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1 José Miguel WISNIK 2001 1983 Getúlio da Paixão Cearense VillaLobos e o Estado Novo In J M Wisnik E Squeff O Nacional e o Po pular na Cultura Brasileira São Paulo Brasiliense pp 129191 Agradeço a Arnaldo Contier a indicação das fontes de consulta sobre o programa do Canto Orfeônico Dedico a Marilena Chauí Arpejo o tema desta pesquisa o nacional e o popular na cultura brasileira é um convite ao erro irrecusável 2 NACIONALISMO MUSICAL NACIONALPOPULAR VANGUARDAMERCADO É mais do que sabida a ligação que os compositores nacionalistas brasileiros ti veram com o popular VillaLobos Mignone Lorenzo Fernandez Camargo Guarnie ri Luciano Gallet para citar alguns usaram fartamente o material folclórico na composição de suas peças e é esse uso que marca o perfil característico tão reco nhecível na música de todos eles Mas o que pouco se fala é que o povo homenage ado e imaginado por esses músicos o povo bomrústicoingênuo do folclore difere drasticamente de um outro que desponta como antimodelo as massas urbanas cuja presença democráticoanárquica no espaço da cidade nos carnavais nas gre ves no tododia das ruas espalhada pelos gramofones e rádios através do índice do samba em expansão provoca estranheza e desconforto Nosso populário sonoro honra a nacionalidade dizia Mário de Andrade no En saio sobre a música brasileira 1928 referindose às virtudes autóctones e tra dicionalmente nacionais da música rural Essa raiz que serviria de base à pesquisa da expressão artística brasileira deveria ser cuidadosamente separada da influên cia deletéria do urbanismo com sua tendência à degradação popularesca e à influ ência estrangeira1 Tempos mais tarde já em plena euforia musicológica estadonovista o crítico Luiz Heitor diria fazendo o elogio da vocação musical nacional em tom de rádio ministériodaeducação A época do desconhecimento do valor nacional e da utilidade educacional da músi ca no Brasil já vai ficando para trás O impulso musical é insopitável entre a nossa gente A música é por excelência o meio de sublimação da alma popular brasileira uma necessidade de nossa formação de nossa psicologia nacional Para em seguida fazer o reparo 1 Ver Mário de Andrade Ensaio sobre a música brasileira São Paulo Martins 1962 163 167 Como sempre o pensamento de Mário não é esquemático ele procura nuançar o seu critério de valorização da música popular rural sobre a música urbana nos seguintes termos Nas regiões mais ricas do Brasil qualquer cidadinha do fundo sertão possui água encanada esgotos luz elétrica e rádio Mas por outro lado nas maiores cidades do país no Rio de Ja neiro no Recife em Belém apesar de todo o progresso internacionalismo e cultura encon tramse núcleos legítimos de música popular em que a influência deletéria do urbanismo não penetra Por tudo isso não se deverá desprezar a documentação urbana Manifestações há e muito características de música popular brasileira que são especificamente urbanas como o Choro e a Modinha Será preciso apenas ao estudioso discernir no folclore urbano o que é virtualmente autóctone o que é tradicionalmente nacional o que é essencialmente popular enfim do que é popularesco feito à feição do popular ou influenciado pelas modas internacionais 3 Não tomo como índice a música vulgar a canção das ruas pois essa é apenas a manifestação inconsciente não disciplinada do pensador musical Mas poderíamos perguntar e noel ismael si nhôdosprazeres pixindongajazz batutaslamarti nearibar rosa E teríamos como resposta inequívoca do crítico a seguinte hierarquização Refirome aqui justamente à aptidão do brasileiro como criador e como aprecia dor da música dita artística E acho perigosa a confusão que às vezes se faz no Brasil englobando sob o rótulo de música popular não o fundo musical anônimo de que a música artística se utiliza para tonificarse mas a música sem classificação baixa e comercial que prolifera em todos os países do mundo sem que por isso tenha direito a ocupar um lugar na história da arte2 A oposição é clara entre a Arte que tem história elevada e disciplinada tonifica da pelo bom uso do folclore rural isto é a música nacionalista e as manifestações indisciplinadas inclassificáveis insubmissas à ordem e à história que se revelam ser as canções urbanas Sintomática e sistematicamente o discurso nacionalista do Modernismo musical bateu nessa tecla renegar a cultura popular emergente a dos negros da cidade por exemplo e todo um gestuário que projetava as contradições sociais no espaço urbano em nome da estilização das fontes da cultura popular rural idealizada como a detentora pura da fisionomia oculta da nação Certamente tal escolha correspondia à descoberta à paixão e à defesa de uma espécie de inconsciente musical rural regional comunitário contido nos reisados nos cantos de trabalho na música religiosa nas cantorias repentes e cocos que se entremostravam nas práticas musicais das mais diversas regiões do país revelan dose e no mesmo momento tendentes à desaparição A atlântida folclórica desse fundo musical anônimo fundia a música ibérica sagrada e profana católica e car navalesca ligada a antigos festejos pagãos com a música negra e indígena pro movendo a magia animismo ritual dionisíaco e feitiçaria o trabalho ativando as potências corporais a festa o jogo e a improvisação O problema é que o nacionalismo musical modernista toma a autenticidade des sas manifestações como base de sua representação em detrimento das movimenta ções da vida popular urbana porque não pode suportar a incorporação desta última que desorganizaria a visão centralizada homogênea e paternalista da cultura nacio nal O popular pode ser admitido na esfera da arte quando olhado à distância pela lente da estetização passa a caber dentro do estojo museológico das suítes nacio 2 Luiz Heitor O Brasil e a Música In Música e Músicos do Brasil Rio de Janeiro Casa do Estudante do Brasil 1950 4 nalistas mas não quando rebelde à classificação imediata pelo seu próprio movi mento ascendente e pela sua vizinhança invasiva ameaça entrar por todas as bre chas da vida cultural pondo em xeque a própria concepção de arte do intelectual erudito A propósito Gilberto Mendes observa que a música folclórica tomada como re pertório passivo da música artística fornecedora de temas e motivações não atua diretamente sobre a linguagem musical moderna enquanto a música po pular urbana ao contrário investe ativamente sobre essa linguagem trazendo contribuições das mais significativas para o seu desenvolvimento3 Por outro lado se a trincheira folclorista tentava de certo modo defender as con dições de produção da Grande Arte contra o avanço da música popular comercial ela abria também para si mesma um outro flanco crítico que Mário de Andrade co nhecia muito bem como transpor o universo de uma cultura comunitária e sem autoria para o universo da cultura erudita moderna individualistaesteticista sem estocar radicalmente a própria definição de arte4 No entanto a plataforma ideológica do nacionalismo musical consistia justa mente na tentativa de estabelecer um cordão sanitáriodefensivo que separasse a boa música resultante da aliança da tradição erudita nacionalista com o folclore da música má a popular urbana comercial e a erudita europeizante quando esta quisesse passar por música brasileira ou quando de vanguarda radical Está formada a cadeia conflitual bem típica da discussão brasileira a conjunção entre o nacional e o popular na arte visa à criação de um espaço estratégico onde o projeto de autonomia nacional contém uma posição defensiva contra o avanço da modernidade capitalista representada pelos sinais de ruptura lançados pela van guarda estética e pelo mercado cultural onde no entanto foi se aninhar e prolife rar em múltiplas apropriações um filão da cultura popular Essa constelação de idéias onde nacionalpopular tende a brigar com vanguardamercado já era incisi va mas implosiva na música nacionaleruditopopular de 30 e 40 e se tornará de cisiva e explosiva na área musical durante as movimentações da década de 60 Na média da atitude crítica que se produziu no seu contexto a ideologia nacio nalista na música modernista luta por uma elevação estéticopedagógica do país que resultasse da incorporação e sublimação da rusticidade do folclore o povo in gênuo e aplacasse através da difusão da cultura alta a agitação urbana o povo deseducado a que os meios de massa especialmente o rádio davam trela Entra aí uma concepção do funcionamento ambivalente da música para as mas sas iletradas como uma dobradiça que as liga às formas anárquicas do sensualis mo vulgar prenhe de desordem política e que estabelece ao mesmo tempo um contato com as manifestações civilizadas da grande arte reduzida a instrumento de instauração da ordem cívica Agitadora medium por excelência do carnaval popular e apaziguadora porta dora de um ethos educativo caldeado das fontes folclóricas para a arte erudita a 3 Gilberto Mendes A Música In Affonso Ávila org O Modernismo São Paulo Perspecti va 1975130 4 Nesse sentido as reflexões de Mário de Andrade sobre a arte interessada isto é arte di retamente ligada ao conjunto da vida produtiva da comunidade levariam a pensar num deslocamento decisivo da sua função estética de objeto oferecido à contemplação reservada da sala de concerto por exemplo E a idéia de arte interessada provém de sua concepção de arte popular 5 música é percebida como lugar estratégico na relação do Estado com as maiorias iletradas do país lugar a ser ocupado pelas concentrações corais pela prática dis ciplinadora cívicoartística do orfeão escolar pelo samba da legitimidade que desmentindo toda a sua tradição exalta as virtudes do trabalho e não as da malan dragem5 No entanto como a música popular é um espaço de resistência mais forte do que sua emulação cívicopatriótica além do que ocupando uma posição relativamente ofensiva no cenário cultural brasileiro urbanomoderno o resultado não será na verdade uma conversão do carnaval ao dia da Pátria6 mas a instau ração da movimentada cena da políticochanchada populista onde há lugar para o senador gagá dançar o seu samba como na cena famosa de Terra em transe RÁDIO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO Álvaro F Salgado da Rádio Ministério da Educação discorrendo sobre o uso efi caz do rádio para fins políticoculturais Estado Novo 19417 A nosso turno adiantamos que todos os indivíduos analfabetos broncos rudes de nossas cidades são muitas vezes pela música atraídos para a civilização dia virá estamos certos que o sensualismo que busca motivos de disfarce nas fantasi as de carnaval seja a caricatura o fantoche o palhaço o alvo ridículo desta festa pagã Enquanto não dominarmos esse ímpeto bárbaro é prejudicial combatermos no broadcasting o samba o maxixe e os demais ritmos selvagens da música popu lar o samba que traz na sua etimologia a marca do sensualismo é feio indecente desarmônico e arrítmico Mas paciência não repudiemos esse nosso irmão pelos defeitos que contém Sejamos benévolos lancemos mão da inteligência e da civili zação Tentemos devagarinho tornálo mais educado e social Pouco nos importa de quem ele seja filho VILLA MÁRIO Fora da média as questões do nacionalismo musical em VillaLobos e Mário de Andrade enquanto criadores são sempre mais complicadas VillaLobos porque se formou musicalmente no meio dos chorões seresteiros e sambistas do Rio de Janeiro no início do século e a sua música trabalhada pela sua formação erudita em processo de atualização modernista nasce tangenciando a mesma fonte sociocultural de onde saiu a música popular urbana de mercado Durante toda a década de 20 o seu grande projeto de composição é a série de Choros onde ele trabalha aquela matriz popular urbana amalgamada com blocos de outras informações primitivas negras e indígenas rurais suburbanas e cosmo 5 Nos anos do Estado Novo há um surto de sambas que fazem a apologia de uma moral do trabalho dentro do clima de ufanismonacionalismotrabalhismo que marcava a propaganda getulista e combatem a rica tradição da malandragem na música popular do Rio de Janeiro Esse assunto foi estudado por Antonio Pedro em Samba da Legitimidade tese de mestrado mimeo São Paulo USP 1980 6 O Carnaval e o Dia da Pátria são termos polares de uma ritualização do dilema brasilei ro tal como é formulada por Roberto da Matta em Carnavais Malandros e Heróis Rio de Janeiro Zahar 1980 7 Álvaro F Salgado Rádio Difusão fator social In Cultura Política 6 Agosto de 194179 93 6 politas da vanguarda européia fazendo dela o centro de uma confluência di ferida de tempos culturais que focalizava da sua perspectiva o problema brasileiro a sinfonização e a ordenação do tumulto musical nacional Ou seja embora sem pre propagasse a superioridade do folclore sobre a música popular VillaLobos deslanchou a sua fulminante trajetória a partir da convivência íntima do dado eru dito da sua formação com o dado popular urbano com o que projetou pela bricola ge de diferentes técnicas e fontes e novesfora o seu talento genial um alcance vi olentamente mais amplo que o do nacionalismo ortodoxo Quanto a Mário um homem dividido entre um modo socráticoplatônico e um modo dionisíaconietzscheano embora apresente nos seus textos programáticos traços daquela resistência aos aspectos polimorfos da cultura popular resistência subjacente ao paternalismo folclorista de que eu estava falando lança no Macu naíma o imaginário submerso do mundo indígenarural como dado emergente no panorama da cidade detonando um confronto vivo polifônico agônicolancinante que flagra as defasagens e sintonias inesperadas entre os vários tempos culturais de um país que vive como encruzilhadas de destinos num aglomerado de relações capitalistas e précapitalistas Se é verdade que o programa do nacionalismo musi cal tem um caráter centralizador e paternalista alimentado pela ilusão de imprimir homogeneidade à cultura nacional e de cauterizar a ferida das tensões sociais o que se tem a considerar por outro lado é que Mário de Andrade mergulha de fato nos processos mitopoéticomusicais da cultura popular desentranhando dela con cepções dionisíacoapolíneas e formas mágicas que serão constitutivas de sua po esia trabalhadas pelo crivo crítico que desloca relativiza e reorganiza esses ele mentos segundo uma informação erudita É a tensão recuperada pelo engajamento da técnica que dará à sua obra uma modalidade indagativa que não fecha com o nível programáticoapologético do nacionalismo Em sua corrente subterrânea a obsessão pela cultura popular é mais o sinal do dilaceramento e da percepção da sociedade em suas tensões sísmicas não aparentes do que um feliz arranjo de clas ses e raças que se acomodariam harmonicamente para sanear a falta de caráter nacional Nesse plano o nacionalismo de Mário pode ser lido como expressionismo tal como fez Gilda de Mello e Souza Nacionalismo e Expressionismo se empenha vam na descoberta de um homem novo atormentado dividido alógico defor mador cuja arte acolhia como mais congeniais ao seu espírito as manifestações do gótico do barroco da arte primitiva e popular em vez das manifestações cen tradas no ideal de beleza e imitação próprio da arte clássica8 Na última fase de sua vida a tensão entre o lado doutrinário e o lado oculto do nacionalismo márioandradino se torna ainda mais complexa Sustentáculo de um nacionalismo musical difusamente democrático ao longo de 20 e 30 Mário de An drade entra na década de 40 sob um profundo dilaceramento à medida que perce be as contradições e os impasses do seu projeto estéticoideológico e o engaja na luta de classes Nos seus escritos dessa época é extremamente agudo o drama do intelectual burguês que deseja uma arte em especial uma música que concilie po sitivamente a sociedade na utopia e na festa mas que marque ao mesmo tempo uma posição precisa na luta que a divide internamente Como essa tarefa parece ser praticamente insustentável Mário é que se divide de um lado a negatividade crítica de O Banquete põe a nu os impasses da arte burguesa pelo outro em Chostacovitch exprime uma positividade comunista uma apologia da arte soviética como realização do ideal do artista útil às massas e com aplausos para o papel vi 8 Gilda Rocha de Mello Souza Vanguarda e Nacionalismo na Década de 20 In Almanaque 6 São Paulo sd78 7 gilante do Estado estalinista pai amigo e severo quando este corrige os desvios do artista Politicamente VillaLobos e Mário realizam cada um a seu modo tendendo para a direita ou para a esquerda ligandose ao Estado Novo ou antecipando Zdanov o horizonte de destino do projeto nacionalista pedagogia coral emanada do artista a serviço do EstadoNação9 não têm uma saída para a possível autonomia das cul turas do povo a partir de suas bases A viabilização política encontrada por cada um deve ser lida em confronto dialético com o conjunto das suas obras das quais não esgota nem de longe o sentido embora indicandolhes refrações decisivas DA REPÚBLICA MUSICAL I Ao projetar a hegemonia da música erudita bebida no ethos popular folclórico sobre a música popularcomercial urbana e as inovações mais radicais da vanguar da européia o que se acentuará de certo modo no fim da década de 20 frente à atuação no Brasil do professor e compositor Hans Joachin Koellreuter o naciona lismo brasileiro estava adotando sem saber a última solução platônica para a questão da cultura frente ao avanço crescente da indústria cultural As discussões que pontuam A República de Platão incidindo sobre o lugar políti copedagógico da música lançam luz sobre os rumos do nacionalismo musical no Brasil desde o Ensaio sobre a Música Brasileira até a atuação de VillaLobos no Es tado Novo regendo as grandes concentrações orfeônicas em nome de uma concep ção cívicoautoritária copidescada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo Aqui não se pode falar em influência mas talvez de uma longa permanência na tradição ocidental de um certo equacionamento do poder psico políticosocial da música em vista de sua utilização pelo Estado como fator discipli nador em contraponto com a sua utilização nas festas ritos populares como elemento de propiciação da mania isto é da possessão do transporte dionisíaco do êxtase da liberação de energias eróticas da reversão paródica das hierarquias ou da alegre dessublimação da corporalidade O poder atribuído à música tem seu eixo numa ambivalência consistente na con cepção de que ela pode carrear as forças sociais para o centro político conferindo ao Estado através de suas celebrações um efeito de imantação sobre o corpo soci al ou então ao contrário pode expelir essas forças para fora do controle do Esta do para um regime de centrifugação onde elas se afirmam pela expatriação radi 9 Talvez por isso mesmo Mário de Andrade que à altura dos anos 40 radicalizava suas posi ções de esquerda e escrevia textos de crítica contundente ao Estado Novo principalmente quando discutia música a exemplo de O Banquete não critica a ação orfeônica de Villa Lobos Ao contrário A lição mais profundamente humana que podemos colher da obra de um VillaLobos e não é à toa que o grande artista dedicou grande parte de sua atividade à formação de massas corais é uma sadia e harmônica fusão social entre a arte erudita e o povo Distanciamentos e Aproximações In Música Doce Música São Paulo Martins 1963 364 O objeto de sua crítica no mesmo texto é o esteticismo da vanguarda as criações exacerbadamente hedonísticas de um Léger na pintura de um Schoemberg sic na música como de um Joyce na literatura Ser escravo de uma classe a burguesa ou servidor da humanidade é o que diferencia o gênio humano de um Cervantes do gênio classista de um Proust o gênio humano de um VillaLobos do gênio nazista de um Wagner 366 8 cal longe da vida cotidiana das ocupações comuns das servidões impostas10 In troduzindo no mais íntimo da alma o próprio nó da questão política isto é a justa afinação do individual para com o social e Platão recorre à imagem da harmonia sonora como metáfora da justiça e da harmonia da Polis a música aparece como o elemento agregador desagregador por excelência podendo promover o enlace da totalidade social quando o nó é pedagogicamente bem dado ou preparando a sua dissolvência quando não Por isso mesmo a educação repousa na música ela é a imitação do caráter elevado ou inferior que redunda por seus matizes éticos de profunda repercussão subjetiva não só na contemplação do belo mas também nas conseqüências práticas da realização da virtude A adequada dieta músico ginástica base da formação do cidadão imprimiria nele o caráter sensato e bom enquanto o uso malbaratado da música generalizaria na concepção platônica a feia expressão e os maus costumes Não pretendo nem de longe captar aqui a sutileza do pensamento platônico mas sim colher os sinais disseminados ao longo dessa verdadeira purga ática que é A República no dizer de Adorno de um modelo historicamente recorrente de reco nhecimento e controle do poder da música através de uma triagem do significante que discrimina a música aceitável elevada liberadora de impulsos éticosociais afirmativos da cidadania e da pertinência à Polis e a música inaceitável vista como rebaixante liberadora de impulsos orgiásticopassionais individualistas ou popula res isto é próprios dos excessos virtuosísticos dos músicos profissionais ou dos ex cessos festivos de escravos e camponeses Ante a incisividade da música como ocupadora ambivalente do corpo e da alma tornase necessário fabricar o crivo capaz de separar a boa norma musical cons tituída paradigmaticamente pelas práticas que infundem ordem ao corpo social e elevam tudo o que estava caído na Cidade dos maus usos e das inovações capa zes de insinuar de maneira a mais sensível a infração da lei produzindo um silencioso deslizamento nos costumes e no modo de viver e acabando por destruir toda a vida privada e pública já que não se pode modificar as regras musicais sem alterar ao mesmo tempo as maiores leis políticas11 Para efeito de coesão da Polis Platão afirma a superioridade dos instrumentos monoharmônicos a lira e a cítara instrumentos de Apolo sobre os instrumentos de muitas harmonias e cordas a harpa o bombyx flauta elaborada e virtuosísti ca e o aulos popular instrumento dionisíaco Gilbert Rouget observa que essas escolhas se dão no quadro de uma condenação das inovações musicais e já vimos o caráter catastrófico atribuído ao deslizamento da norma e da resistência ao tran se12 Assim também condenamse as harmonias lídia mista lídia densa a jônia e outras tidas por propiciadoras da indolência e efeminadas Em contraposição re comendamse as harmonias capazes de levar à temperança ao heroísmo altivo à soberana aceitação da adversidade Muito sintomaticamente também numa poética apolínea e antidionisíaca como esta indicase a dominância da poesia sobre a mú sica o ritmo e a harmonia seguem a letra e não esta a aqueles Em Aristóteles a alteridade do significante que separa a música superior e in ferior é mais nítida em termos de ethos modais além de que o caráter de classe que subjaz à oposição salta ao primeiro plano 10 Cf JeanPierre Vernant A Pessoa na Religião In Mito e Pensamento entre os Gregos São Paulo Difel 1973279 11 Platão A República424 12 Gilbert Rouget La Musique et la Transe Paris Gallimard 1980267315 9 O modo dórico tido como educativo destinase ao programa pedagógico dos fi lhos bem nascidos enquanto o uso do aulos e o modo frígio mais ligados a uma pathos do que a um ethos satisfazem à classe de pessoas grosseiras compostas de artesãos trabalhadores e indivíduos dessa espécie13 O motivo pelo qual uma diferença mínima entre dois modos musicais pode gerar conseqüências práticas tão gritantemente opostas tem permanecido um verdadeiro desafio musicológico Uma interpretação recente tende a ver no entanto na dife rença entre o dórico e o frígio mais do que uma modalização dentro de um mesmo sistema a incisiva alteridade de sistemas entre um modo pentatônico sem meio tom e um modo heptatônico com semitom essa diferença sendo capaz de preci pitar somada às diferenças timbrísticas de instrumentos de repertório e de rituali zações que as acompanham um verdadeiro abismo entre dois universos gestuais sociaisreligiosos o da religião da Polis e o da religião dionisíaca14 Ao aspecto fortemente marcado na religião da Polis de integração social de um culto cívico cuja função é sacralizar a ordem tanto humana quanto natural e permitir aos indivíduos se ajustarem opõese um aspecto inverso complementar ao primeiro e do qual se pode dizer em linhas gerais que ele se exprime no dioni sismo voz daqueles que não podem enquadrarse inteiramente na organização institucional da Polis por estarem excluídos da vida política as mulheres os escra vos os grupos campesinos alijados do controle do Estado O dionisismo aparece pois com a voz da margem das minoridades políticas às quais oferece um qua dro de agrupamento15 Assim dá para entender os critérios musicais defendidos em A República A dic ção composta de uma só harmonia obedecendo a um só e mesmo ritmo constante em detrimento da representação que necessita de todas as harmonias e de todos os ritmos por abarcar em si mesma variações de todas as classes corresponde à religião da Polis onde dos deuses até a Cidade das qualificações religiosas às virtudes cívicas não existe ruptura nem descontinuidade A norma musical depu rada no uso exclusivo de certos instrumentos e certos modos cristaliza a mediação social fora da qual o indivíduo achase desligado do mundo divino Perde ao mesmo tempo o seu ser social e a sua essência religiosa não é mais nada16 Re siste pois aos excessos individualistas do virtuosismo artístico e à experiência reli giosa diametralmente oposta do transe dionisíaco Com efeito o que o dionisismo oferece aos fiéis mesmo controlado pelo Estado como ele o será em época clássi ca é uma experiência religiosa oposta ao culto oficial não mais a sacralização de uma ordem à qual é preciso integrarse mas a libertação desta mesma ordem das opressões que faz supor em certos casos Busca de uma expatriação radical longe da vida cotidiana das ocupações comuns das servidões impostas esforço para abolir todos os limites para derrubar todas as barreiras pelas quais se define um mundo organizado entre o homem e o deus o natural e o sobrenatural entre o humano o animal o vegetal barreiras sociais fronteiras do eu17 13 Ver Gilbert Rouget op cit305 14 Cf Samuel BaudBovy referido por Gilbert Rouget op cit 311 quanto à oposição entre o modo dórico e o modo frígio A oposição entre a religião da Polis e a religião dionisíaca nos termos tratados aqui é feita por J P Vernant op cit 15 JeanPierre Vernant op cit278279 16 Idem ibidem278 17 Idem ibidem279 10 Para concluir essa separação entre dois modos religiosos que parecem conden sarse no conjunto de práticas que gravitam em torno da diferença aparentemente irrisória entre o dórico e o frígio O culto cívico se ligava a um ideal de sophrosyne feita de controle de domínio de si mesmo situandose cada ser em seu lugar nos limites que lhe são consignados Ao contrário o dionisismo aparece como uma cultura do delírio e da loucura loucura divina que é tomada como encargo pos sessão pelo deus18 DA REPÚBLICA MUSICAL II Em 1928 Mário de Andrade que dava cobertura teóricoideológica aos composi tores propondo o desenvolvimento de um projeto nacionaleruditopopular para o Brasil colocava a intenção nacionalista e o uso sistemático da música folclórica como condição sine qua non para o ingresso e a permanência do artista na repúbli ca musical dizendo enfaticamente no seu Ensaio sobre a Música Brasileira que o compositor que não fizesse música de cunho nacional bebida na estilização do po pular rústico funcionaria como pedregulho na botina a ser devidamente extirpa do19 A busca de hegemonia nacionalista aliás amplamente obtida na produção musi cal erudita brasileira até a década de 50 assentada sobre o critério da eficácia social extraía a sua legitimidade da afirmada necessidade de determinar e norma lisar sic os caracteres étnicos permanentes da musicalidade brasileira presentes segundo essa concepção de modo inconsciente na música popular folclórica tanto quanto ausentes da música artística de mera transposição européia20 A nova música brasileira produzida pela determinação do artista decidido a se basear quer como documentação quer como inspiração no folclore daria um rele vo ao caráter nacional nele delineado daí o destaque ao compromisso da música artística com a popular no que esta perderia a sua primariedade incapaz de tota lizar e aquela outra a sua irresponsabilidade desenraizada O projeto explícito será o de fazer a composição erudita beber nas fontes popu lares estilizando seus temas imitando suas formas em suma incorporando a sua técnica A preocupação nacionalista voltada para o folclore será tomada como norma com acentuada intransigência Mas a passagem concreta do erudito ao po pular e viceversa permanecerá sendo sempre o grande problema Mário alerta os compositores para alguns dos problemas implicados no projeto nacionalista o perigo do exotismo quando o uso de elementos da música popular retirados de seu contexto resulta simplesmente em efeitos pitorescos e da banali dade já que a música popular muitas vezes aplicada às práticas rituais à dança hipnótica dirigida ao corpo é fundamentalmente repetitiva do que pode resultar em pura redundância quando transposta para as formas que procedem pelo desen volvimento progressivo e pela inovação dirigida ao intelecto como são as formas da tradição sinfônica erudita Aliás é nesse ponto justamente que Schoenberg ao lado de um certo desprezo colonizante pelo mundo subdesenvolvido fazia a sua crítica da música nacionalista vendo nela a união espúria dos procedimentos es 18 Idem ibidem279 19 Mário de Andrade op cit18 20 Idem ibidem28 11 truturalmente reiterativos da música do povo com os procedimentos estrutural mente evolutivos da tradição erudita ocidental21 É nesse ponto também que incide a oposição estabelecida por Mário entre a mú sica interessada aplicada por exemplo ao calendário agrícola e religioso como a popular rural e a música desinteressada destinada a fins contemplativos como a música de concerto É o caráter interessado da primeira que lhe dá uma base re petitiva que se aplica ao ritual e é o caráter desinteressado da segunda que lhe imprime a desenvoltura evolutiva dirigida à intelecção da progressão das formas A nova música proposta por Mário oscila entre ser interessada e desinteressa da Em certo momento diz O artista tem só que dar pros elementos já existentes da arte nacional pronta na inconsciência do povo uma transposição erudita que faça da música popular música artística isto é imediatamente desinteressada22 Duas páginas adiante referindose ao movimento nacionalista afirma Pois toda arte socialmente primitiva que nem a nossa é arte social tribal religiosa come morativa É arte de circunstância É interessada Toda arte exclusivamente artística e desinteressada não tem cabimento numa fase primitiva fase de construção23 e está se referindo ao critério social que justifica a necessidade imperiosa do naciona lismo musical Em suma o seu programa aponta para uma música artística que encontre ao mesmo tempo uma nova função prática a conquista da expressão nacional e essa dupla exigência terá conseqüências sobre a forma que ficará dividida entre o des envolvimento construtivo e a redundância característica bem realçada nos típicos ostinatos às vezes caricatos da música nacionalista Vale lembrar que os pro blemas colocados por Mário quando aconselha os músicos por mais conscientes que possam ser ficam sempre externos à forma o que não acontecerá no Macu naíma quando eles serão radicalmente enfrentados no interior da invenção No Ensaio Mário discute a complexidade da música popular folclórica especial mente no seu ritmo decodificado muitas vezes pelos compositores eruditos como meras síncopas oscilante entre o fraseológico e o metrificado Mário analisa a rí tmica popular brasileira como a superposição complexa de duas estruturas dife rentes a rítmica aberta da seqüência discursiva que procederia por adição infinita e a rítmica fechada da quadratura do compasso que procederia por subdivisão pe riódica compreendendo a tensa condensação desses dois sistemas um de origem negroindígena e outro de origem européia como uma solução original para as próprias tensões implicadas no processo de colonização No Ensaio analisa ainda questões de melodia de harmonia de polifonia de instrumentação e de forma construtiva A idéia de caráter nacional recessivo adormecido nas fontes populares como o mineral disperso sob o solo da variedade regional de onde deveria ser extraído e fundido pelo esforço conjunto de artistas letrados salta à vista principalmente se não esquecermos que exatamente no mesmo momento em que escrevia o Ensaio Mário de Andrade produzia também o Macunaíma a rapsódia do herói sem ne nhum caráter Recebendo injeções maciças de folclore a expressão é de Florestan Fernan des a música nacionalista aproximaria intelectual e povo separados por um