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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO GUSTAVO MANOEL DA SILVA GOMES SABERES E NARRATIVAS DOCENTES MEMÓRIAS E EXPERIÊNCIAS DO ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRO BRASILEIRA NO SERTÃO ALAGOANO MaceióAL 2020 2 GUSTAVO MANOEL DA SILVA GOMES SABERES E NARRATIVAS DOCENTES MEMÓRIAS E EXPERIÊNCIAS DO ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRO BRASILEIRA NO SERTÃO ALAGOANO Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas como requisito para obtenção do grau de Doutor em Educação Orientadora Profa Dra Laura Cristina Vieira Pizzi Coorientador Prof Dr Anderson Alencar Menezes MaceióAL 2020 3 FICHA CATALOGRÁFICA AQUI UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO PRÓREITORIA DE PESQUISA E PÓSGRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL DA CULTURA REGIONAL A CULTURA AFROBRASILEIRA COMO DISCURSIVIDADE histórias e poderes de um conceito DISSERTAÇÃO DE MESTRADO ELABORADA POR GUSTAVO MANOEL DA SILVA GOMES APROVADA EM 08022013 BANCA EXAMINADORA Profª Drª Lúcia Falcão Barbosa Orientadora Programa de PósGraduação em História UFRPE Profº Drº Wellington Barbosa da Silva Programa de PósGraduação em História UFRPE Profº Drº Moisés de Melo Santana Departamento de Educação UFRPE 5 AGRADECIMENTOS Agradeço com grande satisfação e alegria a todas as pessoas que colaboraram para a efetivação desta tese Às professoras e professores da educação básica sertaneja profissionais das redes municipais de ensino de Delmiro Gouveia Água Branca AL e Canindé do São Francisco SE e da rede estadual de ensino de Alagoas que foram sujeitosparceiros relevantes nesse exercício de reflexivo Obrigado pela confiança depositada neste pesquisador e pela partilha de vossas histórias de vida tão íntimas ricas e densas com as quais puder aprender sobre muitas coisas distintas complexas e importantes Agradeço também a orientação atenta e esmerada da Profa Dra Laura Cristina Vieira Pizzi e a coorientação do Prof Dr Anderson Alencar Menezes docentes do Programa de Pós Graduação em Educação PPGEUFAL reconhecidos pela alta respeitabilidade intelectual Com eles aprendi muito a fim de alcançar refinamento conceitual rigor metodológico e análises críticas perspicazes e sensíveis Da mesma forma registro minha satisfação em ter como examinadores da banca de qualificação e defesa as professoras Dras Martha Rosa Figueira Queiroz UFRB e Roseane Maria de Amorim UFPBUFPE bem como o Prof Dr Gian Carlo de Melo Silva UFALUFRPE Profissionais que a partir de diferentes perspectivas ampliaram os repertórios reflexivos para esse trabalho partilhando provocações horizontes e conexões sempre muito desafiadoras e produtivas Registro também a gratidão ao colegiado de História da UFAL professores técnicos e estudantes por terem aprovado o meu afastamento temporário das atividades docentes para que eu pudesse me dedicar integralmente aos estudos de doutoramento Sem a compreensão sensibilidade e compromisso dos pares em oportunizar processos de formação profissional para melhoria da universidade pública tudo seria bem mais difícil e menos enriquecedor Agradeço também às instâncias oficiais da educação pública do sertão representados aqui pela equipe da 11ª Gerência Regional de Ensino GERESEEDAL e da coordenação de Ciências Humanas da SEMEDDelmiro Gouveia que muito me ajudaram autorizando as minhas pesquisas por registros e fontes escritas em seus arquivos Também agradeço às comunidades de cada escola pública da região que visitei e cujos professores aceitaram fazer parte dessa investigação Agradeço com muito afeto aos meus antigos orientandos pessoas que se transformaram em amigas e amigos pessoais e que me deram muito apoio atenção e carinho Ellen Santos 6 Ryclesia Carvalho Raylane Carvalho Lucas Eduardo Wilton Cordeiro Milena Oliveira Agradeço também ao meu marido Jefferson Júnior do Nascimento Lima pela presença paciência e companheirismo de sempre Um agradecimento especial é direcionado a todas e todos integrantes do Abí Axé Egbé grupo que fundei em 2013 e que articula ciência arte educação e militância de um jeito tão saboroso que já virou uma grande família Obrigado por iluminar embelezar ritmar e ensinar tantas coisas preciosas e tornar meus dias mais felizes ao som dos tambores Um agradecimento mais do que especial vai às mulheres mais importantes da minha vida minha mãe Edneide Borges da Silva e minha avó Maria dos Anjos Marinho Lopes Elas são a minha base Em meio às agruras de nossas vidas periféricas e nordestinas frente ao patriarcado e ao racismo elas formaram a estrutura resistente e esperançosa que aprendi a ser A elas dedico a conquista desse doutorado Valeu a pena enfrentar todos aqueles desafios e dificuldades Esse título é mais delas do que meu Gratidão aos meus guias e orixás Ao meu pai Logun Edé e minha mãe Oyá A todas as forças invisíveis que me protegem guardam e me potencializam imensamente Muito obrigado por todo esse axé 7 RESUMO Com a sanção da Lei nº 106392003 intensificaramse os debates políticos sobre a educação antirracista como instrumento na construção de uma sociedade equitativa Muitas pesquisas no âmbito da educação para as relações étnicoraciais têm problematizado ações e temáticas desafiadoras ao cumprimento dessa legislação Assim esta tese partiu da hipótese de que os saberes docentes se configuram como mecanismos que interferem na normatização do ensino escolar ao alterar expectativas e recriar realidades Diante dessa problemática nossa pesquisa objetivou analisar a constituição dos saberes de professoresas do sertão de Alagoas sobre a cultura afrobrasileira relacionandoos às suas respectivas práticas de ensino de História e por meio de uma abordagem pósestruturalista compreender como tais saberes foram construídos e subjetivados ao longo das histórias de vida desses profissionais Para isso articulamos pressupostos metodológicos que realizam uma genealogia do eu ROSE 2001 por meio da mediação pedagógica da experiência de si LARROSA 2011 Propomos aos sujeitos participantes da pesquisa alguns mecanismos autocríticos e autorregulatórios que os estimulassem a se observarem narrarem refletirem avaliarem e a partir disso criar condições de transformaremse a partir da provocação sobre quem eles se tornaram perante o critério étnico e suas formas de lidar com a cultura negra Ao reconstruir e narrar memórias os professores apresentam como o tema cultura afro emergiu em suas vidas pessoais e profissionais Adotamos técnicas de entrevistas da história oral ALBERTI 2013 e análise do discurso de orientação foucaultiana para o tratamento dos dados empíricos coletados no campo FOUCAULT 2012 2014 Com isso identificamos não apenas os distintos artefatos relações e contextos que têm dificultado a efetivação da Lei nº 106392003 no ensino de História mas também as possibilidades de engajamento e buscas por efetivas ações pedagógicas antirracistas por parte desses docentes A partir da análise dos dados embasamonos teoricamente na epistemologia das práticas profissionais TARDIF 2002 pela qual entendemos que os saberes docentes são construções complexas abertas múltiplas e orientadas produzidas e transformadas ao longo do tempo pela prática de ensino cotidiana Percebemos como os saberes docentes transformam a inserção da temática da cultura afrobrasileira nos currículos escolares por meio de um entrecruzamento complexo tenso e disputado de discursos científicos midiáticos políticos normativos e morais que se articulam na prática do ensino de História operando seleções justificativas interdições celebrações dominações e exclusões entre outras formas de exercício do poder que se valem de critérios étnicos A partir desse diagnóstico categorizamos três tipos de saberes práticos intermitentes desestabilizadores e militantes que mais do que ações isoladas demonstram que paulatinamente há deslocamentos e realinhamentos políticos teóricos e metodológicos que estão sendo realizados no interior de uma nova cultura profissional da docência considerandose os critérios étnicoraciais PALAVRASCHAVE Ensino de História Cultura Afrobrasileira Saberes Docentes Histórias de Vida Sertão Alagoano 8 ABSTRACT By the sanction of law 106392003 political debates on antiracist education as an instrument in building an equitable society have been intensified Much research on Education for ethno racial relations has problematized challenging actions and themes to comply with this legislation Thus this thesis started from the hypothesis that the teaching knowledge is configured as a mechanism that interfere in the standardization of school education by changing expectations and recreating realities Facing this problematic context our research aimed to analyze the constitution of teachers knowledge on AfroBrazilian culture in the sertao of AlagoasBrazil relating them to their respective History teaching practices and through a poststructuralist approach understanding how such knowledge had been constructed and subjectivated throughout these professionals life stories For this we articulate methodological assumptions that carry out a genealogy of the I ROSE 2001 through pedagogical mediation of the experience of the self LARROSA 2011 We proposed to these research individuals some selfcritical and selfregulatory mechanisms that stimulated selfassessment by narrating reflecting assessing themselves so as to create conditions to transform themselves from the identity constitution concerning ethnic criterion and ways of dealing with black culture While reconstructing and narrating memories teachers presented how the African culture theme emerged in their personal and professional lives We adopted oral interview techniques ALBERTI 2013 and the Foucaultianoriented discourse analysis FOUCAULT 2012 2014 So we have identified not only different artifacts relationships and contexts that have hindered the implementation of law 106392003 in History teaching but also possibilities for engagement and searches for effective antiracist pedagogical actions by these teachers From data analysis we were theoretically based on the epistemology of professional practices TARDIF 2002 in which teaching knowledge has complex open multiple constructions and also oriented produced and transformed by everyday teaching practice We perceived that teaching knowledge transforms the insertion of the AfricanBrazilian culture theme in school curricula through a complex tense and disputed intersection of scientific media political normative and moral discourses that are articulated in the practice of History teaching This operates selections justifications interdictions celebrations dominations and exclusions among other forms of exercising power that make use of ethnic criteria From this diagnosis we categorize three types of practical knowledge intermittent destabilizing and militant which more than isolated actions demonstrate that gradually there are political theoretical and methodological shifts and realignments that have being carried out within a new culture teaching professional considering ethnoracial criteria KEYWORDS History Teaching AfricanBrazilian Culture Teaching Knowledge Life Narratives Sertao in Alagoas 9 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABPN Associação Brasileira de Pesquisadores Negros BNCC Base Nacional Curricular Comum CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CHESF Companhia Hidro Elétrica do São Francisco CNE Conselho Nacional de Educação COPENE Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros CPDOC Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil DCNERER Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais ERER Educação para as Relações ÉtnicoRaciais FGV Fundação Getúlio Vargas FNB Frente Negra Brasileira GERE Gerência Regional de Ensino HD Hard Disk IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação LFPA Linha Férrea Paulo Afonso LFPA MEC Ministério da Educação MNU Movimento Negro Unificado MNUCDR Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial NEAB Núcleo de Estudos AfroBrasileiros NEABI Núcleo de Estudos AfroBrasileiro e Indígena NEHO Núcleo de Estudos em História Oral NUDES Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Diversidade e Educação do Sertão PCNs Parâmetros Curriculares Nacionais PIBID Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência PT Partido dos Trabalhadores REUNI Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência SECAD Secretaria de Educação Continuada Alfabetização e Diversidade SEED Secretaria Estadual de Educação de Alagoas SEMED Secretaria Municipal de Educação de Delmiro Gouveia SEPPIR Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial TCC Trabalho de Conclusão de Curso TEN Teatro Experimental Negro UFAL Universidade Federal de Alagoas UFMG Universidade Federal de Minas Gerais UFSCar Universidade Federal de São Carlos UnB Universidade de Brasília UNEB Universidade do Estado da Bahia UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância USP Universidade de São Paulo 10 SUMÁRIO 1 PESQUISAR ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFROBRASILEIRA REVISITANDO UM PROBLEMA HISTÓRICO 12 11 Redefinindo uma pesquisa 22 12 Campo fontes e abordagens 25 2 A CULTURA AFROBRASILEIRA NA CONTEMPORANEIDADE DILEMAS NA PRODUÇÃO DE UM CONCEITO 35 21 A cultura afrobrasileira no discurso científico 39 211 A formação da cultura afrobrasileira nas novas metanarrativas históricas 44 212 A renovação da cultura afrobrasileira nas novas metanarrativas históricas 51 22 A cultura afrobrasileira no discurso do movimento social negro 61 221 O caráter pedagógico do movimento negro sobre a cultura afrobrasileira um olhar sobre a experiência alagoana 69 23 O conceito de cultura afrobrasileira hoje entre representações dilemas e implicações políticas 76 3 A INSERÇÃO DA CULTURA AFROBRASILEIRA NO CURRÍCULO DE HISTÓRIA DISPUTAS E NORMAS PARA A PRODUÇÃO DE SABERES E SUBJETIVIDADES 81 31 O currículo pósestruturalista discurso poder e produção de subjetividades 84 311 O currículo étnicoracial entre lutas regulações e resistências 88 32 Notas históricas sobre o currículo de História e relações étnicosraciais 93 33 O currículo a cultura afrobrasileira e os saberes docentes 104 34 A positividade da lei entre estratégias e armadilhas 107 4 METODOLOGIA NARRATIVAS DE HISTÓRIAS DE VIDA DOCENTES 112 41 Entre as técnicas do eu e a experiência de si as histórias de vida e a genealogia das subjetividades 116 42 A análise do discurso na análise dos dados 129 43 Os dispositivos da pesquisa memórias e história oral 135 5 CENÁRIOS EXPERIÊNCIAS E SUBJETIVAÇÕES RACIALIZADAS 151 51 De Pedra a Delmiro Gouveia aspectos da formação histórica de um município 151 52 Sobre as formas e os sentidos do lugar as relações étnicoraciais no cotidiano sertanejo 156 53 A educação escolar formal e o ensino de história sobre a invisibilidade negra 171 54 As relações dos sujeitos com a cultura afrobrasileira o caso das religiões de matriz africana no sertão 178 55 As relações étnicoraciais nas histórias de vida dos sertanejos ambiguidades conveniências e reproduções do racismo 187 6 FORMAÇÃO E ATUAÇÃO PROFISSIONAL SABERES E PRÁTICAS DE ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFROBRASILEIRA NO SERTÃO ALAGOANO 195 61 A formação profissional 195 62 Os saberes e as práticas de ensino 204 63 Os saberes da prática docente sobre o ensino de história e cultura afrobrasileira 222 11 7 A DESPEITO DO FIM UM CONVITE A NOVOS RECOMEÇOS O POTENCIAL DOS SABERES E PRÁTICAS NA CONSTRUÇÃO DE TEORIZAÇÕES PEDAGÓGICAS 232 71 Quais as regularidades de significados que as narrativas docentes produzem 235 72 O que podemos aprender do ponto de vista de professores de História sertanejos 243 REFERÊNCIAS 246 APÊNDICE 259 Apêndice A Roteiro de Entrevista 260 12 1 PESQUISAR O ENSINO DE HISTÓRIA E A CULTURA AFROBRASILEIRA REVISITANDO UM PROBLEMA HISTÓRICO Pensar a educação significa elaborar projetos políticos mais amplos de sociedade Esta concepção nos faz refletir sobre a historicidade que constitui as lutas em torno de diferentes projetos e processos pedagógicos Segundo Foucault 2011 com o advento da Modernidade instrumentalizouse a atividade educativa enquanto tecnologia importante nos processos políticos de construção de identidades sociais de políticas econômicas e de projetos culturais conforme a lógica de uma sociedade disciplinar Desde o século XVIII na Europa ocidental a partir das propostas iluministas de racionalidade a promessa de emancipação humana pela racionalidade foi paulatinamente substituída pela instrumentalização técnica da razão que burocratizando o Estado capitalista criou e legitimou formas de dominação através de saberes poderes e instituições que redefiniram a cultura ocidental em uma perspectiva universalista O autor afirma que este processo se deu através do disciplinamento dos seres humanos docilizando os seus corpos moldando suas subjetividades e assim distribuindoos entre diferentes lugares a serem ocupados na engrenagem social Desta forma a modernidade ocidental arquitetou seu projeto de sociedade criando seus aparatos de dominação e ordenamento sistêmico da vida estabelecendo hierarquias e condicionando as relações cotidianas de poder Dessa forma passou a tornar os indivíduos úteis à lógica hierárquica vigiada e reprodutiva das sociedades industriais Conforme Nilma Lino Gomes 2017 a racionalidade demonstrativa forjada na modernidade construiu distinções e discrepâncias em lógica binária enquanto forma de organizar e conhecer o mundo Esses princípios ganharam novas formas e conteúdo a partir das articulações entre as ciências modernas e o Estado liberal produzindo as verdades e os poderes de que precisavam os grupos que dominavam os campos da ciência da política da economia do direito etc Essas regulações da vida social se deram também a partir de uma perspectiva racialista Na obra As palavras e as coisas Foucault 2007 realiza uma arqueologia dessas ciências identificando as mudanças na produção do conhecimento na cultura ocidental entre os séculos XVIII e XIX Ao fazer isso o autor analisa a gênese e os fundamentos filosóficos das emergentes ciências humanas Com isso ele mostra como ao constituírem o homem como objeto de estudos elas também construíram a si mesmas na história do nosso saber Essa análise arqueológica que Foucault empreendeu nos convida a desconstruir de forma problematizadora o processo histórico pelo qual as ciências humanas se tornaram possíveis 13 Segundo Foucault 2007 durante o século XVIII o conhecimento era construído por meio de representações que definiam identidades e estabeleciam enunciados verdadeiros sobre a natureza as características os conteúdos e as formas de cada objeto de estudo Assim cada conhecimento era codificado e organizado hierarquicamente de modo linear Tal desenvolvimento foi fundamental para o início da era moderna enquanto momento histórico construído sobre numerosas positividades que passavam a se preocupar em delimitar também a consciência da historicidade do homem e de sua cultura a última positividade do real o esgotamento fenomenológico das coisas em si o estabelecimento das verdades últimas sobre a humanidade Esse nível de compreensão não seria mais alcançável por teorizações contemplativas pautadas em representações mas em experimentos empíricos e comprovações Foi justamente durante esse período de transição do século XVIII para o XIX que a epistemologia se transformou e o homem se constituiu como um duplo empírico transcendental fundamento e tema sujeito e objeto do saber Isso requereu uma série de adaptações para que esse duplo pudesse ser analisado a partir de sua finitude materialidade critérios métodos e objetivos tiveram de ser repensados e adequados para analisar o ser humano Das abstrações das ciências econômicas passouse a pensar não o homem como animal que desenvolve trabalhos e produz sistemas econômicos mas o homem como representante de suas necessidades das ciências da linguagem passouse a pensar não as estruturas morfossintáticas da língua de modo estanque mas uma linguagem construída por aquele Tais estudos científicos emergiram afirmandose como capazes de reconduzir a consciência do homem às suas condições reais Dessa forma a análise da história natural se tornou biologia a análise das riquezas se tornou economia política e a análise da gramática geral se tornou filologia e destas surgiram as ciências psicológicas as ciências sociais e as ciências da linguagem Para se estabeleceram as ciências humanas definiram com rigor os conceitos métodos normas regras e sistemas que definiam cada objeto de estudo As ciências humanas se estabeleceram como ethos racional legítimo que serviu de esteio para a modernidade conseguir conhecer e dominar esse ser antes não inventado não objetivado o homem Esse feito na história do pensamento ocidental embora muito recente redefiniria os projetos ocidentais de regimes e relações políticas econômicas sociais e culturais Conhecer para controlar era ainda um dos pressupostos das ciências modernas inclusive das ciências humanas Destarte para Foucault 2007 essas ciências são mais do que saberes elas são práticas e instituições que instalaram novas relações assimétricas de poder É importante refletir sobre esse processo pois tomar a humanidade como objeto de estudos reconfigurou uma série de 14 discursos instituições e práticas que modificaram profundamente as relações humanas a partir de critérios raciais para a reorganização da vida social A escola foi uma dessas instituições disciplinares que tem o conhecimento científico como referência de sua prática Nessa lógica de produção de um saber científico verdadeiro e controlador se produziu a História durante o século XIX Uma ciência pautada no positivismo que produzia narrativas verdadeiras sobre os Estados modernos europeus imprimindo e elevando a memória dos grandes homens datas e fatos Com isso não só criava imagens nacionais mas produzia sentimentos civis de pertencimento embasados em perspectivas e rituais patrióticos SCHWARCZ 2019 A história era uma narrativa da evolução cultural um estandarte da civilização e por isso seu método positivo se detinha em comprovar as verdades do passado apenas por meio de documentos escritos Nesse sentido não se poderia escrever a história das sociedades ágrafas Esses grupos humanos não eram civilizados não possuíam história estavam quase destituídos dos critérios europeus de humanidade A escola moderna criação ocidental com seus dispositivos pedagógicos ensinava este tipo de narrativa do homem branco racional patriarcal urbano burguês cristão heterossexual Uma pesquisa que se detenha a analisar as configurações do ensino de História deve considerar esse processo que mesmo soterrado ainda emana imagens históricas ao pensamento dos nossos estudantes em perspectiva de assimetrias raciais Foi nessa lógica de dominação que a instituição escolar foi proposta VARELA 2011 Mas isso não quer dizer que seu projeto de disciplinamento tenha sempre obtido êxito pois o desenvolvimento histórico das instituições escolares revela seu caráter polissêmico e conflitante Se de um lado ela parece ser uma poderosa via de acesso do indivíduo ao conhecimento e à mobilidade social de outro ela é vista como promessa de potencialidade econômica e produtiva dos Estados neoliberais MARSHALL 2011 PETERS 2011 Se de um lado ela é uma instituição que disciplina seleciona insere ou descarta os indivíduos da vida social dominando os de diversas maneiras e localizandoos em seus devidos lugares dentro do projeto social que se deseja alcançar de outro lado também ela mesma é palco de micropoderes de conflitos de lutas cotidianas e suas formas de resistência FOUCAULT 1979 2011 A escola é portanto um espaço de disputas Nesse cenário institucional um dos recursos definidores dos projetos educativos é o currículo Mais do que um documento que seleciona organiza conteúdos e produz diretrizes pedagógicas é um dispositivo de poder que produz subjetividades POPKEWITZ 2011 SILVA 2006 2013 15 Para Foucault 1979 um dispositivo não é apenas um único elemento mas uma formação uma rede heterogênea de artefatos culturais que são construídos para atender urgências históricas ao produzirem de maneira estratégica uma série complexa de relações de poder Essas relações contudo não são estanques pois podem sofrer mudanças e deslocamentos Nesse sentido um dispositivo exerce diferentes funções nas relações de poder criar mediar disputar dominar ou resistir entre as ambiguidades dos procedimentos para se alcançar certos objetivos prédeterminados e os deslocamentos de tais investimentos por múltiplos outros poderes FOUCAULT 1979 CARNEIRO 2005 Em termos de efeitos como explica a filósofa Sueli Carneiro 2005 um dispositivo constrói uma certa noção de existência uma identidade social Ele classifica os seres e os divide conforme os projetos políticos a que atendem Conforme a autora a lógica binária da modernidade construída num processo de autoafirmação e defesa da classe burguesa que se tornava hegemônica no século XVIII atendia aos seus projetos de governo e lucratividade uma economia produtivista uma política de dominação e uma cultura universalista docilizadora que construiu modelos estaques de identidades a serem disciplinados difundidos subjetivados e reproduzidos em escalas cada vez maiores Foi pelos objetivos discursos e instituições burguesas que se constituíram os dispositivos binários de identidade o eu e o outro o racional e o louco o normal e o anormal o vital e o doente o masculino e o feminino Carneiro 2005 critica o fato de que a análise de Foucault sobre os dispositivos de subjetivação moderna não se deteve detalhadamente nos dispositivos de racialidade Ela acrescenta que este foi um dispositivo importante na organização social ocidental pois produziu distinções como superior e inferior a partir da cor de pele sendo a brancura o modelo de razoabilidade normalidade vitalidade e superioridade O racismo corresponde a essa produção de dispositivos raciais para mediar as relações sociais Esse saberpoder não é simples e tradicionalmente desprezou o ódio entre as raças tampouco é apenas uma operação ideológica de uma classe ou de um Estado para desviar as hostilidades que receberiam de um inimigo político Ele não é apenas um vacilo moral de uma pessoa desequilibrada ou apenas a corrupção dos comportamentos institucionais Mais profundo o racismo é também uma estratégia política integrante da economia do biopoder FOUCAULT 1999 O racismo foi produzido como um saber teórico inicialmente apoiado numa perspectiva biológica para explicar a naturalidade das raças que caracterizariam os diferentes tipos de seres humanos Assim ele é um saberpoder cujo potencial político foi 16 desresponsabilizar os sujeitos históricos por produzilo e perpetuálo através dos projetos civilizatórios que empreenderam Para Foucault 1999 o racismo é o avesso do projeto revolucionário É o estabelecimento autoritário de uma hegemonia A não possibilidade de transformação A não convivência com a pluralidade A não democracia Ele cumpre a função de morte na economia do biopoder exercida pelos Estados Modernos em que se garante a vida de uns e se autoriza a morte de outros conforme seus fenótipos culturas ancestralidades e condições sociais Foucault explica que no século XX a perspectiva racial foi transformada em estratégia global dos conservadorismos sociais transformandose oficialmente em racismo de Estado Sua função é introduzir uma separação e um corte na produção e controle da vida vigiando controlando classificando segregando e eliminando os indesejados para que a vida social se normalize consolidando o etnocentrismo como única possibilidade de existência1 O currículo foi implementado nas práticas ocidentais de escolarização como um dispositivo de racialidade ou seja de fabricação e ritualizações de saberes práticas e identidades pautadas em distinções hierarquizações e segregações a partir de critérios como cor de pele ancestralidade e tradições culturais Historicamente ligado às estruturas de disciplinamento e desigualdade social ele cria novas realidades sociais culturais e políticas esquadrinha determinadas leituras do mundo e também os sujeitos em formação Logo o currículo é ao mesmo tempo tanto o que os sujeitos históricos fazem com ele quanto os efeitos que provoca nos próprios sujeitos históricos GOMES 2006b Neste sentido somos também corpos e subjetividades curricularizadas Dito de outra maneira não se trata apenas de produzir saberes escolares mas de definir posições identidades2 Justamente por essa positividade é que o currículo é um instrumento de lutas políticas porque funciona como tecnologia de normatizações e de reposicionamentos na vida social 1 Embora o conceito de raça e as teorias a seu respeito tenham sido abolidas das discussões das Ciências Biológicas e da Antropologia o racismo ainda existe não só como valor social que orienta as condutas mas também enquanto prática de poder cotidianamente atualizada e direcionada a grupos historicamente marginalizados conforme seus fenótipos culturas e ancestralidade Almeida 2019 analisa o racismo brasileiro afirmando o quanto o projeto nacional mesmo o republicano desenhouse conforme diferentes critérios de cidadania perpetuandose num sistema de Direito marcado pela dissimetria a partir do qual inclusive o critério racial foi elemento crucial nas definições das posições das possibilidades e das experiências políticas e econômicas de cada sujeito Para Almeida o racismo é um sistema de racionalidade que se manifesta como valor ético e estrutura as práticas pessoais e institucionais que culminam em desvantagens ou privilégios na vida nacional ainda hoje fundamentada na ideia de raça 2 Pensamos a identidade não como uma propriedade fixa mas como uma produção discursiva aberta processual e sempre em movimentos de deslocamentos oriundos de uma série de contextos e lutas políticas FOUCALT 1979 TARDIF 2002 HALL 2006 SAID 2007 17 Conforme Bittencourt 2006 para que ocorram mudanças curriculares é necessário que tenham existido mudanças na sociedade Quando se reconhece que surgiram novas demandas socioculturais e políticas e estas mudanças se refletem no ambiente escolar fazse necessário repensar e modificar as propostas curriculares3 Em uma sociedade cada vez mais assumida como heterogênea para se chegar a níveis aceitáveis de escolarização necessitase não apenas de altos investimentos financeiros por parte dos governos mas também de currículos flexíveis BITTENCOURT 2008 POPKEWTIZ 2011 No Brasil o ensino de História ainda necessita pluralizar e ressignificar os discursos as memórias e as identidades sociais e a escola enquanto espaço público SILVA 2006 SEFFNER 2019 é um local muito propício a este trabalho Assim pensar o currículo é pensar o poder Não o poder como objeto ou propriedade não como estrutura ou centralismo mas o poder como prática como exercício microcósmico capilar e fluido FOUCAULT 1979 Nessa perspectiva consideramos que o poder não emana do Estado Atravessao mas o faz da mesma forma que com as instituições sociais os saberes e as subjetividades que se relacionam por sua ótica de dominação e resistência em provisórios exercícios de poder Foi nessa lógica que se travou uma importante batalha discursiva e política de cunho curricular no Brasil ao longo do século XX e que teve resultados legais no início do século XXI Desde o período pósabolição diferentes movimentos sociais negros como a Frente Negra Brasileira FNB nas décadas de 1920 e 1930 o Teatro Experimental Negro TEN nos anos 1940 e o Movimento Negro Unificado MNU a partir do final dos anos 1970 enfatizaram uma pauta que visava garantir mudanças no ensino básico brasileiro inserindo a história da África e da cultura afrobrasileira na educação Esses movimentos perceberam o seu potencial reconstrutivo aquilo que Foucault chamou de positividade da instituição escolar e requisitaram a educação como um importante artefato de disputa porém dentro dos critérios antirracistas pelos quais lutavam Aglutinando indivíduos e coletivos negros diversos compostos por intelectuais religiosos artistas políticos trabalhadores donas de casa etc esses movimentos geraram discursos que produziram fissuras na imagem de uma nação brasileira harmoniosa e etnicamente 3 Exemplo disso é percebido através do percurso do ensino de História no Brasil No século XIX ele esteve associado a projetos políticos e culturais de formação de uma nacionalidade idealizada e eurocêntrica FONSECA 2011 Seu caráter cívico e conservador foi duramente questionado no processo de reabertura democrática do país durante a segunda metade do século XX como resultado das lutas políticas de diferentes movimentos sociais em prol da democracia Já no início do século XXI o ensino de História foi transformado política e juridicamente garantindo a presença de identidades culturais historicamente marginalizadas como negros indígenas etc 18 democrática MUNANGA 2008 QUEIROZ 2010 GOMES 2017 A partir de suas experiências sociais e de seus posicionamentos enquanto cidadãos negros numa sociedade que busca definilos dominálos e excluilos eles produziram pautas que requeriam a educação escolar como um bem público reconstrutor da memória cultural do país que deveria contemplar a presença negra sem estereótipos Nesse sentido conforme nos explica Gomes 2017 podemos dizer que o movimento social negro agiu historicamente no Brasil como um articulador produtor sistematizador e demandante de conhecimentos sobre questões raciais construídos por diversos setores da população negra As práticas discursivas do movimento negro constituíram e ainda constituem narrativas históricas densas que produzem uma realidade social assumidamente desigual e conflituosa Fazem isso tanto a partir dos conceitos modelos identitários definição de problemas métodos e fontes que manuseiam quanto das proposições de pautas políticas que elaboram Desta forma define a autora o movimento negro emerge historicamente também como instância educadora atuado pedagogicamente na mediação entre os poderes nas relações políticas sociais econômicas e culturais em nosso país Gomes 2017 ressalta que os conhecimentos produzidos por tal movimento pretendiam ser cumpridos em perspectiva emancipatória de modo que suas teses foram transformadas em reivindicações legais e posteriormente algumas delas se tornaram políticas públicas no início do século XXI Destarte na breve história republicana do Brasil o movimento negro é um dos principais mediadores entre as comunidades negras o Estado a sociedade como um todo a escola básica e as universidades produzindo novas pedagogias e subjetividades desestabilizadoras Foi portanto no sentido da periferia para o centro que se exerceu um micropoder que fazendo identificar problemas sociais como o racismo e a sua decorrente segregação social os movimentos negros lutaram e conseguiram promover mudanças no aparelho jurídico desse mesmo Estado BEM 2006 garantindo dentro de sua lógica burocrática e de sua positividade disciplinar uma reconfiguração curricular que seguisse princípios que lhes fossem mais democráticos e inclusivos Desta maneira em janeiro de 2003 se tornou obrigatório o ensino de história da África e da cultura afrobrasileira em todo país Esse tema conforme legislação federal deve ser ministrado em todas as disciplinas escolares sobretudo nas áreas de História Arte e Literatura BRASIL 2003 Embora discutir a história da África e da cultura afrobrasileira nas práticas escolares seja uma necessidade histórica legítima a efetivação de seu ensino ainda é um desafio também pela existência de outros micropoderes que emanam de diferentes fontes e formas de saber 19 Sendo uma obrigatoriedade gerada a fim de criar mecanismos educativos para se combater o racismo a inserção no currículo escolar dessa proposta flutua entre a politização e a folclorização das identidades culturais negras Este fato tem muito a ver com as formas como nossas subjetividades têm sido historicamente construídas através do olhar em relação à negritude Na escola na mídia nas festas e em outros espaços temos encontrado referências históricas da presença negra comumente vinculada a um passado distante quase mítico ora com habitantes de reinos exóticos aos nossos gostos éticos e estéticos ora como escravizados mas comumente enquanto seres de produções culturais e sociais inferiorizadas Tais representações foram alimentadas durante muito tempo por discursos oficiais científicos fundadores de paradigmas4 interpretativos sobre as identidades culturais negras no Brasil Discursos que pela ótica da dominação colonizaram e estereotiparam estas identidades culturais a fim de pela legitimidade científica produzirem determinados tipos de sujeitos afrobrasileiros GOMES 2013 Estes discursos que educaram os nossos olhares têm também sua historicidade No Brasil a preocupação científica e conceitual com o negro e sua cultura formaram um corpus livresco a partir do advento da República Em fins do século XIX sob nova jurisdição política os intelectuais assumiram o compromisso de repensar a nação brasileira e reorganizála Naquele contexto de mudanças institucionais precisavase analisar a população negra que não era mais escravizada e fluía dentro de possíveis conceitos de cidadania em que os novos lugares a serem ocupados por essa população começavam a ser redefinidos ALBUQUERQUE 2009 Foi nesta mesma época que surgiram e ganharam fama internacional os estudos de Nina Rodrigues na busca de explicar e classificar a presença cultural negra no Brasil a partir da eugenia Já no início do século XX os estudos de Arthur Ramos e Gilberto Freyre influenciados pelo difusionismo cultural condensaram o desejo do Estado Varguista de apagar simbolicamente os conflitos e construir um discurso de harmonia mestiçagem e democracia Nestes estudos que legitimaram a ordem social desigual ao passo que forjavam o sentimento 4 Para Thomas Kuhn 2000 um paradigma é um estado de normalização da produção científica que fornece os fundamentos teóricos metodológicos e estabelece os modelos explicativos partilhados entre uma comunidade científica Os paradigmas sofrem críticas entram em crise e são transformados ou abandonados dando lugar a novos modelos Aqui falamos de autores que fundaram os diferentes paradigmas que foram aceitos e partilhados por parte considerável de cientistas brasileiros em diferentes épocas até que esses mesmos modelos entrassem em crise e fossem substituídos por novos Cada paradigma não só explicou historicamente a negritude no Brasil como também lhes definiu características específicas fabricando discursivamente diferentes modelos de identidade negra Assim esses paradigmas criaram expectativas e projetos para que o Estado pudesse administrar as relações sociais dessa categoria étnica vida e morte visibilidade ou invisibilidade inclusão ou segregação equidade ou precarização 20 de uma comunidade nacional a cultura afrobrasileira foi abordada segundo uma perspectiva folclorista ou seja cujo exotismo sedutor era permitido de ser reconhecido e apreciado enquanto não oferecesse riscos políticos aos poderes hegemônicos GOMES 2015 Nos anos 1960 com o crescimento das críticas marxistas num Brasil que não conseguia mais esconder as acentuadas desigualdades sociais os estudos de Florestan Fernandes denunciaram o mito da democracia racial afirmando a existência do racismo no país Não obstante Fernandes tomava as práticas culturais afrobrasileiras como um campo de espetacularização e alienação política SLENES 1999 Desse modo através da intelectualidade brasileira foram interpretadas definidas e desqualificadas as práticas consideradas autênticas da cultura afro a culinária colorida e saborosa a indumentária típica e chamativa a dança selvagem e sensual a música frenética e desordenada o candomblé como um culto fetichista e primitivo os contos populares supersticiosos a escultura grosseira a sexualidade permissiva a educação folgada o vocabulário exótico5 GOMES 2013 Na lógica explicativa burguesa e liberal CHAUÍ 1985 a cultura afrobrasileira era folclorizada conceitualmente intelectualmente definida colonizada inferiorizada era política e discursivamente submetida A partir da segunda metade do século XX foi que analisando e reconhecendo as experiências históricas e os modos de viver da população negra no Brasil intelectuais estrangeiros como Peter Fry Carlos Vogt Robert Slenes Kabengele Munanga e intelectuais afrobrasileiros como Lélia González Abdias do Nascimento Sueli Carneiro Petronilha Silva Martha Rosa Queiroz Florentina Souza Nilma Lino Gomes e o próprio MNU revisaram o paradigma que entende a cultura como mediadora de relações políticas definindo a cultura afro brasileira como um conjunto de articulações entre memórias culturais africanas e as novas experiências sociais impostas às populações negras escravizadas e suas descendências numa sociedade organizada a partir de critérios raciais Assim a cultura é compreendida como um espaço criativo de significação e mediação de lutas políticas que se dão por diferentes práticas Contudo muitas pesquisas indicam que têm predominado as abordagens folcloristas no ensino sobre culturas africanas e afrobrasileira SILVA REGIS MIRANDA 2018 REGIS BASÍLIO 2018 SILVA J 2018 COELHO 2018 Perguntamonos então quais fatores políticos e culturais que interagem na e com a escola têm construído barreiras à efetivação de um ensino crítico e contextual sobre a história e cultura negras em nossas realidades pedagógicas 5 Esses são adjetivos atribuídos pelos referidos pensadores brasileiros em suas obras 21 Por muitas vezes quando um docente aborda as práticas representações e expressões culturais negras em sala de aula as reações de muitos alunos e por vezes pais costumam ser repressivas As piadinhas os jargões e as represálias que são lançadas sobre a negritude apenas variam em graus de violência sendo reflexo de uma tradição pautada sobre um discurso depreciativo que impôs estigmas negativos às memórias identidades e culturas negras FAZZI 2006 MUNANGA 2008 2012 CAVALLEIRO 2012 GOMES 2013 Esses preconceitos valores e práticas culturais adentram nas escolas perpetuam relações excludentes e geram a falta de conhecimento e pouco interesse em relação ao tema por parte dos sujeitos que nela interagem Tal quadro demonstra o quão forte é o caráter seletivo discriminatório e excludente da escola pois se trata ainda de um lugar de diferenciação social ITANI 1998 Assim a escola constrói saberes direcionados aos corpos e às subjetividades Ela distribui discursivamente lugares distintos para serem ocupados por diferentes sujeitos no projeto nacional a partir de critérios étnicoraciais As representações do negro e sua cultura se embasam em saberes que no passado foram legitimados por perspectivas científicas já há muito criticadas e algumas mesmo em desuso nas universidades e centros de pesquisa mas que até hoje são difundidas pela mídia e através das narrativas escolares Desse modo podemos afirmar que a escola insere no currículo a razão instrumental a lógica separatista classificatória e o discurso dominador também conforme critérios étnicos Mas como já foi dito a educação é disputada também por sua potencialidade enquanto agenciadora de mudanças culturais sociais e políticas SILVA 2006 ARROYO 2011 Foi por ser assim considerada que após o reconhecimento das lutas históricas dos movimentos negros em 09 de janeiro de 2003 o governo federal brasileiro sancionou a Lei nº 10639 que alterou a LDB 939496 para incluir no currículo oficial das redes públicas e privadas de ensino a obrigatoriedade da temática História da África dos povos africanos e da Cultura Afro Brasileira BRASIL 2003 A temática em questão tem sido tema de inúmeros debates em instituições do saber de diferentes níveis recolocando a necessidade de readequações pedagógicas a essa nova demanda sociocultural SILVA REGIS MIRANDA 2018 COELHO 2018 Em 2008 após muita luta dos movimentos sociais indígenas o governo brasileiro reconheceu a necessidade desses povos também aparecerem como sujeitos construtores da 22 história nacional em nossa educação escolar formal6 Para tanto foi estabelecida a Lei nº 11645 que contempla além das temáticas negras também o ensino de história da cultura indígena Contudo o ensino da história da África e da cultura afrobrasileira ainda não se consolidou como prática pedagógica em muitos estabelecimentos de ensino do país OLIVA 2003 BRAGA JÚNIOR 2013 GOMES 2013 Entre novas lutas e jogos de interesse essa experiência de reformulação curricular foi realizada também em Alagoas Em julho de 2007 foi promulgada a Lei estadual nº 6814 que autorizou o poder executivo através da secretaria de educação do Estado de Alagoas a elaborar projeto para definir a inclusão da temática afrobrasileira nos currículos de ensino fundamental e médio da rede estadual de educação básica a fim de se elaborar diretrizes operacionais para a implementação do ensino de história da África e da cultura afrobrasileira Como resultado dos trabalhos desse conselho da ampliação das discussões e do advento da Lei nº 1164508 que incluía a temática indígena foram produzidos em Alagoas o Parecer 3592010 a Resolução 0822010 de autoria do Conselho Estadual de Educação e o Relatório do processo nº 6392010 que culminaram nas Diretrizes Curriculares Estaduais da Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira Afro Alagoana e Indígena ALAGOAS 2011 Esse contexto ilustra como uma configuração curricular faz mais que do que organizar e distribuir conteúdos e métodos científicos Enquanto operação de poder ela age modelando as subjetividades em formação no ambiente escolar Sobre essa realidade produzível a novidade que se instalou de maneira oficial em nível nacional foi o estabelecimento do critério étnico como problemática a ser assumida e encarada de forma obrigatória Situado esse contexto fortemente disputado em torno do ensino de história na contemporaneidade começaremos a delimitar a problemática específica de nossa investigação 11 Redefinindo uma pesquisa Alagoas é um estado que desenvolve algumas políticas públicas para a igualdade racial sobretudo no campo da educação Apesar das críticas que se podem fazer ao desenvolvimento e aos efeitos ainda bastante insuficientes e muitas vezes contraditórios dessas políticas reconhecemos como importantes os pulsos de avanços em legislação programas currículos e 6 Tal fato constituiuse em mais uma vitória dos movimentos indígenas que desde os marcos legais como a Constituição Federal 1988 a LDB 1996 e a Resolução nº 261991 MEC conseguiram estabelecer a especificidade da modalidade de Educação Escolar Indígena SILVA 2017 23 formação docente que têm estado em diferentes pautas institucionais BRAGA JÚNIOR 2013 No entanto ainda se conhece pouco em termos qualitativos do que tem sido feito em torno dos diferentes processos educativos sobre a temática em questão no estado alagoano Os poucos estudos feitos em Alagoas a respeito da implementação das Leis nº 1063903 e 11645087 têm se concentrado na região metropolitana de Maceió BARROS CAVALCANTI 2006 FRANCO 2010 FREITAS 2013 BRAGA JÚNIOR 2013 Esses estudos constatam que apesar do reconhecimento da legislação educacional e dos esforços investidos na formação docente em Maceió ainda não se efetivou o ensino de história da África e da cultura afrobrasileira no cotidiano escolar local Para Braga Júnior 2013 isso diz respeito não somente à formação deficitária mas sobretudo à discriminação ao universo cultural negro por parte dos próprios docentes Desta maneira percebese que a existência de outros micropoderes interfere diretamente nas relações de poder que tanto o movimento social negro quanto o Estado estabeleceram sobre os processos educativos através de uma inserção curricular Há portanto uma heterogeneidade entre o discurso pedagógico oficial e as práticas de ensino institucionalizadas Para além da realidade maceioense o que se percebe é que faltam estudos sobre as configurações do ensino de história e cultura afrobrasileira no contexto cultural do interior alagoano sobretudo no sertão É preciso investir mais em pesquisas sobre o tema e que possam efetivar níveis mais profundos de reflexão a fim de justificar futuras ações no planejamento formação e atuação nas escolas sertanejas quanto às questões étnicoraciais Afinal pensar a educação em Alagoas não é se reduzir aos processos educativos da capital do centro mas olhar também para as periferias do estado onde a educação encontra contextos muito específicos e ainda bastante deficitários Essa é uma lacuna que só agora começa a ser timidamente preenchida com poucas pesquisas realizadas por alunos de graduação e por alguns professores das licenciaturas no Campus do Sertão da UFAL Contudo são pesquisas ainda muito limitadas quantitativamente por motivos como a pouca idade do Campus universitário no sertão as estruturas materiais da região e os valores culturais locais Alguns trabalhos na área de Ensino de História no sertão alagoano realizadas especificamente no município de Delmiro Gouveia como os de Emerson Carvalho 2014 Iêda Silva 2017 Eliane Bezerra 2018 Ryclesia Carvalho 2018 Lucas Nascimento 2018 7 John Carth explica que ambas as leis continuam valendo no território nacional pois a Lei 1164508 não substituiu a Lei 1063903 apenas alterou um dos parágrafos da lei já existente acrescentando a temática indígena Para fins normativos as duas leis continuam sendo tratadas conjuntamente em paralelo CARTH 2018 p 02 24 Leide Daiane Aquino 2018 e Gustavo Gomes 2018 2019 discutiram por diferentes abordagens analíticas os dilemas e avanços na implementação dessa temática no cotidiano do ensino local e perceberam que são comuns as práticas pedagógicas que possuem noções ambíguas quanto à cultura negra Algo que a princípio faz emergir significações politicamente nefastas mas ainda assim sentidos que são sempre complexos e fugidios Tais estudos demonstram parcialmente e ainda de modo desarticulado alguns motivos da inadequação na efetivação da Lei na região Diante do desafio implicado pela fragilidade no contexto desse processo pedagógico tornouse crucial a realização desta pesquisa científica por um docente de um curso de licenciatura em História A viabilidade de desenvolvimento desta pesquisa em nível de doutorado constrói argumentos intelectuais e políticos para que num curso de formação de professores de História garantamse ações formativas nas áreas de ensino pesquisa e extensão com foco no Ensino de História e Cultura AfroBrasileira de maneira mais compreensiva e adequada aos princípios políticos orientados pela legislação vigente Também muito do investimento pessoal empregado neste estudo deriva de um autorreconhecimento como cidadão negro brasileiro imerso nas práticas culturais afro brasileiras fato que também se apresenta como motivação de tal investimento político intelectual nesta trajetória profissional sem contudo apelar a militâncias partidárias ou modismos acadêmicos mas sim encarando esta pesquisa como uma responsabilidade profissional e ética GOMES 2006b Deste modo por meio desta pesquisa nossa pretensão foi compreender as relações que cruzam o ensino de história e da cultura afrobrasileira numa perspectiva que analisasse a constituição dos saberes docentes de modo contextual mapeando algumas ações silenciosas que manifestam poderes ao longo da formação de suas diferentes subjetividades e que influem nos usos e sentidos que os professores fazem sobre a cultura negra em suas práticas pedagógicas no sertão alagoano após o estabelecimento da Lei nº 10639038 Consideramos os docentes como sujeitos ativos na reelaboração de suas subjetividades e nas projeções que fazem de suas identidades profissionais saberes e práticas de ensino TARDIF 2002 MONTEIRO 2006 2019 embora suas identidades sejam fabricadas numa tensa relação entre eles a partir das normas e as instituições sociais nas quais estão inseridos Pensar as configurações do ensino de História a partir das posições assumidas pelos professores 8 Obviamente além das teorias científicas e do MNU os professores de História da educação básicas também recriam as suas próprias teorizações sobre o ensino Este fato interfere em seu trabalho modificando a configuração curricular proposta oficialmente 25 ajudanos a ter uma compreensão mais complexa e cautelosa acerca dos fenômenos educativos ponderando os discursos e formas de poder que atravessam os saberes experiências e necessidades ligadas ao cotidiano docente em seu contexto específico Em tempos de mudanças de projetos educacionais é importante ouvilos identificando em suas narrativas os artefatos materiais e simbólicos que atuam em sua formação e prática pedagógica FUMES et al 2012 As discussões sobre saberes e experiências docentes chegaram com força ao campo das investigações educacionais no Brasil a partir dos anos 19801990 problematizando temas como as tensões das instituições educativas entre o objetivo de dominação disciplinar e as resistências cotidianas dos micropoderes os estudos sobre os saberes docentes como construções resultantes de articulações entre as subjetividades instituições e normas sociais as histórias de vida e de formação profissional desses saberes e a importância da experiência do sujeito como um fenômeno ao mesmo tempo social e subjetivo9 É no bojo dessas discussões que visamos entender de modo contextual os processos pedagógicos no sertão na contemporaneidade a partir da temático étnicoracial considerando o cotidiano as memórias docentes as suas experiências e narrativas pois elas nos levam a perceber como os saberes e micropoderes se manifestam nas práticas escolares produzindo trabalhos docentes direcionados interferindo e fabricando novas curricularidades cotidianas OLIVEIRA 2016 Consideramos que esta abordagem nos permite realizar leituras pluralizadas em torno de um mesmo fenômeno social 12 Campo fontes e abordagens Conforme Monteiro e Ralejo 2019 após 30 anos de produção científica sobre o Ensino de História no Brasil a comunidade de pesquisadores que se dedica a construir este campo tem comemorado os resultados políticos e científicos de seus trabalhos Tanto Coelho e Bichara 2019 quanto Miranda 2019 mostram que no Brasil o campo do Ensino de História foi formado e desenvolvido dentro dos centros e programas de pósgraduação em Educação e não de História Apenas na última década é que cresceram o número de investigações e publicações 9 Buscamos dar ênfase a uma noção subjetivista da produção de um saber da experiência articulando autores como Larrosa 2002 2011 que enfatiza o caráter discursivo argumentativo e narrativo do saber experiencial e Tardif 2002 para quem a experiência é o espaço onde os professores não somente aplicam seus saberes sobre o trabalho na vida prática mas também uma capacidade de reflexividade em que reelaboram sentidos e o materializam discursivamente Ainda assim não dispensamos a dimensão social da experiência defendida por Foucault 1984 quando afirma ser ela a correlação numa cultura entre campos de saber tipos de normatividade e formas de subjetividade FOUCAULT 1984 p 10 De todo modo para ambos os autores a experiência é considerando se os artefatos materiais que a embasam uma construção discursiva 26 sobre esse campo nos departamentos e pósgraduação em História Esse novo lugar foi aberto na arena científica a custas de muitas investidas enfrentamentos limitações e avanços Pesquisadoras como Monteiro 2019 Gabriel 2019 e Miranda 2019 definem o Ensino de História como campo de investigação científica e não como objeto de estudos Isso implica dizer que no interior desse campo se formam definem deslocam tensionam e se disputam numerosa e complexa diversidade de objetos específicos que são investigados a partir das diferentes problemáticas de cada pesquisa Mas para além de um campo10 pensamos o Ensino de História de forma ampla aberta e polissêmica Ele é antes de qualquer coisa uma prática social de ensino mutável no tempo e no espaço que mesmo ocorrendo em diversos lugares e por meio de diversos meios culturais ocorre de forma específica e tensionada entre regulações e reelaborações a partir das relações de saberpoder que se produzem no ambiente escolar Contudo ele é também um campo de pesquisa legítimo do historiador GOMES 2013 Segundo Monteiro 2019 o Ensino de História é uma prática social e um campo disputados de forma múltipla É um lugar teórico e prático de ação política onde se selecionam negam afirmam disputam reelaboram e se constroem novos saberes cujos efeitos produzem ou desestabilizam hierarquias constroem memórias e identidades que problematizam posições de sujeitos O ensino de História é ainda um sistema discursivo COSTA 2019 Ao tomálo como um sistema discursivo pensamos no Ensino de História como uma positividade no sentido foucaultiano um exercício prático relacional e contingencial de poderes capaz de produzir algo novo com o potencial de desestabilizar forças e exercícios de dominação descontruir verdades e produzir novas realidades Essas relações entre saberes e poderes que delineiam o Ensino de História se efetivam nas políticas nos currículos e demais documentos escolares nas práticas pedagógicas e nos processos de subjetivação Ao situarmos nossa produção nesse campo de pesquisa assumimos a importância social política e cultural do Ensino de História na contemporaneidade enquanto dispositivo de reelaboração de projetos de sociedade Entretanto o Ensino de História enquanto prática social escolar e enquanto campo de pesquisa científica vem sendo abalado pelo crescimento do conservadorismo que emergiu e se estendeu rapidamente no país a exemplo do que aconteceu em diversos países da América Latina nos últimos anos MIRANDA 2019 quando posições de extrema direita aliadas aos fundamentalismos religiosos e às justificativas da crise contemporânea do capital tomaram 10 Entendendo o campo enquanto um espaço de produção de conhecimento inserido em instituições de ensino superior nas quais se dá a formação de quadros COELHO BICHARA 2019 p 72 27 corpo nas proposições reformistas das políticas públicas ameaçando o caráter democrático e público da educação SEFFNER 2019 Tais ocorridos buscam controlar e silenciar a pluralidade das práticas curriculares que vem se desenhando nos últimos anos MONTEIRO 2019 Nesse contexto de intensas disputas em torno do Ensino de História um conjunto significativo de historiadores deu maior importância e visibilidade a esse campo como uma forma de garantir o direito à realização de pesquisas nessa área à qualificação das práticas escolares e o acesso aos saberes históricos de forma aberta e democrática MONTEIRO 2019 Atualmente a poética do ensino de História ROCHA 2019 é disputada por projetos educativos coloniais e multiculturais A retomada da perspectiva colonial branca burguesa patriarcal heteronormativa e urbana deseja reestabelecerse de maneira violenta hegemônica e dominante sobre ideais como diversidade inclusão democracia e justiça social Conforme nos explica Seffner a conjuntura política brasileira contemporânea está marcada por ataques à democracia e à diversidade cultural com o retorno de práticas autoritárias SEFFNER 2019 p 23 Para este autor temos vivido os efeitos de uma guerra não declarada mas autorizada contra as minorias políticas como negros indígenas mulheres e homossexuais e grupos profissionais como os professores por exemplo que são cotidianamente agredidos e têm seus movimentos sociais criminalizados e seu direito à liberdade de expressão cerceados Assim o Ensino de História se tornou uma prática que exige dos sujeitos assumir posições deslocarse narrar e reconstruirse com todos os riscos e potencialidades que isso possa implicar sobretudo quando tratamos de objetos ligados à temática da diversidade como gênero sexualidade e relações étnicoraciais Projetos como o Escola Sem Partido e as reescritas da Base Nacional Curricular Comum BNCC ameaçam e contradizem as políticas públicas internacionais estabelecidas para garantir a promoção de direitos econômicos sociais e culturais No entanto Seffner 2019 nos lembra que na prática do ensino de história escolar é preciso considerar a diversidade não como um tema exótico ou um valor moral ou de gosto mas sim como um problema pedagógico legítimo um aspecto cognitivo que deve ser considerado no planejamento institucional de forma consistente e sistemática afetando a produção do conhecimento escolar uma vez que a função da escola é promover a alfabetização científica e a sociabilidade democrática o que se consegue através da mediação intelectual com a diversidade Porém discutir a diversidade não é um desafio apenas para o ensino da história escolar mas também para o campo de pesquisa em Ensino de História Araújo 2019 afirma que temas relacionados à diversidade ainda são periféricos nesse campo de investigações pois a produção é bastante pequena Conforme nos lembra Albuquerque Júnior 2019 recortar um objeto é uma 28 atitude política que demarca um posicionamento estratégico no interior de um campo de pesquisa das próprias instituições das formas de pensamento e dos saberes já constituídos Ao recortar um objeto um cientista assume determinadas posições políticas éticas estéticas e epistemológicas No interior do campo do Ensino de História portanto a diversidade ainda é um tema secundarizado pela maioria dos profissionais Embora o número de pesquisas sobre ensino de história e relações étnicoraciais tenha crescido nos últimos anos ainda há pouco sobre em se tratando em termos teóricometodológicos e experienciais sobre o tema principalmente quando se pensa as dimensões do país ARAÚJO 2019 Após situarmos o campo de pesquisa afirmamos que nossa abordagem metodológica se ancora em perspectiva pósestruturalista de inspiração foucaultiana ou seja mantémse uma postura desconfiada analiticamente fragmentária dos processos políticos sociais culturais e econômicos em que problematizam as relações de saberpoder e enfatizase a dimensão discursiva na produção de realidades sociais SILVA 2011 SILVA 2013 Em meio às ambiguidades contemporâneas que nos colocam tantas incertezas frente ao conhecimento preferimos abordar nosso objeto de estudo de uma maneira que não se erga sobre ideias totalizantes e tidas como verdadeiras pois um tal pensamento referendase na perspectiva moderna e expressa a vontade de dominação do homem ocidental e burguês SILVA 2011 SILVA 2013 Tal abordagem pensa o conhecimento como uma produção que é intimamente relacionada com suas formas de representação histórica no discurso Nesse sentido não há um saber docente verdadeiro e transparente prévio ao discurso do professor O que existe são referências culturais e políticas com as quais os discursos docentes se relacionam disputam e negociam sentidos A linguagem é um elemento central nessa análise porque ela é política Não pretendemos cristalizar o pensamento de Foucault mas sim sermos provocados a explorar nosso objeto de pesquisa por outras perspectivas ALBUQUERQUE JÚNIOR 2019 A metodologia pretende escavar um solo percebendo a origem de certos tipos de saberes e o que os sustentam enquanto eles passaram a existir Nossa pretensão foi nos deter nas condições de possibilidade e desconstruir as tramas tecidas nas narrativas docentes para identificar as imagens do pensamento sobre a cultura afrobrasileira que pairam nas práticas escolares do sertão alagoano Imagens vivas que estabelecem verdades com consequências políticas distintas imagens das quais todo devir social histórico e concreto é devedor Por isso mesmo a narrativa desenhada nessa tese possui diversos pontos de partida e chegada Ela recomeça por pontos diferente e tece fios que se cruzam se chocam se entrelaçam se deslocam e se reinventam fios que se apresentam sempre de forma incompleta conectáveis 29 e em movimentos Esse exercício de desconstruções escavações desvios conexões e questionamentos foi se delineando tanto pelas provocações incitadas pela problemática da pesquisa como pelo encontro e exploração crítica das fontes a que tivemos acesso Aqui estamos falando mais uma vez de seleções A escola é também local de produção de um saber pedagógico de um conhecimento sobre a educação FOUCAULT 2011 Mas tradicionalmente a produção desse saber ocorre de maneira pericial através de práticas como a observação e o registro pelos quais a escola busca demonstrar a sua competência em produzir saberes experimentais correlativos aos poderes que exerce na sociedade MACHADO 1979 Destarte a prática de observação cumpre o papel de vigilância e controle enquanto que ao registro cabe o esforço de constatação da eficácia escolar segundo as normas do Estado mesmo que não registre as condições materiais e simbólicas nas quais elas se desenrolem É conforme essa lógica que ainda hoje os professores são solicitados pelas instâncias administrativas da educação a registrarem de forma resumida aspectos distintos de seu cotidiano de ensino através de dados quantitativos como notas e observações de cadernetas escolares Isso nos posiciona com desconfiança diante destas fontes Ainda assim os documentos pedagógicos foram de grande valia nesta pesquisa que se debruçou sobre as interfaces entre currículo saberes e práticas Buscamos explorar a documentação que nos permitisse localizar e identificar discursos e contextualizar de maneira mais ampla nosso objeto de estudo É neste sentido que lançamos mão de fontes normativas que reconfiguram o currículo de História da educação básica com o tema cultura afrobrasileira como as Leis 10639 BRASIL 2003 11645 BRASIL 2008 e 6814 ALAGOAS 2007 o Parecer CNECP 032004 a Resolução CNECP 012004 além do Parecer 3592010 e a Resolução 0822010 estes de autoria do Conselho Estadual de Educação de Alagoas e do Processo nº 6392010 que culminaram na elaboração das Diretrizes Estaduais para a Educação das Relações Étnico Raciais Além disso valemonos de alguns projetos e atas de formações continuadas para as relações étnicoraciais na educação bem como alguns relatórios escolares e imagens Esse trabalho com fontes escritas embora seja importante não consegue dar conta da complexidade heterogeneidade e dinâmicas do cotidiano de ensino Assim uma pesquisa sobre processos pedagógicos que se limite apenas aos documentos oficiais apresenta insuficiências claras de natureza teórica e metodológica Por isso como diz Fonseca 2011 devemos ampliar nosso campo de investigação à dimensão do cotidiano 30 escolar em que diferentes sujeitos atuam construindonegociando valores saberes poderes e experiências que podem ser registradas de diversas formas Para além do currículo entre os fatores que interferem no ensino e na aprendizagem sobre um tema na escola os saberes docentes ocupam lugar especial pois são eles que a partir de um complexo cruzamento entre informações conceitos práticas e valores sociais reconfiguram a oficialidade curricular circunscrita em leis pareceres projetos pedagógicos cadernetas etc Essa reflexão nos fez ampliar a abordagem metodológica a fim de perseguir o objetivo da pesquisa Daí vimos na produção de narrativas dos docentes a possibilidade de identificar cenários sujeitos sentimentos valores conflitos estratégias e táticas entre outros aspectos a serem considerados nos processos pedagógicos centrados na racialidade CARNEIRO 2005 que os documentos oficiais não são capazes de fazernos compreender Assim pudemos problematizar e compreender melhor os usos e sentidos que os professores de História fazem de suas ideias de cultura negra e como articulam isso ao exercício de sua identidade docente no cotidiano escolar Nosso foco no discurso do docente justificase por pensar esse profissional como um sujeito que assume posições reproduz discursos institui práticas e joga com diferentes projetos de sociedade em meio às tramas e coerções cotidianas que lhes impõem as normas Ainda assim o professor não é pensado aqui como mero reprodutor de regularidades normativas impostas pela governamentalidade11 do Estado mas como um ponto de micropoder que ao assumir posições específicas também pode operar resistências nas periferias dos projetos educativos deste Estado Neste sentido é importante entender a partir de suas falas que elementos constituem ou interferem nos seus saberes e práticas de ensino sobre a cultura afrobrasileira Entendemos os saberes docentes como construções discursivas abertas complexas e sempre em reelaboração ao longo de toda a história de vida desse profissional Eles são construídos através dos currículos dos conteúdos específicos de cada disciplina da experiência profissional dos acessos a espaços bens e relações culturais e profissionais TARDIF 2002 mas eles são também saberes biográficos não somente no sentido de serem construídos ao longo da vida dos professores mas também no sentido de serem construídos e reconstruídos quando os docentes rememoram e refletem sobre a sua própria vida JOSSO 2002 Os saberes são dispositivos de formação constituídos temporalmente sustentando e atualizando o conjunto 11 A emergência de racionalidades políticas estratégicas tais como as mentalidades ou os programas de um governo político convertidas em um conjunto de técnicas administrativas cuja preocupação principal é o gerenciamento calculado das questões e condutas de cada indivíduo a fim de realizar certos objetivos alcançáveis de ordenamento social FOUCAULT 1979 ROSE 2001 GORE 2011 MARSHALL 2011 PETERS 2011 31 de práticas docentes que lhes formam cotidianamente enquanto sujeitos e enquanto profissionais Esta investigação pautouse nas inquietações geradas pelas observações de um conjunto de práticas pedagógicas que mostravam ambiguidades incertezas tensões alegrias angústias e descontentamentos em várias escolas públicas visitadas no município de Delmiro Gouveia no sertão alagoano Enquanto professor do Campus do Sertão da UFAL venho desenvolvendo atividades de extensão acadêmica das quais tem maior longevidade a formação de um grupo de estudos e prática artística negra intitulado Abí Axé Egbé Além disso coordenei a área de História do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência PIBID no Campus do Sertão entre 2014 e 2016 e tenho orientado pesquisas sobre a presença histórica da população negra no sertão em diferentes campos como movimentos sociais negros religiosidades e educação sobretudo em ensino de História12 Essa experiência profissional me colocou em contato com o cotidiano de várias escolas onde pude assistir algumas atividades e participar de outras Em ambos os casos percebia uma tensão docente entre a vontade de agradar mostrando um saber correto para o pesquisador e um misto de insegurança e alegria pelas atividades festivas que promoviam nas escolas para cumprir com as determinações legais além do temor em deixar escaparem os preconceitos que guardam em relação a elas Só quando se sentiam um pouco mais à vontade diante desse pesquisador negro que carrega fios de conta no pescoço pois é candomblecista e que é bailarino afro é que conseguiam falar em tom de crítica sob alguns elementos que se situavam diante dessa temática obrigatória Escutando as falas aleatórias de diversas professoras e professores de História percebi como suas narrativas vinham carregadas mais de sentimentos do que de conteúdos historiográficos antropológicos ou pedagógicos por exemplo Havia mais de medo constrangimento raiva angústia e por vezes alegria Havia mais imagens midiáticas e menos referências às leis normas e textos científicos Naquele momento comecei a me perguntar como os professores de História do sertão têm lidado com uma questão tão pertinente mas ao mesmo tempo tão delicada e cara como a obrigatoriedade de ensinarem sobre a história da cultura afrobrasileira O que sabem sobre isso Como aprenderem Como ensinam O que sentem nesse contexto Essas se tornaram questões muito importantes nesta pesquisa a ponto de definirem a nossa problemática central direcionarem o nosso olhar sobre as fontes e também para a análise crítica dos dados coletados 12 Como resultado de algumas dessas pesquisas cf GOMES SANTOS 2019 32 no campo Foi assim que identificamos os componentes das tramas que se cruzam no cotidiano do ensino de história e cultura afro nas escolas sertanejas Entender os lugares e as falas dos professores ajudanos a refletir sobre que tipo de perspectiva de sociedade que tipos de currículos saberes e formas de subjetividades eles ajudam a formatar Se de fato direcionada a projetos democráticos inclusivos e que favoreçam o exercício da liberdade ou se um novo projeto de dominação que na prática reduza e controle aquilo a que na teoria pretendíamos libertar Os saberes docentes desvelam exercícios de poder que se materializam por meio de suas discursividades e é isso que precisamos analisar Desta forma objetivamos problematizar os saberes e as práticas de professores de História do sertão alagoano sobre a cultura afrobrasileira na contemporaneidade mas percebendo como esses saberes e práticas são construídos e como formam a percepção da cultura afro desses docentes ao longo de suas histórias de vida e de exercício profissional Dito isso após termos submetido o nosso projeto de pesquisa ao comitê de ética e recebido posterior parecer favorável à realização da investigação13 iniciamos a realização de entrevistas semiestruturadas para a coleta e posterior análise dos dados Essas entrevistas versaram sobre as histórias de vida de formação profissional e de experiências de ensino por professores que lecionam a disciplina de História nas escolas onde atuam mesmo que nem todos tenham cursado suas licenciaturas nesta área do conhecimento A partir dessas entrevistas pudemos analisar as concepções dos docentes sobre a história e cultura afrobrasileira identificando em suas narrativas memorialísticas os discursos que constituem os seus saberes em relação ao tema e as relações que interferem no cotidiano de suas práticas de ensino a partir da cultura local Com as narrativas percebemos a diversidade de elementos que se encontram e formam os saberes dos professores entrevistados e conforme uma abordagem de linha foucaultiana fragmentamos a rede discursiva tecida pelas narrativas docentes desconstruindo as tramas em perspectiva arqueológica identificando os padrões de pensamento POPKEWITZ 2011 que esses profissionais manifestavam em suas falas e reorganizamos essa textualidade em diferentes fios discursivos Buscamos analisar de modo contextual os sentidos negociáveis nos discursos docentes em relação às metanarrativas que lhes servem de referência a ciência a mídia o movimento social negro as normas curriculares para as relações étnicoraciais e as contrapusemos analiticamente às narrativas de suas próprias histórias de vida pois foram esses os repertórios que surgiram nas entrevistas Problematizar os discursos docentes é uma 13 Parecer nº 3082521 Situação do projeto aprovado 33 estratégia para desestabilizar as formas reinantes de raciocínio POPKEWITZ 2011 que lhes afetaram É a partir deste quadro que produzimos esta tese de doutorado No capítulo 02 intitulado A cultura afrobrasileira na contemporaneidade dilemas na produção de um conceito discute se a construção do conceito de cultura afrobrasileira em diferentes ordens discursivas como as ciências humanas e o movimento social negro Elas forjam o conceito mais atualizado de cultura afrobrasileira sob diferentes perspectivas e cujas definições são propagadas socialmente tendo diferentes implicações políticas Mais do que um conceito elas fabricam também memórias identidades práticas e subjetividades sobre a negritude e buscam penetrar em campos a partir dos quais consigam afetar a construção de saberes e das práticas docentes No capítulo 03 A inserção da cultura afrobrasileira no currículo de História disputas e normas para a produção de saberes e subjetividades refletimos sobre as diferentes concepções de currículo e realizamos uma breve abordagem histórica acerca da reconfiguração curricular do ensino de História a partir da temática étnicoracial gerada desde a Lei 1063903 Articulando teoria e legislação pedagógica problematizamos algumas relações tensas e ambíguas que ainda consistem em desafios epistemológicos entre o currículo e os saberes dos professores de História No capítulo 04 Metodologia narrativas de histórias de vida docente aprofundamos as discussões teóricas e metodológicas que conduziram a pesquisa Foi através das narrativas que os docentes elaboraram sobre as suas histórias de vida formação e exercício profissional que pudemos compreender seus limites impasses angústias e expectativas que dão o tom de suas práticas A proposta deste capítulo foi articular os principais conceitos fontes abordagens e procedimentos desta investigação a fim de tornar possível o alcance dos objetivos da pesquisa No capítulo 05 Cenários experiências e subjetivações racializadas o foco é problematizar a formação desses sujeitos a partir de seu lugar não apenas geográfico mas também econômico social e sobretudo cultural Pensar como são corpos e subjetividades atravessados por camadas de discursos que lhes moldaram valores crenças percepções sensibilidades ou insensibilidades sentimentos projetos e práticas Ao narrarmos brevemente a história de formação e desenvolvimento do município sertanejo de Delmiro Gouveia situamos os professores em seus contextos familiares escolares religiosos de trabalho lazer e afetividades a fim de identificar por meio de suas falas como as suas experiências pessoais foram marcadas pela perspectiva racial levandoos a reler lembranças de atos racializados que antes eles não percebiam como muitos alegaram nas entrevistas 34 Já no capítulo 06 Formação e atuação profissional saberes e práticas de ensino de história e cultura afrobrasileira problematizamos os principais eixos temáticos que surgiram nas falas dos professores sobre seus saberes e práticas de ensino acerca da cultura afro brasileira os conteúdos e formas como trabalham as temáticas os desafios e possibilidades de ensino as formas como lidam com as normas e condições de trabalho os deslocamentos teóricos e práticos que realizam etc Esses aspectos são importantes para entendermos de forma mais complexa a rede desigual de poder que se movimenta captura os sujeitos sociais e os constitui entre discursos e práticas localizadas produzindo novos saberes práticas e currículos no cotidiano e a partir disso novas formas de subjetividade frente à temática étnicoracial O capítulo 07 A despeito do fim um convite a novos recomeços o potencial dos saberes e práticas na construção de teorizações pedagógicas condensa as nossas considerações finais sistematizamos as contribuições dessa pesquisa costurando a análise geral dos dados com alguns princípios teóricos aqui utilizados O foco do capítulo é pensar como as experiências desses docentes nos fornecem elementos para uma reconstrução de reflexões teóricas e metodológicas para a formação de professores de História centrada nas relações étnicoraciais A tese finalizase discursiva e politicamente abrindose como convite à produção de um futuro sempre indefinível convocando novas investigações com esperanças de transformação dos contextos escolares sertanejos em experiências sociais mais democráticas inclusivas e coloridas 35 2 A CULTURA AFROBRASILEIRA NA CONTEMPORANEIDADE DILEMAS NA PRODUÇÃO DE UM CONCEITO A Lei nº 1063903 colocou aos professores brasileiros reflexões sobre o que chamam de cultura afrobrasileira e sobre quais os sentidos que têm historicamente subjetivado em relação a ela por meio de diferentes discursos sentimentos e formas de tratamento Essa problemática envolve o fato de que esses diferentes sentidos cujas possibilidades de usos nas práticas de ensino são extensas não são naturais como imaginase As disposições cotidianas que representam as culturas negras apagam de forma naturalizada toda a complexidade de uma história conflituosa a qual diz respeito tanto às reelaborações feitas nas próprias práticas culturais afrobrasileiras quanto às reelaborações de um saber sobre essas práticas mas não só isso Os discursos que buscam cristalizar aquilo que é um processo dinâmico instauram atitudes cujos efeitos de realidade trazem sérias consequências políticas na vida social pois produzem noções comportamentos e espaços limitados segregados e hierarquizados de formação e atuação dos sujeitos conforme as tradições culturais que lhes caracterizam Considerando essa problemática ponderamos que para se compreender como os processos educativos em torno da cultura afrobrasileira se desenvolvem no sertão alagoano importa discutir e problematizar a historicidade que produz uma rede de sentidos disponíveis em nossa cultura e que são negociáveis entre si e utilizáveis no cotidiano da sala de aula LARROSA 2011 POPKEWITZ 2011 Neste sentido os discursos são janelas que nos permitem mergulhar nas profundezas de processos históricos densos e tensos que marcam nosso pensamento social Analisandoos podemos perceber não apenas as rupturas e transformações sobre essas concepções mas também as continuidades que sustentam processos políticos silenciosos invisíveis e por isso mesmo difíceis de serem rompidos FOUCAULT 2012 Portanto falar sobre a cultura afrobrasileira no ambiente escolar não é um ato ingênuo ou imparcial É um ato que reativa mesmo inconscientemente uma trama discursiva que produz certas noções de cultura afrobrasileira e certos tipos idealizados de pessoa negra que seja seu potencial agente É construir um jogo político de definições e dominação de identidades DEACON PARKER 2011 GORE 2011 VARELA 2011 Neste sentido os discursos dos professores ligamse mesmo que de forma inconsciente a várias memórias discursivas produzidas sobre a cultura afrobrasileira elaboradas por diferentes sujeitos regras 36 e instituições ao longo da história No Brasil essas relações interdiscursivas14 põem em funcionamento uma série de práticas de significação que aludem a poderosas e divergentes tradições de perspectivas com diferentes consequências políticas a estabilidade dos estereótipos que nega a existência do racismo e serve para legitimar esquemas de diferenciação dominação e exclusão a instabilidade questionadora das formas de opressão étnica e romancista de certos tipos de resistências ou ainda menos numerosos os enunciados15 que promovem esforços críticos de diálogos compreensão e aceitação Neste capítulo interessanos analisar como diferentes discursos fabricam o conceito de cultura afrobrasileira refletindo sobre as estratégias de suas composições e funcionamento através de uma série de operações como seleções ordenamentos costuras definições e descrições Assim a complexidade das performances verbais é decomposta isolandose os termos que se entrecruzam e demarcam as diversas regularidades a que obedecem FOUCAULT 2012 Essa análise discursiva problematiza seus indícios interiores e exteriores Ao pensálos sob a lógica de suas organizações os tomamos como um conjunto de enunciados que se apoia em um mesmo sistema de formação FOUCAULT 2012 p 131 Contudo esse sistema de formação comum não garante que os sentidos dos discursos sejam fixos A própria análise discursiva ao problematizálos os reelabora Nas entrevistas dos professores emergiram algumas referências que influenciaram a formação de seus saberes sobre a cultura afrobrasileira textos científicos peças publicitárias e novelas artigos de opinião e textos de mobilizações políticas e culturais etc Tais textualidades não caracterizam uma unidade discursiva pois muitos deles até mesmo formam oposições entre si Essas referências textuais dos docentes funcionam como pontos de encontros discursivos como artefatos regulados que ilustram diferentes unidades diferentes estatutos de coerências a que chamamos de ordens discursivas16 14 Relações que se estabelecem entre enunciados novos e enunciados já realizados que conforme as regularidades e autonomia do discurso formam novos conjuntos de formulações os quais tanto podem reafirmar como também negar deslocar restituir e transformar as práticas discursivas já produzidas por outros sujeitos grupos instituições As relações interdiscursivas dizem respeito à capacidade às formas e aos efeitos de como os diferentes discursos se conectam e produzem novos sentidos e realidades sociais 15 Para Foucault 2012 os enunciados não são objetos nem estruturas mas funções que cruzam unidades e estruturas discursivas fazendo com que elas apareçam com determinados sentidos concretos no tempo e no espaço Eles não são artefatos discursivos acidentais ou arbitrários mas sim artefatos localizados controlados e raros cuja composição e funcionalidade estratégica os tornam singulares e os fazem produtores de determinados sentidos sociais cujos usos têm diferentes consequências políticas 16 Ordem discursiva é a constituição de uma regularidade expressa em uma ordem por correlações posições funcionamentos produções e transformações de objetos conceitos temas tipos de enunciação e suas formas de dispersão FOUCAULT 2012 Ela é a instância que determina o que pode e deve ser dito numa sociedade em determinada época e que produz certos tipos de efeitos de sentido nos interlocutores recriando realidades 37 Dito isto nossa abordagem buscou estabelecer como recorte temporal a contemporaneidade para reorganizála escolhendo um domínio de relações discursivas densas que merecem uma análise específica a saber a ciência com ênfase na Antropologia e na História e o movimento social negro Essas ordens fabricaram cada um à sua forma conforme suas possibilidades e interesses concretos seus respectivos conceitos de cultura afrobrasileira os quais por sua vez chegam de diferentes formas a constituir relações interdiscursivas nas práticas dos professores de História do sertão Elas importam também pelo fato de a ciência ser uma importante referência para o ensino de uma disciplina escolar e pelo fato de ser o movimento social um sujeito histórico cuja enunciação produz definições muito próprias de cultura afrobrasileira na perspectiva da própria categoria social negra Tratamse de lugares de produção e difusão social de conceitos e modelos explicativos subjetiváveis em diferentes graus velocidades e capacidade de extensão Nesta investigação elas se tornaram importantes porque funcionam como arquivos17 que formam memórias discursivas Importa dizer que essas discussões ganharam grande importância em nível internacional a partir da década de 1980 Como explica Marpin 2018 naquele momento a UNESCO declarou a fragilidade da cultura popular e das culturas minoritárias que deveriam ser protegidas salvaguardadas e potencializadas diante das ameaçadas oferecidas pela lógica agressiva da globalização dos mercados e de novas formas de imperialismo político que geravam não só efeitos de padronização cultural mas também de grandes desigualdades sociais A partir dessa declaração alguns organismos internacionais embasados nas discussões das ciências sociais promoveram mudanças na compreensão e na prática da gestão pública em diversas partes do mundo Houve uma série de deslocamentos no conceito de cultura que ampliou a sua compreensão e as formas de implementar políticas públicas No entanto mais do que uma categoria analítica das ciências sociais a cultura passou a ser uma categoria reivindicatória de direitos políticos econômicos e sociais para a redução das desigualdades nas sociedades contemporâneas mas também um objeto de entretenimento e consumo PIOVEZANI 2014 Por exemplo a unidade que compõe a ordem discursiva da ciência é controlada pela elaboração de uma teoria e uma metodologia e legitimada pelas universidades cátedras e centros de pesquisa A ordem discursiva da mídia é controlada pelas estratégias de mercado capitalização do desejo subjetivação de modelos identitários e é legitimada por determinadas políticas culturais neoliberais A ordem discursiva dos movimentos sociais é controlada pela forma de organização política que articula teorias práticas e experiências de vida e é legitimada pelas instituições que esses movimentos fundam e pelas relações que estabelecem com o Estado 17 Em uma perspectiva foucaultiana o que chamamos de arquivo não é um local físico de pesquisa e consulta mas sim uma prática uma ação de enunciação circunscrita cultural e politicamente em redes latentes de significações já produzidas e que lhe delimitam o que pode ou não ser dito em cada época FOUCAULT 2012 38 Acreditamos que a análise dessas relações nos possibilita descrever os jogos de aparecimento dispersões discursivas e o funcionamento de suas coexistências sucessões determinações recíprocas e transformações independentes e correlativas verificando as regras que tornam possível o conjunto heterogêneo dos enunciados Desta maneira podemos definir um campo de possibilidades estratégicas de formação usos e sentidos dos discursos no jogo de sua instância FOUCAULT 2012 Essa análise articula as produções subjetivas e sociais histórica e culturalmente relacionáveis no jogo entre aproximações e distanciamentos relações que são múltiplas e podem ocorrer entre enunciados ou grupos de enunciados já estabelecidos mesmo sem a consciência dessa coincidência por parte dos emissores Elas podem ocorrer mesmo que esses grupos não remetam aos mesmos domínios nem a domínios vizinhos apesar de que não terem o mesmo nível formal nem constituam o lugar de trocas que podem ser determinadas Essas relações podem ocorrer entre enunciados ou grupos de enunciados e acontecimentos discursivos18 de uma ordem inteiramente diferente técnica econômica social política artística Não é de se estranhar que as falas dos professores de História do sertão alagoano portanto se relacionem de diferentes formas com os enunciados presentes nos arquivos de ordens discursivas totalmente diferentes da ordem discursiva do ensino de História Para tanto uma análise discursiva não se reduz a problematizar o que está dito pois os enunciados têm limites que os separam do que não foi proferido Isso demarca um sistema limitado de presenças e constituise como uma distribuição estratégica de lacunas e recortes correspondentes não só às limitações de conhecimento sobre um tema mas também à omissão das vontades políticas e dos regimes de verdade que habitam silenciosamente uma funcionalidade discursiva Uma enunciação portanto não é somente uma colcha de retalhos mas também o efeito de uma luta política que permite ou interdita outras enunciações FOUCAULT 2012 2014 É nesta ótica que problematizamos como diferentes conceitos de cultura afrobrasileira surgem em distintos domínios e como informam socialmente sobre o que seja esta cultura gerando relações de saberpoder díspares em que pesam fortemente os critérios étnicosraciais 18 Diz respeito ao momento específico de aparecimento de um conjunto limitado de enunciados sobre o objeto de que falam FOUCAULT 2012 39 21 A cultura afrobrasileira no discurso científico Desde o século XIX as ciências humanas têm sido um solo fértil sobre o qual repousam enunciados que buscam justificar e produzir tipos idealizados de identidades nacionais inclusive a partir de critérios étnicos Desde o projeto eugenista inaugurado por Nina Rodrigues no final dos oitocentos passando pela perspectiva difusionista do início do século XX até às leituras marxistas a partir da década de 1960 que oscilavam entre as denúncias de alienação política e odes às resistências o discurso científico produziu perfis pessimistas do sujeito negro e de suas práticas culturais SLENES 1999 GOMES 2013 Embora existissem reflexões teóricas produzidas por pensadores negros sobre as condições materiais e simbólicas das populações africanas e suas descendências MUNANGA 2012 até os anos 1970 predominavam no meio científico internacional as teses que professavam uma falta natural ou atraso cultural das populações afrodescendentes A tese era de que a escravidão não impôs limites civilizatórios às populações negras portanto sua cultura seria primitiva histérica limitada grosseira e fadada ao desaparecimento frente à modernização capitalista FRY VOGT 1996 SLENES 1999 MINTZ PRICE 2003 GOMES 2013 2015 Esse quadro começou a mudar a partir dos anos 1970 quando se ampliou o número de cientistas sociais que questionavam o próprio conceito de cultura afro esforçandose a pensá lo através da experiência dos próprios negros Aquele contexto fervilhava politicamente marcado pela atuação dos movimentos pelas independências e formações de países africanos a ação dos movimentos por direitos civis nos Estados Unidos a guerra do Vietnã e a Guerra Fria publicações de obras de intelectuais negros nas Américas a instalação de regimes totalitários e a formação de movimentos sociais na América Latina as críticas aos projetos políticos liberais e comunistas e às grandes narrativas históricas o desenvolvimento da nova política externa brasileira voltada sobremaneira para as relações comerciais com países africanos a formação do movimento social negro no Brasil e o surgimento de diversos movimentos políticos e culturais contrários aos projetos de sociedade efetivados em diferentes nações FRY VOGT 1996 SLENES 1999 MINTZ PRICE 2003 GOMES 2013 Todo esse contexto de múltiplas intencionalidades fez os discursos se cruzarem e aumentar os interesses pela compreensão do que vinham a ser as identidades culturais marginalizadas e os projetos de sociedade alternativos ao modelo ocidental Foi nesta conjuntura que ciências como a Antropologia e a História assumiram a vanguarda da ressignificação do conceito de cultura afrobrasileira 40 O processo de reinterpretação científica se tratou portanto de uma atitude política19 que redirecionou não só o discurso científico sobre a cultura afrobrasileira mas a própria compreensão de como ela age na vida social e também nas nossas formas de pensar as identidades negras Legitimou ainda as orientações para políticas públicas afirmativas O texto que marcou essa cisão paradigmática e influenciou bastante a produção no Brasil foi o ensaio O nascimento da cultura afroamericana uma perspectiva antropológica escrito no início da década de 1970 nos Estados Unidos pelos antropólogos Sidney Mintz e Richard Price20 Conforme os autores o texto deveria ser um guia introdutório aos pesquisadores sociais que quisessem adentrar nas investigações sobre culturas negras e relações raciais21 O texto foi publicado com uma vontade de estabelecer novos regimes de verdade ao apontar um percurso teórico e metodológico diferente dos que vinham até então se desempenhando nos Estados Unidos em que se efetivava uma polarização enrijecida das perspectivas sobre as culturas afro americanas De um lado os pesquisadores que defendiam a existência de uma cultura negra pura e herdeira de tradições africanas de outro autores que afirmavam o progressivo desaparecimento da cultura autenticamente africana no continente americano Embasados em Menville Herskovits22 Mintz e Price 2003 argumentaram que o perigo desses dois tipos de 19 Encaramos a ciência como uma prática discursiva legitimada por poderes institucionais pelas condições históricas de possibilidade de sua existência por escolhas políticas e pela produção de um saber social política e economicamente valorizados Nesse sentido ela sempre possui carga ideológica e produz efeitos políticos de realidades conforme os diferentes projetos de sociedade aos quais elabora e defende FOUCAULT 2012 Nesse sentido toda prática científica é uma prática política 20 Pesquisadores que investigavam as relações étnicas e as culturas negras ao longo do continente americano sobretudo no Caribe 21 O conceito de raça estava em alta nos campos políticos e científicos no momento da publicação por isso sua utilização sistemática nas obras da época Após o avanço das críticas ao conceito de raça no campo científico contemporâneo em algumas discussões esse termo passou a ser substituído pelo conceito de etnia ou nas abordagens em que ele permaneceu foi ressignificado mas não totalmente dispensado no pensamento social Atualmente no Brasil utilizase a expressão étnicoracial para contemplar aspectos como a constituição subjetiva e histórica que produz um pertencimento cultural etnia e os fenótipos corpóreos raça reforçandose a importância social de aspectos como cor de pele tipo de cabelo etc nas relações sociais no país Neste estudo utilizamos a noção de raça quando usada pelos autores em análise mas adotamos em nossa linguagem autoral a expressão relações étnicoraciais para articularmos a dimensão subjetiva como memória e sentimento de pertencimentos e a dimensão sociológica como os fenotípicos corporais pois ambas são importantes dispositivos identitários na produção de nossa realidade e de experiências concretas no Brasil 22 Antropólogo americano que se tornou referência nos estudos afroamericanos Ele foi um dos principais discípulos de Franz Boas CAMPOS 2001 Herskovits era formado em Antropologia Histórica de orientação norteamericana Essa perspectiva enfatizava a reconstrução do passado para entender a formação e desenvolvimento das culturas mas o fazia a partir da classificação de etapas ou estágios dos aspectos culturais bem como da descrição geográfica das semelhanças e diferenças entre as áreas culturais de uma região Estado ou continente Herskovits defendia a existência de uma consciência do sujeito negro manifesta em níveis psicológicos demonstráveis sobretudo nos níveis motor estético e valorativo para os quais orientou que se prestasse a atenção Assim o antropólogo reforçava a ideia de que essas eram as formas históricas mais comuns e típicas de expressão da consciência do sujeito negro a partir do corpo da ludicidade plástica e de valores existenciais místicos e comunais 41 perspectivas que pareciam ser tão antagônicas e que eram defendidas respectivamente por intelectuais de direita e de esquerda residia no fato de que ambas repousavam sobre as mesmas bases epistemológicas e tratavam a cultura como algo puro e imutável Em termos metodológicos enquanto representante de uma antropologia histórica a obra se voltou ao passado escravagista focando na formação das culturas afrodescendentes ao longo do continente americano Percebese que há um dialogismo na abordagem do tempo conhecer o passado para compreender o presente da mesma forma que o estudo do presente pode ser levado e comparado com as informações documentais do passado Como se trata de um ensaio não estavam preocupados em medir a exatidão dos níveis de unidade cultural das populações negras mas em identificar a existência de traços comuns que os cientistas precisavam reconhecer para entender como os laços culturais dos escravizados foram reconstruídos transformados e como funcionaram historicamente de acordo com as necessidades e condições de possibilidade de seus agentes produtores Para isso os autores defenderam a tese de que os pesquisadores precisariam esforçaremse em compreender a cultura mais em seus conteúdos abstrações crenças valores do que em suas formas socioculturais concretas danças músicas religiões Sua proposta era buscar compreender o que eles chamaram de princípios gramaticais inconscientes MINTZ PRICE 2003 p 28 espécie de representações comuns dos povos estudados que pudessem explicar os comportamentos dos africanos e seus descendentes no novo mundo Os autores valemse metodologicamente do cruzamento de documentos históricos de estudos comparados entre África e América sobre aspectos antropológicos históricos sociológicos e linguísticos e valeramse também de memórias e narrativas de comunidades afrodescendentes contemporâneas A referência analítica a tal corpus documental possibilitou que a obra não se limitasse a mero exercício especulativo apesar da assumida provisoriedade de suas teses23 Com relativa influência do materialismo histórico sua análise articula as múltiplas influências entre o social e o cultural questionando e respondendo sistematicamente sobre as condições materiais e sociais que possibilitaram a transformação produção e perpetuação cultural afrodescendente em meio ao conflito 23 Entre as dificuldades em fazer afirmações categóricas sobre o tema do ensaio estão as limitações em compreender de forma profunda os sentidos de outra cultura que não a dos autores sobretudo quando essa cultura da qual se fala situase em um tempo passado muito distante do momento de produção do texto acadêmico Outra dificuldade alude ao fato de que mesmo embasando em documentos históricos são praticamente inexistentes os registros escritos de práticas culturais dos escravizados que tenham sido feitos pelas mãos e pela ótica dos próprios escravizados Isso impõe ainda mais desafios à interpretação dessas culturas por mais que a problematize contextualize e compare Por isso os sentidos que o discurso de Mintz e Price 2003 se esforçavam em apreender agem diante deles mesmos de forma fugidia e provisória 42 O passado cultural é explorado de forma densa a partir de confrontos entre diferentes variantes sociais que influenciam o desenvolvimento da cultura tais como a diversidade étnica dos contingentes de africanos escravizados as condições sociais da colônia onde foram alocados para o trabalho compulsório um mapeamento de crenças e práticas culturais particulares do continente africano o status de senhores e escravizados as desigualdades nos níveis de exercício do poder e a fundação e funcionamento de instituições práticas e novas tradições culturais afroamericanas Defendendo a tese de que os escravos se confrontaram com a necessidade de criar novas instituições para atender seus objetivos cotidianos MINTZ PRICE 2003 p 43 os autores argumentam que essa lógica foi ao mesmo tempo resultado e causa de projetos de sociedades profundamente divididas em termos culturais fenotípicos de status e de poder No entanto essa mesma lógica classificatória e separatista de identidades estanques foi dificultada pelas múltiplas e complexas formas de interações e relações identitárias produzidas historicamente Neste ponto mesmo ponderando a fluidez dos demarcadores de identidades raciais desde a colonização ao afirmar que tal processo resultou em sociedades profundamente divididas em status culturais e fenotípicos os antropólogos reforçam as bases que sustentam as abordagens científicas racializadas da cultura Para eles as populações africanas e afrodescendentes precisaram recriar constantemente as suas identidades e culturas no ambiente hostil às suas existências Contudo existiu no processo de escravidão nas Américas uma interdependência entre senhores e escravos que favorecia as ambiguidades a provisoriedade e as resistências aos exercícios de poder Os antropólogos argumentam que as instituições que os escravos criaram para dar conta de sua existência estavam voltadas a formar novas comunidades simbólicas e à reconstrução de laços afetivos constituindo novas coerências sociais não homogeneidades A formação cultural afrodescendente foi marcada por rearranjos e deslocamentos continuidades e rupturas que criaram novas comunidades negras Conforme argumentam diferentemente dos europeus os africanos não transferiram ou recriaram instituições africanas no Novo Mundo Eles criaram suas novas instituições afroamericanas pelas quais começava a funcionar uma série de resistências e adequações às estruturas de dominação escravistas de forma mais articulada e coletiva Foi portanto na ideia de mobilização coletiva que lançaram esteio para o conceito de cultura afro Segundo eles só identificando o crescimento destas instituições negras e os tipos de coerências que elas proporcionavam aos seus partícipes é que conseguiremos compreender a formação cultural afrodescendente 43 Contudo é justamente neste ponto que eles fixam uma explicação da formação cultural centrada em etapas o estabelecimento de novos laços afetivos o compartilhamento de princípios básicos a formação de instituições a partilha de conteúdos simbólicos a produção de identidades culturais Fase a fase a explicação escapa à complexidade do processo sobre os quais fala e recai na rigidez de abordagens tradicionais que eles mesmos criticam Embora os estudiosos não encerrem esse ciclo nesse último estágio pois veem a cultura como algo relacional contextual e dinâmico predomina ainda a perspectiva teleológica de uma existência cultural A princípio o conceito de cultura afroamericana em Mintz e Price é bastante amplo ela não é singular fixa ou intacta nem se reduz a objetos ou tópicos rígidos acerca da vida política social econômica folclórica é um conjunto de relações interpessoais que media os materiais culturais formando um sistema de complexos institucionais A cultura possui um caráter móvel dinâmico e político pois é um espaço criativo de mediação de poderes e conflitos onde se articulam memórias interesses e condições ambientais de sua realização Há ainda um caráter reprodutivo da cultura pois ela é uma articulação entre lembranças e esquecimentos perpetuados por gerações É um complexo transformável e transformador das próprias relações sociais em que acontece A cultura é também uma prática de reconstrução dos próprios sujeitos que a praticam MINTZ PRICE 2003 Contudo ainda que defendendo ideias que denotam abertura e multiplicidade como dinamismo politização e pluralidade cultural ao tomar como base a noção de áreas culturais de Herskovits os autores acabam por reduzir a cultura a uma espécie de denominador comum Ao utilizar termos como base cultural princípios gramaticais orientações cognitivas ou conteúdo cultural esperaram ter identificado fundamentos típicos e coletivos dessa matriz cultural como os laços de parentesco os complexos religiosos as linguagens e as artes Para eles essas são noções que são sempre atravessadas pela mediação de poderes políticos Os autores incidem na noção de consciência do sujeito negro a partir do corpo da ludicidade e dos valores existenciais místicos e comunais já apontados por Herskovits Nesta leitura o afeto o caráter lúdico e a luta que caracterizariam a formação e desenvolvimento da cultura afrobrasileira não são suficientes para romper definitivamente com a opressão colonial Para os autores portanto a cultura afro se difunde em provisórios exercícios de assimilação Apesar das críticas que aqui fazemos reconhecemos que para a época da publicação esse conceito de cultura afrobrasileira tenha sido muito importante do ponto de vista teórico e político Ele influenciou a produção no Brasil Os intelectuais que pesquisaram a cultura afro brasileira dialogaram com as teses de Mintz e Price 2003 mas avançaram em relação a ela 44 quanto a alguns pontos conforme a disposição das fontes e das experiências históricas das comunidades negras específicas do Brasil 211 A formação da cultura afrobrasileira nas novas metarrativas históricas Os estudos sobre as relações étnicas no Brasil também foram transformados nos anos 1970 produzindo pesquisas cujos resultados viraram livros paradigmáticos sobre a cultura afro brasileira Em 1976 o antropólogo inglês Peter Fry participou de uma mesa redonda sobre Mudança Cultural na Sociedade Moderna na 38º reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência SBPC com uma fala intitulada Feijoada e Soul Food notas sobre a manipulação de símbolos étnicos e nacionais O texto questionava porque um mesmo tipo de alimento a feijoada brasileira e o soul food americano viraram símbolos de diferentes grandezas O prato americano limitouse à coisa de negro já o prato brasileiro virou coisa nacional É nessa problemática que instalou uma reflexão sobre a cultura afrobrasileira Sua análise foi tão bem aceita que posteriormente foi publicada em revista científica e livros tornandose um expoente citado em calorosos debates de cientistas do movimento social negro e de produtores midiáticos Fry afirmava que a sociedade brasileira selecionava e assimilava itens culturais étnicos tornandoos por meio da cultura de massa símbolos nacionais a serem apropriados pela sociedade Esse processo configurava uma formação nacionalista pelo reforço do mito da democracia racial aspecto que adensava o caráter velado do racismo no Brasil fazendoo difícil de combater Sua abordagem incluiu uma articulação entre o marxismo e a antropologia social inglesa e pensou as distinções entre produtores e consumidores de cultura enquanto distinções de classe A partir desse posicionamento ele tomou como exemplos para análise o candomblé e o samba práticas originalmente negras e das classes populares que segundo avaliou foram convenientemente assimiladas pela burguesia branca e manipuladas pelos objetivos do capitalismo sendo transformadas em instituições nacionais lucrativas em termos econômicos e políticos Em todo esse processo explicou Fry o negro foi destituído de seu papel de liderança deixou de ser o produtor da cultura e passou a ser um coadjuvante ilustrativo dependente quando não apenas consumidor Para ele a função da cultura afrobrasileira havia se reduzido 45 em manter de forma omissa a ordem social desigual a partir de critérios raciais24 tornando difícil a conscientização desse fato e dificultando seu combate A articulação teórica do autor inscreviase numa tradição que subordinava a cultura ao mundo concreto real valendose da noção marxista de infraestrutura e da noção de estrutura social da antropologia Como explicou posteriormente o próprio Fry na época daquela publicação quem tentava inverter o argumento explicativo era acusado de ser um culturalista FRY 2005 A obra se fundou em perguntas de um funcionalismo e materialismo dos anos 1970 que já continham respostas antes mesmo de se realizar uma investigação A pesquisa deveria comprovar a teoria Fry via a sociedade brasileira como dividida em dois coletivos generalizáveis dois polos raciais opostos os brancos sagazes e exploradores poderosos de um lado e os negros fracos ingênuos e explorados de outro A cultura era tomada como algo mais natural do que histórico em que cada lado tentava tirar vantagens a partir de um racionalismo supostamente universal FRY 2005 p 158 Por ser publicado durante a ditadura civilmilitar25 e pela carga abertamente política com que tratava o objeto cultura afrobrasileira o texto de Fry foi bem recebido pela crítica e passou a compor o universo de referências científicas dos intelectuais que dois anos mais tarde fundariam o Movimento Negro Unificado MNU Durante a década de 1980 com o processo de reabertura democrática do Brasil e a organização da Nova República26 a produção da Constituição Federal e o centenário da abolição da escravatura intensificaramse as pesquisas que cumpriam múltiplas funções naquele contexto produziam conhecimentos científicos recontavam a história nacional denunciavam o caráter estrutural da nossa organização social no passado e no presente realizavam críticas ao projeto de sociedade nacional fomentavam mudanças nas práticas discursivas e relações sociais Nesse contexto as discussões sobre o lugar do negro no Brasil embasavamse no materialismo histórico para explicar o caráter e o funcionamento da cultura negra no país 24 Termo utilizado na obra de 1976 Atualmente o próprio Peter Fry critica os graus de enunciados racializadores da discussão embora reconheça que critérios étnicos ainda são importantes mobilizadores da distribuição de bens e privilégios na sociedade brasileira FRY 2005 25 Naquele momento muitos intelectuais das ciências humanas assumiam o compromisso de produzir um conhecimento crítico que explicasse as bases históricas da estrutura de desigualdade e opressão política da sociedade brasileira a partir do materialismo histórico 26 Chamamos de Nova República o período estendido entre 1985 final da ditadura civilmilitar e início da redemocratização política e das reestruturações econômicas e culturais no país que foi interrompido pelo golpe de Estado de 2016 FERREIRA DELGADO 2018 46 Já durante os anos 1990 houve um crescente interesse em repensar epistemologicamente a cultura mas ao mesmo tempo ocorreu uma relativa diminuição da preocupação e compromisso explícito em usar a ciência para realizar denúncias políticas Essa transformação se refletiu também nas discussões sobre a cultura afrobrasileira SOUZA 2005 Como resultado de mais de 20 anos de pesquisa e sob influência teórica de Mintz e Price entre outros autores foram publicados dois trabalhos emblemáticos as obras Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade 1996 e Na senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX 1999 Em 1978 uma comunidade rural chamada Cafundó ganhou a atenção da mídia dos movimentos políticos e dos cientistas Localizada em Sorocaba interior de São Paulo composta por descendentes de africanos escravizados que praticavam uma língua considerada estranha serviu de objeto para discussões sobre a cultura afrobrasileira entre aqueles que defendiam a extinção da cultura africana no Brasil e outros que argumentam a sua sobrevivência de forma ainda pura O mesmo tipo de binarismo nas discussões sobre as culturas negras ocorrido nos Estados Unidos era percebido também no Brasil As pesquisas na comunidade de Cafundó duraram 10 anos 1978 a 1988 e aconteceram num processo de renovação da ciência histórica no Brasil na qual foi importante também a inserção de pesquisadores estrangeiros dedicados ao estudo das relações raciais27 Importante perceber que os autores da obra Cafundó o linguista Carlos Vogt e o antropólogo Peter Fry28 reconheceram a legitimidade de realizar seus estudos no contexto de realinhamento político em diálogo respeitoso com os movimentos negros Da mesma forma que na obra de Mintz e Price a metodologia utilizada nesta obra realizada no Brasil embasavase numa abordagem histórica da cultura tomando como fontes documentos escritos nos séculos XVIII e XIX e relatos orais produzidos por meio da história oral no século XX A obra Cafundó se posicionou política e intelectualmente contrária à tradição acadêmica sobre a cultura afrobrasileira até aquele momento Propôs a revisão do conceito de cultura afro 27 É importante lembrar que 1988 ano final da pesquisa na comunidade de Cafundó marcava o centenário da abolição da escravatura no Brasil Somandose os efeitos da reabertura democrática e do crescimento dos estudos que denunciavam o caráter historicamente opressor e desigual da sociedade brasileira o centenário da abolição gerou atenção especial ao questionamento das condições de vida da população negra no Brasil Ao mesmo tempo atualizavamse os discursos que defendiam a ideia de democracia racial no país Em que pesem as distintas perspectivas as questões dos negros ocupavam lugar de destaque no universo de preocupação da época 28 A pesquisa e texto final contou também com a colaboração do historiador Robert Slenes e do linguista Maurício Gnerre 47 problematizando sua temporalidade e revelando novas experiências históricas em que essa cultura pôde ser evidenciada de forma diferente esforçandose para compreender de forma mais interna e profunda os significantes e significados que criam e recriam a lógica do complexo cultural afrobrasileiro Dessa maneira os autores pontuam duas tradições de abordagem científica dos africanismos reinventados no Brasil que merecem destaque a primeira seria a filológica ou historicizante e a segunda seria a históricoestrutural A primeira preocupouse em evidenciar as origens e a reprodução de práticas culturais puras entre África e Brasil repousando sobre uma perspectiva folclorista Nesse sentido a cultura afrobrasileira emergiu como pitoresca e cristalizada Ela seria atemporal mera reprodução mecânica de atividades exóticas encerradas no passado típicas do outro Os sujeitos que a fazem seriam destituídos de inteligência e criatividade pois apenas reproduziriam mecanicamente as atividades herdadas dos seus antepassados sem adequálas aos novos contextos Tal abordagem corresponde à fase de estudos afrobrasileiros a que Fry e Vogt 1996 chamam de romântica A segunda perspectiva a históricoestrutural evidencia a lógica da compensação considerando que a vida social não incide em combates campais entre culturas opressoras e culturas que romanticamente resistem29 mas entre grupos categorias e sujeitos para quem a cultura orienta a ação política e é ao mesmo tempo uma arma usada para empreendêla Aqui os autores pensaram a política no plano micro como relações de força que se estabelecem no cotidiano Para eles nessas pequenas e grandes batalhas do dia a dia a cultura vive e revive através daqueles que a usam transformandoa e transformandose É desse ponto de vista que eles estudam a linguagem utilizada na comunidade rural Cafundó chamada de Cupópia30 enquanto prática cultural viva como ação política enquanto discurso que só os iniciados podem compreender Essa linguagem estabelece uma etnicidade afirma uma negritude uma ascendência africana e legitima a luta política do grupo pela posse das terras Ela é entendida como eixo estruturador da vida em comunidade cujo significado político e social é dado pelo contexto das relações onde tem existência A cupópia estabelece 29 Aqui percebese que o autor Peter Fry já revisa sua análise interpretativa deslocandoa e assina uma tese diferente daquela que se tornara icônica duas décadas antes 30 A Cupópia é uma prática de linguagem afrobrasileira resultante de arranjos linguísticos ocorridos no Brasil entre as línguas africanas e a língua portuguesa Embora muitas palavras sejam de léxicos africanos a estrutura sintática que a organiza são da língua portuguesa O sistema dessa linguagem é dinâmico criando múltiplas significações para uma mesma palavra a depender do contexto em que se dá o diálogo o discurso Tratase portanto de uma língua viva e muito complexa que produz sentidos em contextos sociais específicos e que para muitos observadores desatentos não passa de uma língua confusa e pouco inteligente 48 solidariedades entre seus falantes e os habitantes de cidades vizinhas e os representantes do poder distante e exerce mais do que uma função referencial ou cognitiva ela dá forma às relações de poder no cotidiano da vida social FRY VOGT 1996 Dentro dessa cosmovisão há um dinamismo no sentido das palavras em contextos específicos em que a fala e as significações da cupópia assumem interesses específicos É o que Fry e Vogt chamaram de um paradigma das finalidades FRY VOGT 1996 A partir dessa noção os autores analisaram discursos situações conversacionais entre os falantes da cupópia a fim de entender como essa linguagem se expande e significa relações sociais a partir de conceitos O debate sobre reprodução versus transformação cultural é abordado à luz do estudo das relações sociais concretas nas quais esses traços culturais se articulam Embora a abordagem privilegie a política e a economia nas relações entre os moradores de Cafundó e a sociedade envolvente pensa a cultura afrobrasileira apontandoa em várias direções Da mesma forma que Mintz e Price 2003 fizeram Fry e Vogt ponderam a relevância de práticas culturais afrobrasileiras como as danças músicas candomblé festas jogos Essas que se tornaram símbolos da cultura afrobrasileira no senso comum brasileiro devem ser interpretadas de forma diferente não como elementos de pura herança africana que compõem o folclore brasileiro nem como práticas de alienação mas como práticas que inscrevem sentidos memórias identidades solidariedades e relações de poder Contudo embora as considerem importantes os autores não as tornaram o foco de análise nesta obra Eles voltaram se para práticas que esperavam os permitissem compreender sentidos elementares da cultura Essa perspectiva já redireciona nosso entendimento quanto à noção de cultura Aqui estão sendo enfatizados outros aspectos culturais como a linguagem a constituição de famílias e a organização social embasada na ideia de parentesco formulando teses interdiscursivas apoiadas nos enunciados de Mintz e Price Ressaltase o papel das instituições e práticas culturais na reconstrução de identidades que agem sobre o mundo não apenas de forma lúdica mas também de forma analítica organizada e dotada de ação política no enfrentamento de suas dificuldades materiais e simbólicas de sobrevivência A cultura afrobrasileira é também para Fry e Vogt um espaço de mediação de poderes e conflitos de interesse FRY VOGT 1996 Já o livro Na senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX do historiador norteamericano radicado no Brasil Robert Slenes resultou de sua busca em aprofundar os estudos de doutorado feito em 1976 na Stanford 49 University partindo de uma historiografia demográfica e econômica sobre a escravidão no Brasil da segunda metade do século XIX Esta é a obra propriamente historiográfica que ressignificou o conceito de cultura afrobrasileira Slenes analisou algumas práticas culturais e princípios elementares da cultura afro Ele também se contrapôs à historiografia existente até então que afirmava ser a família escrava uma instituição vulnerável SLENES 1999 Do contrário percebeu em suas fontes históricas que a família havia se tornado uma instituição muito viável para os próprios escravos Como o autor narra num primeiro momento ele preferiu analisar as famílias escravas como instrumento de dominação e exploração por parte dos senhores o que ele mesmo chamou de política de dominação senhorial SLENES 1999 Só posteriormente quando percebeu a mudança paradigmática que a historiografia norteamericana vinha dando à relativa autonomia escrava é que Slenes voltouse à família escrava para tentar compreender os significados dessa instituição dentro da perspectiva dos próprios africanos escravizados SLENES 1999 O seu principal referencial teórico foi a história social inglesa a partir de Edward P Thompson pelo qual Slenes entendeu que o sentimento de pertencimento a um grupo social por parte dos sujeitos históricos estudados no caso os escravizados africanos e seus descendentes era crucial para entender sua história Contudo apesar do embasamento na teoria thompsiana31 Slenes afirma que só começou a se interessar pelas questões culturais quando participou da pesquisa sobre a comunidade Cafundó Em sua metodologia buscou perceber alguns elementos da vida material e simbólica dos escravos nos relatos dos cronistas e viajantes brasileiros e estrangeiros que falaram um pouco do cotidiano escravo nas lavouras do sudeste durante o século XIX ainda que tratassem a formação de famílias e lares negros de forma depreciativa Foi necessário ler nas entrelinhas dos discursos dos cronistas literatos viajantes e cientistas que à sua época não compreendiam ou achavam impossível a existência de uma lógica cultural própria dos escravizados Sua análise foi complementada por leituras comparativas de obras da Antropologia Linguística e História referentes à África Central Slenes se define no seu texto como um revisionista conceitual um historiador com novo perfil científico uma vez que muitas das práticas negras foram interpretadas como primitivas ou limitadas fossem pelas condições biológicas e culturais dos negros fossem pelas condições sociais e históricas da escravidão Ele declarou que o objetivo do seu livro foi reconstruir a capacidade dos escravos produzirem famílias de vários formatos conjugais extensas e 31 Que realizou um revisionismo crítico do materialismo histórico dando grande importância ao campo da cultura mas pensando sempre o conflito social como contexto delimitador das possibilidades culturais 50 intergeracionais além de lhes reconhecer as ações de assistência na construção de projetos em comum SLENES 1999 Percebemos então que mesmo tomando E Thompson como principal referencial teórico as premissas de Mintz e Price também repousam na argumentação de Slenes GOMES 2013 2015 A estratégia adotada pelo historiador Robert Slenes foi a de entender a cultura como formada por conceitos práticas e relações que partem de uma cosmovisão que atendia a uma lógica própria em meio à opressão Segundo o autor a cultura é reatualizada a partir das múltiplas experiências de ação e reflexão em diferentes contextos históricos São princípios norteados por uma concepção da cultura como inteligência fruto de complexas e dinâmicas operações mentais as quais também dizem respeito à história dos povos negros Por conseguinte o discurso de Slenes dialoga muito com o discurso do MNU e com isso ele foi mais um dos que conseguiram contemplar no plano acadêmico muitas das demandas de significação destes movimentos por uma reescrita da história32 Ao contrário do que dizem os clássicos do pensamento social brasileiro o negro em Slenes é um ser constituído de inteligência consciente analítico e político atuando culturalmente a partir da linguagem dos conceitos e ideias da política da afetividade da arquitetura da ciência33 SLENES 1999 Conforme Slenes é necessário captar a lógica dos escravos portadores de uma herança cultural em comum apesar de suas diferenças etnolinguísticas frente às situações específicas de contato entre si com seus senhores e com outras pessoas livres ou libertas SLENES 1999 p 40 Foi tentando enxergar a cultura afrobrasileira por dentro buscando entender a sua lógica própria que ele investigou e escreveu34 Dessas influências e percepções foi que surgiu a concepção de cultura defendida por Slenes a articulação consciente entre tradições culturais africanas as necessidades de sobrevivência dos escravizados em meio ao conflito e as condições ambientais que circunscreveram as possibilidades de transformação cultural Para Slenes a família escrava era uma instituição cultural afrobrasileira que possibilitou a formação de coerências de um sentimento de pertencimento a uma comunidade negra que mesmo ameaçada compartilhava experiências memórias e valores criando boas 32 Como veremos adiante também houve intelectuais de formação e atuação acadêmica no MNU 33 No sentido de uma ciência natural sabedoria ou forma de produção de saber legítima para os africanos e seus descendentes mas que segue uma lógica distinta da ciência moderna ocidental 34 Em nossa análise percebemos que a argumentação de Slenes compõese de enunciados racializadores ou seja enunciados que posicionam as perspectivas de acordo com a ideia sociológica de raça Nas palavras do historiador a força de ideias préconcebidas e estereótipos sobre os negros seu cotidiano e sua cultura não permitia que os cientistas brancos e está falando aqui não apenas de uma brancura em nível de cor de pele mas sim de uma brancura como cosmovisão judaicocristã moderna ocidental capitalista não entendessem o universo cultural afrobrasileiro O que o autor chama de olhar branco produzia um saber de forma epistemologicamente reducionista e politicamente dominadora em relação ao objeto de que falava 51 oportunidades de enfrentamento cotidiano A família escrava era um projeto de vida um campo de batalha um dos principais palcos onde se travavam lutas entre escravos e senhores na busca para definir a própria estrutura e destino na escravidão Ela foi uma das mais importantes instituições culturais que contribuíram para a formação de uma identidade nas senzalas conscientemente antagônica a dos senhores e compartilhada por um grande número de cativos A família é importante para a transmissão e reinterpretação da cultura e da experiência entre as gerações SLENES 1999 p 114 Logo para o autor a instituição familiar funcionou para os escravizados como um espaço de formação de uniões solidariedades e memória histórica próprias Embora Slenes tenha demonstrado refinada análise sua tese repousa sobre argumentos que apresentam ainda fragilidades pelo grau de generalização provisoriedade e pela busca de identificar princípios gramaticais gerais fundamentos básicos e típicos da cultura além de repousar epistemologicamente numa ideia de consciência humana em si que diferenciava os negros escravizados dos senhores brancos Na obra de Slenes as identidades parecem ser romanticamente fixas Contudo em termos historiográficos esta foi a discussão que mais avançou conceitualmente na contemporaneidade GOMES 2013 2015 Porém há até aqui uma vontade de verdade científica tipificada no enquadramento reducionista e generalizável da própria cultura para que seja apreendida em categorias que se propõem apesar de suas próprias limitações a explicar a cultura afro pelas visões de mundo das pessoas negras O reconfigurar da lógica explicativa científica por meio de novas fontes e métodos não garantiu o abandono da perspectiva moderna de se construir uma narrativa pautada em categorias totalizantes da história Como nos diz Foucault 2012 a troca de perspectivas teóricas não coincide necessariamente com a mudança de uma epistemologia Assim a definição da cultura afrobrasileira não foge à regra da produção de um tipo de identidade cultural negra a que se possa conhecendo dominar 212 A renovação da cultura afrobrasileira nas novas metarrativas históricas A passagem entre os séculos XX e XXI consolidou em várias universidades brasileiras as perspectivas que articulavam novas bases teóricometodológicas em torno da cultura rearticulandoa à política e analisando diversos grupos e experiências sociais Aliado a isso uma série de reinvindicações do movimento negro e de alguns acadêmicos bem como uma série de políticas afirmativas e ampliação do ensino superior no Brasil em nível de graduação e pósgraduação promovido pelo Estado na gestão do Partido dos Trabalhadores PT e a 52 ampliação quantitativa de pessoas negras no ensino superior fez crescer sobremaneira a produção científica sobre as relações étnicas no Brasil em especial sobre a cultura afro brasileira QUEIROZ 2010 GOMES 2013 Mesmo reforçando as premissas que contextualizam as condições de produção da cultura afro pelas desigualdades étnicoraciais e pelos conflitos sociais esses estudos diferenciamse dos anteriores por pensar a cultura a partir de outras bases teóricas não como efeito reprodutivo do mundo material mas como um campo de produção de experiências relativamente autônomo e com lógicas próprias capaz de alterar o mundo material Analisam se a produção transformação e perpetuação cultural negra não no passado escravocrata mas em um novo recorte temporal a contemporaneidade No ano 2000 Jocélio Teles Santos defendeu sua tese de doutorado em Antropologia Social na Universidade de São Paulo versando sobre as relações entre a política liberal do Estado brasileiro e as lideranças sociais negras durante a segunda metade do século XX em que pesaram seus símbolos e suas práticas culturais Obra bastante popularizada após ter se sido publicada como livro Mesmo se tratando de um contexto em que já não havia mais a legalidade do sistema escravista o autor pondera outras formas de opressão e violência sofridas pelas populações negras num país supostamente democrático Na perspectiva de Santos a opressão começa principalmente no plano discursivo Esse ainda é o meio por onde se justificam e perpetuam as desigualdades sociais a partir de critérios étnicos na atualidade SANTOS 2005b Essa opressão conforme o autor diz respeito a uma ambiguidade no Brasil de um lado a exclusão social econômica e política da população negra de outro uma relativa convivialidade com essa mesma população desde que seja contudo pelo viés da cultura mas de uma cultura entendida como pitoresca a ser conhecida pela população nacional de forma enciclopédica espetacularizada mas não praticada comumente Assim Jocélio Santos 2005b explica que nos discursos oficiais do Estado brasileiro nos anos 1950 e 1960 a cultura se tornou uma categoria de análise social brasileira substituindo paulatinamente a categoria raça Dessa forma o governo projetava que a questão no Brasil não seria mais a da desigualdade e do racismo mas sim a celebração de uma cultura única mestiça e democrática Conforme o antropólogo essa convivialidade serviu para legitimar ideias como as de mestiçagem e de democracia racial pelas quais se criou uma concepção de que não existe racismo no Brasil Essas ideias se expandiram socialmente permeando a visão do povo dos intelectuais dos políticos e dos acadêmicos de esquerda e de direita SANTOS 2005b p 16 formando uma ideologia não no sentido de falsa 53 compreensão sobre a realidade mas enquanto produtoras de novas realidades Neste sentido elas legitimaram e reproduziram a mesma realidade étnica desigual a qual desejavam refutar Conforme argumenta Santos 2005b é justamente em meio ao racismo brasileiro que a população negra recria e perpetua institucionalmente suas práticas culturais num jogo complexo de poder entre as formas de ativismo negro e um Estado liberal dominado por uma elite branca cristã capitalista patriarcal e conservadora Seu estudo procedeu a uma abordagem históricoantropológica e a uma justaposição e confronto de textos a partir dos quais realiza uma análise discursiva Assim o autor descreveu dois contextos das políticas públicas voltadas à cultura afrobrasileira a Os anos 1960 quando a cultura se tornou um bem utilitário a ser tutelado pelo Estado que desejava tanto a unidade nacional quanto se tornar a liderança política e econômica dos países do terceiro mundo b Dos anos 1970 a 1980 quando as lideranças culturais afrobrasileiras intensificaram suas discussões e formas de participação política na esfera pública chegando a conquistar transformar e construir alguns espaços institucionais no setor público Nesse segundo momento a cultura passou a ser encarada como uma estratégia política uma ação e não um bem Embasandose na obra de Bourdieu Santos afirma que a cultura é uma carta política SANTOS 2005b p 21 Ela não é um bem fixo portanto não é mero objeto de manipulações Ela é uma ação um trabalho Para o autor a cultura não se reduz à dimensão política contudo não se pode negar que existem algumas dimensões do poder inseridos na cultura da mesma forma que há uma dimensão do poder da cultura35 Foi nos embates entre a manipulação governamental e as táticas negras de enfrentamento político que a cultura afrobrasileira oscilou entre exercícios provisórios de negociação dominação convivialidade e resistência SANTOS 2005b A cultura afrobrasileira é para Santos 2005b sempre uma estratégia de ação Do lado do governo ela foi utilizada para celebrar e afirmar a inexistência do racismo sendo instrumento estratégico de política econômica externa e interna Na perspectiva governista a cultura afro brasileira não era uma prática aberta mas um objeto encerrado em si mesmo para uso 35 Ao falar do poder da cultura Santos 2005b parece defender uma noção de poder como propriedade da cultura Nesta leitura o poder não seria uma prática mas um bem a que se possa dominar e obter como se a cultura tivesse um poder nato quase natural ou típico Essa concepção parece deslocar o caráter histórico e dinâmico da própria cultura 54 administrativo reduzida a um conjunto de símbolos cristalizados e hierarquicamente valorizados na cultura nacional36 Segundo o autor o contexto mudou entre os anos 19701980 período de formação de uma nova cultura política no Brasil em que os movimentos sociais lutaram para inscrever suas pautas no campo oficial dos direitos a fim de garantir princípios inclusivos e práticas democráticas de cidadania É justamente nessa espécie de virada cultural que o autor defende a dimensão do poder político da cultura negra descrevendo como ela se inseriu embateu e negociou no poder público que desejava dominála Paulatinamente a cultura afrobrasileira ganhou uma nova definição dentro do próprio ativismo afrodescendente em que se encontravam os discursos do movimento social negro dos intelectuais e artistas de esquerda e das lideranças religiosas afrobrasileiras Nessa definição operouse simbolicamente um deslocamento do foco nos objetos culturais para os sujeitos SANTOS 2005b Para Santos a cultura afrobrasileira é um um sistema de representações que não está destituído de uma dimensão política SANTOS 2005b p 234 Ela não existe sem o poder Ela se reifica como estratégia de luta e embate SANTOS 2005b p 234 sendo produzida e transformada historicamente pela ação humana em meio ao contexto de conflito no qual a população negra está inserida Assim o título da sua obra O poder da cultura e a cultura no poder presume que o poder da cultura está na potencialidade cívica e econômica que oferece ao Estado daí a necessidade de sua tutela Já a cultura no poder relacionase à experiência estratégica dos grupos de cultura negra na efetivação de uma política de enfrentamento e afirmação de anseios coletivos da negritude inserindose nas engrenagens do poder público Também no ano 2000 a pesquisadora Florentina da Silva Souza defendeu sua tese de doutorado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais investigando a produção discursiva da mídia criada por e para pessoas negras e mestiças37 no Brasil Souza 36 Santos 2005b explica que com a ajuda da mídia e de intelectuais ligados ao Estado a cultura afrobrasileira passou de coisas de negros a coisas nacionais tendo algumas práticas elevadas a símbolos nacionais de acordo com a conveniência políticoadministrativa e econômica viabilizada pelas elites brancas que dominavam as engrenagens do Estado ao passo que dificultava a consciência do racismo e o combate a ele Percebemos aqui o interdiscurso com a tese defendida em 1976 por Peter Fry Para tanto a obra de Santos não se limita a esta tese antiga ela ampliase quando o autor passa a considerar a atuação de outros sujeitos que agiam fora do poder público Ao analisar as ações das lideranças políticas artísticas e religiosas negras o autor constatou de que maneira as formas de mobilização cultural negras funcionaram enquanto resistência à manipulação Em ambos os casos a cultura afrobrasileira é um instrumento de estratégia política 37 Souza 2005 inclui nesta nomenclatura as categorias negra e mestiça por levar em consideração que nem toda pessoa de pele escura se declara negra embora compartilhe de uma memória cultural construída sobre a mesma história de desigualdade étnica no Brasil 55 analisou os objetivos as práticas discursivas as pautas as formas e estratégias utilizadas por essa mídia negra para a formação de um público leitor que se tornasse consciente de sua condição histórica e a partir disso pudesse reconstruir sua identidade étnica Posicionandose como uma mulher negra ela admitiu que sua pesquisa pretendeu contribuir com a construção dos lugares de memória negros na cultura brasileira SOUZA 2005 Assim problematizou as práticas culturais afrobrasileiras por meio da linguagem veiculada em jornais como Cadernos Negros Jornal do Movimento Negro Unificado jornal do MNU Maioria Falante e Jornegro produzidos a partir dos anos 1970 por estudantes militantes negros e por pessoas próximas aos partidos de esquerda Esses periódicos compuseram uma discursividade que mesclou textos literários informativos e de opinião cujo objetivo foi massificar as críticas às relações étnicas no Brasil e recriar as mobilizações políticas em tons éticos e estéticos Souza afirma que essa textualidade foi produzida na angústia de viver a ambivalência de ser simultaneamente participante e excluído pertencente e não ao país SOUZA 2005 p 12 Destarte os textos da mídia negra assumem uma função pedagógica e uma missão políticacultural de alertar os leitores sobre suas condições de vida e os perigos da convivência com a cordialidade do racismo brasileiro Para a pesquisadora esta mídia produziu um modelo de consciência histórica e de identidade38 a ser subjetivado por pessoas de pele escura a partir da estratégia de produção de uma memória cultural africana pela qual pudessem recriar suas formas de mobilização política e emanciparse inscrevendose numa tradição de produção de mídia escrita por autores negros que se situa historicamente no Brasil desde 1915 agindo de forma persuasiva e interessada em intervenções que erradicassem os quadros de desigualdade étnica e social A metodologia do estudo apoiouse sobremaneira nos estudos culturais realizando uma abordagem históricocultural que extrapolou os procedimentos e conceitos da crítica literária dialogando com áreas como a História e Análise do Discurso A partir desse cruzamento Souza afirma que os textos dos periódicos analisados recriaram imagens da negritude desestabilizaram estereótipos negativos fabricaram uma memória cultural ligada à ancestralidade africana mas consciente de suas identidades híbridas e transitáveis entre várias culturas Eles também produziram um perfil de conscientização e mobilização através do desejo compartilhável de emancipação étnica e social reafirmaram uma tensão política social 38 Souza 2005 argumenta que inicialmente a produção da mídia negra se voltou a produzir uma noção rigorosa de identidade negra mas os constantes fluxos de informação e trocas entre o MNU e os partidos de esquerda assim como o revisionismo teórico influenciado pelos estudos contemporâneos da cultura proporcionaram nos anos 1990 uma noção mais ampla de identidade como sendo processual dual móvel e construída no interior da vida cultural 56 e cultural no país tomando como base o racismo e construíram um público leitor Contudo pondera Souza 2005 mesmo que essa produção engajada tenha se esforçado em estabelecer os valores africanos obviamente não conseguiu se desprender de ícones eurocêntricos por isso mesmo sua comunicabilidade e intencionalidades são ameaçadas pelas ambiguidades polifonias e polissemias que interferem em suas práticas de enunciação tornandoas nem sempre bemsucedidas SOUZA 2005 Embasada em Homi Bhabha Souza argumenta que a cultura é híbrida39 e que enquanto espaço dinâmico de mediação de poderes políticos o hibridismo que lhe caracteriza é resultado de uma série interminável de lutas por imposições de leituras resistências e intervenções nos exercícios de autoridade dos poderes eurocêntricos Em sua interpretação a cultura é na lógica dos grupos marginalizados uma reversão dos efeitos de desapropriação cultural uma ação produtiva que cria uma cultura nova que não é apenas branca negra ou indígena mas sim a soma criativa dos posicionamentos e interesses Foi a partir desse posicionamento que a pesquisadora construiu seu conceito de cultura afrobrasileira Pensandoa como processo de montagem multinacional constituído de práticas discursivas variadas que abrangem diversos setores da vida SOUZA 2005 p 25 considera que a cultura afrobrasileira é a prática de posicionamentos políticos da população afrodescendente a fim de garantir melhorias materiais e simbólicas em suas condições de existência É a possibilidade de reinvenções de práticas e posicionamentos justamente pela multiplicidade que a constitui uma abertura construída como intervenção sofrida e praticada simultaneamente pelos encontros conflituosos mas sempre interessados entre as culturas africanas europeias e indígenas Deste modo a partir da análise dos dados encontrados em suas 39 As Ciências Sociais como a História e a Antropologia