têm direito a viver Crianças cujo pai é de outra etnia têm direito a viver e informa também sobre a legislação em vigor para a proteção da vida das crianças Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança Estatuto da Criança e do Adolescente do Brasil e a cláusula 2º do artigo 8º da Convenção 169 da OIT que estabelece limites aos costumes Tanto as notícias plantadas por essa organização em jornais e revistas de ampla distribuição nacional quanto a entrada com a moviment no auditório do Congresso onde a sessão estava ocorrendo resultam naturalmente em uma imagem das sociedades indígenas como bárbaras homicidas e cruéis com seus próprios bebês indefesos Imagem oposta à de um movimento religioso que pretende salvar as crianças dos povos que as assassinam A legítima defesa da vida de cada criança e o desejo de uma vida boa para todos e todas transformavamse assim em campanha de proselitismo antiindígena e na pregação da necessidade de aumentar o controle sobre a vida nas aldeias O fundamento era a suposta necessidade de proteger a pessoa indígena de sua incapacidade cultural de cuidar da vida Da individualidade e particularidade de cada caso passavase a partir de uma perspectiva cristã a uma política geral de vigilância da vida indígena e de desprezo pelo próprio modo de vida com as bases cosmológicas que a estruturavam A missão apresentavase assim como indispensável para o bemestar de incapazes primitivos e primitivas e para a erradicação de seus costumes selvagens ou seja para sua salvação não só celestial mas também mundana A lei que se propunha era portanto o corolário de um projeto de igrejas que se autopromoviam como salvadoras da criança indígena parafraseando intencionalmente aqui o título irônico da já clássica obra de Anthony M Platt Em julho de 2008 as forças e os interesses representados pela Frente Parlamentar Evangélica não haviam conseguido aprovar essa lei tampouco impedir a liberalização de outras leis relacionadas à gestão da vida humana A ofensiva legislativa contra o aborto as uniões homossexuais a experimentação com célulastronco etc permite vislumbrar na esfera política da intervenção religiosa contemporânea o biopolitico o público Como parte desse intervencionismo biopolítico o diretor de Hollywood David Cunningham cujo pai Lauren Cunningham é um dos fundadores da entidade missionária Youth with a Mission JOCUM lançou o filme Hakani Youth with a Mission JOCUM que transmite a falsa impressão de tratarse de registro documental do sepultamento de duas crianças vivas já crescidas por indígenas de uma aldeia Suruwaha O filme realizado por atrizes e atores indígenas evangelizados e rodado em propriedade daquela missão evangélica é gravemente prejudicial à imagem dos povos indígenas do Brasil e do povo Suruwaha em particular Para a infelicidade da produção o filme que foi exibido em vários programas com grande audiência da televisão brasileira como um documentário ou seja como um registro falso de cenas verídicas foi em programa de domingo visto por seu elenco em uma aldeia Karitiana em Rondônia Qual não foi sua perplexidade ao perceber que o roteiro não era sobre o que lhes havia sido dito a vida dos povos indígenas como fora antigamente em tempos remotos Ao contrário ao assistirem ao filme constatavam que o mesmo afirmava ser o sepultamento de crianças vivas uma prática corrente e contemporânea Recorerram então ao Ministério Público do estado de Rondônia e iniciaram um processo contra a produção Apesar disso nada menos que a sede da Ordem dos Advogados do Brasil OAB se seção Brasília ofereceu em 2012 um curso sobre infanticídio indígena durante o qual para minha surpresa e sob meus protestos o filme Hakani foi exibido como um documentário O projeto de lei sua inspiração e a coincidência de agendas no âmbito internacional Os autores do Projeto de Lei nº 1057 de 2007 deramlhe o nome de Lei Muwa ji em alusão a uma mãe Suruwaha que afirmavam ser a salvadora de seu bebê que tinha paralisia cerebral Não vou me dedicar aqui a criticar o projeto de lei em termos jurídicos Basta dizer que indiquei reiteradamente que esta lei sobrecriminaliza o infanticídio indígena porque por um lado repete a sanção que já pesa sobre atos anteriormente contemplados na Constituição e no Código Penal e por outro inclui não apenas os autores diretos do ato como também todas as suas testemunhas reais ou potenciais ou seja toda a aldeia onde ocorreu além de outras testemunhas como por exemplo representantes da Funai antropólogas e antropólogos agentes de saúde entre demais possíveis visitantes Os principais argumentos a favor da lei vieram de Edson e Márcia Suzuki um casal de missionários que atua entre o povo Suruwaha e que apareceu na mídia impressa e televisão com grande audiência por supostamente ter resgatado a menina Ana Hakani alegadamente condenada à morte por uma disfunção hormonal congênita severa e que cursou o ensino fundamental em uma escola particular de alto padrão em Brasília Em duas reportagens consecutivas de página inteira no principal jornal do Distrito Federal Correio Braziliense tituladas respectivamente A segunda vida de Hakani e O sorriso de Hakani uma profusão de fotografias mostrava a menina em seu novo meio fazendo uso de sua imagem para fins de propaganda da ação missionária Depois de um repugnante manuseio da história o cronista afirma que a recepção de Hakani por seus colegas do ensino fundamental deu 173 um chute em qualquer sinal de preconceito porque segundo o depoimento de uma colega Hakani é igualzinha à gente Eu nem lembro que ela é índia O jornal relatava o que teria sido o processo de rejeição sofrido pela menina em seu ambiente original mas não oferecia nenhum tipo de informação contextual capaz de tornar o que foi relatado inteligível para quem leu a matéria Por coincidência logo após receber o convite para participar da audiência pública recebi uma mensagem indignada de minha amiga e colega Vicki Grieves ativista antropóloga e professora universitária aborígine Em sua carta Vicki informava à comunidade internacional sobre uma nova lei promulgada em seu país a Austrália dizendo Queridos amigos vocês já devem estar cientes das ultrajantes incursões nas comunidades aborígenes nos Territórios do Norte sob o disfarce de salvar as crianças Percebi então que a retórica da suposta salvação de crianças era invocada simultaneamente na Austrália alegando a necessidade de protegêlas de mães e pais abusadores Assim ficamos sabendo que a intervenção nos Territórios do Norte da Austrália passava a ser justificada em nome da luta contra uma suposta epidemia de abuso infantil Precisamente em 17 de agosto de 2007 dezena de dias antes da audiência pública da qual participei o parlamento da Commonwealth aprovou sem emendas um pacote de medidas que implementava nacionalmente a resposta urgente do governo federal ao Ampe Akelyernemane Meke Mekarle o relatório As crianças pequenas são sagradas A nova legislação possibilitava todo tipo de intervenção nos territórios aborígenes redução de direitos e liberdades e suspensão do direito consuetudinário Em uma conferência magnífica Jeff McMullen desvenda as falhas e os interesses por trás das ações em defesa das crianças 174 Este dramático ataque por parte do Governo Federal a mais de setenta comunidades remotas pertencentes ao povo aborígene no Território do Norte começou com palavras equivocadas e sem consulta a seus proprietários tradicionais Todo líder indígena afirmará que se trata de uma das ofensas mais graves É significativa a analogia do álibi intervencionista no Brasil e na Austrália Da mesma forma os contraargumentos deverão ser do mesmo tipo a única solução possível será a consulta o respeito às autonomias e a delegação de responsabilidades aos povos junto com os meios necessários para resolver os problemas Em conversas subsequentes com ativistas daquela região do mundo concordamos com o fato de que as agendas tendentes a intervir nos territórios indígenas pareciam coincidir num outro continente a estados intervencionistas e colonizadores Uma nova surpresa foi constatar que o projeto de lei brasileiro de sobrecriminalização do chamado infanticídio indígena se encontrava traduzido para o inglês e disponível na internet algo inusitado até mesmo para a legislação sancionada e vigente Breve panorama da prática nas sociedades indígenas brasileiras Pego as informações que nos permitem compreender o caso de Hakani utilizadas pela Frente Parlamentar Evangélica para divulgar o projeto de lei do ensaio final apresentado para a Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília por Saulo Ferreira Feitosa vicepresidente do Conselho Indigenista Missionário Cimi Carla Rúbia Florêncio Tardivo e Samuel José de Carvalho Por sua vez os autores e autora vale 175 ramse para sua informativa síntese de dois estudos que eram provavelmente os únicos na bibliografia brasileira a abordar à época a questão do infanticídio Segundo essas fontes os Suruwaha da família linguística Arawá que vivem no município de Tapauá estado do Amazonas a 1228 quilômetros de rio da capital Manaus permaneceram em isolamento voluntário até o final da década de 1970 Tiveram o primeiro contato com uma equipe missionária católica do Cimi que ao perceber que se tratava de um povo capaz de garantir sua autossustentabilidade e manter viva sua cultura desde que se mantivesse livre da presença de invasores compreenderam que deveriam adotar uma atitude de não interferência direta na vida da comunidade e intervir apenas lutando pela demarcação e proteção de seu território que não demorou a se concretizar Essa equipe limitouse então a acompanhar o grupo à distância manter uma agenda de vacinação e respeitar seu isolamento voluntário No entanto quatro anos depois a Missão Evangélica Jocum dos missionários Suzuki decidiu estabelecerse entre os Suruwaha de forma permanente Unidas para a Infância Unicef em 2010 não houve durante toda a última década nenhuma notícia confiável da prática do infanticídio nem entre o povo Suruwaha nem por parte de outros povos o que confirma seu progressivo abandono voluntário à medida que se expandem os fatores de sobrevivência e o discurso dos direitos humanos no Brasil Os autores e a autora da citada monografia também nos informam que entre o povo Suruwaha por trás do viver ou do morrer está uma ideia uma concepção do que seja a vida e a morte em outras palavras do que é a vida que vale a pena viver ou não Por isso citando Dal Poz acrescentam as consequências desse pensamento são percebidas em números Os fatores de mortalidade entre os Suruwaha são eminentemente sociais 76 de todas as mortes são causadas por infanticídio e 576 por suicídio Nesse ambiente faz sentido viver quando a vida é agradável sem sofrimento excessivo para o indivíduo ou para a comunidade Por isso se pensa que a vida de uma criança nascida com defeitos ou sem pai para colaborar com a mãe em sua proteção será pesada demais para ser vivida Da mesma forma para evitar um futuro de dor e perda de prestígio na velhice a criança passa a conviver desde pequena com a possibilidade de cometer suicídio desse grupo que as equipes missionárias divulgam nos meios de comunicação cria a percepção de ignorância e barbárie assim como a certeza de sua incapacidade de cuidar de maneira adequada da vida de sua prole Como mencionei anteriormente etnografias que tratam do tema do infanticídio indígena são praticamente inexistentes no Brasil Em primeiro lugar porque não há relatos dessa prática nos últimos anos e certamente nenhuma testemunha ocular que a tenha reportado Mesmo em tempos anteriores quando essa prática ocorreu era sempre rara incomum e nunca realizada sob os olhos de quem visitava ou etnografiava a aldeia Houve possivelmente também por parte de etnógrafos e etnógrafas um consenso geral de que revelar essa prática poderia causar grandes danos às comunidades e deixálas expostas à intervenção policial ou a investidas mais intensas por parte de equipes missionárias das diversas igrejas cristãs Apesar disso sabese pela comunicação oral de vários etnólogos e etnólogas que na categoria infanticídio reunimos práticas que quando submetidas a um escrutínio mais rigoroso se mostram muito diversas tanto no seu sentido e papel dentro do grupo como no significado que poderiam adquirir no campo dos direitos Por exemplo em algumas sociedades a regra que determina a eliminação de um ser recémnascido quando se trata de gêmeos seria emanada da cosmologia e deveria ser obedecida pela comunidade Em outras sociedades é a comunidade a família ou a mãe que se encarrega da decisão sujeita a considerações sobre a saúde da criança as condições materiais da mãe ou do grupo para poder garantirlhe a vida a curto e médio prazo ou sobre a ausência da figura paterna para colaborar com seu cuidado em um ambiente no qual os recursos para a subsistência são limitados e não existe excedente Em suma contudo fica evidente pela diversidade de testemunhos que recebemos ao preparar em 2010 um relatório sobre o assunto para o Unicef que nem a regra de base cosmológica nem as demais causalidades alegadas determinam propriamente sua obediência ou seja fazem efetivamente e de forma automática com que a prática seja executada O que ocorre de acordo com reiterados relatos é que a forma encontrada para contornar a regra consiste na circulação da criança para ser criada por pessoas ou famílias próximas de confiança ou ligadas à mãe e ao pai por parentesco Devemos passar portanto a analisar a questão considerando separadamente a norma ou prescrição do infanticídio cosmológica de saúde ou relativa à escassez de recursos e deixar de lado a consideração das práticas efetivas caso existentes pelas razões expostas acima a regra como toda norma não mantém uma relação causal com as práticas Em outro lugar argumentei que tampouco é possível no direito moderno e ocidental atribuir à lei o papel de causa dos comportamentos uma vez que a lei só modifica as práticas se consegue persuadir as pessoas de que é o meio mais eficiente de harmonizar a interação social Isso é facilmente verificável considerando as diversas leis que não têm eficácia material ou seja que não são cumpridas e é ainda mais verdadeiro nas sociedades comunitárias nas quais a norma não tem exatamente a mesma função ou leitura do que no Direito moderno Neste último tipo de sociedade a norma é um enunciado ou atualização do cosmos uma maneira de falar do mesmo e não necessariamente uma lei de aplicabilidade universal para todos os casos e todos