abis 21 Arnold Schoenberg Las Sinfonias Folkloristas in El Estilo y la idea248257 22 Mário de Andrade op cit16 23 Idem ibidem18 12 mo cultural formulável noutros termos como alteridade de classe e funcionaria ao modo de uma panacéia pedagógica para sanar a nível doutrinário aquela falta de caráter que o Macunaíma registra na sua economia simbólica como impasse O programa tem uma tintura ao mesmo tempo ilustrada e romântica que corres ponde bem à oscilação quase paradigmática do intelectual letrado no Brasil frente às culturas do povo O lado romântico marca a concepção do povo como fonte pro digiosa da qual emana a cultura autêntica e criativa tesouroinconscientecoletivo capaz de transformar a persona europeizante da nação remetendoa a um ponto de equilíbrio profundo onde se daria a individuação a identidade atingida ao final de uma via tormentosa de divisões entre a máscara social dominante que mostra a fisionomia do colonizador ocupante e o rico repositório submerso de símbolos que habita o inconsciente coletivo divisado na música popular rural24 Sabemos que Mário de Andrade fez dessa verdadeira saga da identidade projetada em cír culos progressivamente abrangentes do plano subjetivo ao plano da sociedade nação o eixo da sua obra poética25 O lado ilustrado marca a concepção de povo como massa analfabeta supersticiosa indolente verdadeira tábula rasa necessita da de condução firme e elevação através da instrução letrada e da consciência cívi ca em contextos mais críticos de consciência política Freqüentemente essas duas atitudes aparecem separadas mas são contrabalançadas como os dois lados de uma gangorra Em alguns casos e é o de Mário de Andrade o intelectual quer ser o orquestrador de sua própria oscilante superioridadeinferiorioridade frente à cul tura popular e se projeta imaginariamente num pontodeepifania de onde divisa o encontro das águas do povo opaco e do povo luminoso redimidos da sua dualidade numa nova unidade transparente e transformadora Essa transformação antevista desse lugar que poderíamos chamar de o ponto platônico da questão moderna da cultura só pode se dar no entanto graças e através da ação do intelectualfilósofo que pensa devolver às massas o seu populário sonoro convertido em música ar tística propiciando através dessa conversão o fortalecimento do debilitado caráter nacional os defeitos de nossa gente rapazes alguns facilmente extirpáveis pela cultura e por uma reação de caráter que não pode tardar mais nossos defeitos im pedem que as nossas qualidades se manifestem com eficácia Por isso que o Brasi leiro é por enquanto um povo de qualidades episódicas e defeitos permanentes diz ele26 O tom abatido mas sobranceiro do texto de Mário parece estar pedindo um mo vimento político geral que ataque o problema nacional nas várias frentes estamos às vésperas da Revolução de 30 mas a música tem um lugar privilegiado nesse quadro em que se constata uma espécie de doença da cultura a incapacidade de afirmar a potencialidade produtiva da sociedade e se prevê a sua terapêutica pelo recurso às reservas de caráter nacional adormecidas na música popular Através dessa curiosa operação desalienante em que o povonação recobra o caráter que lhe falta o intelectual letradopedagogo fica no centro imaginário de onde procura reger o coro nacional levandoo à unidade harmônica Seu papel aparentemente modesto de simples correia conversora do popular primário ao popular estetizado 24 Os termos usados inconsciente coletivo persona individuação estranhos ao discurso nacionalista foram tomados propositalmente do contexto da conceituação junguiana e usa dos localmente aqui pela sua adequação didática ao andamento da exposição 25 Conforme os estudos de Anatol Rosenfeld Mário e o Cabotinismo in Texto Contexto São Paulo Perspectiva 1976 e de João Luiz Machado Lafetá Figuração da Intimidade tese de doutoramento mimeo USP 1980 26 Mário de Andrade op cit72 13 é exponencial porque comanda idealmente a passagem da sociedade passiva à so ciedade ativa ou seja porque comanda a parte mais secreta e decisiva a parte psicossocial do processo político Ele aparece de modo subjacente como o or questrador da sociedade dividida é nesse campo devidamente preparado que se vai erguendo a figura singular de Heitor VillaLobos Se à sociedade falta caráter a música no seu poder de reproduzir o caráter elevado já que investida de ethos no caso brasileiro triado da música popular folclórica de generalizar os sentimentos e de agir sobre as massas traduzido no valor social do ritmo coletivizador e da concentração coral aparece já como veículo capaz de promover a elevação de tudo que estava caído na Cidade conforme nos diz Platão Mas o poder da música veículo privilegiado de transmissão social é multiplicado ainda mais no Brasil pela sua ampla penetração pelo fato de ser o lu gar de produção de uma linguagem popular original a música popular é a criação mais forte e a caracterização mais bela de nossa raça dizia Mário de Andrade é na música entre todas as atividades artísticas que o gênio brasileiro conseguiu re alizar alguma coisa fortemente original e diferente dos moldes europeus dizia o crítico Luiz Heitor Em suma o programa nacionalista parece retirar o músico erudito dos confins da sua gratuidade aonde o lança cada vez mais a modernização de um país periférico e nãoalfabetizado para colocálo pelo menos desejadamente no centro dos acontecimentos promotorbeneficiário de um projeto de cultura centralizada e ho mogeneizada pela convergência dos traços comuns da psique social tanto mais fortalecido pela convicção de que a música e só a música pode desempenhar no Brasil essa função de orquestrador da sociedade dividida pela força da sua difusão e pelo fato de que no seu campo e registro próprios a música popular no Brasil resultante de um trabalho coletivo secular de apropriações seleções e sínteses cri ativas não ficaria a dever à cultura erudita Na batida do seu impulso de classe média pedagogizante o paternalismo nacio nalista tem forte atração para orfeonizar o país Pouco tempo antes de VillaLobos desencadear a sua famosa arremetida coral que se alastrou como um movimento didáticopolíticomusical que implantou na escola do Estado Novo o ensino do canto coletivo Mário de Andrade também louvava as possibilidades terapêuticas de mas sa que se pode extrair da prática generalizada do canto em comum Vale a pena ler a longa peroração do seu Ensaio sobre a música brasileira Mas os nossos compositores deviam de insistir no coral por causa do valor social que ele pode ter País de povo desleixado onde o conceito de Pátria é quase uma quimera a não ser pros que se aproveitam dela país onde um movimento mais franco de progresso já desumaniza os seus homens na vaidade dos separatismos país de que a nacionalidade a unanimidade psicológica uniformes e comoventes independeram até agora dos homens dele que tudo fazem pra desvirtuálas e es tragálas o compositor que saiba ver um bocado além dos desejos de celebridade tem uma função social neste país O coro unanimiza os indivíduos A música não adoça os caracteres porém o coro generaliza os sentimentos A mesma doçura molenga a mesma garganta a mesma malinconia a mesma ferócia a mesma se xualidade peguenta o mesmo choro de amor rege a criação da música nacional de norte a sul Carece que os sergipanos se espantem na doçura de topar com um verso deles numa toada gaúcha Carece que a espanholada do baiano se confrater nize com a mesma baianada do goiano E se a rapaziada que feriram o assento no pastoreio perceber que na ronda gaúcha na toada de Mato Grosso no aboio do Ceará na moda paulista no desafio do Piauí no coco norteriograndense uma chula do rio Branco e até no maxixe carioca e até numa dança dramática do rio 14 Madeira lugar de mato e rio lugar que não tem gado persiste a mesma obsessão nacional pelo boi persiste o rito do gado fazendo do boi o bicho nacional por exce lência É possível a gente sonhar que o canto em comum pelo menos conforte uma verdade que nós não estamos enxergando pelo prazer amargoso de nos estra garmos pro mundo27 Olhado no conjunto o ciclo modernista do nacionalismo musical compreende as sim uma pedida estéticosocial sintetizar e estabilizar uma expressão musical de base popular como forma de conquistar uma linguagem que concilie o país na hori zontalidade do território e na verticalidade das classes levantando a cultura rústica ao âmbito universalizado da cultura burguesa e dando à produção musical burguesa uma base social da qual ela está carente O pulular irrequieto da música urbana espirrou fora do programa nacionalista porque ele exprime o contemporâneo em pleno processo inacabado mais dificil mente redutível às idealizações acadêmicas de cunho retrospectivo ou prospectivo Dupla novidade como emergência do popular recalcado no âmbito da cultura públi ca brasileira atravessando uma rede de restrições coloniaisescravocratas e como emergência dos meios modernos de reprodução elétrica a música popular brasileira urbana lançava em jogo os elementos sintomáticos de um flagrante desmentido descentralizador às concepções estéticopedagógicas do intelectual erudito pro metendo um abalo decisivo no seu campo de atuação A intelectualidade nacionalista não pôde entender essa dinâmica complexa que se abre com a emergência de uma cultura popular urbana que procede por apropri ações polimorfas junto com o estabelecimento de um mercado musical onde o po pular em transformação convive com dados da música internacional e do cotidiano citadino Como vêem no popular distanciado um ethos platônico acham que ele deve retornar de forma organizadamente pedagógica para devolver o caráter perdi do pela cultura de massas Acontece que esse retorno nunca pode se dar essa re gressão à origem não encontra o intervalo para se impor arrastada na esteira do processo tecnológicoeconômico onde rola o caos heteronímico do mercado Em vez de olhar de frente esse processo o programa musical nacionalista resiste até quando pode de forma bastante compreensível digase ao deslocamento sofrido pela arte na modernidade capitalista procurando desviar os seus sinais na direção de uma investidura cívicopedagógica que buscará apoio no Estado forte carente de legitimação Com isso recusará junto com Platão as inovações musi cais que sinalizam o desenvolvimento da linguagem por um lado na forma de vanguarda radical atonal e as músicas popularescas carnavalescas e outras que denunciam o caráter multiforme das interpenetrações líricosatíricoparódico festivas da música popular urbana cujo pique lastreado de fato numa rica tradição popular convergente para assimilações de todo tipo até hoje não se esgotou ainda no campo padronizante tendencial da indústria cultural Quando perdeu esse bonde o intelectual organizadordacultura no Brasil se atrasou de maneira básica sempre tendendo a reduzir o popular ao mito da origem e da pureza das raízes romanticamente e ou ao mito dos fins plenitude da consciência realizada mito ilustrado na modalidade normativa ou instrumental mas nunca no campo do complexocontraditóriocontemporâneo campo de afirma ção das múltiplas leituras e escrituras corporais quanto mais numa cultura sincré tica campo de afirmação poéticoreligiososexual do trabalho e do ócio tendendo 27 Idem ibidem6466 15 converter toda as diferentes direções da energia para o canal cívicopolítico com sua cruzada de conteúdos Do gramofone ao cinema falado VillaLobos 1929 A sétima arte toca os sete instrumentos da civilização moderna Vim ver o Rio que tanto adoro e fiquei triste com os que o estão afeiando de tantos rumores diferentes e desgraciosos O Rio está gramofonizado horrivelmente gramofonizadoTocase aqui hoje em dia tanta victrola tanta radiola tanta meiasola musical do momento do meio da rua COMO NÃO SE VÊ EM NENHUMA PARTE DO MUNDO DENTRO DE CASA NOS BURGUESES SERÕES DE FAMÍLIA O mal aliás não estará no número e na difusão dessa música mecanizado do século mas na sua qualidade E com isto não me refiro aos trechos de orquestra aos solos em diversos instrumentos por notabilidades mundiais às melosas árias do bel canto ou às alucinações do jazz norteamericano A nós brasileiros que possuímos uma arte popular tão rica e variada com de nenhum outro povo posso agora afirmálo mais do que nunca a nós deve cada vez interessar menos a arte alheia para que melhor realizemos e imponhamos a nossa em toda a sua beleza e origina lidade em respeito mesmo ao que dela se acaba de dizer e de pensar na Europa ATRAVÉS das minhas composições e dos meus concertos Os nossos gravadores de discos porém os comerciantes de nossa música popular estão muito desorienta dos Aceitam tudo gravam tudo o que é um erro pois eles é que deveriam con correr para educar o povo e o conseguiriamMAIS FACILMENTE DO QUE NÓS OS ARTISTAS graças aos elementos de que dispõem Outra coisa que também me en tristeceu desta vez no Rio a precária situação em que vão ficando os nossos músi cos de orquestra esses heróicos e tradicionais lutadores pela vida com a institui ção do cinema falado Eu que passei por lá e que sei das dificuldades que tem o tocador de qualquer instrumento para viver porque nem sempre é possível ganhar se ao menos o pão ensinado eu bem percebo o negro quadro que se desenha em frente aos nossos músicos de orquestra que já estão ficando inteiramente abando nados por causa dos filmes que CANTAM DANÇAM E TOCAM OS SETE INSTRUMENTOS DA CIVILIZAÇÃO MODERNA O cinemafalado é uma maravilha está certo Mas o ARTISTA é INDISPENSÁVEL às coletividades e eu penso que o que se devia fazer em toda parte do mundo era o que determinou MUSSOLINI na Itá lia aproveitar o músico de qualquer maneira Ora por exemplo nas salas de es pera dos cinemas Aqui mesmo no Rio de há tantos anos passados a orquestra sala de espera do Odeon chegou a ser famosa28 DA REPÚBLICA MUSICAL III A cena cultural do nacionalismo modernista é interessanteinstrutivodramático patética como primeiro momento de confronto entre o intelectual letrado burguês e as culturas populares no território urbanoindustrial quando a música popular se abre num leque que vai do folclore aos meios de massa cruzando na transversal esse campo contraditório e deixando a música de concerto meio nua na sua condi ção precária de exercício imitativo de procedimentos europeus Il neige reduzido a elites Com a emergência dos meios de massa a música da repetição música do disco e do rádio proliferante no espaço da cidade dá um rude golpe na música erudita 28 O Globo Rio de Janeiro 2071929 Recortes Mário de Andrade IEBUSP Os grifos dis paratados são propositalmente meus 16 pertencente a outro sistema de produção e reprodução o sistema de representação no espaço separado do concerto O que é suficiente para fazer com que alguns mú sicos mais ativos se sentissem reduzidos a uma condição francamente decorativa perante a penetração crescente da canção das ruas com função lucrativa e utilitá ria O Estado autoritário aparece então como uma espécie de socorro para o músico erudito perdido em meio ao campo da Arte inteiramente revirado pela nova econo mia política da cultura capitalista marcada pelo mercado dos objetos em série Respaldada por Getúlio Vargas a contraofensiva orfeônica de VillaLobos ligada a uma antiga tradição tendente a fazer da música o elemento de unificação e de imantação da sociedade em torno do Estado como se vê desde A República de Platão busca reconquistar ativamente para a grande Arte o seu prestigioso papel de portadora do sentido da totalidade perdido no vórtice galopante da crise mo derna 17 OS CHOROS E O SAMBA CLÁSSICO DO CABOCLODOIDO Filho de um funcionário da Biblioteca Municipal do Rio Raul VillaLobos profes sor e autor de livros de história e cosmografia além de instrumentista amador Heitor VillaLobos foi educado para ser médico e músico formado no estudo do vi oloncelo e na admiração de Bach Mas fascinado pela música dos chorões cariocas nos diz a lenda biográfica tocava clandestinamente violão e saltava a janela do quarto em busca das noitadas musicais Atravessando esse umbral doméstico à re velia do modelo paterno VillaLobos estava devassando uma das fronteiras impos tas pelo mapeamento cultural da Primeira República onde o violão o choro e a seresta sem falar nas batucadas eram repelidos do estreito conceito de cidadania moral e estética e reprimidos policialmente quanto mais populares No entanto e justamente enquanto o VillaLobos adolescente pulava a janela as resistências à música popular urbana símbolo tradicional do desregramento dominante estavam sendo minadas em vários pontos à medida que as massas emergiam para o capital como mãodeobra assalariada flutuante e mal absorvida na sociedade pós escravocrata em trânsito para o modo de produção de mercadorias1 é quando as formas de música popular produzidas pelos grupos negros e boêmios despontarão com brilho e relevo no mercado fonográfico Para entendermos o lugar que o artesanato musical dos chorões ocupava nessa economia cultural em transformação com seus hábeis instrumentistas em geral doublés de funcionários públicos e boêmios biscateiros musicais das orquestras de cinema e restaurante às vezes músicos de banda vamos passar antes por um lu gar estratégico do processo de resistência às marginalizações sofridas pelos grupos populares em suas práticas culturais a famosa casa da Tia Ciata onde surgiu das improvisações coletivas o samba Pelo Telefone lançado por Donga em 1917 e que consagrou o gênero Freqüentada além de Donga por João da Baiana Pixinguinha Sinhô Caninha Heitor dos Prazeres a casa onde morava a respeitada babalaômiri baiana casada com o médico negro João Batista da Silva centro de continuidade da Bahia ne gra no Rio vem descrita no livro de Muniz Sodré Samba o dono do corpo2 A habitação segundo depoimentos de seus velhos freqüentadores tinha seis cômodos um corredor e um terreiro quintal Na sala de visitas realizavamse bailes polcas lundus etc na parte dos fundos samba de partido alto ou samba raiado no terreiro batucada Metáfora viva das posições de resistência adotadas pela comunidade negra a casa continha os elementos ideologicamente necessários ao contato com a sociedade global responsabilidade pequenoburguesa dos donos o marido era profissional liberal valorizado e a esposa uma mulata bonita e de porte gracioso os bailes na frente da casa já que ali se executavam músicas e danças mais conhecidas mais respeitáveis os sambas onde atuava a elite negra da ginga e do sapateado nos 1 Cf Francisco de Oliveira A Emergência do Modo de Produção de Mercadorias uma inter pretação teórica da economia da República Velha no Brasil In Boris Fausto org O Brasil Republicano estrutura do poder e economia São Paulo Difel 1975391414 2 Muniz Sodré Samba o dono do corpo Rio de Janeiro Codecri 1979 18 fundos também nos fundos a batucada terreno próprio dos negros mais velhos onde se fazia presente o elemento religioso bem protegida por seus biombos culturais da sala de visitas noutras casas poderia deixar de haver tais biombos era o alvará policial puro e simples3 A imagem da polarização da casa resguardada por esses biombos sutilmente devassáveis resulta como foi bem lida por Muniz Sodré numa metáfora viva do território limite em que se davam os avanços e recuos de um novo modo de pe netração urbana para os contingentes negros que lutavam com a cortina de mar ginalização erguida contra eles em seguida à Abolição reelaborando os elemen tos da tradição cultural africana numa gradação entremostrada A riqueza da metáfora admite a tentativa de tomála como base de um mapa da vida musical da capital do Brasil do começo do século pois a tensão entre o salão e o terreiro entre o que se mostra e o que se oculta separados por biombos que va zam sinais nas duas direções é significativa do próprio processo de interpenetração de culturas que vinha ocorrendo Da sala de visitas ao terreiro de candomblé passando pelo samba raiado onde só se destacavam os bambas da perna veloz e do corpo sutil polarizamse dois universos diferentes na ritualidade na corporalidade na sociabilidade o da or dem religiosa mágica espiritual do mundo negro e o da ordem da convivência festejo de salão que a sala de visitas propõe e meio que imita A contigüidade dessas duas ordens e o modo como elas se negam e se traduzem faz pensar na dialética da malandragem que segundo Antonio Candido é incor porada à estrutura narrativa do romance Memórias de um Sargento de Milícias como modo de representação da estrutura social brasileira no começo do século XIX4 A dialética da malandragem é tanto mais saliente se lembrarmos que o mari do de Tia Ciata tornouse mais tarde chefe de gabinete do Chefe de Polícia de Wen ceslau Brás temos aí como no romance de Manuel Antônio de Almeida aquela estratégia de convivência dúctil e capciosa entre os imperativos da conduta res peitável e os procedimentos da religião e da festa popular vizinha nas culturas do povo da paródia da classe dominante e da carnavalização das suas imagens de po der e da sua versão da história Na verdade o processo tem mão dupla e a alteridade das culturas projetase numa espécie de jogo de espelhos confrontados regido certamente ainda pela di nâmica do favor pois enquanto o negro avança para o lugar público onde se faz re conhecível e reconhecido apropriandose mimetizando ou distorcendo a seu modo formas de cultura branca de base européia os políticos e intelectuais brancos vão ao candomblé e apadrinham o samba reconhecendo nele uma fonte de autentici dade nacional que os legitima5 3 Idem ibidem20 4 Antonio Candido Dialética da malandragem In Revista do Instituto de Estudos Brasileiros 8 São Paulo USP 1980 5 Eis aqui um campo de problemas aberto à reflexão no estudo da música brasileira as in terpenetrações que se dão na vida musical do Rio de Janeiro a partir do fim do século XIX matriz cultural do populismo poderiam ser pensadas como desdobramento pósabolição da ordem do favor na sociedade escravocrata analisada e interpretada em suas conseqüências ideológicas e literárias em Roberto Schwarz em Ao Vencedor as Batatas São Paulo Duas Ci dades 1976 19 São muitos os casos curiosos dessa época exemplos do entreabrirse paterna lista do futuroso filão populista Na campanha eleitoral de Júlio Prestes à Presidência o sambista Sinhô o traço mais expressivo ligando os poetas os artistas a sociedade e culta às camadas profundas da ralé urbana nas palavras de Manuel Bandeira6 foi com seu con junto Embaixada do Amor ao Palácio dos Campos Elísios Lá organizouse então uma festa íntima que se terminou à meianoite com o Hino Nacional teve seus pontos altos no momento em que O Sr Júlio Prestes gemeu no pinho lembrando se daqueles tempos em que era boêmio E todos cantavam e dançavam É o que se pode dizer um sucesso real Num dos belos salões dos Campos Elísios toda a família Júlio Prestes inclusive o Presidente eleito e o velho Coronel Fernando Prestes entravam no coro samba de Sinhô Ora vejam só A mulher que eu arranjei Ela me faz carinho Até demais Chorando ela me diz Ô meu benzinho Deixa a malandragem Se és capaz A malandragem Eu não posso mais deixar Juro por Deus E Nossa Senhora É mais fácil ela me abandonar Mas Deus do Céu Que maldita hora7 Tudo isso sem nenhum prejuízo evidente do fato de que o sambista Salvador Correa diretor da Embaixada era autor do seguinte estribilho Estava na roda do samba Quando a polícia chegou Vamos acabar com este samba Que seu delegado mandou Outros indicadores do trânsito de sinais musicais filtrandose através dos biom bos é a presença de artistas com informação erudita que se tornam mediadores da música popular e que são admitidos por essa época nas salasdeconcerto em 1908 Catullo da Paixão Cearense apresentouse no auditório da Escola Nacional de Música com sucesso em 1922 a presença de Ernesto Nazareth em recital na mesma Escola provocou tumulto com intervenção policial Catullo poetastro modinheiro trovador semiparnasiano que infundia cadências plangentes e nostálgicas sempre nos motivos da dor e do luar aos movimentos ritmados da música instrumental principalmente a de Anacleto de Medeiros jac 6 Manuel Bandeira Crônica da Província do Brasil Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1937108110 Citado por Vasco Mariz em A Canção Brasileira Rio de Janeiro Civilização Brasileira MEC 1977203 7 Francisco Guimarães Vagalume Na Roda do Samba Rio de Janeiro MEC FUNARTE 197860 20 tandose de ser o Rei dos Cantores e o introdutor do violão e da modinha no con certo clássico no monumental Choros n 10 para orquestra e coro misto de que falarei mais adiante VillaLobos utilizou com grande relevo o RasgaCoração canção com letra de Catullo sobre adaptação do xote Iara de Anacleto de Medei ros Nazareth conhecedor do pianismo chopiniano compositor sensacional que fora colocado nas nuvens pelo francês Darius Milhaud em sua passagem pelo Brasil transmissor do maxixe ricamente desenvolvido e ciosamente resguardado sob a ru brica mais apresentável segundo seus próprios critérios de tango brasileiro Além destes João Pernambuco violonista que tocava nos choroso junto com Villa Lobos que aprendera violão com cantadores e violeiros nordestinos operário noi Rio e depois funcionário público desenvolveu a sua técnica parecida na mão di reita com a de Segovia e deu recital na Cultura Artística de São Paulo em 1915 O caso de Sátiro Bilhar exemplaríssimo funcionário da Estrada de Ferro Central mostra que os biombos culturais devassáveis passavam a ser um dado interno à própria técnica musical no seu modo exímio e peculiaríssimo de tocar violão Sátiro Bilhar estilizava a mesma composição entre as poucas que tinha conforme as conveniências do público a quem tocava em gradações nuançadas do popular ao erudito O depoimento de Donga Sátiro foi o violonista mais original que conhe ci Ele tinha duas ou três composições só e só tocava aquilo VillaLobos dizia que não era o que Sátiro tocava mas como tocava é que era genial Tinha uma que ele denominava de várias maneiras Sons não sei de que uma denominação clássica Daquilo ele fazia tudo clássico popular virava tudo tocava pra cá tocava pra lá em cada lugar conforme a casa e o ambiente tocava aquilo8 Vista assim a simbologia da casa de Tia Ciata sugerida por Muniz Sodré ao mesmo tempo que dá forma a um movimento de afirmação de contingentes negros no espaço social do Rio de Janeiro capta e configura em suas próprias disposições e táticas de funcionamento o modo de articulação mais geral das mensagens cul turais da sociedade que eu quero sistematizar e desdobrar assim O núcleo sala fundos terreiro que dispõe os planos das danças de salão do samba e do candomblé poderia ser desdobrado segundo o leque de espaços culturais e teríamos que o salãodedançapiano respeitável é contíguo nessa topologia musi cal urbana ao sarau sala onde a música passa a ser a motivação da dança para objeto de contemplação amena e esse à sala de concerto onde a contemplação auditiva é mais ritualizada e o repertório investido de uma aura museológica mais destacada saladeconcerto sarau salãodebaile quintaldesamba terreirode candomblé9 8 Citado por Hermínio Bello de Carvalho em VillaLobos e o Violão palestra publicada em Presença de VillaLobos III Rio de Janeiro MEC Museu VillaLobos 1969140141 9 Se quisermos tirar este esquema de dentro da metáfora da casa como conviria a uma des crição concreta da diversidade das práticas musicais do Rio no começo do século bem como a uma representação menos doméstica da sociedade seria preciso levar também em consi deração os caféscantantes os bailes populares os teatros de revista José Ramos Tinhorão dá excelente material para isso em Os Sons que Vêm da Rua Rio de Janeiro Edições Ti 21 gramofone rádio Na linha horizontal perfazemse passagens do popular ao erudito através de si napses que marcam as fronteiras culturais do nervosismo social ao mesmo tempo que deixam vazar alguns sinais que vindos das duas direções querem percorrer todo o sistema Sambista anteprojeto do artista diria Paulo da Portela num dos seus sambas indicando o desejo de reconhecimento e da cidadania que anima parte da cultura negra a buscar posição no sistema sociocultural e que levaria o próprio Paulo a ser eleito CidadãoSamba na década de 30 A linha oblíqua marca por sua vez a ramificação mercadológica de massa que deu inesperada margem de penetração alternativa à música popular correndo por fora do sistema de difusão da arte Aparentemente se tomamos como referência a linha horizontal que vai do can domblé ao concerto através de uma série de gradações estaria diluída inteiramente a luta de classes no conjunto da vida cultural já que teríamos uma diferença me ramente quantitativa entre o erudito e o popular Mas a coisa é mais complicada É verdade que o populismo que está se armando aí atenua a luta de classes no jogo de imagens de um paternalismo de novo tipo onde cultura dominante e culturas do povo buscam referendarse num espelhamento mas o que ele faz é colocar a luta de classes no ponto invisível no lugar onde ela não parece estar Em primeiro lugar a polaridade social fica marcada nos pontos terminais dessa cadeia onde a ideologia tem seu ponto de força de um lado o ritual religioso po pular de outro o ritual estético burguês e essa oposição é mais política do que se possa imaginar Em segundo lugar já que os signos de classe se confundem em seu movimento de ida e volta onde parecem encontrarse nos mesmos pontos eles se distinguem e conflitam e nisso reside ao mesmo tempo a alteridade de classe e a alteridade do significante exatamente pelo sentido estratégico do seu movimento Como expressão da marginalidade dos grupos dominados a ocupação do lugar através dos biombos corresponde a uma estratégia popular de resistência onde procedendo por avanços e recuos escaramuças e escamoteamentos reagese à exclusão e firmase uma identidade polarizada pelo seu ponto mais encoberto a prática religiosa Como expressão da cidadania cultural no domínio da Polis burguesa a ocupação de lugar através dos biombos corresponde a uma estratégia de dominação imagi nária de todo social através de sua representação estética o que aparece princi palmente na estratégia de totalização estética que quer unir a diversidade social para resgatar a unidade harmoniosa da sociedade fragmentada e nesse sentido expressa também uma resistência frente à perda de valores a aura da obra de arte por exemplo com o avanço da modernidade capitalista Curiosamente a primeira estratégia a dos dominados vai encontrar seu canal de escoamento social no mercado de música nascente e passa daí por todo um nhorão 1976 e na Pequena História da Música Popular da modinha à canção de protesto Petrópolis Vozes 1978 em especial no capítulo sobre o maxixe 22 processo de afirmação e mistura convertendo o modo comunitário primitivo de produção do samba num modo individualizado com suas poéticas e seus melo dismos de autor e procedendo por uma verdadeira guerra de apropriações auto rais na fase selvagem de corrida ao mercado10 A música popular negra que tem seu lastro no candomblé encontra portanto um modo transversal de difusão a in dústria do disco e o rádio e as contradições geradas nessa passagem certamente que não são poucas mas ela serviu para generalizar e consumar um fato cultural brasileiro da maior importância a emergência urbana e moderna da música negra carioca em seu primeiro surto que mudou a fisionomia cultural do país Enquanto o nacionalismo musical quer implantar uma espécie de república musical platônica assentada sobre o ethos folclórico no que será subsidiado por Getúlio as mani festações populares recalcadas emergem com força para a vida pública povoando o espaço do mercado em vias de industrializarse com os sinais de uma gestualidade outra investida de todos os meneios irônicos do cidadão precário o sujeito do samba que aspira ao reconhecimento da sua cidadania mas a parodia através de seu próprio deslocamento Por sua vez sem acesso ao mercado e sem a mesma força de expansão o outro pólo forte de afirmação musical isto é o projeto de representação elevada da totalidade social pela grande arte buscará meios de escoamento social no apoio do Estado primeiramente invocado de maneira implícita na pedagogia nacionalista de 20 e mais tarde amplamente desenvolvido no programa do Canto Orfeônico du rante a década de 30 rumo ao Estado Novo O choro e a seresta contíguos no espaço boêmio mas diferentes na forma e no conteúdo instrumental de câmara o primeiro cantada e líricoplangente a segun da ocupam a meu ver um lugar paralelo e elástico entre o samba o salão e o sa rau verdadeiras capelas ambulantes na expressão feliz de Adhemar Nóbrega11 tangenciando a batucada e aspirando eventualmente ao status erudito Tanto é as sim fronteiriço e ambivalente o lugar social do choro que dele dão duas versões curiosamente opostas Pixinguinha e Donga Donga Todos os pais daquela época não queriam o cidadão no choro porque era feio era crime previsto no Código Pe nal O fulano polícia pegava o outro tocando violão esse sujeito do violão estava perdido perdido Mas perdido pior que comunista Muito pior Isso é verdade o que