contemporâneas usam diferentes conceituações para designar os processos históricos de interação e misturas culturais Para tratar dos processos mais antigos iniciados no século XVI com a colonização do continente americano os contatos trocas e fusões entre indígenas africanos e europeus usualmente utilizase o conceito de mestiçagem dos quais um dos grandes teóricos da atualidade é o historiador francês Serge Gruzisnki 2001 Já para processos contemporâneos nos quais o contexto da globalização dos mercados e do avanço das tecnologias e mídias alteram as capacidades os ritmos efeitos e extensão dessas interações trocas e fusões usase o termo hibridação para o qual dois grandes nomes são o crítico cultural indobritânico Bhaba 2013 e o antropólogo argentino Canclini 2013 Esses autores apresentam obviamente significativas diferenças mas também partilham algumas semelhanças para pensar esses processos Por exemplo tanto o conceito de mestiçagem quanto o de hibridação enfatizam a violência o conflito os massacres as formas de segregação e exclusão social em que ocorrem esses processos de misturas culturais Nem as mestiçagens do passado nem as hibridações do presente foram ou são construídas em contextos de equidade e harmonia social embora possam contar com processos de negociação e de produção de solidariedades Como lembra Schwarcz 2019 mistura não quer dizer igualdade e os processos de mistura no Brasil sempre souberam manter distinções estratégicas entre diversidade cultual sempre hierarquizada e desigualdade social Portanto a hibridação é um processo criativo e político de reconfiguração das práticas e instituições culturais em que sujeitos históricos em condições transitórias e marcadas por violência recriam suas possibilidades existenciais trocando e fundindo tradições para resistir e sobreviver e com isso criam culturas totalmente novas cujas matrizes de referência são bastante difíceis de se localizar e definir 57 fontes históricas e à luz das reflexões de Stuart Hall a noção de identidade cultural negra que a autora constrói é considerada como resultado provisório de jogos de posições um exercício circunstancial móvel gerado pelas necessidades de legitimação política e união estratégicas SOUZA 2005 A autora inova ao inserir a literatura e a imprensa no campo dos estudos sobre a cultura afrobrasileira no século XX A novidade de sua abordagem cultural dos estudos afro brasileiros está tanto em suas definições de mídia negra enquanto um circuito de publicação alternativo produzido por e para negros e mestiços e de literatura negra ou afrobrasileira enquanto prática literária que faz questão de se posicionar a partir das experiências negras pela ruptura dos cânones literários nacionais e pela formação de um público leitor específico Já em 2010 a historiadora Martha Rosa Figueira Queiroz defendeu sua tese de doutorado em História pela Universidade de Brasília UnB intitulada Onde a cultura é política em que analisa o desenvolvimento do MNU no Recife entre os anos 1970 e 1990 e as suas estratégias de atuação focadas sobremaneira nas práticas culturais afrobrasileiras e no Carnaval40 A autora assume uma postura de pesquisadora que é também sujeito da pesquisa mulher negra militante que participou de agremiações carnavalescas afrodescendentes e que é pesquisadora da cultura afrobrasileira Ela narra em sua introdução que enveredou profissionalmente pela ciência histórica por ter participado da militância afropernambucana e a partir dela assumiu subjetiva e coletivamente o compromisso de ajudar na reconstrução da memória histórica da população negra o que constitui uma tática política na luta antirracista É nesse bojo discursivo que ela efetiva sua obra enquanto historiadora da cultura afro ao admitir que o seu lugar social se encontra com seu objeto de pesquisa pontua que refaz a si mesma enquanto mulher negra QUEIROZ 2010 Conforme Queiroz o momento analisado em sua tese constituiu um contexto bastante intenso e ambíguo marcado por transformações no campo políticoadministrativo e das epistemologias na produção do conhecimento científico Isto verificouse pela virada cultural na ciência histórica pela crescente relevância que a própria História tomava como campo analítico com relação às demais ciências humanas ao lado do discurso e das próprias noções de cultura e política Nesse contexto ampliaramse no Brasil as instituições culturais afrodescendentes bem como suas tomadas enquanto objetos de estudos sob novos referenciais teóricos e metodológicos A autora ainda critica a permanência do argumento de que a luta geral 40 Como explica em sua tese na lógica dos militantes negros do Recife o Carnaval é um espaço de poder no e pelo qual lutaram e lutam QUEIROZ 2010 58 contra o capitalismo seria maior do que as lutas menores ou específicas como as lutas de gênero e raça Sua pesquisa tomou como fontes históricas o cruzamento de documentos escritos como jornais relatórios documentos do MNU imagens letras de músicas dos afoxés pernambucanos e relatos orais de representantes da cena política e cultural negra do período estudado Sua metodologia embasouse na análise crítica do discurso de orientação francesa apoiada em autores como Bourdieu Certeau e Foucault Na atualização dessa luta histórica Queiroz 2010 identificou da mesma forma que Santos 2005b o fez a presença de uma divisão entre os que defendiam a discussão teórica políticos e os que defendiam a discussão artística culturalistas no cerne do MNU Tanto embasada nas fontes históricas encontradas quanto na própria experiência enquanto ex participante de agremiações carnavalescas afro e do movimento ela considerou que os artistas negros de Recife tiveram um papel importante na luta política da população afrodescendente embora fossem vistos até mesmo por muitos militantes negros entre os anos 1970 e 1990 como meros promotores de entretenimento e não de mudanças sociais É nesse sentido que ela começou a desenhar sua noção de cultura afirmando que o cultural e o político se entrecruzavam numa relação de reciprocidade e não de hierarquização e isolamento QUEIROZ 2010 p 1741 É num processo histórico de luta política em que se imbricam as emergências e cruzamentos de instituições discursos e práticas como as do MNU das agremiações carnavalescas dos eventos e das práticas artísticas que fortaleceram no campo cultural a luta pela erradicação do racismo e outras formas de opressão que historicamente negam à população negra os direitos e as condições para participar de forma igualitária da vida econômica política cultural e social brasileira QUEIROZ 2010 p 155 41 Seu argumento é o de que a forma como encaramos a cultura reforça as hierarquias étnicas pois há uma tradição de pensamento que postula a produção racional de conhecimentos às populações europeias e suas descendências e as práticas lúdicas e emotivas às populações africanas e suas descendências Nesta lógica explicativa a cada experiência cultural cabe o que lhe é próprio e se completa a cultura branca inteligente e organizadora da vida social portanto dominadora e a cultura negra ingênua e necessitada de tutela Esse argumento como vimos também foi realizado nas análises materialistas como a realizada por Peter Fry em 1976 Queiroz 2010 chama a atenção para o fato de que esses discursos naturalizam produções históricas de hierarquias políticas a partir de critérios étnicos e ao defender a complementariedade dessas matrizes culturais reforçam o que o ativismo negro chamou de mito da democracia racial Essa discussão em que se mobilizam as categorias de cultura e de mito da democracia racial ativa não só a memória discursiva do MNU e da própria historiadora como também as obras de outros intelectuais que escreveram sobre a cultura afrobrasileira seja para reafirmar ou para refutar suas teses Queiroz ainda explica que a cultura possui lógicas próprias de funcionamento que lhe garantem relativa autonomia enquanto operadora de relações de poder embora esteja interligada a outras esferas da vida social como a economia e a política 59 Em suas análises percebeu que essas emergências cruzadas produziram um enegrecimento ou uma reafricanização da cena cultural recifense em particular a carnavalesca quando um grupo de homens e mulheres optou por aceitar o desafio de existir enquanto negros e negras construindo pautas em que teoria política e científica se cruzavam com a produção de expressões artísticas com múltiplas linguagens dialogando entre si Assim o Recife teve sua paisagem cultural modificada por atividades como a identificação negroracial de algumas manifestações culturais especialmente as carnavalescas como o frevo e o maracatu42 a introdução e criação de novos gostos culturais a partir da inserção dos afoxés43 e blocos afro no Recife a realização de festas e espetáculos como palcos para apresentação das proposições políticas o uso de vocábulos de idiomas africanos nas práticas discursivas para afirmar sua etnicidade a produção de uma mídia negra a proliferação de letras de músicas com forte teor político em vários ritmos de origem negra a criação reconhecimento e legitimação de espaços públicos de visibilidade para a cena cultural negra na cidade o lançamento de uma grife de moda afro a participação e fundação de novas agremiações carnavalescas a valorização e difusão do uso de indumentárias adereços formas e conteúdos da estética negra etc Todas essas práticas eram embasadas em valores como a celebração dos orixás a reelaboração da luta antirracista a valorização das rebeldias coletivas e dos heróis e heroínas negras a valorização da ancestralidade africana a reconstrução da memória histórica da África dos povos africanos da escravidão e da cultura afrobrasileira os desafios contemporâneos da população negra e a denúncia ao mito da democracia racial o 20 de novembro e Zumbi dos Palmares a denúncia do racismo no Brasil QUEIROZ 2010 Queiroz 2010 ou Martha Rosa como é conhecida no meio acadêmico e na militância negra brasileira produziu seu estudo doutoral embasada no campo da História Cultural pela ênfase que dá às representações enquanto ordenadoras das práticas políticas sociais econômicas culturais e étnicas A autora realizou uma mescla entre autores que discutem a cultura por diversas matrizes teóricas algumas que por vezes se encontram outras que por vezes se contradizem Ela se embasou em autores de orientação neomarxista a exemplo de E 42 A autora afirma que o movimento buscou reenegrecer as práticas que eram tomadas como símbolos da identidade pernambucana O movimento se empenhou em tornar esses símbolos mais uma vez em símbolos étnicos negros produzindo novos discursos e práticas que produzissem essa consciência Era um esforço para descolonizar as práticas negras das apropriações culturais das elites brancas e capitalistas Vêse que o movimento ainda se ancorava em alguns argumentos de Peter Fry lançados nos anos 1970 43 A autora dedica atenção especial em seu trabalho aos afoxés pela forma como foram inseridos na cena cultural negra do Recife em consonância com o MNU e sua proposta declaradamente antirracista e valorativa da negritude característica presente não só nas letras das músicas mas na própria forma de elaboração organização e ação dos emergentes afoxés pernambucanos 60 P Thompson e Bourdieu autores de orientação pósestruturalista como Foucault Certeau Larrosa Chartier e Rachel Soihet além de apoiarse em autoras negras como Lélia González Wlamyra Albuquerque Luiza Bairros e Nilma Lino Gomes Selecionou algumas noções e as organizou de modo a compreender as ações culturais negras enquanto práticas de resistência QUEIROZ 2010 Também para a autora a cultura afrobrasileira é produzida no conflito entre as práticas do racismo e suas estratégias de enfrentamento A historiadora se apoia sobremaneira na noção de cultura do historiador francês Michel de Certeau para quem esta deve ser pensada como uma prática aberta de significação e ação em contextos delimitados por variáveis como tempo espaço sujeitos instituições e relações sociais que são ao mesmo tempo de coerção e de contrato Assim a cultura afrobrasileira para Martha Rosa 2010 é uma prática aberta de produção de sentidos políticos da população negra em relação a uma sociedade racista Ela é uma prática política de resistência negra que se materializa sobremodo por meio do discurso e produz novas solidariedades projetos instituições e práticas Das formulações do conceito de cultura afrobrasileira consideramos que as obras das pesquisadoras negras foram as que mais avançaram em termos de uma conceptualização de fato Tanto pelo momento histórico de uma revisão epistemológica mais profunda no conceito de cultura quanto pela ampliação de campos de pesquisa no Brasil como os estudos culturais a história cultural e de abordagens pósestruturalistas além do seu lugar social CERTEAU 2008 enquanto mulheres negras ativistas e com uma história de pertencimento às experiências históricoculturais a que analisam ampliaram suas percepções a respeito de seus respectivos objetos de pesquisa e do conceito de cultura afrobrasileira a que fabricam Se o exercício é pensar o conceito de cultura afrobrasileira de forma democrática e inclusiva libertandoo das metanarrativas colonizadoras é importante considerar as experiências dos sujeitos negros em seus regimes de pessoalidade LARROSA 2011 Essas análises caminham obviamente sendo suscetíveis às novas e por que não às velhas críticas em direções múltiplas mas realizando uma reflexão que compreende a história fragmentando a e identificando a diversidade de relações de poder sempre interessadas e imprevisíveis que lhe compõem Da mesma forma suas leituras centramse nos discursos e em suas forças políticas e embora não descartem dados econômicos e sociais não induzem a uma ideia fechada de identidade étnica A pluralidade de posições e identidades negras abertas é o que caracteriza o discurso dessas pensadoras 61 22 A cultura afrobrasileira no discurso do movimento social negro Através da atuação dos movimentos sociais podemos problematizar e conhecer o modelo de sociedade no qual eles se articulam e se desenvolvem percebendo as áreas de carência estrutural os focos de insatisfação popular os desejos coletivos e as suas proposições reivindicatórias de direitos BEM 2006 Esse esforço frente ao Estado tem ampliado e universalizado o campo formal do direito para todo o conjunto da sociedade criando novos contextos históricos BEM 2006 Portanto os movimentos sociais no século XX têm por característica a inscrição de suas pautas políticas no campo oficial dos direitos sociais SANTOS 2005b Na perspectiva de Gomes 2017 os movimentos sociais são produtores e articuladores dos saberes construídos pelos grupos não hegemônicos e contrahegemônicos da nossa sociedade Atuam como pedagogos nas relações políticas e sociais GOMES 2017 p 16 Pensamos o movimento social negro de maneira bastante ampla não só por conta das definições nas quais nos embasamos mas por conta da própria experiência história desse movimento já analisada em vasta bibliografia Queiroz 2010 pensa o movimento negro como um sujeito coletivo um aglomerado de múltiplas instituições políticas sociais e culturais negras Cunha Júnior 2008 afirma que estas organizações realizam uma tarefa dupla consolidam expressões culturais afirmando uma diversidade de identidades negras e denunciando politicamente o racismo como base das injustiças sociais nas quais vivem a população negra Nas palavras de Nilma Gomes temos Entendese como Movimento Negro as mais diversas formas de organização e articulação das negras e dos negros politicamente posicionados na luta contra o racismo e que visam à superação desse perverso fenômeno na sociedade Participam dessa definição os grupos políticos acadêmicos culturais religiosos e artísticos como o objetivo explícito de superação do racismo e da discriminação racial de valorização e afirmação da história e da cultura negras no Brasil de rompimento das barreiras racistas impostas aos negros e às negras na ocupação dos diferentes espaços e lugares na sociedade Tratase de um movimento que não se reporta de forma romântica à relação entre negros brasileiros à ancestralidade africana e ao continente africano da atualidade mas reconhece os vínculos históricos políticos e culturais dessa relação compreendendoa como integrante da complexa diáspora africana Portanto não basta apenas valorizar a presença e a participação dos negros na história na cultura e louvar a ancestralidade negra e africana para que um coletivo seja considerado como Movimento Negro É preciso que nas ações desse coletivo se faça presente e de forma explícita uma postura política de combate ao racismo GOMES 2017 p 2324 grifos da autora 62 Desta forma encaramos como movimento negro toda uma diversidade de instituições e agrupamentos que constroem coerências entre si realizadas por indivíduos autodeclarados negros que aspiram melhores condições de vida e que constroem projetos políticos sociais econômicos e culturais a partir de seu posicionamento étnicoracial desenvolvendo práticas antirracistas Ou seja em nosso estudo mesmo que utilizemos a expressão no singular o movimento social negro entendase que estamos falando de uma coletividade bastante plural de diversas instituições O singular funciona aqui apenas como recurso linguístico metáfora de uma existência coletivizada mas que não deve homogeneizar a diversidade de lugares e experiências que a expressão parece encobrir Esse movimento plural foi crucial para redefinir em sua própria lógica o conceito de cultura afrobrasileira Uma instituição representativa desse movimento é o Movimento Negro Unificado MNU44 fundado em 07 de julho de 1978 em São Paulo por um grupo de intelectuais negros militantes partidários políticos estudantes e professores universitários A princípio este movimento não abarcava todas as tendências e entidades negras mas paulatinamente ganhou grande aceitação no meio de muitas delas recebendo menção de apoio de outros coletivos e instituições negras no Brasil Aquele era um momento em que várias organizações negras eram fundadas e criticavam o Estado brasileiro Além da fundação do MNU houve também a estreia do Cadernos Negros a realização do I Festival Comunitário Negro Zumbi na cidade de Araraquara em São Paulo e as comemorações dos 90 anos de abolição Houve ainda a ampliação de agremiações carnavalescas negras de destaque político e cultural como os blocos afro em Salvador SANTANA 2000 e os afoxés em Recife QUEIROZ 2010 Esses coletivos artísticos carnavalescos e religiosos também se compuseram em seus estados como movimentos negros quando passaram a se posicionar étnicoracialmente a participar de debates e requerer políticas públicas de combate ao racismo e de igualdade racial Ao lado desses eventos que demarcavam simbolicamente uma nova discursividade e novas formas de territorialidade negra no Brasil havia o entusiasmo esquerdista causado pela fundação do Partido dos Trabalhadores PT e a retomada do sindicalismo QUEIROZ 2010 Em meio à discussão sobre o movimento negro como um conjunto de instituições negras plurais focaremos um pouco na ação do MNU pelo fato de que esta instituição formulou um conceito de cultura afrobrasileira Obviamente essa definição partiu do pertencimento e experiência dos militantes numa sociedade racista Considerar a produção desse saber 44 Inicialmente chamado de Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial MNUCDR foi renomeado como Movimento Negro Unificado MNU nome que carrega até hoje 63 conceitual do movimento é fato importante pois como pontua Carneiro 2005 a tradição acadêmica possui larga experiência em desconsiderar a fala de intelectuais negros e dos movimentos sociais acusandoos de promoverem mais proselitismos romantismos e sensacionalismos ideológicos e menos ciência A fala negra parece ser mais agradável aos cientistas inclusive no Brasil quando emitem enunciados na condição de objeto de conhecimento e não na condição de sujeito do conhecimento Nesse sentido trazer as definições do movimento é agir democraticamente e com justiça perante a memória da categoria social negra enquanto produtora de um saber enquanto pedagoga que realiza também uma alfabetização cultural afrocentrada No documento fundador do movimento a Carta de Princípios o MNU já assumiu um discurso oficial indicando as suas críticas ao Estado e à sociedade brasileira embora existissem divergências quanto aos métodos a serem utilizados Discursivamente o nascente movimento definiu o que seria um cidadão negro aquele que possui na cor da pele no rosto ou nos cabelos sinais característicos dessa raça MNU 1978 p 01 Assim a militância dessa instituição escolheu segundo os critérios sociais as características fenotípicas como critério de autenticidade da identidade negra Mesmo considerando a experiência histórica dos movimentos antecessores como a FNB45 e o TEN46 o MNU propunha uma lógica diferenciada em relação a eles pois agora não se desejava reafirmar a inserção do negro na sociedade brasileira como um igual ao branco mas como um diferente dele Buscavase construir outra lógica de inserção a partir da construção de uma identidade negra que valorizava uma ideia de ancestralidade africana produzindo um discurso que ressignificasse essa ancestralidade como um símbolo de orgulho e diferenciação da identidade negra em relação à identidade nacional tida como mestiça e racialmente democrática Embasados nos argumentos do intelectual negro Frantz Fanon o MNU propunha a originalidade tradicional e descolonizada da raça negra Assim a luta política contra o 45 A Frente Negra Brasileira FNB fundada na cidade de São Paulo em 1931 criou um associativismo negro colocando na mão de particulares a criação e manutenção de escolas para a instrução da população negra a fim de integrála nacionalmente A FNB cresceu e influenciou capitais e cidades interioranas em vários estados brasileiros chegando a criar uma mídia clubes e institucionalizarse enquanto partido político existindo até seu fechamento compulsório durante a Era Vargas DOMINGUES 2008 CUNHA JÚNIOR 2008 46 O Teatro Experimental Negro TEN foi fundado em São Paulo em 1941 sob a liderança de Abdias do Nascimento e enfatizava que o direito à educação da população negra é um dever do Estado brasileiro e não de pessoas ou instituições privadas Para além da ascensão social do negro através da educação o TEN desejava realizar alterações conceituais nas consciências de atores e públicos negros positivando a negritude e forjando novos laços de pertencimento étnicoracial Para tanto promovia atividades de alfabetização discussões sobre o negro na sociedade brasileira produzia textos teatrais e realizava encenações em espaços públicos no centro da cidade ou nas periferias a fim de sensibilizar a comunidade negra para o exercício da cidadania MÜLLER 1999 64 racismo incluía por exemplo a valorização desta ancestralidade da negritude e da cultura afro brasileira ao passo que punha em pauta os debates sobre as condições sociais desiguais nas quais se encontravam a população negra Desta forma uma estratégia presente na operação simbólica do MNU foi ressignificar a ideia de raça negra deslocandoa dos sentidos históricos que serviram para separar e hierarquizar afirmandoa politicamente enquanto categoria potencialmente emancipatória que tanto servisse para o reconhecimento valorativo de sujeitos de direito a partir de suas diferenças quanto pudesse servir de base para a produção de novos saberes sobre raça e racismo no espaço público e com isso indagar por políticas públicas de superação das desigualdades da sociedade brasileira uma vez que elas são racializadas GOMES 2017 Foi a partir da categoria raça que o movimento negro se organizou e passou a agir O que observamos na fundação do MNU por exemplo é não somente a formação de uma instituição que viria a compor o movimento social e suas pautas políticas em que pesou a produção de um conceito de cultura afrobrasileira mas um processo de exercício de poder e fabricação de nova identidade social a ser discursada ou conscientizada Assim apesar de reconhecer a diversidade que lhe compunha e das discordâncias internas quanto à execução de seus métodos reivindicatórios o MNU necessitou primeiro produzir uma identidade social coerente atuando sobre uma massa confusa em diferentes critérios raciais ordenandoa e reclassificandoa Contra a disciplina branca produziu uma disciplina negra esquadrinhou uma massa de corpos e subjetividades afrodescendentes exercendo sobre ela um novo biopoder FOUCAULT 1979 MARSHALL 2011 capturandoa moldandoa e redirecionandoa mas agora em perspectiva enegrecida Ao identificar as características físicas e as condições históricas da população negra o MNU realizou uma operação simbólica fazendo surgir o indivíduo negro como conscientizável no bojo desse esquadrinhamento populacional Essa foi uma das primeiras positividades desta instituição que serviu de referência para tantas outras organizações negras contemporâneas criar um discurso formatador de novas subjetividades com possibilidade de formar corpos produtores e produtivos de uma negritude atuante econômica e politicamente ao passo que conseguisse efetivar ações de diminuição do poder que mobilizassem o racismo47 47 Ao afirmarmos isso não alegamos que o que chamamos de produção de uma negritude seja uma farsa Ela é um efeito real e embasouse obviamente em dados concretos como o fenótipo dos corpos negros as condições históricas de exclusão e marginalidade o racismo as memórias e as práticas culturais negras Ao eleger e enfatizar estes aspectos o MNU não somente circunscreveu tipos e ideais regulatórios ROSE 2001 de pessoa negra como também abriu a possibilidade de que pessoas que antes se declaravam pardas mulatas ou morenas se pensassem como negras Estrategicamente isso fez diminuir gradativamente os quantitativos mestiços e aumentarem os quantitativos negros Produzindo discursos que somam experiências coletivas e individuais de 65 Conforme Nora 1993 nossa sociedade é marcada pela velocidade das informações dos avanços tecnológicos e transformação dos espaços das relações sociais e culturais Isso altera a construção de nossas memórias Para o historiador francês os grupos humanos e sociedades contemporâneos criam lugares rituais artefatos discursos e práticas para habitar simbolicamente aquelas memórias das quais não se sentem mais pertencentes No caso da sociedade brasileira além das configurações da contemporaneidade há o traço do apagamento histórico dos lugares de memórias negras dos espaços urbanos da produção do conhecimento do calendário de celebrações cívicas etc Nesse sentido as instituições negras surgidas na segunda metade do século XX como o MNU precisaram criar lugares rituais sentimentos e pertencimentos para uma grande massa que historicamente deixava de habitar a negritude e ocupava categorias ambíguas como a de mestiços segundo a conveniência de outras categorias racializadas Na leitura do movimento esses lugares de negociação política dificultaram a criação de uma categoria negra fortemente mobilizada no Brasil e que pudesse propor agendas de transformações estruturais de promoção da equidade e justiça social MUNANGA 2008 Era na contramão desse efeito que o discurso histórico do MNU propunha as suas estratégias de atuação A carta de princípios desta instituição elenca formas de reprodução do racismo cujas existências possuem sentido e legitimidade não só em nível das relações pessoais mas sobretudo nas relações institucionais e estruturais do país O MNU portanto produzia um discurso que situava a negritude num contexto político de dominação legitimada pelo Estado neoliberal Essa afirmação é estratégica em vários sentidos pois criou não apenas uma fratura na imagem harmônica da nacionalidade ao romper com os argumentos que defendiam a existência de uma democracia racial no Brasil como também criou um cenário em que diferentes identidades sociais foram posicionadas e responsabilizadas QUEIROZ 2010 GOMES 2013 A partir da distribuição desses posicionamentos e responsabilidades produziramse novos discursos de cobranças por transformações sociais Nessa discussão a cultura afrobrasileira ocupou lugar fundamental O MNU denunciou que a marginalização da população negra se realizava também por sua cultura ser recorrentemente classificada como constantemente colonizada descaracterizada folclorizada esmagada e comercializada Esse argumento inicial remete a uma diferentes sujeitos afrodescendentes o MNU se tornou uma autoridade referenciada cuja prática discursiva produziu uma consciência negra politizada a ser subjetivada e utilizada como instrumento de lutas sociais Esse processo de produção é legítimo da população negra e foi construído sobre legalidades embora tenha se utilizado das mesmas bases epistêmicas modernas do poder colonizador como a disciplina e a governamentalidade 66 abordagem materialista da história e limitase a evidenciar o lado do processo no qual a cultura negra é encarada e tratada por uma ótica colonizadora branca nas palavras do movimento MNU 1978 Contudo a discussão sobre a importância e o papel da cultura na perspectiva do movimento negro avançou aludindo também às formas pelas quais ela mesma foi inserida transformada e perpetuada no contexto da formação do Brasil GOMES 2013 Neste sentido houve a produção de diferentes enunciados que cumpriam distintas funções políticas tanto os enunciados que criticavam os usos e a exclusão da cultura afro brasileira cumprindo uma função de denúncia quanto os enunciados que propunham um repensar epistemológico dessa matriz cultural evidenciando seu teor político e dinâmico além dos enunciados que convocavam todos a se posicionarem contra os usos discriminatórios da cultura afrobrasileira MNU 1978 Portanto a defesa da população negra deveria passar também pelas questões culturais implicando estratégias como a valorização da cultura negra e combate sistemático à sua comercialização folclorização e distorção MNU 1978 p 02 Contudo quanto à perspectiva cultural os métodos de militância do MNU não constituíam uma unanimidade Autores como Santos 2005b Souza 2005 e Queiroz 2010 explicam que houve divisões na militância negra entre os que defendiam atividades mais teóricas e políticopartidárias e os que enfatizavam a importância da cultura e da arte na reelaboração da luta antirracista Mesmo comungando de uma pauta política o movimento apresentava uma heterogeneidade de perspectivas e propostas de trabalho decorrente das distintas experiências e formações dos intelectuais envolvidos Os militantes que assumiam uma perspectiva que chamavam de política enfatizavam o protesto social e a busca da efetivação de políticas públicas para a população negra ao mesmo tempo em que condenavam a ala culturalista de perpetuar uma visão folclorista espetacularizada e alienante da cultura negra48 Os militantes culturalistas definiam que seu trabalho era o de articular cultura e política não só no sentido de valorização do universo cultural negro e sua divulgação e exercício no espaço público mas também como instrumento de crítica ao mito da democracia racial e denúncia do racismo por meio da própria cultura49 Assim buscaram se aproximar de 48 Esse argumento se aproximava da tese elaborada por Florestan Fernandes e da Escola Sociológica Paulista nos anos 1960 Os militantes negros que defendiam a perspectiva política estavam próximos à esquerda revolucionária e seguiam as teorias marxistas lugar discursivo de onde Florestan Fernandes estudava a inserção dos negros na sociedade de classes Foi como vimos argumento ainda utilizado por Peter Fry em 1976 49 Devemos considerar que haviam exemplos dessa articulação no exterior para os quais alguns militantes estavam atentos Sobre isso tomemos o relato de Carlos Alberto Medeiros apud ALBERTI PEREIRA 2007 p 85 no início dos anos 1970 enquanto James Brown estava cantando Say it loud Im Black and Im proud Diga em voz alta sou negro e tenho orgulho o Salgueiro teve um sambaenredo que era assim Ô ô ô Que saudade da fazenda do senhor Não dava para competir Neste sentido a produção artística convertiase em algo muito 67 outros intelectuais que se interessavam pelos estudos da cultura afrobrasileira e que poderiam legitimar sua perspectiva Além dos intelectuais negros Peter Fry como vimos foi um referencial utilizado pelo MNU Defendendo essa perspectiva o movimento buscava não só reconhecer valorizar e divulgar a cultura afrobrasileira dinamizando e preservandoa MNU 1978 p 01 mas também reexplicála contextualizála expondo os sentidos dessas práticas a serem vistas por dentro da lógica cultural de seus praticantes Aos poucos foram surgindo entre esses militantes outras figuras além de universitários profissionais liberais e sindicalistas tais como babalorixás e yalorixás também presidentes de entidades culturais e esportivas Eram os negros assumindo a fala por seus símbolos e significados descolonizando o pensamento social brasileiro sobre a cultura afrobrasileira Se no MNU havia uma disputa interna entre políticos e culturalistas para outras organizações e grupos sobretudo artísticos e religiosos era central o foco nas atividades culturais que estivessem mais próximas das pessoas negras no cotidiano em suas comunidades para a partir delas promover suas sensibilizações políticas e educativas Ainda assim em outro documento produzido pelo MNU o Programa de Ação50 a discussão sobre cultura aparece ao lado de outras e menciona os blocos afros as escolas de samba os grupos de capoeira grupos de dança entre outras manifestações da cultura negra Esta ação do movimento não se tratou de reforçar estereótipos sobre a cultura negra engessandoa do contrário tratouse de uma estratégia política de reinstitucionalização e reutilização dessas práticas culturais como meio de estabelecer novos meios políticos ao passo em que angariava a participação cada vez maior das comunidades negras Nesse processo a própria cultura afro era ressignificada ganhando não só novos sentidos mas também novas formas conteúdos e práticas Embora houvesse divergências no interior do próprio MNU sobre maior que um instrumento de sedução das massas negras para encamparem a luta política contra o racismo ela seria a própria expressão dessa luta 50 Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 O Programa de Ação foi um documento produzido pelo MNU a fim de tornar claro para a comunidade negra e para o Estado brasileiro as críticas e as propostas de recriação da sociedade brasileira e da cidadania negra Erguendo o lema Por autêntica democracia racial como intitula a sua introdução em que assume o compromisso de desconstruir o mito da democracia racial e de lutar acirradamente contra o racismo o Programa de Ação pondera 16 temas divididos em seções a saber 1 Marginalização do negro 2 Discriminação racial no trabalho 3 Desemprego 4 Condições de vida 5 Direito e violação 6 Prisões 7 O menor abandonado 8 Cultura negra 9 Educação 10 Mulher negra 11 Imprensa negra 12 Nos sindicatos 13 Área rural 14 Posses de terras doações e invasões 15 Luta internacional contra o racismo e 16 Transformação geral na sociedade Este documento realiza um aprofundamento analítico das propostas que estão sucintamente apresentadas na Carta de Princípios do MNU Nosso foco nesta tese é discutir apenas o conceito de cultura 68 a centralidade da cultura negra mas não de sua importância como um elemento estruturante fundamental da prática política houve a necessidade de conceituála Para o MNU a cultura é um jogo de relações entre diferentes visões de mundo que produzem não só significados mas também diferentes tipos de trabalho produção e distribuição de bens e relações sociais MNU 1982 Há uma base materialista nessa definição pois a cultura não é entendida como um bem que exista a priori mas como efeito das relações estruturais da vida ela é a ação humana que transforma realidades ao longo da história Mas inscrevemse nela também as ideias de que a capacidade de ação humana se estende à produção de bens simbólicos e de que a cultura é mediada e mediadora de relações de poder Assim a cultura não é mero espaço de reprodução de relações políticas mas de disputa pela produção de novas relações A definição do MNU explica que a cultura afrobrasileira é um conjunto de articulações entre memórias de tradições africanas e as novas condições de vida das populações africanas e afrodescendentes no Brasil Ela foi criada e recriada num passado marcado por um sistema de lutas e opressão Porém ela não é um bem encerrado em si mas uma prática recriável dinâmica e adequável aos novos contextos possibilidades de ação necessidades e expectativas da população negra numa sociedade racista No discurso dessa instituição negra o futuro da cultura é vislumbrado numa espécie de teleologia em que a liberdade a valorização a justiça social e a verdadeira democracia racial constituam um quadro realizável MNU 1982 O movimento enfatizou não uma visão isolacionista da cultura mas os conjuntos os sistemas as redes culturais a linguagem e não as palavras a religiosidade e não apenas uma religião específica Alargavamse os horizontes das práticas culturais Cabenos ressaltar que esta definição não abominou outros lugares simbólicos da cultura afrobrasileira como a dança a gastronomia as festas a música etc Do contrário o que se incitou foi que estas práticas culturais sejam descolonizadas e reinterpretadas conforme uma ótica afrocentrada51 MNU 1982 51 Por afrocentrada entendemos a perspectiva epistemológica que investiga e articula a diversidade de referenciais parâmetros tradições memórias formas de pensamento saberes oriundos das experiências sociais culturais econômicas e políticas negras sejam da África ou da Diáspora africana Algo que já era praticado pelas instituições negras espalhadas pelo mundo mas que só passa a ser apropriada pelas instituições universitárias enquanto paradigma científico a partir da década de 1980 nos Estados Unidos através das teorizações cunhadas pelo professor senegalês Molefi Kete Asante embora outros intelectuais tenham sido fundamentais nesse processo como Cheikh Anta Diop A inovação proposta pela epistemologia afrocentrada não se reduz ao estudo das experiências negras mas também à constituição de provocações e de uso de fontes e metodologias de estudo em múltiplas perspectivas e linguagens pelas óticas negras É portanto uma abordagem multi inter e transdisciplinar Ela foca na descentralização expansão e reconfigurações do legado africano pelo mundo realizando abordagens plurais sem hierarquias e de forma bastante adaptável Tratase de um paradigma cognitivo ético e estético de produção e expressão do conhecimento que se afirma enquanto instrumento de luta política de resistência 69 A fim de desconstruir estereótipos essencialistas acerca da cultura afrobrasileira o MNU entende esta cultura como algo dinâmico capaz de orientar as suas práticas na politização de suas ações uma vez que se trata de uma cultura que se expande negocia e adquire novos sentidos quando empreende lutas políticas O conceito de cultura afrobrasileira foi importante sendo retroalimentado tanto pelas teorias sociais quanto pelas experiências de vida próprias dos militantes em ação na construção de um movimento aglutinador de subjetividades e produtor de uma coerência negra coletiva posicionada para a luta antirracista e por equidade social 221 O caráter pedagógico do movimento negro sobre a cultura afrobrasileira um olhar sobre a experiência alagoana Destacaremos com mais detalhes no próximo capítulo a discussão sobre a educação elaborada pelo movimento negro mas queremos enfatizar agora o caráter pedagógico desse coletivo que atua como um dispositivo de produção do conhecimento e formação A partir dessa compreensão perceberemos como esse processo pedagógico sobre a politização cultural se efetivou em Alagoas Gomes 2017 define o movimento negro no conjunto de sua pluralidade como um sujeito educador pois articula produz e sistematiza saberes sobre a questão racial no Brasil construindo narrativas históricas densas que maquinam uma realidade social assumidamente desigual e conflituosa Para a autora o movimento negro construiu saberes numa lógica contrária à dos conhecimentos regulatórios da sociedade disciplinar Em oposição o movimento construiu o que ela chamou de saberes emancipatórios de negras e negros ou seja Tratase de uma forma de conhecer o mundo da produção de uma racionalidade marcada pela vivência da raça numa sociedade racializada desde o início de sua conformação social Significa a intervenção social cultural e política de forma intencional e direcionada dos negros e negras ao longo da história na vida em sociedade nos processos de produção e reprodução da existência GOMES 2017 p 67 Como trata a educadora esses saberes emancipatórios de negras e negros são identitários políticos e estéticocorpóreos Portanto o movimento negro produz saberes que incluem o conhecimento científico mas os extrapolam considerando também os sabores epistemológica à hegemonia eurocêntrica e aos processos de subalternização negra decorrentes dessa hegemonia FINCH III NASCIMENTO 2009 70 gestos cores aromas experiências memórias sentimentos estética sabedoria Nesse sentido o saber emancipatório produzido pelo movimento negro funde teoria e prática explora a experiência tece críticas políticas e sugere alternativas de justiça social a partir de uma perspectiva antirracista A luta desse movimento social é contra o caráter violento do capitalismo global e do racismo alimentados pelas várias formas de colonialidade do poder do saber e do ser Apoiada no pensamento de Boaventura de Souza Santos Gomes 2017 insere essa composição maneira e trato do saber emancipatório do movimento negro dentro de uma epistemologia do Sul a construção de um saber de resistência dos grupos historicamente dominados e excluídos Esse saber atende portanto uma perspectiva decolonial ou seja de produzir resistências às formas de dominação do pensamento eurocêntrico por sua vez pautado em práticas e instituições racistas para povoar nossas subjetividades de múltiplas referências étnicas e culturais sobretudo das que foram historicamente marginalizadas É neste sentido que o movimento social negro produz pedagogias e subjetividades desestabilizadoras e passou a atuar como mediador entre a comunidade negra o Estado a sociedade a escola básica e as universidades Como vimos a formação do movimento incide numa pluralidade que gera tensões entre os diferentes projetos Há consensos e coerências internas mas jamais homogeneidades O movimento social negro reconhece que as identidades sociais negras que ajuda a perfazer são também plurais como os saberes que produz Assim surgem na atualidade algumas definições como a de negritude que flutuam e são disputadas nesses coletivos Diferente do enquadramento proposto na década de 1980 hoje é possível pensar a negritude a partir de outros critérios para além dos fenótipos mas ainda sem dispensálos Considerase que a negritude não se limita à cor de pele ou aos traços culturais de povos negros mas à condição histórica de povos que foram excluídos do acesso ao saber e ao poder pelas epistemologias instituições e práticas ocidentais e que hoje ainda vivem em condições precarizadas de vida mesmo quando ascendem socialmente GOMES 2017 Obviamente essa discussão é bastante densa e não é nosso objetivo esgotála neste trabalho mas os conflitos que a engendram constituemse em elementos centrais das práticas pedagógicas emancipatórias pois em suas epistemologias elas se propõem a questionar desestabilizar saberes dominantes e a compreender e dialogar com saberes marginalizados O próprio movimento possui suas dinâmicas internas aberturas e conexões externas o que potencializa suas capacidades de transformação Sua pluralidade é fator crucial nesse processo Assim suas bases epistemológicas políticas e suas ações continuam sendo 71 reconstruídas o tempo todo tecendo inclusive críticas internas e abrindo novas perspectivas Para Gomes portanto o movimento negro é Uma coletividade onde se elaboram identidades e se organizam práticas através das quais se defendem interesses expressamse vontades e constituemse identidades marcados por interações processos de reconhecimento recíprocos com uma composição mutável e intercambiável Enquanto sujeito político esse movimento produz discursos reordena enunciados nomeia aspirações difusas ou as articula possibilitando aos indivíduos que dele fazem parte reconheceremse nesses novos significados GOMES 2017 p 47 No estado de Alagoas não houve por exemplo célula específica do MNU movimento de origem paulista mas houve a formação paulatina de uma série de outras instituições e ações locais Contudo tanto o MNU como outras instituições negras a exemplo dos grupos de blocos afro da Bahia estiveram entre as referências dos primeiros ativistas alagoanos com as quais interagiam e criaram produtivas relações interdiscursivas O trabalho de Ábia Marpin 2018 narra um pouco dessa história A autora percebeu uma pluralidade de pontos de ação negra em Alagoas embora ela não tenha utilizado o conceito de movimento negro mas de rede Designa essa história como um processo de emergência de uma rede de valorização afroalagoana52 cujos primeiros fios apareceram já mesmo que timidamente entre finais da década de 1970 e início de 1980 embora seu momento de maior visibilidade e exercício de poder tenha se dado na primeira década do século XXI A rede afroalagoana se propôs articular um conjunto de ações coletivas e expressivas frente ao silenciamento histórico a que sofre a cultura negra local Para sistematizar a experiência histórica dessa rede Marpin organizou os tipos de objetivos campos de atuação ações e sujeitos no que ela chamou de eixos estruturantes o eixo político científico artístico e religioso Essa divisão exerce apenas uma função didática na sua narrativa pois como a autora ressalta as práticas e efeitos desses eixos se integram mutuamente 52 Para a autora essa rede não é formalizada institucionalizada ou coordenada de forma centralizada Do contrário ela é composta por uma trama flexível tensa polifônica e dinâmica Embora os sujeitos e grupos que a integram compartilhem de princípios norteadores como a valorização da negritude a luta antirracista e o requerimento de políticas públicas de igualdade racial em Alagoas elaboram diferentes pontos de força algumas vezes concorrentes entre si conforme os diferentes níveis de poder valor comunicação e decisão que conseguem praticar Não vemos muita diferença prática entre a definição da autora e a que adotamos aqui salvo o nível de formalização não construída em Alagoas Mas o que chamamos de movimento negro é uma pluralidade de instituições que compõem e atuam em redes de sentidos Isso não implica em homogeneidades mas em coerências Não acreditamos que a definição de Ábia Marpin 2018 dê mais ênfase a perceber as discordâncias e disputas internas que as aqui já mencionadas 72 Conforme Marpin a partir da entrevista realizada com o militante negro Zezito Araújo a movimentação negra em Alagoas viria a se formar na década de 1980 a partir da articulação entre pensadores negros que participaram da criação do Conselho Consultivo Memorial Zumbi criado para promover ações de tombamento da Serra da Barriga no município de União dos Palmares AL como lugar de memória negra e de referência nacional53 O conselho era composto por professores da Universidade Federal de Alagoas UFAL prefeituras municipais de Maceió e União dos Palmares governo do estado de Alagoas e de integrantes do Instituto Histórico de Alagoas Estavam presentes ali poucos intelectuais negros mas que passaram a se articular entre si após entrar em contato constante com ativistas de outros estados entre cientistas políticos e artistas em prol da promoção do tombamento Assim conforme Zezito Araújo surgiu o movimento negro de Alagoas primeiramente entre intelectuais que agiam no eixo político mas que logo perceberam a urgência em se articular com as bases populares pois era lá que estavam os grupos culturais negros locais Esses grupos eram necessários não só para promover celebrações mas para ampliar as práticas discursivas sobre a população negra local Desta maneira passouse a produzir também as ações culturais embora inicialmente a cultura afroalagoana tenha sido tratada enquanto folclore negro como a literatura científica alagoana expressou sobretudo na primeira metade do século XX SILVA J 2018 Conforme explica Zezito Araújo em sua entrevista a Marpin 2018 houve muitas dificuldades no início da formação do movimento negro alagoano Havia poucos sujeitos envolvidos nesse processo o que garantiu a ausência de uma maior variedade de temáticas a serem abordadas e de sujeitos para coordenálas e executálas Da mesma forma ainda durante os anos 1980 gozavase de pouca visibilidade expressividade e formalização institucional Naquele quadro considerouse a necessidade de criar novos grupos para se ampliar o campo discursivo e também de práticas concretas a partir de um ativismo negro local Zezito Araújo atuou como professor no curso de História da Universidade Federal de Alagoas UFAL A partir desse lugar ele pôde agir junto a outros intelectuais locais de modo 53 As ações de mobilização em torno do processo de tombamento da Serra da Barriga como patrimônio nacional se deram de 1980 a 1988 e estavam inseridas no contexto de discussões sobre a proximidade do centenário da abolição da escravatura a ser comemorado em 1988 O objetivo foi criar um lugar de memória negra que servisse de referência nacional para a reflexão crítica sobre as condições de vida da população negra do Brasil e estimular a valorização da ancestralidade pertencimento e identidade negra no país Criouse desta forma o projeto para a construção do Parque Memorial Quilombo dos Palmares na referida serra localizada no município de União dos Palmares região apontada por estudos como o local onde teria sido o núcleo do Quilombo dos Palmares durante o século XVII Esse fato contou com a mobilização de diversos órgãos públicos das instâncias federal estadual e municipais bem como de diferentes movimentos e organizações negras além de cientistas políticos artistas e grupos culturais negros de vários locais do Brasil 73 a produzir narrativas contestatórias no estado provocando debates realizando formações continuadas integrando conselhos e órgãos públicos e coordenando grupos de trabalho voltados a criar sistematizar e demandar naquele momento conhecimentos sobre a questão racial no território alagoano Contudo analisa Marpin 2018 embora fossem grandes as possibilidade de exercer poder na produção do conhecimento científico e de fomentar políticas públicas para a negritude como o próprio militante Zezito Araújo narrou foi preciso alargar as discussões formar bases sociais nas comunidades e criar grupos a fim de fabricar mais processos de identificação negra em Alagoas e multiplicar as experiências contestatórias Para isso foram de grande valia os contatos e interações com outras organizações negras do Brasil embora o movimento alagoano não tenha se aglutinado a nenhuma delas como ocorreu nos estados da Bahia e de Pernambuco54 Paulatinamente Marpin explica houve um afrouxamento do constrangimento social e a mudança no comportamento de pessoas negras em Maceió e região metropolitana que começaram a expressar predileções éticas e estéticas afrocentradas no espaço público sobretudo em eventos Já nas décadas de 1990 e 2000 cresceu o número de grupos assumidamente negros em Alagoas55 principalmente nos bairros periféricos de Maceió e Região Metropolitana centrados na música de percussão56 Seus personagens oscilavam entre o profissionalismo e o lazer Wilson Santos um dos entrevistados por Ábia Marpin criador de diversos grupos de percussão em Maceió afirmou que no início da década de 1990 os jovens estavam mais preocupados em pensar os tambores como instrumentos de lazer do que na formação de uma negritude socialmente mobilizada O teor político foi sendo construído aos poucos nas periferias Ainda assim para Marpin 2018 o estopim dessa rede de valorização da expressividade afroalagoana se deu a partir de 2003 com o Governo Lula do Partido dos Trabalhadores especialmente na gestão do ministro Gilberto Gil Naquele momento o Estado brasileiro tomou a cidadania e a diversidade cultural como diretrizes para a gestão cultural assumindo um projeto de democratização dos recursos públicos destinados à cultura por via de editais públicos QUEIROZ 2014 MARPIN 2018 54 O grupo Nêgo BA e o Movimento Negro do Recife PE que se filiaram ao Movimento Negro Unificado assumindo localmente a identidade da instituição que paulatinamente se expandia em nível nacional 55 Nessa década conforme Marpin 2018 surgiram 35 novos grupos 56 Embora estudiosos contemporâneos retomem a tese da influência dos grupos baianos nesse processo é importante frisar que alguns sujeitos históricos desse processo afirmam que também houve influência cultural dos próprios grupos e lugares de memória cultural negra de Alagoas sobretudo dos terreiros das casas de culto de matriz africana bem como os grupos de bumbameuboi e cocos que continuaram ativos no estado 74 Apesar da política cultural adotada no país desde 2003 Marpin afirma que em Alagoas as gestões da secretaria de cultura permaneceram alheias e insensíveis aos debates até 2007 Nesse sentido os investimentos públicos para a cultura foram poucos e ainda demasiado burocratizados e dependentes de uma política de demandas de balcão Isso dificultava o desenvolvimento das ações dos grupos afro de Alagoas que só posteriormente a 2007 puderam contar com políticas públicas de fomento por meio de editais públicos de financiamento para ações por exemplo Após a implementação da Lei 1063903 as discussões sobre a cultura afro passaram a ser feitas com um pouco mais de frequência nas escolas e isso fez com que os estudantes se aproximassem dos grupos afro locais Jovens dos ensinos fundamental e médio das graduações e pósgraduações se interessavam mais por esses grupos Esse contexto produziu uma geração de jovens dos centros urbanos de classes média e das classes populares interessada na cultura negra Aliouse nesse contexto a visibilidade que ganharam os jovens negros das periferias que participavam dos grupos afro em suas comunidades e que foram aos poucos conquistando níveis maiores de instrução formal A exemplo do que já se vinha acontecendo em vários lugares do Brasil também no estado alagoano houve uma reelaboração simbólica das temáticas afrobrasileiras para o universo cognitivo da sociedade local com o aumento de publicações e de audiovisual produção cultural e científica eventos acadêmicos artísticos e religiosos dentre outros A cultura como recurso foi um novo instrumento de politização também dos grupos afroalagoanos adaptados às dinâmicas políticas e econômicas contemporâneas Nesse contexto os militantes construíram argumentos de agregação mobilização e performantização das expressividades negras Conforme Marpin 2018 a rede afroalagoana está visível na esfera pública o que implica ambiguidades entre avanços dificuldades e desafios Se ela está legitimada pelas políticas oficiais do Estado e pelos estudos científicos das pesquisas sociais é também mais estruturada e explorada conforme os parâmetros artísticos e mercadológicos contemporâneos Porém como mostra o trabalho de Marpin a rede de valorização da expressividade afro alagoana surgiu na capital e suas ações se limitaram durante muito tempo à região metropolitana de Maceió Isso nos faz perceber que a exemplo do que aconteceu nas demais experiências do movimento negro no Brasil houve pouca penetração nos interiores do país fazendo com que esse movimento assumisse um caráter e uma experiência urbanizada MUNANGA 2008 As ações de interiorização do movimento negro são ainda poucas quando comparadas em nível nacional embora algumas sejam bastantes produtivas 75 Em Alagoas essa movimentação também se formulou e se desenvolveu enquanto dispositivo de urbanidade com atuação focada no litoral do estado Poucas ações formativas foram realizadas no agreste e sertão e não chegaram a formar redes ou pontos de apoio e integração na rede analisada por Marpin Em Delmiro Gouveia por exemplo embora existam comunidades quilombolas grupos de capoeira e terreiros de candomblé nem mesmo esses grupos construíram a princípio identidades negras57 Tampouco formouse nesse local algum tipo de instituição que se intitulasse enquanto movimento negro No entanto com a realização do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais REUNI em março de 2010 foi implementado o Campus do Sertão da Universidade Federal de Alagoas UFAL no município de Delmiro Gouveia GOMES 2019 Com isso houve novas levas migratórias para a cidade alunos técnicos e professores Nesse contexto migraram para o município alguns intelectuais negros para exercer a função de professores universitários nos quadros efetivos dessa instituição sobretudo nos cursos de ciências humanas Esses docentes vindos de cidades como Araraquara Salvador Maceió e Recife ou seja de cidades com reconhecido histórico de instituições que compõem o sujeito coletivo a que chamamos de movimento social negro tiveram passagens por organizações negras de suas regiões em diferentes graus de participação e em suas formas e experiências plurais grupos artísticos agremiações carnavalescas comunidades religiosas coletivos de mulheres negras setores sindicalistas grupos de estudos e pesquisas focados na temática étnicoracial a citar alguns Essas professoras e professores negros acabaram por inserir alterações na paisagem cultural do sertão alagoano com seus corpos negros que transitam pelo cotidiano da cidade ostentando a cor da pele penteados moda e símbolos afro as bibliografias que inserem nas graduações os debates que realizam os grupos e núcleos de estudo58 que fundam os projetos de pesquisa59 e extensão60 que desenvolvem os Trabalhos de Conclusão de Curso que orientam Tudo isso compõe novas práticas discursivas negras no sertão alagoano Essa experiência nos faz lembrar as reflexões de Gomes 2017 para quem há várias ativistas negras e negros que militam no cotidiano de suas práticas embora não estejam filiados a uma instituição específica do movimento negro mas eles são de alguma forma herdeiros dos 57 Algumas razões para isso serão discutidas no capítulo 05 58 Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Diversidade e Educação do Sertão NUDES coordenado pela Profa Dra Maria Aparecida Silva 59 Observatório da Diversidade ÉtnicoRacial Gênero e Sexualidades coordenado pela Profa Dra Ana Cristina Santos 60 Programa PróIdentidade coordenado pela Profa Me Mônica Regina Santos Projeto de Extensão Grupo de Cultura Negra do Sertão Abí Axé Egbé coordenado pelo Prof Dr Gustavo Manoel da Silva Gomes 76 saberes e das mobilizações produzidos a partir desse movimento O conjunto das práticas desses docentes negras e negros que atuam em Delmiro Gouveia interfere na constituição dos saberes e práticas docentes na região do sertão 23 O conceito de cultura afrobrasileira hoje entre representações dilemas e implicações políticas Entre várias lutas políticas as diferentes ordens discursivas da ciência e do movimento social produziram definições de cultura afrobrasileira orientadas pelas e para as relações de poder em meio aos conflitos étnicosraciais que estruturam e organizam a vida social no Brasil Essas definições oscilam entre as análises complexas e as reducionistas forjando compreensões nem sempre bemsucedidas quanto ao objeto que constroem e as difundem em seus textos que circulam socialmente de formas múltiplas Conectandose com alguns enunciados já existentes e excluindo outros essas ordens discursivas produziram novos sentidos sobre a cultura afro mas sempre formando aberturas para infinitas possibilidades de conexões significações orientações e práticas Entretanto há em nossa sociedade uma seleção interpelada por relações de poder que delimita a produção enunciativa a partir dos nossos arquivos discursivos Essa seleção elege os discursos que serão mais ou menos conservados e aqueles que serão mais rapidamente relegados à evasão de nossa memória PIOVEZANI 2014 Isso importa para pensarmos analiticamente as continuidades discursivas como realidades bastante complexas pois a mudança de formação discursiva não coincide necessariamente com mudança de todos os elementos e perspectivas políticas que constituem os discursos FOUCAULT 2012 Destarte tanto as repetições quanto as rupturas nos discursos devem ser igualmente observadas e problematizadas Percebemos que as reflexões que primaram por aproximações entre Antropologia História e Linguagem ressignificaram o conceito de cultura afrobrasileira na contemporaneidade afastandoo da noção de folclore Para tanto foram fundamentais uma revisão crítica da literatura científica sobre a cultura negra e o embasamento em documentos históricos escritos em diferentes períodos do passado e em depoimentos orais contemporâneos para legitimar tais teses Deste modo o conceito de cultura afrobrasileira foi reconstruído e permanece justificado em perspectiva histórica Conforme a produção científica inicial a origem dessa formação cultural permanece localizada no passado escravocrata um momento de conflito e opressão no qual foi necessário 77 aos africanos escravizados e seus descendentes refazerem seus laços de solidariedade e reconstruírem suas subjetividades e imagens identitárias mediadas por instituições formadoras de novas coerências sociais Essas instituições foram formadas de acordo com as diferentes necessidades materiais e simbólicas dos africanos religiosas artísticas políticas sociais e lhes deram condições para a produção e partilha de sentidos e práticas nas quais se articularam memórias culturais expectativas e condições de possibilidade de criação cultural no Brasil Mesmo em diferentes ordens discursivas os enunciados reforçam a tese de que tendo a sua origem na escravidão a cultura afrobrasileira é uma prática de mediação de relações de poder Observase que nessa lógica explicativa há uma relação dialógica entre as noções de cultura e de identidade negra em que ambas são ao mesmo tempo produtoras e efeitos uma da outra Como vimos toda essa produção discursiva em torno do conceito de cultura afro brasileira foi construída negando ideias como a de democracia racial e afirmando a permanência do racismo Se houve de um lado um progresso teórico no trato conceitual da cultura pensandoa como prática de mediação política em contraposição a argumentos folcloristas houve por outro a permanência de uma noção materialista de cultura como esfera diretamente influenciada pela estrutura econômica Há também a permanência da perspectiva moderna de classificação de identidades sociais numa lógica racialmente binária entre negros e brancos Nem as ciências nem o movimento social abandonaram por completo a perspectiva racialista Obviamente noções como raça ou etnia e aspectos como fenótipos corpóreos e tradições culturais importam na definição de identidades culturais mas não podemos esquecer que todo processo de definição é um esquadrinhamento idealizado de processos subjetivos cuja designação visa dominar aquilo sobre o que se fala Esse binarismo racial FRY 2005 portanto é um efeito de poder inscrito por diferentes ordens discursivas nos corpos e nas subjetividades contemporâneas para reorganizar um conjunto de representações étnicas vividas de forma móvel na história da sociedade brasileira Essa noção contudo foi paulatinamente substituída a partir dos anos 1990 sob a influência dos estudos culturais e de autores e perspectivas pósestruturalistas que focam na centralidade das análises especificamente culturais em suas dinâmicas próprias e temporalmente abertas a transformações como demonstraram as pesquisas mais recentes feitas por pesquisadoras e ativistas negras Assim a cultura é discursivamente projetada para o presente justificando a atualidade cultural da população afrodescendente Porém as práticas discursivas da ciência e do movimento negro não possuem a mesma consistência força alcance e duração nem produzem os mesmos efeitos em seus interlocutores PIOVEZANI 2014 78 A ideia de cultura afrobrasileira não sepulta definitivamente a noção de democracia racial Na verdade a realiza e a projeta enquanto um desejo que deverá ser vivido em uma perspectiva multicultural em que as identidades sociais aparentemente sólidas convivam mas sem se misturar SILVA 2013 Foi dentro dessa lógica ambígua ainda separatista quase essencialista por se embasar mais em fenótipos do que na própria história que predominou a construção do conceito de cultura afrobrasileira como um saber mesmo que se tenha defendido o caráter dinâmico e social Essas noções foram construídas discursivamente a partir de dados materiais e experiências reais que se encontraram tensionaram e dialogaram a fim de fabricar armas e estratégias para uma luta social que se quis reconhecer para promover a emancipação da população negra61 Esses discursos foram subjetivados de diferentes maneiras por pessoas que carregam marcas corpóreas como pele escura e cabelo crespo a fim de que possam compartilhar um pertencimento embasado em suas experiências de exclusão e de resistência de modo a construir uma determinada consciência uma agenda e uma mobilização política Deste modo entendemos que a produção conceitual não é um mero exercício analítico da ciência tampouco um resgate essencialista do movimento social negro Ela é uma tática que compõe as estratégias de produção de subjetivação de uma negritude brasileira politicamente direcionada e mobilizada O conceito criou esteio a uma noção de identidade que produz uma coerência negra basilar a uma identidade social que não é tão sólida quanto se pensa CERTEAU 1995 SOUZA 2005 embora sua produção seja politicamente necessária e legítima à população negra Essa identidade cultural rege relações disciplinares e técnicas de si possibilitadas e justificadas historicamente SARGENTINI 2014 que funcionam como marcos regulatórios idealizados e instáveis mas não como essências Os elementos que compõem um discurso as táticas e as armas estão sempre em trânsito entre campos e adversários e podem virarse contra os seus próprios emissores dependendo de como se posicionam e de como se movimentam em suas práticas discursivas PIOVEZANI 2014 As mesmas ideias de cultura e identidade que podem libertar a população negra podem também aprisionálas A análise enunciativa a partir das posições assumidas em ordens discursivas como a ciência e o movimento social nos possibilitam perceber que os 61 Importante frisar que mesmo enfatizando a busca da legitimação de uma perspectiva cultural e política na ótica da própria população negra o princípio que embasa a sua luta emancipação ou liberdade é um princípio iluminista ou seja eurocêntrico e burguês e que seu uso teórico e prático merece cuidadosa crítica Isso acontece porque embora se valorize a ancestralidade cultural africana enquanto elaboradora de novas relações sociais o projeto brasileiro de sociedade preza pelo modelo ocidental Justamente aí é que reside o risco de ressignificar nossos regimes de verdade invertendo os valores étnicos e criando novas formas de dominação das subjetividades ao invés de processos democráticos 79 efeitos políticos nos sentidos por elas produzidos podem ser distintos quando não opostos aos defendidos Devemos deste modo atentar para os riscos políticos de toda forma de disciplinamento conceitual por meio do discurso mesmo que esse processo de constituição seja inevitável pois nenhum esquadrinhamento dá conta da complexidade de experiências práticas culturais e subjetividades que são constantemente negociadas Ele pode servir justamente ao contrário do que se pretende governar aqueles a quem se deseja emancipar GORE 2011 MARSHALL 2011 LARROSA 2011 Esse esquadrinhamento pode recair em essencialismos que sepultam o fato de que o que conhecemos por cultura afrobrasileira é fruto de complexas formas de participação interações lutas e deslocamentos cuja condição de possibilidade é a proliferação de invenções em espaços circunscritos mediados por relações interessadas de poder É importante que reavaliemos os saberes emancipatórios do movimento negro a fim de que possamos darlhe primazia sobre os saberes regulatórios da modernidade pois quando esse conhecimento que se propõe como emancipatório se pretende ser total a se transformar em um novo cânone em uma nova verdade absoluta e perene ele está operando dentro mesma racionalidade da qual é vítima histórica do que visava combater GOMES 2017 Parte do movimento apresenta a possibilidade de fugir dessa armadilha tática quando amplia o conceito de negritude mesmo em meio às ambiguidades e riscos políticos e econômicos que podem atingir mais uma vez a própria população negra Exemplo disso tem se manifestado em torno de questões sobre a negritude em que pessoas brancas ao afirmarem se negras pensandose num conceito mais elástico e conveniente de negritude ou afrodescendência em que pesa o argumento da mistura sanguínea que marca a história do Brasil Essas pessoas brancas têm se apropriado de espaços e práticas conquistados com muita luta por pessoas negras para outras pessoas negras que ainda vivem excluídas e ao fazerem isso acabam por ampliar o campo de exercício de seus privilégios raciais Ao final desta análise arqueológica FOUCAULT 2012 definimos a cultura afro brasileira como um conjunto híbrido de possibilidades interessadas e criativas de ação das populações negrobrasileiras inscritas em contextos históricos marcados por luta políticas ao longo do tempo Ela é então uma proliferação infinita de práticas de produções cruzamentos apropriações e partilhas de sentidos de mediação de relações de poder de redefinição de subjetividades e de identidades sociais coletivas que posicionam politicamente os sujeitos a partir de critérios étnicoraciais nos quais pesam os fenótipos a ancestralidade cultural pertencimentos instituições e tradições culturais bem como as condições sociais 80 Acreditamos que essa definição consiga nos levar a desmontar os processos históricos de fabricação cultural e nos fazer enxergar as tecnologias que são conectáveis e que criam as condições de possibilidades para a formação dos discursos condutas instituições e regras que compõem a matriz cultural afrodescendente no Brasil conforme a perspectiva e necessidade das populações negras Dessa forma mais do que um conjunto de práticas consideramos a cultura afrobrasileira também como um saber valor um símbolo ético e estético uma positividade que se utiliza de várias linguagens signos e significantes para produzir e demarcar as distinções de uma etnicidade de sua respectiva agenda política e de uma comunidade cultural imaginada 81 3 A INSERÇÃO DA CULTURA AFROBRASILEIRA NO CURRÍCULO DE HISTÓRIA DISPUTAS E NORMAS PARA A PRODUÇÃO DE SABERES E SUBJETIVIDADES A Lei 1063903 e todo o conjunto de textos legislativos que prescrevem o ensino de história e cultura afrobrasileira funcionam como dispositivos jurídicos que normalizam afetam e orientam os saberes e as práticas dos professores O exercício da profissão docente está diretamente ligado às legitimidades institucionais que estabelecem práticas adequadas a um conjunto de prescrições vigiadas e examinadas Essas normas produzem identidades e designam comportamentos individuais e coletivos criando regulações e hábitos TARDIF 2002 LARROSA 2011 Pensar sobre a normalização do profissional docente remetenos à noção de governamentalidade tal qual desenhada por Foucault O filósofo explica que durante a modernidade no contexto de formação e desenvolvimento do capitalismo o conceito de governo foi ressignificado para atender às demandas de racionalização e controle das riquezas dos territórios e do crescimento populacional e suas novas formas de relações sociais FOUCAULT 1979 A população passou a ser objeto de estudo de uma emergente economia política que diagnosticava geria e intervinha no campo econômico e demográfico a partir de um complexo processo de burocratização seleção e aplicação de técnicas racionais de esquadrinhamentos FOUCAULT 1979 O ato de governar passou a estar ligado à capacidade de saber aumentar as riquezas do Estado e de controlar sua demografia minimizando os esforços Neste sentido o ato de governar não garantiu o bem comum mas as distribuições das funcionalidades individuais em uma ordem eficaz produtiva e obediente Os investimentos socioeconômicos nos indivíduos como a educação não se tornam aplicáveis pelo fato de serem bons para a vida dos indivíduos em si mas porque eles aumentam a força econômica e política do próprio Estado liberal sobre os indivíduos Esse modelo de governo nos atinge cotidianamente até hoje de modo que não conseguimos realizar o sonho pleno de autonomia em nossos projetos individuais tal como propagam os discursos neoliberais MARSHALL 2011 O governo é então uma tecnologia dirigida a produzir sujeitos a moldar guiar ou afetar a conduta das pessoas de modo que elas se tornem pessoas de um certo tipo GORE 2011 ou seja sujeitos que assumam determinadas práticas e identidades sociais profissionais por exemplo Assim estabelecer normas tornouse uma das formas mais eficazes de assegurar o 82 disciplinamento dos corpos e das subjetividades por meio da internalização de discursos e do exercício de um autogoverno através do qual as pessoas são incitadas a se autorregularem conforme as diretrizes institucionais que delimitam suas possibilidades de conhecimento e de ação prática GORE 2001 MARSHALL 2011 PETERS 2011 A educação ainda é baseada em princípios como normas e governamentalidade São eles que situam as pessoas em relações de fiscalização definida e regulada de inspiração humanista e liberal MARSHALL 2011 elas produzem disciplinas e com isso coerências e controle social LARROSA 2001 Popkewitiz 2011 nos explica que a escola foi criada para dar conta de problemas administrativos da sociedade industrial e do Estado liberal por isso os seus dispositivos e técnicas de individualização e disciplinamento como o currículo atendem primeiramente à lógica da governamentalidade Essa técnica de subjetivação chamada governo valese das leis embora não dependa exclusivamente delas mas sim da implementação de normas que sejam regadas de juízos morais que as tornem aceitáveis e mesmo necessárias DEANCON PARKER 2011 É nessa lógica que muitas identidades sociais são produzidas e reconhecidas por técnicas como individualização e normalização GORE 2011 Isso também se aplica ao sujeito docente pois ao serem submetidos a um conjunto normativo eles se tornam profissionais de um certo tipo formados treinados produzidos governáveis Portanto os saberes docentes são constituídos também por discursos normativos e práticas de governo Os textos prescritivos que estabelecem as normas institucionais e profissionais funcionam como operadores que estimulam e permitem aos indivíduos questionarem suas próprias condutas para que reconhecendo a necessidade de mudança possam modificálas e vigiálas passando a avaliarse como um sujeito responsável e ético FOUCAULT 1984 LARROSA 2011 Desse modo podemos afirmar também que a identidade profissional docente é formada por camadas de múltiplos textos marcados por diferentes discursos instituições normas e necessidades políticas dentre as quais luta para se posicionar DEANCON PARKER 2011 Esse poder que produz subjetividades enquanto as coage não é simplesmente repressivo Do contrário ele é ambíguo produtivo e limitador Ele investe no corpo aumentando sua capacidade de ação para determinados fins mas ao mesmo tempo ao submetêlo o destitui provisoriamente de seu próprio poder político a fim de tornálo eficaz e diferente constituindo e administrando o sujeito de forma útil PIGNATELLI 2011 83 Deste modo temos que os discursos normativos operam fomentando um treinamento dos docentes que se pretende científico adequandoos às novas exigências profissionais e em acordo com as necessidades sociais contingentes mas também em articulação racional com as ciências acadêmicas e com uma economia política neoliberal que pensa a educação como mercadoria MARSHALL 2011 PETERS 2011 No contexto de uma configuração histórica de lutas políticas entre perspectivas como a neoliberal e a socialdemocrata PETERS 2011 essa profissionalização científica produz mais um complexo tutelar de consumo segregação conselho controle e segurança do que uma formação progressista62 É no bojo dessa discussão que se criou historicamente um artefato pedagógico ligado à normalização do conhecimento das práticas formativas e das subjetividades o currículo Enquanto diretriz do processo de construção discursiva e política que legitima quais saberes devem ser socialmente produzidos e referenciados o currículo foi formulado primeiramente a partir da pergunta o que se deve ensinar Essa questão foi respondida de diferentes formas por diferentes regimes de verdades63 As respostas apesar dos aparentes antagonismos teóricos e políticos provinham de uma mesma epistemologia moderna pautada em fundacionismos universalistas numa teleologia sempre problemática e principalmente em tecnologias políticas que operam segundo a lógica da dominação FOUCAULT 1979 GORE 2011 POPKEWITZ 2011 SILVA 2011 VARELA 2011 VEIGANETO 2011 Sempre preservando ideias como a de organização prévia de um conhecimento legítimo a ser ensinado através de um conjunto de elementos tais como programas de conteúdos carga horária planos e atividades de ensino LOPES MACEDO 2011 cada concepção e teoria 62 Michael Peters 2011 contrapõe as perspectivas neoliberais e socialdemocrata aplicadas à educação na contemporaneidade Para o autor o neoliberalismo corresponde ao projeto político econômico e discursivo de uma Nova Direita que emergiu a partir dos anos 1980 com pautas governamentais conservadoras da hegemonia eurocêntrica racionalista fundacional universal e totalizadora O neoliberalismo afastase do modelo de um Estado de bemestar social Ele propõe a intervenção mínima do Estado quanto a políticas sociais e fomenta sua atuação na promoção regulação limitada e fomento do mercado e da livre oferta Nessa lógica a educação é tida como mercadoria e seus investimentos justificamse conforme uma política econômica que fomente o desenvolvimento tecnológico e econômico dos Estados na economia global A linguagem neoliberal expressase por conceitos como inovação tecnologia treinamento desempenho excelência Já a perspectiva social democrata adota uma linguagem que preza por igualdade de oportunidades reparação histórica justiça social e multiculturalismo Obviamente esses conceitos e as formas como os governos socialdemocratas têm desenvolvido suas políticas econômicas e culturais nas últimas décadas merecem atenciosa crítica sobretudo após a proposição de uma terceira via Esse novo modelo prega o Estado necessário a responsabilidade fiscal o combate à miséria e a atuação do Estado para garantir serviços essenciais à vida do cidadão Desde então a social democracia aplicada por governos de esquerda tem desenvolvido políticas sociais que visam diminuir as desigualdades mas não as abolem ao mesmo tempo em que ainda abraçam ideias neoliberais Foi a partir desse modelo ambíguo que foi sancionada a lei que inseriu a cultura afrobrasileira no currículo de História 63 A relação circular que se estabelece por meio do discurso entre saber poder e produção de versões de verdade que é construída por seleções operadas politicamente FOUCAULT 1979 GORE 2011 84 curricular desenvolveu critérios de seleção que justificam as suas respostas conforme os diferentes projetos de conhecimento cidadania e sociedade que reelaboravam Desta maneira concordamos com a perspectiva de Lopes e Macedo 2011 de que não é possível responder de forma fechada o que vem a ser o currículo mas sim pensálo a partir dos acordos de sentido construídos historicamente para produzir esse artefato cultural Reconstruir uma historicidade dessas proposições e concepções curriculares é uma atividade importante não apenas para identificar as consequências políticas dessas formas no passado mas para que possamos continuar discutindo as consequências políticas de novos projetos de reformas curriculares pautados em sistemas de regulação e poder expressão e diferenciação na contemporaneidade POPKEWITZ 2011 31 O currículo pósestruturalista discurso poder e produção de subjetividades Apesar dos grandes esforços da teoria crítica para produzir um novo conceito de currículo o que conseguiu foi apenas ampliar essa noção a partir de sua formalidade ao incluir a análise dos valores morais que ele propaga e de como age de forma concreta no cotidiano dos sujeitos escolares SILVA 2013 Mesmo tendo existido grandes mudanças em termos de concepção econômica e social entre as perspectivas tradicionais e críticas há em termos epistemológicos alguns pontos em comum entre elas a metanarrativa estruturada em ideais como essencialismo universalismo e fundacionismo SILVA 2013 Nossa inquietação reside no fato de que o estabelecimento de regimes de verdade sempre abre espaço para técnicas de sujeição e regulação dos indivíduos Desta forma mesmo quando se fala em liberdade e emancipação sem que sejam feitas as devidas críticas podese estar partindo das mesmas vontades e tecnologias operacionais de domínio e controle da realidade e das subjetividades SILVA 2011 SILVA 201364 64 Para nós o problema não consiste simplesmente na permanência de ideias fundacionais Como explica David Blacker 2011 o pensamento proposto por Foucault não nega os valores humanistas como justiça social e liberdade O que ele critica é a maneira como se deu a formação e desenvolvimento histórico desses valores na modernidade a partir da produção de um conjunto de tecnologias e formas de operar o poder em nome deles O conjunto das relações de poder das instituições modernas mostra o quanto geraram práticas nefastas de dominação ao fundarem técnicas políticas de regulação disciplinamento e sujeição Ao invés de criarem experiências de libertação e felicidade humana criaram efeitos contrários Dito isto importa frisar que a reflexão que conduzimos neste trabalho não realiza uma crítica desconstrutiva ou uma autorrefutação que nos leve a algum tipo de niilismo estetizante e desmobilização política como acusaram alguns críticos do pensamento foucaultiano Do contrário ela nos recoloca o exercício de repensar criticamente esses valores fundacionais e as formas de praticálos exercitandoos por formas conteúdos e lugares ainda não pensados e portanto ainda não dominados Esse seria um exercício criativo de poder e liberdade PIGNATELLI 2011 Propondo uma crítica que nos posiciona em 85 Conforme Lopes e Macedo 2011 as reflexões pósestruturalistas em torno do currículo iniciaramse em fins da década de 1970 mas só adentraram no Brasil duas décadas depois Silva 2013 explica que em termos de precisão teórica não é possível falar de um único pósestruturalismo mas de orientações que partem de uma postura comum sempre desconfiada analiticamente fragmentária dos processos históricos problematizadora das relações de saberpoder e que enfatiza a dimensão linguística na produção de realidades sociais Essa postura reflexiva se levanta em meio à complexidade de nossas relações formas de existência e expressão num mundo que ao mesmo tempo em que avança tecnologicamente conserva e renova as estruturas de desigualdades colocandonos de forma saliente a experiência da incerteza e da instabilidade Da mesma forma explica o autor não se pode falar exatamente de um currículo pós estruturalista mas sim de uma postura pósestruturalista diante da prática curricular e seus efeitos políticos em nossas relações sociais Essa postura referese ao permanente questionamento dos conteúdos e formas do pensamento moderno que ainda perduram em nosso currículo pois os grandes sistemas explicativos são a expressão da vontade de dominação do homem ocidental e burguês SILVA 2013 A atitude pósestruturalista que defendemos nos faz pensar o conhecimento curricular como uma produção de poder que é intimamente relacionada com suas formas de representação histórica no discurso É desse ângulo que o currículo precisa ser questionado Nesse sentido não acreditamos numa existência ou certeza curricular prévia mas numa tensa disputa e negociação de sentidos que constrói esse dispositivo normativo A linguagem enquanto campo disputável é uma esfera de fluidez e indeterminações no qual as definições são produzidas pela contingência da relação de diferenças entre os significados de um mesmo sistema cultural POPKWEVITZ 2011 SILVA 2013 Em nossa posição teórica a questão curricular sobre qual o conhecimento deve ser ensinado é refeita considerandose outras categorias e passase a questionar qual a natureza do conhecimento legitimado SILVA 2013 ou melhor ao ensinarmos algo estamos nos posicionando a falar em favor de quem nas arenas políticas do discurso BLACKER 2011 Com o pósestruturalismo o conceito de currículo é refeito LOPES MACEDO 2011 e passa a ser encarado como uma construção discursiva um saberpoder que foi historicamente projetos que ainda clamam por valores fundacionais como justiça e liberdade reconhecemos a legitimidade das lutas políticas de grupos historicamente marginalizados por melhores condições de vida e pela liberdade de viverem da forma como escolherem viver e conforme a possibilidade de condições de equidade de oportunidades sem que essas escolhas lhe custem a própria vida 86 esquadrinhado na modernidade ocidental para diferenciar separar e administrar determinadas leituras e exercícios políticos no mundo O currículo é um problema histórico e discursivo particular uma invenção que envolve questões de conhecimento que objetivam regular o indivíduo selecionando organizando e definindo os aspectos de determinadas culturas que são tidas como certas a conhecer em detrimento de outras que são tomadas como impensáveis inadequadas ou abomináveis de se conhecer POPKEWITZ 2011 Portanto o currículo é um dispositivo de poder que está historicamente ligado a relações sociais de desigualdade ARROYO 2013 ele é um investimento político SILVA 2006 Embasados em Silva 2013 pensamos o currículo para além dos níveis formal oculto e vivido Tratase de um artefato produzido e que é produtor de relações sociais ou ainda um cruzamento ativo de discursos e o resultado de acordos entre os significados Embora não tenha se detido a nomear e analisar especificamente o currículo as teorizações foucaultianas especialmente em Vigiar e Punir nos ajudam a pensar o sistema escolar como um complexo disciplinar no qual seus dispositivos exercem funções estratégicas de governo e regulação das subjetividades Nesse sentido podemos tomar o currículo enquanto dispositivo estratégico no conjunto de alinhamentos obrigatórios que potencializam o utilitarismo econômico e político do corpo treinandoo para aumentar a sua capacidade produtiva FOUCAULT 2011 A produção de aptidões individuais mas coletivamente úteis está condicionada à submissão a uma organização do conhecimento para a qual a sujeição nunca se completa FOUCAULT 2011 Em todo esse processo a lógica panóptica da educação calcada na consciência da vigilância e na mudança de comportamento são os fundamentos que embasam não somente a produção dos currículos mas também a produção das subjetividades escolarizadas Nilma Lino Gomes 2006 define o currículo como uma atividade produtiva Ele é definido tanto pela forma como o produzimos e pelos usos que fazemos dele quanto pelas formas como nos reproduz e nos reforma dotandonos de sentidos sociais culturais e políticos O currículo é um espaço que modela as formas de se comportar pensar expressar sentir Ele é um artefato que forma diferencia categoriza e discrimina VEIGANETO 2011 produzindo modos de subjetivação e de posicionamentos identitários LARROSA 2011 Assim o currículo funciona como um documento de identidade SILVA 2013 Longe de pensálo de maneira realista consideramos que ele é uma imagem idealizada e regulatória produzida por estilos privilegiados de raciocínio Deste modo o que está inscrito nele não é apenas informação mas disposições consciências e sensibilidades em relação ao mundo discutido a partir da escola 87 Dito de outra forma a nossa forma de raciocinar e de falar estão articuladas com formas de poder e regulação que são produzidas pelo currículo Tratase pois de um tipo especial de conhecimento institucionalmente legitimado que nos modela situandonos entre cognição e emoção esperanças e desejos pensamentos e ações posturas e maneiras falas e silêncios gestos e atitudes treinadas e corporificadas sobre o mundo e sobre si POPKEWITZ 2011 Assim o currículo é constituidor das próprias experiências de vida da própria biografia de cada sujeito escolarizado É como atividade que o currículo deve ser compreendido uma atividade que não se limita à nossa vida escolar educacional mas à nossa vida inteira SILVA 2013 p 43 Podemos dizer ainda que o currículo é uma prática de si que atua pelo viés do disciplinamento Ele é uma imposição de uma forma de conhecimento que forma possíveis eus mas essa imposição não se faz de forma bruta ela é mostrada como via eficaz e inscrevendo sistemas simbólicos a respeito de como a pessoa deve interpretar organizar e agir sobre o mundo chega mesmo a ser desejada POPKEWITZ 2011 O currículo constrói a realidade nos governa constrange nosso comportamento projeta nossa identidade tudo isso produzindo sentidos LOPES MACEDO 2011 p 41 Ele não é um artefato fechado em si mesmo acabado ou cristalizado Diferentemente o currículo é um espaço contestável de exercícios polissêmicos e polifônicos de significação poder e resistência POPKEWITZ 2011 ARROYO 2013 Assim enquanto prática aberta à disputa não é simplesmente um mecanismo de reprodução mas também de produções criações e resistências por isso os efeitos de poder projetados no e por ele são conseguidos apenas de modo parcial LOPES MACEDO 2011 De acordo com Foucault 1979 2011 onde há poder inevitavelmente há resistências uma vez que essa é senão a mesma coisa ao menos a outra face do poder Isso nos coloca diante da incerteza e desconfiança quanto à efetivação dos macroprojetos de normatização curricular cuja compreensão de seus efeitos concretos depende de análises localizadas e em diferentes níveis comparativos tanto da formalidade prescritiva quanto de sua prática A textualidade oficial materializada em regras diretrizes normas e leis formam referências à ação curricular mas elas também geram movimentos de insatisfação e desobediência Por isso é importante que se destaque o processo de sua produção expondoo como artefato de poder e questionando seus códigos convenções e estilísticas 88 311 O currículo étnicoracial entre lutas regulações e resistências Os pressupostos iluministas da realização humana pela razão base de nosso modelo pedagógico e curricular foram construídos e legitimados num contexto eurocêntrico dominador colonialista patriarcal e racista VEIGANETO 2011 ARROYO 2013 Esse modelo porém vem sendo duramente questionado sobretudo a partir dos anos 1970 quando distintos eventos puseram em evidência a complexidade de novas relações identitárias e suas lutas políticas o que tem dificultado a administração da governamentalidade neoliberal sobre essas massas heterogêneas SILVA 2013 Também os questionamentos teóricos e políticos engendrados pelas concepções críticas e pósestruturalistas do currículo ajudaram a produzir debates em torno de noções como diferença diversidade desigualdade multiculturalismo entre outros Em uma perspectiva humanista e neoliberal o discurso em defesa do multicultural prega a igualdade e a liberdade humana mas enquanto condições favoráveis ao mercado Essa concepção funcional propõe solucionar ou amenizar os problemas étnicos religiosos de gênero forjando pretensas harmonias sociais em que os sujeitos sejam posicionados em seus devidos lugares e garantam o bom gerenciamento político do Estado e dos fluxos do capital SILVA 2013 Através de ideias como respeito esse multiculturalismo humanista faz funcionar algo a mais e de efeitos contrários à perspectiva dos direitos sociais como a dignidade e a integridade Ele obriga as diferenças a conviverem no mesmo espaço não necessariamente para se compreender respeitar e viver de forma equitativa mas para conviverem sem conflitos que atrapalhem a reprodução da lógica de mercado Os consumidores precisam sentiremse respeitados e contemplados nas ofertas de produtos e também livres para consumir Deste modo os direitos sociais são confundidos com o poder de consumo MARSHALL 2011 Tal tese considera dispensáveis as práticas compensatórias de justiça social oriundas de políticas públicas por classificálas como privilégios políticos que ferem os princípios naturais da igualdade humana A valorização da diversidade cultural depende da ideia de igualdade biológica e confundese com uma espécie de compensação caridosa e tutelar Afinal valorizar a diversidade não significa necessariamente desfazer as desigualdades sociais nem as hierarquias culturais SILVA FONSECA 2007 Aqui o multiculturalismo é muito mais lucrativo e dominador do que justo e libertador BITTENCOURT 2008 SILVA 2013 Já uma noção crítica de multiculturalismo produz argumentos contrahegemônicos levantados tanto por novas posturas científicas quanto pelas lutas de movimentos e grupos sociais historicamente dominados Essa concepção apoiase em argumentos históricos éticos e 89 políticos denunciando as táticas de atualização das práticas segregacionistas na contemporaneidade e a partir de ideias como diversidade e diferença requer uma série de políticas de reparação das desigualdades sociais e melhores condições de vida representatividade visibilidade e expressão CERTEAU 1995 BEM 2006 SILVA 2013 Neste sentido pensamos nós ensinar o respeito e a tolerância é um exercício que vai além de uma perspectiva humanista com todos os seus riscos intelectuais e políticos A inserção de argumentos multiculturais no currículo deve ser contraposta à crítica dos princípios epistemológicos que ele põe em atividade Um currículo que contemple a diversidade de narrativas e identidades como as étnicas por exemplo não deve se limitar a abordagens funcionais exóticas psicologizantes ou essencialistas que evidenciem a diversidade cultural pela ótica da espetacularização e do consumo pois isso corresponderia a uma prática curricular enquanto novo jogo de dominação SILVA FONSECA 2007 Conceitos como diferença e diversidade são realidades construídas não só por experiências sociais concretas mas sobremaneira por discursos que lutam para afirmálas enquanto tal Nesse sentido o multiculturalismo não é só uma questão epistemológica é também política SILVA 2013 Uma abordagem curricular multicultural portanto deve ser desconfiada alerta crítica e aberta a novas formas de conhecimento Ela deve ensinar constantemente a questionar as relações de poder exploração e exclusão que também são constantemente refeitas e atualizadas Deve ser exercitada como brecha como experimentação da diversidade sem hierarquias como acontecimento aberto ao diálogo e ao imprevisível como prática da liberdade e de inúmeras possibilidades e práticas de reconstruções de subjetividades Desta forma acreditamos que uma reconfiguração curricular pode ser fomentadora de transformações sociais JONES 2011 LARROSA 2011 PIGNATELLI 2011 SILVA 2013 VARELA 2011 É justamente no bojo das discussões multiculturais que se tem reelaborado os currículos em vários países do mundo inclusive no Brasil incluindo questionamentos interpretações e narrativas a partir de critérios étnicos Assim o currículo é também um texto de etnicidades SILVA 2013 A configuração de um currículo como uma narrativa étnicoracial se posiciona numa ambiguidade discursiva que persiste em designarse antirracista embora estruturese em conceitos como raça e racismo Dito de outra maneira a ideia de raça persiste como categoria central num currículo que se diz antirracista mas que não é antirracial FRY 2005 Isso explicase pela composição discursiva da própria luta social Também o racismo essa parte estrutural das instituições modernas opera a partir da noção de raça fazendoa 90 funcionar como distribuidora e administradora das relações de privilégios e segregação social O exercício proposto por um currículo étnicoracial é estabelecer óticas racializadoras de resistência equidade e emancipação ao se contrapor à perspectiva racializadora hegemônica Embora algumas teorias o tenham considerado como uma imagem distorcida de uma idealizada verdadeira identidade negra pensamos o racismo como uma operação de poder uma representação discursiva que busca delimitar a identidade negra e circunscrevêla não só em limites simbólicos mas também políticos econômicos sociais e culturais GOMES 2013 SILVA 2013 Ele é ainda parte de uma economia do afeto e do desejo SILVA 2013 p 103 produzida nas ambiguidades de compromissos nefastos entre regimes de verdade e vontades de dominação Em nossa percepção uma abordagem pósestruturalista de um currículo multicultural centrado nas narrativas étnicoraciais deveria questionar e contextualizar o racismo fazendo emergir as marcas históricas discursivas e institucionais que favoreceram o seu surgimento desenvolvimento e atualização enquanto prática política de significação cujo efeito mais latente é a segregação dos grupos étnicos marginalizados Todavia essa abordagem não pode ser reduzida à dimensão individual ou psicológica tampouco à dimensão exclusivamente social Ou seja não pode centrarse apenas na pessoa racista ou no sistema racista Isso não ajuda a enfrentar o problema mas a prorrogálo GOMES 2006b SILVA 2013 ALMEIDA 2019 Esse currículo assumiria desse modo uma postura antirracista a partir da qual questiona contextualiza e analisa as imagens e discursos sobre as identidades étnicas na perspectiva das relações de poder GOMES 2006b Assim ele produz o discurso do respeito mas sem reduzirse às armadilhas do discurso humanista Ele provoca a subjetividade dos sujeitos mas não esquece de localizar os discursos e práticas institucionais que os interpelam Ele realiza leituras antropológicas mas sem esquecer de identificar as relações de poder decompondo expondo e criticando as sutilezas históricas e culturais que submetem grupos étnicos a condições de segregação e marginalidade Ele critica a pretensão do conhecimento escolar em traduzir a realidade tal qual se compreende que ela seja Do contrário localiza e problematiza como essas formas aparentemente científicas e imparciais de compreensão da realidade são historicamente construídas por uma série de mecanismos e estratégias que omitem sob uma diversidade de produções discursivas a crueldade das vontades de fixação e dominação das culturas étnicas marginalizadas e de seus praticantes GOMES 2006b SILVA 2013 Assim o currículo antirracista se posiciona confisca e exercita provisoriamente o poder com outros sujeitos 91 estabelece como nova norma o questionamento e a crítica dos discursos estereotipados65 sobre a identidade cultural étnicoracial É portanto no contexto das relações de poder entre distintos projetos políticos de sociedade que o currículo se configura como produção discursiva como narrativa étnicoracial contestatória do status quo Como uma reorganização da normatividade que é produzida pela luta legítima de grupos que operam resistência nas relações de poder e buscam reconstruir a equidade social ao garantir melhorias das condições materiais e simbólicas de vida CERTEAU 1995 QUEIROZ 2010 JONES 2011 SILVA 2013 Uma história do currículo é produzida por conflitos polifonias e jogos de poder que carregam marcas nem sempre sutis nem unicamente bondosas ou más POPKEWITZ 2011 Ao passo que os efeitos de uma normatização sejam positivos ou seja produtores de novas realidades eles são também polissêmicos ambíguos e manipuláveis As armadilhas e resistências neoliberais destinadas a outras formas de poder se renovam e tentam cooptar e regular os novos modus operandi A Lei 1063903 foi produzida em meio às relações de poder no jogo de dominações e resistências que estabeleceram novas normas mudou formalmente o perfil de ensino e afetou os saberes e as práticas docentes A norma é um artefato positivo nesse jogo de poder em que os distintos lados das forças em disputa lutam para conseguir estabelecêla A ambiguidade desse processo está na maneira como essa luta consegue operar pois no momento em que são tecidos novos objetivos a respeito da vida social abrese à possibilidade de manipulações técnicas institucionalizadas dos indivíduos LARROSA 2011 A norma não inibe a reprodução da lógica de dominação ela lhe fixa novas formas rituais direitos dívidas obrigações procedimentos e exercícios FOUCAULT 2011 Contra as formas de dominação moderna forjadas na ótica branca burguesa patriarcal e cristã o ativismo afrobrasileiro não apenas produziu dispositivos de reparação histórica mas 65 Como estereótipos entendemos os lugares comuns do discurso uma ideia que convoca de forma mecânica e rápida os assentimentos coletivos sem questionamentos LARROSA 2011 Os estereótipos agem como por meio de discursos autoritários ALBUQUERQUE JÚNIOR 2009 gerando conhecimentos cujos objetivos são reduzir e fixar sentidos sobre um determinado objeto ou identidade acerca do qual fala por meio de reducionismos generalizações e homogeneizações GOMES 2013 Dessa forma possibilitam o poder de dominação Os estereótipos resultam de compromissos ambíguos que parecem se articular numa encruzilhada entre uma maneira aberta pela curiosidade e fascinação ao diferente e uma reação ansiosa diante dessa diferença um tipo de medo referente às implicações incertas de que ela possa trazer à posição de privilégio de quem discursa de forma estereotipável No estereótipo a complexidade do outro é reduzida a um conjunto mínimo de signos apenas o mínimo necessário para lidar com a presença do outro sem ter de se envolver com o custoso e doloroso processo de lidar com as nuances as sutilezas e as profundidades da alteridade SILVA 2006 p 51 Esses discursos legitimamse através de uma série de mecanismos que os autorizam fazem funcionar e se expandem por meio de instituições práticas discursivas e convenções socialmente construídas SAID 2007 92 ao reafirmar a força moral de um compromisso por sanção de uma lei e da norma disciplinar também perpetuou suas próprias convenções estabelecendo sua vitória numa batalha da grande guerra política pela sobrevivência Entretanto isso não quer dizer que as vitórias são definitivas e que as normas são seguidas tal qual se espera Há sempre o risco do desvio da tutela da interdição FOUCAULT 2014 pois se o poder é uma prática relacional e múltipla há outras posições que interferem na continuidade desse jogo de dominações Ao estabelecer uma conotação curricular não se estipula uma finalidade única mas lutas plurais e heterogêneas de finalidades de governos A multiplicidade das formas de presença e de exercícios do poder corresponde à diversidade de origens e alvos governáveis MARSHALL 2011 Não pretendemos negar a validade da produção de um currículo de História em torno do qual tem girado profundas questões políticas referentes à etnicidade Afinal a produção de novos saberes escolares enquanto luta da população afrobrasileira por melhores condições de vida e existência é algo reconhecível Do ponto de vista que defendemos cabenos sermos humildes em não estabelecermos uma leitura única mas problematizarmos de modo crítico os diferentes tipos de relações que se cruzam na produção dessa nova realidade considerando não só os argumentos que lhes servem de justificativa objetivos estratégias enunciativas posições políticas assumidas mas também as ambiguidades conflitos e os efeitos que lhes dão diferentes arranjos ritmos e deslocamentos na efetivação de sua proposta Questionamos não só quando como por quê e por quem as categorias conceituais em torno de raça e etnia se tornaram centrais numa reformulação curricular mas também como isso foi apropriado e redefinido entre as idas e vindas em diferentes jogos de enunciação que tornam o currículo um dispositivo aberto disputável e indeterminado POPKEWITIZ 2011 De fato consideramos que a inserção da cultura afrobrasileira no currículo oficial questiona o lugar de poder que as estruturas racistas ocupam nos processos educativos por meio das formas de subjetivação de referências estéticas científicas religiosas sociais pedagógicas e políticas eurocêntricas que servem de fundamento à educação brasileira Argumentando duplamente essa inserção denuncia a propagação de uma perspectiva cultural bem particular a do homem branco cristão heterossexual burguês urbano e racionalista como uma cultura universal normal e desejável Ao mesmo tempo ela afirma a necessidade de uma educação que pluralize as memórias e identidades étnicas a partir da escola Esse processo foi construído no Brasil a partir de uma rede de sentidos produzida revisitada negada e reconquistada por meio de relações interdiscursivas nas últimas décadas Cabe aqui uma breve incursão histórica para entendermos essa construção 93 32 Notas históricas sobre o currículo de História e relações étnicoraciais Como explicam Gomes 2017 e Schwarcz 2019 o fato das populações negras terem tido o acesso negado à educação formal na história do Brasil aprofundou a segregação racial no país mesmo após a abolição Essa mesma constatação já fora denunciada pelas primeiras instituições negras criadas após a abolição da escravatura Nessas instituições defendiase o caráter universalista da educação para exigila como direito político das pessoas negras o que lhes possibilitaria a emancipação social GOMES 2017 Entretanto devido à influência teórica do materialismo histórico no início dos anos 1980 os militantes negros consideraram que essa mesma universalidade da educação operava conforme critérios racistas Desde então passaram a enfatizar a perspectiva das políticas públicas a fim de garantir o direito a todos os cidadãos à educação mas a partir de suas diferenças étnicoraciais Essa ampliação de perspectiva e redirecionamento das práticas efetivouse justamente no momento em que parte da militância negra concluiu suas graduações e adentrava nos espaços disputados das pós graduações oferecidas no país até então Na elaboração de seu projeto pedagógico antirracista o movimento negro afirmou que não só as crianças negras deveriam ser conscientizadas de sua própria condição histórica mas todo o conjunto da população nacional deveria ser levado a pensar sobre o teor das nossas relações étnicas e seus efeitos de desigualdade MNU 1982 Para esse projeto ser aplicado nacionalmente ele deveria no entanto perpassar a legitimidade institucional e jurídica da educação escolar formal Assim o ativismo negro traçou como estratégia política penetrar nas engrenagens burocráticas do Estado e participar de seu poder Seria lutando dentro e fora dos órgãos públicos do Estado brasileiro que pretendiase reformular a educação escolar inserindo a temática étnica como norma obrigatória que instalasse um currículo antirracista QUEIROZ 2010 GOMES 2013 Contudo para conseguir tal realização foi necessário produzir inúmeras estratégias e táticas refazer as batalhas e as agendas políticas os acordos e as reivindicações Foi preciso produzir argumentos diversos e alimentar uma memória discursiva que desse esteio a uma política afirmativa voltada à educação étnicoracial QUEIROZ 2010 As estratégias foram muitas da promoção de eventos à proposição de textos curriculares da realização de pesquisas à formação de um campo específico de estudos O objetivo era aprofundar os debates e ações que poderiam viabilizar uma tomada de consciência racial a partir da educação QUEIROZ 2010 94 No conjunto dessas ações o movimento negro enfatizava a necessidade de se reescrever e ensinar uma história da África e uma história do Brasil considerandose o protagonismo negro a necessidade de se revisar e modificar currículos e livros didáticos bem como a elaboração de uma metodologia de ensino híbrida e a formação de professores para discutir a temática Por meio da positividade do sistema escolar pretendiase subjetivar valores como conscientização racial identidade negra e ancestralidade africana bem como desconstruir preconceitos o racismo a folclorização e a comercialização da cultura Todas essas demandas criaram relações interdiscursivas que foram constantemente refeitas revisitadas e atualizadas em novas ações do movimento negro até que começassem a ser transformadas em aparatos legais durante o fim do século XX e início do século XXI Assim cultura educação e política foram entrelaçadas na proposta de um novo projeto nacional que prezou pela fabricação de uma nova ética e pela responsabilidade com a integridade de todos os seus cidadãos GOMES 2013 Jocélio Teles dos Santos 2005b constatou que a inserção da cultura afrobrasileira no ensino de História já vinha sendo legalizada desde a década 1980 em alguns estados como Bahia e Rio de Janeiro Sales Augusto dos Santos 2005a levantou uma série de leis estaduais produzidas entre o fim da década de 1980 e início da década de 1990 em vários municípios brasileiros como Porto Alegre Belém Aracaju São Paulo Teresina e Brasília Fátima Oliveira 2009 debruçouse sobre a experiência pernambucana na proposição de uma norma curricular étnicoracial a partir dos anos 1990 Contudo para o movimento social negro o problema persistia no fato de que essas leis compunham experiências pontuais localizadas e pouco articuladas Durante a década de 1990 houve várias reformas constitucionais na América Latina emergência de novos movimentos sociais e ampliação dos já existentes bem como as reconfigurações dos Estados a fim de se garantir o reconhecimento e o exercício de direitos pluriétnicos dessas nações Como vimos desde a década anterior a UNESCO declarou urgência em se implementar novas políticas culturais pautadas em reconhecer valorizar salvaguardar divulgar e potencializar a diversidade cultural Tudo isso desenhouse em meio às ambiguidades produzidas pelas forças de controle das políticas neoliberais Nesse período ampliaramse os debates sobre políticas públicas e surgiram novos grupos políticos e científicos que criaram propostas metodologias conceitos valores objetivos e metas no campo do direito constitucional para efetivar políticas públicas centradas em campos como cultura educação e trabalho GOMES 2017 95 Ainda no fervor das discussões daquela década diversas instituições do movimento negro realizaram a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo pela Cidadania e a Vida ocorrida em 20 de novembro de 1995 em Brasília quando os seus organizadores foram recebidos no Palácio do Planalto pelo presidente da república Fernando Henrique Cardoso Na ocasião o presidente assumiu a existência do racismo no Brasil e propunha a criação de ações afirmativas para a população negra em seu governo Os organizadores da marcha entregaram ao presidente o Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial documento no qual atualizavam as propostas já antes debatidas e propunham um conjunto de ações de reorganização e monitoramento do ensino brasileiro considerando a necessidade do debate sobre as questões étnicas Várias instituições negras participaram desse ato inclusive o MNU um dos primeiros a sistematizar uma discussão sobre educação em seu programa de ação de 1982 Além da Marcha Zumbi dos Palmares em 1995 em 1996 foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra Uma nova realidade estava sendo construída mesmo que a passos lentos Finalmente em 1996 a sanção da Lei nº 9394 estabeleceu as Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB e indicou de forma ainda tímida e inicial a orientação de se abordar a diversidade étnica na formação histórica do Brasil No Capítulo II Seção I Das Disposições Gerais a LDB considera em seu artigo 26 parágrafo 4º que o currículo deve contemplar o estudo da participação ativa das três matrizes formadoras da identidade nacional indígenas europeias e africanas BRASIL 1996 O texto inscreve uma orientação de maneira rápida e não se prende a ideias como o protagonismo de um grupo específico A inserção de valores multiculturais no texto da LDB seguiu os princípios humanistas favoráveis ao governo neoliberal da educação Neste sentido dar mais visibilidade a um ou outro grupo feriria o princípio constitucional de igualdade Em 1998 o MEC lançou os Parâmetros Curriculares Nacionais PCN de diversas áreas do conhecimento escolar a fim de aprofundarlhes as orientações teóricas e metodológicas No que diz respeito à disciplina História os PCN não estabeleceram conteúdos mínimos mas eixos temáticos para serem discutidos nos níveis fundamental e médio A proposta de um ensino temático abre a perspectiva de que quaisquer culturas podem ser tomadas como objeto de estudo crítico Os PCN de História ainda alertam para a necessidade de se promover um ensino democrático inclusivo e etnicamente diversificado SILVA FONSECA 2007 Além dos PCN das disciplinas específicas do currículo também foram lançados os PCN temáticos dentre os quais o de Pluralidade Cultural Este documento afirmou que a escola é um espaço público que deve estar voltado para a formação ética e responsável de cidadãos que 96 reconheçam e valorizem a diversidade étnica e cultural que compõe historicamente o Brasil ao passo que identifiquem critiquem e combatam as desigualdades sociais BRASIL 1998 A princípio parece que estes documentos apontaram para uma mudança na sensibilidade histórica de como construir o saber histórico escolar Mas a forma como foram dispostos apontando diretrizes ainda de forma bastante genérica os fez cair estrategicamente numa espécie de senso comum e descompromissos políticos e econômicos Para a governamentalidade neoliberal que autorizava produzia e controlava tais diretrizes curriculares era estratégico criar uma sensação de que se realizavam políticas de compensação e redução das desigualdades sociais De fato o artigo nº 26 da Seção II da LDB corresponde a uma preocupação em implementar práticas multiculturais Ela preza pelo respeito à diversidade étnica abre caminhos à crítica mesmo que incipiente das desigualdades sociais e ainda priva pela noção de liberdade docente ao apontar indicativos genéricos ao trabalho do professor mas sem imporlhes à força ou a obrigatoriedade de coerções normatizadoras tampouco lhes orienta a respeito de critérios de mensuração dos desempenhos escolares Assim o mesmo Estado que autoriza e afirma publicamente assumir uma posição antirracista desresponsabiliza o seu próprio governo e seu sistema educacional do combate ao racismo Ao mesmo tempo cria espaços e tecnologias de vigilâncias controle e responsabilização dos professores pelo sucesso ou fracasso na efetivação desse novo projeto pedagógico O mesmo Estado que reconhece o racismo e autoriza ações para combatêlo se desobriga de investir em políticas educacionais MARSHALL 2011 PETERS 2011 Ele faz se mínimo não ameaça as igualdades naturais se impõe como justo Diante de uma tradição curricular que perpetua uma visão de mundo eurocêntrica a existência de poucas linhas sugestivas não garante por si só a efetivação de práticas pedagógicas que privilegiem a história e cultura das diferentes matrizes étnicas Apesar das publicações dessas normas alguns temas como diversidade étnica cultura afrobrasileira e racismo não se tornaram conteúdos suficientemente presentes nas instituições escolares como constataram diversos estudos SILVA REGIS MIRANDA 2018 Já em 2001 ocorreu a Conferência Mundial contra o Racismo a Discriminação Racial a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância evento organizado pela ONU realizado em Durban na África do Sul Nesse evento representantes do ativismo afrobrasileiro dentre eles o MNU reafirmaram a necessidade do Brasil implementar políticas afirmativas principalmente para a população negra Nesse evento como fruto de pressões internas e externas o Estado brasileiro assumiu o compromisso de implementar políticas de combate ao racismo e às disparidades étnicoraciais BATISTA 2009 SILVA 2009 GOMES 2017 97 Sobre esse contexto John Carth 2018 explica que a implementação de uma política educacional voltada à Educação para as Relações ÉtnicoRaciais inserese num conjunto de demandas nacionais e internacionais que tornam publicamente inaceitáveis as violências e fundamentalismos contemporâneos gerados por juízos morais como o racismo Isso porque o nível de confiabilidade em investimentos econômicos e de infraestrutura são monitorados e medidos por órgãos mundiais para os quais a presença de preconceitos é um indicador da imaturidade institucional de um país e de incertezas quanto à sua capacidade de administração do capital humano Apenas em janeiro de 2003 o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 10639 tornando obrigatório o ensino de história da África dos povos africanos da escravidão no Brasil da cultura afrobrasileira e das lutas contemporâneas da população negra no país BRASIL 2003 Ela ainda incluiu o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra no calendário escolar e delegou sobremaneira a efetivação desse ensino às disciplinas de Educação Artística Literatura e História BRASIL 2003 Entre as negociações para a produção do texto final dessa lei a memória discursiva pautada nas já antigas teses expressões e reivindicações pedagógicas do movimento social negro foram revisitadas negociadas vetadas e reproduzidas numa tensa relação de poder Essa prática discursiva não foi construída de forma livre e fluida mas controlada Ao passar pelo Congresso e ser sancionado pelo presidente o texto paulatinamente deixou de assumir a voz do movimento social negro e passou a assumir a voz do próprio Estado Assim o negro que inicialmente era autor o eu da enunciação um sujeito passou a ser o outro do enunciado o objeto de saber Termos utilizados no texto da lei como contribuição ao invés de participação demarcam sutilmente ideias hierárquicas e valorativas sobre os modos de habitar uma memória e uma história oficial Assim por mais que pareça que se está dando um grande passo inovador está na verdade reproduzindo representações minimizantes da participação negra na história Brasil que são presentificadas pelo enunciado da lei ORLANDI 2012 em contraposição ao ideário inicial do movimento negro O discurso tomou corpo e se armou contra aqueles que inicialmente o elaboraram FOUCAULT 2012 2014 Isso nos faz questionar até que ponto essa discursividade que fora convertida em lei promoveu o protagonismo negro na produção da nova normatização curricular uma vez que foi 98 construída de forma controlada como atestam os vetos feitos respectivamente ao parágrafo 3º do artigo 26A e ao artigo 79A da Lei 106390366 Vetos como esses que por exemplo continuam desobrigando o poder público de investir em formação docente para as relações étnicas Outros efeitos são a reafirmação das universidades e institutos de pesquisa enquanto lugares de produção de um conhecimento de referência ao saber escolar Sua competência para formar professores permanece inabalada por meio deste veto mas isso já não ocorre com outra instituição anteriormente citada no texto da lei o movimento negro Esse movimento parecia estar ocupando um lugar assumindo uma posição que historicamente parecia não lhe caber Isso gerava um incômodo que precisava ser justificado em noções de democracia que transformam estrategicamente uma proposta de reparação histórica em privilégio e produção da desigualdade Eis a finalização de mais uma batalha entre avanços e recuos ao poder exercido pelo movimento social negro em resistir às práticas racistas e fazer penetrar as suas pautas políticopedagógicas nos aparatos legais do próprio Estado produziase outra resistência conservadora através do controle da lei por meio de vetos estratégicos Esse caso ilustra como o processo de construção de uma nova normatividade curricular não se trata simplesmente de realizar uma política afirmativa fomentadora de equidades sociais e práticas da liberdade mas uma batalha na arena política e discursiva em que diferentes sujeitos se posicionam para estabelecer seus objetivos Isso não quer dizer que os militantes se conformaram À generalidade e superficialidade da lei eles responderam com diferentes táticas de ação das quais destacamos duas a participação na formulação de diretrizes pedagógicas complementares e a formação de um campo de pesquisas específico intitulado Educação para as Relações ÉtnicoRaciais ERER67 no Brasil 66 O parágrafo 3º do artigo 26A estabelecia a fixação de conteúdos mínimos sobre a temática negra a ser feita pelo poder federal A proposta foi vetada sob os argumentos de que desrespeitava as autarquias estaduais e municipais em suas autonomias para elaborações curriculares e de que feria a própria ideia de diversidade ao impor a obrigatoriedade do tema independentemente das necessidades locais de cada comunidade escolar em realmente discutir ou não a temática Já o artigo 79A legislava sobre a formação de professores e atribuía essa responsabilidade às universidades instituições de pesquisa e ao próprio movimento negro Este artigo foi vetado sob a alegação de que rompia com a unidade de conteúdo de que trata a própria LDB uma vez que ela não toma como objeto a formação de professores Desta maneira o argumento técnico do parecer avalia que os temas vetados produziam privilégios que ferem os princípios constitucionais de igualdade BRASIL 2003 67 Conforme Carth 2018 a ERER corresponde ao conjunto de referenciais teóricometodológicos e das práticas que pretendem formar no campo das instituições públicas e particulares de ensino nos diferentes níveis uma cultura de convivência respeitosa e solidária entre sujeitos de distintas origens e pertencimentos étnicoraciais presentes no Brasil 99 No primeiro caso o Conselho Nacional de Educação CNE emitiu a Resolução 012004 e o Parecer nº 032004 como documentos reguladores da Lei nº 1063903 Estes documentos pretendiam aprofundar as reflexões entre os profissionais da educação a respeito dos temas listados na obrigatoriedade instalada pela referida lei além de indicar caminhos possíveis de práticas de ensino que fossem mais adequadas no combate ao racismo a partir da escola O conselho teve como relatora a Profa Dra Petronilha Beatriz Gonçalves Silva68 A resolução estabeleceu legalmente o parecer como Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais DCNERER e ressalta que o cumprimento das diretrizes será um fato determinante na avaliação do funcionamento das unidades escolares O parecer CNECP 032004 buscou ser bem abrangente propondo temas conceitos recursos didáticos e metodologias que contemplem a diversidade de memórias experiências e identidades culturais afrobrasileiras atendose a valores fundacionais como justiça social dignidade humana cidadania e respeito às diferenças Estas ações foram estabelecidas no discurso da relatora como princípios orientadores da política educacional para as relações étnicoraciais O parecer versa sobre formação de professores conteúdos formas de abordagem e produção de livros e materiais didáticos Esse é o documento que consegue arrematar de maneira mais completa as pautas pedagógicas do movimento social negro por uma educação antirracista A cultura afrobrasileira é neste documento apresentada de forma mais alargada É tida como um complexo histórico de práticas amplas e pequenas fluidas e consistentes ao mesmo tempo as danças músicas festejos a capoeira o teatro a linguagem as religiosidades O ensino de cultura afrobrasileira destacaria o jeito próprio de ser viver e pensar manifestado 68 Reconhecida militante negra e pesquisadora das relações étnicoraciais no Brasil Petronilha Silva é professora titular da Universidade Federal de São Carlos UFSCar O texto do relatório da professora partiu de uma pesquisa feita com aplicação de questionários a vários sujeitos grupos do Movimento Negro militantes individuais conselhos estaduais e municipais de educação professores engajados com a temática e pais de alunos Foram encaminhados algo em torno de 1000 questionários e o responderam individualmente ou em grupo 250 mulheres e homens entre crianças e adultos com diferentes níveis de escolarização As respostas analisadas nestes questionários foram importantes para que se traçassem problemas dificuldades e dúvidas reais dos múltiplos sujeitos a quem o ensino de história e cultura afrobrasileira interessa Por conseguinte esses dados serviram de base para que o parecer tecesse suas orientações posturas indicações normas temas materiais e métodos Isso nos faz perceber a complexidade de sujeitos envolvidos na produção de demandas para o ensino de história e cultura afrobrasileira Para além do MNU foram relevantes também diversos ativistas negros individualmente acadêmicos agremiações e grupos culturais professores gestores pais As vozes destes sujeitos negociaram sentidos sobre a cultura afrobrasileira e sua importância política no currículo de História Compartilharam dificuldades e esperanças traçando projetos individuais e comuns Embora tenha sido embasado majoritariamente em vozes e enunciações negras filtradas pela professora Petronilha Gonçalves o parecer contou também em sua construção técnica com a participação de intelectuais de diferentes pertencimentos étnicoraciais tais como a professora indígena Francisca Novantino Pinto de Ângelo Nezokemaero à época representante indígena na Comissão Nacional de Professores Indígenas do MEC e dos professores brancos Carlos Roberto Jamil Cury professor emérito da UFMG e expresidente da CAPES e da professora Marília AnconaLopez doutora em Psicologia Clínica que atua como doutora assistente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 100 tanto no dia a dia quanto em celebrações como congadas moçambiques ensaios maracatus rodas de samba BRASIL 2004c p 22 Mas ela corresponde também a outros aspectos estruturantes das nossas relações sociais os conceitos a estética as relações culturais ambientais sociais e políticas as formas de trabalho a produção do conhecimento O desenvolvimento desses processos de inserções curriculares seguiu seus fluxos adentrando em diferentes níveis de poderes locais Em julho de 2007 o governo do estado de Alagoas sancionou a Lei nº 6814 que autorizou a Secretaria de Educação e do Esporte do estado junto ao seu Conselho de Educação a elaborar um projeto para criar as diretrizes operacionais69 para inserção da temática história e cultura afrobrasileira nos currículos dos níveis fundamental e médio das escolas públicas da rede estadual O texto da lei argumenta que tal autorização atenderia o cumprimento à Lei 1063903 e à Resolução nº 012004 do Conselho Nacional de Educação ALAGOAS 2007 A Lei 6814 estabeleceu que fossem realizadas audiências públicas e ao final das discussões se apresentassem as diretrizes curriculares para as disciplinas de História Literatura Português e Artes Como resultado das discussões e com o advento da Lei nº 1164508 que incluía a temática indígena foram produzidos em Alagoas o Parecer 3592010 e a Resolução 0822010 de autoria do Conselho Estadual de Educação que junto ao relatório do Processo nº 6392010 produziram as Diretrizes Curriculares Estaduais da Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira AfroAlagoana e Indígena ALAGOAS 2011 Os enunciados dessas diretrizes recorrem a argumentos da ciência histórica da legislação pedagógica das pesquisas em ERER e das audiências públicas para legitimar os direcionamentos que propõem Como recurso discursivo que garanta sua legalidade e justifique sua proposição reguladora usa sempre expressões e termos como estabelece normas normaliza instrumentos normativos necessidade de regulamentar regulação entre outros Lendo o documento percebemos que algumas das reflexões críticas quanto aos documentos de referência nacional puderam ser pensadas e consideradas nessas diretrizes locais com novas proposições como a ênfase de que a temática deve ser trabalhada em todos as componentes curriculares por meio da realização de projetos de diferentes naturezas e ao longo 69 No texto da Lei 681407 entendese por diretrizes operacionais um conjunto de princípios e procedimentos que tornem realizáveis a inserção da temática história e cultura afrobrasileira nos currículos da educação básica da rede estadual alagoana Educação Infantil Ensino Fundamental Ensino Médio Educação de Jovens e Adultos Educação Especial e Educação Indígena 101 de todo o ano letivo não apenas no mês da consciência negra Percebese também que os argumentos considerados para o veto de alguns artigos propostos no projeto inicial da Lei 1063903 serviram de experiência aos elaboradores da proposta alagoana pois como afirma se na seção sobre os princípios explicitados nesses instrumentos normativos conseguiuse garantir oficialmente no texto da Lei nº 681407 a preocupação com investimentos para a formação continuada de professores da rede estadual de ensino em torno da temática requerida bem como o reconhecimento do potencial e o incentivo para que as instituições alagoanas de ensino devam construir diálogos com as organizações dos movimentos negros e incluir a história das comunidades remanescentes quilombolas Apenas em julho de 2015 foi aprovado no município de Delmiro Gouveia sertão alagoano um plano municipal de ensino 20152025 que cita a educação para as relações étnicoraciais70 O plano referendase em toda a legislação anterior a respeito da inserção da história e cultura afrobrasileira no currículo e pondera o compromisso político da rede municipal de ensino em promover atividades antirracistas mas ao passo que reconhece algumas das dificuldades a serem superadas nesse propósito como a perpetuação do modelo curricular eurocêntrico a naturalização da ideia de democracia racial as defasagens na formação de professores as inadequações dos materiais didáticos e as insuficiências e interrupções dos investimentos financeiros quanto à temática DELMIRO GOUVEIA 2015 não responsabiliza o poder público no investimento em atividades como formação docente por exemplo Já a estratégia de formação de um campo de pesquisas intitulado Educação para as relações étnicoraciais desenvolveu novos instrumentos e categoriais analíticas na produção de novos regimes de verdade sobre as relações étnicas no ambiente escolar Valendose da positividade científica esse campo assumiu responsabilidades políticas e legitimou a necessidade da efetivação de um currículo antirracista na educação brasileira COELHO 2018 SILVA P 2018 SILVA REGIS MIRANDA 2018 Esses estudos tiveram um grande aumento de sua produção após a sanção da Lei 1063903 sendo protagonizados por mulheres 70 Aprovado por meio da Lei municipal nº 112815 esse plano municipal de ensino afirma que as primeiras atividades sobre a cultura afrobrasileira no município datam do ano de 2010 mas o documento não menciona detalhes que assegurem a existência de algum registro sobre essa experiência ou mesmo em que quadro institucional ela tenha acontecido se numa escola municipal estadual ou federal já que em 2010 foi instalado o Campus do Sertão da UFAL no município de Delmiro Gouveia Nas pesquisas realizadas por Aquino 2019 e Nascimento 2018 não foram encontrados documentos que tenham registrado o início de atividades sobre ensino de história e cultura afrobrasileira na rede municipal também os representantes da Secretaria alegaram não saber quando essas atividades tenham sido iniciadas 102 negras militantes de causas sociais geralmente de coletivos negros ou que já trabalham em instituições educativas SILVA P 2018 Mas os compromissos políticos do Estado brasileiro precisavam ser efetivados por meio de uma série de políticas afirmativas e isso tanto pela necessidade de se cumprir os acordos internacionais de combate ao racismo e conseguir bons investimentos políticos e econômicos quanto pela necessidade de se conhecer e controlar essa crescente população negra Gomes 2017 afirma que na década de 2000 se passou das denúncias às cobranças do movimento e de vários ativistas negras e negros no país Nesse momento foram implementadas uma vasta série de órgãos para fomentar as políticas públicas de reparação das desigualdades raciais no Brasil A educadora cita alguns marcos institucionais desse momento como a fundação da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros ABPN no ano 2000 que até hoje realiza o Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros Copene criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial SEPPIR instalação de núcleos e grupos de estudos como o Núcleo de Estudos AfroBrasileiros NEAB em várias universidades bem como a adoção de cotas raciais em várias delas e a fundação em 2004 da Secretaria de Educação Continuada Alfabetização e Diversidade Secad Esses investimentos institucionais tiveram efeitos normativos nas políticas públicas brasileiras das últimas décadas Exemplos são as sanções da Lei nº 10639 em 2003 do Estatuto da Igualdade Racial das Diretrizes Nacionais para Educação Quilombola e da Lei de cotas raciais para concursos públicos da União Para a formação do campo de estudos ERER consideramos também a importância da expansão dos programas de pósgraduação inclusive daqueles voltados exclusivamente às temáticas étnicas e a criação de novas revistas científicas sobretudo online Tudo isso foi acompanhado por uma proliferação editorial voltada à temática negra Em nível internacional a UNICEF estabeleceu o ano de 2011 como o ano internacional dos afrodescendentes e o período de 2015 a 2024 como a década internacional dos afrodescendentes Esse fato também fomentou que o Estado tenha financiado e aprovado uma grande diversidade de projetos interessados na temática negra embora não garanta sua continuidade quando o período de interesse internacional findar Tudo isso criou um novo contexto institucional e discursivo que se desenhou entre demandas sociais e políticas da população negra e dos posicionamentos ambíguos do Estado Uma rede latente de práticas discursivas começava a produzir uma realidade pedagógica antirracista e este fato gerou novos movimentos de resistências Esse processo foi duramente ameaçado de desestruturação a partir de projetos políticos conservadores que uniram a governamentalidade neoliberal e a perspectiva confessional cristã uma vez que houve um 103 significativo crescimento de adeptos de igrejas neopentecostais nas bancadas políticas nacionais nas últimas décadas DANTAS 2011 LOPES 2013 Após o abalo das críticas às instituições modernas os sujeitos historicamente marginalizados são acusados de quererem inverter a ordem natural das coisas acabar com a normalidade das instituições tradicionais pôr à perda a solidez das identidades e a harmonia produtiva da nação brasileira Nessas ordens discursivas as vítimas históricas são transformadas em réus e os defensores dos valores ditos como transcendentais propõem como solução aos conflitos a criminalização dos movimentos sociais a meritocracia e o Estado mínimo a flexibilidade do mercado a competitividade homogeneidade e a supervalorização da moral religiosa o que abre espaços para novos tipos de fundamentalismos SILVA 2013 BRAZÃO 2017 SOUZA 2018 Conforme explica Miranda 2019 surgiram muitos movimentos políticos conservadores na América Latina durante as últimas décadas dentre os quais como exemplo brasileiro temse o movimento Escola Sem Partido fundado em 2004 Percebase um ano após a sanção da Lei 10639 Esse tem sido o caso mais emblemático pela forma como se posiciona contrariamente às abordagens de gênero sexualidade raça classe entre outros temas em sala de aula Seus argumentos autoritários SEFFNER 2019 manifestam duras críticas contra as noções abertas pela perspectiva do multiculturalismo crítico Teses prontas e acabadas como a ameaça da verdadeira cultura nacional por uma subcultura bem como os ataques a valores tradicionais como Deus nação família e cultura comum entraram em cena SILVA 2013 Esse jogo de poder rendeu a partir de 2014 e portanto 11 anos após à sanção da Lei 10639 algumas proposições bem tensas como a Lei Escola Sem Partido e as três formulações da Base Nacional Curricular Comum BNCC O primeiro gerou comportamentos conflituosos de vigilâncias acusações e punições a professores que discutissem de forma crítica a diversidade e as formas desiguais de exercícios de poder em nossa sociedade Sob a acusação de realizarem doutrinação ideológica os professores tiveram suas autonomias duramente ameaçadas por políticos religiosos familiares e pelos próprios alunos que passaram a usar da tecnologia de seus celulares para gravar e denunciar seus docentes Já a construção da BNCC iniciada em 2014 gerou acirrados debates que envolveram numerosas e diversas instituições e profissionais Entre as suas três versões apresentadas à sociedade críticas ferrenhas se estabeleceram entre as visões que defendiam maior ou menor presença de negros índios e brancos BRAZÃO 2017 CÂNDIDO GENTILINI 2017 CARTH 2018 Essas disputas mostram o quanto a cultura afrobrasileira é um saberpoder cuja presença no currículo formal gera polissemias e relações móveis Se para a população 104 negra ela figura como uma possibilidade de reconstrução de suas próprias subjetividades de combate ao racismo e de fomento de equidades sociais também gera incômodos conforme os anseios políticos tradicionais que ainda estruturam e regem nosso Estado Desse ponto de vista reconhecemos que ela só consegue se estabelecer de forma provisória e localizada 33 O currículo a cultura afrobrasileira e os saberes docentes Para Silva 2009 devemos compreender a legislação que normatiza o ensino de história e cultura afrobrasileira como estratégia de uma política educacional de promoção da igualdade racial Tal contexto gera um incômodo não só em vários setores da sociedade brasileira como também no próprio Estado brasileiro que embora se proponha como republicano resiste e acaba equacionando a diversidade de modo desigual Assim mesmo que repouse em valores justos e se estabeleça legalmente uma norma curricular não garante a efetividade de uma política afirmativa como um todo Na verdade a sua imposição aciona múltiplos saberespoderes interesses discursos e disputas pelo estabelecimento de memórias individuais e coletivas SILVA FONSECA 2007 SILVA 2013 ARROYO 2013 Chamamos de saber aquilo que constitui leituras possíveis e contingenciais que se estabelecem historicamente para os indivíduos por meio de regras estratégias procedimentos cálculos e articulações cujo efeito é a produção nomeada de verdade FOUCAULT 1979 Ele é uma prática política que favorece legitima e interdita posições e exercícios de poder FOUCAULT 2012 2014 Enquanto efeito de um conjunto de regras institucionalizadas o saber não é produzido por um sujeito autônomo e livre mas por um sujeito capturado e localizado em pontos de luta nessas tensas relações de poder FOUCAULT 2011 Desta forma o saber de cada pessoa é sempre particular regional local um saber diferencial incapaz de unanimidade e que só deve sua força à dimensão que o opõe a todos aqueles que o circundam FOUCAULT 1979 p 170 Apresentandose em múltiplas formas os saberes docentes são construções históricas marcadas por uma tensa rede discursiva que é inscrita na subjetividade de cada profissional por meio de complexas operações institucionais e relações de poder Conforme Tardif 2002 esses saberes são pragmáticos diversificados dinâmicos e reconstrutores das identidades profissionais ao longo do tempo Eles são produzidos a partir de origens distintas as ciências e disciplinas acadêmicas a formação docente e as técnicas pedagógicas os currículos e a normatividade profissional a cultura pessoal as interações 105 sociais e os juízos morais subjetivamente cultivados e nutridos as relações afetivas as experiências práticas e as reflexões sobre essas experiências Essa diversidade constituidora dos saberes docentes os faz operar poderes que definem os conhecimentos competências habilidades valores e juízos ensináveis Para Josso 2002 os saberes são dispositivos biográficos da formação dos professores Eles são construídos temporalmente ao longo da história de vida desses sujeitos e são formados não apenas por conteúdos tidos exclusivamente como racionais mas também são compostos pelos sentimentos e imaginário de cada docente o que lhes confere grande singularidade e possibilidade de liberdade Esses saberes contudo são tensionados entre os impasses da contemporaneidade No momento em que as políticas educacionais neoliberais ampliam as agendas dos professores BENELLI 2014 ao passo que isentam os governos de realizaram investimentos que reestruturem o exercício desses profissionais MARSHALL 2011 geram conflitos que põem os saberes docentes em xeque quanto à sua legitimidade e eficácia PETERS 2011 Atualmente os professores se situam nas ambiguidades de práticas discursivas que os responsabilizam por um bom ensino mas que ainda os desvalorizam social e profissionalmente TARDIF 2002 PIGNATELLI 2011 Os saberes docentes têm sido tratados durante muito tempo como uma espécie de não saber ou saber insuficiente que necessita de treinamentos científicos adequados para que se tornem eficientes TARDIF 2002 No entanto essa visão tecnicista não é apropriada em termos políticos É preciso efetivarmos abordagens analíticas processos formativos e experiências pedagógicas que considerem os saberes docentes a partir da própria ótica e atividade desses profissionais Há toda uma diversidade de relações de poder que se estabelecem entre o currículo e os saberes que ele seleciona e põe em funcionamento Assim currículo e saberes são abertos e interferem um no outro não numa relação mecânica de causa e efeito mas numa relação positiva e disputável Não como revelação ou reprodução de verdades absolutas mas como a produção de novos e incansáveis regimes interessados de verdade GORE 2011 Para Tardif 2002 os saberes curriculares correspondem aos discursos objetivos conteúdos e métodos que a escola categoriza e apresenta como saberes sociais relevantes de uma formação erudita Diferentemente acreditamos que os saberes curriculares são dispositivos práticos de produção e subjetivação de lutas políticas Os saberes curriculares são manifestações polifônicas pelas quais a escola disputa com diversos sujeitos e outras instituições a construção manutenção e dispersão de conteúdos e práticas ensináveis Embora 106 as normatizações pedagógicas do Estado sejam fundamentais elas não são determinantes para garantir a produção