seus membros já que não há tipificação no direito tribal nem do delito nem das ações humanas Tratarei do assunto neste mesmo volume no capítulo O sexo e a norma ao discuti universo judaicocristão de abominações ou atrocidades bíblicas Afirmei por exemplo que algumas cosmologias indígenas prescrevem a morte de crianças gêmeas e que essa prescrição determina por si mesma sua eliminação isto é provoca automaticamente sua morte equivale a dizer que numerosos versículos da Bíblia que prescrevem o que se conhece por atrocidades bíblicas serão obedecidos mecanicamente É o caso dos mandatos para extermininho de prole de inimigos em Levítico 2622 Oseias 1316 e Salmos 1369 apedrejar alguém até a morte por não observar os dias de guarda em Números 15 3236 ou matar pela mesma razão em Êxodo 352 entre outros exemplos possíveis Em nenhuma sociedade indígena ou não a prática do infanticídio constituiu ou constituiu consequência automática da norma cultural ou seja costume pautado por normas positivas e incontornáveis As leis e as normas nunca devem ser entendidas como uma causa mecânica das condutas humanas Quando ocorre a prática do infanticídio em qualquer sociedade humana inclusive nas sociedades indígenas ela constitui uma medida adaptativa circunstancial e contingente às condições históricas de acomodação a circunstâncias muito adversas na família ou na comunidade Em relação à regra do infanticídio propriamente dita percebese que dependendo da fonte de onde emana muda a forma como os direitos humanos podem ser acionados pois se é a comunidade quem decide a mãe poderá sentirse lesada em seu direito de manter o bebê Quando é a mãe quem deve decidir a violação de direitos privados será percebida como recaindo sobre o menino ou a menina Em diferentes sociedades razões cosmológicas ou pragmáticas sobre as possibilidades de sobrevivência do bebê ou do próprio grupo ou o cálculo avaliativo da mãe ou de parentes imediatos orientam a decisão de acolher ou não uma nova vida Vejamos algumas características e significados que afetam essa prática em duas sociedades às quais tive acesso por meio da comunicação oral de um antropólogo e uma antropóloga Durante o Seminário Interamericano de Pluralismo Jurídico que organizei em Brasília em novembro de 2005 na Escola Superior do Ministério Público da União ESMPU em colaboração com a Sexta Câmara de Coordenação e Revisão Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal o antropólogo Iván Soares atuando na época junto ao Ministério Público do estado de Roraima na fronteira norte do Brasil com grande população indígena divulgou detalhes importantes sobre como o preceito do infanticídio era compreendido entre os Yanomami Seu objetivo era responder a um procurador que defendia o império universalista dos direitos humanos em todos os casos Para esse fim ele relatou que as mulheres Yanomami têm total poder de decisão sobre a vida de seus bebês recémnascidos uma vez que as mães não se consideram totalmente separadas deles O parto acontece na floresta fora da aldeia nesse ambiente de retiro fora do contexto da vida social a mãe tem duas opções se ela não tocar no bebê ou pegálo nos braços deixandoo no chão onde ele caiu significa que ele não foi acolhido no mundo da cultura e das relações sociais e que não é portanto humano Assim do ponto de vista indígena não seria possível afirmar que ocorreu um homicídio uma vez que o que permanece na terra não constitui uma vida humana Portanto entre o povo Yanomami o nascimento biológico não é a porta de entrada para a humanidade pois para que isso ocorra terá de haver um nascimento pósparto ou seja produzido na cultura e dentro do tecido social Tal concepção está presente em muitos outros povos indígenas do Brasil e permite contrapor as concepções ameríndias à biopolítica dos direitos humanos levando a dilemas como os examinados por Giorgio Agamben em sua obra sobre o Homo Sacer com a separação entre Zoé e Bios na Antiguidade26 Por sua vez Patrícia de Mendonça Rodrigues27 etnógrafa do povo Javáe que habita a ilha do Bananal no estado do Tocantins no Brasil central relatoume o que acreditava estar por trás da prática do infanticídio nesse grupo Para o povo Javáe o bebê recémnascido vem ao mundo como uma alteridade radical um outro não humano que deve ser humanizado ritualmente por meio do cuidado e da nutrição a cargo de seus familiares Ele chega ao mundo contaminado e com o corpo aberto pois sua matéria é composta pela mistura de substâncias de sua mãe e de seu pai A tarefa social é humanizálo ou seja trabalhar para que seu corpo se feche e o constitua como sujeito individual e social Portanto sua extinção aqui também não é entendida como homicídio O fato de que nasce como um estranho absoluto segundo acreditado justifica a prática do infanticídio Os Javáe não dizem isso abertamente mas tudo indica que a justificação consciente para o infanticídio na maior parte dos casos é que o bebê não tem um provedor seja porque a mãe não sabe quem é o pai seja porque o pai a abandonou ou por outra razão não somente para sustentálo economicamente mas e sobretudo para se encarregar do requerido para os longos e complexos rituais que o identificarão novamente com seus ancestrais mágicos conferindolhe sua identidade pública de corpo fechado Cabe ao pai principalmente a responsabilidade social pela transformação pública do filho de corpo aberto num parente de corpo fechado isto é um ser social Um filho sem pai social é o pior insulto possível para um Javáe e um motivo plenamente aceitável para o infanticídio28 Constatamos uma vez mais que não é a ignorância o que se esconde por trás da diferença no tratamento da vida recémnascida nas sociedades originárias do Novo Mundo mas sim outra concepção do que seja humano e das obrigações sociais que o constituem Apesar de a antropologia de uma forma ou de outra já saber disso há muito tempo quando dialogamos com o Estado por meio de seus representantes não podemos invocálo Teremos de meditar profundamente em algum momento sobre os motivos pelos quais isso não é possível sobretudo porque as outras concepções de vida na radicalidade de sua diferença e na inteligência de seus termos não entram no seu imaginário estatal cuja estratégia de controle recaí cada dia mais no que Foucault denomina biopolítica e biopoder29 e consequentemente se distancia progressivamente das noções indígenas e comunitárias da vida humana Embora não faltem argumentos a favor de uma concepção da vida humana como responsabilidade social e não biológica Esther Sánchez Botero assume e não poderia ser de outra forma que diante do Estado é preciso falar à linha do Estado uma vez que este não está aberto à diferença radical Em sua tese de doutorado Entre el juez Salomón y el dios Sira decisiones interculturales e interés superior del niño Botero identificou claramente a estratégia jurídica clássica é necessário conhecer em profundidade a letra da lei para poder argumentar de seu interior30 Essa impressionante obra que visa a fornecer argumentos favoráveis à preservação da jurisdição indígena relativa à criança em querelas que a ameaçam extrai e sistematiza a experiência acumulada em diversos processos judiciais à luz de uma discussão conceitual de grande fôlego tanto no campo do direito como na antropologia A autora afirma que não são os mínimos jurídicos estratégia adotada pelo Direito colombiano para enfrentar os dilemas do pluralismo jurídico os que devem pautar o julgamento do que no Ocidente é lido como uma violação ao princípio do interesse superior das crianças estabelecido pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e do Adolescente Para a autora esse princípio é uma extensão dos princípios do Ocidente e não constitui necessariamente uma ideia realizável em todas as culturas e para todos os casos pois o melhor interesse referese à criança como sujeito individual de direito e não acata o reconhecimento constitucional das sociedades indígenas como novo sujeito coletivo de direito Por essa razão a aplicação generalizada não seletiva e impositiva desse princípio além de inconstitucional pode ser etnocida ao eliminar valores culturais indispensáveis à vida biológica e cultural de um povo31 Aprendemos assim que cada decisão deve cumprir um teste de proporcionalidade e somente os fins admitidos pela Constituição e reconhecidos pela interpretação da Suprema Corte como superiores poderiam limitar o direito fundamental do povo indígena de ser um povo Em suma para a autora os direitos das crianças não prevalecem sobre o direito do povo indígena a ser étnica e culturalmente distinto32 Concluise que em casos que implicam uma violação ao melhor interesse da criança será mister considerar e pesar os direitos que se encontram em contradição o direito à vida do sujeito individual e o direito à vida do sujeito coletivo recémnascido Diante desses pares contraditórios deverseá decidir qual dos termos sairá perdedor em razão de um direito superior Se a mãe não pode assumir a responsabilidade por uma nova vida humana como nos casos médicos em que a mãe está em risco a vida da mãe deve ter prioridade sobre a do bebê pois dela dependem os outros filhos e filhas Da mesma forma se a inclusão de uma criança em certas condições compromete a sobrevivência da comunidade como tal é a comunidade que terá prioridade uma vez que todos os seus membros dependem de sua capacidade de continuar existindo Para Sánchez Botero somente o contexto sociocultural de cada caso particular permite realizar essa avaliação O que dizem as pessoas indígenas As pessoas afetadas pela lei caso esta fosse votada também foram ouvidas em diversas ocasiões antes durante e depois da apresentação na audiência pública Uma grande oportunidade para ouvir suas opiniões sobre o projeto de lei foi por exemplo durante a reunião plenária da XI Sessão da Comissão Nacional de Política Indigenista CNPI realizada nos dias 9 e 10 de dezembro de 2009 no Ministério da Justiça em Brasília Na ocasião os argumentos dos povos indígenas foram numerosos sofisticados e contundentes Para a apreciação de quem lê decidi incluir aqui de forma muito resumida a impressionante lista de ideias com que os e as representantes indígenas criticaram a iniciativa legislativa tratase da invenção de um tema de sua construção e implantação no imaginário social nacional e internacional a lei é redundante uma vez que o homicídio de crianças já é um crime previsto em lei tendo em vista que as pessoas indígenas brasileiras fazem parte da nação e o infanticídio já é crime na legislação uma lei específica só pode resultar da intenção de criminalizar as pessoas indígenas e gerar desconfiança sobre seus costumes perante o poder público e a sociedade o projeto de lei sugere a existência de um costume norma cultural ou prática regular assídua e extensa de infanticídio ao passo que não existe prática com tais características no mundo indígena o projeto de lei superdimensiona a questão em termos de sua frequência e sistematicidade nas sociedades indígenas em relação a todas as outras sociedades humanas a lei trata de um conceito e de um assunto imposto de fora para dentro do mundo indígena mundo no qual nem sequer existe uma palavra para infanticídio e nem faz sentido a questão de que trata a lei esse tema é pautado pelo interesse imperialcolonial em apropriarse das riquezas naturais dos territórios indígenas essa pauta externa e espúria obriga os povos a se defenderem com a consequente perda de tempo e energia que deveriam ser dedicados a questões mais importantes e urgentes como salvar vidas de crianças indígenas da fome e da expropriação os próprios povos devem eleger suas pautas e definir sua própria agenda de temas urgentes perante a sociedade nacional a notícia da prática de infanticídio nunca chega de fontes oficiais e desinteressadas e provém exclusivamente de agentes religiosos interessados na retirada de crianças das aldeias para serem formadas como missionárias o projeto de lei criminaliza todos os povos indígenas suas lideranças e seus estilos de vida colocandoos sob a suspeita de serem infanticidas constrói uma imagem monstruosa dos povos indígenas constituindo calúnia e propaganda negativa contra eles reforça o estereótipo público de índios maus cruéis e selvagens a frase publicada na página de internet da organização evangélica Atini adote uma criança indígena convoca a se fazer negócio com nossas crianças tratase de uma campanha difamatória contra os povos indígenas essa calúnia midiática promove a condenação generalizada e sem conhecimento adequado da vida indígena e de suas visões de mundo a acusação de infanticídio e a exibição do falso documentário Hakani na televisão aberta mostra uma imagem caricatural e distorcida dos povos indígenas e alimenta a antipatia da sociedade contra eles tal calúnia midiática incrimina especialmente as mulheres indígenas esse desprezo da mídia é uma política discriminatória contra as pessoas indígenas e suas especificidades culturais implantase também desse modo a ideia de que existem salvadores e salvadoras das crianças indígenas indispensáveis para protegêlas da ameaça de suas próprias famílias e comunidades de seus costumes e ideias utilizase a ideia da incapacidade do sujeito indígena e promovese a sua falta de autonomia e a necessidade de tutela por meio desses equívocos fundos internacionais são obtidos para organizações detratoras dos povos indígenas se o Estado não consegue controlar o infanticídio cometido por seus próprios agentes de segurança pública nas ruas referese à letalidade policial contra adolescentes e jovens não brancos não tem legitimidade para promulgar esta lei em números mais elevados se os crimes dos brancos são muito maiores do que os crimes dos índios por que apenas uma lei é decretada contra indígenas Por que os brancos nos matam e não são incriminados por lei específica nem presos era ele mesmo suscetível de enquadramento e julgamento como infrator e insolvente 34 4 a eficácia criminal e a ênfase do Estado na criminalização como forma do controle recursos aos quais esta lei apelava haviam sido questionados por profissionais de prestígio da Criminologia Crítica e da Sociologia Jurídica 5 a lei era desnecessária porque legislava o que já estava legislado incorrendo no efeito conhecido como infl ação legislativa já muito criticado 6 ao enfatizar o direito individual das crianças à vida a lei deixou de considerar o respeito e a proteção igualmente devidos com base em diversos compromissos assumidos pelo Brasil no campo