estou lhe contando não era brincadeira não O castigo era seríssimo O delegado te botava lá umas 24 horas12 Pixinguinha O choro tinha mais prestígio naquele tempo O samba você sabe era mais cantado nos terreiros pelas pessoas muito humildes Se havia uma festa o choro era tocado na sala de visitas e o samba só no quintal para os empregados13 Já na sua constituição o choro é um gênero de síntese instrumental baseado na improvisação inteligente a que se referia VillaLobos Espaço de convergência da técnica musical da cidade assentado na classe média seus músicos funcionários de repartição carteiros oficiais músicos formados em escola e mais alguns traba lhadores manuais malandros profissionais e um que outro doutor desgarrado pro duzindo um gestuário sonoro original rabiscado de traços eruditos e populares o 10 Samba é que nem passarinho é do primeiro que pegar frase famosa de Sinhô 11 Adhemar Nóbrega Os Choros de VillaLobos Rio de Janeiro MEC Museu VillaLobos 1975 Sobre o mesmo assunto ver também José Maria Neves Villa Lobos o choro e os Choros São Paulo Ricordi 1977 12 Citado por Hermínio Bello de Carvalho no texto referido à nota 8 p 20 13 Muniz Sodré op cit62 23 choro funcionou para VillaLobos o Violão Clássico era seu apelido entre os músi cos como uma espécie de olho mágico através do qual ele enxergou a música bra sileira A exposição cabal dos cômodos contíguos da vida musical dependia de momen tos mais acentuados de verdadeiro devassamento dos biombos culturais quando as restrições que separam as práticas musicais de grupos e classes são suspensas e as diferenças expostas de maneira simultânea provocando um efeito de estranha mento na emergência do recalcado Esse devassamento na década de 20 operou se progressivamente através da expansão de dois fatores o carnaval brasileiro moderno e a sinfonização das disparidades musicais do país levadas a efeito por Vi llaLobos O carnaval enquanto movimento ofensivo da estratégia de afirmação dos grupos marginais ocupa e desapropria simbolicamente o espaço urbano desrecalcando num caleidoscópio extrovertido toda a gama de gestos corporais sonoros das ba tucadas sambas maxixes marchinhas modinhas e danças de salão dramatizados na interpretação pública dos ranchos cordões afoxés blocos e pouco a pouco e mais e mais das escolas de samba A sinfonização nacionalista entendida no sentido amplo como conjunto de peças artísticas que obedeceu à estratégia de controle simbólico da totalidade social14 busca representar a nação sintetizando o seu espectro cultural de modo a conferir lhe uma unidade sublimada mas no caso das elaborações villalobísticas ao preço de expor em blocos aglomerados um painel explosivo das práticas musicais diferi das O devassamento carnavalesco cuja maior força está em não poder ser trans posto porque se dá no momento da sua experiência múltipla musical gestual se xual etc etc tende a ser modificado na medida em que a irrupção que provoca busca reconhecimento oficial isto é busca para a comunidade popular negra mar ginalizada a cidadania que será tipificada na eleição de Paulo da Portela cidadão samba e desenhará nos seus desfiles um novo fraseado apologético que se fixou principalmente depois dos carnavais de guerra do Estado Novo15 O devassa mento sinfonizante nacionalista por sua vez virá marcado por um forte didatismo paternalista simétrico à apologética sambística a tensão entre a franca irrupção carnavalizante e um severo escrúpulo pedagógico paternalista eou autoritário marca o itinerário de VillaLobos Na batida do populismo o carnaval emergente em busca de cidadania ganha traços sinfônicos e a sinfonização nacionalista levada a efeito por VillaLobos não se faz sem passar por um devassamento carnavalizante da música brasileira A sinfonia nacionalista já vinha sendo esboçada de longa data No programa para o poema sinfônico Brasil lançado pelo Jornal do Brasil em 1921 Coelho Neto buscava um compositor erudito que escrevesse uma história musical apologética do país que culminaria no trançado das formas populares ren didas ao Hino Nacional com o que Coelho Neto parecia querer converter a econo 14 Não estou usando portanto do sentido habitual de sinfonia como gênero de música or questral do século XIX Penso isto sim num conjunto de obras de vários gêneros que une materiais sonoros os mais diversos para extrair daí um efeito de totalização 15 A trajetória do sambista é muito bem apresentada no livro de Marília T Barbosa da Silva e Lygia Santos Paulo da Portela traço de união entre duas culturas Rio de Janeiro MEC FUNARTE 1979 24 mia carnavalesca da festa popular religiosa orgiástica e paródica numa batida de desfile militar do Dia da Pátria reduzindo a sua horizontalidade múltipla a uma hierarquização vertical autoritária e monocórdica16 Não encontrando nenhum músico que empeitasse o seu programa sinfônico Co elho Neto que também era chegado às sociedades carnavalescas consegue intro duzirlhes uns enredos cívicos Numa crônica publicada também no Jornal do Brasil logo depois do carnaval de 1923 apela para o patriotismo das pequenas socieda des os ranchos no sentido de apresentarem como enredo de seus préstitos temas de caráter estritamente nacional17 No ano seguinte o Ameno Resedá rancho do qual participavam destacados políticos literatos e bemsucedidos profissionais li berais inclusive o próprio Coelho Neto saía com o enredo Hino Nacional Visto por esse lado nada nos impede de pensar que não só a proposta do rancho cívico carnavalesco mas o próprio programa do poema sinfônico Brasil já era na verda de um primeiro projeto avant la lettre de enredo de escola de samba com suas alegorias históricas distribuídas em partes sucessivas como num grande teatro ro lante caminhando em cortejo triunfal para a apoteose cívica ao som da batida combinada de todas as danças populares Acontece que o Ameno Resedá fez escas so sucesso naquele ano de 24 e o primeiro secretário do rancho em carta ao es critor descrevia as dificuldades de associar carnaval e patriotismo Desgostoso com o insucesso do seu programa nas duas frentes da sinfonia na cionalista e do carnaval Coelho Neto escreve um curioso desabafo profético Se o júri não lhe conferiu o primeiro prêmio não deixou de louvar a idéia e certo estou de que no próximo ano o Ameno Resedá terá consolador triunfo vendo o seu exemplo imitado com o que não só lucrarão os ranchos tendo fartas novidades para explorar como o povo que aprenderá alegremente em espetáculos artísticos a amar o Brasil através da poesia de suas lendas dos episódios da sua história e dos feitos dos seus heróis Os precursores semeiam não colhem Este ano foi o da sementeira a colheita virá depois e ótima O primeiro passo foi dado e já agora ninguém poderá disputar ao Ameno Resedá a glória de haver norteado pelo civismo as suas festas carnavalescas18 Do nacionalismo folclorizante já dissemos o suficiente para entendermos que ele quer sinfonizar a totalidade social trazendo para a moldura do concerto a música dos espaços populares recalcados e submersos as danças dramáticas os cocos os pregões as rodas infantis etc mas sem saber o que fazer em suas estilizações da contigüidade excessivamente contemporânea e impura da música urbana Aqui 16 Os sons aliaramse fundiramse e aí vibram nas langorosas modinhas nos batu ques nos cateretês nos jongos e com tais músicas expressão sonora de um povo emanci pado passamos sorrindo e cantando da Colônia para o Império e no Império conquistamos as duas formosas liberdades redimindo o escravo e exaltando a Pátria ao prestígio em que hoje a vemos E tais glórias conseguimos com um só hino que não era o símbolo de um regime mas a própria voz da nação que com ela vai seguindo vitoriosamente para o futuro como a França através de todas as vicissitudes políticas tomou para canto de marcha a Marselhesa trecho da proposta sinfônica de Coelho Neto aos compositores nacionais por ocasião do centenário da Independência lançada no Jornal do Brasil e reproduzida por O Estado de S Paulo em 721922 Analisei detalhadamente o programa de Coelho Neto em O Coro dos Contrários a música em torno da Semana de 22 São Paulo Duas Cidades Se cretaria da Cultura Ciência e Tecnologia 19771739 17 Citado por Jota Efegê em Ameno Resedá o rancho que foi escola Rio de Janeiro Editora Letras e Artes 196548 A indicação desse texto me foi possível graças ao trabalho da pes quisadora Dulce Tupy para a FUNARTE sobre os carnavais de guerra 18 Citado também por Jota Efegê no mesmo texto à p 50 25 os telões abertos para a música rural se arrumam de modo a ocultar a pressão da modernidade Vale acrescentar nesse ponto que podemos entender talvez agora o contexto em que a Arte culta nacionalista buscará apoio no Estado para sustentar seu litígio com a música de mercado correspondendo a duas formas contrastantes de repre sentação do drama social ligadas a estratégias de ideologia cultural opostas elas disputavam a primazia da condição de pedra de toque musical da nação mas em territórios de expansão desiguais Embora o erudito e o popular fossem parâme tros relativa e mutuamente dependentes nessa época um mimando de certa forma o outro para a sinfonia nacionalista a comercialização fácil da música popular pa rece abusiva para esta a redução do popular a uma versão subalterna daquela pode chegar a parecer ilegítima19 Insuflada pelo empenho de representação musical da nação através da grande obra VillaLobos jogava nela com toda a força de suas metamorfoses em blocos a vivência do artesanato popular em amplificações panorâmicas Não por acaso o seu grande projeto da década de 20 quando a sua música toma impulso foi a série de Choros de cuja expressão mais simples ele partiu até atingir progressivamente formas complexas onde superpôs em condensações e deslocamentos contínuos as batucadas afroindígenas emergentes de uma espécie de inconsciente das formas de dança contemporânea os sambas os choros e serestas ponteios marchas cirandas etc trabalhados em clima de franca bricolage e invenção timbrística A música que VillaLobos passou a fazer na década de 20 nasceu do quadro mo vimentado das aproximações eruditopopulares do Rio de Janeiro e exorbitou des se quadro como se transbordasse um magma sonoro em permanente transfigura ção cuja forma é uma conseqüência do desdobramento do material que ele primeiramente pesquisava e depois multiplicava num jorro de acontecimentos mu sicais sempre novos20 Contrapondo ao rigor da música européia o seu informalismo caótico jovem e cheio de vida num valetudo experimental antropofágico VillaLobos usa os efei tos do sinfonismo descritivo os timbres e os modos debussystas os blocos sonoros polirrítmicos e politonais aparentados com a música do primeiro Strawinsky os temas da música indígena colhidos em Jean de Léry ou nos fonogramas de Roque ttePinto os cantos sertanejos a música dos coretos de banda a valsa suburbana a bateria de escola de samba e daí por diante Avaliar e analisar uma produção acidentada desse jeito não é fácil Gilberto Mendes sugeriu como critério que o dis paratado dos seus altos e baixos e do mau gosto que advém da mistura geral em tais proporções não é um acidente ou um desvio estético mas uma dimensão pró pria da tumultuada procura do transcendental do cósmico através do sentimento nativo Todos esses compositores das Américas Ives Cowell Antheil VillaLobos são na verdade de um impressionismo e politonalismo baratos frente à técnica composici 19 Valerá como indício o episódio narrado por Manuel Bandeira Me apresentaram Sinhô na câmara ardente do Zeca Patrocínio Sinhô tinha passado o dia ali era mais de meia noite ia passar a noite ali e não parava de evocar a figura do amigo extinto contava aven turas comuns espinafrava tudo quanto era músico e poeta estava danado naquela época com o Villa e o Catullo poeta era ele músico era ele na mesma crônica já citada 20 Gilberto Mendes A Música In Affonso Ávila org O Modernismo São Paulo Perspecti va 1975132 26 onal de seus contemporâneos europeus mas a gente sente em sua música princi palmente naquilo que parece ruim mal feito algo mais que a torna diferente uma autenticidade uma independência em que encontraremos as raízes tipicamente americanas de uma vanguarda que não tem nada a ver com a vanguarda européia Só nas Américas poderia surgir uma pop art o jazz o tropicalismo a música de VillaLobos e Ives21 Entre os Choros que centralizam a produção de VillaLobos na década de 20 o de no10 para orquestra e coro misto não por acaso o mais célebre é a confirma ção mais significativa dos rumos que a música do compositor estava seguindo na quele momento Vale dizer para introduzir o problema que o princípio sincrético que manda nos choros populares extravasa numa violenta ampliação nos Choros de VillaLobos criando um efeito de distorção panorâmica Iniciados por uma pecinha para violão nos moldes de Ernesto Nazareth eles absorvem rápida e crescentemente por uma progressiva aumentação das massas sonoras de uma peça para outra um enorme repertório de significantes musicais diversos da música indígena constantemente recorrente africana mais rara e circunstancial popular rural urbana e suburba na aglomerados em constantes recombinações Há uma intenção explícita de captar o prisma da psiquê musical brasileira pelas ambientações orquestrais ecoló gicas florestais sertanejas pela pontuação de cantos de pássaros pela citação e desdobramento de cantos rituais indígenas pela alusão a batucadas ranchos val sinhas cantigas de roda dobrados tudo isto visto a partir das serestas e dos cho ros22 A técnica investida nessas agregações realiza metamorfoses oníricas do material musical de base submetido a condensaçõesdeslocamentos no nível contrapontísti co superposições por blocos simultâneos de signos e códigos musicais diferentes e distantes harmônico circulação de configurações modais tonais e politonais sintáticodiscursivo adjunção constante de motivos sem continuidade linear do que resulta desde a primeira impressão uma figura da simultaneidade das forças da liberação de energia sem o fechamento que corresponderia à representação da forma acabada e da temporalidade sem finalismo dos fragmentos compostos É a audição de uma figuração onírica que trabalha com significantes de brasil o país inconsciente é o conjunto de forças inapreensível que o texto musical tenta flagrar em sua cinética sonora Nesse sentido mesmo de levantamento parcial do recalque que separa as pro duções simbólicas das classes os Choros fazem o papel de devassador cultural atravessando vigorosamente as sinapses que censuram a passagem de significan tes carregados de intensidades sensuais de informações vitais de história reprimi da O Choros no10 pode ser considerado modelar uma análise minuciosa mostraria como se dá ali a articulação de sinais cifrados da diversidade brasileira compondo um mito nacional que vou traçar aqui em linhas gerais 21 Idem ibidem131 22 Essa explicitação encontrase no texto do próprio compositor Choros estudo técnico estético e psicológico de VillaLobos mimeografado e revisto pelo professor Adhemar Nó brega no Conservatório Nacional de Canto Orfeônico em 1950 e publicado em VillaLobos sua obra pelo MEC Museu VillaLobos 1972 27 A peça admite uma leitura sintáticosemântica que acompanhe a articulação de gestos musicais nacionais leitura que aparentemente demodée à primeira vista mostrase adequada ao objeto Ela apresenta I uma longa seção orquestral formada de uma introdução ani mada e de um episódio lento seguida de II uma parte final coralsinfônica de caráter progressivamente apoteótico O contraste entre essas duas partes tomadas aqui bem panoramicamente é nítido A parte orquestral I é o domínio dos sinais culturais cosmopolitoprimitivo urbanosuburbanorurais trabalhados ao modo de pulsões agregados por super posição e por adjunção constante23 como energia nãoligada que configura em contraste com a parte final um quadro de forças à solta erráticas entre o plano primitivo e o projeto civilizador formigamento caótico perdido entre o animismo selvagem e a inscrição na história da acumulação Ela é pontuada por acidentados índices dinâmicos que despontam ora como irrupções ora como quebras disrupti vas ora como focos atritivos ora como aclamações rebarbativas O regime de in tensidades descontínuas que era modo padrão da vanguarda fauve da década de 20 cobre aqui uma apresentação amostrativa dos tempos defasados intervalados compactados e espaçados do brasil onde é o Brasil um sistema de sons que vai guiando a eletrônica e musical figuração das coisas24 A proliferação de motivos dessa primeira parte corresponde a um diapasão se mântico o desdobramento do potencial o espaçobrasil é o campo onde as forças erráticas vasto repositório de energias litigantes se entrechocam até encon trarem a ligação consubstanciada na coralidade tonal e ritmicamente periódica da última parte Lido sincronicamente o mito que dispõe a passagem dos aglomera dos intermitentes da seção sinfônica à periodicidade apoteótica da seção coral sinfônica cristaliza o destino de potência como seu núcleo de desejo O Choros no10 iniciase com um acorde fortíssimo percutido em anacruse com a nota superior sol na trompa longamente sustentada Esse acorde fundador sur ge com um bloco de energia intensidade bordado na flauta por uma transcrição instrumental do canto do pássaro azulão primeira aparição da voz da natureza so bre o fundo do potencial A esses dois elementos sobrepõese a evocação nas cordas do toque rasgado da viola popular constituindo no conjunto uma primeira combinação da natureza muda a força da nota sustentada a natureza cantante a melodia do pássaro e a cultura popular a batida da viola Sustentada ao longo dos compassos da seção introdutória a nota inicial proferida pela trompa se abre num motivo melódico ascendente no segmento marcado na partitura com a letra A procedendo por atritos de segunda menor nas trompas que conduzem resol vendose a um acorde perfeito menor Acompanhado de um correspondente mo vimento de intensidade crescente e de alargamento do campo da tessitura e dos timbres instrumentais esse motivo que desabrocha da nota inicial como uma vitó riarégia assume aqui o caráter de uma alvorada virginalinaugural reincidindo em progressiva ampliação nos segmentos B e C onde incorpora um tema incaico enun ciado em acordes paralelos com incidências dissonantes em ambiente de passara da transpondose para as cordas onde desemboca finalmente no motivo nuclear de toda a peça um acalanto dos índios parecis de perfil cromático descendente cujas metamorfoses por diatomização ou alteração do perfil rítmico serão estru 23 Termo empregado por Adhemar Nóbrega em Os Choros de VillaLobos 24 Carlos Drummond de Andrade A Palavra e a Terra Lição de Coisas 28 turantes da obra e assumirão grande importância na parte final25 Da primeira nota até o achado do tema se dá portanto um processo de gênese a partir do qual o motivo dos índios parecis pontuará generalizadamente o espaço sonoro ao modo de intervenções disseminadas em gestação onipresente Adhemar Nóbrega cha mouo motivo conspiratório Tratase no entanto de uma gênese acidentada por múltiplas superposições sincrônicas metamorfoses politonais da tocata chorística intervindo com suas inflexões sincopadas refrões populares temas de embolada solo de trombone derrapando sem expansão melódica o motivo nuclear ampliado em gesto de choroseresta timbrística e melodicamente distorcido piano e sopros emitindo quaseclusters percutidos à maneira de dança indígena Sacre du Prin temps primitivomoderna e outras tantas incidências em múltiplas combinações sempre acirradas pela reiteração polimorfa do motivo nuclear No final da parte puramente sinfônica o clima associativo e disruptivo da soma tória cultural que prevalece desde o começo dá lugar ao desenvolvimento pelas cordas e trompas de um elemento melodicamente ascendente e reiterativo cres cente em intensidade animandose no andamento além de conter uma aceleração rítmica interna ao próprio motivo que eu chamaria pelo contraste que instaura de tema da vontade pelo modo como ele parece indicar a tendência a organizar as energias livres num novo regime de articulação E de fato o tema da vontade de uma altissonância mais para Amaral Neto Re pórter nessa passagem que para Glauber Rocha leva o desdobramento do poten cial inserido no início da peça a um limiar onde ele se interrompe em fortíssimo FFFF A pausa pontua o que será a efetiva entrada de um outro regime na eco nomia rítmicomelódicoharmônica da peça em andamento très peu animé et bien rythmé Pois a parte final coralsinfônica II é antes de mais nada o campo da perio dicidade ela começa com um motivo insistentemente repetido célula rítmico melódica de corte incisivo dançante reiterativo engendrada digase de passagem pelo trabalho de metamorfose do motivo conspiratório dos índios parecis que lan çada pelo contrafagote atravessa a orquestra e projetase no coro vozes masculi nas em movimentos cadentes coleantes articulados pelas vozes em silabações onomatopaicas imitativas do tupi jakatakamarajá jakatakamarajá jakata jakataka kamarajá etc A regularidade rítmica do motivo indígena permanecerá todo o tempo acrescida da superposição de cadências de marcharancho percutidas no pi ano coroada pelas vozes ecoando motivos melódicos advindos dos temas indíge nas acentuada por interferências dissonantes diversas No ápice desse processo de progressivo congestionamento do campo sonoro onde a batida indígena é subli nhada pela percussão acrescida de instrumentos brasileiros recoreco puíta e caxambu adensada por clusters glissandos e comentários sonoros meteóricos quando o crescendo das massas coraisorquestrais atinge o seu clímax é que sur ge já em terceiro plano confundindose com a intricada teia de um contraponto cerrado em pleno stretto uma melodia lírica e sentimental à maneira da modinha suburbana extraída de uma canção popular com letra do poeta seresteiro Catullo da Paixão Cearense denominada Rasga o Coração26 entoada pelo naipe mais agudo das vozes femininas É preciso realmente ouvir o despontar dessa espécie de miragem sonora sob a compacta massa coralorquestral para perceber nessa apari 25 A referência ao tema incaico e ao acalanto dos índios parecis feita pelo próprio Villa Lobos encontrase no texto citado à nota 22 26 A citação é do texto referido à nota 22 29 ção algo como a visão mirífica de uma alma brasileira aliás é esse o subtítulo do Choros no5 pairando sobre o tumulto das forças fundidas e atritantes às quais imprime agora o movimento encadeado dos intercâmbios tonais Desdobrado por todo o coro o Rasga o Coração toma conta da parte final desse Choros no10 e depois de evocar a seqüência de acordes do início da peça o des dobramento do potencial fechase pela eclosão de um acorde coralsinfônicotonal embora carregado de dissonâncias O Rasga o Coração era na verdade uma adaptação para não dizer apropriação do antigo xote instrumental Iara de Anacleto de Medeiros transformado em can ção por Catullo27 A música até chegar ao Choros passou assim por uma série de transformações O schottisch carioca do antigo chorão Anacleto de Medeiros com panheiro de VillaLobos embebido depois nas rutilâncias da dor plangentes de Catullo tomando um banho de verbosidade nostálgica rasga um espaço mítico no contexto sonoro transfigurado da obra de VillaLobos A música de dança urbana sofre portanto uma primeira sublimação quando ralentada e versificada pelo doutor da Dor cearense e um novo efeito de totalização quando emerge como superestrutura lírica da acirrada massa sonora posta em ação por esse outro artista que não foi doutor Heitor VillaLobos28 Não me parece difícil ler nessa obra que causou forte impressão no Brasil e na Europa quando do seu lançamento em 19262729 através da conversão da energia 27 Eis a letra do Rasga o Coração Se tu queres ver a imensidão do céu e mar refletindo a prismatização da luz solar rasga o coração vem te debruçar sobre a vastidão do meu penar Rasgao que hás de ver lá dentro a dor a soluçar sob o peso de uma cruz de lágrimas chorar Anjos a cantar preces divinais Deus a rimar seus pobres ais Sorve todo o olor que anda a recender pelas espinhosas florações do meu so frer Vê se podes ler nas suas pulsações as brancas ilusões e o que ele diz no seu gemer e que não pode a ti dizer nas palpitações Ouveo brandamente doce mente palpitar casto e purpural num treno vesperal mais puro que uma cândida vestal e assim por diante o texto é bastante longo VillaLobos utilizouo apenas em par te Está nas Modinhas de Catullo da Paixão Cearense São Paulo Fermata 1972 Mais tarde o compositor foi processado por um tal Guimarães Martins dono dos direitos autorais de Catullo que o acusou de plágio e desde então a parte coral do Choros n10 é cantada sem letra apenas em vocalise no que só saiu ganhando Foi em torno dessa pendenga autoral e em defesa de Guimarães Martins que Carlos Maul escreveu o livro idiota A Glória Escan dalosa de VillaLobos Rio de Janeiro Livraria Império 2ª ed 1960 28 Fiz um dia esta pergunta ao meu anjo inspirador Qual seria o anel do Poeta Se o Poeta fosse um Doutor E o meu anjo o meu arcanjo respondeume com calor Nem verde nem cor de sangue nem azul nem amarelo nem roxo nem de outra cor Seria muito mais belo Uma saudade brilhando na cravação de uma Dor Catullo da Paixão Cearense O Anel do Poeta 29 Quanto ao Rasga o Coração é uma forte composição com importante prelúdio orquestral onde abundam os efeitos onomatopaicos de timbres em que é tão fértil a fantasia de Villa vem depois a citação entre aspas da modinha de Catullo Se tu queres ver a imensidão do céu e mar Villa envolveua de uma formidável roupagem harmônica onde sobre um fundo imperioso de marcha batida corusca fabulosamente a prismatização da luz solar Villa foi aclamado pela platéia unânime como de fato merecia estendendose os aplausos aos seus numerosos colaboradores entre os quais se contava a fina flor dos nossos professores can tores e amadores que o presentearam em cena aberta com uma baita batuta de ouro Ma nuel Bandeira Villa Regendo in Andorinha Andorinha Rio de Janeiro José Olympio 196693 Le Choros 10 lemporte certainement sur les précédents compositions Il débute par un tumulte dorchestre dune pâte assez strawinskiste influence du reste sensible chez M VillaLobos Des lambeaux de thèmes apparaissent ensuite sur un orchestre redevenu 30 livre à energia ligada que ela opera a construção do mito do feroz instinto de uma raça em pleno desenvolvimento domado para usar expressão do próprio Vi llaLobos na medida em que ela encadeia uma série de livres associações signifi cativas da multiplicidade cultural pela via dos motivos do potencial emergente do tema da vontade e do triunfo coral elementos civilizadores ascendentes a partir de um campo de forças rico e caótico Que dizer por sua vez do canto de sereia da alma brasileira pairando em meio às forças tumultuadas do primitivo e do moder no A receita mítica deste Choros para o Brasil é mistura e sacode que se des prende uma aura miragem encantatória que harmoniza a sociedade pairando aci ma dela como a classe média em certas manifestações ideológicas da própria como a nação efeito de totalidade desprendendose das particularidades sociais como o Estado orquestrador da sociedade dividida Uma resposta taxativa seria francamente abusiva em vista do caráter aberto do discurso musical sujeito a múltiplas versões a múltiplos usos e a múltipla reconstruções semânticas nunca definitivas Mas constelar dados como esses que cercam a produção villalobística logo antes de sua entrada orfeônica no Estado Novo e enriquecer a margem de leituras de sua obra é sem dúvida o melhor que temos a fazer Podese dizer que a obra de VillaLobos é esplêndida realização de populismo mais para enriquecer a idéia do populismo do que para sujeitar a música a um rótulo Ela faz parte desse processo ambivalente de emergência de imagens visíveis de povo soberano necessárias à identidade civil das nações modernas o que só foi possível muito recentemente no Brasil depois da Abolição em conjunto com os conflitivos esforços para integrálo o povo na nova ordem capitalista Os obstá culos que o povo real parece opor à sua integração na totalização nacionalista são hoje de dois tipos Por um lado ele aparece aos olhos desse intelectual como atra sado e indolente entre as indefectíveis coloniais falhas de caráter Por outro a idéia do atraso de sua cultura e de suas práticas supersticiosas quando religio sas bárbaras e sensuais quando festivas vêm se somar às tumultuárias vicissi tudes modernas como as reivindicações de massa e a proliferação de cultura urba na passando diretamente do plano das culturas rurais iletradas para os meios au diovisuais elétricos sem o estágio tão típico dos países desenvolvidos da educação letrada e tudo o que ela comporta em matéria de modelos culturais e de consciên cia cívica Fora portanto da imagem de povo a ser produzida pela arte nacionalista apoiada no folclore o povo bom emerge um outro povo problemático de difícil controle por esse projeto seja pelo que parece ser a sua inconsciência frente às exigências mínimas da razão ilustrada mergulhada no animismo acívico seja pelo que deriva de ser as eclosões de sua consciência política expressa em movimentos populares Surpreendemos aí a matriz da oscilação constante e típica entre a postura neo romântica que toma o povo como sujeito da nação imaginário ou simbólico e a postura neo e subilustrada que toma o povo como objeto de um banho pedagó calme Le choeur intervient bientôt apportant à lensemble une animation barbare et sau vage Dune voix à lautre court une mélopée puissante La batterie sanctionne la persistance de ces tourbillonements qui évoquent les ébats de quelque horde primitive Malgré des influ ences ce Choros revèle une originalité rigoureuse et montre chez son auteur une capacité dimagination une maîtrise técnique une liberté délan remarquables Paul Le Flem Audi tions douvres de M VillaLobos Comoedia Paris 7121927 la génèse truculente dune neuve Amérique pleine délan et source jaillissante des trésors mélodiques et rythmi ques que les nègres et les indiens se transmettent depuis dez millénaires Pierre Lucas Lyri ca dez 1927 31 gico oscilação esta que é o lugar por excelência da ação desengano e dilacera mento do intelectual burguês brasileiro no período Enquanto o popular é suscitado colocase o problema de dominálo em benefício da totalidade no caso da ordem vigente controlando o monstro de duas cabeças que morde pelo lado moderno e pelo lado atrasado A demanda do popular coloca imediatamente do pontodevista dominante o problema da autoridade e da hie rarquia chamada a dominar as convulsões inscritas nas próprias energias sociais que é necessário convocar para a produção vale dizer para a consecução do po tencial acumulativo ocioso a ser despertado É tão simplista pensar que essas considerações enquadram a música de Villa Lobos quanto é bobagem achar que a obra do compositor não tem nada a ver com elas A música de VillaLobos busca oficiar o rito de passagem da naçãocaos ter ritório potencial da natureza bruta e do povo inculto tidos como forças indômitas do feroz instinto de uma raça em pleno desenvolvimento à naçãocosmos terri tório simbólico da natureza e povo potenciados A música que será tomada como a mediadora pedagógica dessa passagem quando do programa do canto orfeônico já tem a charada resolvida de antemão na obra sinfônica dar ordem ao caos através de um movimento de espelhamento en tre povo e nação graças ao qual a sociedade surge como conflituosa dilacerada pelos interesses conflitantes que a dividem e harmoniosa resgatada pelo senti mento pátrio30 Da trama desse movimento de postulação da gênese da nação fa zendoa falar através do povo e fazendoo calar em seus excessos é que salta em refração acima dos conflitos a alma brasileira o Rasga o coração espécie de estado lírico e feminino emulação utópica do Estado político masculino Em VillaLobos a busca de representação ou de efetuação dessa passagem do caos ruidoso do Brasil a um cosmos coral se dá em dois canais ou dois registros o registro propriamente estético da obra musical é mitopoético e o registro político do programa orfeônico será pedagógicoautoritário No registro mitopoético bem representado pelo Choros no10 espécie de con densação de um projeto musical distribuído esparsamente pelas múltiplas obras o momento caótico tem grande relevo em ressonância congenial com a experimen tação vanguardista aí o devassamento sinfônicocarnavalesco dos tempos culturais defasados e simultâneos parece ser fundamental para o melhor êxito da apoteose final tanto mais representativa da concordância tonal que chega a criar quanto mais explosivas e tumultuadas as forças que chegou a subordinar e organizar A rica desordem do país novo reservatório potencial de energias caóticas desponta de modo marcante nas obras da década de 20 nos Choros no Noneto e no Rude poema onde VillaLobos captou com a antena modernista de suas polirritmias su as politonalidades suas estridências timbrísticas e harmônicas os ruídos