das realidades prescritas Em contraposição e complementaridade aos saberes curriculares entram em movimento os saberes experienciais ou seja aqueles que são construídos no cotidiano do trabalho Estes saberes são identificados refletidos e avaliados pelos próprios docentes que representam interpretam compreendem e orientam as suas próprias práticas incorporando novos hábitos de ensino produzindo novos saberes e reinventando seu estilo e identidade profissional TARDIF 2002 Tardif percebeu que os docentes hierarquizam os diferentes saberes que possuem e para muitos deles os saberes experienciais são mais importantes do que os próprios saberes curriculares pedagógicos e científicos pois a experiência é quem orienta a prática de ensino no seu cotidiano de trabalho quando devem dominar integrar e mobilizar esses saberes Deste modo os professores fazem usos diferenciados dos currículos oficiais de seus fundamentos e regras ao criarem deslocamentos cujos efeitos são múltiplos e têm diferentes consequências políticas OLIVEIRA 2016 O currículo criado no cotidiano não corresponde apenas ao estilo de dar aulas ou às formas metodológicas assumidas nas práticas escolares Ele é sobremaneira a produção de um saber no e sobre o currículo Ao buscar solucionar os problemas cotidianos da vida no ambiente de trabalho os professores criam processos curriculares que são múltiplos e abertamente transitáveis nos quais se entrelaçam conhecimentos valores crenças projetos convicções ignorâncias múltiplas cujos efeitos são sempre diversos provisórios e disputáveis OLIVEIRA 2016 Isso não quer dizer que a prática docente seja totalmente autônoma e resistente às prescrições curriculares oficiais afinal elas são normas pelas quais o próprio docente é vigiado avaliado e regulado mas que pensar a construção desse dispositivo pedagógico implica em considerar as especificidades dos ambientes situações e relações de poder que condicionam as suas múltiplas proliferações A produção de um currículo em perspectiva antirracista impõe a problemática de cobrar dos professores brasileiros um saber politicamente orientado mas que tem sido historicamente dominado por táticas como a folclorização o disciplinamento a negação eou o silêncio Há portanto uma tensão entre os ideais defendidos a formação profissional e a relação dos docentes com esses conteúdos históricos que foram sepultados mascarados em coerências funcionais ou em sistematizações formais FOUCAULT 1979 p 170 que os desqualificaram como saberes ingênuos hierarquicamente inferiores saberes abaixo do nível requerido de conhecimento ou de cientificidade FOUCAULT 1979 p 170 O pensamento social brasileiro construiu uma multiplicidade de saberes sobre a cultura afrobrasileira mas que não correspondem necessariamente aos saberes dessa cultura pois 107 muito desse conhecimento produzido está submetido a diferentes regras e métodos institucionais ligados a concepções neoliberais Sendo dominada teoricamente a cultura afro brasileira se tornou um saber legível conforme os regimes de verdade produzidos por poderes ocidentais Contudo mesmo em se tratando de luta por reparação social a inserção obrigatória desse tema no currículo brasileiro não garante em si a realização de um processo pedagógico democrático e libertário Do contrário pode legitimar o fato de que a cultura afrobrasileira permaneça e seja abordada no currículo formal enquanto não represente uma ameaça aos poderes conservadores Conforme Foucault 1979 mesmo com todo o esforço genealógico para se desenterrar um saber dominado pondo em evidência as operações de poder que o moldaram há sempre o desejo e o risco desse saber agora descolonizado ser novamente recodificado e controlado para que volte a ser uma disciplina cujos efeitos de resistência e de outros exercícios de poder sejam eliminados Essa é uma possibilidade de deslocamento da luta histórica pela elaboração de um currículo étnico a que devemos ficar sempre atentos É justamente em meio a essas tensões que os professores de História devem mobilizar o que sabem sobre o tema e efetivar suas práticas de ensino Adicionese a isso as dificuldades de estarem situados num local com uma infraestrutura urbana limitada um incipiente compromisso do poder público com uma noção de currículo multicultural e onde imperam não sem resistências valores brancos patriarcais neoliberais e cristãos como é o caso do sertão alagoano Deste modo consideramos que o saber docente se localiza numa tensa disputa de posicionamentos entre os saberes culturais curriculares e experienciais É nessa encruzilhada que as enunciações se alimentam de valores morais conceitos e preconceitos objetivos e maneiras de agir É desses encontros que se articulam várias operações de poder entre si e cujos efeitos produzidos nem sempre correspondem aos pretendidos 34 A positividade da lei entre estratégias e armadilhas A partir do movimento social negro foram geradas novas demandas para o Ensino de História no Brasil considerandose as relações étnicoraciais Essa nova configuração curricular valeuse da positividade da lei mas não se desenhou de forma fácil uma vez que o currículo é um espaço de disputa política SILVA FONSECA 2007 ARROYO 2013 SILVA 2013 Não podemos esquecer que a Lei 1063903 foi sancionada num momento de crescimento demográfico da população negra IBGE 2010 aumento de sua renda e poder de 108 consumo ampliação dos movimentos e coletivos negros e maior visibilidade na política nas ciências e na mídia QUEIROZ 2010 Desta maneira entrou em cena o exercício político de uma categoria social que crescia se organizava e ampliava os repertórios discursivos tencionava distintos saberespoderes e transformava as subjetividades À ocupação mútua de diversos espaços de visibilidade e dizibilidade LARROSA 2011 complementavase a estratégia da produção de novos regimes de verdade centrados em critérios étnicos para legitimar uma série de políticas afirmativas de reparação histórica e justiça social que garantissem equidades de direitos políticos e sociais para a população negra brasileira A inserção da história e cultura afrobrasileira no currículo inscrevese na positividade desses regimes de verdade De fato a atuação do movimento negro não estabeleceu apenas um acordo ou contrato mas inverteu provisoriamente uma relação de forças já acostumadas a não serem perturbadas FOUCAULT 2012 Confiscou poderes voltou um vocabulário teoricamente legítimo contra seus utilizadores privilegiados penetrou seduziu e enfraqueceu uma dominação Porém como uma história do currículo está sujeita às múltiplas vontades de dominação é sempre em meio à provisoriedade das lutas que se definem os seus complexos e momentâneos rumos POPKEWITZ 2011 Há nesse processo complexas ambiguidades que merecem ser problematizadas por nossa crítica A modificação da legislação em prol de uma positividade prédeterminada não significa a conquista da liberdade mas uma adaptação dos instrumentos que se encarregam de vigiar os comportamentos cotidianos das pessoas suas identidades e atividades Significa o estabelecimento de uma outra política de dominação sobre essa multiplicidade de corpos e forças que uma população representa FOUCAULT 2011 As estratégias pedagógicas de luta do movimento convocaram novos conteúdos para o aparelho jurídico do Estado mas não clamaram por outro tipo de aparelho Na verdade enxergaram na permanência dessa engrenagem já existente a condição de possibilidade que viesse assegurar a sua agenda política Ocupando instituições governamentais muitos especialistas sobretudo negros com formação eurocêntrica passaram a dirigir as políticas públicas e produzir normatizações curriculares para as relações étnicoraciais Assim foram articulados os fundamentos de uma perspectiva afrocentrada e o método disciplinar ocidental para promover o combate ao racismo e a valorização da identidade cultural negra como um objetivo prédeterminado Tratouse de um hibridismo teóricometodológico criativo dos ativistas negros para produzirlhes novas coerências e protegêlos da desagregação no seu interior por forças inimigas FOUCAULT 1979 Essas eram as possibilidades internas ao jogo 109 desigual das relações de poder que dispunham naquele momento Para tanto se essa estratégia utilizada apresentava suas garantias possuía também seus efeitos perigosos De fato o Estado brasileiro reconheceu a legalidade do movimento social negro a fim de potencializálo mas o fez ainda de forma observável e controlável como tem feito com outros movimentos sociais Afinal aceitar a inserção de ativistas nas engrenagens do Estado não é garantir que eles ocupem espaços elevados de poder decisório prático ou de representação coletiva Às vezes isso pode significar contrariamente uma forma de mantêlos juntos e adestráveis Os vetos nas leis as disputas internas e negociações são exemplos desse processo de admissão pericial A sanção da Lei 1063903 foi disputada politicamente num jogo de ganhos e perdas de interesses para ambos os lados Ao assumir publicamente que a escola é racista e tendo de reconfigurar o currículo a partir das exigências do movimento negro o Estado perdia a segurança e a estabilidade simbólica pautada apenas na ótica ocidental contudo buscou dominar ou tutelar as estratégias do próprio movimento ou ao menos imporlhes limites legais O risco político para as demandas desse movimento reside justamente nessa relação de dependência da instância oficial se ela lhe serviu de apoio legitimador da agenda política serviulhe também como instância de regulação A disciplina reorganiza a lógica das forças sociais e isso torna ambígua e incerta a possibilidade de transformação social Historicamente nas sociedades modernas as ações disciplinares justificam as tecnologias de sujeição camuflandoas na sutileza de discursos teóricos que produzem noções normalizadoras consideradas boas e mesmo necessárias ao corpo social A força da lei que determinou um currículo como narrativa étnicoracial apoiouse ainda em teorias instituições e justificativas em escolhas morais ocidentais Desta forma o Estado fragmentou de maneira desigual o poder jurídico causandolhe internamente conflitos de interesses perspectivas e práticas Um sistema jurídico portanto deve ser pensado como um instrumento para gerir diferentemente as ilegalidades mas não para suprimir todas elas FOUCAULT 1979 2011 Portanto embora o ato de combater o racismo a partir do ambiente escolar não dependa exclusivamente do Estado funciona dentro da construção de suas normatizações nos quais privilégios múltiplos descontínuos e contraditórios reconfiguram os seus efeitos políticos continuamente distribuídos Deste modo mesmo fazendo parte de uma luta política contrahegemônica em prol de valores como a liberdade o currículo étnicoracial estabeleceuse ainda como tecnologia de governo das condutas Para redisciplinar os sujeitos escolares é preciso que o currículo seja considerado não somente historicamente importante e necessário mas teórica e juridicamente 110 legítimo É preciso que seja evidenciada a utilidade pública daquele desenho curricular tornando consensual as suas escolhas É preciso fazer com que cada sujeito possa ver nele a sua própria vantagem LARROSA 2011 POPKEWITZ 2011 À positividade escolar cabe administrar pedagogicamente nossas relações étnicas deslocar objetivos de ensino e aprendizagem definir novas táticas de convivência ainda muito tênues porém difusas no corpo social encontrar novas técnicas a ajustar e cujos efeitos adaptar propor novos princípios para regularizar afinar e universalizar homogeneizar seu exercício aumentar sua eficácia e multiplicar seus circuitos FOUCAULT 2011 A ela cabe produzir uma nova realidade incitar que se abandone o racismo enquanto sistema estruturante de desigualdades e se pratique o antirracismo enquanto viabilidade de equidades sociais O currículo antirracista é interessado e produtivo daí sua constante preocupação com a formação de professores sujeitos altamente responsabilizados pelas práticas discursivas dessa regulação Para mudar as práticas docentes transformam seu trabalho em obrigatório coletivo e premiável determinamlhe proibições orientações periodicidades sistemas de vigilâncias e exames produzse todo um jogo de meios para atrair para o bem e desviar do mal FOUCAULT 2011 p 117 Reorganizando o cotidiano escolar recolocam os docentes em outro sistema de interesses em que seu exercício profissional flutua entre obrigatoriedades compensações e resistências Neste sentido essa ordem antirracista se movimenta epistemologicamente entre a disciplina e a vigilância que submete a profissão docente a posições ambíguas entre integração e subordinação típicas de uma centralidade políticoadministrativa TARDIF 2002 e às resistências criativas praticadas nas brechas antidisciplinares produzidas no cotidiano OLIVEIRA 2016 Entre outros paradoxos à necessidade de uma governamentalidade interessada em conhecer e regular a população minimizando seus conflitos internos opôsse a lógica da redução do investimento do Estado nas políticas públicas Assim o questionamento do sistema de pensamento eurocêntrico a visibilidade de uma identidade cultural historicamente marginalizada e a necessidade de investimentos na educação incomodou bastante a tradição neoliberal daí o reaparecimento de suas resistências conservadoras BRAZÃO 2017 Na busca por reconstruir uma prática pedagógica mais adequada a uma noção crítica de liberdade acreditamos que o currículo e a pedagogia que ele produz deva primar por uma pluralidade crítica holística inclusiva e democrática Deveria incorporar as estratégias de questionamento e desconstrução das metanarrativas e seus regimes de verdade dominantes VARELA 2011 JONES 2011 GOMES 2012 SILVA 2013 111 Realizar um currículo multicultural crítico em que a perspectiva étnica seja contemplada não se limita a adicionar temas ou acrescentar informações superficiais sobre outras culturas e identidades Uma postura pósestruturalista do currículo se esforçaria sistematicamente em lidar com as questões da diferença como problemas históricos e políticos atravessados por discursos em luta Ao invés de apenas celebrar a diversidade ela se empenharia em questionar suas condições materiais e simbólicas de existência e expressão verificando como está vinculada a relações de poder SILVA 2013 É preciso distinguir as tendências gerais da educação neoliberal que autorizam convenientemente e regulam a inserção da cultura afrobrasileira no ensino de História e os princípios de justiça social encabeçados pelos sujeitos negros que das suas dores concretas vivenciadas em seus lugares de marginalidade política produziram resistências pedagógicas e saberes legítimos a serem considerados Isso é importante para que não joguemos fora a possibilidade histórica de formar novos tipos de subjetividade que não estejam pautadas em princípios como consumo e entretenimento ou segregação étnica e social e disciplinamento dos conteúdos e corpos Afinal de contas mesmo que um currículo oficial seja arbitrário ele ainda conserva uma capacidade de promover resistências e diálogos políticos compartilhados mormente para grupos usualmente não representados PIGNATELLI 2011 Já que a normatividade disciplinar foi uma escolha estratégia para a inserção de novos temas no ensino de História71 devemos assumir responsabilidade por nossas escolhas e regimes de verdade nesse processo questionando até que ponto essa inserção curricular favorece aberturas no jogo de poder em que se imaginem e se experienciem novas formas de subjetividade que sejam sempre reinventadas ainda não imaginadas para que sejam vividas como práticas de liberdade e não de dominação PIGNATELLI 2011 71 Conforme Pignatelli 2011 a extinção das normas incidiria em uma desorganização dispersão e enfraquecimento da capacidade de agência docente e reduziria as diferenças entre os profissionais a um tipo frágil de voluntarismo descorporificado e isolacionista 112 4 METODOLOGIA NARRATIVAS DE HISTÓRIAS DE VIDA DOCENTES Problematizar os saberes e as práticas de professores de História sobre a cultura afro brasileira no sertão alagoano implica em problematizar discutir e desconstruir algumas das tramas e polêmicas que delineiam esses mesmos saberes e práticas Diante da variedade de fontes e procedimentos possíveis fazse necessária uma reflexão teóricometodológica quanto a alguns caminhos possíveis a serem trilhados e seus respectivos efeitos epistemológicos políticos e práticos diante do nosso objetivo de pesquisa A escola é uma instituição que produz uma considerável diversidade de discursos Um sistema educacional ou mesmo uma instituição escolar não são simplesmente espaços onde se fornecem apenas discursos que ensinam e que atestam o aprendizado são também espaços que geram falas de vigilância de registro e de controle Dito de outra maneira são lugares que formam saberes teóricos acerca da pedagogia que produzem certos tipos de conhecimentos específicos sobre os processos educativos FOUCAULT 2011 POPKEWITZ 2011 Neste sentido considerase importante a utilização de documentos escritos empreendidos no interior dos sistemas educacionais Contudo um olhar foucaultiano faznos desconfiar da inocência desses discursos pois eles estão pautados em convenções que fabricam determinadas formas de saber Eles promovem práticas subjulgadoras e dominadoras MARSHALL 2011 A desconstrução de um tal ponto de vista consiste em contestar as verdades que buscam estabelecer essas formas de dominação pedagógica e fazerlhes uma crítica GORE 2011 Consideramos que a tradição moderna instituiu nas escolas não apenas práticas normativas mas também práticas periciais como a observação a medição e o registro A função dessas ações foi em grande parte demonstrar a competência institucional na formação de indivíduos dóceis e produtivos e com isso produzir saberes experimentais sobre a educação MACHADO 1979 Deste modo rituais de observação instalaram vigilâncias e rituais de registro inscreveram constatações da eficácia escolar na formação disciplinar dos corpos Ainda na contemporaneidade essas práticas periciais são formas muito poderosas na produção dessas pretensas verdades sobre o que acontece nas experiências pedagógicas Os professores são convocados pelas instâncias administrativas da educação a registrar dados quantitativos de forma resumida em planejamentos cadernetas e relatórios Esses documentos constituemse em fontes de pesquisa sobre o tipo de saber pedagógico regulado e produzido a partir do chão da escola 113 Esses registros que se situam na lógica panóptica nos apresentam números e asserções que buscam prestar contas de listas de deveres a serem cumpridos FOUCAULT 2011 A linguagem burocrática e a frieza descritiva destes documentos deixam escapar sentimentos e embates que compõem as tramas escolares provocando apagamentos e silêncios Conforme Jorge Larrosa 2011 os relatórios e pareceres técnicos das escolas são tecnologias orientadas à objetivação pedagógica das abordagens docentes Eles buscam tornar visíveis os professores enquanto profissionais capturados pela norma e assim pretendem comprovar a eficácia dos procedimentos pedagógicos adotados e reproduzidos Em nossa pesquisa acessamos projetos72 e atas de cursos de formação continuada de professores sobre a história e cultura afrobrasileira73 bem como relatório de uma professora sobre as atividades que desenvolveu na sua escola74 e algumas fotografias de atividades escolares Para tanto percebemos que essa documentação constrói uma memória oficial ainda superficial do que ocorreu nesses eventos afinal tais relatos obedecem à lógica administrativa da eficácia no governo das condutas profissionais Querendo demonstrar uma realidade desejável eles produzem num só gesto o objeto de visibilidade uma prática pedagógica pretensiosamente antirracista e o sujeito da visão o professor enquanto profissional adequado cientificamente treinado Tal fato feznos se posicionar com desconfiança diante destas fontes já que uma documentação escrita não expõe a verdade sobre o processo histórico do qual fala mas do contrário estabelece regimes de verdade comprometidos sobre eles É preciso que ampliemos nosso corpus de análise e com ele também nossa metodologia pois uma pesquisa sobre processos educativos que se limite aos documentos oficiais apresenta insuficiências claras de natureza teórica e metodológica FONSECA 2011 72 Projeto Conhecendo nossa história da África ao Brasil promovido pela Fundação Cultural Palmares em parceria com a Secretaria Estadual de Educação de Alagoas e Secretaria Municipal de Educação de Delmiro Gouveia AL O curso foi criado em fevereiro de 2018 realizado entre maio e novembro de 2018 e destinado a professores gestores e coordenadores pedagógicos Não conseguimos ter acesso às atas nem ao relatório final deste curso 73 Atas da formação A Cor da Cultura promovida pela 11ª Gerência Regional de Ensino GERE da Secretaria Estadual de Educação de Alagoas SEED O curso foi ministrado pelo professor mestre Cláudio Cardoso de Melo e promoveu cinco encontros para professores de municípios do alto sertão alagoano tendo o município de Delmiro Gouveia como sede de realização Acessamos todas as atas correspondentes aos dias 03 04 17 18 e 24 de outubro de 2011 Elas descrevem muito sumariamente os temas e atividades desenvolvidas em cada ocasião Esta formação não teve uma presença sistemática de professores apresentando o maior número de 14 profissionais presentes o que é pouco se comparado ao número de 20 escolas administradas pela 11ª GERE nos oito municípios do alto sertão alagoano Pelas datas percebese também que este curso foi oferecido na intenção de preparar os docentes para as atividades a serem desenvolvidas no mês seguinte novembro mês da consciência negra conforme estabelecido pela Lei 1063903 74 Relatório I Ciclo de Oficinas da Escola Watson africanidades no sertão que descreve as atividades do mês da consciência negra na referida escola em 2015 114 Conforme Fonseca 2011 devemos ampliar nosso campo de investigação à dimensão do cotidiano escolar em que diferentes sujeitos atuam construindo e negociando valores saberes poderes e experiências que têm sido registradas de diversas formas Essas práticas discursivas alteram toda a relação de saberpoder que produz novas realidades pedagógicas Neste sentido a reconstrução metodológica de narrativas escolares precisa considerar outras práticas discursivas Através de outros olhares e falas é possível reformular aspectos do cotidiano educativo como cenários sujeitos sentimentos valores conflitos estratégias e táticas que os documentos oficiais não são capazes de fazernos compreender É preciso realizar uma historicidade dos processos educativos de forma localizada que considere os espaços os discursos e seus exercícios microscópicos de poder confrontandoos com os grandes investimentos administrativos e periciais da educação Uma história efetiva do ensino de história e cultura afrobrasileira nesta perspectiva considera as reconfigurações tensas que se estabelecem sempre móveis entre as grandes estratégias administrativas e as pequenas táticas da prática cotidiana FONSECA 2011 Tal análise nos dá condições de compreender alguns aspectos relevantes da problemática que consiste no paradoxo entre a existência de uma norma pedagógica ancorada num dispositivo legal e os fatores políticos e culturais que interagem na e com a escola construindo barreiras à efetivação deste tema de ensino Muitas vezes quando um docente aborda as práticas representações e expressões culturais negras em sala de aula as reações de muitos alunos e por vezes de pais costumam ser repressivas As piadinhas os jargões e as represálias CAVALLEIRO 2012 FAZZI 2012 que são lançadas sobre a negritude apenas variam em graus de violência sendo reflexo de uma tradição pautada sobre um discurso depreciativo que impôs estigmas negativos às memórias identidades e culturas negras MUNANGA 2008 2012 GOMES 2013 Esses preconceitos valores e práticas culturais adentram as escolas perpetuam relações excludentes e geram falta de conhecimento e pouco interesse em relação ao tema por parte dos sujeitos que nela interagem Tal quadro demonstra o quão forte é o caráter seletivo discriminatório e excludente da escola pois se trata ainda de um lugar de diferenciação social ITANI 1998 Considerando o papel político da escola enquanto um espaço público SILVA 2013 SEFFNER 2019 que deve ser orientado à construção de uma sociedade justa precisamos problematizar suas formas de funcionamento e efeitos políticos na atualidade Ela tem de fato promovido exercícios democráticos de inclusão ou novas formas de dominação e segregação É preciso criarmos percursos investigativos que nos permitam outros olhares e discursos para 115 confrontarmos esta realidade uma vez que a escola é um lugar de produção em massa de determinadas subjetividades Nenhum empreendimento pode ter caráter mais relevante e político do que analisar as subjetividades que são produzidas nas escolas públicas brasileiras ALVES PIZZI 2014 p 92 Uma vez que as formas legítimas de olhar correspondem a formas legítimas de dizer LARROSA 2011 foi preciso ser criada uma discursividade que produzisse uma sensibilidade do olhar para que muitos docentes pudessem ver em seus ambientes de trabalho aquilo que a normatização da lei denuncia e se propõe a combater o racismo As pesquisas no campo da ERER os textos normativos os cursos de formação docente e a produção de materiais didáticos sobre o tema são esforços para se criar a visibilidade da permanência de um problema político e social de fortes bases históricas mas que era comumente negado Ainda assim vários fatores interferem no poder que a normatização curricular exerce no cotidiano escolar Muitas vezes as prescrições são demandadas produzidas e geridas por sujeitos que mesmo sendo profissionais legítimos não lidam necessariamente com o cotidiano do ensino em sala de aula GORE 2011 VARELA 2011 LARROSA 2011 e isso instala mais conflitos de concepções e interesses Os professores a quem recaem diretamente a força da lei que os obriga a ensinar história e cultura afrobrasileira tiveram seus saberes construídos durante muito tempo de formas comprometidas em relação ao tema sobre o qual versa a norma Eles são ainda considerados mais como aplicadores ou reprodutores dos pressupostos normatizados do que como produtores ativos de determinados saberes Esses são alguns dos fatores que contribuem para tornar a efetividade da lei tão incerta ou pouco produtiva quanto aos objetivos a que pretendem atingir No empreendimento de entender como essas ambiguidades se acomodam no cotidiano escolar e reconstroem as possibilidades e compromissos políticos da escola na formação de subjetividades acreditamos que além de considerar a luta política da categoria negra no estabelecimento de tal norma educativa é preciso considerar a ótica e explicações dos próprios docentes suas experiências e os juízos que fazem nas práticas de ensino sobre história e cultura afrobrasileira Nessa fronteira acontecem os encontros as disputas e os conflitos que precisamos apreender com minúcias Os saberes docentes reconfiguram a oficialidade curricular a partir de um complexo cruzamento entre informações conceitos práticas e valores sociais Essa reflexão nos fez ampliar a abordagem metodológica a fim de perseguir o objetivo da pesquisa Daí vimos na produção de narrativas dos docentes a possibilidade de reconstruir os enredos que os documentos oficiais não são capazes de nos fazer perceber 116 Considerando os lugares de fala dos professores esta análise buscou localizar algumas ações silenciosas que demonstram não só a atuação do poder disciplinar mas também formas de resistências a ele que se materializam nos discursos docentes pelos usos e sentidos que esses profissionais fazem de maneira cotidiana de suas ideias de cultura negra no ensino de História praticado no sertão alagoano Os sentidos são muitos e revelam grandes tensões Nosso foco no discurso do docente justificase por pensar esse profissional não apenas enquanto sujeito que planeja e ministra aulas mas como um sujeito que ao fazer isso assume posições produz discursos institui práticas e joga com diferentes projetos de sociedade em meio às tramas e coerções cotidianas que lhes impõem as normas as instituições os saberes e poderes Os saberes dos professores e suas práticas de ensino desvelam exercícios de poder que se materializam no entrecruzamento entre discursos normas atitudes interesses e conflitos PIGNATELLI 2011 É nesse complexo jogo entre saberes posições e práticas que se configuram os movimentos de subjetivação em relação à cultura afrobrasileira a partir da escola Essas provocações nos produziram a seguinte questão como têm se constituído historicamente os saberes dos professores sertanejos sobre a cultura afrobrasileira e através de que processos eles põem esses saberes em movimento por meio de suas práticas cotidianas de ensino O cruzamento de fontes e dados na busca por compreender como esses profissionais têm lidado com a normatividade pedagógica nos fez perceber a multiplicidade de elementos que redefinem e deslocam concepções sentimentos e atitudes que interferem nesses processos Para tanto foi imprescindível que operássemos recortes seleções e costuras teórico metodológicas que nos permitissem uma coerência analítica do sujeito docente Fizemos isso numa perspectiva pósestruturalista a partir de conexões entre histórias de vida história oral e análise do discurso 41 Entre as técnicas do eu e a experiência de si as histórias de vida e a genealogia das subjetividades Os saberes as experiências e as subjetividades docentes têm sido tensionados e ressignificados na contemporaneidade devido ao aumento das agendas profissionais em que pesam aspectos como a diversificação e dinamismo da prática frente às novas tecnologias a transformação da profissionalização ao longo da vida e mesmo os novos papeis e funções atribuídas aos docentes no cotidiano de trabalho Tais elementos têm corroborado para um 117 aumento da carga de trabalho e a diminuição dos períodos dedicados a formações continuadas dos professores TARDIF 2002 BENELLI 2014 Diante desta problemática seria necessário que os docentes participassem de caminhos instrutivos que envolvam atividades como confrontar modelos fazer conexões aprender e elaborar novos sentidos Nesse sentido Benelli 2014 propõe uma metodologia investigativa a que chama de biografia formativa Seu argumento é de que os dispositivos narrativos e autobiográficos portanto se evidenciam como instrumentos reflexivos por excelência uma vez que oferecem a possibilidade de se autocompreender e de utilizar heuristicamente instrumentos de pesquisa e exame BENELLI 2014 p 06 Uma vez que consideramos os saberes como temporais e de múltiplas origens TARDIF 2002 JOSSO 2002 não cabe considerar que os saberes mobilizados nas práticas dos docentes de História são oriundos apenas da formação profissional inicial e continuada Eles são constituídos também ao longo de toda a vida desses sujeitos que são interpelados por discursos e imagens oriundas de outros saberes Assim nossa pesquisa buscou investigar a história de vida desses docentes como um todo como formação de um sujeito singular mas pertencente a uma categoria profissional e participante de um contexto cultural específico A introdução de métodos biográficos nas pesquisas em ciências humanas não é uma novidade Entre os séculos XVIII e XIX conforme a lógica disciplinar eles integraram uma tradição que buscava tornar uma pessoa num dado objeto de saber para produzir uma verdade sobre ela Com isso objetivavase construir novos critérios racionais e universais de pessoalidade normalidade e aceitabilidade pelos quais cada indivíduo passasse a ser portador de uma identidade moldada e regulada FOUCAULT 1979 1984 1985 2011 LARROSA 2011 MACHADO 1979 MARHSALL 2011 Desta forma os dispositivos biográficos contribuíram durante muito tempo para a formação de determinadas visões teóricas do ser humano e cujos efeitos foram a punição a internação ou a formação pedagógica de um agente moral um profissional uma pessoa singular cujo fundamento subjaz ao poder das disciplinas MARSHALL 2011 Segundo Foucault o ato de produzir biografias se desenvolve no trato com a linguagem intermediado não só por si próprio mas também por um interlocutor cuja expectativa é avaliar a memória e a moralidade do sujeito emissor A realização dessas práticas que objetivam reconstituir discursivamente a vida dos sujeitos sempre tomou formas mais ou menos institucionalizadas na história de nossa cultura ocidental É daí que elas se constituem em verdadeiras práticas sociais mediadas por lutas entre vontades de dominação e resistências e não em atos de solidão FOUCAULT 1985 118 Mas ainda em termos institucionais muitas das histórias dos indivíduos têm sido historicamente apropriadas e utilizadas para conferir formas de sujeição tornandoos submissos e governáveis pela obediência a uma lei ou a uma norma geral Isso tem criado os contornos dos saberes pensamentos sentimentos e ações dos próprios sujeitos biografados uma vez que eles são objetos de discursos institucionalizados FOUCAULT 1985 LARROSA 2011 PIGNATELLI 2011 Em crítica a esses usos políticos do biográfico consideramos que a possibilidade de realizar pesquisas por meio de uma teoria prescritiva e de testes oriundos de um método ordenado a priori engendrariam efeitos de verdade que limitariam as nossas formas de entender o lugar e as condições de possiblidade dos professores no desenvolvimento histórico dos processos educativos com os quais lidam PIGNATELLI 2011 Acreditamos que é preciso trazer uma abordagem do indivíduo que mesmo considerando a historicidade pragmática que lhe conferiu efeito de objetivação regulação e domínio ultrapassea considerando a perspectiva analítica da subjetivação LARROSA 2011 Deste modo é imprescindível a não construção de uma metodologia que recaia em utilitarismos cujas implicações sejam a perpetuação de relações assimétricas entre pesquisador e sujeitos participantes da pesquisa Uma investigação sobre as histórias de vida docentes orientase Para uma concepção do poder que substitua o privilégio da lei pelo ponto de vista do objetivo o privilégio da interdição pelo ponto de vista da eficácia da tática o privilégio da soberania pela análise de um campo múltiplo e móvel de correlações de força onde se produzam efeitos globais mas nunca totalmente estáveis de dominação FOUCAULT 1988 p 97 Segundo Roiz 2009 nas últimas décadas ocorreram transformações significativas nas abordagens biográficas devido aos questionamentos feitos aos conteúdos formas e implicações políticas de seus usos no passado Além de um maior esforço para produzir análises mais complexas confrontandose estruturas conjunturas e acontecimentos indivíduos e grupos discursos e práticas também as próprias bases epistemológicas e a constituição linguística das biografias têm sido alteradas inscrevemse cronologias novas e múltiplas alojamse problemas e não só descrições ou narrações refutamse as teleologias e criticamse os projetos dominadores que elas concebem Tal fato se deve às próprias indagações diante do material biográfico a que se quer submeter à análise afinal as conjunturas históricas e as especificidades das relações que ocorrem nas trajetórias individuais tornam as subjetividades complexas múltiplas plurais e 119 ambíguas Esta constatação impõe limites formas de pensamento e sentimentos às escolhas do pesquisador uma vez que não se pode forçar os dados a se enquadrar em teses préfabricadas Não se pode antecipar início meio e fim das biografias sem considerar a ótica e as narrativas dos próprios sujeitos ROIZ 2009 Desse ponto de vista o pensamento de Foucault nos incita a uma reflexão que é ao mesmo tempo antropológica e política Antropológica não porque implique numa nova teoria sobre a ideia de pessoa mas porque nos faz perceber como essa pessoa é o resultado de um processo histórico que modela sua humanidade e singularidade É política porque essa crítica fomenta uma atitude de recusa e de produção de resistências às formas de governo da própria subjetividade impostas por forças externas que alojam formas de segregação e dominação LARROSA 2011 Esse revisionismo nos faz compreender que não se trata de produzir uma biografia que recrie e legitime a ilusão moderna da existência de um sujeito em si como um ser de essência pura afinal o sujeito não é uma totalidade coerente estável e soberana Muito mais complexo ele é um dado histórico problemático uma articulação complexa entre os discursos e as práticas que o constituem ao longo do tempo e dos espaços Ele é uma função do enunciado ou ainda um efeito de poder Ser ambíguo o sujeito é alguém sobre quem recaem formas de saber que resultam em posicionamentos discursivos temporalmente demarcados mas em constante movimento FOUCAULT 1979 1984 1985 GORE 2011 LARROSA 2011 PIGNATELLI 2011 Ele não é simplesmente um objeto mas um efeito que resulta de um jogo relacional entre as imposições discursivas que o capturam e o atravessam e as posições resistências e maneiras de construção de sua própria experiência pessoal que materializa esses discursos em novas ações ALVES PIZZI 2014 O sujeito é portanto um indivíduo dotado de certas modalidades de subjetivação que lhes conferem certos tipos de identidade social na medida em que as classificações que objetivam e nomeiam são aceitas por ele Desta maneira podemos dizer que aquilo a que se convencionou chamar de identidade do sujeito é um discurso uma metáfora que funciona como um ideal regulatório de uma coerência estabilidade e autonomia inatingíveis LARROSA 2011 MARSHALL 2011 FERNANDES 2014 Assim o que pretendemos efetivar é uma história crítica da subjetividade Segundo Fernandes 2014 120 Para fazer a história crítica da subjetividade Foucault inscreve a história das relações entre o sujeito e a verdade no quadro de uma cultura de si que se caracteriza por mutações e transformações Tratase das relações do sujeito com tudo o que o cerca de que maneira aquilo que conhecemos sobre os deuses os homens o mundo poderá ter efeito na natureza do sujeito ou melhor expondo na sua maneira de agir no seu ethos A maneira de ser de um sujeito ou seja seu ethos é produzido e modificado por movimentos exteriores a ele por discursos que o capturam FERNANDES 2014 p 118 Conforme Benelli 2014 a pesquisa biográfica conecta fenômenos sociais diferentes e experiências pessoais questionando sentidos minando explicações simplistas óbvias e externas sobre as experiências docentes e superando a passividade do sujeito que narra Se torna portanto um trabalho ético de responsabilidade que autoriza a quem escreve sair do caos e da desordem para fazer ordem e restituir à turma e a si mesmo experiências fatos eventos que de outra forma seriam perdidos e esquecidos BENELLI 2014 p 08 Sabemos que o trabalho de reconstrução de memórias e de produção discursiva não é algo transparente e imparcial Do contrário ocorre atravessado por relações de poder Nesse sentido nos apoiamos na proposta de uma investigação sobre as histórias de vida docentes que percorra caminhos teóricos e práticos cujos efeitos políticos na produção do conhecimento inspirem formas livres e justas de existência Para isso valemonos inicialmente dos pressupostos teóricos de uma genealogia do eu formulada por Nikolas Rose 2001 Para o autor a preocupação teóricometodológica em fazer uma história do eu consiste na perspectiva do que chamou de uma genealogia da subjetivação Não se trata de incorrer superficialmente numa narrativa sobre as ideias de pessoa ou ideias de ser professor mas sim em identificar relacionar e analisar as práticas normas técnicas locais e relações de autoridade que agenciam regimes de pessoalidade dos professores de História ou seja refletir sobre em que circunstâncias e como os saberes sobre a cultura afrobrasileira constroem e significam as práticas de ensino e as próprias subjetividades desses docentes Esse eu temporalmente fabricável subjetivado mas que se esforça em transparecer discursivamente como uma identidade estável centrada regulada e autorizada é tomado como o local de um problema histórico a ser pesquisado numa cautelosa perspectiva biográfica Essa investigação deve se dar ao longo de uma série de trajetórias ROSE 2001 p 37 Assim as histórias de vida dos professores entrevistados são fontes importantes de pesquisa Elas são compostas por tramas em que se cruzam diferentes histórias instituições normas documentos conceitos esquemas de pensamento técnicas de regulação problemas de organização relações de autoridade Neste sentido as identidades que parecem transparecer nos discursos memorialísticos dos docentes não são reveladoras de uma verdade transcendental 121 sobre quem são o que sabem e o que fazem mas funcionam como ideais regulatórios ou mesmo planos irreais de projeção a partir dos quais podemos perceber os desdobramentos do mundo social no sujeito através de discursos autorizados que se cruzam e que reorganizados em suas falas fazem imaginar a si próprios como os sujeitos de uma biografia a utilizar certas artes da memória a fim de tornar sua biografia estável a empregar certos vocabulários e explicações para tornar isso inteligível para si mesmos ROSE 2001 p 50 Ao contar as suas histórias de vida buscase tornar presente o ausente ou seja representase discursivamente algo já vivido produzse uma lógica explicativa significados socialmente referenciados para se criar um sentido de unidade sobre si Conforme explica Rose 2001 na genealogia da subjetivação identificamse as práticas cotidianas que tornam uma conduta problemática relacionandoa com os discursos e programas mundanos que buscam tomar esses problemas inteligíveis e ao mesmo tempo administráveis Isso não quer dizer que a tecnologização da conduta humana seja necessariamente ruim Ela é positiva no sentido de que produz algo capacita e governa certos tipos de sujeitos dentro de objetivos préestabelecidos Tais considerações nos levam a buscar mapear de que forma os saberes e práticas docentes dialogam ou não com os programas curriculares estabelecidos a respeito do ensino de história e cultura afrobrasileira Rose explica que nosso regime ético contemporâneo é marcado por uma grande valorização do eu de um regime de subjetivação que busca voltar as pessoas para seu interior a fim de se explorarem e se autorregularem de modo a redescobriremse Funcionando epistemologicamente por meio de uma hermenêutica do sujeito sob a premissa do conhece te a ti mesmo este regime mistura as práticas religiosas de confissão e médicoterapêuticas a fim de revelar os desejos que compõem as verdades mais íntimas de cada pessoa para que possa viver de acordo com eles O que sabemos é que os sentidos traduzidos pelos docentes não compõem uma verdade a ser revelada mas a reorganização seletiva e interior de outros discursos que o atravessam Conforme argumenta Christine Josso 2002 ao longo do processo de formação dos sujeitos as suas respectivas histórias de vida diluem as fronteiras entre o racional e o imaginário Essa discussão nos importa mas reconhecemos que precisamos avançar a fim de que a nossa abordagem tanto realize uma diagnose crítica da composição do sujeito como também estimule de forma desafiadora a sua mobilização para uma autotransformação politicamente responsável LARROSA 2011 PIGNATELLI 2011 Afinal a abordagem que delineamos nessa pesquisa não incorre em um relativismo cínico ou desesperado tampouco em uma irresponsabilidade política GORE 2011 Do contrário nossa apreciação teórica nos incita a 122 compromissos éticos políticos e epistemológicos pelos quais articulemos teoria e prática no fomento à reelaboração ativa do sujeito por si próprio Ela nos leva a pensar de um outro modo a elaborar novos sentidos e a ensaiar novas metáforas da própria existência enquanto pessoa LARROSA 2011 Em termos práticos Jorge Larrosa 2011 propõe enquanto metodologia de pesquisa voltada à produção de histórias de vida dos sujeitos escolares a experiência de si ou seja o estabelecimento de um tipo de relação que o sujeito constrói consigo mesmo mediada por dispositivos pedagógicos que o ensinam a compreenderse e transformarse Esse recurso ancorase nas noções foucaultianas de experiência e cultura de si O conceito de experiência é aqui entendido como a correlação numa cultura entre campos de saber tipos de normatividade e formas de subjetividade FOUCAULT 1984 p 10 ou seja diz respeito aos sentidos que produzimos a partir de um entrecruzamento entre instituições discursos e relações de poder que nos produzem e entre as quais nos deslocamos Para Jorge Larrosa 2002 a experiência resulta de uma postura reflexiva Ela corresponde não apenas às vivências pelas quais os sujeitos passam mas sobremaneira àquilo que se passa no interior de cada sujeito Àquilo que o toca o tensiona gera um novo saber e por fim possui capacidade de transformálo LARROSA 2002 A experiência situase nos quadros de uma cultura de si ou seja dos regimes históricos de valorização e intensificação das relações do sujeito para consigo A cultura de si ganhou forma difundiuse e transformouse em diferentes doutrinas formas de ensino e comunicação Ela fundamenta a ideia e a prática do cuidado de um indivíduo consigo mesmo para que se torne um certo tipo ideal de pessoa Assim ela produz regulações da consciência transforma condutas e impregna os modos de vida Ela interpela os indivíduos e as instituições gerando determinados conhecimentos e elaborando determinados saberes sobre aquilo que os sujeitos são Contudo ela não é uma redoma fechada A cultura de si constitui práticas sociais abertas a trocas e reformulações ao longo do tempo FOUCAULT 1985 Assim Larrosa propôs o conceito de experiência de si enquanto uma relação que se estabelece da pessoa consigo mesma e que regula e modifica a sua própria experiência Ela é constituída quando um domínio material é focalizado enquanto objeto de atenção e problematização através de uma série de técnicas de desconstruções e reconstruções tais como verse narrarse julgarse dominarse e transformarse Esses mecanismos utilizamse de dispositivos óticos discursivos jurídicos e práticos através dos quais promovem um exercício de autopercepção do sujeito em perspectiva histórica no qual uma pessoa pondera as tramas entre saberpoder e subjetivação que o fabricaram LARROSA 2011 123 Como as relações do sujeito consigo mesmo mudam ao longo do tempo a experiência de si precisa ser ensinada e aprendida para que possa agir pedagógica e terapeuticamente reeducando o olhar sobre si mesmo daí a importância dos dispositivos pedagógicos que a mediam Ela exige um esforço de suspensão temporária do tempo do espaço e de si mesmo como se o sujeito pudesse projetarse e produzir um duplo de si uma imagem própria externada convertida em um objeto de uma observação analítica demorada LARROSA 2011 SILVA 2013 MORAES 2015 Essa operação cria uma sensibilidade que busca tornar visível aos outros mesmo que de forma turva a diversidade de objetos técnicas e discursos que formam a privacidade do sujeito Deste modo a experiência de si não é uma oportunidade favorável ao desenvolvimento ou conhecimento de uma autoconsciência verdadeira ou essencial Ela é sim uma permanente reelaboração provocativa do sujeito por si mesmo Essa experiência de si relacionase tanto com os conteúdos que o sujeito oferece a si próprio quando se coloca no lugar de se observar decifrar interpretar descrever julgar narrar problematizar ou dominar quanto às coisas que ele faz consigo mesmo enquanto se toma como produção a ser problematizada no interior de certas práticas Portanto o efeito dessa metodologia é a composição de uma crítica que expõe o processo de fabricação do eu efetivado por meio de cruzamento entre os discursos que delineiam as verdades do sujeito as práticas que regulam seu comportamento e as formas de subjetivação que constituem a sua própria interioridade LARROSA 2011 Enquanto prática de si ela não existe para constranger ou causar remorso nos indivíduos mas para analisar de forma lembrada e refletida o equipamento racional que capacita uma pessoa a se tornar historicamente aquilo que ela é FOUCAULT 1985 Em termos analíticos a experiência de si pode ser examinada por uma genealogia das problematizações da prática de si ou seja de uma análise focada na sua formação histórica singular e contingencial MACHADO 1979 LARROSA 2011 Fazendonos pensar genealogicamente ela instala uma hermenêutica do sujeito e faznos produzir uma nova história Uma história que não seria aquela do que poderia haver de verdadeiro nos conhecimentos mas uma análise dos jogos de verdade dos jogos entre o verdadeiro e o falso através dos quais o ser se constitui historicamente como experiência isto é como podendo e devendo ser pensado FOUCAULT 1984 p 12 124 Essa abordagem portanto constituise num exercício político de pensamento no sentido de que possibilita questionar o que já se sabe e buscar outros caminhos interpretativos diante de algo ao invés de simplesmente reproduzir um saber já dado FOUCAULT 1984 Contudo ocuparse do seu eu não é tarefa fácil visto que necessita de muitos cuidados e procedimentos diferentes o que exige grande disponibilidade de tempo laboral para reconstituir memórias e fixar exames de reflexão sobre si FOUCAULT 1985 Na experiência de si o sujeito não é um objeto silencioso mas alguém falante alguém que confessa avalia e produz ativamente novos regimes de verdade sobre si mesmo ele produz linguisticamente a sua história de vida por meio de narrativas LARROSA 2011 As narrativas são entendidas aqui como discursos como construções simbólicas e instrumentos de reconstrução da própria subjetividade GABRIEL MONTEIRO 2014 São dispositivos de memorização capazes de ressignificar o vivido e produzir um saber experiencial materializando as memórias do sujeito e dotandoas de sentidos culturais através de sua narrativa o indivíduo se repensa se problematiza se contextualiza se justifica se reinventa Ele dá sentido contextual à sua existência tecendo as histórias que compõem a sua própria história A cada ato de contar sua própria vida os sujeitos se constroem e reconstroem Conforme Moraes 2015 a narrativa é um processo que não tem um fim específico mas movimentos de rememoração reflexão tensão e significação A cada narrativa o docente esclarece particularidades de seus processos de formação JOSSO 2002 Os professores narradores são portanto seres em movimentos de sentido MORAES 2015 Em nossa pesquisa essa narrativa esse movimento de subjetivação MORAES 2015 revisita histórias de formação e de práticas docentes a fim de confrontálas tensionálas e situá las no ambiente cultural em que acontecem FUNES et al 2012 Ao narrar um sujeito não apenas diz o que quando e como aconteceu mas diz também as motivações as imagens os conteúdos as sensações e atitudes que embasaram as condutas FOUCAULT 1988 Enxergase por outros ângulos a partir de outras questões refletidas que se esforçam em desnaturalizar as categorias que uma pessoa mobiliza cotidianamente SILVA 2013 A narrativa constitui então a experiência de si de forma temporal delimitando os conteúdos significativos de uma trama desenhando continuidades e intermitências limites e contornos desse ser que foi duplicado por meio do discurso e se tornou um narrador personagem Operando ativamente a narrativa articula lembranças imaginação e composições que funcionam como condição de possibilidade para a reconstituição de si Desta forma a pessoa reconstrói as formas e estruturas dos objetos que lhe formam segundo aquilo que viu de si 125 mesma e ficou guardado na sua memória mas que agora por meio da linguagem se tornam visíveis aos outros Narrando suas próprias histórias de vida as pessoas se calculam prestam contas do que são situamse temporalmente reconstroem percursos e suas próprias subjetividades LARROSA 2011 Nesse sentido conforme nos diz Christine Josso 2002 as biografias dos próprios professores funcionam como dispositivos de formação quando são problematizadas refletidas e discutidas em múltiplos processos de desconstrução e reconstrução Portanto os saberes docentes são também biográficos Isso tanto pelo fato de que são construídos ao longo de suas histórias de vida quanto pelo fato de que são produzidos enquanto os sujeitos repensam e narram sobre a própria vida reelaborandoa No entanto a narrativa recria a sugestiva ficção de uma identidade coerente temporalmente contínua que se dá à reflexão Uma ideia regulatória de autoconsciência se delineia estruturada no tempo da vida narrada de forma polimorfa interdiscursiva e diversa Essa narrativa dialoga com outros discursos culturalmente preexistentes ao seu narrador Nesta perspectiva narrar é uma modalidade discursiva que estabelece as posições de sujeito75 e as regras de sua inserção numa trama JOSSO 2002 Desta forma colocamonos de maneira interrogativa diante do acervo das narrativas que são fabricadas e dispostas diante de nós Nelas procuramos identificar se existem pontos em comum bem como nos esforçamos para enxergar não apenas informações a respeito do que os professores representam saber sobre a cultura afro e como a ensinam mas também os sentimentos desafios possibilidades e ações que se atrelam à discussão desse tema Desse ponto de vista a experiência de si também entra no domínio de uma moral culturalmente estabelecida e dominante Nesse momento ela se faz jurídica Entre o sujeito e aquilo que ele vê de si mesmo estabelecese um critério que movimenta todo um conjunto de dispositivos jurídicos e normativos que situam oposições entre valores morais positivos ou negativos Ao verse e narrarse a pessoa também julga a si mesma designando uma técnica para o estabelecimento apreciação e avaliação da realidade considerandose critérios objetivos e subjetivos Essa crítica é então mais que uma técnica ela é uma arte da interpretação pela qual o sujeito torna pública a atribuição de valor que antes habitava algum grau de intimidade LARROSA 201176 75 Perspectivas e atitudes assumidas pelo emissor o lugar que ocupa na rede de informações situações e formas de percepção registro e intervenção sobre o tema de que fala 76 Segundo Foucault 1984 em termos teóricos a moral é um conjunto de valores e regras de comportamento viabilizados por uma série de aparelhos e técnicas prescritivas oriundos de instituições como família escola igreja etc Nesse sentido a moral é uma espécie de saber bem formulado numa doutrina e num ensino explícito No 126 A produção de narrativas de si não possui somente uma função descritiva mas também avaliadora SPINDOLA SANTOS 2003 pois o indivíduo se constitui como moral quando produz memórias pelas quais é socialmente medido de acordo com um código de referência com o qual se relaciona de modo múltiplo FOUCAULT 1984 Larrosa explica que a perspectiva foucaultiana privilegia o estabelecimento de critérios na confecção da experiência de si sejam eles os dispositivos legais e normativos ou os critérios pessoais de estilo LARROSA 2011 Apesar de seu caráter individualizante as narrativas que fabricam histórias de vida permitem perceber os valores que embasam a prática social de um grupo SPINDOLA SANTOS 2003 Conforme Larrosa 2011 os critérios de juízo pesam muito na constituição da experiência docente pois ao falar de si o professor compartilha esquemas explicativos e modelos de docência a partir dos quais eles avaliam seus saberes práticas e quem eles mesmos são Essa autorreflexão se baseia na relação histórica entre a identidade pessoal e a identidade profissional em que pesa o autojulgamento de práticas passadas e presentes para a reorientação de práticas futuras Isso porque a experiência de si visa promover um autodomínio e autorregulação do sujeito Ela não se limita ao passado mas projetase no futuro Esse autodomínio abre infinitas possibilidades de reelaboração do sujeito sob si mesmo através de seleções composições avaliações tomadas de decisão e reorientações problematizadas por ele mesmo e não por imposições externas Neste sentido a experiência de si tal qual pautada por Larrosa funciona como uma estilização pessoal e social do eu em termos foucaultianos a produção estética de uma ética pessoal crítica e responsável LARROSA 2011 Dessa maneira os dispositivos pedagógicos que mediam a relação do sujeito consigo mesmo formam um conjunto de operações que dividem simbolicamente este sujeito em dois um narrador que vê narra constrói julga e domina e um duplicado que é visto narrado julgado construído dominado e reorientado LARROSA 2011 Ao descrever esses dispositivos pedagógicos aplicados numa pesquisa como esta estamos descrevendo o tipo de duplo que cada professor fabricou e regulou de si mesmo numa autocrítica entanto em termos práticos ela não é simplesmente um sistema estabelecido de interdições que serve de referência política e social para a formatação de uma unidade moral Inversamente ela é refeita por um jogo complexo de discursos que se encontram se corrigem ou se anulam permitindo assim o exercício de poderes fluidos e de fugacidades de compromissos e escapatórias Ela é fragmentada em ações individuais em muitas outras morais particulares que embasadas em múltiplas referências fragmentam o poder das prescrições e vão reconstituindo os indivíduos enquanto sujeitos de uma determinada moralidade que modela suas condutas e subjetividades na prática cotidiana de si A moral é portanto um espaço de lutas entre as vontades sociais e as vontades subjetivas onde se manifestam os movimentos contraditórios da alma FOUCAULT 1984 127 Ao reconstruir sua trajetória a pessoa se situa entre o incômodo inicial de focalizar criticamente a multiplicidade de objetos e regimes de verdade que a formam e a tranquilidade de renomearse reduzindo as suas indeterminações e dispersões Ela reestabiliza momentaneamente uma certa identidade própria cunhada na ideia de um autoconhecimento que implica na liberdade de fazer o que quiser consigo mesma Logo na experiência de si o sujeito aprende a participar da reconstrução dele mesmo confiscando poderes de regulação que são processados por meio de uma problematização autocrítica Em nossa pesquisa os saberes e práticas de ensino são problematizadas dentro dessa perspectiva da prática de si pondo em análise o jogo e os critérios de uma estética da existência O critério que se estabelece para a problematização do sujeito docente são as relações étnicas A partir dele os professores são estimulados a produzir efeitos de sentido sobre o ensino de história e cultura afrobrasileira pelos quais julga a própria subjetividade Nesse exercício analítico eles encontram condições de reconstruir vislumbrar e problematizar os jogos de poder pelos quais se tornam profissionais dotados de uma certa experiência que constitui o que sabem sobre a cultura afrobrasileira e como ensinam sobre ela no sertão alagoano As respostas que esses profissionais dão conectam pontos nas tramas complexas em que transitam saberes sistemas de poder e regulações e as formas como os indivíduos lidam com essa temática em seus cotidianos de trabalho As ideias que os professores trazem sobre as suas práticas de ensino implicam em atitudes formas de atenção aspectos emocionais valorativos cujos efeitos podem ser opressivos como o racismo Enquanto problematização dos seus saberes esquemas modelos e práticas pedagógicos a experiência de si funciona como um espaço onde o professor aprende a pensar a argumentar e formar novas concepções de ensino considerandose ideias do social do político do cultural do econômico do pessoal verificando até que ponto essas convicções estão associadas a ideais públicos tais como igualdade democracia diversidade cultural equidade social diálogo respeito comunidade e autonomia pessoal Esse pensar inclui atitudes pessoais e componentes de decisão LARROSA 2011 Portanto a experiência de si não se resume a realizar uma crítica especificamente ao que o professor sabe e faz mas a quem ele é com sua moral de educador com os valores e sentidos que ele atribui à sua prática com a produção de uma autoconsciência profissional LARROSA 2011 O foco de nossa análise recai mais sobre os processos de formação e sobre as práticas de ensino do que sobre as teorias e conhecimentos da ciência histórica por exemplo embora não deixemos de problematizar os seus efeitos políticos nos processos formativos e nas práticas profissionais 128 Diante deste quadro podemos afirmar que uma pesquisa em torno das histórias de vida é importante enquanto técnica de formação docente porque ela possui um caráter crítico e autotransformador SILVA 2013 Ao relacionar suas aprendizagens sociais com as suas experiências de vida o indivíduo estimula uma reflexão crítica que modifica a imagem que ele faz de si mesmo Ao explicitarse e problematizarse é construída a possibilidade de modificar a maneira como se formou sua identidade pessoal em relação ao seu trabalho profissional JOSSO 2002 Dessa forma quando os mecanismos pedagógicos que mediam a experiência de si são aplicados aos professores visase não apenas redefinir identidades mas também formar e transformar um professor num profissional reflexivo ou seja em alguém comprometido em examinar constantemente seus saberes e práticas a fim de transformar a eles e a si mesmo enquanto pessoa no contexto dessa prática profissional LARROSA 2011 pois a constituição de uma investigação embasada na cultura de si se exercita como uma resposta original sobre a forma de uma estilística da existência FOUCAULT 1985 Neste sentido a experiência de si é um exercício de reaberturas constantes de ensaios múltiplos para novas metáforas sobre quem se é e sobre quem se pode ser Ela produz novas formas de subjetivação que ensina a pessoa a desprenderse de si mesma a ter a possibilidade de recusar aquilo que se tornou mediante poderes impostos a reinventarse percorrendo outras maneiras de ser que não as formas de individualização dócil e útil impostas pelo Estado liberal Que ensina à pessoa o fato de que ela pode verse diferentemente e instalarse entre a afirmação e o questionamento para praticar a recusa as resistências e transformarse mediante a crítica e a prática responsável da liberdade GORE 2011 LARROSA 2011 PIGNATELLI 2011 Contudo cabe ressaltar que ainda que estejamos já falando em liberdade ponderamos que a experiência de si não deixa de ser uma técnica de regulação embora siga outra lógica de produção distribuição e exercício do saberpoder Ela está associada ao estilo à noção foucaultiana de artes ou estética da existência77 ou seja não está implicada na obrigatoriedade de submissão coercitiva a discursos normas e poderes externos impostos ao sujeito cujos efeitos são a regulação que domina e segrega Uma estética da existência não estabelece determinações ou transgressões não está associada portanto ao dever ou a uma forma de poder repressivo mas a uma técnica de regulação positiva cujo objetivo é produzir uma reelaboração crítica e responsável da própria conduta a partir de alguns critérios Ela também não pretende 77 As práticas através das quais o sujeito se voluntaria a refletir sobre si mesmo estabelecendo novas condutas pessoais e se transformando Consiste numa abertura da própria vida ao caráter de obra inacabada e portadora de valores éticos e estéticos carregados de estilos pessoais de posicionamento e ação no mundo FOUCAULT 1984 129 fincar uma ética universal dos sujeitos mas éticas pessoais A estética da existência não pretende revelar a verdade do sujeito mas reconstruílo e transformálo constantemente REVEL 2009 LARROSA 2011 Para tanto falar em liberdade e ética pessoal não é cair na ilusão da autonomia absoluta do sujeito nem é reafirmar valores sociais individualistas e posturas neoconservadoras Tampouco é negar que as normas possam ou devam existir pois isso incidiria em reduzir as possibilidades de agência docente a voluntarismos e autorresponsabilizações descabidas e a desorganizações dispersas e enfraquecedoras Valerse desses pressupostos teóricos seria politicamente irresponsável PIGNATELLI 2011 Ao nosso ver para a promoção de uma sociedade justa a prática da liberdade motiva se também em ideais coletivos que estabelecem compromissos epistemológicos políticos e éticos e remodelam sob novas responsabilidades os saberes as práticas de ensino e a própria identidade pessoal e profissional dos docentes na construção de uma cultura democrática PIGNATELLI 2011 Praticar o seu trabalho enquanto política profissional que privilegia a produção do exercício da liberdade implica numa noção estética da existência docente LARROSA 2011 PIGNATELLI 2011 DEACON PARKER 2011 não uma perspectiva estética tecnicista e redutora do político a exotismos utilitários e desencorajadores de diálogos e solidariedades fato que resulta numa posição estática e neoconservadora mas sim numa perspectiva de estética enquanto abertura e mobilização ao novo ao provisório e ao movimento enquanto disposição inventiva provocativa e desafiadora O estético se assume enquanto prática de construção de novos laços de solidariedades resistências e transformações PIGNATELLI 2011 42 A análise do discurso na análise dos dados Nossa abordagem considera a relevância da linguagem enquanto tecnologia de produção de realidades Não a língua de forma fixa e inequívoca mas enquanto um movimento constante de produção fluxos e disputas entre sentido negociáveis e indefinidos FOUCAULT 2012 2014 SILVA 2013 ALVES PIZZI 2014 Ao pensar a linguagem partilhamos de uma concepção que retira o centralismo do sujeito enquanto agente discursivo e que critica noções fundantes absolutas e universais da língua POPKEWITZ 2011 SILVA 2011 Isso nos remete ao pensamento de Foucault para quem o discurso é uma positividade uma ação produtiva uma construção complexa híbrida e bélica FOUCAULT 1979 2011 2012 2014 O discurso é uma negociação ativa em que diferentes interlocutores produzem e 130 negociam efeitos de sentidos em contextos históricos específicos Nesta negociação o discurso exerce um poder designativo ele significa e ressignifica os objetos as pessoas as experiências sociais e culturais mediando as relações de poder ao passo que por elas também são interpeladas Em sua historicidade os discursos assumem significados distintos a partir das condições de produção das memórias discursivas disponíveis numa cultura e das posições de sujeito assumidas pelos interlocutores que os produzem e deles se apropriam FOUCAULT 2012 2014 Neste sentido ele é uma prática política múltipla e disputável é a própria luta pelo estabelecimento de verdades e exercícios de formas de dominação e resistência O discurso é uma prática que se dá a partir de um conjunto de regularidades históricas e cuja materialização permite ver de que modo os contextos produzem não só objetos de saber mas constituem relações de poder e formam subjetividades Nessa perspectiva ele é também um dispositivo de subjetivação Em nossa pesquisa é importante pensar o discurso porque no pensamento foucaultiano é uma categoria fundante do sujeito e instrumento de análise do nosso objeto FERNANDES 2014 Souza 2014 afirma que a fala de uma pessoa se inscreve numa ordem discursiva instaurando dramas e inaugurando performances que reinventam uma espécie de teatro político a partir do qual o sujeito se constitui discursivamente Assim os docentes participantes da pesquisa são pensados como sujeitos históricos enquanto resultados de posicionamentos discursivos temporalmente produzidos e modificados FERNANDES 2014 Eles são descentrados produzidos subjetivados constituídos por um mundo cultural e político exterior que lhe faz recair saberes mutáveis no tempo posicionandoos em relações de poder Um discurso expressa a forma como as pessoas são governadas em meio às produções de regimes de verdades JONES 2011 Se ao pensarmos nos tensionamentos entre as posições incômodas que lutam para nos governar transformandonos em objetos de práticas discursivas institucionalizadas e os lugares arriscados de exercícios de resistência PIGNATELLI 2011 ao falarmos pode ocorrer de estarmos chamando de nossa linguagem aquilo que efetivamente é uma linguagem que nos foi dada devidamente apropriada mediante as formações sociais que vivemos no passado POPKEWITZ 2011 Desta forma podemos dizer que se os discursos precedem os sujeitos e formam as suas subjetividades estas acabam por legitimar os discursos que as precedem ALVES PIZZI 2014 Os enunciados que compõem uma formação discursiva funcionam como manifestações de um saber legítimo Daí decorre a reprodutibilidade dos valores de certo e errado que são aceitos em cada época e lugar exercendo o governo das condutas ALVES PIZZI 2014 131 Retomando à arqueologia foucaultiana Alves e Pizzi 201478 ponderam que o campo dos enunciados não traduz o pensamento de uma pessoa mas opera relações múltiplas e transformações sistemáticas conforme as posições assumidas por quem enuncia algo dentro das possibilidades que o contexto lhe oferece Os enunciados exercem funções em relação às condições de possibilidade aos referenciais e campos associados de domínios acerca do que tratam às posições assumidas pelos sujeitos que falam e às materialidades específicas que os registram Portanto as enunciações nunca são iguais umas às outras Elas são raras são singulares e não dão conta de todos os sentidos que põem em movimento Seu trabalho seletivo tece exclusões silêncios e interligações que constroem novos argumentos novas relações de saberpoder e novas lutas Enquanto prática discursiva aberta a capacidade de proliferação enunciativa é quase infinita Portanto uma vez que os enunciados são dispositivos linguísticos bastante complexos para analisarmos os seus funcionamentos e efeitos políticos nas formações que eles perpetram precisamos atentar para as práticas discursivas e não discursivas que eles constituem e manter uma postura de desconfiança diante dos dados da pesquisa ALVES PIZZI 2014 O discurso segue princípios de regularidade para estabelecer um conhecimento e formar seus objetos e domínios JONES 2011 Ele é construído num jogo contextual em que diferentes estratégias são acionadas não só para produzir sentidos mas também formas de dominação Lugar de produção de saber e de exercício de poder o discurso é constituído por conjuntos de enunciados que se relacionam ativa e estrategicamente autorizando ou reprimindo sentidos FOUCAULT 2012 FERNANDES 2014 SOUZA 2014 Foucault reconhece que embora exista uma autonomia do discurso quando se pensa em suas regras e determinações próprias as maneiras como o discurso nomeia e confere sentidos às coisas e às pessoas não estão submissas apenas ao reino das palavras ou às regras e formas como os enunciados se ligam um ao outro criando novos domínios mas também aos dispositivos materiais à estrutura às relações de saberpoder às lutas e ao funcionamento das práticas sociais que põem em atividade LARROSA 2011 Isso porque as práticas discursivas são práticas sociais moldadas por regras e instituições o que as faz serem carregadas de normas e valores morais pelos quais os discursos moldam o certo e o errado o verdadeiro e o falso POPKEWITIZ 2011 e instituem relações 78 No artigo em questão as autoras dedicamse especificamente a problematizar as representações discursivas nas relações de gênero em escolas alagoanas mas acreditamos que seus pressupostos teóricometodológicos podem ser incorporados à nossa reflexão pois mesmo tendo um outro recorte temático a etnia falamos também de jogos de poder entre subjetividades e identidades sociais historicamente rechaçadas 132 organizadas em padrões de desigualdade LARROSA 2011 Atravessando o discurso o poder interdita seleciona exclui separa o verdadeiro do falso organiza certas possibilidades linguísticas ALVES PIZZI 2014 e instala o discurso em arenas de lutas constantes FOUCAULT 2012 2014 Nesse sentido a análise do discurso em Foucault se debruça de forma problematizadora e fragmentária sobre as enunciações Esta análise é uma junção entre a abordagem arqueológica crítica das estratégias de elaboração do discurso e o tratamento genealógico crítico dos efeitos de poder das produções discursivas Assim as descrições críticas e as descrições genealógicas devem alternarse apoiarse umas nas outras e se completarem A parte crítica da análise ligase aos sistemas de recobrimento do discurso procura detectar destacar esses princípios de ordenamento de exclusão de rarefação do discurso Digamos jogando com as palavras que ela pratica uma desenvoltura aplicada A parte genealógica da análise se detém em contrapartida nas séries da formação efetiva do discurso procura apreendêlo em seu poder de afirmação e por aí entendo não um poder que se oporia ao poder de negar mas o poder de constituir domínios de objetos a propósito dos quais se poderia afirmar ou negar proposições verdadeiras ou falsas FOUCAULT 2014 p 65 Essa análise é um esforço para decompor o discurso identificando suas partes compreendendo a singularidade das ligações estratégicas dos enunciados para determinar as condições de sua existência mas também visa questionar as vontades de verdade identificar as descontinuidades e tratar o discurso enquanto um acontecimento cujas relações estabelecidas em suas funções enunciativas forjam estratégias que ligam o discurso ao poder FOUCAULT 2014 Para uma tal análise que perceba outras memórias discursivas nas memórias docentes FERNANDES 2014 é importante a noção de interdiscursividade um conjunto de formulações já realizadas muitas vezes de autoria já esquecida ou não identificada mas que ainda assim chega a ser determinante para o que dizemos pois funciona como um dispositivo nas relações de poder estabelecidas pelos jogos discursivos ORLANDI 2012 Mapear os saberes e práticas a partir das memórias docentes não é um exercício intelectual simples Como diz Tardif 2002 a racionalidade docente ou seja a capacidade pensante para agir é instável fluída e tensionada por diversos elementos Destarte embora o docente seja um profissional que emite juízos diante de condições reais de trabalho o saber fazer é maior que o conhecimento discursivo que o docente expõe Não há total consciência ou não se sabe explicar tudo o que faz quando ensina 133 Nessa perspectiva não se busca interpretar ou traduzir a realidade sobre o que os professores falam79 mas sim analisar o que falam de que lugares institucionais e políticos Como falam por que falam e de determinada maneira o fazem Quando e sob que normas condições e referências Assim a análise do discurso é pensada por nós como o estudo da perspicácia observável no jogo de poder ALBUQUERQUE JÚNIOR 2009 quando um docente cria discursos narrativas e esquemas explicativos a respeito do que seja ser professor a cultura afrobrasileira os desafios e possibilidades para ministrar aulas nas escolas públicas do sertão sobre o tema etc Buscamos como dados de análise discursiva os cenários os tipos humanos esquemas narrativos as circunstâncias históricas e sociais que são selecionadas para representar a cultura afrobrasileira nos relatos dos professores participantes da pesquisa Em seguida identificamos as origens que informaram os saberes docentes sobre a cultura afrobrasileira analisamos os lugares simbólicos destinados à cultura afrobrasileira no saber desses docentes bem como os sentidos que lhes dão e como os aplicam em sala de aula A partir daí identificamos as ordens discursivas em que se inserem os discursos sobre os saberes que esses professores produzem a ciência a mídia a religião os movimentos sociais a legislação educacional de sua formação profissional de suas famílias Assim tomamos como alguns dos critérios a serem observados no discurso desses docentes o status de quem fala professor de História pertencimentos étnicos lugar escola pública no sertão de Alagoas posição que assume quando fala em defesa ou contrário aos conteúdos obrigatórios e as práticas de ensino realizadas Mas isso não quer dizer que ao prever alguns critérios de análise discursiva estejamos engessando categorias analíticas que aprisionem os sentidos das narrativas de vida docente Conforme Inês Santos e Rosângela Santos 2008 o ato da entrevista é uma prática aberta que expressa sentidos de formas múltiplas por meio da linguagem corporal das mudanças nos tons de voz e pela própria seleção lexical utilizadas durante a fala Nesse percurso surgem dados que promovem deslocamentos de sentidos Deste modo é comum que surjam nas narrativas orais diferentes aspectos sociais que ainda não haviam sido pensados pelo pesquisador Essa zona do indeterminado requer atenção sensibilidade e cuidado técnico pois refaz toda a possibilidade analítica reformulamse cenários acrescentamse ou eliminamse 79 Neste sentido não só as pessoas que narram mas também um conjunto que autoriza e legitima a partir de certas regras como status competência do saber instituição sistemas normas condições legais direitos e limites sistemas de diferenciação relações e reconhecimento social direito de decisão e intervenção que compõem as falas dos docentes 134 personagens instalamse saberes e recriamse conflitos enredos Isso nos coloca o cuidado de não estabelecermos a priori as categorias analíticas feitas pelo pesquisador a fim de fazer com que as histórias de vida docentes sejam encaixadas nelas O movimento deve ser o contrário para empreender a experiência de si como possibilidade de autorregulação crítica e transformadora a partir da ótica docente é preciso que consideremos o potencial de sua própria discursividade Portanto na fala dos depoentes surgem leituras pessoais que produzem as categorias analíticas da pesquisa inspiradas nas próprias experiências narradas SANTOS SANTOS 2008 SILVA 2013 Falar sobre um tema historicamente reprimido é exercer momentaneamente um poder é transgredir uma cultura dominante é dar visibilidade àquilo que foi dito em textos de dominação É poder expressar vontades e saberes íntimos adiantar sensações nominar e dominar novos espaços FOUCAULT 1988 Mas como vimos o ato de falar sobre algo tanto pode servir para libertação de amarras políticas quanto para a sua exposição dominada ou interdita FOUCAULT 2014 A produção discursiva é ambígua ela não só materializa falas e cria saberes mas também classifica erros organiza silêncios e desconhecimentos sistemáticos que são estratégias de poder FOUCAULT 1988 No entanto importa dizer que refutamos as visões reducionistas e binárias Desse ponto de vista não utilizamos noções que operem de forma negativa e excludente no discurso como por exemplo classificando os saberes docentes em verdadeiros falsos ou mitificados sobre a cultura afrobrasileira O que problematizamos é como cada saber foi construído e quais jogos de poder eles produzem Ao analisar as falas dos professores nos esforçamos para perceber como os diferentes discursos sobre a cultura afrobrasileira penetraram genealogicamente nos seus saberes e condutas Tratase do que Foucault chamou de técnicas polimorfas do poder ou seja os diversos e por muitas vezes ambíguos efeitos de poder gerados por determinadas formas de saber em relação a um tema negação recusa bloqueio desqualificação ou exclusão mas também a vontade curiosidade incitação intensificação etc A análise debruçase sobre a vontade de saber que lhe serve ao mesmo tempo de suporte e instrumento FOUCAULT 1988 O cruzamento de discursos dos professores das normas relatórios e documentos escolares não são apenas formas de linguagem Enquanto discursos implicam poderes eles fazem parte de um processo de classificação e produção social de problemas que justificam as mobilizações práticas nas políticas educacionais para resolvêlos ao menos teoricamente POPKEWITIZ 2011 É desse ponto de vista que problematizamos quais as imagens da 135 negritude que povoam as práticas discursivas escolares no sertão alagoano a partir dos saberes e das práticas docentes 43 Os dispositivos da pesquisa memórias e história oral Produzir histórias é um esforço contra a possibilidade de evasão ou esquecimento da memória tanto em nível individual como social MIRANDA 2007 A reflexão acerca dos próprios saberes e subjetividades é um constructo que toma como base entre outros elementos as memórias dos professores enquanto leituras possíveis enquanto representação de seleções feitas em níveis pessoais e coletivos Segundo Le Goff A memória como propriedade de conservar certas informações remetenos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas ou que ele representa como passadas LE GOFF 2003 p 419 Nesta leitura mais subjetivista a memória é o resultado de uma seleção íntima nem sempre consciente que possibilita ao indivíduo o exercício produtivo de um certo autoconhecimento e representação do eu Para Foucault a memória é um artefato de si pelo qual o indivíduo se constitui como moral FOUCAULT 1984 Em acordo com esta tese o historiador francês François Hartog 2013 afirma que a memória é um elemento crucial na construção de identidades e na formação de sentimentos de pertencimento não só a uma ideia de eu mas também à ideia de um nós Para ele lembrar e posicionarse a partir da memória é um exercício que exige uma dedicação um compromisso Podemos dizer então que rememorar algo não é uma prática ingênua É uma ação uma atividade que produz sentidos os modifica e os ressignifica ao longo do tempo e das novas experiências dos sujeitos Realizada no tempo presente a construção de memórias sempre modifica o passado a que representa e o próprio presente que a produz fabricando novas leituras posições realidades e compromissos políticos ALBERTI 2013 HARTOG 2013 MEIHY HOLANDA 2013 Porém ainda segundo Hartog 2013 essa capacidade de construir memórias tem sido ameaçada por uma cultura do presentismo forjada pela globalização por regimes tendenciosamente democráticos pela massificação midiatização e pelo consumo Enquanto pessoas comuns estamos perdendo a capacidade de agir sobre a memória Logo para reconstruirmos de forma ativa os sentidos sobre nós mesmos é preciso que nos debrucemos constantemente sobre nossas memórias a fim de nos orientarmos politicamente 136 Contudo a memória enquanto prática inacabada de significação não acontece apenas de forma subjetivada Ela é um fenômeno construído a partir de uma relação dialógica entre indivíduo e sociedade HALBWACHS 2003 Assim sendo trabalhar a partir de memórias docentes é articular tramas individuais carregadas de marcas e sentidos culturais que dialogam com suas formações e práticas Sendo um espaço de interação entre valores culturais a memória é também um espaço de disputas políticas POLLAK 1989 LE GOFF 2003 entre histórias possíveis de serem narradas entre saberes e discursos a serem ou não perpetuados entre distintas formas de funcionamento e constituição do sujeito Aberta e disputável trabalhar com suas reconstruções impõe cuidados uma vez que suas práticas de significação não são transparentes pois tanto em nível individual como coletivo a memória é construída numa tensa negociação entre lembranças e esquecimentos RICOEUR 2007 Para Rose a memória da biografia de uma pessoa não é uma simples capacidade psicológica mas é organizada por meio de rituais de contar histórias sustentada por artefatos tais como os álbuns de fotografia e assim por diante ROSE 2001 p 50 Portanto consideramos que a memória é constituída não somente por uma dimensão psicológica mas também por uma poderosa e arriscada dimensão linguística simbólica e portanto política que se desenha no tecido social A proposta que fizemos neste trabalho foi utilizar algumas técnicas da metodologia da história oral para realizar entrevistas sobre histórias de vida O que chamamos de história oral nesta tese apoiase sobretudo na definição construída pelas pesquisadoras do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil CPDOCFGV e de pesquisadores do Núcleo de Estudos em História Oral NEHOUSP Embora se tratem de abordagens diferentes articulamos aqui algumas reflexões que são complementares O primeiro grupo forneceu mais detalhadamente um conjunto de técnicas de pesquisa o segundo nos possibilitou algumas reflexões teóricas sobre essa ferramenta metodológica A história oral privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participam participaram ou testemunharam determinada conjuntura ou processo social É uma metodologia que pretende identificar as sutilezas dos processos que não são registradas em documentos oficiais a fim de confrontar discursos diferentes que falem sobre uma mesma realidade CAMARGO 2013 ALBERTI 2013 Ela serve para estudar processos históricos de instituições grupos sociais categorias profissionais e movimentos sociais de acordo com a ótica dos próprios sujeitos partícipes dessas experiências sociais ALBERTI 2013 MEIHY HOLANDA 2013 137 Tratase portanto de uma possibilidade de registrar e democratizar a construção de histórias coletivas considerando para além das memórias oficializadas pelos poderes institucionais as múltiplas vozes de sujeitos históricos comuns cujas narrativas trazem grande potencial problematizador para a análise científica a respeito de nosso objeto de pesquisa Ao relacionar história oral genealogia do eu e análise do discurso a praticamos como um dispositivo de si Portanto foi preciso ter cautela e esmero a fim de não reduzir o trabalho a meros espontaneísmos pois a história oral não corresponde apenas à técnica de gravação de entrevistas e transcrições mas sim à capacidade de articular contextos históricos e produções discursivas à luz de instrumentos analíticos que tornem o objeto de investigação científica suscetível de problematizações contextualizações confrontos e críticas Assim a história oral é uma forma de saber MEIHY HOLANDA 2013 Neste sentido ela está menos preocupada com a exatidão ou medição rígida dos enquadramentos técnicos metodológicos ou científicos em geral do que com a aquisição de entrevistas enquanto maneira de registrar contar ou narrar MEIHY HOLANDA 2013 p 73 Desta forma temos pensado e trabalhado com a história oral como um espaço político de produção de um saber sobre as histórias de vida docentes em torno de um tema A junção entre história oral e histórias de vida garante maior nível de detalhamento na construção das narrativas gravadas Meihy e Holanda 2013 chamam de história oral de vida o trabalho de reconstrução de toda a trajetória do entrevistado passando por fases como infância juventude vida adulta vida profissional entre outras Essa abordagem aprofundase em temas específicos e identifica diferentes origens de formação de sua subjetividade entre origens formas de socialização e formação intermediadas por regras instituições e relações de poder Este tipo de entrevista delongase por mais tempo e requer mais cuidados do pesquisador pois se debruçar analiticamente sobre narrativas tão densas requer que se evite abordar as histórias de vida numa perspectiva psicologista sem considerar também aspectos históricos linguísticos e culturais As entrevistas de história de vidas tornamse aconselháveis não só para se pensar um sujeito especificamente mas também grupos sociais Assim se a pesquisa versar sobre determinada categoria profissional ou social seu desempenho sua estrutura ou suas transformações na história tornase igualmente aconselhável a opção por entrevistas de histórias de vida ALBERTI 2013 p 49 Compreender estes processos sobre os quais os professores falam diz respeito a mais um aspecto ético saber ouvir sem julgálos Estar aberto às suas discursividades e a tudo a que elas possam representar não só em termos subjetivos mas também políticos sociais e culturais 138 Ao abriremse para dar entrevistas os docentes também assumem determinados riscos políticos sobre o que dizem fato que pode ter consequências em suas vidas pessoais e profissionais principalmente quando se vive e trabalha em uma cidade pequena do interior Esse aspecto deve ser considerado para a preservação desses depoentes Desta maneira ao concordar em colaborar com suas narrativas os entrevistados demonstraram relativa confiança no pesquisador para expor de forma consciente ou não suas visões de mundo e leituras mais profundas sobre os fatos narrados Suas interpretações devem ser respeitadas embora problematizadas Por mais que se tratem de leituras subjetivas ao serem trabalhadas num conjunto de trajetórias pessoais e profissionais são indispensáveis para uma compreensão mais ampla da historicidade que compõe as práticas de ensino de História no sertão alagoano Para realizar a pesquisa de campo entramos em contato com a 11ª Gerência Regional de Ensino responsável pelas escolas estaduais situadas no alto sertão alagoano e com a Coordenação de Humanidades da Secretaria Municipal de Educação de Delmiro Gouveia AL para estabelecer parceria e apoio institucional Delas obtivemos o apoio de maneira bastante solícita fornecendo alguns dados estatísticos atas de cursos e projetos que foram importantes para confrontarmos e contextualizarmos com os dados emergentes nas narrativas dos professores Verificamos que no município de Delmiro Gouveia há quatro escolas integrantes da Rede Estadual de Ensino80 todas localizadas no perímetro urbanizado do município Estas escolas oferecem Ensino Médio Educação de Jovens e Adultos entre outras modalidades de ensino atendendo assim 1872 alunos sendo estes provenientes tanto do centro urbano como de povoados rurais mais distantes e de comunidades quilombolas por exemplo Já na rede municipal de ensino de Delmiro Gouveia há 30 escolas totalizando 9855 alunos matriculados em 2018 conforme o censo escolar da GERE de 2018 Conforme os próprios professores de História expuseram em seus relatos pelas difíceis condições de trabalho e baixa remuneração a que são submetidos muitos deles integram ao mesmo tempo as redes municipal e estadual de ensino81 80 Escola Delmiro Gouveia Escola Francisca Rosa Costa Escola Luiz Augusto Azevedo de Menezes e Escola Watson Clementino da Silva Gusmão ALAGOAS Relação das escolasdiretoresendereços 11ª CRE Planilha 1 Gerência de Gestão Compartilhada sd 81 Entre as redes municipais do sertão em que os entrevistados afirmaram atuar situamse Delmiro Gouveia Água Branca e Mata Grande AL Canindé do São Francisco SE e Paulo Afonso BA Esse fato foi importante por possibilitar que nosso trabalho contemple práticas de ensino de considerável abrangência geográfica no contexto local 139 Posteriormente tivemos de elaborar um roteiro de entrevista sobre a história de vida dos professores que contemplasse aspectos econômicos sociais culturais políticos institucionais normativos formativos afetivos estratégicos saberes e práticas a fim de conseguir avançar na intimidade que compõe as suas experiências em torno da história e cultura negra Construímos um roteiro de entrevista a partir do qual os professores puderam contemplar temas passagens tensões posicionamentos e expectativas sua vida sua formação e atuação profissional Isso permitiu levantar a partir das suas narrativas os eixos temáticos BENELLI 2014 ponderados e as origens sentidos e relações dos saberes que possuem quanto a ser professor à cultura afrobrasileira e atuar como um professor de História que ensina sobre a cultura afrobrasileira no sertão Nosso roteiro compunhase de perguntas abertas simples e diretas Tivemos o cuidado para não fazer questões encerradas em si mesmas pois o objetivo era fazer os entrevistados narrarem descreverem problematizarem e justificarem suas respostas e não apenas sintetizar ou reduzir suas falas a concordâncias e discordâncias superficiais Procuramos evitar também o malabarismo e manipulação de perguntas que conduzissem a uma resposta direcionada deixandoos sem alternativas ALBERTI 2013 MEIHY HOLANDA 2013 As formas pelas quais entramos em contato com os professores participantes da pesquisa foram várias visitando as escolas promovendo oficinas contatando por meio das redes sociais A partir disso foilhes apresentado o objetivo a justificativa da importância do tema em questão os fundamentos teóricos a metodologia e os princípios éticos adotadas na pesquisa Na conversa inicial foilhes explicado que o princípio seguido nesta pesquisa não privava por instrumentalizálos tornandoos objetos mas construir uma colaboração investigativa mútua em que pesquisador e narradores construíssem e ressignificassem de forma horizontal seus saberes práticas experiências e subjetividades Afinal o pesquisador também é professor Contudo percebeuse que alguns docentes ficaram inseguros Alguns deles alegaram achar a ideia do projeto muito importante mas ao mesmo tempo ficaram receosos em ter de abrir suas vidas seus saberes suas práticas à sociedade pois isso incidiria de algum modo em formas de ajuizamento social sobre eles Por mais que tenhamos esclarecido que cumpriríamos os princípios éticos de preservação das identidades sociais dos participantes ainda assim não ficaram à vontade em serem avaliados como pareciam pensar por um pesquisador da Universidade Federal de Alagoas Inicialmente tivemos a disponibilidade de seis docentes e durante as próprias entrevistas alguns entrevistados indicaram outros docentes que consideravam referências para a discussão e que poderiam colaborar na pesquisa Conseguimos adesão de mais dois 140 professores Ao final das idas em campo realizamos entrevistas com oito profissionais sendo cinco mulheres e três homens Esse número reduzido de entrevistas explicase também pela impossibilidade de se trabalhar com grandes quantidades de participantes devido ao caráter prolongado e denso desse tipo de narrativa pois do contrário poderseia incorrer no erro de trabalhar muito superficialmente os dados apresentados ao longo das entrevistas82 É importante dizer ainda que nosso projeto de pesquisa foi submetido à apreciação do Conselho de Ética em Pesquisa através do sistema Plataforma Brasil tendo sido aprovado sob o número de inscrição de protocolo 3082521 Por questões éticas os nomes dos professores e professoras participantes desta pesquisa foram preservados a fim de evitar exposições e suas respectivas consequências sociais e políticas na vida desses profissionais Deste modo atribuímos alguns nomes fictícios que atenderam inicialmente a dois critérios a A memória cultural afrodescendente são nomes de personalidades históricas e personagens literárias negras que marcaram a história do Brasil por ter representatividade política cultural artística social religiosa etc b O perfil do professor durante a entrevista sua maneira de falar seu comportamento ou a situação que cada um parecia representar para o pesquisador uma prisão uma agonia um empoderamento uma luta um fundamento político dentre outras Por vezes os critérios A e B parecem não estarem conectados quando se lê as narrativas Isso acontece porque foi considerado mais o perfil do narrador do que a própria simbologia do referencial negro trazido para esta metáfora Assim temos A professora Yewá que recebeu o nome de uma divindade feminina orixá das coisas belas mas intocáveis fugidias Isso explicase pelo caráter tímido pelo seu comportamento isolacionista Ela não gosta de falar em público ou de estar em festas em grandes aglomerados prefere não ser percebida Gosta de executar bem o seu trabalho ser eficiente e ética mas prefere refugiarse na tranquilidade do lar da família e das atividades cotidianas Distante dos aglomerados que lhe fazem tremer a alma ela parece invisível mas deixa pela cidade o rastro de uma estética compromissada com sua profissão de formar cidadãos O professor Milton Santos foi assim designado pelo seu perfil cientificista Sua fala direta ensaia uma objetividade uma crítica aspirante à transformação da sociedade local Ele se porta de forma mais séria e é pela sua sede acadêmica que analisa o contexto local A narrativa desse professor ainda bastante jovem é repleta de ideais influenciada por muitas leituras e análises científicas marcada por uma calma analítica que tece críticas curtas rápidas mas nem 82 Os resultados das entrevistas serão apresentados nos próximos capítulos 141 por isso menos profundas quanto às estruturas a que denuncia e as proposições de mudança que elabora A professora Dandara é uma mulher que demonstrou muita força e disposição para lutar pela própria sobrevivência Por isso ela recebeu o nome da guerreira que foi esposa de Zumbi dos Palmares uma mulher que morreu lutando para não se entregar aos poderes dos algozes Esta professora narra com certa doçura as ambiguidades de uma vida simples com marcas doloridas de sua condição feminina e negra no sertão Contudo não perde a altivez e a segurança enquanto narra olhando nos olhos de seu interlocutor Tanto as necessidades materiais quanto os ideais nos quais acredita como seus pertencimentos múltiplos e compromissos profissionais a fazem uma professora que fala com emoção e cautela analítica as situações sociais e pedagógicas que narra O professor Alafim recebeu por sua vez o título do soberano político do império yorubá durante o século XIX O alafim mais famoso foi aquele que se tornou um orixá bastante reverenciado no Brasil Xangô O arquétipo desse orixá diz que ele é o senhor do trovão da masculinidade aquele que fala para pôr fim a uma discussão O professor entrevistado de mesmo modo falava alto como um trovão e colocava a sua razão com sabedoria e alargado senso de justiça Era dessa forma que este professor narrava a própria vida Parecia um rei que dominava a sala de entrevista como se fosse seu palácio Mas o orixá Xangô representa também o valor social da justiça O professor negro de origem pobre e candomblecista possui uma história atravessada por desafios impostos pelas desigualdades das estruturas sociais locais que se converteram em saberes engajados por justiça social A professora Rosa faz uma referência à ambiguidade da personagem do romance A Escrava Isaura escrito por Bernardo Guimarães A escrava mulata que demonstrava incômodo com sua cor e condição cativa buscava construir subterfúgios para se safar de situações incômodas Essa professora se posicionava de forma sempre fluida construindo e desconstruindo as ideias que debatia Ela mostrava um potencial de mobilidade orgulhavase da sua ascendência mestiça e bemnascida além da educação que recebera mas ao mesmo tempo mostrava que sua subjetividade foi doutrinada docilizada e aprisionada em valores que a confortavam sob o título de tradição A tônica de sua narrativa está na angústia que lhe incumbe o exercício da profissão docente e o apelo a uma espécie de multiculturalismo humanista que privilegia a perspectiva do embranquecimento A professora Maju recebeu esse nome por alusão à jornalista Maju Coutinho uma vez que trouxe um discurso curto direto informativo Sua delicadeza e segurança deram leveza à história de vida aos cenários e mesmo aos conflitos que reconstruiu Ela desvelava um mundo 142 de resistência feminina e de conquistas pessoais Entretanto a sua fala demonstrava um caráter informativo quase jornalístico em que ela pareceu não ter permissão ou se sentiu à vontade para expor opiniões mais críticas sobretudo devido ao perfil institucional no qual está ligada Foi a mais rápida das entrevistas mas mesmo assim não deixou de demonstrar os desafios implicados em práticas sociais e pedagógicas racializadas A professora Tia Marcelina carrega uma história de religiosidade reprimida e revolta social desde a história familiar por isso foi associada aqui à figura de Tia Marcelina que é um símbolo da resistência afroreligiosa de Alagoas Ela morreu no início do século XX por professar a fé nos orixás Pensar em Tia Marcelina é lembrar de alguém que não perdeu as convicções apesar das pressões externas Era assim que essa professora se colocava O conteúdo de sua fala não revela o mesmo teor da personagem que a representa mas alguns dados comuns como o foco da experiência religiosa na sua narrativa e a sua impostação de convicções sociais tinham uma luz parecida O professor Griô recebeu este nome pela forma como gosta de contar as histórias Muito falador ele adora contextualizar O Griô é um tradicional contador de histórias entre alguns povos do oeste africano eles são famosos por guardarem muitas memórias e transmitilas pela oralidade Esse professor é alguém que se demora nas palavras saboreandoas entre performances estéticas e políticas cujos efeitos de sentido são polifônicos e ambíguos Ele fazia questão de expor memórias problematizando os conceitos narrava sem pressa em sua prolixidade buscava demonstrar erudição e ajuizava a tudo moralizando o tempo todo Foi uma das narrativas mais longas e performáticas Foi assim que pensamos recriamos as identidades desses sujeitos aludindo a representações de personagens negros que ilustram a galeria de memórias concretas e fictícias da negritude brasileira considerando suas formas de falar contar narrar É assim que eles tomam novos conteúdos e formas nesta tese apenas enquanto metáforas e não como correspondentes reais aos nomes fantasia pelos quais são apresentados Na próxima página apresentamos um quadro que sintetiza o perfil de cada docente entrevistado 143 Fonte Elaborado pelo autor Quadro 1 Perfil dos Professores Nome YEWÁ MILTON SANTOS DANDARA ALAFIM ROSA MAJU TIA MARCELINA GRIÔ Idade 47 28 39 48 52 34 41 40 Etnia Negra Branca Negra Negra Parda Branca Indígena PardaNegra Cabocla Gênero Fem Mas Fem Mas Fem Fem Fem Mas Religião Católica Nenhuma Católica Candomblecista Católica Católica Evangélica Cristão Condições de origem familiar Classe média Pobre Pobre Pobre Classe média Pobre Pobre Pobre Estado civil Casada Casado Solteira Casado Divorciada Casada Casada Solteiro Natural Delmiro Gouveia Delmiro Gouveia Delmiro Gouveia Delmiro Gouveia Cícero Dantas BA Paulo Afonso BA Delmiro Gouveia Delmiro Gouveia Formação inicial Lic História Lic História Lic Pedagogia Lic História Lic Pedagogia Lic História Lic Geografia Lic Pedagogia Lic Pedagogia Lic Filosofia Natureza da instituição Pública Pública Privada Pública Púbica Pública Pública Pública Pública Privada Formação complementar Espec em Metodologia do ensino de História e Geografia 1 Espec em Estratégias didáticas com usos das TIC 2 Mestrado profissional em História Não possui Espec Educação para as Relações ÉtnicoRaciais Espec Docência e Educação Infantil Espec Ensino de Geografia Espec Educação Infantil Espec Metodologia do ensino de química e biologia Mestrado em Ecologia Humana Espec Ensino de Filosofia Mestrado em Ecologia Humana Natureza da instituição Privada Pública Pública Pública Pública Privada Privada Pública Pública Outros cursos Magistério Não possui Magistério Magistério Magistério Curso Normal Magistério Magistério Situação profissional Efetiva concurso Efetivo concurso Efetiva concurso Efetivo concurso Efetiva concurso Efetiva concurso Efetiva concurso Efetivo concurso Redes de ensino em que atua Estadual AL Estadual AL e Municipal Delmiro Gouveia Estadual AL e Municipal Água Branca Municipal Delmiro Gouveia AL Estadual AL e Municipal Paulo Afonso BA Municipal Delmiro Gouveia AL Municipais Delmiro Gouveia AL e Canindé do São Francisco SE Estadual AL Tempo de ensino 16 anos 07 anos 15 anos 25 anos 25 anos 11 anos 21 anos 18 anos O quadro acima apresenta alguns dados importantes quanto ao perfil desse professorado A média de suas idades varia entre 30 e 40 anos A maioria é composta por mulheres cinco enquanto os homens figuram minoria três Quanto ao critério racial esses professores apresentaram fato curioso O critério adotado aqui foi a autodeclaração étnicoracial Duas mulheres Yewá e Dandara e um homem Alafim se declararam respectivamente negras e negro Um professor e uma professora respectivamente Milton Santos e Maju se declararam brancos Apenas uma professora se declarou indígena Tia Marcelina Todos esses se posicionaram discursivamente numa categoria étnicoracial sem dificuldades Contudo uma professora e um professor demonstraram apreensão quanto a esse quesito e se declararam pardos Rosa e Griô Eles recorreram ao argumento da mestiçagem biológica às misturas entre as diferentes raças de seus pais e demais ancestrais e portanto não conseguem definirse apenas em um lugar Eles afirmaram que as cores de suas peles são difíceis de classificar e portanto não determinam seus pertencimentos em categorias como branca ou negra Entretanto isso não quer dizer que suas autodesignações sejam menos fixas tampouco menos racializadas do que as dos demais A professora Rosa declarouse apenas parda mas o professor Griô se declarou numa categoria analítica bastante complexa um pardonegro caboclo um ser sem pátria Esse fato corresponde não apenas à dificuldade de categorizar as pessoas conforme os fenótipos ou a ancestralidade genética de cada pessoa Não é simplesmente a biologia que explica a existência dessas possibilidades plurais Tal aspecto devese muito mais às tensões históricas acerca da raça como categoria sociológica através da qual se negociam privilégios desvantagens e exercício de poder em nossa sociedade A maioria deles é natural de Delmiro Gouveia Todas as mulheres se declaram cristãs sendo a maioria católica e uma evangélica Entre os homens o professor Griô pardonegrocaboclo se declarou apenas como cristão já o professor negro Alafim definiuse como candomblecista e o branco Milton Santos disse não professar religião alguma A maioria desses docentes é casada Quanto ao perfil socioeconômico a maior parte desses profissionais se declarou de origem pobre com exceção de duas professoras uma negra Yewá e uma parda Rosa ambas de pele clara que localizaram as suas origens na classe média sertaneja A maioria cursou o magistério durante a década de 1990 fato que os inseriu oficialmente nas salas de aula do sertão Percebese que apenas metade deles possui a graduação em Licenciatura em História Outros formados em cursos como Pedagogia Geografia ou Filosofia atualmente ministram aulas de História como forma de complementar as suas respectivas cargas horárias nas redes de ensino em que atuam 145 Seis profissionais concluíram suas graduações em instituições públicas Apenas uma professora e um professor concluíram um segundo curso em faculdades privadas Griô e Dandara A maioria desses docentes obteve ou está em processos formativos de pósgraduação na maior parte dos casos em universidades públicas Sete deles possuem especialização no campo da Educação embora em diversas áreas de ensino Dois possuem mestrado em Ecologia Humana Griô e Tia Marcelina e um cursa o mestrado profissional em Ensino de História Apenas a professora Dandara negra católica de origem pobre formada há poucos anos em Licenciatura em História não possui nenhum tipo de pósgraduação Todos eles são servidores públicos concursados para exercerem a profissão docente Apenas duas professoras uma negra Yewá e uma branca Maju atuam em apenas uma rede de ensino respectivamente estadual de Alagoas e municipal de Delmiro Gouveia Apenas o professor pardo ensina somente numa rede de ensino a estadual de Alagoas Os outros cinco docentes são servidores de mais de uma rede de ensino sendo a rede estadual de Alagoas e de algum município do sertão ou de duas redes municipais distintas da região O fato de se trabalhar em mais de uma rede de ensino está associado à necessidade de melhor complementação de renda do trabalhador docente na contemporaneidade Isso é um fator que incide na precarização da sua prática profissional cotidiana sobretudo quanto a temas específicos como é o ensino da cultura afrobrasileira dentro do ensino de História A média de atuação profissional no campo da docência desse grupo varia entre 10 e 20 anos de exercício A maioria deles formouse ainda antes da implementação da Lei nº 1063903 e só veio ter acesso às discussões promulgadas por essa normativa por vezes através de alguma pósgraduação e de poucos cursos de formação continuada aos quais puderam ter acesso na região em que moram e trabalham Diferente é o caso daqueles que se formaram há poucos anos sobretudo no Campus do Sertão da Universidade Federal de Alagoas e especificamente no Curso de Licenciatura em História Milton Santos e Dandara A professora Maju por exemplo embora tenha sido estudante no mesmo campus universitário e época que os docentes formados em História formouse no curso de Licenciatura em Geografia onde segundo ela as discussões raciais eram muito raras praticamente ausentes A diversidade de experiências e marcadores sociais que esse grupo nos apresentou trouxe grandes possibilidades de problematização discussão e interpretação dos elementos que historicamente constituem os saberes que funcionam como dispositivos de suas formações pessoais e profissionais JOSSO 2002 e também dos elementos que interferem nas suas práticas de ensino de História sobre a cultura afrobrasileira na região em que atuam 146 Os locais para a realização das entrevistas foram escolhidos pelos entrevistados Os critérios para as escolhas foram previamente determinados pelo pesquisador conforme as condições necessárias à realização tranquila das entrevistas a saber a existência de um local silencioso e sem a presença de pessoas que pudessem por ventura manipular atrapalhar ou intimidar a fala dos entrevistados um lugar portanto onde eles se sentissem à vontade para falar ALBERTI 2013 Neste sentido por vezes alguns entrevistados escolheram a residência do próprio entrevistador as suas próprias residências ou ainda a escola em que trabalhavam em horário de fim de expediente Cada sessão de entrevista iniciavase com uma leve recapitulação sobre os propósitos da pesquisa com a intenção de esclarecer mais uma vez os objetivos da investida Após isso era aberto o software de gravação de voz do computador do pesquisador e iniciavase o procedimento de forma dialogada De acordo com o perfil de cada sujeito as entrevistas tiveram diferentes tempos de duração A média de tempo de cada sessão era de duas horas havendo algumas com apenas uma hora de duração e outra com mais de três horas83 As entrevistas foram gravadas pelo software de gravador de voz instalado no sistema operacional Windows 10 modelo 64 bits salvas em pasta de arquivos virtuais no OneDrive no HD externo e no próprio computador com os nomes dos respectivos entrevistados para serem posteriormente transcritas e conferidas É fato que o pesquisador por ser professor universitário tem efetivado alguns trabalhos nas áreas do ensino pesquisa e extensão com foco na história e cultura afrobrasileira na região do sertão alagoano sobretudo em Delmiro Gouveia84 Além disso o pesquisador assume no 83 Embora devamos considerar que o tempo dedicado a cada entrevista incluía no mínimo uma hora antes com a preparação uma hora depois com a organização do arquivo e pelo menos um mínimo de cinco horas de transcrição para cada uma hora de entrevista gravada Houve casos em que precisamos de mais de cinco horas para realizar toda a transcrição de uma única entrevista As entrevistas apresentaram a seguinte constituição Profa Yewá entrevista concedida em 26 de fevereiro de 2018 Tempo da entrevista 023205 Prof Milton Santos entrevista concedida em 01 de março de 2018 Tempo de duração 020003 Profa Maju entrevista concedida em 07 de março de 2018 Tempo de duração 011016 Profa Tia Marcelina entrevista concedida em 09 de março de 2018 Tempo de duração 015415 Prof Alafim entrevista concedida em 14 de junho de 2018 Tempo de duração 024200 Profa Dandara entrevista concedida em 14 de junho de 2018 Duração 025949 Profa Rosa entrevista concedida em 05 de julho de 2018 Tempo de duração 022300 Prof Griô entrevista concedida em 10 de novembro de 2018 Tempo de duração 031110 84 Entre essas ações podemse citar palestras minicursos oficinas e cursos de curta duração de formação docente sobre relações étnicoraciais história e cultura afrobrasileira além de haver coordenado o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência PIBID do curso de História no Campus do Sertão da UFAL entre os anos de 2014 a 2016 abordando principalmente a temática negra e ainda executando projetos de extensão como o Grupo de Cultura Negra do Sertão Abí Axé Egbé 2013 até o presente Este último tem uma atuação significativa nas escolas públicas do sertão sobretudo no mês da consciência negra Além disso este pesquisador vem desde 2013 ministrando a disciplina História da África e orientando pesquisas científicas com a temática negra no sertão Dos oito docentes entrevistados três já tiveram experiências profissionais com este pesquisador um professor e uma professora que foram alunos durante a graduação em Licenciatura em História Milton Santos e Dandara e esta mesma exaluna junto a outra professora foram supervisoras do PIBID Dandara e Yewá Os outros cinco 147 cotidiano uma estética e práticas culturais negras Todas essas experiências e emblemas criaram por vezes alguns pontos de tensão prévia por parte dos entrevistados em ter de falar sobre um tema que julgam ainda não dominar frente a uma pessoa cujas ações eles mesmos reconhecem como sendo específicas do tema em questão Este fato não é novidade uma vez que a relação da entrevista é um ato atravessado por poder Ela acontece entre duas pessoas mediadas por intencionalidades sentimentos precauções performances que produzem a fonte de pesquisa entre coparticipação e disputas Essa constatação convoca uma série de procedimentos éticos para que seja realizada e para que seja esclarecido que a investigação foi conduzida sem manipulações coerções ou ajuizamentos de valor em relação ao depoente articulamos uma espécie de cumplicidade prolongada e controlada CAMARGO 2013 à sensibilidade e à crítica indagadora Por mais que se dissessem estar à vontade diante do pesquisador percebeuse em alguns comportamentos nuances de breve constrangimento ou receio de usar um termo inadequado para não ofender as identidades do pesquisador ou mesmo para não parecer um profissional preconceituoso racista ou nãosabedor do tema abordado Isso gerou algumas inquietações que são importantes de serem reveladas diante da postura crítica a ser tomada frente às fontes orais até que ponto elesas estariam sendo simplesmente sinceros Por outro lado até que ponto não o estariam sendo Não há como medir com precisão nem seria essa nossa preocupação central Enquanto produção de um saberpoder a entrevista também coloca implicitamente a interdição a certas palavras mediante o critério e o juízo moral sobre o qual se debate Assim foi tecida uma narrativa que costura a decência das expressões e faz agir todo um conjunto de censuras do vocabulário FOUCAULT 1988 pelo qual o depoente poderia passar a ser visto como racista ou não A entrevista enquanto dispositivo pedagógico da experiência de si põe em funcionamento essa técnica de sujeição pela qual o professor deseja tornarse moralmente aceitável e profissionalmente adequado Porém o fato do pesquisador habitar a cidade facilitou as relações mora próximo às escolas aos professores e aos terreiros de candomblé visita estes espaços anda pelo centro da cidade pela feira comparece aos eventos e festas públicas Estar entre eles imerso no cotidiano profissional econômico social e cultural da cidade ajudou a semear o sentimento de pertença entrevistados só foram conhecidos à medida que o pesquisador visitou algumas escolas públicas e apresentou o projeto às gestões escolares e aos docentes de cada instituição perguntando quem se voluntariaria a participar da investigação 148 e proximidade Criou laços afetivos respeitosos e facilitou acreditamos tanto ganhar a confiança dos docentes entrevistados como prolongar nossas relações durante a pesquisa85 Estando nos locais escolhidos pelos respectivos narradores coube ao pesquisador articular posturas diferentes mas complementares tais como ter desenvoltura tecnológica observar o andamento das entrevistas demonstrar atenção e tranquilidade evitar interromper os entrevistados mas dialogar com eles participando falando naturalmente fazer anotações no caderno de campo86 criar novas perguntas a partir de falas que trouxessem novos dados importantes à pesquisa adequar o roteiro de entrevista completar a fala com pequenas informações para auxiliar a memória e expressão dos entrevistados tudo isso sempre respeitando a fala e os sentidos elaborados pelos professores87 Obviamente a execução de todos esses procedimentos no tempo de uma entrevista exige muito mais atenção e destreza do pesquisador Nas palavras de Verena Alberti tudo deve funcionar harmonicamente de modo que o entrevistado não fique ansioso ou de alguma forma ofuscado pela perturbação do pesquisador ALBERTI 2013 p 207 As entrevistas foram transcritas com a ajuda de alunos da graduação das Licenciaturas em Letras História e Geografia da Universidade Federal de Alagoas Campus do Sertão88 Após a transcrição cada entrevista foi concomitantemente ouvida e lida pelo pesquisador a fim de conferir a fidelidade das transcrições localizar incompatibilidades e realizar a reescrita das mesmas Uma vez conferidas as entrevistas passaram pela fase do copidesque que segundo Alberti 2013 não modifica o sentido das falas apenas realiza pequenas correções de informações como nomes próprios datas e correções ortográficas segundo os critérios da linguagem formal 85 Criamos um grupo no aplicativo WhatsApp a partir do qual nos comunicamos agendamos entrevistas e combinamos aspectos da pesquisa Com o tempo os professores de História do sertão inseridos no grupo começaram a passar informes divulgar reportagens compartilhar denúncias políticas e reflexões sobre seu ofício e por vezes algumas experiências pedagógicas que realizavam e lhes proporcionavam satisfação pessoal e profissional 86 Alberti 2013 pondera que o caderno de campo é um recurso essencial para auxiliar no trato adequado das narrativas quando o pesquisador for fazer a análise do discurso Nele anotamse dados que reconstroem pela ótica do pesquisador o contexto de produção da narrativa como por exemplo nome do entrevistado data local e condições de entrevista interferências de terceiros na entrevista comportamentos reações emoções gestos e entonações de voz do entrevistado nomes próprios datas locais e situações importantes citadas pelo narrador 87 Durante algumas entrevistas percebeuse que por vezes alguns docentes pareciam querer não simplesmente a opinião do pesquisador mas a sua aprovação Alguns chegaram mesmo a verbalizar isso Embora estabelecerase um clima de conversa amigável entre os interlocutores sempre que tal fato ocorreu o pesquisador educadamente informou que não se tratava de uma avaliação por parte dele mas de um exercício sincero sobre o que se sabia em relação ao discutido 88 Aproveito a oportunidade para agradecer aos hoje exalunos Arielle Souza Jefferson Lima Lucas Nascimento Raylane Carvalho Ryclesia Carvalho e Tamires Vieira pelo compromisso e competência na transcrição atenta sensível e complexa dos áudios das entrevistas 149 Esse cuidado é importante para fins científicos pois ao zelar pela inteligibilidade e formalidade do texto não abrimos mão da legitimidade do relato Corrigir não significa alterar o sentido de um documento fato que incidiria erroneamente na análise dos dados em questão e resultaria em manipulação na interpretação do objeto Contudo a publicidade que este trabalho toma e a forma como trata as formas de linguagem dos entrevistados implicariam nas representações sociais dos professores do sertão pois o nível de erros ou de informalidade de suas falas pode não burlar a mensagem proferida mas pode alterar as leituras sociais sobre suas identidades e competências profissionais Como professores e colaboradores da pesquisa é importante prevenilos de posteriores constrangimentos Assim no copidesque após as transcrições os relatos foram registrados seguindo a norma formal da língua portuguesa Após essa fase as histórias de vida de cada docente foram organizadas em narrativas de forma linear para facilitar a visualização dos dados e a produção de categorias analíticas embora no ato das entrevistas as memórias tenham seguido movimentos de rememoração muito diversos e não lineares Também foram sinalizadas nas transcrições as interrupções e os motivos destas os marcadores como aumento de tons de voz repetição de palavras ou expressões as citações as titubeações os silêncios gestos e sentimentos aparentes em diferentes falas Esses fatores são extremamente relevantes para a análise do discurso pois problematizamos as possibilidades e os motivos que fizeram com que os entrevistados pensassem sentissem agissem e expressassem de determinadas maneiras por que os silêncios Por que estas ênfases Por que os risos Por que as lágrimas Que relações sociais constrangem inflamam angustiam ou acalmam os sujeitos das experiências narradas Que arranjos criativos e estratégicos os seus discursos elaboram na produção dessas narrativas O que dizem e o que não dizem Fazer uma análise do discurso é também atentar para a emoção que compõe sentidos em torno do que é e do que não é dito O potencial da história oral complementase não somente com o debruçarse sobre as histórias de vida comparando diferentes versões da experiência prática de uma categoria profissional mas também e principalmente com a aplicação de uma análise do discurso Tudo isso conforme os propósitos da pesquisa e as indagações que se faz o pesquisador que consulta um documento de história oral pode conter dados significativos além de permitir uma análise de discurso propriamente dita que em se tratando de um acervo de depoimentos pode engendrar estudos comparativos por gerações grupos sociais formação profissional etc ALBERTI 2013 p 33 150 Neste trabalho organizamos a análise dos dados nos dois capítulos subsequentes O primeiro deles discute e problematiza as diferentes formas como concepções valores e práticas racializadas foram subjetivadas ao longo da formação pessoal de cada sujeito entrevistado no contexto cultural do município de Delmiro Gouveia sertão de Alagoas Essas experiências de si ajudamnos a entender alguns dos elementos que constituem os saberes docentes sobre a cultura afrobrasileira Já o capítulo seguinte centrase especificamente nos processos de formação profissional e nas práticas pedagógicas que esses professores exercem perante a temática étnicoracial 151 5 CENÁRIOS EXPERIÊNCIAS E SUBJETIVAÇÕES RACIALIZADAS Neste capítulo analisamos a formação dos sujeitos enquanto pessoas comuns dotadas de saberes individuais e coletivos construídos ao longo de suas histórias de vida Consideramos alguns aspectos históricos políticos e culturais estruturantes do sertão alagoano a fim de vislumbrar o cenário em que se produziram e se cruzaram valores percepções sensibilidades projetos e práticas que afetaram as subjetividades dessas pessoas a partir de critérios étnico raciais Analisamos os dados produzidos nas entrevistas momento em que os narradores vivenciaram processos de desconstrução de si mesmos em perspectiva crítica Enquanto falavam sobre as suas relações familiares processos de escolarização formas de trabalho e lazer muitos deles afirmaram que naquela época não entendiam bem algumas situações sociais que viveram Ao produzirem lembranças de um passado refletido no presente eles reavaliaram a própria experiência estabelecendo conexões entre si e o meio sociocultural Isso gerou reações diversas surpresa decepção angústia indignação piedade vontade de construirse moralmente como pessoas não racistas o estabelecimento de novos compromissos éticos Narrando sobre suas vidas os professores passaram a enxergar o racismo em locais sujeitos e relações nas quais eles anteriormente não viam nem mesmo raças como afirmaram Uma vez que estudamos as trajetórias de vida desses sujeitos nos situamos temporalmente entre as últimas décadas do século XX e início do século XXI Entre 1980 1990 e os primeiros anos após 2000 entrevemos as suas infâncias juventudes e fase adulta É sobre alguns aspectos dessa história de subjetivação racializada que trataremos agora 51 De Pedra a Delmiro Gouveia aspectos da formação histórica de um município No período colonial as regiões sertanejas do Brasil foram investidas de movimentos de povoamento para garantir a posse e presença da coroa portuguesa A ocupação territorial da região a que se ocupa esse trabalho ocorreu por meio de doação ou da compra de sesmarias desde o século XVIII Em 1769 por exemplo o capitão Faustino Vieira Sandes comprou em um leilão ocorrido no Recife uma sesmaria cuja área corresponde aos atuais municípios de Delmiro Gouveia Piranhas Olho d Casado Pariconha e Água Branca FEITOSA 2014 SILVA 2015 A história dessa região é marcada pela instalação de grandes latifúndios sob a posse de poucos homens brancos senhores das terras e das gentes que nela habitassem de fazendeiros 152 que investiram poderes privados para efetivar os objetivos públicos do Estado português Com violência às populações indígenas e a inserção de populações negras como mão de obra escravizada a história local pautouse em relações políticas de dominação senhorial que delimitaram uma série de formas de compreensão e existência que se propagaram de forma capilar através do tempo No período imperial após a criação da província de Alagoas em 1817 a região da sesmaria sertaneja ganhou nova jurisdição dando sequência a uma série de emancipações políticas e formação de novas municipalidades Os senhores de terras continuavam orquestrando os modos de vida naquele ambiente Assim foi também no recémcriado município de Água Branca e em um dos seus povoados que mais cresceu Pedra um aglomerado rural marcado pela presença de terras secas planas e de numerosas rochas A formação desse povoado se deu ainda no século XIX com a aglutinação de pessoas que para lá se deslocaram fugindo das periódicas secas a fim de trabalhar na construção da Linha Férrea Paulo Afonso LFPA89 Ao final da obra muitos trabalhadores fixaram moradia naquelas plagas constituindo suas famílias e roças Ali entre várias negociações se instalaria no início do século XX o empreendedor chamado Delmiro Gouveia que em pouco tempo se tornaria o dono do lugar Com a proclamação da República em 1889 a paisagem cultural do sertão alagoano mudou em alguns aspectos mas em outros não As províncias foram transformadas em estados e sob eles novas racionalidades legais se estabeleceram No contexto da implementação do regime republicano no Brasil se realizavam discussões acaloradas sobre a urgência de se recriar a nação modernizandoa Contudo essas discussões aconteceram mais em nível superficial do debate do que da prática política pois a realidade era orquestrada pelas oligarquias locais que comandavam os municípios e governos estaduais gerando um fenômeno que a historiografia chamou de política dos governadores NASCIMENTO 2014 SCHWARCZ 2019 Essa política estava fortemente associada ao coronelismo mais centrada nas municipalidades A mudança de regime político foi acompanhada da conservação das estruturas de dominação e desigualdade Nesse contexto firmaramse acordos entre militares fazendeiros industriais e o Estado Tudo isso regado pela perspectiva eugenista defendida por muitos 89 A estrada de ferro foi construída sob ordem do imperador do Brasil D Pedro II A obra durou de 1859 a 1889 e seu objetivo era facilitar o escoamento de produtos econômicos entre sertão e litoral bem como facilitar a exploração dos recursos locais e garantir emprego para as populações acometidas pelas secas que flagelavam milhares de pessoas da região àquela época 153 cientistas e intelectuais da época o que gerou um Estado formalmente liberal mas fundamentalmente autoritário em suas práticas NASCIMENTO 2014 p 85 Conforme explica Schwarcz 2019 o coronelismo foi um estado de compromisso por meio de relações de trocas entre o poder público e os senhores de terras O capital privado dos coronéis era investido em obras de desenvolvimento dos locais onde as ações dos governos municipais e estaduais não atendiam Enquanto isso os objetivos econômicos e políticos desses homens bem como os seus gostos e morais privados geriam a vida pública das cidadelas em que habitavam e comandavam perpetuando relações de apadrinhamento e subordinação perenes Foi nesse contexto que em 1902 após vários conflitos políticos e econômicos na capital pernambucana o cearense Augusto da Cruz Delmiro Gouveia refugiouse no estado de Alagoas Ele recebeu apoio do governo do estado e dos coronéis do alto sertão fixandose no município de Água Branca Ali comprou a fazenda Rio Branco situada no povoado Pedra instalandose definitivamente em novembro de 1903 A partir desse momento ele contou com os incentivos fiscais facilitados pelo governo do estado alagoano para iniciar novos empreendimentos enquanto industrial o que o tornou um novo coronel dos sertões90 Ele investiu seu capital e criou o núcleo fabril da Pedra que dispunha da Usina Hidrelétrica de Angiquinhos a tecelagem Fábrica da Pedra e todo um conjunto de instalações suplementares como vila operária saneada contando com 258 residências escolas espaços de lazer como cinema e rinque para danças feira livre lojas de fazendas91 armarinhos padaria açougue duas casas comerciais que vendiam produtos variados farmácia um dentista um posto médico e um cemitério Com a construção do núcleo fabril novas levas de sertanejos migravam para o local em busca de trabalho sobretudo após uma grande seca em 1915 que flagelou muitas pessoas NASCIMENTO 2014 Isso acarretou um choque cultural pois aquelas pessoas pobres estavam acostumadas a outro estilo de vida um ritmo mais lento e dependente da natureza Esse fator cultural era um entrave ao objetivo mercantil de Delmiro Gouveia 90 Delmiro Gouveia morou desde a infância no Recife onde conviveu com homens letrados frequentadores dos altos ciclos sociais locais tendo entre eles muitos europeus que viviam na capital pernambucana Embora Delmiro Gouveia não tivera uma formação escolar suficiente ele inseriuse por meio do trabalho assalariado nos negócios de muitos desses homens que conheceu Assim adentrou os ciclos dos homens eruditos e de educação refinada à moda europeia Teve acesso a discussões políticas econômicas e científicas Aprendeu as técnicas da compra de matérias primas sobretudo couro de animais fornecidos no interior de estados como Pernambuco e Paraíba da comercialização e da exportação tornandose ao longo do tempo um empreendedor de referência nacional e internacional Para aprofundarse na biografia de Delmiro Gouveia sugerimos a leitura de Nascimento 2014 pois este trabalho é o mais atualizado perfazendo uma revisão crítica da vasta bibliografia sobre esse personagem histórico 91 Como eram chamados os tecidos 154 Para solucionar o problema o investidor implantou e controlou um processo de socialização dos trabalhadores rurais em outros modos de vida conforme a disciplina ocidental ao tempo dividido do relógio ao processo de escolarização formal com suas práticas cíveis inseridas no currículo ao ritmo de produtividade fabril ao estilo urbanizado com modos recatados higienizados ordeiros e cristãos NASCIMENTO 2014 Deste modo podemos afirmar que os corpos e subjetividades dos sertanejos foram remoldados não sem resistências através de um processo de disciplinamento que orientou condutas e plasmou valores socioculturais que foram cruciais para o funcionamento do novo arranjo social político e econômico local Naquele momento as questões raciais se constituíam como preocupação de reorganização da nação conforme diferentes critérios de cidadania uma vez que não mais havia a instituição da escravidão SCHWARCZ 1993 ALBUQUERQUE 2009 Schwarcz 2019 explica que a racialização se converteu em linguagem na cultura brasileira e durante a passagem do século XIX para o século XX associavase raça e meio em perspectiva determinista afetando a política dos governadores e dos coronéis penetrando deliberadamente nas políticas públicas Conforme Almeida 2019 a perspectiva racial no Brasil organizou práticas nos campos do direito da economia e da política produzindo um racismo estrutural adentrando nas instituições públicas e privadas Em nossa concepção tal perspectiva gestou também as políticas públicas no campo da cultura principalmente através da educação e das instituições escolares formais como as aplicadas na Primeira República inclusive no sertão alagoano No bojo dessas discussões a mestiçagem biológica e cultural que formava o Brasil era um dado incontestável mas que deveria ser instrumentalizada para que produzisse novas formas de vida novos sujeitos na perspectiva do embranquecimento MUNANGA 2008 Já na obra Os Sertões de Euclides da Cunha publicada em 1902 o sertanejo foi tido como um mestiço por natureza Contudo a mestiçagem naquele momento estava atrelada no discurso científico à degeneração racial SCHWARCZ 1993 Destarte na ideia de autenticidade do sertanejo não se construíram imagens de purezas raciais mas o contrário disso o mestiço o mulato o caboclo o cabra o moreno o pardo etc Entretanto o perfil populacional de que Delmiro Gouveia dispunha no sertão era formado justamente por contingentes mestiços caracterizados pelo discurso das elites letradas como degenerados raciais indolentes ignorantes supersticiosos92 Contra a degeneração 92 Conforme Nascimento 2014 em 1917 Assis Chateaubriand publicou um artigo no qual utilizou termos como indisciplina nomadismo misticismo fetichismo bárbaro subraça incivilizada para descrever a 155 biológica daqueles mestiços que seriam convertidos em seus trabalhadores assalariados Delmiro Gouveia investiu num audacioso processo educador a fim de tornar os corpos dóceis e produtivos Em pouco tempo Pedra tornouse tema de propagandas políticas dos republicanos em oposição aos sertões da Bahia e do Ceará estereotipados pela presença de movimentos messiânicos e revoltas populares A imagem do sertão de Alagoas se impunha como espaço racional produtivo higienizado e bem educado Em contraponto ao desenvolvimento econômico local a sociedade sertaneja foi reformulada sobre os princípios e as práticas de uma razão estruturante da desigualdade dependência discriminações raciais e violências Naquele povoado instalaramse as práticas de vigilâncias e punições em que todos moradores participavam observando avaliando e denunciando vizinhos colegas de trabalho familiares desconhecidos Além das punições o lugar teve determinados espaços segregados em nome da moral dos bons costumes e da produtividade Ainda conforme Nascimento 2014 o modelo educacional incrustrado no núcleo fabril da Pedra estava embasado em princípios liberais noções positivistas teorias médicas eugênicas ideias do catolicismo social noções de dever e lealdade padrões de moralidade e práticas cívicas Funcionando num estado de base latifundiária e rural as campanhas educativas eram pautadas na positividade do trabalho do modelo familiar nuclear e da religião NASCIMENTO 2014 p 107 Ainda após a morte de Delmiro Gouveia assassinado com um tiro em 1917 o seu projeto político econômico e cultural continuou mesmo que em diferentes ritmos Em nome do progresso e da civilidade foram implementadas sequências de violências cometidas contra os sertanejos e contra modelos de identidades sociais como a identidade negra por exemplo pois o racismo estava presente naquele universo de preocupações não só através das discussões eugenistas mas também da reformulação do direito republicano da produção de desigualdades econômicas da política dos senhores brancos e dos currículos positivistas eurocêntricos e cívicos implementados Assim a cultura sertaneja foi reestruturada sobre valores e práticas conservadoras e autoritárias cujos ecos se estenderiam por muitas décadas através de relações de dependência e clientelismo com ênfase em uma educação básica patriótica disciplina e produtividade no trabalho utilização da mestiçagem biológica como estratégia de barganha ética cristã normas de vigilância mútua e segregação de sujeitos estigmatizados população do sertão alagoano que estava se civilizando graças aos investimentos do empresário Delmiro Gouveia 156 Como mostra Schwartz 2019 os valores morais e práticas das elites conservaram os seus privilégios políticos e econômicos mesmo na República Diferentes expressões herdeiras do patriarcado tais como racismo mandonismo patrimonialismo concentração de renda limitação dos direitos políticos corrupção intolerância e violência são marcas estruturantes que se transformaram em linguagem na cultura brasileira permeando as nossas percepções e atitudes cotidianas até hoje Estamos falando do racismo como um valor ético herdado e recriado na contemporaneidade ALMEIDA 2019 como um dispositivo produtor de identidades CARNEIRO 2005 cujo efeito é a garantia de privilégios de um grupo étnicoracial em detrimento das desvantagens causadas a outros grupos e pertencimentos O racismo é central na cultura sertaneja Historicamente ele ativa o jogo das identificações sociais no qual a mestiçagem é referenciada não no sentido de misturas raciais e culturais em movimento mas no sentido de misturas cujo movimento leve a algum lugar predeterminado o embranquecimento enquanto ideal biológico cultural econômico e político 52 Sobre as formas e os sentidos do lugar as relações étnicoraciais no cotidiano sertanejo Em junho de 1952 foi criado o município designado como Delmiro Gouveia a fim de homenagear o coronel assassinado em 1917 A paisagem local foi transformada por novos ares de modernização com a construção de hidrelétricas na região a Companhia Hidro Elétrica do São Francisco CHESF no município vizinho Paulo Afonso BA e décadas depois Xingó no município de Piranhas AL Mais uma vez formaramse novas correntes migratórias para trabalhar nessas obras o que levou muitas pessoas a transitar e mesmo morar em Delmiro Gouveia Sua paisagem foi modificada Chegaram pessoas de vários lugares do Brasil Carros pessoas obras saberes projetos indo e vindo Nas palavras do professor Griô a cidade de Delmiro Gouveia desenvolveuse conforme um espírito meio cosmopolita devido ao trânsito de pessoas vindas de capitais como Rio de Janeiro São Paulo Salvador e Recife Contudo Delmiro Gouveia continuava uma cidade pequena produzindo gêneros agropecuários como feijão algodão milho e leite A Fábrica da Pedra durante 104 anos empregou grande parte da população local Como nos conta Souza 2017 devido ao pequeno porte da cidade as periódicas crises de estiagem e a pequena produção agrícola a indústria o comércio e a prestação de serviços tornaramse as grandes bases da economia local Esses setores atraíram novos moradores vindos de cidades vizinhas e dos povoados rurais tornando Delmiro Gouveia uma cidade polo na região do alto sertão 157 A maioria das pessoas que se deslocaram para essa cidade continuava a ser da região nordeste Sua história a configurou como uma cidade de viajantes Isso apareceu na fala dos professores meu pai veio em busca de trabalho a família também acabou vindo Eles moravam na rua dos Correios Por esse motivo que que ele saiu de Pariconha AL em busca de oportunidade não é Profa Tia Marcelina 2018 ou como se diz em outra narrativa Meu pai é de Pernambuco Ele é de Buíque que é uma cidade próxima a Garanhuns Logo jovem aos seis anos ele veio morar aqui em Delmiro Gouveia com o meu tio irmão dele mais velho Em seguida a minha mãe Ela é sergipana de uma cidade93 chamada Curituba que fica no interior de Canindé do São Francisco e ela veio trabalhar como doméstica em uma casa de uma senhora aqui em Delmiro Profa Dandara 2018 O município não adormeceu no tempo apenas reproduzindo relações cristalizadas mas apesar de todas as mudanças pelas quais passou há muitas permanências nos valores e nas práticas que se perpetuam sutilmente nas formações e educação da população local Apesar das diferentes conjunturas encontramos muitos diálogos na memória cultural delmirense mesmo que de forma inconsciente entre valores e práticas daquele projeto civilizador implementado no início do século XX e as práticas discursivas dos professores que ministram aulas de História no sertão alagoano na contemporaneidade94 Quando problematizamos a questão étnicoracial na elaboração de projetos locais de sociedade percebemos que esses diálogos constroem distintas realidades pedagógicas e políticas É preciso que lembremos sobre que tipos de relações de poder repousam os valores e práticas locais que se acostumaram de alguma forma a não serem incomodadas ou questionadas Foi nesse cenário interiorano que nasceram e viveram os professores que nos narraram suas vidas Conforme os censos demográficos levantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE sobre o município de Delmiro Gouveia entre as décadas de 1980 e 2000 manteve sua urbanização estável apesar das transformações pelas quais passou ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO sd Segundo Souza 2017 até finais dos anos 1980 era mais comum ver carros de boi do que carros mecânicos circulando pelas ruas Também o contingente populacional cresceu nesse período Em uma década dobrou passando de 26768 93 Na verdade tratase de um povoado 94 Embora não podemos creditar a permanência desses valores morais conservadores apenas ao projeto educador de Delmiro Gouveia pois eles foram atualizadas durante a ditadura civilmilitar e posteriormente com a emergência do neoliberalismo que também tomava forma naquele local a partir dos processos de desenvolvimento industrial e comercial ali implementados 158 mil habitantes em 1980 para 40292 em 1991 A maioria dessa população ficou concentrada no núcleo urbanizado da cidade e a menor parte nos povoados rurais Na década seguinte o contingente local cresceu pouco tendo sido de 42469 em 2000 O número de mulheres sempre foi maior do que o de homens Um dos fatores para isso é que muitos deles saíam em busca de empregos em outras cidades e estados o que contribuiu para que a educação e o cuidado dos filhos ficassem a cargo das mulheres Em meio à aridez dos costumes dali muitas delas foram enquadradas ao espaço privado tornandose gestoras rígidas das subjetividades infantis Então ela cuidava com maior carinho com aquele amor todo e sempre ensinava a gente Só que ela era mais dura que meu pai mais rígida não é Ela era daquele estilo que cheirava nossas roupas quando chegávamos da festa pesquisando nossas vidas sobre o que a gente tinha feito lá fora Sempre muito cuidadora em cima para gente não fazer nada de errado e nos podando ao máximo não é Vá por aqui Não faça assim Profa Tia Marcelina 2018 O rigor da educação materna foi destaque em todas as falas sobretudo das professoras Minha mãe sempre foi muito rígida no sentido da educação Parece às vezes ser um pouco chata mas não é Porque realmente ela é muito rígida e dura demais Exigente Profa Maju 2018 As mães sempre são apontadas como maiores referências na formação dos entrevistados pois julgam ter internalizado os