dos direitos humanos aos direitos dos sujeitos coletivos e dos direitos humanos aos direitos dos sujeitos coletivos e a garantir a sua sobrevivência como tais esqueça por isso mesmo que um direito fundamental de toda pessoa é precisamente o de fazer parte de um povo isto é o direito de ter um povo 7 O Congresso Nacional não tinha legitimidade para votar uma lei de intervenção na aldeia indígena sem a presença de representantes dos povos afetados em sua deliberação o que veio a confirmarse dois dias depois em 7 de setembro de 2007 quando o Brasil foi um dos signatários da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas ONU 34 assim como a desobediência ao Direito de Consulta também viola as disposições da Convenção 169 da OIT 8 outras experiências análogas no mundo mostravam que era perigosa a pretensão de legislar sobrecriminalizando a prescrição do infanticídio hoje praticamente vazia de conteúdo e suas eventuais e suppostas testemunhas ou seja os membros da aldeia e todos os seus agregados em uma época marcada por estratégias fundamentalistas a reação desencadeada poderia transformar essa prática em um emblema de identidade étnica ou seja poderia positivar e fundamentalizar a norma 35 Por fim era preciso ponderar bem o que se poderia dizer sobre o papel do Estado assim como avaliar opções que substituíssem o projeto de lei examinado uma vez que se opor à sua promulgação não significava necessariamente aprovar a prática do infanticídio em fidelidade à queixa da mulher Yawanawá já mencionada Tendo em vista as constantes reinvindicações dos povos indígenas ao Estado por território saúde educação entre outras reparações devidas e como consequência dos enormes desequilíbrios causados por sua atuação colonial e disruptiva não era desejável que o Estado se retirasse deixando por exemplo o controle das decisões sobre questões relacionadas a costumes nas mãos de quem detinha poder dentro das aldeias em muitos casos chefias masculinas hoje infladas e transformadas em autoritárias precisamente por seu papel mediador negociador ou guerreiro entre a aldeia e a administração outrora colonial de ultramar e agora republicana Em vez disso o Estado teria de transformar seu papel e concentrarse em promover e vigiar para que a deliberação interna pudesse ocorrer sem coação autoritária Essa era uma entre tantas tarefas de devolução que um Estado reparador deveria assumir dentro de um projeto nacional pluralista O que nesse caso teria de ser restituído concluiu era a capacidade de cada povo de deliberar internamente e fazer sua própria justiça recuperar a jurisdição Com a devolução da é necessária uma política permanente de informação junto aos povos indígenas sobre todas as questões legislativas e projetos de lei que lhes interessam em face da potencial capacidade de afetar suas vidas como é o caso do PL 10572007 Decisões sobre a estrutura da minha argumentação Embora a leitura da obra de Sánchez Botero tenha me dado certeza quanto ao caráter defensável sempre em função das circunstâncias de uma prática limitrofe como o infanticídio ainda não resolvia o problema de como argumentar perante parlamentares em parte porque no Brasil ainda não houve um debate oficial sobre jurisdições ou autonomias indígenas que pudesse servir de referência para minha exposição em parte porque as pessoas destinatárias da minha argumentação não constituíam um tribunal interessado em resolver casos concretos de violações dos interesses das crianças mas membros de uma casa legislativa que se encontrava às vésperas de votar uma lei geral sobre a matéria Eu teria então de tomar decisões sui generis que me permitissem tornar convincente o ponto central de minha prédica que criminalizar especificamente o infanticídio indígena não era de forma alguma desejável para a nação e seus povos Alguns dados eram necessários para a exposição assim como encontrar uma linguagem que os tornasse efetivos 1 o crescimento demográfico das sociedades indígenas após a ditadura militar havia sido notável e isso provava a capacidade dos povos indígenas de cuidar particularmente bem de sua prole 2 o Congresso que tentava enquadrar as sociedades indígenas na lei era ele próprio pautado em seu poder pelo padrão de colonialidade e composto por parlamentares cuja subjetividade se encontrava capturada pelo racismo epistemico ou pelo eurocentrismo próprio desse padrão 3 o Estado que tentava enquadrar as sociedades indígenas na lei justiça própria e a recomposição institucional que isso envolvia sobrevivria naturalmente a devolução da própria história pois deliberação é marcha é movimento de transformação no tempo Com a devolução da história as noções de cultura pela inércia que lhe é inerente grupo étnico necessitariamente referido a um patrimônio fixo perdiam sua centralidade e abriam caminho para outro discurso cujo sujeito era o povo como sujeito coletivo de direitos e autor coletivo de sua história ainda que narrada em forma de mito que nada mais é do que um estilo diferente de decantação e condensação da experiência histórica acumulada por um povo Apresento a seguir o resultado dessas ponderações Minha exposição na Câmara dos Deputados Que cada povo teça os fios da sua história em defesa de um Estado restituído e garantista da deliberação em foro étnico lida na audiência pública realizada em 5 de setembro de 2007 pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados sobre o Projeto de Lei n 10572007 apresentado pelo deputado Henrique Afonso sobre a prática de infanticídio em áreas indígenas 36 Agradeço a colaboração de Esther Sánchez Botero Xavier Albó Patrícia Rodrigues de Mendonça Ernesto Ignacio de Carvalho Saulo Ferreira Feitosa Rosane Lacerda Tiago Eli de Lima Passos Leía Vale Wapichana Suzy Evelyn de Souza e Silva Marianna Holanda e Danielli Jatobá Correio Braziliense Caderno Brasil p 13 Brasília terçafeira 28 de agosto de 2007 Em cinco dias onze bebês mortos em maternidade pública de Sergipe E hoje mesmo ao acordar Brasília quartafeira 5 de setembro de 2007 Titulares e Caderno Cidades referindose às cidades do entorno do Distrito Federal Vera Lúcia dos Santos teve dois filhos assassinados Ainda chorava a morte de Franklin 17 quando o menor Wellington 16 foi executado com dois tiros na nuca Ninguém preso Segundo a pesquisa do Correio nenhum dos 41 assassinatos de adolescentes de 13 a 18 anos ocorridos esse ano foi resolvido A segunda cena é a cena do índio e foi retirada de um livro que recomendo O massacre dos inocentes A criança sem infância no Brasil O organizador da obra José de Souza Martins resume com as seguintes palavras emocionadas o primeiro capítulo do volume Os índios Parkatejê trinta anos depois de Iara Ferraz foi a sociedade branca que em sua expansão voraz e cruel levou a destruição e a morte aos índios Parkatejê do sul do Pará Não somente eliminou fisicamente um grande número de pessoas mas também semeou no interior da tribo a desagregação social a desmoralização a doença a fome a exploração condições de rendição incondicional do índio na sociedade civilizada O branco levou à tribo o desequilíbrio demográfico comprometeu suas linhagens e sua organização social Os Parkatejê assumiram heroicamento a rendição entregaram suas crianças órfãs aos brancos para que ao menos sobrevivessem ainda que seja como filhos adotivos Mais tarde quando conseguiram reorganizar sua sociedade saíram em busca das crianças dispersas agora já adultos disseminados até em regiões distantes para que voltassem à sua tribo para compartilhar saga do povo Parkatejê Inclusive pessoas que nem sequer tinham conhecimento da sua origem indígena porque os brancos lhes tinham negado essa informação foram surpreendidas no meio de um dia na casa adotiva pela visita de um velho chefe indígena que lhes anunciava que tinha vindo a buscálas para retornarem à sua aldeia e ao seu povo que os estava aguardando 37 J de S Martins O massacre dos inocentes A criança sem infância no Brasil p 10 196 Antes bem deveríamos pelo contrário criminalizar esse mesmo Estado que hoje pretende legislar e leválo ao banco dos réus por insolvente por inadimplente por omisso por infrator e até por homicídio através das mãos de muitos de seus representantes e agentes investidos de poder policial Ao com parar a gravidade dos delitos não teremos alternativa além de absolver os povos que hoje se trata aqui de criminalizar e devolver a mira do Direito na direção de quem tenta inculpálos uma elite que cada dia constata sua incapacitada para administrar a Nação e vê desmontada em público sua pretensão de superioridade moral instrumento principal de todas as empresas de dominação A força dessa vinheta inicial fala por si mesma Bem poderia encerrar aqui minha exposição e já seria convincente Continu do há muito mais a dizer sobre o Projeto de Lei cuja discussão hoje nos reúne A começar por duas precisões que antes de prosseguir devem ser feitas A primeira referese ao que estamos debatendo nessa audiência pois deve ficar claro que a discussão do projeto de lei sobre infanticídio em áreas indígenas não deve ter como foco o direito à vida individual que já se encontra devidamente garantido na Constituição brasileira no Código Penal e em diversos instrumentos de direitos humanos ratificados pelo Brasil Em lugar de reduplicar as leis já abundantes de defesa da vida individual urgiria propor caminhos para que o Estado se torne capaz de proteger e promover melhor a continuidade e a vitalidade dos povos que tanta riqueza conferem à Nação em termos de diversidade de soluções para a vida É do bemestar dos povos que depende a vida das suas crianças coletivos isto é o direito à proteção da vida dos povos em sua condição de povos Precisamente porque esse último se encontra muito menos elaborado no discurso jurídico brasileiro e nas políticas públicas é a ele que deveríamos dedicar a maior parte de nossos esforços de reflexão e tentar imaginar como brindar uma maior proteção legislativa jurídica e governamental aos sujeitos coletivos de direitos os mais desprotegidos como promover sua vida e fortalecer seu tecido social comunitário e coletivo Defendo aqui que a prioridade é salvar a comunidade onde ainda há comunidade e salvar o povo onde ainda persista um povo Porque um direito fundamental de toda pessoa é ter povo pertencer a uma coletividade vendo livres da cobiça por concentrar e acumular isto é livres da pesada bagagem que nós carregamos terão quem sabe uma oportunidade que nós não teremos num mundo que se interna cada dia no que muitos acreditam ser sua fase final pelo esgotamento dos recursos O significado das leis A prestigiosa pesquisadora brasileira da área da segurança pública e eficácia penal Julita Lemgruber39 revela o escasso impacto da lei não somente entre nós mas também nos países mais vigiados do mundo Valendose de pesquisas quantitativas sobre segurança pública em países onde os monitoramentos são realizados com regularidade a autora informa que na Inglaterra e no País de Gales no ano de 1997 somente 22 dos delitos obtiveram alguma condenação dos responsáveis e nos Estados Unidos segundo enquête de 1994 de todos os crimes violentos cometidos homicídios agressões estupros roubos etc cuja investigação esclarecimento e punição pareciam mais relevantes somente 37 resultaram em condenações À luz desses dados a autora qualifica como Primeira Mentira a afirmação de que o sistema de justiça criminal pode ser considerado um inibidor eficaz da criminalidade No caso do Brasil o reduzido poder da lei é ainda mais extremo No estado do Rio de Janeiro o mais monitorado por enquetes periódicas sobre violência autores e autoras que realizaram suas pesquisas durante os anos 1990 como Ignácio Cano Luiz Eduardo Soares e Alba Zaluar concluíram respectivamente que somente 10 8 ou 1 de todos os homicídios denunciados à justiça alcançaram algum tipo de condenação40 Nas palavras de Alba Zaluar No Rio de Janeiro apenas 8 das averiguações se transformam em processos e são levadas a julgamento Dessas apenas 1 alcança sentença41 Esses dados impõem novos interrogantes a respeito das motivações que parlamentares poderiam entreter ao insistir numa lei que criminaliza os povos indígenas e torna mais distante sua retomada de um direito próprio e de uma jurisdição própria para a solução de seus conflitos e dissensos dentro das comunidades em violação assim ao Convênio 169 da OIT plenamente vigente no Brasil desde 2002 O futuro do Estado Qual poderia ser então o trabalho do Estado para poder superar um cenário tão desalentador como o que acabo de apresentar Deveria ser um Estado restituído e garantidor do direito étnico e do direito comunitário em geral Com isso quero dizer que em vista da desordem que as elites metropolitanas europeias e cristãs instalaram no continente a partir do processo de conquista e colonização desordem mais tarde agravada e aprofundada pela administração a cargo das elites nacionais eurocêntricas herdadeiras do controle dos territórios hoje temos uma oportunidade É a oportunidade de permitir que aqueles povos que até agora não tiveram a ocasião de fazêlo possam agora restaurar sua ordem institucional interna e retomar os fios da sua história Quem sabe seja sim possível refazer o que foi desfeito nas ordens cultural jurídica política econômica e ambiental da Nação Se não existe lei perfeita em lugar de insistir na perfectibilidade cada dia mais remota de um sistema jurídico deficiente podemos abrir caminho para outros modelos Reafirmome aqui aos direitos próprios e ao projeto do pluralismo jurídico aldeia humana por menor que seja a divergência é inevitável e quando se trata da prescrição de infanticídio o dissenso costuma se apresentar Diante disso o papel do Estado na pessoa dos seus agentes terá de ser o de estar disponível para supervisionar mediar e interceder com o fim único de garantir que o processo interno de deliberação possa ocorrer livremente sem abusos por parte dos mais poderosos no interior da sociedade Tampouco se trata de solicitar a retirada do Estado porque como atestam as múltiplas demandas por políticas públicas colocadas pelos povos indígenas a partir da Constituição de 1988 depois da intensa e perniciosa desordem instalada pelo contato o Estado já não pode simplesmente se ausentar Deve permanecer disponível para oferecer garantias e proteção quando convocado por membros das comunidades sem pre que essa intervenção ocorra em diálogo entre os representantes do Estado e os representantes da comunidade em questão Seu papel nesse caso não poderá ser outro