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FOLHA EXPLICA NIETZSCHE OSWALDO GIACOIA JUNIOR PUBLIFOLHA FOLHA EXPLICA NIETZSCHE OSWALDO GIACOIA JÚNIOR PUBLIFOLHA 2000 Publifolha Divisão de Publicações da Empresa Folha da Manhã SA 2000 Osvaldo Giacoia Júnior Divisão de Publicações da Empresa Folha da Manhã SA Editor Arthur Nestrovski Capa e projeto gráfico Silvia Ribeiro Assistente de projeto gráfico Marilisa von Schmaedel Revisão Mário Vilela Editoração eletrônica Picture Dados internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Giacoia Júnior Osvaldo Nietzsche Osvaldo Giacoia Júnior São Paulo PUBLIFOLHA 2000 Folha explica ISBN 8574022128 1 Filosofia alemã 2 Nietzsche Friedrich Wilhelm 1844 1900 I Título II Série 002125 CDD193 Índices paro catálogo sistemático 1 Nietzsche Filosofia alemã 193 PUBLI FOLHA Divisão de Publicações do Grupo Folha Av Dr Vieira de Carvalho 40 II andar CEP 01210010 São Paulo SP Tels11 33516341634263436344 Site wwwpublifolhacombr SUMÁRIO INTRODUÇÃO POR QUE LER NIETZSCHE HOJE9 1 A CRISE DOS VALORES 15 2 NIETZSCHE E O FIM DA METAFÍSICA21 3 O JOVEM NIETZSCHE27 4 UMA FILOSOFIA PARA ESPÍRITOS LIVRES41 5 A DERRADEIRA FILOSOFIA OU COMO TORNARSE O QUE SE É53 6 BREVE HISTÓRIA DA RECEPÇÃO DA OBRA DE NIETZSCHE71 7 DADOS BIOGRÁFICOS SUGESTÕES DE LEITURA89 hhttttppggrroouuppssggoooogglleeccoom mggrroouuppddiiggiittaallssoouurrccee para Rachel Cristina Todos esses pássaros audazes que voam ao longe ao mais longínquo certamente em algum lugar não poderão ir mais longe e pousarão sobre um mastro ou um mísero recife e além do mais tão gratos por esse deplorável pouso Mas quem poderia concluir disso que adiante deles não há mais nenhuma descomunal rota livre que eles voaram tão longe quanto se pode voar Todos os nossos grandes mestres e precursores acabaram por se deter e não é com o gesto mais nobre e mais gracioso que o cansaço se detém também comigo e contigo será assim Mas que importa isso a mim e a ti Outros pássaros voarão mais longe E para onde queremos ir Queremos passar além do mar Para onde nos arrasta esse poderoso apetite que para nós vale mais do que qualquer prazer Mas por que precisamente nessa direção para lá onde até agora todos os seus cia humanidade declinaram Talvez um dia dirão de nós que também nós navegando para o Ocidente esperávamos alcançar ninas índias mas que nosso destino era naufragar no infinito Ou meus irmãos Ou Aurora aforismo 575 Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho INTRODUÇÃO POR QUE LER NIETZSCHE HOJE Dentre os clássicos da filosofia moderna Nietzsche talvez seja o pensador mais incômodo e provocativo Sua vocação crítica cortante o levou ao submundo de nossa civilização sua inflexível honestidade intelectual denunciou a mesquinhez e a trapaça ocultas em nossos valores mais elevados dissimuladas em nossas convicções mais firmes renegadas em nossas mais sublimes esperanças Essa atitude deriva do que Nietzsche entendia por filosofia Para ele filosofar é um ato que se enraíza na vida e um exercício de liberdade O compromisso com a autenticidade da reflexão exige vigilância crítica permanente que denuncia como impostura qualquer forma de mistificação intelectual Por isso Nietzsche não poupou de exame nenhum de nossos mais acalentados artigos de fé O destino da cultura o futuro do ser humano na história sempre foi sua obsessiva preocupação Por causa dela submeteu à crítica todos os domínios vitais de nossa civilização ocidental científicos éticos religiosos e políticos Nietzsche é um dos grandes mestres da suspeita que denuncia a moralidade e a política moderna como transformação vulgarizada de antigos valores metafísicos e religiosos numa conjuração subterrânea que conduz ao amesquinhamento das condições nas quais se desenvolve a vida social Nesse sentido ele é um dos mais intransigentes críticos do nivelamento e da massificação da humanidade Para ele isso era uma conseqüência funesta da extensão global da sociedade civil burguesa tal como esta se configurou a partir da Revolução Industrial Nietzsche se opõe a supressão