valores que elas ensinaram A maior parte da população local sempre foi pobre Isso também se repete no discurso dos docentes Apenas as professoras Yewá e Rosa95 têm origem em famílias de classe média alta A primeira reconhece que foi criada numa família de direita conservadora de pessoas com consideráveis graus de formação inclusive com diferentes gerações de mulheres formadas no magistério Essa que era à época uma das poucas profissões respeitosas para as mulheres atuarem no espaço público e obterem relativa autonomia econômica Yewá tem familiares que fizeram carreira na política local Além disso seu pai montou um pequeno comércio em Paulo Afonso e depois em Delmiro Gouveia Até aí lembra ela morou numa boa e grande casa no centro delmirense Ela cresceu instruída pelas mulheres de sua família e cuidada pelas mulheres negras que lhes serviram como babás Recorda ela essas eram as presenças negras na sua casa Após algum 95 A professora Rosa nasceu e foi criada em Paulo Afonso BA Sua relação mais estrita no município delmirense se deu quando foi aprovada em concurso para ensinar na rede pública de ensino Contudo em termos de valores e práticas culturais as duas cidades possuem muitos diálogos e tradições que circulam horizontalmente entre si devido ao próprio trânsito de pessoas 159 tempo o seu pai se tornou servidor público do município de Maceió e a família teve de mudar se para morar na capital Sua vida avalia foi economicamente tranquila durante muito tempo Já a professora Rosa teve uma vida confortável embora não desfrutasse de toda a riqueza do avô materno Sua mãe mulher branca de família tradicional de uma cidade do sertão baiano chamada Cícero Dantas trabalhou como costureira quando se casou com um homem negro que realizava jogos de azar Conforme narra ele era um homem boêmio que às vezes saía das rodas de jogos com dinheiro às vezes sem nenhum A vida razoável da família foi garantida pela ajuda financeira de seu avô o que a garantiu o privilégio de estudar em algumas escolas privadas ao lado dos filhos das elites locais Essa já não foi a realidade da maioria dos professores entrevistados Em Delmiro Gouveia à época aqui compreendida quase metade das habitações sobretudo as periféricas não dispunha de água encanada embora a maioria já tivesse acesso à energia elétrica Mudava muito de uma casa para outra e quando conseguíamos mudar a casa era bem humilde mesmo Ainda hoje precisa de reforma mas vai mudando aos pouquinhos e é assim que acontece Profa Maju 2018 Morando em puxadinho de família como alegaram Alafim e Griô em casas humildes e pequenas como disse Dandara ou o professor Milton Santos eu morei em duas casas são duas casas humildes mas são casas do centro da cidade o que não quer dizer que são casas de luxo Centro da cidade mas pega alguns bairros que têm pessoas carentes ainda mais antes há 15 anos Prof Milton Santos 2018 Em condições ainda precárias as famílias diminuíram a quantidade de filhos A população jovem diminuiu de 16239 na década de 1980 para 14625 na década seguinte Conforme avalia a memória do professor Milton Santos a maior parte das pessoas pretas da cidade estava concentrada nas periferias onde a pobreza e a falta de estrutura condicionavam a vida A mortalidade infantil ultrapassava a margem de 773 óbitos por cada mil pessoas nascidas na década de 1980 Pobreza e cor estavam correlacionadas e isso marcou as lembranças do professor Griô E um fato que marcou muito na década de 1980 era o índice de mortalidade infantil A gente morava em frente ao cemitério novo Assim a nossa casa estava da minha casa da janela da minha casa eu via o cemitério e sempre passava aqueles caixões É uma coisa que me marcou muito Eu quase também embarquei num desses caixões Era muito comum Não havia saneamento Diversas vezes fomos a hospitais Prof Griô 2018 Com mais crianças morrendo e as famílias gerando menos filhos a população ficou mais adulta com o passar das décadas concentrando maior adensamento entre as faixas etárias 160 de 15 a 46 anos Esses jovens aumentaram o índice escolar formal A taxa média cresceu acima dos 30 Contudo em Delmiro Gouveia foram grandes as limitações no quadro de instruções formais para a maior parte da população Quem conseguiu dar prosseguimento aos estudos mesmo em meio às dificuldades enfrentadas gozou do privilégio de portar diplomas em meio a uma sociedade desigual num estado com os piores índices educativos do Brasil nos anos 1990 Devido a isso o comércio informal e os trabalhos temporários se tornaram algumas das soluções possíveis para os contingentes populacionais com pouco ou nenhum grau de instrução escolar e qualificação profissional que habitavam a cidade SOUZA 2017 Os jovens passaram a trabalhar mais cedo diminuindo os percentuais de dependência dos pais O professor Milton Santos por exemplo trabalhava na pequena mercearia que o seu pai montou Galgando níveis mais elevados de estudos nossos entrevistados exerceram trabalhos nos setores secundário e terciário pois precisavam complementar a renda familiar ou ter a sua relativa autonomia financeira seduzidos pelo poder de consumo visto como exercício de liberdade Os professores lembram que seus pais buscavam tornaremse autônomos vendendo alimentos ou utensílios nas ruas abrindo mercearias e lojas de móveis montando barracas na feira livre da cidade etc A vontade era de ser o próprio patrão de ter dinheiro e exercer algum grau de mandonismo entendido como liberdade masculina Ao se tornarem autônomos muitos chefes de família conseguiram adquirir alguns bens patrimoniais o que denota a apropriação de valores morais elitistas do patriarcado local pelas classes populares SOUZA 2018 Porém a confluência de alguns episódios levaram esses pais a perder tudo as farras o confisco da poupança durante o governo de Collor ou a falência do estado de Alagoas na época do governo de Divaldo Suruagy 1995 a 1997 quando o estado chegou a passar cerca de sete meses sem pagar seus funcionários Em Delmiro Gouveia quem comprava não tinha mais dinheiro para pagar a quem devia Muitos pequenos empreendedores fecharam seus negócios Os entrevistados lembram que por vezes ouviam as conversas aflitas dos adultos quanto aos infortúnios financeiros que os atingiam Era nesse ambiente entre a pobreza a estrutura urbana e instrução precárias as segregações de gênero de etnia e entre as crises econômicas numa pequena cidade do interior que cresceram esses sujeitos Eles e elas foram preparados para uma vida de boa moral conforme a rigidez da educação materna que receberam Entre os ensinamentos subjetivados estavam honestidade verdade dignidade respeito honra compromisso higiene bondade disciplina e resiliência Também a valorização dos estudos do trabalho e da fidelidade à palavra de Deus Apenas a professora Tia Marcelina citou o respeito a todas as pessoas como um valor ensinado em sua casa mas pelo seu pai 161 No entanto como no cotidiano há a prática de muitas morais diferentes FOUCAULT 1984 a própria noção de respeito a alguém sempre foi relativizada na sociedade local A professora Yewá por exemplo afirmou que sua avó paterna uma conhecida professora na cidade era uma mulher extremamente racista Profa Yewá 2018 Já o professor Milton Santos conta que em sua casa sempre perpassaram discursos hegemônicos em nome da moral e dos bons costumes até por eles seus pais reproduzirem sem muita noção sobre o bandido bom é bandido morto sobre o homem ser o chefe da casa entendes Esses discursos não são novos mas têm ganhado novas roupagens hoje não é Prof Milton Santos 2018 Ao reavaliarem a experiência étnicoracial no sertão afirmam que na época de suas infâncias e juventudes eles não percebiam sequer raças quiçá racismo Relativizam a constituição mestiça de suas famílias talvez para amenizar os conflitos raciais no interior de suas próprias casas Ao explicarem que seus grupos familiares são biologicamente misturados dizem que não conseguem se definir em termos étnicoraciais com clareza quando se pergunta sobre isso embora os professores brancos e negros não tivessem dúvidas em responder o que são quando questionados sobre as suas etnias Apenas os pardos problematizaram essa informação colocandose numa fronteira étnica Por terem familiares negros argumentaram não subjetivaram valores racistas Em seus discursos a pretensa proximidade afetiva ou a mistura biológica são usadas como argumentos que os livrariam da possibilidade de reproduzir o saberpoder que é o racismo O tempo todo repetem expressões que reforçam esse tipo de ideia minha relação com crianças negras é muito saudável natural É porque a minha mãe é negra Profa Maju 2018 ou como parece fazer pensar o professor Griô meu pai tem também uma mistura de raça porque minha vó eu me lembro que era negra tinha o cabelo crespo linda Prof Griô 2018 Os enunciados desses sujeitos incitam a pensar numa existência mecânica entre proximidade sanguínea com familiares negros e a não subjetivação de uma perspectiva racista Expressões como saudável ou natural para caracterizar relações pessoais cotidianas bem como adjetivos como linda para definir uma pessoa negra são construções discursivas produzidas por suas memórias no presente acerca desse passado o que não é garantia de que suas relações tenham sido construídas fora de uma perspectiva racial hierarquizada As próprias relações familiares não eram tão harmônicas assim Alafim conta que é filho de uma mulher branca e loira e de um pai de pele um pouco escura mas que se via como um homem branco Esse professor cita ainda um tio negro e sua avó cabocla Sua irmã contudo era branca como a mãe A essa irmã costumava serem ofertados todos os mimos de seus pais enquanto ele criança de pele escura ficava um pouco descuidado daí ser o mimo o 162 negrinho da vovó mulher também de pele escura mas tida como cabocla Contudo ele não considera que a avó o superprotegia por questão de identificação em relação à cor da pele mas apenas por vêlo como uma criança descuidada pelos pais Conforme Dandara na cultura local é muito comum entre as pessoas mais velhas de pele escura dizeremse caboclas e não morenas tampouco negras e não diz negro diz caboclo Minha avó tem a pele escura e o cabelo lisinho bem característico de uma pessoa indígena Essas ligações assim mas a maioria são todos negros Mas quando eles falam eles falam que são caboclos eu sou é caboclo Profa Dandara 2018 Relembrando a sua vida a professora Yewá considera que eram poucas as pessoas que poderiam ser consideradas brancas de fato em sua família mas naquela época eles não se pensavam assim Afirmar a branquitude era um bem prestigioso naquela sociedade Justamente devido à tez clara de sua pele e aos ensinamentos dos familiares mais velhos ela mesma não se via como uma criança negra Já a mãe dos professores Griô e Tia Marcelina parecia não gostar de negros embora os entrevistados não tenham chegado a afirmar isso abertamente muito provavelmente pelo peso político que uma declaração dessa venha a ter sobre a memória dela Griô afirma que sua mãe mulher indígena embora não tenha mencionado a cor da pele dela só contratava pessoas brancas para a auxiliar a cuidar das crianças e fazer os trabalhos domésticos Conforme narrou Griô para sua mãe ele nunca foi considerado um negro mas sim um moreno claro ou um caboclo Até hoje para esse professor a ideia de típico negro está associada à pele muito escura cabelo crespo e nariz largo Nesse sentido como ele possui a cor da pele um pouco mais clara o cabelo fino encaracolado e um nariz afilado ele não pode ser considerado negro mas sim um mestiço ou como diz ele um caboclo sujeito sem pátria Prof Griô 2018 Analisando os dados étnicoraciais dos censos demográficos de 1991 2000 e 2010 Nascimento e Carvalho 2019 identificaram que a cidade de Delmiro Gouveia sempre apresentou maior índice demográfico de pessoas negras conforme os critérios de classificação étnicoracial do IBGE ou seja somandose os sujeitos que se declararam pardos e pretos Entre 1991 e 2010 os pardos sempre foram maioria na cidade diminuindo de 7816 para 6738 seguidos pelos indivíduos brancos que aumentaram de 1986 para 2603 e por último pelas pessoas pretas que aumentaram de 19 para 579 Mais da metade da população de Delmiro Gouveia possui a pele escura No entanto se para o IBGE elas são negras e negros para os próprios sertanejos em suas concepções e discursos particulares a maioria se pensa como mestiço pardo moreno Nesse sentido é interessante a leitura que o professor Griô faz do passado da cidade Para ele nas décadas de 1980 e 1990 não existia uma consciência da história da exclusão do negro em Delmiro Gouveia havia apenas a perpetuação do racismo enquanto 163 valor linguagem e comportamento nas relações cotidianas dos sertanejos Ele mesmo assume que as pessoas negras foram apagadas de sua memória Essas relações eram ambíguas nas suas infâncias Ao afirmarem que naquela época não enxergavam as diferenças étnicas nas suas experiências infantis a princípio parecem pintar um quadro de harmonia e democracia social As crianças brincavam juntas recebiam instruções e afetos de familiares vizinhos e de professores Parecia não haver distinções entre negros e brancos talvez pelo fato das pessoas de pele escura não se verem como negros tinha muitas crianças negras mas não tinha conflitos raciais com elas naquela época não existia diferença de cor de pele mais tarde a gente começou a ver isso mas não são as crianças São os adultos Profa Rosa 2018 Assim eles reconstroem o cotidiano alegre das brincadeiras infantis ora nos quintais das residências ora nas calçadas ou no meio das ruas à luz do dia Ruas em grande parte ainda de terra sem grandes movimentações de carros À sombra das árvores e sob os olhares vigilantes dos adultos brincavase de panelada sete cacos queimada amarelinha96 de roubar a bandeira ciranda boto se esconde de pular elástico jogar futebol andar de bicicleta tomar banho nos barreiros construídos para armazenar águas das poucas chuvas do sertão O professor Milton Santos lembra que quando criança brincava muito no povoado Cruz uma comunidade negra certificada como remanescente quilombola Ele teve acesso a esse espaço porque era amigo dos filhos da vizinha que tinha uma casa naquele povoado pois era casada com um homem quilombola Ali ele podia andar a cavalo e também tomar banho nas águas gélidas e esverdeadas do rio São Francisco Entretanto esse cenário bucólico é cortado por relações em que os fenótipos étnicos raciais eram critérios que definiam condutas e formas desiguais de exercícios de poder Muitas vezes os narradores atribuem o peso disso às práticas discursivas dos adultos em relação às crianças O caso do professor Griô brincando com seus demais irmãos irmãs e primos refletiu a respeito Mas naquele período mesmo eu já sofria preconceito Eu não entendia bem mas acho que dos oito aos nove anos Meus primos eram brancos e às vezes me rejeitavam então eu sempre estive brincando só Brincava em cima de casa brincava no mato sempre sozinho e eles me dispensavam Aí certa vez nós estávamos quando eles brincavam comigo nós estávamos brincando em grupo de crianças e me escondi entre pneus de um caminhão Aí o dono do caminhão era branco e disse saia daí seu negrinho maloqueiro A partir desse momento eu questionei a minha mãe o que queria dizer negrinho 96 O nome mais comum dessa brincadeira na cidade era avião 164 Ela apresentou um semblante triste Posso dizer que a interpretação era muito pequena Ela não disse mas ficou triste Semblante Interpretei que era uma coisa ruim entendes Ser negrinho sorrindo e eu me lembro também que na infância um amigo do meu pai dizia que eu ia ser bandido Que pelo meu comportamento eu ia ser bandido porque eu brincava e batia também Todo garoto bate não é Entre quatro e cinco anos brincam de bater também mas por que os outros que também me batiam não poderiam ser bandidos e eu sim Eu acho que pela questão da cor mas isso é um achismo não perguntei ao meu pai Prof Griô 2018 Também Dandara lembra que embora em situações cotidianas de relações tranquilas as pessoas não se referiam umas às outras por menção à cor de pele mas na hora do conflito a categoria negro negrinho ou outras derivações eram utilizadas para reprimir ofender excluir ou ameaçar Isso acontecia bastante nas relações em que adultos se sentiam provocados pelas crianças Aí era um campo ali fizeram campinho para jogar bola Eu tenho um irmão que é um dos mais pretinhos lá de casa Aí ele é bem desaforadinho é bem pavio curto Nesse jogo no campo ele pegava briga que só a gota Só víamos chegar reclamações em casa aquele negro da peste E era assim que se ouvia Às vezes alguém não se refere ao nome Sempre chama aquele negro disso aquele negro daquilo Eu acho que era para inferiorizar ele de alguma forma Profa Dandara 2018 Ela lembra de homens com mais de 40 anos de idade que ao reclamarem das travessuras de seus irmãos referiamse a eles com muito ódio no meio da rua às portas de sua casa chamandoos de esses negros Episódios como esses contribuíram para que essas crianças subjetivassem de diferentes maneiras as relações étnicoraciais naturalizando sentidos pejorativos para a negritude A fala do professor Alafim trouxe a tônica recreativa do racismo reproduzido entre os infantes como algo banal O povo tinha uma ciranda uma ciranda incrível Eu nunca esqueci do Puxa que maldade Tinha uma plantei uma cebolinha no meu quintal nasceu uma negrinha de avental samba negrinha eu não sei dançar pega o chicote que ela dança já A gente cantava isso a título de ciranda E eu hoje sussurrando PQP minha gente QUE VIOLÊNCIA Faziam isso com as crianças naquela época Introduziam isso em musicalidade pra você cantar de forma preconceituosa sem você nem ter noção que estava agredindo figuras Hoje eu digo poxa Acontecia Acontecia Não só essa como outras não é Negra do sovaco fedorento tinha uma música que falava isso Eu lembro dessas músicas mas na época a gente não tinha maldade nem de perceber que isso feria alguém mas que isso existia existia Prof Alafim 2018 165 Práticas discursivas como essas herdeiras de uma sociedade escravista e que convertem o racismo em linguagem subjetivam crianças e adultos que refazem as falas e os rituais diários de segregação social das pessoas negras em diferentes tempos locais e situações Tudo isso era amenizado ou encoberto por enunciados que conferiam outros valores às relações pessoais O respeito aos mais velhos e aos familiares era mais ensinado do que o respeito aos negros Às vezes por ter familiares negros sobretudo quando mais velhos o respeito à sua condição ancestre apagava a sua condição racial o que mais uma vez apagava a memória dos conflitos raciais na instituição familiar O problema étnico nunca foi algo que eu pensei na minha infância porque meu primo meus avós são negros e eu fui criado na casa Passei muito tempo na casa do meu avô e com meu primo a gente nunca discutiu essa ideia do negro como algo diferente Nunca tive essa percepção nem de achar como alguém que precisa de um cuidado especial ou visto de forma diferente Prof Milton Santos 2018 No entanto também as crianças produziam o racismo entre si O professor Griô conta que desde oito ou nove anos de idade começou a se sentir rejeitado pelos próprios primos e amigos Na época ele não sabia porque isso acontecia mas hoje lembra que esse fato estava associado à cor de sua pele pois ele era o menino mais escuro do grupo Por exemplo jogo de futebol eu me lembro muito bem a preferência era entre eles os branquinhos Prof Griô 2018 A professora Tia Marcelina irmã do professor Griô confirma essas memórias Tinha outros amiguinhos agora meu irmão a cor dele é assim mas acentuada que a nossa não é O mais velho E ele era muito vítima disso Olhe o negrinho de seu José97 não é Ele se mostrou Ele sofreu muito preconceito Minha irmã também Chamavam de macaquinha Ela tem o cabelo encaracolado e a cor mais acentuada Na verdade eu sou a mais clara não é Risos Profa Tia Marcelina 2018 Ela lembra uma das coisas que os adultos da cidade gritavam costumeiramente ao seu irmão quando ele estava fazendo travessuras vou pegar você seu negrinho safado seu ladrão Profa Tia Marcelina 2018 Também nos contou que a outra irmã negra sofria constantes xingamentos e agressões físicas por parte de outras crianças tanto na rua quanto na escola o que lhe gerou baixa autoestima e a constante necessidade de que Tia Marcelina a defendesse 97 Nome fictício que demos para não tornar identificáveis as pessoas reais dessa narrativa 166 O caso do professor Milton Santos também é emblemático Mesmo sendo um menino branco por ser portador de uma deficiência relata que durante a infância por vezes era motivo de piadas e ofensas entre os amigos Ele rebatia categorizando aquilo que pudesse ser utilizado como defeito do outro como a cor e a raça por exemplo Eu acho que eu gostava de provocar muito as pessoas porque brincavam muito em relação aos meus braços Eu acho que eu comecei a ter como defesa zombar do outro Prof Milton Santos 2018 À medida em que esses professores narram surgem as expressões racistas que designam pessoas negras no sertão alagoano negrinho negro cão negro besta Zé bestinha negro do cabelo de bucha negros da peste negrinhos de fulanao98 catinga de negro negra do cabelo duro negra preta a citar alguns Percebase como essa linguagem associa adjetivos que desqualificam a identidade negra No sertão alagoano a raça é esse dispositivo que constrói uma imagem do negro a partir da lógica do defeito da bandidagem da feiura da falta da grosseria de seus conteúdos e formas como explica Carneiro 2005 Durante a adolescência e juventude suas vidas ainda eram repletas de controle e vigilância para preservar os bons costumes e honra de cada família Contudo isso não era feito sem as estratégias antidisciplinares daqueles jovens Os finais de semana eram os momentos mais esperados para o lazer As tardes e noites no domingo dançante no Clube Vicente que se tornava uma discoteca com músicas da moda os pequenos cinemas onde se assistiam os filmes da Xuxa dos Trapalhões ou de karatê como expressou Alafim as bancas de revistas onde compravam gibis jornais revistas romances pôsteres de seus ídolos e livros da coleção intitulada Os Pensadores Nas tardes de domingo já pelos idos de 1997 na Vilinha da Fábrica centro da cidade havia o ensaio de um bloco carnavalesco chamado Ilê Ayê Dandara lembra que havia pessoas brancas ali mas a maioria era negra Eram operários da Fábrica Pedra e os antigos trabalhadores da hidrelétrica de Xingó Longe dos olhos de seus pais que estavam na periferia Dandara e suas amigas não perdiam aqueles ensaios feitos no meio da rua Acompanhavam os arrastões cortejos pela cidade compravam camisas para acompanhar o bloco com todo o ânimo mas não faziam parte de fato daquele coletivo Já as noites de domingo eram esperadas pelos passeios no centro da cidade Como relatou a maioria de nossos entrevistados muitos jovens delmirenses não estavam interessados na missa Achavamna antiquada mas como vinham de famílias católicas eram obrigados a participar das liturgias Entretanto logo ao final das missas viviase os rápidos prazeres 98 Alusivo aos nomes da mãe ou do pai da criança negra 167 mundanos tomar sorvete passear pelo calçadão onde se situavam muitas lojas e banquinhos nos quais os jovens se sentavam em grupos para conversar Contudo havia regulações sobre essa jovial liberdade domingueira Era da casa para a escola da escola para a casa e uma missa aos domingos às vezes Nove horas tinha que estar em casa riso no máximo tomar um sorvete no calçadão e pronto O lazer era esse Profa Maju 2018 Havia também os locais alternativos para a juventude praticar seus deslocamentos dos padrões culturais esperados na região Os jovens rebatizaram a praça Dr Ulisses Luna chamandoa Praça do Fica no centro O local repleto de árvores e sem iluminação adequada servia de cenário para os jovens namorarem Quem estava dentro da praça conseguia enxergar quem estava fora mas o inverso não acontecia Ali depois de tomar sorvete os beijos e juras amorosas não escondiam a excitação que aguardavam semanalmente pelo final das missas Namoros até às 21 horas às vezes com alguns atrasos Também no centro ao lado da igreja mais antiga da cidade e da vilinha da Fábrica fica a Praça dos Skates como batizaram os jovens alternativos Durante as décadas de 1980 e 1990 muitos jovens de Delmiro Gouveia imergiram nos padrões culturais norteamericanos introduzidos pelas imagens midiáticas a que tinham acesso por meio de revistas histórias em quadrinhos músicas e televisão a prática do skate e do street dance a construção de novos gostos musicais como pop rock e hip hop o movimento punk o uso de jaquetas folgadas basqueteiras como eles chamavam os penteados diferenciados como black power entre outros Nesse espaço havia a presença de jovens questionadores do conservadorismo dos adultos Entre eles existiam alguns negros muito pobres e vindos das periferias mais distantes da cidade que se destacavam pelas suas habilidades artísticas principalmente a dança Como contou Griô esses jovens eram estigmatizados como marginais pela sociedade local Eu era muito tratado como maconheiro mas eu nunca experimentei maconha Prof Griô 2018 Durante muitas conversas nessa praça os amigos de Griô diziam que ele era negro O jovem dizia saber disso mas na verdade ele confessa não achava aquela leitura confortável Entretanto buscou compensação na incorporação de um estereótipo racial para ser aceito entre eles Eu introjetei o estereótipo do negro engraçado e eles já me recebiam rindo Sempre É importante essa questão aí Prof Griô 2018 Já a professora Dandara disse que não percebia preconceito em relação a ela na adolescência mesmo sendo uma jovem negra e gorda Ainda assim ela não tem histórias de relacionamentos para contar a não ser sobre quando teve um namorado moreno claro Seu corpo e subjetividade pouco foram alvos de desejo Ela participara de forma periférica da exclusão na economia dos afetos locais É importante observar que na maior parte dos casos os 168 jovens brancos como Milton Santos e Maju dizem que não percebiam o racismo em seus afetos na adolescência Já inversamente com exceção de Dandara os negros como Yewá e Alafim e o mestiço como Griô sim Milton Santos afirmou que já ficou com meninas negras mas nada tão sério Ele não desenvolve o argumento se a falta de seriedade se refletia na pouca idade que tinha para estabelecer um relacionamento duradouro ou se na cor de pele dessas meninas Maju por outra vez diz que não enfrentou preconceito por ter namorado e casado com um homem negro No entanto relembra a discriminação surgiu quando a filha do casal nasceu de cor branca e as pessoas de sua convivência pareciam insinuar que a criança não se parecia com o pai Aí disseram nada a ver com o pai oxe Ela é toda você Nada a ver com o pai porque o pai é meio O pai é negro puxou nada dele Eu acho isso bem delicado de dizer Profa Maju 2018 Ela diz que cortou essa conversa Nessa situação não pesou apenas o racismo das pessoas mas a própria possibilidade de questionamento da honra de uma mulher branca católica e casada Griô menciona que sua mãe sempre afirmava que não queria seus filhos se relacionando com pessoas negras Ele também lembra que desde criança ouvia seu pai comentando que os seus tios só escolhiam moças brancas da cidade para namorar Isso o afetou Só namorei com uma branca uma chamada Ana99 muito branca que ia me visitar na oficina de eletrotécnica do meu pai que consertava rádio e TV E uma vendedora de roupas perguntou à loirinha o que você faz tanto aí nessa oficina ela disse eu namoro com o filho de José Aí a mulher ficou surpresa Eu lembro que ela imitou a Ana não acredito que você namora com aquele rapaz Você branca de porte de postura alta namorando com um negro das pernas cabeludas Eu ouvi isso aí na época Não combina com você aquele rapaz Aquele rapaz tem que escolher o ambiente dele Não gostei muito quando Ana me falou aquilo dali Aquilo me abalou Prof Griô 2018 Ele lembra que ficou com muita raiva da namorada por não o ter defendido e por tê lo contado aquilo com certo ar de riso Griô apresentou com orgulho a namorada branca aos amigos mas quando foi conhecer a família dela foi censurado pois foi apontando como ladrão maloqueiro e maconheiro justamente por praticar skate e street dance Contudo ele considera atualmente que o motivo de maior força para isso foi a cor de sua pele uma vez que a família da namorada era branca Por referência aos gostos e conselhos dos familiares Griô subjetivara uma predileção afetiva pela branquitude embora estivesse sempre sofrendo por ser comparado com esse ser 99 Nome fictício que demos para não tornar identificáveis as pessoas reais dessa narrativa 169 idealizado e desejado Os efeitos desses processos históricos na subjetividade de pessoas negras são discutidos desde a década de 1950 por intelectuais como Frantz Fanon 2008 sendo compreendidos como inculcação de projetos dominantes de embranquecimento No sertão de Alagoas o professor Griô é apenas mais um exemplo de como isso acontece até hoje o que torna ainda urgente a discussão sobre o assunto na região A professora Yewá revelou que em sua família também houve casos de tentativas de interdição na vida amorosa de alguns familiares por outros Quando a sua avó criticava o namoro das moças da família com rapazes negros por vezes abriamse alguns espaços de argumentação contrária Mainha mesmo sempre falava para ela olha dona Maria100 não é assim não porque a minha irmã Eu não sei não porque era que vovó dizia agora é tudo branco Porque eu não sei quem era o branco em casa E essa menina agora tá namorando com esse negro Tem futuro uma coisa dessas Quer dizer inferiorizava só pela questão da tonalidade da pele não olhava a potencialidade da pessoa o caráter da pessoa Não Ela avaliou assim automaticamente quando viu e ela nem era branca viu Risos Mas não se enxergava negra Profa Yewá 2018 Alafim constrói outra cena Ele conta de um primo de pele escura cujo apelido era Negrinho e que se casou com uma mulher indígena da etnia Fulniô Essa mulher também tinha a pele escura A mãe de Negrinho não gostava da nora e a destratava utilizando vocábulos raciais Ela tinha ojeriza Essa negra Essa negra sebosa Negra sebosa tratou uma índia por negra sebosa Mas tinha essa perseguição Foi de um jeito que ela a nora saiu até de casa Prof Alafim 2018 As performances verbais nesse teatro político racializado embasavamse numa linguagem visual onde a cor da pele imperava sobre pertencimentos étnicos para hierarquizar as pessoas Ora a mestiçagem não é um discurso que funciona da mesma forma para qualquer pessoa do sertão Ela é um argumento que só é válido para a autoclassificação ou classificação de pessoas a quem se quer proteger ou garantir algum tipo de vantagem a partir da afirmação de sua pretensa proximidade com a branquitude No repertório cultural local a negritude é uma espécie de masmorra histórica onde se lançam aqueles que lhes desafiam provocam ou lhes causam desafetos Nessa ótica enquanto a identidade branca é um ideal do qual se orgulhar e buscar alcançar a mestiçagem é um código ou uma convenção identitária aplicada a si próprio com fins de obter vantagens possíveis mesmo que fluidas enquanto a negritude é um 100 Nome fictício que demos para não tornar identificáveis as pessoas reais dessa narrativa 170 dispositivo punitivo para promover deliberadamente a desvantagem física ou simbólica de sujeitos da pele escura Nos cenários sertanejos ela emerge como arma em momentos de conflitos perpetuando práticas violentas Ser mestiço é menos pior há menos danos Revela um engajamento no processo de branqueamento social historicamente tão desejado no Brasil No mundo do trabalho não era diferente Nossos entrevistados antes de se tornarem professores foram operários da Fábrica da Pedra vendedoras caixas de supermercado garçons auxiliares nas secretarias de escolas municipais na secretaria de governo da prefeitura no escritório de uma transportadora O que esses sujeitos lembram é que também nesses espaços a percepção racial ou sua discussão não existiam Não havia conflitos e isso se devia não somente ao fato da proximidade de relações pessoais numa cidade pequena ou a importância da competência profissional de cada indivíduo como costuma ser argumentado por eles Também pelo fato de que como eles mesmos rememoram havia uma divisão velada das funções nos ambientes de trabalho uma divisão racializada do trabalho Quanto maior os espaços de saber e poder nas ocupações da sociedade local menos negros existiam Quando provocaram as suas lembranças enxergaram que os contingentes dos altos escalões de cada emprego eram ocupados prioritariamente por corpos brancos enquanto os corpos negros ficavam atrelados a trabalhos com menor salário prestígio social e mais necessidade de força e desgaste físico Quanto mais negra fosse uma pessoa conforme seu fenótipo menos chances tinha de exercer uma função para lidar com o público no comércio por exemplo onde se exigia uma boa aparência As necessidades materiais de sobrevivência também geravam efeitos de embranquecimento Para conseguir os poucos empregos locais era preciso polir a imagem de si alisar os cabelos clarear a pele com maquiagem etc Portanto uma das razões da pretensa ausência de conflitos raciais nos ambientes de trabalho desses indivíduos davase também pelo fato de que a distribuição dos trabalhadores seguia uma hierarquização étnicoracial que não mexia nas estruturas tradicionais de saber e poder político e econômico Não havia ameaça de que os negros chegassem aos altos postos ocupados por pessoas brancas da cidade como os cargos de chefia mesmo nos casos de professoras negras que trabalharam em escritórios como é o caso de Dandara e Yewá Elas permaneceram como auxiliares Isso acontecia apesar de suas funções trabalhistas serem bem exercidas e constantemente elogiadas pelos seus superiores o que conferia um ar de harmonia e benevolência em suas narrativas Contudo elas nunca foram promovidas Dali só saíram quando passaram a exercer outro tipo de trabalho o de professoras Fosse em casa na rua nas praças ou no ambiente de trabalho nos círculos familiares de vizinhança ou trabalhistas as relações pessoais vividas no sertão de Alagoas foram 171 constituídas costurandose ambiguidades entre modernização de algumas estruturas materiais e a conservação de estruturas políticas econômicas e culturais O tão divulgado progresso trazido pelos investimentos privados e públicos no local ao longo dos anos e de que muitos se orgulham foi acompanhado da permanência de valores patriarcais e raciais que naturalizam as segregações e as desigualdades sociais tornandoas subjetiváveis ensináveis e aprendidas enquanto saberes e condutas 53 A educação escolar formal e o ensino de História sobre a invisibilidade negra Essas relações de poder produzidas e produtoras de diferenciações étnicas tiveram nas escolas do sertão um dos seus principais palcos Durante a maior parte da vida os nossos entrevistados foram alunos em escolas públicas Os mais velhos estudaram ainda durante a ditadura civilmilitar Já os mais jovens foram discentes da educação básica durante a Nova República após a reabertura democrática do país e a reestruturação da educação entre os projetos neoliberais e contestações dos movimentos sociais A segunda geração foi aluna da primeira No entanto apesar das diferenças entre os regimes políticos os sujeitos da pesquisa apresentaram características semelhantes da educação escolar sertaneja uma cultura pedagógica de longa tradição embasada na disciplina dos corpos no ensino tradicional cívico e eurocêntrico com práticas sistemáticas de segregação racial As maiores escolas públicas ficam na periferia nas décadas de 1980 e 1990 elas estavam repletas de alunos negros Para Milton havia na cidade uma clara separação racial e social nas escolas delmirenses Nas escolas públicas havia alunos brancos mas predominavam os estudantes negras e negros com baixa renda Já nas escolas particulares estavam apenas os alunos brancos filhos das elites locais Da mesma forma que ocorrera com os relatos sobre as relações familiares de vizinhanças e amigos a narrativa dos docentes mostra um movimento duplo Elas detectam conflitos étnicoraciais nas escolas ao mesmo tempo em que se esforçam para produzir efeitos de adoçamento das relações sociais nas quais eles mesmos eram sujeitos de enunciação e comportamentos Retomam as suas relações históricas com pessoas negras no seu grupo familiar mãe avô marido para dizer que não eram racistas na escola Suas narrativas reconstroem situações em que eles tinham como melhores amigos na vida escolar uma criança negra que era excluída pelas demais e a qual entendiam e protegiam Isso ocorreu com as professoras Yewá Maju Rosa e Tia Marcelina Era tão Era tão sutil mas que a gente percebia enquanto amiga dela A gente percebia e não deixava passar Profa 172 Maju 2018 Em suas memórias alguns alunos negros não eram aceitos nos grupos de alunos nem para fazer trabalhos escolares ficavam isolados e tinham seus desempenhos afetados Dava para perceber uma imensa tristeza não é Como minha amiga era próxima de mim eu pude perceber algumas vezes chamarem ela de negrinha de muita coisa dessas ofensas E ela se isolava Profa Maju 2018 Essas crianças não estavam alheias às dores causadas em seus colegas e de alguma forma mesmo com suas limitações para compreender os jogos que compunham esses processos mobilizavam seus discursos e comportamentos em defesa daqueles que eram fragilizados pela discriminação No mundo escolar infantil não se perpetuavam apenas as exclusões mas também as redes de solidariedade Maju diz que ajudava nos estudos dessa amiga mesmo tendo também algumas dificuldades Entretanto ela afirma que as cenas de racismo aconteciam apenas entre os alunos e não dos profissionais de ensino para os estudantes talvez porque o que ela compreenda como racismo sejam apenas as convencionais práticas de agressão física ou verbal e não as atitudes veladas as negações omissões e tutelas que também circunscrevem a negritude em ciclos de dependência e limitação dos exercícios de poder Eram ainda crianças e só reagiam ao que imediatamente sentiam como algo injusto Yewá também diz que não via diferenças raciais na escola Seu melhor amigo era um menino negro que era costumeiramente desprezado Conforme rememora as meninas não queriam dançar na quadrilha junina com ele mas ela não sabia o que influenciava na exclusão de seu amigo As demais crianças usavam adjetivos como feio mas não faziam alusão direta à cor de pele do menino Em sua leitura de criança Yewá percebia que havia discriminação mas não compreendia qual seria o critério segregacionista em ação ela não o conseguia conectar aos comentários feitos por sua avó em casa a respeito da cor de pele e feiura talvez porque tivesse inculcado o discurso contrahegemônico de sua mãe que rebatia o discurso da avó De toda forma na maioria dos casos de racismo praticados pelas crianças na escola os adultos não estavam por perto Não viam Não intervinham diretamente E não conectar diretamente a cor da pele à discriminação tem sido um dispositivo potente para perpetuar o racismo pois confunde o interlocutor Esses dados nos lembram trabalhos que nos servem de referências para problematização Cavalleiro 2012 realizou uma pesquisa com professores familiares e crianças em uma escola municipal de educação infantil na região central da cidade de São Paulo Fazzi 2012 analisou relações entre crianças do ensino fundamental I nas periferias de Belo Horizonte Nascimento 2018 focou nas experiências de escolarização de jovens negras e negros no município de Delmiro Gouveia Apesar das diferenças entre os espaços métodos e 173 conclusões dessas pesquisas elas apresentam dados semelhantes também encontrados em nossa investigação Cavalleiro 2012 enfatiza o silêncio escolar como uma tecnologia de produção do racismo O silêncio é uma prática constante e difusa dos rituais pedagógicos ele apaga os conteúdos dos currículos e das práticas de ensino exclui as memórias e identidades negras enquanto fortalece a perspectiva do embranquecimento Ele ainda funciona como estratégia de poder nos conflitos entre as crianças para paralisar silenciar estigmatizar e excluir garantindo lhes relações de dominação Conforme a pesquisadora isso é verificável pela precariedade de modelos identitários negros satisfatórios ou positivos e pela abundância de estereótipos negativos nas práticas discursivas que circulam no ambiente escolar entre professores gestores alunos materiais didáticos etc A autora afirma que essa é uma característica sofisticada da discriminação racial que passa despercebida pelos sujeitos que a praticam Já Fazzi 2012 enfatiza o jogo de poder produzido pelas enunciações e não pelos silêncios Ela mostra como as categorias de classificação racial usadas pelos estudantes do ensino fundamental são mais diversas e complexas do que propõe a classificação binária entre negros e brancos Isso torna a relação entre os estudantes brasileiros extremamente manipulável e disputada através dos privilégios sociais que aprendem desde cedo a negociar ou conquistar sobretudo a partir dos argumentos que enfatizam a mestiçagem biológica Tal elemento acirra as tensões raciais mais do que as ajuda a superálas Para ela instalase um drama racial na educação sempre que a categorização pretonegro é classificada pelos estudantes em rituais sucessivos de inferiorização A pesquisa de Nascimento 2018 afirma que na memória dos jovens negros delmirenses é forte a associação das recordações escolares com sentimentos como dor angústia raiva medo e vergonha Esse aspecto também foi encontrado em nossa investigação Todas essas pesquisas destacam o protagonismo dos estudantes na reprodução de relações de dominação racializadas na escola a partir de seus conhecimentos prévios ligados aos saberes que constroem a partir das práticas discursivas da família mídia religião O professor Griô lembra que havia uma distribuição desigual dos afetos entre crianças negras e brancas na escola Para ele as professoras da educação infantil e do fundamental I tinham algum grau de afeto para instruir os alunos mas isso não era equiparado para as crianças negras e brancas Sobre os corpos infantis eram direcionadas leituras racializadas que produziam diferentes avaliações e gestos de afeto ou desafeto Eu não lembro de negro sentado no colo de ninguém Prof Griô 2018 Lembra ele que uma das coisas que mais ouvia na escola inclusive das professoras era o fato de que as crianças negras fediam Para nosso 174 entrevistado as professoras tinham asco de crianças negras sobretudo quando suas peles brilhavam devido ao suor pósrecreio Ele mesmo não era bem assistido na sala de aula As educadoras às vezes iam até às bancas dos alunos para orientálos na realização dos exercícios mas Griô lembra que sentava ao fundo da sala e que as professoras não visitavam a sua banca A justificativa utilizada por elas é de que ele era um menino muito peralta contudo durante a entrevista ele atribui esses episódios à cor da sua pele e não ao seu comportamento Ao mesmo tempo considera que sua timidez nasceu do abandono que sentiu das crianças e dos adultos Esse aspecto da distribuição desigual dos afetos também foi identificado na pesquisa de Cavalleiro 2012 Em sua análise a autora conclui que a escola tem servido ao estímulo positivo de crianças brancas e à introjeção de baixa autoestima em crianças negras Podese afirmar que as crianças brancas são privilegiadas na relação professoraluno pois conseguem com mais frequência identificarse positivamente CAVALLEIRO 2012 p 76 Como diz a autora ao viver numa sociedade racista as pessoas negras acabam interiorizando e reproduzindo a noção de inferioridade de seu próprio grupo étnico como marca que será levada ao longo do tempo por toda a vida social Cavalleiro 2012 atribui diferentes razões ao silêncio do professorado dificuldade em perceber os conflitos raciais o fato de não saberem lidar com a situação a compreensão de que a escola é lugar de ensino e aprendizagem de conteúdos e não de expressão mediação e transformação de conflitos o desinteresse em abordar a temática ou ainda a partilha deliberada de valores racistas Entretanto os silêncios que praticam facilitam a ocorrência de novas discriminações raciais na escola de forma que elas se naturalizem entre os estudantes Destarte os educadores mesmo sem perceber são também sujeitos ativos nos processos de manutenção e propagação do racismo escolar Quando os entrevistados lembram dos trabalhadores de suas escolas percebem e afirmam que nessas instituições também havia uma divisão racial do trabalho Brancos eram gestores coordenadores e a maioria do professorado Negros eram os porteiros merendeiras auxiliares de limpeza Havia poucos docentes de pele escura ainda assim esses profissionais não realizavam discussões sobre questões étnicoraciais sobretudo os mais velhos Mas eu não tenho lembrança de ter professoras negras Agora esses debates sobre questões de cultura afro apresentações na época não existia Prof Alafim 2018 Mesmo com o passar do tempo os professores consolidavam o silêncio sobre a temática étnicoracial como prática pedagógica comum nas escolas locais Milton Santos por exemplo foi aluno do ensino fundamental II e médio após a implementação da Lei nº 1063903 mas afirma que a discussão sobre relações étnicoraciais e cultura afrobrasileira não estava presente 175 no cotidiano da sala de aula mesmo após anos de sua promulgação Para ele a referência mais próxima do tema a que se lembra aconteceu na adolescência A ideia desses discursos raciais eu tive mais acesso no ensino médio A gente tinha mais essa ideia Aí eu comecei a entender que o negro poderia ser motivo de chacota entendes Eu não consigo ter memória sobre isso mas eu lembro que no ensino médio eu tinha um grupo de amigos que eram negros são meus amigos até hoje e eles gostavam de A gente tirava brincadeiras entre nós acho que foi ouvindo brincadeiras de outras pessoas provavelmente e eles começavam a Eles gostavam muito de mexer comigo falando que eu poderia participar dos jogos paraolímpicos ou algo do tipo Aí eu queria saber como machucálos também com piadas Aí sim eu percebi que podia machucálos zombando ou usando o discurso da ideia de negro não é Prof Milton Santos 2018 O grau de amizade entre os alunos não isentava o uso político do racismo como mecanismo de autodefesa O caráter recreativo do racismo expressase no uso de vocabulário cujo fim é machucar Essa linguagem é bélica e não amistosa Ela se vale de agressões verbais para garantir vitórias e derrotas no jogo social dos jovens estudantes Vendo uma dessas cenas a diretora interveio afirmando ao jovem Milton Santos que aquelas brincadeiras dirigidas aos alunos negros se caracterizavam como racismo Para ele essa foi a primeira vez que ouviu esse termo na escola como um alerta e não como tema de debate de ensino e aprendizagem Em sua avaliação as abordagens do ensino de História na educação básica eram bastante programáticas e contava com conteúdos tradicionais sem contemplar temas já requeridos pela legislação brasileira desde a LDB Para ele um dos fatores a que se isso se atribui é o fato de que durante muito tempo a maioria dos professores atuantes na cidade tinham cursado apenas o magistério em instituições com currículos tradicionais Portanto ainda praticavam sua profissão de maneira bem tecnicista e desatualizada ou seja em perspectiva eurocêntrica enfática das grandes datas homens e fatos históricos Nesse sentido não era um ensino de História muito diferente daquele ao qual Rosa Yewá e Alafim tiveram acesso durante a ditadura A história que lhes foi ensinada era apenas a dos grandes heróis nacionais Rosa lembra com ênfase como a sua escola de educação básica enfatizava a disciplina dos corpos e como isso era corroborado pela disciplina doméstica Ela foi muito subjetivada por essas técnicas de disciplinamento das condutas e de uma história aprendida por técnicas de memorização Todos os entrevistados apresentaram um mesmo dado no ensino de História só se falava de pessoas negras quando se abordava o tema da escravidão e da abolição promovida pela princesa Isabel Nesse sentido a presença negra como conteúdo 176 programático pela escola estava estereotipada e reduzida unicamente à escravidão e à data 13 de maio A esse respeito a pesquisa desenvolvida por Nascimento 2018 mostrou que essa prática perdura até à atualidade Nos relatos dos jovens negros que analisou ele percebeu que muitos professores de História do sertão ainda perpetuam a narrativa sobre a abolição da escravatura atribuindo a grandiosidade do ato exclusivamente à memória da Princesa Isabel Os jovens negros não lembraram de discussões sobre os abolicionistas negros ou sobre o papel dos próprios escravos na corrosão do sistema Nascimento recuperou o relato de uma mulher negra que quando criança foi escolhida pela professora para desfilar numa carruagem pelas ruas da cidade vestida de escrava da princesa Isabel Na sua entrevista essa jovem disse que aquele foi um dos piores dias da sua vida tamanha a humilhação pública que passou NASCIMENTO 2018 Ainda hoje as escolas delmirenses recriam cenas teatrais e desfiles cívicos que perpetuam essa memória Importa ressaltar que essa tradição pedagógica se funda no projeto educador implementado pelo empreendedor Delmiro Gouveia no início do século XX Uma educação republicana que defendia e comemorava o fim de instituições arcaicas como a escravidão não por benevolência aos escravizados mas por conveniências políticas e econômicas de dimensões internacionais que impôs novos contratos sociais Uma educação que afirma a pátria mas não o fim do racismo Esses são alguns dos efeitos mobilizados pelas práticas escolares que ritualizam um currículo eurocêntrico aquém das críticas A pesquisa de Nascimento 2018 foi realizada com uma geração de jovens delmirenses posterior a essa segunda geração de professores que entrevistamos nesta pesquisa Ainda assim os dados do historiador sobre o ensino de História exercido no local são muito parecidos aos encontrados por nós o que sugere um quadro de reprodução de valores racistas nesses diferentes quadros profissionais Contudo Dandara introduz um dado novo A primeira atividade de que ela lembra é de uma professora do ensino fundamental lendo para a turma o livro Menina Bonita do Laço de Fita para sensibilizar e elevar a autoestima das crianças negras Ela cita o fato mas não consegue lembrar como aquilo foi discutido nem se teve repercussão entre os estudantes Considera que essa única experiência não foi significativa para o seu aprendizado Portanto consideramos que algumas ações pontuais existiam mas conforme a avaliação dos nossos entrevistados elas eram realizadas de forma tímida e aleatória sem orientações mais adequadas para o aprofundamento do debate étnico pois aqueles seus professores não sabiam sobre o tema avaliam nossos entrevistados 177 As técnicas para invisibilizar corpos memórias e identidades culturais negras do espaço escolar sertanejo continuavam nas práticas curriculares na seleção de conteúdos e temas de ensino nas práticas docentes nas celebrações e performances institucionais de cunho patriótico Alafim nos conta que tanto nas escolas públicas em que estudou na infância e adolescência como também nas que ensinou já quando adulto havia a presença marcante e constante de símbolos religiosos cristãos como bíblias abertas imagens de santos e terços Também o calendário escolar seguia exclusivamente as datas de festejos cristãos Páscoa São João Natal feriados de santos Hoje ele avalia isso de forma crítica mas lembra que na infância isso era um costume colocado como normal ou mesmo necessário à formação moral de boas crianças para que se tornassem bons adultos Já no 2º grau posteriormente Ensino Médio as possibilidades de estudo eram o nível científico ou profissionalizante Os únicos cursos técnicos oferecidos na cidade até aquelas décadas eram Magistério ou Contabilidade ofertados na rede privada de ensino no Colégio Cenecista Vicente de Menezes Ali também havia conflitos Embora professores negros como Yewá Dandara e Alafim não tenham mencionado nenhum fato racista durante o período em que cursaram o magistério na instituição o professor Griô mencionou que seu pai homem de pele não tão escura assim Prof Griô 2018 havia abandonado os estudos naquela escola porque era inferiorizado e zombado décadas antes Destarte consideramos que a escola serviu como laboratório disciplinar dos sujeitos pela introjeção de valores e condutas racializadas perpetuadas pelo currículo Os estudantes sertanejos reproduziam o discurso da mestiçagem biológica mas isso não os livrava de viverem conflitos em que fossem lidos pela cor da pele Eles não aprenderam a naturalizar uma suposta ausência da raça como tanto afirmam mas um silêncio conveniente em relação a ela Afinal para mediar os conflitos entre si eles aprenderam a mobilizar as categorias raciais como brancos morenos caboclos pardos e negros a fim de obter efeitos de discriminação segregação organização hierarquia exclusão negociação de privilégios e desvantagens A categoria branca era compreendida como positiva idealizada e privilegiada as categorias alusivas à ideia de mestiçagem produziam possibilidades de vantagens ou de menor exclusão e menos sofrimentos de modo fluido já a categoria negra fora aprendida como ofensiva e desvantajosa Eles receberam uma educação formal que reforçou a internalização das estruturas do racismo Conforme Fazzi 2006 e Cavalleiro 2012 por viver em uma sociedade racista crianças negras aprendem e perpetuam essa linguagem que é reforçada no interior da escola Rapidamente associase a cor preta e a categoria negra a ideias como fracasso submissão 178 vergonha e medo enquanto à cor e categoria branca associamse os privilégios da visibilidade e aceitação Para conquistar algumas benesses mesmo que temporariamente muitos alunos da educação básica almejam tornaremse brancos mesmo que isso só seja parcialmente conseguido através do argumento da mestiçagem As experiências escolares dos estudantes do sertão alagoano compõem o elenco de exemplos acerca de como o discurso democrático da educação ainda na Nova República permanece comprometido com a branquitude como já denunciava o movimento social negro pois embora a escola fosse tida como um lugar para crianças negras ela ainda funcionava como um nãolugar para as suas negritudes servindo fortemente como mecanismo de barreira à superação do racismo Nessa cultura escolar manifestase uma linguagem racista enquanto sistema de significação sob a qual repousam muitas heranças da educação republicana implementada pelo empreendedor Delmiro Gouveia no início do século XX positivista eurocêntrica racialista autoritária e intolerante mesmo que atualizada pela retomada de processos políticos econômicos e culturais conservadores e estruturantes da desigualdade contemporânea através da ditadura civilmilitar e do desenvolvimento do neoliberalismo 54 As relações dos sujeitos com a cultura afrobrasileira o caso das religiões de matriz africana no sertão Um aspecto importante que apareceu nas entrevistas foi a religiosidade de matriz africana como referência de cultura afrobrasileira Quando foram perguntados sobre se tiveram quaisquer tipos de experiência com alguma prática cultural negra sete deles afirmaram que já tiveram contato com algum fenômeno espiritual ligado ao candomblé ou umbanda Apenas a professora Maju não aludiu a essas religiões mas sim a gêneros musicais como o reggae Dandara e Alafim lembraram dos blocos carnavalescos como o Ilê Ayê e a escola de samba Unidos da Pedra Velha mas citaram também as religiões afrobrasileiras Esse é um dado importante a força e o centralismo das religiosidades negras como principal referência da cultura afrobrasileira para esses profissionais Ainda assim a maioria deles declara não saber nada ou quase nada sobre essas religiões Nas concepções desses docentes os cultos de matriz africana estão acima de outras práticas e formas de expressão cultural como os saberes instituições musicalidade ou corporeidade Essa compreensão limita bastante a própria noção de cultura o que já é algo problemático No momento em que narram sobre essas experiências com os fenômenos espirituais afro percebemos os sentidos e os tons que sustentam o que eles julgam saber e não 179 saber sobre esses modelos religiosos Suas concepções não foram construídas de modo fácil compreensível e harmônico mas contrariamente em diferentes momentos de suas vidas as cenas religiosas a que tiveram acesso com suas festas comidas artefatos e incorporações espirituais foram delineadas por práticas discursivas que instalaram mistérios incompreensões estigmas medos e conflitos Isso se torna compreensível quando analisamos alguns números No período aqui analisado a cidade de Delmiro Gouveia possuía uma população predominantemente cristã A maior parte das pessoas se declarava católica apostólica romana O número passou de 25607 nos anos 1980 para 38293 mil pessoas na década seguinte Outra parte considerável da cristandade local embora bem menor correspondia aos evangélicos Distribuídos em diversas doutrinas em 1980 eles somavam apenas algumas centenas 571 pessoas Já uma década após eles passaram a ser 6691 pessoas De outro lado aumentou o número de pessoas que declararam não ter religião Se em 1980 elas eram apenas 488 pessoas passaram a ser 2155 em 1990 Também diminuiu de 35 para nove a quantidade de pessoas que não declarou nada quanto à vida religiosa Em todos esses grupos aparecem contingentes de pessoas declaradas pardas brancas e pretas Dados curiosos surgem quando passamos a pensar os grupos de outras experiências religiosas Conforme o censo de 2000 ninguém se declarou ser praticante do candomblé ou da umbanda na cidade mas 125 pessoas se declararam espíritas Os pretos não aparecem nesse grupo Isso pode se dar em decorrência das perspectivas de embranquecimento e positivismo que repousam na base epistemológica da doutrina espírita o que ajuda a reforçar o discurso local de ênfase na mestiçagem Também acreditamos que devido à discriminação histórica que os cultos afro passam muitos adeptos do candomblé e umbanda podem ter se declarado como católicos espíritas sem religião ou mesmo nada Esse dado já é diferente dos encontrados no censo da década de 1980 pois ali apareceriam outras categorias religiosas 39 pessoas haviam se declarado praticantes de outras religiões sem especificidade 24 se declararam espíritas afrobrasileiros Essa categoria deixou de existir no censo de 2000 que adotou especificações como candomblé e umbanda Justamente nesse novo momento as pessoas não se declararam como praticantes das religiões afrobrasileiras Eles existiam mas preferiam não assumir suas identidades religiosas A presença de rituais de cura orientação ou proteção é captada nas narrativas dos próprios docentes Rezadeiras garrafadas consulta às cartas incorporações oferendas festas todas estas práticas são citadas mostrando a capilaridade cotidiana que a diversidade religiosa consegue perpetuar 180 silenciosamente no sertão em contraposição aos dados oficiais levantados nos dados do IBGE nas últimas décadas para a região A pesquisa de Torres 2019 sobre a biografia da yalorixá delmirense Mãe Érica de Oxóssi discute elementos constituintes dessa diversidade que se liga complexamente no cotidiano dos sertanejos independente de classe social etnia gênero ou sexualidade O professor Milton Santos diz que sempre que adoecia na infância ia a uma rezadeira buscar a cura e pagavalhe com um corte de fazenda101 A prática da reza é uma tradição muito comum na região e pela fusão de elementos católicos não parecia ser desviante do padrão religioso local daí sua maior aceitação em relação aos cultos afrobrasileiros por exemplo A tia da garrafada ela é católica Católica fervorosa Fervorosa meu irmão Agora é aquela católica fervorosa que tem suas orações tem suas mandingazinhas tem suas misturas de ervas Prof Alafim 2018 Entretanto essa leitura não se repete sempre A professora Rosa contou sobre uma irmã sua que rezava incorporava revelava profecias e curava os aflitos mas o adjetivo que ela usa para qualificar a sua irmã quanto a isso é perturbada Assim ela desloca a personagem da concepção de uma pessoa normal para os padrões culturais daquela época e lugar Em seu discurso aquela perturbação se devia ao grau de afastamento da ortodoxia romana e de proximidade ao catolicismo popular aberto permissivo e híbrido com práticas afroindígenas Alafim nos conta que em Delmiro Gouveia não existiam muitos terreiros A maioria deles era de umbanda e não de candomblé e ficavam às margens da cidade distantes perto dos matos Quase invisíveis Você vê os terreiros eram escondidos Eles acabaram ficando dentro da cidade porque a cidade cresceu Mas tia Cabocla morava aqui no Aonde o vento fazia curva Aqui já no finalzinho do Bairro Novo Prof Alafim 2018 Para ele predominavam as mulheres nas religiões afro mas também há homens que marcaram a memória coletiva como um dos carteiros da cidade que é babalorixá e tem a casa de candomblé mais antiga em funcionamento da região e o já falecido quimbandeiro Antônio Cascavel que era bem conhecido entre os populares pela força de seus trabalhos espirituais Eu lembro que diziam que quando ele tocava para Exu as paredes estremeciam O axé era para sentir o A energia 101 Essa relação com o universo espiritual não pode ser compreendida como consequência exclusiva da falta de estrutura material da cidade e dos elevados índices de mortalidade infantil Uma leitura desse tipo reforçaria a interpretação estereotipada de que os sertanejos seriam caracterizados pela superstição alienação e atraso As pessoas não recorriam aos métodos religiosos apenas por falta de métodos científicos no local mas por diversas razões De um ponto de vista da história cultural das religiões devemos pensar as práticas religiosas não como formas de alienação mas como expressão de vida com lógicas existenciais próprias Por diferentes razões os sujeitos muitas vezes escolhiam as rezas e outras formas de consultas espirituais por preferência a elas em detrimento de tratamentos médicos 181 do Exu na casa dele Eu lembro até desses comentários Aí dava até um certo medo não é De ir pra casa Prof Alafim 2018 É muito comum nas narrativas desses professores a referência ao medo infantil em relação aos cultos de matriz africana e seus adeptos como consequência dos comentários dos adultos Mas as próprias crianças recriavam os argumentos que sustentavam seus medos fantasiosos A professora Rosa lembra que quando era pequena sempre que se falava em espiritismo associavase à ideia de macumba Ela conta que havia uma vizinha estigmatizada como macumbeira pelas pessoas Todas as crianças tinham medo dela Conforme Rosa era um medo tão grande que interditava o trânsito dessas crianças pelo espaço da própria rua onde moravam Quando eu era criança tinha um pessoal que diziam que eles faziam macumba Eu nunca vi nada mas ela era uma senhora usava umas saias compridas Todo mundo tinha medo dela e de ir à casa dela Então ficava esse misto de que ela era macumbeira A gente não olhava nem pra ela com medo dela fazer uma macumba e nos matar nem passava na porta porque eu não sabia o que ia acontecer Profa Rosa 2018 Não eram só as interdições adultas que atravessavam as imagens dos cultos afro Também havia muito de suas permissões sobretudo quando os familiares frequentavam os espaços dos terreiros Alafim lembra que era levado por sua avó ao terreiro da yalorixá Dona Cabocla para a festa das crianças ia comer os carurus e ganhar doces Tia Marcelina lembra que sua mãe a levava para um terreiro na rua Tiradentes Contudo as crianças não compreendiam bem que locais e comportamentos eram aqueles O mistério envolvia os olhares infantis criados numa sociedade nomeadamente cristã Griô diz que a mãe os levava para a terra natal dela Ibimirim PE onde ela participava de alguns rituais Ele lembra de um quarto com algumas imagens de santos e símbolos religiosos que ele enfatiza não serem das religiões afro mas do catolicismo popular Ele não citou em momento algum as passagens que sua irmã professora Tia Marcelina contou Não se sabe se isso se deve aos próprios lapsos de memória ou a esquecimentos propositais com vistas a omitir perspectivas e compromissos que sua mãe realizava Já Tia Marcelina relatou que cresceu vendo sua mãe cortar baralhos ou seja consultando o jogo de cartas em sua própria residência Ela lembra que chegavam visitas em sua casa que cantavam rezavam incorporavam espíritos jogavam cartas A maioria dessas pessoas eram negras Ela não sabe de onde vinham mas sempre que chegavam transformavam a rotina do lar em uma experiência sobrenatural a qual não entendia bem 182 Ainda na narrativa de Griô dois momentos se destacam por seu caráter impressionista O primeiro referese à visão de um espírito por sua irmã a professora Tia Marcelina que por sua vez não narrara esse fato Eu encontrei um cachimbo e em seguida encontrei fumo coloquei o fumo para secar no telhado No outro dia minha irmã acordou assustada Ela viu um menino negro somente com um dente com roupa de saco rindo para ela Prof Griô 2018 No sertão as etnias indígenas fazem uso cotidiano de cachimbos e fumos para fins ritualísticos A mãe desse docente é indígena Entretanto esse objeto também é usado em alguns rituais afrobrasileiros Talvez o professor tenha feito essa associação entre o uso litúrgico do cachimbo e a aparição do menino negro mas isso não ficou claro A segunda narrativa busca justificar a falência de seu pai e o fechamento de sua loja de móveis pela presença do diabo no interior da loja Certo dia ele o pai encontrou em cima do guarda roupa elementos do candomblé Uma galinha ou um frango não sei não entendo muito bem Velas não sei se vermelha ou preta encontrou Ele cético jogou fora Uma católica médium tentou comprar uma geladeira lá Isso segundo o que ele me falou milhares de vezes Pisando o pesinho lá no batente ela caiu desmaiada umas duas vezes Certo dia ela o chamou dizendo venha aqui consertar uma antena porque ele também sempre foi eletrotécnico Então no ambiente da loja dele também existia um setorzinho um quarto lá amplo pra se consertar TV e rádio Ele já estava migrando para o que ele sempre foi porque vender móveis já não dava mais Então nesse processo de migração102 ele foi trabalhar na casa dessa mulher para consertar Um amigo o chamou à parte e disse Zé que era o apelido dele o nome dele é José103 Zé na tua loja não tem um mal ou outra coisa não lá dentro tem o próprio diabo Prof Griô 2018 Griô não sabe explicar ao certo que objetos foram encontrados pelo seu pai Ele mesmo admite não entender bem sobre o candomblé mas a narrativa construída associa o nome dessa religião aos apetrechos encontrados e à afirmação das pessoas sobre a presença do diabo embora ele explique também que a falência dos negócios de seu pai estivesse associada à crise econômica no estado de Alagoas durante a década de 1990 Como narra seu próprio pai já estava executando um trabalho complementar para garantir renda mas essa consciência ele adquiriu já adulto Durante muito tempo ele acreditou na narrativa mística Outro dado importante é que como deixou escapar no auge dos lucros o seu pai gastava muito dinheiro com relacionamentos fora do casamento com vida boêmia Mas a versão mais partilhada socialmente relacionava o fracasso econômico de seu pai à presença e aos poderes 102 Referese à mudança do tipo de trabalho que o pai exercia de microempresário para eletrotécnico 103 Nome fictício que demos para não tornar identificáveis as pessoas reais dessa narrativa 183 do diabo em sua família casa loja Talvez a sociedade local estivesse culpando a mãe de Griô já que ela era uma praticante de outras religiosidades Entretanto o que foi subjetivado e ficou na memória de Griô era um tipo de certeza e de medo que aprendeu a ter a partir da cultura local quanto aos efeitos destrutivos das macumbas na vida das pessoas assombrações assustadoras ou ser arrastado para a pobreza O que ficou nas lembranças foi uma mescla de estranhamento das práticas religiosas não cristãs e as cargas semânticas pejorativas sobre elas sendo referenciadas como macumba e atreladas ao medo ao empobrecimento a brigas e desastres de todos os tipos Atribuise a elas a figura do diabo um símbolo que faz parte do repertório mítico judaicocristão Isso se intensificou na vida dos professores Griô e Tia Marcelina pois quando adultos eles se converteram ao protestantismo Já Dandara teve uma tia que foi iniciada no candomblé por apresentar sintomas de fenômenos espirituais em casa A narradora usa a expressão doidona para descrever o estado comportamental de sua tia quando esses fenômenos ocorriam Lembra que houve piadas no grupo familiar e algumas censuras por ela frequentar o candomblé embora não tenha ocorrido exclusão familiar aí eu lembro que meu pai falava eita agora sua tia está lá com o macumbeiro Está lá andando para Pedro Carteiro104 não sei o que ela viu Profa Dandara 2018 Além da família os vizinhos as pessoas da cidade comentavam nos espaços públicos com ar de espanto ou de deboche a adesão religiosa dessa tia o que causava sintomática indignação e constrangimento aí você sabe que numa cidade pequena Aí diziam Eita a tua cunhada agora está em Pedro que eram aqueles comentários não é Profa Dandara 2018 Ela mora na periferia onde há terreiros Quando criança Dandara tinha uma amiga com quem brincava muito Quando brincavam até tarde da noite a mãe de Dandara autorizava que ela e seus irmãos acompanhassem a amiguinha até à casa dela desde que voltassem logo mas ao passar pela casa de Dona Nalva105 e ouvir os batuques as crianças não seguravam a curiosidade Gostava Tinha medo às vezes dependendo do que fosse mas lá de casa dava para ouvir quando tinha Eita hoje tem coisa na casa de Dona Nalva vamos para lá E quando era a festa de Cosme e Damião é que a gente ia mesmo para lá Às vezes aí quando a gente chegava em casa olha mãe João106 ficou na janela dando grito e estava tendo aqueles negócios na casa de Dona Nalva 104 Nome fictício que demos para não tornar identificáveis as pessoas reais dessa narrativa 105 Nome fictício que demos para não tornar identificáveis as pessoas reais dessa narrativa 106 Nome fictício que demos para não tornar identificáveis as pessoas reais dessa narrativa 184 Aí ela disse deixe disso É feio Para que vocês foram lá Era para ter levado Ana107 e vir direto para casa Profa Dandara 2018 Dandara pondera que quando se ouviam os toques e ficavam sabendo que ela distribuiria doces de São Cosme e Damião era grande a correria para chegar à porta de Dona Nalva A vontade e a alegria de comer doces se tornava maior que o medo dos espíritos Outra vez Dandara brincava de esconder na casa de Dona Maria108 uma amiga de sua mãe Ela lembra que na casa dessa senhora havia um quartinho cujo acesso era proibido Mas para esconderse ela entrou no quarto e viu um pequeno altar com algumas coisinhas e logo lembrou dos altares da casa de Dona Nalva que ela via pela janela quando observava os toques Dona Maria recebia espíritos e rezava os doentes mas ia às missas então publicamente declaravase católica Para Dandara essas experiências a fizeram não estranhar as religiões afro Porém devido às interdições dos adultos ela mesma não conseguiu obter proximidade suficiente para construir um saber compreensivo em relação a esses cultos Houve também algumas vivências ocorridas no âmbito da educação formal Alguns professores como Alafim possuem uma longa experiência em discutir os cultos afro brasileiros em sala de aula Isso devese muito ao fato de que ele é adepto do candomblé e em sala de aula transforma o tema em conteúdo específico a fim de desconstruir preconceitos Milton Santos chegou a ser aluno de Alafim e teve a oportunidade de visitar terreiros com fins de realizar pesquisa escolar Para Milton Santos esse processo não foi tão difícil porque ouvia comentários animadores e convites de seus amigos eu frequentei o candomblé acho que com 13 14 anos Comecei a ir no terreiro de Pedro Carteiro Ia mais pela folia ou por pesquisas escolares ou ia por já gostar de festas Prof Milton Santos 2018 Ao chegar no terreiro uma surpresa Então fui com 14 ou 15 anos E eu via pessoas que eu não sabia no dia a dia que eu conhecia mas que eu não sabia que eram do candomblé Então eu comecei a ter a impressão que essas pessoas estavam com Elas escondiam essa identidade entendes Identidade íntima delas que não aparecia popularmente até porque fora isso era muito comum ouvir como macumba ou como sacrifícios Eu cresci ouvindo isso sobre o candomblé mas como acontecia aí eu não consegui dissociar dessa imagem Prof Milton Santos 2018 107 Nome fictício que demos para não tornar identificáveis as pessoas reais dessa narrativa 108 Nome fictício que demos para não tornar identificáveis as pessoas reais dessa narrativa 185 O quadro de surpresa revelado por Milton Santos é muito parecido com o que Alafim já vivera no passado embora a sua reação tenha sido um pouco menos comedida Mas na época havia um certo pre É um preconceito disfarçado daquele povo metido a branco metido intelectualóide que metia o cacete mas quando precisava venha Fazia trabalho na casa de Dona Cabocla fazia um trabalho na casa de seu Joãozinho Oxe eu chegava lá que via o povo oxe logo aqui Prof Alafim 2018 A presença do candomblé também marcou a vida dos professores já como profissionais do ensino por outras experiências que não a da pesquisa ou do debate mas de uma presença mística que se afirmava no espaço escolar ou além dele Alafim e Yewá citam com informações diferentes o caso do já falecido professor Tiago109 de Filosofia Alafim explica que o referido docente estudara para ser ordenado padre pois era de uma família católica muito tradicional Entretanto devido a problemas de saúde procurou auxílio do candomblé e ao obter a cura por meio de uma promessa feita aos orixás iniciouse nesta religião Conforme Alafim enfatiza aquele fato foi um escândalo na região Tiago era filho de Oxalá e assumiu publicamente a sua identidade religiosa nos espaços públicos da cidade inclusive nas escolas onde dava aulas Essa informação é reafirmada no discurso da professora Yewá que trabalhou durante alguns anos com Tiago Ela lembra que esse professor se vestia de um modo específico conforme os princípios de sua religião às sextasfeiras ele só andava de branco Ele dava aula de branco Ele era assumido Ele assumiu mesmo a religião dele deixou o catolicismo e assumiu o candomblé Profa Yewá 2018 Essa fala confirma a informação de Alafim de que o referido professor era filho de Oxalá pois os filhos desse orixá vestemse de branco todas às sextasfeiras seu dia votivoPorém o professor de Filosofia não se tornou um ícone apenas por fazer o caminho inverso do cristianismo predominante na região e assumir a identidade candomblecista Sua presença tornarase não apenas exótica aos olhos dos delmirenses mas também temida pelas formas como se expressava na vida pública da cidade Tiago tinha muitas questões porque ele era do candomblé Às vezes em sala de aula ele tirava o chinelinho Quando ele tirava o chinelinho a gente já sabia Ele não tinha essa disciplina que eu acho que deve ser uma exigência do candomblé De vez em quando ele acenando a cabeça em sinal de positivo para afirmar que o professor incorporava uma vez mesmo lá em casa ele pulou na piscina Ele não sabia nadar Ai meu Deus Ele vai morrer Fiquei 109 Nome fictício que demos para não tornar identificáveis as pessoas reais dessa narrativa 186 apavorada E os meninos pularam dentro da água mas ele tinha isso aí talvez isso fizesse com que as pessoas pensassem assim ah é do mal Profa Yewá 2018 Ela lembra que as pessoas da cidade até hoje associam a ideia de candomblé ao mal Colegas e alunos do professor candomblecista não entendiam o que se passara e tinham muito medo Yewá diz que quando ele estava incorporado falava como uma criança pequena Tirava as sandálias e se comportava de modo infantil Por isso pulou incorporado na piscina da casa dela durante uma reunião de confraternização entre os professores Ninguém esperava ninguém sabia o que fazer apenas ficavam assustados Rosa lembra que frequentou os cultos afrobrasileiros quando adulta por influência do marido Deixou de ir aos rituais porque se decepcionou pois avalia ela estava sendo enganada pelos adeptos e só percebeu isso quando Deus atendeu as suas preces e lhe mostrou a verdade Ela afirma que é contra os valores que eram pregados entre os adeptos das religiões afrobrasileiras com quem conviveu vingança maldade e mentira Seu discurso busca validade na afirmação de que conviveu com essas pessoas e era isso que as via praticar A proximidade seria o fator de legitimidade que expurgaria possíveis dúvidas de seu interlocutor quando a ouve julgar as religiões afrobrasileiras Seu discurso assemelhase aos produzidos no Brasil entre a passagem do século XIX ao XX nos quais as religiões afro eram julgadas por cientistas jornalistas cristãos policiais e políticos como práticas de superstição e charlatanismo GOMES 2013 Mas não só isso ele está em consonância com os discursos autoritários como fundamentalismo e racismo que aparelham o Estado brasileiro desde o golpe de 2016 É preciso considerar que Rosa é católica praticante Ela faz parte de um grupo chamado Conexão com Deus no município de Paulo Afonso BA onde reside Contudo ela afirma que sua leitura sobre as religiões de matriz africana não é em momento algum influenciada pela doutrina cristã a qual professa Em sua narrativa o mérito pela forma como entende e avalia essas religiões é creditada aos próprios adeptos para legitimar sua tese e negar a influência de argumentos cristãos no seu próprio discurso Embora afirme que não tem preconceito com esses cultos os enunciados da professora Rosa estão repletos de avaliações adjetivos e metáforas que os desqualificam o tempo todo Destarte percebemos que o medo em relação às religiões afrobrasileiras decorria não apenas de uma forma de desconhecimento dos professores sobre elas mas principalmente de um tipo de saber que construíram sobre elas no meio social um saber rico em estereótipos incompletudes e estigmas que os acompanhou até à vida adulta sendo constantemente atualizado 187 Embora a sociedade assumisse discursivamente uma moral cristã o que se percebe é um movimento duplo nessa história Primeiramente a fragmentação dessa moral em muitas outras negociadas reconstruídas e vividas ao bel prazer das necessidades e conveniências de cada sujeito que se reconstrói a partir das múltiplas referências de que dispõe na região Isso se percebe quando muitos professores mencionam que compareciam às missas por obrigação ou para ter um motivo de sair de casa e ir ver os amigos quando falam das rezadeiras dos batuques dos doces de Cosme e Damião entre outras práticas religiosas ali presentes Não há uma moral cristã que conseguiu impor interdições absolutas e definitivas na vida dos sertanejos mas uma diversidade de práticas religiosas coexistentes conectáveis e disputáveis cujas imagens são produzidas não por silêncios mas por discursos que estereotipam e escamoteiam Em segundo lugar o fato de que mesmo que essa moral cristã não seja total ela ainda resiste de forma hegemônica Tanto é que é a partir dela que se constrói um saber dominante e excludente em relação aos cultos afrobrasileiros Como afirma Foucault 1984 a moral é um espaço de lutas entre as vontades sociais e as vontades subjetivas onde se manifestam os movimentos contraditórios da alma Essas lutas são alimentadas por práticas discursivas cunhadas no tecido social logo as lutas que se instalaram nas subjetividades dos nossos narradores em relação ao tema foram construídas por meio da interdição dos silêncios dos estereótipos e dos medos Uma questão que colocamos para reflexão é justamente sobre a centralidade das religiões de matriz africana nas concepções desses docentes como imagem típica e latente da cultura afrobrasileira Um tema que lhes é de tão forte referência frente à obrigatoriedade de ensinar sobre a cultura negra causa expectativas sejam elas esperanças ou angústias que atualizam seus medos Justamente em relação às religiões afro eles possuem histórias de vida nas quais subjetivaram práticas discursivas permeadas mais por depreciações do que por valorização De alguma maneira essas experiências servem como solo movediço nos momentos em que se deparam com o desafio de transformar as religiões afrobrasileiras em conteúdos nas suas práticas de ensino de História 55 As relações étnicoraciais nas histórias de vida dos sertanejos ambiguidades conveniências e reproduções do racismo As histórias de vida desses sujeitos são fortemente marcadas pela racialização enquanto dispositivo de produção de identidades e de segregação Por mais que os dados demográficos ou as entrevistas busquem ressaltar a mestiçagem enquanto característica de mistura ou 188 integração o que percebemos é que a depender das situações sociais e dos interesses dos sujeitos o que prevalece não é a fusão da mistura em termos democráticos mas ao contrário a sua organização hierarquizada cujo efeito é a garantia de privilégios para uns e de desvantagens para outros Nossos entrevistados reproduziram inúmeras vezes o argumento da mestiçagem biológica e da proximidade afetuosa com algumas pessoas negras como um aspecto fundamental para que não conseguissem perceber a existência de diferentes etnias nem o racismo Assim em seus discursos encontramos relações interdiscursivas com a tese da democracia racial A partir de suas memórias eles se posicionam como pessoas que não se importavam ou não se incomodavam com as diferenças étnicoraciais em suas relações sociais Isso não só os faz amenizar recordações de conflitos raciais mas os desloca da condição de serem reprodutores do racismo Durante as entrevistas percebeuse inclusive que eles ficaram bastante constrangidos quando tinham de reproduzir as situações e falas racistas de que lembravam Refaziam diversas estratégias discursivas num esforço para não se demostrarem colaboradores daquela realidade Isso não quer dizer que vivessem sem praticar o racismo Do contrário as formas como foram subjetivados os habituaram à conveniência do silêncio ou dos enunciados moralistas No primeiro caso o silêncio operava táticas cotidianas de invisibilização hierarquização distribuição desigual de bens e privilégios além de segregação No segundo referente aos discursos ditos temos um efeito ainda mais devastador A perversidade e gravidade da forma assumida pelas práticas discursivas racistas não reside apenas nas táticas de silenciamento e sim nas manipulações estratégicas das reais intenções que essas práticas produzem e põem em funcionamento Percebase que elas confundem os interlocutores pois nunca é dito claramente que uma pessoa não gosta de outra pelo fato de ser negro mas pelos atributos considerados imorais que são associadas às pessoas negras Isso é feito pelo uso de adjetivos morais e não raciais Disso decorre um movimento duplo A moralização do discurso constrói a imagem de uma pessoa não como racista mas como uma pessoa de bem afinal ela não estaria discriminando raças mas comportamentos imorais Ao mesmo tempo funciona atualizando e reforçando estigmas de imoralidade criados historicamente para discriminar segregar e excluir a população negra Nessa lógica explicativa uma pessoa não é excluída simplesmente por ser negra mas por ser tida como maconheira marginal por ter mau cheiro porque é briguenta demoníaca dentre outras atribuições Tudo isso confunde os interlocutores Para tanto essa confusão não é mero acidente Ela é um efeito do projeto de dominação originado no 189 escamoteamento do discurso racista de sólidas bases históricas políticas econômicas e culturais como vimos Essas asserções não são silenciadas mas ditas de formas disfarçadas nas enunciações moralistas da sociedade sertaneja uma vez que ninguém gostaria de ser desqualificado moralmente dentro dos preceitos e códigos culturais locais Foram justamente estas enunciações que atravessaram as histórias de vida e as subjetividades dos docentes entrevistados produzindolhes saberes étnicoraciais interessadamente ambíguos cujas consequências políticas de seus usos sociais são nefastas e perversas Isso se explica pela força que os discursos moralistas exercem nos processos de subjetivação e nas formas de governo das condutas humanas Jessé Souza 2018 define a moralidade como a capacidade simbólica de ação centrada em propósitos práticos da vida social A moralidade é uma construção histórica produzida e partilhada socialmente entre disputas por distinção e prestígio social elementos que redefinem os desejos e possibilidades de exercício de poder nas sociedades contemporâneas para além do dinheiro Esse modelo de moralidade tem um perfil eurocêntrico racionalista e burguês É um efeito da modernidade e portanto repousa sobre práticas discursivas que separam e organizam o mundo a partir de discriminações binárias Daí que tal moralidade seja um artefato de poder visto que repousa sobre dispositivos hierarquizados de virtude e torpeza os quais servem de medidas para o nosso pragmatismo existencial Nesse sentido podemos dizer que a moral é um saber uma posição um dispositivo de subjetivação que molda singularidades e cujo valor existencial social e político reside nas escolhas que cada pessoa faz entre aquilo que é institucionalmente estabelecido e compartilhado como bem ou mal verdadeiro ou falso certo ou errado justo ou injusto Deste modo poderíamos dizer que a moralidade faz parte do a priori histórico dos sujeitos É dessa construção social que se produzem as leituras e compreensões dos indivíduos conciliandoas às suas decisões e atitudes cotidianas As concepções positivas ou negativas que cada pessoa faz de si mesma e dos outros estão imersas nos julgamentos socialmente pré estabelecidos Elas contornam os nossos afetos e desafetos Para entender essa relação ambígua e de varáveis efeitos políticos entre sujeitos e contextos históricos é preciso problematizar a genealogia das hierarquias morais que habitam os indivíduos produzindolhes distintos critérios de identificação e orientandoos em suas práticas cotidianas A moralidade materializase e perpetuase entre instituições como família escolas igrejas empresas pelas quais dotase de valores afetivos e intimistas nas relações pessoais Daí a força como penetram nas subjetividades habitando a alma de cada sujeito Desobedecêlas é 190 percebido não só como ato desviante mas traidor Revestindose de sentidos de lealdade e dignidade afeto e dependência esse discurso de moralidade é elitista Ele preserva e atualiza os jogos inconfessáveis de dominação que produzem as injustiças sociais Ele torna as formas de resistência em desvio traição imoralidade e crime Impõe a subjetivação da culpa nas pessoas que praticam deslocamentos conceituais comportamentais éticos e estéticos Isso é realizado a partir de jogos de poder que produzem uma realidade inconfessável que escamoteia as formas de opressão moralizandoas para serem aceitas como naturais benéficas justificáveis e necessárias Isso foi construído na modernidade a partir da secularização de certos princípios éticos cristãos tais como a ética individualista a disciplina a produtividade do trabalho o expressionismo de sentimentos puros SOUZA 2018 A aglutinação de tais fundamentos produziu não uma única moral mas diversas que por sua vez são hierarquizadas e correspondem à distribuição assimétrica dos direitos políticos lugares de fala e das justificativas aceitas ou não como válidas para o convívio social As distintas morais refazem a complexa trama dos jogos de poder enquanto alteram a autoestima dos próprios indivíduos e de suas experiências sociais Essa moralidade hierárquica naturaliza a compreensão do mundo Ela desresponsabiliza as ações das elites produtoras de desigualdades históricas para atribuir os efeitos dessas desigualdades às pretensas capacidades naturais ou aos distintos perfis morais dos próprios sujeitos vitimizados Assim ela cede lugar ao culturalismo conservador embasado em argumentos racistas SOUZA 2018 Logo a moralidade é também um saber racista No caso do Brasil por exemplo critérios como cor de pele ancestralidade pertencimentos étnicos e práticas culturais foram separados classificados e ordenados de forma desigual A moralidade brasileira é herdeira do modelo social estruturado na instituição escravocrata SOUZA 2018 Nesse sentido além dos princípios éticos secularizados ela privilegia os binarismos raciais Ser ou não ser uma pessoa negra seja por cor de pele seja por padrão moral importa muito em nosso jogo nacional de poder Deste modo as pessoas não aprendem declaradamente desde cedo a serem racistas mas a serem disciplinadas cristãs racionais produtivas e respeitáveis Por isso confundem e não enxergam as bases racistas de sua moralidade Produzemse outros argumentos para justificar relações sociais e raciais injustas escamoteando sentidos confundindo os interlocutores e perpetuado os jogos de dominação Sem essa estratégia as elites e classes médias brasileiras não conseguiriam produzir e preservar seus privilégios políticos econômicos sociais culturais e raciais 191 O pertencimento e solidariedade às categorias raciais não negras brancos e mestiços associados à partilha da moralidade elitista cria indiferença às dores de pessoas negras tidas como inferiores e desviantes Destarte essas experiências sofridas sequer são percebidas como adversidades dolorosas mas como resultados adequados de vidas indignas e imorais e por isso mesmo justificáveis aceitáveis Isso torna o pensamento não apenas confuso e hesitante em desconstruir práticas racistas mas também indiferente Não se consegue perceber sequer as raças quiçá o racismo Apenas morais boas ou más superiores ou inferiores perpetuáveis ou aniquiláveis O discurso moral constrói não só a existência do racismo como também torna injustificável a luta antirracista Esse é seu efeito mais perverso negar a opressão confundir compreensões impossibilitar a contranarrativa desmobilizar processos de subjetivações políticas distintos implodir lutas Assim as desigualdades raciais e sociais são reforçadas apesar da pretensão formal de igualdade jurídica entre as diferentes pessoas O lucro dessa moralidade é a pessoa pensarse ainda como branca ou no máximo mestiça focada em processos de embranquecimento mas nunca como negra A virtude moral é branca A glória moral é poder distinguirse e reforçar privilégios ao compararse com a população negra herdeira histórica dos abandonos esquecimentos silenciamentos ódios e humilhações antes dirigidos aos escravizados São essas práticas que retroalimentam os sentimentos de sadismo e prazer inscritos na moralidade da classe média e das elites brasileiras SOUZA 2018 Essa construção da subhumanidade dos pobres e negros SOUZA 2018 essa humilhação partilhada e subjetivada encontra sua eficácia na repetição cotidiana na lembrança atualizada que é refeita em múltiplos rituais simbólicos para frear as sabotagens diárias praticadas por aqueles que não deixam de ser humanos Sua função moral é agir enquanto contrarresistência ao negro O que explicaria o fato dessa moralidade ser praticada no sertão alagoano no período por nós analisado é o fato de que ela não se restringe apenas às elites e às emergentes classes médias mas também se difunde em diferentes ritmos como valor justificável benéfico e necessário entre as classes populares É a propagação de uma cultura moral entre as diferentes classes e categorias sociais que ajudam a perpetuar o jogo dissimulado de dominação e desigualdade principalmente no contexto histórico em que as elites lutam para manterse no poder em contextos adversos a ela como o fim da ditadura civilmilitar no Brasil a organização da Nova República e da constituição cidadã de 1988 o crescimento dos movimentos sociais a reorganização de partidos políticos a ampliação das críticas materialistas nos meios 192 intelectuais a reorganização controlada do capitalismo financeiro no país e ainda o surgimento da Nova Direita e dos pressupostos neoliberais com sua moralidade conservadora Nessa ebulição de posições em movimento não só as elites as classes médias os trabalhadores e marginalizados se encontravam e desencontravam mas também brancos negros indígenas mestiços mulheres e homens cristãos e não cristãos Todos partilharam subjetivaram e disputaram moralidades enquanto capacidade de orientação para a vida prática a partir da defesa de certos valores A esse contexto não fugiu o pequeno município sertanejo de estruturas materiais e simbólicas ainda precárias e ameaçadas de fortes tradições elitistas e racistas situado em Alagoas um estado historicamente comandado por latifundiários e industriais que lutam historicamente para se reinventar e manterse hegemonicamente no poder em meio ao turbilhão de crises e rearranjos neoliberais As práticas discursivas estabeleciam verdades éticas declaradas como dignidade individual disciplina produtividade expressão pública de uma boa moralidade e senso estético Tudo isso foi ativado no sertão alagoano para confundir os interlocutores justificando os jogos de segregação não na raça não na cor da pele e na negritude de uma pessoa mas na sua possível falta de moralidade e dignidade Nesse caso não se trataria de racismo mas de uma pretensa justiça incutida numa moral tida como superior É por isso que mesmo entre as classes médias baixas e trabalhadoras do sertão alagoano nos anos 1980 e 1990 nas casas nas ruas praças escolas templos religiosos e locais de trabalho as pessoas buscavam afastarse e distinguirse daquilo que era tido como inferior desprezível vergonhoso e aniquilável não só a imoralidade mas também a negritude Isso se repetia em suas vidas conectandoas às práticas discursivas cotidianas da família da vizinhança da escola do trabalho da mídia e da religião Especificamente nas escolas sertanejas mesmo durante a Nova República não se tinha as relações étnicoraciais enquanto objeto de estudo O que se tinha era um ensino tradicional de fortes bases positivistas pautado na memorização mecânica de grandes nomes fatos e datas a partir da perspectiva eurocêntrica e patriarcal em diálogo com a ordem discursiva cristã Mesmo existindo algumas ações pedagógicas que contemplassem a temática negra nas escolas elas eram pontuais e desarticuladas o que as tornava insuficientes para causar transformações nas compreensões e nas relações sociais locais O que predominava era senão a experiência escolar como um não lugar para a negritude ao menos um lugar de minimização da história memória e identidade negra Ao mesmo tempo as relações raciais eram produzidas de forma hierárquica escamoteando argumentos raciais em valores morais como higiene disciplina ou cristandade 193 Os sertanejos de pele escura não se viam como pessoas negras durante suas infâncias adolescências e parte da vida adulta até que alguém falasse indicasse ou apontasse a sua negritude fosse em forma de piadas e brincadeiras fosse em forma de xingamentos e ameaças ou dos poucos momentos de afirmação Na maioria das vezes isso acontecia em momentos muito tensos nos quais a raça se tornava vista e mobilizada para inferiorizar e humilhar publicamente Naquele contexto a mestiçagem que funcionava como um dispositivo de autoafirmação negociável dos sujeitos era fragmentada e reorganizada Nos momentos das brigas os indivíduos de pele escura mesmo os autodeclarados morenos ou pardos eram deslocados da almejada mestiçagem e lançados à negritude Isso funcionava como um ritual de ofensa que garantia vitórias e derrotas nas relações sociais Esses sujeitos foram preparados para o mundo do trabalho da fé cristã da faculdade e do lazer em perspectiva ocidental mas as suas experiências concretas foram construídas de forma ambígua Por mais que fossem moldados por referências culturais eurocêntricas receberam influências de presenças valores e práticas negras que conseguiram de alguma maneira afetar a subjetividade desses sujeitos mesmo que de forma periférica Afinal elas ocupam lugares nas memórias dos professores e lhes servem de algum modo como pontos de referência e provocação sobre algo que eles ainda consideram saber ou não saber direito o que são Mas pela forma como narram a cultura negra os afetou no lócus da emoção dos afetos e desafetos do medo da vergonha do lazer Isso implica dizer que na experiência que é julgada pela razão ocidental burguesa científica branca e patriarcal CHAUÍ 1985 a emoção consiste num aspecto de fragilidade inconsistência e alienação Essa foi quando muito a perspectiva subjetivada pelos professores sertanejos quando pensavam o negro e sua cultura a ludicidade fugidia o outro lado que não ajuda a resolver os problemas da vida real de forma racional O negro apareceulhes como referência enquanto fantasia festa lembrança doce do passado superado O prazer momentâneo Não o negro como sujeito do presente que luta em meio ao racismo estrutural para existir Não pelo lócus da razão seja ocidental ou mesmo afrocentrada que à época nem se discutia na região A ausência dessa objetividade fez escapar o racismo como problema histórico que persiste É isso a própria manifestação do racismo nessa sociedade embora esses sujeitos tenham aprendido a mantêlas e reproduzilas sem se considerarem pessoas que contribuem para essa engrenagem Contudo essa não é uma narrativa do fim e sim de um recomeço Se os sujeitos são inacabados e afetados pelas relações de poder que se movimentam constantemente há que se 194 considerar que eles podem receber novas práticas discursivas que os tensionem e alterem seus saberes sobre as relações étnicoraciais e sobre a cultura afrobrasileira Para pensarmos isso importa considerar além dos seus processos formativos singulares também as suas formações e atuações profissionais sobretudo a partir da Lei 1063903 e o conjunto de problemáticas e normas que ela gerou Como os professores de História lidam com essa obrigatoriedade no espaço do sertão O que dizem saber sobre ela Quais as suas referências Como ensinam Esse é o tema do próximo capítulo 195 6 FORMAÇÃO E ATUAÇÃO PROFISSIONAL SABERES E PRÁTICAS DE ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFROBRASILEIRA NO SERTÃO ALAGOANO Neste capítulo focamos nos processos de formação profissional e nas práticas docentes Os diferentes perfis e trajetórias dos entrevistados nos possibilitaram a coleta e análise de variações importantes nos dados o que nos permitiu ponderar a respeito dos distintos fatores que aparecem nas narrativas e são indicados como elementos que delineiam interferem atravessam e transformam esses saberes e práticas Se em suas vidas pessoais esses sujeitos foram subjetivados por discursos na perspectiva do branqueamento o ingresso em cursos de licenciatura proporcionoulhes o acesso às contranarrativas negras A perspectiva antirracista foilhes introduzida enquanto dispositivo obrigatório de profissionalização mas também teve efeitos em suas vidas pessoais ao problematizarem valores crenças discursos e condutas Entretanto cada um deles reagiu de forma distinta diante desse dispositivo conforme o conjunto de experiências formativas pelos quais passaram Da mesma forma seus discursos produzem diferentes formas de engajamentos e novas realidades no ensino de História praticado no local quanto à temática aqui abordada 61 A formação profissional As motivações para que esses indivíduos se tornassem professores foram diferentes Alafim contou que essa era uma das poucas opções de profissionalização na cidade especialmente para pessoas de classe média baixa e pobre O professor Milton Santos explicou que até 2010 não existia universidade em Delmiro Gouveia Cursar alguma faculdade gerava um alto status no sertão pois só os filhos da elite local podiam fazêlo já que teriam de estudar fora Aos jovens filhos de trabalhadores que conseguiam acessar níveis mais altos na educação básica a profissão docente possibilitava melhor renda em relação aos outros tipos de trabalho exercido na cidade além de prestígio social Griô lembra que quando seu pai faliu a sua irmã Tia Marcelina começou a trabalhar como professora após cursar o magistério Naquele momento ela se tornou um orgulho e uma garantia a única pessoa formada e com renda fixa na família A docência era também um lugar de trabalho aceitável para as mulheres sertanejas no qual elas poderiam garantir renda prestígio respeito e ação na vida pública Conforme lembra a professora Rosa a profissão que dava na época era professora então minhas irmãs todas se formaram como professora Faculdade naquela época era mais complicado Profa Rosa 196 2018 Isso foi percebido também nas narrativas de Yewá e Maju Yewá vem de uma família de diferentes gerações de mulheres que exerceram a profissão docente o que a influenciou a tal ponto que ela nem conseguia pensar em outra profissão para si Para tanto o ingresso na carreira não foi condicionado apenas por determinismos estruturais econômicos ou culturais e de gênero Ela também fez parte do repertório de escolhas dos próprios sujeitos que alegam o gosto pessoal pelos estudos o desejo desde a infância em exercer uma profissão intelectual e também os ganhos simbólicos na sociedade local respeito e admiração conquistados na vida pública Porém por mais que em seus discursos os docentes atribuam a influência de questões exclusivamente pessoais nas suas escolhas profissionais percebemos que há ainda influência do meio cultural A professora Dandara por exemplo afirmou que sempre gostou de estudar e sempre quis ser docente Lembrou que sua vizinha sempre comentava publicamente que ela seria uma ótima professora pois era uma menina muito estudiosa e inteligente Desde a infância ela inculcou discursos que vislumbravam a sua profissão Os adultos da vizinhança pediam a ajuda de Dandara para realizar as atividades escolares de seus filhos Ainda menina ela foi construída como uma referência de ensino na sua comunidade Para Dandara a sua escolha para cursar o magistério entre 1994 e 1995 foi a sua afinidade pessoal construída em relação à profissão docente contudo percebemos como essa singularidade foi também socialmente moldada Griô afirmou que sempre desejou exercer uma profissão ligada à produção intelectual e não braçal Ele disse que sentiu verdadeiro encantamento pela formatura da irmã Em seu discurso a profissão docente é dotada de uma espécie de aura mágica ela o confere poder afirmação reconhecimento e aceitação pública Funciona como uma compensação simbólica de um homem de pele escura cuja história é marcada por sequências de negações exclusões e humilhações Mas esse ganho não foi sempre garantido em sua história de vida pois a identidade profissional não deixa de estar atrelada às outras identidades visíveis no seu corpo como a cor de sua pele O caso de sua aprovação no vestibular de Pedagogia na Universidade do Estado da Bahia UNEB110 ilustra isso Ele narra o momento em que a lista dos aprovados foi lida numa transmissão de rádio local Eu passei na UNEB era uma coisa assim tipo tapete vermelho Em 2001 uma coisa grandiosa eu já sabia mas às vezes eu me perguntava oxe por quê Eu perguntava a Deus muito católico por que eu passei Porque eu estudei não é Eu estudei muito eu li muita coisa A menina branca rica dona de boutique filha de um homem rico Ela fez cursinho e não passou E a 110 O Campus VIII da UNEB está localizado em Paulo Afonso BA município vizinho a Delmiro Gouveia 197 mulher ligou ela falou na frente todo mundo ouvindo a rádio era uma audição coletiva do rádio ela falou como é que você branca fez cursinho e não passou e aquele negro esmoler passou Foi o terceiro gesto de preconceito que me marcou Prof Griô 2018 Por mais que ele se declare um mestiço muitas pessoas da sociedade local o classificam como negro em sentido pejorativo interditando até mesmo as pequenas alegrias de suas conquistas Até a década de 2000 os cursos de Licenciatura mais próximos do município de Delmiro Gouveia encontravamse em Paulo Afonso BA Arcoverde PE ou Maceió AL Mas a partir de 2002 por determinação do governo federal os professores formados no magistério precisaram cursar graduação em licenciaturas111 Essa norma fez com o que os professores sertanejos procurassem os cursos superiores mais próximos para continuar exercendo suas profissões Uma opção que se tornou viável para alguns deles foi a realização de curso de licenciatura à distância em faculdades privadas Dandara é um exemplo disso Após ter cursado o magistério e atuar por mais de dez anos como professora ela iniciou uma graduação em Pedagogia à distância no ano de 2010 Um ano após é que ela ingressou no curso presencial da Licenciatura em História no Campus do Sertão da Universidade Federal de Alagoas já em Delmiro Gouveia Os professores que se formaram nesse campus a partir de 2010 tiveram um processo de formação distinto dos professores da geração anterior Estes precisaram cursar suas licenciaturas em outras cidades Os docentes que se graduaram na UNEB em Paulo Afonso como Griô Tia Marcelina e Alafim cursaram Pedagogia única opção de licenciatura disponível na área de Humanas Eles conseguiam ir e voltar todos os dias para suas casas pela proximidade entre os municípios Já as professoras Rosa e Yewá licenciadas em História estudaram em Arcoverde sertão de Pernambuco Elas precisavam viajar quinzenalmente enfrentando uma viagem de mais de três horas em rodovias precárias Naquela cidade passavam 15 dias de estudos intensivos e logo retornavam para continuarem trabalhando no sertão alagoano Elas estudavam e trabalhavam em meio a situações de pressão e precarização Yewá contou que não conseguiu suportar a situação e fez uma prova de transferência para a UFAL Precisou voltar a morar naquela cidade 111 A Resolução nº 01 do Conselho Nacional de Educação CNE instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica na qual orientava e reforçava a obrigatoriedade da formação profissional em nível superior em cursos de licenciatura plena para a atuação docente em sala de aula BRASIL 2002 Essa obrigatoriedade já estava instituída desde 1996 com a LDB 198 Já os professores Milton Santos e Dandara foram alunos das primeiras turmas de Licenciatura em História do Campus do Sertão da UFAL enquanto Maju foi aluna da primeira turma da Licenciatura em Geografia Eles apresentaram processos formativos diferenciados nem sempre mais fáceis porém mais atualizados Maju contou que quando trabalhou na educação infantil numa pequena escola privada começou a pensar em ser professora Ao cursar uma licenciatura ela foi contratada temporariamente pela Secretaria Municipal de Educação de Delmiro Gouveia a SEMED Devido à instabilidade profissional que passara desencantouse com a profissão vindo a retomar os ânimos apenas quando foi aprovada em concurso em 2015 o que possibilitou sua afirmação enquanto profissional A narrativa de Milton Santos destacou processos formativos mais complexos ele atuou como monitor de disciplinas das Ciências Humanas depois como bolsista do PIBID escreveu artigo para um livro participou de congressos e produziu um Trabalho de Conclusão de Curso sobre educação quilombola Depois de formado foi aprovado em dois concursos para as redes estadual e municipal de educação básica Os docentes que cursaram a licenciatura em História Yewá Rosa Milton Santos e Dandara apresentaram diferentes razões pelas quais escolheram essa graduação Rosa afirmou que não havia escolhido o curso de História foi uma opção aleatória feita por sua amiga que preencheu o formulário de seleção no vestibular para ela em 1998 Rosa se pensava mais enquanto professora do que como docente de alguma área específica Sua trajetória é marcada por diferentes perspectivas e compromissos Dandara cursou História por ser a opção de que mais gostava e que era disponível à noite já que trabalhava durante o dia Sua formação a marcou muito não só pela ampliação e aprofundamento de questões teóricas e práticas mas também por experiências marcadas pelos dispositivos de racialização Ela citou dois casos que lhes formam emblemáticos o primeiro caso é de um professor branco loiro e de olhos azuis que costumava expor e humilhar os alunos sertanejos Diante dele ela enquanto mulher de pele escura e nativa da região se sentia fortemente desconfortável O outro foi a presença dos professores universitários negros que passaram a atuar na UFAL e a viver na cidade Ao ver aqueles sujeitos que manifestavam suas negritudes não só em seus corpos pretos mas também em suas estéticas seus discursos projetos e linguagens ela disse que ficou impactada Eles não eram morenos mas negros e suas posturas e ações eram dotadas de poder A formação numa universidade federal lhe trouxe experiências mais amplas do que a formação numa universidade privada Participou de projetos de extensão acadêmica fez 199 pesquisas participou do PIBID teve aulas de campo e estudou com um corpo docente com mestrado e doutorado em História e Educação Contudo essa formação apresentou ainda algumas dificuldades objetivas como a falta de estrutura física e uma greve além de questões subjetivas Dandara contou que se sentiu muito desafiada e pressionada a estudar na Licenciatura em História para estar à altura dos níveis de debates suscitados nas aulas Esses profissionais afirmaram que construíram suas identidades enquanto professores de História durante a graduação em meio às expectativas tensões desafios angústias aprendizados e encantamentos ao longo da licenciatura Quando eu comecei a fazer História eu me apaixonei aí eu realmente me identifiquei Profa Rosa 2018 Ou ainda nas palavras do professor Milton Santos As leituras e a capacidade de enxergar o mundo pelas lentes da história me dava prazer Dá me dá ainda Então eu já não mais pensava na questão financeira Eu sabia que como historiador eu não teria uma vida abastada eu não ganharia altos salários mas eu conseguiria me realizar ser feliz e eu pensava não quando eu for professor eu sei que vou ganhar pouco e vou me engajar politicamente Prof Milton Santos 2018 Esse processo construtivo não foi linear deixou várias lacunas Apesar de serem de gerações e formações diferentes Dandara Yewá e Rosa avaliaram que o magistério as preparou melhor para lidar com o cotidiano do trabalho docente do que o curso de Licenciatura em História Elas tecem uma crítica à desarticulação entre teoria e prática nos cursos de formação de professores de História Se nessas graduações realizaramse discussões teóricas conceituais e metodológicas mais sistemáticas e consistentes não se contemplaram satisfatoriamente as questões pedagógicas didática metodologia do ensino materiais didáticos problematizações do próprio currículo da educação básica O professor Milton Santos corrobora argumentando acho que a maior falha do currículo da Licenciatura hoje é não trabalhar melhor a experiência em sala de aula O professor sai teoricamente bem formado mas ele vai encarar uma realidade que de certa forma ele ainda não está preparado Prof Milton Santos 2018 O mesmo ocorre quando foram perguntados sobre se as suas graduações discutiram as relações étnicoraciais Os licenciados em Geografia Pedagogia e Filosofia112 afirmaram que suas graduações não contemplaram suficientemente a temática étnicoracial como conteúdo específico Em algumas dessas áreas eles até questionam se as relações étnicoraciais constituiriam de fato um objeto de estudo 112 Após cursar Pedagogia o professor Griô realizou seu sonho de cursar a graduação em Filosofia 200 Já a fala do professor Alafim inseriu novo dado Como foi aluno da UNEB ele teve acesso aos discursos de professores e amigos que promoviam alguns debates em torno de questões raciais Isso se dava porque havia pessoas de Salvador reconhecida pelo seu grande contingente populacional negro além de toda a mobilização e visibilidade política e midiática científica dessa categoria na cidade na sua turma de graduação em Pedagogia Ele lembra de uma antiga colega a quem classifica como negra mesmo ressaltando o fenótipo dela Conforme Alafim uma das primeiras rotas de discussões sobre negritude acontecia no sentido Paulo Afonso Delmiro Gouveia já na década de 1990 Entretanto naquele momento tais discussões não eram nem sistemáticas nem intensas além de estarem restritas aos poucos delmirenses que cursavam Pedagogia naquela universidade Ainda conforme esse professor os debates sobre preconceito centravamse mais em questões políticas e econômicas do que em questões raciais e culturais De todo modo a negritude era afirmada no conjunto de regularidades que tornavam aqueles discursos raros num espaço demarcado pela presença de enunciados de mestiçagem e por isso marcaram a memória desse sujeito Griô estudou no mesmo curso anos após e lembrou que houve poucas discussões étnico raciais embora existissem negros ensinando e estudando lá A sua fala parece estabelecer um vínculo mecânico entre ser negro e se interessar em discutir a condição sociocultural dessa categoria opinião que marcou a sua prática profissional Quando essas discussões eram abertas na graduação o próprio Griô se fechava Ele contou que não se interessava nem gostava de discutir temas como negritude discriminação ou candomblé mesmo que alguns debates ficassem acalorados Reconheceu que tinha preconceito e justificouse afirmando que naquela época já estava envolto em práticas discursivas evangélicas Mas não só isso Ele mesmo não se considera uma pessoa negra portanto isentavase dessa discussão A professora Rosa afirmou que não se discutiu a temática étnicoracial em sua graduação em História no sertão pernambucano realizada entre 1998 e 2001 Já para os professores matriculados na licenciatura em História a partir de 2010 no Campus do Sertão a realidade foi diferente ensino pesquisa extensão eventos publicações aulas de campo projetos e bolsas de estudos foram atravessadas pela temática étnicoracial O professor Milton Santos destacou duas atividades que ampliaram e aprofundaram a sua percepção sobre as questões étnicoraciais a visita à Serra da Barriga no dia 20 de novembro de 2014 enquanto aluno da disciplina de História da África e a produção de seu TCC sobre educação quilombola Isso aconteceu em outro momento histórico do país quando houve altos investimentos do governo federal nas universidades públicas com a expansão dos 201 cursos de graduação e pósgraduações inclusive para as cidades do interior Percebese que as atividades que o marcaram ocorreram já após dez anos de sanção da Lei 1063903 Os professores mais maduros só puderam acessar discussões étnicoraciais com mais profundidade nesse novo momento histórico a partir dos cursos daquelas pósgraduações que contemplaram essa temática Houve destaque para dois cursos no sertão a especialização em Educação para as Relações Étnicoraciais ofertada pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Educação e Diversidade do Sertão NUDESUFALCampus do Sertão e o mestrado em Ecologia Humana ofertado pela UNEB Campus VIIIPaulo Afonso Alafim foi discente do primeiro curso Ali ele acessou as discussões que alega terem sido muito calorosas desestabilizadoras e reconstrutivas Dois fatores o marcaram o número de docentes negras e negros no curso algo que nunca vira antes na região e as práticas discursivas povoadas por análises críticas aguçadas centradas na raça Já Griô e Tia Marcelina foram discentes do mestrado Lá eles puderam ressignificar suas concepções e posturas sobre a temática étnica embora as discussões sobre esse campo ainda não fossem o foco do curso Ambos realizaram pesquisas em comunidades quilombolas do sertão alagoano também puderam ler e discutir sobre as religiões de matriz africana o que contribuiu para uma formação mais compreensiva interdisciplinar inclusiva e questionadora Essas formações profissionais atualizadas reconstruíram esses sujeitos Para Milton Santos a disciplina de História da África foi uma novidade que o impactou bastante e reconfigurou seus saberes e identidades profissionais e pessoais A África nunca apareceu como tema de estudo ao longo de sua vida escolar até o último período da licenciatura Nessa disciplina ele construiu saberes historiográficos e atitudinais pois pôde refletir e reler de forma crítica a sua própria experiência de vida eu comecei a perceber que o que eu fazia de forma mesmo que inconsciente eu estava reproduzindo uma lógica social Aí eu comecei a entender parte de um meio reproduzindo algo comecei a poder sair disso entendes Prof Milton Santos 2018 A partir dela ele teve a oportunidade de rememorar e analisar criticamente os dados de sua memória pessoal as brincadeiras na comunidade quilombola os atos racistas praticados na escola básica as relações raciais e os discursos sobre as religiões de matriz africana no sertão Conforme avalia o professor cursar tal disciplina desenvolveu A capacidade de estender a realidade de entender a realidade como múltipla não é É como se você pegasse tudo que você viveu e está vivendo e soubesse que ele é só uma maneira de se viver entendes Aí você pode se reconstruir Reconstruir sua volta trazer novas experiências você pode mudar as coisas Prof Milton Santos 2018 202 Apesar de localizar muitas lacunas em sua formação profissional entre 1999 e 2002 Yewá teve acesso às reflexões étnicoraciais através de um dos seus professores Zezito Araújo um dos pioneiros da militância negra de Alagoas Ele lecionava a disciplina de História do Nordeste e sempre abordava as relações étnicoraciais em suas aulas Conforme a narrativa dessa professora apenas o professor Zezito promoveu discussões raciais no curso de História da UFAL naquela época Foi a primeira vez em que ela ouviu a afirmação de que ser negro não era apenas uma questão de pele mas de militância113 A partir daí segundo afirma começou a se pensar enquanto mulher negra apesar de reconhecer os seus privilégios fenotípicos como a tez da pele mais clara e o cabelo liso por exemplo Na cultura local ela seria considerada no máximo parda Anos após formada a professora Yewá veio a participar de projetos da UFALCampus Sertão voltados à temática negra quando pôde interagir com outros ativistas negros As práticas discursivas da militância negra contemporânea em Alagoas a tocaram tensionaram fizeramna refletir e reconstruir novos saberes e condutas Então o que esses movimentos de resistência na questão religiosa e até mesmo dos movimentos que existem e tudo foi entender como o papel da cultura é importante para esse entendimento de hoje em dia que eu sou parte disso aqui O país só é isso porque eu colaborei Eu acho que abriu o meu entendimento Porque a gente só pensava negro é escravo contribuiu pra quê Pra nada foi um zero à esquerda Não não foi E quantos intelectuais mesmo dos movimentos abolicionistas Tudo isso pra que a gente tenha hoje esse entendimento Isso eu acho que é o que me trouxe hoje de melhor Profa Yewá 2018 De uma problematização ao reconhecimento do encontro com a legislação antirracista às parcerias com a universidade da reformulação de seus saberes às práticas pedagógicas seria produzida para além de seu fenótipo a sua militância étnica que se expressa especialmente no espaço escolar onde trabalha 113 Tal asserção é utilizada por Zezito Araújo como uma crítica à desmobilização política de pessoas de pele escura que não se autodeclaram negras nem perpetuam as lutas dessa categoria Portanto não é apenas o fenótipo de um sujeito que define o conceito de identidade negra mobilizado por esse professor mas também a práxis política Entretanto como o discurso é uma prática aberta e disputada muitas pessoas de pele clara se apropriam desse enunciado de Araújo e citam o nome dele apoiandose na sua referência histórica para se autodeclararem negras Elas afirmamse no critério militância para a compensar os questionamentos sobre o critério cor mesmo afirmando boas intensões autodeclaradas e defensoras das causas negras Por vezes isso instala novas batalhas no espaço público entre os militantes de pele mais escura que acusam os ativistas de pele mais clara de usurparem o lugar de fala negra a partir de seus privilégios fenotípicos mais aceitáveis em nossa sociedade A identidade é disputada construída e deslegitimada no jogo social Esse debate incide na vida material e simbólica dos sujeitos por isso está bem distante de um ponto de convergência 203 Com a professora Dandara não foi diferente pois vivenciou um mergulho em práticas discursivas afrocentradas em 2014 a formação para professores das redes municipais de ensino do alto sertão promovida pelo Núcleo de Estudos AfroBrasileiro e Indígena NEABIUFAL momento em que conheceu o professor Zezito Araújo a participação no PIBID o qual tinha como título História da África e da Cultura afrobrasileira interações éticas e estéticas a disciplina de História da África a definição do tema de seu TCC aproveitando a experiência do PIBID as parcerias que estabeleceu com o projeto Abí Axé Egbé para realizar a feira cultural da escola estadual onde ensina a participação na aula de campo na Serra da Barriga no dia 20 de novembro quando ela sentiuse profundamente mexida pelos conteúdos e formas que se expressavam ali sei lá Eu me senti diferente como se eu tivesse num ambiente que eu já tivesse tido ali Não era um lugar desconhecido Profa Dandara 2018 Isso não corresponde a um fenômeno natural como se pode pensar mas à ativação de um reconhecimento étnico racial construído e subjetivado durante a sua formação profissional enquanto docente e que naquele lugar eram explorados de forma intensa por diversas linguagens Dandara declarou que ao chegar às comemorações na Serra da Barriga sentiu arrepios e ficou encantada ao ver de perto o que só via na mídia as rodas de capoeira as cerimônias públicas das religiões de matriz africana as apresentações de grupos artísticos a cobertura da imprensa a movimentação dos pesquisadores alunos professores turistas e populares Para Yewá e Dandara essas experiências serviram como espaçotempo de formação que articulavam teoria e prática fato que as ajudou enquanto profissionais a se apropriarem das discussões étnicoraciais como uma proposta metodológica e política de ensino quanto as ajudou a pensaremse e afirmaremse enquanto mulheres negras e não mais como morenas ou pardas Tal formação afetou Dandara de tal modo que criou novos desejos de qualificação profissional centrados na temática negra Apesar das ambiguidades incutidas entre o método e os princípios outorgados pela Lei nº 1063903 os efeitos dessa legislação na formação de professores são inegáveis produzem complexos deslocamentos epistemológicos identitários e instituem novos compromissos e lutas embora essas transformações ocorram em diferentes ritmos e proporções em cada sujeito A reconstrução de seus pertencimentos étnicoraciais e culturais foram fundamentais nesse processo mas se comparado às outras licenciaturas tal processo foi mais intenso nos professores formados em Licenciatura em História É possível afirmarmos que há uma nova consciência política e cultural sendo gestada na categoria profissional docente Esse processo é lento complexo bastante disputado e tem sido garantido pela confluência de práticas discursivas e não discursivas de uma série de sujeitos e 204 instituições a normatização pedagógica os currículos universitários a proximidade com ativistas e instituições culturais negras Diferentes estratégias se cruzam nos esforços pela efetivação da lei Nesse sentido entendemos a formação docente como um dispositivo de produção de identidades e culturas profissionais mas que em se tratando de temas políticos como as relações étnicoraciais esse dispositivo reforma também os âmbitos pessoais de cada professor 62 Os saberes e as práticas de ensino A primeira vez que os docentes foram orientados a desenvolver práticas sobre a história e cultura afrobrasileira nas suas salas de aulas suscitou várias reações entre elas o desconforto As considerações eram muitas acréscimo de um tema novo o qual não se domina falta de estrutura substituição de conteúdos normais da história pelo folclore a coerção da normatização Eu percebia nas falas dos coordenadores até certos diretores até mesmo certamente na minha que por ser lei era obrigação e obrigação é uma coisa que não é Afirmável E por que não é A gente sempre Por causa dessa leitura subjetiva subliminar que se é afirmação se é lei não é uma coisa muito boa não Prof Griô 2018 Efetivar a inserção da cultura negra no currículo de História se estabelecia de forma incômoda A solução mais emergente encontrada por muitos deles foi trabalhar os temas que lhes eram mais confortáveis escravidão quilombos e danças Nas primeiras práticas entre as resistências dos profissionais de ensino parecia vencer a perpetuação do racismo no espaço escolar fosse pela permanência do silêncio pela emissão de críticas desconstrutivas à normatização ou pela reprodução de estereótipos O incômodo correspondia também a uma consciência dos novos compromissos éticos assumidos por alguns deles Yewá lembrou que em suas primeiras tentativas o que sentia não era segurança era angústia É aquela coisa se vira nos trinta e fica aquela coisa assim meu Deus será que eu estou fazendo o certo Será que eu estou fazendo errado Eu não tinha nenhuma formação eu sei que o que eu tinha que fazer não era receita de bolo mas você tinha que ter uma orientação direcionamento será que ao invés de estar ajudando eu não estou piorando a situação Eu tenho que pensar nisso Profa Yewá 2018 205 Esse receio não a livrou de reproduzir algumas das noções racistas as quais ela mesma se propunha combater Por exemplo quando nos contou o caso de um aluno que costuma zombar dos colegas procurando defeitos no outro Profa Yewá 2018 No caso de meninas negras o estudante xinga a textura de seus cabelos Embora a professora Yewá se diga indignada com esse tipo de relação seu enunciado reproduz a desqualificação sobre o cabelo das meninas como um defeito para explicar a ação do aluno O discurso se virou contra ela mesma É o que ocorre também quando analisamos o discurso do professor Milton Santos Para ele houve uma pequena mudança nas concepções e relações raciais dos alunos se antes a cor da pele era usada em agressões verbais e físicas atualmente as ofensas surgem em tons de brincadeiras e piadas o que em sua leitura configura um avanço Sua fala produz uma compreensão conformista que não só autoriza mas elogia as manifestações de racismo Moreira 2019 designou como racismo recreativo o projeto de dominação racial que se estrutura numa política cultural embasada na utilização do humor como expressão Seus efeitos são a O encobrimento da hostilidade racial b A privação da respeitabilidade social o que é um direito público c A naturalização de estigmas atribuídos a determinados grupos raciais e d O veto aos discursos e identidades étnicas o que dificulta a mobilização política em torno delas O racismo recreativo é uma das formas mais comuns de perpetuar dissimetrias étnicas em nosso cotidiano Travestido do rótulo de brincadeira ele funciona de modo a perpetuar o jogo político das dominações ao passo que aparenta ser benigno conjectural efêmero e intimista A ideia de brincadeira pretende substituir a perversidade pelo lazer e o afeto afinal brincase com as pessoas de quem se gosta Na escola básica as cenas cotidianas estão povoadas por formas incontáveis assumidas pelo racismo recreativo Portanto a permanência das brincadeiras embasadas em critérios étnicos não constituem avanços no combate ao racismo mas o seu escamoteamento o que confunde os interlocutores e permite a sua deliberada reprodução A professora Rosa conta que vê os alunos fazendo piadas com o termo macumba mas diz que não identifica casos de racismo na escola Para ela são apenas brincadeiras mesmo que maldosas entre os estudantes Explica que é o docente que precisa perceber se de fato os conflitos que ocorrem entre os alunos configuram racismo ou não pois ultimamente as discussões têm se tornado demasiado apelativas sobre essa questão Para ela é o discurso sobre as relações étnicoraciais que categoriza as condutas e cria os casos de racismo na escola mesmo nas situações onde ele não teria ocorrido Sua moralidade minimiza os conflitos raciais O professor Griô tem uma tese para explicar a substituição de um modelo racista por outro 206 Raramente eu vi uma afirmação racista de sujeito para sujeito Raramente Isso porque se tornou muito forte que o racismo é punido não é Chamar de negro macaco não sei o quê ou coisa parecida ou piada isso acabou No entanto há sempre um jeitinho brasileiro de superar de reinventar um discurso racista em gesto Então o discurso ele não há mais Há um medo Por causa do medo É por causa do medo não é por causa da misericórdia do amor ao próximo ironizando É o medo de se lascar Prof Griô 2018 Já a docente Tia Marcelina diz que percebe um tipo de relação racista que parte de alguns professores para os alunos quando a criança é branca que tem mais condições e que chega mais arrumadinha a gente percebe que alguns professores Não é o meu caso não é Mas alguns professores já olham de uma forma E quando a criança é mais simples o tratamento é diferente Profa Tia Marcelina 2018 O exemplo associa condição social e cor da pele dos estudantes como critério para se vislumbrar atitudes embutidas nas práticas pedagógicas de profissionais da região Esse foi o mesmo tratamento que seu irmão Griô sentiu do professorado quando era estudante da educação básica O professor Griô nos lembra que os conflitos raciais instalados pelo racismo vitimam também os professores Ele citou três exemplos O primeiro foi o caso de um aluno da rede estadual que disse em sala de aula à sua professora de Artes negra que ela não era capacitada para dar aulas O outro exemplo foi de algo semelhante ao que aconteceu mas com ele mesmo quando foi professor substituto da UFAL Campus do Sertão Olhe para você ter uma ideia você olha pra mim você percebe como um estereótipo Sou um homem comum eu tenho aparência de um carroceiro É o que a sociedade fez A pessoa que tem a pele assim como a minha ele aparenta Então quando eu sentava ali na frente do curso de Engenharia meu irmão havia uma negação Ensinei em dois períodos dos cursos das Engenharias havia uma negação aquela presença não era de um professor universitário Eu percebi isso daí da parte de alguns Prof Griô 2018 Pela forma relatada embora reconheça o desdobramento da imagem racial estereotipada cunhada no meio social sobre ele esse professor parece ter internalizado a culpa do racismo por sua aparência física o que lhe imprime uma espécie de decepção dolorosa ao perceber que por mais que tente fugir dos estigmas está preso a seu ativador social a cor da pele Esses atos acontecem também entre professores Griô cita o caso de um colega de trabalho negro estigmatizado pelos docentes dessa mesma escola estadual se ele bebia num copo ninguém queria beber porque ele tinha o cabelo crespo barbinha crespa Barba não é 207 Falavam dele que era muito grosso Falavam dele que ele era muito chegado a sexo Ele não disse falavam Prof Griô 2018 Griô lembra que os demais professores faziam piadas brincavam com o colega negro Ele lembrou que no começo até sorria daqueles comentários Atualmente afirma ele não ri mais contudo se cala quando assiste à reprodução deles entre os professores Evita o enfrentamento aos atos racistas deferidos entre a própria categoria trabalhista Há uma relativização da moral pessoal e da ética profissional Para não produzir um discurso que evidencie o racismo atingindo e gerando um malestar entre os colegas por desfazerse de suas brincadeiras o silêncio é permissivo ao racismo que atinge a imagem e a vida concreta do docente negro que foi associado à hipersexualização e à sujeira Conforme Oliveira 2016 as práticas docentes cotidianas podem minimizar problemas relativos às formas de segregação e exclusão social mas podem também reforçar valores e práticas de dominação São práticas ambíguas porque se manifestam na linguagem realizando misturas teóricas e políticas bastante heterogêneas complexas fluidas e ambíguas FISCHER 2001 Por isso muitos reproduzem o racismo enquanto afirmam combatêlo Quando identificam conflitos raciais na escola os docentes têm reações que mesclam sentimentos saberes pessoais e profissionais e discursos científicos midiáticos jurídicos ou religiosos Ao discorrerem sobre os momentos em que identificam conflitos raciais nas escolas não só suas falas mas também seus corpos expressavam diferentes níveis de desconforto e alterações de humor A professora Maju afirmou que se sente indignada e que não deixa passar situações racistas em sala de aula Já a docente Tia Marcelina não afirma indignação mas tristeza e faz uso de certo discurso protestante para justificar suas práticas fico incomodada porque não é assim Deus ama todos Eu não acredito nesse Deus que não ama que não percebe que todos nós somos diferentes Cada um tem suas particularidades Profa Tia Marcelina 2018 Tais sentimentos orientam suas práticas pedagógicas de modos distintos Tia Marcelina trabalha a identidade negra como algo que merece respeito mas que é externo ou distante de seus próprios alunos mas não destacando a questão o negro você é negro Não dando aquele estigma não é Profa Tia Marcelina 2018 A associação entre negritude e o estigma feito por ela nos faz problematizar até que ponto a sua prática pedagógica realiza esse procedimento devido à sua percepção de que apenas os alunos e não ela fazem leituras discriminatórias em termos raciais Talvez para evitar os conflitos de não aceitação e posteriores problemas numa pequena cidade ela deixe escapar chances valiosas de construções fortalecidas 208 de identidades negras afinal os seus alunos aprenderão que devem respeitar os negros esse outro discursivamente produzido mas não a sêlo Ao perceber o racismo entre os alunos a professora Maju diz que age com rigor firme mesmo e para não ficar só entre a gente eu levo para a secretaria coordenação ou direção Profa Maju 2018 Quando considera que o caso seja grave embora não explique que critérios utiliza para assim o classificar ela solicita uma conversa com os pais na escola Contrariamente Milton Santos chama os alunos envolvidos para conversar pois acredita que a punição sem esclarecimentos não elimina a reprodução do racismo na escola Nesse sentido a sua prática é bem parecida com a narrada por Tia Marcelina que chama os envolvidos para conversar à parte da sala a fim de conscientizálos Nesses casos os efeitos da discussão direcionada apenas aos envolvidos nos conflitos são mais restritos Todos esses professores mostram algum tipo de insatisfação e engajamento em discutir a causa embora a forma escolhida para intervir nos conflitos não seja aproveitada como tema ou conteúdo nas aulas de História Seria coincidência o fato de que essas formas parecidas são praticadas e declaradas apenas pelos professores brancos e indígenas Aqui temos de ter um cuidado para não estereotipar Não pretendemos simplificar a discussão investindo no mesmo reducionismo ao qual criticamos114 Não afirmamos que professores não negros não tomem as relações étnicoraciais como objeto de ensino e aprendizagem Analisando as narrativas docentes encontramos esse padrão de prática pedagógica associada nos discursos de profissionais com determinados pertencimentos étnicos Isso não quer dizer que eles sejam menos sensíveis ao racismo ou menos críticos às suas condições de privilégios raciais As próprias práticas pedagógicas nos dão valiosas pistas disso Embora os professores autodeclarados brancos e indígenas não tenham narrado situações em que os conflitos raciais tenham se tornando temas de investigação debate e aprendizado nas suas aulas o que seria ideal as estratégias que desenvolvem como a interrupção em conflitos raciais e a problematização do tema não significa uma falta pedagógica no conjunto da prática deles Vejamos um breve exemplo O professor Milton Santos branco considera importante ensinar sobre a história e cultura afrobrasileira nas escolas locais para empoderar os alunos negros e reeducar alunos brancos115 e assim estimular a permanência e o desenvolvimento escolar de alunos negros Ele enxerga no próprio perfil e experiência do alunado sertanejo a 114 Essa é uma pesquisa qualitativa realizada com um grupo específico de sujeitos com trajetórias específicas num espaço e tempo historicamente situados Portanto não podemos generalizar os dados 115 Esse professor não utiliza termos como mestiços morenos ou pardos para se referir aos seus alunos Em seus saberes atuais a categorização de seus alunados separa de forma binária os negros e os brancos e ele reconhece essa escolha como um fato político 209 urgência do tema porque a maior parte dos alunos no fundamental eles são negros e como tem uma evasão gigantesca de alunos do fundamental você vai ter um médio mais branco e a universidade mais branca ainda Prof Milton Santos 2018 Para ele a disponibilidade do aluno em aprender algo se potencializa quando ele cria algum afeto pelo objeto de estudo Portanto ensinar é também um ato de produzir afetos Eu acho que ao jovem negro ele pode politicamente acho que é responsabilidade da educação propiciar a ele esse conhecimento entendes E não que vá doutrinálo mas dar acesso para que ele conheça essa história que ele conheça essa dimensão da sociedade e a partir daí ele possa se munir desse referencial cognitivo para pensar a sua vida e como isso pode ajudálo a mudar se isso se aplica entendeu Prof Milton Santos 2018 Deste modo o ensino de história e cultura afrobrasileira justificase para além de uma obrigatoriedade Não seria uma arbitrariedade mas sim uma necessidade concreta na vida social e uma postura política assumida na educação a fim de erradicar o racismo e constituir experiências sociais democráticas Ao dizerem isso eles reconhecem a existência do racismo afirmando que ele afeta a subjetividade interdita a construção de identidades e impede o desenvolvimento escolar de estudantes negras e negros no sertão Entretanto outro padrão que percebemos neste grupo profissional é que atitudes mais engajadas foram mais comuns entre os docentes autodeclarados negros Yewá afirma que se intromete na discussão dos alunos para resolvêla e cria debates e projetos didáticos a partir desses conflitos O professor Alafim diz que interrompe a aula para transformála utilizandose de várias estratégias didáticas questiona debate exemplifica problematiza as falas os gostos os valores e as ações dos estudantes até conseguir concluir uma discussão É bem semelhante ao que acontece com Dandara Ela se sente bastante incomodada e também costuma interromper as aulas de História independente do conteúdo abordado no dia para inserir o conflito racial como tema de pesquisa e debate Eu discuto na hora Eu paro o que eu estiver fazendo ela fala isso enquanto bate com a palma da mão na mesa expressando indignação e poder de interdição Se eu vir e não for professora dele Eu vi não fui pra aquela turma Quando eu for eu abordo tudo aquilo que eu ouvi Não vou deixar esquecido Vou desenvolver alguma tarefa uma pesquisa o que é isso pesquise o que é aquilo porque às vezes eles pesquisando Que quando você fala você não sabe nem o que é Aí a gente faz um debate faz uma roda e debate Questiono o que você encontrou sobre isso levar a discutir Antes eu não me via fazendo isso Falava conversava com eles Eles diziam que eu falo muito mas aí de um tempo para cá eu fui vendo Se foi intolerante 210 se ele foi racista ele vai pesquisar o que é racismo quais as consequências Aí eles dizem olhe professora eu trouxe o trabalho Eu digo que não é pra entregar vou colar no caderno pode ficar Cada um vai ficar e a gente vai discutir o que vocês foram pesquisar Porque muitas vezes acham que é só pesquisar e entregar E podem pagar meia hora na lan house e pedir para alguém pesquisar toma aqui daqui a pouco eu venho buscar Aí quando chega duas horas pega e vai lá me entregar Não leu Eu já não quero mais isso Tudo isso a gente vai aprendendo com a experiência do dia a dia dos alunos Por enquanto está dando certo não vejo mais tanto Profa Dandara 2018 É importante pensarmos que a história é um saber de múltiplas autorias Nesse sentido o professor é também um autor Ele é um ser dotado de uma racionalidade própria de saberes ligados à profissionalização que produz narrativas históricas e compõe reconstruções curriculares MONTEIRO 2019 A professora Dandara nos dá um indício de sua autoria na sua prática Para ensinar por vezes ela faz comparativos com metáforas e conceitos oriundos da ordem confessional cristã pois isso situa os alunos mais rapidamente de acordo com o universo cultural local Ao fazer isso ela opera alguns deslocamentos em prol da equiparação de direitos afirmação e construção de outras identidades Assim ela usa do repertório cultural dos alunos para mobilizar saberes construir novas categorias e afirmar o respeito aceitação da diversidade religiosa de gênero étnicoracial e também para questionar as desigualdades sociais e econômicas Dandara usa ela mesma como exemplo de identidades históricas afirmadas mulher negra gorda sertaneja e pobre Ela acredita que ao fazer isso aproveitase da relação afetiva e respeitosa que tem com os seus alunos e os estimula a pensar por diferentes referências a se tornarem mais democráticos e a construírem diversas identidades quando eu digo que eu sou negra quando eu boto meu corpo quando eu boto meus batons escuros meus brincos é porque eu me aceito e você tem que se aceitar do jeito que você é Profa Dandara 2018 Discussão que ela não teve acesso na sua própria educação básica como vimos Essa é a mesma estratégia adotada por Alafim outro professor negro cujo empenho maior tem sido desconstruir o racismo religioso e defender com argumentos historiográficos antropológicos sociológicos e de sua própria experiência de adepto as religiões de matriz africana nas suas aulas Para ele ensinar História é um ato de resistência e de afirmação democrática das múltiplas identidades de professores e alunos Aqui temos um dado que registra como os professores negros utilizam seus saberes para fazerem resistências a atitudes racistas Essas práticas pedagógicas transformam os conflitos raciais em conteúdos das aulas de História 211 No cotidiano do ensino de História o currículo é refeito constantemente entre várias disputas posições de sujeitos e materialidades discursivas planejamentos