que o de promover e facilitar o diálogo entre os poderes da aldeia e seus membros mais frágeis Essa cautela ao legislar e esse compromisso de garantir a liberdade do grupo para deliberar internamente e se autolegislar são gestos particularmente prudentes e sensatos num mundo multicultural globalizado como o de hoje no qual é muito grande o risco da apropriação de elementos da tradição para transformálos em emblemas de identidade por parte de grupos que veem na cultura política culturalista e na estratégia fundamentalista que nela se origina a forma de defender seus interesses de poder e influência dentro de cada sociedade Quantas não são as práticas que longe de minguar quando reprimidas por uma legislação ocidentalizante se afirmam e afiançam como signos de identidade para fazer frente a um poder invasor Ao lembrar essa possibilidade nos convencemos mais ainda de que essa lei que discutimos é impraticável e até perigosa por 203 duas razões que não podemos deixar de considerar Em primeiro lugar porque pode gerar formas de reação que com base em noções fundamentalistas de identidade e de cultura possam vir a transformar a prática de infanticídio já em progressivo desuso com a melhora nas condições de vida dos povos indígenas com o fim da ditadura e as esperanças que estes depositaram na Constituição de 1988 em emblema de diferença e motivo cristalizado numa heráldica étnica Em segundo lugar porque a sanção de uma lei desse tipo demanda sua quase impraticável aplicação o que inevitavelmente incumbirá as forças da segurança pública com a tarefa de vigiar e interferir no espaço da aldeia intervindo na sua autonomia e na sua intimidade Isso poderia acarretar consequências nefastas em vista do despreparo das polícias para trabalhar através das fronteiras da diferença e a partir de uma perspectiva francamente pluralista Povo e história categorias fundamentais para transcender o binômio relativismouniversalismo A forma mais adequada e eficiente de pensar o conjunto dos problemas que aqui se colocam não deve entrar no campo dominado dos insolúveis dilemas da oposição relativismouniversalismo Diante do princípio do pluralismo a ideia quase inevitável pelo ranço de inércia inerente neste conceito de cultura como conjunto de costumes cristalizados e ahistórico deve ser evitada e substituída pela ideia de histórias em plural a historicidade múltipla das nossas nações Todo povo habita no fluir dos tempos históricos em entrelaçamento dinâmico com os outros Cada povo contém essa verdadeira usina de história que é o dissenso em seu interior de forma que costumes são mudados no curso constante da deliberação interna que não é outra coisa que o diálogo fluente e constante entre seus membros O problema dos povos de um continente não é o de conservar a cultura como patrimônio 204 cristalizado afinal cultura não é outra coisa que o resultado da decantação constante de experiência histórica que nunca cessa mas o de fazer a desintrusão de sua história que foi interrompida pela irrupção autoritária do colonizador seja este o enviado das metrópoles europeias ou a elite eurocêntrica autóctone que construiu e administra o Estado nacional Não é como se pensa a repetição de um passado o que constitui e refere a um povo e sim sua constante tarefa de liberação conjunta Muitos são os povos que já deliberaram e abandonaram não somente a prática do infanticídio Isso aconteceu por exemplo com o povo KaxuyanaTyiri como acaba de relatar Valéria Paye Pereira que me precedeu nesta audiência A ideia reitor da história própria avança precisamente no contrário do que a lei que aqui debatemos tenta fazer pois ela não se alia ao projeto de um Estado que toma decisões sobre os rumos de todos os outros povos que compõem a Nação e o faz mediante leis punitivas Muito pelo contrário o princípio do respeito à agência e à capacidade deliberativa de cada sujeito coletivo preserva o direito a que seu curso histórico continue fluindo livre e diferenciado Por isso o fato de que as sociedades se transformam abandonam costumes e adotam e instalam outros é precisamente um argumento contra a lei e não a seu favor Ao dizer que as sociedades mudam por vontade própria como resultado das dissidências internas e do contato com os discursos epocais que circulam em seu entorno e as atravessam como precisamente o discurso internacional dos direitos humanos estamos afirmando que o Estado não é a agência para prescrever e impor mediante ameaça e coerção desfechos para a trama da história dos outros povos que a Nação abriga Seu papel único é o de proteger o curso próprio de cada povo em seu desdobramento idiossincrático e particular velando para que isso possa ocorrer sem imposições autoritárias de grupos internos caciques que resultaram empoderados por terem se especializado nos trabalhos de intermediação com o Estado e a sociedade 205 dita nacional e também sem coação externa como a que esta lei bem representa A devolução da justiça própria nada mais é do que a devolução da história própria Nessa perspectiva antropológicojurídica que proponho o papel do Estado será portanto o de restituir aos povos os meios materiais e jurídicos para que recuperem sua capacidade usurpada de tecer os fios de sua própria história e lhes garantir que a deliberação interna possa ocorrer em liberdade em concordância com a figura jurídica das garantias de jurisdição ou foro étnico categoria objetificadora que serve para fins de classificação e ancorar o grupo em uma etnicidade referida a um patrimônio fixo de bens culturais 7 Mas o Estado não pode retirarse súbita e completamente devido a desordem instalada nas comunidades como consequência da longa intervenção do mundo dos brancos sobre elas Seu papel portanto deverá ser o de garantir a deliberação interna quando obstaculizada pelos poderes estabelecidos cacicados dentro das comunidades em geral homens idosos membros mais ricos líderes políticos cujo poder foi e é constantemente retroalimentado de fora do grupo seja de forma reativa frente às interpelações externas seja por meio de alianças com segmentos da sociedade nacional comerciantes políticos latifundiários que reforçam os poderes no interior das comunidades em benefício próprio DANTAS Fernando Antônio de Carvalho O sujeito diferenciado a noção de pessoa indígena no Direito brasileiro Dissertação de mestrado Programa de pósgraduação em Direito e Ciências Jurídicas Curitiba UFPR 1999 DAVIS Megan Constitutional Niceties or the Care and Protection of Young Children Aboriginal Children and the Silencing of Debate in Australian Childrens Rights News Newsletter of the Australian Section of Defence for Children International Sidney n 44 out 2007 FEITOSA Saulo Ferreira TARDIVO Carla Rúbia Florêncio CARVALHO Samuel José de Bioética cultura e infanticídio em comunidades indígenas brasileiras o caso Suruahatá Trabalho final do VIII Curso de PósGraduação Lato Sensu em Bioética Cátedra Unesco de Bioética Brasília UnB 2006 FOUCAULT Michel Defender la sociedad Curso no Collège de France 1975 1976 Horacio Pons trad Buenos Aires Fondo de Cultura Económica 2000 Ed Bras Em defesa da sociedade São Paulo Martins Fontes 2012 Seguridad territorio población Curso no Collège de France 1977 1978 Horacio Pons trad Buenos Aires Fondo de Cultura Económica 2006 Ed Bras Segurança território população São Paulo Martins Fontes 2020 Nacimiento de la biopolítica Curso no Collège de France 1978 1979 Horacio Pons trad Buenos Aires Fondo de Cultura Económica 2007 Ed Bras Nascimento da biopolítica São Paulo Martins Fontes 2008 HOLANDA Marianna Assunção Figueiredo Quem são os humanos dos direitos Sobre a criminalização do infanticídio indígena Dissertação de mestrado Programa de PósGraduação em Antropologia Social Brasília UnB 2008 KROEMER Gunter O povo do veneno Belém Edições Mensageiro 1994 LEMGRUBER Julita Verdades e mentiras sobre o Sistema de Justiça Criminal in Revista do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal RCJ n15 setdez Brasília 2001 p 1229 MARÉS DE SOUZA FILHO Carlos Frederico O renascer dos povos indígenas para o Direito Curitiba Jurá Editora 1998 MARTINS José de Souza O massacre dos inocentes A criança sem infância no Brasil São Paulo Hucitec 1991 MCMULLEN Jeff Closing the Space Between US The Rights of Aboriginal Children University of Newcastle 2007 Human Rights and Social Justice Lecture Newcastle 2 nov 2007 PLATT Anthony M The Child Savers the Invention of Delinquency Chicago University of Chicago Press 1969 RODRIGUES Patrícia de Mendonça A caminhada de Tanyxiwè Uma teoria Javad da História Tese PhD Departamento de Antropologia Chicago Chicago University 2008 SÁNCHEZ BOTERO Esther Entre el Juez Salomón y el Dios Sira Decisiones interculturales e interés superior del niño Bogotá Universidad de Amsterdam Unicef 2006 SEGATO Rita Uma agenda de ações afirmativas para as mulheres indígenas do Brasil in Série Antropologia n 326 nova versão Departamento de Antropologia Brasília Universidade de Brasília 2003 Antropologia e direitos humanos alteridade e ética no movimento de expansão dos direitos universais in MANA vol 1 n 12 2006 p 207236 La faccionalización de la República y el paisaje religioso como índice de una nueva territorialidad in La Nación y sus Otros raza etnicidad y diversidad religiosa en tiempos de políticas de la identidad Buenos Aires Prometeo 2007 Closing Ranks Religion Society and Politics Today in Social Compass vol 55 n 2 p 207219 2008 Femigenocidio como crimen en el Fuero Internacional de los Derechos Humanos el derecho a nombrar el sufrimiento en el derecho in FREGOSO RosaLinda e BEJARANO Cynthia Eds Una cartografía del femicidio en las Américas México Unam 2010 SOARES Luiz Eduardo et al Violência e política no Rio de Janeiro Rio de Janeiro Iser RelumeDumará 1996 VIVEIROS DE CASTRO Eduardo A fabricação do corpo na sociedade xinguana in OLIVEIRA João Pacheco de Org Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil Rio de Janeiro Editora Marco Zero 1987 p 2141 ZAFFERONI Eugenio Raúl O inimigo no Direito Penal Rio de Janeiro Revan 2007 ZALUAR Alba Crime organizado e crise institucional 2002 Disponível em httpwwwsusepersgovbrupload1325076072CRIME20ORGANIZADO20E20CRISE20INSTITUCIONAL2020ALBA20ZALUARpdf Acesso em 5 jul 2021
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Bazar do Tempo 2021 Rita Segato 2013 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei n 9610 de 1221998 É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora Este livro foi revisado segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 em vigor no Brasil desde 2009 EDIÇÃO Ana Cecilia Impellizieri Martins ASSISTENTE EDITORIAL Clarice Goulart TRADUÇÃO Danú Gontijo e Danielli Jatobá REVISÃO Maria Clara Antonio Jeronimo PROJETO GRÁFICO E CAPA Violaine Cadinot DIAGRAMAÇÃO Cumbuca Studio IMAGEM DE CAPA Ama com criança ao colo Catarina e o menino Luís Pereira de Carvalho Autoria não identificada Museu ImperialIbram CIPBrasil Catalogação na Publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ S456c Segato Rita 1951 Crítica da colonialidade em oito ensaios e uma antropologia por demanda Rita Segato tradução Danielli Jatobá Danú Gontijo 1 ed Rio de Janeiro Bazar do Tempo 2021 Rita Segato 1 Tradução de Crítica da colonialidade en ocho ensayos Inclui bibliografia Prefácio ISBN 9786586719628 1 Antropologia 2 Póscolonialismo 3 Descolonização I Jatobá Danielli II Gontijo Danú III Título IV Série 2172266 Camila Donis Hartmann Bibliotecária CRB76472 BAZAR DO TEMPO PRODUÇÕES E EMPREENDIMENTOS CULTURAIS LTDA Rua General Dionísio 53 Humaitá 22271050 Rio de Janeiro RJ contatobazardotempocombr wwwbazardotempocombr Que cada povo teça os fios de sua história um diálogo tenso com a colonialidade legislativa dos salvadores da infância indígena O primeiro direito do ser humano é ter um povo Suportes e limites para a construção de um argumento difícil Em agosto de 2007 fui convocada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados do Congresso Nacional brasileiro para apresentar um argumento de cunho antropológico com a finalidade de explicar a parlamentares sobre o tema do assim chamado infanticídio indígena A explicação era necessária para que pudessem decidir seu posicionamento à hora da iminente votação de uma lei que criminalizaria tal prática Neste artigo detalho o conjunto de considerações e conhecimentos que envolveram a preparação da minha argumentação para a ocasião apresento o texto com o qual questionei a aprovação do projeto de lei e apresento as conclusões de alcance teórico que surgiram no processo de sua elaboração 165 ao finalizar o exercício retórico cuja confecção aqui descrevo as categorias povo e história haviamse imposto como as únicas capazes de permitir a defesa de um processo de devolução do exercício da justiça própria às comunidades indígenas por parte do Estado nacional Ao receber o convite percebi que teria de tecer minhas considerações de forma complexa obedecendo ao princípio que eu mesma havia estabelecido ao falar de uma antropologia cujo lema deveria ser a partir de agora permanecer disponível para as demandas de suas e seus estudados e consciente para o padrão de colonialidade típico da intervenção do Estado na vida das comunidades A intervenção legislativa foi sem dúvida uma dessas formas de intrusão O primeiro problema é que me encontrava dividida entre dois discursos diferentes e opostos ambos vindos de mulheres indígenas e dos quais eu tinha conhecimento Um deles era o repúdio que na primeira reunião extraordinária da recémcriada Comissão Nacional de Política Indigenista CNPI realizada nos dias 12 e 13 de julho de 2007 a Subcomissão de Gênero Infância e Juventude havia manifestado a respeito dessa lei O segundo discurso era a queixa apresentada por uma mulher indígena Edna Luiza Alves Yawanawa da região fronteiriça entre Brasil e Peru no estado do Acre Ela durante a oficina de direitos humanos para mulheres indígenas que assessorei e conduzi em 2002 para a Fundação Nacional do Índio Funai havia descrito a norma do infanticídio compulsório de um dos gêmeos entre os Yawanawá como fonte de intenso sofrimento para a mãe por isso também vítima da violência daquele preceito Essa era em sua experiência uma das contradições difíceis de 166 resolver entre o direito à autonomia cultural e o direito das mulheres Tinha portanto diante de mim a ingrata tarefa de argumentar contra aquela lei mas ao mesmo tempo fazer também construir um argumento baseado em considerações Estado nacional com forte influência cristã herdeiro da