culturais do Brasil ruídos do social recalcado até então pela cultura oficial que ele devassa e superpõe em aglomerações fragmentárias exacerbando a tumultuada diferença desses materiais A pacificação prefigurada nos Choros estabilizase na obra musi cal a partir da década de 30 através do neoclassicismo das Bachianas Brasileiras como que a augurar o desejado equilíbrio da nação madura que soube disciplinar a sua rica seiva 30 Utilizo aqui a formulação de Marilena Chauí sobre a articulação das idéias de povo e nação desenvolvida no seminário de pesquisa promovido pela FUNARTE O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira Rio de Janeiro 1980 32 O registro pedagógicoautoritário por outro lado representado pelo programa do canto orfeônico no Estado Novo quer imprimir disciplina e civismo ao povo de seducado ou educando partindo do tom patriótico e hínico Pelos altofalantes do Estado Novo VillaLobos buscou a conversão do caos ruidoso do Brasil num cosmos coral mito utópico que se traduziu quando precisou transformarse em plano pe dagógicopolítico na questão da autoridade e da disciplina a música contribuiria para reverter a rica e perigosa desordem do país novo em ordem produtiva ca lando a múltipla expressão das diferenças culturais numa cruzada monocórdica como veremos a seguir A conciliação dos pólos da desordem e da ordem na corda tensa que VillaLobos vibrou com extrema intensidade não se faz sem disparates sublimes Se uma tra dição bemposta costuma satirizar como samba do crioulo doido alguns dos re sultados heteróclitos a que chegam as culturas da margem quando procedendo por suas apropriações carnavalizantes buscam mimetizar a cultura oficial para ganhar cidadania o que dizer das tiradas exortações hinos e teorizações villalobísticas quando se propõem a sanear a incultura nacional senão que compõem junto à sua dança do índio branco um inusitado samba clássico do caboclo doido Olha o pas sado heróis ardentes saltam das tumbas brilham quais sóis Barroso Anchieta Tiradentes Caxias Gusmão Quantos heróis E nosso ardor na paz na guerra exalta a glória do meu Brasil canta VillaLobos em Meu País hino castrolópico como chamouo Manuel Bandeira publicado sob o pseudônimo de Zé Povo31 Por mais que pretenda impor programaticamente uma ordem cultural afinada pela seriedade bombástica da exortação hínica VillaLobos escorrega na casca de banana no campo minado onde o Estado busca legitimação na imagem do popular e o popular busca cidadania no reconhecimento oficial num jogo de mimetismos car navalescos espelhados onde ambos se engrupem mutuamente Assim se o samba da legitimidade do Estado Novo toma foros algo orfeônicos e sinfônicos conforme mostrou Antonio Pedro num trabalho ainda inédito32 Villa Lobos cometeu por sua vez um Samba Clássico curioso exemplo de batucada cívi ca onde a ascensão patriótica quando parece atingir o pináculo da sublimação derrapa espetacularmente no carnaval Na grandeza infinda É feliz quem vive Nesta terra santa que não elege raça nem prefere crença Oh Minha gente Minha terra Meu país Minha Pátria Para frente A subir A subir A SAMBAR 33 Como não se lembrar aí do senador de casaca de Terra em Transe que se inflama com seu discurso demagógico de bachareldecomício e cai no samba ras gado A leitura que eu estou fazendo não é para que o suposto bom senso de algum ranço universitário se imagine estar acima desses exemplos bizarros de populis mo Ela não serve à crítica costumeira de posições ideológicas porque neste caso a vontade de potência transitando entre a música e a política dá um curtocircuito no fusível do crítico da cultura se ele se dignar a perceber que o total das forças 31 A letra completa do hino Meu País vem citada em conferência de Amarylio de Albuquerque VillaLobos visto pelo avesso publicado em Presença de VillaLobos 4 vol Rio de Ja neiro MEC Museu VillaLobos 196946 32 Antonio Pedro Samba da Legitimidade mimeo dissertação de mestrado São Paulo USP 1980 33 O Samba Clássico vem citado também por Amarylio de Albuquerque ver nota anterior 33 em jogo nessa cadeia de revolução carnaval e autoritarismo ultrapassa em muito o alcance das categorias explicativas do seu discurso verbal A crítica do populismo o tema desta pesquisa é um convite ao erro irrecusável é a crítica do lugar imaginário do intelectual letrado burguês como explicador e re gente do movimento social e o efeito bumerangue dessa crítica do objeto sobre o sujeito Como regente ele só pode constatar hoje que se vê amplamente superado pelos movimentos sociais Como explicador eu só posso explicar e me explicar diz eleeu espécime fóssil quando soterrado pelas camadas geológicas da história mas mutante quando se percebe que o buracobrasil é mais em cima mais embai xo e mais em volta Atravessa o vício profissional da explicação droga do intelectual a carreira bri lhante decupadora a vontade de síntese descentrada raio da idéia detonadora A música de VillaLobos não se mede pelo bom senso Eu acho que ela se mede melhor pela cena de Terra em Transe À mistura farsesca e altissonante de cruzada cívica e carnaval que ele herdou e flagrou lancinantemente Glauber Rocha acres centou segundo a emergência dos movimentos políticos da década de 60 o vértice da revolução no caldeirão onde esses impulsos revolucionário carnavalesco e patriótico revertem dramática e parodicamente um ao outro Ou nas palavras da Tropicália eu organizo o movimento eu oriento o carnaval eu inauguro o monu mento no planalto central do país Glauber reforçou o sopro profético revolucioná rio terceiromundista do seu cinema justamente com o fôlego sinfônico dos Choros e das Bachianas isto é daquele complexo político e cultural ambivalente com que Getúlio e VillaLobos no seu modo nacionalista autoritáriopaternalista e desenvol vimentista hábeis no manejo dos compromissos entre forças contrárias identifica dos com a figura do pai da pátria que acende a chispa do Brasil moderno roubaram a cena histórica O que não quer dizer absolutamente que Glauber seja um herdei rorepetidor ideológico dos parceiros do Estado Novo ele é um captador da energia que circula entre os pólos Getúlio VillaLobos cruzando o campo da artepolítica e seu sonho de potência num ziguezague barroco que fez por levar à microfonia mais estridente as pulsões de direitaesquerda contidas no núcleo populista e re batidas por exemplo em VillaLobos e Mário de Andrade Transando o poder da arte e da política ele exacerba gritantemente a contradição do intelectual no ciclo nacionalpopulista levando à máxima potência paradoxal a visão desencontrada do povo como força revolucionária e como presa impotenteinconsciente da apatia da alienação do atraso subtexto recalcado de toda a apologética nacionalpopulista De Barravento a Idade da Terra Glauber junta os fios dos dois pólos da corrente que passa por Getúlio Villa Lobos e reapresenta todo o monumento do nacionalpopulismo como alegoria es plendor e ruína barroca entre a história da salvação e o nada O político populista entoa seus discurso bacharelesco em meio aos passistas e à batucada e cai no samba o contexto é o do comíciomanifestaçãopasseata populista Junto com esse sambaclássicodoido as massas estudantes operários demagogos e escola de samba começam a se deslocar e a câmera se aproxima do intelectual poetarevolucionário e da militante colocados no olho do ciclone popu 34 lista34 que se movem lentamente num contraponto com a massa quando come çam a soar impressionantemente os sons iniciais da Fuga das Bachianas Brasileiras Ali entre a guerrilha e a festa o carnaval político do ciclo populista que a música de VillaLobos atravessa e potencia recupera a sua dimensão subjacente que é a dimensão trágica35 34 A metáfora do olhodociclone aplicada à questão do nacionalpopular na cultura brasileira é idéia de José Pasta Jr desenvolvida em seminário de pesquisa na FUNARTE Rio de Janei ro 1980 35 Partes deste trabalho foram publicadas no artigo Estado Arte e Política em VillaLobos Vargas e Glauber Folhetim n283 São Paulo 2061982 35 O ORFEÃO DO ESTADO NOVO ESSE COQUEIRO QUE DÁ COCO A ação de VillaLobos arregimentando desde os inícios dos anos 30 corais de professores e alunos em contextos cívicos que vão ganhando um respaldo instituci onal progressivo integrados à estrutura escolar como prática cotidiana de civismo e ao aparato comemorativo das grandes datas nacionais através de mobilizações de massa muda o tom daqueles que falam de música erudita no Brasil na altura de 1940 A data redonda pareceu propícia por sinal à afirmação apologética dos feitos do Estado Novo num tom eufórico que destaca a regeneração da música na vida social e do papel orgânico de que o músico erudito se vê investido enquanto pro pagador da cultura entendida por sua vez já frisamos como elemento patriótico disciplinador Dizia Luiz Heitor ao fazer o balanço crítico da década Em 1930 o termômetro de nossa cultura musical havia descido quase a zero A es tagnação era de alarmar Ausência completa de iniciativa Ação corruptora de agentes poderosos como a falsa música popular e o seu temível aliado o rádio nessa época tão precariamente orientado ainda e em tumultuoso início de comer cialização O grifo é meu Fator decisivo de transformação VillaLobos primus inter pares passa a residir no Rio e inicia a sua famosa campanha em prol da cultura musical infantil e popular desaparecem velhas insti tuições e surgem outras que modificam totalmente a cadência de nossa vida musi cal o ensino é modificado revolucionariamente atingimos uma autonomia artística compatível com os votos mais otimistas1 Tal exaltação só se torna possível graças à conjugação VillaLobosGetúlio duas figuras que tinham mais de um motivo para ressonância Na crônica que se desen tranha aqui e ali dos textos de Luiz Heitor lemos que o Presidente da República atendera a dramático apelo do compositor passando a apoiar todas as suas ini ciativas pela altura de 1932 O que Getúlio Vargas apreciava no compositor era a inestancável energia a febre do grandioso do colossal postas a serviço das ceri mônias cívicas da República Nova anterior a 1935 ou do Estado Novo posterior a 19372 Num texto publicado pelo DIP A Música Nacionalista no Governo Getúlio Vargas é a própria voz de VillaLobos que realça a aliança da arte com o Estado Aproveitar o sortilégio da música como um fator de cultura e de civismo e integrá la na própria vida e na consciência nacional eis o milagre realizado em dez anos pelo governo do presidente Getúlio Vargas 1 Luiz Heitor Música e Músicos do Brasil Rio de Janeiro Casa do Estudante do Brasil p 380 2 Luiz Heitor 150 Anos de Música no Brasil Rio de Janeiro José Olympio p 269 36 No livro estas palavras de abertura vêm sob a insígnia do pentagrama inicial do Hino Nacional Nele estão contidas as linhas gerais do casamento entre a arte e a política dispondo do seu poder o sortilégio do canto coral para que ele seja en campado pelo Estado a música estaria restaurando segundo o compositor a sua verdadeira finalidade social e o seu objetivo educacional Em outro lugar ele mesmo diria O canto orfeônico aplicado nas escola tem como principal finalidade colaborar com os educadores para obter a disciplina espontânea e voluntária dos alunos desper tando ao mesmo tempo na mocidade um sadio interesse pelas artes em geral e pelos grandes artistas nacionais e estrangeiros3 Estribado segundo diretrizes federais num tríplice aspecto disciplina educação cívica e educação artística o programa do canto orfeônico nas escolas é estético pedagógico na sua proposta geral explícita e político no modelo autoritário de que se faz instrumento semiimplícito entremostrandose num curioso escamoteio Em 1931 ocorre a primeira manifestação coral em São Paulo sob os auspícios do interventor João Alberto com um imponente conjunto de 12000 vozes regidas por VillaLobos Hino Nacional O certame de canto pioneiro na América do Sul é propagado por meio de prospectos e folhetos exortativos lançados por aviões e distribuídos largamente nas escolas academias e em todos os centros de estudo e trabalho da juventude penetrando em todas as camadas sociais com qualidade estritamente brasileira Luiz Heitor O ineditismo da manifestação a mobilização da massa infantil interessando milhares de famílias e exigindo providências especi ais de transporte que se faziam notar e alteravam o tráfego normal da metrópole tiveram o resultado que ele VillaLobos comandando a massa e envergando um casaco de cores berrantes visava atrair para a música para a importância de cantar a atenção de multidões Ninguém pôde deixar de tomar conhecimento des sa proeza e o telégrafo levou a notícia a todo o Brasil4 Em 32 instalase no Distrito Federal um curso de Pedagogia da Música e Canto Orfeônico que arregimenta artistas de renome no cenário brasileiro e professores da Escola Nacional da Universidade do Brasil para a formação de um Orfeão dos Professores constituído de 250 figuras que se tornará uma espécie de núcleo piloto disseminador do programa de implantação do ensino do canto orfeônico nas escolas No livro de inscrição do Orfeão RoquettePinto escreveu como presidente ho norário PROMETO DE CORAÇÃO SERVIR A ARTE PARA QUE O BRASIL POSSA NA DISCIPLINA TRABALHAR CANTANDO 3 A principal fonte aqui citada é o texto Educação Musical de VillaLobos relatório com pleto sobre o programa de implantação nacional do ensino de canto orfeônico nas escolas publicado no Boletim LatinoAmericano de Música VI VI1 Rio de Janeiro 1946 Salvo re ferência outra em nota as citadas aqui usadas são desse texto 4 Luiz Heitor 150 Anos de Música no Brasil p 269 37 Essa legenda admirável pode bem sintetizar o espírito com que é praticado o canto orfeônico no Brasil e simboliza a disciplina e a força espiritual de que virão impreg nadas as futuras gerações brasileiras comenta o compositor E de fato tratase de uma sigla ideológica que fará carreira já na sua capacida de condensar o trinômio ufanismonacionalismotrabalhismo5 inflado de música Dez anos mais tarde em 1942 na maré da música popular imbuída também no andamento cívico e empenhada em pregar a devoção ao trabalho e contra a ma landragem João de Barro e Alcir Pires Vermelho faziam o samba Brasil usina do mundo Vibram sonoros clarins de quebrada em quebrada anunciando o raiar de uma nova alvorada Dias de luz hão de ser sempre os teus Brasil usina do mundo nova oficina de Deus As águas moveram as rodas descendo da serra As forjas lançaram fagulhas vermelhas ao léu Os rolos de fumo subiram do seio da terra Toldando o sol tingindo o céu E junto às fornalhas gigantes o malho empunhando Homens de mãos calejadas trabalham cantando Ouve esta voz que o destino da pátria bendiz É a voz do Brasil que trabalha cantando feliz6 Zelava pelo Orfeão e pelo curso que formava os professores de canto uma Su perintendência de Educação Musical e Artística criada com o fim de cultivar e des envolver o estudo de música nas escolas primárias e nas de ensino secundário e profissional assim como nos demais departamentos da Municipalidade O ensino de canto orfeônico tornavase obrigatório por decreto Mais tarde em 1942 criase o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico ro busta maturação desse movimento de cultura e civismo que aspira então a um caráter permanente Os professores aí formados sentinelas avançadas e conti nuadoras desse movimento de autêntico nacionalismo musical 5 Segundo Antonio Pedro Samba da Legitimidade tese de mestrado mimeo São Paulo USP 1980 6 Citado por Antonio Pedro op cit90 38 Em 1933 o governo federal dirige um apelo aos interventores e diretores de ins trução de todos os Estados para que se interessem pelo programa apresentando se ao mesmo tempo uma exposição das necessidades e vantagens que poderiam advir para a unidade nacional da prática coletiva do canto orfeônico calcada numa orientação didática uniforme A idéia foi bem recebida em vários Estados que en viaram professores para cursos especializados e pequenos estágios básicos no Rio de Janeiro Entre esses anos VillaLobos está empenhado em criar uma metodologia de transmissão da prática coral em formar um repertório adequado ao caso nacio nal em constituir o corpo de educadores especializados etc Os cursos de pro fessores sucedemse ao longo da década de 30 Para o programa do canto orfeônico o compositor escreveu os seis volumes do Guia Prático que contêm 1 canções infantis populares 2 hinos nacionais e esco lares canções patrióticas e hinos estrangeiros 3 canções escolares nacionais e estrangeiras 4 temas ameríndios do Brasil e do resto da América melodias afro brasileiras e do folclore universal 5 peças do repertório universal 6 repertório de música erudita Luiz Heitor Foi VillaLobos quem pôs em moda o canto coletivo fundando o seu Orfeão de Professores de maravilhosa eficiência técnica e produzindo enorme série de composições em que os efeitos obtidos com a voz humana atingem limites ex tremos que só a incomparável maestria desse homem de gênio poderia conceber7 A constituição do orfeão de professores mais a implantação do canto coral nas escolas permite que sistematicamente se reúnam milhares de estudantes em ma nifestações cívicas demonstrações anuais de caráter cívico para comemorar as grandes datas da Pátria como a da Bandeira da Independência do Panamerica nismo etc Pela imponência do espetáculo e pela repercussão que tiveram na alma popular VillaLobos destaca ao rememorar aquela frase uma apresentação de 30000 vozes em 1935 a celebração da sua Missa de São Sebastião pelo Carde al Leme em 1936 e a apresentação de 40000 vozes no estádio do Vasco da Gama em 1940 Esses programas cívicos são permeados por outros de cunho cultural quando se apresenta em primeira audição no Brasil a Missa Papae Marce lli de Palestrina a Missa Solemnis de Beethoven o grande concerto dedicado às classes operárias o Dia da Música em louvor de Santa Cecília com 2000 instru mentistas civis e militares mais 10000 vozes de conjuntos orfeônicos o oratório Vidapura do próprio VillaLobos Em 1942 temos no pátio do Colégio Militar um exemplo de colaboração entre o Canto Orfeônico e a Educação Física quando alunos de várias escolas do Rio de Ja neiro entoam um cânone a seis vozes simultaneamente formando as letras da pa lavra BRASIL em evoluções marciais Outras decorrências da ação socializadora do programa reuniões de confrater nização de alunos de escolas municipais e federais organização de concursos para avaliar o aproveitamento questionários enviados às famílias dos alunos nos quais foram solicitadas as suas impressões sobre a influência do canto orfeônico nos há bitos e inclinações dos mesmos com a finalidade de estender ao próprio lar da criança o interesse pelo canto orfeônico e apurar de maneira sensível as conveni ências dele decorrentes 7 Luiz Heitor Música e Músicos do Brasil p 382 39 Quando historia sua ligação com o projeto do canto orfeônico VillaLobos coloca na origem uma visão da modernidade como anarquia e rebaixamento Percebemos que o malestar dos intelectuais e dos artistas não era apenas fruto de um desequilíbrio político e social mas que se originava em grande parte de uma crescente materialidade das multidões desinteressadas de qualquer espécie de cultura e divorciadas da grande e verdadeira arte musical Em outro momento assinala que no atual panorama universal da música artís tica vem se notando um vácuo inexplicável de confusão e malentendidos entre os homens desde a grande guerra Vai daí afirmar que esses males que tam bém afetam a produção musical as composições são academicamente experi mentais em vez de serem criadoramente robustas têm uma única causa os nossos métodos de ensino Em suma o impacto da modernidade capitalista a perda da aura da obra de arte Que fim terão a Alma Humana os sonhadores o mistério o amor a pátria a arte e finalmente a Música a emergência das massas convocadas para o consumo dos chamados meiosdemassa correspondem a uma falha pedagógica a ser retificada pelo empenho conjunto do artista e do estadista Assim é que no governo de Getúlio Vargas além de promover uma nova estrutura política social e econômica os atos administrativos passaram a ser con cebidos num plano de grande espiritualidade analisando a gênese dos fenômenos sociais para poder chegar às sínteses construtoras Dando especial atenção à ju ventude começou a dedicar à infância e à adolescência todo o interesse que elas merecem como alicerces da nacionalidade E um dos elementos de que o gover no lançou mão para conseguir a sua finalidade no sentido da unidade espiritual brasileira foi a integração definitiva da cultura musical e do ensino do canto coleti vo no plano educacional da Escola Renovada Em suma comemorase o fato de que na medida em que o Estado tem um projeto políticosocialeconômicocultural apertando os elos entre os níveis o ar tista tem um lugar ele é de novo admitido na ordem social deixando de ser um mero apêndice a música deixaria de ser um passatempo da moda entre os se nhores feudais hoje o é entre os burgueses e o artista com raras exceções um galante e privilegiado escravo dos senhores porque escreve ou executa notas musi cais o artista não é nenhum palhaço que diverte gratuitamente o espectador e sim um ente predestinado extremamente útil à humanidade e que tem o direito de viver da subsistência do seu trabalho independente de uma espécie de esmola que as elites snobs supõem dar quando lhe freqüentam Nesse quadro a arte é concebida de maneira pragmática terapêutica dina mogênica medicinal o artista é um pesquisador de laboratório que tira conclusões a serem aplicadas em pequenas doses à mocidade brasileira de modo a trazer proveitosos resultados e as melhores esperanças para a formação de uma suave disciplina das nossas gerações futuras através do veículo privilegiado do canto orfeônico Por isso mesmo é que se pede não confundir o objetivo cívico educacional deste com outras exibições de ordem puramente estética que não visam senão o prazer imediato da arte desinteressada8 8 Dinamogenia terapêutica musical e arte interessada são termos aqui tomados de empréstimo pela pedagogia do DIP aos Mário de Andrade 40 É difícil ou insuficiente buscar o sentido dessa empreitada músicopedagógica de reação à crise de valores da modernidade apenas através do enunciado desses textos de propaganda assinados por VillaLobos Pareceme que eles exibem e claramente uma faceta certamente a preponderante do programa educacional sob Vargas a pedagogia autoritária Há quem considere no entanto que a ação orfeônica de VillaLobos não deveria ser encarada pela faceta autoritária com que se apresenta nos numerosos relatórios e textos de propaganda do DIP getulista mas como representante de uma orienta ção humanista tradicional que marcava presença nos primeiros anos do governo Vargas através da ação de Anísio Teixeira na Diretoria de Instrução Municipal do Rio de Janeiro e pelos estímulos modernizantes de Capanema que engajou tantos intelectuais brasileiros no período Foi através de Anísio Teixeira justamente que se criou a Superintendência de Educação Musical e Artística a partir da qual Villa Lobos passou a desenvolver o programa do canto orfeônico Já enfatizei o caráter platônico desse movimento musical como tentativa de responder à emergência de uma cultura capitalista industrial dissolvente da cultura letrada clássica todavia quase inexistente no Brasil como instauradora de um padrão educacional abran gente e daí a presença da música como elemento decisivo nessa perspectiva para uma estratégia de elevação da cultura como elemento mediador entre o po pular e o erudito O encarecimento desse aspecto humanista tradicional faz com que alguns vejam na ação de VillaLobos um vigoroso trabalho de educação musical popular sem precedentes na nossa história frente ao qual o aspecto propagandísti co e cívico não mereceria maior importância relegado ao plano de um mero expe diente de circunstância externo à própria pedagogia de interesse puramente tático pra a obtenção de respaldo institucional indispensável à consecução de uma ação musical de tais proporções Adhemar Nóbrega por exemplo desconhece nos textos do DIP a dicção villalobística mais associativa e delirante que escolasticamente articulada a observação é minha e praticamente considera que esses textos mesmo que assinados pelo compositor não deveriam ser creditados a VillaLobos Acho que a possível verdade contida nessas ponderações deveria levar não à cômoda distensão do problema na mera suspensão da aparência mas ao redobro de sua complicação Antes de mais nada seria preciso considerar a concepção pedagógica e a visão do popular explicitada em algumas falas de VillaLobos em entrevista à imprensa O compositor faz uma bem sintomática analogia entre a mentalidade ingênua es pontânea e primária do povo e a mentalidade infantil igualmente ingênua e pri mitiva Povo criança e índio se eqüivalem no sentido de que precisariam ser cate quizados pela cultura para se converterem de massa inculta e desordenada em povo adulto ordeiro e civilizado Numa entrevista para o jornal A Noite em 8738 VillaLobos afirmava O maior homem da História do Brasil foi José de Anchieta precursor da educação nacional Ele foi o nosso primeiro instrumento de cultura lidando com gerações bárbaras Quem considerar o estado em que ainda permanece a educação popular no Brasil pode compreender o vulto de sua obra e a importância de seus sacrifícios para assentar as bases de uma civilização Anchieta não se limitou aos objetivos imediatos procurando despertar os sentimentos artísticos dos índios através da música e do teatro Só uma visão genial apreenderia de tão longe o privilégio des ses processos de verdadeira cultura realizando nas selvas a mais profunda dignifi cação do homem 41 Na mesma reportagem que ostenta a declaração acima se lê VillaLobos submete milhares de crianças em tumulto à sua mímica magistral transportandoas solidariamente para os êxtases maravilhosos para as abstra ções transcendentes O olhar imperioso domina as cabecinhas irrequietas de re pente rendidas à magia irresistível9 VillaLobos tem obsessão pela catequese e pela figura de Anchieta em quem claramente se projeta A imagem da catequese figura uma relação com o povo assim como a imagem das crianças rendidas ao canto orfeônico Índio e criança são figuras de um projeto de conversão do povo ao culto da nação Catequese uso educativo do folclore canto orfeônico são aspectos de uma mesma representação O canto coral alimentase antes de mais nada do folclore infantil busca seu material naquilo que é familiar isto é os brinquedos ritmados as marchas as cantigas de ninar ou as canções de roda O folclore é hoje considerado uma disci plina fundamental para a educação da infância e para a cultura de um povo Porque nenhuma outra arte exerce sobre as camadas populares uma influência tão podero sa quanto a música como também nenhuma outra arte extrai do povo maior soma de elementos de que necessita como matériaprima Através do canto coral se quer levar a população ao transe cívico composto de êxtase e ascese identificação fervorosa e introjeção da autoridade A música tem de ao mesmo tempo desencadear forças afetivas e represálas detonálas e contêlas liberálas e dirigilas Em 1937 VillaLobos fazia constar num livro oficial sobre o programa de ensino de música mas escolas da Prefeitura da Capital Fede ral As festas e concentrações escolares com exceção das imprescindíveis dentro da orientação do programa de ensino de música traçado e previstas de acordo com a organização de cada escola só poderão acarretar prejuízo não somente quanto à aplicação normal do ensino de música mas também a outras disciplinas O projeto do canto orfeônico quer fazer com que o corpo social se exprima des de que não faça valer seus direitos mas que se submeta ao culto e às ordens de um chefe O fascismo queria organizar as massas sem mexer no regime de propriedade permitindo às massas não certamente valer seus direitos mas exprimilos As massas têm o direito de exigir uma transformação do regime de propriedade o fascismo quer permitirlhes que se exprimam porém conservando o regime O re sultado é que ele tende naturalmente a uma estetização da vida política Walter Benjamin10 9 Recortes de Mário de Andrade IEBUSP 10 A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução In Os Pensadores XLVIII São Paulo Abril Cultural 197533 42 Aqui menos do que aplicar a palavrafetiche fascismo interessa compreender a passagem que se faz na música de VillaLobos no momento em que ela busca inge nuamente e inconscientemente creio eu fazerse instrumento de uma estetização da política sacrificando no altar da deusa Disciplina meio através do qual como já vimos o músico pensa ganhar uma posição central na vida social Para tanto con verte o mitopoético no campo de energias caóticodomadas em fator de legitimação do Estado através de um procedimento que lembra em tudo a concisa formulação de um crítico musical nazista em 1938 Não se compreende a vida musical da Alemanha contemporânea se não se a consi dera do pontodevista surgido da reunião e da unificação dos três conceitos Povo Estado e Arte porque um Estado sem seu povo um povo sem sua arte são tão pouco concebíveis como uma arte que existisse por si só e não pudesse elevarse até converterse em expressão do pensamento popular Porque o Estado que incor pora a vontade de um povo suas emoções e seus interesses não é por acaso um organismo cuja harmoniosa conjunção alcança a categoria de obra de arte11 Resgatar a aura perdida pela arte na sociedade de massas através do modelo da arte estatal que por sua vez estetiza o Estado é o vértice do fascismo dizia Walter Benjamim no seu famoso ensaio A obra de arte na época de suas técnicas de re produção Pois é isso mesmo que VillaLobos oferecia já antes da revolução de 30 apro veitando o sortilégio do canto coral como um fator de civismo e de cultura fa zer do Estado Nacional uma verdadeira obra de arte Em troca clamava por um go vernante capaz de dar função orgânica ao músico e de consumar aquela delicada operação que sua obra já realizava simbolicamente despertar para o trabalho vale dizer para a acumulação as poderosas energias ociosas do País e ao mesmo tem po dominar o tumulto potencial nelas inscrito Tarefa para um verdadeiro orques trador da sociedade dividida orquestração já magnificamente mapeada na parti tura da série dos Choros a ser arrematada socialmente pela prática generalizada do canto coral Nesse sentido o músico e o político se correspondem para destrinchar a parti tura política da nação o chefe teria que ser a seu modo um verdadeiro maestro e o maestro para conduzir a harmonia social regendo o conflito teria de constituirse num verdadeiro chefe seguese todo o culto da disciplina e da hierarquia que acompanha o programa do canto orfeônico tomando como modelo a corporação coral rendida ao domínio do condutor culto este insistentemente frisado a cada momento No entanto a combinação desses dois batutas não sufoca a voz do samba urba no que vem participar ativamente desse programa Durante o Estado Novo o samba que tradicionalmente sustentava a apologia da boêmia e do ócio malandro dialoga ambiguamente com o poder aquiescendo muitas vezes no elogio da ordem e do trabalho Ganhando nessa época o tom eloqüente do sambaexaltação ele proclama o Brasil como usina do mundo faiscante forja de aço do futuro segundo um ethos heróico pouco comum em sua história E é somente esse clima que torna passível de sentido essa pérola do pleonasmo e da tautologia incrustada na apote ose de Ari Barroso entendido como uma enorme oficina que trabalha cantando fe liz esse coqueiro que dá coco é finalmente o Brasil 11 Dossier Música y Política Barcelona Editorial Anagrama 197453 43 Nem bem caiu a ditadura no entanto e em dezembro de 1945 saía o samba de Almeidinha grande sucesso no carnaval do ano seguinte Eu trabalhei como um louco Até fiz calo na mão O meu patrão ficou rico E eu pobre sem um tos tão Foi por isso que agora Eu mudei de opinião Trabalhar eu não eu não Trabalhar eu não eu não Trabalhar eu não eu não12 12 Citado por Antônio Pedro op cit101 44 PASSEI A NOITE PROCURANDO TU o tema desta pesquisa é um convite as aves que aqui gorjeiam não piam ali na primeira esquina cada sabiá sabido su bido no seu galho de gaiola descendo o rio canta canta canta brasil e diz que que há com seu peru em cismar sozinho passei a noite procurando tu mi nha ilha do exílio minha terra é uma presilha que liga o lado de cá do lado com o lado de lá do lá do lado de lá sou um trabalhador intelectual procurando um plug e não permita o autor e as autoridades constituídas que desliguem a força sem eu ter encontrado meu ligar no curtocircuito da alteridade de classes nem sem ter desfrutado os fervores que sais eu não encontro por cá e assim tomado pelo diabo da representação contorciase malabarístico com um cobertor menor que o corpo onde ora descobria a cabeça ora descobria os pés a cabeça era um palco vazio de povo e vazio de intelectuais ficava um risco no meio que podia ser visto da lua um mar vermelho fervendo um frevo um caldeirão in dustrial de açúcar carnaval