semestrais planos de aulas materiais didáticos saberes teóricos e práticos percepções posicionamentos e escolhas diante de situações de conflitos raciais que eles presenciam e conseguem identificar Esse currículo que se refaz no cotidiano é uma prática é a proliferação infindável de criações inéditas e irrepetíveis que põem em movimento as relações de poder nos processos pedagógicos OLIVEIRA 2016 Aberto e em movimento uma de suas forças motrizes é a discussão étnicoracial Produtor e produto do imprevisto o currículo construído entre as catacreses cotidianas é também um acontecimento PIZZI MATIAS 2012 Para percebêlo é preciso estar atento às sutilezas das práticas discursivas e não discursivas diárias É assim que tem acontecido no sertão alagoano Essas criações têm dependido da sensibilidade e compromisso dos docentes mas também das cobranças oficiais orientadas pelas políticas e órgãos públicos elementos que nem sempre geram coerências entre modelos e práticas pedagógicas OLIVEIRA 2016 As secretarias de educação cobram a efetivação da lei nas escolas de suas respectivas redes A rede estadual solicita a realização de projetos para o mês da consciência negra e o envio de relatórios116 Já a cobrança mais mencionada pelos professores da rede municipal foi a da realização de projetos sobre diversidade cultural para que o município possa manter o Selo UNICEF117 e com isso possa receber repasses de verbas públicas para investimentos em educação O argumento é neoliberal e foca mais na carência do poder municipal em garantir educação e precisar desses recursos financeiros e menos em argumentos políticos que defendam a promoção da igualdade de direitos em meio à diversidade Para o professor Milton Santos as cobranças oficiais dos órgãos públicos geram novos desconfortos pela forma como são feitas sem considerar as vozes dificuldades e experiências dos professores exigindo a realização de grandes projetos em pouco tempo e sem as devidas orientações Nesse quadro para ele o professor é momentaneamente reduzido ao papel de um executor de tarefas e não elaborador de projetos A indignação do professorado em torno dessas cobranças é uma constante 116 Procuramos esses relatórios nos arquivos da 11ª GERE mas não os encontramos Ninguém soube esclarecer o que aconteceu com esses documentos Todavia conseguimos um deles nos arquivos pessoais da docente Yewá 117 O Selo UNICEF é uma iniciativa do Fundo das Nações Unidas para a Infância UNICEF para estimular e reconhecer avanços reais e positivos na promoção realização e garantia dos direitos de crianças e adolescentes em municípios do Semiárido e da Amazônia Legal brasileira Disponível em httpwwwselouniceforgbrsobre Acesso em 13 mar 2020 212 Mas até que ponto de fato suspender as cobranças das secretarias garantiria que esses professores socializados desde a infância numa cultura racial hierárquica realizassem espontaneamente projetos antirracistas Afinal alguns deles sequer enxergam negros entre seus alunos tampouco identifica conflitos raciais nas suas escolas Não seria portanto a cobrança legal dos órgãos públicos a que estão subordinados os professores uma maneira de garantir a ressignificação das práticas discursivas sobre etnia na escola Concordamos com o professor Milton Santos ao considerar que outros meios devam ser estabelecidos para esse diálogo mas suspeitamos que uma trégua nessas solicitações seja também um perigo Contra a força das coerções de instâncias oficiais os professores realizam resistências cujos efeitos são múltiplos Não resistem somente a governos e gestões escolares mas também ao próprio projeto antirracista mesmo sem perceber isso Não obstante existem níveis de cobrança subjetiva dos professores o que revela que os saberes construídos sobre as questões étnicoraciais estão sendo paulatinamente apropriados por alguns desses profissionais Griô reconhece que aos poucos o professorado tem desenvolvido diferentes níveis de engajamento seja por cumprimento de normas legais seja por sensibilidade política contra hegemônica O que percebemos nos relatos é que o engajamento é mais claro e sistemático nas práticas discursivas e não discursivas dos docentes autodeclarados negras e negro ou seja na esfera profissional se estabelecem também compromissos pessoais O próprio Griô autodeclarado pardo e cuja prática discursiva associa mecanicamente interesse e responsabilidade em discutir temas afro a pessoas negras manifesta que seu saber sobre a cultura afrobrasileira possui limitações a ponto de não enxergar possibilidades de discussão em qualquer disciplina escolar que venha a ministrar Mas reclamam eles se de um lado há diversos pontos de origem de cobranças são raras as orientações para que eles planejem e ensinem sobre cultura afro As orientações que existiram foram dadas durante as formações iniciais e continuadas mas o mesmo não acontece a partir das gestões escolares No entanto os documentos que encontramos nos fazem confrontar os discursos desses docentes problematizando algumas situações Vejamos Nos arquivos da 11ª GERE conseguimos as atas de uma das primeiras formações continuadas para os professores do alto sertão alagoano O curso registrado na primeira ata como Capacitação A Cor da Cultura118 foi realizado em cinco encontros em duas das maiores escolas estaduais situadas em Delmiro Gouveia no mês de outubro de 2011 oito anos após a 118 Atas da formação A Cor da Cultura promovida pela 11ª Gerência Regional de Ensino GERE da Secretaria Estadual de Educação de Alagoas SEED 213 sanção da lei A atividade contou com a presença de alguns professores e coordenadores das redes estadual e municipal de educação básica dos municípios de Delmiro Gouveia Água Branca e Pariconha Foi ministrada por dois técnicos da 11ª GERE que eram responsáveis pela pasta de diversidade nesse órgão contando com a colaboração de uma professora da única comunidade quilombola de Delmiro Gouveia Povoado Cruz Essa formação objetivou apresentar o kit pedagógico A Cor da Cultura distribuído nas escolas pelo MEC mas que muitos profissionais não sabiam utilizar em sala de aula O kit dispunha de uma caixa com livros paradidáticos jogos de tabuleiro cartazes e vídeos A metodologia utilizada no curso explorou a reflexão a pesquisa e produção pedagógica e científica dos participantes em cada ação realizada o que criou possibilidades deles se posicionarem como sujeitos ativos na produção de novos saberes a partir daquela experiência Entretanto se a metodologia avançava em termos epistemológicos algumas abordagens dos conteúdos específicos nos pareceram problemáticas O curso apresentoulhes temas como as leis 1063903 e 1164508 belezas negras e indígenas identidades negras na escola regiões da África discriminações racial sexual e de classe social no interior da escola e personalidades negras da história do Brasil Esses dados foram coletados nas atas dos encontros que foram produzidas pelos próprios docentes que participavam da formação em revezamento Desse modo elas não registram simplesmente o que aconteceu mas o que foi percebido sentido e aprendido pela ótica desses profissionais Pelo teor elogioso das narrativas registradas percebemos que os assuntos se constituíam em novidades encantadoras e empolgantes para os cursistas Contudo os enunciados utilizados no documento como curiosidades negras119 constroem mais abordagens românticas e psicologistas do que críticas das estruturas e relações de poder nas quais se dão as relações étnicoraciais O relativo encantamento com a discussão étnicoracial afirmado nas atas até poderia ser pensado como uma boa aceitação desse tema entre a categoria profissional local mas isso é refutado quando consideramos outros dados a A 11ª GERE é responsável por 21 escolas estaduais situadas em oito municípios do alto sertão alagoano120 b Para a realização do curso fezse parceria entre GERE e secretarias municipais de educação dessa microrregião121 Ainda 119 Ata do quarto encontro da formação docente A Cor da Cultura 18 out 2011 Disponível nos arquivos da 11ª GERE município de PiranhasAL 120 Relação das EscolasDiretoresEndereços 11ª CRE antes chamada de Coordenadoria Região de Ensino sd 121 Ata do primeiro encontro da formação docente A Cor da Cultura 18 out 2011 Disponível nos arquivos da 11ª GERE município de PiranhasAL 214 assim a média de participantes que assinaram as atas foi de sete pessoas Apenas no quarto encontro compareceram 17 profissionais Por que tão poucos Por falta de interesse e dos preconceitos subjetivados pelos próprios docentes assim como constatou Braga Júnior 2013 sobre os professores de Maceió AL Seria por falta de estrutura institucional suficiente para garantir as liberações de cada docente no curso sem prejuízos profissionais As atas não registram tais sondagens A pesquisa realizada por Aquino 2019 identificou que um dos motivos que limita a implementação de práticas curriculares antirracistas no sertão é justamente a falta de políticas públicas para a formação docente voltadas à temática na região Durante a pesquisa realizada em 2017 os seus entrevistados reclamaram que há muito tempo não se ouvia falar em formação de tal perfil no município Alguns mesmos afirmaram que nunca ouviram menção a isso na cidade Sem formações devidas mas apenas com as cobranças legais os professores conseguiam ativar imagens estereotipadas sobre a cultura afrobrasileira o que dificultava o aprendizado crítico democrático e significativo dos estudantes Contudo na falta de formações garantidas pelo Estado os professores sentemse na obrigação de buscar por si mesmos essas formações muitas vezes pagando por estas Isso foi constatado tanto por Aquino 2019 quanto em nossa pesquisa quando tem essas oportunidades eu sempre me inscrevo porque a gente sabe que o Estado é limitado Profa Yewá 2018 Como em nossa investigação também na pesquisa de Aquino são os docentes negros e as docentes negras quem mais se interessam em buscar formações específicas sobre a temática étnicoracial Assim os saberes docentes sobre o tema são construídos mais por iniciativas privadas dos profissionais do que por políticas públicas garantidas pelo Estado Contudo a fala da professora Tia Marcelina relativiza a discussão mas assim a secretaria já fez formações Eu soube que teve mas eu não participei Profa Tia Marcelina 2108 De fato após a formação de 2011 apenas em 2017 foi realizada outra formação promovida pela SEMED de Delmiro Gouveia Essa contou com professorespesquisadores do NUDES e do Abí Axé Egbé As demais formações ocorridas nessa cidade foram promovidas de forma gratuita pelos projetos da UFAL O poder municipal só veio a oferecer uma nova formação específica sobre a temática negra em 2018 em parceria com a Fundação Cultural Palmares FCP e Secretaria de Cultura de Alagoas O curso pretendeu fortalecer as políticas públicas voltadas à igualdade racial apoiando a educação mas agindo especificamente na 215 formação de professores como instrumento de garantia de mudança de comportamentos por parte dos docentes envolvidos122 O curso foi ministrado por uma professora residente em Maceió adepta da umbanda mestranda em Antropologia pela UFAL e pesquisadora da cultura negra A metodologia foi participativa e incluiu análise de livros didáticos vídeos canais na plataforma YouTube apresentação da legislação pedagógica aulas de campo leitura e produção de textos atividades didáticas oficinas e de projetos pedagógicos No cronograma do projeto foram muito utilizados os verbos analisar avaliar e elaborar se percebendo a pretensão do curso em articular teoria e prática Infelizmente não tivemos acesso a registros quanto aos resultados alcançados com esse projeto Entretanto sabemos a procura por participar dessa formação aumentou bastante Foram 43 inscritos123 dentre os quais quatro deles são professores participantes dessa pesquisa Alafim Tia Marcelina Dandara e Milton Santos Apesar da evasão de muitos profissionais ao longo do processo 18 deles continuaram participando até o final Assim ponderamos que as formações têm existido em número ainda insuficiente O perfil das discussões varia entre a folclorização e a politização de perspectivas mas todas são centradas em transformar as concepções e as condutas dos docentes Constatamos também que mesmo sendo poucas nem a metade dos professores sertanejos compareceu a elas não se sabe se por escolha ou por falta de condições trabalhistas Outros elementos citados nas entrevistas por interferirem nos saberes e nas práticas docentes sãos os diferentes materiais de apoio O livro didático é um dos principais apesar das críticas aí a gente pega este livro do sexto ano não tem nada O livro não traz O conteúdo é raso O conteúdo programado do sexto ano não traz a gente de fato tem que ir buscando Foram dadas algumas temáticas pela secretaria pela SEMED Profa Maju 2018 A respeito disso a pesquisa desenvolvida por Carvalho 2019 sobre os livros didáticos de História adotados na rede municipal de ensino de Delmiro Gouveia entre os anos de 2017 a 2019 revelou que esses materiais deixavam bastante a desejar no que se refere ao trato adequado da temática étnicoracial embora paulatinamente venham trazendo mais informações do que livros adotados em edições anteriores Ainda assim esses materiais apresentavam mais conteúdos sobre África do que sobre cultura afrobrasileira ou os conflitos raciais no Brasil 122 Projeto Conhecendo Nossa História da África ao Brasil Fundação Cultural Palmares Maceió 02 fev 2018 Disponível nos arquivos da SEMED Delmiro Gouveia p 01 123 Relação do quantitativo de inscritos Curso Conhecendo nossa História da África ao Brasil Fundação Cultural Palmares Maceió 2018 Disponível nos arquivos da SEMED Delmiro Gouveia 216 Diante das limitações do livro didático os docentes recorrem a outros materiais como livros e artigos científicos livros paradidáticos e infantojuvenis fontes de época vídeos músicas teatro imprensa escrita radiofônica e televisiva Sobremodo o que se sobrepõe em suas práticas são os sites da Internet pela rapidez de busca e acesso bem como pela brevidade dos textos e vídeos site é mais prático ele traz a informação logo rápido Profa Rosa 2018 Eles atribuem isso à falta de tempo e à sobrecarga de trabalho embora essas buscas nem sempre partam deles mesmos a coordenadora me enviou só alguns links para eu pesquisar mas assim eu confesso que não pesquisei Profa Tia Marcelina 2018 Já a professora Maju criticou as orientações da SEMED Eu peguei alguns livros aqui História e Geografia ela fala isso procurando fontes impressas em seus materiais de trabalho História e Cultura Afro Brasileira e Indígena mostrando o planejamento impresso depois lê a orientação analisar os conteúdos que podem ser retirados do próprio livro didático complementando com atividades retiradas da Internet É isso que a gente faz revistas voltadas ao tema filmes e animações Profa Maju 2018 Maju critica a superficialidade da orientação que recebera da SEMED ao passo que também afirma cumprir as determinações legais mesmo dentro das limitações Embora alegue que se sente mal diante da situação a sua prática discursiva busca eximila de maiores responsabilidades frente à questão Apesar do uso constante da Internet entre os entrevistados apenas a professora Yewá citou o nome de um site o Portal do Professor ao qual recorre sempre que sente necessidades para acessar planos de aulas e ter inspirações didáticas De todo modo apesar das dificuldades as ações docentes mostram a existência mesmo que frívola de parcerias entre os profissionais Essas parcerias mesmo fluidas produzem redes de sentido que fomentam a continuidade formativa a fim de assegurar as práticas de ensino Conforme nossos entrevistados a mídia às vezes atrapalha bastante no desenvolvimento das discussões étnicas na escola pois reproduz estereótipos e estigmas sobre a identidade e cultura negras Às vezes ela ajuda quando proporciona imagens que convidam os seus expectadores a repensarem suas concepções Os professores sabem aproveitar ambas as situações em sala de aula para problematizar as relações raciais O caso emblemático citado por muitos dos entrevistados foi o da telenovela Malhação Exibida aos finais de tarde pela Rede Globo de Televisão desde 1995 voltada ao público juvenil a trama é muito assistida entre os alunos sertanejos Os professores mencionaram o ânimo com o que os estudantes debatiam constantemente os percalços dessa narrativa em sala de aula o que interferia nas práticas de ensino pois se sentiam obrigados a inteiraremse do 217 universo cultural dos alunos para transformar suas preocupações em temas de ensino de História em acordo com o planejamento semestral Aproveitase o que os discentes trazem em forma de diálogo com o tema gerador programático de cada aula Às vezes se consegue mais atenção dos alunos julgam eles quando se faz esse tipo de articulação do que quando apenas se pretende desenvolver uma narrativa histórica do passado por si mesmo A 26ª temporada da novela Malhação à época das entrevistas tinha como tema Vidas Brasileiras e conforme lembrou a professora Dandara trazia como protagonista uma jovem negra que assumia penteados e moda afro Em torno dela também se desenrolavam questões raciais a serem debatidas Dandara e Milton Santos lembraram do potencial que essa trama novelesca proporcionou para as suas aulas desde que acompanhadas de análises críticas aí a gente vê isso nos alunos essa discussão melhorando Prof Milton Santos 2018 É bastante comum que as práticas pedagógicas recebam a influência ou mesmo interferência dos discursos midiáticos COSTA 2006 Para Fischer poderíamos dizer que hoje praticamente todos os discursos sofrem uma mediação ou um reprocessamento através dos meios de comunicação FISCHER 2001 p 212 Conforme nossos dados além de influenciar nos debates escolares o discurso da mídia tem subjetivado e influenciado as formas como os alunos constroem as suas autoimagens através de seus corpos sobretudo nos penteados afro que se tornam mais comuns na região Há também a inserção de outros recursos didáticos nas práticas dos professores sertanejos as memórias de pessoas negras da cidade as suas próprias experiências e práticas culturais os espaços dos terreiros e comunidades quilombolas as comunidades negras e grupos artísticos As pessoas são sujeitos produtores de memórias culturais É assim que surgem as menções a pesquisadores e profissionais liberais negros babalorixás e yalorixás lideranças comunitárias e quilombolas capoeiristas artistas e grupos afro atuantes no sertão São pessoas convidadas pelos professores para palestrarem e ministrarem oficinas nas escolas públicas Muitas escolas públicas do alto sertão alagoano convidam o Abí Axé Egbé para ministrar oficinas e realizar apresentações culturais Se alguns gestores e professores veem nesse grupo uma parceria para implementação da cultura afro na escola entre os estudantes as reações são diversas que dança doida Parece que está pegando espírito Prof Milton Santos 2018 citando os alunos Mas conforme o professor Milton Santos mesmo não sendo bem aceita por todos os sujeitos escolares apenas a presença do Abí Axé Egbé garante a produção de debates o que é muito bom para que se possam realizar discussões por mínimas que possam parecer 218 Sobre a presença do grupo como um recurso didático Alafim diz o Abí Axé é exemplo disso Tem gente ali que se apresenta que não é do santo124 Tem gente que ama o trabalho do Abí Axé e é evangélico Isso pra mim é uma revolução terrível Isso é uma questão de pesquisa de estudo dizem isso Prof Alafim 2018 Para ele o grupo de cultura negra do sertão é provocativo pela sua própria estética assumidamente negra e porque sempre traz alguma representação dos orixás Tratase de uma presença local que é utilizada como recurso didático na prática pedagógica desses docentes Entre cobranças orientações e disposição de materiais didáticos as atividades pedagógicas em torno da cultura afrobrasileira concentramse no mês de novembro Acessamos alguns projetos125 produzidos e guardados pelas docentes Dandara e Yewá além de fotografias126 e um relatório127 arquivado pela segunda professora São documentos que registram as atividades realizadas em escolas estaduais nos anos de 2014 a 2019 Não há registros desses tipos nas escolas do município Esses projetos se constituem como práticas docentes pois foram elaborados e executados pelas professoras Deles retiramos algumas informações importantes a Para além das ações cotidianas no ensino sobre a cultura afro quase invisíveis garantese um calendário anual para celebrar publicamente a consciência negra b Em seus textos afirmase a presença negra no sertão especificamente nas escolas o que é um dado relevante tanto por ser contra hegemônico à cultura local quanto por ter mulheres negras como autoras c O protagonismo engajamento e continuidade do trabalho com a negritude gera o reconhecimento dessas docentes entre seus pares como competentes e responsáveis para desenvolver essas discussões nas escolas Elas inserem a temática negra nos diversos projetos que as escolas desenvolvem ao longo do ano Consideramos portanto que os projetos pedagógicos são pequenos espaços oficiais de seu microativismo ou seja da forma capilar como o seu engajamento político profissional e pessoal com a temática étnicoracial se realiza no cotidiano de trabalho De modo geral os projetos registraram diferentes construções e reconstruções de conteúdos anseios concepções valores e práticas que constituem seus saberes Cruzandoos percebemos que os primeiros deles objetivavam reconhecer valorizar e divulgar as 124 Povo de santo ou do santo é também uma expressão mais antiga para se referir aos adeptos das religiões de matriz africana 125 IV Mostra Cultural as manifestações culturais afrobrasileiras 2014 Sarau Literário expressão e arte 2015 Projeto sobre Ética e Cidadania desconstruindo o olhar sobre o negro 2016 II Ciclo de Oficinas da Escola Watson 2016 e V Ciclo de Oficinas da Escola Watson 2019 126 Conforme padrões de ética em pesquisa as fotografias analisadas não serão dispostas nessa tese para não expor as pessoas mas a análise de seus conteúdos estão presentes no conjunto de nossas reflexões 127 Relatório do I Ciclo de Oficinas da Escola Watson africanidades no sertão 2015 219 contribuições dos povos negros na cultura nacional e concretizavam abordagens bastante românticas e folclóricas artes jogos escravidão castigos senzala resistência quilombos religiões personalidades negras danças músicas culinária e lendas O que é dito nesses projetos não difere das memórias da professora Rosa quanto às suas primeiras práticas pedagógicas para efetivar a Lei nº 1063903 quando surgiu o tema era bem tranquilo quando se falava em cultura afro pensavase logo na dança Profa Rosa 2018 A recorrência de práticas de ensino centradas na dança e na culinária por exemplo faz uso dos argumentos defendidos por perspectivas científicas de finais do século XIX até a metade do século XX que pensava a cultura afrobrasileira apenas como reprodução mecânica de tradições puras caracterizadas pelo seu caráter lúdico e sensóriomotor ao mesmo tempo em que considerava muitos dos valores éticos e estéticos de origem negra como grosseiros supersticiosos e atrasados São como vimos antes noções há muito criticadas pela produção científica contemporânea e pelo movimento negro Outro tipo de abordagem bem comum centravase em abordagens superficiais sobre algumas personalidades negras Tratase da elaboração de listas de nomes datas fotografias profissões e ações de indivíduos negros que se destacaram nos campos político artístico científico religioso pedagógico Embora seja importante o reconhecimento dessas personalidades muitas abordagens se limitam a ponderar as ações desses sujeitos como resultantes de esforços pessoais para a sua inserção na lógica meritocrática neoliberal As histórias de vida e as condições de possibilidades que delinearam as lutas desses sujeitos negros não costumavam serem abordadas Ao deslocar tais personalidades das lutas negras as quais muitas delas fizeram parte como militantes comprometidas elas são transformadas nas práticas discursivas escolares em novos heróis da negritude mas heróis que subjetivam ideias de autoesforço disciplina meritocracia e individualismo em detrimento do coletivismo Isso pode gerar suposições nos alunos de que esses heróis conseguiram destaque social devido à ausência do racismo e não apesar dele Argumentos como esse repousam sob as bases de um multiculturalismo humanista pois argumenta que os seres humanos são todos iguais que a diversidade cultural merece respeito e que os êxitos pessoais resultam de esforços individuais e não de lutas coletivas Esse tipo de narrativa histórica escolar instiga os alunos a reconhecerem a diversidade e de alguma forma respeitála mas sem necessariamente questionar as relações de poder que transformam a diversidade ao produzir as diferenças No entanto percebemos que com o passar dos anos os objetivos dos projetos pedagógicos escritos pelas professoras assumiram um argumento bélico lutar contra o racismo a partir da escola A partir de 2016 em meio ao turbilhão de discussões sobre Escola Aberta 220 Golpe de Estado corrupção autoritarismo e as reformulações da Base Nacional Comum Curricular BNCC o termo racismo passou a figurar a problemática e justificativa na elaboração de tais projetos As autoras também passaram a dividir as ações com todos os outros professores da escola e com convidados da sociedade civil o que as ajudaria a realizar um bom trabalho sem sobrecarregálas e também responsabilizaria e sensibilizaria mais profissionais em torno de questões étnicoraciais Foi um movimento estratégico Com a participação dos graduandos bolsistas do PIBID por exemplo surgiram novas linguagens campos e temas pelos quais a cultura negra foi debatida pela ótica da militância e do combate ao racismo fanzines histórias em quadrinhos charges cartografias animações e literatura foram explorados com mais rigor analítico e crítico Outro tipo de parceria explorada deuse com intelectuais artistas religiosos profissionais liberais comunicadores sociais e lideranças comunitárias negras atuantes no município Essas opções das docentes requalificou o nível dos debates em suas escolas No entanto pela descrição dos demais docentes entrevistados verificamos que há uma predominância de projetos que realizam abordagens bastante superficiais nas outras escolas da região Os exemplos foram inúmeros Ainda assim ponderamos todos os projetos têm sua importância enquanto lugares de memória no currículo por gerar discursividades e visibilidades negras nas escolas Eles sempre funcionam como espaços de pesquisa e novos aprendizados tanto para os alunos quanto para os próprios professores Além disso as discussões não se encerram ao fim das celebrações Elas renascem e são retomadas em diversas situações posteriores No relatório analisado afirmase Foi uma experiência maravilhosa já que muitas pessoas da comunidade escolar presentes nunca tinham vivenciado um momento como aquele E o melhor de tudo foram os dias que se seguiram pois as várias perguntas e questionamentos que surgiram foram de suma importância para levar a discussões e quebrar preconceitos existentes sobre a religião racismo e outras mazelas que ainda persistem na nossa sociedade128 Assim os professores avaliam que essas práticas promovem mudanças de concepções e comportamentos dos alunos e deles mesmos Isso os faz verem o processo com bastante otimismo apesar das críticas que podem ser feitas ao funcionamento dos sistemas de ensino Entretanto cientes os próprios docentes afirmam que as celebrações não são suficientes para 128 Relatório I Ciclo de Oficinas da Escola Watson africanidades no sertão que descreve as atividades do mês da consciência negra na referida escola em 2015 221 erradicar o racismo Todos afirmaram que é importante ensinar história e cultura afrobrasileira durante todo o ano todo e não só nas datas comemorativas Isso deve ser um compromisso tanto de cada docente como da escola disse Milton Santos Obviamente esse processo não se realiza facilmente uma vez que tanto as condições materiais pessoais e simbólicas de trabalho docente tornamse cada vez mais precárias Conforme Pizzi e Araújo 2011 importa considerar além dos saberes de que forma as condições de trabalho condicionam e alteram as práticas dos professores afinal a precarização da educação restringe o desenvolvimento de estilos profissionais docentes interditando o poder criativo e de ação desses sujeitos no cotidiano de seu trabalho Afeta negativamente sua cognição seus sentimentos e mesmo a sua saúde Aliado a isso existe a inerente multidimensionalidade do trabalho docente implicada na diversidade de sujeitos com quem se lida nas práticas discursivas e não discursivas e nas dinâmicas e contextos específicos Esses entrelaçamentos complexificam burocratizam intensificam e tornam o trabalho docente repleto de descobertas e incertezas PIZZI ARAÚJO 2011 Para eles as políticas públicas também fragilizam seu trabalho e interferem em suas ações Angustiados informaram que o compromisso público será cada vez mais necessário sobretudo no contexto de ascensão dos movimentos neoliberais ultraconservadores Para os professores de História a eleição de Bolsonaro firmaria os riscos da censura às práticas curriculares multiculturais e a urgência da luta docente para resistir como profissional e como pessoa eu pensei vou ser presa pois em momento nenhum eu me intimidei e pensei ah eu não vou mais falar disso por que agora é proibido Profa Yewá 2018 Para Alafim professor negro garantir essa temática nas escolas é uma questão de militância e resistência o que implica em praticar enfrentamentos constantes a fim de que os docentes sejam protagonistas engajados com a transformação das relações raciais a partir de bases democráticas e emancipatórias Atualmente entre os temas que consideram mais fácil ensinar estão escravidão negra e as formas de resistência a beleza da identidade negra e de sua cultura o racismo no Brasil contemporâneo Porém pela forma como descrevem algumas atividades não se consegue necessariamente desfazer alguns estereótipos Já o tema mais difícil de ensinar é religiões de matriz africana Esse foi mais um consenso Atribuem essa dificuldade a diversos fatores ao que chamam de intolerância religiosa de alguns gestores escolares professores pais e estudantes cristãos e à falta de materiais didáticos Entretanto não podemos esquecer que em suas próprias histórias de vida os saberes que construíram em torno das religiões de matriz 222 africana foram interpelados por estereótipos e estigmas que lhes geraram medos desconhecimentos e negações As tentativas de alguns docentes em abordar os cultos de matriz africana geraram desconfortos e polêmicas como aconteceu no caso da produção de vídeos documentários pelo celular sobre os terreiros como pediu o professor Alafim quando Dandara decidiu levar uma turma de alunos para visitar um candomblé no centro da cidade ou no dia em que os visitantes do stand que ela organizou sobre religiões negras na Feira Cultural da escola não pegavam os doces dispostos num cesto por medo de estarem enfeitiçados também quando ela foi impedida pela gestora de discutir religiosidades negras numa escola quilombola É difícil também quando o Abí Axé Egbé visita cada escola com suas oficinas e apresentações artísticas ou mesmo quando uma gestora nega a sugestão do professor Milton Santos em levar o grupo à instituição ou ainda quando a gestora do docente Griô impede as menções afroreligiosas na escola mas permite a música gospel e a presença de lideranças e ritos evangélicos na instituição Também quando ao fim de uma oficina o babalorixá convidado por Yewá serviu acarajés mas os professores da escola não comeram a iguaria por medo Se o conjunto das relações de poder que produz e transforma as práticas docentes gera entusiasmo nos professores que reconhecem seus poderes de ação engendram também lutas e frustrações quando eles se deparam com atos racistas Eles se autointensificam e autorresponsabilizam PIZZI ARAÚJO 2011 Todos os nossos entrevistados assumiram uma parcela de culpa e tristeza Contudo quanto à questão étnicoracial não podemos dizer que os professores de História do sertão estejam sozinhos pois hoje podem contar com diferentes sujeitos órgãos e instituições sobretudo as negras ativistas com quem podem formar redes de sentido antirracistas O que ainda precisa melhorar é a quantidade e qualidade das parcerias e os investimentos do Estado nas condições de trabalho docente 63 Os saberes da prática docente sobre o ensino de história e cultura afrobrasileira Os docentes são influenciados pelas redes de sentido tecidas historicamente através dos diversos processos de socialização pelos quais passam pelos diferentes níveis e tipos de formação profissional a que têm acesso e ainda pelos valores culturais as diversas morais que os afetam Ainda assim embora esses processos sociais influenciem bastante nas formas de subjetivação desses sujeitos eles não são determinantes absolutos para definilos 223 Na perspectiva da epistemologia da prática profissional TARDIF 2002129 é preciso tratar os professores como sujeitos ativos na produção dos seus saberes Os processos formativos discursos e valores que os habitam disputam forças e são reconstruídos a partir de exercícios múltiplos de análises recusas deslocamentos articulações sínteses e reelaborações efetuadas nas próprias subjetividades desses profissionais enquanto executam o seu trabalho no meio social GORE 2011 LARROSA 2011 Dessa forma os docentes são agentes que redimensionam as categorias regras e linguagens sociais que estruturam as suas experiências nos processos cotidianos de comunicação e interação O professor emite juízos diante de condições reais de trabalho Sua racionalidade é conforme Tardif 2002 uma capacidade pensante para agir para refletir sobre a própria prática produzindoa enquanto argumenta sobre ela É uma razão ao mesmo tempo sensível cognitiva e pragmática Ela é uma condição instável fluída e tensionada por diversos elementos o que lhe confere uma natureza aberta argumentativa eou narrativa cuja consistência se produz nas práticas discursivas e não discursivas de cada profissional Tal racionalidade serve de medida para avaliar a competência do professor portanto é preciso considerála para compreendermos a natureza complexa dos saberes docentes as formas como são produzidos como funcionam no cotidiano e quais são alguns dos seus efeitos Os saberes docentes são caracterizados por Tardif 2002 pela heterogeneidade pragmática e temporalidade que lhes constituem Eles formam uma complexa rede de sentidos e práticas em movimentos dinâmicos sempre abertos a uma infinidade de possibilidades de conexões deslocamentos e arranjos São saberes originados na prática internos a ela produzidos e utilizados pelos professores a fim de resolver os problemas surgidos no cotidiano profissional para que possam executar as suas tarefas e dar sentido a situações concretas e próprias de trabalho Esses saberes têm naturezas diversas correspondem ao saber enquanto domínio dos conteúdos habilidades competências necessárias à profissão docente ao saberser como uma capacidade de posicionar e de se recriar enquanto profissional do ensino e ao saberfazer enquanto reelaboração constante dos objetivos conhecimentos e atitudes a partir dos desafios implicados nas interações humanas Também são de origens diversas científica técnica cognitiva discursiva disciplinares pedagógicas curriculares profissionais culturais pessoais afetivas morais éticas estéticas e experienciais Isso define os saberes docentes como 129 Estudo do conjunto dos saberes realmente utilizados pelos profissionais em seus espaços de trabalho cotidiano para desempenhar todas as suas tarefas 224 temporais sendo construídos na interação entre sujeito e contextos históricos ao longo dos espaços institucionais por onde passou e das relações pessoais e profissionais que desenvolveu Tardif 2002 categorizou a diversidade dos saberes docentes conforme as suas origens se externa ou interna aos professores O autor separou e categorizou os saberes entre profissionais e experienciais Aqueles que são suscitados no meio social ou seja que correspondem ao conjunto de saberes transmitidos pelas instituições de formação de professores como as universidades e institutos foram os saberes profissionais e subdividem se em a Saberes pedagógicos relacionados às doutrinas ou concepções provenientes de reflexões sobre a prática educativa ou seja aos arcabouços teóricometodológicos político ideológicos e às formas de saberfazer No caso de nossa investigação compreende a formação do campo teórico sobre educação para as relações étnicoraciais e a relevância sobre as formas como essa discussão afeta diferentes esferas da prática docente como currículo materiais didáticos concepções valores e condutas b Saberes disciplinares alusivos às ciências aos campos do conhecimento e saberes disciplinares das universidades e institutos de pesquisa No caso de nossa pesquisa dizem respeito aos conhecimentos específicos sobre história e sobre cultura afrobrasileira c Saberes curriculares constituídos pelos discursos objetivos conteúdos e métodos que as escolas categorizam e apresentam como saberes sociais relevantes de uma formação erudita Para nós diz respeito às maneiras como o currículo produz e orienta abordagens étnico raciais no ensino de História a partir da legislação pedagógica vigente Dito isso temos que esses saberes são externos ao professor porque são garantidos e legitimados por instituições sociais produzidos e partilhados com um grupo de trabalhadores o que lhes confere uma cultura profissional o que lhes torna socialmente relacionáveis e mutáveis ao longo do tempo Eles formam o a priori histórico dos docentes subjetivandoos e produzindoos como profissionais de determinadas singularidades compromissos expectativas e condutas É preciso considerar que a complexidade do ofício docente ou seja do ato de ensinar baseiase nas interações humanas nas condições e nos instrumentos de trabalho Essas variáveis implicam relativa imprevisibilidade no exercício do trabalho É no cotidiano que surgem desafios materiais e simbólicos com os quais os professores lidam a fim de empregar determinados meios para alcançar certos fins Nesse sentido apenas os saberes profissionais não são suficientes para a efetivação das práticas docentes 225 Conforme explica Tardif 2002 muitos professores tendem a hierarquizar os saberes segundo a sua aplicabilidade às situações reais de ensino Para esses profissionais portanto o fundamento privilegiado de seu saber é a experiência de trabalho É nela que eles reconquistam suas relativas autonomias e produzem os saberes analíticos que lhes são internos É pela experiência enquanto reflexão sobre a prática que os docentes estabelecem diferentes relações com seus saberes a fim de dominálos integrálos e mobilizálos Produzidos nas convergências entre desafios possibilidades improvisos deslocamentos e rearranjos os saberes experienciais são construídos no interior das interações humanas Eles são atravessados por regras valores tecnologias e relações de poder mas também as recriam Para Tardif 2002 a experiência é um espaço reflexivo em que os professores constroem e aplicam seus saberes reelaborando os sentidos do trabalho sobre o trabalho Ela é marcada pela reflexividade enquanto capacidade linguística de mostrar retomar e modificar procedimentos e regras de ação adaptandoos à novas situações ou seja ela não é apenas a ação do professor no cotidiano de trabalho mas a construção linguística sobre a ação do professor A linguagem cria a experiência enquanto saber docente É nesta operação que o professor reavalia os saberes curriculares pedagógicos e disciplinares a partir das necessidades de improvisar nas aulas Os saberes experienciais formam imagens pelas quais os docentes interpretam compreendem e orientam suas práticas É através dela que um professor incorpora os saberes profissionais da cultura docente à sua experiência individual enquanto pessoa singular sujeito historicamente produzido e subjetivado e assim desenvolve seus estilos pessoais de docência O valor dos saberes experienciais está no fato de que são práticos produzidos internamente aos próprios docentes no desafiador e imprevisível cotidiano escolar É por esse tipo de saber que os professores se avaliam se regulam e medem as suas próprias competências profissionais Esses saberes experienciais originamse também no interior das práticas profissionais porque a própria prática não é vista unicamente como ato de ensinar mas como ato de aprender Em meio à prática o próprio docente retraduz e articula os saberes Ele aprende a ser um profissional enquanto age reflete e elimina o que lhe parece inutilmente abstrato e conserva o que lhe parece útil Objetivando e confrontando suas experiências o docente é não só um prático mas também um formador Portanto enquanto ato duplo de ensino e aprendizagem de exercício e de formação as práticas docentes são também dispositivos que subjetivam e instituem esses mesmos sujeitos reorientando as suas condutas Daí que as práticas docentes não são tecnologias de reprodução mas de produção de experiências saberes e práticas novas irrepetíveis mesmo que elas se delineiem em meio ao desenvolvimento de estilos pessoais 226 Importa frisar que os saberes experienciais são também os efeitos da interferência que outras instituições e relações sociais tiveram sobre os professores subjetivandoos família comunidade escolas religião formas de trabalho Contudo a análise das histórias de vida e profissionalização tornam perceptíveis a origem interna desses saberes pois mesmo passando por processos de formação profissional parecidos às vezes nas mesmas épocas e instituições sobre os mesmos referenciais científicos pedagógicos e processos curriculares os professores produzem diferentes racionalidades práticas diferentes saberes Diariamente chegam a usar várias referências saberes e modelos de ação no decurso de suas atividades Enquanto saberes práticos originados na experiência singular de cada sujeito eles são sustentados tanto por teorias científicas pedagógicas e curriculares quanto por crenças sentimentos convicções valores morais compromissos éticos e políticos particularizados Vimos que ao longo de suas histórias de vida os professores sertanejos construíram diferentes saberes estereotipados e estigmatizados sobre a cultura afrobrasileira Eles só entraram em contato com discussões mais sistemáticas e profundas sobre relações étnicoraciais e cultura afro a partir de seus ingressos nas universidades públicas que foram instaladas nos sertões da Bahia e Alagoas através de cursos de graduação e pósgraduação ou pela participação em projetos de ensino pesquisa e extensão dessas universidades sobretudo do Campus do Sertão da UFAL Porém isso só aconteceu após mais de dez anos da sanção da Lei nº 1063903 e deveuse muito ao processo de expansão universitária empreendido pelos governos do Partido dos Trabalhadores PT Obviamente esses professores sentem que há lacunas em seus processos de formação profissional Eles mesmos caracterizam os seus saberes sobre relações étnicas e cultura negra como insuficientes Por vezes reclamam que seus cursos de licenciatura não equipararam as discussões sobre a prática profissional ao nível das discussões teóricas Entretanto ao utilizar o chavão desarticulação entre teoria e prática estão admitindo de alguma forma que não desenvolveram saberes práticos suficientes para lidar com todo o tipo de situação que surja a partir das interações produzidas no cotidiano de trabalho Deslocamse momentânea e simbolicamente do lugar de saber para um lugar de não saber Isso pode ocorrer devido a diferentes motivos tanto pelo sucateamento das escolas ou pela precarização da carreira profissional quanto por suas próprias fragilidades no que diz respeito ao aprofundamento teóricometodológico para abordar as relações étnicas e a cultura negra no ensino de História Nesse sentido criticar a falta de articulação entre teoria e prática poderia ser encarado também como uma transferência de responsabilidades pessoais para as instituições 227 Nesse ínterim talvez alguns deles não percebam todos os saberes que mobilizam suas práticas inclusive aqueles de origem não acadêmica valores morais crenças religiosas performances de gênero e de raça tradições familiares modelos escolares de suas infâncias e juventudes etc Os saberes de suas vidas são constantemente acionados negociados imbricados e partilhados em suas narrativas históricas escolares atuais Talvez por sentirem que lhes falta um maior aprofundamento conceitual e teórico os saberes experienciais com ênfase nas aprendizagens biográficas de cada um parecem tornaremse mais úteis e importantes para a efetivação das aulas de História do que os profissionais Aí reside o risco do retorno das imagens estereotipadas sobre a negritude Ainda assim percebemos que o que há de fato são encontros de saberes práticos que se movimentam O ensino de História no sertão alagoano está correlacionado com uma série de processos formativos produzidos em diferentes momentos instituições e experiências Ele é portanto complexo polifônico e polissêmico Ele conecta diversos saberes identitários profissionais étnicoraciais políticos e culturais Por serem diferentes tais conexões constroem distintas práticas e efeitos Considerando os professores como profissionais portadores de saberes plurais e a noção de saberes práticos de Tardif articulandoa com os discursos dos entrevistados buscamos perceber que tipos de saberes práticos os professores sertanejos construíram e põem em funcionamento no cotidiano de ensino de história e cultura afro ou seja que atitudes e condutas eles desenvolvem perante as relações e discussões étnicoraciais na escola Assim identificamos três formas de incorporação da temática negra aos seus estilos de docência e as categorizamos nos seguintes grupos 1 Os saberes práticos intermitentes 2 Os saberes práticos desestabilizadores 3 Os saberes práticos militantes Os saberes práticos intermitentes correspondem ao desenvolvimento de processos pedagógicos ainda minimizados em torno da temática racial e são fortemente marcados pela periodicidade intervalada de sua efetivação As narrativas tipificadas nesse grupo apresentam níveis de engajamento e compromissos políticos fluidos Nesse tipo de saber não se nega a pertinência da discussão étnicoracial embora não se faça dela uma constante nas práticas de ensino Tampouco apresentase maior aprofundamento teórico e conceitual Nesse jogo de sentidos os saberes experienciais retraduzem constantemente os saberes profissionais sobre a cultura negra Nesse grupo se instalaram as práticas discursivas dos docentes que se declararam mestiços fossem licenciados em História ou não Em suas narrativas esses professores ainda negociam com a ideia de mestiçagem para se afirmarem e estabelecerem suas relações sociais 228 no sertão Também em seus próprios discursos argumentase que as temáticas afro seriam mais interessadas e legítimas ao lugar de fala de pessoas negras Deste modo eles se isentariam de maiores compromissos na abordagem de tais assuntos Ainda assim as relações étnicoraciais e a cultura negra tornamse uma marca nos currículos que praticam em seu trabalho mas isso acontece sobremaneira quando esses conteúdos aparecem nos livros didáticos ou quando os professores são incitados a realizar projetos pedagógicos e celebrações no mês da consciência negra por exigência de órgãos pedagógicos no cumprimento da lei Mesmo com menores graus de engajamentos seus saberes e suas práticas pedagógicas já não são mais as mesmas pois elas foram atravessadas por conceitos princípios fontes e metodologias que orientam a perceber e contemplar a diversidade étnica no ensino de História Os saberes práticos desestabilizadores são aqueles que produzem problematizações e intervenções em conflitos raciais para além de arrolarem uma lista de conhecimentos históricos antropológicos e pedagógicos sobre cultura negra A crítica em perspectiva histórica define os tons desses saberes Há maior aprofundamento teórico e metodológico nas abordagens efetivadas embora as visões particulares de mundo de cada professor seus saberes experienciais ainda intervenham Nesse grupo se enquadram três docentes entre brancos e a docente indígena Isso demonstra o quanto mesmo os sujeitos que subjetivaram pertencimentos étnicos diferentes da negritude também têm se mobilizado em prol do combate ao racismo embora seus discursos não tomem as relações raciais como prioridade de seus conteúdos de ensino Esses profissionais não são insensíveis aos conflitos raciais surgidos na escola e interferem neles bem como percebem a relevância dessa temática ao observar e considerar o perfil racial e social de seu alunado sertanejo As desestabilizações que suas práticas discursivas causam não são menos poderosas do que outras embora pareçam mais amenas Ao longo do ano escolar independente dos conteúdos programáticos nos livros didáticos de História contando com outros materiais de ensino e ainda realizando celebrações da consciência negra na escola esses saberes dão visibilidade ao racismo o questionam criticam contextualizam desestabilizando desta forma as suas forças mesmo que pouco consigam ainda compreender e explicar as lógicas da cultura afrobrasileira pela ótica negra Os saberes práticos militantes enquadram as experiências produzidas pelos professores que tomam sistematicamente as relações étnicoraciais e a cultura afrobrasileira como objetos relevantes na reconstrução do conhecimento histórico Esses professores discutem de maneira muito frequente nos planejamentos curriculares e por diferentes 229 problemáticas fontes e métodos uma significativa diversidade de temas ligados às experiências históricas das populações negras no Brasil Isso acontece de forma cotidiana tanto em diferentes níveis de planejamentos como de práticas pedagógicas que vão desde as aulas excursões pesquisas desenvolvimento de projetos interdisciplinares a celebrações escolares Eles também interferem em conflitos raciais surgidos no ambiente escolar transformandoos em questões para pesquisas e debates nas aulas de História independentemente dos temas ou conteúdos programados para as aulas Nesse caso temos a priorização não apenas da resolução de problemas para continuar dando aulas de História mas também da temática racial o que transforma a aula ampliando suas possibilidades pedagógicas a partir do acontecimento imprevisível sem se perder o foco inicial daquela a fim de retomálo em seguida Nesse sentido não se trata só de dar aula de História mas de reeducar étnico racialmente os estudantes a partir de múltiplos processos de problematização desconstrução e reconstrução dos saberes Os saberes práticos militantes se tratam de esforços profissionais sistemáticos para combater o racismo a partir da escola Ao priorizarem tais subversões momentâneas dos temas da aula de História esses professores priorizam a temática racial como conteúdo As suas ações curriculares planejadas somadas às maneiras pelas quais mobilizam seus saberes e desenvolvem tais práticas desvelam o caráter militante de seus estilos de docência Neste grupo encontramse as práticas discursivas e não discursivas dos professores que se declaram negras e negro aqueles cujas histórias de vida e da formação profissional os possibilitou questionarem discutirem reconstruírem e subjetivarem modelos de negritude Ser saber e saberfazer encontramse e produzem experiências pedagógicas que não são meramente intermitentes nem somente desestabilizadoras mas que se constituem como espaços de um microativismo que se manifesta de forma capilar insistente e positiva Uma militância resistente pela qual os docentes refazem a si mesmos seus laços compromissos e engajamentos profissionais pessoais e étnicos São saberes ativistas porque desconfiados críticos e reconstrutores perenes de cuidados éticos e estéticos Eles são alimentados não só pelos saberes profissionais pedagógicos científicos normativos e curriculares mas também pelos saberes experienciais biográficos e culturais dos professores Essas três categorias pelas quais designamos os saberes docentes sobre as relações étnicoraciais não idealizam um modelo de prática pedagógica Ao invés disso conforme a epistemologia da prática profissional são oriundas dos dados analisados a respeito de situações concretas das escolas públicas do sertão 230 Nas narrativas analisadas percebese que os saberes práticos intermitentes desestabilizadores e militantes incluem não só os conteúdos específicos sobre história e cultura negra mas também as formas de proceder observar e considerar as experiências locais os universos socioculturais e os perfis étnicoraciais dos seus alunos adaptar polemizar desconstruir e reconstruir conteúdos específicos analisar materiais didáticos e coordenar debates identificar e mediar conflitos corrigir informações problematizar opiniões e práticas orientar perspectivas e atitudes construir e mobilizar categorias étnicoraciais reconstruir linguagens metáforas exemplos e narrativas situar e comparar informações analisar conjunturas históricas relacionar os conteúdos de história e cultura afro com a história da cidade utilizarse de memórias culturais e da sabedoria popular da região É importante lembrar que conforme Foucault 2012 o saber é também uma posição do sujeito inscrito nos jogos de poder Enquanto posições podemos dizer que os saberes docentes demarcam as relações desses profissionais com outros grupos produtores de conhecimento TARDIF 2002 Pela força das concepções que subjetivaram historicamente das coerções normalizadoras inseridas pela legislação pedagógica antirracista e das repetições dos rituais pedagógicos afrocentrados produzemse diferentes sensibilidades políticas no professorado sertanejo o que paulatinamente reorienta as suas práticas profissionais à democracia e justiça social Já é perceptível por mais que pareça pequena e ainda frágil a emergência de uma cultura docente que reconhece a legitimidade e urgência das discussões sobre relações étnicas e cultura afrobrasileira Para os professores cada vez mais a relevância dessa temática se torna evidente e significativa à medida em que é ditada não só pelas demais instituições sociais e leis mas também pela complexidade inscrita nos perfis dos estudantes na história e cultura local nas interações humanas e nas decisões que eles tomam Ela se torna relevante pelo seu caráter prático e experiencial porque produzida por eles mesmos em meio aos desafios e possibilidades de recriarem as possibilidades do ensino de História no cotidiano escolar Tal análise nos faz considerar que enquanto posição política e relação com outros grupos produtores de conhecimentos os saberes docentes estão orientandose paulatinamente ao encontro das teses defendidas não somente pela produção científica contemporânea que discute o conceito de cultura afrobrasileira mas também pelas teses defendidas pelo movimento social negro do Brasil Isso é um processo gradual e capilar com diferentes ritmos graus e capacidades de profundidade e extensão mas nem por isso menos latente e significativo na localidade analisada 231 É no emaranhado dessas redes de confluências que os professores reconstroem currículos irrepetíveis nas aulas de História A sala de aula o ambiente de seu trabalho funciona como um laboratório de democracia não só para os alunos mas também e depois de compreender essas histórias de vida e de profissionalização quem sabe principalmente para os próprios professores 232 7 A DESPEITO DO FIM UM CONVITE A NOVOS RECOMEÇOS O POTENCIAL DOS SABERES E PRÁTICAS NA CONSTRUÇÃO DE TEORIZAÇÕES PEDAGÓGICAS Os campos do ensino de História e das Relações ÉtnicoRaciais têm se estabelecido entre muitas disputas políticas por diferentes projetos de nação no Brasil contemporâneo Muito mais do que apenas a definição dos conteúdos dispostos no currículo o que está em jogo é o apagamento ou a afirmação da memória coletiva a partir das seleções das categorias sociais que serão contempladas ou não nos possíveis projetos de sociedade Em meio à turbulência que caracteriza a política brasileira nos últimos anos e que busca silenciar as práticas pedagógicas centradas na diversidade continua urgente a necessidade de investigações científicas que mapeiem as dificuldades e as possibilidades de efetivação do ensino de história e cultura afro brasileira Pleiteiamse as abordagens sobre as relações raciais no cotidiano escolar como uma questão legítima que abre espaços para discussões relevantes tais como racismo desigualdades sociais formas de exclusão e dominação cidadania cultural promoção da igualdade democracia e ética É transformar cada aula de História em espaço de experimentação onde possamos não só analisar criticamente aquilo que nos tornamos mas também ensaiar novas metáforas sobre aquilo a que podemos nos tornar tomando como centro da reflexão os critérios étnicoraciais O ensino de História propicia essas críticas e reconstruções Praticálo é um ato de resistência e esperança Aí reside a sua poética ROCHA 2019 Se diferentes discursos do pensamento contemporâneo constaram que a raça é um dispositivo de produção de identidades hierarquizadas que estrutura as relações sociais brasileiras CARNEIRO 2005 ALMEIDA 2019 é importante que ela seja tomada como objeto de problematização análise crítica e discussão também nos bancos escolares Assim não só os estudantes mas também os professores poderão ser inseridos em experiências pedagógicas que ressignifiquem os discursos as posições de sujeitos os saberes e as práticas que produzem mesmo inconscientemente relações raciais assimétricas a fim de que possam construir novas O currículo étnicoracial de História é esse espaço contestado justamente pela sua positividade política A partir dessas concepções contextualizamos e problematizamos os enunciados dos professores entendidos como construções mais amplas do que as simples formulações ditas nas entrevistas ou seja como o conjunto complexo das correlações existentes entre as práticas 233 discursivas e não discursivas desses professores FISCHER 2001 FOUCAULT 2012 Deste modo consideramos os sentidos produzidos no conjunto das falas desses professores identificando heterogeneidades e ambiguidades bem como as suas performances enquanto narravam seus tons de voz seus gestos e posturas efeitos de sentidos suscitados nas fotografias das celebrações escolares os argumentos utilizados nos projetos e as descrições feitas nos relatórios e atas Tomando como base a explicação de Fischer 2001 para analisar as enunciações desses docentes em perspectiva foucaultiana pontuamos quatro aspectos 1 A referência a partir de que falam o regime de verdade fabricado historicamente e afirmado como nossa verdade referencial ou seja a obrigatoriedade de exercerem uma prática curricular antirracista 2 Os sujeitos que falam professores que ensinam História mesmo no caso daqueles que se formaram em outras áreas mas complementam suas cargahorárias ensinando essa disciplina Eles são reconhecidos em suas comunidades escolares como professores de História São lugares de saberpoder que compõem uma rede de sentidos são autores de narrativas históricas de um saber histórico escolar 3 As materialidades nas quais se manifestam seus enunciados as narrativas orais os projetos os relatórios e as fotografias das atividades pedagógicas e suas performances corporais 4 A rede de correlações ou seja os outros discursos existentes nos arquivos linguísticos e políticos de nossa cultura e que estabelecem relações interdiscursivas com o discurso dos docentes o discurso do movimento social negro da mídia das ciências histórica e antropológica mas também a influência dos discursos religiosos étnicos e profissionais É nesse emaranhado de práticas discursivas e não discursivas que se movimentam de outras ordens discursivas para a ordem discursiva pedagógica e criam de acordo com cada contexto diferentes regras condições e poderes de enunciação que esses professores se deslocam assumem posições são habitados por regras poderes instituições projetos e formas de resistência FISCHER 2001 SILVA 2014 Seus discursos materializam as formas como eles se apoiam nessas referências mas também as negam polemizam e transformam As práticas discursivas dos docentes atrelamse ao estabelecimento da verdade antirracista o que lhes impõe regras específicas as quais modificam suas práticas mais até do que alguns saberes Essa vontade de verdade étnicoracial estabelece relações de poder no currículo real que se pretendem reconhecedoras de dissimetrias raciais históricas que vitimizam a população negra que seja denunciativa e produtora de valorizações da multiculturalidade crítica 234 Entretanto como os discursos são batalhas povoadas por correlações múltiplas o que não permite a existência de explicações lineares FISCHER 2001 FOUCAULT 2012 2014 a verdade antirracista do currículo de nosso tempo é ressignificada por diversas ambiguidades geradas pelas práticas discursivas e não discursivas dos professores em suas atividades diárias Isso se dá porque o sujeito do enunciado não é necessariamente o mesmo sujeito que formula as narrativas analisadas SILVA 2014 As formulações discursivas dos docentes entrevistados produzem compromissos antirracistas mas o conjunto de seus enunciados no cotidiano da prática profissional muitas vezes perpetuam contrariamente valores racistas Isso ocorre porque o discurso goza de relativa autonomia em relação ao sujeito estando mais delimitado pelos acontecimentos do cotidiano que faz produzir novos poderes e vontades de verdade SILVA 2014 Entretanto os conteúdos produzidos nas narrativas não nos permitem trabalhar com binarismos reducionistas separando os professores que sabem daqueles que não sabem sobre a cultura afro As suas histórias de vida revelam que todos possuem algum tipo ou forma de saber sobre o tema guardado em suas memórias O que varia sãos os conteúdos as formas as imagens que cada pensamento formula e reelabora durante as aulas de História bem como as atitudes que empreendem para realizar seu ofício Alguns desses saberes foram reconstruídos pelos próprios professores durante as entrevistas quando eles afirmaram que nunca tinham percebido certas vivências familiares pedagógicas religiosas profissionais públicas ou privadas como manifestações da discriminação racial Nesse sentido as suas próprias biografias constituíramse como dispositivos de formação de novos saberes sobre as relações étnico raciais JOSSO 2002 LARROSA 2011 Por isso consideramos tais narrativas como como dispositivos desconstrutores e reconstrutores do sujeito por si mesmo uma prática de subjetivação espaço criador de saberes identitários pessoais e profissionais Elas geraram tensões e questionamentos e realizam deslocamentos transformações e reorientações de perspectivas e condutas Ao analisálas ficou nítido um conjunto de regularidades discursivas desse grupo profissional que produzem suas verdades FOUCAULT 2012 2014 também como saberes da prática Essas verdades são disputadas tanto pela permanência de valores e práticas conservadoras de longa duração que se atualizam de forma velada na sociedade sertaneja como também as mudanças de concepções e o entusiasmo de sujeitos daquele lugar que tem se transformado e assumido o compromisso público com o projeto antirracista 235 Para sistematizar os dados de nossa pesquisa de modo a construir uma orientação didática inspiramonos num modelo explicativo cunhado por Reyes 2020 o qual sistematiza as regularidades discursivas e as possibilidades de aprendizados que tal análise nos permite 71 Quais as regularidades de significados que as narrativas docentes produzem A invisibilidade da raça ou a subjetivação do racismo velado Esses professores são atores sociais que tiveram acesso às mesmas ordens discursivas disponíveis em nossa cultura Como pessoas comuns nascidas e crescidas no espaço do alto sertão alagoano possuem suas histórias de vida atravessadas por práticas discursivas e não discursivas racializadas mas na perspectiva do embranquecimento Antes esses indivíduos não percebiam a existência de raças em situações que julgavam serem de boa convivência social as enxergavam apenas em situações de conflito Nessas ocasiões pessoas brancas se afirmavam enquanto que as declaradas mestiças eram deslocadas para a negritude identidade sempre renegada tomada como ofensiva A mestiçagem funcionava como dispositivo de nivelamento de invisibilização das diferenças e negociação por privilégios o que acarretava em suas infâncias o acirramento cotidiano das disputas de poder ao invés do seu apaziguamento Esse fato não deixou de acontecer na vida adulta daqueles declarados pardos como é o caso do professor Griô Esses sujeitos também foram subjetivados por ordens discursivas cristãs pela mídia pelo pensamento e categorias analíticas ocidentais Suas formações primeiras como cidadãos os inscreveram saberes e práticas fortemente arraigadas no racismo estrutural e numa moralidade elitista de modo que não só escamotearam mas também naturalizaram e reproduziram muitas atitudes discriminatórias não apenas em relação aos fenótipos corpóreos mas também em relação às tradições culturais afrobrasileiras mesmo sem perceber As transformações intelectuais e políticas proporcionadas pela história de vida e pela formação profissional na docência Os motivos pelos quais eles ingressaram na carreira docente foram diferentes pelas poucas opções disponíveis de uma formação cultural mais ampla no sertão alagoano um salário melhor prestígio social mas também por influência familiar porque seria uma profissão cabível e respeitável para uma mulher agir no espaço público naquela região ou ainda por questão de 236 afinidade e gosto pessoal Os professores mais velhos cursaram o magistério e só anos depois é que cursaram suas licenciaturas O momento de formação profissional em níveis de graduação e pósgraduação foi importante para o confronto e a politização de suas percepções pessoais do mundo social Eles reconheceram e afirmaram o caráter plástico e processual de suas identidades profissionais de seus saberes e práticas ao passo que consideram de suma importância os novos e sistemáticos processos formativos As experiências de formação profissional na graduação e pósgraduação a atualização de seus currículos e recursos didáticos a presença de professores universitários negros e ativistas a participação em debates cursos de curta duração ministrados aulas de campo a participação em projetos de extensão e pesquisa além da interação com grupos culturais contaram para que os professores aprendessem sobre a cultura afrobrasileira Destacamse nessa constelação as ações de ensino pesquisa e extensão nas universidades públicas Nas narrativas docentes foram os únicos lugares que mesmo em diferentes ritmos graus e extensão realizaram debates sobre a diversidade étnica Disso avaliamos que as universidades públicas têm sido historicamente os laboratórios de exercício da inclusão democracia e combate ao racismo na formação de professores sobretudo em contextos interioranos Seus processos formativos não são completos se não forem citados os cursos de formação continuada para as relações étnicoraciais ainda que poucos como também as atividades lúdicas artísticas e celebrações públicas junto a grupos de cultura negra e também os seus processos formativos nãoformais dentro de instituições negras a que acessaram como os terreiros de matriz africana por exemplo como foi o caso do professor Alafim Após se formarem professores e entrarem em contato com a Lei 1063903 eles passaram paulatinamente a reconhecer e falar em racismo algo que antes estava longe de suas percepções As experiências inevitáveis no cotidiano escolar que devem ser enfrentadas pois a sua reprodução interfere nas práticas cotidianas de ensino produz conflitos raciais compromete o aprendizado dos conteúdos planejados para as aulas segrega identidades e prejudica o desenvolvimento escolar de alunos negros também construíram definições e leituras sobre o racismo Obviamente isso não é unânime pois ainda há práticas discursivas que duvidam da presença e manifestação de conflitos étnicos Entendemos que isso procede porque para alguns deles o racismo foi naturalizado de forma velada em suas histórias de vida de tal maneira que ainda lhes dificulta saber identificar suas manifestações na escola e assim poder combatêlas 237 Até mesmo porque muitas formas de expressão do racismo usam de argumentos e adjetivos morais e não raciais para desqualificar alguém Isso confunde a subjetividade dos interlocutores pois projeta a imagem de uma prática moral e não de uma prática racista Há muito casos em que os professores acabam reproduzindo relações etnicamente dissimétricas mesmo que eles tentem compensar com argumentos ainda bastante racializados que promovem a hierarquia enquanto argumentam a democracia racial a valorização da identidade cultural negra ressaltam proximidades por laços de sangue de sentimentos e de memórias com pessoas negras proferem muitos elogios aos negros como forma de se isentar e performar uma atitude não racista Não foi somente o fator dos estudos desses professores em universidades públicas com currículos atualizados sobre questões étnicoraciais que os fizeram mudar de concepção De fato eles são profissionais formados em meio ao crescimento otimista das políticas sociais de esquerda em expansão no Brasil durante as primeiras décadas do século XXI mas suas percepções e sensibilidades políticas também foram transformadas pelas suas próprias histórias de vida enquanto pessoas cujas origens em termos socioeconômicos se situam nas classes médias baixas e trabalhadoras do sertão durante as décadas de 1980 e 1990 Suas trajetórias sociais são marcadas inicialmente por precariedades materiais e simbólicas por interdições e recalques o que também lhes gerou experiências e memórias dolorosas lembranças de carências objetivas de injustiças Mesmo subjetivados pela moralidade elitista conservadora as experiências sofríveis desses sujeitos de algum modo os tornaram sensíveis ao seu contexto cultural Eles fizeram leituras críticas construíram aprendizados significativos na experiência concreta desenvolveram sentimentos como compaixão e cuidado em relação às pessoas com quem conviviam e percebiam serem vítimas de formas de exclusão SOUZA 2018 Para tanto essa índole benevolente estava restrita às relações pessoais mais próximas e intimistas Ela não se mobiliza suficientemente para contestar e transformar as estruturas locais de dominação Ainda assim enquanto profissionais liberais cidadãos de classe média e portanto como sujeitos cuja distinção é traçada também pelo acesso aos conhecimentos técnico científicos mais elevados SOUZA 2018 a busca pela formação superior teve um papel fundamental para que eles ampliassem suas sensibilidades políticas e aprofundassem as críticas sociais compreendendo a dimensão racial na redefinição do próprio espaço e das relações pessoais e institucionais sertanejas Neste caso as histórias de vida marcadas pela relativa ascensão social garantida pela profissionalização universitária e associadas às suas origens humildes são artefatos relevantes na reconstrução das moralidades dos saberes e das práticas pessoais e profissionais desses docentes acerca da história e cultura afrobrasileira 238 A reconstrução de pertencimentos étnicoraciais como tática de negociação e estabelecimento de lutas interessadas Professores brancos indígena e negros declararam seus pertencimentos étnicos sem titubear já os mestiços tentaram acomodarse entre ambiguidades e negociações Em ambos os casos se produzem disputas nas práticas curriculares entre a aceitação ou recusa da perspectiva antirracista Durante as entrevistas só os mestiços questionaram a pertinência da temática étnicoracial no ensino de História A docente indígena e os docentes brancos fizeram leituras mais críticas apontaram maior número de práticas de enfrentamento e questionamento ao racismo mas as suas práticas se mostraram menos sistemáticas e programáticas em relação ao tema Osas professoresas negras e negro por sua vez priorizaram a temática racial para além dos seus planejamentos a contempla sempre que avaliam necessário Eles realizaram mais críticas assumiram mais compromissos e elencaram mais práticas pedagógicas do que os outros Têm mais engajamento protagonismo interesse em pesquisar planejar e ampliar seus saberes sobre a história e a cultura afrobrasileira bem como em executar aulas projetos temáticos e eventos sobre a negritude nas escolas em que atuam Isso ocorre ao ponto de ficarem estereotipados no interior de suas comunidades escolares como os professores que discutem as questões do negro Obviamente que os seus pertencimentos étnicos contribuíram muito para isso afinal suas histórias de vida também possuem marcas do racismo de que foram vítimas de alguma forma seja pela cor da pele pela ancestralidade ou pelas práticas culturais de origem negra que perpetuaram130 Percebemos ainda assim que apesar da influência de seus distintos pertencimentos étnicos todos desenvolvem diferentes níveis de engajamentos e compromissos com a efetivação de práticas pedagógicas sobre as relações étnicoraciais A formação profissional foi 130 Como já afirmamos anteriormente esta é uma pesquisa qualitativa portanto localizada num espaço e tempo delimitados tendo a participação de um grupo de sujeitos com características históricas muito específicas Não podemos generalizar os dados nem impor limites aos saberes e práticas dos docentes apenas com base em seus pertencimentos étnicoraciais Daí que analisamos também os significados e as atitudes que esses sujeitos produzem e empreendem Não induzimos ao reducionismo de que pessoas não negras não estudam investigam discutam ou ensinem sobre relações étnicoraciais nem que não possam fazêlo Contrariamente nossos dados constataram níveis de engajamento crítico nas práticas de docentes brancos e indígena O que realçamos aqui são os ritmos graus extensões formas e conteúdos empreendidos por cada um deles nas suas práticas pedagógicas sobre as relações étnicoraciais Nesse sentido no contexto analisado foram mais latentes os saberes práticos de professores negras e negro Suas experiências são marcadas por novas práticas de significação étnicoracial nas quais pesam não só as normas pedagógicas oriundas da Lei nº 1063903 mas também os seus fenótipos corpóreos e as suas práticas culturais o que implica em memórias de segregação e de resistências que ao longo de suas histórias de vida deslocaramse pelas práticas discursivas que lhes estabeleceram uma nova ordem a do reconhecimento e pertencimento à negritude e com isso a sistematicidade de um compromisso político antirracista como prática ética e estética que marcam suas próprias subjetividades mas que as ultrapassam e se expandem 239 fundamental nesse processo sobretudo a partir do conhecimento da legislação pedagógica antirracista que lhes normatizam ao requerer novas perspectivas saberes e práticas Os saberes profissionais pedagógicos disciplinares e curriculares bem como os saberes experienciais biográficos e culturais se articulam e formam um novo a priori histórico que delineia os campos de disputas nos quais esses professores emitem sentidos e trabalham Observando o que acontece cotidianamente no chão da escola mesmo que em diferentes graus percebese que as práticas profissionais desses professores já não são mais as mesmas Aproveitar o universo sociocultural dos alunos e adaptar a produção dos saberes A escola é percebida como o local de trabalho A tarefa de educar é pensada como um ato de promover um processo de desconstrução e reconstrução de identidades sociais e de transformação das condutas a partir da problematização e contextualização histórica Para agir em seu local de trabalho os docentes levam em consideração desde o seu planejamento passando pela realização das aulas até os momentos avaliativos o contexto sociocultural e os perfis dos seus alunos bem como a cultura da cidade A partir disso eles realizam adequações dos conteúdos e formas de suas práticas pedagógicas Eles reconhecem a predominância de alunos negros e pobres em Delmiro Gouveia condições que os colocam em situação social desprivilegiada As aulas de História portanto funcionam como laboratórios de cidadania onde se exercitam os questionamentos a inquietação a indignação com as injustiças sociais como a pobreza e o racismo É a partir dessas atitudes que eles esperam transformar as subjetividades e condutas de seus alunos Assim temas da diversidade cultural e da crítica social têm aparecido nas suas práticas cotidianas com diferentes graus de discussão a fim de que possa fazêlos refletir indignarse e mobilizarse por mudanças Muitas vezes a discussão crítica sobre desigualdade social é mais corriqueira do que as discussões sobre diversidade cultural gênero raça ou sexualidade A questão é que nas narrativas docentes do sertão alagoano as condições e relações sociais dos alunos se tornam mais emergentes do que as condições e relações raciais Isso os dá o subterfúgio necessário para hierarquizarem as discussões que introduzem no cotidiano do ensino de História falando mais em classe do que em raça por exemplo Há situações em que para evitar conflitos os professores ignoram ou minimizam casos de racismo produzem um silêncio permissivo Nesse sentido os saberes étnicosraciais não são apenas temas sensíveis no ensino de História eles são também presenças incômodas nas práticas curriculares de alguns professores 240 A presença de identidades hegemônicas interdita as abordagens étnicas nas escolas Aqui temse deliberadamente uma disputa que envolve ordens discursivas raciais e religiosas Todos os entrevistados denunciaram em diferentes momentos e de diferentes formas que a presença afirmada de algumas identidades culturais sobretudo brancas e cristãs tem dificultado o trabalho com a cultura afrobrasileira nas escolas públicas sertanejas Isso interfere quando gestores escolares interditam convites a sujeitos e grupos negros para participarem de alguma atividade na escola quando os professores questionam ou criticam a inserção de determinadas atividades culturais negras nos projetos e celebrações escolares ou quando alunos retrucam as discussões étnicas e fazem piadas ou mesmo quando seus pais comparecem às escolas para reclamar de tais abordagens Em suas narrativas isso acontece porque socialmente a cultura afrobrasileira ainda está muito associada às religiões de matriz africana o que gera novas hierarquizações e seleções interessadas na seleção dos conteúdos de ensino é mais fácil discutir a discriminação racial e a resistência negra desde que não se tome como exemplo as religiões de matriz africana tema ainda bastante vigiado censurado interditado e muitas vezes punido em algumas escolas Em compensação denunciam as práticas discursivas cristãs que povoam o cotidiano escolar sem a menor dificuldade Na maioria dos casos elas são percebidas como necessárias à formação de cidadãos de bem Todavia isso não quer dizer que os docentes deixem de abordar de alguma forma as religiões negras apesar dos conflitos profissionais e pessoais que lhes possam surgir Ensinar sobre religiões afro implica um risco e uma resistência Contudo esses profissionais também dispõem de parcerias Isso mostra que muito do que se faz no ensino de História são relações de poder fluidas e que desvelam a resistência docente seu poder criativo suas posturas ALBUQUERQUE JÚNIOR 2019 SEFFNER 2019 A precarização das condições de trabalho A politização da categoria profissional é percebida quando criticam as relações de trabalho as quais são submetidos Assim eles se posicionam como duros críticos das políticas educacionais neoliberais Mesmo sem serem sindicalizados constroem outras redes de solidariedade profissional de cunho mais pessoalizado para fortalecer suas táticas cotidianas Até certo ponto isso é também um efeito da precarização de sua profissão pois desarticulações enfraquecem a categoria e não deixam de ser a subjetivação de certos valores neoliberais os quais criticam como a ética individualista que permeiam os seus discursos 241 Eles responsabilizam o Estado tanto pelas insuficiências formativas oferecidas quanto pela precarização profissional com que lidam Inquietos com seus saberes e práticas na maioria das vezes se sentem impelidos a investirem do próprio bolso em formações continuadas devido à raridade com a qual os poderes públicos as oferecem Citam a falta de recursos didáticos a estrutura precária das escolas públicas a elevada carga horária duplas jornadas de trabalho a hegemonia de valores eurocêntricos na cultura escolar Tudo isso interfere em suas possibilidades de criação ação e realização pessoal e profissional Assim os professores sentemse habitados pela pressa reprodutibilidade cansaço e desesperança Nesse sentido os discursos que os responsabilizam são demasiadamente reducionistas e desonestos pois chegam a afetar negativamente suas subjetividades ao se autointensificarem e autorresponsabilizarem e quiçá adoecerem PIZZI ARAÚJO 2011 Crítica à redução dos debates étnicos aos momentos de celebrações na escola Unanimemente eles criticam a redução de abordagens sobre a cultura afrobrasileira a datas comemorativas como no mês da consciência negra Afirmam em contrapartida que a temática deve ser discutida ao longo de todo o ano De toda forma realizam atividades e celebrações anualmente sobretudo em dois momentos no mês de maio referente à abolição da escravatura e no mês de novembro referente à consciência negra No segundo caso especificamente eles são cobrados pelas secretarias de ensino pelas gestões e em alguns casos por si mesmos para realizarem tais atividades A análise documental nos permitiu perceber que os momentos de festa são inseridos enquanto transformação da rotina pedagógica com suas aulas expositivas O teor que predomina nesses momentos ainda é bastante romântico e produz muitas abordagens folcloristas da cultura afrobrasileira Contudo não podemos esquecer que a função dessas atividades é celebrar o orgulho do reconhecimento e pertencimento à negritude é uma pauta legítima do movimento negro Construídas como projetos essas culminâncias resultam de meses de pesquisas e debates sobre o tema Elas são também lugares de memória negra no currículo para a subjetivação de professores alunos e toda a comunidade escolar Criar esses lugares de memória é um efeito de uma sociedade que insiste em apagar tais pertencimentos NORA 1993 Essas celebrações são também apesar de todos os conflitos e disputas que possam instalar bem como das críticas as quais podemos submetêlas estratégias antirracistas contra o projeto de embranquecimento social que se perpetua também na instituição escolar 242 A reconstrução de práticas curriculares no cotidiano escolar como múltiplas resistências As práticas pedagógicas desses docentes funcionam como exercícios diários de resistência a múltiplas forças contingenciais como as relações profissionais com as secretarias de educação e gestões escolares a obrigatoriedade das normas os atos racistas que identificam no dia a dia ou mesmo o próprio projeto antirracista Os professores elaboram diversas táticas no cotidiano A mais comumente citada foi a de parar a discussão de uma aula diante de um conflito racial para transformar o fato em tema da aula A maioria reconhece que é preciso tornar essa discussão cotidiana mas ponderam que nem sempre conseguem fazer isso As suas concepções sobre os seus próprios saberes práticas e identidades profissionais Os professores subjetivaram a profissão docente Eles se percebem de fato como professores reconhecem suas relativas autonomias e seus estilos pessoais de ensino mas também reconhecem limitações nos seus saberes o que os faz projetar imagens de si mesmos como profissionais incompletos em permanente construção As narrativas docentes produzem a imagem idealizada de um professor adequado na qual concluem eles mesmos não cabem ainda O professor ideal teria uma formação sólida e integral diante das demandas contemporâneas geradas para o ensino dominar os conteúdos históricos e as turmas de estudantes ter tempo de pesquisa e preparação das aulas ter contatos atuais com experiências culturais negras sem preconceitos e medos dispor de uma estrutura de trabalho que favoreça a sua atuação de forma ininterrupta acessar cursos de formação continuada e ter mais autonomia no ambiente de trabalho Essa imagem é projetada a partir das reflexões que fazem quando somam o que aprenderam nos documentos normativos pedagógicos nos cursos de licenciatura nas formações continuadas na mídia nas cobranças oficiais que lhes chegam pelos órgãos gestores da educação pública e nos desafios e dificuldades com os quais lidam diariamente no ambiente escolar Contudo o ato de recontarem as suas próprias histórias de vida os fragmentou fazendo os perceber como ao longo do tempo eles se tornaram pessoas e profissionais carentes de todos esses atributos que associam à imagem de um professor adequado o que os frustra As concepções e leituras dos docentes produzem uma imagem desses profissionais como agentes constantemente desafiados pela legislação antirracista Esse é um fato muito semelhante aos encontrados por Oliveira 2015 em sua pesquisa sobre as concepções de 243 professores do Rio de Janeiro sobre a cultura afrobrasileira e as relações éticas Os professores avaliam em suas narrativas que dominam melhor os seus saberes práticos no entanto já não são tão seguros quanto ao domínio de saberes étnicoraciais Eles reconhecem que seus saberes possuem lacunas de reflexões teóricas conceituais e metodológicas sistemáticas e por isso perpetuam estereótipos A diferença entre os dados que encontramos no sertão alagoano em relação àqueles colhidos por Oliveira 2015 no Rio de Janeiro é que os segundos se isentam das responsabilidades pelas limitações de seu ensino e culpam o outro seja esse outro o aluno a gestão a escola as famílias ou outros docentes Já os profissionais sertanejos não só indicam responsáveis pela precarização de suas práticas de ensino como também assumem parcela dessa responsabilidade 72 O que podemos aprender do ponto de vista de professores de História sertanejos A análise dos dados nos leva a perceber que em se tratando da temática étnicoracial as experiências docentes apresentam semelhanças com as apontadas por estudos feitos em Maceió AL BRAGA JÚNIOR 2013 e no Rio de Janeiro RJ OLIVEIRA 2015 mas também instalam especificidades pelo fato de estar em uma região interiorana que não se desenvolveu tanto como em outros estados e onde não houve o crescimento de uma cena política e cultural negra A vida desses sujeitos é afetada pelo racismo estrutural que marca as suas experiências históricas de forma velada Mesmo que os processos atualizados de formação docente tenham transformado algumas de suas concepções pessoais e profissionais sobre as relações étnicas podemos dizer que os professores são ainda sujeitos racializados e sujeitos de racialização Eles não somente assumem distintos pertencimentos étnicos como passaram a ver as raças e a classificar os seus alunos dentro dos novos saberes que construíram em relação a essas categorias Justificam dessa forma suas práticas curriculares Professores que categorizam os alunos como negros e brancos justificam a necessidade de se discutir a cultura afrobrasileira e as relações étnicas em sala de aula Professores que não vêm diferentes raças mas só uma a humana ou um alunado misturado pardo têm dado pouca importância a essas temáticas e as cumprem mais por obrigação legal do que por sensibilidade política Da mesma forma os pertencimentos étnicoraciais desses professores é outro critério que redefine os seus estilos de docência embora não os isente de discutilos na escola 244 Os saberes dos professores sertanejos sobre a cultura afrobrasileira são saberes dinâmicos abertos e em movimento Eles são negociados polemizados descartados e assumidos São também racializados ambíguos tensos inseguros e positivos Embora a racialização dessas práticas curriculares opere na lógica binária da racionalidade moderna e ocidental o que reduz muito a discussão não é de todo um retrocesso Ela opera com os dispositivos já utilizados na cultura brasileira pois a lógica do racismo é a de classificar e hierarquizar as pessoas a partir da produção de distinções entre elas e isso se faz de forma binária embora historicamente tenham sido criadas categorias de mestiçagens que mobilizam e acirram as disputas raciais FAZZI 2012 É dentro dessa lógica que a racialização do debate se desloca e produz novos significados desestabiliza a força dos extremismos para criar outras relações raciais mais plurais Ela é positiva pois tem produzido e subjetivado a descentralização e a pluralização de identidades étnicas o que produz novas subjetividades e condutas Portanto os enunciados produzidos na ordem discursiva pedagógica especificamente do ensino de História inscrevemse nos dispositivos contemporâneos de racialidade Produzem e afirmam múltiplas identidades Isso é particularmente perceptível quando considerada a afirmação da identidade negra no sertão alagoano espaço historicamente discursado pela produção de identidades sociais brancas ou mestiças Hoje os discursos pedagógicos elencam não só a presença da negritude no espaço do sertão mas o fazem realçando a diversidade que a caracteriza e expressa se eram negros os escravos e os refugiados em quilombos do passado são negros os remanescentes quilombolas profissionais artistas intelectuais as lideranças políticas comunitárias institucionais ou partidárias os religiosos pobres ou ricos os heróis do presente É negra também uma estética um projeto de sociedade uma prática discursiva antirracista um conjunto de prescrições jurídicas enfim uma cultura centrada na experiência e luta das pessoas negras Os professores entrevistados demonstraram de diferentes formas as estratégias pedagógicas pelas quais afirmam isso Do mesmo modo há uma multiplicação que descentra esses professores seus pertencimentos locais étnicos gêneros geração identidades profissionais convicções religiosas tradições familiares perfis de formação valores morais e estéticos compromissos éticos saberes e práticas memórias e experiências Destarte percebemos a centralidade da linguagem na produção dos sujeitos e de suas realidades sociais e étnicas Por isso consideramos que as experiências de formação docente para as relações étnico raciais precisam ser estudadas conforme as suas necessidades experiências concretas e potencialidades locais Para mudar as possibilidades de práticas de ensino que alteram os 245 currículos e experiências escolares é preciso recriar a cultura profissional dos professores de História a partir de uma perspectiva em que a raça seja percebida como uma categoria importante na orientação de estudos debates planejamentos e práticas As relações étnico raciais são conteúdo do saber histórico escolar e para ele Para garantir a efetivação adequada de práticas curriculares centradas na negritude é preciso investimento em formação na promoção de mais cursos e programas de ensino pesquisa extensão e divulgação científica das universidades complementação das políticas públicas de produção avaliação e distribuição de livros didáticos análises críticas dos currículos escolares com a garantia da inserção da temática étnicoracial desde seus projetos políticos pedagógicos até os planos semestrais projetos temáticos e planos de aula Também é necessária a aproximação das escolas com o cotidiano dos grupos de cultura negra locais quilombos terreiros e grupos artísticos Para isso o apoio do poder público é fundamental Nesse sentido políticas culturais locais precisam ser implementadas pelas prefeituras para potencializar os grupos e comunidades negras que aí existam além de incentivar o surgimento e manutenção de novos grupos o que pode ampliar e intensificar as parcerias culturais com as escolas Também para que a legislação antirracista e o ensino de história e cultura afrobrasileira sejam efetivados eles não podem estar condicionados às estratégias de marketing de governos gestões públicas e partidos políticos Devem ser um compromisso do poder público independente de perfil de gestão uma postura ética e não uma barganha utilitária para se conseguir financiamentos públicos como tem acontecido em Delmiro Gouveia situação denunciada pelos professores Sabese que captar recursos para pequenos municípios é importante até mesmo para garantir condições materiais de investir na continuidade dessas práticas curriculares mas não devem ser reduzidos a isso que seria utilizar de forma instrumental e pragmática uma demanda ética e política que ultrapassa em muito a lógica neoliberal O ensino de história e cultura afrobrasileira deve ser praticado enquanto uma questão cognitiva e política que nos prepare para viver democraticamente a diversidade estando alerta para evitar os riscos em recair nas armadilhas dos jogos de dominação por meio de bandeiras autoritárias como o racismo que se reinventa sistematicamente preservando suas perversidades veladas nas milhares de faces metáforas e condutas sedutoras que produz 246 REFERÊNCIAS ALAGOAS Lei nº 6814 de 02 de julho de 2007 Autoriza o Poder Executivo através da Secretaria de Estado da Educação e do Esporte e do Conselho Estadual de Educação do Estado de Alagoas a elaborar projeto para definir a inclusão nos currículos do ensino fundamental e médio das escolas da rede pública estadual considerando a obrigatoriedade da temática história e cultura afrobrasileira determinada pela Lei 1063903 e dá outras providências Maceió 2007 ALAGOAS Parecer nº 359 2010 Dispõe sobre normas complementares às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico raciais e a obrigatoriedade do Ensino da História e Cultura Afro brasileira Africana Afroalagoana e Indígena nos currículos escolares das Instituições públicas e privadas integrantes do Sistema de Ensino de Alagoas do que dispõe as Leis Nacional nº 1063903 e nº 1164508 Maceió 2010a ALAGOAS Processo nº 6392010 Estabelece normas complementares às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico raciais e a obrigatoriedade do Ensino da História e Cultura Afro brasileira Africana Afroalagoana e Indígena nos currículos escolares das Instituições públicas e privadas integrantes do Sistema de Ensino de Alagoas do que dispõe as Leis Nacional nº 1063903 e nº 1164508 Maceió 2010b ALAGOAS Resolução nº 0822010 Institui normas complementares às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico raciais e a obrigatoriedade do Ensino da História e Cultura Afro brasileira Africana Afroalagoana e Indígena nos currículos escolares das Instituições públicas e privadas integrantes do Sistema de Ensino de Alagoas do que dispõe as Leis Nacional nº 1063903 e nº 1164508 Maceió 2010c ALAGOAS Diretrizes Curriculares Estaduais da Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira AfroAlagoana e Indígena Maceió 2011 ALBERTI Verena Manual de História Oral Rio de Janeiro Editora FGV 2013 ALBERTI Verena PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 ALBUQUERQUE Wlamira de O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 ALBUQUERQUE JÚNIOR Durval Muniz A Invenção do Nordeste e outras artes São Paulo Cortez 2009 ALBUQUERQUE JÚNIOR Durval Muniz De lagarta a borboleta possíveis contribuições do pensamento de Michel Foucault para a pesquisa no campo do Ensino de História In RALEJO Adriana MONTEIRO Ana Maria Cartografias da pesquisa em ensino de História Rio de Janeiro Mauad X 2019 ALMEIDA Silvio Luiz de O que é racismo estrutural São Paulo Companhia das Letras 2009 247 ALVES Julia PIZZI Laura Análise do discurso em Foucault e o papel dos enunciados pesquisar subjetividades na escola Revista Temas em Educação João Pessoa v 23 n 01 2014 AQUINO Leide Representações de professores de História no Sertão de Alagoas sobre a cultura afrobrasileira 2018 Monografia Licenciatura em História Universidade Federal de Alagoas Delmiro Gouveia AQUINO Leide Representações de professores de história do sertão de Alagoas sobre a cultura afrobrasileira In GOMES Gustavo SANTOS Ellen Sertão negro com o Abí Axé Egbé estudos e pesquisas interdisciplinares sobre as presenças negras no sertão alagoano Maceió EDUFAL 2019 ARAÚJO Cinthia Qual o lugar da diferença na pesquisa em Ensino de História In RALEJO Adriana MONTEIRO Ana Maria Cartografias da pesquisa em ensino de História Rio de Janeiro Mauad X 2019 ARROYO Miguel Currículo território em disputa Petrópolis Vozes 2013 ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO Delmiro GouveiaAL sd Disponível em httpwwwatlasbrasilorgbr2013ptperfilmdelmirogouveiaal Acesso em 18 jan 2020 BARROS Rachel CAVALCANTI Bruno Os afrobrasileiros e o espaço escolar por uma pedagogia do lúdico e do informal In BRAGA Maria Lúcia SOUSA Edileuza PINTO Ana Ensino Médio mercado de trabalho religiosidade e educação quilombola Brasília Secretaria de Educação Continuada Alfabetização e Diversidade MEC 2006 BATISTA Maria de Fátima Oliveira A Emergência da Lei nº 1063903 e Educação das Relações ÉtnicoRaciais em Pernambuco 2009 Dissertação Mestrado em Educação Faculdade de Educação Universidade Federal de Pernambuco Recife BEM Arim Soares do A centralidade dos movimentos sociais na articulação entre Estado e a sociedade brasileira nos séculos XIX e XX Educação e Sociedade Campinas v 27 n 97 2006 BENELLI Caterina O docente como profissional reflexivo o papel da biografia formativa e profissional Debates em Educação Maceió v 06 n 12 2014 BHABA Homi O local da cultura Belo Horizonte Editora UFMG 2013 BITTENCOURT Circe O saber histórico na sala de aula São Paulo Contexto 2006 BITTENCOURT Circe Ensino de História fundamentos e métodos São Paulo Cortez 2008 BLACKER David Foucault e a responsabilidade intelectual In SILVA Tomaz Tadeu da O Sujeito da Educação estudos foucaultianos Petrópolis Vozes 2011 248 BRAGA JÚNIOR Amaro Breve panorama sobre o cumprimento da Lei 1063903 em MaceióAL Identidade São Leopoldo v 18 n 01 2013 BRASIL Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 05 de outubro de 1988 Brasília 1988 BRASIL Lei nº 9394 de 20 de dezembro de 1996 Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional Brasília 1996 BRASIL 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Afrobrasileira e Africana Brasília MEC INEP 2004c BRASIL Lei nº 11645 de 10 de março de 2008 Altera a Lei no 9394 de 20 de dezembro de 1996 modificada pela Lei no 10639 de 9 de janeiro de 2003 que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura AfroBrasileira e Indígena Brasília 2008 BRAZÃO Diogo A BNCC como um território de disputas de poder as permanências e rupturas do pensamento eurocêntrico no componente curricular de História da Base Nacional Comum Curricular Simpósio Nacional de História 29 2017 Universidade de Brasília Brasília Anais CAMARGO Aspásia Apresentação da primeira edição quinze anos de história oral documentação e metodologia In ALBERTI Verena Manual de História Oral Rio de Janeiro Editora FGV 2013 CAMPOS Zuleica O combate ao catimbó práticas repressivas às religiões afroumbandistas nos anos trinta e quarenta 2001 Tese Doutorado em História Centro de Filosofia e 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cultural nos livros didáticos de História no município de Delmiro Gouveia AL 2017 2018 Monografia Licenciatura em História Universidade Federal de Alagoas Delmiro Gouveia CARVALHO Ryclesia Os enlaces da diversidade étnica nos livros didáticos de História no município de Delmiro Gouveia In GOMES Gustavo SANTOS Ellen Sertão negro com o Abí Axé Egbé estudos e pesquisas interdisciplinares sobre as presenças negras no sertão alagoano Maceió EDUFAL 2019 CAVALLEIRO Eliane Do silêncio do lar ao silêncio escolar racismo preconceito e discriminação na educação infantil São Paulo Contexto 2012 CERTEAU Michel A cultura no plural Campinas Papirus 1995 CERTEAU Michel A escrita da história Rio de Janeiro Forense Universitária 2008 CHAUÍ Marilena Política Cultural Porto Alegre Mercado Aberto 1985 COELHO Mauro BICHARA Taissa Ensino de História uma incursão pelo campo In RALEJO Adriana MONTEIRO Ana Maria Cartografias da pesquisa em ensino de História Rio de Janeiro Mauad X 2019 COELHO Wilma Formação de professores e relações étnicoraciais 20032014 produção em teses dissertações e artigos Educar em Revista Curitiba Brasil v 34 n 69 2018 COSTA Marisa Paisagens escolares no mundo contemporâneo In SOMMER Luís BUJES Maria Isabel Educação e Cultura Contemporânea articulações provocações e transgressões em novas paisagens Canoas Ed ULBRA 2006 COSTA Werley Sentidos de ser negro no Ensino de História articulações em contextos de referência para a produção do conhecimento no livro didático In RALEJO Adriana 250 MONTEIRO Ana Maria Cartografias da pesquisa em ensino de História Rio de Janeiro Mauad X 2019 CUNHA JÚNIOR Henrique Abolição inacabada e a educação dos afrodescendentes Revista Espaço Acadêmico Maringá n 08 2008 DANTAS Bruna Religião e Política ideologia e ação da Bancada Evangélica na Câmara Federal 2011 Tese Doutorado em Psicologia Social Instituto de Psicologia Pontifícia Universidade Católica de São Paulo São Paulo DEACON David PARKER Ben Educação como sujeição e como recusa In 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arqueologia do saber Rio de Janeiro Forense Universitária 2012 FOUCAULT Michel A ordem do discurso aula inaugural do Collège de France pronunciada em 02 de dezembro de 1970 São Paulo Edições Loyola 2014 FRANCO Nanci A questão racial nas escolas públicas estaduais de Maceió contando um pouco de história Encontro de Pesquisa e Educação em Alagoas 5 2010 Universidade Federal de Alagoas Maceió Anais Disponível em httpswwwacademiaedu9440187AQUESTC383ORACIALNASESCOLASP C39ABLICASESTADUAISDEMACEIC393CONTANDOUMPOUCODE HISTC393RIA Acesso em 10 jun 2019 FREITAS Williem Educação das Relações Raciais a implementação da Lei 1063903 no contexto das escolas públicas e privadas de Maceió 2013 Dissertação Mestrado em Educação Centro de Educação Universidade Federal de Alagoas Maceió FRY Peter A Persistência da raça Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2005 FRY Peter VOGT Carlos Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 FUNES Neiza et al Contribuições da 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prática da diferença Campinas Armazém do Ipê Autores Associados 2006b GOMES Nilma Lino Relações étnicoraciais educação e descolonização dos currículos Currículo Sem Fronteiras sl v 12 n 01 2012 GOMES Nilma Lino O movimento negro educador saberes construídos nas lutas por emancipação Petrópolis Vozes 2017 GORE Jennifer Foucault e educação fascinantes desafios In SILVA Tomaz Tadeu da O Sujeito da Educação estudos foucaultianos Petrópolis Vozes 2011 GRUZINSKI Serge O pensamento mestiço São Paulo Companhia das Letras 2001 HALBWACHS Maurice A memória coletiva São Paulo Centauro 2003 HALL Stuart A identidade cultural na pósmodernidade 11 ed Rio de Janeiro DPA 2006 HARTOG Fracois Regimes de historicidade presentismo e experiências do tempo Belo Horizonte Autêntica 2013 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA Pesquisa Nacional por Amostragem de domicílios síntese de indicadores 2009 Rio de Janeiro IBGE 2010 ITANI Alice Vivendo o Preconceito em Sala de Aula In AQUINO Júlio Org 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Introdução In FOUCAULT Michel Microfísica do poder Rio de Janeiro Edições Graal 1979 MARPIN Ábia Luzes para uma face no escuro emergência de uma rede afroalagoana Maceió FAPEAL Imprensa Oficial 2018 MARSHALL James Governamentalidade e educação liberal In SILVA Tomaz Tadeu da O Sujeito da Educação estudos foucaultianos Petrópolis Vozes 2011 MEIHY José Carlos Sebe HOLANDA Fabíola História oral como fazer como pensar São Paulo Contexto 2013 MINTZ Sidney PRICE Richard O nascimento da cultura afroamericana uma perspectiva antropológica Rio de Janeiro Pallas Universidade Cândido Mendes 2003 MIRANDA Sonia Sob o signo da memória cultura escolar saberes docentes e História ensinada São Paulo Editora UNESP 2007 MIRANDA Sonia A pesquisa em Ensino de História no Brasil potência e vicissitudes de uma comunidade disciplinar In RALEJO Adriana MONTEIRO Ana Maria Cartografias da pesquisa em ensino de História Rio de Janeiro Mauad X 2019 MONTEIRO Ana Maria Os sentidos do ensino de História In MEC Programa Salto para o Futuro Espaços Educativos e Ensino de História Boletim n 02 Rio de Janeiro 2006 MONTEIRO Ana Maria Os saberes dos professores sobre os conhecimentos que ensinam trajetórias de pesquisa em ensino de história In RALEJO Adriana MONTEIRO Ana Maria Cartografias da pesquisa em ensino de História Rio de Janeiro Mauad X 2019 254 MORAES Maria Thereza Experiências e movimentos de subjetivação no percurso de formação identidades sentimentos e histórias Revista Lugares da Educação Bananeiras v 05 n 10 2015 MOREIRA Adilson Racismo Recreativo São Paulo Sueli Carneiro Polén 2019 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Carta de princípios sl se 1978 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO 1982 Programa de Ação discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU Belo Horizonte 1982 MÜLLER Ricardo G Teatro políticas e educação a experiência histórica do Teatro Experimental do Negro TEN 19451968 In LIMA Ivan C ROMÃO J R SILVEIRA S M Org Educação Popular Afrobrasileira Florianópolis n 05 1999 MUNANGA Kabenguele Rediscutindo a mestiçagem no Brasil identidade nacional versus identidade negra Belo Horizonte Autêntica 2008 MUNANGA Kabenguele Negritude usos e sentidos Belo Horizonte Autêntica 2012 NASCIMENTO Edvaldo Delmiro Gouveia e a educação na Pedra Brasília Senado Federal 2014 NASCIMENTO Lucas Escola Memória e Dor jovens negros da educação básica de Delmiro Gouveia AL 19902010 2018 Monografia Licenciatura em História Universidade Federal de Alagoas Delmiro Gouveia NASCIMENTO Lucas CARVALHO Raylane Recordações dolorosas experiências escolares de jovens negras e negros na educação básica de Delmiro Gouveia AL 1991 2010 In GOMES Gustavo SANTOS Ellen Sertão negro com o Abí Axé Egbé estudos e pesquisas interdisciplinares sobre as presenças negras no sertão alagoano Maceió EDUFAL 2019 NORA Pierre Entre memória e história a problemática dos lugares Projeto História São Paulo n 10 1993 OLIVA Anderson A História da África nos bancos escolares representações e imprecisões na literatura didática Estudos AfroAsiáticos Rio de Janeiro v 25 n 03 2003 OLIVEIRA Inês O currículo como criação cotidiana Petrópolis De Petrus Rio de Janeiro FAPERJ 2016 OLIVEIRA Luiz Concepções docentes sobre as relações étnicoraciais em educação e a Lei 1063903 Práxis Educacional Vitória da Conquista v 11 n 18 2015 ORLANDI Eni Análise do Discurso princípios e procedimentos Campinas Pontes Editora 2012 PETERS Michael Governamentalidade neoliberal e educação In SILVA Tomaz Tadeu da O Sujeito da Educação estudos foucaultianos Petrópolis Vozes 2011 255 PIGNATELLI Frank Que posso fazer Foucault e a questão da liberdade e da agência docente In SILVA Tomaz Tadeu da O Sujeito da Educação estudos foucaultianos Petrópolis Vozes 2011 PIOVENAZI Carlos CURCINO Luzmara SARGENTINI Vanice Presenças de Foucault na análise do Discurso São Carlos EDUFSCAR 2014 PIZZI Laura ARAÚJO Isabela Recriações do estilo docente e seu poder de agir os efeitos da precarização Revisita Cocar Belém v 05 n 10 2011 PIZZI Laura MATIAS Walter Repensando políticas e culturas identitárias no currículo as contribuições de Foucault Revista SulAmericana de Filosofia e Educação Brasília n 18 2012 POLLAK Michel Memória esquecimento silêncio Estudos Históricos Rio de Janeiro v 02 n 03 1989 POPKEWTIZ Thomas História do Currículo regulação social e poder In SILVA Tomaz Tadeu da O Sujeito da Educação estudos foucaultianos Petrópolis Vozes 2011 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 2010 Tese Doutorado em História Universidade de Brasília Brasília QUEIROZ Martha Rosa Figueira Ações afirmativas no âmbito da política cultural algumas possibilidades de ação In SILVA Cidinha Africanidades e Relações Raciais insumos para políticas públicas na área do livro leitura literatura e bibliotecas no Brasil Brasília FCP 2014 RALEJO Adriana MONTEIRO Ana Maria Apresentação In RALEJO Adriana MONTEIRO Ana Maria Orgs Cartografias da pesquisa em ensino de História Rio de Janeiro Mauad X 2019 REGIS Kátia BASÍLIO Guilherme Currículo e Relações ÉtnicoRaciais o estado da arte Educar em Revista Curitiba v 34 n 69 2018 REVEL Judith Dicionario Foucault Buenos Aires Nueva Visión 2009 REYES Karina Morrer é um alívio 33 traficantes dizem porque a guerra contra as drogas fracassa El País Brasil 09 jan 2020 Disponível em httpsbrasilelpaiscombrasil20200109internacional1578565039747970html Acesso em 12 jan 2020 RICOEUR Paul A memória a história o esquecimento Campinas Editora Unicamp 2007 ROCHA Helenice Prefácio In RALEJO Adriana MONTEIRO Ana Maria Cartografias da pesquisa em ensino de História Rio de Janeiro Mauad X 2019 256 ROIZ Diogo A biografia na história a história na biografia Revista História da Educação Santa Maria v 16 n 36 2012 ROSE Nikolas Como se deve fazer a história do eu Educação Realidade Porto Alegre 2001 SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 SANTANA Moisés de Melo Olodum carnavalizando a educação curricularidade em ritmo de sambareggae 2000 Tese Doutorado em Educação Faculdade de Educação Pontifícia Universidade Católica de São Paulo São Paulo SANTOS Inês SANTOS Rosângela A etapa de análise no método história de vida uma experiência de pesquisadores de enfermagem Texto Contexto Enfermagem Florianópolis v 17 n 04 2008 SANTOS Sales Augusto A Lei nº 1063903 como fruto da luta antiracista do Movimento Negro In BRASIL Educação AntiRacista caminhos abertos pela Lei nº 1063903 Brasília MEC 2005a SANTOS Jocélio O poder da cultura e a cultura no poder a disputa simbólica da herança cultural negra no Brasil Salvador EDUFBA 2005b SARGENTINI Vanice Ecos da arquegenealogia do Michel Foucault na análise da imagem retratos do homem político na mídia In PIOVENAZI Carlos CURCINO Luzmara SARGENTINI Vanice Presenças de Foucault na Análise do Discurso São Carlos EDUFSCAR 2014 SCHWARCZ Lília O espetáculo das raças cientistas instituições e questão racial no Brasil 18701930 São Paulo Companhia das Letras 1993 SCHWARZ Lilia M Sobre o autoritarismo brasileiro São Paulo Companhia das Letras 2019 SEFFNER Fernando Três territórios a compreender um bem precioso a defender estratégias escolares e Ensino de História em tempos turbulentos In MONTEIRO Ana Maria RALEJO Adriana Orgs Cartografias da pesquisa em ensino de História Rio de Janeiro Mauad X 2019 SILVA Carla Um desafio Jeripancó ensino de História na escola estadual indígena José Carapina sertão de Alagoas 20062016 2017 Monografia Licenciatura em História Universidade Federal de Alagoas Delmiro Gouveia SILVA Claudilene O Processo de Implementação da Lei nº 1063903 na Rede Municipal de Ensino do Recife In AGUIAR Márcia Ângela Org Educação e Diversidade Recife Gráfica J Luiz Vasconcelos 2009 v 02 SILVA Eduardo A análise arqueológica do discurso uma lente de pesquisa em educação Revista Temas em Educação João Pessoa v 23 n 01 2014 257 SILVA Jeferson O que restou é folclore o negro na historiografia alagoana Maceió Fapeal Imprensa Oficial Graciliano Ramos 2018 SILVA Maíra Estratégias negras em águas brancas notas para uma história da escravidão na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Água Branca nos sertões das Alagoas 1864 1865 2015 Monografia Licenciatura em História Universidade Federal de Alagoas Delmiro Gouveia SILVA Marcos FONSECA Selva Ensinar História no Século XXI em busca do tempo entendido Campinas Papirus 2007 SILVA Paulo REGIS Kátia MIRANDA Shirley Sobre a pesquisa Educação e Relações ÉtnicoRaciais Educar em Revista Curitiba v 34 n 69 2018 SILVA Petronilha B Gonçalves e Educação das Relações ÉtnicoRaciais nas instituições escolares Educar em Revista Curitiba v 34 n 69 2018 SILVA Tomaz Tadeu da O currículo como fetiche a poética e a política do texto curricular Belo Horizonte Autêntica 2006 SILVA Tomaz Tadeu da O adeus às metanarrativas educacionais In SILVA Tomaz Tadeu da O Sujeito da Educação estudos foucaultianos Petrópolis Vozes 2011 SILVA Tomaz Tadeu da Documentos de Identidade uma introdução às teorias do currículo Canoas Ed ULBRA 2013 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 SOUZA Carla Transferir para modernizar os feirantes e as relações capitalistas no alto sertão de Alagoas Delmiro Gouveia 19801990 2017 Monografia Licenciatura em História Universidade Federal de Alagoas Delmiro Gouveia SOUZA Florentina Afrodescendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU Belo Horizonte Autêntica 2005 SOUZA Jessé A classe média no espelho Rio de Janeiro Estação Brasil 2018 SOUZA Pedro A dimensão dramatúrgica do acontecimento discursivo In PIOVENAZI Carlos CURCINO Luzmara SARGENTINI Vanice Presenças de Foucault na análise do Discurso São Carlos EDUFSCAR 2014 SPINDOLA Thelma SANTOS Rosângela Trabalhando com histórias de vida percalços de uma pesquisadora Revista da Escola de Enfermagem da USP São Paulo v 37 n 02 2003 TARDIF Maurice Saberes docentes e formação profissional Petrópolis Vozes 2002 258 TORRES Samira Mulher sertaneja negra e yalorixá notas biográficas sobre Mãe Érica de Oxóssi Delmiro Gouveia AL 2019 Monografia Licenciatura em História Universidade Federal de Alagoas Delmiro Gouveia VARELA Julia O estatuto do saber pedagógico In SILVA Tomaz Tadeu da O sujeito da educação estudos foucaultianos Petrópolis Vozes 2011 VEIGANETO Alfredo Foucault e educação outros estudos foucaultianos In SILVA Tomaz Tadeu da O Sujeito da Educação estudos foucaultianos Petrópolis Vozes 2011 259 APÊNDICE 260 APÊNDICE A ROTEIRO DE ENTREVISTA UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO CURSO DE DOUTORADO SABERES E NARRATIVAS DOCENTES MEMÓRIAS E EXPERIÊNCIAS DO ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFROBRASILEIRA NO SERTÃO ALAGOANO Gustavo Manoel da Silva Gomes Orientadora Laura Cristina Vieira Pizzi IDENTIFICAÇÃO Nome Fictício Idade Etnia Gênero Religião Estado civil Naturalidade UF FORMAÇÃO COMO SUJEITO INFÂNCIA E JUVENTUDE o Posição e vida familiar na vida pública localregional o Faleme sobre seus antepassados sua tradição familiar que conhecimentos a sua família lhe passava sobre o mundo por ouvir contar o Qual a influência da sua família na sua carreira profissional Tinha algum familiar atuando na área de Educação o Que pessoas frequentavam a sua casa Você foi marcado por essas presenças Como eram as experiências de convívio e de ouvir a conversa dos grandes o Qual a religião da família Isso lhe marcou de alguma forma Como o Quais os tipos de leituras que a família fazia Livros jornais textos religiosos quais o Qual o papel de cada membro da família em casa e na região o Como eram organizados os hábitos da família Principais atividades quem as fazia Quais os horários Como se sentia praticando esses costumes familiares o Como era a sua casa O espaço físico a localidade as condições 261 o Quais os meios de transporte utilizados pela família durante a sua infância o Sua família possuía que bens materiais Imóveis automóveis telefones etc o Houve transformações na sua estrutura familiar De que tipo Poderia falar sobre isso Afetoulhe de alguma forma o Onde e como foi a sua infância Como era esse bairro Como você era quando criança Como se comportava Que tipo de relações costumava ter com as pessoas o Como eram as brincadeiras entre crianças o Você tinha amigos ou parentes negros Como era sua relação com eles o Como você se declarava na sua infância em termos de cor e raça o Durante a sua infância o que ouvia falar sobre pessoas negras Quem falava essas coisas Que conselhos a família te dava sobre isso o Onde e como se deu sua formação escolar básica Como era a sua vida escolar Como você era na escola o Que figuras foram marcantes na sua educação escolar básica Professores colegas funcionários etc o O que você lembra sobre as relações com as crianças negras na sala de aula Na escola o Cite algumas experiências que considere marcantes para ilustrar essas situações o Como você classificava essas relações na época o Rememorandoas como as classifica hoje o Que tipo de relação tinha com essas crianças Que sentimentos você lembra de ter em relação àquilo o Que tipo de reação tinham os docentes quando ocorriam casos de conflitos de bases étnicoraciais o O tema cultura afrobrasileira foi contemplado durante a sua educação escolar básica Caso sim em que momentos do ano o Como eram feitas as atividades De que modo essas discussões repercutiam no cotidiano escolar o Quais os papeis que estudantes negros e negras eram chamados para assumir nas atividades escolares Cite exemplos o Como isso era visto pela escola e pela comunidade 262 o Que tipo de relação você tinha com outras crianças negras na época das celebrações escolares o Durante a sua infância houve algum tipo de vivência com alguma prática cultural afro brasileira Qual is Como eram essas relações o Como eram as histórias infantis que ouvira na escola tinha personagens negros o Lembrase ou sabe de algum fato político ou social local regional nacional ou internacional de grande impacto na vida cotidiana daquela época Por exemplo acontecimentos políticos eventos doenças epidemias catástrofes tragédias reformas urbanas etc o Onde e como se deu sua adolescência e juventude o Que tipo de adolescente e de jovem você considera ter sido Como pensava Como agia Como se relacionava com as pessoas o Quais os perfis dos seus amigos de adolescência e juventude o Quais as formas de diversões Como se davam as relações de namoros o Quais os tipos de festas que mais gostava e os que mais costumava participar o Você participava de alguma atividade cultural ou esportiva Caso sim Quais o Quais os espaços por onde circulava na sua adolescência e juventude Que bairros frequentava Como eram esses bairros o Quais os meios de transporte utilizados nessa época o Participou de alguma associação Qual o Quais os perfis das escolas onde estudou na juventude o Que figuras foram marcantes no seu nível escolar médio Professores colegas funcionários etc o Era fã de alguma celebridade Qualisque gêneros e estilos de arte gostava quando jovem Havia alguma celebridade negra que admirava o Quais os tipos de relacionamentos que teve com pessoas negras durante a sua adolescência e juventude o De onde eram essas pessoas Narre alguma passagem referente a estes tipos de relações o Teve algum tipo de namoro com pessoa negra Por quê Como foi a sua experiência afetiva na juventude o Como você as classificava na época 263 o Rememorandoas como as classifica hoje o Quais eram nesse período de vida as suas relações com a cultura afrobrasileira o Como classifica o perfil de sua família e as suas relações Continua assim até hoje O que mudou o Sempre moroumora com a família no mesmo local de origem Precisou sair da casa dos pais Por que motivos Como foi esse processo o Você ou alguém de sua família frequentou alguma vez uma religião de matriz africana Em caso afirmativo relatar como foi a experiência o Lembrase ou sabe de algum fato político ou social local regional nacional ou internacional de grande impacto na vida cotidiana daquela época Por exemplo acontecimentos políticos eventos doenças epidemias catástrofes tragédias reformas urbanas etc TRABALHO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL o Quais as influências da sua família e de outras pessoas na sua formação e nas opções profissionais o Quais os perfis das faculdades onde estudou o Que figuras foram marcantes na sua educação superior Professores colegas funcionários etc o Avalie o sistema de ensino superior do qual participou clima ambiente escolar atividades de ensino pesquisa e extensão rotinas atividades obrigatórias relacionamentos com os docentes e os colegas temas e tipos de debates orientações que recebeu etc o Durante a vida universitária participou de algum movimento estudantil Grêmio Por quê o Que tipo de leituras mais costumava fazer na época Produzia algum texto de circulação pública o Como avalia seu desempenho pessoal como aluno de graduação o Fez algum curso de língua estrangeira Qual Consegue ler e escrever em língua estrangeira o Realizou viagens Quais Que impressões elas lhe trouxeram sobre a vida sobre a profissão sobre o trabalho sobre as relações entre as pessoas Elas influenciaram em mudanças ou permanências de visões de mundo De que modo 264 o Com que tipo de leituras atividades e pessoas você firma laços simbólicos mais permanentes e por quê o Onde e que tipos de trabalho você já exerceu Quando e por quê o Naqueles ambientes trabalhou com pessoas negras Eram maioria ou minoria o Qual o papel ocupado por pessoas negras naquelas formas de trabalho o Quando e por que resolveu exercer a profissão docente o Qualis os seus cursos de Graduação o Em que Instituição e período ocorreuocorreram essas formaçãoes o Considera que a licenciatura que cursou o preparou para ser professor Que aspectos você destacaria Justifique o Durante a formação foi problematizado o currículo da educação básica Como o E o currículo da própria licenciatura que cursou foi problematizado Como o Pelo que lembra qualis perspectivas teóricas que predominoupredominaram nas discussões de sua graduação o Quais os temasconteúdos que predominaram nas discussões desse curso o Durante a sua formação acadêmica foi abordada a temática da cultura afrobrasileira o Caso a resposta seja afirmativa quais temáticas foram abordadas Elas ajudaram a exercer a docência o Fez algum curso de pósgraduação Qual Em que instituição o Por que procurou estudar no referido curso o Neste curso de pósgraduação foi abordada a temática afrobrasileira o Considera que este curso ajudou na formação e no seu exercício docente Em que aspectos Justifique o Teve algum outro tipo de formação continuada sobre história e cultura afrobrasileira Quais Quando Promovidas por quais instituições o Considera que a sua trajetória acadêmica ajudou a exercer práticas de ensino voltadas ao ensino de história e cultura afrobrasileira Justifique o Que instituições normas momentos e experiências sociais você julga terem contribuído em maior grau para seu conhecimento sobre a cultura afrobrasileira 265 o Pretende fazer novos cursos de pósgraduação Quais Por quê o Que mudanças ocorreram na sua vida cotidiana a partir da sua formação profissional Isso mexeu nas relações familiares sociais políticas financeiras culturais De que maneira Dê exemplos o Para você o que é educação o Qual o papel da educação escolar na sociedade brasileira o Em sua opinião qual a importância da escola para as crianças brasileiras E para as crianças negras especificamente o Para você o que é História o Qual o papel do estudo da história na sociedade o Qual a importância de se estudar história para a vida das pessoas E para as pessoas negras especificamente o Para você o que é a cultura afrobrasileira o Pontue ao longo de sua vida em que momentos como e onde teve acesso a informações sobre práticas culturais afrobrasileiras Há alguma proximidade dessas práticas ainda hoje o Acha um tema importante de ser discutido entre as pessoas Por quê o Poderia definir com suas palavras o que é racismo o Você sempre atuou na docência ou exerceu outro cargo na comunidade escolar Qual Quais os motivos que o levou ao exercício dessa nova função e como foi essa experiência Dificuldades conflitos resoluções o Como foi no início da carreira a sua rotina e experiência docente E em outro cargo o Quais os perfis das pessoas com que conviveu o Como considera ter sido seu desempenho profissional inicial o Lembrase ou sabe de algum fato político ou social local regional nacional ou internacional de grande impacto na vida cotidiana daquela época Por exemplo acontecimentos políticos eventos doenças epidemias catástrofes tragédias reformas urbanas etc o Onde estava como reagiu Como atuou nesses contextos Como avaliou e avalia essa experiência sobre influencias externas à localidade o Lembra de pessoas importantes nesse processo Quem Quais eram os seus perfis 266 o Participouparticipa de alguma associação sindicato ou setor de órgão público Quais o Por que motivos e como se associou a elas o De que forma se adequou ou não a essas formas institucionalizadas o Realiza algum tipo de atividade enquanto categoria trabalhista o Cite algumas dificuldades conflitos relações estabelecidas e perfis de pessoas marcantes nesses contextos o Quais os grupos com que tem mais afinidades e compartilha interesses Qual o perfil desses grupos Quem os compõe o Envolvese em campanhas políticas da categoria Caso sim de que forma o Articulase com grupos de interesse políticos e profissionais não institucionalizados Quais grupos Quais interesses Quem compõe esses grupos e como é a relação entre vocês os mecanismos de poder e como avalia isso as tomadas de decisões diretrizes políticas e culturais hierarquias e distribuição de funções o O que você faz quando não está na escola como é sua vida social cultural e política o É casadao Como foi o processo de constituição de sua família Isso influencia suas escolhas e atitudes profissionais Caso sim de que maneira o Professa algum tipo de religião Qual o É professor concursado ou temporariamente contratado o Em que cidades e bairros da região sertaneja atuou profissionalmente Que dificuldades e soluções constituíram o exercício dessa carreira o Quais os perfis de estudantes com os quais teve de trabalhar Como eram essas rotinas o Como avalia a coexistência de sua vida profissional e vida privada hoje em dia Há influências entre uma e outra De que forma o Quais os meios de comunicação e transporte de que dispõe para realizar as atividades de seu exercício profissional o Mora na mesma cidade eou bairro em que ensina o Que relações ou influências há entre seus locais de moradia e de trabalho Como isso afeta seu ensino o Mudouse de moradia Por que motivos Isso influenciou no seu trabalho De que maneira 267 PRÁTICAS E EXPERIÊNCIAS DOCENTES o Como você se vê enquanto pessoa hoje E enquanto docente o Como você caracteriza a cultura local do lugar onde você vive Quais as suas relações com a cultura local De maneira você considera que a cultura local influencia no seu cotidiano de ensino o Há quanto tempo leciona E nesta escola Quanto tempo leciona História o Quantas turmas de alunos você possui o Qual o seu tipo de vínculo empregatício na escola Que expectativas tem em relação a este trabalho o Trabalha em outra instituição Quantas Ficam próximas a este local de trabalho o De que áreas profissionais são essas outras instituições o Que funções você desenvolve nessas instituições o Na escola em que leciona há presença de profissionais negros Em que funções o Como você caracteriza o seu alunado nesta escola Que aspectos destacaria Que perfil tem Pode contar alguma história que ilustre o perfil desse alunado o Quais os papeis que estudantes negros e negras costumam ser chamados para assumir nas atividades escolares Cite exemplos o Como isso é visto pela escola pela comunidade e por você o Quais concepções de História e cultura afrobrasileira os seus alunos trazem para sala de aula Você faz uso didático dessas concepções nas aulas de história Se a resposta for sim de que forma Se não por quê o Lembrase de algum caso de racismo praticado na escola Entre que tipo de pessoas Poderia narrar o fato o E especificamente entre os alunos Percebeu algum caso de racismo Pode narrar alguma vivência nesse sentido o Você já se percebeu dentro de alguma situação de racismo Como foi O que sentiu e o que fez na época E o que sente agora rememorando o fato o Em caso de ter presenciado atos racistas entre os alunos o que o senhor fez naquela situação o Em caso de perceber novos atos racistas em sala de aula o que acha que faria Tem alguma orientação a respeito 268 o A escola em que trabalha promove atividades sobre a história e cultura afrobrasileira Qual o propósito dessas atividades o Como os docentes são requeridos a efetivar atividades sobre o tema na escola Quais os argumentos são considerados pela gestão escolar nestes momentos o Qual a reação dos docentes Essas atividades são discutidas e planejadas com esses profissionais o Pelo que percebe há professores que se empolgam em trabalhar as questões afro brasileiras na escola Qual o perfil dessas pessoas o Em que momentos do ano acontecem as discussões sobre a cultura afrobrasileira o Que atividades costumam ser desenvolvidas na escola Dê exemplos Que temas costumam ser discutidos através delas Acha que essas ações têm repercussões na escola o Especificamente qual a repercussão destes trabalhos nos docentes Nos alunos E na comunidade escolar o Essas repercussões interferem em novos trabalhos a ser desenvolvidos pelos docentes De que maneira o A escola dialoga com pessoas comunidades ou grupos culturais de origem negra na região Quais o Há outros tipos de parcerias feitas pela escola para desenvolver as temáticas Quais o Em sua opinião o PPP e as práticas escolares contribuem para combater o racismo o Como você reagiu quando foi requerido pela primeira vez a trabalhar a temática afro brasileira na sala de aula o Você tem dificuldades em ensinar sobre a cultura afrobrasileira na sala de aula Quais Por quê Que motivos você destacaria o Onde tem feito a busca de materiais didáticos para planejar as aulas sobre o tema da cultura afrobrasileira A escola tem dado suporte Dispõe de estruturas física política simbólica que ajudem o Como as populações negras e suas práticas culturais são representadas nos livros didáticos de história que usa E nos demais materiais utilizados que pesquisa e utiliza o Quais temasconteúdos considera mais importantes abordar sobre o tema Por quê o Quais temasconteúdos considera inadequados para serem ensinados sobre o tema Por quê 269 o Quais temas você considera ter mais autonomia e melhor desempenho em discutir Por quê o Conte um exemplo de aula sobre história e cultura afro que considera ter sido ruim Por que foi ruim O que e como planejou Como a atividade foi desenvolvida O que os alunos disseram Como avaliou a experiência ao final o Conte um exemplo de aula sobre história e cultura afro que considera ter sido boa Por que foi boa O que e como planejou Como a atividade foi desenvolvida O que os alunos disseram Como avaliou a experiência ao final o Você percebe ter algum aspecto que te cause sofrimentos angústias medos ou qualquer outro tipo de incômodo ao tratar da cultura afrobrasileira Consegue ver os motivos disso Poderia explicar o Você percebe ter algum aspecto que te cause satisfação alegria alívio ou qualquer outro tipo de bemestar ao tratar da cultura afrobrasileira Consegue ver os motivos disso Poderia explicar o Existe algum elemento que tem lhe ajudado a exercer práticas de ensino de história e cultura afrobrasileira Qual Quais Como isso ocorre o Que inspirações você tem para efetivar práticas de ensino de história e cultura afro Tem alguma proximidade com práticas afrobrasileiras ainda hoje o Considera que sua prática de ensino de história ajuda no combate ao racismo o O que você sabe sobre cultura afrobrasileira o Quais os locais meios e experiências que considera terem influenciado mais no que sabe sobre o tema o Gostaria de fazer outras considerações que considere importante a respeito do tema UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL DA CULTURA REGIONAL A CULTURA AFROBRASILEIRA COMO DISCURSIVIDADE histórias e poderes de um conceito Gustavo Manoel da Silva Gomes Recife 2013 UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL DA CULTURA REGIONAL A CULTURA AFROBRASILEIRA COMO DISCURSIVIDADE Histórias e poderes de um conceito Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História Social da Cultura da Universidade Federal Rural de Pernambuco como requisito parcial para conclusão do Curso de Mestrado em História Social da Cultura Regional Orientadora da Profª Drª Lúcia Falcão Barbosa Recife 2013 2 Ficha catalográfica G633c Gomes Gustavo Manoel da Silva A cultura afrobrasileira como discursividade histórias e poderes de um conceito Gustavo Manoel da Silva Gomes Recife 2013 183 f il Orientadora Lúcia Falcão Barbosa Dissertação Mestrado em História Social da Cultura Regional Universidade Federal Rural de Pernambuco Departamento de História Recife 2013 Referências 1 História 2 Cultura afrobrasileira 3 Intelectuais 4 Discursividade 5 Poder I Barbosa Lúcia Falcão orientadora II Título CDD 981 4 DEDICATÓRIA A todas as cidadãs e cidadãos brasileiros que desejam construir um mundo onde todas as pessoas sejam compreendidas e aceitas da forma como são Pela liberdade da comunidade negra à qual represento Por uma nova consciência sobre a identidade cultural afrobrasileira 5 AGRADECIMENTOS Este espaço de minha escrita serve para reconhecer a atuação de pessoas cruciais à efetivação de todo esse processo formativo a quem faço questão de tornar públicos os meus agradecimentos A minha mãe Edneide Borges mulher forte e guerreira que viveu as agruras de uma mãe solteira numa sociedade machista classista e racista esforçandose para criar me e darme o melhor que pudesse Com ela agredeço muito o empenho da minha estimada avó Maria dos Anjos carinhosamente chamada de Vó Fia Família é um bem precioso que nos dá suporte Agradeço a toda ela em especial aos meus afilhados e muitos sobrinhos sempre atentos e dispostos a convidarme para brincar Até quando não posso Agradeço imensamente ao Luiz Domingos Omomilewá o filho da beleza das águas Há cinco anos uma figura essencial na minha vida Companheiro sempre atento dedicado terno e muito paciente cuja presença em minha vida se torna cada vez mais imprescindível Ele me ajudou muitíssimo neste período do mestrado O amigo Eduardo Lima um irmão atento brincalhão calmo e conselheiro que sempre tem me ajudado muito As amigas e amigos negras e negros da UFRPE que me inspiram sempre pela postura militância apoio e inspiração estética nesta instituição Viviane Aquino Renata Mesquita Roberta Paula Marcone Souza Laís Neves Luiz Domingos Pallomma Dármea Vanessa Marinho Vivenciamos juntos uma negritude linda ativa e inteligente na universidade pública Agradeço bastante a minha orientadora a Profa Dra Lúcia Falcão Amiga companheira de leituras discussões tangos e sambas Alguém com quem compartilhei segredos sorrisos esperanças e muito trabalho Ela tem dado tons ao mesmo tempo pulsantes e delicados ao meu desenvolvimento intelectual Aos professores da UFRPE Sandra Melo e Carmi Ferraz que me iniciaram cientificamente nas regras da pesquisa acadêmica Ao apoio respeito e incentivo dos professores Juliana Andrade João Morais Maria Auxiliadora Denise Botelho e Claudilene Silva a professora da UFPE Thereza Didier Registro um agradecimento especial ao professor Tiago de Melo Gomes que tive o prazer de conhecer melhor depois buscando seus conselhos orientações e empréstimo de livros raros sobre meu tema de pesquisa Ele tornouse uma pessoa essencial nesta minha caminhada Mestre 6 com quem ao lado do Eduardo conversei aprendi sorri e por vezes bebi algumas boas cervejas Agradeço imensamente ao respeito profissional a confiança e a afeição com que sempre me trataram os professores Wellington Barbosa e Moisés Santana Aceitaram compor a banca para minha argüição pública nesta fase tão importante da minha vida Pelo mesmo motivo agradeço também ao professor José Bento do curso de História da UFPE Todos esses profissionais são figuraschaves na minha formação humana e não apenas profissional Agradeço imensamente aos mestresamigos que ajudaram neste processo Martha Rosa Gian Carlo e Sandro Vasconcelos que me ajudaram com documentos dicas e doses de ânimo Agradeço com muito carinho a Yalorixá Fátima de Oxum e ao babalorixá Genivaldo de Oxum Cada um em momentos diferentes ao longo desses dois anos de mestrado me ajudou quando precisei de socorro espiritual Obrigado Sou também muito grato ao meu orixá meu pai Logunedé O príncipe dos orixás senhor das pedras preciosas da beleza e da prosperidade do amor das artes e de tudo o que é belo e encantador no mundo Ele é o dono do meu destino Escolheume quando nasci Está comigo me fazendo brilhar neste mundo Loci Loci Logun É com profunda satisfação que agradeço a uma família muito querida que tenho Uma família que conquistei devagarzinho e que preenche muito o meu coração a família do AFOXÉ OXUM PANDÁ Povo lindo e arretado sem o qual não consigo viver bem Agradeço na pessoa de meu presidente Genivaldo Barbosa Lemos e minha diretora a guerreira Sandra Guerra Em nome deles meus queridos irmãos do afoxé sintamse todas e todos recebendo beijos sinceros e carinhosos no coração Saibam que vocês me acompanharam também neste trabalho A todas e todos meu mais sincero e gostoso MUITO OBRIGADO 7 SUMÁRIO Resumo8 Resumen9 Apresentação10 Introduzindo uma problemática historiografia para a descolonização do conceito de cultura afrobrasileira no ensino de história16 CAPÍTULO 1 CENÁRIOS CRUZADOS NEGRITUDE EM EXPANSÃO discursividades negociadas na emersão do Movimento Negro brasileiro35 11 A identidade negra entre textos sons cores e gestos o movimento negro como contraprojeto de Estado brasileiro36 CAPÍTULO 2 CULTURAS NEGRAS DIZERES BRANCOS a construção do conceito de cultura afrobrasileira nas obras clássicas da historiografia brasileira72 21 A presença negra como problemática para a República brasileira a cultura afro brasileira como discursividade73 212 Nina Rodrigues a eugenia e a inauguração de um conceito de cultura afro brasileira77 213 Gilberto Freyre o difusionismo cultural e a malemolência gostosa da cultura afrobrasileira88 214 Florestan Fernandes o marxismo e as perdas da cultura afrobrasileira104 CAPÍTULO 3 A CULTURA AFROBRASILIERA VISTA POR DENTRO a historiografia o ensino de história e o novo compromisso político do estado brasileiro119 31 As novas discursividades na construção do conceito de cultura afrobrasileira a narrativa histórica como instrumento assumidamente político120 312 Peter Fry e Carlos Vogt a dinâmica cultural e a cultura afrobrasileira repensada123 313 Robert Slenes a história cultural e a cultura afrobrasileira vista por dentro132 314 O MNU seu conceito de cultura afrobrasileira e o ativismo negro na construção de um novo currículo para o Ensino de História143 CONSIDERAÇÕES FINAIS168 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS175 8 RESUMO Em 2003 o Estado brasileiro sancionou a Lei nº 10639 tornando obrigatório o Ensino de História da África e da Cultura AfroBrasileira Hoje parece haver um consenso da relevância política cultural e social deste ato bem como da necessidade de realizar atividades que concretizem os princípios da referida Lei Esta dissertação busca reconstruir alguns percursos históricos que respaldaram esta legislação a partir das produções históricodiscursivas do conceito de cultura afrobrasileira elaboradas por intelectuais da academia e dos movimentos sociais negros enquanto projetos políticos de reorganização da identidade nacional Nosso propósito foi promover uma reflexão crítica aprofundada sobre as implicações políticas de cada versão conceitual da cultura afrobrasileira que pode ser assumida no Ensino de História Neste trabalho tomamos Edward Said como referencial teóricometodológico ao ponderar a perspicácia política na produção intelectual que se propõem a discutir identidades culturais Neste sentido analisamos os perfis dos sujeitos negros os cenários as situações sociais e as práticas culturais negras selecionados para compor as narrativas desses intelectuais ao mesmo tempo em que refletimos sobre as implicações políticas de cada conceituação de cultura afrobrasileira Eni Orlandi é um referencial da análise do discurso que nos permite enxergar o conceito de cultura afrobrasileira como uma discursividade um conceito aberto às diferentes significações negociadas e assumidas por distintos interlocutores em contextos e com propósitos políticos específicos Tomamos como corpus de análise obras historiográficas que inauguraram paradigmas interpretativos sobre a cultura afro brasileira relatos orais de militantes negros relatórios Carta de Princípios e Programa de Ação do MNU além de legislação específica que versa sobre o ensino de história e cultura afrobrasileira A investigação nos fez perceber que ao longo do século XX intelectuais de diferentes momentos e com distintos propósitos observaram analisaram classificaram e definiram a identidade cultural negra indicando os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira em meio à cultura nacional Eles não só reforçam uma tradição conceitual de um campo de estudos como também reconfiguraram limitaram e atualizaram de forma generalizante a cartografia cultural dos afrodescendentes Ao realizar uma análise históricodiscursiva dessas produções intelectuais percebemos que conceitualmente o campo da cultura afrobrasileira é um espaço de mediação de poderes políticos que é reconfigurado a cada instante sugerindo orientações e ações cotidianas às pessoas comprometidas com determinadas perspectivas políticas fato que se reflete também no currículo do Ensino de História PALAVRASCHAVE História Cultura AfroBrasileira Intelectuais Discursividade Poder 9 RESUMEN En 2003 el gobierno brasileño promulgó la Ley N 10639 a lo cual hizo de la enseñanza de la historia africana y Cultura AfroBrasileña una obligatoriedad en las escuelas Hoy en día parece que hay un consenso de las cuestiones políticas culturales y sociales de esta ley así como la necesidad de realizar actividades que pongan en práctica los principios de la Ley Este ensayo intenta reconstruir algunas rutas históricas que apoyaron esta legislación a partir del concepto histórico de las producciones discursivas y culturales afrobrasileñas elaborados por los intelectuales de la academia y los negros de los movimientos sociales con el objetivo de reorganización política de los proyectos de la identidad nacional Nuestro objetivo ha sido desarrollar el pensamiento crítico sobre las implicaciones políticas de cada versión del concepto africanobrasileño cultural que puede suponer para la enseñanza de la Historia En este trabajo tomamos Edward Said como teórico y metodológico por su perspicacia política de la producción intelectual que proponemos a discutir sobre las