administração colonial ultramarina e estruturado por um padrão formado em sua grande maioria por homens brancos muitos dos quais proprietários de terras em localidades com presença indígena e no caso dessa lei representados pela agressiva Frente Parlamentar Evangélica cujos membros são muito articulados entre si e atores fortemente mancomunados na política brasileira Foi justamente um membro dessa Frente Parlamentar Evangélica o proponente do Projeto de Lei nº 1057 de 2007 em discussão Henrique Afonso deputado federal do Partido dos Trabalhadores PT pelo estado do Acre e membro da Igreja Presbiteriana do Brasil Se por um lado amparavame a Constituição Federal de 1988 e a ratificação pelo Brasil em 2002 da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho OIT com sua defesa do direito indígena à diferença por outro a defesa da vida apresentavase como um limite intransponível para qualquer tentativa de relativizar o Direito Com efeito a Constituição de 1988 especialmente no artigo 231 e nos artigos 210 215 e 216 reconhece e garante a existência da diversidade de culturas no interior da nação e o direito à pluralidade de formas particulares de organização social A partir dessa visão constitucional pluralista da ordem cultural intérpretes como Marés de Souza Filho e Carvalho Dantas afirmam que a Carta de 1988 assenta as bases para o exercício progressivo dos direitos próprios por parte das sociedades indígenas no Brasil Além disso a ratificação da Convenção 169 da OIT em 2002 foi um passo adiante no caminho do reconhecimento das justiças próprias embora a norma constituídinária ali apesar de adquirir o status de lei devido a sua inclusão na legislação a partir do processo de constitucionalização do instrumento jurídico internacional siga limitada pela obrigatoriedade de respeitar as normas do ordenamento jurídico nacional e dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos Porém por razões que não podem ser examinadas aqui e apesar de contar hoje com aproximadamente 220 sociedades indígenas e um número total de aproximadamente 800 mil indígenas 05 da população o Brasil está muito longe de um efetivo pluralismo institucional e ainda mais distante da elaboração de pautas de articulação entre o direito estatal e os direitos próprios como ocorre na Colômbia e na Bolívia As próprias comunidades indígenas não demandam do Estado a devolução do exercício da justiça com o mesmo empenho com que demandam a identificação e demarcação de seus territórios nem têm nítido o que significaria essa restituição no processo de reconstrução de suas autonomias Não há investigação suficiente a esse respeito mas esse atraso no tocante às tão inaceitáveis como a eliminação de crianças Estávamos sem dúvida perante um caso limítrofe para a defesa do valor da pluralidade Essa dificuldade era agravada pela quantidade de material jornalístico de diversos tipos que as organizações religiosas tinham divulgado sobre crianças que alegavam ter resgatado da morte estratégia que culminou na interrupção da audiência pública para permitir a entrada de um contingente de dez crianças com algumas mães muitas das quais com diferentes graus de deficiências para mostrar gratidão à organização que afirmava têlas salvado de morrer nas mãos de suas respectivas sociedades Atini Voz pela vida uma organização não governamental ONG evangélica local mas com ramificações internacionais em rádios e sites de internet em inglês estava por trás dessa demonstração de poder de comunicação social e mídia e chegou a produzir um pequeno manual ou cartilha chamada O direito de viver da série Os direitos da criança O folheto dedicado a Muwaji Suruwaha mulher indígena que enfrentou as tradições de seu povo e a burocracia do mundo de fora para garantir o direito à vida de sua filha lganani que sofre de paralisia cerebral incluía as seguintes legendas alusivas às situações em que várias sociedades indígenas supostamente cometem infantícidio Nenhuma criança é igual a outra mas todos têm os mesmos direitos O direito da criança é mais importante do que sua cultura É dever da comunidade proteger suas crianças Os gêmeos têm direito a viver Filhos de mãe solteira têm direito a viver Crianças com problemas mentais têm direito a viver Crianças especiais que nascem com algum problema têm direito a viver Crianças cujo pai é de outra etnia têm direito a viver e informa também sobre a legislação em vigor para a proteção da vida das crianças Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança Estatuto da Criança e do Adolescente do Brasil e a cláusula 2º do artigo 8º da Convenção 169 da OIT que estabelece limites aos costumes Tanto as notícias plantadas por essa organização em jornais e revistas de ampla distribuição nacional quanto a entrada com a moviment no auditório do Congresso onde a sessão estava ocorrendo resultam naturalmente em uma imagem das sociedades indígenas como bárbaras homicidas e cruéis com seus próprios bebês indefesos Imagem oposta à de um movimento religioso que pretende salvar as crianças dos povos que as assassinam A legítima defesa da vida de cada criança e o desejo de uma vida boa para todos e todas transformavamse assim em campanha de proselitismo antiindígena e na pregação da necessidade de aumentar o controle sobre a vida nas aldeias O fundamento era a suposta necessidade de proteger a pessoa indígena de sua incapacidade cultural de cuidar da vida Da individualidade e particularidade de cada caso passavase a partir de uma perspectiva cristã a uma política geral de vigilância da vida indígena e de desprezo pelo próprio modo de vida com as bases cosmológicas que a estruturavam A missão apresentavase assim como indispensável para o bemestar de incapazes primitivos e primitivas e para a erradicação de seus costumes selvagens ou seja para sua salvação não só celestial mas também mundana A lei que se propunha era portanto o corolário de um projeto de igrejas que se autopromoviam como salvadoras da criança indígena parafraseando intencionalmente aqui o título irônico da já clássica obra de Anthony M Platt Em julho de 2008 as forças e os interesses representados pela Frente Parlamentar Evangélica não haviam conseguido aprovar essa lei tampouco impedir a liberalização de outras leis relacionadas à gestão da vida humana A ofensiva legislativa contra o aborto as uniões homossexuais a experimentação com célulastronco etc permite vislumbrar na esfera política da intervenção religiosa contemporânea o biopolitico o público Como parte desse intervencionismo biopolítico o diretor de Hollywood David Cunningham cujo pai Lauren Cunningham é um dos fundadores da entidade missionária Youth with a Mission JOCUM lançou o filme Hakani Youth with a Mission JOCUM que transmite a falsa impressão de tratarse de registro documental do sepultamento de duas crianças vivas já crescidas por indígenas de uma aldeia Suruwaha O filme realizado por atrizes e atores indígenas evangelizados e rodado em propriedade daquela missão evangélica é gravemente prejudicial à imagem dos povos indígenas do Brasil e do povo Suruwaha em particular Para a infelicidade da produção o filme que foi exibido em vários programas com grande audiência da televisão brasileira como um documentário ou seja como um registro falso de cenas verídicas foi em programa de domingo visto por seu elenco em uma aldeia Karitiana em Rondônia Qual não foi sua perplexidade ao perceber que o roteiro não era sobre o que lhes havia sido dito a vida dos povos indígenas como fora antigamente em tempos remotos Ao contrário ao assistirem ao filme constatavam que o mesmo afirmava ser o sepultamento de crianças vivas uma prática corrente e contemporânea Recorerram então ao Ministério Público do estado de Rondônia e iniciaram um processo contra a produção Apesar disso nada menos que a sede da Ordem dos Advogados do Brasil OAB se seção Brasília ofereceu em 2012 um curso sobre infanticídio indígena durante o qual para minha surpresa e sob meus protestos o filme Hakani foi exibido como um documentário O projeto de lei sua inspiração e a coincidência de agendas no âmbito internacional Os autores do Projeto de Lei nº 1057 de 2007 deramlhe o nome de Lei Muwa ji em alusão a uma mãe Suruwaha que afirmavam ser a salvadora de seu bebê que tinha paralisia cerebral Não vou me dedicar aqui a criticar o projeto de lei em termos jurídicos Basta dizer que indiquei reiteradamente que esta lei sobrecriminaliza o infanticídio indígena porque por um lado repete a sanção que já pesa sobre atos anteriormente contemplados na Constituição e no Código Penal e por outro inclui não apenas os autores diretos do ato como também todas as suas testemunhas reais ou potenciais ou seja toda a aldeia onde ocorreu além de outras testemunhas como por exemplo representantes da Funai antropólogas e antropólogos agentes de saúde entre demais possíveis visitantes Os principais argumentos a favor da lei vieram de Edson e Márcia Suzuki um casal de missionários que atua entre o povo Suruwaha e que apareceu na mídia impressa e televisão com grande audiência por supostamente ter resgatado a menina Ana Hakani alegadamente condenada à morte por uma disfunção hormonal congênita severa e que cursou o ensino fundamental em uma escola particular de alto padrão em Brasília Em duas reportagens consecutivas de página inteira no principal jornal do Distrito Federal Correio Braziliense tituladas respectivamente A segunda vida de Hakani e O sorriso de Hakani uma profusão de fotografias mostrava a menina em seu novo meio fazendo uso de sua imagem para fins de propaganda da ação missionária Depois de um repugnante manuseio da história o cronista afirma que a recepção de Hakani por seus colegas do ensino fundamental deu 173 um chute em qualquer sinal de preconceito porque segundo o depoimento de uma colega Hakani é igualzinha à gente Eu nem lembro que ela é índia O jornal relatava o que teria sido o processo de rejeição sofrido pela menina em seu ambiente original mas não oferecia nenhum tipo de informação contextual capaz de tornar o que foi relatado inteligível para quem leu a matéria Por coincidência logo após receber o convite para participar da audiência pública recebi uma mensagem indignada de minha amiga e colega Vicki Grieves ativista antropóloga e professora universitária aborígine Em sua carta Vicki informava à comunidade internacional sobre uma nova lei promulgada em seu país a Austrália dizendo Queridos amigos vocês já devem estar cientes das ultrajantes incursões nas comunidades aborígenes nos Territórios do Norte sob o disfarce de salvar as crianças Percebi então que a retórica da suposta salvação de crianças era invocada simultaneamente na Austrália alegando a necessidade de protegêlas de mães e pais abusadores Assim ficamos sabendo que a intervenção nos Territórios do Norte da Austrália passava a ser justificada em nome da luta contra uma suposta epidemia de abuso infantil Precisamente em 17 de agosto de 2007 dezena de dias antes da audiência pública da qual participei o parlamento da Commonwealth aprovou sem emendas um pacote de medidas que implementava nacionalmente a resposta urgente do governo federal ao Ampe Akelyernemane Meke Mekarle o relatório As crianças pequenas são sagradas A nova legislação possibilitava todo tipo de intervenção nos territórios aborígenes redução de direitos e liberdades e suspensão do direito consuetudinário Em uma conferência magnífica Jeff McMullen desvenda as falhas e os interesses por trás das ações em defesa das crianças 174 Este dramático ataque por parte do Governo Federal a mais de setenta comunidades remotas pertencentes ao povo aborígene no Território do Norte começou com palavras equivocadas e sem consulta a seus proprietários tradicionais Todo líder indígena afirmará que se trata de uma das ofensas mais graves É significativa a analogia do álibi intervencionista no Brasil e na Austrália Da mesma forma os contraargumentos deverão ser do mesmo tipo a única solução possível será a consulta o respeito às autonomias e a delegação de responsabilidades aos povos junto com os meios necessários para resolver os problemas Em conversas subsequentes com ativistas daquela região do mundo concordamos com o fato de que as agendas tendentes a intervir nos territórios indígenas pareciam coincidir num outro continente a estados intervencionistas e colonizadores Uma nova surpresa foi constatar que o projeto de lei brasileiro de sobrecriminalização do chamado infanticídio indígena se encontrava traduzido para o inglês e disponível na internet algo inusitado até mesmo para a legislação sancionada e vigente Breve panorama da prática nas sociedades indígenas brasileiras Pego as informações que nos permitem compreender o caso de Hakani utilizadas pela Frente Parlamentar Evangélica para divulgar o projeto de lei do ensaio final apresentado para a Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília por Saulo Ferreira Feitosa vicepresidente do Conselho Indigenista Missionário Cimi Carla Rúbia Florêncio Tardivo e Samuel José de Carvalho Por sua vez os autores e autora vale 175 ramse para sua informativa síntese de dois estudos que eram provavelmente os únicos na bibliografia brasileira a abordar à época a questão do infanticídio Segundo essas fontes os Suruwaha da família linguística Arawá que vivem no município de Tapauá estado do Amazonas a 1228 quilômetros de rio da capital Manaus permaneceram em isolamento voluntário até o final da década de 1970 Tiveram o primeiro contato com uma equipe missionária católica do Cimi que ao perceber que se tratava de um povo capaz de garantir sua autossustentabilidade e manter viva sua cultura desde que se mantivesse livre da presença de invasores compreenderam que deveriam adotar uma atitude de não interferência direta na vida da comunidade e intervir apenas lutando pela demarcação e proteção de seu território que não demorou a se concretizar Essa equipe limitouse então a acompanhar o grupo à distância manter uma agenda de vacinação e respeitar seu isolamento voluntário No entanto quatro anos depois a Missão Evangélica Jocum dos missionários Suzuki decidiu estabelecerse entre os Suruwaha de forma permanente Unidas para a Infância Unicef em 2010 não houve durante toda a última década nenhuma notícia confiável da prática do infanticídio nem entre o povo Suruwaha nem por parte de outros povos o que confirma seu progressivo abandono voluntário à medida que se expandem os fatores de sobrevivência e o discurso dos direitos humanos no Brasil Os autores e a autora da citada