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1 José Miguel WISNIK 2001 1983 Getúlio da Paixão Cearense VillaLobos e o Estado Novo In J M Wisnik E Squeff O Nacional e o Po pular na Cultura Brasileira São Paulo Brasiliense pp 129191 Agradeço a Arnaldo Contier a indicação das fontes de consulta sobre o programa do Canto Orfeônico Dedico a Marilena Chauí Arpejo o tema desta pesquisa o nacional e o popular na cultura brasileira é um convite ao erro irrecusável 2 NACIONALISMO MUSICAL NACIONALPOPULAR VANGUARDAMERCADO É mais do que sabida a ligação que os compositores nacionalistas brasileiros ti veram com o popular VillaLobos Mignone Lorenzo Fernandez Camargo Guarnie ri Luciano Gallet para citar alguns usaram fartamente o material folclórico na composição de suas peças e é esse uso que marca o perfil característico tão reco nhecível na música de todos eles Mas o que pouco se fala é que o povo homenage ado e imaginado por esses músicos o povo bomrústicoingênuo do folclore difere drasticamente de um outro que desponta como antimodelo as massas urbanas cuja presença democráticoanárquica no espaço da cidade nos carnavais nas gre ves no tododia das ruas espalhada pelos gramofones e rádios através do índice do samba em expansão provoca estranheza e desconforto Nosso populário sonoro honra a nacionalidade dizia Mário de Andrade no En saio sobre a música brasileira 1928 referindose às virtudes autóctones e tra dicionalmente nacionais da música rural Essa raiz que serviria de base à pesquisa da expressão artística brasileira deveria ser cuidadosamente separada da influên cia deletéria do urbanismo com sua tendência à degradação popularesca e à influ ência estrangeira1 Tempos mais tarde já em plena euforia musicológica estadonovista o crítico Luiz Heitor diria fazendo o elogio da vocação musical nacional em tom de rádio ministériodaeducação A época do desconhecimento do valor nacional e da utilidade educacional da músi ca no Brasil já vai ficando para trás O impulso musical é insopitável entre a nossa gente A música é por excelência o meio de sublimação da alma popular brasileira uma necessidade de nossa formação de nossa psicologia nacional Para em seguida fazer o reparo 1 Ver Mário de Andrade Ensaio sobre a música brasileira São Paulo Martins 1962 163 167 Como sempre o pensamento de Mário não é esquemático ele procura nuançar o seu critério de valorização da música popular rural sobre a música urbana nos seguintes termos Nas regiões mais ricas do Brasil qualquer cidadinha do fundo sertão possui água encanada esgotos luz elétrica e rádio Mas por outro lado nas maiores cidades do país no Rio de Ja neiro no Recife em Belém apesar de todo o progresso internacionalismo e cultura encon tramse núcleos legítimos de música popular em que a influência deletéria do urbanismo não penetra Por tudo isso não se deverá desprezar a documentação urbana Manifestações há e muito características de música popular brasileira que são especificamente urbanas como o Choro e a Modinha Será preciso apenas ao estudioso discernir no folclore urbano o que é virtualmente autóctone o que é tradicionalmente nacional o que é essencialmente popular enfim do que é popularesco feito à feição do popular ou influenciado pelas modas internacionais 3 Não tomo como índice a música vulgar a canção das ruas pois essa é apenas a manifestação inconsciente não disciplinada do pensador musical Mas poderíamos perguntar e noel ismael si nhôdosprazeres pixindongajazz batutaslamarti nearibar rosa E teríamos como resposta inequívoca do crítico a seguinte hierarquização Refirome aqui justamente à aptidão do brasileiro como criador e como aprecia dor da música dita artística E acho perigosa a confusão que às vezes se faz no Brasil englobando sob o rótulo de música popular não o fundo musical anônimo de que a música artística se utiliza para tonificarse mas a música sem classificação baixa e comercial que prolifera em todos os países do mundo sem que por isso tenha direito a ocupar um lugar na história da arte2 A oposição é clara entre a Arte que tem história elevada e disciplinada tonifica da pelo bom uso do folclore rural isto é a música nacionalista e as manifestações indisciplinadas inclassificáveis insubmissas à ordem e à história que se revelam ser as canções urbanas Sintomática e sistematicamente o discurso nacionalista do Modernismo musical bateu nessa tecla renegar a cultura popular emergente a dos negros da cidade por exemplo e todo um gestuário que projetava as contradições sociais no espaço urbano em nome da estilização das fontes da cultura popular rural idealizada como a detentora pura da fisionomia oculta da nação Certamente tal escolha correspondia à descoberta à paixão e à defesa de uma espécie de inconsciente musical rural regional comunitário contido nos reisados nos cantos de trabalho na música religiosa nas cantorias repentes e cocos que se entremostravam nas práticas musicais das mais diversas regiões do país revelan dose e no mesmo momento tendentes à desaparição A atlântida folclórica desse fundo musical anônimo fundia a música ibérica sagrada e profana católica e car navalesca ligada a antigos festejos pagãos com a música negra e indígena pro movendo a magia animismo ritual dionisíaco e feitiçaria o trabalho ativando as potências corporais a festa o jogo e a improvisação O problema é que o nacionalismo musical modernista toma a autenticidade des sas manifestações como base de sua representação em detrimento das movimenta ções da vida popular urbana porque não pode suportar a incorporação desta última que desorganizaria a visão centralizada homogênea e paternalista da cultura nacio nal O popular pode ser admitido na esfera da arte quando olhado à distância pela lente da estetização passa a caber dentro do estojo museológico das suítes nacio 2 Luiz Heitor O Brasil e a Música In Música e Músicos do Brasil Rio de Janeiro Casa do Estudante do Brasil 1950 4 nalistas mas não quando rebelde à classificação imediata pelo seu próprio movi mento ascendente e pela sua vizinhança invasiva ameaça entrar por todas as bre chas da vida cultural pondo em xeque a própria concepção de arte do intelectual erudito A propósito Gilberto Mendes observa que a música folclórica tomada como re pertório passivo da música artística fornecedora de temas e motivações não atua diretamente sobre a linguagem musical moderna enquanto a música po pular urbana ao contrário investe ativamente sobre essa linguagem trazendo contribuições das mais significativas para o seu desenvolvimento3 Por outro lado se a trincheira folclorista tentava de certo modo defender as con dições de produção da Grande Arte contra o avanço da música popular comercial ela abria também para si mesma um outro flanco crítico que Mário de Andrade co nhecia muito bem como transpor o universo de uma cultura comunitária e sem autoria para o universo da cultura erudita moderna individualistaesteticista sem estocar radicalmente a própria definição de arte4 No entanto a plataforma ideológica do nacionalismo musical consistia justa mente na tentativa de estabelecer um cordão sanitáriodefensivo que separasse a boa música resultante da aliança da tradição erudita nacionalista com o folclore da música má a popular urbana comercial e a erudita europeizante quando esta quisesse passar por música brasileira ou quando de vanguarda radical Está formada a cadeia conflitual bem típica da discussão brasileira a conjunção entre o nacional e o popular na arte visa à criação de um espaço estratégico onde o projeto de autonomia nacional contém uma posição defensiva contra o avanço da modernidade capitalista representada pelos sinais de ruptura lançados pela van guarda estética e pelo mercado cultural onde no entanto foi se aninhar e prolife rar em múltiplas apropriações um filão da cultura popular Essa constelação de idéias onde nacionalpopular tende a brigar com vanguardamercado já era incisi va mas implosiva na música nacionaleruditopopular de 30 e 40 e se tornará de cisiva e explosiva na área musical durante as movimentações da década de 60 Na média da atitude crítica que se produziu no seu contexto a ideologia nacio nalista na música modernista luta por uma elevação estéticopedagógica do país que resultasse da incorporação e sublimação da rusticidade do folclore o povo in gênuo e aplacasse através da difusão da cultura alta a agitação urbana o povo deseducado a que os meios de massa especialmente o rádio davam trela Entra aí uma concepção do funcionamento ambivalente da música para as mas sas iletradas como uma dobradiça que as liga às formas anárquicas do sensualis mo vulgar prenhe de desordem política e que estabelece ao mesmo tempo um contato com as manifestações civilizadas da grande arte reduzida a instrumento de instauração da ordem cívica Agitadora medium por excelência do carnaval popular e apaziguadora porta dora de um ethos educativo caldeado das fontes folclóricas para a arte erudita a 3 Gilberto Mendes A Música In Affonso Ávila org O Modernismo São Paulo Perspecti va 1975130 4 Nesse sentido as reflexões de Mário de Andrade sobre a arte interessada isto é arte di retamente ligada ao conjunto da vida produtiva da comunidade levariam a pensar num deslocamento decisivo da sua função estética de objeto oferecido à contemplação reservada da sala de concerto por exemplo E a idéia de arte interessada provém de sua concepção de arte popular 5 música é percebida como lugar estratégico na relação do Estado com as maiorias iletradas do país lugar a ser ocupado pelas concentrações corais pela prática dis ciplinadora cívicoartística do orfeão escolar pelo samba da legitimidade que desmentindo toda a sua tradição exalta as virtudes do trabalho e não as da malan dragem5 No entanto como a música popular é um espaço de resistência mais forte do que sua emulação cívicopatriótica além do que ocupando uma posição relativamente ofensiva no cenário cultural brasileiro urbanomoderno o resultado não será na verdade uma conversão do carnaval ao dia da Pátria6 mas a instau ração da movimentada cena da políticochanchada populista onde há lugar para o senador gagá dançar o seu samba como na cena famosa de Terra em transe RÁDIO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO Álvaro F Salgado da Rádio Ministério da Educação discorrendo sobre o uso efi caz do rádio para fins políticoculturais Estado Novo 19417 A nosso turno adiantamos que todos os indivíduos analfabetos broncos rudes de nossas cidades são muitas vezes pela música atraídos para a civilização dia virá estamos certos que o sensualismo que busca motivos de disfarce nas fantasi as de carnaval seja a caricatura o fantoche o palhaço o alvo ridículo desta festa pagã Enquanto não dominarmos esse ímpeto bárbaro é prejudicial combatermos no broadcasting o samba o maxixe e os demais ritmos selvagens da música popu lar o samba que traz na sua etimologia a marca do sensualismo é feio indecente desarmônico e arrítmico Mas paciência não repudiemos esse nosso irmão pelos defeitos que contém Sejamos benévolos lancemos mão da inteligência e da civili zação Tentemos devagarinho tornálo mais educado e social Pouco nos importa de quem ele seja filho VILLA MÁRIO Fora da média as questões do nacionalismo musical em VillaLobos e Mário de Andrade enquanto criadores são sempre mais complicadas VillaLobos porque se formou musicalmente no meio dos chorões seresteiros e sambistas do Rio de Janeiro no início do século e a sua música trabalhada pela sua formação erudita em processo de atualização modernista nasce tangenciando a mesma fonte sociocultural de onde saiu a música popular urbana de mercado Durante toda a década de 20 o seu grande projeto de composição é a série de Choros onde ele trabalha aquela matriz popular urbana amalgamada com blocos de outras informações primitivas negras e indígenas rurais suburbanas e cosmo 5 Nos anos do Estado Novo há um surto de sambas que fazem a apologia de uma moral do trabalho dentro do clima de ufanismonacionalismotrabalhismo que marcava a propaganda getulista e combatem a rica tradição da malandragem na música popular do Rio de Janeiro Esse assunto foi estudado por Antonio Pedro em Samba da Legitimidade tese de mestrado mimeo São Paulo USP 1980 6 O Carnaval e o Dia da Pátria são termos polares de uma ritualização do dilema brasilei ro tal como é formulada por Roberto da Matta em Carnavais Malandros e Heróis Rio de Janeiro Zahar 1980 7 Álvaro F Salgado Rádio Difusão fator social In Cultura Política 6 Agosto de 194179 93 6 politas da vanguarda européia fazendo dela o centro de uma confluência di ferida de tempos culturais que focalizava da sua perspectiva o problema brasileiro a sinfonização e a ordenação do tumulto musical nacional Ou seja embora sem pre propagasse a superioridade do folclore sobre a música popular VillaLobos deslanchou a sua fulminante trajetória a partir da convivência íntima do dado eru dito da sua formação com o dado popular urbano com o que projetou pela bricola ge de diferentes técnicas e fontes e novesfora o seu talento genial um alcance vi olentamente mais amplo que o do nacionalismo ortodoxo Quanto a Mário um homem dividido entre um modo socráticoplatônico e um modo dionisíaconietzscheano embora apresente nos seus textos programáticos traços daquela resistência aos aspectos polimorfos da cultura popular resistência subjacente ao paternalismo folclorista de que eu estava falando lança no Macu naíma o imaginário submerso do mundo indígenarural como dado emergente no panorama da cidade detonando um confronto vivo polifônico agônicolancinante que flagra as defasagens e sintonias inesperadas entre os vários tempos culturais de um país que vive como encruzilhadas de destinos num aglomerado de relações capitalistas e précapitalistas Se é verdade que o programa do nacionalismo musi cal tem um caráter centralizador e paternalista alimentado pela ilusão de imprimir homogeneidade à cultura nacional e de cauterizar a ferida das tensões sociais o que se tem a considerar por outro lado é que Mário de Andrade mergulha de fato nos processos mitopoéticomusicais da cultura popular desentranhando dela con cepções dionisíacoapolíneas e formas mágicas que serão constitutivas de sua po esia trabalhadas pelo crivo crítico que desloca relativiza e reorganiza esses ele mentos segundo uma informação erudita É a tensão recuperada pelo engajamento da técnica que dará à sua obra uma modalidade indagativa que não fecha com o nível programáticoapologético do nacionalismo Em sua corrente subterrânea a obsessão pela cultura popular é mais o sinal do dilaceramento e da percepção da sociedade em suas tensões sísmicas não aparentes do que um feliz arranjo de clas ses e raças que se acomodariam harmonicamente para sanear a falta de caráter nacional Nesse plano o nacionalismo de Mário pode ser lido como expressionismo tal como fez Gilda de Mello e Souza Nacionalismo e Expressionismo se empenha vam na descoberta de um homem novo atormentado dividido alógico defor mador cuja arte acolhia como mais congeniais ao seu espírito as manifestações do gótico do barroco da arte primitiva e popular em vez das manifestações cen tradas no ideal de beleza e imitação próprio da arte clássica8 Na última fase de sua vida a tensão entre o lado doutrinário e o lado oculto do nacionalismo márioandradino se torna ainda mais complexa Sustentáculo de um nacionalismo musical difusamente democrático ao longo de 20 e 30 Mário de An drade entra na década de 40 sob um profundo dilaceramento à medida que perce be as contradições e os impasses do seu projeto estéticoideológico e o engaja na luta de classes Nos seus escritos dessa época é extremamente agudo o drama do intelectual burguês que deseja uma arte em especial uma música que concilie po sitivamente a sociedade na utopia e na festa mas que marque ao mesmo tempo uma posição precisa na luta que a divide internamente Como essa tarefa parece ser praticamente insustentável Mário é que se divide de um lado a negatividade crítica de O Banquete põe a nu os impasses da arte burguesa pelo outro em Chostacovitch exprime uma positividade comunista uma apologia da arte soviética como realização do ideal do artista útil às massas e com aplausos para o papel vi 8 Gilda Rocha de Mello Souza Vanguarda e Nacionalismo na Década de 20 In Almanaque 6 São Paulo sd78 7 gilante do Estado estalinista pai amigo e severo quando este corrige os desvios do artista Politicamente VillaLobos e Mário realizam cada um a seu modo tendendo para a direita ou para a esquerda ligandose ao Estado Novo ou antecipando Zdanov o horizonte de destino do projeto nacionalista pedagogia coral emanada do artista a serviço do EstadoNação9 não têm uma saída para a possível autonomia das cul turas do povo a partir de suas bases A viabilização política encontrada por cada um deve ser lida em confronto dialético com o conjunto das suas obras das quais não esgota nem de longe o sentido embora indicandolhes refrações decisivas DA REPÚBLICA MUSICAL I Ao projetar a hegemonia da música erudita bebida no ethos popular folclórico sobre a música popularcomercial urbana e as inovações mais radicais da vanguar da européia o que se acentuará de certo modo no fim da década de 20 frente à atuação no Brasil do professor e compositor Hans Joachin Koellreuter o naciona lismo brasileiro estava adotando sem saber a última solução platônica para a questão da cultura frente ao avanço crescente da indústria cultural As discussões que pontuam A República de Platão incidindo sobre o lugar políti copedagógico da música lançam luz sobre os rumos do nacionalismo musical no Brasil desde o Ensaio sobre a Música Brasileira até a atuação de VillaLobos no Es tado Novo regendo as grandes concentrações orfeônicas em nome de uma concep ção cívicoautoritária copidescada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo Aqui não se pode falar em influência mas talvez de uma longa permanência na tradição ocidental de um certo equacionamento do poder psico políticosocial da música em vista de sua utilização pelo Estado como fator discipli nador em contraponto com a sua utilização nas festas ritos populares como elemento de propiciação da mania isto é da possessão do transporte dionisíaco do êxtase da liberação de energias eróticas da reversão paródica das hierarquias ou da alegre dessublimação da corporalidade O poder atribuído à música tem seu eixo numa ambivalência consistente na con cepção de que ela pode carrear as forças sociais para o centro político conferindo ao Estado através de suas celebrações um efeito de imantação sobre o corpo soci al ou então ao contrário pode expelir essas forças para fora do controle do Esta do para um regime de centrifugação onde elas se afirmam pela expatriação radi 9 Talvez por isso mesmo Mário de Andrade que à altura dos anos 40 radicalizava suas posi ções de esquerda e escrevia textos de crítica contundente ao Estado Novo principalmente quando discutia música a exemplo de O Banquete não critica a ação orfeônica de Villa Lobos Ao contrário A lição mais profundamente humana que podemos colher da obra de um VillaLobos e não é à toa que o grande artista dedicou grande parte de sua atividade à formação de massas corais é uma sadia e harmônica fusão social entre a arte erudita e o povo Distanciamentos e Aproximações In Música Doce Música São Paulo Martins 1963 364 O objeto de sua crítica no mesmo texto é o esteticismo da vanguarda as criações exacerbadamente hedonísticas de um Léger na pintura de um Schoemberg sic na música como de um Joyce na literatura Ser escravo de uma classe a burguesa ou servidor da humanidade é o que diferencia o gênio humano de um Cervantes do gênio classista de um Proust o gênio humano de um VillaLobos do gênio nazista de um Wagner 366 8 cal longe da vida cotidiana das ocupações comuns das servidões impostas10 In troduzindo no mais íntimo da alma o próprio nó da questão política isto é a justa afinação do individual para com o social e Platão recorre à imagem da harmonia sonora como metáfora da justiça e da harmonia da Polis a música aparece como o elemento agregador desagregador por excelência podendo promover o enlace da totalidade social quando o nó é pedagogicamente bem dado ou preparando a sua dissolvência quando não Por isso mesmo a educação repousa na música ela é a imitação do caráter elevado ou inferior que redunda por seus matizes éticos de profunda repercussão subjetiva não só na contemplação do belo mas também nas conseqüências práticas da realização da virtude A adequada dieta músico ginástica base da formação do cidadão imprimiria nele o caráter sensato e bom enquanto o uso malbaratado da música generalizaria na concepção platônica a feia expressão e os maus costumes Não pretendo nem de longe captar aqui a sutileza do pensamento platônico mas sim colher os sinais disseminados ao longo dessa verdadeira purga ática que é A República no dizer de Adorno de um modelo historicamente recorrente de reco nhecimento e controle do poder da música através de uma triagem do significante que discrimina a música aceitável elevada liberadora de impulsos éticosociais afirmativos da cidadania e da pertinência à Polis e a música inaceitável vista como rebaixante liberadora de impulsos orgiásticopassionais individualistas ou popula res isto é próprios dos excessos virtuosísticos dos músicos profissionais ou dos ex cessos festivos de escravos e camponeses Ante a incisividade da música como ocupadora ambivalente do corpo e da alma tornase necessário fabricar o crivo capaz de separar a boa norma musical cons tituída paradigmaticamente pelas práticas que infundem ordem ao corpo social e elevam tudo o que estava caído na Cidade dos maus usos e das inovações capa zes de insinuar de maneira a mais sensível a infração da lei produzindo um silencioso deslizamento nos costumes e no modo de viver e acabando por destruir toda a vida privada e pública já que não se pode modificar as regras musicais sem alterar ao mesmo tempo as maiores leis políticas11 Para efeito de coesão da Polis Platão afirma a superioridade dos instrumentos monoharmônicos a lira e a cítara instrumentos de Apolo sobre os instrumentos de muitas harmonias e cordas a harpa o bombyx flauta elaborada e virtuosísti ca e o aulos popular instrumento dionisíaco Gilbert Rouget observa que essas escolhas se dão no quadro de uma condenação das inovações musicais e já vimos o caráter catastrófico atribuído ao deslizamento da norma e da resistência ao tran se12 Assim também condenamse as harmonias lídia mista lídia densa a jônia e outras tidas por propiciadoras da indolência e efeminadas Em contraposição re comendamse as harmonias capazes de levar à temperança ao heroísmo altivo à soberana aceitação da adversidade Muito sintomaticamente também numa poética apolínea e antidionisíaca como esta indicase a dominância da poesia sobre a mú sica o ritmo e a harmonia seguem a letra e não esta a aqueles Em Aristóteles a alteridade do significante que separa a música superior e in ferior é mais nítida em termos de ethos modais além de que o caráter de classe que subjaz à oposição salta ao primeiro plano 10 Cf JeanPierre Vernant A Pessoa na Religião In Mito e Pensamento entre os Gregos São Paulo Difel 1973279 11 Platão A República424 12 Gilbert Rouget La Musique et la Transe Paris Gallimard 1980267315 9 O modo dórico tido como educativo destinase ao programa pedagógico dos fi lhos bem nascidos enquanto o uso do aulos e o modo frígio mais ligados a uma pathos do que a um ethos satisfazem à classe de pessoas grosseiras compostas de artesãos trabalhadores e indivíduos dessa espécie13 O motivo pelo qual uma diferença mínima entre dois modos musicais pode gerar conseqüências práticas tão gritantemente opostas tem permanecido um verdadeiro desafio musicológico Uma interpretação recente tende a ver no entanto na dife rença entre o dórico e o frígio mais do que uma modalização dentro de um mesmo sistema a incisiva alteridade de sistemas entre um modo pentatônico sem meio tom e um modo heptatônico com semitom essa diferença sendo capaz de preci pitar somada às diferenças timbrísticas de instrumentos de repertório e de rituali zações que as acompanham um verdadeiro abismo entre dois universos gestuais sociaisreligiosos o da religião da Polis e o da religião dionisíaca14 Ao aspecto fortemente marcado na religião da Polis de integração social de um culto cívico cuja função é sacralizar a ordem tanto humana quanto natural e permitir aos indivíduos se ajustarem opõese um aspecto inverso complementar ao primeiro e do qual se pode dizer em linhas gerais que ele se exprime no dioni sismo voz daqueles que não podem enquadrarse inteiramente na organização institucional da Polis por estarem excluídos da vida política as mulheres os escra vos os grupos campesinos alijados do controle do Estado O dionisismo aparece pois com a voz da margem das minoridades políticas às quais oferece um qua dro de agrupamento15 Assim dá para entender os critérios musicais defendidos em A República A dic ção composta de uma só harmonia obedecendo a um só e mesmo ritmo constante em detrimento da representação que necessita de todas as harmonias e de todos os ritmos por abarcar em si mesma variações de todas as classes corresponde à religião da Polis onde dos deuses até a Cidade das qualificações religiosas às virtudes cívicas não existe ruptura nem descontinuidade A norma musical depu rada no uso exclusivo de certos instrumentos e certos modos cristaliza a mediação social fora da qual o indivíduo achase desligado do mundo divino Perde ao mesmo tempo o seu ser social e a sua essência religiosa não é mais nada16 Re siste pois aos excessos individualistas do virtuosismo artístico e à experiência reli giosa diametralmente oposta do transe dionisíaco Com efeito o que o dionisismo oferece aos fiéis mesmo controlado pelo Estado como ele o será em época clássi ca é uma experiência religiosa oposta ao culto oficial não mais a sacralização de uma ordem à qual é preciso integrarse mas a libertação desta mesma ordem das opressões que faz supor em certos casos Busca de uma expatriação radical longe da vida cotidiana das ocupações comuns das servidões impostas esforço para abolir todos os limites para derrubar todas as barreiras pelas quais se define um mundo organizado entre o homem e o deus o natural e o sobrenatural entre o humano o animal o vegetal barreiras sociais fronteiras do eu17 13 Ver Gilbert Rouget op cit305 14 Cf Samuel BaudBovy referido por Gilbert Rouget op cit 311 quanto à oposição entre o modo dórico e o modo frígio A oposição entre a religião da Polis e a religião dionisíaca nos termos tratados aqui é feita por J P Vernant op cit 15 JeanPierre Vernant op cit278279 16 Idem ibidem278 17 Idem ibidem279 10 Para concluir essa separação entre dois modos religiosos que parecem conden sarse no conjunto de práticas que gravitam em torno da diferença aparentemente irrisória entre o dórico e o frígio O culto cívico se ligava a um ideal de sophrosyne feita de controle de domínio de si mesmo situandose cada ser em seu lugar nos limites que lhe são consignados Ao contrário o dionisismo aparece como uma cultura do delírio e da loucura loucura divina que é tomada como encargo pos sessão pelo deus18 DA REPÚBLICA MUSICAL II Em 1928 Mário de Andrade que dava cobertura teóricoideológica aos composi tores propondo o desenvolvimento de um projeto nacionaleruditopopular para o Brasil colocava a intenção nacionalista e o uso sistemático da música folclórica como condição sine qua non para o ingresso e a permanência do artista na repúbli ca musical dizendo enfaticamente no seu Ensaio sobre a Música Brasileira que o compositor que não fizesse música de cunho nacional bebida na estilização do po pular rústico funcionaria como pedregulho na botina a ser devidamente extirpa do19 A busca de hegemonia nacionalista aliás amplamente obtida na produção musi cal erudita brasileira até a década de 50 assentada sobre o critério da eficácia social extraía a sua legitimidade da afirmada necessidade de determinar e norma lisar sic os caracteres étnicos permanentes da musicalidade brasileira presentes segundo essa concepção de modo inconsciente na música popular folclórica tanto quanto ausentes da música artística de mera transposição européia20 A nova música brasileira produzida pela determinação do artista decidido a se basear quer como documentação quer como inspiração no folclore daria um rele vo ao caráter nacional nele delineado daí o destaque ao compromisso da música artística com a popular no que esta perderia a sua primariedade incapaz de tota lizar e aquela outra a sua irresponsabilidade desenraizada O projeto explícito será o de fazer a composição erudita beber nas fontes popu lares estilizando seus temas imitando suas formas em suma incorporando a sua técnica A preocupação nacionalista voltada para o folclore será tomada como norma com acentuada intransigência Mas a passagem concreta do erudito ao po pular e viceversa permanecerá sendo sempre o grande problema Mário alerta os compositores para alguns dos problemas implicados no projeto nacionalista o perigo do exotismo quando o uso de elementos da música popular retirados de seu contexto resulta simplesmente em efeitos pitorescos e da banali dade já que a música popular muitas vezes aplicada às práticas rituais à dança hipnótica dirigida ao corpo é fundamentalmente repetitiva do que pode resultar em pura redundância quando transposta para as formas que procedem pelo desen volvimento progressivo e pela inovação dirigida ao intelecto como são as formas da tradição sinfônica erudita Aliás é nesse ponto justamente que Schoenberg ao lado de um certo desprezo colonizante pelo mundo subdesenvolvido fazia a sua crítica da música nacionalista vendo nela a união espúria dos procedimentos es 18 Idem ibidem279 19 Mário de Andrade op cit18 20 Idem ibidem28 11 truturalmente reiterativos da música do povo com os procedimentos estrutural mente evolutivos da tradição erudita ocidental21 É nesse ponto também que incide a oposição estabelecida por Mário entre a mú sica interessada aplicada por exemplo ao calendário agrícola e religioso como a popular rural e a música desinteressada destinada a fins contemplativos como a música de concerto É o caráter interessado da primeira que lhe dá uma base re petitiva que se aplica ao ritual e é o caráter desinteressado da segunda que lhe imprime a desenvoltura evolutiva dirigida à intelecção da progressão das formas A nova música proposta por Mário oscila entre ser interessada e desinteressa da Em certo momento diz O artista tem só que dar pros elementos já existentes da arte nacional pronta na inconsciência do povo uma transposição erudita que faça da música popular música artística isto é imediatamente desinteressada22 Duas páginas adiante referindose ao movimento nacionalista afirma Pois toda arte socialmente primitiva que nem a nossa é arte social tribal religiosa come morativa É arte de circunstância É interessada Toda arte exclusivamente artística e desinteressada não tem cabimento numa fase primitiva fase de construção23 e está se referindo ao critério social que justifica a necessidade imperiosa do naciona lismo musical Em suma o seu programa aponta para uma música artística que encontre ao mesmo tempo uma nova função prática a conquista da expressão nacional e essa dupla exigência terá conseqüências sobre a forma que ficará dividida entre o des envolvimento construtivo e a redundância característica bem realçada nos típicos ostinatos às vezes caricatos da música nacionalista Vale lembrar que os pro blemas colocados por Mário quando aconselha os músicos por mais conscientes que possam ser ficam sempre externos à forma o que não acontecerá no Macu naíma quando eles serão radicalmente enfrentados no interior da invenção No Ensaio Mário discute a complexidade da música popular folclórica especial mente no seu ritmo decodificado muitas vezes pelos compositores eruditos como meras síncopas oscilante entre o fraseológico e o metrificado Mário analisa a rí tmica popular brasileira como a superposição complexa de duas estruturas dife rentes a rítmica aberta da seqüência discursiva que procederia por adição infinita e a rítmica fechada da quadratura do compasso que procederia por subdivisão pe riódica compreendendo a tensa condensação desses dois sistemas um de origem negroindígena e outro de origem européia como uma solução original para as próprias tensões implicadas no processo de colonização No Ensaio analisa ainda questões de melodia de harmonia de polifonia de instrumentação e de forma construtiva A idéia de caráter nacional recessivo adormecido nas fontes populares como o mineral disperso sob o solo da variedade regional de onde deveria ser extraído e fundido pelo esforço conjunto de artistas letrados salta à vista principalmente se não esquecermos que exatamente no mesmo momento em que escrevia o Ensaio Mário de Andrade produzia também o Macunaíma a rapsódia do herói sem ne nhum caráter Recebendo injeções maciças de folclore a expressão é de Florestan Fernan des a música nacionalista aproximaria intelectual e povo separados por um