identidades culturales En este sentido se analizaron los perfiles de los sujetos de raza negra escenarios situaciones sociales y las prácticas culturales negras seleccionadas para componer los relatos de estos intelectuales mientras reflexionamos sobre las implicaciones políticas de cada conceptualización de la cultura afrobrasileña Eni Orlandi es un marco de análisis del discurso que nos permite ver el concepto de la cultura afrobrasileña como un discurso un concepto abierto a diferentes significados negociados y asumidos por los diferentes interlocutores en contextos específicos y con fines políticos Tomamos como el análisis del corpus obras históricas que abrieron paradigmas interpretativos sobre los afrobrasileños y su cultura historias orales de militantes negros los informes la Carta de Principios y Programa de Acción de MNU y la legislación específica que se ocupa de la enseñanza de la historia y la cultura africanabrasileña Percibimos con la investigación que a lo largo del siglo XX los intelectuales de distintas épocas y con distintos propósitos han observado analizado clasificado y definido la identidad cultural negra indicando los lugares simbólicos de la cultura afrobrasileña a través de la cultura nacional Ellos no hicieron sino reforzar una tradición de estudios del campo conceptual así como reconfigurar actualizar resumiendo los estudios a la generalización de la cartografía cultural de origen africano Mediante la realización de un análisis histórico de estos intelectuales y sus producciones discursivas hemos visto que conceptualmente el campo de la cultura afrobrasileña es un espacio para la mediación del poder político que se pone a cero a cada momento que sugiere lineamientos y acciones cotidianas de personas comprometidas con ciertas perspectivas políticas e eso también se refleja en el plan de estudios de la enseñanza de Historia PALABRAS CLAVE Historia Cultura AfroBrasileña Intelectuales Discurso Poder 10 APRESENTAÇÃO Muleque muleque quem te deu este beiço assim tão grandão Teus cabelos de pimenta do reino Teu nariz essa coisa achatada Muleque muleque quem te fez assim Eu penso muleque que foi o amor1 CENA 1 Manhã ensolarada Uma escola católica no bairro de Apipucos no Recife Nela grande movimentação de jovens fardados voltando ainda muito animados do recreio Conversavase sobre as paqueras os flertes as fofoquinhas as novelas os shows etc Todos os adolescentes sentiam a vida pulsante e queriam ser cada um o mais belo dos belos o mais popular dos populares e o mais poderoso de todos De repente um amontoado de gente em torno da parede no corredor Empurra empurra Ansiedade risinhos De que se tratava Era uma eleição feita pelos alunos da turma mais velha da escola a 8ª série para evidenciar os alunos considerados os mais e os menos bonitos da classe O cara branco parecido com o ator de Malhação foi eleito o mais bonito Um aluno que se dizia moreno foi apontado pela turma como negro sendo eleito o menos afeiçoado de todos Os colegas de classe fizeram questão de explicarlhe entre um riso e outro que seu tipo de cabelo seu nariz e bocas largos além de sua pele escura haviam influenciado o resultado CENA 2 Anos depois Noite de domingo Céu estrelado e muito calor No Mercado Eufrásio Barbosa em Olinda uma festa No palco o Afoxé Oxum Pandá Entre uma bela música e outra palavras de valorização da negritude Você pode você é lindo negro O público delira Uma injeção de ânimo que mexe com a cabeça Um jovem negro fica encantando com tudo aquilo as cores amarela branca e dourada da deusa 1 TRINDADE Solano O Poeta do Povo SP Cantos e Prantos Editora 1999 11 Oxum o ritmo inebriante dos instrumentos os movimentos dos bailarinos a alegria do público Aquilo causava sucessivos arrepios Olhos cheios dágua o show continua emanando axé Na memória repetiase Você pode você é lindo negro CENA 3 Noites de terça e quintafeira Calor bom da primavera Um grupo de estudantes universitários do curso de Licenciatura em História da UFRPE cursa a disciplina História e Cultura AfroBrasileira São muitas as velhas novidades que estavam escondidas pela tradicional ótica ocidental Redescobriamse muitas coisas importantes das quais não se imaginavam que existissem na história da humanidade Um dos alunos se repensa enquanto negro Aquilo tudo é muito importante Seus referenciais são reconstruídos mesmo que o professor da disciplina não saiba que o processo está acontecendo Durante as aulas afloravam as memórias afetivas que aquele jovem tinha das idas aos candomblés dos quais tanto gostava e com os quais se encantava Ele se repensava enquanto intelectual e se propunha a se tornar pesquisador desse desafiador campo da História e da Cultura AfroBrasileira Esta decisão traria marcas éticas e estéticas para a sua vida CENA 4 Manhã quente no Recife Um jovem professor negro entra na sala de aula do Ensino Médio numa escola privada Neste dia ele calçava alpercatas brancas e vestia uma calça branca e uma bata de origem marroquina estampada de azul e branco com bordados acobreados Demonstrava estilo personalidade requinte com simplicidade e afirmava uma ideia de afrodescendência O professor deseja bom dia Apaga as anotações que outro professor deixara no quadro Virase para a turma Apresentase e começa a aula O tema As origens da Filosofia No final da aula três alunas e um aluno se dirigem ao professor Parecem ter gostado do que ouviram O aluno chega a elogiar mais de três vezes a aula do professor parecendo nem ele mesmo acreditar no que ouvira aqueles cinqüenta minutos O professor diz já ter entendido que o aluno gostou e pergunta qual o motivo da insistência na admiração É que eu pensei que o senhor fosse um professor bem relaxado por causa do seu estilo Sabe como é esse cabelo essa roupa Eu pensei esse cara deve ser artista também um professor bem louquinho ou relaxado 12 O que estas cenas têm em comum A presença insistente de um jovem negro que tenta afirmarse num mundo que em vários momentos o nega Este jovem sou eu Gustavo Gomes E esta pequena apresentação trata de uma das faces de minha experiência de vida cujo recorte temático é a relação histórica que tenho reconstruído de pertencimento a minha etnicidade Nesta história as instituições escolares e os grupos culturais ocupam um papel central a partir dos quais minha identidade foi sendo repensada e reconstruída partindo de diferentes níveis de reflexão e ação De minha própria experiência enquanto cidadão negro brasileiro pude perceber o quanto estão imbricadas as relações entre educação cultura política e identidade No amadurecimento desta percepção eu tive sede e tive fome Mas eram sede e fome de livros de música de roupas de penteados de alegrias e de argumentos Foi assim que me aproximei de algumas instituições como o Núcleo da Cultura AfroBrasileira da Prefeitura do Recife os Núcleos de Estudos AfroBrasileiros da UFRPE e da UFPE de ativistas negros de vários perfis das agremiações carnavalescas negras dos terreiros de candomblé etc Foi assim que eu ingressei naquele povo que me seduziu e me deu esperanças o Afoxé Oxum Pandá Instituição muito importante na minha vida pois me possibilita viver a militância política negra um pouco da religiosidade cadomblecista e o exercício estético da dança dos orixás A permanência neste afoxé no qual hoje componho a diretoria e coordenação da dança me fortaleceu muito enquanto pesquisador da cultura afrobrasileira Obrigado mãe Oxum Ora yê yê No entanto para além de pesquisador eu sempre busquei formas múltiplas de intervenção social Ajudei a criar na universidade o Grupo de Percussão e Danças Afro Brasileiras Obá Okê para alunos da UFRPE e membros da comunidade circunvizinha à universidade Sempre fui apaixonado pelas coisas belas pelas interações estéticas Porém a minha preocupação maior esteve voltada aos pensamentos representações e julgamentos que pairam na sociedade Como narrei eu mesmo fuisou vítima de situações desse tipo em vários momentos da minha vida Ora da mesma forma que aquele aluno questionou previamente a minha capacidade intelectual e profissional outros professores e até gestores também o fizeram O meu cabelo entrançado estilo Rastafári já foi por várias vezes critério para eu perder uma vaga de emprego como professor Provavelmente eu não era compreendido como um bom exemplo para certas instituições O que imaginavam de mim eu sei bem mas prefiro me abster de demarcar estas paginas com passagens tão desagradáveis Da mesma forma 13 muitas pessoas quando me veem pelas ruas ou mesmo nas universidades onde sou chamado para compor mesasredondas palestrar ou ministrar cursos as pessoas que me veem pela primeira vez sempre perguntam se eu sou músico artista atleta ou qualquer outro profissional mas nunca conseguem olhar para mim pela primeira vez e imaginar um educador um historiador um pesquisador um escritor etc Um mestre em história então Não quero dizer com isso que as produções artísticas e desportivas estejam destituídas de inteligência e não realizem complexas operações mentais Não é isso Como disse sou bailarino também Mas entenda quando as pessoas perguntam o que sou e o que faço partem de pressupostos que me enquadrarão em único lugar e preferencialmente um lugar que não lhes pareça muito inteligente ou sério Louquinho ou relaxado foram os termos que aquele aluno expressou com sinceridade enquanto muitos só pensaram e preferiram omitir Sobre o que quero falar especificamente Sobre as implicações políticas que as representações sociais exercem nas relações sociais cotidianas de pessoas negras Um penteado um estilo de roupa ou qualquer outro símbolo pode ser carregado de sentidos políticos para uns mas pode ser encarado como algo grosseiro feio ou inconfiável por outros Assumir um perfil estético é ativar uma gama tão grande de significações possíveis que um indivíduo pode ser encurralado culturalmente politicamente social e economicamente Empregos podem ser negados a fala pode não ganhar credibilidade social a confiança política pode ser negada Por que o Brasil nunca elegeu um presidente negro Por que nunca houve um candidato com este perfil ou por que os brasileiros ainda não aprenderam a confiar politicamente num negro Tudo isso tem a ver com educação Não apenas doméstica mas também escolar Por isso minha preocupação foi trabalhar enfaticamente a formação de professores para o ensino de história e cultura afrobrasileira Desmistificar preconceitos recontar histórias pluralizar discursos e memórias abrir caminhos para novas identidades mais do que um exercício intelectual consistiu num ato político Esse tema de ensino aprendizagem não deve jamais ser reduzido apenas às crianças negras tampouco apenas às brancas ou de outros grupos étnicos Todos precisamos nos conhecer melhor mutuamente compreendendonos No início desta minha empreitada sobre a história e a cultura afrobrasileira eu estava quase cego de tanta euforia Quanto mais bebia e comia mas sede tinha dos conhecimentos específicos e tudo o que me chegava pelos sentidos do corpo viravam temas e materiais para aulas e cursos de formação 14 Aí vieram a formatura em Licenciatura em História pela UFRPE e a especialização em História e Cultua Afrobrasileira pela UNICAP Após a formatura passei um curto tempo desempregado procurando escolas onde pudesse dar aulas A busca acabou quando passei num concurso para professor substituto do Departamento de Educação da UFRPE Naquela instituição pública fui aceito pela minha competência e o visual que carrego não era interpretado de forma negativa Agora era colega de trabalho de meus estimados professores e com o salário recebido investi no curso de especialização Continuava pois a insistir em discutir na formação de professores temas como Educação das Relações ÉtnicoRaciais e História e Cultura Afrobrasileira Os trabalhos realizados eram bastante instigantes mas como historiador que sou uma coisa intrigavame Eu vivia na euforia de um presente contínuo do processo vivenciava a fase da concretização da Lei nº 1063903 e a urgência de efetivála através de práticas diversas de ensino No entanto eu precisava compreender o processo histórico conflituoso e promissor de construção daquele marco legal Foi aí que me lancei à seleção do Mestrado em História na UFRPE e em Educação na UFPE Passei nas duas seleções mas preferi ficar na UFRPE para continuar no campo da História A minha proposta investigativa porém não se limitava a narrar linearmente o surgimento da Lei como uma sucessão de documentos legislativos que instituem obrigações Eu tentei entender epistemologicamente as múltiplas recriações do conceito de cultura afrobrasileira para refletir sobre suas implicações políticas Que noções e representações da identidade cultural negra perpassam as cabeças das pessoas e fazem com elas tomem determinadas atitudes perante alguém que assume uma identidade e um conjunto de práticas culturais negras Esta busca foi um esforço intelectual de enxergar a longevidade de práticas e representações instituídas socialmente e atualizadas a cada dia Foi na verdade uma busca de entender o que se passou em vários momentos comigo mesmo Neste sentido é importante dizer que como este trabalho se trata de uma proposta políticointelectual que sugere a existência de outras formas de pensar organizar discursar e narrar não nos pareceu lógico seguir uma linearidade na escrita Estar ainda que timidamente promovendose outras experiências narrativas que mexa com a organização temporal dos fatos mas sem sacrificar a produção de sentidos Foi desta maneira que cheguei aqui percorrendo caminhos tortuosos misteriosos e igualmente sedutores Encontrando livros textos fontes músicas danças denúncias e muitas 15 esperanças Termino este texto pelo começo Pela narrativa do começo de uma nova fase em minha vida CENA 5 Fevereiro de 2013 Manhã ensolarada de verão A cidade do Recife está eufórica É véspera do desfile do Galo da Madrugada Em todos os bairros da cidade as festinhas já começaram Pelas ruas e estabelecimentos comerciais muitas cores brincadeiras gargalhadas músicas e danças Às 900 horas da manhã na UFRPE um ritual se repete Um jovem professor negro está diante de uma banca de doutores para sua defesa pública da Dissertação de Mestrado Na platéia a família militantes negros amigos estudantes universitários de vários níveis yalorixás e babalorixás integrantes de grupos culturais e a presença ilustre do Afoxé Oxum Pandá O nome deste professor Gustavo Gomes Expectativas a mil Lá fora os esperam as bênçãos dos orixás e as alegrias de uma boa cerveja dos tambores e clarins 16 Introduzindo uma problemática historiografia para a descolonização do conceito de cultura afrobrasileira no ensino de história Pensar a história entendida como a experiência dos seres humanos no tempo é também um convite para pensar a historiografia compreendida não simplesmente como um conjunto de fundamentos e métodos que regem a pesquisa e a escrita da história mas também como um campo de construção discursiva sobre as histórias vividas Hoje podemos afirmar isso graças aos variados movimentos de revisão teóricometodológica pelos quais passou a ciência histórica no último século Nesse processo de maturação os debates que reoxigenaram a historiografia hodierna ampliaram perspectivas temas objetos fontes conceitos e métodos que reconhecidamente passaram a compor o repertório do ser e do fazer historiográficos Cada vez mais para além dos sujeitos que analisamos em nossas pesquisas nós historiadores nos descobrimos como sujeitos da linguagem descobrindo também que os significados por nós produzidos são suscetíveis a análises críticas O discurso e suas estratégias de produção circulação e apropriações se tornaram objetos de estudo da História No entanto o que estamos chamando de discurso neste trabalho Para pensar algumas relações entre história e discurso tomamos alguns referenciais como Michel Foucault Michel de Certeau e Eni Orlandi Autores que propõem perspectivas argumentativas em certos pontos divergentes mas concordando que as relações de poder interferem nas construções discursivas Num primeiro momento a perspectiva da análise do discurso em Michel Foucault2 tornouse importante por reconhecer a historicidade dos conceitos Contudo ao relacionar essa historicidade com o seu conceito de Poder Foucault constrói diferentes valorações entre indivíduo e estruturas sociais Nele o poder assume uma abstração tamanha que parece se tornar o único sujeito propulsor da história As ações das pessoas comuns estão sempre determinadas pelo poder disciplinador institucional Em Foucault o poder se apropria das pessoas enquanto as pessoas não conseguem se apropriar do poder conseguindo por vezes exercêlo apenas quando ele está disponível Em sua linha de raciocínio os discursos são práticas sociais que legitimam o poder onipresente e disciplinador apresentando camadas de significação que os mascaram sendo oriundos dele Assim os conceitos e os significados produzidos no 2 FOUCAULT M Arqueologia do Saber RJ Forense 1987 Vigiar e Punir RJ Vozes 1996 Microfísica do Poder RJ Graal 1985 17 discurso não correspondem de forma alguma à realidade daquilo a que se empenham em classificar Nesse sentido o historiador que se propusesse a analisar discursos estaria o tempo todo buscando sentidos forjados construídos por quem teve o poder de análise classificação e escrita Seria uma busca infinita daquilo que não poderíamos alcançar realmente porque não se trata da objetividade das coisas mas apenas de uma discursividade Para Foucault o discurso constrói realidades instituindo práticas sociais de opressão Já Michel de Certeau3 acrescenta o importante conceito de lugar social para entendermos essa historicidade dos discursos Um dos textos onde o autor reflete sobre as interfaces entre história e discurso traz como tema o conceito de cultura popular4 Michel de Certeau chega a afirmar que tal conceito foi forjado por uma elite para diferenciar a sua prática cultural classificada como erudita daquela feita pelas camadas populares da população Dessa forma o conceito de cultura popular legitima o poder e a dominação elitista Não seria um conceito que corresponderia objetivamente ao universo cultural dos populares e portanto não seria cabível para entender as práticas culturais das pessoas comuns Logo propõe o autor a historiografia deve abandonar o conceito de cultura popular porque ela não existe fora do poder e discurso que a desclassifica Em suma em um raciocínio parecido com o de Foucault o autor propõe que se abandone o uso de determinados conceitos porque eles são forjados por poderes e regras de dominação e não correspondem à verdade das coisas das quais se propõem a falar Em sua análise Certeau não considerou que os conceitos podem ser apropriados e ressignificados em contextos diferentes Nesse jogo de eterno faz de conta impossibilitase a construção do conhecimento histórico a partir da análise do discurso reduzindoa a mera contemplação Como propõe Carlo Ginzburg estes autores levam a historiografia a um irracionalismo estetizante 5 Em perspectiva distinta Eni Orlandi nos propõe uma noção de discurso em que não se precise abdicar da objetividade na construção do conhecimento Para ela o discurso é um jogo uma negociação ativa em que diferentes interlocutores produzem e negociam efeitos de sentidos Sua perspectiva leva em consideração que os sujeitos 3 CERTEAU Michel de A operação historiográfica In A Escrita da História Rio de Janeiro Forense Universitária 2000 4 CERTEAU Michel de A beleza do morto In A cultura no plural Campinas SP Papirus 1995 5 GINZBURG Carlo O queijo e os vermes o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição São Paulo Companhia das Letras 2006 18 históricos estão situados em contextos específicos que são interpelados por ideologias e valores mas que também são ativos nas relações sociais e os sentidos que constroem correspondem não só aos determinantes sóciohistóricoideológicos mas também às articulações destes com os interesses de cada sujeito que produz e se apropria dos discursos É dessa maneira que preferimos pensar em discursos no plural em polissemia em jogos de poder que se concretizam a partir da negociação ativa de sentidos Os discursos são construções que significam e ressignificam os objetos as pessoas as experiências sociais e culturais mediando as relações de poder ao passo que por elas também são interpelados Eles são construções simbólicas mas não eliminam a possibilidade de objetivação do mundo e das experiências históricas Os discursos instituem práticas sociais mas não constroem realidades e sim representações6 Ponderamos que seja possível trabalhar objetivamente com os discursos como fonte para a ciência histórica Não precisamos abandonar os conceitos entendidos enquanto elementos constitutivos da discursividade pelo fato de que eles sejam forjados É preciso mapear e analisar as estratégias utilizadas em suas múltiplas reconstruções Consideramos que os discursos em sua historicidade assumem significados distintos a partir das condições de produção e das identidades assumidas pelos interlocutores que produzem e se apropriam dos discursos Como sugere a linguística no desenvolvimento da análise do discurso a investigação científica dependerá das 6 Para Denise Jodelet o ser humano cria representações a fim de se situar cotidianamente no mundo nomeandoo conhecendoo dominandoo Para a autora as representações são ao mesmo tempo aproximações e distanciamentos dos objetos ideias ou pessoas representadas São interpretações que ressignificam esses objetos transformandoos sempre em leituras de alguém em um dado momento a partir dos referenciais conceituais dos quais uma pessoa já dispõe Desta forma as representações nunca correspondem totalmente à integridade à realidade tampouco à verdade do objeto representado JODELET Denise Representações sociais um domínio em expansão In JODELET Denise org As Representações sociais Rio de Janeiro Eduerj 2002 Já Edward Said afirma que as formas de representação de algo ou alguém partem de dados do mundo material e não devem ser encaradas como meras invenções espontâneas São inventadas no sentido de que são fabricadas discursivamente a partir da seleção e organização de símbolos que produzem determinados efeitos de sentidos a fim de legitimar poderes e formas de dominação Mesmo que tais representações partam de dados materiais elas não devem ser generalizadas pois são sempre leituras que reduzem o objeto representado Elas são formas específicas de apreender algo ou alguém que possuem profundas conseqüências políticas suscetíveis à análises críticas SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 Outro conceito de representação que nos parece bastante cabível nessa discussão vem de Bordieu que considera as representações como apropriações das estruturas sociais perpetuando símbolos e poderes de hierarquização BOURDIEU Pierre O poder simbólico Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2010 Dessa forma consideramos que as representações sobre a cultura afro brasileira têm sido uma maneira específica de percepção em relação a esta que a coloca ou a desloca simbolicamente em diferentes níveis hierárquicos através de distintas intenções símbolos e efeitos de sentido Esses distintos símbolos e efeitos de sentido são compartilhados socialmente perpetuando representações que referendam não somente as estruturas sociais como também as lutas sociais dominação x exclusão produção x superação das desigualdades raciais e dominação x autonomia simbólica da identidade negra 19 questões levantadas pelo pesquisador dos materiais levantados por ele de suas finalidades e dos modos como adequa esse aporte científico à sua área do conhecimento Trabalhamos o discurso como efeito de significação movimento circulação discursividade que media as relações de poder através de negociações de sentido e recriações de símbolos que dão lógica as ações das pessoas tanto nos momentos decisivos de suas vidas como em sua cotidianidade Pensamos o discurso nessa ambivalência de funções e tomamolo como fonte para a análise das relações de poder que se estabelecem a partir das construções discursivas dos intelectuais Tomamos aqui a proposta paradigmática póscolonial de Edward Said7 Esse referencial nos ajudará a pensar os discursos construídos sobre si e sobre o outro não só como meios de construção de identidades mas sobretudo como estratégias políticas que assumem diferentes significações em contextos distintos Com este autor as relações entre discurso x poder x subjetividade x produção do conhecimento são revisadas e construídas sobre parâmetros não só teóricos mas também políticos que não negam a objetividade e o compromisso ético da história com a crítica social Num primeiro momento a proposta teóricometodológica da historiografia póscolonial nos incita a fazer um estudo críticoreflexivo sobre as estratégias de saber que construíram ao longo do tempo saberes colonizados que definem estereotipam e dominam identidades sociais No segundo momento ela nos propõe uma reflexão sobre os discursos como possibilidade de ressignificação dessas identidades assumindo outra postura política de libertação respeito e aceitação das diferenças abandonando velhas concepções reducionistas que legitimam formas de dominação de uns sobre outros A discussão proporcionada por Edward Said contempla o conflito simbólico na história ao problematizar como diversos intelectuais constroem um campo de estudos científicos buscando definir discursivamente a identidade e os lugares culturais políticos e econômicos a serem ocupados por um outro que será estudado sendo esse outro um grupo ou uma sociedade inteira Por conseguinte tomamos como parâmetro para o nosso trabalho o estudo da perspicácia observável no jogo de poder quando um intelectual cria discursos narrativas e esquemas explicativos que determinam lugares 7 SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 20 políticos culturais e econômicos para uma categoria social nesta pesquisa os afro brasileiros Embasandose em Said consideramos que não há imparcialidade por parte do intelectual É interessante refletirmos sobre os modos como toda uma diversidade histórica cultural política econômica e social de vários povos negros passa a ser simplesmente desqualificada e ignorada até se formar fragmentos estereotipados de uma identidade cultural exótica Desta forma este trabalho acadêmico se coloca como um estudo que fala de discurso e poder analisando de forma contextualizada os interesses as estratégias e as consequências da construção de um campo intelectual acerca da cultura afrobrasileira Um campo que será disputado por intelectuais de diferentes instituições e perfis Um campo de estudos e levantamento de pautas políticas que busca ao longo da história compreender classificar e descrever a identidade cultural negra no Brasil a partir de seleções que preservam múltiplos jogos de intenção8 Cabe aqui explicar a noção de intelectual que utilizamos Aqui faremos referencia a três intelectuais distintos que constroem conceitos por caminhos diferentes mas complementares Uma primeira definição nos vem do Cientista Social Michel Löwy O autor nos adverte que os intelectuais constituem não uma classe mas uma categoria social Os intelectuais seriam definidos desta forma por suas relações com as instancias extraeconômicas da estrutura social e não pelo seu lugar no processo de produção econômica Sua identidade é fluida e adaptável quanto aos propósitos de diferentes classes sociais embora historicamente estejam em vários momentos mais próximos da pequena burguesia Para Löwy o que define a identidade dos intelectuais é o seu papel ideológico Quando define o conceito de intelectuais Löwy afirma que eles são produtores diretos da esfera ideológica os criadores de produtos ideológicos culturais9 Enquanto produtor imediato de ideologias e culturas os intelectuais se distinguem de outros profissionais do mercado cultural como empresários administradores ou distribuidores de bens culturais pois estes não produzem diretamente ideologias apenas as fazem circular na lógica de mercado 8 Tomamos emprestado o conceito de campo intelectual de Bourdieu pois consideramos a cultura afro brasileira como um campo de estudos disputado politicamente pelos mesmos O campo intelectual é um espaço de conflitos e lutas científicas associadas à imposição de sentidos ou de formas de classificação Nossa escolha aqui é analisar esse processo a partir de práticas discursivas alusivas à cultura afro brasileira a fim de repensar a construção das formas específicas de apreender os indivíduos negros e suas práticas culturais BOURDIEU Pierre O poder simbólico Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2010 9 LÖWY Michel Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários a evolução política de Lucács 19091929 São Paulo Lech Livraria Editora Ciências Humanas 1979 p 1 21 Para o crítico literário Edward Said10 em primeira instância o intelectual é um indivíduo que exerce um papel público na sociedade cujo trabalho se legitima pela representação que o público e ele mesmo faz de si tomando como critério de sua consciência e compromisso ético a reflexão o ceticismo a racionalidade e o juízo moral Mas enquanto indivíduo o intelectual tem uma identidade e não pode ser entendido como alguém sem rosto ou tomado por uma corporação que o desumaniza Mesmo situado em um contexto histórico e interpelado por ideologias ele imprime suas marcas próprias nas mensagens que veicula O intelectual é um ser que toma para si e é reconhecido socialmente como tal a tarefa de investigar refletir analisar classificar e explicar o mundo os objetos as pessoas a natureza o imaginário as relações entre todas essas coisas Ele é alguém que pensa discute defende ideias constrói sistemas explicativos classificatórios e institui sentidos e práticas sociais perante um tema Said considera que os intelectuais podem servir a diferentes propósitos Numa primeira acepção seriam aqueles que utilizam do seu papel no espaço público para legitimar os poderes políticos dominantes que se empenham em manter a ordem desigual nas relações de poder Numa segunda acepção os intelectuais seriam aqueles indivíduos que utilizariam do seu papel social para questionar o status quo produzir fraturas nas comunidades simbólicas nacionais perturbar a ordem reivindicar direitos políticos justiça social e interferir no reordenamento social Na primeira versão o intelectual é alguém que acomoda na segunda ele é alguém que incomoda Essa diferenciação se torna fundamental para a compreensão de que não podemos generalizar o termo intelectual como categoria atemporal É nesse sentido que Said propõe que metodologicamente situemos os intelectuais em seus contextos específicos busquemos mapear suas ideias valores e crenças e analisemos como cada um deles articula seus argumentos e recria as representações sobre o tema de que tratam Essa perspectiva faz ruir a ilusão de imparcialidade do intelectual seja ele um cientista um comunicador social ou um artista Há sempre uma ligação entre a produção do conhecimento e um posicionamento político e é sobre essa concepção que analisaremos como diferentes intelectuais se posicionaram no Brasil frente ao tema história e cultura afrobrasileira Como pensaram e definiram as identidades que emergem nessa discursividade que articula identidade x alteridade negros x não negros Que sentidos são construídos sobre essas palavras nos diferentes contextos de 10 SAID Edward Representações do intelectual as conferências Reith de 1993 São Paulo Companhia das Letras 2005 22 produção do conhecimento em que a história do Brasil será um campo discursivo disputado simbolicamente por diferentes perfis de intelectuais Da mesma forma que para Said para o sociólogo Daniel Pecáut o intelectual é um indivíduo que assume uma identidade política de produtorintérprete de ideias na organização do Estado e é reconhecido socialmente enquanto tal11 O autor estuda a construção de uma cultura política que legitimou uma intelectualidade brasileira enquanto categoria social com perfil de classe média urbana Mesmo estudando a formação e legitimação de diferentes gerações de intelectuais no Brasil respectivamente 19251940 e de 19541964 o autor no ajudar a perceber que apesar das diferentes perspectivas teóricometodológicas existem concepções e propósitos entre distintos intelectuais que formam uma coesão interna O autor explica que essa perspectiva analítica não reduz o estudo das concepções políticas intelectuais homogeneizandoas mas do contrário permite analisar criticamente a formação de representações do fenômeno político que foram fecundas o suficiente para criar uma espécie de sentido comum sobre a identidade nacional e definir o objetivos dos debates intelectuais mesmo possuindo nas origens uma multiplicidade de tendências Pecáut nos alerta para a necessidade de nos esforçarmos para perceber a partir de qual ângulo os intelectuais estavam acostumados a falar12 lembrando ainda que as diferentes perspectivas teóricometodológicas defendidas por autores diversos não consistem necessariamente em antagonismos de projetos políticos Às vezes reforçam determinadas visões do nacional Como enfatiza ruptura porém não significa esquecimento nem anulação13 É neste sentido que o autor nos propõe o conceito de Cultura Política como o ato de aderir a uma mesma concepção de formação social Desse ponto de vistaa cultura política implica que tendências diversas num primeiro momento contraditórias possam surtir de uma mesma matriz geral supõe também a difusão de um significado comum e enfim referese a formas concretas de sociabilidade e comunicação A cultura política não diz respeito portanto ao conjunto dos membros da sociedade mas é antes constitutiva da identidade de um grupo14 11 PECÁUT Daniel Os intelectuais e a política no Brasil entre o povo e a nação São Paulo Ática 1990 12 Idem Op Cit p 18 No nosso caso perguntamos quais as semelhanças nas perspectivas de estudos sobre a cultura afrobrasileira a partir de que ângulos os intelectuais estavam acostumados a falar sobre o tema 13 Idem Op Cit p 17 14 PECÁUT Daniel Os intelectuais e a política no Brasil entre o povo e a nação São Paulo Ática 1990 p 17 23 Este trabalho não se reduz a produzir uma história das ideias numa abordagem relativamente clássica que esteja mais preocupada em arrolar linearmente mudanças paradigmáticas ao invés de problematizar as implicações políticas dos discursos percebendo as influências que os intelectuais exercem no mundo real comunicandose a partir de sua própria ótica de poder O maior objetivo desta pesquisa de mestrado foi analisar e confrontar os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira criados por meio de enunciados que emergiram entre uma historiografia nacional hoje clássica e o Movimento Negro no Brasil a fim de mapear quais dessas concepções influenciaram nas propostas oficiais para o Ensino de História após a Lei nº 106390315 Assim tomamos como referencial teóricometodológico a análise do discurso tomando autores e suas discursividades de forma contextualizada Como propõe o próprio Said devemos considerar que os sujeitos históricos devem ser explicados contextualizados e não tomados como dados objetivos e acabados16 Os sentidos do discurso não estão somente nas palavras mas também nas relações sociais em que elas se dão Por isso compõe nossa proposta metodológica historiar esses autores e contextualizálos Nesse sentido surgem as perguntas quem fala sobre a cultura afro brasileira De onde se fala Que perspectiva é adotada para falar sobre Em que circunstancias se fala Para quem se fala Como funcionam as estratégias discursivas como metáforas comparações argumentações classificações conclusões etc Que relações existem entre quem fala e o seu contexto histórico Que projetos estão 15 A proposta de analisar e confrontar os conceitos de cultura afrobrasileira e suas representações entre os discursos dos cientistas sociais e do movimento negro deuse pelo fato de que esses foram os sujeitos cuja produção sobre o tema se deu com maior destaque Verdadeiras batalhas simbólicas em torno de um conceito que assumia diferentes acepções e por conseguinte implicações políticas Consideramos a legitimidade e a importância do Movimento Negro brasileiro para a reconstrução da historiografia nacional e também para o campo do Ensino de História em suas dimensões teóricas e práticas Como veremos em vários momentos intelectuais não negros dialogaram com o referido movimento encampando lutas políticas e intelectuais No entanto afirmar a participação dos militantes negros apenas enquanto parceria com os iluminados da academia brasileira seria um reducionismo Embora muitos militantes negros produzissem seus discursos a partir de sua prática cotidiana em suas agremiações culturais muitas das quais de caráter carnavalesco o que percebemos também é que muitos dos líderes dessa movimentação negra produziam seus novos conceitos de cultura afrobrasileira a partir da academia Eram universitários sobretudo das ciências sociais que estavam pensando reelaborando e ressignificando símbolos e efeitos de sentido ou seja novas representações sobre a cultura afrobrasileira a partir das regras de produção do discurso científicoacadêmico 16 Neste trabalho optamos por uma contextualização que enfatize mais os aspectos sociais e culturais do que os ditos propriamente políticos embora esses não deixem de ser evidenciados em nossa narrativa O que objetivamos é a ilustração de cenários e a recriação das ambiências que foram favoráveis ao surgimento de certas perspectivas sobre o conceito de cultura afrobrasileira em diferentes momentos da história do Brasil no qual foram inaugurados os paradigmas interpretativos sobre essa cultura que se tornaram clássicos 24 associados a cada fala Que implicações políticas cada fala possibilita em relação ao negro e sua cultura Destarte mapeamos as semelhanças as contradições e os confrontos entre as diferentes perspectivas conceituais propostas por diferentes cientistas sociais analisando e verificando o grau de interdiscursividade com que eles desenvolvem seus discursos e suas narrativas históricas Compreendemos aqui a interdiscursividade no sentido de Eni Orlandi como um conjunto de formulações já feitas por alguém e que são atualizadas em novos discursos Ou seja quais os sentidos que circulam e se atualizam entre a historiografia clássica nacional e o Movimento Negro brasileiro Que projetos políticos são atualizados por meio dessa interdiscursividade Diante dos discursos analisados tomamos como procedimento metodológico o que Said chamou de localização estratégica um modo de descrever a posição do autor num texto em relação ao tema sobre o qual se escreve Através disso podemos detectar a posição assumida pelos autores em relação ao que classificam como cultura afro brasileira Nas palavras do referido autor essa localização inclui o tipo de voz narrativa que ele o intelectual adota o tipo de estrutura que constrói os tipos de imagens temas motivos que circulam no seu texto todos os quais se somam para formar os modos deliberados de se dirigir ao leitor enfim de representálo ou falar em seu nome17 Buscaremos então como dados de análise discursiva nos textos que trabalharemos os perfis atribuídos aos negros os cenários e as circunstâncias históricas e sociais em que os negros aparecem nas narrativas e as práticas culturais selecionadas para representar a cultura afrobrasileira Considerando sempre que os discursos analisados não podem ser considerados como obras em si ou ainda como meros produtos dos contextos políticos mas como indícios que produzem e reproduzem ideias sobre diferentes aspectos da cultura afrobrasileira O que há em comum nestas textualidades tão diferentes as quais nos propomos a analisar Em ambos os casos a ciência histórica foi eleita como o campo de mediação de poderes de legitimação ou de combate ao racismo de ressignificação do conceito de cultura afrobrasileira A história foi transformada em metáfora da identidade negra 17 SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 p 50 25 Hora depreciando subjugando e dominando simbolicamente Hora valorizando expandindo e libertando também simbolicamente Cada um desses grupos de intelectuais se propôs a estudar a experiência negra na construção da identidade cultural do Brasil e dentro de suas respectivas concepções realizaram um conjunto de operações simbólicas que construíram determinados sentidos e práticas sociais referentes aos negros e a sua cultura selecionaram observaram analisaram classificaram e organizaram em novas formas de narrativas alguns símbolos e significados da cultura afrobrasileira Essa perspectiva fez com que nos aproximássemos do nível argumentativo de Hayden White18 Este autor afirma que a produção das narrativas históricas está atrelada às subjetividades de quem as produz Para White a história é um gênero discursivo equivalente à literatura quanto às suas estratégias de formação seleção e organização de temas fontes e argumentos etc No entanto a característica mais própria da ciência histórica é que deve narrar os eventos históricos eventos que realmente teriam acontecido no passado mas que são reinterpretados no presente a partir de novas dimensões éticas e estéticas Desse modo a narrativa histórica não seria meramente um conjunto de fatos inventados com fortes doses de espontaneismo como se diz da narrativa literária Hayden White propõe uma grande importância à subjetividade e autonomia do historiador visualizandoo como um criador de sentidos a partir de fatos históricos mas que seriam fatos selecionados organizados distribuídos costurados argumentados metaforizados pela vontade do historiador Para White a narrativa histórica é uma discursividade composta de metáforas que resultam de seleções de informações históricas que se deseja veicular Embora enfatize a grande carga de subjetivismo autoral o autor não aconselha como Foucault e De Certeau que abandonemos os conceitos porque seriam unicamente forjados mas que atentemos às tensas relações de construção discursiva que compõem as narrativas históricas entendidas como representações do passado A narrativa histórica é entendida como um discurso ou seja uma rede de significações sobre o passado Não devemos portanto abandonar o conceito de cultura afrobrasileira Este é um conceito negociado discursivamente Ele assume diferentes sentidos a partir de contextos sujeitos e interesses distintos Nosso esforço é compreender os sentidos que 18 WHITE Hayden Trópicos do discurso ensaios sobre a crítica da cultura São Paulo EDUSP 1994 26 são dados a este conceito e refletir criticamente sobre as implicações políticas e intelectuais referentes a cada uma dessas conceituações pois elas vão influenciar as propostas curriculares e as narrativas construídas no cotidiano do Ensino de História19 No Brasil a preocupação científica e conceitual com o negro e sua cultura formaram um corpus livresco a partir do advento da república Em fins do século XIX os intelectuais assumiram o compromisso de pensar a nação brasileira e reorganizála Naquele contexto de mudanças institucionais precisavase analisar a população negra que não era mais escrava e fluía dentro de possíveis conceitos de cidadania em que os novos lugares a serem ocupados por essa população começavam a ser redefinidos20 Foi nesta mesma época que surgiram e ganharam fama internacional os estudos de Nina Rodrigues Já no início do século XX os estudos de Gilberto Freyre condensaram o desejo do Estado Varguista de apagar simbolicamente os conflitos e construir um discurso de harmonia mestiçagem e democracia Nestes estudos que legitimam a ordem social desigual ao passo que forjam o sentimento de uma comunidade nacional a cultura afrobrasileira é abordada segundo uma perspectiva folclorista Já nos anos 1960 com o crescimento dos debates críticas sociais e esperanças marxistas num Brasil que não conseguia mais esconder as acentuadas desigualdades sociais os estudos de Florestan Fernandes denunciam aquilo que passou a ser chamado de mito da democracia racial afirmando a existência do racismo no país Não obstante ainda pensandose em cultura tomando a cultura afrobrasileira como um campo de espetacularização e alienação política Desse modo foram definidos e desqualificados os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira lugares que se tornaram icônicos como os únicos lugares onde se poderia encontrar os afrodescendentes produzindo a sua autêntica cultura que seriam a culinária colorida e saborosa a indumentária típica e chamativa a dança selvagem e sensual a música frenética e desordenada o candomblé como um culto fetichista os contos populares e supersticiosos a escultura grosseira a sexualidade permissiva a educação folgada o vocabulário exótico21 A cultura afrobrasileira era 19 Nesta dissertação nos detemos apenas a mapear quais concepções de cultura afrobrasileira chegam aos documentos oficiais para o Ensino de História Lei 1063903 e Parecer nº 032004 e a Resolução 012004 20 ALBUQUERQUE Wlamira R de O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 21 Como veremos no capítulo II esses são adjetivos atribuídos pelos historiadores brasileiros 27 folclorizada conceitualmente intelectualmente definida colonizada inferiorizada22 submetida Um conceito colonizado por estrangeiros pelo olhar e pela lógica branca que não compreendia nem achava que existia uma lógica cultural própria no universo cultural e nas experiências históricas negras23 Foi somente nas últimas décadas do século XX que outros intelectuais inauguram nas ciências sociais o paradigma que entende a cultura como mediadora de relações políticas Nesse contexto destacamse Peter Fry Carlos Vogt e Robert Slens Usando diferentes léxicos como participação experiência etc para esses novos historiadores a cultura passa a ser um espaço criativo onde existem lutas políticas de diferentes formas na linguagem enquanto complexo sistema de conceituação e significação do mundo e nos afetos e relações interpessoais cotidianas e nos simbolismos e visões de mundo que embasam a lógica própria dessas práticas culturais afrobrasileiras Agora se pensa cultura afrobrasileira como um conjunto de articulações entre lembranças de antigas tradições culturais africanas e as novas experiências sociais e históricas impostas aos escravos no cotidiano da vida no cativeiro Para dar conta dos objetivos da pesquisa recorreremos aos precursores do pensamento sobre a cultura afrobrasileira no Brasil24 Para tanto escolhemos os textos que inauguraram paradigmas explicativos sobre a cultura afrobrasileira a partir da perspectiva histórica a saber Os africanos no Brasil escrito por Nina Rodrigues no final do século XIX sobre o paradigma da Eugenia e publicado somente em 193225 Casa Grande e Senzala publicado por Gilberto Freyre em 193326 assumidamente difusionista cultural A integração do negro na sociedade de classes publicado por Florestan Fernandes em 1964 texto clássico da Escola Sociológica Paulista referência na América Latina com grande carga marxista27 Cafundó a África no Brasil 22 Marilena Chauí afirma que num contexto de liberalismo a sociedade burguesa entende como cultura os saberes científicos tecnológicos artísticos e filosóficos produzidos pelas classes dominantes o que pressupõe uma divisão social entre atividades intelectuais e manuais e a necessidade da escolaridade para ter competência de produzir uma boa cultura CHAUÍ Marilena Política Cultural Porto Alegre Mercado Aberto 1985 23 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 24 Existem intelectuais de origem estrangeira que foram inauguradores de paradigmas como o inglês Peter Fry e o estadunidense Robert Slenes 25 NINA RODRIGUES Raimundo Os africanos no Brasil São Paulo Madras 2008 26 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 27 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 28 Linguagem e Sociedade publicado em 1996 por Peter Fry e Carlos Vogt28 que já traz uma nova concepção para se pensar a cultura afrobrasileira enxergando a cultura como um conjunto de articulações entre tradições e recriações de acordo com os novos contextos e relações sociais que os sujeitos estabelecem visão essa que é corroborada por Robert Slennes quando publica em 1999 a obra Na senzala uma flor esperanças e recordações da família escrava Brasil Sudeste século XIX29 Investigamos também as práticas dos intelectuais militantes dos movimentos negros Estes como constatamos construíam um perfil que identificamos dentro da segunda acepção de Said intelectuais que instauram uma fratura na comunidade simbólica nacional e questionam o status quo de uma sociedade racista e desigual e propõem reformulações do Estado e da sociedade nacionais Seus discursos criam uma presença que incomoda Nesse grupo de intelectuais encontramos maior pluralidade de sujeitos abarcando estudantes e professores universitários pesquisadores jornalistas lideranças religiosas artistas presidentes de agremiações carnavalescas etc Todos unidos por um novo signo a negritude positivada ressignificada por eles mesmos a partir dos anos finais da década de 1970 Esse grupo embora possuísse diversas vozes e propostas conceituais e metodológicas constituindo um verdadeiro mosaico de negritudes possíveis elege na sua militância política a luta pela construção de uma nova concepção de história e de cultura afrobrasileira Conceitos estes que tiveram um centralismo significativo na causa ao ponto de culminar na Lei nº 1063903 que torna obrigatório o ensino de história da África dos povos africanos da escravidão e da cultura afrobrasileira nos currículos oficiais de ensino no Brasil Essa lei foi resultado dessa luta por meio da qual se tem buscado instituir atualmente em materiais didáticos projetos pedagógicos e práticas de ensino a história e cultura afrobrasileira Quando partimos para falar do Movimento Negro Unificado nos deparamos com a dificuldade de acesso as fontes pois se num primeiro momento o MNU não tinha estrutura física que comportasse a documentação do que produzia noutro teve de lidar com a inexistência de arquivos oficiais que guardassem os documentos pois eles não estavam dentro do circuito de grande circulação e mesmo talvez não fossem interpretados por algum acervo como interessante e digno de ser recolhido e consagrado 28 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 29 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 29 como espaço de memória Essa foi a maneira pela qual reconhecemos os documentos do MNU espaços de memória negra lugar de discursos a serem problematizados Mas que era na verdade um nãolugar oficial Não sabíamos onde encontrar ao certo pois estavam dispersas Tivemos de buscar em acervos pessoais e neste momento tivemos acesso aos acervos pessoais da historiadora Martha Rosa Figueira Queiroz e da antropóloga Maria Auxiliadora da Silva Militantes negras funcionárias da Universidade Federal Rural de Pernambuco Assim conseguimos como fontes alguns relatos de diversos militantes a Carta de Princípios e os Programas de Ação do MNU o relatório do VIII Encontro de Negros e Negras do Nordeste o negro e a educação No site do Ministério da Educação MEC conseguimos documentos como a Lei nº1063903 o Parecer CNECP 032004 e a Resolução CNECP 012004 que tratam não só do estabelecimento do Ensino de História da África e da e Cultura AfroBrasileira mas das diretrizes que devem ser adotadas para a consolidação desse tema de ensino Fontes que cruzadas nos permitiram não só observar a continuidade do caráter reivindicatório do MNU e a atualização de sua proposta que articulava educação cultura política e identidade dentro de um projeto maior de reconstrução jurídica e simbólica do Estado e da sociedade brasileira a partir da perspectiva das relações étnicoraciais e combate ao racismo como também percebermos as batalhas discursivas e conceituais as redes de significação e interdiscursividade indignações e esperanças enfim os conflitos vivenciados não só no plano discursivo mas também das relações pessoais e institucionais para a efetivação da lei Retomando o pensamento de Edward Said consideramos que o discurso criado sobre si e sobre o outro sobre os lugares determinados para cada uma dessas identidades discursivas é antes a distribuição de consciência geopolítica em textos uma elaboração não só de uma distinção geográfica básica mas também de toda uma série de interesses que por meios de enunciados estratégicos não só criam mas igualmente mantém o lugar cultural político social intelectual e econômico dos sujeitos representados por essas identidades expressando certa vontade ou intenção de compreender em alguns casos controlar manipular e até incorporar o que é um mundo manifestadamente diferente ou alternativo e novo Ora pensar a história e a historiografia é também pensar o ensino de história Nossa preocupação nesta dissertação é tratar o campo do ensino de história de forma 30 digna como objeto de estudo do historiador Por isso buscamos articular da forma mais responsável engajada e ética possível historiografia e ensino de história Já vimos que o século XX foi promissor para a ciência histórica que passou a ser repensada vivenciando um processo de transformação em suas bases teóricas e metodológicas Contudo nesse processo de maturação epistemológica não apenas a História em si mas também as formas como é socializada ensino de história constituíram novos campos de discussões teóricas filosóficas e metodológicas abrangendo dimensões éticas e estéticas Para a nova historiografia os documentos escritos ou não devem ser problematizados situados no tempo e no espaço e confrontados para problematizar a nossa consciência histórica pois este é o papel do historiador revisitar problematizar reler e ressocializar o saber sobre as experiências humanas no tempo No que diz respeito às discussões em torno das formas de socialização do saber histórico alguns teóricos como Seffner30 Fonseca31 Bittencourt32 Karnal33 Munakata34 Freitas35 Carretero36 alertam para a necessidade de se incentivar o desenvolvimento da área do Ensino de História não somente como prática social exercida no cotidiano de sala de aula mas também como área de investigação científica vivenciada nas universidades Já que o saber histórico é mutável no tempo e no espaço entendemos que o seu fazer pedagógico também assim o seja37 e é a partir dessas concepções que repensamos o Ensino de História a fim de promover uma prática que atenda as demandas contemporâneas de formação cidadã O caminho que buscamos nesta discussão é o de democratizar de forma crítica o acesso à informação aos discursos negligenciados pelas historiografias tradicionais que privilegiaram determinados sujeitos históricos em detrimento de outros 30 SEFFNER F Leitura e escrita na história Em NEVES I et al org Ler e escrever compromisso de todas as áreas Porto Alegre Editora UFRGS 2006 31 FONSECA S G Didática e prática de ensino de História experiências reflexões e aprendizados Coleção Magistério Formação e Trabalho Pedagógico Campinas Paripus 2003 32 BITTENCOURT Circe O Saber Histórico na Sala de Aula São Paulo Contexto 2006 BITTENCOURT Circe Ensino de História fundamentos e métodos São Paulo Cortez 2008 33 KARNAL Leandro org História na Sala de Aula conceitos práticas e propostas São Paulo Contexto 2007 34 MUNAKATA Kazumi Histórias que os livros didáticos contam depois que acabou a ditadura no Brasil In FREITAS Marcos Cezar Historiografia brasileira em perspectiva São Paulo Contexto 2010 35 FREITAS Itamar Fundamentos teóricometodológicos para o ensino de História Anos iniciais São Cristóvão Editora da UFS 2010 36 CARRETERO Mario Constructivismo y educación Buenos Aires Paidós 2009 37 KARNAL Leandro org História na Sala de Aula conceitos práticas e propostas São Paulo Contexto 2007 31 Mas como o termo ensino de história é muito amplo temos que fazer recortes e decidimos analisar quais as concepções de cultura afrobrasileira que chegam aos documentos oficiais do Ensino de História após a Lei nº 10639 de janeiro de 2003 acompanhando o processo anterior de construção dessas conceituações A referida lei altera a LDB Lei nº 939496 tornando obrigatório o ensino de história da África dos povos africanos e da cultura afrobrasileira38 com o propósito de combater o racismo através da construção crítica do conhecimento A reflexão crítica acerca das conceituações da cultura afrobrasileira no ensino de história nos levam a problematizar a participação da instituição escolar nas tensas relações entre produção x reprodução de valores sociais Não queremos reduzir simplesmente os sistemas de ensino a instrumentos de reprodução mecânica de ideologias e atitudes para fins de legitimação de grupos dominantes pois reconhecemos que o cotidiano escolar é plural e dinâmico em que os múltiplos sujeitos interagem negociando sentidos interesses e necessidades O próprio Bourdieu fala de sistemas de reprodução de ideologias mas é sábio em afirmar que o ser humano sempre recria as possibilidades de ação pois é um agente estruturante construtor e ativador da sociedade Existe sempre a possibilidade de transformação paradigmática no próprio interior do cotidiano escolar Uma das instancias fundamentais para a transformação paradigmática dos conhecimentos produzidos no Ensino de História é a produção de currículos Segundo os historiadores Marcus Silva e Selva Guimaraes Fonseca39 o currículo deve ser entendido como uma construção um campo de lutas pela legitimação de saberes experiências e memórias Como fruto de complexas negociações e seleções o currículo reconfigura as possibilidades de construção identitária a partir do ensino de história Ele legitima a visão de alguém ou de algum grupo que detém em determinado contexto o poder de dizer e fazer Desta forma mais que revelar diretrizes para o Ensino de 38 Levase em consideração a reformulação da referida lei que passou em março de 2008 a ser de nº 11645 tornando obrigatório além do ensino da história e cultura afrobrasileira o ensino da história e cultura dos povos indígenas no Brasil O objeto deste projeto contudo restringese à primeira área do conhecimento citada pois a Lei nº 1063903 possui suas respectivas diretrizes curriculares enquanto a Lei nº 1164508 ainda não possui suas respectivas diretrizes bem definidas Por isso apoiamonos na lei anterior enquanto opção política ter maior propriedade com militantes dos diversos movimentos negros por exemplo 39 SILVA Marcus e FONSECA Selva Ensinar História no Século XXI em busca do tempo entendido Campinas Papirus 2007 32 História o currículo expressa variadas e tensas relações sociais conflitos e acordos aproximações e distanciamentos40 Conforme a historiadora Circe Bittencourt41 para que ocorram mudanças nas propostas curriculares é necessário que tenham existido mudanças na sociedade e mais precisamente na clientela escolar Quando se reconhece que surgiram novas demandas socioculturais e políticas na sociedade e estas mudanças também se refletem no ambiente escolar fazse necessário repensar e modificar as propostas curriculares Diante de um público escolar assumidamente heterogêneo para se chegar a níveis aceitáveis de escolarização necessitase não apenas de investimentos consideráveis por parte dos governos mas também de currículos flexíveis42 Isso justifica a obrigatoriedade da implantação do ensino de História da África e da cultura Afrobrasileira nas propostas curriculares do país pois urge ainda a necessidade de pluralizar e ressignificar as linguagens os discursos as memórias e as identidades da sociedade brasileira e a escola é um espaço muito propício a este trabalho Porém falar de currículo é algo ainda muito amplo Atualmente a especificidade das análises científicas sobre as políticas curriculares levam em consideração as múltiplas dimensões desse objeto cultural Em breve explanação Bittencourt esclarece que existem diferenças entre a o currículo formal ou normativo aquele criado pelos poderes governamentais b o currículo real ou interativo aquele que corresponde às práticas educativas construídas ao que de fato acontece no cotidiano escolar e que nem sempre corresponde ao currículo formal embora o tome como proposta norteadora c o currículo oculto que consiste na imposição de valores crenças conceitos e preconceitos que não estão referendados no currículo formal mas que direcionam as ações e as condutas dos sujeitos escolares e d o currículo avaliado ou seja aquele que se materializa no conjunto de materiais e métodos avaliativos da instituição escolar43 Para fins desta pesquisa nos deteremos apenas na reformulação do currículo real no Brasil referente ao Ensino de História e da Cultura AfroBrasileira No primeiro capítulo CENÁRIOS CRUZADOS NEGRITUDE EM EXPANSÃO discursividades negociadas na emersão do movimento negro brasileiro reconstruímos os cenários de emersão dos movimentos negros no Brasil a partir de 40 Idem Op Cit 41 BITTENCOURT Circe O saber histórico na sala de aula São Paulo Contexto 2006 42 BITTENCOURT Circe Ensino de História fundamentos e métodos São Paulo Cortez 2008 43 BITTENCOURT Circe Ensino de História fundamentos e métodos São Paulo Cortez 2008 33 1978 data de fundação oficial do MNU Embora dialoguemos com experiências institucionais temporais e teóricometodológicas de diferentes movimentos negros ao longo do século XX nos concentramos nas ações promovidas a partir da versão mais recente do MNU O nosso foco detevese no discurso nas ações e nos documentos construídos pelos intelectuais dos mais significativos movimentos negros surgidos a partir dos anos 1970 Inicialmente retomamos a outras duas experiências de movimento negro a Frente Negra Brasileira FNB e o Teatro Experimental Negro TEN para perceber que as demandas dos movimentos negros no Brasil do século XX atualizam as articulações entre cultura política e educação No segundo capítulo CULTURAS NEGRAS DIZERES BRANCOS a construção do conceito de cultura afrobrasileira nas obras clássicas da historiografia brasileira iniciamos uma primeira analise comparativa entre as críticas dos movimentos negros aos usos e abusos que são feitos da cultura afrobrasileira tanto no plano das conceituações quanto no plano das políticas públicas e do ensino e entre as concepções de cultura afrobrasileira propostas pelos acadêmicos na historiografia nacional entre fins do século XIX e a metade do século XX Tal fato demonstra como a participação dos negros na sociedade brasileira constitui um universo de preocupações que constantemente se atualiza no pensamento nacional As narrativas analisadas nos fizeram um complexo trânsito de ideias circulando e produzindo sentidos que às vezes se cruzavam e às vezes se repeliam Conferimos autores teses e noções bem distintas de cultura afrobrasileira mas que apesar de tantas diferenças possuíam uma semelhança fundamental o olhar estrangeiro para a cultura afrobrasileira uma vontade de estudar este universo cultural a fim de classificálo e ao menos simbolicamente dominálo De acordo com os referenciais de seus respectivos momentos históricos eles não conseguiram entender a lógica própria da cultura afro brasileira e já partiram de estereótipos para discursar cientificamente sobre tal cultura Destarte localizamos os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira proposto em cada narrativa e refletimos sobre as implicações políticas de cada uma delas No terceiro e último capítulo A CULTURA AFROBRASILIERA VISTA POR DENTRO a historiografia o ensino de história e o novo compromisso político do estado brasileiro apresentamos uma nova proposta interpretativa aquela pela qual os movimentos negros elegem como mais legítima para contemplar as demandas de significação desses movimentos reconstruindo sobre prismas de dignidade autonomia 34 respeito e aceitação as identidades negras Percebemos que neste mesmo momento já nas décadas finais do século XX houve várias tentativas de aproximação entre os novos cientistas sociais que estavam estudando a cultura afrobrasileira e os movimentos sociais negros Esta relação é constatada a partir da interdiscursividade que circula e atualiza os discursos de ambos os lados De um lado nós problematizamos os sentidos que são invocados em cada conceituação presente os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira dispostos em cada narrativa e as implicações políticas que elas podem ter no espaço formativo escolar De outro nós discutimos como tais demandas são retomadas como uma série ações reivindicatórias que modificam a legislação do Estado brasileiro criando entre muitos conflitos a lei 1063903 35 CAPÍTULO 1 CENÁRIOS CRUZADOS NEGRITUDE EM EXPANSÃO DISCURSIVIDADES NEGOCIADAS NA EMERSÃO DO MOVIMENTO NEGRO BRASILEIRO 36 Eu era ao mesmo tempo responsável pelo meu corpo responsável pela minha raça pelos meus ancestrais44 A identidade negra entre textos sons cores e gestos o movimento negro como contraprojeto de Estado brasileiro Até o início da década de 60 no Brasil várias categorias sociais viviam experiências de organização e mobilização política O pensamento de esquerda aumentava as suas esferas de influência e desta perspectiva política emergiam críticas e propostas de reforma do Estado Brasileiro a fim de reconstruirse a cidadania nacional de forma mais democrática O socialismo reoxigenava os debates sobre a moderna república brasileira e a reelaboração de critérios de cidadania nacional numa série de movimentos intelectuais que tentavam resolver a equação incerta da república moderna defender o bem comum numa sociedade cuja prioridade é a realização de interesses privados45 Projetos alternativos inspirados por exemplo na cultura e na experiência popular para reformular novos projetos de ação e formação do Estado brasileiro foram elaborados Contudo esse fervor foi resfriado pelo golpe militar de 1964 que instaurou uma ditadura Com a ditadura ocorreu um enfraquecimento dos movimentos sociais chegando mesmo à extinção de alguns Houve a vigilância constante do governo para evitar novas organizações mas isso não garantiu que as pessoas deixassem de se organizar Ao contrário a experiência da repressão e validação de um Estado que legitima as desigualdades sociais iria instigar o surgimento de novos movimentos de base em que pesava a confiança entre os membros e a consciência de seu desamparo ante o poder público Mas só quando a Ditadura estava próxima do fim é que os movimentos sociais brasileiros começaram a se intensificar organizandose e influenciandose Os movimentos pela Anistia Estudantil Feminista Negro Homossexual Sem Terra Operário Ecológico e Diretas Já são exemplos emblemáticos desse novo momento histórico46 44 FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 p 105 45 BARBOSA Lúcia Falcão O castelo de Alecrim intelectuais no Recife em 21 de abril de 1960 Tese de Doutorado em História defendida na Universidade Federal de Pernambuco UFPE Centro de Filosofia e Ciências Humanas CFCH 2005 46 BEM Arim Soares do A centralidade dos movimentos sociais na articulação entre Estado e a sociedade brasileira nos séculos XIX e XX Disponível em wwwcedesunicampbr Acesso em 10062010 37 Durante os anos da ditadura militar a sociedade brasileira era interpelada por várias ações que concretizavam relações de poder e legitimavam projetos políticos a censura a repressão e a propaganda governamental de um lado e as ações de categorias sociais desprivilegiadas politicamente de outro Se havia uma história silenciada da violência e opressão de um lado de outro o governo federal fazia questão de divulgar na mídia o entusiasmo do chamado milagre econômico No discurso oficial do Estado brasileiro dos anos 1970 o crescimento da economia trazia entusiasmo para as classes médias urbanas forneciamse argumentos para fomentar a Segurança Nacional contra toda forma de estrangeirismos e buscavase selecionar emblemas que invocassem sentidos de uma unidade nacional47 Contraditoriamente às propagandas otimistas do governo muitos indivíduos negros insistiam em denunciar que tal crescimento não havia chegado à população afro descendente o fechamento à influência estrangeira não se aplicava à lógica capitalista norteamericana e que a cultura afrobrasileira ocupava uma espécie de sublugar na simbologia da identidade nacional Outros intelectuais de várias procedências étnicas denunciaram alguns desses entre outros fatores do regime político autoritário instalado no Brasil A repressão política e depois a crise econômica criaram uma ambiência favorável à oposição ao Regime Militar No Brasil a emergência do movimento negro recebeu também várias influências internacionais como podemos ver nos relatos do militante abaixo Podemos identificar três matrizes de pensamento no discurso da geração que se engaja no movimento negro nos anos 1970 e 80 Três diferentes influências externas Você tem o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos que sempre mobilizou a atenção da militância você tem as lutas independentistas no continente africano sobretudo até pela facilidade da proximidade lingüística nos países lusófonos notadamente Angola Moçambique São Tomé e Príncipe GuinéBissau E por fim o movimento pela negritude que a rigor sempre foi um movimento literário na verdade um movimento cultural de intelectuais da África e das Antilhas que se encontraram em Paris nos anos 30 do século passado e que vão formular algumas idéias a respeito do que seriam o ocidentalismo e o orientalismo na perspectiva africana nos valores africanos Enfim um modo africano de ser por meio de várias linguagens48 47 MORAIS Maria Thereza Didier de Emblemas da Sagração Armorial Ariano Suassuna e o movimento armorial 197076 Editora Universitária da UFPE 2000 48 Depoimento de Hédio Silva Junior In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 69 38 Em nível internacional ente os anos 195060 junto à sociedade moderna a História que passara por diversos momentos de transformação a fim de legitimarse como universalista e científica atravessou uma crise epistêmica49 Com o fim da II Guerra Mundial a Europa perde o centralismo enquanto modelo civilizatório para o mundo A empresa colonialista perdera sua credibilidade e não encontrava mais lógica de existência sobretudo perante a opinião pública Neste período surgiram várias críticas acadêmicas ao neocolonialismo e ao póscolonialismo mas somente em 1978 com a publicação do livro Orientalismo de Edward Said é que este debate internacionalizouse50 A partir da segunda metade do século XX autores de varias nacionalidades propuseram críticas ao pensamento eurocêntrico elaborado desde os gregos antigos para desclassificar os povos africanos51 Entre os filósofos iluministas do século XVIII e os cientistas modernos do século XIX vários intelectuais surgiram e mesmo a partir de argumentações diferentes tinham como ponto em comum a tentativa de explicar evolutivamente a existência de diferentes sociedades humanas tomando como parâmetro a ideia de progresso racional e tecnológico político cultural e econômico social atribuída à história européia Em oposição a esta civilização o continente africano só tinha sentido enquanto espaço de lacunas irracionalidade primitivismo a historicidade etc Para o historiador Muryatan Barbosa a História da África enquanto disciplina acadêmica resulta de dois fatores De um lado o crescente relativismo europeu diante dos seus próprios valores no pósguerra De outro a renovação crítica das Ciências Sociais e especificamente no campo da historiografia a influência dos Annales e sua proposta de históriaproblema interdisciplinar e totalizante Foi assim que nos anos 1950 e 1960 a História da África surgia no campo intelectual de países europeus como a Inglaterra e a França e de vários países africanos recémcriados paralelamente aos seus processos de independência Na África a historiografia nascente servia também como 49 BARBOSA Muryatan Eurocentrismo História e História da África Sankofa Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africna Vol 1 nº1 junho de 2008 p4663 50 Idem op cit 51 Uma breve discussão situando discursos eurocêntricos em relação à África pode ser encontrada em OLIVA Anderson A História da África nos bancos escolares representações e imprecisões na literatura didática In httpwwwscielobr acesso em 29 de setembro de 2007 39 instrumento de luta ideológica e política no processo de descolonização não só política e econômica mas também cultural52 Foi neste contexto que foram geridos os estudos do historiador senegalês Cheikh Anta Diop que buscou comprovar através de fontes as origens negras da civilização egípcia e a influência desta sobre os antigos helenos53 O historiador Djibril Tamsir Niani escreveu o livro Sundjata ou o épico mandinga que ficou famoso pela proposta pioneira em usar vastamente os relatos e memórias orais como fonte para construir a história oficial de povos ágrafos inaugurando na África um paradigma metodológico carregado de sentidos políticos e abrindo caminho para vários historiadores Neste período ainda surge a revista Presença Africana que se torna o principal periódico científico a divulgar o pensamento de intelectuais africanos e afro descendentes Conforme Muryatan nessa revista são comuns o uso dos termos raça etnia povo cultura etc para definir uma nova comunidade simbólica A revista Presença Africana tornase deste modo um elo da diáspora negra em que os intelectuais africanos e afrodescendentes assumemse como participantes de uma mesma comunidade de interesses na luta contra o racismo e o colonialismo54 Um autor que se tornou clássico neste período foi o martinicano Frantz Fanon55 Segundo Lewis R Gordon a obra de Fanon autor que assumiu uma postura política de combate ao racismo e ao colonialismo chegou a ser encarada como uma teoria perigosa nos EUA dos anos 196070 enquanto que na América do Sul em países como o Chile era adotada nas salas de aula universitárias ao lado de leituras por ela influenciadas como a Pedagogia do Oprimido do brasileiro Paulo Freire56 No texto clássico Pele 52 Existiram também várias dificuldades para a legitimação de uma historiografia da África nos jovens países africanos o modelo explicativo ainda eurocentrado as dificuldades de institucionalização e financiamento das pesquisas etc BARBOSA Muryatan Eurocentrismo História e História da África Sankofa Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africna Vol 1 nº1 junho de 2008 p4663 53 Uma interessante discussão sobre o tema pode ser encontrada em FINCH III Charles Cheikh Anta Diop confirmado In NASCIMENTO Elisa Larkin Afrocentricidade uma abordagem epistemológica inovadora São Paulo Selo Negro 2009 54 BARBOSA Muryatan Eurocentrismo História e História da África Sankofa Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africna Vol 1 nº1 junho de 2008 p4663 55 Intelectual afromartinicano nascido em 1925 Fanon lutou junto às forças de resistência no norte da África e mesmo na Europa durante a II Guerra Estudou filosofia e psiquiatria na França e dirigiu o Departamento de Psiquiatria do Hospital BlidaJoinville na Argélia onde participou também da Frente de Libertação Nacional pela independência da Argélia Por isso Fanon passou a ser perseguido pela polícia em todas as possessões francesas Sua vida foi marcada por ativa militância e luta física e simbólica pela transformação dos povos colonizados e vitimados pela ótica do racismo Fanon faleceu em 1961 nos EUA vitima de pneumonia enquanto buscava a cura para sua leucemia Mais informações sobre Fanon disponíveis em GORDON Lewis R Prefácio In FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 56 Idem op cit 40 negra máscaras brancas57 o autor faz uma crítica ao que chamou de colonialismo epistêmico ou seja uma forma orientada de ver o mundo e viver nele a partir do racismo e do colonialismo Para tanto o psicólogo estabelece relações entre a cultura a política o imaginário e a linguagem a fim de que identifiquemos como essas construções são feitas vivenciadas e compartilhadas na medida em que mediamos significados e discursos Em outras palavras há uma constelação de dados uma série de proposições que lenta e sutilmente graças às obras literárias aos jornais à educação aos livros escolares aos cartazes ao cinema à rádio penetram no indivíduo constituindo a visão do mundo da coletividade à qual ele pertence58 O critério corraça ele denuncia tem sido definitivo nas relações de poder e no desenvolvimento político econômico social e cultural das pessoas negras Para alcançar sua liberdade ou desalienação o negro deveria tomar urgentemente a consciência das relações simbólicas e sócioeconômicas que os condena às condições subhumanas59 Sua obra inicialmente se propõe a ajudar a transformar o negro em um ser de ação em direção a um novo humanismo60 Para Gordon Fanon construiu um paradigma na história das ciências sociais ao examinar a profundidade da denegação sintomática de muitas pessoas negras como conseqüência da dominação no âmbito epistemológico da produção do conhecimento realizando uma crítica política à categoria dos intelectuais mas foi sensível e cuidadoso o suficiente para não cometer reducionismos e homogeneizar a representação de que todas as pessoas nãonegras sejam racistas61 Como a dominação simbólica ocorre Para Fanon a partir das apropriações que as negras e os negros fazem do modelo social político econômico e cultural dos brancos Através da adoção de línguas de origem européias de um vestuário ocidental de uma perspectiva judaicocristã de um padrão estético branco da perpetuação de valores e crenças eurocêntricos Todo povo colonizado isto é todo povo no seio do 57 Os dois livros mais importantes do autor são Os condenados da Terra e Pele negras máscaras brancas Neste trabalho daremos um breve foco no segundo livro pois ele é o responsável por lançar as bases dos estudos sobre legitimação da perspectiva descolonial 58 FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 p 135 59 MUNANGA Kabenguele Negritude usos e sentidos Belo Horizonte Autentica 2012 60 FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 p25 61 GORDON Lewis R Prefácio In FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 41 qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural toma posição diante da linguagem da nação civilizadora isto é da cultura metropolitana62 A colonização epistêmica estabelece e generaliza estereótipos degradantes em torno da ideia de autenticidade africana ou afrodescendente Para transformar esta realidade no entanto sugere o autor que o processo de busca da originalidade cultural tradicional é um ato político contra o processo racista de colonização No Brasil os intelectuais negros que se juntavam no inicio da década de 1970 buscavam ter acesso a este perfil bem específico de bibliografia Aí o Arthur me trouxe um monte de livros da editora Civilização Brasileira Entre esses tinha o Alma no exílio de Elridgarei e Cleaver e os Condenados da Terra de Frantz Fanon Eu comecei a ler Alma no exílio que foi a experiência do Cleaver que era uma principais lideranças dos Panteras Negras e logo depois entrei no Fanon63 A importância da leitura de bibliografias sobre o tema deuse pelo fato de nutrir os argumentos e estratégias de uma emergente movimentação negra brasileira Os movimentos pelos direitos civis nos EUA o protagonismo de Martin Luther King os movimentos como Os panteras Negras e o Black Power o Soul e o funk music criavam novas discursividades novas visibilidades e sensibilidades negras Os exemplos dessa articulação entre política e produção cultural no exterior influenciaram bastante o olhar de alguns militantes afrobrasileiros Sobre isso ilustra o relato de Calos Alberto Medeiros No início dos anos 1970 enquanto James Brown estava cantando Say it loud Im Black and Im proud Diga em voz alta sou negro e tenho orgulho o Salgueiro teve um sambaenredo que era assim Ô ô ô Que saudade da fazenda do senhor Não dava para competir64 62 FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 p34 63 Depoimento de Amauri Mendes Pereira In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 75 64 Depoimento de Carlos Alberto Medeiros In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 85 42 Artistas que se tornavam referências mundiais enquanto profissionais para os militantes eram antes de tudo ovacionados pela sua negritude sobretudo quando assumiam uma estética afrocentrada que valorizava os traços negros do corpo Isso ocorreu não só nos EUA mas também no Brasil como podemos ver nas fotografias abaixo Para a antropóloga Nilma Lino Gomes A expressão estética negra é inseparável do plano político do econômico da urbanização da cidade dos processos de afirmação étnica e da percepção da diversidade65 A autora afirma que o cabelo crespo para os sujeitos negros carrega sentidos culturais políticos e sociais que lhes são muito importantes e específicos localizandoos dentro de um grupo étnicoracial66 Black Power e Black is beatiful eram estilos estéticos criados nos EUA que chegaram a influenciar fortemente o militantes negros brasileiros Acima fotografias de artistas que 65 GOMES Nilma Lino Sem perder a raiz corpo e cabelo como símbolos da identidade negra Belo Horizonte Autêntica 2006 p 29 66 Idem op cit 43 ganhavam cada vez mais projeção nos anos 1970 não só pelo talento mas também pelo fato de assumir o pertencimento étnicoracial a uma comunidade negra Estes artistas ajudaram a popularizar a aceitação do cabelo crespo como símbolo de negritude e modernidade de comportamento urbano Respectivamente Diana Ross 197567 o grupo norteamericano Jackson Five 197068 e do cantor eleito como representante da Soul music no Brasil Tim Maia fotografia sem data específica que havia morado nos EUA e voltara ao Brasil trazendo a moda dos jovens negros norteamericanos do estilo Black Power69 Por sua vez a agitação dos movimentos políticos dos Panteras Negras influenciava também a produção de novos artigos culturais que mesmo sem objetivos políticos a priori ajudaram a dar uma visibilidade negra em espaços antes não ocupados pelas representações de uma possível presença negra Foi assim que ocorreu com as Histórias em Quadrinhos HQ Ainda de forma tímida foram criados alguns superheróis negros que a principio eram coadjuvantes nas revistas dos tradicionais heróis brancos O caso da marca Marvel é emblemático Ao lado do tipo idealizado Capitão América foram acrescentados personagens como Luke Cage Pantera Negra e Falcão 67 Fotografia disponível no site httpmainstylelistcom Acesso em 20012013 68 Fotografia disponível no site httpedyvieiranoticiasblogspotcombr Acesso em 20012013 69 Fotografia disponível no site httpwwwmundodastriboscom Acesso em 23012013 44 Acima da esquerda para a direita imagem da capa de HQ norteamericana dedicada exclusivamente a Luke Cage em junho de 197270 À direita imagem de historieta de Luke Cage traduzida para o português e vendida no Brasil pela Editora Abril Edição de novembro de 198571 Luke Cage é um personagem que ainda carrega o peso do estereótipo sobre o negro norteamericano e urbano exmembro de gangue Em sua história de vida Cage foi preso injustamente Na prisão ele fora submetido a uma experiência científica que transformou sua genética conferindolhe grande força física e uma pele invulnerável Percebase que nesta HQ a pele de um negro é ressignificada como símbolo de força e ivunerabilidade Nesta HQ o personagem trava luta contra um vilão o filho de satã que é representado com a pele branca e os cabelos louros Acima imagens de quadrinhos do herói Falcão inserido na revistinha do Capitão América traduzida no Brasil72 Falcão é representado com grandes asas que lhe permitem a liberdade de movimentos nas quais poderíamos fazer uma primeira inferência vendo nesta metáfora imagética a possibilidade de desejos políticos de uma 70 Imagem disponível em httpstvcinemaemusicawordpresscom Acesso em 21012013 71 Almanaque do Capitão América nº 78 Editora Abril São Paulo 20111985 p 27 Acervo pessoal do pesquisador 72 Almanaque do Capitão América nº 78 Editora Abril São Paulo 20111985 p 27 Acervo pessoal do pesquisador p 58 e 63 45 comunidade negra em busca de livre expressão de ser e de fazer Falcão possui ainda poderes telepáticos com o seu animal de estimação um falcão No quadrinho acima se vê que o personagem interage bastante com personagens negros ilustrando as interações entre uma comunidade específica Estas produções artísticas convertiamse em algo muito maior que instrumento de sedução das massas negras para encamparem a luta política contra o racismo seriam elas mesmas a própria expressão dessa luta Os militantes que materializariam o nascente movimento negro brasileiro estavam atentos a todas essas produções a todas essas discursividades que circulavam produzindo novos sentidos políticos sobre a negritude Contudo como nos lembra a historiadora Martha Rosa aquela movimentação negra emergente não ficou imune à vigilância militar73 A esse respeito nos conta o militante Edson Cardoso Nós estávamos vivendo uma época em que a ditadura tinha consciência do noticiário que estava no mundo das lutas na África e do que estava acontecendo nos Estados Unidos E houve a tentativa sabendo qual era a situação no Brasil de criar um tapume porque aqui era um foco de possível agitação74 Conscientes de sua realidade os militantes já pontuavam a heterogeneidade das concepções instituições e práticas com vistas a combater o racismo revelando a aglutinação de militantes com experiências e formações distintas Naquele momento vários intelectuais e artistas assumiram um compromisso ético e estético num propósito de produção de novos conhecimentos sobre a história e a cultura afrobrasileira valorizando sua ancestralidade cultural africana e lutando contra o racismo Assim formavase por variadas experiências teóricas e práticas uma cultura política que redefinia socialmente não só o papel de uma emergente intelectualidade assumidamente negra que comungava de propósitos comuns embora houvesse divergências internas e que se comunicava dentro de uma ótica muito própria de poder visando assegurar suas pautas políticas enquanto categoria social mas também um conjunto de pautas políticas Uma pluralidade de sujeitos se entrecruza nas novas 73 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 p 98 74 Depoimento de Edson Cardoso In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 8687 46 produções discursivas Neste sentido vale lembrar a quem o sociólogo Michel Löwy chama de intelectuais escritores artistas poetas filósofos sábios pesquisadores publicistas teólogos certos tipos de jornalistas certos tipos de professores e estudantes etc75 Homens e mulheres negras com estes distintos perfis de formação produziram nesta seara No entanto quando analisamos as fontes relativas ao protagonismo das instituições negras no Brasil percebemos que muitas pessoas sem formação acadêmica mas que exerciam papeis de liderança para as comunidades negras cumpriram um papel crucial na aglutinação de novos sujeitos e formação de novas gerações de militantes Muitos desses sujeitos eram presidentes ou diretores de grupos ou associações culturais principalmente de caráter carnavalesco Tal fato mostra que houve diferentes tipos de interações e apropriação entre sujeitos espaços e discursividades dos movimentos negros e das instituições culturais76 Neste caso pensamos que seja relevante tomar emprestado o termo intelectuais populares proposto por Robert Slenes no prefácio ao livro de Tiago Gomes77 Parafraseando o historiador da África Steven Feirman que cunhou o termo intelectuais camponeses Slenes busca da mesma forma que Feirman nos atentar à capacidade de pessoas comuns sem títulos universitários refletirem analiticamente sobre sua experiência de vida78 Neste capítulo daremos grande importância a estes artistas populares que interagem de forma ativa com outras instituições e práticas discursivas Mas toda história tem um marco inicial uma oficialidade que fazemos questão de demarcar mesmo que não seja de forma linear Vejamos Em 07 de julho de 1978 um grupo de intelectuais negros militantes raciais partidários políticos estudantes e professores universitários fundaram nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo um movimento com o nome de Movimento Unificado contra a Discriminação Racial MUCDR Este movimento não abarcava todas as tendências e entidades negras mas teve grande aceitação no meio destas 75 LÖWY Michel Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários a evolução política de Lucács 19091929 São Paulo Lech Livraria Editora Ciências Humanas 1979 p 1 76 SANTANA Moisés de Melo Olodum carnavalizando a educação Curricularidade em ritmo de sambareggae Tese Doutorado em Educação Programa de Pós em Educação Pontífica Universidade Católica de São Paulo São Paulo 2000 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 77 SLENES Robert O horror o horror o contexto da formação de identidades mestiças no Rio de Janeiro dos anos 1920 In GOMES Tiago de Melo Um espelho no palco identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos 1920 CampinasSP Editora da UNICAMP 2004 78 Idem op cit p 25 47 recebendo logo menção de apoio de outros estados brasileiros Só depois de algum tempo é que o movimento passaria a chamarse de Movimento Negro Unificado como nos conta Milton Barbosa No inicio era Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial MUCDR Com o tempo o Contra a Discriminação Racial ficou como uma palavra de ordem e ficou só Movimento Negro Unificado Mas a palavra negro quem propôs foram o Abdias do Nascimento e a Lélia Gonzalez e todo mundo aceitou Isso deu uma mexida em termos de concepção79 Aquele era um momento em que várias organizações negras buscavam construir a democratização do Estado brasileiro além da fundação do Movimento Negro em julho de 1978 houve também a estréia do Cadernos Negros da realização do I Festival Comunitário Negro Zumbi na cidade de Araraquara em São Paulo as comemorações dos 90 anos de abolição A fundação de agremiações carnavalescas negras de destaque político e cultural como os blocos afro Ilê Ayê e Olodum em Salvador80 e os afoxés Ará Odé Alafin Oyó Ilê de Egbá e Oxum Pandá em Olinda e Recife81 Ao lado desses eventos que demarcavam simbolicamente uma nova discursividade e novas formas de territorialidade negra no Brasil havia o entusiasmo esquerdista causado pela fundação do Partido dos Trabalhadores PT o surgimento dos movimentos sociais e a retomada do sindicalismo82 Fundado assim definiuse o Movimento Negro o conjunto de iniciativas de resistência e de produção cultural e de ação política explícita de combate ao racismo que se manifesta por via de uma multiplicidade de organização em diferentes instâncias de 79 Depoimento de Milton Barbosa In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 156 80 Sobre as relações entre o carnaval a militância negra a construção de novas práticas pedagógicas na cena cultural de Salvador vide SANTANA Moisés de Melo Olodum carnavalizando a educação Curricularidade em ritmo de sambareggae Tese Doutorado em Educação Programa de Pós em Educação Pontífica Universidade Católica de São Paulo São Paulo 2000 81 Sobre as relações entre o carnaval afropernambucano e a militância política negra através dos afoxés de Pernambuco vide QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 82 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 48 atuação com diferentes linguagens por via de uma multiplicidade de organização espalhadas pelo país Tratase de fato de um mosaico que tenta sustentar sua identidade no propósito comum de posicionarse contra o racismo83 Consideramos a importância desta autodefiniação do MNU para pensar o perfil desse movimento nascido no final da década de 1970 mas utilizamos o conceito de movimento negro sintetizado pela historiadora Martha Rosa Figueira Queiroz Portanto movimentos negros são entidades que têm a luta contra o racismo como seu eixo central embora cada uma tenha sua área de atuação específica Movimento Negro por conseqüente representa o conjunto dessas organizações84 Desta forma pensando o movimento negro como um sujeito coletivo um aglomerado de múltiplas instituições políticas sociais e culturais negras Nossa abordagem contemplará não apenas a instituição política Movimento Negro Unificado MNU mas elencará também algumas das intuições culturais e suas respectivas ações que corroboraram para o fortalecimento das pautas políticas da comunidade negra inserindo nesta discussão a construção do conceito de cultura afrobrasileira Por que é relevante trazer a experiência do surgimento e desenvolvimento do movimento negro Por que através desta instituição social temos a possibilidade de refletir sobre as transformações históricas na sociedade em torno de ideias como a própria nação cidadania etc Para o sociólogo Arim Soares do Bem os movimentos sociais podem ser encarados como ferramentas para se compreender os complexos mecanismos de desenvolvimento da sociedade brasileira revelando as áreas de carência estrutural os focos de insatisfação e os desejos coletivos permitindo assim a realização de uma verdadeira topografia das relações sociais85 Destarte os movimentos sociais são indícios que nos permitem problematizar e conhecer o modelo de sociedade no qual se articulam e se desenvolvem O sociólogo considera ainda que a importância histórica 83 Uma parte das resoluções do I Encontro Nacional de Entidades Negras publicado no Jornal do MNU nº 18 p6 Apud QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 84 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 p 96 85 BEM Arim Soares do A centralidade dos movimentos sociais na articulação entre Estado e a sociedade brasileira nos séculos XIX e XX Disponível em wwwcedesunicampbr Acesso em 10062010 49 desses movimentos consiste não somente no fato de que eles revelam tensões e conflitos sociais mas também no fato de que as categorias reivindicatórias de direitos também elaboram propostas de soluções possíveis para o que exigem buscando a institucionalização jurídicolegal das conquistas ampliando e universalizando o campo formal do direito para todo conjunto da sociedade criando novos contextos históricos Essa é a noção de movimentos sociais que usaremos para pensar os movimentos negros do Brasil do século XX Desta forma poderíamos perguntar Sobre que pautas reivindicatórias esse movimento buscou se sustentar Como o movimento se posicionou diante do tema cultura negra ou afrobrasileira Essas perguntas nos levarão a conhecer contextos muito complexos em que serão revelados outros sujeitos cenários interesses e discursos que proporão uma determinada conceituação de cultura afrobrasileira a partir de uma perspectiva política Embora nosso foco nesta dissertação seja historicizar a experiência histórica dos movimentos negros no século XX devemos compreender que a história desses movimentos no Brasil possuem pelo menos mais de um século86 embora não possamos dizer que os movimentos negros tiveram sempre o mesmo perfil político e institucional Precisamos especificar o que estamos chamando de movimentos negros em diferentes temporalidades Concordamos com o seguinte pensamento de Cunha Esta profusão de organizações sociais de maioria afrodescendente formais ou informais e que consolidam expressões de cultura e identidade ou que realizam protestos contra as injustiças sociais vividas pela população negra 87 Desta forma 86 BEM Arim Soares do A centralidade dos movimentos sociais na articulação entre Estado e a sociedade brasileira nos séculos XIX e XX Disponível em wwwcedesunicampbr Acesso em 10062010 CUNHA Jr Henrique Abolição inacabada e a educação dos afrodescendentes Revista Espaço Acadêmico 2008 nº8 outubro ano VIII ISSN 15196186 ERAS Lígia Wilhelms e SILVA Iraci T B Raimundo da Educação e cultura afrobrasileira Anais do I Encontro de Divulgação Científica e Tecnológica ENDICT ISSN 21763046 DOMINGUES Petrônio Um templo de luz Frente Negra Brasileira 19311937 e a questão da educação Revista Brasileira de Educação Vol 13 nº 39 setembrodecembro 2008 Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Educação São Paulo Brasil QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 ROMÃO Jeruse História da educação do negro e outras histórias Brasília MEC 2005 BATISTA Maria de Fátima Oliveira A Emergência da lei nº 1063903 e Educação das Relações ÉtnicoRaciais em Pernambuco Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de PósGraduação em Educação da Universiade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2009 87 CUNHA Jr Henrique Abolição inacabada e a educação dos afrodescendentes Revista Espaço Acadêmico 2008 nº8 outubro ano VIII ISSN 15196186 Neste contexto pensamse as revoltas escravas as associações negras e movimentos sindicais os partidos políticos os clubes e entidades culturais e religiosas etc 50 encaramos como movimentos negros toda uma diversidade de instituições e agrupamentos realizados por indivíduos negros que aspiram melhores condições de vida e constroem projetos políticos sociais econômicos e culturais etc Esses movimentos no plural possuem a cada momento histórico perfis específicos os quais merecem ser ponderados Arim Soares do Bem afirma que no século XIX muitos dos movimentos sociais que eclodiram no Brasil tinham caráter de revoltas populares e não possuíam uma plataforma políticoideológica em comum por isso esses movimentos de contestação permaneciam desarticulados O sociólogo mesmo tentando enxergar algumas permanências entre eles separa os movimentos sociais surgidos nos oitocentos em dois momentos distintos a na primeira metade do século na qual predominou o romantismo político que buscava formar a identidade nacional do império brasileiro e b na segunda metade onde a racionalidade científica positivismo liberalismo e eugenia influenciou o fim da escravidão e estabeleceu novas bases para o capitalismo brasileiro Nesse contexto havia de um lado por exemplo uma movimentação política e social mesmo que muitas vezes suspeitas em torno da abolição da escravatura por parte dos abolicionistas e havia de outro uma série de revoltas populares das camadas escravizadas em busca de conquistar a sua liberdade sem esperar por paternalismos Revoltas alimentadas algumas vezes pela experiência haitiana Contudo esses movimentos que abarcavam categorias sociais como os escravos em busca de melhores condições de vida não possuíam em sua maioria articulações muito precisas entre diferentes localidades fato que dificultou seus desenvolvimentos embora tenham sido suficientes para corroer a estrutura da escravidão por dentro88 Ainda conforme do Bem já nas duas primeiras décadas do século XX surge uma nova racionalidade dos movimentos sociais Tratouse de um momento de fervor político organização dos sindicatos e crescimentos dos partidos de esquerda que buscaram transpor a experiência de organização política da classe operaria para o contexto nacional Entre 1930 e 1945 houve a emersão de um projeto liberal industrializante que estabeleceu rupturas com as elites oligárquicas embora ainda houvesse continuidades com ela O processo de crescimento urbano desenvolveuse como objeto de políticas públicas 88 REIS João José Domingos Pereira Sodré um sacerdote africano na Bahia oitocentista AfroÁsia 34 2006 237313 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 51 Tomando a escola como uma das instituições sociais mais influenciáveis na construção de identidades os debates acerca das relações étnicoraciais no ambiente escolar se tornaram cada vez mais abrangentes Cientes de que as relações entre história memória e identidade são interpeladas por relações de poder vários movimentos negros organizados se mobilizaram política e culturalmente para garantir a ressignificação dos saberes escolares recolocando a identidade negra sobre novos referenciais possibilitadores não só de uma nova consciência sóciohistórica e cultural mas também do exercício político da cidadania Essas são algumas das experiências na vida social que incitaram vários intelectuais negros a enfrentar a exclusão social organizandose e elaborando projetos alternativos de sociedade brasileira ao longo de todo o século XX Eles haviam concluído que mais do que identificar a discriminação racial é preciso combatêla Desde a década de 30 do referido século com a Frente Negra entre outros movimentos políticos e culturais já se reivindicava a educação como o campo mais propício à ascensão social dos negros brasileiros e à valorização da identidade negra Em suma ao longo do século XX os movimentos negros brasileiros instituíram algumas práticas discursivas em busca de construir uma cidadania para o negro brasileiro A luta posta e constantemente atualizada ao longo do século XX era contra a permanência da ideologia de branqueamento que norteava as políticas públicas do Estado brasileiro mantendo como uma das características fundamentais a não legitimação das matrizes negras na formação da nacionalidade Tratavase agora de uma série de lutas discursivas em que se propunham projetos políticos de exercício de cidadania a serem negociados com o Estado sobre isso afirmam Lígia Eras e Iraci Silva Dentro de uma sociedade a que foram relegados à exclusão buscaram através de movimentos sociais a luta pela igualdade racial e de direitos legais Essas reivindicações produziram uma construção de valores de justiça dando lugar a uma identidade de cidadãos negros brasileiros89 89 ERAS Lígia Wilhelms e SILVA Iraci T B Raimundo da Educação e cultura afrobrasileira Anais do I Encontro de Divulgação Científica e Tecnológica ENDICT ISSN 21763046 p 81 52 Nesse contexto vários intelectuais negros também surgiram a fim de garantir novos lugares sociais políticos econômicos e culturais para os negros brasileiros É justamente essa história que queremos evidenciar a partir deste capítulo Como aponta a socióloga Maria Auxiliadora Gonçalves da Silva a identidade negra foi encarada como uma problemática comum a sujeitos sociais que vivenciam experiências cotidianas de preconceito e exclusão Assim emergem novas formas oficiais de organização do movimento negro90 Como a estratégia do MNU tinha como foco a institucionalização e conceituação de críticas e propostas logo buscaram criar uma série de documentos que legitimassem suas pretensões enquanto movimento social como a Carta de Princípios e o Programa de Ação91 Esses documentos são instrumentos legais que buscaram legitimar o conjunto de ações do movimento em prol da conquista de uma visibilidade social incitada pela imposição da inclusão dos negros brasileiros retirandoos das malhas da exclusão social Como podemos ver abaixo definiase como princípios do MNU na sua Carta de Princípios 90 SILVA Maria Auxiliadora Encontros e Desencontros de um Movimento Negro Dissertação de mestrado acerca do Movimento Negro do Recife defendida no programa de pósgraduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco UFPE 1991 91 Fundado em 7 de julho de 1978 na cidade de São Paulo movimento negro reuniuse na Assembléia Nacional do MNU no dia 9 de setembro na cidade do Rio de Janeiro Conforme o militante Milton Barbosa foi uma assembléia durou 36 horas de discussões acalouradas onde se confrontavam diferentes perspectivas de ação In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 156 53 Neste documento percebemos que desde sua fundação o MNU já assume um discurso oficial indicando as suas críticas ao Estado e à sociedade brasileira embora existissem divergências quanto aos métodos a serem utilizados Discursivamente o nascente movimento define o que seria um cidadão negro aquele que possui na cor da pele no rosto ou nos cabelos sinais característicos dessa raça A militância afro brasileira escolheu segundo o senso comum as características fenotípicas como critério de autenticidade da identidade negra Mas esta opção não deve ser tomada de forma reducionista Ao fazer este tipo de definição o MNU aproximase dos critérios de identificação social do negro legitimandoos mas buscando agora positiválos Com isso abremse novas possibilidades de identificação de outros sujeitos de cor com a 54 ideia de negritude Em seguida a carta elenca formas de reprodução do racismo cujas existências possuem sentido e legitimidade não só em nível das relações pessoas mas sobretudo nas relações institucionais Aqui chamamos a atenção para a forma como o movimento pontua a situação da cultura afrobrasileira nas relações institucionais com o Estado brasileiro marginalização racial política econômica social e cultural do povo negro e colonização descaracterização esmagamento e comercialização de nossa cultura Antes de definir o que seria a cultura afrobrasileira o MNU situavaa num contexto político de legitimação da dominação dos cidadãos negros Contra esta constatação assume respectivamente a luta pela defesa do povo negro em todos os aspectos políticos econômicos sociais e culturais Para a efetivação desta luta o documento ressalta a importância da valorização da cultura negra e combate sistemático à sua comercialização folclorização e distorção A carta ainda incide sobre a relevância do protagonismo dos sujeitos negros na autogestão desse novo projeto de sociedade e assume redes de solidariedade com outros grupos sociais oprimidos e demais movimentos sociais Este é um ponto importante da proposta pois denota que o movimento negro não queria trocar a valoração dos sujeitos invertendo a polarização dicotômica negros x brancos Não se tratava de elevar o negro ao ponto máximo enquanto ícone de cidadania brasileira localizandoo simbolicamente acima de brancos e índios mas sim de a partir de solidariedades políticas e equidades compartilhadas construir a igualdade de tratamento e existência entre os diferentes seguimentos étnicos brasileiros Observando a mensagem proferida no final do documento escrita em letras garrafais POR UMA AUTÊNTICA DEMOCRACIA RACIAL vemos que a ideia de democracia racial passa a ser denunciada enquanto ideologia de dominação a partir da concepção do sociólogo Florestan Fernandes mas passa a ser também um ideal a ser conquistado no sentido que pela ação consciente dos cidadãos negros do Estado e do restante da população brasileira poderá se concretizar Essas linhas de pensamento serão desenvolvidas na consolidação do MNU e suas filiais nos estados brasileiros mas só algumas chegarão a outras instâncias legais do Estado brasileiro nos anos 1990 e na primeira década do século XXI como por exemplo a reavaliação do papel do negro na história do Brasil e valorização da cultura negra como formas de combate ao racismo 55 Mesmo considerando a experiência histórica dos movimentos antecessores como a FNB92 e o TEN93 o MNU propunha uma lógica diferenciada em relação a eles pois agora não se desejava reafirmar a inserção na ordem consumista brasileira como um igual ao branco mas como um diferente dele Buscavase construir outra lógica de inserção a partir da construção de uma identidade negra que valorizava uma ideia de ancestralidade africana produzindo um discurso que ressignificasse esta ancestralidade como um símbolo de orgulho e diferenciação da identidade negra Buscavase a originalidade tradicional e descolonizada no sentido de Frantz Fanon A luta política contra o racismo incluía a valorização desta ancestralidade da negritude e da cultura afrobrasileira ao passo que punha em pauta os debates sobre o papel das atividades culturais nesta luta Mas na emergência daquele movimento negro havia pessoas com diferentes experiências e formações definindo perspectivas e propostas de ação que ora se 92 A Frente Negra Brasileira FNB fundada na cidade de São Paulo em 1931 por um grupo de homens de cor92 preocupavase com a elevação moral e material da raça negra num momento em que várias escolas dificultavam ou mesmo proibiam a matrícula de alunos negros Para tanto criou um associativismo colocando na mão de particulares a criação e manutenção de uma escola para a instrução dos negros Perpetuavase pela educação a lógica da inserção pela igualdade do negro ao branco Ideologicamente a referida escola mantinha um projeto de caráter nacionalista e integrador A FNB cresceu bastante a partir de São Paulo chegando a influenciar capitais e cidades interioranas em vários outros estados brasileiros como Campinas Sorocaba Rio de Janeiro Salvador Vitória Recife Porto Alegre etc À medida que crescia e tomava proporções maiores na sua atuação em nível nacional a FNB institucionalizouse enquanto partido político mas foi abolido junto com todos os outros partidos políticos pela ação do plano Cohen de 1937 que iniciava a era Vargas Mesmo tendo sua existência encurtada por forças políticas a FNB realizou um projeto políticosocial na contramão do Estado republicano brasileiro que permanecia negando o exercício pleno da cidadania e garantindo o racismo como forma de dominação que gera e nutre as desigualdades sociais para os afrodescendentes92 Do ponto de vista simbólico a FNB mostrou ao Brasil uma experiência históricoescolar pensada e gerida por negros onde todos os professores pertenciam a esta categoria social Vide DOMINGUES Petrônio Um templo de luz Frente Negra Brasileira 19311937 e a questão da educação Revista Brasileira de Educação Vol 13 nº 39 setembrodecembro 2008 Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Educação São Paulo Brasil e CUNHA Jr Henrique Abolição inacabada e a educação dos afrodescendentes Revista Espaço Acadêmico 2008 nº8 outubro ano VIII ISSN 15196186 93 O Teatro Experimental Negro TEN foi uma organização fundada em São Paulo em 1941 cuja liderança maior coube a Abdias do Nascimento O TEN se empenhava em garantir o direito à educação da população negra como dever do Estado brasileiro e não de pessoas ou instituições privadas como fora estimulada pela FNB nos anos 1930 Para além da ascensão social do negro através da educação o TEN desejava realizar alterações conceituais nas consciências dos jovens atores e públicos negros positivando a negritude e forjando novos laços de pertencimento étnicoracial Para tanto promovia atividades de alfabetização discussões sobre o negro na sociedade brasileira produzia textos teatrais e realizava encenações em espaços públicos no centro da cidade ou nas favelas a fim de sensibilizar a comunidade negra para o exercício da cidadania Estimulava a dramatização do processo de introjeção da inferioridade negra para transformála Essa proposta provinha de suas articulações entre educação cultura e política Vide MULLER Ricardo G Teatro políticas e educação a experiência histórica do Teatro Experimental do Negro TEN 19451968 In LIMA Ivan C Educação Popular Afrobrasileira Série Pensamento Negro em Educação FlorianópolisNE nº 051999 56 encontravam ora se desencontravam94 Na carta de princípios o MNU pontua seu posicionamento político quanto aos usos comumente feitos da cultura afrobrasileira valorização da cultura negra e combate sistemático à sua comercialização folclorização e distorção95 Embora o documento expresse a representatividade de uma postura coletiva tomada frente ao tema quanto aos métodos de militância política a perspectiva cultural não constituía um campo confortável de ação Em determinadas cidades como Recife e Salvador por exemplo o movimento negro que surgia criava também algumas entidades culturais e estreitava os laços com as já existentes para a valorização da cultura negra e ativação da militância política Essa atuação gerou um desconforto entre os militantes que se dividiram em alas de acordo com suas perspectivas de trabalho os culturalistas e os políticos Mesmo comungando de objetivos como valorização da identidade negra reconhecimento da ancestralidade africana e combate ao racismo no Brasil o movimento negro que surgia naquele momento apresentava uma heterogeneidade de perspectivas e propostas de trabalho decorrente das distintas experiências e formações dos intelectuais envolvidos Entre os militantes que assumiam uma perspectiva que chamavam de política enfatizavam o protesto social e a busca da efetivação de políticas públicas para a população negra Ao mesmo tempo condenavam a ala culturalista de perpetuar uma visão folclorista espetacularizada e alienante da cultura negra Essa visão se aproximava da tese elaborada por Florestan Fernandes nos anos 196096 Os militantes negros que defendiam a perspectiva política estavam próximos à esquerda revolucionária e seguiam as teorias marxistas lugar discursivo de onde Florestan Fernandes estudava a inserção dos negros na sociedade de classes Nós líamos não só os livros mas artigos de Clóvis Moura Florestan Fernandes etc97 Com isso os militantes políticos denotavam uma prática de interdiscursividade em que assumiam uma perspectiva da cultura como prática de alienação 94 SILVA Maria Auxiliadora Encontros e Desencontros de um Movimento Negro Dissertação de mestrado acerca do Movimento Negro do Recife defendida no programa de pósgraduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco UFPE 1991 95 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO 19781988 10 anos de luta contra o racismo São Paulo Confraria do Livro 1988 p 1819 96 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 A análise da produção discursiva referente a história e especificamente sobre a cultura negra nós veremos no próximo capítulo 97 Depoimento de Gilberto Leal In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 75 57 Havia dentro do movimento negro diferentes apropriações do pensamento de Fernandes e sua escola A ala dos culturais selecionava os argumentos do sociólogo que lhes pareciam cabíveis à legitimação das idéias de racismo e exclusão social mas quando se tratava de pensar a cultura negra a tese de Fernandes não parecia correta Os militantes culturalistas definiam que seu trabalho era o de articular cultura e política não só no sentido de valorização do universo cultural negro e sua divulgação e exercício no espaço público mas também como instrumento de crítica ao mito da democracia racial e denuncia do racismo98 Assim buscaram se aproximar de outros intelectuais que se interessavam pelos estudos da cultura afrobrasileira e que poderiam legitimar sua perspectiva Peter Fry Carlos Vogt e Robert Slenes99 Os relatos dos militantes que vivenciaram aqueles momentos nos contam versões a respeito Em 1976 77 já havia uma tensão no meio do movimento negro entre aqueles que defendiam que era uma mudança cultural e os que defendiam uma mudança mais profunda Os primeiros achavam que a mudança tinha que acontecer através de informação Temos que publicar mais organizar poesia organizar contos fazer eventos esportivos tentar reunir a comunidade uma tendência que a gente batizou de culturalista Eram pessoas que tinham feito as opções corretas mas que a gente não sabia avaliar naquele momento E havia pessoas como eu do movimento político que queriam uma manifestação mais política mas nós não tínhamos nenhum cabedal para fazer isso Eles tinham um projeto específico de literatura de teatro de festival e nós querendo transformar aquilo em uma coisa política negando que aquilo fosse política100 Em depoimento bastante parecido Antonio Carlos dos Santos mais conhecido como Vovô presidente do Bloco Afro Ilê Ayê em Salvador nos conta 98 Devemos considerar que haviam exemplos dessa articulação no exterior para os quais alguns militantes estava atentos Sobre isso tomemos o relato de Calos Alberto Medeiros No início dos anos 1970 enquanto James Brown estava cantando Say it loud Im Black and Im proud Diga em voz alta sou negro e tenho orgulho o Salgueiro teve um sambaenredo que era assim Ô ô ô Que saudade da fazenda do senhor Não dava para competir In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 85 Neste sentido a produção artística convertiase em algo muito maior que instrumento de sedução das massas negras para encamparem a luta política contra o racismo seria a própria expressão dessa luta Depoimento de Carlos Alberto Medeiros In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 85 99 Esta relação de proximidade política e discursiva será discutida no capítulo 3 100 Depoimento de Ivair Alves dos Santos In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 237 58 Nós já fomos chamados de falso africano e de tocador de tambor pelo próprio pessoal do movimento negro Essas pessoas achavam que tinha que ser pelo político e não pelo cultural Só que nós mostramos ao pessoal que só o fato de a gente criar um bloco desses já foi um ato político E você faz o político junto com o cultural Porque você fazia aqui reuniões de movimento negro e só iam os mesmos Às vezes tinha mais brancos do que negros nas reuniões nos seminários onde tinha pesquisadores E no bloco afro você fazia na rua Você tem o apelo popular e ali você passa todas as informações101 Nesta mesma linha de raciocínio em defesa da cultura como articulação política Luiz Alves Ferreira diz E aí fizemos Semana de Cultura Negra Semana de Política Negra porque a visão que a gente tem é que a cultura está dentro da política e viceversa102 Defendendo essa perspectiva o movimento negro buscava não só reconhecer valorizar divulgar dinamizála preservandoa mais também reexplicálas contextualizálas expondo os sentidos mais profundos dessas práticas a serem vistas por dentro da lógica cultural de seus praticantes Não é a toa que entre esses militantes haviam babalorixás e yalorixás presidentes de entidades culturais e esportivas antropólogos historiadores jornalistas etc Seriam os negros assumindo a fala por seus símbolos e significados descolonizando o pensamento social brasileiro sobre a cultura negra Mas para realizar esse projeto o movimento negro propôsse sobretudo a focar nas atividades culturais que estivessem mais próximas das pessoas negras no seu cotidiano em suas comunidades para a partir delas promover suas sensibilizações políticas culturais e educativas É por isso que no Programa de ação aparecem com destaque os Blocos Afros as Escolas de Samba os Grupos de Capoeira Dança entre outras manifestações de Cultura negra A crítica social e política que alimentavam o desejo de melhoria da qualidade de vida da população negra não deixaram de existir O movimento negro agora instalara discursivamente uma fratura na ideia de comunidade nacional brasileira Simbolicamente interrompiase a continuidade para instalar a diferença que legitimaria a luta política desta categoria social 101 Depoimento de Antonio Carlos dos Santos Vovô In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 238 102 Depoimento de Luiz Alves Ferreira In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 235236 59 No entanto devemos atentar para não cairmos no reducionismo conceitual acerca desse projeto Esta ação do MNU não se tratava de reforçar estereótipos sobre a cultura negra engessandoa em lugares simbólicos clássicos mas sim de uma estratégia política de reinstitucionalização e reutilização dessas práticas culturais como meio de estabelecer novos meios políticos ao passo que angariava a participação cada vez maior das comunidades negras Nesse processo também a música a dança a capoeira etc eram ressignificadas ganhando não só novos sentidos mas também novas formas conteúdos e práticas Podemos sentir isso no relato de Vovô presidente do Bloco Afo Ilê Ayê Aqui no Ilê é tudo muito em cima da música A música é um veículo condutor muito importante Aqui tem música tema que é a música do ano que é a música que educa Então é essa música que informa informa a cidade Não é só pra educar o branco para a gente também porque nós não tínhamos essa informação não temos no dia adia no livro didático103 Uma vez que a cultura possuía uma importância significativa no combate ao racismo a educação foi eleita como campo privilegiado dessa transformação cultural Mas esta preocupação ocorreu para além das ações nas instituições informais do ensino como já se fazia Para o MNU havia na verdade uma interligação muito forte entre política cultura e educação que se precisava garantir oficialmente no projeto educativo brasileiro via intervenção do Estado mas sob a orientação do MNU Como o projeto desse movimento perpassava a institucionalização e conceituação em suas críticas propostas e ações o MNU propunha também no seu Programa de Ação a sua definição de Educação A Educação deve ser um instrumento de libertação e não de alienação de um povo Portanto devemos lutar pela transformação não só da estrutura como dos conteúdos do sistema educacional brasileiro exigindo a colocação no mesmo nível da história Européia a da África assim como a ênfase sobre a participação do Negro e do índio na formação sócio cultural do Brasil104 103 Depoimento de Antonio Carlos dos Santos Vovô In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 2389 240 104 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 60 Desenvolvendo o texto o MNU afirma que a escola é uma instituição que cumpre um papel alienante ao invés de desenvolvimento intelectual e libertário da educação brasileira pois ela perpetuaria a mentalidade elitista e racista alienando os estudantes Influenciado pela teoria de Louis Althusser para o MNU a escola seria um Aparelho Ideológico do Estado reproduzindo uma ideologia de dominação econômica e racial que produzia desigualdades entre negros e brancos105 Segundo Althusser autor que corrobora com o acervo esquerdista dos movimentos sociais a partir dos anos 197080 a escola é um dos principais aparelhos ideológicos do Estado capitalista cujo modelo político predomina nas relações sociais modernas A escola é apontada pelo filósofo como formadora das forças produtivas voltadas ao mercado de trabalho garantindo a produção ideológica que perpetua as relações de subalternidade na lógica da desigualdade social Neste sentido a instituição escolar não deixa de ser um palco para a luta de classes Porém uma vez que esteja comprometida ideologicamente com o Estado ela comprometese também com a ideologia das classes que dominam e gerem o próprio Estado A escola seria desta forma portadora de forte caráter violento perpetuando ideias e ações de dominação do Estado capitalista através das instituições ou forças de persuasão Ora é através da aprendizagem de alguns saberes práticos envolvidos na inculcação massiva da ideologia da classe dominante que são em grande parte reproduzidas as relações de produção de uma formação social capitalista isto é as relações de explorados com exploradores e de exploradores com explorados Os mecanismos que reproduzem este resultado vital para o regime capitalista são naturalmente envolvidos e dissimulados por uma ideologia da Escola universalmente reinante visto que é uma das formas essenciais da ideologia burguesa dominante uma ideologia que representa a Escola como um meio neutro106 Outro referencial que a partir dos anos 1960 denunciava a educação como espaço de reprodução das desigualdades sociais era o sociólogo francês Pierre Bourdieu Até meados do século XX a escola era encarada socialmente como uma instituição neutra uma instituição que a partir de seus critérios racionais e democráticos 105 É importante ressaltar que nos anos 1980 as linhas de pensamento embasadas na teoria marxista estavam retomando sua força nas discussões intelectuais no Brasil É neste sentido que devemos pensar a utilização de algumas teses e temos como reprodução cultural a escola como Aparelho Ideológico do Estado alienação etc 106 ALTHUSSER Louis Ideologia e Aparelhos ideológicos de estado Lisboa Presença 1970 p 66 67 61 oportunizava igualmente a todos os estudantes as mesmas oportunidades de comunicação aprendizagem e êxito na cultura letrada e na vida profissional Destarte os motivos de seus respectivos êxitos ou fracassos escolares eram atribuídos aos próprios alunos Do contrário analisando através de diferentes materiais e métodos algumas das múltiplas dimensões do cotidiano escolar Bourdieu inverte a interpretação e evidencia o papel da escola enquanto reprodutora e legitimadora das desigualdades sociais107 Para Bourdieu este fato provém do projeto moderno fundado no século XVIII de se criar uma escola diferenciadora que distinguisse os sujeitos conforme suas respectivas origens sociais e lhe prédeterminasse um destino social Desde então à dualidade rígida das formações escolares corresponde uma dualidade de cultura É todo o colorido da vida escreve Philippe Ariès que se alterou com o tratamento escolar diferencial da criança burguesa ou popular Ao perder sua função de unificar ou pelo menos de tornar possível a comunicação a cultura recebe uma função de diferenciação108 Para o sociólogo a escola é tida na sociedade moderna como instituição que veicula uma cultura legítima universalmente válida Mas na verdade ela perpetua a cultura a linguagem os valores e projetos políticos das classes dominantes No entanto este caráter arbitrário da escola é ocultado através do discurso que evidencia a sua racionalidade e a neutralidade fortalecendo ainda mais o processo inconsciente de dominação simbólica e consolidação das desigualdades sociais Ela formata indivíduos com concepções comuns que legitimam a existência as ideias e o poder das classes dominantes Os homens formados em uma dada disciplina ou em uma determinada escola partilham um certo espírito literário ou cientifico o moldado pela Escola Normal Superior ou aquele moldado pela Escola Politécnica Tendo sido moldados segundo o mesmo modelo pattern os espíritos assim modelados patterned encontramse predispostos a manter com seus pares uma relação de cumplicidade e comunicação imediatas109 107 NOGUEIRA Maria Alice e NOGUEIRA Cláudio M Martins Bourdieu e a educação Belo Horizonte Autêntica 2006 Ainda segundo os autores existiram outros fatores que influenciaram a produção teórica de Bourdieu nos anos 1960 como o surgimento de pesquisas quantitativas em países como Inglaterra EUA e França que demonstraram o peso das origens sociais nos destinos escolares e a massificação do acesso ao ensino secundarista e superior na França acompanhada do descrédito da formação universitária como garantia de ingresso no mercado de trabalho e mobilidade social para as camadas populares urbanas 108 BOURDIEU Pierre A economia das trocas simbólicas São Paulo Perspectiva 2011 p 220 109 BOURDIEU Pierre A economia das trocas simbólicas São Paulo Perspectiva 2011 p 206 62 Neste contexto de reflexões rupturas epistêmicas apontamentos e denuncias um trabalho pioneiro sobre a reprodução de ideologias nos sistemas de ensino foi o da Educadora Ana Célia da Silva Ela analisou a reprodução de estereótipos racistas nos livros didáticos brasileiros voltados à alfabetização Sua dissertação de mestrado originou o livro hoje clássico A discriminação do negro no livro didático no qual a educadora pontuou que nestes materiais didáticos ainda havia a permanência de uma ideologia das aptidões ou seja uma forma de perceber as identidades étnicoraciais não só naturalizando as diferenças entre elas mas também justificando suas respectivas formas de ocupação de determinados lugares e papéis sociais Seu trabalho de cunho denunciativo evidenciou a permanência histórica da ideologia do branqueamento social brasileiro nos livros didáticos Tal aspecto discriminatório se faz perceber pela forma como são criadas as narrativas alusivas a personagens brancos e negros na literatura didática110 A autora percebeu que em se tratando dos negros os livros didáticos traçavam perfis identitários estereotipados negativamente sendo sempre o escravo o serviçal o indivíduo caricaturado uma minoria quantitativa na história desumanizados submissos e exercendo profissões e papéis sociais desprestigiado sem referencias familiares O cenário onde esses personagens negros aparecem é majoritariamente a rua Eles aparecem em diferentes situações sociais trabalhando brincando tentando chamar a atenção Sem identidade humanizada eles são chamados por apelidos ou pela cor da pele e geralmente são representados tanto em linguagem verbal quanto nãoverbal em último lugar A cultura negra geralmente era omitida nos livros didáticos dos anos 1980 ou quando aparecem são folclorizadas O universo negro nos livros didáticos era dominado pela lógica branca Já os personagens brancos possuem outras condições de aparição Seu perfil é sempre o de um sujeito feliz e organizado que domina as situações representadas Seu perfil é de um homem trabalhador de classe média que possui bens materiais forma famílias exerce bons empregos são bonitos limpos e inteligentes Eles ainda exercem papéis sociais e profissões de alto prestígio social Diferentemente do negro que costuma aparecer na rua o branco aparece em espaços burgueses o escritório o carro 110 SILVA Ana Célia A discriminação do negro no livro didático Salvador EDUFBA 2004 63 novo a casa as festas as lojas etc nas narrativas dos livros os brancos aparecem em distintas situações sociais trabalhando comprando ensinando etc também agora são chamadas pelos nomes próprios A cultura do branco conforme a autora é a referencia para os alunosleitores destes livros ela é bonita racional correta pura enfim um modelo a ser seguido Neste contexto também ganhava bastante popularidade a obra do educador brasileiro Paulo Freire Defendendo o caráter eminentemente político da educação Freire denuncia as práticas simbólicas de dominação cultural e política de grupos opressores e assume uma postura políticofilosófica de comprometimento não simplesmente com ideias mas com algo maior a existência humana a vida numa sociedade cuja estrutura conduz a dominação de consciências Ele propõe não uma pedagogia para os oprimidos mas a construção e valorização de uma pedagogia do oprimido visando a sua própria libertação e autonomia através da reconfiguração consciente e responsável dos sujeitos Para isso sugeria que era fundamental a elaboração de uma pedagogia que estivesse enraizada nas subculturas pois elas possibilitaram um contínuo tomar reflexivo criativo e transformador de seus próprios caminhos de libertação Não se tratava simplesmente naquele momento de uma nova metodologia de ensino mas de uma proposta metódicopolítica de aprendizagem em que mais do que criar as possibilidades de reflexão e ação sobre a realidade aprender seia a exercer a prática da liberdade Desta forma aprender não consistia numa educação bancária cuja prioridade é repetir palavras regras gramaticais cristalizadas ou conteúdos disciplinares tidos como verdadeiros Essa pedagogia tradicional é classificada por Freire como violenta discriminatória invasiva de mundos culturais e fazia com que os oprimidos perdessem sua originalidade111 Freire construía um novo paradigma naquele momento afirmando que aprender significa sim ao oprimido experimentar formular nomear criar a própria palavra criadora da cultura A necessidade existente no meio educativo seria então de valorizar aproveitar e evidenciar a palavra dos oprimidos pois este falar está associado a seus juízos experiências e comportamentos Esse processo porém não é individual mas coletivo Para Freire neste percurso o homem terá condições reais de deixar de ser objeto para ser de fato um homem um ser humano pleno A pedagogia então se transforma em antropologia e história 111 Como vimos a perda da originalidade por parte dos oprimidos é uma argumentação já presente na obra de Frantz Fanon também um autor que influenciou a obra de Paulo Freire 64 num processo de hominização de tomada da consciência de si no mundo no espaço no tempo na cultura O importante do ponto de vista de uma educação libertadora e não bancária é que em qualquer dos casos os homens se sintam sujeitos de seu pensar discutindo o seu pensar sua própria visão de mundo manifestada implícita ou explicitamente nas suas sugestões e nas de seus companheiros112 Esse processo de tomada de consciência de si é um processo histórico Mas todo este ciclo de interligação entre educação cultura e história caracteriza um processo político O professor Ernani Fiori explica que a proposta políticofilosófica de Paulo Freire se torna extremamente relevante num contexto em que a dominação de consciências se faz condição predominante no qual as pessoas que mais trabalham possuem menor direito de dizer suas palavras e significações do mundo Desta forma os dominadores mantêm o monopólio da palavra com que mistificam massificam e dominam113 Assim a construção de um método educativo pautado numa nova racionalidadesensível é um ato político Conscientizar é então politizar e para Freire os universos culturais dos dominados as subculturas marginalizadas enfim a cultura popular se traduzem em ferramentas de políticas populares Para ele não pode haver cultura sem política114 Tecemse desta forma os fundamentos e métodos de uma pedagogia da esperança aquela que rompa com a opressão e priorize a autonomia o respeito a dignidade e a igualdade de existência e tratamento entre todos os homens Com Paulo Freire outro paradigma educativo se instaura Se a escola é reconhecidamente apontada como instituição que perpetua formas simbólicas de dominação a educação freiriana ganha novas conotações Agora ela é encarada como campo de transformação sóciopolíticocultural Entre a escrita e a leitura de suas Pedagogias do oprimido da autonomia e da esperança a educação é reoxigenada como possibilidade de transformações e de exercício da liberdade humana de ser dizer e fazer em que as subculturas cumprem um papel essencial Para o MNU esta proposta que sintetiza crítica denunciativa proposta metódicopolítica transformadora e indicação da originalidade ancestralidade e universo cultural próprio como 112 FREIRE Paulo Pedagogia do Oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 2005 p 139 113 FIORI Ernani Maria Aprender a dizer sua palavra Prefácio à 49ª reimpressão In FREIRE Paulo Pedagogia do Oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 2005 114 Idem Op cit p 65 ferramentas para a transformação hominização dos indivíduos negros se torna bastante oportuna Paulo Freire estará entre as discursividades negociadas e apropriadas pelo MNU na construção de suas pautas políticas Embasados nestes pressupostos políticofilosóficos para denunciar o caráter reprodutivista da educação a fim de transformála o MNU elegeu a disciplina escolar História como o campo de ressignificação de saberes e consciências sóciopolíticas Novos discursos onde circulassem novos sentidos da negritude seriam produzidos a partir da história selecionandose personalidades experiências e valores que recontassem a história do Brasil tomando o negro como um sujeito ativo e portador de profundos valores civilizatórios que não eram contemplados na lógica ocidental Propunhase a construção de narrativas que rompessem com a ideologia da democracia racial e evidenciassem os conflitos entre negros e brancos na história do Brasil Em suma propunhase através da educação uma ruptura simbólica com a narrativa fundadora de uma comunidade nacional que fora discursivamente harmonizada Esse processo de conscientação histórica revisitaria o passado para compreender o racismo presente a fim de construir um projeto de cidadania negra para o Brasil em um futuro muito próximo Ora um povo que não sabe do seu passado um povo sem história não pode visualizar os caminhos a empreender ao seu futuro115 Na seção Educação do Programa de Ação116 o MNU definia no documento qual deveria ser a sua atuação para garantir que a educação nacional se convertesse em um campo democrático evitando a reprodução da ideologia racista A partir de várias experiências e ações de grupos e instituições negras do passado e daquele momento 115 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 116 Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 O Programa de Ação foi um documento produzido pelo MNU a fim de tornar claros para a comunidade negra e para o Estado brasileiro as críticas e as propostas de recriação da sociedade brasileira e da cidadania negra Erguendo o lema Por autêntica democracia racial como intitula na sua introdução onde assume o compromisso de desconstruir o mito da democracia racial e de lutar acirradamente contra o racismo o Programa de Ação pondera 16 temas divididos em seções a saber 1 marginalização do negro 2 Discriminação racial no trabalho 3 desemprego 4 condições de vida 5 Direito e violação 6 prisões 7 o menor Abandonado 8 Cultura Negra 9 Educação 10 Mulher Negra 11 Imprensa Negra 12 Nos Sindicatos 13 Área Rural 14 Posses de terras doações e invasões 15 luta internacional contra o racismo e 16 transformação geral na sociedade Este documento realiza um aprofundamento analítico das propostas que estão sucintamente apresentadas na Carta de Princípios do MNU Não é propósito nosso fazer uma análise dos dezesseis temais apresentados no Programa de Ação pois nosso foco nessa dissertação recai sobre as articulações entre política cultura e educação por dois motivos básicos 1 como nos lembra a historiadora Queiroz esses elementos são estruturadores do discurso do MNU bem como pontos de interdiscursividade entre o MNU nacional suas filiais em outros estados e outras entidades culturais e 2 por serem esses os critérios que sendo atualizados em diferentes discursividades e documentos oficiais relativos à reavaliação da educação e da história possibilitaram a sanção da lei 1063903 gerando novas demandas para o Ensino de História definindo assim o objeto de estudo dessa investigação 66 foram eleitas então seis ações básicas 1 denunciar e combater a publicação de livros didáticos que veiculassem valores racistas em seus conteúdos 2 realizar cursos de formação para professores de diferentes níveis de ensino 3 efetuar atividades didáticas nas periferias favelas e alagados etc com crianças e jovens para despertar sua consciência negra e crítica para a história do negro no Brasil e na África 4 arregimentar pedagogos psicólogos historiadores etc negros e nãonegros para analisar documentar e instrumentalizar os militantes negros para as suas ações educativas117 5 levantar trabalhos didáticos referentes à cultura afrobrasileira junto a grupos e organizações culturais e 6 solicitar às instituições políticopartidárias maior atuação junto ao ministério da Educação e Cultura para impedir a publicação e circulação de materiais didáticos de cunho racista A seção Educação do Programa de Ação é finalizada com alguns tópicos propositivos quanto à concretização desse projeto educativo entre os quais destacamos Contra a discriminação racial nas escolas Por melhores condições de ensino aos negros Pela reavaliação do papel do negro na história do brasil Pela participação dos negros na elaboração dos currículos escolares em todos os níveis e órgãos culturais Pela inclusão da disciplina história da áfrica nos currículos escolares Por um ensino voltado para os valores e interesses do povo negro e de todos os oprimidos118 Todas essas propostas serviram como exemplos para o surgimento de outras entidades culturais e filiais do MNU nos estados brasileiros Mas elas foram retomadas em forma de interdiscursividade embora nem sempre tenham sido seguidas em todas as unidades da federação119 No Recife por exemplo o Centro de Cultura e Emancipação da Raça Negra CECERNE foi criado em novembro de 1979 por militantes negros universitários como Inaldete pinheiro Silvio Ferreira Irene Souza Tereza França e Jorge Morais120 Essa 117 Como veremos no capítulo 3 essa proposta levou o MNU a se aproximar de novos estudiosos da cultura afrobrasileira como Peter Fry e Robert Slenes por exemplo 118 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 119 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 120 A historiadora Martha Rosa Queiroz percebeu que a imprensa de grande circulação recifense registrou a fundação do CECERNE referindose aos seus fundadores como intelectuais Ela explica que No senso comum principalmente em período de fim de ditadura militar ocupar espaços de militância política e ser universitário eram prerrogativas de intelectuais em sua maioria de classe média outra representação a 67 instituição promoveu uma série de estudos e debates sobre as temáticas correlacionadas aos negros no Brasil e teria se expandido com o propósito de desenvolver uma consciência racial em outros indivíduos negros Quando criada no mês de novembro propondo esse período como data simbólica das lutas antiracistas negras os militantes do CECERNE propuseram uma série de atividades como exibição de filmes e debates121 O grupo que integrou o CECERNE buscou institucionalizarse e definir suas pretensões mesmo possuindo opiniões divergentes122 No que se refere a suas propostas houve uma interdiscusividade com as propostas do MNU nacional Entre elas a intenção de reavaliar o papel do negro na história do Brasil ganhava destaque e era assumida também pelas entidades culturais como blocos afros escolas de samba afoxés centros educativos culturais e desportivos entre outras123 Queiroz afirma que no CECERNE havia duas perspectivas políticas no movimento A primeira que mesmo reconhecendo a existência e violência do racismo não se opunha assumidamente à tese freyriana e a ideia de morenidade que se era forte em todo o Brasil era ainda mais influente em Pernambuco terra natal de Gilberto Freyre A segunda que se opunha ferrenhamente ao pensamento freyriano e que não hesitava em protestálo inclusive em eventos públicos de grande relevância para a sociedade pernambucana124 Ao passo que o tempo passava os debates se acirravam e os eventos promovidos pela entidade funcionaram como divisores de águas entre os militantes de cada perspectiva Isso gerou em 1980 um racha que deu origem a dois outros movimentos qual o grupo foi vinculado Idem Op cit p 118 De fato este grupo de militantes negros no Recife cumpria um papel de intelectuais não só pelo fato de estar produzindo ideologias construindo um grupo aglutinador de pensadores e produtores de uma cultura política mas também porque a sociedade passava a reconhecêlos como tal referindose a eles por exemplo através da imprensa usando o termo intelectuais Lembramos a perspectiva defendida tanto por Edward Said como por Daniel Pecáut de que a identidade do intelectual definese não só por parte dos sujeitos que assumem politicamente esta identidade e produzem novos objetos ideológicoculturais mas também pelo reconhecimento que a sociedade pode fazer ou não destes sujeitos enquanto tal 121 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 122 SILVA Maria Auxiliadora Encontros e Desencontros de um Movimento Negro Dissertação de mestrado acerca do Movimento Negro do Recife defendida no programa de pósgraduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco UFPE 1991 123 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 124 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 68 negros o Movimento Negro Unificado do Recife