monografia também nos informam que entre o povo Suruwaha por trás do viver ou do morrer está uma ideia uma concepção do que seja a vida e a morte em outras palavras do que é a vida que vale a pena viver ou não Por isso citando Dal Poz acrescentam as consequências desse pensamento são percebidas em números Os fatores de mortalidade entre os Suruwaha são eminentemente sociais 76 de todas as mortes são causadas por infanticídio e 576 por suicídio Nesse ambiente faz sentido viver quando a vida é agradável sem sofrimento excessivo para o indivíduo ou para a comunidade Por isso se pensa que a vida de uma criança nascida com defeitos ou sem pai para colaborar com a mãe em sua proteção será pesada demais para ser vivida Da mesma forma para evitar um futuro de dor e perda de prestígio na velhice a criança passa a conviver desde pequena com a possibilidade de cometer suicídio desse grupo que as equipes missionárias divulgam nos meios de comunicação cria a percepção de ignorância e barbárie assim como a certeza de sua incapacidade de cuidar de maneira adequada da vida de sua prole Como mencionei anteriormente etnografias que tratam do tema do infanticídio indígena são praticamente inexistentes no Brasil Em primeiro lugar porque não há relatos dessa prática nos últimos anos e certamente nenhuma testemunha ocular que a tenha reportado Mesmo em tempos anteriores quando essa prática ocorreu era sempre rara incomum e nunca realizada sob os olhos de quem visitava ou etnografiava a aldeia Houve possivelmente também por parte de etnógrafos e etnógrafas um consenso geral de que revelar essa prática poderia causar grandes danos às comunidades e deixálas expostas à intervenção policial ou a investidas mais intensas por parte de equipes missionárias das diversas igrejas cristãs Apesar disso sabese pela comunicação oral de vários etnólogos e etnólogas que na categoria infanticídio reunimos práticas que quando submetidas a um escrutínio mais rigoroso se mostram muito diversas tanto no seu sentido e papel dentro do grupo como no significado que poderiam adquirir no campo dos direitos Por exemplo em algumas sociedades a regra que determina a eliminação de um ser recémnascido quando se trata de gêmeos seria emanada da cosmologia e deveria ser obedecida pela comunidade Em outras sociedades é a comunidade a família ou a mãe que se encarrega da decisão sujeita a considerações sobre a saúde da criança as condições materiais da mãe ou do grupo para poder garantirlhe a vida a curto e médio prazo ou sobre a ausência da figura paterna para colaborar com seu cuidado em um ambiente no qual os recursos para a subsistência são limitados e não existe excedente Em suma contudo fica evidente pela diversidade de testemunhos que recebemos ao preparar em 2010 um relatório sobre o assunto para o Unicef que nem a regra de base cosmológica nem as demais causalidades alegadas determinam propriamente sua obediência ou seja fazem efetivamente e de forma automática com que a prática seja executada O que ocorre de acordo com reiterados relatos é que a forma encontrada para contornar a regra consiste na circulação da criança para ser criada por pessoas ou famílias próximas de confiança ou ligadas à mãe e ao pai por parentesco Devemos passar portanto a analisar a questão considerando separadamente a norma ou prescrição do infanticídio cosmológica de saúde ou relativa à escassez de recursos e deixar de lado a consideração das práticas efetivas caso existentes pelas razões expostas acima a regra como toda norma não mantém uma relação causal com as práticas Em outro lugar argumentei que tampouco é possível no direito moderno e ocidental atribuir à lei o papel de causa dos comportamentos uma vez que a lei só modifica as práticas se consegue persuadir as pessoas de que é o meio mais eficiente de harmonizar a interação social Isso é facilmente verificável considerando as diversas leis que não têm eficácia material ou seja que não são cumpridas e é ainda mais verdadeiro nas sociedades comunitárias nas quais a norma não tem exatamente a mesma função ou leitura do que no Direito moderno Neste último tipo de sociedade a norma é um enunciado ou atualização do cosmos uma maneira de falar do mesmo e não necessariamente uma lei de aplicabilidade universal para todos os casos e todos seus membros já que não há tipificação no direito tribal nem do delito nem das ações humanas Tratarei do assunto neste mesmo volume no capítulo O sexo e a norma ao discuti universo judaicocristão de abominações ou atrocidades bíblicas Afirmei por exemplo que algumas cosmologias indígenas prescrevem a morte de crianças gêmeas e que essa prescrição determina por si mesma sua eliminação isto é provoca automaticamente sua morte equivale a dizer que numerosos versículos da Bíblia que prescrevem o que se conhece por atrocidades bíblicas serão obedecidos mecanicamente É o caso dos mandatos para extermininho de prole de inimigos em Levítico 2622 Oseias 1316 e Salmos 1369 apedrejar alguém até a morte por não observar os dias de guarda em Números 15 3236 ou matar pela mesma razão em Êxodo 352 entre outros exemplos possíveis Em nenhuma sociedade indígena ou não a prática do infanticídio constituiu ou constituiu consequência automática da norma cultural ou seja costume pautado por normas positivas e incontornáveis As leis e as normas nunca devem ser entendidas como uma causa mecânica das condutas humanas Quando ocorre a prática do infanticídio em qualquer sociedade humana inclusive nas sociedades indígenas ela constitui uma medida adaptativa circunstancial e contingente às condições históricas de acomodação a circunstâncias muito adversas na família ou na comunidade Em relação à regra do infanticídio propriamente dita percebese que dependendo da fonte de onde emana muda a forma como os direitos humanos podem ser acionados pois se é a comunidade quem decide a mãe poderá sentirse lesada em seu direito de manter o bebê Quando é a mãe quem deve decidir a violação de direitos privados será percebida como recaindo sobre o menino ou a menina Em diferentes sociedades razões cosmológicas ou pragmáticas sobre as possibilidades de sobrevivência do bebê ou do próprio grupo ou o cálculo avaliativo da mãe ou de parentes imediatos orientam a decisão de acolher ou não uma nova vida Vejamos algumas características e significados que afetam essa prática em duas sociedades às quais tive acesso por meio da comunicação oral de um antropólogo e uma antropóloga Durante o Seminário Interamericano de Pluralismo Jurídico que organizei em Brasília em novembro de 2005 na Escola Superior do Ministério Público da União ESMPU em colaboração com a Sexta Câmara de Coordenação e Revisão Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal o antropólogo Iván Soares atuando na época junto ao Ministério Público do estado de Roraima na fronteira norte do Brasil com grande população indígena divulgou detalhes importantes sobre como o preceito do infanticídio era compreendido entre os Yanomami Seu objetivo era responder a um procurador que defendia o império universalista dos direitos humanos em todos os casos Para esse fim ele relatou que as mulheres Yanomami têm total poder de decisão sobre a vida de seus bebês recémnascidos uma vez que as mães não se consideram totalmente separadas deles O parto acontece na floresta fora da aldeia nesse ambiente de retiro fora do contexto da vida social a mãe tem duas opções se ela não tocar no bebê ou pegálo nos braços deixandoo no chão onde ele caiu significa que ele não foi acolhido no mundo da cultura e das relações sociais e que não é portanto humano Assim do ponto de vista indígena não seria possível afirmar que ocorreu um homicídio uma vez que o que permanece na terra não constitui uma vida humana Portanto entre o povo Yanomami o nascimento biológico não é a porta de entrada para a humanidade pois para que isso ocorra terá de haver um nascimento pósparto ou seja produzido na cultura e dentro do tecido social Tal concepção está presente em muitos outros povos indígenas do Brasil e permite contrapor as concepções ameríndias à biopolítica dos direitos humanos levando a dilemas como os examinados por Giorgio Agamben em sua obra sobre o Homo Sacer com a separação entre Zoé e Bios na Antiguidade26 Por sua vez Patrícia de Mendonça Rodrigues27 etnógrafa do povo Javáe que habita a ilha do Bananal no estado do Tocantins no Brasil central relatoume o que acreditava estar por trás da prática do infanticídio nesse grupo Para o povo Javáe o bebê recémnascido vem ao mundo como uma alteridade radical um outro não humano que deve ser humanizado ritualmente por meio do cuidado e da nutrição a cargo de seus familiares Ele chega ao mundo contaminado e com o corpo aberto pois sua matéria é composta pela mistura de substâncias de sua mãe e de seu pai A tarefa social é humanizálo ou seja trabalhar para que seu corpo se feche e o constitua como sujeito individual e social Portanto sua extinção aqui também não é entendida como homicídio O fato de que nasce como um estranho absoluto segundo acreditado justifica a prática do infanticídio Os Javáe não dizem isso abertamente mas tudo indica que a justificação consciente para o infanticídio na maior parte dos casos é que o bebê não tem um provedor seja porque a mãe não sabe quem é o pai seja porque o pai a abandonou ou por outra razão não somente para sustentálo economicamente mas e sobretudo para se encarregar do requerido para os longos e complexos rituais que o identificarão novamente com seus ancestrais mágicos conferindolhe sua identidade pública de corpo fechado Cabe ao pai principalmente a responsabilidade social pela transformação pública do filho de corpo aberto num parente de corpo fechado isto é um ser social Um filho sem pai social é o pior insulto possível para um Javáe e um motivo plenamente aceitável para o infanticídio28 Constatamos uma vez mais que não é a ignorância o que se esconde por trás da diferença no tratamento da vida recémnascida nas sociedades originárias do Novo Mundo mas sim outra concepção do que seja humano e das obrigações sociais que o constituem Apesar de a antropologia de uma forma ou de outra já saber disso há muito tempo quando dialogamos com o Estado por meio de seus representantes não podemos invocálo Teremos de meditar profundamente em algum momento sobre os motivos pelos quais isso não é possível sobretudo porque as outras concepções de vida na radicalidade de sua diferença e na inteligência de seus termos não entram no seu imaginário estatal cuja estratégia de controle recaí cada dia mais no que Foucault denomina biopolítica e biopoder29 e consequentemente se distancia progressivamente das noções indígenas e comunitárias da vida humana Embora não faltem argumentos a favor de uma concepção da vida humana como responsabilidade social e não biológica Esther Sánchez Botero assume e não poderia ser de outra forma que diante do Estado é preciso falar à linha do Estado uma vez que este não está aberto à diferença radical Em sua tese de doutorado Entre el juez Salomón y el dios Sira decisiones interculturales e interés superior del niño Botero identificou claramente a estratégia jurídica clássica é necessário conhecer em profundidade a letra da lei para poder argumentar de seu interior30 Essa impressionante obra que visa a fornecer argumentos favoráveis à preservação da jurisdição indígena relativa à criança em querelas que a ameaçam extrai e sistematiza a experiência acumulada em diversos processos judiciais à luz de uma discussão conceitual de grande fôlego tanto no campo do direito como na antropologia A autora afirma que não são os mínimos jurídicos estratégia adotada pelo Direito colombiano para enfrentar os dilemas do pluralismo jurídico os que devem pautar o julgamento do que no Ocidente é lido como uma violação ao princípio do interesse superior das crianças estabelecido pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e do Adolescente Para a autora esse princípio é uma extensão dos princípios do Ocidente e não constitui necessariamente uma ideia realizável em todas as culturas e para todos os casos pois o melhor interesse referese à criança como sujeito individual de direito e não acata o reconhecimento constitucional das sociedades indígenas como novo sujeito coletivo de direito Por essa razão a aplicação generalizada não seletiva e impositiva desse princípio além de inconstitucional pode ser etnocida ao eliminar valores culturais indispensáveis à vida biológica e cultural de um povo31 Aprendemos assim que cada decisão deve cumprir um teste de proporcionalidade e somente os fins admitidos pela Constituição e reconhecidos pela interpretação da Suprema Corte como superiores poderiam limitar o direito fundamental do povo indígena de ser um povo Em suma para a autora os direitos das crianças não prevalecem sobre o direito do povo indígena a ser étnica e culturalmente distinto32 Concluise que em casos que implicam uma violação ao melhor interesse da criança será mister considerar e pesar os direitos que se encontram em contradição o direito à vida do sujeito individual e o direito à vida do sujeito coletivo recémnascido Diante desses pares contraditórios deverseá decidir qual dos termos sairá perdedor em razão de um direito superior Se a mãe não pode assumir a responsabilidade por uma nova vida humana como nos casos médicos em que a mãe está em risco a vida da mãe deve ter prioridade sobre a do bebê pois dela dependem os outros filhos e filhas Da mesma forma se a inclusão de uma criança em certas condições compromete a sobrevivência da comunidade como tal é a comunidade que terá prioridade uma vez que todos os seus membros dependem de sua capacidade de continuar existindo Para Sánchez Botero somente o contexto sociocultural de cada caso particular permite realizar essa avaliação O que dizem as pessoas indígenas As pessoas afetadas pela lei caso esta fosse votada também foram ouvidas em diversas ocasiões antes durante e depois da apresentação na audiência pública Uma grande oportunidade para ouvir suas opiniões sobre o projeto de lei foi por exemplo durante a reunião plenária da XI Sessão da Comissão Nacional de Política Indigenista CNPI realizada nos dias 9 e 10 de dezembro de 2009 no Ministério da Justiça em Brasília Na ocasião os argumentos dos povos indígenas foram numerosos sofisticados e contundentes Para a apreciação de quem lê decidi incluir aqui de forma muito resumida a impressionante lista de ideias com que os e as representantes indígenas criticaram a iniciativa legislativa