das diferenças a padronização de valores que sob o pretexto de universalidade encobre de fato a imposição totalitária de interesses particulares por isso ele é também um opositor da igualdade entendida como uniformidade Assim denunciou a transformação de pessoas em peças anônimas da engrenagem global de interesses e a manipulação de corações e mentes pelos grandes dispositivos formadores de opinião O esforço filosófico de Nietzsche o levou a se confrontar com as grandes correntes históricas responsáveis pela formação do Ocidente a tradição paga greco romana e a judaicocristã e o que resultou da fusão entre as duas Ao longo desse seu confronto com o conjunto da herança cultural de nossa tradição Nietzsche forjou conceitos e figuras do pensamento que até hoje impregnam nosso vocabulário e povoam nosso imaginário político e artístico Tais são por exemplo as noções de Apoio e Dionísio transformadas em categorias estéticas os conceitos de vontade de poder alémdohomem Übermensch eterno retomo e niilismo e a figura da morte de Deus É impossível se colocar à altura dos principais temas e questões de nosso tempo sem entender o pensamento de Nietzsche Ateísta radical ele atribui ao homem a tarefa de se reapropriar de sua essência e definir as metas de seu destino Dele afirma o filósofo Martin Heidegger Nietzsche é o primeiro pensador que perante a história universal pela primeira vez aflorada em seu conjunto coloca a pergunta decisiva e a reflete internamente em toda a sua extensão metafísica Essa pergunta reza como homem em sua essência até aqui está o homem preparado para assumir o domínio da terra1 Nesse sentido Nietzsche é o pensador de nossas angústias que não poupou nenhuma certeza estabelecida sobretudo as suas próprias convicções e desvendou os mais sinistros labirintos da alma moderna Com a paixão que liga a vida ao pensamento Nietzsche refletiu sobre todos os problemas cruciais da cultura moderna sobre as perplexidades os desafios as vertigens no fim do século 19 Dessa sua condição postado entre o final e o início de duas eras Nietzsche esboçou um quadro que em todos os seus matizes nos concerne ainda na passagem a um novo milênio em direção a um destino que ainda não se pode discernir A despeito de sua visão sombria Nietzsche tentou ser ao mesmo tempo um arauto de novas esperanças Sua mensagem definitiva a criação de novos valores a instituição de novas metas para a aventura humana na história é também um cântico de alegria Essa é uma das razões pelas quais o estilo de Nietzsche resulta da combinação paradoxal de elementos antagônicos sombra e luz agonia e êxtase gravidade e leveza Isso explica por que para ele o riso e a paródia são operadores filosóficos inigualáveis eles permitem reverter perspectivas fossilizadas Nietzsche o impiedoso crítico das crenças canônicas é também um mestre da ironia Sua ambição consiste em tomar superfície o que é profundidade restituir a graça ao peso da seriedade filosófica Opositor ferrenho da dialética socrática Nietzsche reedita no mundo moderno o gesto irônico do pai fundador da filosofia ocidental Decisivo adversário de Platão sua filosofia talvez possa ser caracterizada como uma inversão paródica do platonismo Definindose como o mais intransigente anticristão dá no entanto á sua autobiografia intelectual escrita no final de sua vida o título Ecce Homo Eis o Homem expressão empregada por Pilatos ao apresentar Jesus a seus algozes pouco antes da Paixão Nietzsche o filósofoartista um poeta que só acreditava numa filosofia que fosse expressão das vivências genuínas e pessoais vendo na experiência estética uma espécie de êxtase e redenção é por isso mesmo um precursor da crítica a um tipo de racionalidade meramente técnica fria e planificadora A despeito da profundidade e da gravidade das questões com que se ocupa sempre as tratou em estilo artístico poeticamente sugestivo só acreditava na autenticidade de um pensamento que nos motivasse a dançar Ele mesmo imagina sobre sua porta a inscrição Moro em minha própria casa Nada imitei de ninguém E ainda