abis 21 Arnold Schoenberg Las Sinfonias Folkloristas in El Estilo y la idea248257 22 Mário de Andrade op cit16 23 Idem ibidem18 12 mo cultural formulável noutros termos como alteridade de classe e funcionaria ao modo de uma panacéia pedagógica para sanar a nível doutrinário aquela falta de caráter que o Macunaíma registra na sua economia simbólica como impasse O programa tem uma tintura ao mesmo tempo ilustrada e romântica que corres ponde bem à oscilação quase paradigmática do intelectual letrado no Brasil frente às culturas do povo O lado romântico marca a concepção do povo como fonte pro digiosa da qual emana a cultura autêntica e criativa tesouroinconscientecoletivo capaz de transformar a persona europeizante da nação remetendoa a um ponto de equilíbrio profundo onde se daria a individuação a identidade atingida ao final de uma via tormentosa de divisões entre a máscara social dominante que mostra a fisionomia do colonizador ocupante e o rico repositório submerso de símbolos que habita o inconsciente coletivo divisado na música popular rural24 Sabemos que Mário de Andrade fez dessa verdadeira saga da identidade projetada em cír culos progressivamente abrangentes do plano subjetivo ao plano da sociedade nação o eixo da sua obra poética25 O lado ilustrado marca a concepção de povo como massa analfabeta supersticiosa indolente verdadeira tábula rasa necessita da de condução firme e elevação através da instrução letrada e da consciência cívi ca em contextos mais críticos de consciência política Freqüentemente essas duas atitudes aparecem separadas mas são contrabalançadas como os dois lados de uma gangorra Em alguns casos e é o de Mário de Andrade o intelectual quer ser o orquestrador de sua própria oscilante superioridadeinferiorioridade frente à cul tura popular e se projeta imaginariamente num pontodeepifania de onde divisa o encontro das águas do povo opaco e do povo luminoso redimidos da sua dualidade numa nova unidade transparente e transformadora Essa transformação antevista desse lugar que poderíamos chamar de o ponto platônico da questão moderna da cultura só pode se dar no entanto graças e através da ação do intelectualfilósofo que pensa devolver às massas o seu populário sonoro convertido em música ar tística propiciando através dessa conversão o fortalecimento do debilitado caráter nacional os defeitos de nossa gente rapazes alguns facilmente extirpáveis pela cultura e por uma reação de caráter que não pode tardar mais nossos defeitos im pedem que as nossas qualidades se manifestem com eficácia Por isso que o Brasi leiro é por enquanto um povo de qualidades episódicas e defeitos permanentes diz ele26 O tom abatido mas sobranceiro do texto de Mário parece estar pedindo um mo vimento político geral que ataque o problema nacional nas várias frentes estamos às vésperas da Revolução de 30 mas a música tem um lugar privilegiado nesse quadro em que se constata uma espécie de doença da cultura a incapacidade de afirmar a potencialidade produtiva da sociedade e se prevê a sua terapêutica pelo recurso às reservas de caráter nacional adormecidas na música popular Através dessa curiosa operação desalienante em que o povonação recobra o caráter que lhe falta o intelectual letradopedagogo fica no centro imaginário de onde procura reger o coro nacional levandoo à unidade harmônica Seu papel aparentemente modesto de simples correia conversora do popular primário ao popular estetizado 24 Os termos usados inconsciente coletivo persona individuação estranhos ao discurso nacionalista foram tomados propositalmente do contexto da conceituação junguiana e usa dos localmente aqui pela sua adequação didática ao andamento da exposição 25 Conforme os estudos de Anatol Rosenfeld Mário e o Cabotinismo in Texto Contexto São Paulo Perspectiva 1976 e de João Luiz Machado Lafetá Figuração da Intimidade tese de doutoramento mimeo USP 1980 26 Mário de Andrade op cit72 13 é exponencial porque comanda idealmente a passagem da sociedade passiva à so ciedade ativa ou seja porque comanda a parte mais secreta e decisiva a parte psicossocial do processo político Ele aparece de modo subjacente como o or questrador da sociedade dividida é nesse campo devidamente preparado que se vai erguendo a figura singular de Heitor VillaLobos Se à sociedade falta caráter a música no seu poder de reproduzir o caráter elevado já que investida de ethos no caso brasileiro triado da música popular folclórica de generalizar os sentimentos e de agir sobre as massas traduzido no valor social do ritmo coletivizador e da concentração coral aparece já como veículo capaz de promover a elevação de tudo que estava caído na Cidade conforme nos diz Platão Mas o poder da música veículo privilegiado de transmissão social é multiplicado ainda mais no Brasil pela sua ampla penetração pelo fato de ser o lu gar de produção de uma linguagem popular original a música popular é a criação mais forte e a caracterização mais bela de nossa raça dizia Mário de Andrade é na música entre todas as atividades artísticas que o gênio brasileiro conseguiu re alizar alguma coisa fortemente original e diferente dos moldes europeus dizia o crítico Luiz Heitor Em suma o programa nacionalista parece retirar o músico erudito dos confins da sua gratuidade aonde o lança cada vez mais a modernização de um país periférico e nãoalfabetizado para colocálo pelo menos desejadamente no centro dos acontecimentos promotorbeneficiário de um projeto de cultura centralizada e ho mogeneizada pela convergência dos traços comuns da psique social tanto mais fortalecido pela convicção de que a música e só a música pode desempenhar no Brasil essa função de orquestrador da sociedade dividida pela força da sua difusão e pelo fato de que no seu campo e registro próprios a música popular no Brasil resultante de um trabalho coletivo secular de apropriações seleções e sínteses cri ativas não ficaria a dever à cultura erudita Na batida do seu impulso de classe média pedagogizante o paternalismo nacio nalista tem forte atração para orfeonizar o país Pouco tempo antes de VillaLobos desencadear a sua famosa arremetida coral que se alastrou como um movimento didáticopolíticomusical que implantou na escola do Estado Novo o ensino do canto coletivo Mário de Andrade também louvava as possibilidades terapêuticas de mas sa que se pode extrair da prática generalizada do canto em comum Vale a pena ler a longa peroração do seu Ensaio sobre a música brasileira Mas os nossos compositores deviam de insistir no coral por causa do valor social que ele pode ter País de povo desleixado onde o conceito de Pátria é quase uma quimera a não ser pros que se aproveitam dela país onde um movimento mais franco de progresso já desumaniza os seus homens na vaidade dos separatismos país de que a nacionalidade a unanimidade psicológica uniformes e comoventes independeram até agora dos homens dele que tudo fazem pra desvirtuálas e es tragálas o compositor que saiba ver um bocado além dos desejos de celebridade tem uma função social neste país O coro unanimiza os indivíduos A música não adoça os caracteres porém o coro generaliza os sentimentos A mesma doçura molenga a mesma garganta a mesma malinconia a mesma ferócia a mesma se xualidade peguenta o mesmo choro de amor rege a criação da música nacional de norte a sul Carece que os sergipanos se espantem na doçura de topar com um verso deles numa toada gaúcha Carece que a espanholada do baiano se confrater nize com a mesma baianada do goiano E se a rapaziada que feriram o assento no pastoreio perceber que na ronda gaúcha na toada de Mato Grosso no aboio do Ceará na moda paulista no desafio do Piauí no coco norteriograndense uma chula do rio Branco e até no maxixe carioca e até numa dança dramática do rio 14 Madeira lugar de mato e rio lugar que não tem gado persiste a mesma obsessão nacional pelo boi persiste o rito do gado fazendo do boi o bicho nacional por exce lência É possível a gente sonhar que o canto em comum pelo menos conforte uma verdade que nós não estamos enxergando pelo prazer amargoso de nos estra garmos pro mundo27 Olhado no conjunto o ciclo modernista do nacionalismo musical compreende as sim uma pedida estéticosocial sintetizar e estabilizar uma expressão musical de base popular como forma de conquistar uma linguagem que concilie o país na hori zontalidade do território e na verticalidade das classes levantando a cultura rústica ao âmbito universalizado da cultura burguesa e dando à produção musical burguesa uma base social da qual ela está carente O pulular irrequieto da música urbana espirrou fora do programa nacionalista porque ele exprime o contemporâneo em pleno processo inacabado mais dificil mente redutível às idealizações acadêmicas de cunho retrospectivo ou prospectivo Dupla novidade como emergência do popular recalcado no âmbito da cultura públi ca brasileira atravessando uma rede de restrições coloniaisescravocratas e como emergência dos meios modernos de reprodução elétrica a música popular brasileira urbana lançava em jogo os elementos sintomáticos de um flagrante desmentido descentralizador às concepções estéticopedagógicas do intelectual erudito pro metendo um abalo decisivo no seu campo de atuação A intelectualidade nacionalista não pôde entender essa dinâmica complexa que se abre com a emergência de uma cultura popular urbana que procede por apropri ações polimorfas junto com o estabelecimento de um mercado musical onde o po pular em transformação convive com dados da música internacional e do cotidiano citadino Como vêem no popular distanciado um ethos platônico acham que ele deve retornar de forma organizadamente pedagógica para devolver o caráter perdi do pela cultura de massas Acontece que esse retorno nunca pode se dar essa re gressão à origem não encontra o intervalo para se impor arrastada na esteira do processo tecnológicoeconômico onde rola o caos heteronímico do mercado Em vez de olhar de frente esse processo o programa musical nacionalista resiste até quando pode de forma bastante compreensível digase ao deslocamento sofrido pela arte na modernidade capitalista procurando desviar os seus sinais na direção de uma investidura cívicopedagógica que buscará apoio no Estado forte carente de legitimação Com isso recusará junto com Platão as inovações musi cais que sinalizam o desenvolvimento da linguagem por um lado na forma de vanguarda radical atonal e as músicas popularescas carnavalescas e outras que denunciam o caráter multiforme das interpenetrações líricosatíricoparódico festivas da música popular urbana cujo pique lastreado de fato numa rica tradição popular convergente para assimilações de todo tipo até hoje não se esgotou ainda no campo padronizante tendencial da indústria cultural Quando perdeu esse bonde o intelectual organizadordacultura no Brasil se atrasou de maneira básica sempre tendendo a reduzir o popular ao mito da origem e da pureza das raízes romanticamente e ou ao mito dos fins plenitude da consciência realizada mito ilustrado na modalidade normativa ou instrumental mas nunca no campo do complexocontraditóriocontemporâneo campo de afirma ção das múltiplas leituras e escrituras corporais quanto mais numa cultura sincré tica campo de afirmação poéticoreligiososexual do trabalho e do ócio tendendo 27 Idem ibidem6466 15 converter toda as diferentes direções da energia para o canal cívicopolítico com sua cruzada de conteúdos Do gramofone ao cinema falado VillaLobos 1929 A sétima arte toca os sete instrumentos da civilização moderna Vim ver o Rio que tanto adoro e fiquei triste com os que o estão afeiando de tantos rumores diferentes e desgraciosos O Rio está gramofonizado horrivelmente gramofonizadoTocase aqui hoje em dia tanta victrola tanta radiola tanta meiasola musical do momento do meio da rua COMO NÃO SE VÊ EM NENHUMA PARTE DO MUNDO DENTRO DE CASA NOS BURGUESES SERÕES DE FAMÍLIA O mal aliás não estará no número e na difusão dessa música mecanizado do século mas na sua qualidade E com isto não me refiro aos trechos de orquestra aos solos em diversos instrumentos por notabilidades mundiais às melosas árias do bel canto ou às alucinações do jazz norteamericano A nós brasileiros que possuímos uma arte popular tão rica e variada com de nenhum outro povo posso agora afirmálo mais do que nunca a nós deve cada vez interessar menos a arte alheia para que melhor realizemos e imponhamos a nossa em toda a sua beleza e origina lidade em respeito mesmo ao que dela se acaba de dizer e de pensar na Europa ATRAVÉS das minhas composições e dos meus concertos Os nossos gravadores de discos porém os comerciantes de nossa música popular estão muito desorienta dos Aceitam tudo gravam tudo o que é um erro pois eles é que deveriam con correr para educar o povo e o conseguiriamMAIS FACILMENTE DO QUE NÓS OS ARTISTAS graças aos elementos de que dispõem Outra coisa que também me en tristeceu desta vez no Rio a precária situação em que vão ficando os nossos músi cos de orquestra esses heróicos e tradicionais lutadores pela vida com a institui ção do cinema falado Eu que passei por lá e que sei das dificuldades que tem o tocador de qualquer instrumento para viver porque nem sempre é possível ganhar se ao menos o pão ensinado eu bem percebo o negro quadro que se desenha em frente aos nossos músicos de orquestra que já estão ficando inteiramente abando nados por causa dos filmes que CANTAM DANÇAM E TOCAM OS SETE INSTRUMENTOS DA CIVILIZAÇÃO MODERNA O cinemafalado é uma maravilha está certo Mas o ARTISTA é INDISPENSÁVEL às coletividades e eu penso que o que se devia fazer em toda parte do mundo era o que determinou MUSSOLINI na Itá lia aproveitar o músico de qualquer maneira Ora por exemplo nas salas de es pera dos cinemas Aqui mesmo no Rio de há tantos anos passados a orquestra sala de espera do Odeon chegou a ser famosa28 DA REPÚBLICA MUSICAL III A cena cultural do nacionalismo modernista é interessanteinstrutivodramático patética como primeiro momento de confronto entre o intelectual letrado burguês e as culturas populares no território urbanoindustrial quando a música popular se abre num leque que vai do folclore aos meios de massa cruzando na transversal esse campo contraditório e deixando a música de concerto meio nua na sua condi ção precária de exercício imitativo de procedimentos europeus Il neige reduzido a elites Com a emergência dos meios de massa a música da repetição música do disco e do rádio proliferante no espaço da cidade dá um rude golpe na música erudita 28 O Globo Rio de Janeiro 2071929 Recortes Mário de Andrade IEBUSP Os grifos dis paratados são propositalmente meus 16 pertencente a outro sistema de produção e reprodução o sistema de representação no espaço separado do concerto O que é suficiente para fazer com que alguns mú sicos mais ativos se sentissem reduzidos a uma condição francamente decorativa perante a penetração crescente da canção das ruas com função lucrativa e utilitá ria O Estado autoritário aparece então como uma espécie de socorro para o músico erudito perdido em meio ao campo da Arte inteiramente revirado pela nova econo mia política da cultura capitalista marcada pelo mercado dos objetos em série Respaldada por Getúlio Vargas a contraofensiva orfeônica de VillaLobos ligada a uma antiga tradição tendente a fazer da música o elemento de unificação e de imantação da sociedade em torno do Estado como se vê desde A República de Platão busca reconquistar ativamente para a grande Arte o seu prestigioso papel de portadora do sentido da totalidade perdido no vórtice galopante da crise mo derna 17 OS CHOROS E O SAMBA CLÁSSICO DO CABOCLODOIDO Filho de um funcionário da Biblioteca Municipal do Rio Raul VillaLobos profes sor e autor de livros de história e cosmografia além de instrumentista amador Heitor VillaLobos foi educado para ser médico e músico formado no estudo do vi oloncelo e na admiração de Bach Mas fascinado pela música dos chorões cariocas nos diz a lenda biográfica tocava clandestinamente violão e saltava a janela do quarto em busca das noitadas musicais Atravessando esse umbral doméstico à re velia do modelo paterno VillaLobos estava devassando uma das fronteiras impos tas pelo mapeamento cultural da Primeira República onde o violão o choro e a seresta sem falar nas batucadas eram repelidos do estreito conceito de cidadania moral e estética e reprimidos policialmente quanto mais populares No entanto e justamente enquanto o VillaLobos adolescente pulava a janela as resistências à música popular urbana símbolo tradicional do desregramento dominante estavam sendo minadas em vários pontos à medida que as massas emergiam para o capital como mãodeobra assalariada flutuante e mal absorvida na sociedade pós escravocrata em trânsito para o modo de produção de mercadorias1 é quando as formas de música popular produzidas pelos grupos negros e boêmios despontarão com brilho e relevo no mercado fonográfico Para entendermos o lugar que o artesanato musical dos chorões ocupava nessa economia cultural em transformação com seus hábeis instrumentistas em geral doublés de funcionários públicos e boêmios biscateiros musicais das orquestras de cinema e restaurante às vezes músicos de banda vamos passar antes por um lu gar estratégico do processo de resistência às marginalizações sofridas pelos grupos populares em suas práticas culturais a famosa casa da Tia Ciata onde surgiu das improvisações coletivas o samba Pelo Telefone lançado por Donga em 1917 e que consagrou o gênero Freqüentada além de Donga por João da Baiana Pixinguinha Sinhô Caninha Heitor dos Prazeres a casa onde morava a respeitada babalaômiri baiana casada com o médico negro João Batista da Silva centro de continuidade da Bahia ne gra no Rio vem descrita no livro de Muniz Sodré Samba o dono do corpo2 A habitação segundo depoimentos de seus velhos freqüentadores tinha seis cômodos um corredor e um terreiro quintal Na sala de visitas realizavamse bailes polcas lundus etc na parte dos fundos samba de partido alto ou samba raiado no terreiro batucada Metáfora viva das posições de resistência adotadas pela comunidade negra a casa continha os elementos ideologicamente necessários ao contato com a sociedade global responsabilidade pequenoburguesa dos donos o marido era profissional liberal valorizado e a esposa uma mulata bonita e de porte gracioso os bailes na frente da casa já que ali se executavam músicas e danças mais conhecidas mais respeitáveis os sambas onde atuava a elite negra da ginga e do sapateado nos 1 Cf Francisco de Oliveira A Emergência do Modo de Produção de Mercadorias uma inter pretação teórica da economia da República Velha no Brasil In Boris Fausto org O Brasil Republicano estrutura do poder e economia São Paulo Difel 1975391414 2 Muniz Sodré Samba o dono do corpo Rio de Janeiro Codecri 1979 18 fundos também nos fundos a batucada terreno próprio dos negros mais velhos onde se fazia presente o elemento religioso bem protegida por seus biombos culturais da sala de visitas noutras casas poderia deixar de haver tais biombos era o alvará policial puro e simples3 A imagem da polarização da casa resguardada por esses biombos sutilmente devassáveis resulta como foi bem lida por Muniz Sodré numa metáfora viva do território limite em que se davam os avanços e recuos de um novo modo de pe netração urbana para os contingentes negros que lutavam com a cortina de mar ginalização erguida contra eles em seguida à Abolição reelaborando os elemen tos da tradição cultural africana numa gradação entremostrada A riqueza da metáfora admite a tentativa de tomála como base de um mapa da vida musical da capital do Brasil do começo do século pois a tensão entre o salão e o terreiro entre o que se mostra e o que se oculta separados por biombos que va zam sinais nas duas direções é significativa do próprio processo de interpenetração de culturas que vinha ocorrendo Da sala de visitas ao terreiro de candomblé passando pelo samba raiado onde só se destacavam os bambas da perna veloz e do corpo sutil polarizamse dois universos diferentes na ritualidade na corporalidade na sociabilidade o da or dem religiosa mágica espiritual do mundo negro e o da ordem da convivência festejo de salão que a sala de visitas propõe e meio que imita A contigüidade dessas duas ordens e o modo como elas se negam e se traduzem faz pensar na dialética da malandragem que segundo Antonio Candido é incor porada à estrutura narrativa do romance Memórias de um Sargento de Milícias como modo de representação da estrutura social brasileira no começo do século XIX4 A dialética da malandragem é tanto mais saliente se lembrarmos que o mari do de Tia Ciata tornouse mais tarde chefe de gabinete do Chefe de Polícia de Wen ceslau Brás temos aí como no romance de Manuel Antônio de Almeida aquela estratégia de convivência dúctil e capciosa entre os imperativos da conduta res peitável e os procedimentos da religião e da festa popular vizinha nas culturas do povo da paródia da classe dominante e da carnavalização das suas imagens de po der e da sua versão da história Na verdade o processo tem mão dupla e a alteridade das culturas projetase numa espécie de jogo de espelhos confrontados regido certamente ainda pela di nâmica do favor pois enquanto o negro avança para o lugar público onde se faz re conhecível e reconhecido apropriandose mimetizando ou distorcendo a seu modo formas de cultura branca de base européia os políticos e intelectuais brancos vão ao candomblé e apadrinham o samba reconhecendo nele uma fonte de autentici dade nacional que os legitima5 3 Idem ibidem20 4 Antonio Candido Dialética da malandragem In Revista do Instituto de Estudos Brasileiros 8 São Paulo USP 1980 5 Eis aqui um campo de problemas aberto à reflexão no estudo da música brasileira as in terpenetrações que se dão na vida musical do Rio de Janeiro a partir do fim do século XIX matriz cultural do populismo poderiam ser pensadas como desdobramento pósabolição da ordem do favor na sociedade escravocrata analisada e interpretada em suas conseqüências ideológicas e literárias em Roberto Schwarz em Ao Vencedor as Batatas São Paulo Duas Ci dades 1976 19 São muitos os casos curiosos dessa época exemplos do entreabrirse paterna lista do futuroso filão populista Na campanha eleitoral de Júlio Prestes à Presidência o sambista Sinhô o traço mais expressivo ligando os poetas os artistas a sociedade e culta às camadas profundas da ralé urbana nas palavras de Manuel Bandeira6 foi com seu con junto Embaixada do Amor ao Palácio dos Campos Elísios Lá organizouse então uma festa íntima que se terminou à meianoite com o Hino Nacional teve seus pontos altos no momento em que O Sr Júlio Prestes gemeu no pinho lembrando se daqueles tempos em que era boêmio E todos cantavam e dançavam É o que se pode dizer um sucesso real Num dos belos salões dos Campos Elísios toda a família Júlio Prestes inclusive o Presidente eleito e o velho Coronel Fernando Prestes entravam no coro samba de Sinhô Ora vejam só A mulher que eu arranjei Ela me faz carinho Até demais Chorando ela me diz Ô meu benzinho Deixa a malandragem Se és capaz A malandragem Eu não posso mais deixar Juro por Deus E Nossa Senhora É mais fácil ela me abandonar Mas Deus do Céu Que maldita hora7 Tudo isso sem nenhum prejuízo evidente do fato de que o sambista Salvador Correa diretor da Embaixada era autor do seguinte estribilho Estava na roda do samba Quando a polícia chegou Vamos acabar com este samba Que seu delegado mandou Outros indicadores do trânsito de sinais musicais filtrandose através dos biom bos é a presença de artistas com informação erudita que se tornam mediadores da música popular e que são admitidos por essa época nas salasdeconcerto em 1908 Catullo da Paixão Cearense apresentouse no auditório da Escola Nacional de Música com sucesso em 1922 a presença de Ernesto Nazareth em recital na mesma Escola provocou tumulto com intervenção policial Catullo poetastro modinheiro trovador semiparnasiano que infundia cadências plangentes e nostálgicas sempre nos motivos da dor e do luar aos movimentos ritmados da música instrumental principalmente a de Anacleto de Medeiros jac 6 Manuel Bandeira Crônica da Província do Brasil Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1937108110 Citado por Vasco Mariz em A Canção Brasileira Rio de Janeiro Civilização Brasileira MEC 1977203 7 Francisco Guimarães Vagalume Na Roda do Samba Rio de Janeiro MEC FUNARTE 197860 20 tandose de ser o Rei dos Cantores e o introdutor do violão e da modinha no con certo clássico no monumental Choros n 10 para orquestra e coro misto de que falarei mais adiante VillaLobos utilizou com grande relevo o RasgaCoração canção com letra de Catullo sobre adaptação do xote Iara de Anacleto de Medei ros Nazareth conhecedor do pianismo chopiniano compositor sensacional que fora colocado nas nuvens pelo francês Darius Milhaud em sua passagem pelo Brasil transmissor do maxixe ricamente desenvolvido e ciosamente resguardado sob a ru brica mais apresentável segundo seus próprios critérios de tango brasileiro Além destes João Pernambuco violonista que tocava nos choroso junto com Villa Lobos que aprendera violão com cantadores e violeiros nordestinos operário noi Rio e depois funcionário público desenvolveu a sua técnica parecida na mão di reita com a de Segovia e deu recital na Cultura Artística de São Paulo em 1915 O caso de Sátiro Bilhar exemplaríssimo funcionário da Estrada de Ferro Central mostra que os biombos culturais devassáveis passavam a ser um dado interno à própria técnica musical no seu modo exímio e peculiaríssimo de tocar violão Sátiro Bilhar estilizava a mesma composição entre as poucas que tinha conforme as conveniências do público a quem tocava em gradações nuançadas do popular ao erudito O depoimento de Donga Sátiro foi o violonista mais original que conhe ci Ele tinha duas ou três composições só e só tocava aquilo VillaLobos dizia que não era o que Sátiro tocava mas como tocava é que era genial Tinha uma que ele denominava de várias maneiras Sons não sei de que uma denominação clássica Daquilo ele fazia tudo clássico popular virava tudo tocava pra cá tocava pra lá em cada lugar conforme a casa e o ambiente tocava aquilo8 Vista assim a simbologia da casa de Tia Ciata sugerida por Muniz Sodré ao mesmo tempo que dá forma a um movimento de afirmação de contingentes negros no espaço social do Rio de Janeiro capta e configura em suas próprias disposições e táticas de funcionamento o modo de articulação mais geral das mensagens cul turais da sociedade que eu quero sistematizar e desdobrar assim O núcleo sala fundos terreiro que dispõe os planos das danças de salão do samba e do candomblé poderia ser desdobrado segundo o leque de espaços culturais e teríamos que o salãodedançapiano respeitável é contíguo nessa topologia musi cal urbana ao sarau sala onde a música passa a ser a motivação da dança para objeto de contemplação amena e esse à sala de concerto onde a contemplação auditiva é mais ritualizada e o repertório investido de uma aura museológica mais destacada saladeconcerto sarau salãodebaile quintaldesamba terreirode candomblé9 8 Citado por Hermínio Bello de Carvalho em VillaLobos e o Violão palestra publicada em Presença de VillaLobos III Rio de Janeiro MEC Museu VillaLobos 1969140141 9 Se quisermos tirar este esquema de dentro da metáfora da casa como conviria a uma des crição concreta da diversidade das práticas musicais do Rio no começo do século bem como a uma representação menos doméstica da sociedade seria preciso levar também em consi deração os caféscantantes os bailes populares os teatros de revista José Ramos Tinhorão dá excelente material para isso em Os Sons que Vêm da Rua Rio de Janeiro Edições Ti 21 gramofone rádio Na linha horizontal perfazemse passagens do popular ao erudito através de si napses que marcam as fronteiras culturais do nervosismo social ao mesmo tempo que deixam vazar alguns sinais que vindos das duas direções querem percorrer todo o sistema Sambista anteprojeto do artista diria Paulo da Portela num dos seus sambas indicando o desejo de reconhecimento e da cidadania que anima parte da cultura negra a buscar posição no sistema sociocultural e que levaria o próprio Paulo a ser eleito CidadãoSamba na década de 30 A linha oblíqua marca por sua vez a ramificação mercadológica de massa que deu inesperada margem de penetração alternativa à música popular correndo por fora do sistema de difusão da arte Aparentemente se tomamos como referência a linha horizontal que vai do can domblé ao concerto através de uma série de gradações estaria diluída inteiramente a luta de classes no conjunto da vida cultural já que teríamos uma diferença me ramente quantitativa entre o erudito e o popular Mas a coisa é mais complicada É verdade que o populismo que está se armando aí atenua a luta de classes no jogo de imagens de um paternalismo de novo tipo onde cultura dominante e culturas do povo buscam referendarse num espelhamento mas o que ele faz é colocar a luta de classes no ponto invisível no lugar onde ela não parece estar Em primeiro lugar a polaridade social fica marcada nos pontos terminais dessa cadeia onde a ideologia tem seu ponto de força de um lado o ritual religioso po pular de outro o ritual estético burguês e essa oposição é mais política do que se possa imaginar Em segundo lugar já que os signos de classe se confundem em seu movimento de ida e volta onde parecem encontrarse nos mesmos pontos eles se distinguem e conflitam e nisso reside ao mesmo tempo a alteridade de classe e a alteridade do significante exatamente pelo sentido estratégico do seu movimento Como expressão da marginalidade dos grupos dominados a ocupação do lugar através dos biombos corresponde a uma estratégia popular de resistência onde procedendo por avanços e recuos escaramuças e escamoteamentos reagese à exclusão e firmase uma identidade polarizada pelo seu ponto mais encoberto a prática religiosa Como expressão da cidadania cultural no domínio da Polis burguesa a ocupação de lugar através dos biombos corresponde a uma estratégia de dominação imagi nária de todo social através de sua representação estética o que aparece princi palmente na estratégia de totalização estética que quer unir a diversidade social para resgatar a unidade harmoniosa da sociedade fragmentada e nesse sentido expressa também uma resistência frente à perda de valores a aura da obra de arte por exemplo com o avanço da modernidade capitalista Curiosamente a primeira estratégia a dos dominados vai encontrar seu canal de escoamento social no mercado de música nascente e passa daí por todo um nhorão 1976 e na Pequena História da Música Popular da modinha à canção de protesto Petrópolis Vozes 1978 em especial no capítulo sobre o maxixe 22 processo de afirmação e mistura convertendo o modo comunitário primitivo de produção do samba num modo individualizado com suas poéticas e seus melo dismos de autor e procedendo por uma verdadeira guerra de apropriações auto rais na fase selvagem de corrida ao mercado10 A música popular negra que tem seu lastro no candomblé encontra portanto um modo transversal de difusão a in dústria do disco e o rádio e as contradições geradas nessa passagem certamente que não são poucas mas ela serviu para generalizar e consumar um fato cultural brasileiro da maior importância a emergência urbana e moderna da música negra carioca em seu primeiro surto que mudou a fisionomia cultural do país Enquanto o nacionalismo musical quer implantar uma espécie de república musical platônica assentada sobre o ethos folclórico no que será subsidiado por Getúlio as mani festações populares recalcadas emergem com força para a vida pública povoando o espaço do mercado em vias de industrializarse com os sinais de uma gestualidade outra investida de todos os meneios irônicos do cidadão precário o sujeito do samba que aspira ao reconhecimento da sua cidadania mas a parodia através de seu próprio deslocamento Por sua vez sem acesso ao mercado e sem a mesma força de expansão o outro pólo forte de afirmação musical isto é o projeto de representação elevada da totalidade social pela grande arte buscará meios de escoamento social no apoio do Estado primeiramente invocado de maneira implícita na pedagogia nacionalista de 20 e mais tarde amplamente desenvolvido no programa do Canto Orfeônico du rante a década de 30 rumo ao Estado Novo O choro e a seresta contíguos no espaço boêmio mas diferentes na forma e no conteúdo instrumental de câmara o primeiro cantada e líricoplangente a segun da ocupam a meu ver um lugar paralelo e elástico entre o samba o salão e o sa rau verdadeiras capelas ambulantes na expressão feliz de Adhemar Nóbrega11 tangenciando a batucada e aspirando eventualmente ao status erudito Tanto é as sim fronteiriço e ambivalente o lugar social do choro que dele dão duas versões curiosamente opostas Pixinguinha e Donga Donga Todos os pais daquela época não queriam o cidadão no choro porque era feio era crime previsto no Código Pe nal O fulano polícia pegava o outro tocando violão esse sujeito do violão estava perdido perdido Mas perdido pior que comunista Muito pior Isso é verdade o que