tratase da invenção de um tema de sua construção e implantação no imaginário social nacional e internacional a lei é redundante uma vez que o homicídio de crianças já é um crime previsto em lei tendo em vista que as pessoas indígenas brasileiras fazem parte da nação e o infanticídio já é crime na legislação uma lei específica só pode resultar da intenção de criminalizar as pessoas indígenas e gerar desconfiança sobre seus costumes perante o poder público e a sociedade o projeto de lei sugere a existência de um costume norma cultural ou prática regular assídua e extensa de infanticídio ao passo que não existe prática com tais características no mundo indígena o projeto de lei superdimensiona a questão em termos de sua frequência e sistematicidade nas sociedades indígenas em relação a todas as outras sociedades humanas a lei trata de um conceito e de um assunto imposto de fora para dentro do mundo indígena mundo no qual nem sequer existe uma palavra para infanticídio e nem faz sentido a questão de que trata a lei esse tema é pautado pelo interesse imperialcolonial em apropriarse das riquezas naturais dos territórios indígenas essa pauta externa e espúria obriga os povos a se defenderem com a consequente perda de tempo e energia que deveriam ser dedicados a questões mais importantes e urgentes como salvar vidas de crianças indígenas da fome e da expropriação os próprios povos devem eleger suas pautas e definir sua própria agenda de temas urgentes perante a sociedade nacional a notícia da prática de infanticídio nunca chega de fontes oficiais e desinteressadas e provém exclusivamente de agentes religiosos interessados na retirada de crianças das aldeias para serem formadas como missionárias o projeto de lei criminaliza todos os povos indígenas suas lideranças e seus estilos de vida colocandoos sob a suspeita de serem infanticidas constrói uma imagem monstruosa dos povos indígenas constituindo calúnia e propaganda negativa contra eles reforça o estereótipo público de índios maus cruéis e selvagens a frase publicada na página de internet da organização evangélica Atini adote uma criança indígena convoca a se fazer negócio com nossas crianças tratase de uma campanha difamatória contra os povos indígenas essa calúnia midiática promove a condenação generalizada e sem conhecimento adequado da vida indígena e de suas visões de mundo a acusação de infanticídio e a exibição do falso documentário Hakani na televisão aberta mostra uma imagem caricatural e distorcida dos povos indígenas e alimenta a antipatia da sociedade contra eles tal calúnia midiática incrimina especialmente as mulheres indígenas esse desprezo da mídia é uma política discriminatória contra as pessoas indígenas e suas especificidades culturais implantase também desse modo a ideia de que existem salvadores e salvadoras das crianças indígenas indispensáveis para protegêlas da ameaça de suas próprias famílias e comunidades de seus costumes e ideias utilizase a ideia da incapacidade do sujeito indígena e promovese a sua falta de autonomia e a necessidade de tutela por meio desses equívocos fundos internacionais são obtidos para organizações detratoras dos povos indígenas se o Estado não consegue controlar o infanticídio cometido por seus próprios agentes de segurança pública nas ruas referese à letalidade policial contra adolescentes e jovens não brancos não tem legitimidade para promulgar esta lei em números mais elevados se os crimes dos brancos são muito maiores do que os crimes dos índios por que apenas uma lei é decretada contra indígenas Por que os brancos nos matam e não são incriminados por lei específica nem presos era ele mesmo suscetível de enquadramento e julgamento como infrator e insolvente 34 4 a eficácia criminal e a ênfase do Estado na criminalização como forma do controle recursos aos quais esta lei apelava haviam sido questionados por profissionais de prestígio da Criminologia Crítica e da Sociologia Jurídica 5 a lei era desnecessária porque legislava o que já estava legislado incorrendo no efeito conhecido como infl ação legislativa já muito criticado 6 ao enfatizar o direito individual das crianças à vida a lei deixou de considerar o respeito e a proteção igualmente devidos com base em diversos compromissos assumidos pelo Brasil no campo dos direitos humanos aos direitos dos sujeitos coletivos e dos direitos humanos aos direitos dos sujeitos coletivos e a garantir a sua sobrevivência como tais esqueça por isso mesmo que um direito fundamental de toda pessoa é precisamente o de fazer parte de um povo isto é o direito de ter um povo 7 O Congresso Nacional não tinha legitimidade para votar uma lei de intervenção na aldeia indígena sem a presença de representantes dos povos afetados em sua deliberação o que veio a confirmarse dois dias depois em 7 de setembro de 2007 quando o Brasil foi um dos signatários da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas ONU 34 assim como a desobediência ao Direito de Consulta também viola as disposições da Convenção 169 da OIT 8 outras experiências análogas no mundo mostravam que era perigosa a pretensão de legislar sobrecriminalizando a prescrição do infanticídio hoje praticamente vazia de conteúdo e suas eventuais e suppostas testemunhas ou seja os membros da aldeia e todos os seus agregados em uma época marcada por estratégias fundamentalistas a reação desencadeada poderia transformar essa prática em um emblema de identidade étnica ou seja poderia positivar e fundamentalizar a norma 35 Por fim era preciso ponderar bem o que se poderia dizer sobre o papel do Estado assim como avaliar opções que substituíssem o projeto de lei examinado uma vez que se opor à sua promulgação não significava necessariamente aprovar a prática do infanticídio em fidelidade à queixa da mulher Yawanawá já mencionada Tendo em vista as constantes reinvindicações dos povos indígenas ao Estado por território saúde educação entre outras reparações devidas e como consequência dos enormes desequilíbrios causados por sua atuação colonial e disruptiva não era desejável que o Estado se retirasse deixando por exemplo o controle das decisões sobre questões relacionadas a costumes nas mãos de quem detinha poder dentro das aldeias em muitos casos chefias masculinas hoje infladas e transformadas em autoritárias precisamente por seu papel mediador negociador ou guerreiro entre a aldeia e a administração outrora colonial de ultramar e agora republicana Em vez disso o Estado teria de transformar seu papel e concentrarse em promover e vigiar para que a deliberação interna pudesse ocorrer sem coação autoritária Essa era uma entre tantas tarefas de devolução que um Estado reparador deveria assumir dentro de um projeto nacional pluralista O que nesse caso teria de ser restituído concluiu era a capacidade de cada povo de deliberar internamente e fazer sua própria justiça recuperar a jurisdição Com a devolução da é necessária uma política permanente de informação junto aos povos indígenas sobre todas as questões legislativas e projetos de lei que lhes interessam em face da potencial capacidade de afetar suas vidas como é o caso do PL 10572007 Decisões sobre a estrutura da minha argumentação Embora a leitura da obra de Sánchez Botero tenha me dado certeza quanto ao caráter defensável sempre em função das circunstâncias de uma prática limitrofe como o infanticídio ainda não resolvia o problema de como argumentar perante parlamentares em parte porque no Brasil ainda não houve um debate oficial sobre jurisdições ou autonomias indígenas que pudesse servir de referência para minha exposição em parte porque as pessoas destinatárias da minha argumentação não constituíam um tribunal interessado em resolver casos concretos de violações dos interesses das crianças mas membros de uma casa legislativa que se encontrava às vésperas de votar uma lei geral sobre a matéria Eu teria então de tomar decisões sui generis que me permitissem tornar convincente o ponto central de minha prédica que criminalizar especificamente o infanticídio indígena não era de forma alguma desejável para a nação e seus povos Alguns dados eram necessários para a exposição assim como encontrar uma linguagem que os tornasse efetivos 1 o crescimento demográfico das sociedades indígenas após a ditadura militar havia sido notável e isso provava a capacidade dos povos indígenas de cuidar particularmente bem de sua prole 2 o Congresso que tentava enquadrar as sociedades indígenas na lei era ele próprio pautado em seu poder pelo padrão de colonialidade e composto por parlamentares cuja subjetividade se encontrava capturada pelo racismo epistemico ou pelo eurocentrismo próprio desse padrão 3 o Estado que tentava enquadrar as sociedades indígenas na lei justiça própria e a recomposição institucional que isso envolvia sobrevivria naturalmente a devolução da própria história pois deliberação é marcha é movimento de transformação no tempo Com a devolução da história as noções de cultura pela inércia que lhe é inerente grupo étnico necessitariamente referido a um patrimônio fixo perdiam sua centralidade e abriam caminho para outro discurso cujo sujeito era o povo como sujeito coletivo de direitos e autor coletivo de sua história ainda que narrada em forma de mito que nada mais é do que um estilo diferente de decantação e condensação da experiência histórica acumulada por um povo Apresento a seguir o resultado dessas ponderações Minha exposição na Câmara dos Deputados Que cada povo teça os fios da sua história em defesa de um Estado restituído e garantista da deliberação em foro étnico lida na audiência pública realizada em 5 de setembro de 2007 pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados sobre o Projeto de Lei n 10572007 apresentado pelo deputado Henrique Afonso sobre a prática de infanticídio em áreas indígenas 36 Agradeço a colaboração de Esther Sánchez Botero Xavier Albó Patrícia Rodrigues de Mendonça Ernesto Ignacio de Carvalho Saulo Ferreira Feitosa Rosane Lacerda Tiago Eli de Lima Passos Leía Vale Wapichana Suzy Evelyn de Souza e Silva Marianna Holanda e Danielli Jatobá Correio Braziliense Caderno Brasil p 13 Brasília terçafeira 28 de agosto de 2007 Em cinco dias onze bebês mortos em maternidade pública de Sergipe E hoje mesmo ao acordar Brasília quartafeira 5 de setembro de 2007 Titulares e Caderno Cidades referindose às cidades do entorno do Distrito Federal Vera Lúcia dos Santos teve dois filhos assassinados Ainda chorava a morte de Franklin 17 quando o menor Wellington 16 foi executado com dois tiros na nuca Ninguém preso Segundo a pesquisa do Correio nenhum dos 41 assassinatos de adolescentes de 13 a 18 anos ocorridos esse ano foi resolvido A segunda cena é a cena do índio e foi retirada de um livro que recomendo O massacre dos inocentes A criança sem infância no Brasil O organizador da obra José de Souza Martins resume com as seguintes palavras emocionadas o primeiro capítulo do volume Os índios Parkatejê trinta anos depois de Iara Ferraz foi a sociedade branca que em sua expansão voraz e cruel levou a destruição e a morte aos índios Parkatejê do sul do Pará Não somente eliminou fisicamente um grande número de pessoas mas também semeou no interior da tribo a desagregação social a desmoralização a doença a fome a exploração condições de rendição incondicional do índio na sociedade civilizada O branco levou à tribo o desequilíbrio demográfico comprometeu suas linhagens e sua organização social Os Parkatejê assumiram heroicamento a rendição entregaram suas crianças órfãs aos brancos para que ao menos sobrevivessem ainda que seja como filhos adotivos Mais tarde quando conseguiram reorganizar sua sociedade saíram em busca das crianças dispersas agora já adultos disseminados até em regiões distantes para que voltassem à sua tribo para compartilhar saga do povo Parkatejê Inclusive pessoas que nem sequer tinham conhecimento da sua origem indígena porque os brancos lhes tinham negado essa informação foram surpreendidas no meio de um dia na casa adotiva pela visita de um velho chefe indígena que lhes anunciava que tinha vindo a buscálas para retornarem à sua aldeia e ao seu povo que os estava aguardando 37 J de S Martins O massacre dos inocentes A criança sem infância no Brasil p 10 196 Antes bem deveríamos pelo contrário criminalizar esse mesmo Estado que hoje pretende legislar e leválo ao banco dos réus por insolvente por inadimplente por omisso por infrator e até por homicídio através das mãos de muitos de seus representantes e agentes investidos de poder policial Ao com parar a gravidade dos delitos não teremos alternativa além de absolver os povos que hoje se trata aqui de criminalizar e devolver a mira do Direito na direção de quem tenta inculpálos uma elite que cada dia constata sua incapacitada para administrar a Nação e vê desmontada em público sua pretensão de superioridade moral instrumento principal de todas as empresas de dominação A força dessa vinheta inicial fala por si mesma Bem poderia encerrar aqui minha exposição e já seria convincente Continu do há muito mais a dizer sobre o Projeto de Lei cuja discussão hoje nos reúne A começar por duas precisões que antes de prosseguir devem ser feitas A primeira referese ao que estamos debatendo nessa audiência pois deve ficar claro que a discussão do projeto de lei sobre infanticídio em áreas indígenas não deve ter como foco o direito à vida individual que já se encontra devidamente garantido na Constituição brasileira no Código Penal e em diversos instrumentos de direitos humanos ratificados pelo Brasil Em lugar de reduplicar as leis já abundantes de defesa da vida individual urgiria propor caminhos para que o Estado se torne capaz de proteger e promover melhor a continuidade e a vitalidade dos povos que tanta riqueza conferem à Nação em termos de diversidade de soluções para a vida É do bemestar dos povos que depende a vida das suas crianças coletivos isto é o direito à proteção da vida dos povos em sua condição de povos Precisamente porque esse último se encontra muito menos elaborado no discurso jurídico brasileiro e nas políticas públicas é a ele que deveríamos dedicar a maior parte de nossos esforços de reflexão e tentar imaginar como brindar uma maior proteção legislativa jurídica e governamental aos sujeitos coletivos de direitos os mais desprotegidos como promover sua vida e fortalecer seu tecido social comunitário e coletivo Defendo aqui que a prioridade é salvar a comunidade onde ainda há comunidade e salvar o povo onde ainda persista um povo Porque um direito