MNURecife e o próprio CECERNE Após dois anos o MNURecife foi reformulado e passou a ser chamado de MNUPernambuco Mas este período foi significativo porque conseguiu realizar alguns eventos emblemáticos as comemoraçõesreflexões sobre o 13 de maio de 1981 apoiou o desfile da Escola de Samba Limonil que trazia como temaenredo Exaltação dos orixás e organizou e sediou o VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste ENNNE Em 1982 no entanto atendendo a proposição do MNU nacional o MNU Recife tornouse uma de suas cédulas filiais e para isso mudou de nome a fim de contemplar e representar o estado pernambucano Assim passou a chamarse Movimento Negro de Pernambuco MNUPE Uma vez que a ligação entre MNU e MNUPE se estreitava aumentava ainda mais os encontros entre as perspectivas adotadas entre as duas instituições Da mesma forma que o MNU por exemplo o MNUPE assumia a perspectiva política da cultura vendoa como mediadora de conflitos políticos legitimadora de uma ancestralidade africana e dinamismo de um conjunto de práticas afrobrasileiras125 As atividades culturais afrobrasileiras em Pernambuco ganharam muito mais força Um exemplo emblemático é a importância que ganhou o candomblé enquanto símbolo de resistência cultural O MNUPE lutará politicamente pela utilização deste símbolo na construção da legitimidade de uma identidade afrobrasileira e também pelo seu livre exercício como um direito do cidadão brasileiro que seja adepto Sobre isso nos diz Queiroz que Para um movimento que se afirma sistematicamente como político eleger a religião no caso o candomblé como o maior pólo de resistência sóciocultural é uma indicação do lugar que a cultura pode ocupar na prática política126 O MNUPE em consonância com a proposta do MNU reconhecia a relevância da articulação entre cultura e política Assim a descolonização conceitual a desfolclorização o reconhecimento a valorização e a divulgação da cultura afro brasileira em Pernambuco seriam alvos de ações em instituições culturais esportivas e educativas e também de debates e ações na política pública O universo cultural afro brasileiro era identificado pelo MNUPE a linguagem a visão de mundo a estética o 125 Em Pernambuco esses debates entre o político e o cultural geraram momentos de desconforto entre os militantes mas foi a perspectiva que articula cultura à política que acabou se tornando a predominante no Recife Neste sentido a participação de grupos culturais e agremiações carnavalescas foi uma prática cada vez mais constante 126 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 p 142 69 candomblé a dança as festas a musicalidade etc Estrategicamente o MNUPE reloca discursivamente algumas práticas culturais de Pernambuco no universo histórico político econômico social e simbólico da população negra pernambucana O frevo por exemplo até então símbolo de uma pernambucanidade mestiça foi identificada dentro de uma história de produção cultural afropernambucana com origens no pós abolição127 A ideia de conscientização da raça negra passa a ser entendida como um processo educativo um processo de mudança cultural nas percepções das pessoas negras128 interferindo em suas subjetividades e recriando suas identidades sociais durante muito tempo e por vários caminhos o MNUPE atuava como uma instituição informal de ensino de história da África dos povos africanos da resistência escrava e da cultura afrobrasileira Em Pernambuco foram produzidos vários seminários congressos debates exibição de vídeos atos públicos eventos culturais e vários periódicos negros como o Negritude Este jornal era produzido pelo MNUPE e demarcava discursivamente o posicionamento político de combate ao racismo através da reconstrução de ideias e avaliação da história nacional Na edição especial em reflexão ao centenário da abolição o editorial do Negritude explicava Começamos dizendo que o negro não é uma classe social O negro é parte integrante de uma civilização que foi escravizada por uma outra a civilização branca Por conseguinte o Movimento Negro Unificado não é uma entidade de classe Ele nasceu para transformar o sentimento de autorejeição do negro em orgulho de pertencer à raça que deu vida a Zumbi dos Palmares O MNU não foi concebido para alimentar estereótipos e repetir chavões do tipo esse governo que aí está ou a classe dominante que está aí Estamos muito além disso O que nós combatemos é uma civilização que foi estruturada economicamente à custa do sangue do negro e do índio Um governo que está aí não vem de Marte ele é filho de uma civilização que acumulou há séculos privilégios raciais infinitos E afinal que civilização branca É aquela que em Angola permitia a qualquer português usar uma pistola automática e ao negro dono da terra não lhe era permitido o uso de um simples canivete ou esta que acha perfeitamente normal um negro ser apanhador de lixo e um branco ser ministro médico advogado governador É isto que entendemos por civilização branca homogênea e feroz nesses quase cinco séculos de História brasileira Quando falamos em civilização branca não estamos querendo dizer absolutamente que rejeitamos o branco enquanto pessoa humana Há 127 Idem Op cit 128 Esta proposta de transformação psicológica dos cidadãos negros como já vimos está fortemente embasada na proposta de Frantz Fanon 70 brancos que fazem parte do problema e brancos que fazem parte da solução Só não aceitamos o paternalismo e a imposição ideológica O MNU nasceu para transformar o Brasil e ninguém conhecerá o Brasil senão conhecer o negro129 Percebese que nesta proposta política o discurso assume grande relevância na reconstrução das consciências e identidades sociais É preciso revisitar o passado falar desmistificar propor novos materiais e métodos de construção do nacional a partir do olhar afrocentrado Todas essas ações são exemplos dessas estratégias de construção de um campo discursivo que revalida as identidades afrobrasileiras a partir da luta contra o racismo e da valorização da ancestralidade africana A importância do jornal Negritude deuse também pelo fato de veicular informações daquele momento sobre casos de racismo em Pernambuco no Brasil em vários locais do mundo sobre as lutas póscoloniais na África ou qualquer outra notícia recente que pudesse ser de interesse da comunidade negra Interessante é perceber que como se tratava de um periódico produzido por um movimento social a veiculação das notícias não se restringia a mero caráter informativodescritivo mas possuía uma textualidade reflexiva sob a ótica dos autores aprofundando as análises conjunturais e estruturais dos temas analisados localizando a prática do racismo no cerne de várias questões Conforme Queiroz o jornal Negritude foi muito importante também por servir como um espaço jornalístico com fins pedagógicos onde a história dos povos negros era revisitada constantemente a partir de uma perspectiva afrocentrada O que percebemos então é que a partir de finais dos anos 1970 o nascente movimento negro se estrutura e tece pautas políticas onde a cultura exercerá um papel fundamental arregimentando inclusive várias agremiações culturais Este movimento se expande no Brasil durante os anos 1980 distribuindo paulatinamente seus tentáculos sobre várias unidades da federação Nesse processo os laços se estreitam as perspectivas se afinam os discursos circulam se cruzam se alimentam e criam novas interpretações e propostas Fabricase desta maneira uma cultura política de uma intelectualidade negra urbana politizada e com fortes tendências estéticas além de éticas Este movimento negro de fins do século XX não quer assumir como unicamente sua a responsabilidade de reparação política e social do negro como fizera a Frente 129 NEGRITUDE Boletim do Movimento Negro UnificadoPE Recife Ano III nº 5 maio de 1988 Editorial p2 71 Negra Brasileira dos anos 1930 Também não quis exigir unicamente do governo a responsabilidade por essa mudança como foi feito pelo Teatro Experimental Negro nos anos 194050 O MNU estabelecia princípios materiais e métodos para a partir das necessidades experiências e cosmovisão de uma comunidade negra orientar o Estado brasileiro na implementação de políticas de reparação para com esta comunidade A ação política deveria se dar através de parcerias entre o MNU e o Estado brasileiro Em suas ligações institucionais ações experiências e documentos oficiais a luta assumia grande relevância no plano dos discursos Nesta lógica pensarse politicamente é pensarse dentro das demandas de significação de uma comunidade com ancestralidade demarcada Assim a perspectiva cultural é revestida de grande importância não só simbólica mas sobretudo política O MNU assume um posicionamento frente à relação entre as posturas assumidas pelo Estado brasileiro e a cultura afrobrasileira Essas relações como veremos estão embasadas numa longa tradição de pensamento130 atualizada por diferentes intelectuais não negros que em seus respectivos momentos históricos cumpriram um papel fundamental tanto na ciência brasileira quanto nos projetos de reorganização política do nacional O MNU se posiciona oficialmente contra a discriminação alienação folclorização e exploração da cultura afrobrasileira Perguntaríamos então como foi criada e desenvolvida uma tradição de pensamento sobre a cultura afrobrasileira contra a qual se posiciona o MNU Quem são os intelectuais mais representativos dessa tradição de pensamento Quais as noções de cultura afrobrasileira que emergem de seus discursos suas narrativas históricas Como as práticas de cultura afrobrasileira são representadas por esses intelectuais Os caminhos que trilharemos na busca por responder estas perguntas serão apresentados no próximo capítulo 130 Conforme o historiador Alexandre Carvalho uma tradição de pensamento consiste na formação de um campo de estudos pautado na reflexão analítica produzida em diferentes momentos por distintos pensadores com o fim de reorientar os princípios daquela tradição ou campo de estudos CARVALHO Alexandre Historiografia e Paradigmas a tradição primitivistasubstantiva e a Grécia Antiga Tese de Doutorado História Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal Fluminense UFF Niterói 2007 Referimonos aqui ao ato de formação e desenvolvimento de um campo específico de estudos no Brasil os estudos afrobrasileiros cuja nossa ênfase será especificamente a discussão em torno das diferentes conceituações da cultura afrobrasileira 72 CAPÍTULO 2 CULTURAS NEGRAS DIZERES BRANCOS A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE CULTURA AFRO BRASILEIRA NAS OBRAS CLÁSSICAS DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA 73 A simplicidade do negro é um mito forjado por observadores superficiais131 A presença negra como problemática para a República brasileira a cultura afro brasileira como discursividade Neste capítulo buscaremos analisar os diversos contextos de criação e recriação do conceito de cultura afrobrasileira num extenso trânsito de sentidos negociados por sujeitos interesses e discursos que mesmo partindo de perspectivas teórico metodológicas distintas se encontram Qual o momento histórico que marca o surgimento das preocupações científicas132 dos intelectuais quanto à presença negra no Brasil Conforme a historiadora Wlamira Albuquerque os debates e propostas em torno da construção da nacionalidade republicana no Brasil foram caracterizados por uma forte racialização das relações sociais políticas jurídicas e culturais133 Num contexto de transformações políticas e insegurança as elites brancas precisavam pensar com cuidado as formas de inserção das massas de cor que deixavam de ser simplesmente escravos para serem projetados como cidadãos Era preciso tutelar esses novos cidadãos mas manter privilégios antigos fazendo florescer uma série de novos mecanismos e práticas ambiguamente paternalistas e discriminatórias no regime republicano que se propunha para o Brasil Construirseiam cidadanias diferentes para os diferentes tipos de brasileiros em que a população de cor foi configurada como quasecidadãos Para a historiadora Zuleica Campos134 desde o início desse projeto republicano alguns intelectuais questionavam o modelo de civilização adotado no país A ideia de uma nação moderna limpa e higienizada em termos biológicos sociológicos e culturais 131 FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 p72 132 Sabemos que ao longo da história brasileira vários intelectuais se preocuparam com a presença do negro e de suas práticas culturais Contudo trataremos aqui de intelectuais que escrevem sobre o negro a partir do paradigma científico e situamse no final do século XIX 133 A fim de evitar reducionismos a historiadora não entende a racialização de forma unilateral como uma imposição dos brancos aos negros Na verdade ela entende esse processo como um discurso aberto a diversas signficações negociações e apropriações por sujeitos diferentes de acordo com interesses e contextos distintos Assim a racializaçao é entendida como estratégia políticodiscursiva para diferentes grupos de brancos e negros Os primeiros para legitimarem a inferioridades dos segundos e os segundos para legitimaram sua autenticidade e construir pautas de lutas ALBUQUERQUE Wlamira R de O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 134 CAMPOS Zuleica O combate ao catimbó práticas repressivas às religiões afroumbandistas nos anos trinta e quarenta Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2001 74 se tornou modelo de pensamento e de ações que buscaram reajustar os parâmetros políticos sociais culturais e também geográficos do Brasil Adentrando o século XX esse projeto político alcançou seu ápice nos anos 30 Neste contexto de transição se apoiará a busca de respostas a respeito da identidade nacional brasileira Uma nova versão para essa identidade moderna e que pudesse construir narrativas e símbolos que dessem conta do Estado de compromisso135 mas que pudesse contemplar elementos das tradições populares aproximandose das pessoas comuns de forma carismática parecendo democrático mas conservando as hierarquias sociais136 A perspectiva racializadora chegou ao campo das discussões sobre a cultura nacional Para Wlamira Albuquerque se de um lado existiam negros inventando tradições embasadas na ideia de ancestralidade heranças culturais e pureza das tradições africanas existia de outro uma espécie de medo branco da perversão dos costumes ditos civilizados fazendo com que todas as atenções fossem dadas aos agrupamentos de cidadãos negros seus festejos e suas práticas culturais a fim de compreendêlas para manter os negros sempre no seu devido lugar De acordo com a autora Saber o seu lugar é uma dessas expressões capazes de traduzir regras de sociabilidade hierarquizada que sendo referendadas ou contestadas atualizamse cotidianamente É construindo e conhecendo tais lugares que as pessoas estabelecem relações reconhecem formas de pertencimento e estruturam disputas próprias ao jogo social137 Identidades e lugares sociais estabelecidos e negociados pela racialização É neste contexto que circulam novos sentidos para uma comunidade negra que incomoda porque busca sua legitimidade na esfera política São sentidos que circulam e 135 A historiadora Campos usa a expressão Estado de compromisso para referirse ao equilíbrio instável entre burgueses militares e latifundiários no campo político brasileiro dos anos 1930 como um período de transição no interior das classes dominantes 136 Além de Campos outros historiadores demonstram o caráter autoritário e repressor que a política varguista adotou frente a várias manifestações populares tidas ora como atrasadas ou anticristãs ora como ameaças políticas no sentido de serem interpretadas como disfarces para encontro de grupos comunistas Vide por exemplo ALMEIDA Maria das Graças Andrade Ataíde de A construção da verdade autoritária São Paulo HumanitasFFLCHUSP 2001 SANTOS Mário Ribeiro dos Trombones tambores repiques e ganzás a festa das agremiações carnavalescas nas ruas do Recife 19301945 Recife SESC 2010 ALBUQUERQUE Wlamira R de O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 137 ALBUQUERQUE Wlamira R de O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 p 33 75 mediam conflitos na elaboração do novo projeto de Estado brasileiro que estava sendo proposto Assim a construção conceitual da cultura afrobrasileira faz parte de um universo tenso e complexo de preocupações políticas que se desenvolve integrando o projeto republicano brasileiro Essas preocupações desdobramse em diferentes momentos ocorridos entre o final do século XIX e o final do século XX através de intelectuais referenciais teóricometodológicos projetos políticos e visões de mundo distintas Tais discussões científicas se tornaram mais conhecidas a partir dos anos 1930 momento em que a identidade nacional proposta tentaria articular numa equação incerta o desejo de ruptura com o passado no plano político econômico e social para garantir a superação do atraso nacional e a identificação das continuidades do passado no nível cultural para assegurar a coesão política e o progresso futuro138 O Brasil adentrava numa nova era industrialização surgimento das primeiras universidades instituição das ciências sociais no país A história ao lado dessas ciências sociais buscará conhecer a realidade a fim de fomentar projetos de intervenção social O Brasil seria ressaltado pelas suas peculiaridades mas com uma diferença em relação ao século XIX agora o pensamento intelectual nacional se propunha como não legitimador das formas de exclusão exploração e dominação Numa perspectiva mais militante e otimista se estudará a pluralidade que forma a nacionalidade e se buscará a modernização desta O Brasil precisava ser redescoberto pelo próprio povo brasileiro e seus intérpretes seriam os intelectuais que caminhavam junto a esse povo139 Neste contexto são publicados no Brasil os primeiros textos paradigmáticos produzidos por intelectuais brasileiros de grande respeito no mundo acadêmico da época140 Obras que se tornaram clássicas consagradas como referências para todos aqueles que buscassem estudar o universo cultural afrobrasileiro Esses autores inauguraram paradigmas interpretativos sobre a cultura afrobrasileira em narrativas historiográficas buscando entender a participação negra na constituição da identidade nacional Nesse processo de construção discursiva os autores elegem e classificam alguns lugares como tipicamente simbólicos da cultura afrobrasileira a serem tomados como critério de autenticidade da identidade cultural negra Porém a lógica do olhar 138 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 139 Idem Op Cit 140 Nosso foco se detém apenas sobre os intelectuais que escrevem sob o teto da ciência Abordaremos neste capítulo apenas os acadêmicos que construíram esses paradigmas de interpretação sobre a cultura afrobrasileira construindo uma historiografia temática muito específica 76 branco141 cheio de estereótipos preconceitos e valores civilizatórios ocidentais disfarçada de lógica científica imparcial crítica e verdadeira velou pelo mundo estereotipado das representações discursivas desses intelectuais sobre os negros O olhar branco não permitia que os intelectuais acadêmicos dos quais trataremos enxergassem e compreendessem a lógica própria que circulava no interior da cultura afrobrasileira Assim esta cultura é primeiramente investigada descrita classificada e plasmada a partir da superficialidade de suas práticas e materialidades em detrimento dos sentidos mais profundos que são relegados mais uma vez à invisibilidade Essa mistura interpretativa tornouse perspicaz na medida em que parecia conseguir difundir a ideia de democracia ao passo em que mantinha as hierarquias na sociedade brasileira142 A fim de destacarmos a importância do papel da dimensão simbólica presente na construção discursiva acadêmica desses intelectuais reconhecemos que as suas narrativas remetem a múltiplos tempos e a múltiplas autorias143 configurandose em redes de significação múltiplas formando interdiscursos Ainda levando em consideração as ideias da antropóloga Maria José Campos entendemos que seja muito perigoso rotular a obra de um autor como reveladora ou obscurantista de conflitos sem trabalhar as nuanças de seu pensamento e mesmo as influências sobre autores posteriores Não se trata somente de retornar ao pensamento dos autores clássicos sobretudo no que respeita ao lugar dos cidadãos negros em nossa nacionalidade mas examinar de forma contextualizada e não determinista as questões a que se propuseram responder e as ideias que mobilizaram suas respostas tendo sempre em mente que tais respostas não tiveram aceitação apenas nos meios acadêmicos mas também que se estenderam ao senso comum Identificamos portanto a ocorrência de uma atualização silenciosa do conhecimento através da reprodução de noções clássicas revestidas em novos argumentos A cerca disso assim atesta a autora importa mais destacar o caráter curativo dos discursos identitários e dessa interpretação quando se trata de pensar na nação ou mesmo refletir sobre o ato de quem funda e se debruça sobre a sua prática 141 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 142 ALBUQUERQUE Walmira R de O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 143 CAMPOS Maria José Arthur Ramos luz e sombra na Antropologia Brasileira uma versão da democracia racial no Brasil nas décadas de 1930 e 1940 Rio de Janeiro Edições da Biblioteca Nacional 2004 Eni Orlandi trabalha essa perspectiva na análise do discurso através da categoria de interdiscursividade ou interdiscurso ORLANDI Eni Análise de Discurso princípios e procedimentos Campinas SP Pontes 2012 77 Inventar nunca foi por certo um gesto de exclusiva vontade na medida em que ninguém manipula só ou simboliza por si e isoladamente Na verdade sem uma comunidade de sentidos não há interpretação que deite raízes ou modelo que se aprofunde Portanto não se trata de simplesmente desqualificar ou jogar na vala comum das ideologias ou das falsas ideologias falas que repercutem para além de seu mote inicial144 Assim quando falamos em cultura afrobrasileira não estamos falando apenas de visões de mundo e práticas culturais alusivas aos negros brasileiros mas também a um campo discursivo formado e reformado por diferentes tipos de intelectuais no âmbito das preocupações de um Estado republicano brasileiro Dessa forma a cultura afro brasileira é também um conjunto de representações que a partir dela se constroem na diversidade de contextos vozes e interesses que também nela se cruzam Para entender o sucesso desses estudos propomos iniciar nossa análise a partir do contexto e do perfil intelectual daquele que foi o inaugurador de um conceito científico ou de uma tradição acadêmica de estudos sobre a cultura afrobrasileira Nina Rodrigues 1 Nina Rodrigues a eugenia e a inauguração de um conceito de cultura afro brasileira O maranhense Raimundo Nina Rodrigues viveu em centros urbanos onde o contingente de negros escravizados era notável Nas ruas nas portas das casas nas lojas nos portos Negros e crioulos trabalhando conversando cantando esmolando esbravejando negociando Tudo parecia seguir o ritmo natural da vida Mas entre 1888 ano que se formou em Medicina 1890 ano que foi aprovado em concurso público para professor da Faculdade de Medicina da Bahia e 1906 ano em que morreu Nina Rodrigues vivenciou várias transformações da sociedade brasileira que de escravocrata passou a adotar o operariado assalariado incentivando a imigração européia de monarquia passou a ser uma república de agrária passou por um crescente processo de urbanização É justamente nesses cenários urbanos em transformação que se darão as principais discussões políticas e intelectuais em torno da 144 CAMPOS Maria José Arthur Ramos luz e sombra na Antropologia Brasileira uma versão da democracia racial no Brasil nas décadas de 1930 e 1940 Rio de Janeiro Edições da Biblioteca Nacional 2004 78 nacionalidade brasileira Conforme Renato Ortiz145 e Lilia Shwarcz146 é nesse contexto que a questão racial revestida de um discurso científico passa a ganhar espaço e credibilidade Para Shwarcz o século XIX foi o século do estabelecimento da ciência e das instituições de pesquisa e ensino O saber científico é revestido de grande poder ocupando um lugar central na reestruturação do Estado e é nesse aspecto que a fala institucional se compõem num fator de grande importância pois dá legitimidade e autoriza o discurso do intelectual atribuindolhe grande poder político e social Esse processo também acometeu o Brasil da época O país foi passando de objeto a sujeito produtor de explicações científicas A partir dos anos 70 dos oitocentos toda uma nova configuração paradigmática e conceitual chega ao Brasil reformulando as instituições as formas de comunicação a cultura a política o comércio o ensino etc O Brasil precisava mostrarse moderno e nesse projeto modernizador a ciência e seus distintos representantes exerciam um poder discursivo legitimador essencial em que o lema ordem e progresso tornase possível graças ao paradigma evolucionista que predomina no pensamento ocidental Naquele cenário brasileiro o liberalismo e o racismo foram muito importantes na construção intelectual política econômica social e mesmo cultural do país Assim não se pode compreender o projeto de sociedade brasileira que era formulado no período sem considerar que a racialização era uma perspectiva basilar de análises e reflexões desvelando dimensões políticas e sociais Havia um grande pessimismo quanto à identidade nacional estar pautada na miscigenação pois esta era encarada como sinônimo de fraqueza racial e conseqüentemente nacional147 O pensamento médico social de Nina Rodrigues esteve revestido com as teorias raciais que surgiram na Europa ao longo do século XIX O seu principal aporte teórico era a Eugenia teoria criada por Francis Galton que defendia a promoção de um aprimoramento genético das populações o que poderia levar às nações a pureza racial e o progresso No entanto vale frisar que as teorias raciais no Brasil não foram simplesmente importadas elas foram sobretudo adaptadas148 a um projeto intelectual que analisava a 145 ORTIZ Renato Cultura brasileira e identidade nacional São Paulo Brasiliense 2006 146 SCHWARCZ Lilia Moritz O Espetáculo Das Raças cientistas instituições e questão racial no Brasil 18701930 São Paulo Companhia das Letras 1993 147 Idem op cit 148 Teóricos como Lilia Schwarcz Renato Ortiz e Wlamira Albuquerque discordam da idéia simplista de que os cientistas brasileiros de fins do XIX limitaramse a copiar as teorias raciais européias Essas teorias se tornaram hegemônicas no Brasil justamente no momento em que perdiam força na Europa Há uma clivagem entre o momento de produção dessas teorias na Europa e as formas como são apropriadas no Brasil Nem todos os referencias são aceitos mas só os que dialogam com os referenciais já utilizados em diálogo com o contexto mestiço do Brasil 79 evolução brasileira na interpretação de uma história natural da humanidade149 O cientista Nina Rodrigues é um dos precursores das ciências sociais no país e está inserido nesse contexto político e intelectual que se desenvolve após a abolição da escravatura Suas abordagens iniciais ainda estão impregnadas da perspectiva biológica validando seus argumentos na relação meioraça Por questões temporais Nina Rodrigues conseguiu observar acompanhar e entrevistar diretamente os últimos remanescentes de escravos africanos no Brasil São justamente as memórias sentimentos e práticas culturais desses sujeitos que compõe o repertório argumentativo do universo semântico que foi recortado e recosturado produzindo novos sentidos a partir da perspectiva racializadora de Nina Rodrigues Seu campo de pesquisa foi privilegiadamente a Bahia sobretudo Salvador diversos espaços públicos as ruas as feiras e estabelecimentos comerciais os terreiros de candomblé e os arquivos Espaços de experimentação científica onde sincretizou150 e aplicou seu pensamento eugenista e evolucionista forjando uma dizibilidade e uma visibilidade151 da cultura negra inaugurando cientificamente um conceito de cultura afrobrasileira Nina Rodrigues partiu de critérios de diferenciação racial para observar anotar teorizar desclassificar as experiências históricas e culturais negras no Brasil fazendo uma operação simbólica na identidade nacional ordenando as partes do todo brasileiro formando simbolicamente um Estado que ainda não é O projeto médicoeugenista se colocava como o redentor da nação fragilizada É dentro desse contexto que ele escreve seu livro clássico sobre a história e cultura afrobrasileira Os africanos no Brasil sendo a obra publicada em 1932 após a morte do autor Seu discurso não foi apenas fortemente marcado pelo paradigma evolucionista determinista e eugênico mas por uma postura cientificista e patriótica Nina Rodrigues queria entender as consequências da miscigenação étnica e cultural para 149 ORTIZ Renato Cultura brasileira e identidade nacional São Paulo Brasiliense 2006 p 15 150 Renato Ortiz 2006 faz uma discussão sobre o que resolveu chamar de sincretismo científico no período até aqui discutido numa alusão às misturas e adequações que os cientistas brasileiros fizeram das teorias raciais européias Ortiz esclarece que a diferença entre sincretismo religioso e sincretismo científico não diz respeito apenas ao campo religioso x campo cientifico mas também à perspectiva temporal pois o sincretismo religioso busca entender as misturas e transformações passadas na experiência religiosa que se refletem no presente já o sincretismo científico é um projeto presente de articulação mistura e transformação de teorias cientificas com vistas a projetar um futuro Mais informações vide ORTIZ Renato Cultura brasileira e identidade nacional São Paulo Brasiliense 2006 151 Termos cunhados em ALBUQUERQUE Jr Durval Muniz A invenção do Nordeste e outras artes São Paulo Cortez 2009 80 uma nação em vias de formação Foi o primeiro intelectual brasileiro a escrever um estudo sistemático dedicado exclusivamente a presença negra no Brasil Seu discurso é complexo oscilando entre o pessimismo e o otimismo entre a sedução e o desprezo pelo universo cultural negro Para ele nos níveis biológico psicológico e cultural a presença negra no Brasil é algo inegável mas é uma presença que degenera pois o negro é caracterizado pela infantilidade carência e grosseria de seus conteúdos e formas No livro Os Africanos no Brasil 152 Nina Rodrigues pretende legitimar o seu estudo como o mais completo sobre a presença negra no Brasil cujo propósito teria sido investigar cientificamente um problema que se constituiu na formação da nacionalidade brasileira o negro Esse problema fora constatado em seus estudos anteriores sobre medicina legal higiene e criminalidade O que buscava entender nesse momento era justamente a influência que o caldeamento étnico pode exercer sobre a característica de uma nacionalidade em vias de formação 153 Estrategicamente Nina Rodrigues se localiza em seu texto como um cientista patriota e é na tentativa de construção de um progresso nacional brasileiro a partir da razão que ele produz os seus argumentos Sobre essa problemática chamada genericamente de o negro o médico afirma que existe uma perspectiva temporal que o engloba em três recortes o passado origem da presença africana no Brasil o presente miscigenação e o futuro embranquecimento Nessa perspectiva temporal do problema Nina Rodrigues se propõe a analisar justamente o primeiro recorte temporal o passado A história fora escolhida como campo de experimentação de seu argumento científico e para isso Nina Rodrigues mostrase conhecedor dos critérios de cientificidade histórica da época ao construir sua metodologia de pesquisa que consistiu em consultas bibliográficas sobre a escravidão negra e documentos oficiais do período 152 Esse livro foi escolhido por alguns motivos específicos a por ser o último escrito de Nina Rodrigues e demonstrar uma produção mais madura de suas ideias b apresentar um estudo mais amplo sobre a história e culturas negras no Brasil perpassando vários temas c ser um livro que privilegia a perspectiva historiográfica do tema contemplando referenciais e métodos historiográficos da época embora Nina Rodrigues oscilasse entre a Medicina e a Antropologia e d por ser um dos livros mais lidos e citados até hoje na história do pensamento social brasileiro sobre a cultura negra Vale dizer aqui que consideramos ser esta discussão de Nina Rodrigues uma discussão datada pertencente a uma época específica aqui já contextualizada O que nos interessa nesta análise não é estigmatizar ou condenar o pensamento de Nina Rodrigues mas problematizálo localizálo e perceber quais são as estratégias argumentativas que definem o que é ser negro e o que faz o negro no Brasil 153 RODRIGUES Nina R Os africanos no Brasil São Paulo Madras 2008 p 32 81 colonial colhidos no Arquivo Público da Bahia154 Inspirado também na Antropologia cultural numa perspectiva comparada realiza pesquisas de campo com entrevistas assistindo a rituais e festas entre outras manifestações além de fotografar alguns objetos culturais155 Do resultado dessas aproximações de diferentes disciplinas métodos e referenciais teóricos Nina Rodrigues tornase com maior precisão o inaugurador de uma tradição brasileira de invenção conceitual da cultura afrobrasileira numa perspectiva histórica oficial A partir da materialidade de suas fontes e dados pesquisados ele seleciona distribui organiza estabelece continuidades e sentidos ao que ele está chamando de cultura negra no Brasil ou nos seus termos sobrevivências das culturas africanas no Brasil estabelecendo que a cultura afrobrasileira vive das continuidades e não das rupturas das culturas africanas Assim ele legitima através de seu discurso científico os autênticos lugares simbólicos da cultura negra a linguagem as belasartes música dança pintura e escultura as festas populares e o folclore a religião e suas mitologia e culto indumentária e culinária Com isso Nina Rodrigues projetava não só palavras mas também imagens de africanidades que sobrevivem e que continuariam a existir nos descendentes mulatos e crioulos uma vez que os legítimos africanos estavam morrendo ou emigrando de volta para a África após a abolição Dessa maneira definiase o que é ser negro e o que fazem os negros Limitavase a produção cultural e a inteligência negra a estes únicos lugares e práticas Para Nina Rodrigues o motivo da escravidão negra no país se justificou pela falta de mãodeobra indígena nas lavouras e minas de ouro Utilizandose de estimativas demográficas o autor ressalta uma maior presença negra em relação à população branca no Brasil desde os tempos coloniais Mas a sua preocupação principal no livro é estabelecer hierarquias entre os povos africanos e a partir de sua escala evolutiva localizar os povos que mais teriam influenciado culturalmente o Brasil A partir do paradigma evolucionista que predominava no mundo científico brasileiro da época Nina Rodrigues narra histórias oficias da África selecionando argumentos que evidenciam a sucessão de guerras e domínios de reinos sobre outros na África enfatizando e classificando a organização política econômica social e cultural dos sudaneses como formas culturais superiores É essa a ancestralidade negra que Nina 154 Nina Rodrigues seguia o paradigma positivista Assim fazia parte do seu universo semântico as noções de evolução e de estudo dos grandes datas fatos e homens que foram transformados em símbolo da comunidade nacional brasileira da época 155 RODRIGUES Nina R Os africanos no Brasil São Paulo Madras 2008 p 32 82 Rodrigues seleciona para o Brasil Para ele a predominância intelectual e social quem sabe também numérica cabia absolutamente aos negros sudaneses e não aos bantos que seriam culturalmente atrasados Daí a necessidade de referendar um discurso que privilegiasse e inventasse uma descendência afrobrasileira forte direta e coerente com os negros sudaneses Esses é que deveriam ser os referenciais culturais para o Brasil os negros que na África estavam mais naturalmente direcionados ao progresso e à civilização Ao criar esse critério o autor inclui na idéia de afrobrasilidade o perfil sudanês e exclui o perfil banto como critério de nossa possível civilidade Sudanesa é a ancestralidade que o Brasil precisa e quer Para isso ele descreve as etnias africanas transmigradas ao Brasil dando maior ênfase aos sudaneses nagôs jêjes haussás minas tapas bornuns gurunxis fulás e mandigas enquanto aos bantos angolas congos benguelas e moçambiques são dedicadas menos linhas menos descrições e argumentos Após localizar no mapa africano a melhor ancestralidade negra para o Brasil Nina Rodrigues usa os dados de suas pesquisas científicas para eleger e descrever as práticas culturais negras Inventase assim nesta tradição conceitual um modo específico de apreender o outro156 nesse caso o negro Cristalizamse nela também os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira a culinária as palavras de línguas africanas a indumentária os cultos fetichistas festas e contos populares folclore música dança pintura e escultura Sua abordagem é folclórica pensando cultura como tradição e tradição como reprodução mecânica de ideias e ações A cultura afrobrasileira não seria necessariamente arte porque a arte pautase no modelo de racionalidade estética ocidental Assim a cultura afrobrasileira que para ele seria destituída de racionalidade encontrase no reino do senso comum e por isso seria classificada como tipicamente folclórica Lançando o conceito de sobrevivências africanas ele propõe uma continuidade de práticas culturais africanas autênticas puras ainda existentes no Brasil Modificar tais práticas seria retirar delas sua autenticidade sua tradição e pureza seria descaracterizálas Desse modo o autor não só define os elementos típicos da cultura afrodescendente no Brasil mas a estabiliza conceitualmente cristalizaa propagando uma noção estereotipada de cultura que não pode se dinamizar caso 156 SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 83 contrário perderia suas purezas suas africanidades Surgem oficialmente uma dizibilidade e visibilidade do ser e fazer negros Quando pensamos essa dizibilidade e visibilidade plasmada sobre os negros e sua cultura valemonos da noção de estereótipo trazido pela educadora Ana Célia da Silva imagens cristalizadas ou idealizadas de indivíduos ou grupos de indivíduos que cumprem o papel social de produzir os preconceitos as opiniões e os conceitos baseados em dados não comprováveis da realidade do outro colocando esse outro sob rejeição ou suspeita157 Conforme a autora os estereótipos representam atitudes negativas com relação a uma pessoa ou a todo um grupo baseandose em comparações nas quais o mundo tido como referência é o mundo do sujeito que interpreta e estereotipa Essa atitude provém da necessidade de alguns grupos agredirem enfraquecerem e dominarem outros Em visão complementar o historiador Durval Muniz afirma que O discurso da estereotipia é um discurso assertivo repetitivo é uma fala arrogante uma linguagem que leva à estabilidade acrítica é fruto de uma voz segura e autossuficiente que se arroga o direito de dizer o que é o outro em poucas palavras158 Para a escritora nigeriana Chimmammanda Adiche159 o problema dos estereótipos não é que eles não sejam verdadeiros mas que sejam incompletos e generalizados Edward Said160 afirma que o processo de construção de uma forma específica de apreender conceitualmente o outro não é pura invenção espontânea mas corresponde sempre a alguma materialidade um conhecimento superficial que corresponde de alguma forma aos objetos idéias ou pessoas de que se fala os quais desejamos representar Contudo é um conhecimento da parte que é tomada como o todo reduzindo a diversidade e a complexidade das identidades 157 SILVA Ana Célia Desconstruindo a discriminação do negro no livro didático Salvador EDUFBA 2010 158 ALBUQUERQUE Jr Durval Muniz A invenção do Nordeste e outras artes São Paulo Cortez 2009 159 ADICHE Chimmammanda O perigo de uma única história Conferência ministrada em julho de 2009 Oxford Inglaterra Disponível em wwwyoutubecom Acesso em 11 de maio de 2011 160 SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 84 Nesse contexto as operações simbólicodiscursivas como produção de conceitos são elementos fundamentais Os conceitos são formas de representação161 que também formam ou reforçam estereótipos Enquanto intelectual Nina Rodrigues é o inaugurador de uma tradição de representar conceitualmente no Brasil a cultura afrobrasileira Embora essa representação parta de uma materialidade de dados observados e analisados segundo os referenciais dispostos naquele momento histórico esses conceitos não dão conta de toda a diversidade e complexidade que possui a cultura afro brasileira Tais conceitos formam fragmentos estereotipados da cultura afrobrasileira selecionando e elegendo o que se diz ser ou não típico dessa cultura deixando de fora toda uma rede de sujeitos eventos intencionalidades e significações Discrimina os lugares não só culturais mas também políticos e econômicos dos negros Esse processo de representação conceitual do que é o ser e o fazer negro se construiu nos primeiros momentos do século XX num projeto de fortalecimento de uma identidade contrária àquela que é a do ser e fazer branco Os argumentos os métodos e as instituições dos intelectuais que os produzem fazem parte de uma complexa rede de significações interpeladas por relações de poder que legitimam esses dizeres Construindo essa dizibilidade e visibilidade sobre a cultura negra reinventando a Nina Rodrigues descreve as indumentárias femininas e masculinas Para ele uma típica mulher negra vestese à baiana com saias de cores vivas e bem rodadas de seda fina Uma camisa de linho alvo e um pano da costa sobre esta Na cabeça um torço também chamado de turbante Adornamse bastante com colares e braceletes de ouro levando uma figa pendurada na cintura É costume também das mulheres negras carregarem os filhos nas costas presos a uma toalha Já os operários negros conservam o habito de vestes brancas de tecido grosso de algodão calça e camisa justa e curta que lembra os camisus nagôs162 O autor segue argumentando que a culinária brasileira também tem grande influência negra sobretudo na Bahia vatapá caruru bobó efó acarajé abará munguzá acaçá aberém arroz de haussá e cuzcuz são exemplos de comidas O autor evidencia a base comum dessa culinária na tríade azeite de dendê pimenta e milho ou arroz como provas das continuidades africanas em nossas cozinhas 161 Como explicado na introdução deste trabalho pensamos as representações não como espontenismo e criação meramente abstrata sobre as coisas mas como leituras possíveis a partir de alguma materialidade do objeto ideia ou pessoa representada As representações são tentativas de nomeação e classificação reducionistas pois não dão conta integralmente da complexidade dos objetos a que se propõem a representar mas de alguma forma se aproxima deles 162 RODRIGUES Nina Os africanos no Brasil São Paulo Madras 2008 p111 85 Já as línguas negras são concebidas como fragmentos dispersos de línguas africanas que foram acolhidas por uma língua maior e racional que seria a língua portuguesa Neste sentido as línguas africanas são presenças exóticas e sua existência no sistema complexo do português brasileiro habita um lugar predeterminado na hierarquia estabelecida lugar definido pela quantidade de palavras e importância de seus usos em contextos formais eou informais A língua nagô seria a que mais influenciaria o meio cultural brasileiro mas a presença negra na língua portuguesa é algo que a deteriora desqualifica À música à dança à pintura e à escultura o autor chama belasartes Ao fazer isso mais uma vez estabelece conceito e padrões europeus para comparar às produções dos africanos e seus descendentes no Brasil O termo belasartes aciona todo um referencial ocidental de produção artística mas quando o leitor acessa a descrição de Nina Rodrigues sobre as belasartes negras acaba desclassificandoas por comparação Conforme o autor as belasartes afrobrasileiras são tidas como formas de expressão que complementam a precária linguagem dos negros Mas elas o fariam isto de modo infantil por serem muito rústicas Embasado em LèvyBrhul Nina Rodrigues explica que para os povos ditos bárbaros a linguagem mímica e artística exerce um papel fundamental na inteligência prélógica163 predispondose à linguagem falada Assim a linguagem mímica seria essencial na cultura negra Ela completaria a linguagem primitiva dos africanos Por isso a dança seria tão importante para o negro A formação de círculos o ato de bater palmas os cânticos coletivos as interações coreográficas os gestos corporais contorcidos tudo isso faria parte das típicas danças negras tornandose elemento essencial para formar o gosto artístico do povo brasileiro o ser negro estaria intimamente ligado ao fazer dança do senso comum dos ignorantes do folclore Mas não se pode pensar dança sem pensar a música Desta forma o autor parte para analisar a linguagem musical dos negros e começa por fazer uma lista e descrição dos típicos instrumentos negros que ele sempre caracteriza ou desqualifica como rústicos atabaques canzás marimbas marimbaus matungos pandeiros e berimbaus 163 Conceito cunhado pelo antropólogo LèvyBrhul que classifica os diferentes estágios mentais do homem Para Brhul todos os homens são dotados de representações coletivas A diferença é que nas sociedades industriais as representações coletivas são reflexivas críticas e científicas enquanto nas sociedades primitivas são alógicas e supersticiosas no sentido em que tipicamente não realizam distinções de tempo espaço estado e ser Cf CAMPOS Zuleica O combate ao catimbó práticas repressivas às religiões afroumbandistas nos anos trinta e quarenta Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2001 86 Afirma que no Brasil o instrumento negro por excelência é o tambor Eis um símbolo que se torna praticamente sinônimo de negritude aglutinando a palavra à imagem o ser ao fazer164 Já a música negra é classificada como de vibrações fortes ferozes e confusas selvagens Nas pinturas e esculturas negras prevaleceriam segundo o autor os desenhos toscos traços simples e grosseiros Entre os principais temas de representação estão os religiosos prevalecendo traços físicos negróides O primitivismo e grosseria dos traços e estilo africanos seriam decorrentes de uma defasagem de uma educação precisa ou seja para que os negros produzissem esculturas enquanto objeto artístico deveriam ser submetidos a uma educação ocidental moralizante e racional Discutindo as festas populares e o folclore Nina Rodrigues enfatiza a presença do totemismo uma relação de parentesco entre homem natureza que se estende para a organização da vida civil Assim diz ele todos os povos negros escravizados eram totêmicos e essa forma de ver o mundo de construir suas relações de saber e de poder de organizar o mundo social constitui um dos principais pilares dos saberes fazeres e festejos populares Nas diversas manifestações folclóricas se perceberia a presença de esculturas de animais plantas ou outros objetos totens que fariam parte das performances e interferiam nas narrativas de tais manifestações o que comprovaria a mentalidade prélógica dos negros Já no folclore ficaram as lendas e os causos populares nos quais o protagonismo de animais é evidente A estes animais são associadas qualidades e ações humanas com fins de distrair e também moralizar O último lugar cultural analisado neste livro é a religião Para o autor as práticas religiosas foram as que melhor se conservaram no Brasil mantendose relativamente puras Porém é ainda perceptível a ênfase que o autor dá a umas perante outras como é o caso do culto jêjenagô que se internacionalizou com o advento da escravidão e aglutinou outras mitologias Para falar de religião Nina Rodrigues valese sobretudo da observação direta vai aos terreiros assiste a algumas cerimônias e entrevista participantes dos candomblés baianos mas ele também realiza análises indiretas através de processos criminais e reportagens A religião é o tópico que o intelectual discute de forma mais extensa e com maior propriedade 164 Não negamos a importância deste símbolo para a negritude O próprio MNU vai retomar a este símbolo positivando como ícone da ancestralidade africana O que problematizamos aqui é quando o tambor vira estereótipo do negro É como se para ser um autêntico negro o cidadão tivesse necessariamente que saber tocar e gostar dos tambores Oculto nesta concepção está a generalização de que todos os negros e negras associamse aos tambores Além do que este argumento toma a cultura como base material e não subjetiva 87 Nina Rodrigues afirma que os nagôs possuem um sistema religioso complexo divinizando forças naturais mas já atribuindo figuração antropomorfa Cultos que mesmo em meio a tantas repressões tornamse populares inclusive entre as populações brancas tão distintas na sociedade brasileira Para ele religião típica de negro no Brasil é o candomblé165Religião atrasada mas que demonstra lógicas muito próprias com possibilidades de evolução pois já teria dado provas de estar inserida na experiência de marcha evolutiva ao contrário por exemplo dos cultos bantos Ao longo de todo o texto percebemos uma grande complexidade de movimentos em seus argumentos Ora o pesquisador enfatiza uma suscetibilidade e inferioridade cultural negra ora acusa sua grande influência sobre a cultura branca denotandolhe relativo poder mesmo que um poder depreciativo Na discussão sobre a religião dos negros essas tensas zonas discursivas se tornam mais constantes Ora acusa os cultos fetichistas de degenerescência psicossocial ora os defende da ação abusiva da polícia Ora diz serem os negros selvagens e bárbaros tendentes à criminalidade ora acusa a justiça brasileira de não compreender as culturas negras Na verdade como diz Renato Ortiz166 Nina Rodrigues situase no meio de várias encruzilhadas discursivas período de muitas transformações nos campos político econômico social e cultural Seu discurso embora assuma opções feitas reflete a explosão de todas essas influências aceleradas que começam a interpelar as novas subjetividades brasileiras Seus argumentos são complexos interdiscursivos circulares Uma idéia extremamente importante e que não se deve esquecer é que nesse processo de inventar uma noção folclórica de cultura afrodescendente no Brasil Nina Rodrigues possibilita a leitura de que os negros foram de certa forma personagens ativos desde o início da empresa escrava no Brasil Para ele os negros colonizaram silenciosamente o Brasil e suas influências se veem até hoje Mas foi uma colonização na contramão no sentido contrário do que precisava o progresso da nação brasileira O Brasil ganha assim a partir de um viés científico a invenção de uma ancestralidade negra de perfil sudanês sobretudo nagô que se materializa nas palavras e expressões linguísticas típicas fragmentos exóticos de línguas africanas usadas no Brasil na música barulhenta e na dança frenética lasciva e contorcida que complementa 165 O intelectual era contra outras formas de culto que não os candomblés Para eles os cultos que denotavam reconfigurações advindas das apropriações de cultos bantos indígenas e de um catolicismo popular seriam práticas de charlatanismo Para a defesa do candomblé como autenticamente africano o autor usa o termo pureza nagô 166 ORTIZ Renato Cultura brasileira e identidade nacional São Paulo Brasiliense 2006 p 34 88 a linguagem negra nas pinturas e esculturas de traçados grosseiros nas festas e saberes populares folclóricos totêmicos nas religiões fetichistas nas indumentárias e culinárias típicas Esses são os lugares simbólicos da cultura e os significados da afrodescendência brasileira em Nina Rodrigues Lugares simbólicos ser e fazer negros marcados pela falta pelo atraso pela carência pela grosseria e infantilidade de seus conteúdos e formas 2 Gilberto Freyre o difusionismo cultural e a malemolência gostosa da cultura afrobrasileira Em 1930 Gilberto Freyre homem de família tradicional de Pernambuco esteve na Bahia e conheceu o Museu AfroBaiano Nina Rodrigues encontro a partir do qual foi aparentemente seduzido por um universo cultural que lhe gerava uma mescla de estranhamento e atração ao mesmo tempo Queria entender uma presença cultural no Brasil tão evidente e já estudada que não se podia negar Os negros no Brasil estavam por todos os lugares e ele sabia que essa presença não se restringia só ao mundo material mas também simbólico brasileiro Ainda em 1930 Freyre vivenciou a experiência do exílio Passou pelos Estados Unidos por Portugal e por países africanos lugares que o influenciaram em sua busca intelectual de entender a cultura afro brasileira ou melhor o lugar e as formas das presenças culturais negras na identidade cultural brasileira Da mesma forma que Nina Rodrigues no final do século XIX Gilberto Freyre no início do século XX buscava compreender o caráter nacional brasileiro a fim de criar um discurso que desse homogeneidade à identidade nacional criando simbolicamente um povo brasileiro cujo símbolo maior seria a miscigenação É nesse sentido que a história lhe servirá como forma de explicação e entendimento da nacionalidade num momento onde as discussões sobre a identidade brasileira estavam na pauta dos políticos e intelectuais O Brasil adentrava numa nova era industrialização surgimento das primeiras universidades instituição das ciências sociais no país Houve uma maior burocratização do Estado que buscava dar novos formatos à educação saúde agricultura segurança cultura etc essas reformas na estrutura interna do Estado brasileiro absorviam os sujeitos e as demandas das camadas médias urbanas167 Zuleica Campos afirma que 167 CAMPOS Zuleica O combate ao catimbó práticas repressivas às religiões afroumbandistas nos anos trinta e quarenta Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2001 89 entre os desdobramentos deste processo estão não só as movimentações pela reforma de outras esferas da vida social mas também o agravamento das crises internas das oligarquias dominantes da economia e da política nacional e a ascensão de Vargas ao poder político em 1930168 Campos pondera que entre as estratégias que marcaram essa transição para a formação desse estado centralizado e posteriormente autoritário governado por Vargas estavam o apoio ao desenvolvimento industrial à expansão da burocracia estatal à ampliação de assistência social aos trabalhadores e a tomada de um posicionamento nacionalista quanto a assuntos econômicos e culturais A história ao lado dessas ciências sociais buscará conhecer a realidade a fim de fomentar projetos de intervenção social Os intelectuais brasileiros estão buscando novas respostas para a identidade nacional brasileira como elemento que dará um sentido de comunidade aos cidadãos da república brasileira Uma nova versão para essa identidade moderna e que pudesse construir narrativas e símbolos que dessem conta do Estado de compromisso que privilegiasse as elites mas que pudesse contemplar elementos das tradições populares aproximandose das pessoas comuns de forma carismática parecendo democrático mas conservando as hierarquias sociais O Brasil seria ressaltado pelas suas peculiaridades mas com uma diferença em relação ao século XIX agora o pensamento intelectual nacional se propunha como não legitimador das formas de racismo exclusão exploração e dominação Numa perspectiva mais otimista se estudaria a pluralidade que forma a nacionalidade e se buscaria a modernização desta É neste contexto que são publicados no Brasil os primeiros textos paradigmáticos produzidos por intelectuais brasileiros de grande respeito no mundo acadêmico da época como Nina Rodrigues e Gilberto Freyre O sucesso dessas obras também em nível internacional deuse pelo contexto do entre guerras Naquele momento havia não só as lembranças recentes da Primeira Guerra Mundial mas também se assistia à ascensão dos regimes totalitários que se legitimavam através das doutrinas raciais e do racismo científico As leituras que desvelassem distintas presenças raciais estavam no centro das atenções intelectuais do ocidente O pensamento freyriano ganhou ainda mais destaque por defender a tese de que o Brasil era um exemplo de nação tolerante uma nação que harmoniza as diferenças raciais 168 CAMPOS Zuleica O combate ao catimbó práticas repressivas às religiões afroumbandistas nos anos trinta e quarenta Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2001 90 Freyre escreve sob influência da antropologia cultural de Franz Boas que buscava dissociar o conceito biológico de raça do conceito antropológico de cultura Neste momento a perspectiva eugenista ainda vigorava enquanto política social embora há muito tempo já recebesse críticas no campo intelectual Zuleica Campos169 afirma que as leituras mais influentes da teoria boasiana no Brasil foram as obras do antropólogo americano Melville Herskovits um dos principais discípulos de Boas nos EUA que estudou a presença negra na América Analisando o discurso científico da época tanto a historiadora Zuleica Campos quanto a antropóloga Maria José Campos170 buscam mostrar que no Brasil a noção de democracia racial a partir de uma interpretação otimista da mistura racial e cultural por meio da apropriação das teorias culturalistas americanas ainda estão associadas ao pensamento eugenista O que percebemos neste sentido é que os intelectuais brasileiros desse período não estão meramente reproduzindo teorias e sistemas explicativos vindos do exterior mas estão recriandoos conforme o contexto e as necessidades postas para o entendimento da identidade brasileira naquele momento Nesse sentido eles realizam operações discursivas que ressignificam conceitos e argumentos ligando ideias que a princípio estariam opostas realizando o que Ortiz chama de sincretismo científico Na busca de inaugurar um novo paradigma interpretativo Freyre diz que pretende realizar um ensaio que fosse ao mesmo tempo o que chamou de sociologia genética e história social Ele faz isso para criticar o modelo positivista de historiografia nacional da época por enfatizar uma perspectiva patriótica em detrimento dos temas que ele considera de interesse rigorosamente histórico171 Temas estes que estavam esquecidos ou inacessíveis aos estudiosos e que agora com a publicação de Casa Grande e Senzala seriam reconhecidos valorizados e divulgados resolvendo um problema político maior para o Brasil a criação de uma comunidade nacional integradora172 169 CAMPOS Zuleica O combate ao catimbó práticas repressivas às religiões afroumbandistas nos anos trinta e quarenta Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2001 170 CAMPOS Maria José Arthur Ramos luz e sombra na Antropologia Brasileira uma versão da democracia racial no Brasil nas décadas de 1930 e 1940 Rio de Janeiro Edições da Biblioteca Nacional 2004 171 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p47 172 A obra Casa Grande e Senzala foi escolhida por ter sido a primeira obra onde Freyre realiza um denso estudo sobre a cultura negra atribuindo a ela uma dimensão histórica Esse livro é bastante relevante do ponto de vista simbólico pelas significações que constrói acerca da presença negra na identidade nacional sendo uma das obras mais lidas desde sua publicação até hoje no Brasil e no exterior 91 Destarte seu foco cai sobre tudo o que diz respeito à vida íntima e a moral sexual do Brasil onde para ele reside a autenticidade da nação o caráter do povo173 Essa vida íntima na moral sexual brasileira só poderia ser encontrada em outras fontes de informação ou sugestão referentes a lugares específicos de produção cultural quanto à participação do negro e mesmo do índio do folclore rural nas zonas mais coloridas pelo trabalho escravo dos livros e cadernos manuscritos de modinhas e receitas de bolo174 e quanto à produção cultural do branco coleções de jornais dos livros de etiqueta e finalmente do romance brasileiro que nas páginas de alguns dos seus maiores mestres recolheu muito detalhe interessante da vida e dos costumes da vida patriarcal175 Com essa construção argumentativa Gilberto Freyre já inicia seu texto demarcando os devidos lugares culturais ocupados por negros índios e brancos de acordo com suas hierarquias sociais Lugares que em sua narrativa viram símbolos associados à identidade de cada um desses sujeitos definindoas plasmandoas estereotipandoas Negros e índios produzem o folclore colorido musical e culinário Os brancos produzem a imprensa livros de etiqueta e literatura Dessa forma o autor começa a demarcar através da cultura a posição política de cada personagem no cenário de colonização e organização da nacionalidade brasileira É bem verdade que Freyre ao preferir construir uma narrativa histórica a partir de outros problemas perspectivas e fontes fez emergir novas interpretações historiográficas a respeito do passado brasileiro Contudo uma vez que os seus conhecimentos sobre a história política de que dispunha naquele momento só o faziam perceber os escravos em condições subalternas é justamente nessa subcondição humana que Freyre representa os negros em sua narrativa Negros que sofrem mas que produzem sua cultura sempre envolvente e gostosa embora ainda mística e rústica No momento em que agradece aos amigos que o ajudaram na construção do livro cedendolhe fontes indicandolhes bibliografias corrigindo o texto passandoo a limpo etc Freyre nomeia cada amigo contribuinte de sua obra pessoas ligadas às elites 173 Essa ideia de compreender o caráter ainda possui uma perspectiva biologista da questão Freyre quer entender esse caráter de forma psicológica naturalizando ou localizando na raça os elementos psicológicos que expliquem as práticas culturais em diálogo com os diferentes contextos de relações sociais que se estabeleciam Nesse sentido há um interdiscurso com a proposta de Nina Rodrigues Vide também REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 174 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 33 175 Idem Op Cit 92 oligárquicas às classes médias urbanas à intelectualidade ao poder público e por último a alguns exescravos Ainda quanto a esse agradecimento vemos que há uma forma hierarquizada no que considera como contribuições à obra Casa Grande e Senzala Aos exescravos compete responder perguntas informar sobre o que sabem de seu universo cultural passar receitas aos homens da elite que dominam as esferas políticas econômicas e de produção intelectual no Brasil compete ler revisar analisar sugerir ceder fontes escritas traduzir organizar construir critérios de análise e um sentido sobre as informações colhidas que formarão a narrativa Àqueles compete passar informações a estes compete fazer um conjunto de procedimentos uma operação simbólica sobre o passado nacional que legitima a visão de mundo de seus interventores176 Durante todo o texto Freyre recorre bastante a referenciais teórico metodológicos de intelectuais brancos utilizando como fontes os relatos de cronistas que estiveram na África e no Brasil colonial e falaram sobre o cotidiano e as atividades culturais dos negros nestas duas espacialidades genéricas177 O pensamento de Gilberto Freyre revela uma grande complexidade causada por diferentes referenciais teóricos e estratégias argumentativas onde parece que o autor quer revelar críticas às estruturas de poder mas ao mesmo tempo as ameniza quando dá exemplos de relações sociais harmoniosas construídas historicamente no Brasil Na verdade o que se percebe é a força persuasiva de um autor que parece buscar se aproximar do universo cultural dos excluídos para lhes inserir de forma mais digna nas 176 O historiador Tiago de Melo Gomes sugere que alguns artistas populares negros como Pixinguinha tenham influenciado a tese de Freyre Estes artistas negros elaboravam suas leituras críticas do contexto social do Brasil principalmente no que diz respeito às discussões raciais Também as formas de inserção desses artistas como símbolos da nacionalidade brasileira contribuíram para os estudos de Gilberto Freyre Para uma discussão aprofundada ler GOMES Tiago de Melo Um espelho no palco identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos 1920 CampinasSP Editora da UNICAMP 2004 177 Neste sentido é importante ressaltar que a obra de Freyre utiliza essas fontes como dispositivos de verdade As fontes ilustram o passado reafirmando os argumentos do autor Argumentos que por mais que pareçam inovadores consolidamse como conservadores das relações sociais Freyre ressalta a importância da utilização de outras fontes que revelem o caráter do povo através de sua vida íntima revelando suas essências mas a escolha dessa nova perspectiva tornou sua narrativa a vida dos brasileiros e a história do Brasil em uma saudosa memória de um passado cultural praticamente sem conflitos Apenas se buscou acrescentar fontes com outros tipos de informação mas sem desconfiar dessas fontes sem criticálas sem desvencilhálas do que o historiador Robert Slenes chama de olhar branco a percepção do branco sobre o negro e sua cultura As fontes que Freyre usou para legitimar suas verdades estavam cheias de olhares preconceituosos e estereotipados dos quais o autor não conseguiu se livrar pois os referenciais historiográficos de que dispunha ainda tomavam a fonte como provas da verdade sem se problematizar o lugar a autoria e a intencionalidade presente nas fontes De fato não se pode cobrar essa postura de Freyre pois essa não era uma postura consolidada no campo historiográfico principalmente no Brasil dos anos 30 afinal essas discussões só vieram a se consolidar algumas décadas depois contudo é importante ressaltar que a metodologia utilizada por ele naquele momento criou uma narrativa que reforçou estereótipos conservadores quanto à identidade cultural negra 93 relações sociais brasileiras porém que constrói uma narrativa que apaga os conflitos acalma as tensões sociais e preserva as hierarquias A colocação de pólos contrários como vencedor e vencido proprietário e propriedade explorador e explorado atribuindo a elas o mesmo valor semântico da expressão senhor e escravo em vários momentos do texto Casa Grande e Senzala possibilitou a interpretação de Gilberto Freyre como um autor comunista nos anos 30178 um estudioso subversivo que poderia alertar à condição estrutural de exploração e dominação na sociedade brasileira De outro modo no entanto o autor ainda utiliza termos eugênicos como raça superior e raça inferior raça adiantada raça atrasada e utiliza termos como confraternização harmonia harmonização união miscigenação etc Termos estes que o ajudam na construção discursiva da ideia de democracia racial Freyre assume que na sua trajetória intelectual inicialmente pensava a identidade nacional mestiça como doença tendo a perspectiva eugenista como modelo de pensamento Contudo depois de entrar em contato com teorias do difusionismo cultural de Franz Boas nos Estados Unidos passa a criticar a perspectiva eugenista buscando trocar o conceito de raça pelo conceito de cultura para reinterpretar o que o autor ainda chamava de contribuição cultural negra no Brasil Para Freyre as deficiências e carências apontadas pelos eugenistas como consequências diretas das raças na verdade seriam consequências de condições sociais e contextos políticos de uma raça ou cultura sobre a outra Desta forma o argumento que explicaria a inferiorização do negro e do índio no Brasil sairia do mundo natural biológico nato para o mundo social cultural e político Contudo as hierarquias raciais ainda estão presentes na narrativa histórica de Gilberto Freyre legitimando seus argumentos e reforçando relações políticas e sociais Ele põe a figura portuguesa no mais alto pódio da identidade nacional É o português quem governa constrói estupra administra ensina É o português o centro que dá sentido à brasilidade Freyre cria um esquema de estrutura narrativa que cria uma visibilidade centralizadora do português e periférica dos índios e negros Para ele o português é o elemento gerador de nossa estrutura social coesa É dele que parte os pontos de sustentação para índios e negros A casa grande senhorial foi o centro de coesão patriarcal e religiosa sob a qual se apoiou a organização nacional foi nela onde 178 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 94 melhor se exprimiu o caráter brasileiro a nossa continuidade social179 a família patriarcal foi a unidade centralizadora brasileira e o colonizador português o elemento ativo desbravador conquistador plástico dominador o patriarca que cuida O indígena foi o elemento passivo selvagem primitivo e fraco Já os negros foram passivos plásticos servindo como escravos de estimação Metáfora em que o autor assemelha o negro a um animal doméstico O mito fundador criado por Gilberto Freyre paulatinamente apaga e desqualifica a presença indígena enquanto tributária da formação social e cultural do Brasil O autor prefere evidenciar as presenças portuguesa e negra genericamente nomeada de africana Contudo essa relação é estabelecida hierarquicamente sendo à primeira presença reservada todos os adjetivos e sentidos centralizadores de poder racionalidade e civilidade ao passo que a segunda relegamse os sentidos lugares e atividades periféricas nas relações sociais e culturais O português já apresentava historicamente uma prédisposição à vida tropical e às afinidades interraciais devido às relações estabelecidas na África e na Índia por advento da expansão marítima portuguesa180 A harmonia e a democracia racial existiriam não graças aos indígenas e negros mas graças somente ao português que permitiu o estabelecimento dessas relações181 O poder viril do português não se materializaria somente na sua esfera privada de vida sexualidade mas também na esfera pública relações sociais e políticas O português grita decide comanda Às outras raças cabe obedecer Para Freyre esse seria um costume com profundas raízes históricas É como se o brasileiro gostasse e até sentisse falta de ser comandado182 pois Uma espécie de sadismo do branco e de 179 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 45 180 Na verdade nos argumentos do autor essa predisposição aos contatos com as ditas sociedades exóticas existia desde a formação do Estado Português O homem português já era mestiço com o árabe Essa miscigenação não o inferiorizava do contrário permitiu o pioneirismo português no contexto da expansão marítima e colonização dos mundos não portugueses Assim Freyre atribui uma interpretação otimista à miscigenação vislumbrandoa como possibilidade de progresso de um povo e não de seu fracasso Para José Carlos Reis Freyre devolve a autoestima das elites brasileiras que no final do século XIX sobre o paradigma eugenista havia sido condenada por ser mestiça REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999180 181 O racismo ainda estava tão presente no discurso de Freyre que quando fala sobre os casamentos inter étnicos no Brasil Colonial chega a afirmar sobre os filhos de portugueses e índias de semelhante intercurso sexual só podem ter resultado bons animais ainda que maus cristãos ou mesmo más pessoas Idem Op Cit p84 182 O historiador José Carlos Reis aponta que na obra Casa Grande e Senzala Freyre defende cinco teses 1 o encontro racial entre os diferentes povos foi harmonioso possibilitando casamento interétnicos e a formação de uma sociedade miscigenada nos trópicos Brancos negros e índios são povos do passado não existiriam mais em sua pureza o Brasil é todo de uma cor só mulato 2 essa miscigenação só foi possível graças ao caráter democrático do português que já apresentava uma predisposição histórica para 95 masoquismo da índia ou da negra terá predominado nas relações sexuais como nas relações sociais do europeu com as mulheres das raças submetidas ao seu domínio183 Mas é interessante perceber que Freyre ao desenhar um português miscigenado desenha um português que é também africanizado pois é homem que recebeu muitas influências de árabes na arquitetura no vocabulário na culinária no catolicismo místico e popular Influências culturais africanas difundidas no mundo português que não provinham de qualquer África e sim da África do norte moura não somente mais próxima geograficamente de Portugal mas sobretudo mais civilizada Assim vêse de forma paradoxal tanto a adesão do autor ao difusionismo cultural ao evidenciar que as práticas culturais religiosas africanas foram difundidas entre as práticas culturais e religiosas cristãs quanto ainda certa dose de eugenia pois essas influências reconhecidas a princípio parecem construir um elogio mas na verdade são tratadas como depreciação 184 Sofreram os colonizadores não exclusiva ou diretamente da América mas das colônias em geral dos contatos com povos exóticos e raças atrasadas das conquistas e das relações ultramarinas decidida influência no sentido da dissolução moral O ônus moral do imperialismo185 Enfim enxergando o passado pela ótica do colonizador branco a quem tanto elogia Freyre justifica a vida sexual e moral do brasileiro a partir de referenciais como Montesquieu e Treitschke que atribuem ao clima tropical e à vida nos trópicos a existência da sensualidade da poligamia e da escravidão Desta forma conclui que os contatos entre raças diferentes 3 o cenário por excelência da miscigenação e ordenação da vida brasileira foi a CasaGrande 4 as limitações físicas e psíquicas do negros resultam não da raça mas das condições sociais as quais foram submetidos numa sociedade latifundiária de monocultura e onde a sífilis se espalhou e 5 o povo brasileiro é masoquista vem de uma tradição histórica de relações sociais de comando x obediência Sofre é explorado e comandando mas gosta porque essa foi a educação que o povo sempre recebeu Assim para fortalecer o país dar coesão ao povo e por ordem na república é necessário um governo ideal que seja másculo viril patriarcal e comandante supremo absoluto enfim autoritário REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 183 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 45 184 Idem Op Cit p 394 Essa leitura da religião se assemelha com o pensamento de Nina Rodrigues na obra Os africanos no Brasil para quem as religiões africanas depreciam a religião cristã 185 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 333 96 diante da natureza voraz e danos econômicos a escravidão foi uma instituição necessária à colonização do Brasil Na criação dessa instituição o português ocupou lugares estratégicos que lhe cabiam devido ao seu perfil exercendo os papeis que lhes eram mais próprios realizando atividades culturais que só sua competência poderia cumprir a política a administração as letras a diplomacia o direito Em Gilberto Freyre são esses os lugares da cultura branca Lugares caracterizados pela presença competente e poderosa pela riqueza e desenvolvimento pela racionalidade e pelo equilíbrio e harmonia entre conteúdos e formas Já quando sua escrita parte para caracterizar o índio Freyre utiliza termos como semicivilização raça atrasada selvagens introvertidos taciturnos morosos tristes calados sonsos sorumbáticos sem graça sem espontaneidade sem cortesia sem sorriso identificados pelo animismo e totemismo pela perene infantilidade carência e ingenuidade de cultura inferior e nômade A força de significação das palavras que o autor usa para homogeneizar e desclassificar as identidades indígenas revela a estratégia discursiva de hierarquizar identidades sociais Seu interesse em falar do índio no livro é dissertar sobre a sua influência nas relações sexuais e de família na magia e na mística É a partir desse recorte temático reduzido que o índio é integrado à narrativa histórica freyriana É no campo e nas matas afastadas da civilização dos centros urbanos que estão guardadas ainda vivas de alguma forma as reminiscências de práticas culturais tradicionais dos indígenas Criase como critério de autenticidade da identidade indígena o afastamento geográfico do restante da sociedade brasileira Desta forma Freyre também situa os indígenas em seus devidos lugares Determina segundo sua ótica branca os lugares da cultura indígena o folclore os contos populares as superstições as tradições totêmicas as relações de amor e compradio186 com animais e plantas que seriam perceptíveis na iniciação sexual de muitos jovens com tais animais ou vegetais a visão de mundo mística da crença no sobrenatural fato que explicaria o sucesso até aquele momento anos 30 do que o autor insiste em chamar assim como o chamava Nina Rodrigues de baixo espiritismo Todas essas sobrevivências culturais todas essas tradições primitivas teriam sido ofuscadas pelo próprio perfil fraco e passivo dos indígenas Freyre entende que foi por isso que os indígenas teriam sido apagados pela ação colonizadora e pela catequese europeia mesmo que tenham sobrevivido algumas influências do que ele chama da 186 Relações de parentesco e proteção Oriundo da palavra compadre Essa expressão denota o caráter patriarcal das relações sociais no passado colonial do Brasil 97 linguagem rústica dos índios na língua portuguesa Freyre ainda afirma que a produção açucareira exterminou os indígenas Ora pela morte ora pela fuga os indígenas haviam sumido da sociedade brasileira Estavam localizados no passado colonial não existiriam mais na república brasileira para além das lembranças romances folclore e história O índio fora substituído pela mão de obra escrava negra que para o autor era muito mais vigorosa em todos os sentidos É neste enredo que entra o personagem negro como foco na narrativa de Freyre Ele aparece dentro de uma problematização histórica que busca traçar as origens negras do Brasil Retomando o raciocínio de Nina Rodrigues Freyre afirma que os historiadores do século XIX limitaram a procedência dos escravos importados para o Brasil ao estoque banto Seria esse um ponto que se deveria retificar De outras áreas de cultura africana transportamse para o Brasil escravos em grosso número Muitos de áreas superiores à banto187 Através desta interdiscursividade com Nina Rodrigues o autor demonstra uma preferência em mostrar que em sua noção de cultura afro brasileira aparecerá o perfil sudanês as matrizes jejenagô e haussás entre outros povos sudaneses Os sudaneses seriam superiores graças a miscigenação entre sangue hamítico e árabe Mais uma vez sudanesa seria a ancestralidade africana que teria o Brasil era a que os portugueses desejaram pois se tratariam dos africanos mais elegantes bonitos e sensuais em detrimento da grosseria afrodisíaca dos bantos A presença banto seria mais uma vez apagada na narrativa historiográfica que dá logica ao Estado brasileiro O trabalho escravo dos negros teria sido necessário não só pela falta de indígenas para o trabalho mas também pela falta de mulheres brancas para os desfrutes dos portugueses e de técnicos em trabalhos com metais que fazem parte da típica cultura africana caracterizada na perspectiva burguesa como destituída de inteligência e prestígio tida pelo trabalho braçal a agricultura a mineração a pecuária a culinária Pelo título dado ao quarto capítulo O escravo na vida sexual e de família do brasileiro já conseguimos fazer algumas críticas primeiramente o negro entra nessa narrativa apenas como escravo é como se fosse uma condição natural de existência do indivíduo negro nascer ou ser escravizado e é sobre essa condição da identidade negra que a narrativa dotase de sentido Em segundo lugar o escravo negro é tratado como 187 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 382 98 um estrangeiro um ser que orbita em torno da família do brasileiro mas que dela não faz parte porque a ele não foi atribuído o adjetivo de nacionalidade brasileiro O escravo o negro seria alguém que invade essa família brasileira mestiça mas de caráter português a partir da vida sexual terceiro o autor já define um lugar cultural para a presença negra no Brasil a sexualidade mas não de qualquer forma e sim sob a forma de uma sexualidade permissiva associada a termos como sedução orgias e degeneração familiar É bem verdade que em vários momentos o autor atribui essa força da participação negra na vida sexual à instituição escravista pois reconhece que os escravos eram forçados na maioria das vezes a manter relações sexuais com os portugueses os homens de caráter viril dominador autoritário colonizador mas não deixa de atribuir aos africanos os adjetivos de escravos passivos e naturalmente lascivos Logo no início do capítulo IV o autor já define os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira os xangôs de Recife188 e candomblés da Bahia reisados maracatus coroação de rei do congo e ainda acrescenta Na ternura na mímica excessiva no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos na música no andar na fala no canto de ninar menino pequeno em tudo o que é expressão sincera de vida trazemos quase toda a marca da influência negra Da escrava ou sinhama que nos embalou Que nos deu de mamar Que nos deu de comer ela própria amolegando na mão o bolão de comida Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de malassombrado Da mulata que nos tirou o primeiro bichodepé de uma coceira tão boa Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu ao ranger da cama devento a primeira sensação completa de homem Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo189 Assim reaparecem aqui os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira já evidenciados na obra do médico Nina Rodrigues revelando nesta interdiscursividade as premissas racialista e discriminatória que não só estereotipam a identidade cultural negra mas também separam e mantêm as hierarquias sociais no Brasil Essa é a 188 No início do século XX os cultos de matriz africana no Recife eram chamados de Xangôs Nome que originalmente designa o orixá da justiça e do fogo que em Pernambuco foi estendido para significar também o espaço físico onde ocorrem os rituais os terreiros o toque nos dias de festas públicas e de forma genérica todo o culto O termo candomblé que hoje está bem difundido no Brasil veio a ser utilizado em substituição ao termo Xangô no Recife a partir dos diálogos entre intelectuais militantes e lideranças religiosas dos cultos em Pernambuco e na Bahia na busca de reafricanizar ressignificar e legitimar sua prática religiosa em nível nacional 189 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 367 grifos nossos 99 significação superficial que reveste a cultura afrobrasileira a partir dos seguintes lugares simbólicos a música e o canto a fala e a mímica que a complementa a culinária os contos populares e as lendas o misticismo do catolicismo à brasileira e a magia o curandeirismo caseiro Mas Freyre acrescenta outros lugares a brincadeira inocente onde o negro é naturalmente submisso a sexualidade onde o negro já experiente neste assunto inicia e corrompe a pureza do branco São esses os traços culturais tipicamente negros que o autor prefere evidenciar em sua narrativa Ele afirma ainda que não é de seu interesse ao menos diretamente a importância dos negros na vida estética e muito menos no progresso econômico do Brasil O autor preferiu evidenciar a importância negra na constituição da moral e do caráter do povo brasileiro ou seja as formas pelas quais os negros participavam da vida sexual brasileira É por isso no entanto que na página 395 ele descreve a cena de ritual de culto afrobrasileiro e admite não saber a função de um tecido em cor específica amarelo ou vermelho etc usado por alguns adeptos nesse ritual190 Daí se percebe que o autor fez recortes selecionou partes elegeu alguns elementos e práticas que se tornaram símbolos da cultura afrobrasileira em detrimento de outros mas os estudou sem contemplar a profundidade dos sentidos desses mesmos elementos culturais Muita coisa fugiu do olhar branco e da compreensão de Gilberto Freyre porque ele achava que eram coisas já postas já esclarecidas já compreendidas pelo olhar científico Dessa maneira alguns elementos que ele via nas práticas afrobrasileiras eram reduzidos a mero espontaneísmo sem significados profundos ou relevantes O difusionismo cultural ao qual estava filiado o fazia perceber que as culturas negras se espalhavam por todas as esferas culturais dos brasileiros no cotidiano mas não conseguia apreender muitos dos sentidos valores e conceitos que estavam por trás desses mesmos materiais e práticas da cultura negra que se difundiam Ora para ele não parecia ser fácil ou evidente compreender a cultura afro brasileira por dentro porque acreditava como Arthur Ramos e outros intelectuais brasileiros da época que os documentos oriundos da escravidão foram queimados a mando de Rui Barbosa Portanto não havia documentos que falassem dos negros diretamente por sua voz191 190 No candomblé o uso de cores no vestuário dos adeptos é uma alusão a cor que representam os orixás 191 No Brasil o intelectual que criou o mito de que as fonte sobre a escravidão haviam sido queimadas a mando do ministro da fazenda Rui Barbosa foi Arthur Ramos A esse respeito ele disse A história do trafico de escravos no Brasil ainda não está suficientemente escrita É de uma longa história só ela comportando um vasto volume Bem assim a história da escravidão destruição dos documentos históricos determinada pelo Ministério da Fazenda em circular n29 de 13 de maio de 1891 inutilizou várias tentativas nesse sentido E continuam muitos daqueles problemas aludidos sem solução RAMOS 100 Assim Freyre usa antropólogos sociólogos filósofos psicólogos biólogos cronistas literatos abolicionistas e clérigos que durante a colônia o império e início da república falaram dos e pelos índios e negros É a partir dessa interdiscursividade acrescentada de valores do próprio autor que ele constrói o perfil dos negros na história do Brasil extrovertido alegre risonho sociável expansivo loquaz fortes bem nutridos atléticos sensuais pobre mas limpo de iniciativa pessoal talento de organização poder de imaginação aptidão técnica e econômica indivíduo que possui identidade étnica Esses são termos que parecem dotar a identidade negra de bons atributos mas não devemos esquecer que muitos desses existem como pedido de permissão ou compensação para a aceitação do negro apesar de sua raça Não é a toa que o autor ainda usa metáforas como lama de gente preta Em outros momentos ele define os típicos personagens negros de nossa história ele plasma e limita os papéis sociais exercidos por negros o negrovelho o pai de terreiro o moleque de brinquedo a mucama a cozinheira perita na arte do forno a negrinha sensual o guia o cúmplice o curandeiro o corruptor mas sempre o escravo192 Nesta manobra discursiva o negro acaba sendo considerado o maior e mais plástico colaborador do branco na colonização do Brasil Vejase que ele não é tido como o principal colonizador mas apenas o contribuinte da grande obra portuguesa A colonização portuguesa foi política a africana foi cultural Aqui há uma hierarquia Enquanto o português o patriarca é duro viril dá ordens comportase cheio de cerimônias o negro escravo é mole intimista faz pedidos e súplicas Para Freyre o negro foi responsável por muitas das maneiras e vícios dos brasileiros Aqui a cultura afrobrasileira recebe mais uma conotação ruim pra além da ideia de folclore pois falar Arthur O negro brasileiro Recife Massangana 1988 p 1516 Embasados em Slenes 1983 Peter Fry e Carlos Vogt afirmam que os documentos queimados a mando do ministro da Fazenda Rui Barbosa foram os originais das matrículas de escravos que havia no Brasil desde a Lei do Ventre Livre em 1871 Esses documentos se tornaram a base legal da propriedade de escravos e eram usados como principal prova dos exsenhores de escravos na hora em que estes exigiam idenizações do Estado pela perda da posse do excativo Foi por isso que Rui Barbosa teria mandado queimar especificamente esses vestígios e não todos os documentos da escravidão como declarava Arthur Ramos em 1934 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 192 O tempo todo em sua obra Freyre usa a palavra menino para se referir à criança branca ao passo que usa o termo moleque para definir a criança negra A partir de Eni Orlandi não podemos deixar de crer que a significação das palavras tenha uma forte dimensão histórica e ideológica de cunho ainda racista As formas como se designam as pessoas desvelam não só representações mas interesses políticos ORLANDI Eni Análise de Discurso princípios e procedimentos Campinas SP Pontes 2012 101 em vícios numa sociedade cristã é remeterse a uma ideia de pecado vida errada abominável condenável O uso deste termo na narrativa freyriana parece soar como elogio pois o vício é tratado como um ato que seduz e é gostoso de ser praticado porém a ideia de prática errada ou condenável não foi abolida deste léxico Definindo os lugares dos negros e ainda retomando os cronistas de época e autores como Nina Rodrigues e Arthur Ramos Freyre reestabelece o cenário típico onde o negro e sua cultura aparecem com maior força as festas sobretudo o Carnaval Situação social de perpetuação da cultura negra mística totêmica e fetichista É nas festas que o negro executa suas danças espontâneas dramática sensuais alegres e muito vivas A identidade negra é passiva feminina sensível é que realiza uma profusão de cores movimentos sons cheiros e sabores animando e suavizando a empresa autoritária da identidade branca ativa viril masculina e racional de nossa formação portuguesa Nas palavras do autor Muitos acrobatas de circo sangradores dentistas barbeiros e até mestre de meninos tudo isso foram os escravos no Brasil e não apenas negros de enxada ou de cozinha Muito menino brasileiro deve ter tido por seu primeiro herói não nenhum médico oficial de marinha ou bacharel branco mas um escravo acrobata que viu executando piruetas difíceis nos circos e bumbasmeuboi de engenho ou um negro tocador de pistom ou de flauta193 Por conseguinte além da dança e da música outro lugar cultural para o negro seria o circo Lugar onde poderia exercer naturalmente sua mímica excessiva Mais uma vez a cultura é usada como argumento para definir os papéis sociais dos negros no Brasil naturalizandolhes as funções onde exerçam trabalhos braçais que na lógica de nossa sociedade burguesa são desprivilegiados194 193 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 505 194 Para a filósofa Marilena Chauí não devemos esquecer que num contexto de liberalismo a sociedade burguesa entende como cultura os saberes científicos tecnológicos artísticos e filosóficos produzidos pelas classes dominantes o que pressupõe uma divisão social entre intelectuais e manuais e necessidade da escolaridade para ter competência de produzir uma boa cultura Analisando a noção de cultura de Nina Rodrigues e Gilberto Freyre percebemos que eles usam do argumento cultural enquanto herança ou aptidão para legitimar o exercício dos negros em funções sociais menos privilegiadas na sociedade burguesa CHAUÍ Marilena Política Cultural Porto Alegre Mercado Aberto 1985 É isso por exemplo o que também está querendo dizer Edward Said quando afirma que a colonização cultural que se dá também pela formação de estereótipos implica não somente na criação de barreiras e limitações culturais do outro de quem se fala mas também suas limitações sociais econômicas e políticas processo do qual os intelectuais não estão isentos aliás em muitos casos eles são os principais artífices 102 Como se trata de uma cultura dos trabalhos mecânicos a culinária não poderia deixar de ser evidenciada Freyre é categórico ao dizer que os negros dominaram a cozinha Este espaço teria sido dominado pela cozinheira gorda ou pelo homem cozinheiro efeminado que reproduziam alimentos e técnicas culinárias africanas produzindo os legítimos doces ou quitutes dos tabuleiros das negras forras Doces da rua coloridamente africanos que faziam desleal concorrência com os doces recatados das casas de família Fato que mostra a especialização dos escravos nas artes culinárias além dos outros serviços domésticos Segundo o autor a cozinha baiana é mais tipicamente afrobrasileira seguida das cozinhas pernambucanas e maranhenses Aqui o autor plasma uma série de estereótipos o perfil de quem faz os alimentos cozinheira gorda ou cozinheiro efeminado ou são receitas tipicamente africanas e os estados brasileiros de forte tradição de culinária africana Além de criar uma cartografia cultural localizando simbolicamente os lugares culturais dos negros Freyre interfere na cartografia simbólica do Brasil pontuando os pontos onde está mais nitidamente a cultura afrobrasileira O autor de Casa Grande e Senzala descreve a indumentária típica das negras vendedoras de doces reforçando a imagem que Nina Rodrigues descreveu das negras vestidas à baiana Quando fala da linguagem negra o autor faz outra caricatura Para ele a linguagem africana amolece o vigor da língua portuguesa tiralhe o prestígio a solenidade O contribuinte da cultura brasileira amolece e suaviza a imposição cultural do colonizador oficial Nas palavras do autor A linguagem infantil também aqui se amoleceu ao contato da criança com a ama negra O processo de reduplicação da sílaba tônica tão das línguas selvagens e da linguagem das crianças atuou sobre várias palavras dando ao nosso vocabulário infantil um especial encanto O dói dos grandes tornouse dodói dos meninos Palavra muito dengosa A linguagem infantil brasileira e mesmo a portuguesa tem um sabor quase africano cacá pipi bumbum tentém neném tatá papá papato Lili mimi auau bambanho cocô dindinha bimbinho Os nomes próprios foram dos que mais se amaciaram perdendo a solenidade dissolvendose deliciosamente na boca dos escravos As Antônias ficaram SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 103 Dodons Toninhas Totonhas as Teresas Tetés os Manués Nezinhos Mandus Manés 195 Mesmo parecendo querer elogiar essa presença negra através do uso de adjetivos como encanto e dengosa o autor não dispensou o uso do termo selvagens para fazer referência às falas dos escravos Freyre deprecia essa fala pois dentro de sua perspectiva patriarcal e machista ele atribui à cultura negra a ideia de plasticidade moleza feminilidade algo que descaracteriza desfaz o vigor e a autoridade masculina do colonizador português Se antes havia duas línguas uma da Casagrande e outra da Senzala o contato das crianças brancas com as amas negras diluiu essa fronteira mas ao falar desse contato Freyre acaba referendando a concepção de linguagem africana como fragmentos estereotipados de línguas africanas que foram acolhidas pela língua portuguesa uma língua coesa exata e profunda capaz de dar sentido aos fragmentos limitados carentes de semântica própria dos africanos Fato que ocorreu não só na linguagem falada mas também na gramática do português brasileiro Os vocábulos africanos na língua portuguesa são para Freyre vocábulos órfãos ou no máximo filhos de pais não ilustres A influência africana deturparia a língua portuguesa mandá buscá comê ti faço mi deixe coler le pediu cadê ele vigie espie mas é justamente essa deturpação esse português errado que caracteriza o português brasileiro e garante a nossa identidade lingüística e o seu caráter vernáculo196 Um ponto interessante a se notar nessa narrativa é que Freyre visualiza o negro em um campo de atuação diferente dos que vinha citando até aqui caracterizados apenas por atuarem como trabalhadores braçais Para ele havia um campo de trabalho que alguns negros conseguiram ocupar dando novas formas a educação Um campo de prestígio social tido como trabalho liberal intelectual Falando sobre o negro na educação Freyre evidencia que as formas de ensinar nas práticas cotidianas de professores negros se dão de forma mais afetivas permissivas frouxas do que nas práticas dos professores brancos Isso teria a ver com o perfil cativante do negro como atesta o autor 195 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 414 O texto foi transcrito respeitando a grafia do texto original 196 FREYRE Gilberto Idem op cit p 419 104 E felizes dos meninos que aprenderam a ler e a escrever com professores negros doces e bons Devem ter sofrido menos que os outros os alunos de padres frades professores pecuniários mestres régios estes uns ranzinzas terríveis sempre fugando rapé velhos caturras de sapato de fivela e vara e palmatória na mão197 Na narrativa freyriana brancos negros e índios se confraternizam a cultura popular irradia pureza e autenticidade as diferenças se harmonizam e os conflitos tendem a desaparecer mesmo quando tangencia a violência física o estupro e o racismo mas omite a garantia de privilégios às elites brancas através da manutenção de hierarquias raciais Na obra Casa Grande e Senzala Freyre realiza uma abordagem cultural de cunho folclorista percebendo a cultura afrobrasileira como um conjunto de tradições africanas que são reproduzidas no Brasil sendo por vezes adaptadas devido à condição da escravidão Seu conceito de cultura parece bastante moderno próximo do conceito que será trazido na historiografia brasileira anos mais tarde como veremos mais à frente mas no momento em que ele passa a querer aplicar esse conceito localizando os lugares objetos e práticas dessa cultura ele o faz a partir de bens materiais e de algumas práticas sem buscar compreendêlas pela ótica dos negros Assim sua análise se mostra superficial 3 Florestan Fernandes o marxismo e as perdas da cultura afrobrasileira O sociólogo Florestan Fernandes tornouse livre docente da Universidde de São Paulo USP em 1953 e em 1964 professor catedrático da mesma universidade Legitimado institucionalmente como intelectual Florestan Fernandes foi também militante político e um dos fundadores do PT Ele assumiu uma postura de esquerda voltandose à crítica social e governamental ao passo em que propunha um projeto de 197 Idem op cit p 505 Contudo observase que a prática cultural do negro na educação é uma prática que desfaz a lógica dura da racionalidade europeia na construção do conhecimento O que esperar por exemplo de um professor que deixe emergir mais as relações de afetividade no tratamento dos alunos do que a objetividade de seu trabalho como mestre Até que ponto essa representação do negro como professor em Freyre corresponde à leitura de um professor não autoritário e sim a um professor desprendido das obrigações do seu trabalho de ensinar Ainda assim o negro como um indivíduo recriador de práticas educativas é uma leve ponderação que poderia passar despercebida diante de uma maior evidenciação dos outros lugares simbólicos da cultura afrobrasileira que são plasmados como clássicos típicos autênticos na obra CasaGrande e Senzala culinária música sexualidade linguagem folclore 105 sociedade embasado nos ideais marxistas de igualdade e justiça Devido à sua postura de crítica política cinco anos após tornarse professor catedrático da USP ele foi aposentado compulsoriamente pelo regime militar que se instalara no país Regime político do qual se tornaria um dos críticos mais ferrenhos Sua ligação com a perspectiva marxista talvez possa ser considerada também por sua história de vida pois era um intelectual que ascendeu socialmente mas provinha de família humilde possuindo certa experiência enquanto cidadão brasileiro das classes baixas O marxismo lhe cabia bem tanto quanto visão política de mundo quanto como teoria científica que lhe legitimava intelectualmente198 O livro de Fernandes que analisamos é o clássico A integração do Negro na sociedade de classes199 A respeito desta obra o professor Antônio Guimarães explica Escrito originalmente como tese para o concurso de professor titular de sociologia da USP o livro é um ponto de encontro de muitos caminhos teóricos traçados por Florestan Fernandes até aquele ano e de passagem para uma reflexão madura e politicamente mais engajada sobre a sociedade brasileira200 Unindo suas pesquisas à sua militância política de esquerda à sociologia à historiografia de seu tempo Florestan já era em 1964 um intelectual consagrado Seu estudo clássico resultou de uma pesquisa encomendada pela Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura UNESCO a fim de entender cientificamente o contexto do Brasil enquanto celeiro da democracia racial no 198 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 199 Dividido em dois volumes 1 o legado da raça branca e 2 o limiar de uma nova era A obra A integração do negro na sociedade de classes foi escolhida por conter uma análise social bastante densa e abrangente cujo foco é exclusivamente a presença negra na sociedade brasileira onde o autor assume o caminho da pesquisa historiográfica para construir sua tese de análise das relações raciais no Brasil do período pósabolição Esta obra contém uma análise das considerações que o autor faz a respeito do universo cultural dos negros brasileiros São estas considerações de Florestan Fernandes sobre a cultura afrobrasileira que constituem o foco de nossa análise Para o professor Antônio Guimarães do departamento de Sociologia da USP que prefaciou a 5ª edição da obra em questão existem dois motivos que explicam o sucesso da obra de Florestan Fernandes a atualidade de suas discussões e a sua importância na construção de um campo intelectual disciplinar no Brasil Esses motivos também são considerados nesta dissertação para que se tome A integração do Negro na sociedade de classes como obra de referência a ser analisada De fato sua importância quanto à construção disciplinar metodológica e conceitual foi muito importante no Brasil dos anos 1960 já o argumento de atualidade da obra se torna mais delicado pois há um bom tempo se reconhece às limitações do trabalho de Fernandes para a epistéme científica atual Neste trabalho a atualidade da obra se torna importante enquanto necessidade de rever a noção de cultura afrobrasileira presente na obra 200 GUIMARÃES Antônio Sérgio Alfredo Prefácio à 5ª edição de FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 9 106 contexto pós Segunda Guerra Mundial e veio a denunciar um contexto brasileiro totalmente oposto ao que se imaginava quanto à igualdade de tratamento entre as diferentes raças constituintes do Brasil Ele chocou o mundo denunciando o caráter omisso e destruidor do racismo à brasileira 201 Ele escrevia num Brasil onde os centros urbanos possuíam grande importância econômica com o crescimento da industrialização e acirramento da ordem competitiva onde o Brasil aprofundava sua inserção na lógica do capitalismo tornandose mais dependente em relação às potencias estrangeiras favorecendo as classes interessadas no desenvolvimento interno202 Nos campos político e cultural havia um fervor de análises e proposições Para além de centros de administração das instancias governamentais do Estado Brasileiro os centros urbanos eram também o espaço de circulação das classes médias intelectualizadas onde se davam os principais debates sobre a moderna república brasileira e a reelaboração de critérios de cidadania nacional numa série de movimentos intelectuais que tentam resolver a equação incerta da república moderna defender o bem comum numa sociedade cuja prioridade é a realização de interesses privados203 Projetos alternativos inspirados por exemplo na cultura e na experiência 201 Após as duas grandes guerras mundiais que foram alimentadas entre outras razões pela ascensão dos regimes totalitários e pela legitimação das doutrinas raciais e do racismo científico o Brasil se tornou referência mundial de boa convivência entre as diferentes raças em vários aspectos sociais a cordialidade a valorização de diferentes raças e etnias biológicos a composição interétnica das famílias brasileiras e culturais o reconhecimento de matrizes culturais de diferentes raças na composição da cultura brasileira Essa interpretação otimista como vimos foi criada pelo discurso de Gilberto Freyre intelectual brasileiro que tinha grande força no exterior A UNESCO encomendou tal pesquisa a Fernandes a fim de projetar o Brasil para o mundo como exemplo de tolerância às diferenças e harmonização das relações raciais a ser seguido pelo mundo O trabalho de Fernandes no entanto feriu profundamente a premissa que originou a investigação mostrando que o racismo brasileiro era ainda mais violento e omisso do que se imaginava No período de sua pesquisa a UNESCO também publicava a coleção História Geral da África com 8 volumes Esta coleção foi requisitada pelos próprios intelectuais africanos dos países recémcriados durante o processo de descolonização da África Nos países do então terceiro mundo as ciências sociais sobretudo a história foram eleitas como campo legitimador de denuncias políticas econômicas e culturais O colonialismo e o racismo estavam na pauta das denuncias enquanto deveriam ser evidenciadas novas interpretações históricas das experiências vividas pelos povos negros 202 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 p 203 203 A historiadora Lúcia Falcão Barbosa estuda o contexto intelectual do Recife entre o final da década de 1950 e início de 1960 Embora o foco da autora seja o cotidiano e a cosmovisão dos intelectuais sobre a construção da cidadania e da nacionalidade brasileira a partir do Recife parecenos bastante pertinente estender esse raciocínio em nível nacional pois nesse período prégolpe além da perspectiva nacional desenvolvimentista dos anos 50 e o golpe militar de 1964 ano em que a obra A integração do negro na sociedade de classes foi publicada houve uma emersão de intelectuais com perfil esquerdista preocupados em repensar a nação propor um novo projeto de sociedade brasileira e decidir sobre o que a autora chama de resolver a equação incerta da república moderna defender o bem comum numa sociedade cuja prioridade é a realização de interesses privados num tom profético e vanguardista de forte vibração estética e política que inclusive chamou a atenção dos intelectuais do primeiro mundo Esse perfil não difere muito do perfil de Florestan Fernandes como viemos construindo até aqui BARBOSA Lúcia Falcão O castelo de Alecrim intelectuais no Recife em 21 de abril de 1960 Tese de 107 popular para reformular novos projetos de ação e formação do Estado brasileiro204 Contudo esse fervor foi resfriado pelo golpe militar de 1964 que instaurou uma ditadura Esse contexto contudo não fez os intelectuais silenciarem bruscamente José Carlos Reis afirma que a administração pública dos militares demonstrava uma retórica ineficiente que não conseguia esconder as crises financeiras e os desequilíbrios sociais mesmo em meio a toda censura e política de propaganda Dessa forma os intelectuais se tornavam cada vez mais céticos sobre as possibilidades de soluções nacionais dentro da ordem vigente principalmente quando se tornou mais influente a hegemonia stalinista no Partido Comunista Brasileiro205 A contraproposta de muitos intelectuais naquele momento era a revolução A consciência revolucionária tinha grande projeção no Brasil dos anos 1960 206 onde se vislumbravam em nível internacional as experiências históricas de esquerda como a revolução cubana e o guevarismo além da valorização da historiografia marxista Neste cenário Florestan Fernandes era também um autor que deu importância não só aos conflitos sociais brasileiros com foco nas relações raciais como também aos movimentos sociais negros que até então não tinham ganhado destaque de outro pesquisador Por esse motivo inclusive Fernandes se torna uma referência que legitima parte dos discursos dos movimentos negros numa relação de circulação negociação e apropriação de sentidos e dizeres Sobre a influência da obra A integração do negro na sociedade de classes Guimarães afirma Desde que foi publicado este livro se transformou em manual de formação política de jovens intelectuais de esquerda que ingressavam nas nossas universidades e que iriam nos anos 1970 revitalizar o movimento social negro e de redemocratização política207 Doutorado em História defendida na Universidade Federal de Pernambuco UFPE Centro de Filosofia e Ciências Humanas CFCH 2005 204 FREIRE Paulo Educação e atualidade brasileira São Paulo Cortez Instituto Paulo Freire 2002 205 BARBOSA Lúcia Falcão Idem Idem op cit p 35 206 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 p 183 207 GUIMARÃES Antônio Sérgio Alfredo Prefácio à 5ª edição de FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 19 108 Fernandes se propôs a evidenciar de forma crítica a figura do cidadão negro no Brasil situandoos no curso dos conflitos que formam e reformam o Estado e a nacionalidade brasileira o cotidiano e as relações interpessoais e institucionais Destarte a obra assume uma proposta que é de se estudar a sociologia e a história para que se possa refletir criticamente e posicionarse politicamente diante das interpretações falaciosas que defendem a ideia de harmonia integração e igualdade nas vivências cotidianas de nossas relações raciais Portanto o foco é a denúncia do mito da democracia racial um slogan carregado de ideologia política de manutenção de uma ordem classista e branca É justamente essa proposta interpretativa e ativista que será apropriada pelo Movimento Negro no Brasil no final dos anos 1970208 Para Fernandes o que considerava como o mito da democracia racial era uma ideologia dominante que consistia em tornar o que eram desigualdades embasadas no critério raça tão próprias da ordem racial escravocrata como desigualdades de classes sociais dentro da lógica da ordem competitiva tão própria do capitalismo industrial Isso consistia numa manipulação ideológica num erro conceitual Para o autor os negros estariam excluídos das esferas do poder no espaço público não só por serem pobres mas também por serem negros Aliás os pobres ele constatou através de estatísticas presentes no seu livro são negros em maioria quantitativa E são pobres por várias explicações históricas porque foram escravos por que foram libertados e não receberam apoio do Estado Brasileiro para dignificarem suas vidas porque tinha dificuldades de serem aceitos como trabalhadores livres já que competiam com os imigrantes europeus e porque enfrentavam o racismo no cotidiano do trabalho livre e assalariado Dessa maneira a condição dos negros no Brasil não se explicava só por critérios de classes sociais mas a localização numa classe social menos abastada era justificada pelo pertencimento a uma raça específica ou seja o tempo todo ao longo da história do Brasil os negros são empurrados para a pobreza No Brasil a condição de raça precederia a condição de classe Para Fernandes a passagem da sociedade escravista para a de ordem competitiva foi marcada por mais uma quebra da ordem democrática A crítica do autor é direcionada a uma burguesia branca que não reconhece 208 Contudo como já foi adiantado no capítulo anterior após as calorosas divergências entre culturalistas e políticos dentro do MNU a postura que foi predominante adotada posteriormente foi uma seleção de temas e argumentos presentes na tese de Fernandes Se os militantes abraçaram a denúncia científica do racismo enquanto forma de pensamento predominante no Brasil não o fizeram quanto à discussão política de Fernandes referentes à cultura afrobrasileira Veremos logo mais o porquê disto 109 a diferença racial a não ser quando é de seu interesse e que é contrária aos movimentos sociais negros Do ponto de vista metodológico Fernandes investiga como a ordem social dialoga com a ordem econômica ao longo do tempo onde se observava a permanência de um jogo de reprodução ideológica e política que evidenciava a historicidade das contradições contemporâneas da sociedade brasileira que ele mesmo caracteriza como racista Esse método de investigação conhecido depois como históricoestrutural foi o que marcou o perfil do que foi chamado posteriormente de escola paulista de sociologia209 Em A integração do Negro na sociedade de classes ele busca construir uma metodologia de ciência experimental que comprove sua narrativa histórica através da análise de vasta documentação histórica e dados estatísticos de entrevistas conversas em grupo e de levantamento bibliográfico sobre o tema Ele adotou uma técnica explicativa a que chamou de reiterativa pois almejava reiterar reconstruir em sua totalidade a realidade da sociedade da qual falava É nesse sentido também que o autor se localiza estrategicamente no seu texto como um cientista preocupado com a permanência do racismo numa sociedade que se modernizava De acordo com o autor Em sentido literal a análise desenvolvida é um estudo de como o Povo emerge na história Tratase de um assunto inexplorado ou mal explorado pelos cientistas sociais brasileiros E nos aventuramos a ele por intermédio do negro e do mulato porque foi esse contingente da população nacional que teve o pior ponto de partida para a integração ao regime social que se formou ao longo da desagregação da ordem social escravocrata e senhorial e do desenvolvimento posterior do capitalismo no Brasil210 O autor queria entender como é que os exescravos conseguiriam se adaptar a um novo status no contexto republicano onde seriam cidadãos numa sociedade assumidamente hierarquizada Para isso embora seguisse uma forte inclinação marxista o autor buscava articular também a teoria estruturalfuncionalista da sociologia e psicologia social usando os conceitos de dinâmica social Mannheim de anomia 209 GUIMARÃES GUIMARÃES Antônio Sérgio Alfredo Prefácio à 5ª edição de FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 210 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 21 110 Durkheim e a dialética de Marx211 Seu desejo era que suas análises permitissem o conhecimento aspectos psicodinâmicos e sóciodinâmicos de mobilização dos homens pobres para ingressar na ordem competitiva Mas a leitura da obra nos faz perceber uma questão interessante Embora o autor busque a cientificidade para legitimar os seus argumentos sobre o racismo na sociedade brasileira como um homem de seu tempo numa sociedade que reinventa as diversas formas e práticas de racismo ele mesmo imerso numa ideologia que discrimina o lugar do negro acaba por depreciar e destituílo de inteligência e ação política pois o autor parte de estereótipos negativos acerca do negro e sua cultura A esse respeito o historiador George Andrews afirma que indubitavelmente existe nos argumentos de Florestan Fernandes algo de senso comum da sua época que sugere a culpabilização da vítima212 Em Fernandes o perfil do personagem negro já aparece liberto no período pós abolição sendo destituído de inteligência e autonomia Incapaz de lidar ou administrar o seu próprio destino O liberto se viu convertido sumária e abruptamente em senhor de si mesmo tornandose responsável por seus dependentes embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva 213 O cenário em que esse personagem negro aparece é o mesmo cenário do autor o cenário urbano a cidade de São Paulo que aparecia como o primeiro centro urbano especificamente burguês 214 Um cenário onde desde o final do século XIX com o projeto de branqueamento social no Brasil e a vinda de imigrantes europeus para concretizar esse objetivo os negros eram excluídos das novas possibilidades do mercado de trabalho que era ocupado pelos novos brancos do país Já em 1893 ele constata conforme o censo que 72 dos trabalhadores da cidade de São Paulo eram 211 GUIMARÃES GUIMARÃES Antônio Sérgio Alfredo Prefácio à 5ª edição de FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 212 ANDREWS George Negros e Brancos em São Paulo 18881988 Bauru EDUSC 1998 É nesse sentido que Said afirma categoricamente que não existe imparcialidade dos cientistas quando selecionam seus temas de estudo Os intelectuais partem de estereótipos construídos em torno de seus objetos para poder analisálos Quando se trata de estudos voltados a analisar identidades sociais fica evidente a associação existente entre ciência e política em que as práticas de uma servem para legitimar as práticas da outra Mesmo almejando construir um estudo crítico que servisse de fomento à libertação do negro inconscientemente o estudo de Fernandes atualizava e legitimava discursivamente as hierarquias sociais e garantia o status quo de uma sociedade de privilégios para os cidadãos nãonegros Este aspecto desenvolvese sobretudo quando o autor opõe participação política e práticas culturais negras SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 213 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 29 214 Idem op cit p 34 111 estrangeiros Por conseguinte o negro fora empurrado para as tarefas mais desprestigiadas e mal pagas no Brasil Desenvolvendo o seu argumento o sociólogo pondera que em termos de ocupação da estrutura sociopolítica e econômica do Brasil os brancos brasileiros ocupavam lugar de centralidade na vida política e intelectual do país ao passo que os brancos estrangeiros imigrantes exerceriam funções técnicas e de prestação de serviços em outros setores econômicos em posições estratégicas sempre tendo a possibilidade de riquezas prestígio e poder enquanto os negros e mulatos estariam nos piores lugares de trabalho Os negros estariam presos a um lugar do qual não conseguiriam alcançar a mobilidade social e essa condição lhes gerou uma angústia e um desespero que apenas lhes deixaram poucas escolhas Sobre isso afirma o autor Diante do negro e do mulato se abrem duas escolhas irremediáveis sem alternativas Vedado o caminho de classificação econômica e social pela proletarização restava lhes aceitar a incorporação gradual à escória do operariado urbano em crescimento ou abater penosamente procurando no ócio dissimulado na vagabundagem sistemática ou na criminalidade fortuita meios para salvar as aparências e a dignidade de homem livre215 Aqui o autor começa a articular o ócio a vagabundagem e a criminalidade à situação de pobreza da população negra como possibilidades incertas de reconstruir a própria dignidade É sob o teto destes três princípios que se efetivará a cultura afro brasileira a festa a música a dança a bebida etc são associados aos momentos de lazer dos cidadãos negros que não têm o que fazer Àqueles que não optam pelo crime optam pela cultura como válvula de escape Neste sentido mesmo criticando a ordem produtiva capitalista Fernandes reafirma através de palavras carregadas de valores moralistas o princípio do trabalho e da produção Não trabalhar é ser ocioso e vagabundo Típico argumento burguês O autor chega a indicar que uma parte significativa desta exclusão do negro ao mercado de trabalho na ordem competitiva se devia também ao próprio negro ou melhor às deficiências do negro A recusa de certas tarefas e serviços a inconstância na freqüência ao trabalho o fascínio por ocupações real ou 215 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 44 Grifos nossos 112 aparentemente nobilitantes a tendência a alternar períodos de trabalho regular com fases mais ou menos longas de ócio a indisciplina agressiva contra o controle direto e a supervisão organizada a ausência de incentivos para competir individualmente com os colegas e para fazer do trabalho assalariado uma fonte de independência econômica essas e outras deficiências do negro e do mulato se entrosavam à complexa situação humana com que se defrontavam no regime de trabalho livre Nesta linha de raciocínio Florestan Fernandes vai tecendo um perfil do negro brasileiro após a abolição alienado rústico hostil atrasado vadio explorado ocioso viciado imoral É um trabalhador livre sem cidadania plena Alguém que porta uma cultura de ócio e alienação com a qual não consegue adaptarse bem à ordem competitiva Suas heranças culturais de rebeldia e fluidez para o trabalho proveniente de sua situação no sistema escravista não permitem que ele se torne um bom trabalhador livre que adquira uma mentalidade e os comportamentos requeridos pelo novo estilo de vida burguês que surgia em São Paulo Por isso é que o negro não seria bem aceito no mercado de trabalho tornandose excluído e enquanto excluído ele se tornara um viciado um imoral um criminoso num eterno ciclo de vitimização e culpa Por trás dessa concepção Fernandes está reafirmando a noção de que a cultura afrobrasileira é atrasada Quando pensa a história do Brasil Fernandes considera as elites brancas os fazendeiros comerciantes e imigrantes brancos como sujeitos históricos tomando os negros apenas como seres sujeitados alguém a quem não foi dada condições de ser ativo na construção da história216 Seu argumento é que com o advento da república e o crescimento acelerado dos centros urbanos as instituições foram reformadas e adaptadas ao trabalho livre e às leis do mercado dentro de uma lógica que beneficiava as elites e a empresa agrária preservando visões de mundo estilos de vida e propriedade patrimonial fortemente enraizada no perfil de uma sociedade colonial de estamentos Neste sentido os negros não teriam chances de ascender socialmente Para eles na quase totalidade a sociedade de classe permanecia não igualitária e fechada217 216 Florestan Fernandes desconsidera a participação de negros no próprio processo abolicionista Para ele os negros estavam tão confinados à exclusão social que não conseguiam intervir em relações políticas sejam quais fossem 217 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 62 Grifos do autor 113 Refletindo sobre o contexto de produção de Florestan Fernandes o historiador Robert Slenes218 no momento em que a industrialização brasileira crescia e o país desejava maior autonomia nos centros econômicos e políticos hegemônicos como forma de modernização do Estado era importante denunciar a submissão de um país ao outro de uma categoria social a outra Contudo a perspectiva marxista intensificou seu olhar sobre o escravismo numa perspectiva de total vitimização marginalização e destituição de suas potências criativas por um sistema econômico violento e traumático De acordo com Fernandes O trabalho escravo nunca irá além do seu ponto de partida o esforço físico constrangido não educará o indivíduo não o preparará para um plano de vida humana mais elevado Não lhe acrescentará elementos morais e pelo contrário degradáloá eliminando mesmo nele o conteúdo cultural que por ventura tivesse trazido do seu estado primitivo Em síntese a escola da escravidão não formou apenas o agente do trabalho escravo deformouo219 Essa declaração parecenos bastante emblemática por uma série de significações que podemos analisar Em uma primeira inferência se percebe o quanto para o autor a instituição da escravidão deteriorou a humanidade dos negros deformandoo imoralizandoo consumindoo por dentro Ela não permite que o escravo saia de seu estado cultural primitivo como ele bem expressa selvagem atrasado para alcançar um plano de vida mais elevado mais consciente culto e digno dentro dos parâmetros ocidentais ao qual o autor se vincula Nesta lógica argumentativa a escravidão corrompera o acervo cultural africano de uma forma tão profunda e duradoura que esse impacto se estendera para a vida cotidiana dos negros livres O negro é mais uma vez caracterizado por um déficit pela falta Falta de liberdade de inteligência de cultura de poder político etc Ele não participara de forma ativa consciente politizada nem da abolição da escravatura nem da revolução burguesa Para Slenes a grande autoridade intelectual nesse campo discursivo de explicação marxista foi de fato Florestan Fernandes um autor para quem os negros estavam destituídos de seu acervo cultural Ele ainda situa os negros em condições sociais anômicas perdidos uns para com os outros desprovidos de laços de interdependência responsabilidade e 218 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 219 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 68 114 solidariedade portanto sem possuir uma vontade política comum Seria por esses motivos que para Fernandes os negros não tiveram um papel importante na dita Revolução Burguesa do Brasil Os negros são citados como incapazes não inteligentes desanimados como se sofressem de um banzo eterno onde sua cultura foi destruída Essa é uma das implicações políticas da representação do negro e sua cultura na narrativa histórica de Florestan Fernandes desqualificar os negros enquanto agentes históricos apagálos da participação política na construção do país Não porque o autor desejasse conscientemente fazer isso mas por discriminálo como alguém incapaz de estar nessa participação por sua condição carente e traumática Essa visão da Escola Sociológica Paulista embora buscando legitimidade cada vez mais na sua base científica continuava marcada por estereótipos racistas220 Ora para Fernandes se é que havia alguma cultura negra no pósabolição alguma tradição africana que houvesse conseguido sobreviver às intempéries da vida no cativeiro haveria de ser uma cultura tão empobrecida tão embrutecida tão desorganizada alienada e fragmentária que não possuiria uma lógica própria Sob a aparência da liberdade os negros e mulatos herdaram a pior servidão que é a do homem que se considera livre entregue de mãos atadas à ignorância à miséria à degradação social Perdidos uns para com os outros no estreito e sombrio mundo social que puderam recriar para si sob a escravidão não compartilhavam dos laços de interdependência de responsabilidade e de solidariedade que integram fortemente os homens nos pequenos ou nos grandes agrupamentos sociais221 A cultura negra seria mísera e desarticulada Ela não aglutinaria os membros de uma comunidade ou agrupamento social negro Ela não seria um instrumento de integração e vontade política Para o autor quando a escravidão foi abolida os negros sabiam que não queriam mais continuar sendo tratado como escravos mas não sabiam o que fazer para evitar isso Carentes de reflexão inteligência senso crítico e vontade política carentes de um sistema linguístico afetivo solidário e de significação do mundo A cultura negra aparece na narrativa de forma indireta apenas como práticas lúdicas ou vícios imoralidades alienação através das quais os negros continuam se 220 ANDREWS George Negros e Brancos em São Paulo 18881988 Bauru EDUSC 1998 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 221 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 76 115 perdendo na história política para entrar nos apêndices de histórias da cultura brasileira de forma pitoresca como um estrangeiro na própria terra que é lembrado de forma espetacularizada através de fragmentos coloridos de um folclore estereotipado No Brasil que se modernizava a partir dos centros urbanos alçandose ao status de civilização e progresso só cabia a exclusão e a invisibilidade à cultura afro brasileira pois esta estaria no rol da cultura popular das práticas de tradição das possíveis marcas de uma ruralidade de um passado colonial rústico primitivo inculto pueril Foi nesse campo de significação que para Fernandes as práticas culturais dos negros foram expurgadas dos centros urbanos ditos civilizados Motivo de retrocesso e vergonha para o estilo de vida burguês a cultura afrobrasileira teria sido empurrada para as periferias das cidades e para o interior dos estados brasileiros onde teriam sido invisibilizadas Assim a modernização do espaço urbano não favoreceu a persistência da cultura negra que poderia servir como meio de associativismo negro Embrutecidos e perdidos uns para com os outros os negros e mulatos não perpetuavam cultura Ao contrário perdiamna Até neste sentido o sujeito histórico da narrativa é o homem branco É ele quem faz tudo ocupa lugar de poder exerce maior saber possui cultura mais elevada organizada e intencional É o branco quem inclusive destrói a cultura negra no raciocínio de Fernandes O exemplo dado pelo autor é o do nascimento da macumba uma prática religiosa descaracterizada e ridicularizada pela ação do branco A macumba seria uma prática religiosa brasileira e não africana porque inclusive perdera a pureza das tradições africanas222 Isso só foi possível porque os negros não conseguiram se organizar para protegerse e proteger sua cultura Não possuindo autonomia social para se associar através de valores culturais próprios de cunho autenticamente sagrado e tradicional a população negra perdeu a possibilidade de zelar pela pureza de seus cultos e acabou assistindo à perversão da macumba pelo branco223 222 Neste sentido como vimos Florestan reforça por outros caminhos interpretativos o argumento de Nina Rodrigues de que a pureza das práticas religiosas africanas foi corrompida pelas interações religiosas com outras matrizes étnicas No entanto vale ressaltar este não é o único ponto em que Fernandes reforça os estereótipos desclassificatórios de Nina Rodrigues pois ambos caracterizam a cultura afrobrasileira como atrasada rustica primitiva folclórica 223 FERNANDES Idem op cit p 86 Destaques do autor 116 Dessa maneira o negro entrega passivamente a sua cultura à ação deteriorante do branco Isso ocasionou a perda de oportunidades de congregação e reorganização social e política o apagamento dessa memória cultural rústica do centro urbano o isolamento econômico social e cultural do negro Esse homem negro esse homem rústico é projetado visivelmente na descrição de Fernandes como um ser caipira analfabeto mal vestido desprotegido paupérrimo Uma pessoa que se entrega à ociosidade à vadiagem à imoralidade e à desmoralização Que segundo o estereótipo racista do branco e aqui o autor busca afastarse discursivamente dessa concepção são desclassificadas como vagabundos cachaceiros desordeiros e mulheres àtoa Seres que através de suas bebidas festas danças vestimentas e aglomerações etc224 perturbavam e ameaçavam o decoro a propriedade e a segurança dos burgueses Talvez esses valores invertidos é que tenham aglutinado os negros A cultura negra recebe o rótulo de cultura popular e passa a ser evidenciada de forma a recriar espetáculos que não resolvem o problema da exclusão social do negro mas apenas o aprofundam225 Os estudiosos Peter Fry e Carlos Vogt226 chamam esta fase dos estudos afro brasileiros na qual Florestan Fernandes se enquadra de fase sociológica Nela já não mais interessa entender se o Brasil está no mesmo compasso ou não em relação às outras nações e sim a dialética entre universal e o particular em que se poderiam trilhar os caminhos para os países subdesenvolvidos A tônica agora seria estruturar as classes sociais no Brasil considerando a história particular dos negros como escravos e depois como trabalhadores livres marcados no país pelo sistema de preconceito de cor Ao romantismo da fase precedente substituise então um realismo de inspiração sociológica de fundo social e de aspiração socialista227 Atualmente as pesquisas em diversas ciências sociais assim como o desenvolvimento dos movimentos negros também já mostraram que várias teses 224 O autor não cita objetivamente as práticas culturais típicas dos negros assim como Nina Rodrigues e Gilberto Freyre mas de forma indireta ele nos propõe inferências que indicam onde ele localiza a cultura afrobrasileira a música as festas as danças etc Nesse sentido ele não se afasta dos autores já analisados neste trabalho apenas indica os mesmos lugares da cultura as mesmas práticas mas agora atribuindo lhes um sentido de lástima pela perda política e exclusão social do negro Como uma camisa de força essa cultura prende negros e mulatos deteriorandoos à medida em que também se deteriora 225 Nesse ponto Fernandes faz uma crítica contundente aos cientistas sociais africanistas que se apoiando em referenciais como Nina Rodrigues e Gilberto Freyre por exemplo realizavam esse tipo de abordagem folclorista e espetacularizada e relegavam à crítica à exclusão social do negro 226 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 227 Idem op cit p 35 117 defendidas no livro de Fernandes são controversas228 Na leitura feita percebemos que o autor analisa e julga o passado dos negros por um olhar ainda branco ou seja um olhar que não entende a lógica própria do universo cultural negro porque quer entender as macroestruturas sociais políticas e econômicas Desta forma seu livro clássico apela para uma interpretação pessimista quanto à identidade cultural negra Uma interpretação que desperta rancor pela exclusão social do negro ao passo que o evidencia como um incapaz legitimando um enredo trágico de uma revolução burguesa inacabada e de uma proletarização sem virtudes 229 É por isso que o MNU não toma a tese de Fernandes como legítima quando o movimento quer construir teoricamente o conceito de cultura afrobrasileira num primeiro momento enquanto crítica a permanência do racismo do branco em relação ao negro perpetuado pelo Estado brasileiro a obra parece ser conveniente mas quando passa a estabelecer e não compreender um perfil mental negro uma desclassificação valorativa e conceitual da cultura afrobrasileira Fernandes é julgado pelo MNU como um autor estrangeiro Tratase de um branco falando da cultura negra por uma ótica externa Seria um branco que faz parte ainda de um problema epistêmico e não da solução Como vimos no capítulo anterior em vários documentos o MNU brasileiro ponderou que não era a favor de uma segregação racial entre negros e brancos Os cidadãos não negros que desejassem criar caminhos para a reconstrução de uma tão sonhada democracia do Estado brasileiro seriam bem aceitos tanto é que como veremos no capítulo a seguir intelectuais brancos foram grandes parceiros do MNU na reconstrução epistêmica não só do conceito de cultura afrobrasileira como na elaboração e efetivação de propostas oficiais de reparação do governo brasileiro perante a população negra Porém isso não foi possível ainda com Florestan Fernandes uma vez que as lentes deste autor não permitiam compreender de forma mais profunda a mentalidade a experiência e a cultura afrobrasileira Seus referenciais teóricos só lhes possibilitaram chegar até determinados caminhos da análise social Não era aquela noção que o MNU queria associada a sua identidade aquela noção que trata o negro 228 O autor esteve sensível a este ponto de fragilidade de sua obra inclusive pelas condições de produção da investigação e produção textual em que esteve inserido A esse respeito ele assume que Esse desequilíbrio inesperado na realização do programa de trabalho que nos havíamos imposto faz com que esse estudo contenha provavelmente lacunas e defeitos que poderiam ser eliminados em outras circunstâncias FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 21 229 GUIMARÃES GUIMARÃES Antônio Sérgio Alfredo Prefácio à 5ª edição de FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 13 118 como coitadinho não só pelo seu passado mas também pela sua condição presente e talvez ainda futura por muito tempo de irracionalidade e impotência política Não foi objetivo neste capítulo discutir todos os intelectuais que neste vasto recorte temporal falaram da cultura afrobrasileira Escolhemos aqui como já dissemos na introdução os intelectuais que inauguraram paradigmas interpretativos da cultura afrobrasileira Vários outros autores que escreveram neste intervalo de tempo e até alguns que estudam ainda hoje se apoiam teoricamente nas noções de cultura afro brasileira forjadas por esses intelectuais de referência Como vimos embora tenham surgidos caminhos teóricometodológicos distintos o ponto de partida e chegada dessas interpretações são as mesmas incompreensões os mesmos estereótipos a irracionalidade folclórica a pobreza conceitual a impotência política a inferioridade vitimização e culpabilidade da própria cultura afrobrasileira que é sempre selecionada organizada descrita analisada e desclassificada pelo olhar externo ao negro o olhar estrangeiro embranquecido no sentido de ocidentalizado modernizado e cristianizado que não consegue perceber a existência de outros sentidos e possibilidades de organização ação e existência Ora se era contra essa tradição de pensamento que vinha se opor o MNU a partir dos anos 197080 que outro projeto poderia ser proposto para reconfigurar essa episteme não só da afrodescendência mas também do Estado brasileiro frente à reorganização do nacional No próximo capítulo analisaremos os conteúdos e formas equacionadas para dar conta desse propósito Encontraremos discursividades em movimento elencando não só palavras mas sons gestos e cores numa profusão de princípios éticos e estéticos políticos e culturais onde intelectuais de vários lugares sociais contribuem para a construção de um projeto maior 119 CAPÍTULO 3 A CULTURA AFROBRASILIERA VISTA POR DENTRO A HISTORIOGRAFIA O ENSINO DE HISTÓRIA E O NOVO COMPROMISSO POLÍTICO DO ESTADO BRASILEIRO 120 Unidos e organizados porém farão de sua debilidade força transformadora com que poderão recriar o mundo tornandoo mais humano230 Novas discursividades na construção do conceito de cultura afrobrasileira a narrativa histórica como instrumento assumidamente político Março de 1978 Voltamos ao contexto da Ditadura Militar no Brasil Um grupo de jornalistas chega à região de Sorocaba no interior de São Paulo no bairro rural do Cafundó A comunidade era composta de negros descendentes de exescravos Os jornalistas lançavam por si só um olhar de admiração e exotismo por aqueles que pareciam estrangeiros embora fossem brasileiros Na mídia os moradores do Cafundó eram apresentados na mídia como africanos descendentes de africanos exescravos que guardavam uma língua estranha herdada da África e da escravidão Entre admirações e repulsas a inquietação e debates ferrenhos Foi a inquietação curiosa acerca da ênfase na defesa de uma pureza de tradições africanas no Brasil que despertou o interesse de vários investigadores muitos dos quais foram à comunidade Entre os intelectuais que queriam comprovar de fato a existência de uma língua africana pura e os que duvidavam da existência dessa língua havia um pressuposto comum a de que o capitalismo desenraiza todas as culturas que não condizem com sua lógica de desenvolvimento Assim a pureza cultural do Cafundó não era possível numa sociedade capitalista a não ser que estivesse extremamente isolada desta Essa argumentação como vimos foi elaborada por Florestan Fernandes nos anos 1960 O que este micro acontecimento tem a ver com a Ditadura Militar especificamente Ora já se sabe que o golpe de 1964 consolidouse no poder esmagando as guerrilhas urbanas através de suas forças de repressão No entanto outro aspecto que deve ser ressaltado é que os modelos explicativos universais começam a ser questionados tanto o humanismo de direita ou o liberalismo quanto o humanismo de esquerda ou o comunismo Justamente nas entrelinhas do universalismo reaparecem as preocupações com o indivíduo com os micros universos com os pequenos grupos e categorias sociais as chamadas minorias231 No compasso de todos esses eventos a 230 FREIRE Paulo Pedagogia do Oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 2005 p 165 231 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p 36 121 ciência e a cultura brasileira passaram por um fenômeno mais amplo de reconhecimento e valorização dos conteúdos formas e experiências que parecessem alternativos232 Embora fosse um período de censura e repressão surgiram no Brasil alguns movimentos sociais a exemplo do Movimento Negro Unificado MNU que foi fundado na cidade de São Paulo em 07 de julho de 1978 três meses após a descoberta do Cafundó pela mídia A repercussão de Cafundó fez emergir vários sujeitos grupos e instituições com propósitos bem diferentes Na PUC São Paulo Abdias do Nascimento233 lança o Instituto de Pesquisa e Estudos AfroBrasileiros Ipeafro e incluiu o Cafundó no seu projeto de pesquisa sobre os Quilombos Contemporâneos Segundo Fry e Vogt também o Clube 28 de setembro234 o MNU os pesquisadores os jornalistas e os advogados voltados à causa negra buscavam não só prestar assistência ao Cafundó mas também a partir dessa assistência se auto fortalecerem social e politicamente com base no espírito assistencial de suas ações Esse fato revelou diversas disputas políticas tanto entre alguns movimentos sociais como também diversas políticas teóricas entre diversos intelectuais na academia Foi durante o período da Ditadura CivilMilitar que os pesquisadores Carlos Vogt e Peter Fry conheceram a comunidade rural de Cafundó com a qual desenvolveram uma investigação de cerca de dez anos 1978 a 1988 Além deles também participaram dessa pesquisa o linguista Maurício Gnerre e o historiador Robert Slenes Estes pesquisadores reconhecem a força e a legitimidade dos movimentos negros a exemplo de outros movimentos sociais nos ganhos políticos para as categorias as quais representam Para eles os ganhos políticos na legislação brasileira devemse aos movimentos presentes no cenário nacional que manifestam enfaticamente o ponto de vista teórico ideológico e militante de intelectuais e de organizações na defesa da etnicidade como um valor de si mesmo235 Desta maneira consideraram legítimo a aproximação com o nascente MNU 232 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 233 Como vimos no capítulo 1 Abdias do Nascimento foi um dos principais líderes do Teatro Experimental Negro TEN Além de escritor e dramaturgo Abdias foi também Professor Enquanto um dos principais militantes negros do século XX agia nos campos intelectuais e políticos do MNU em nível nacional chegando a ser parlamentar 234 Associação Negra existente em São Paulo nos período da pesquisa 235 Esta perspectiva aproximase da caracterização dos movimentos sociais no Brasil do século XX feita pelo sociólogo Arim Soares do Bem para quem a importância histórica desses movimentos consiste não somente no fato de que eles revelam tensões e conflitos sociais mas também no fato de que as categorias reivindicatórias de direitos também elaboram propostas de soluções possíveis para o que exigem buscando a institucionalização jurídicolegal das conquistas ampliando e universalizando o campo formal do direito para todo conjunto da sociedade criando novos contextos históricos BEM Arim Soares do A 122 Num e noutro caso obedecíamos ao mesmo impulso ideológico a crença de que o Cafundó era um símbolo de resistência negra cujo alcance político ainda que legitimasse nosso trabalho acadêmico o ultrapassava Era inconcebível para nós brancos que somos que esse símbolo não fosse incorporado na luta mais ampla dos movimentos negros236 Os autores em questão explicam que assumiram um compromisso político para com a comunidade a fim de que sua pesquisa não trouxesse benefícios apenas para eles mesmos enquanto intelectuais mas também para os próprios moradores do Cafundó