estou lhe contando não era brincadeira não O castigo era seríssimo O delegado te botava lá umas 24 horas12 Pixinguinha O choro tinha mais prestígio naquele tempo O samba você sabe era mais cantado nos terreiros pelas pessoas muito humildes Se havia uma festa o choro era tocado na sala de visitas e o samba só no quintal para os empregados13 Já na sua constituição o choro é um gênero de síntese instrumental baseado na improvisação inteligente a que se referia VillaLobos Espaço de convergência da técnica musical da cidade assentado na classe média seus músicos funcionários de repartição carteiros oficiais músicos formados em escola e mais alguns traba lhadores manuais malandros profissionais e um que outro doutor desgarrado pro duzindo um gestuário sonoro original rabiscado de traços eruditos e populares o 10 Samba é que nem passarinho é do primeiro que pegar frase famosa de Sinhô 11 Adhemar Nóbrega Os Choros de VillaLobos Rio de Janeiro MEC Museu VillaLobos 1975 Sobre o mesmo assunto ver também José Maria Neves Villa Lobos o choro e os Choros São Paulo Ricordi 1977 12 Citado por Hermínio Bello de Carvalho no texto referido à nota 8 p 20 13 Muniz Sodré op cit62 23 choro funcionou para VillaLobos o Violão Clássico era seu apelido entre os músi cos como uma espécie de olho mágico através do qual ele enxergou a música bra sileira A exposição cabal dos cômodos contíguos da vida musical dependia de momen tos mais acentuados de verdadeiro devassamento dos biombos culturais quando as restrições que separam as práticas musicais de grupos e classes são suspensas e as diferenças expostas de maneira simultânea provocando um efeito de estranha mento na emergência do recalcado Esse devassamento na década de 20 operou se progressivamente através da expansão de dois fatores o carnaval brasileiro moderno e a sinfonização das disparidades musicais do país levadas a efeito por Vi llaLobos O carnaval enquanto movimento ofensivo da estratégia de afirmação dos grupos marginais ocupa e desapropria simbolicamente o espaço urbano desrecalcando num caleidoscópio extrovertido toda a gama de gestos corporais sonoros das ba tucadas sambas maxixes marchinhas modinhas e danças de salão dramatizados na interpretação pública dos ranchos cordões afoxés blocos e pouco a pouco e mais e mais das escolas de samba A sinfonização nacionalista entendida no sentido amplo como conjunto de peças artísticas que obedeceu à estratégia de controle simbólico da totalidade social14 busca representar a nação sintetizando o seu espectro cultural de modo a conferir lhe uma unidade sublimada mas no caso das elaborações villalobísticas ao preço de expor em blocos aglomerados um painel explosivo das práticas musicais diferi das O devassamento carnavalesco cuja maior força está em não poder ser trans posto porque se dá no momento da sua experiência múltipla musical gestual se xual etc etc tende a ser modificado na medida em que a irrupção que provoca busca reconhecimento oficial isto é busca para a comunidade popular negra mar ginalizada a cidadania que será tipificada na eleição de Paulo da Portela cidadão samba e desenhará nos seus desfiles um novo fraseado apologético que se fixou principalmente depois dos carnavais de guerra do Estado Novo15 O devassa mento sinfonizante nacionalista por sua vez virá marcado por um forte didatismo paternalista simétrico à apologética sambística a tensão entre a franca irrupção carnavalizante e um severo escrúpulo pedagógico paternalista eou autoritário marca o itinerário de VillaLobos Na batida do populismo o carnaval emergente em busca de cidadania ganha traços sinfônicos e a sinfonização nacionalista levada a efeito por VillaLobos não se faz sem passar por um devassamento carnavalizante da música brasileira A sinfonia nacionalista já vinha sendo esboçada de longa data No programa para o poema sinfônico Brasil lançado pelo Jornal do Brasil em 1921 Coelho Neto buscava um compositor erudito que escrevesse uma história musical apologética do país que culminaria no trançado das formas populares ren didas ao Hino Nacional com o que Coelho Neto parecia querer converter a econo 14 Não estou usando portanto do sentido habitual de sinfonia como gênero de música or questral do século XIX Penso isto sim num conjunto de obras de vários gêneros que une materiais sonoros os mais diversos para extrair daí um efeito de totalização 15 A trajetória do sambista é muito bem apresentada no livro de Marília T Barbosa da Silva e Lygia Santos Paulo da Portela traço de união entre duas culturas Rio de Janeiro MEC FUNARTE 1979 24 mia carnavalesca da festa popular religiosa orgiástica e paródica numa batida de desfile militar do Dia da Pátria reduzindo a sua horizontalidade múltipla a uma hierarquização vertical autoritária e monocórdica16 Não encontrando nenhum músico que empeitasse o seu programa sinfônico Co elho Neto que também era chegado às sociedades carnavalescas consegue intro duzirlhes uns enredos cívicos Numa crônica publicada também no Jornal do Brasil logo depois do carnaval de 1923 apela para o patriotismo das pequenas socieda des os ranchos no sentido de apresentarem como enredo de seus préstitos temas de caráter estritamente nacional17 No ano seguinte o Ameno Resedá rancho do qual participavam destacados políticos literatos e bemsucedidos profissionais li berais inclusive o próprio Coelho Neto saía com o enredo Hino Nacional Visto por esse lado nada nos impede de pensar que não só a proposta do rancho cívico carnavalesco mas o próprio programa do poema sinfônico Brasil já era na verda de um primeiro projeto avant la lettre de enredo de escola de samba com suas alegorias históricas distribuídas em partes sucessivas como num grande teatro ro lante caminhando em cortejo triunfal para a apoteose cívica ao som da batida combinada de todas as danças populares Acontece que o Ameno Resedá fez escas so sucesso naquele ano de 24 e o primeiro secretário do rancho em carta ao es critor descrevia as dificuldades de associar carnaval e patriotismo Desgostoso com o insucesso do seu programa nas duas frentes da sinfonia na cionalista e do carnaval Coelho Neto escreve um curioso desabafo profético Se o júri não lhe conferiu o primeiro prêmio não deixou de louvar a idéia e certo estou de que no próximo ano o Ameno Resedá terá consolador triunfo vendo o seu exemplo imitado com o que não só lucrarão os ranchos tendo fartas novidades para explorar como o povo que aprenderá alegremente em espetáculos artísticos a amar o Brasil através da poesia de suas lendas dos episódios da sua história e dos feitos dos seus heróis Os precursores semeiam não colhem Este ano foi o da sementeira a colheita virá depois e ótima O primeiro passo foi dado e já agora ninguém poderá disputar ao Ameno Resedá a glória de haver norteado pelo civismo as suas festas carnavalescas18 Do nacionalismo folclorizante já dissemos o suficiente para entendermos que ele quer sinfonizar a totalidade social trazendo para a moldura do concerto a música dos espaços populares recalcados e submersos as danças dramáticas os cocos os pregões as rodas infantis etc mas sem saber o que fazer em suas estilizações da contigüidade excessivamente contemporânea e impura da música urbana Aqui 16 Os sons aliaramse fundiramse e aí vibram nas langorosas modinhas nos batu ques nos cateretês nos jongos e com tais músicas expressão sonora de um povo emanci pado passamos sorrindo e cantando da Colônia para o Império e no Império conquistamos as duas formosas liberdades redimindo o escravo e exaltando a Pátria ao prestígio em que hoje a vemos E tais glórias conseguimos com um só hino que não era o símbolo de um regime mas a própria voz da nação que com ela vai seguindo vitoriosamente para o futuro como a França através de todas as vicissitudes políticas tomou para canto de marcha a Marselhesa trecho da proposta sinfônica de Coelho Neto aos compositores nacionais por ocasião do centenário da Independência lançada no Jornal do Brasil e reproduzida por O Estado de S Paulo em 721922 Analisei detalhadamente o programa de Coelho Neto em O Coro dos Contrários a música em torno da Semana de 22 São Paulo Duas Cidades Se cretaria da Cultura Ciência e Tecnologia 19771739 17 Citado por Jota Efegê em Ameno Resedá o rancho que foi escola Rio de Janeiro Editora Letras e Artes 196548 A indicação desse texto me foi possível graças ao trabalho da pes quisadora Dulce Tupy para a FUNARTE sobre os carnavais de guerra 18 Citado também por Jota Efegê no mesmo texto à p 50 25 os telões abertos para a música rural se arrumam de modo a ocultar a pressão da modernidade Vale acrescentar nesse ponto que podemos entender talvez agora o contexto em que a Arte culta nacionalista buscará apoio no Estado para sustentar seu litígio com a música de mercado correspondendo a duas formas contrastantes de repre sentação do drama social ligadas a estratégias de ideologia cultural opostas elas disputavam a primazia da condição de pedra de toque musical da nação mas em territórios de expansão desiguais Embora o erudito e o popular fossem parâme tros relativa e mutuamente dependentes nessa época um mimando de certa forma o outro para a sinfonia nacionalista a comercialização fácil da música popular pa rece abusiva para esta a redução do popular a uma versão subalterna daquela pode chegar a parecer ilegítima19 Insuflada pelo empenho de representação musical da nação através da grande obra VillaLobos jogava nela com toda a força de suas metamorfoses em blocos a vivência do artesanato popular em amplificações panorâmicas Não por acaso o seu grande projeto da década de 20 quando a sua música toma impulso foi a série de Choros de cuja expressão mais simples ele partiu até atingir progressivamente formas complexas onde superpôs em condensações e deslocamentos contínuos as batucadas afroindígenas emergentes de uma espécie de inconsciente das formas de dança contemporânea os sambas os choros e serestas ponteios marchas cirandas etc trabalhados em clima de franca bricolage e invenção timbrística A música que VillaLobos passou a fazer na década de 20 nasceu do quadro mo vimentado das aproximações eruditopopulares do Rio de Janeiro e exorbitou des se quadro como se transbordasse um magma sonoro em permanente transfigura ção cuja forma é uma conseqüência do desdobramento do material que ele primeiramente pesquisava e depois multiplicava num jorro de acontecimentos mu sicais sempre novos20 Contrapondo ao rigor da música européia o seu informalismo caótico jovem e cheio de vida num valetudo experimental antropofágico VillaLobos usa os efei tos do sinfonismo descritivo os timbres e os modos debussystas os blocos sonoros polirrítmicos e politonais aparentados com a música do primeiro Strawinsky os temas da música indígena colhidos em Jean de Léry ou nos fonogramas de Roque ttePinto os cantos sertanejos a música dos coretos de banda a valsa suburbana a bateria de escola de samba e daí por diante Avaliar e analisar uma produção acidentada desse jeito não é fácil Gilberto Mendes sugeriu como critério que o dis paratado dos seus altos e baixos e do mau gosto que advém da mistura geral em tais proporções não é um acidente ou um desvio estético mas uma dimensão pró pria da tumultuada procura do transcendental do cósmico através do sentimento nativo Todos esses compositores das Américas Ives Cowell Antheil VillaLobos são na verdade de um impressionismo e politonalismo baratos frente à técnica composici 19 Valerá como indício o episódio narrado por Manuel Bandeira Me apresentaram Sinhô na câmara ardente do Zeca Patrocínio Sinhô tinha passado o dia ali era mais de meia noite ia passar a noite ali e não parava de evocar a figura do amigo extinto contava aven turas comuns espinafrava tudo quanto era músico e poeta estava danado naquela época com o Villa e o Catullo poeta era ele músico era ele na mesma crônica já citada 20 Gilberto Mendes A Música In Affonso Ávila org O Modernismo São Paulo Perspecti va 1975132 26 onal de seus contemporâneos europeus mas a gente sente em sua música princi palmente naquilo que parece ruim mal feito algo mais que a torna diferente uma autenticidade uma independência em que encontraremos as raízes tipicamente americanas de uma vanguarda que não tem nada a ver com a vanguarda européia Só nas Américas poderia surgir uma pop art o jazz o tropicalismo a música de VillaLobos e Ives21 Entre os Choros que centralizam a produção de VillaLobos na década de 20 o de no10 para orquestra e coro misto não por acaso o mais célebre é a confirma ção mais significativa dos rumos que a música do compositor estava seguindo na quele momento Vale dizer para introduzir o problema que o princípio sincrético que manda nos choros populares extravasa numa violenta ampliação nos Choros de VillaLobos criando um efeito de distorção panorâmica Iniciados por uma pecinha para violão nos moldes de Ernesto Nazareth eles absorvem rápida e crescentemente por uma progressiva aumentação das massas sonoras de uma peça para outra um enorme repertório de significantes musicais diversos da música indígena constantemente recorrente africana mais rara e circunstancial popular rural urbana e suburba na aglomerados em constantes recombinações Há uma intenção explícita de captar o prisma da psiquê musical brasileira pelas ambientações orquestrais ecoló gicas florestais sertanejas pela pontuação de cantos de pássaros pela citação e desdobramento de cantos rituais indígenas pela alusão a batucadas ranchos val sinhas cantigas de roda dobrados tudo isto visto a partir das serestas e dos cho ros22 A técnica investida nessas agregações realiza metamorfoses oníricas do material musical de base submetido a condensaçõesdeslocamentos no nível contrapontísti co superposições por blocos simultâneos de signos e códigos musicais diferentes e distantes harmônico circulação de configurações modais tonais e politonais sintáticodiscursivo adjunção constante de motivos sem continuidade linear do que resulta desde a primeira impressão uma figura da simultaneidade das forças da liberação de energia sem o fechamento que corresponderia à representação da forma acabada e da temporalidade sem finalismo dos fragmentos compostos É a audição de uma figuração onírica que trabalha com significantes de brasil o país inconsciente é o conjunto de forças inapreensível que o texto musical tenta flagrar em sua cinética sonora Nesse sentido mesmo de levantamento parcial do recalque que separa as pro duções simbólicas das classes os Choros fazem o papel de devassador cultural atravessando vigorosamente as sinapses que censuram a passagem de significan tes carregados de intensidades sensuais de informações vitais de história reprimi da O Choros no10 pode ser considerado modelar uma análise minuciosa mostraria como se dá ali a articulação de sinais cifrados da diversidade brasileira compondo um mito nacional que vou traçar aqui em linhas gerais 21 Idem ibidem131 22 Essa explicitação encontrase no texto do próprio compositor Choros estudo técnico estético e psicológico de VillaLobos mimeografado e revisto pelo professor Adhemar Nó brega no Conservatório Nacional de Canto Orfeônico em 1950 e publicado em VillaLobos sua obra pelo MEC Museu VillaLobos 1972 27 A peça admite uma leitura sintáticosemântica que acompanhe a articulação de gestos musicais nacionais leitura que aparentemente demodée à primeira vista mostrase adequada ao objeto Ela apresenta I uma longa seção orquestral formada de uma introdução ani mada e de um episódio lento seguida de II uma parte final coralsinfônica de caráter progressivamente apoteótico O contraste entre essas duas partes tomadas aqui bem panoramicamente é nítido A parte orquestral I é o domínio dos sinais culturais cosmopolitoprimitivo urbanosuburbanorurais trabalhados ao modo de pulsões agregados por super posição e por adjunção constante23 como energia nãoligada que configura em contraste com a parte final um quadro de forças à solta erráticas entre o plano primitivo e o projeto civilizador formigamento caótico perdido entre o animismo selvagem e a inscrição na história da acumulação Ela é pontuada por acidentados índices dinâmicos que despontam ora como irrupções ora como quebras disrupti vas ora como focos atritivos ora como aclamações rebarbativas O regime de in tensidades descontínuas que era modo padrão da vanguarda fauve da década de 20 cobre aqui uma apresentação amostrativa dos tempos defasados intervalados compactados e espaçados do brasil onde é o Brasil um sistema de sons que vai guiando a eletrônica e musical figuração das coisas24 A proliferação de motivos dessa primeira parte corresponde a um diapasão se mântico o desdobramento do potencial o espaçobrasil é o campo onde as forças erráticas vasto repositório de energias litigantes se entrechocam até encon trarem a ligação consubstanciada na coralidade tonal e ritmicamente periódica da última parte Lido sincronicamente o mito que dispõe a passagem dos aglomera dos intermitentes da seção sinfônica à periodicidade apoteótica da seção coral sinfônica cristaliza o destino de potência como seu núcleo de desejo O Choros no10 iniciase com um acorde fortíssimo percutido em anacruse com a nota superior sol na trompa longamente sustentada Esse acorde fundador sur ge com um bloco de energia intensidade bordado na flauta por uma transcrição instrumental do canto do pássaro azulão primeira aparição da voz da natureza so bre o fundo do potencial A esses dois elementos sobrepõese a evocação nas cordas do toque rasgado da viola popular constituindo no conjunto uma primeira combinação da natureza muda a força da nota sustentada a natureza cantante a melodia do pássaro e a cultura popular a batida da viola Sustentada ao longo dos compassos da seção introdutória a nota inicial proferida pela trompa se abre num motivo melódico ascendente no segmento marcado na partitura com a letra A procedendo por atritos de segunda menor nas trompas que conduzem resol vendose a um acorde perfeito menor Acompanhado de um correspondente mo vimento de intensidade crescente e de alargamento do campo da tessitura e dos timbres instrumentais esse motivo que desabrocha da nota inicial como uma vitó riarégia assume aqui o caráter de uma alvorada virginalinaugural reincidindo em progressiva ampliação nos segmentos B e C onde incorpora um tema incaico enun ciado em acordes paralelos com incidências dissonantes em ambiente de passara da transpondose para as cordas onde desemboca finalmente no motivo nuclear de toda a peça um acalanto dos índios parecis de perfil cromático descendente cujas metamorfoses por diatomização ou alteração do perfil rítmico serão estru 23 Termo empregado por Adhemar Nóbrega em Os Choros de VillaLobos 24 Carlos Drummond de Andrade A Palavra e a Terra Lição de Coisas 28 turantes da obra e assumirão grande importância na parte final25 Da primeira nota até o achado do tema se dá portanto um processo de gênese a partir do qual o motivo dos índios parecis pontuará generalizadamente o espaço sonoro ao modo de intervenções disseminadas em gestação onipresente Adhemar Nóbrega cha mouo motivo conspiratório Tratase no entanto de uma gênese acidentada por múltiplas superposições sincrônicas metamorfoses politonais da tocata chorística intervindo com suas inflexões sincopadas refrões populares temas de embolada solo de trombone derrapando sem expansão melódica o motivo nuclear ampliado em gesto de choroseresta timbrística e melodicamente distorcido piano e sopros emitindo quaseclusters percutidos à maneira de dança indígena Sacre du Prin temps primitivomoderna e outras tantas incidências em múltiplas combinações sempre acirradas pela reiteração polimorfa do motivo nuclear No final da parte puramente sinfônica o clima associativo e disruptivo da soma tória cultural que prevalece desde o começo dá lugar ao desenvolvimento pelas cordas e trompas de um elemento melodicamente ascendente e reiterativo cres cente em intensidade animandose no andamento além de conter uma aceleração rítmica interna ao próprio motivo que eu chamaria pelo contraste que instaura de tema da vontade pelo modo como ele parece indicar a tendência a organizar as energias livres num novo regime de articulação E de fato o tema da vontade de uma altissonância mais para Amaral Neto Re pórter nessa passagem que para Glauber Rocha leva o desdobramento do poten cial inserido no início da peça a um limiar onde ele se interrompe em fortíssimo FFFF A pausa pontua o que será a efetiva entrada de um outro regime na eco nomia rítmicomelódicoharmônica da peça em andamento très peu animé et bien rythmé Pois a parte final coralsinfônica II é antes de mais nada o campo da perio dicidade ela começa com um motivo insistentemente repetido célula rítmico melódica de corte incisivo dançante reiterativo engendrada digase de passagem pelo trabalho de metamorfose do motivo conspiratório dos índios parecis que lan çada pelo contrafagote atravessa a orquestra e projetase no coro vozes masculi nas em movimentos cadentes coleantes articulados pelas vozes em silabações onomatopaicas imitativas do tupi jakatakamarajá jakatakamarajá jakata jakataka kamarajá etc A regularidade rítmica do motivo indígena permanecerá todo o tempo acrescida da superposição de cadências de marcharancho percutidas no pi ano coroada pelas vozes ecoando motivos melódicos advindos dos temas indíge nas acentuada por interferências dissonantes diversas No ápice desse processo de progressivo congestionamento do campo sonoro onde a batida indígena é subli nhada pela percussão acrescida de instrumentos brasileiros recoreco puíta e caxambu adensada por clusters glissandos e comentários sonoros meteóricos quando o crescendo das massas coraisorquestrais atinge o seu clímax é que sur ge já em terceiro plano confundindose com a intricada teia de um contraponto cerrado em pleno stretto uma melodia lírica e sentimental à maneira da modinha suburbana extraída de uma canção popular com letra do poeta seresteiro Catullo da Paixão Cearense denominada Rasga o Coração26 entoada pelo naipe mais agudo das vozes femininas É preciso realmente ouvir o despontar dessa espécie de miragem sonora sob a compacta massa coralorquestral para perceber nessa apari 25 A referência ao tema incaico e ao acalanto dos índios parecis feita pelo próprio Villa Lobos encontrase no texto citado à nota 22 26 A citação é do texto referido à nota 22 29 ção algo como a visão mirífica de uma alma brasileira aliás é esse o subtítulo do Choros no5 pairando sobre o tumulto das forças fundidas e atritantes às quais imprime agora o movimento encadeado dos intercâmbios tonais Desdobrado por todo o coro o Rasga o Coração toma conta da parte final desse Choros no10 e depois de evocar a seqüência de acordes do início da peça o des dobramento do potencial fechase pela eclosão de um acorde coralsinfônicotonal embora carregado de dissonâncias O Rasga o Coração era na verdade uma adaptação para não dizer apropriação do antigo xote instrumental Iara de Anacleto de Medeiros transformado em can ção por Catullo27 A música até chegar ao Choros passou assim por uma série de transformações O schottisch carioca do antigo chorão Anacleto de Medeiros com panheiro de VillaLobos embebido depois nas rutilâncias da dor plangentes de Catullo tomando um banho de verbosidade nostálgica rasga um espaço mítico no contexto sonoro transfigurado da obra de VillaLobos A música de dança urbana sofre portanto uma primeira sublimação quando ralentada e versificada pelo doutor da Dor cearense e um novo efeito de totalização quando emerge como superestrutura lírica da acirrada massa sonora posta em ação por esse outro artista que não foi doutor Heitor VillaLobos28 Não me parece difícil ler nessa obra que causou forte impressão no Brasil e na Europa quando do seu lançamento em 19262729 através da conversão da energia 27 Eis a letra do Rasga o Coração Se tu queres ver a imensidão do céu e mar refletindo a prismatização da luz solar rasga o coração vem te debruçar sobre a vastidão do meu penar Rasgao que hás de ver lá dentro a dor a soluçar sob o peso de uma cruz de lágrimas chorar Anjos a cantar preces divinais Deus a rimar seus pobres ais Sorve todo o olor que anda a recender pelas espinhosas florações do meu so frer Vê se podes ler nas suas pulsações as brancas ilusões e o que ele diz no seu gemer e que não pode a ti dizer nas palpitações Ouveo brandamente doce mente palpitar casto e purpural num treno vesperal mais puro que uma cândida vestal e assim por diante o texto é bastante longo VillaLobos utilizouo apenas em par te Está nas Modinhas de Catullo da Paixão Cearense São Paulo Fermata 1972 Mais tarde o compositor foi processado por um tal Guimarães Martins dono dos direitos autorais de Catullo que o acusou de plágio e desde então a parte coral do Choros n10 é cantada sem letra apenas em vocalise no que só saiu ganhando Foi em torno dessa pendenga autoral e em defesa de Guimarães Martins que Carlos Maul escreveu o livro idiota A Glória Escan dalosa de VillaLobos Rio de Janeiro Livraria Império 2ª ed 1960 28 Fiz um dia esta pergunta ao meu anjo inspirador Qual seria o anel do Poeta Se o Poeta fosse um Doutor E o meu anjo o meu arcanjo respondeume com calor Nem verde nem cor de sangue nem azul nem amarelo nem roxo nem de outra cor Seria muito mais belo Uma saudade brilhando na cravação de uma Dor Catullo da Paixão Cearense O Anel do Poeta 29 Quanto ao Rasga o Coração é uma forte composição com importante prelúdio orquestral onde abundam os efeitos onomatopaicos de timbres em que é tão fértil a fantasia de Villa vem depois a citação entre aspas da modinha de Catullo Se tu queres ver a imensidão do céu e mar Villa envolveua de uma formidável roupagem harmônica onde sobre um fundo imperioso de marcha batida corusca fabulosamente a prismatização da luz solar Villa foi aclamado pela platéia unânime como de fato merecia estendendose os aplausos aos seus numerosos colaboradores entre os quais se contava a fina flor dos nossos professores can tores e amadores que o presentearam em cena aberta com uma baita batuta de ouro Ma nuel Bandeira Villa Regendo in Andorinha Andorinha Rio de Janeiro José Olympio 196693 Le Choros 10 lemporte certainement sur les précédents compositions Il débute par un tumulte dorchestre dune pâte assez strawinskiste influence du reste sensible chez M VillaLobos Des lambeaux de thèmes apparaissent ensuite sur un orchestre redevenu 30 livre à energia ligada que ela opera a construção do mito do feroz instinto de uma raça em pleno desenvolvimento domado para usar expressão do próprio Vi llaLobos na medida em que ela encadeia uma série de livres associações signifi cativas da multiplicidade cultural pela via dos motivos do potencial emergente do tema da vontade e do triunfo coral elementos civilizadores ascendentes a partir de um campo de forças rico e caótico Que dizer por sua vez do canto de sereia da alma brasileira pairando em meio às forças tumultuadas do primitivo e do moder no A receita mítica deste Choros para o Brasil é mistura e sacode que se des prende uma aura miragem encantatória que harmoniza a sociedade pairando aci ma dela como a classe média em certas manifestações ideológicas da própria como a nação efeito de totalidade desprendendose das particularidades sociais como o Estado orquestrador da sociedade dividida Uma resposta taxativa seria francamente abusiva em vista do caráter aberto do discurso musical sujeito a múltiplas versões a múltiplos usos e a múltipla reconstruções semânticas nunca definitivas Mas constelar dados como esses que cercam a produção villalobística logo antes de sua entrada orfeônica no Estado Novo e enriquecer a margem de leituras de sua obra é sem dúvida o melhor que temos a fazer Podese dizer que a obra de VillaLobos é esplêndida realização de populismo mais para enriquecer a idéia do populismo do que para sujeitar a música a um rótulo Ela faz parte desse processo ambivalente de emergência de imagens visíveis de povo soberano necessárias à identidade civil das nações modernas o que só foi possível muito recentemente no Brasil depois da Abolição em conjunto com os conflitivos esforços para integrálo o povo na nova ordem capitalista Os obstá culos que o povo real parece opor à sua integração na totalização nacionalista são hoje de dois tipos Por um lado ele aparece aos olhos desse intelectual como atra sado e indolente entre as indefectíveis coloniais falhas de caráter Por outro a idéia do atraso de sua cultura e de suas práticas supersticiosas quando religio sas bárbaras e sensuais quando festivas vêm se somar às tumultuárias vicissi tudes modernas como as reivindicações de massa e a proliferação de cultura urba na passando diretamente do plano das culturas rurais iletradas para os meios au diovisuais elétricos sem o estágio tão típico dos países desenvolvidos da educação letrada e tudo o que ela comporta em matéria de modelos culturais e de consciên cia cívica Fora portanto da imagem de povo a ser produzida pela arte nacionalista apoiada no folclore o povo bom emerge um outro povo problemático de difícil controle por esse projeto seja pelo que parece ser a sua inconsciência frente às exigências mínimas da razão ilustrada mergulhada no animismo acívico seja pelo que deriva de ser as eclosões de sua consciência política expressa em movimentos populares Surpreendemos aí a matriz da oscilação constante e típica entre a postura neo romântica que toma o povo como sujeito da nação imaginário ou simbólico e a postura neo e subilustrada que toma o povo como objeto de um banho pedagó calme Le choeur intervient bientôt apportant à lensemble une animation barbare et sau vage Dune voix à lautre court une mélopée puissante La batterie sanctionne la persistance de ces tourbillonements qui évoquent les ébats de quelque horde primitive Malgré des influ ences ce Choros revèle une originalité rigoureuse et montre chez son auteur une capacité dimagination une maîtrise técnique une liberté délan remarquables Paul Le Flem Audi tions douvres de M VillaLobos Comoedia Paris 7121927 la génèse truculente dune neuve Amérique pleine délan et source jaillissante des trésors mélodiques et rythmi ques que les nègres et les indiens se transmettent depuis dez millénaires Pierre Lucas Lyri ca dez 1927 31 gico oscilação esta que é o lugar por excelência da ação desengano e dilacera mento do intelectual burguês brasileiro no período Enquanto o popular é suscitado colocase o problema de dominálo em benefício da totalidade no caso da ordem vigente controlando o monstro de duas cabeças que morde pelo lado moderno e pelo lado atrasado A demanda do popular coloca imediatamente do pontodevista dominante o problema da autoridade e da hie rarquia chamada a dominar as convulsões inscritas nas próprias energias sociais que é necessário convocar para a produção vale dizer para a consecução do po tencial acumulativo ocioso a ser despertado É tão simplista pensar que essas considerações enquadram a música de Villa Lobos quanto é bobagem achar que a obra do compositor não tem nada a ver com elas A música de VillaLobos busca oficiar o rito de passagem da naçãocaos ter ritório potencial da natureza bruta e do povo inculto tidos como forças indômitas do feroz instinto de uma raça em pleno desenvolvimento à naçãocosmos terri tório simbólico da natureza e povo potenciados A música que será tomada como a mediadora pedagógica dessa passagem quando do programa do canto orfeônico já tem a charada resolvida de antemão na obra sinfônica dar ordem ao caos através de um movimento de espelhamento en tre povo e nação graças ao qual a sociedade surge como conflituosa dilacerada pelos interesses conflitantes que a dividem e harmoniosa resgatada pelo senti mento pátrio30 Da trama desse movimento de postulação da gênese da nação fa zendoa falar através do povo e fazendoo calar em seus excessos é que salta em refração acima dos conflitos a alma brasileira o Rasga o coração espécie de estado lírico e feminino emulação utópica do Estado político masculino Em VillaLobos a busca de representação ou de efetuação dessa passagem do caos ruidoso do Brasil a um cosmos coral se dá em dois canais ou dois registros o registro propriamente estético da obra musical é mitopoético e o registro político do programa orfeônico será pedagógicoautoritário No registro mitopoético bem representado pelo Choros no10 espécie de con densação de um projeto musical distribuído esparsamente pelas múltiplas obras o momento caótico tem grande relevo em ressonância congenial com a experimen tação vanguardista aí o devassamento sinfônicocarnavalesco dos tempos culturais defasados e simultâneos parece ser fundamental para o melhor êxito da apoteose final tanto mais representativa da concordância tonal que chega a criar quanto mais explosivas e tumultuadas as forças que chegou a subordinar e organizar A rica desordem do país novo reservatório potencial de energias caóticas desponta de modo marcante nas obras da década de 20 nos Choros no Noneto e no Rude poema onde VillaLobos captou com a antena modernista de suas polirritmias su as politonalidades suas estridências timbrísticas e harmônicas os ruídos