fundamental de toda pessoa é ter povo pertencer a uma coletividade vendo livres da cobiça por concentrar e acumular isto é livres da pesada bagagem que nós carregamos terão quem sabe uma oportunidade que nós não teremos num mundo que se interna cada dia no que muitos acreditam ser sua fase final pelo esgotamento dos recursos O significado das leis A prestigiosa pesquisadora brasileira da área da segurança pública e eficácia penal Julita Lemgruber39 revela o escasso impacto da lei não somente entre nós mas também nos países mais vigiados do mundo Valendose de pesquisas quantitativas sobre segurança pública em países onde os monitoramentos são realizados com regularidade a autora informa que na Inglaterra e no País de Gales no ano de 1997 somente 22 dos delitos obtiveram alguma condenação dos responsáveis e nos Estados Unidos segundo enquête de 1994 de todos os crimes violentos cometidos homicídios agressões estupros roubos etc cuja investigação esclarecimento e punição pareciam mais relevantes somente 37 resultaram em condenações À luz desses dados a autora qualifica como Primeira Mentira a afirmação de que o sistema de justiça criminal pode ser considerado um inibidor eficaz da criminalidade No caso do Brasil o reduzido poder da lei é ainda mais extremo No estado do Rio de Janeiro o mais monitorado por enquetes periódicas sobre violência autores e autoras que realizaram suas pesquisas durante os anos 1990 como Ignácio Cano Luiz Eduardo Soares e Alba Zaluar concluíram respectivamente que somente 10 8 ou 1 de todos os homicídios denunciados à justiça alcançaram algum tipo de condenação40 Nas palavras de Alba Zaluar No Rio de Janeiro apenas 8 das averiguações se transformam em processos e são levadas a julgamento Dessas apenas 1 alcança sentença41 Esses dados impõem novos interrogantes a respeito das motivações que parlamentares poderiam entreter ao insistir numa lei que criminaliza os povos indígenas e torna mais distante sua retomada de um direito próprio e de uma jurisdição própria para a solução de seus conflitos e dissensos dentro das comunidades em violação assim ao Convênio 169 da OIT plenamente vigente no Brasil desde 2002 O futuro do Estado Qual poderia ser então o trabalho do Estado para poder superar um cenário tão desalentador como o que acabo de apresentar Deveria ser um Estado restituído e garantidor do direito étnico e do direito comunitário em geral Com isso quero dizer que em vista da desordem que as elites metropolitanas europeias e cristãs instalaram no continente a partir do processo de conquista e colonização desordem mais tarde agravada e aprofundada pela administração a cargo das elites nacionais eurocêntricas herdadeiras do controle dos territórios hoje temos uma oportunidade É a oportunidade de permitir que aqueles povos que até agora não tiveram a ocasião de fazêlo possam agora restaurar sua ordem institucional interna e retomar os fios da sua história Quem sabe seja sim possível refazer o que foi desfeito nas ordens cultural jurídica política econômica e ambiental da Nação Se não existe lei perfeita em lugar de insistir na perfectibilidade cada dia mais remota de um sistema jurídico deficiente podemos abrir caminho para outros modelos Reafirmome aqui aos direitos próprios e ao projeto do pluralismo jurídico aldeia humana por menor que seja a divergência é inevitável e quando se trata da prescrição de infanticídio o dissenso costuma se apresentar Diante disso o papel do Estado na pessoa dos seus agentes terá de ser o de estar disponível para supervisionar mediar e interceder com o fim único de garantir que o processo interno de deliberação possa ocorrer livremente sem abusos por parte dos mais poderosos no interior da sociedade Tampouco se trata de solicitar a retirada do Estado porque como atestam as múltiplas demandas por políticas públicas colocadas pelos povos indígenas a partir da Constituição de 1988 depois da intensa e perniciosa desordem instalada pelo contato o Estado já não pode simplesmente se ausentar Deve permanecer disponível para oferecer garantias e proteção quando convocado por membros das comunidades sem pre que essa intervenção ocorra em diálogo entre os representantes do Estado e os representantes da comunidade em questão Seu papel nesse caso não poderá ser outro que o de promover e facilitar o diálogo entre os poderes da aldeia e seus membros mais frágeis Essa cautela ao legislar e esse compromisso de garantir a liberdade do grupo para deliberar internamente e se autolegislar são gestos particularmente prudentes e sensatos num mundo multicultural globalizado como o de hoje no qual é muito grande o risco da apropriação de elementos da tradição para transformálos em emblemas de identidade por parte de grupos que veem na cultura política culturalista e na estratégia fundamentalista que nela se origina a forma de defender seus interesses de poder e influência dentro de cada sociedade Quantas não são as práticas que longe de minguar quando reprimidas por uma legislação ocidentalizante se afirmam e afiançam como signos de identidade para fazer frente a um poder invasor Ao lembrar essa possibilidade nos convencemos mais ainda de que essa lei que discutimos é impraticável e até perigosa por 203 duas razões que não podemos deixar de considerar Em primeiro lugar porque pode gerar formas de reação que com base em noções fundamentalistas de identidade e de cultura possam vir a transformar a prática de infanticídio já em progressivo desuso com a melhora nas condições de vida dos povos indígenas com o fim da ditadura e as esperanças que estes depositaram na Constituição de 1988 em emblema de diferença e motivo cristalizado numa heráldica étnica Em segundo lugar porque a sanção de uma lei desse tipo demanda sua quase impraticável aplicação o que inevitavelmente incumbirá as forças da segurança pública com a tarefa de vigiar e interferir no espaço da aldeia intervindo na sua autonomia e na sua intimidade Isso poderia acarretar consequências nefastas em vista do despreparo das polícias para trabalhar através das fronteiras da diferença e a partir de uma perspectiva francamente pluralista Povo e história categorias fundamentais para transcender o binômio relativismouniversalismo A forma mais adequada e eficiente de pensar o conjunto dos problemas que aqui se colocam não deve entrar no campo dominado dos insolúveis dilemas da oposição relativismouniversalismo Diante do princípio do pluralismo a ideia quase inevitável pelo ranço de inércia inerente neste conceito de cultura como conjunto de costumes cristalizados e ahistórico deve ser evitada e substituída pela ideia de histórias em plural a historicidade múltipla das nossas nações Todo povo habita no fluir dos tempos históricos em entrelaçamento dinâmico com os outros Cada povo contém essa verdadeira usina de história que é o dissenso em seu interior de forma que costumes são mudados no curso constante da deliberação interna que não é outra coisa que o diálogo fluente e constante entre seus membros O problema dos povos de um continente não é o de conservar a cultura como patrimônio 204 cristalizado afinal cultura não é outra coisa que o resultado da decantação constante de experiência histórica que nunca cessa mas o de fazer a desintrusão de sua história que foi interrompida pela irrupção autoritária do colonizador seja este o enviado das metrópoles europeias ou a elite eurocêntrica autóctone que construiu e administra o Estado nacional Não é como se pensa a repetição de um passado o que constitui e refere a um povo e sim sua constante tarefa de liberação conjunta Muitos são os povos que já deliberaram e abandonaram não somente a prática do infanticídio Isso aconteceu por exemplo com o povo KaxuyanaTyiri como acaba de relatar Valéria Paye Pereira que me precedeu nesta audiência A ideia reitor da história própria avança precisamente no contrário do que a lei que aqui debatemos tenta fazer pois ela não se alia ao projeto de um Estado que toma decisões sobre os rumos de todos os outros povos que compõem a Nação e o faz mediante leis punitivas Muito pelo contrário o princípio do respeito à agência e à capacidade deliberativa de cada sujeito coletivo preserva o direito a que seu curso histórico continue fluindo livre e diferenciado Por isso o fato de que as sociedades se transformam abandonam costumes e adotam e instalam outros é precisamente um argumento contra a lei e não a seu favor Ao dizer que as sociedades mudam por vontade própria como resultado das dissidências internas e do contato com os discursos epocais que circulam em seu entorno e as atravessam como precisamente o discurso internacional dos direitos humanos estamos afirmando que o Estado não é a agência para prescrever e impor mediante ameaça e coerção desfechos para a trama da história dos outros povos que a Nação abriga Seu papel único é o de proteger o curso próprio de cada povo em seu desdobramento idiossincrático e particular velando para que isso possa ocorrer sem imposições autoritárias de grupos internos caciques que resultaram empoderados por terem se especializado nos trabalhos de intermediação com o Estado e a sociedade 205 dita nacional e também sem coação externa como a que esta lei bem representa A devolução da justiça própria nada mais é do que a devolução da história própria Nessa perspectiva antropológicojurídica que proponho o papel do Estado será portanto o de restituir aos povos os meios materiais e jurídicos para que recuperem sua capacidade usurpada de tecer os fios de sua própria história e lhes garantir que a deliberação interna possa ocorrer em liberdade em concordância com a figura jurídica das garantias de jurisdição ou foro étnico categoria objetificadora que serve para fins de classificação e ancorar o grupo em uma etnicidade referida a um patrimônio fixo de bens culturais 7 Mas o Estado não pode retirarse súbita e completamente devido a desordem instalada nas comunidades como consequência da longa intervenção do mundo dos brancos sobre elas Seu papel portanto deverá ser o de garantir a deliberação interna quando obstaculizada pelos poderes estabelecidos cacicados dentro das comunidades em geral homens idosos membros mais ricos líderes políticos cujo poder foi e é constantemente retroalimentado de fora do grupo seja de forma reativa frente às interpelações externas seja por meio de alianças com segmentos da sociedade nacional comerciantes políticos latifundiários que reforçam os poderes no interior das comunidades em benefício próprio DANTAS Fernando Antônio de Carvalho O sujeito diferenciado a noção de pessoa indígena no Direito brasileiro Dissertação de mestrado Programa de pósgraduação em Direito e Ciências Jurídicas Curitiba UFPR 1999 DAVIS Megan Constitutional Niceties or the Care and Protection of Young Children Aboriginal Children and the Silencing of Debate in Australian Childrens Rights News Newsletter of the Australian Section of Defence for Children International Sidney n 44 out 2007 FEITOSA Saulo Ferreira TARDIVO Carla Rúbia Florêncio CARVALHO Samuel José de Bioética cultura e infanticídio em comunidades indígenas brasileiras o caso Suruahatá Trabalho final do VIII Curso de PósGraduação Lato Sensu em Bioética Cátedra Unesco de Bioética Brasília UnB 2006 FOUCAULT Michel Defender la sociedad Curso no Collège de France 1975 1976 Horacio Pons trad Buenos Aires Fondo de Cultura Económica 2000 Ed Bras Em defesa da sociedade São Paulo Martins Fontes 2012 Seguridad territorio población Curso no Collège de France 1977 1978 Horacio Pons trad Buenos Aires Fondo de Cultura Económica 2006 Ed Bras Segurança território população São Paulo Martins Fontes 2020 Nacimiento de la biopolítica Curso no Collège de France 1978 1979 Horacio Pons trad Buenos Aires Fondo de Cultura Económica 2007 Ed Bras Nascimento da biopolítica São Paulo Martins Fontes 2008 HOLANDA Marianna Assunção Figueiredo Quem são os humanos dos direitos Sobre a criminalização do infanticídio indígena Dissertação de mestrado Programa de PósGraduação em Antropologia Social Brasília UnB 2008 KROEMER Gunter O povo do veneno Belém Edições Mensageiro 1994 LEMGRUBER Julita Verdades e mentiras sobre o Sistema de Justiça Criminal in Revista do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal RCJ n15 setdez Brasília 2001 p 1229 MARÉS DE SOUZA FILHO Carlos Frederico O renascer dos povos indígenas para o Direito Curitiba Jurá Editora 1998 MARTINS José de Souza O massacre dos inocentes A criança sem infância no Brasil São Paulo Hucitec 1991 MCMULLEN Jeff Closing the Space Between US The Rights of Aboriginal Children University of Newcastle 2007 Human Rights and Social Justice Lecture Newcastle 2 nov 2007 PLATT Anthony M The Child Savers the Invention of Delinquency Chicago University of Chicago Press 1969 RODRIGUES Patrícia de Mendonça A caminhada de Tanyxiwè Uma teoria Javad da História Tese PhD Departamento de Antropologia Chicago Chicago University 2008 SÁNCHEZ BOTERO Esther Entre el Juez Salomón y el Dios Sira Decisiones interculturales e interés superior del niño Bogotá Universidad de Amsterdam Unicef 2006 SEGATO Rita Uma agenda de ações afirmativas para as mulheres indígenas do Brasil in Série Antropologia n 326 nova versão Departamento de Antropologia Brasília Universidade de Brasília 2003 Antropologia e direitos humanos alteridade e ética no movimento de expansão dos direitos universais in MANA vol 1 n 12 2006 p 207236 La faccionalización de la República y el paisaje religioso como índice de una nueva territorialidad in La Nación y sus Otros raza etnicidad y diversidad religiosa en tiempos de políticas de la identidad Buenos Aires Prometeo 2007 Closing Ranks Religion Society and Politics Today in Social Compass vol 55 n 2 p 207219 2008 Femigenocidio como crimen en el Fuero Internacional de los Derechos Humanos el derecho a nombrar el sufrimiento en el derecho in FREGOSO RosaLinda e BEJARANO Cynthia Eds Una cartografía del femicidio en las Américas México Unam 2010 SOARES Luiz Eduardo et al Violência e política no Rio de Janeiro Rio de Janeiro Iser RelumeDumará 1996 VIVEIROS DE CASTRO Eduardo A fabricação do corpo na sociedade xinguana in OLIVEIRA João Pacheco de Org Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil Rio de Janeiro Editora Marco Zero 1987 p 2141 ZAFFERONI Eugenio Raúl O inimigo no Direito Penal Rio de Janeiro Revan 2007 ZALUAR Alba Crime organizado e crise institucional 2002 Disponível em httpwwwsusepersgovbrupload1325076072CRIME20ORGANIZADO20E20CRISE20INSTITUCIONAL2020ALBA20ZALUARpdf Acesso em 5 jul 2021