enquanto sujeitos participantes do estudo A pesquisa em história se propôs a investigar e contribuir para a confirmação da posse da terra da comunidade que naquele momento era uma afirmação bastante contestada Após o denso trabalho cruzando depoimentos orais com inventários e testamentos nos cartórios do interior de São Paulo foi constatada a real posse de oitenta alqueires das terras do Cafundó pelos seus habitantes descendentes de exescravos que haviam recebido a terra como herança de seus senhores Intelectuais e representantes da comunidade do Cafundó conseguiram pressionar o governo ao ponto de garantir o reconhecimento a relegalização de suas terras A história rendeu tantos debates e reportagens que pressionou o reconhecimento público do Estado brasileiro para com a diversidade étnica que o compõe em suas especificidades e o compromisso em garantir os direitos básicos para a autogestão de uma vida digna no grupo Em 1990 ocorreu o tombamento do Cafundó enquanto comunidade negra com posse legal das terras momento em que também essa comunidade foi consagrada como símbolo para as lutas do MNU Neste sentido a ação desses diversos sujeitos e instituições possibilitaram através da participação da comunidade do Cafundó um ganho político para essa mesma comunidade O que mais nos importa desta história é o fato de que nesse contexto de múltiplos interesses e significações Peter Fry Carlos Vot Robert Slenes e Maurício Gnerre se posicionam política e intelectualmente quanto à tradição acadêmica de pensamento que havia se estabelecido sobre a cultura afrobrasilera Estes intelectuais propuseram a revisão do conceito de cultura afrobrasileira criticando sua historicidade centralidade dos movimentos sociais na articulação entre Estado e a sociedade brasileira nos séculos XIX e XX Disponível em wwwcedesunicampbr Acesso em 10062010 236 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p 18 123 revelando novas experiências históricas onde essa cultura possa ser evidenciada de forma diferente Promoviase uma série de esforços intelectuais para compreender de forma mais interna e profunda os significantes e significados que criam e recriam a lógica dessa complexa cultura afrobrasileira Para isso os autores propõem não só a crítica dos referenciais antigos como também a seleção de novos referencias nos campos da antropologia da linguística e da história De que forma isto assume a forma de narrativa histórica Veremos a seguir através da análise do livro Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade237 1 Peter Fry e Carlos Vogt a dinâmica cultural e a cultura afrobrasileira repensada Fry e Vogt assim como seus colaboradores assumem posturas intelectuais mais transparentes frente a sua proposta de trabalho ao tema aos sujeitos participantes à academia e à sociedade brasileira Discursivamente eles se localizam estrategicamente numa fase de transição epistemológica e política onde não só o Estado deve ser repensando como também a ciência e as identidades sociais e culturais Dessa forma eles assumem uma parcialidade em favor da história negra ao passo que se colocam dentro da experiência estudada e não fora como os intelectuais que vínhamos estudando até aqui De acordo com os autores O relato que aqui será feito é o de um narrador cientista que interessado em relativizar o comportamento do outro se descobre ele próprio relativizado diante desse comportamento Um relato cujo narrador em terceira pessoa dá lugar a um narrador em primeira pessoa isto é a um narrador personagem238 A experiência investigativa pela qual passaram os fez revisitar os estudos canônicos feitos até aquele momento sobre a cultura afrobrasileira Dessa maneira os autores pontuam duas tradições de abordagem científica dos africanismos reinventados 237 Esse livro foi escolhido pelo fato de inaugurar uma nova perspectiva de se entender a cultura afro brasileira através do paradigma que os autores chamam de históricoestrutural em que como o próprio termo sugere a dimensão histórica ocupa um lugar privilegiado para se entender a cultura Foi esse livro também que possibilitou à historiografia da escravidão no Brasil dar saltos qualitativos na sua produção investigativa sobre os complexos processos de formação da cultura afrobrasileira 238 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996p 20 124 no Brasil que merecem destaque a primeira seria a filológica ou historicizante e a segunda seria a históricoestrutural A primeira se preocupa em evidenciar as origens continuidades e similaridades entre práticas culturais no Brasil e na África E têm uma perspectiva folclorista que promove uma espécie de genealogia cultural evidenciando aspectos da cultura africana no Brasil que os próprios brasileiros não têm consciência Nesse sentido a cultura afrobrasileira emerge como pitoresca e cristalizada desconsiderando o dinamismo dos processos históricos que fazem com que os traços sociais e culturais acabem sobrevivendo e sendo readaptados mudando de sentidos e significações A cultura afrobrasileira seria atemporal cristalizada mera reprodução mecânica de atividades exóticas Os sujeitos que a fazem seriam destituídos de inteligência e criatividade pois apenas reproduzem mecanicamente as atividades herdadas dos seus antepassados sem adequálas aos novos contextos Nina Rodrigues e Gilberto Freyre são exemplos dessa abordagem filológica e folclorista que consistia num método comparativo entre Brasil e África privilegiando as línguas religião e folclore Tal abordagem corresponde à fase de estudos afrobrasileiros a que Fry e Vogt chamam de romântica A segunda perspectiva a históricoestrutural na qual os autores se inserem considera que a vida social não incide em combates campais entre culturas opressoras e culturas que romanticamente resistem mas entre grupos categorias e sujeitos para quem a cultura orienta a ação política e é ao mesmo tempo uma arma usada para empreendêla Aqui os autores estão pensando a política no plano micro como relações de poder que se estabelecem no cotidiano Nessas pequenas e grandes batalhas do diaa dia a cultura vive e revive através daqueles que a usam transformandoos e transformandose É desse ponto de vista que eles estudam a língua africana do Cafundó enquanto prática cultural viva dinâmica ressignificada e ressignificante e como ação política Essa linguagem específica é entendida como eixo estruturador da vida em sociedade cujo significado político e social é dado pelo contexto das relações onde tem existência Temos portanto uma abordagem lingüísticoantropológica O grande debate sobre reprodução versus transformação cultural agora passa a ser abordado à luz de um estudo das relações sociais concretas nas quais esses traços culturais se articulam Privilegia a natureza política e econômica das relações entre os articuladores dos africanismos e a sociedade envolvente Pensase a cultura afro brasileira apontandoa em várias direções Esses autores estão nas décadas de 70 e 80 propondo um novo paradigma interpretativo para a cultura afrobrasileira 125 A primeira perspectiva pontuada referenda a desqualificação e exclusão dos negros na história e cultura nacional a segunda propõe uma compensação da cidadania negra através de novos mecanismos de análise e conhecimento em que a cultura consiste um campo privilegiado da ação política Na pesquisa em questão essa lógica da compensação é percebida no interior das relações sociais da prática cultural da Cupópia ou Falange nomes que designam a língua falada no Cafundó assim os autores comentam Tudo se passa como se por uma espécie de mecanismo compensatório fosse criado um espaço mítico no interior da situação de degradação econômica e social característica da história das populações negras do Brasil espaço no qual seria possível uma como que renovação ritual de certa identidade perdida239 Este fato remodela as relações sociais dentro do grupo e deste com o conjunto da sociedade Tal perspectiva analítica possibilita compreender como a sobrevivência de certos traços culturais de origem africana até o presente se tornam um elemento compensatório um importante eixo estruturador da construção de identidades e relações sociais numa sociedade marcada pela exclusão do negro Do ponto de vista metodológico a pesquisa foi iniciada com o recolhimento de relatos orais onde foi dada grande importância à memória dos cafundoenses Após verificarem que existiam vários pontos convergentes e outros divergentes nas narrativas sobre a origem da comunidade os pesquisadores partiram para os arquivos e cartórios da região Através de um rigoroso levantamento de fontes dados e cruzamentos de informações através de documentos legais como mapas e inventários constataram a propriedade de terras da comunidade para os escravos e seus descendentes como marco de origem da comunidade e de suas relações sociais e culturais Constataram também vários processos de grilagem dessas mesmas terras pelos fazendeiros vizinhos Um processo violento marcado por brigas e mortes Para os autores as representações presentes nos relatos dos informantes embora sugestivas não mereciam muita confiança em consequência da ausência de dados complementares de outras fontes Neste sentido as outras fontes buscadas permitiram a reconstituição da história da comunidade desde o século XVIII Os autores procuraram 239 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p 26 126 situar esses aspectos de experiência histórica da comunidade do Cafundó dentro do cotidiano da escravidão especificamente no interior de uma política de domínio senhorial amplamente difundida na região muitos senhores daquela região deixavam suas terras para os seus escravos Contudo este tipo de relação estava longe de caracterizar as relações entre senhores e escravos como relações harmoniosas como na proposta de Gilberto Freyre Do contrário Fry e Vogt enfatizam a existência de uma política de dominação senhorial presente nessas doações que só aconteciam quando os senhores não possuíam descendentes diretos para deixar as terras como posse Quando a recebiam os escravos não podiam arrendálas vendêlas ou doálas Isso fazia com que os escravos permanecessem de certa forma presos às terras que se tornavam extensões da posse dos antigos senhores através dos escravos Nos inventários analisados o testador sempre procurava limitar o direito dos donatários de dispor da propriedade Os escravos e também os seus descendentes libertos eram vistos como infantis incapazes de cuidarem de si O incentivo a formação de famílias entre os próprios escravos também fazia parte da política senhorial de dominação visando tornar esses escravos mais dependentes240 Foi assim que os autores puderam por exemplo situar o caráter de comunidade organizada a partir da ideia de parentesco do cafundó no século XVIII um momento histórico que antecede em muito a doação de terras e à fixação do grupo no local atual Através do estudo da genealogia das famílias que compunham a comunidade do Cafundó à época da pesquisa os autores verificaram que um grande traço definidor da comunidade negra era a estabilidade familiar essa estabilidade definia a estrutura social e cultural através das normas familiares e comunitárias que possuíam grande relevância A partir desse dado os autores refutam a ideia de família devassa instável anômala e patológica socialmente veiculada por uma historiografia culturalista como a de Freyre241 Enfim essa perspectiva já redireciona nosso entendimento quanto à noção de cultura Aqui estão sendo enfatizados outros aspectos culturais como a linguagem a 240 O que não quer dizer que os arranjos familiares sejam unicamente decorrentes dessa política de dominação senhorial pois explicam os autores os escravos sempre interpretavam a sua condição dentro dos contextos e viram a união matrimonial como possibilidade de ganhos materiais e simbólicos por isso também costumavam casarse Porém não é fácil chegar a essas conclusões há que se ler os documentos nas entrelinhas de forma conjuntural Todas essas informações são importantes para se compreender o contexto em que tem sentido a língua chamada de cupópia ou falange 241 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p 26 127 constituição de famílias e a organização social embasada na ideia de parentesco Os autores também atentam para a organização espacial da comunidade242 que se apresentava de forma circular onde de um lado desse círculo se colocava uma parentela Almeida Caetano e de outro lado outra parentela Pires Cardoso Naquele contexto havia uma série de leituras e significações dos fazendeiros e outras comunidades vizinhas ao Cafundó referentes aos Almeida Caetano Devido à suas práticas culturais eles eram referidos como praticantes da falange ou cupópia vagabundos embrulhões de emprego esporádico sem aliança com o poder local e católicos que exerciam práticas de cultos afrobrasileiros Já os Pires Cardoso eram tidos como trabalhadores honestos que não falam a falange e têm alianças com o poder local possuem empregos regulares e são evangélicos Percebese que são representações que tomam como pontos de partida alguns símbolos de uma estereotipada ancestralidade africana o fato de falar ou não a cupópia de praticar ou não cultos afrobrasileiros de não lidar de forma digna com o trabalho de serem vagabundos e embrulhões243 242 É importante ressaltar que os autores não desconsideram outras práticas culturais como afro brasileiras a exemplo das danças músicas candomblé festas jogos etc Esses que se tornaram lugares clássicos da cultura afrobrasileira no discurso oficial e por conseguinte no senso comum do entendimento brasileiro A partir deste momento a noção de cultura afrobrasileira e suas práticas de dança música gastronomia e candomblés são aqui interpretadas de forma diferente não como elementos de pura herança africana que compõe o folclore brasileiro nem como práticas de alienação mas como práticas que inscrevem sentidos memórias identidades solidariedades e relações de poder Nas palavras dos autores Nesse aparente paradoxo é que reside talvez o papel social mais importante dessa língua africana do Cafundó Esse papel em outras circunstâncias pode ser manifestado através de outros recursos culturais como por exemplo dança música gestos corporais representações dramáticas etc enfim recursos que integram inúmeras manifestações culturais de origem africana no Brasil Pensamos nos candomblés nos congos e moçambiques na capoeira nos afoxés etc VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p120 243 Aqui esse conjunto de representações está nitidamente associado ao mundo social que circunda a comunidade do Cafundó no entanto vimos essa mesma espécie de raciocínio está presente na obra de Florestan Fernandes o que comprova a forte presença de estereótipos racistas em sua interpretação oriundas desse contexto em São Paulo que pensa a cultura afrobrasileira enquanto popular rústica atrasada alienação e depreciação a partir da qual os negros herdaram da escravidão à má vontade quanto ao exercício do trabalho preferindo a vagabundagem A diferença argumentativa é que as pessoas comuns usavam esse discurso para acusar condenar e justificar a exclusão do negro culpablizandoo já Florestan usa essa marca discursiva para vitimizar os negros e não condenálos Quanto à adjetivação de vagabundos para os Almeida Caetano depois de recolher relatos orais e investigar mais informações os pesquisadores constataram que o que parecia ser somente vagabundagem era na verdade uma estratégia pela sobrevivência pois os Almeida Caetano estavam ameaçados de morte caso saíssem das terras Era por isso que eles preferiam trabalhar nas próprias terras para o próprio sustento ao invés de buscarem trabalho nas fazendas vizinhas contrariando a ideologia trabalhista Assim o que antes era compreendido como vagabundagem passou a ser analisado de forma mais detalhada e virou estratégia de sobrevivência frente às ameaças de morte Nesse trânsito discursivo Fry e Vogt construíram outras marcas discursivas ressignificando a experiência e a identidade negra 128 No decorrer da pesquisa os autores começaram a enxergar outras possibilidades interpretativas e passaram a construir um novo perfil para esses sujeitos negros da comunidade Por exemplo analisando o mestre Otávio 64 anos líder da parentela Almeida Caetano os pesquisadores caracterizamno como um homem trabalhador festeiro cantador e contador de histórias poeta e tocador de sanfona estimado por muita gente Otávio era um homem que anteriormente bebia muito até que deixou de beber como ele mesmo narra por conta própria mas não perdeu a empolgação pelas festas músicas e danças Era um homem de muitas vaidades Um homem muito cordial que exercia grande poder de liderança local embora não estivesse nada próximo do protótipo de um herói negro como por exemplo Zumbi dos Palmares Mas todos os contatos entre a comunidade e o que vem de fora dela passam por ele na medida em que mantém coeso um grupo de parentes que dadas as condições históricas das suas relações sociais poderiam e até mesmo deveriam estar espalhados Para os autores este homem negro não era um alienado pois em seus relatos ele deixou muito claro a sua consciência de liderança atribuindo boa parte dela ao seu destro uso da língua africana Conforme os autores a identidade de Otávio é marcada por contradições entre a fanfarronice e a consciência de que é preciso defender as suas coisas e parentes e lutar por direitos Este homem é transformado num novo modelo de compreensão dos negros Constróise mais um símbolo de negritude num herói comum que age politicamente no cotidiano Agora a ciência diz que o negro é um sujeito histórico Ele é organizado consciente e dotado de ação política Aspectos apenas visíveis quando se parte para uma pesquisa que busque compreender a cultura no cotidiano mediando conflitos Esse novo universo descritivo foi construído a partir das múltiplas atividades do mestre Caetano o trabalho na terra e na criação de animais o trabalho de rezador e benzedor na comunidade o grande afeto e ironia que marcam as suas atitudes Assim os autores fazem uma operação simbólica que inverte as identidades das parentelas cafundoenses Pois aquelas classificações são mais de natureza estratégica do que de ordem estrutural Assim poderíamos ver os Almeida Caetano como muito mais autônomos politicamente embora mais fracos economicamente enquanto que os Pires Cardoso são mais fortes economicamente e menos autônomos politicamente É nesse jogo de poder entre a própria comunidade e entre esta e o restante da sociedade que a língua afrobrasileira da cupópia é interpretada como uma prática 129 cultural viva enquanto prática discursiva da qual só os iniciados podem negociar sentidos Ela estabelece uma etnicidade já que assumir a fala dessa língua é assumir uma negritude uma ascendência africana244 Uma vez que a identidade é uma construção social as identidades culturais afrobrasileiras não se realizam pelo isolamento de grupos ou comunidades afrodescendentes mas pelo seu envolvimento com a sociedade como um todo e seu reconhecimento por esta Destarte a cupópia ingressa no discurso como prática legitimadora da identidade grupal cujos ancestrais são africanos exescravos e da luta política do grupo pela posse das terras No cotidiano da pesquisa verificouse que a cupópia é uma prática cultural afro brasileira restrita a poucos falantes sendo utilizada no diaadia da comunidade sempre que alguém acha necessário trocar informações sem que todos em volta entendam o que dizem Assim a cupópia é uma prática cultural que pertence à esfera do cotidiano245 amigos que dividem a conta num bar para conservarse da vergonha de falta de dinheiro por exemplo empregados que excluem a participação do chefe num diálogo a linguagem como código secreto que permite a inversão social da relação dominadores x dominados ou em casos em que um patrão não aprecie o trabalho de um empregado A grande questão é que essa língua africana é diacrítica ou seja ela exerce um papel de diferenciação social entre os grupos A falange constitui uma forma de estabelecer solidariedades e alianças entre seus falantes e os habitantes de cidades vizinhas e os representantes do poder distante Ela exerce mais do que uma função referencial ou cognitiva Ela dá forma às relações de poder no cotidiano da vida social A cupópia cria uma espécie de renovação ritual da identidade ancestral africana dando aos cafundoenses um senso de origem comum que compensa simbolicamente as relações sociais dos habitantes Situações que remetem à política de trabalho e sobrevivência concreta do grupo Como se opera então essa língua chamada de cupópia ou falange Tratase de uma língua africana ou afrobrasileira Embora as palavras sejam de léxicos africanos 244 A falange ou cupópia é uma língua africana não só porque boa parte do seu léxico vem de línguas como quimbundo umbundo e quicongo mas também porque ao falála os habitantes do cafundó representam a si mesmos como africanos Essa significação alude não apenas à origem etimológica do vocabulário mas as estratégias políticas de atribuição de sentido para uma identidade social com vistas a determinados interesses 245 Ao contrário do que vimos nas abordagens anteriores onde a cultura afrobrasileira é concebida dentro de eventos de interrupção do cotidiano realizada somente em datas e momentos especiais festivos ou religiosos por exemplo por isso é que se diz que na abordagem folclorista a cultura afrobrasileira é espetacularizada 130 a estrutura sintática que a organiza são da língua portuguesa Embora seja uma língua que apresente um léxico limitado 140 palavras ao todo o sistema da falange é dinâmico criando múltiplas significações para uma mesma palavra a depender do contexto em que se dá o diálogo o discurso Tratase portanto de uma língua viva e muito complexa que produz sentidos em contextos sociais específicos e que para muitos observadores desatentos não passa de uma língua confusa e pouco inteligente Fry e Vogt pensam a linguagem como um complexo sistema de construção de conceitos e significação do mundo a partir de cosmovisões que estão relacionadas com as estruturas sociais e culturais do Cafundó Dentro dessa cosmovisão há um dinamismo no sentido das palavras em contextos específicos em que a fala e as significações da cupópia assumem interesses específicos É o que os autores chamam de um paradigma das finalidades A partir dessa noção os autores analisam discursos situações conversacionais entre os falantes da cupópia a fim de entender como essa linguagem se expande e significa relações sociais a partir de conceitos Nas palavras dos autores Dizer que esse diálogo não tem lógica é cometer um abuso de etnocentrismo A lógica cartesiana das combinações sintáticas etc o diálogo não tem mas ao mesmo tempo revela uma lógica de associações paradigmáticas uma certa solidariedade vertical se assim pudermos dizer que uma vez aceitas permitem entender e acompanhar o fio fragmentado de suas significações246 Pensando epistemologicamente a noção de cultura afrobrasileira enquanto possuidora de matrizes originarias de África Fry e Vogt redirecionam o nosso olhar a matriz cultural banto Uma matriz que parece pouco visível quando se pensa em cultura afrobrasileira já que muitos dos símbolos clássicos dessa cultura aludem ao universo yorubá como no caso dos orixás247 Os autores sugerem então uma maior influência de línguas bantos na origem da falange o que não quer dizer que necessariamente os 246 Assim sendo existe uma lógica muito própria nessa forma de linguagem que escapa àqueles pesquisadores imersos em preconceitos culturais e raciais VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p 171172 247 Como vimos no capítulo 2 esta noção de que a ancestralidade típica ou pelo menos mais aceitável da África no Brasil é de origem sudanesa foi forjada por Nina Rodrigues Não negamos a participação de povos originários da África Ocidental na formação da cultura afrobrasileira mas problematizamos a redução desta cultura apenas à matriz jêjeiorubá e a displicência com os vários povos bantos Como vimos esta noção criada por Nina Rodrigues partia do pressuposto de que os bantos fossem inferiores aos sudaneses 131 ancestrais da comunidade tenham vindo de regiões onde se falavam essas línguas Fray e Vogt dão grande importância às culturas bantos enquanto matriz da cultura afro brasileira mas chegam a concordar com o esquema explicativo de Nina Rodrigues de uma separação grosso modo de dois troncos lingüísticos de origem africana no Brasil o yorubá para a Bahia e Maranhão e o Banto para o sul do país e Pernambuco248 A falange não é uma reprodução fiel das línguas africanas mas um conjunto de rearranjos brasileiros dessas línguas Dessa forma essas práticas culturais são africanas quanto à sua origem histórica mas são também brasileiras contemporâneas quanto à sua significação do mundo a partir das relações sociais concretas atuais Desse modo os africanismos linguísticos no Brasil antes de indicarem um caminho de procedência exclusiva indicam sobretudo a construção ideológica de uma África miticamente homogênea e por mais fantástica que possa parecer brasileira249 A cupópia portanto não é simplesmente uma língua africana nem tão somente brasileira Pela série de rearranjos que passa num complexo contexto de relações de poder em que a cultura media forças no cotidiano a cupópia ou falange deve ser melhor compreendida como prática cultura afrobrasileira É impossível notar sua ancestralidade africana da mesma forma que é impossível notar seu dinamismo dentro da realidade brasileira A cultura afrobrasileira em Fry e Vogt está em outros lugares simbólicos na prática de linguagem na organização espacial na construção de identidades políticas na formação de famílias Desenhase discursivamente uma nova cartografia cultural da cultura afrobrasileira que é portanto um conjunto de práticas vivas que assumem diversas formas e significados por diferentes sujeitos em contextos diferentes mas são sempre práticas que mediam relações de força Este paradigma ganha ainda mais legitimidade com os estudos do historiador Robert Slenes 248 É importante notar a complexidade de argumentos dos estudiosos e aqui mais uma vez resgatamos a noção de interdiscursividade das continuidades de um discurso em outros uma vez que os sentidos do discurso estão sempre abertos e negociados de acordo com os interesses dos falantes em contextos específicos Ora embora em muitos aspectos Fry e Vogt discordem de Nina Rodrigues eles não conseguem fugir de seu esquema explicativo básico simplista e dualista a respeito da classificação dos africanos entre bantos e sudaneses 249 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p 188 132 2 Robert Slenes a história cultural e a cultura afrobrasileira vista por dentro O historiador norteamericano Robert Slenes veio para o Brasil durante a década de 1970 e sua trajetória intelectual demonstra um percurso de inquietações buscas e reinterpretações provocadoras Pelo número de artigos livros resenhas entrevistas palestras e comentários verificase que a comunidade acadêmica brasileira reconhece a importância científica desse intelectual dedicado à história da escravidão no império brasileiro O livro publicado pelo autor que se tornou um clássico no Brasil recebe o título de Na Senzala uma flor250 O ponto de partida para tal estudo foi a busca de aprofundar os seus estudos de doutorado feito em 1976 na Stanford University partindo de uma historiografia demográfica e econômica sobre a escravidão no Brasil da segunda metade do século XIX Nesse estudo surgiu sua primeira contraposição à historiografia existente até então que afirmava ser a família escrava uma instituição vulnerável Freyre e Fernandes Do contrário Slenes percebeu em suas fontes que a família havia se tornado uma instituição muito viável para os escravos que percebendo isso mobilizaram forças estratégias e afetividades para construir suas famílias Como o próprio autor narra num primeiro momento ele preferiu analisar as famílias escravas como instrumento de dominação e exploração por parte dos senhores o que ele mesmo chamou de política de dominação senhorial termo que utilizou no texto do livro Cafundó Só posteriormente quando percebeu a mudança paradigmática que a historiografia norte americana vinha dando à autonomia escrava é que Slenes voltou à questão da família escrava para tentar compreender os significados dessa instituição dentro da perspectiva dos próprios africanos escravizados ou seja dentro de uma perspectiva afrocentrada Para chegar a essa compreensão era necessário reconstruir um acervo de fontes qualitativas e uma metodologia de pesquisa viável O historiador recorreu a algumas 250 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 O livro resulta de uma longa trajetória de pesquisas e publicações sobre a história da historiografia da escravidão no Brasil demografia dos escravos no interior paulista o cotidiano escravista no império brasileiro as relações políticas entre brancos e negros e a cultura afrobrasileira O livro denota um momento de maturidade intelectual do autor pois são discussões conceitos métodos e fontes revisitadas de um trabalho de mais de vinte anos reunindo em quatro capítulos textos que marcam uma nova discursividade sobre a história a cultura e a identidade negra no Brasil É por isso que esse foi o livro escolhido para se analisar o conceito de cultura afrobrasileira na narrativa histórica de Robert Slenes Aqui se trata da concretização de mudança paradigmática no campo da historiografia propriamente dita 133 fontes que já havia usado no doutorado entretanto somando ao acervo pesquisado a inventários postmortem e processos de crimes b listas de avaliação e de matrícula c cartas de alforria assentamentos de batismo e casamento d anúncios de escravos fugidos e processos criminais e cíveis nos arquivos dos municípios de CampinasSP e VassourasRJ e relatos de cronistas sobre as famílias de escravos e a vida no cativeiro das grandes lavouras do sudeste produzidos no século XIX e f estudos etnográficos sobre a África Central produzidos entre os séculos XVI e XIX por colonizadores europeus Sua metodologia de ligação nominal entre diversas fontes permitiulhe perseguir e acompanhar a trajetória histórica de diversos sujeitos escravizados e fazendo uma análise crítica dessas fontes lendo nas entrelinhas o autor começou a perceber aquilo que a princípio descartava a possibilidade de articular bases materiais e simbólicas e compreender como os africanos escravizados articulavam suas heranças culturais para interpretar suas experiências históricas no Brasil O seu principal referencial teórico foi EP Thompson a partir do qual Slenes entendeu que o sentimento de pertencimento a um grupo social por parte dos sujeitos históricos estudados no caso os escravos africanos e seus descendentes era crucial para entender sua história Contudo apesar do embasamento na teoria thompsiana Slenes afirma que só começou a se interessar pelas questões culturais quando participou de outra pesquisa sobre a qual já nos referimos nessa dissertação assim se expressou o autor Na verdade foi meu envolvimento em outro projeto a partir de 1978 que me levou a refletir de forma mais sistemática sobre questões de cunho cultural Refirome à pesquisa que fiz sobre a história no bairro rural negro de Cafundó na região de Sorocaba junto com Carlos Vogt e Peter Fry251 A partir de tal pesquisa Slenes voltouse aos debates conceituais sobre cultura Ao estudar a experiência histórica linguística e cultural da cupópia o historiador interessouse em acessar bibliografias específicas sobre línguas nativas antropologia e história da África Central anteriormente chamada genericamente de África banto A partir de então Slenes debruçouse sobre fontes que lhe revelassem formas de comunicação nas senzalas atos de rebeldia escrava e as formas de religiosidade Buscou 251 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p 15 134 documentos e temas através dos quais assim pressupunha aflorariam mais informações sobre o universo cultural dos negros Assim nos anos 1980 estava posta no campo acadêmico da História uma nova perspectiva e novo foco elementos que exigiam novas fontes e métodos de análise Uma questão de ordem epistemológica e operacional se colocava que fontes consultar se os escravos nas grandes lavouras não dispunham nem razoavelmente de momentos para registrar suas memórias ou expectativas e interpretar sua experiência histórica Para o autor a solução foi tentar perceber alguns elementos da vida material e simbólica dos escravos nos relatos dos cronistas e viajantes brasileiros e estrangeiros que falaram um pouco do cotidiano escravo nas lavouras do sudeste durante o século XIX ainda que tratassem a formação de famílias e lares negros de forma depreciativa Foi necessário ler nas entrelinhas dos discursos dos cronistas literatos viajantes e cientistas brancos que à sua época não compreendiam ou achavam impossível a existência de uma lógica própria dos negros Além dessa análise atenta minuciosa e crítica complementouse a leitura comparativa de toda a literatura antropológica linguística e histórica referente à África Central a qual o autor teve acesso Estrategicamente Slenes se define no seu texto como um revisionista conceitual um historiador com novo perfil científico Declara que o objetivo do seu livro é resgatar a capacidade de os escravos constituírem famílias de vários formatos conjugais extensas e integracionais além de reconhecerlhes as ações de assistência entre si na construção de projetos em comum Essa perspectiva teria resultados não só intelectuais mas também políticos como bem atesta o autor Mapear esses caminhos ajuda a definir as preocupações deste livro Revela alguns dos paradigmas ou modelos explicativos que mais têm informado a bibliografia internacional nas ciências sociais Ilumina as diferentes estratégias usadas para denunciar o racismo e a herança social do escravismo E indica também certas mudanças na postura dos historiadores perante suas fontes252 Como viemos demonstrando nesta dissertação durante muito tempo a tradição brasileira de estudos africanistas ou afrobrasileiros partiu de premissas racistas a partir 252 SLENES Robert Idem op cit p 28 135 das quais o negro sempre foi pensado como inferior como alguém caracterizado pela falta pela carência e pela grosseria de seus conteúdos e formas culturais Nesta concepção eurocêntrica a cultura afrobrasileira era vista descrita analisada e desclassificada pelas linhas mais superficiais de sua existência Muitos dos símbolos culturais não eram compreendidos dentro do universo cultural negro porque os investigadores brancos não estavam dispostos a compreender a lógica própria daqueles que mesmo na condição de escravos não deixavam de ser sujeitos históricos Aliás os investigadores brancos nem acreditavam que houvesse uma lógica própria dos escravos negros seres de pouca inteligência mas sim uma lógica imposta a eles pelos senhores brancos estes que seriam inteligentes Dessa forma muitas das práticas negras foram interpretadas como primitivas limitadas ou reduzidas fossem pelas condições biológicas e culturais dos negros fossem pelas condições sociais e históricas da escravidão Em uma ou outra abordagem a cultura negra foi vista como uma contribuição e não como uma participação ativa e ativadora da nacionalidade brasileira Uma presença exótica talvez admirável mas que nunca deveria ser apropriada ou tida como significativa na construção de nossa civilidade moderna crítica racionalista Foi nessa concepção que surgiu uma cartografia cultural afrobrasileira ou sendo mais claro os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira a dança a música a culinária a encenação os contos populares o candomblé a linguagem fragmentada o vocabulário exótico a capoeira e outras práticas esportivas a sexualidade natural ou pior permissiva etc como únicas possibilidades culturais dos negros e ainda assim no dizer do branco essas seriam práticas culturais inferiores Não se pensava o negro produzindo símbolos e práticas culturais no campo dos conceitos e ideias no campo da linguagem como complexo sistema de significação do mundo ou no campo da política Não se pensava que havia dignidade dessas práticas a partir de outros valores culturais que pudessem ser importantes Em nossa sociedade ocidental que elegeu as atividades intelectuais como padrão cultural elevado e prestigiado atribuir aos afrobrasileiros apenas os fazeres mecânicos da cultura pode ser encarado como a permanência de práticas discriminatórias a partir da invenção e legitimação científica do critério racial que reduz as potencialidades negras e consequentemente de seu prestígio social e de suas lutas políticas A estratégia adotada pelo historiador Robert Slenes é a de entender a cultura como formada por conceitos ideias símbolos práticas e relações que partem de uma 136 cosmovisão autônoma e têm uma lógica própria Segundo o autor a cultura é reatualizada a partir das múltiplas experiências de ação e reflexão em diferentes contextos históricos São princípios norteados por uma concepção da cultura como inteligência fruto de complexas e dinâmicas operações mentais às quais dizem também respeito à história dos povos negros Com isso o autor se posicionou politicamente não só contra uma historiografia clássica e de certa forma conservadora mas também contra um conjunto de representações que vinham alimentando um conjunto de relações de poder que por sua vez nutriam a desigualdade social a partir do critério racial Por conseguinte o discurso de Slenes dialoga muito com diversos movimentos negros do Brasil e com isso ele foi mais um dos que conseguiram contemplar no plano acadêmico muitas das demandas de significação dos movimentos sociais negros253 Seu raciocínio propõe que a os africanos mesmo na condição subalterna de escravos não deixaram de ser sujeitos históricos b todos os africanos escravizados possuíam uma lógica própria de significação de sua experiência histórica e cultural articulando cotidianamente memórias e expectativas futuras logo os significados culturais desses símbolos e práticas contemplam não só dimensões conceituais linguísticas e históricas mas sobretudo políticas Ao contrário do que dizem os clássicos do pensamento social brasileiro o negro é não somente um ser constituído de inteligência e construtor de seus valores como também um ser consciente analítico e político A partir dessa concepção é que o autor amplia nossa cartografia cultural afrobrasileira indicando novos lugares simbólicos de cultura a linguagem os conceitos e ideias a política a afetividade a arquitetura a ciência254 253 Afirmamos que Slenes foi mais um pelo fato de reconhecermos que haviam outros intelectuais brancos e vários intelectuais negros empenhados na mesma causa e agindo no plano acadêmico a partir de suas diversas formações acadêmicas 254 No sentido de uma ciência natural sabedoria ou forma de produção de conhecimento legitima para os africanos e seus descendentes mas que segue uma lógica distinta da ciência moderna ocidental Essa discussão é bem parecida com a que vimos em Fry e Vogt como vimos é desde sua participação nas discussões com esses intelectuais que o Slenes vem pensando o conceito de cultura para pensar epistemologicamente as práticas afrobrasileiras Da mesma forma é importante dizer que Slenes não desconsidera práticas culturais como a dança a música as línguas e a culinária africana Para ele ainda hoje pouco sabemos realmente sobre tais práticas porque elas não foram bem interpretadas pelos olhares brancos Nas palavras do autor um dos aspectos mais visíveis da cultura negra no Brasil as danças escravas de origem africana foram descritas como alegrias grosseiras sujas voluptuosidades febres libertinas p139 sendo vistas mais como produtos deteriorados pela escravidão do que como manifestações culturais Para esses observadores brancos a cultura africana não punha limites civilizatórios nos comportamentos humanos Nesta argumentação Slenes acusa existirem preconceitos raciais e culturais É preciso compreender essas práticas dentro de uma cosmovisão afrobrasileira dentro de sua lógica própria de significação construção de identidades e mediadoras de relações de poder e conflitos políticos 137 Essa interpretação que chega ao Brasil tem grande influência da mudança epistemológica ocorrida nos EUA a partir dos anos 1960 quando ocorre um estreitamento entre a academia e o movimento social negro na busca de construir uma nova explicação científica para a experiência negra nos Estados Unidos Lá o atento movimento negro criticava os cientistas culturalistas por construírem vários estereótipos negativos sobre as condições históricas e culturais dos negros Essas discussões racistas preocupadas excessivamente com aspectos culturais deveriam mudar o foco em direção às políticas sociais Estas a partir de agora seriam o foco da construção da cidadania negra naquele país como o acesso à educação ao trabalho e a outros serviços do Estado em detrimento de uma discussão de cunho folclórico e festivo De outro lado explica Slenes o movimento negro americano também era contrário às interpretações de vitimização de seu povo questionando a noção de que a cultura negra pudesse ser alienante255 Dois autores se destacaram nesse movimento epistêmico internacional Eugene Genovese e Herbert Gutman O primeiro enfatizando a autonomia total dos escravos em relação aos senhores o segundo evidenciando a interdependência entre os dois Contudo a premissa básica de que partiam os dois autores era a de que os africanos escravos não estavam despojados de cultura ou culturalmente sem raízes Genovese e Gutman estão situados num paradigma historiográfico onde as classes subalternas ocupam a centralidade da investigação e da narrativa assim como na obra de EP Thompson Sobre isso afirma o autor As pesquisas mais inovadoras caracterizavamse com frequência crescente por um novo enfoque sobre as pessoas subalternas especialmente operários e escravos vistos agora como ativamente engajados com sua experiência refletindo sobre ela à luz de sua cultura e no processo reelaborando essa cultura e tecendo estratégias de aliança e oposição no encontro com outros agentes históricos256 255 Como vimos no primeiro capítulo houve uma forte influencia das leituras de textos acerca do pensamento dos movimentos negros americanos pelos militantes do MNU Inferimos que estas leituras também influenciaram nas críticas e seleções dos argumentos do MNU brasileiro em relação à tradição de pensamento que era atualizada na historiografia nacional acerca da cultura afrobrasileira desta maneira fica tornase compreensível não só as críticas as abordagens folcloristas como as de Nina Rodrigues e Gilberto Freyre mas também às abordagens fatalistas como as de Florestan Fernandes 256 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p 39 138 Conforme Slenes esse movimento foi de interesse nas culturas subalternas que levou muitos historiadores a reavaliarem o legado cultural africano a partir das senzalas Nesse sentido além de Thompson Genovese e Gutman outros referenciais fundamentais foram Sideny Mintz e Richard Prince Autores que afirmavam ser necessário captar a lógica dos escravos portadores de uma herança cultural em comum apesar de suas diferenças etnolinguísticas frente às situações específicas de contato entre si com seus senhores e com outras pessoas livres ou libertas257 Essa é a tese que embasa os trabalhos de Slenes É tentando enxergar a cultura afrobrasileira por dentro buscando entender a sua lógica própria que ele investiga e escreve258 Dessas influências e percepções é que surge a concepção de cultura defendida por Slenes as tradições culturais africanas transportadas ao Brasil foram adequadas ao contexto da escravidão o que fez com que os escravos interpretassem suas experiências históricas articulando suas memórias de práticas culturais e vivências africanas às suas expectativas futuras quanto à sua sobrevivência em meio às agruras da vida no cativeiro buscando sempre lutar contra sua opressão e construir um cotidiano cada vez mais humano para si a partir de referenciais culturais O objetivo do livro Na senzala uma flor está em tornar mais complexa a história do escravismo percebendoo como instituição na qual interagiram múltiplos sujeitos o que se de um lado evidencia a organização e relativa autonomia dos escravos não erradica por outro a dureza da vida no cativeiro Buscase reconstruir a visão dos vencidos entrar na cabeça dos escravos conhecer suas armas simbólicas e suas possibilidades de ativar e coordenar essas armas entre si259 pensase o cotidiano como espaço de formação de estratégias de enfrentamento e adaptação ao escravismo 257 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p 40 258 Essa mudança conceitual proveio de uma movimentação intelectual ocorrida no Brasil já próximo ao fim do regime militar Tratavase de uma discussão que se posicionava como progressista assumindo lutas contra uma historiografia conservadora e racista que legitimava um estatuto de ciência alicerçada no etnocentrismo de uma elite intelectual branca que direciona abordagens temas fontes e tratamentos metodológicos ideologizados corroborando na interpretação negativa do negro e sua cultura e com isso excluindoos da narrativa história significativa e do acesso aos lugares privilegiados de saber e poder Segundo Slenes a força de ideias préconcebidas e estereótipos sobre os negros seu cotidiano e sua cultura não permitia que os cientistas brancos entendessem o universo escravo e estamos falando aqui não apenas de uma brancura em nível de cor de pele mas sim de uma brancura de cosmovisão judaico cristã moderna ocidental capitalista etc Isso porque havia uma imagem deturpada do negro que era produzida por um racismo extremado e do qual seria muito raro escapar A lente distorcida do branco ou o que o autor chama de olhar branco era utilizada de forma comprometedora para tentar enxergar a cultura do negro 259 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p 133 139 Dessa forma o autor problematiza não somente as propostas de política senhorial mas também propostas de política de resistência escrava formando um debate sobre as possibilidades de ação de múltiplos sujeitos sociais que segundo Slenes esteve ausente da análise da maioria das obras historiográficas clássicas no Brasil Realidade epistemológica que de acordo com o autor agora estaria mudando Para outros povos inclusive para outras comunidades escravas os historiadores recentemente têm resgatado tradições populares contestatórias herdadas reformuladas inventadas e com isso têm reintroduzido a política em suas análises tornando a história novamente um processo indefinido com desfechos sempre imprevistos260 Assim é que Slenes propõe que compreendamos as práticas culturais afro brasileiras a partir de conceitos e ideias formulados dentro da lógica e da cosmovisão afrobrasileira que articula memórias de tradições africanas à experiência de cativeiro e às expectativas de negociação e ganhos para a vida material e espiritual Uma das primeiras propostas do autor é compreender que os negros da África Central compreendem e explicam sua forma básica de organização social a partir do conceito de ancestralidade ou de linhagem Importante conceito que orienta a ação dos escravos na formação de suas famílias na experiência dos cativeiros nas fazendas do século XIX Para Slenes a família escrava é um lugar simbólico da cultura afrobrasileira pois ela possibilitou a formação de um sentimento de pertencimento a uma comunidade negra que mesmo dividida pela política de incentivos dos senhores minava as chances de total dominação devido ao compartilhamento de experiências memórias e valores criando boas oportunidades de enfrentamento cotidiano por mais que parecesse o contrário A família escrava era um projeto de vida um campo de batalha um dos principais palcos onde se travavam lutas entre escravos e senhores na busca para definir a própria estrutura e destino da escravidão A família foi uma das mais importantes instituições culturais que contribuiram para a formação de uma identidade nas senzalas 260 Idem op cit p 115 Assim ao fomentar a reinterpretação conceitual da cultura afrobrasileira Slenes defende que as práticas da cultura popular de procedência negra não consistem em práticas de alienação mas sim em práticas que ressignificam as lutas políticas dos populares negros Quais seriam por exemplo os sentidos políticos e contextuais de uma manifestação cultural como os afoxés 140 conscientemente antagônica à dos senhores e compartilhada por um grande número de cativos A família é importante para a transmissão e reinterpretação da cultura e da experiência entre as gerações261 Ela é um espaço de formação de uniões solidariedades e memória histórica próprias A partir dessa noção de família escrava é que o autor busca compreender os significados culturais e sociais que a instituição familiar adquirira historicamente para os escravos a partir de vários elementos como a arquitetura e o domínio do espaço doméstico o controle do fogo no interior das senzalas o acesso ao cultivo da terra em beneficio próprio a organização e perfil de sua economia doméstica sua fraqueza e sua força perante as políticas senhoriais Como então reconhecer as heranças culturais e as instituições próprias dos africanos escravizados Para Slenes o historiador poderá conhecer o universo simbólico dos escravos no Brasil a partir do momento em que começar a estudar o universo cultural de diversas etnias africanas Para isso ele valese de relatos de colonizadores europeus que abordaram aspectos do cotidiano de algumas etnias da África Central entre os séculos XVI e XIX Essa atitude ele toma em vários momentos de seu texto262 Conferindo tais etnias Slenes mapeia os conceitos e as práticas em comum que são transportadas para o Brasil A partir disso evidenciamse conceitos da cosmovisão centroafricana como linhagem venturadesventura263 senzala264 Esses e outros conceitos e práticas estruturavam a cultura e orientavam as ações dos africanos sendo reproduzido no interior das famílias daí também a importância do conceito de 261 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p 114 262 A escolha da região da África Central como matriz de referência à cultura afrobrasileira deuse porque era a esta região que pertencia por uma longa extensão de tempo a maioria dos africanos escravizados que foram levados para a região das grandes lavouras do sudeste brasileiro Para demonstrar isso o autor recorre à metodologia da história demográfica usando da estatística em documentos oficiais sobre compra e registro de escravos para quantificar e verificar tal procedência Outro motivo que justifica essa escolha é o fato de que conforme o historiador nesta região da África Central havia muitas semelhanças entre símbolos significados e práticas culturais mesmo entre as diferentes etnias Esse fato teria facilitado os rearranjos grupais e familiares dos escravos no Brasil o que torna mais seguro fazer um estudo mais aprofundado de uma lógica cultural que contemple a uma maioria de sujeitos estudados Essa conclusão foi tirada a partir do momento em que os novos estudos sobre a cultura dessa vasta área africana têm enfatizado menos os aspetos de vida material e mais os modelos culturais ou conjunto de valores que subjazem às ideias e práticas culturais das comunidades que formam uma cultura bantu geral Aqui Slenes traz como referenciais teóricos Willy de Craemer Jan Vansina e Renée C Fox 1976 No entanto lembremos o fato de deslocar para a África Central nossos olhares sobre uma ancestralidade da afrobrasilidade não deixa de ser um ato político contra a visão evolucionista forjada por Nina Rodrigues que insiste na África Ocidental como princípio originário da afrobrasilidade 263 O estado normal do universo harmonia bemestar e saúde x o estado anormal do universo o desequilíbrio os infortúnios e as doenças que são condições causadas por espíritos maus ou por pessoas através da feitiçaria SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 264 residência dos serviçais em propriedades agrícolas moradia de gente separada da casa principal sentido principal povoado SLENES Robert Idem op cit p148 141 linhagem a cultura pertence a um grupo de parentesco a uma linhagem e não somente ao lugar de origem A herança cultural é transportável Os escravos a transportam fazendo escolhas Por conseguinte o autor traça um perfil do negro escravizado bem diferenciado um ser que produz cultura que trava conflitos que tem consciência de sua condição que constrói redes de solidariedade que trabalha nos latifúndios que é de procedência e fala bantu265 que se organiza familiarmente a partir do conceito de linhagem Marca assim uma dizibilidade e uma visibilidade que torna a presença negra mais comum e próxima da realidade de qualquer ser humano O negro e sua cultura passam a não mais ser exóticos invasores ou depreciadores E Slenes parte para analisar outros aspectos culturais afrobrasileiros construídos nesse contexto de articulações negociações e apropriações É salutar frisar que o autor embora critique os aspectos teóricos de Nina Rodrigues também não deixa de se aproximar dele quanto ao método de se comparar objetos e práticas entre Brasil e África para verificar semelhanças e portanto continuidades eou rupturas das culturas africanas no Brasil Slenes contudo não está preocupado em mapear a pureza na permanência de práticas mas de entender os processos da dinâmica que transformam a cultura afrobrasileira Quando ele compara objetos e práticas entre BrasilÁfrica o faz porque as semelhanças analisadas refletem uma relação histórica não necessariamente linear É assim que entra em sua narrativa histórica a análise da construção espacial e do culto ao fogo no interior das senzalas como práticas possíveis a partir da reorganização dos escravos através de casamentos constituição de famílias e reconstrução do conceito de linhagem Ele explica que num contexto em que aos escravos solteiros eram destinadas senzalas que seguiam a arquitetura em formato de um grande pavilhão coletivo lotadas com pouca privacidade e autonomia locais onde os escravos comiam mal e dividiam o mesmo vasilhame casarse era uma boa opção porque viabilizava aos escravos construir as suas senzalas ou choupanas para viver apenas com suas famílias e isso trazia vários benefícios como viver com mais privacidade cultivar uma pequena horta criar alguns animais guardar os animais que caçavam os vegetais e grãos que encontravam no caminho entre a senzala e a lavoura ter um fogo doméstico só para a própria família cozinhar suas receitas africanas e manter tradições religiosas e comemorativas no interior de suas senzalaschoupanas etc 265 Reproduzimos a ortografia usada pelo próprio autor 142 Essas choupanas eram simples mas eram os espaços onde as famílias escravas tinham autonomia e privacidade Eram cabanas muito parecidas com as cabanas feitas nas aldeias africanas e tal semelhança fora identificada no repertório cultural dos escravos Dessa forma como na África da cultura bantu explica Slenes muitos escravos que vieram dessa região trouxeram os significados do fogo e da fumaça na sua memória e esses sentidos vinham à tona sempre no interior das senzalas familiares Nestas senzalas havia uma fogueira que ficava acesa vinte e quatro horas por dia durante todos os dias do ano Algo que parecia ilógico para muitos senhores cronistas e cientistas brancos na verdade tinha sentidos muito complexos e significativos na experiência africana e afrobrasileira por que a do ponto de vista material a fumaça espantava os insetos ajudava a aquecer e criava uma espécie de verniz nas paredes de pauapique que ajudáva a conservar a casa b do ponto de vista simbólico o fogo representava os laços de parentesco com os ancestrais africanos era um símbolo da linhagem familiar possuía um sentido político de ligação formação de comunidades solidariedades e proteção e c ainda quanto ao simbólico havia a crença de que a fumaça ajudava a manter dentro da habitação os espíritos protetores das famílias que traziam boa sorte saúde proteção e força para suportar as agruras da vida no cativeiro Não é a toa que a festa entre os escravos se realiza sempre em frente às cabanas dos escravos casados pois ali estava uma fogueira que ligava as pessoas aos ancestrais É assim que se processa a cultura afrobrasileira em Slenes uma materialidade o fogo uma prática o culto ao fogo um conceito linhagem e as expectativas que articulam tudo isso proteção força superação da escravidão etc É preciso entender de forma mais profunda e respeitosa a rede de significados que dá sustentação aos objetos e práticas culturais afrobrasileiras Ao contrário do que dizia até então a historiografia clássica sobre a escravidão a experiência dos escravos vista de dentro não pode ser reduzida a uma história de submissão cooptação e aculturação Ela deve ser entendida como potência recriadora das possibilidades de existência significação e negociação de forças no mundo social Fechase historiograficamente os paradigmas propostos ao longo do século XX para se entender a cultura afrobrasileira Slenes continua sendo o mais atualizado dos intelectuais que cria argumentos para a reorientação da tradição de pensamento brasileiro sobre as culturas negras no Brasil Lembrese que quando o autor critica esta tradição de pensamento reducionista ele não está criticando apenas os intelectuais mas a todos os 143 sujeitos que de diferentes formas se apropriaram dessas representações e a partir delas estabelecem relações políticas com a população negra intelectuais artistas pessoas comuns mídia burocratas o Estado brasileiro Mas toda essa análise discursiva corrobora para revelar um lado dessa história de criações conceituais o lado acadêmico Vimos no capítulo 1 que o emergente MNU também já se preocupava com a noção de cultura afrobrasileira cristalizada no Brasil Uma noção que legitimava formas de dominação exclusão e exploração do negro Duas perguntas se fazem necessárias para conhecer as reconfigurações deste contexto a partir de agora Primeiramente de que forma o conceito de cultura afrobrasileira proposto pelo MNU se alinhavam com as noções de cultura afrobrasileira recriada por Carlos Vogt Peter Fry e Robert Slenes E segundamente quais os desdobramentos dessa nova forma de pensar a cultura afrobrasileira para o Estado Brasileiro e por conseguinte para o conjunto de toda a sociedade 3 O MNU seu conceito de cultura afrobrasileira e o ativismo negro na construção de um novo currículo para o Ensino de História Como vimos no capítulo 1 para o MNU havia uma interligação muito forte entre política cultura e educação que se precisava garantir no projeto educativo brasileiro via intervenção do Estado mas sob a orientação do movimento Esta interligação possuía uma importância significativa no combate ao racismo Portanto a educação foi eleita como campo privilegiado dessa transformação cultural A efetivação das ações educativas promovidas pelo MNU ocorreu através de jornais agremiações carnavalescas grupos culturais recreativos e desportivos etc No entanto para o MNU o projeto dessa transformação cultural perpassava a jurisdição a institucionalização a conceituação daí sua preocupação em produzir documentos oficiais que legitimassem suas perspectivas teóricas e práticas acerca do tema No Programa de Ação266 o MNU afirma que a escola é uma instituição que historicamente tem cumprido um papel alienante Ao invés de desenvolvimento 266 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 O Programa de Ação foi um documento produzido pelo MNU a fim de tornar claros para a comunidade negra e para o Estado brasileiro as críticas e as propostas de recriação da sociedade brasileira e da cidadania negra Erguendo o lema Por autentica democracia racial como intitula na sua introdução assume o compromisso de desconstruir o mito da democracia racial e de lutar acirradamente contra o racismo o Programa de ação pondera sobre 16 temas a saber 1 marginalização 144 intelectual e libertário da educação brasileira ela perpetuaria a mentalidade elitista e racista alienando os estudantes Embasando tais afirmações percebemos num primeiro momento que a escola seria identificada sob a influência de Althusser como um aparelho ideológico do Estado Já num segundo momento influenciado por Bourdieu o MNU evidencia o papel da escola enquanto reprodutora e legitimadora das desigualdades sociais através de um processo inconsciente e sistemático de dominação simbólica legitimação de verdades práticas conceitos regras e valores cristalizados na cultura e nos interesses não do Estado mas das classes dominantes consolidando desta forma as desigualdades sociais Foi neste contexto por exemplo que a educadora Ana Célia da Silva uma das fundadoras do MNU de Salvador construiu seu estudo sobre a reprodução de estereótipos racistas nos livros didáticos brasileiros voltados à alfabetização Um estudo que virou referência nacional sobre o tema Mas foi com esperança que o MNU decidiu conceber a educação Apoiado no educador pernambucano Paulo Freire o MNU define no seu Programa de Ação a educação como um instrumento de libertação e não de alienação de um povo Concordando com Paulo Freire assumiase uma concepção nitidamente comprometida politicamente da educação Era necessário sim denunciar as práticas simbólicas de dominação política e cultural de grupos opressores e assumir uma postura político filosófica de comprometimento com a existência humana Numa sociedade cuja estrutura conduz a dominação de consciências era fundamental a elaboração de uma pedagogia que estivesse enraizada nas subculturas O movimento negro instalara discursivamente uma fratura na ideia de comunidade nacional brasileira Simbolicamente interrompiase a continuidade para instalar a diferença que legitimaria a luta política desta categoria social O projeto elaborado tecia denúncias e esperanças Nessa operação simbólica lutavase para eleger do negro 2 Discriminação racial no trabalho 3 desemprego 4 condições de vida 5 Direito e violação 6 prisões 7 o menor Abandonado 8 Cultura Negra 9 Educação 10 Mulher Negra 11 Imprensa Negra 12 Nos Sindicatos 13 Área Rural 14 Posses de terras doações e invasões 15 luta internacional contra o racismo e 16 transformação geral na sociedade No entanto nosso foco nessa dissertação recai sobre as articulações entre política cultura e educação por dois motivos básicos a como nos lembra a historiadora Queiroz esses elementos são estruturadores do discurso do MNU bem como pontos de interdiscursividade entre o MNU nacional suas filiais em outros estados e outras entidades culturais e b por serem esses os critérios que sendo atualizados em diferentes discursividades e documentos oficiais relativos à reavaliação da educação e da história possibilitaram a sanção da lei 1063903 gerando novas demandas para o Ensino de História definindo assim o objeto de estudo dessa investigação 145 a cultura como um elemento estruturador fundamental da prática política do movimento negro portanto era preciso definila De acordo com o MNU Cultura é o modo como o homem vê sua relação com a natureza e com seus semelhantes A cultura nasce com o homem na criação de seu mundo e na produção geral para sua vida e vivencia incluindo aí as relações de trabalho a produção necessária à vida a distribuição destes bens materiais e simbólicos e as relações de Poder Consequentemente a Cultura é a visão de mundo que implica na valorização de certas práticas e desvalorização e abandono de outras267 Dessa forma o MNU articulava as relações entre a cultura e a política entendida enquanto relações de poder A cultura não partia unicamente de uma concepção materialista preocupada com os modos de trabalho produção e circulação de bens materiais mas contemplava também a produção e as apropriações de objetos simbólicos A cultura era definida como um espaço de negociação entre a manutenção de visão de mundo e de poderes instituídos e novas formas de poder político exercido pelas camadas subalternas de uma sociedade Enquanto campo de negociação a cultura seria algo que mediaria os conflitos e seria dinâmica desenvolvendose de acordo com os novos contextos sujeitos e interesses Este documento mostra que há uma interdiscursividade entre os cientistas sociais aqui analisados e o MNU Assim continua o Programa de Ação do MNU Todavia a Cultura AfroBrasileira está presente na linguagem brasileira na religiosidade que mesmo marginalizada por credos oficializados leva pessoas a fazerem sua fé nos terreiros A Cultura trazida da África foi recriada no Brasil sob opressão e violência em permanente conflito contra opressores daí o seu caráter defensivo de resistência frente a todo um processo de branqueamento que toma a Cultura do NorteEuropeu como símbolo positivo como ideal e a Cultura Africana bem como os Negros como símbolo negativo268 267 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 268 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 Grifos nossos Nesta dissertação preservamos a grafia utilizada na fonte quanto ao uso de letras maiúsculas o que já evidencia a relevância de alguns conceitos para o MNU e também quanto à pontuação 146 Aqui percebemos que esta noção de cultura afrobrasileira enquanto um conjunto de articulações entre memórias de tradições africanas articuladas às novas condições de vida no cativeiro e às expectativas de vida dos africanos escravizados dialoga diretamente com a discursividade proposta por Peter Fry Carlos Vogt e Robert Slenes Constatase que o MNU localiza outros lugares simbólicos da cultura afro brasileira denotando mais as formas do que especificamente os conteúdos a linguagem e não as palavras de origem africana a religiosidade e não apenas uma religião específica Alargamse os horizontes das práticas culturais Cabe ressaltar que esta definição não abomina outros lugares simbólicos da cultura afrobrasileira como a dança a gastronomia as festas a música etc Do contrário o que se incita é que estas práticas culturais sejam descolonizadas e reinterpretadas conforme uma ótica afrocentrada Enquanto manutenção de visão de mundo e de poderes instituídos a cultura afrobrasileira seria mantida como folclore pelas classes dominantes que a usavam escamoteando ou combatendo a visão de mundo que a nível popular pode ser bem diferente e mesmo contrária à burguesia 269 Já enquanto novas formas de poder político exercido pelas camadas subalternas de uma sociedade a cultura seria um instrumento dinâmico de luta política no qual caberia preservar sob a orientação do MNU Frente a esse modo de desvalorização e esmagamento de nossa cultura cabe ao MNU orientar respostas nesse processo incentivando os trabalhos de valorização da Cultura Negra criando formas para defendêlas preservála dinamizála e desenvolvêla enquanto instrumento de luta no processo de libertação de nosso país270 A fim de desconstruir estereótipos essencialistas acerca da cultura afro brasileira o MNU entende esta cultura como algo dinâmico Uma cultura que se expande negocia e adquire novos sentidos quando encampa lutas políticas Ao contrário do que o senso comum afirma sobre uma possível perspectiva estereotipada e essencialista da identidade cultural negra promovida pelo MNU há que se buscar as historicidade dessas construções analisandoas com bastante cuidado para cair em reducionismos A partir do movimento foram criados e recriados muitos símbolos Muitos conceitos foram positivados enquanto instrumentos simbólicos de luta política e 269 Idem op cit 270 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 Grifos nossos 147 afirmação identitária num país que nega o racismo que perpetua Desde quando essas atitudes poderiam ser consideradas ilegítimas Só um observador apressado e imbuído de etnocentrismos é que não consegue perceber a lógica própria desta atividade A encruzilhada onde se encontram a política a educação e a cultura está no âmago do saber histórico O MNU e outros movimentos e instituições socioculturais se empenham em realizar tal operação simbólica São múltiplas as interações e apropriações discursivas gerando certos dizeres comuns tidos como importantes para a consciência histórica libertadorade homens e mulheres negros Eles buscam compor outras formas de narrativas e performances sobre a história e a cultura afrobrasileira A história é eleita como campo de reconstrução da identidade cultural e política dos negros Músicas vídeos peças de teatro são criados a partir de pesquisas e leituras diversas jornais sobre os direitos civis nos EUA processos de independência de países africanos livros sobre a história da África da escravidão e da cultura afrobrasileira intercâmbios encontros palestras e rodas de diálogo entre africanos e afroamericanos afrocaribenhos e afrobrasileiros etc A este respeito o militante Antônio Carlos dos Santos mais conhecido como Vovô líder do Bloco Afro Ilê Ayê de Salvador diz Aqui no Ilê é tudo muito em cima da música A música é um veículo condutor muito importante Aqui tem música tema que é a música do ano que é a música que educa Então é essa música que informa informa a cidade Não é só pra educar o branco para a gente também porque nós não tínhamos essa informação não temos no diaadia no livro didático E agora nós começamos a pegar esse material de uns 12 15 anos atrás e a transformar em caderno de educação para utilizar nas escolas Mais ainda é muito pouco aproveitado isso Quando a gente fala na Lei 10639 nós já fazemos isso há 30 anos271 Em Pernambuco nas cidades de Olinda e Recife ecoavam os cânticos dos afoxés Músicas que não apenas reverenciam a ancestralidade africana e o culto aos orixás mas que em Pernambuco assumiu nitidamente a militância negra e luta institucional contra o racismo272 As letras dos afoxés mais antigos ainda em atuação no 271 Depoimento de Antonio Carlos dos Santos Vovô In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 2389 240 272 A historiadora Martha Rosa discute as relações entre os afoxés de Pernambuco e a militância política negra Ver QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 Já o historiador Ivaldo Marciano indica que em Pernambuco afoxé é um termo polissêmico pois significa um conjunto de práticas e representações que se aglutinam para reconstruir uma noção de identidade negra Entre esses 148 estado ilustram um pouco desse aspecto A música Tempos Passados de autoria de Rogério F Silva foi composta para o afoxé Alafin Oyó e diz Eu vim da ÁfricaEu sou nagôSou de origem negraSou filho de Alafin OyóHá tempos atrás me trouxeram para o BrasilNas ondas do marBateramme muito no navioA dor não passava e também não tinha fimMas não tive medo porque minha cabeça é de Alafin São muitas as significações políticas que pulsam dessa letra e da boca dos foliões negros que desfilam pelas ruas de Olinda e Recife nos carnavais de anos 198090 Além de afirmar uma ancestralidade africana ao vir de África o personagem negro que fala na música mas que representa toda uma população afrobrasileira afirma ser filho de Alafin Oyó Conforme a historiografia da África o soberano do reino do império yorubá tinha como título político de Alafin numa tradução ocidental seria a figura do rei Logo este negro ou esta comunidade que falacanta é filho descende do rei do soberano de Oyó capital do império yorubá Portanto adquirese um status de nobreza de realeza africana A história narrada em forma de música reafirma os momentos de dor e tormento no trajeto transatlântico mas ao mesmo tempo reafirma a existência de um acervo cultural o qual o negro escravizado faz uso para dar sentido a sua vida recriar laços de pertencimento e linhagem e com isso conseguir força para continuar lutando pela sobrevivência com o máximo de dignidade que puder Como se afirma isto Ao dizer que mesmo em meio à dor e ao tormento não houve medo E por que não houve medo Porque a cabeça273 do personagem é de Alafin ou seja ele é filho do orixá que foi Alafin Xangô Este orixá representa o poder dos trovões do fogo do poder masculino e da justiça São estes os sentidos que o autor ativa e chama para o acervo da militância políticocultural do afoxé Alafin Oyó nobreza orgulho valentia força justiça esperança O Afoxé Alafin Oyó não foi o único neste sentido Os Afoxés Ará Odé e Ilê de Egbá também construíram musicas militantes Outro antigo afoxé pernambucano cujas letras trazem grande dose de politização é o Afoxé Oxum Pandá Além do significados estão a é uma instituição de militância política negra b é um grupo que possui ligação direta e muito forte com o candomblé c é também uma expressão artística de grande teor estético d é uma entidade cultural que estimula a promoção social iniciando jovens no mundo da técnica da arte da militancia etc e é uma agremiação carnavalesca f é também um espaço simbólico de retorno a uma África mitificada enquanto valorização da ancestralidade e g é mais um espaço que possibilita a reconfiguração de identidades negras em Pernambuco estado brasileiro cuja maior referencia de negritude foi construída sobre o maracatu Ver LIMA Ivaldo Afoxés em Pernambuco usos da história na luta por reconhecimento e legitimidade Topoi v 10 n 19 juldez 2009 p 146159 273 No candomblé a cabeça é um ponto de capitação de energia uma espécie de portal Na lógica desta religião cada pessoa é filha de um ou mais orixás O orixá que rege a vida da pessoa é chamado orixá de cabeça Dizer que a minha cabeça é de Alafin é reafirmar que se é filho do orixá que em vida foi Alafin do império yorubá ou seja Xangô 149 carnaval este afoxé ganhou grande projeção na mídia pernambucana gravando Cds e se apresentando em vários eventos Seus Cds passaram a ser muito usados em projetos sócio educativos como o Programa Escola Aberta Refrões como os das músicas Não há silêncio de autoria de Jeane Siqueira e da música Meu Recado de autoria de Jorge Riba transformaramse em verdadeiros hinos à negritude como as músicas do Alafin O refrão de Não há Silêncio entoava O meu tambor não se cala não A minha voz não morre jamais já a música Meu Recado diz Eu sou filho de Orixá Babá Não venha me provocar Segue em frente o seu caminho Deixe o meu povo passar Eis algumas das estratégias presentes em Pernambuco de construção simbólica de uma comunidade sob ícones em comum para referendar pautas políticas História cultura e identidades negras eram ressignificadas em práticas políticoculturais das instituições negras Do movimento social negro estão emergindo novas demandas para o Ensino de História que se desejava para o Brasil inclusive já instruindo os caminhos possíveis para essa construção Essa nova configuração curricular não foi um processo fácil uma vez que o currículo é um espaço de disputa política pela legitimação de memórias identidades valores e crenças associadas às distintas categorias sociais Para inserir essa proposta de reeducação histórica política e cultural à sociedade brasileira vários caminhos foram trilhados Destacaremos aqui uma das ações mais importantes ocorridas no Recife por organização do movimento negro da cidade em 1988 quando ainda tinha o nome de MNURecife o VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste ENNNE cujo tema foi O negro e a educação Ateremonos um pouco neste evento pelo fato do seu tema ter selecionado o campo da educação como foco para se pensar as relações étnicoraciais no Brasil A exemplo de tantos outros encontros promovidos por diversas entidades negras no país nas duas últimas décadas do século XX nesse encontro foram propostas e debatidas algumas ações que culminariam anos mais tarde na Lei nº 10639 em janeiro de 2003 O encontro ocorreu na cidade do Recife entre os dias 29 e 31 de julho de 1988 sendo organizado pelo MNURecife e pela Escola Maria da Conceição O evento foi produzido a fim de causar uma série de reflexões críticas no ano de centenário da abolição da escravatura mas a sua efetivação foi ameaçada por grandes dificuldades financeiras Dificuldades que não foram solucionadas com toda eficácia mesmo contando com o financiamento de instituições públicas como a Universidade Federal 150 Rural de Pernambuco UFRPE que funcionou como umas das sedes a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco FUNDARPE a Fundação FORD Legião Brasileira de Assistência LBA Viação Aérea de São Paulo VASP Cia Hidrelétrica do São Francisco CHESF Água Mineral NOANA Indústrias Pilar Ministério da Cultura Prefeitura do Recife Banco do Estado de Pernambuco e Centro Josué de Castro274 O tema o negro e a educação foi proposto na edição anterior do ENNNE ocorrido em Belém PA e deveuse a compreensão dos militantes de que a educação é a base sobre a qual estruturase a forma de pensar e agir de um povo275 A educação brasileira era criticada na medida em que esta era considerada instrumento para se subjugar a população negra uma vez que legitima e reproduz um currículo eurocêntrico Criticando o tradicional perfil eurocêntrico da educação brasileira os ativistas assumem um compromisso com o aprofundamento dos estudos debates e ações que poderiam viabilizar uma tomada de consciência racial e fortalecimento de sua identidade étnico cultural Assim o VIII Encontro teve como preocupação central questionar a negação da importância do negro na formação social brasileira através dos meios oficiais de educação do País A partir dessa consciência esperase que o VIII Encontro seja o início da luta pela reformulação do ensino no Brasil que passa principalmente pela construção de um curriculum que contemple também a cultura negra 276 Na programação do evento houve a definição do regimento do evento palestras debates apresentações artísticas discussões em grupos de trabalho elaboração de propostas plenária e posteriormente a elaboração de um relatório que registrasse e encaminhasse as propostas do evento como ações a serem desenvolvidas pelos diversos seguimentos que compõem o movimento negro No evento estiveram presentes representantes de estados brasileiros das cinco regiões além de autoridades políticas e intelectuais de países como Cuba e Guiana Francesa entre outros Marcaram presença também atores de diferentes espaços do universo cultural afrobrasileiro babalorixás 274 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO DO RECIFE Relatório do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste o negro e a educação Recife 1988 275 Idem op cit p 5 276 Idem Op Cit p 56 Transcrição compatível com a ortografia usada no documento 151 yalorixás bailarinos músicos diretores de agremiações carnavalescas de origem negra como as Escolas de Samba Maracatus e afoxés Ao lado destes estavam os professores diretores escolares e gestores públicos das redes municipais estaduais e federal Todos esses sujeitos articulados a partir das interlocuções dos militantes pesquisadores e professores universitários negros277 Uma das mesas redondas do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste no salão nobre da UFRPE Fotografia encontrada no Relatório do evento sem referência ao tema da mesa e aos componentes Foram muitas as problemáticas levantadas nesse evento assim como os debates e as opiniões nem sempre convergentes Porém havia uma tese em comum entre os diferentes seguimentos representados pelos intelectuais presentes a de que o sistema educacional brasileiro desqualificava a cidadania negra ao reduzir a identidade negra a um apêndice de uma história nacional de caráter eurocêntrico Fato que precisava ser modificado Muitas experiências na tentativa de reformulação do ensino a partir das relações étnicoraciais foram socializadas e registradas no relatório principalmente nas redes de ensino Estadual de Pernambuco e Bahia e Municipais de Olinda e Recife Houve várias propostas também dos representantes do Pará Em várias dessas propostas foram registradas uma grande preocupação com a reconstrução da história a ser contada 277 Não quero dizer que o evento tenha contado apenas com a presença de intelectuais negros mas que estes ocuparam um lugar central de articulação das discussões e proposições 152 evidenciando a participação ativa dos sujeitos negros na construção do Brasil valorizando a cultura afrobrasileira combatendo o racismo e reconhecendo a legitimidade das lutas políticas dos movimentos negros Ao longo do relatório destacaramse expressões como História da África A Luta dos Negros no Brasil A Cultura Negra O Combate ao Racismo A Reformulação dos Currículos de Ensino Um aspecto importante presente no discurso dos militantes era a valorização da cultura tanto nas escolas formais quanto nas escolas ou instituições informais de ensino Locais em que a cultura deveria exercer um papel relevante sendo praticada como instrumento de aprendizado e não como lazer apenas A cultura afrobrasileira era definida enquanto instrumento de ensinoaprendizagem de conscientização racial e construção da identidade negra de valorização da ancestralidade africana e de equiparação em nível de direitos e respeito quando comparada a outras culturas como as brancas indígenas etc Dessa maneira por exemplo propunhase que as religiões como a Umbanda e o Candomblé pudessem ser contempladas nos currículos escolares e assumiase uma postura de crítica à folclorização e comercialização da cultura afro brasileira no ensino de história278 A história ocupava cada vez mais a centralidade nos debates promovidos pelos distintos seguimentos do movimento negro enquanto possibilidade de construção de uma educação libertária que conte a verdadeira história sobre o povo negro Já que a história foi eleita era importante ao evento a legitimação de um discurso historiográfico Esse era assumidamente um desejo dos movimentos negros O historiador Biu Vicente representando a Prefeitura do Recife cumpriu este papel enfatizando a importância da atuação do MNU para essa mudança epistemológica no campo educacional Desde 1987 começamos a debater nas nossas capacitações com professores o que realmente significa o 13 de maio O fato da nossa escola começar a discutir essa questão não é uma invenção nossa Nós fomos empurrados pelos movimentos sociais Foi exatamente a militância dos movimentos negros dos movimentos sociais que empurrou a escola para discutir os problemas da 278 Os debates sobre a cultura afrobrasileira perpassam todas as palestras debates grupos de trabalho e a plenária final 153 sociedade Nada disso seria possível sem a militância dos movimentos negros279 Vicente afirma que a atuação dos militantes negros nas escolas através de visitas palestras rodas de conversa debates etc fez com que as escolas do Recife passassem a construir um novo conceito sobre o 13 de maio a partir de uma perspectiva crítica em que a narrativa histórica é revisitada e reconstruída sob outras vias de significação que contemplam a atuação negra e também as dificuldades dos afrodescendentes no pós abolição A história seria um campo discursivo ambíguo Ela teria forjado consciências quanto ao passado dos negros no Brasil mas ela também seria a possibilidade de ressignificação da identidade negra no presente criando novas possibilidades de existência cidadã no futuro280 Uma mesa bastante importante foi a de título O papel do professor na descolonização do ensino em que os debates giravam em torno da figura do professor como agente de reprodução de ideologias racistas Propunhase que para haver de fato mudanças no ensino não bastava a construção de um novo currículo mas também a mudança de postura do professor No debate a educadora Helena Teodoro afirmou ser fundamental haver uma mudança na relação do professor com o aluno recuperando sua criatividade Em visão complementar a educadora Tereza de França afirmava uma das dificuldades para a descolonização é não perceber que ensinar é um ato político O grupo de trabalho III O Racismo no Livro Didático foi dirigido pela educadora Ana Célia uma das fundadoras do MNUBA e principal pesquisadora do tema no Brasil Ela defendeu a sua tese de que ainda havia nos livros a ideologia do branqueamento enquanto reprodução de valores éticos e estéticos que positivavam apenas as crianças brancas em detrimento das negras Tal fato se dava explica Ana Célia pelo fato de que os livros didáticos reproduzem os preconceitos colonizadores da igreja dos pensadores e dos intelectuais que legitimavam a ideologia de inferiorização do negro sob uma discursividade tida como científica Para este trabalho importa saber quais foram as demandas geradas para o ensino de história Discussões que foram efetivadas pelo grupo de trabalho V Introdução da 279 VICENTE Biu A experiência do Recife In MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO DO RECIFE Relatório do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste o negro e a educação Recife 1988 p 23 280 VICENTE Biu A experiência do Recife In MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO DO RECIFE Relatório do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste o negro e a educação Recife 1988 154 história da África e do afrobrasileiro nos currículos escolares Nesse grupo discutiramse as experiências já existentes em algumas cidades e estados brasileiros de implementação de novas configurações curriculares que contemplassem a história da África dos povos negros e da cultura afrobrasileira O grupo concluía que para garantir esses novos temas no ensino de história seria essencial a publicação de bons livros didáticos que contemplassem tais conteúdos de forma responsável e a formação inicial e continuada de professores de história Destarte se deveria pensar também a reelaboração dos currículos não somente na educação básica mas sobretudo no nível superior para que os professores desenvolvessem os suportes intelectuais necessários às suas práticas pedagógicas Todas as propostas desse grupo foram aprovadas por unanimidade na plenária final A saber 01 Incluir o dia 20 de novembro no calendário escolar como Dia Nacional da Consciência Negra 02 Revisão da História do Brasil por historiadores comprometidos com a questão do negro 03 Revisão dos livros didáticos por profissionais empenhados na causa do negro 04 Criação nas secretarias de educação da rede estadual e municipal de grupos de estudos com a participação de visitantes do movimento negro voltados para discutir as questões específicas do negro 05 Aproveitamento do material produzido pelos movimentos negros como material didático 06 O movimento negro deve junto às entidades ligadas à educação mobilizarse para participar no processo de discussão da Lei de diretrizes e bases 07 Garantir que no curso de magistério se discuta a questão do negro O como fazer fica a cargo de cada Estado 08 Que se inclua nas Universidades o centro de letras Departamento de Línguas Africanas e no de História História da África 09 Implantação de escolas para a comunidade a nível nacional a cargo e sob a responsabilidade do movimento negro de cada Estado Para isso seriam utilizados subsídios existentes em cofres públicos cabendo aos movimentos negros levantar projetos nessa ordem 10 Inclusão da história da África e cultura negra no Brasil nos currículos ou pelo menos em torno dos livros programas curriculares Professores e Ciências Humanas 11 Fazer reciclagem com os professores de 1º e 2º graus em História da África e Cultura Negra pelas Faculdades de Educação a nível nacional Fazer textos para serem divulgados pelos professores e alunos sobre história da África e cultura negra 12 Lutar por uma Universidade aberta democrática e participativa onde haja a presença da cultura popular especialmente da cultura Afro 13 Proposta e convite para o engajamento de militantes negros nas reuniões às terçasfeiras às 9 hs para discutir a questão curricular e 155 para subsidiar na mudança da orientação de rede municipal de Olinda 14 Sugerir a criação de uma associação de professores negros e comprometidos com a causa e que a associação legitime os professores que lecionam Introdução da História da África e do AfroBrasileiro nos currículos escolares professores que tenham conhecimento da história281 Dessa forma se legitima oficialmente uma série de demandas do movimento negro unificado para o ensino de história Disciplina que foi eleita como campo discursivo de uma educação libertadora e passou a ocupar a centralidade dos debates e dos anseios dos militantes negros como possibilidade de reconstrução simbólica da identidade negra A criação de disciplinas específicas nos diferentes níveis de ensino e a revisão dos conteúdos de história a publicação de livros didáticos a formação inicial e continuada de professores a criação de grupos de estudo entre professores e ativistas negros nas redes de ensino a formação de grupos para analisar livros didáticos de história e supervisionar projetos políticopedagógicos a instituição de uma data comemorativa como o 20 de novembro o reconhecimento da cultura afrobrasileira como instrumento político de construção identitária e mudança social Todas essas demandas serão constantemente atualizadas em novos eventos do MNU até que sejam transformadas em aparatos legais no final do século XX e início do século XXI Cultura educação e política estão entrelaçadas como proposta de um novo projeto de sociedade brasileira que preze pela ética e pela responsabilidade com a integridade de todos os seus cidadãos Estas foram as estratégias propostas debatidas e adotadas pelos diferentes seguimentos do movimento negro a fim de construir uma nova rede de significações de atribuir novos sentidos a ideia de negritude Negritude enquanto cultura um modelo de vida que se conquista enquanto conscientização e que se converte em atitude para garantir a conquista de direitos políticos 281 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO DO RECIFE Relatório do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste o negro e a educação Recife 1988 p 7879 156 Imagens do Relatório do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste o negro e a educação Na capa foto de atividade lúdicoeducativa promovida pelo Centro Maria da Conceição localizado no Morro da Conceição periferia do Recife Nesta instituição as educadoras empenhavamse em construir o conhecimento a partir da experiência sociocultural das crianças e a partir disto dialogar com os conteúdos escolares formais como a alfabetização Outro importante evento promovido pelo movimento ocorreu entre os dias 13 e 15 de abril de 1990 Foi o IX Congresso Nacional do MNU em Belo Horizonte onde o Programa de Ação criado em 1982 foi revisto e criticado propondose um novo texto Este documento contudo guardou muitos dos anseios do movimento negro No que concernem às articulações entre cultura e educação as noções do MNU não mudaram muito embora tenham amadurecido A educação é compreendida como um processo de ensinar e aprender que ocorre cotidianamente em todas as experiências do ser humano portanto a educação transcende a escola No entanto a instituição escolar ainda é legitimadora da mobilidade social e de desenvolvimento da cidadania em nossa sociedade letrada Assim ela se torna também muito importante para a população negra embora não seja o único espaço educativo que essa população possui Contudo dizse no documento o problema é que a educação ainda se constituíra enquanto campo de produção de desigualdade e de reprodução do racismo efetivado pelo apagamento das memórias negras nas narrativas históricas pela negação dos conflitos raciais e pela desqualificação da cultura afrobrasileira Destarte o MNU insistia que entre outras 157 soluções possíveis não poderiam deixar de ser realizadas para a inclusão da disciplina História da África e do Povo Negro no Brasil nos currículos escolares282 Já a discussão de cultura se apresenta de forma mais densa nesse novo documento A noção de cultura do movimento negro continua dialogando com as perspectivas de Peter Fry Carlos Vogt e Robert Slenes Ainda se preza pela ideia de que a cultura afrobrasileira esteja articulada à política Contudo o documento pondera duas perspectivas pelas quais a cultura tem sido tradicionalmente abordada em diferentes níveis de estudos e legitimada em ações cotidianas e de políticas públicas 1 primeiramente a permanência da alienação ou manipulação política da cultura pelos brancos Fato que gera algumas conseqüências imediatas a redução da cultura negra à culinária ao lúdico e ao religioso o alijamento da atuação do negro às esferas de decisão da sociedade e sua subordinação econômica a desvinculação da cultura à história de luta e opressão do povo negro e a geração de lucros com a venda da cultura negra pelo branco 2 em segundo lugar a ruptura ou seja a articulação consciente entre cultura e política pela população negra Neste sentido as práticas culturais afro brasileiras seriam mediadoras de conflitos políticos que se estabelecem cotidianamente além de redefinirem as identidades sociais Essa noção gerava como demanda para o MNU atuar na conscientização política das Escolas de Samba Afoxés Maracatus Grupos de Capoeira Terreiros de Candomblé entre outros tipos instituições culturais nas artes visuais filosóficas e literárias por exemplo O objetivo dessa ação seria estimular um salto qualitativo do papel político e social desses grupos283 Na verdade o Programa de Ação de 1990 só atualiza as críticas definições e propostas Todo esse processo de legalização de suas recomendações continuou ocorrendo durante a década de 1990284 Conforme Sales Augusto Soares285 entre o fim da década de 1980 e início da década de 1990 vários estados eou municípios brasileiros criaram leis que reformulavam os currículos escolares garantindo lugar à história da África e 282 MOVIMENTO NEGRO Programa de Ação aprovado no IX Congresso Nacional Belo Horizonte 1990 p 14 283 Idem Op Cit p 16 284 No Rio de Janeiro em março de 1991 foi aprovado no II Congresso Nacional Extraordinário o Estatuto do Movimento Negro Unificado ampliando a base legal do movimento 285 SANTOS Sales Augusto A Lei nº 1063903 como fruto da luta antiracista do Movimento Negro In MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO Educação AntiRacista caminhos abertos pela Lei nº 1063903 Brasília MEC 2005 158 história e cultura afrobrasileira a exemplo Bahia286 Porto Alegre287 Belém288 Aracaju289 São Paulo290 Teresina291 e Brasília292 No fervor das discussões daquela década alguns eventos puderam marcar a história do Brasil sob o prisma do MNU como a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo pela Cidadania e a Vida ocorrida em 20 de novembro de 1995 em Brasília quando os seus organizadores foram recebidos pelo então presidente da república Fernando Henrique Cardozo no Palácio do Planalto Na ocasião o presidente assumiu a existência do racismo no Brasil e propunha a criação de ações afirmativas para a população negra em seu governo Os organizadores da marcha entregaram ao presidente o Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial documento no qual propunham entre outros elementos a implementação de uma convenção sobre a eliminação da discriminação racial no ensino brasileiro o monitoramento dos livros didáticos manuais didáticos e programas educativos controlados pela união e o desenvolvimento de formações continuadas de professores habilitandoos a abordarem a diversidade racial identificar as práticas discriminatórias na escola e o impacto destas na evasão e repetência de crianças negras Contudo esse projeto ficou guardado por algum tempo Mas o contexto em torno do projeto de revisão da educação brasileira a partir dos debates sobre as relações étnicoraciais tornava cada vez mais evidente o caminho de mudança que paulatinamente se trilhava Além da marcha Zumbi dos Palmares em 1995 foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra em 1996 Também foram elaborados os Parâmetros Curriculares Nacionais pelo Ministério da Educação que para a disciplina escolar História referendava a importância de estudar a participação ativa das três matrizes formadoras da identidade nacional indígenas européias e africanas Já em 2001 ocorreram a Conferencia Mundial contra o Racismo a Discriminação Racial a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância Evento organizado pela ONU realizado em Durban na África do Sul Neste último evento o MNU reafirmou a necessidade de o Brasil implementar políticas 286 Constituição do Estado da Bahia 05 de outubro de 1989 287 Lei nº 6889 de 05 de setembro de 1991 288 Lei nº 7685 de 17 de janeiro de 1994 289 Lei nº 2221 de 30 de novembro de 1994 E Lei nº 2251 de 31 de março de 1995 290 Lei nº 11973 de 04 de janeiro de 1996 291 Lei nº 2639 de 16 de março de 1998 292 Lei nº1187 de 13 de setembro de 1996 159 afirmativas sobretudo para a população negra ao passo que o Estado brasileiro assumiu o compromisso de implementar essas políticas a fim de combater o racismo e as disparidade étnicoraciais293 Como fruto da emersão dessas reivindicações e ações dos movimentos negros associadas ao fato de o Estado brasileiro ter se comprometido publicamente com a reparação das desigualdades raciais em suas múltiplas instâncias de ação é que em janeiro de 2003 quando o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva o governo federal sancionou a Lei nº 10639 tornando obrigatório o ensino de história da África dos povos africanos do negro no Brasil e de história e cultura afrobrasileira Por conseguinte podemos afirmar que essa lei resulta de uma luta maior do MNU pelo fim do racismo no Brasil em que a educação foi eleita como campo de ressignificação da identidade cultural negra a partir da qual construindose uma nova discursividade partindo da ação políticocultural dos movimentos negros em consonância com historiadores e cientistas sociais de referência que reformularam a noção de cultura afro brasilera se expandiriam as novas possibilidades históricas de democratização do ensino de história Os cidadãos negros não estariam reduzidos às recordações românticas do colorido folclore ou ao fatalismo da exclusão sem saída Não negaria o lúdico a capoeira a gastronomia a dança a música a festa o candomblé a umbanda e a jurema sagrada etc Não negaria o racismo a pobreza e a falta de trabalho e a evasão escolar Porém traria à luz a esperança Mas garantir que a esperança ultrapasse o mundo das abstrações e se concretizasse no mundo real na experiência cotidiana da sociedade brasileira era necessário instituir práticas discursivas textos oficiais discursividades profícuas A identidade cultural negra era ressignificada através da atividade política sobretudo no nível cultural Os cidadãos negros que passariam a ser reconhecidos como sujeitos que produzem conhecimentos em diversas áreas do saber humano e que mesmo agindo nos espaços lúdicos gastronômicos e religiosos o fazem com sentidos muito 293 Mais informações sobre esse contexto podem ser acompanhadas em BATISTA Maria de Fátima Oliveira A Emergência da Lei nº 1063903 e a Educação das Relações ÉtnicoRaciais em Pernambuco Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2009 SILVA Claudilene O Processo de Implementação da Lei Nº 1063903 na Rede Municipal de Ensino do Recife In AGUIAR Mácia Ângela Org Educação e Diversidade Recife Gráfica J Luiz Vasconcelos 2009 v 2 p 0938 SILVA Claudilene O Processo de Implementação da Lei Nº 1063903 na Rede Municipal de Ensino do Recife In AGUIAR Márcia Ângela Org Educação e Diversidade Recife Gráfica J Luiz Vasconcelos 2009 v 2 p 0938 160 próprios desenvolvendo uma lógica bastante complexa de negociação e construção identitária Esses são os sentidos das lutas do MNU e suas várias facetas que culminou no estabelecimento da Lei 10639 em janeiro de 2003 A esse respeito a historiadora Circe Bittencourt 2006 afirma que para que ocorram mudanças nas propostas curriculares é necessário que tenham existido mudanças na sociedade e mais precisamente na clientela escolar Quando se reconhece oficialmente que surgiram novas demandas socioculturais e políticas na sociedade e mais especificamente no ambiente escolar fazse necessário repensar e modificar as propostas curriculares294 A Lei 1063903 modificou o artigo 26 da Lei 939496 denominada Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB No Capítulo II Seção I Das Disposições Gerais a LDB considera o currículo de forma flexível contextual adaptável às diferentes localidades do Brasil Art 26 Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum a ser complementada em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar por uma parte diversificada exigida pelas características regionais e locais da sociedade da cultura da economia e da clientela No parágrafo 4º do referido artigo incitase o reconhecimento da pluralidade cultural como conteúdo a ser abordado no ensino de história 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro especialmente das matrizes indígena africana e européia Porém num currículo que perpetua uma visão de mundo eurocêntrica a existência de um único parágrafo em forma de sugestão não garante por si só a efetivação de práticas pedagógicas que privilegiem a história e cultura das diferentes matrizes étnicas 294 BITTENCOURT Circe O Saber Histórico na Sala de Aula São Paulo Contexto 2006 161 Como bem atestam Marcus Silva e Selva Guimarães Fonseca295 o currículo é um campo de lutas Um espaço disputado por diferentes sujeitos com diferentes intenções e projetos políticos Nesse espaço simbólico somente alguns conhecimentos poderão ser contemplados e em se tratando do saber histórico escolar poderá perpetuar a memória de um grupo sobre outro A memória de um grupo que detém o poder de dizer e fazer a política educacional O currículo é um lugar de negociação de sentidos e como tal expressa tensões conflitos acordos consensos aproximações e distanciamentos Enquanto construção cultural ele é dotado de uma historicidade é plástico pode readequarse a novas demandas de significação política social e cultural Como vimos ao longo deste capítulo o MNU buscou ser ativo na disputa por esse espaço de legitimação de poderes que é o currículo escolar Na falta de maiores ações efetivas o MNU continuou pressionando o governo federal para que tomasse providencias quanto ao combate ao racismo Uma vez que no contexto da Conferência de Durban em 2001 o governo brasileiro havia se comprometido com a ONU referente à aplicação de medidas de reparação racial para tal foi sancionada a Lei nº 1063903 tornando obrigatório nas redes de ensino brasileiras O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei Art 1 A Lei n 9394 de 20 de dezembro de 1996 passa a vigorar acrescida dos seguintes arts 26A 79A e 79B296 Art 26A Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio oficiais e particulares tornase obrigatório o ensino sobre História e Cultura AfroBrasileira 1 O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos a luta dos negros no Brasil a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social econômica e política pertinentes à História do Brasil 295 SILVA Marcus FONSECA Selva Ensinar História no Século XXI em busca do tempo entendido Campinas Papirus 2007 296 O artigo 79 da LDB trata do projeto educativo para as comunidades indígenas garantindolhes uma política cultural que embora dialoga com o restante da sociedade brasileira priva pela valorização também das práticas culturais especificas desses povos Com a Lei 1063903 instituise neste artigo o Dia Nacional da Consciência Negra 162 2 Os conteúdos referentes à História e Cultura AfroBrasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras Art 79B O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra Art 2 Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação Brasília 9 de janeiro de 2003 LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque No texto da lei podemos ver o uso de alguns termos presentes nas propostas do MNU desde o Programa de Ação de 1982 o que denota que esse projeto foi elaborado por militantes que estavam imbuídos nessas práticas discursivas O discurso oficial do Estado brasileiro se alimentava dos discursos atualizados do MNU que por sua vez se afinava cada vez mais com os historiadores e cientistas sociais comprometidos com a causa dos negros Nesta prática interdiscursiva ganha destaque a história da África das lutas do povo negro e da cultura afrobrasileira na formação da nacionalidade porém percebase no texto da lei que ainda se usa o termo contribuição ao invés de participação como o desejava o MNU Pode parecer simples mas a escolha de determinados termos em detrimento de outros revela visões de mundo e relações de poder Enquanto que por exemplo o termo participação atribui um sentido de atividade na ação histórica o termo contribuição minimiza afasta marginaliza a ação do outro É importante lembrar que embora haja uma notável interdiscursividade com o MNU ao passar pelo congresso e ser sancionado pelo presidente o texto passa a assumir a voz do governo e neste sentido o MNU e toda a comunidade que ele representa voltam a ser o outro Assim por mais que pareça que se está dando um grande passo inovador se está na verdade reproduzindo representações minimizantes da participação negra na história Brasil que são presentificadas pelo anunciado da lei297 Na análise do discurso todas as formas de expressão tem importância e constroem significados pois Todo dizer é 297 ORLANDI Eni Análise do Discurso princípios e procedimentos Campinas Pontes Editores 2012 163 ideologicamente marcado É na língua que a ideologia se materializa Nas palavras dos sujeitos 298 e isso ocorre mesmo que por vezes eles não se deem conta O porquê de se proferir um discurso de uma forma e não de outra encontrar a mensagem transmitida naquilo que não foi dito como uma presença de uma ausência necessária299 problematizar a interpretação do dizível contextualizandoa e percebendo as relações de poder que a interpelam Essa minimização do negro ao contento de uma lei federal não ocorreu apenas no plano mais sutil do discurso Ela se deu também de forma objetiva negando a intervenção direta e legal do MNU na produção de discursos nessa política educativa que se instalara afinal foi vetada a participação do MNU na elaboração de materiais didáticos e na formação de professores como fora requisitado pelo movimento no VIII ENNNE nos Programas de Ação e demais espaços formativos É questionável até que ponto essa nova discursividade que fora convertida em lei promoveu o protagonismo negro na reconstrução da proposta educativa brasileira uma vez que lhe foi negado a participação em processos futuros de intervenção O Estado diz que o MNU só pode vir até determinado ponto da ação Além disso a existência de uma lei na teoria não garante a realização de atividades práticas quanto ao ensino de história e cultura afrobrasileira Se a lei propunha o combate ao racismo através da construção crítica do conhecimento sobre a experiência histórica e cultural dos negros no Brasil ela esbarrava nas dificuldades de outros recursos tão necessários a sua concretização a formação de professores e a produção de livros e materiais didáticos por exemplo Conforme a educadora Claudilene Silva Significa dizer que apesar da conquista de marcos legais que tentam garantir a singularidade e pluralidade do espaço escolar a escolarização da população negra brasileira tem se pautado por uma ideologia que ainda é fundamentada no desejo de branqueamento do Brasil e no mito da democracia racial A escola que a população negra conhece ainda é uma escola que tem negado a sua existência300 298 Idem Op Cit p 38 299 ORLANDI Eni Análise do Discurso princípios e procedimentos Campinas Pontes Editores 2012 300 SILVA Claudilene O Processo de Implementação da Lei Nº 1063903 na Rede Municipal de Ensino do Recife In AGUIAR Márcia Ângela Org Educação e Diversidade Recife Gráfica J Luiz Vasconcelos 2009 v 2 p 19 164 Embora o governo federal e muitos profissionais do ensino tenham se empenhado nos últimos anos em produzir diversas ações de transformação deste quadro tais como a produção de materiais didáticos específicos o fomento a projetos culturais a promoção de eventos e cursos de formação de gestores e professores etc a qualidade de muitas destas ações pode ser questionada sobretudo quando perguntamos qual a noção de cultura afrobrasileira que permeia cada uma dessas ações Com uma lei ainda tão genérica que não estabelece metas nem procedimentos de ações e além disso que também veta a iniciativa direta do MNU na ação política quanto à efetivação da lei as clivagens entre teoria e prática se tornaram evidentes Foi assim que o Conselho Nacional de Educação CNE emitiu o Parecer nº 032004 e a Resolução 012004 como documentos reguladores da Lei 1063903301 O conselho teve como relatora a Profª Dra Petronilha Beatriz Gonçalves302 No parecer CNECP 032004 buscouse ser bem abrangente Sugeriuse valores como justiça social dignidade humana cidadania respeito às diferenças e valorização das identidades afrobrasileiras como fundamentos para se efetivar a lei no cotidiano de sala de aula Estas ações são estabelecidas no discurso da relatora como princípios orientadores da política educacional para as relações étnicoraciais e versa sobre formação de professores conteúdos e formas de abordagem e produção de livros e materiais didáticos A cultura afrobrasileira é pensada em sua diversidade É definida dentro da perspectiva do MNU referência pela qual a autora enquanto ativista negra 301 CUNHA Jr Henrique Abolição inacabada e a educação dos afrodescendentes Revista Espaço Acadêmico 2008 nº8 outubro ano VIII ISSN 15196186 SILVA Claudilene O Processo de Implementação da Lei Nº 1063903 na Rede Municipal de Ensino do Recife In AGUIAR Márcia Ângela Org Educação e Diversidade Recife Gráfica J Luiz Vasconcelos 2009 v 2 p 0938 302 Reconhecida militante negra e pesquisadora das relações étnicoraciais no Brasil Petronilha é professora titular da Universidade Federal de São Carlos UFSCar O texto da professora partiu de uma pesquisa feita com aplicação de questionários a vários sujeitos grupos do Movimento Negro militantes individuais Conselhos Estaduais e Municipais de Educação professores engajados com a temática e pais de alunos Foram encaminhados em torno de 1000 questionários e o responderam individualmente ou em grupo 250 mulheres e homens entre crianças e adultos com diferentes níveis de escolarização As respostas analisadas nestes questionários foram importantes para que se traçassem problemas dificuldades e dúvidas reais dos múltiplos sujeitos a quem o ensino de história e cultura afrobrasileira interessa Por conseguinte esses dados serviram de base para que o parecer tecesse suas orientações posturas indicações normas temas materiais e métodos Isso nos faz perceber a complexidade de sujeitos envolvidos na produção de demandas para o ensino de história e cultura afrobrasileira Para além do MNU foram relevantes também diversos ativistas negros individualmente acadêmicos agremiações e grupos culturais professores gestores pais etc As vozes destes sujeitos negociaram sentidos sobre a cultura afrobrasileira e sua importância política no currículo de história Compartilharam dificuldades e esperanças traçando projetos Além de ter a profa Petronilha a construção do parecer contou também com a participação de intelectuais de diferentes pertencimentos étnicoraciais tais como a professora indígina Francisca Novantino Pinto de Ângelo Nezokemaero que atua como membro representante indígena na Comissão Nancional de Professores Indígenas do MEC e dos professores brancos Carlos Roberto Jamil Cury professor émerito da UFMG e expresidente da CAPES e da professra Marília AnconaLopez doutora em psicologia clínica que atua como assistente doutor da Pontifícia Unviersidade Católica de São Paulo 165 busca legitimar o seu texto no Parecer Os lugares simbólicos dessa cultura afro brasileira são amplos e pequenos ao mesmo tempo fluidos e consistentes as danças músicas festejos a capoeira o teatro a linguagem as religiosidades O ensino de Cultura AfroBrasileira destacaria o jeito próprio de ser viver e pensar manifestado tanto no dia a dia quanto em celebrações como congadas moçambiques ensaios maracatus rodas de samba303 Mas também entre outras manifestações culturais mais estruturadoras das relações sociais os conceitos a estética as relações culturais ambientais sociais e políticas as formas de trabalho a produção do conhecimento aos conceitos e significações próprias que os negros constroem dentro de sua lógica cultural muito própria em seus diversos contextos de experiências históricas Com vistas à divulgação e estudo da participação dos africanos e de seus descendentes em episódios da história do Brasil na construção econômica social e cultural da nação destacandose a atuação de negros em diferentes áreas do conhecimento de atuação profissional de criação tecnológica e artística de luta social304 A resolução por sua vez estabelece o referido parecer como Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e ressalta que o cumprimento das diretrizes será um fato determinante na avaliação do funcionamento das unidades escolares Ainda assim essa decisão extremada não garante o cumprimento dos planejamentos oficiais Art 2 As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africanas constituemse de orientações princípios e fundamentos para o planejamento execução e avaliação da Educação e têm por meta promover a educação de cidadãos atuantes e conscientes no seio da sociedade multicultural e pluriétnica do Brasil buscando relações étnico sociais positivas rumo à construção de nação democrática 2º O Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana tem por objetivo o reconhecimento e valorização da identidade história e cultura dos afrobrasileiros bem como a garantia de 303 BRASIL Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana Parecer CPCNE 032004 Brasília 22062004 304 BRASIL Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana Parecer CPCNE 032004 Brasília 22062004 166 reconhecimento e igualdade de valorização das raízes africanas da nação brasileira ao lado das indígenas européias asiáticas Pensando a educação como um desenvolvimento intelectual que contempla a consciência racial os intelectuais responsáveis por estas elaborações oficiais propõe que o Ensino seja o campo não só fomento ao desenvolvimento social dos estudantes negros mas também uma experiência significativa de construção de identidade sentimento de pertencimento reflexão crítica definição de posturas políticas valorização exercício e divulgação da cultura afrobrasileira como marcas distintivas e estimadas mesmo em meio a uma sociedade racista Desta forma a educação seria um espaço de construção e vivencia da cidadania Mas a aplicabilidade desse conceito depende das diferentes apropriações que podem ser feitas no cotidiano do ambiente escolar Vai depender muito dos personagens que se cruzem e negociem sentidos e poderes nas encruzilhadas discursivas da história Para Claudilene Silva devemos compreender a legislação e suas diretrizes dentro do campo das relações étnicoraciais brasileiras como política educacional de promoção da igualdade racial ou seja uma política afirmativa que busca compensar as conseqüências atuais de uma sociedade que reproduz um racismo como estruturador das desigualdades sociais Tal contexto gera um incomodo não só em vários setores da sociedade brasileira como também no Estado brasileiro que embora se proponha como republicano resiste a equacionar desigualmente a diversidade305 Identidades cenários e poderes que circulam em discursividades múltiplas o negro a representação sobre o negro a representação do negro Políticas públicas currículo formal formação de professores práticas pedagógicas representações do alunado conflitos no ambiente escolar reprodução do racismo omissões quanto ao estudo de história e cultura afrobrasileira materiais e livros didáticos Discutir essa complexa rede de artefatos e signficações no Ensino de história é uma tarefa muito ampla e por isso mesmo difícil Há que se fazer recortes e tomar apenas um desses elementos 305 SILVA Claudilene O Processo de Implementação da Lei Nº 1063903 na Rede Municipal de Ensino do Recife In AGUIAR Márcia Ângela Org Educação e Diversidade Recife Gráfica J Luiz Vasconcelos 2009 v 2 p 0938 167 Para as ciências sociais brasileiras sobretudo a História a presença negra e seu universo cultural tornaramse objeto de estudos específicos com o desenvolvimento do Estado republicano Entre finais do século XIX e durante todo o século XX essa preocupação se atualizou e apareceu de diferentes formas conceituais Ora reforçando estereótipos ora buscando desconstruílos Temos assim um elenco de conceitos de cultura afrobrasileira e algumas propostas de uma cartografia desta cultura localizandoa em determinados lugares simbólicos por vezes plasmandoa de forma irrevogável sem conhecer seus sentidos mais profundos Em outro contexto intelectuais brancos e negros ao lado dos movimentos negros se preocuparam em revisar conceitualmente a história e a cultura afrobrasileira e com isso constroem uma série de pautas e reivindicações que legitimam direitos políticos em prol de uma cidadania negra brasileira Produzemse novos sentidos novas conceituações interdiscursivas que redefinem e relocalizam simbolicamente a cultura afrobrasileira nas representações e nas reorginazações do nacional Nesse processo de construir legitimidades o ensino de história é reconfigurado a partir de demandas identitárias mais democráticas 168 CONSIDERAÇÕES FINAIS A cultura afrobrasileira se torna objeto de estudo no Brasil a partir do momento em que o Estado brasileiro passava por reconfigurações políticas no final do século XIX Se agora o Estado se assumia republicano era necessário pensar de forma mais ampla os seus critérios de cidadania Desde o fim do império brasileiro que os negros não eram escravos mas inda na república não estavam tão claros os projetos de cidadania a ser vivenciados pelos diferentes cidadãos Aliás a diferença num sentido de distinção para usufruto de privilégios políticos foi a regra de estabelecimento de níveis diferenciados de cidadania O Estado se reformulava politicamente mas não deixava de manter relações de desigualdade social As elites ainda mantinham seus propósitos na gestão republicana O novo advento político exigia nova reinvenção do nacional e a cultura foi um dos elementos centrais do mito fundador do Brasil As discursividades emergentes queriam entender o caráter nacional na alma do povo verificando a participação dos três grupos étnicos indicados como formadores do Brasil brancos negros e índios É a partir do critério contribuição na história do desenvolvimento nacional que se legitimará as hierarquias raciais no Brasil Desta forma se legitima discursivamente que aqueles cidadãos em melhores condições sociais são descendentes das raças que mais e melhor contribuíram para o desenvolvimento do Brasil Essa perspectiva racializante naturaliza as diferenças reconfigurando as relações de poder306 Entender esse processo é essencial para perceber as redes de significação discriminatórias que orientam as ações das pessoas ainda hoje perante a população negra e sua cultura Segundo Edward Said307 existe uma profunda diferença entre o ato de estudar o outro para conhecêlo para alargar horizontes e tecer boas relações de convivência entre o eu e o outro e estudar e conhecer esse outro para poder dominálo colonizálo definir suas possibilidades históricas políticas e culturais O movimento negro surgido em finais dos anos 1970 estava atento a isto e buscou referenciarse em uma complexa rede de discursividades que legitimassem as suas pautas políticas Em meio ao processo de descolonização da África aos movimentos pelos direitos civis nos EUA às críticas de intelectuais que põem na 306 SCHWARCZ Lilia Moritz O Espetáculo Das Raças cientistas instituições e questão racial no Brasil 18701930 São Paulo Companhia das Letras 1993 307 SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 169 agenda pública as violências material e simbólica das formas de dominação das sociedades modernas ocidentais em meio às teorias sobre a educação como instância legitimadora ou transformadora de desigualdades sociais surgem textos argumentos e ideias que nutriram o nascente MNU e suas críticas ao Estado brasileiro suas propostas e definições conceituais Dentre suas pautas políticas está a briga pelo universo simbólico e semântico pela representação da identidade cultural negra e a sua dignidade na História Assim julgam os militantes negros do século XX no Brasil há a permanência de um racismo velado que deslegitima social econômica e politicamente a identidade cultural negra Mas este racismo foi construído historicamente é portanto uma construção cultural suscetível de eliminação Nesta luta o MNU assumia postura contra a manipulação ideológica e exploração da cultura afrobrasileira ao passo que se empenhava por sua valorização e uso como instrumento de atuação política Mais do que posicionamentos do MNU estas propostas marcam zonas de interdiscursos Ora aproximações discursivas entre o MNU e uma estabelecida tradição de estudos afrobrasileiros para negaremse ora aproximações entre o MNU e novos estudiosos da cultura afrobrasileira para afirmaremse Desse modo a historicidade do conceito de cultura afrobrasileira mostra que este termo é polissêmico Corresponde não só às práticas culturais em si mas também aos discursos sobre tais práticas O conceito de cultura afrobrasileira como discursividade é algo aberto às significações múltiplas sendo apropriado e ressignificado por diferentes sujeitos com diferentes intenções em momentos distintos da história Essas significações denotam histórias de lutas entre formas de dominação e de libertação entre colonização x descolonização políticocultural Enfim a história da cultura afrobrasileira enquanto discursividade denota poderes O posicionamento estratégico do MNU em seus textos contra a manipulação ideológica e a exploração da cultura afrobrasileira nos instigou a historicizar este processo contra o qual o movimento se coloca oficialmente Percebemos haver a formação e atualização de uma tradição de pensamento colonizadora dominadora sobre a cultura afrobrasileira que foi alimentada por vários intelectuais Tivemos de selecionar e decidimos pelos inauguradores dos paradigmas interpretativos sobre a cultura afrobrasileira Aqueles autores que com muita originalidade e rearranjos teóricometodológicos forjaram narrativas sistemas de explicação e plasmaram as representações sobre o tema que se tornaram clássicas Constatamos que mudanças paradigmáticas mudanças de referenciais teóricometodológicos não consistem 170 necessariamente em mudança de visão de mundo em relação a um determinado tema Autores como Nina Rodrigues Gilberto Freyre e Florestan Fernandes partiam do pressuposto que a cultura afrobrasileira é quando comparada à cultura do branco ocidental cristã moderna capitalista neoliberal racista etc uma cultura menor menos enraizada ou estruturada etc Estes autores não conseguiam compreender a lógica própria do objeto ao qual se propunham a estudar Eles realizaram operações simbólicas e conceituais que identificam e classificam a produção cultural afrodescendente no Brasil pela carência plasticidade infantilidade alienação e grosseria de seus conteúdos e formas São tomados como práticas culturais autenticamente negras a dança a música a festa a escultura a culinária o candomblé a capoeira etc afirmase indiretamente que só se é negro dentro destes nichos culturais dentro desses lugares simbólicos Não se estende a noção de cultura afrobrasileira a outras práticas experiências históricas e visões de mundo Ela é definida pela superficialidade de suas linhas e socialmente desclassificada no dizer do intelectual branco São as danças lascivas as músicas desordenadas as festas desorganizadas as esculturas grosseiras a culinária simples e colorida a religião fetichista o lúdico agressivo No olhar e no dizer colonizador do branco a cultura afrobrasileira é instintiva e não racional Ela deve ficar adormecida sob os lençóis ou enfeitando as coloridas e folclóricas pinturas e fotografias que deverão permanecer guardadas durante todo o ano para não por o país a perder Ela só seria chamada quando necessário à espetacularização e lucratividade do Estado brasileiro e das classes dominantes Uma discussão datada mas que torna clássicas as representações de lugares simbólicos que serão retomados posteriormente por uma grande série de intelectuais brasileiros pela mídia pelas instituições escolares pela indústria cultural etc O processo de estereotipização da cultura afrobrasileira gera lucros para os cidadãos não negros e para o Estado brasileiro ao passo que deslegitima as pautas políticas da população negra Era contra isso que o MNU se posicionava Definidos os nichos autênticos de cultura negra limitase simbolicamente o acesso dos negros a outros espaços de saber e poder limitamse as possibilidades históricas antropológicas e sociais Negase a memória de outras experiências históricas e socioculturais dos negros no Brasil pois tratase de uma perspectiva cultural determinista Não se deve esquecer que num contexto de liberalismo a sociedade burguesa entende como cultura os saberes científicos tecnológicos artísticos e filosóficos produzidos pelas classes dominantes o que pressupõe uma divisão social 171 entre saberes intelectuais e manuais cuja distinção efetivase pela educação formal para ter competência de produzir uma boa cultura308 Nessa perspectiva distintamente da arte a cultura afrobrasileira estaria no campo do folclore Não objetivamos com este trabalho inferiorizar ou desconsiderar o vestuário a gastronomia309 a música a dança a escultura o candomblé enquanto práticas culturais afrobrasileiras Não consideramos que esses lugares simbólicos sejam destituídos de inteligência ou que não haja neles a realização de complexas operações mentais Longe disso Nossa inquietação corresponde ao momento em que esses lugares simbólicos se tornam discursivamente as únicas experiências possíveis sendo tomados como critérios de autenticidade da identidade cultural negra no Brasil Pior ainda sendo incompreendidos e depreciados Uma vez identificadas as intenções estratégias e consequências dessa rede discursiva o próprio MNU ponderoua como uma discussão datada historicamente que não poderia continuar sendo perpetuada no imaginário nacional Afinal sabiam os militantes já se dispunha de outros referencias que ressignificavam o saber e as relações de poder em relação ao tema No Programa de Ação do MNU o movimento convidava historiadores antropólogos e outros cientistas sociais preocupados com a causa do negro para estabelecer diálogos e parceria num intenso revisionismo do nacional No livro Cafundó Peter Fry Carlos Vogt e Robert Slenes assumem que consideram legítima a causa do MNU e que decidiram se aproximar do movimento contribuindo através de pesquisas científicas com as suas pautas políticas Nestes encontros e negociação de sentidos o conceito de cultura afrobrasileira é reformulado Esta cultura passa a ser definida como um conjunto de práticas que articulam memórias de experiências vividas no continente africano adaptadas às expectativas de vida e dignidade humanas construídas pelos africanos e seus descendentes no Brasil sob as agruras vividas no cativeiro A cultura ganha nova 308 CHAUÍ Marilena Política Cultural Porto Alegre Mercado Aberto 1985 309 O termo gastronomia não é contemporâneo ao período de produção de Nina Rodrigues Freyre e Fernandes mas sim como já dito o termo culinária Contudo hoje adotamos o termo gastronomia pois este termo indica não só o ato de produzir receitas mas também a variedade de saberes fazeres e significações que circundam a produção dessas mesmas receitas Consideramos também que o termo culinária folcloriza torna estático o saber gastronômico afrobrasileiro Notese que ainda hoje cotidianamente muitas pessoas usam expressões como gastronomia alemã francesa ou italiana e culinária africana e afrobrasileira O estabelecimento e difusão dessas expressões não são processo inocentes Embora o uso dessas expressões possa ser inconsciente elas diferenciam hierarquizando e reconstruindo semanticamente relações de poder 172 dimensão temporal É dinâmica mutável transformada e transformadora É contextual sociológica histórica e política Os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira são ampliados não fragmentos de línguas africanas mas formas de linguagem complexos sistemas de significação do mundo construção de conceitos e visões de mundo Não apenas o candomblé mas todas as religiosidades onde há a presença de elementos africanos ressignificados inclusive em vivências de origem cristãs Não somente os aglomerados negros da festa e do lúdico mas o aglomerado familiar afetivo a linhagem Não somente a casa a choupana ou qualquer outro objeto material por si só mas a construção espacial as extensões e elos invisíveis entre o mundo físico e o espiritual Fry Vogt e Slenes não dispensam os lugares simbólicos clássicos como a dança música gastronomia etc mas afirmam que é preciso buscar conhecer os sentidos mais profundos presentes na lógica que orienta essas ações dos cidadãos negros dentro dessas práticas conforme uma perspectiva afrocentrada Essa busca se configurou na bandeira de luta levantada pelo MNU no fomento às novas pesquisas publicações e produções de materiais didáticos vídeos etc por parte de intelectuais ativistas negros e não negros No Programa de Ação do MNU também é definido o conceito de cultura afrobrasileira onde se percebe total interdiscursividade entre esses novos cientistas sociais e o MNU310 Para o movimento ela é dinâmica e entendida como instância mediadora de relações políticas no cotidiano Ela tem lógica própria sentidos profundos originalidade e não essencialidade estando aberta a novas interações culturais mas sempre sendo transformada e transformando os sujeitos negros a partir de suas experiências e necessidades concretas Esclarecidas essas noções o MNU se empenhou em estabelecêlas também como princípios orientadores das políticas públicas do Estado brasileiro através da educação O movimento exigia que a educação no Brasil fosse reformulada de modo que deixasse de ser instrumento de legitimação ideológica das classes dominantes e passasse a ser um instrumento libertador democrático ético e estético na própria reestruturação do Estado brasileiro Os militantes se empenharam em pesquisas científicas uma vez que são legitimadoras de ações políticas para denunciar as abordagens racistas fortemente presentes nos currículos nas instituições escolares e nos 310 Não queremos dizer com isso que o MNU foi apenas influenciado por esses acadêmicos Na verdade o que constatamos é que as influências foram mútuas Fica difícil dizer quem definiu o que primeiro Aliás isso sequer foi preocupação dos referidos sujeitos tampouco é a nossa Preferimos pensar numa sistemática de diálogos e negociações de sentidos onde a discursividade que sempre aberta circula e é apropriada e reapropriada Temporalmente tanto a fundação do MNU como o início dessas pesquisas históricas de cunho cultural feita por Fry Vogt e Slenes datam de 1978 173 livros didáticos por exemplo Promoveram encontros debates exigiram mudanças e elaboraram propostas de e para o ensino Projetavase através da militância uma nova configuração curricular para o Ensino de história Nessas ações a instituição MNU não estava sozinha Ao seu lado as instituições de caráter cultural agremiações carnavalescas e lideranças religiosas tiveram participação ativa Produziamse narrativas que redignificassem a identidade negra através de músicas sambaenredos peças de teatro poesias etc Uma das ações mais significativas neste sentido foi o VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste ENNNE cujo tema era O negro e a educação A educação foi eleita como via de transformação na mentalidade da sociedade brasileira Fato que reorientaria não só representações mas também ações e relações pessoais no cotidiano das pessoas em relação à cultura negra Foram vários os esforços para a criação de uma Lei que operasse em nível nacional Enquanto isso várias experiências de legalização da proposta foram vivenciadas por alguns estados e municípios brasileiros No entanto as pressões do movimento ao governo federal não cessavam A Marcha Zumbi dos Palmares constitui um marco neste sentido mas a situação só toma corpo em 2001 quando o Estado brasileiro se reconhece como racista perante a ONU e se compromete publicamente em criar políticas de combate ao racismo e promoção da igualdade racial Apenas em 2003 é que foi criada a Lei 10639 tornando obrigatório o estudo de história da África dos povos africanos e da cultura afrobrasileira Mas entre a garantia de uma lei e a efetivação de práticas de ensino que a materializem há grandes clivagens Uma longa história de discriminação simbólica não se abandona tão rapidamente Toda uma cultura educativa no Brasil precisa ser mexida formação de professores e gestores escolares produção de materiais didáticos conversas com os alunos e comunidade escolar são algumas medidas necessárias pois a falta delas ainda torna fluida a efetivação da Lei Ora ainda neste sentido outro agravante ainda era que conteúdos selecionar para ensinar Não havia diretrizes específicas para o ensino de história e cultura afrobrasileira Tal fato deixava uma grande abertura para que aquelas velhas noções estereotipadas da cultura afrobrasileira encontrassem um campo vastíssimo e legalmente garantido para perpetuaremse Para os intelectuais ativistas um perigo Foi então que um ano após sancionada a Lei alguns intelectuais negros indígenas e brancos comprometidos com a reconstrução das relações democráticas entre o Estado e a sociedade criaram o Parecer nº 032004 e a Resolução 012004 como documentos reguladores da Lei 10639 Agora sim tinhase nos marcos legais para o 174 Ensino de História a referência clara ao conceito de cultura afrobrasileira pautado nas discussões da historiografia cultural ao modo de Slenes Fry e Vogt e do MNU A partir dessa complexa história de discursividades poderes políticos historiografia e ensino de história referendamos uma postura política Pensamos que seja necessário abandonar as velhas concepções e buscar compreender os significados do que sejam para a própria comunidade negra a sua cultura e suas diversas práticas seu vestuário sua gastronomia seus conceitos e sistemas linguísticos suas danças músicas e demais artes suas formas de religiosidade formas de afeto visões de mundo etc Devemos pensálas em seu dinamismo e poder nas mediações políticas Promover um esforço intelectual para descolonizar os dizeres sobre a cultura afrobrasileira é buscar sua lógica própria em outras histórias outras experiências outras práticas culturais outras possibilidades de ser dizer e fazer da população negra em nosso país Esta operação simbólica demanda muitas outras coisas Compreendidos os sentidos da cultura afrobrasileira construídos e propostos para o ensino de história no Brasil neste início do século XXI é terminar esta dissertação com inquietações e esperanças Uma questão importante que se impõe é sobre como esta proposta oficial tem ou não se efetivado em diferentes realidades escolares nestes anos após a Lei Mas isto convenhamos é tema de pesquisas futuras 175 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADICHE Chimmammanda O perigo de uma única história Conferência ministrada em julho de 2009 Oxford Inglaterra Disponível em wwwyoutubecom Acesso em 11 de maio de 2011 ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 ALBUQUERQUE Jr Durval M História a arte de inventar o passado Ensaios de Teoria da História Bauru SP Edusc 2007 ALBUQUERQUE Jr Durval Muniz A invenção do Nordeste e outras artes São Paulo Cortez 2009 ALBUQUERQUE Wlamira R de O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 ALMEIDA Maria das Graças Andrade Ataíde de A construção da verdade autoritária São Paulo HumanitasFFLCHUSP 2001 ALTHUSSER Louis Ideologia e Aparelhos ideológicos de estado Lisboa Presença 1970 ANDREWS George Negros e Brancos em São Paulo 18881988 Bauru EDUSC 1998 BARBOSA Lúcia Falcão O castelo de Alecrim intelectuais no Recife em 21 de abril de 1960 Tese de Doutorado em História defendida na Universidade Federal de Pernambuco UFPE Centro de Filosofia e Ciências Humanas CFCH 2005 BARBOSA Muryatan Eurocentrismo História e História da África Sankofa Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africna Vol 1 nº1 junho de 2008 p4663 BATISTA NETO José SANTIAGO Eliete Org Formação de Professores e Prática Pedagógica Recife Ed Universitária da UFPE 2009 BATISTA Maria de Fátima Oliveira A Emergência da lei nº 1063903 e Educação das Relações ÉtnicoRaciais em Pernambuco Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de PósGraduação em Educação da Universiade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2009 BEM Arim Soares do A centralidade dos movimentos sociais na articulação entre Estado e a sociedade brasileira nos séculos XIX e XX Disponível em wwwcedesunicampbr Acesso em 10062010 BITTENCOURT Circe Ensino de História fundamentos e métodos São Paulo Cortez 2008 176 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junho de 2020 Banca Examinadora Profa Dra LAURA CRISTINA VIEIRA PIZZI UFAL Orientador Profa Dra ANDERSON ALENCAR MENEZES UFAL Examinadora Internoa Profa Dra ROSEANE MARIA DE AMORIM UFAL Examinadora Internoa Profa Dra MARTHA ROSA FIGUEIRA QUEIROZ Universidade Federal do Recôncavo da Bahia Examinadora Externoa Profa Dra GIAN CARLO DEMELO E SILVA UFAL Programa de PósGraduação em História Examinadora Externoa RESUMO CAPÍTULO 2 A CULTURA AFROBRASILEIRA NA CONTEMPORANEIDADE DILEMAS NA PRODUÇÃO DE UM CONCEITO No capítulo 2 Cultura afrobrasileira na contemporaneidade dilemas na produção de um conceito o autor discute as diversas formas como o conceito de cultura afrobrasileira tem sido abordado tanto no âmbito científico quanto no social Por um lado o autor analisa como o conceito de cultura afro brasileira tem sido abordado no discurso científico especificamente na forma de novas metanarrativas históricas o autor discute como o conceito de cultura afrobrasileira tem sido usado para desafiar as narrativas tradicionais da história brasileira que excluíram ou minimizaram o papel dos afrobrasileiros no desenvolvimento do país Por outro lado ele analisa como o conceito de cultura afrobrasileira tem sido abordado no discurso do movimento social negro o movimento social negro tem utilizado o conceito de cultura afrobrasileira como ferramenta de empoderamento político e educacional Por fim o autor oferece uma síntese das diversas abordagens do conceito de cultura afrobrasileira destacando os desafios e dilemas que ainda existem em sua produção De uma forma geral ele analisa a formação da cultura afrobrasileira nas novas metanarrativas históricas a renovação da cultura afrobrasileira brasileira nas novas metanarrativas históricas e o caráter pedagógico do movimento negro sobre a cultura afrobrasileira o conceito de cultura afrobrasileira hoje é entre representações dilemas e direções políticas O autor discute o conceito contemporâneo de cultura afrobrasileira observando como ela vem sendo abordada em contextos acadêmicos e ativistas Por um lado ela mostra como as narrativas históricas recentes tendem a minimizar o papel da cultura africana na formação da sociedade brasileira enfatizando a importância do sincretismo Por outro lado ela analisa como o movimento social negro tem trabalhado para resgatar e promover a cultura afrobrasileira como forma de afirmação da identidade negra assim ele conclui discutindo alguns dos desafios envolvidos na conceituação da cultura afrobrasileira hoje particularmente em termos de suas implicações políticas RESUMO CAPÍTULO 2 CULTURAS NEGRAS DIZERES BRANCOS a construção do conceito de cultura afrobrasileira nas obras clássicas da historiografia brasileira Para tanto foram analisados dois textos que apresentam a cultura afro brasileira como um conceito A cultura afrobrasileira um conceito em construção de Luiz Antonio Simas e A cultura afrobrasileira um conceito polêmico de Sérgio Adorno A partir dessa análise foi possível identificar que o conceito de cultura afrobrasileira é construído a partir de uma relação de poder que se manifesta na dominação do discurso sobre a cultura afro brasileira pelos grupos dominantes A cultura afrobrasileira é um conceito que reúne diversas formas de expressão cultural dos afrobrasileiros a partir da análise de documentos oficiais literários jornalísticos e iconográficos este trabalho examina como este conceito foi formulado ao longo do século XX através da construção de uma série de discursos O capítulo dois tem como temas chaves CULTURAS NEGRAS DIZERES BRANCOS a construção do conceito de cultura afrobrasileira nas obras clássicas da historiografia brasileira a presença negra como problemática para a República brasileira a cultura afrobrasileira como discursividade Nina Rodrigues a eugenia e a inauguração de um conceito de cultura afrobrasileira Gilberto Freyre o difusionismo cultural e a malemolência gostosa da cultura afrobrasileira Florestan Fernandes o marxismo e as perdas da cultura afrobrasileira A primeira parte do trabalho apresenta uma discussão sobre o conceito de cultura sua relação com o conceito de raça e sua construção histórica A segunda parte analisa a formação do conceito de cultura afrobrasileira a partir da década de 1930 com a criação do Movimento Negro e a formulação de um projeto de valorização da cultura afrobrasileira A terceira parte examina a forma como o conceito de cultura afrobrasileira foi utilizado pelo regime militar 19641985 como instrumento de propaganda e de controle social A quarta parte analisa a forma como o conceito de cultura afrobrasileira é utilizado na atualidade como um instrumento de luta contra o racismo e de afirmação da identidade afrobrasileira A cultura afrobrasileira é portanto um conceito construído socialmente que tem como principal característica a heterogeneidade isso porque o afro brasileiro é um grupo social composto por pessoas de diversas origens étnicas religiões e classes sociais o que torna difícil a elaboração de um discurso unificado apesar dessa heterogeneidade o conceito de cultura afrobrasileira tem sido utilizado de forma cada vez mais ampla passando a ser empregado para nomear a realidade de outros grupos sociais como os afrodescendentes latinoamericanos e africanos a cultura afrobrasileira é portanto um conceito dinâmico e inacabado que está em constante construção e reconstrução