culturais do Brasil ruídos do social recalcado até então pela cultura oficial que ele devassa e superpõe em aglomerações fragmentárias exacerbando a tumultuada diferença desses materiais A pacificação prefigurada nos Choros estabilizase na obra musi cal a partir da década de 30 através do neoclassicismo das Bachianas Brasileiras como que a augurar o desejado equilíbrio da nação madura que soube disciplinar a sua rica seiva 30 Utilizo aqui a formulação de Marilena Chauí sobre a articulação das idéias de povo e nação desenvolvida no seminário de pesquisa promovido pela FUNARTE O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira Rio de Janeiro 1980 32 O registro pedagógicoautoritário por outro lado representado pelo programa do canto orfeônico no Estado Novo quer imprimir disciplina e civismo ao povo de seducado ou educando partindo do tom patriótico e hínico Pelos altofalantes do Estado Novo VillaLobos buscou a conversão do caos ruidoso do Brasil num cosmos coral mito utópico que se traduziu quando precisou transformarse em plano pe dagógicopolítico na questão da autoridade e da disciplina a música contribuiria para reverter a rica e perigosa desordem do país novo em ordem produtiva ca lando a múltipla expressão das diferenças culturais numa cruzada monocórdica como veremos a seguir A conciliação dos pólos da desordem e da ordem na corda tensa que VillaLobos vibrou com extrema intensidade não se faz sem disparates sublimes Se uma tra dição bemposta costuma satirizar como samba do crioulo doido alguns dos re sultados heteróclitos a que chegam as culturas da margem quando procedendo por suas apropriações carnavalizantes buscam mimetizar a cultura oficial para ganhar cidadania o que dizer das tiradas exortações hinos e teorizações villalobísticas quando se propõem a sanear a incultura nacional senão que compõem junto à sua dança do índio branco um inusitado samba clássico do caboclo doido Olha o pas sado heróis ardentes saltam das tumbas brilham quais sóis Barroso Anchieta Tiradentes Caxias Gusmão Quantos heróis E nosso ardor na paz na guerra exalta a glória do meu Brasil canta VillaLobos em Meu País hino castrolópico como chamouo Manuel Bandeira publicado sob o pseudônimo de Zé Povo31 Por mais que pretenda impor programaticamente uma ordem cultural afinada pela seriedade bombástica da exortação hínica VillaLobos escorrega na casca de banana no campo minado onde o Estado busca legitimação na imagem do popular e o popular busca cidadania no reconhecimento oficial num jogo de mimetismos car navalescos espelhados onde ambos se engrupem mutuamente Assim se o samba da legitimidade do Estado Novo toma foros algo orfeônicos e sinfônicos conforme mostrou Antonio Pedro num trabalho ainda inédito32 Villa Lobos cometeu por sua vez um Samba Clássico curioso exemplo de batucada cívi ca onde a ascensão patriótica quando parece atingir o pináculo da sublimação derrapa espetacularmente no carnaval Na grandeza infinda É feliz quem vive Nesta terra santa que não elege raça nem prefere crença Oh Minha gente Minha terra Meu país Minha Pátria Para frente A subir A subir A SAMBAR 33 Como não se lembrar aí do senador de casaca de Terra em Transe que se inflama com seu discurso demagógico de bachareldecomício e cai no samba ras gado A leitura que eu estou fazendo não é para que o suposto bom senso de algum ranço universitário se imagine estar acima desses exemplos bizarros de populis mo Ela não serve à crítica costumeira de posições ideológicas porque neste caso a vontade de potência transitando entre a música e a política dá um curtocircuito no fusível do crítico da cultura se ele se dignar a perceber que o total das forças 31 A letra completa do hino Meu País vem citada em conferência de Amarylio de Albuquerque VillaLobos visto pelo avesso publicado em Presença de VillaLobos 4 vol Rio de Ja neiro MEC Museu VillaLobos 196946 32 Antonio Pedro Samba da Legitimidade mimeo dissertação de mestrado São Paulo USP 1980 33 O Samba Clássico vem citado também por Amarylio de Albuquerque ver nota anterior 33 em jogo nessa cadeia de revolução carnaval e autoritarismo ultrapassa em muito o alcance das categorias explicativas do seu discurso verbal A crítica do populismo o tema desta pesquisa é um convite ao erro irrecusável é a crítica do lugar imaginário do intelectual letrado burguês como explicador e re gente do movimento social e o efeito bumerangue dessa crítica do objeto sobre o sujeito Como regente ele só pode constatar hoje que se vê amplamente superado pelos movimentos sociais Como explicador eu só posso explicar e me explicar diz eleeu espécime fóssil quando soterrado pelas camadas geológicas da história mas mutante quando se percebe que o buracobrasil é mais em cima mais embai xo e mais em volta Atravessa o vício profissional da explicação droga do intelectual a carreira bri lhante decupadora a vontade de síntese descentrada raio da idéia detonadora A música de VillaLobos não se mede pelo bom senso Eu acho que ela se mede melhor pela cena de Terra em Transe À mistura farsesca e altissonante de cruzada cívica e carnaval que ele herdou e flagrou lancinantemente Glauber Rocha acres centou segundo a emergência dos movimentos políticos da década de 60 o vértice da revolução no caldeirão onde esses impulsos revolucionário carnavalesco e patriótico revertem dramática e parodicamente um ao outro Ou nas palavras da Tropicália eu organizo o movimento eu oriento o carnaval eu inauguro o monu mento no planalto central do país Glauber reforçou o sopro profético revolucioná rio terceiromundista do seu cinema justamente com o fôlego sinfônico dos Choros e das Bachianas isto é daquele complexo político e cultural ambivalente com que Getúlio e VillaLobos no seu modo nacionalista autoritáriopaternalista e desenvol vimentista hábeis no manejo dos compromissos entre forças contrárias identifica dos com a figura do pai da pátria que acende a chispa do Brasil moderno roubaram a cena histórica O que não quer dizer absolutamente que Glauber seja um herdei rorepetidor ideológico dos parceiros do Estado Novo ele é um captador da energia que circula entre os pólos Getúlio VillaLobos cruzando o campo da artepolítica e seu sonho de potência num ziguezague barroco que fez por levar à microfonia mais estridente as pulsões de direitaesquerda contidas no núcleo populista e re batidas por exemplo em VillaLobos e Mário de Andrade Transando o poder da arte e da política ele exacerba gritantemente a contradição do intelectual no ciclo nacionalpopulista levando à máxima potência paradoxal a visão desencontrada do povo como força revolucionária e como presa impotenteinconsciente da apatia da alienação do atraso subtexto recalcado de toda a apologética nacionalpopulista De Barravento a Idade da Terra Glauber junta os fios dos dois pólos da corrente que passa por Getúlio Villa Lobos e reapresenta todo o monumento do nacionalpopulismo como alegoria es plendor e ruína barroca entre a história da salvação e o nada O político populista entoa seus discurso bacharelesco em meio aos passistas e à batucada e cai no samba o contexto é o do comíciomanifestaçãopasseata populista Junto com esse sambaclássicodoido as massas estudantes operários demagogos e escola de samba começam a se deslocar e a câmera se aproxima do intelectual poetarevolucionário e da militante colocados no olho do ciclone popu 34 lista34 que se movem lentamente num contraponto com a massa quando come çam a soar impressionantemente os sons iniciais da Fuga das Bachianas Brasileiras Ali entre a guerrilha e a festa o carnaval político do ciclo populista que a música de VillaLobos atravessa e potencia recupera a sua dimensão subjacente que é a dimensão trágica35 34 A metáfora do olhodociclone aplicada à questão do nacionalpopular na cultura brasileira é idéia de José Pasta Jr desenvolvida em seminário de pesquisa na FUNARTE Rio de Janei ro 1980 35 Partes deste trabalho foram publicadas no artigo Estado Arte e Política em VillaLobos Vargas e Glauber Folhetim n283 São Paulo 2061982 35 O ORFEÃO DO ESTADO NOVO ESSE COQUEIRO QUE DÁ COCO A ação de VillaLobos arregimentando desde os inícios dos anos 30 corais de professores e alunos em contextos cívicos que vão ganhando um respaldo instituci onal progressivo integrados à estrutura escolar como prática cotidiana de civismo e ao aparato comemorativo das grandes datas nacionais através de mobilizações de massa muda o tom daqueles que falam de música erudita no Brasil na altura de 1940 A data redonda pareceu propícia por sinal à afirmação apologética dos feitos do Estado Novo num tom eufórico que destaca a regeneração da música na vida social e do papel orgânico de que o músico erudito se vê investido enquanto pro pagador da cultura entendida por sua vez já frisamos como elemento patriótico disciplinador Dizia Luiz Heitor ao fazer o balanço crítico da década Em 1930 o termômetro de nossa cultura musical havia descido quase a zero A es tagnação era de alarmar Ausência completa de iniciativa Ação corruptora de agentes poderosos como a falsa música popular e o seu temível aliado o rádio nessa época tão precariamente orientado ainda e em tumultuoso início de comer cialização O grifo é meu Fator decisivo de transformação VillaLobos primus inter pares passa a residir no Rio e inicia a sua famosa campanha em prol da cultura musical infantil e popular desaparecem velhas insti tuições e surgem outras que modificam totalmente a cadência de nossa vida musi cal o ensino é modificado revolucionariamente atingimos uma autonomia artística compatível com os votos mais otimistas1 Tal exaltação só se torna possível graças à conjugação VillaLobosGetúlio duas figuras que tinham mais de um motivo para ressonância Na crônica que se desen tranha aqui e ali dos textos de Luiz Heitor lemos que o Presidente da República atendera a dramático apelo do compositor passando a apoiar todas as suas ini ciativas pela altura de 1932 O que Getúlio Vargas apreciava no compositor era a inestancável energia a febre do grandioso do colossal postas a serviço das ceri mônias cívicas da República Nova anterior a 1935 ou do Estado Novo posterior a 19372 Num texto publicado pelo DIP A Música Nacionalista no Governo Getúlio Vargas é a própria voz de VillaLobos que realça a aliança da arte com o Estado Aproveitar o sortilégio da música como um fator de cultura e de civismo e integrá la na própria vida e na consciência nacional eis o milagre realizado em dez anos pelo governo do presidente Getúlio Vargas 1 Luiz Heitor Música e Músicos do Brasil Rio de Janeiro Casa do Estudante do Brasil p 380 2 Luiz Heitor 150 Anos de Música no Brasil Rio de Janeiro José Olympio p 269 36 No livro estas palavras de abertura vêm sob a insígnia do pentagrama inicial do Hino Nacional Nele estão contidas as linhas gerais do casamento entre a arte e a política dispondo do seu poder o sortilégio do canto coral para que ele seja en campado pelo Estado a música estaria restaurando segundo o compositor a sua verdadeira finalidade social e o seu objetivo educacional Em outro lugar ele mesmo diria O canto orfeônico aplicado nas escola tem como principal finalidade colaborar com os educadores para obter a disciplina espontânea e voluntária dos alunos desper tando ao mesmo tempo na mocidade um sadio interesse pelas artes em geral e pelos grandes artistas nacionais e estrangeiros3 Estribado segundo diretrizes federais num tríplice aspecto disciplina educação cívica e educação artística o programa do canto orfeônico nas escolas é estético pedagógico na sua proposta geral explícita e político no modelo autoritário de que se faz instrumento semiimplícito entremostrandose num curioso escamoteio Em 1931 ocorre a primeira manifestação coral em São Paulo sob os auspícios do interventor João Alberto com um imponente conjunto de 12000 vozes regidas por VillaLobos Hino Nacional O certame de canto pioneiro na América do Sul é propagado por meio de prospectos e folhetos exortativos lançados por aviões e distribuídos largamente nas escolas academias e em todos os centros de estudo e trabalho da juventude penetrando em todas as camadas sociais com qualidade estritamente brasileira Luiz Heitor O ineditismo da manifestação a mobilização da massa infantil interessando milhares de famílias e exigindo providências especi ais de transporte que se faziam notar e alteravam o tráfego normal da metrópole tiveram o resultado que ele VillaLobos comandando a massa e envergando um casaco de cores berrantes visava atrair para a música para a importância de cantar a atenção de multidões Ninguém pôde deixar de tomar conhecimento des sa proeza e o telégrafo levou a notícia a todo o Brasil4 Em 32 instalase no Distrito Federal um curso de Pedagogia da Música e Canto Orfeônico que arregimenta artistas de renome no cenário brasileiro e professores da Escola Nacional da Universidade do Brasil para a formação de um Orfeão dos Professores constituído de 250 figuras que se tornará uma espécie de núcleo piloto disseminador do programa de implantação do ensino do canto orfeônico nas escolas No livro de inscrição do Orfeão RoquettePinto escreveu como presidente ho norário PROMETO DE CORAÇÃO SERVIR A ARTE PARA QUE O BRASIL POSSA NA DISCIPLINA TRABALHAR CANTANDO 3 A principal fonte aqui citada é o texto Educação Musical de VillaLobos relatório com pleto sobre o programa de implantação nacional do ensino de canto orfeônico nas escolas publicado no Boletim LatinoAmericano de Música VI VI1 Rio de Janeiro 1946 Salvo re ferência outra em nota as citadas aqui usadas são desse texto 4 Luiz Heitor 150 Anos de Música no Brasil p 269 37 Essa legenda admirável pode bem sintetizar o espírito com que é praticado o canto orfeônico no Brasil e simboliza a disciplina e a força espiritual de que virão impreg nadas as futuras gerações brasileiras comenta o compositor E de fato tratase de uma sigla ideológica que fará carreira já na sua capacida de condensar o trinômio ufanismonacionalismotrabalhismo5 inflado de música Dez anos mais tarde em 1942 na maré da música popular imbuída também no andamento cívico e empenhada em pregar a devoção ao trabalho e contra a ma landragem João de Barro e Alcir Pires Vermelho faziam o samba Brasil usina do mundo Vibram sonoros clarins de quebrada em quebrada anunciando o raiar de uma nova alvorada Dias de luz hão de ser sempre os teus Brasil usina do mundo nova oficina de Deus As águas moveram as rodas descendo da serra As forjas lançaram fagulhas vermelhas ao léu Os rolos de fumo subiram do seio da terra Toldando o sol tingindo o céu E junto às fornalhas gigantes o malho empunhando Homens de mãos calejadas trabalham cantando Ouve esta voz que o destino da pátria bendiz É a voz do Brasil que trabalha cantando feliz6 Zelava pelo Orfeão e pelo curso que formava os professores de canto uma Su perintendência de Educação Musical e Artística criada com o fim de cultivar e des envolver o estudo de música nas escolas primárias e nas de ensino secundário e profissional assim como nos demais departamentos da Municipalidade O ensino de canto orfeônico tornavase obrigatório por decreto Mais tarde em 1942 criase o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico ro busta maturação desse movimento de cultura e civismo que aspira então a um caráter permanente Os professores aí formados sentinelas avançadas e conti nuadoras desse movimento de autêntico nacionalismo musical 5 Segundo Antonio Pedro Samba da Legitimidade tese de mestrado mimeo São Paulo USP 1980 6 Citado por Antonio Pedro op cit90 38 Em 1933 o governo federal dirige um apelo aos interventores e diretores de ins trução de todos os Estados para que se interessem pelo programa apresentando se ao mesmo tempo uma exposição das necessidades e vantagens que poderiam advir para a unidade nacional da prática coletiva do canto orfeônico calcada numa orientação didática uniforme A idéia foi bem recebida em vários Estados que en viaram professores para cursos especializados e pequenos estágios básicos no Rio de Janeiro Entre esses anos VillaLobos está empenhado em criar uma metodologia de transmissão da prática coral em formar um repertório adequado ao caso nacio nal em constituir o corpo de educadores especializados etc Os cursos de pro fessores sucedemse ao longo da década de 30 Para o programa do canto orfeônico o compositor escreveu os seis volumes do Guia Prático que contêm 1 canções infantis populares 2 hinos nacionais e esco lares canções patrióticas e hinos estrangeiros 3 canções escolares nacionais e estrangeiras 4 temas ameríndios do Brasil e do resto da América melodias afro brasileiras e do folclore universal 5 peças do repertório universal 6 repertório de música erudita Luiz Heitor Foi VillaLobos quem pôs em moda o canto coletivo fundando o seu Orfeão de Professores de maravilhosa eficiência técnica e produzindo enorme série de composições em que os efeitos obtidos com a voz humana atingem limites ex tremos que só a incomparável maestria desse homem de gênio poderia conceber7 A constituição do orfeão de professores mais a implantação do canto coral nas escolas permite que sistematicamente se reúnam milhares de estudantes em ma nifestações cívicas demonstrações anuais de caráter cívico para comemorar as grandes datas da Pátria como a da Bandeira da Independência do Panamerica nismo etc Pela imponência do espetáculo e pela repercussão que tiveram na alma popular VillaLobos destaca ao rememorar aquela frase uma apresentação de 30000 vozes em 1935 a celebração da sua Missa de São Sebastião pelo Carde al Leme em 1936 e a apresentação de 40000 vozes no estádio do Vasco da Gama em 1940 Esses programas cívicos são permeados por outros de cunho cultural quando se apresenta em primeira audição no Brasil a Missa Papae Marce lli de Palestrina a Missa Solemnis de Beethoven o grande concerto dedicado às classes operárias o Dia da Música em louvor de Santa Cecília com 2000 instru mentistas civis e militares mais 10000 vozes de conjuntos orfeônicos o oratório Vidapura do próprio VillaLobos Em 1942 temos no pátio do Colégio Militar um exemplo de colaboração entre o Canto Orfeônico e a Educação Física quando alunos de várias escolas do Rio de Ja neiro entoam um cânone a seis vozes simultaneamente formando as letras da pa lavra BRASIL em evoluções marciais Outras decorrências da ação socializadora do programa reuniões de confrater nização de alunos de escolas municipais e federais organização de concursos para avaliar o aproveitamento questionários enviados às famílias dos alunos nos quais foram solicitadas as suas impressões sobre a influência do canto orfeônico nos há bitos e inclinações dos mesmos com a finalidade de estender ao próprio lar da criança o interesse pelo canto orfeônico e apurar de maneira sensível as conveni ências dele decorrentes 7 Luiz Heitor Música e Músicos do Brasil p 382 39 Quando historia sua ligação com o projeto do canto orfeônico VillaLobos coloca na origem uma visão da modernidade como anarquia e rebaixamento Percebemos que o malestar dos intelectuais e dos artistas não era apenas fruto de um desequilíbrio político e social mas que se originava em grande parte de uma crescente materialidade das multidões desinteressadas de qualquer espécie de cultura e divorciadas da grande e verdadeira arte musical Em outro momento assinala que no atual panorama universal da música artís tica vem se notando um vácuo inexplicável de confusão e malentendidos entre os homens desde a grande guerra Vai daí afirmar que esses males que tam bém afetam a produção musical as composições são academicamente experi mentais em vez de serem criadoramente robustas têm uma única causa os nossos métodos de ensino Em suma o impacto da modernidade capitalista a perda da aura da obra de arte Que fim terão a Alma Humana os sonhadores o mistério o amor a pátria a arte e finalmente a Música a emergência das massas convocadas para o consumo dos chamados meiosdemassa correspondem a uma falha pedagógica a ser retificada pelo empenho conjunto do artista e do estadista Assim é que no governo de Getúlio Vargas além de promover uma nova estrutura política social e econômica os atos administrativos passaram a ser con cebidos num plano de grande espiritualidade analisando a gênese dos fenômenos sociais para poder chegar às sínteses construtoras Dando especial atenção à ju ventude começou a dedicar à infância e à adolescência todo o interesse que elas merecem como alicerces da nacionalidade E um dos elementos de que o gover no lançou mão para conseguir a sua finalidade no sentido da unidade espiritual brasileira foi a integração definitiva da cultura musical e do ensino do canto coleti vo no plano educacional da Escola Renovada Em suma comemorase o fato de que na medida em que o Estado tem um projeto políticosocialeconômicocultural apertando os elos entre os níveis o ar tista tem um lugar ele é de novo admitido na ordem social deixando de ser um mero apêndice a música deixaria de ser um passatempo da moda entre os se nhores feudais hoje o é entre os burgueses e o artista com raras exceções um galante e privilegiado escravo dos senhores porque escreve ou executa notas musi cais o artista não é nenhum palhaço que diverte gratuitamente o espectador e sim um ente predestinado extremamente útil à humanidade e que tem o direito de viver da subsistência do seu trabalho independente de uma espécie de esmola que as elites snobs supõem dar quando lhe freqüentam Nesse quadro a arte é concebida de maneira pragmática terapêutica dina mogênica medicinal o artista é um pesquisador de laboratório que tira conclusões a serem aplicadas em pequenas doses à mocidade brasileira de modo a trazer proveitosos resultados e as melhores esperanças para a formação de uma suave disciplina das nossas gerações futuras através do veículo privilegiado do canto orfeônico Por isso mesmo é que se pede não confundir o objetivo cívico educacional deste com outras exibições de ordem puramente estética que não visam senão o prazer imediato da arte desinteressada8 8 Dinamogenia terapêutica musical e arte interessada são termos aqui tomados de empréstimo pela pedagogia do DIP aos Mário de Andrade 40 É difícil ou insuficiente buscar o sentido dessa empreitada músicopedagógica de reação à crise de valores da modernidade apenas através do enunciado desses textos de propaganda assinados por VillaLobos Pareceme que eles exibem e claramente uma faceta certamente a preponderante do programa educacional sob Vargas a pedagogia autoritária Há quem considere no entanto que a ação orfeônica de VillaLobos não deveria ser encarada pela faceta autoritária com que se apresenta nos numerosos relatórios e textos de propaganda do DIP getulista mas como representante de uma orienta ção humanista tradicional que marcava presença nos primeiros anos do governo Vargas através da ação de Anísio Teixeira na Diretoria de Instrução Municipal do Rio de Janeiro e pelos estímulos modernizantes de Capanema que engajou tantos intelectuais brasileiros no período Foi através de Anísio Teixeira justamente que se criou a Superintendência de Educação Musical e Artística a partir da qual Villa Lobos passou a desenvolver o programa do canto orfeônico Já enfatizei o caráter platônico desse movimento musical como tentativa de responder à emergência de uma cultura capitalista industrial dissolvente da cultura letrada clássica todavia quase inexistente no Brasil como instauradora de um padrão educacional abran gente e daí a presença da música como elemento decisivo nessa perspectiva para uma estratégia de elevação da cultura como elemento mediador entre o po pular e o erudito O encarecimento desse aspecto humanista tradicional faz com que alguns vejam na ação de VillaLobos um vigoroso trabalho de educação musical popular sem precedentes na nossa história frente ao qual o aspecto propagandísti co e cívico não mereceria maior importância relegado ao plano de um mero expe diente de circunstância externo à própria pedagogia de interesse puramente tático pra a obtenção de respaldo institucional indispensável à consecução de uma ação musical de tais proporções Adhemar Nóbrega por exemplo desconhece nos textos do DIP a dicção villalobística mais associativa e delirante que escolasticamente articulada a observação é minha e praticamente considera que esses textos mesmo que assinados pelo compositor não deveriam ser creditados a VillaLobos Acho que a possível verdade contida nessas ponderações deveria levar não à cômoda distensão do problema na mera suspensão da aparência mas ao redobro de sua complicação Antes de mais nada seria preciso considerar a concepção pedagógica e a visão do popular explicitada em algumas falas de VillaLobos em entrevista à imprensa O compositor faz uma bem sintomática analogia entre a mentalidade ingênua es pontânea e primária do povo e a mentalidade infantil igualmente ingênua e pri mitiva Povo criança e índio se eqüivalem no sentido de que precisariam ser cate quizados pela cultura para se converterem de massa inculta e desordenada em povo adulto ordeiro e civilizado Numa entrevista para o jornal A Noite em 8738 VillaLobos afirmava O maior homem da História do Brasil foi José de Anchieta precursor da educação nacional Ele foi o nosso primeiro instrumento de cultura lidando com gerações bárbaras Quem considerar o estado em que ainda permanece a educação popular no Brasil pode compreender o vulto de sua obra e a importância de seus sacrifícios para assentar as bases de uma civilização Anchieta não se limitou aos objetivos imediatos procurando despertar os sentimentos artísticos dos índios através da música e do teatro Só uma visão genial apreenderia de tão longe o privilégio des ses processos de verdadeira cultura realizando nas selvas a mais profunda dignifi cação do homem 41 Na mesma reportagem que ostenta a declaração acima se lê VillaLobos submete milhares de crianças em tumulto à sua mímica magistral transportandoas solidariamente para os êxtases maravilhosos para as abstra ções transcendentes O olhar imperioso domina as cabecinhas irrequietas de re pente rendidas à magia irresistível9 VillaLobos tem obsessão pela catequese e pela figura de Anchieta em quem claramente se projeta A imagem da catequese figura uma relação com o povo assim como a imagem das crianças rendidas ao canto orfeônico Índio e criança são figuras de um projeto de conversão do povo ao culto da nação Catequese uso educativo do folclore canto orfeônico são aspectos de uma mesma representação O canto coral alimentase antes de mais nada do folclore infantil busca seu material naquilo que é familiar isto é os brinquedos ritmados as marchas as cantigas de ninar ou as canções de roda O folclore é hoje considerado uma disci plina fundamental para a educação da infância e para a cultura de um povo Porque nenhuma outra arte exerce sobre as camadas populares uma influência tão podero sa quanto a música como também nenhuma outra arte extrai do povo maior soma de elementos de que necessita como matériaprima Através do canto coral se quer levar a população ao transe cívico composto de êxtase e ascese identificação fervorosa e introjeção da autoridade A música tem de ao mesmo tempo desencadear forças afetivas e represálas detonálas e contêlas liberálas e dirigilas Em 1937 VillaLobos fazia constar num livro oficial sobre o programa de ensino de música mas escolas da Prefeitura da Capital Fede ral As festas e concentrações escolares com exceção das imprescindíveis dentro da orientação do programa de ensino de música traçado e previstas de acordo com a organização de cada escola só poderão acarretar prejuízo não somente quanto à aplicação normal do ensino de música mas também a outras disciplinas O projeto do canto orfeônico quer fazer com que o corpo social se exprima des de que não faça valer seus direitos mas que se submeta ao culto e às ordens de um chefe O fascismo queria organizar as massas sem mexer no regime de propriedade permitindo às massas não certamente valer seus direitos mas exprimilos As massas têm o direito de exigir uma transformação do regime de propriedade o fascismo quer permitirlhes que se exprimam porém conservando o regime O re sultado é que ele tende naturalmente a uma estetização da vida política Walter Benjamin10 9 Recortes de Mário de Andrade IEBUSP 10 A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução In Os Pensadores XLVIII São Paulo Abril Cultural 197533 42 Aqui menos do que aplicar a palavrafetiche fascismo interessa compreender a passagem que se faz na música de VillaLobos no momento em que ela busca inge nuamente e inconscientemente creio eu fazerse instrumento de uma estetização da política sacrificando no altar da deusa Disciplina meio através do qual como já vimos o músico pensa ganhar uma posição central na vida social Para tanto con verte o mitopoético no campo de energias caóticodomadas em fator de legitimação do Estado através de um procedimento que lembra em tudo a concisa formulação de um crítico musical nazista em 1938 Não se compreende a vida musical da Alemanha contemporânea se não se a consi dera do pontodevista surgido da reunião e da unificação dos três conceitos Povo Estado e Arte porque um Estado sem seu povo um povo sem sua arte são tão pouco concebíveis como uma arte que existisse por si só e não pudesse elevarse até converterse em expressão do pensamento popular Porque o Estado que incor pora a vontade de um povo suas emoções e seus interesses não é por acaso um organismo cuja harmoniosa conjunção alcança a categoria de obra de arte11 Resgatar a aura perdida pela arte na sociedade de massas através do modelo da arte estatal que por sua vez estetiza o Estado é o vértice do fascismo dizia Walter Benjamim no seu famoso ensaio A obra de arte na época de suas técnicas de re produção Pois é isso mesmo que VillaLobos oferecia já antes da revolução de 30 apro veitando o sortilégio do canto coral como um fator de civismo e de cultura fa zer do Estado Nacional uma verdadeira obra de arte Em troca clamava por um go vernante capaz de dar função orgânica ao músico e de consumar aquela delicada operação que sua obra já realizava simbolicamente despertar para o trabalho vale dizer para a acumulação as poderosas energias ociosas do País e ao mesmo tem po dominar o tumulto potencial nelas inscrito Tarefa para um verdadeiro orques trador da sociedade dividida orquestração já magnificamente mapeada na parti tura da série dos Choros a ser arrematada socialmente pela prática generalizada do canto coral Nesse sentido o músico e o político se correspondem para destrinchar a parti tura política da nação o chefe teria que ser a seu modo um verdadeiro maestro e o maestro para conduzir a harmonia social regendo o conflito teria de constituirse num verdadeiro chefe seguese todo o culto da disciplina e da hierarquia que acompanha o programa do canto orfeônico tomando como modelo a corporação coral rendida ao domínio do condutor culto este insistentemente frisado a cada momento No entanto a combinação desses dois batutas não sufoca a voz do samba urba no que vem participar ativamente desse programa Durante o Estado Novo o samba que tradicionalmente sustentava a apologia da boêmia e do ócio malandro dialoga ambiguamente com o poder aquiescendo muitas vezes no elogio da ordem e do trabalho Ganhando nessa época o tom eloqüente do sambaexaltação ele proclama o Brasil como usina do mundo faiscante forja de aço do futuro segundo um ethos heróico pouco comum em sua história E é somente esse clima que torna passível de sentido essa pérola do pleonasmo e da tautologia incrustada na apote ose de Ari Barroso entendido como uma enorme oficina que trabalha cantando fe liz esse coqueiro que dá coco é finalmente o Brasil 11 Dossier Música y Política Barcelona Editorial Anagrama 197453 43 Nem bem caiu a ditadura no entanto e em dezembro de 1945 saía o samba de Almeidinha grande sucesso no carnaval do ano seguinte Eu trabalhei como um louco Até fiz calo na mão O meu patrão ficou rico E eu pobre sem um tos tão Foi por isso que agora Eu mudei de opinião Trabalhar eu não eu não Trabalhar eu não eu não Trabalhar eu não eu não12 12 Citado por Antônio Pedro op cit101 44 PASSEI A NOITE PROCURANDO TU o tema desta pesquisa é um convite as aves que aqui gorjeiam não piam ali na primeira esquina cada sabiá sabido su bido no seu galho de gaiola descendo o rio canta canta canta brasil e diz que que há com seu peru em cismar sozinho passei a noite procurando tu mi nha ilha do exílio minha terra é uma presilha que liga o lado de cá do lado com o lado de lá do lá do lado de lá sou um trabalhador intelectual procurando um plug e não permita o autor e as autoridades constituídas que desliguem a força sem eu ter encontrado meu ligar no curtocircuito da alteridade de classes nem sem ter desfrutado os fervores que sais eu não encontro por cá e assim tomado pelo diabo da representação contorciase malabarístico com um cobertor menor que o corpo onde ora descobria a cabeça ora descobria os pés a cabeça era um palco vazio de povo e vazio de intelectuais ficava um risco no meio que podia ser visto da lua um mar vermelho fervendo um frevo um caldeirão in dustrial de açúcar carnaval