ri de todo mestre Que não riu de si também2 Sem extravasar os limites dos livros desta série Folha Explica Nietzsche se propõe a ser uma apresentação geral do homem e do filósofo Friedrich Nietzsche Seu objetivo é fazer com que o leitor se familiarize com os conceitos as figuras e o estilo de Nietzsche não para depois encerrálos em qualquer câmara da memória mas sim para despertar seu interesse e estimulálo a seguir adiante Aceitar o desafio de Nietzsche implica sobretudo pensar independentemente e por isso ás vezes também contra Nietzsche 1 Heidegger Wer ist Nietzsches Zarathustra em Vorträge und Aufsätze Pfullingen Neske Verlag 1954 p 102 2 Epígrafe de A Gaia Ciência em Nietzsche Obra Incompleta Trad Rubem Rodrigues Torres Filho Col Os Pensadores São Paulo Abril Cultural 1974 p 195 1 A CRISE DOS VALORES O pensamento filosófico de Nietzsche pode ser comparado a uma espécie de sensor que registra e antecipa questões e desafios de nosso século Sua ambição é realizar um diagnóstico fiel da situação do homem moderno Para ele não resta dúvida de que herdeiro dos progressos do Iluminismo julgamonos liberados das cadeias da ignorância e da superstição Confiantes nas possibilidades advindas da utilização industrial da ciência e da técnica estamos certos de poder descobrir todos os segredos do universo e construir uma sociedade expurgada de todas as formas de opressão violência exploração Afinal somos devotos do deus Logos3 confiantes em sua onipotência Nietzsche porém meditou sobre o lado obscuro as conseqüências que poderiam resultar do otimismo desenfreado embutido nessa convicção Esse otimismo representa para ele a face resplandecente de um avesso sombrio o mesmo progresso conduz inexoravelmente à exaustão dos valores herdados da tradição à sua impossibilidade de dar sustentação a futuros projetos viáveis no campo quer do conhecimento quer da ética quer da política Nietzsche se encontrava no limiar de uma experiência do mundo em que como conseqüência dos progressos do conhecimento noções como Verdade Falsidade Justiça Bem Mal Virtude tinham sido relativizadas não podendo mais responder a nossa eterna pergunta pelo sentido da existência Para ele não cabia ao filósofo justificar ou condenar esse estado de coisas mas constatálo essa constatação seria então o único caminho que permite vislumbrar uma saída Toda tentativa de negar essa condição representa não apenas uma desonestidade intelectual e moral mas sobretudo o risco da catástrofe ou seja a possibilidade de que o esvaziamento de valores autênticos nos conduza de volta á barbárie á destruição daquilo que de mais precioso a humanidade conquistou ao longo da história a dignidade da pessoa humana Por essa razão Nietzsche dedicou sua vida a realizar três tarefas principais compreender a lógica desse movimento contraditório ao longo do qual o progresso do 3 Logos palavra grega que significa palavra discurso e razão termo que dá origem à palavra lógica e que em sentido amplo é equivalente à racionalidade conhecimento leva á perda de consistência dos valores absolutos a partir daí denunciar todas as formas de mistificação pelas quais o homem moderno oblitera sua visão dos perigos de sua condição por fim destruídos os falsos ídolos e esses são os valores mais venerados pelo homem moderno assumir corajosamente o risco de pensar novos valores abrir novos horizontes para a experiência humana na história Nietzsche viveu e pensou em profundidade a crise que se abatia sobre a Europa ao final do século 19 Filha de seu próprio tempo sua obra submete a uma crítica impiedosa todas as esferas da cultura Porém ao exigir do homem moderno que tome consciência das conseqüências das possibilidades e dos limites de seu saber e agir Nietzsche coloca questões que até hoje prosseguem conosco Num de seus mais belos e célebres textos põe em cena o drama de nossa condição Não ouvistes falar daquele homem louco que em plena manha clara acendeu um candeeiro correu para o mercado e gritava incessantemente Procuro Deus Procuro Deus E como lá se reunissem justamente muitos daqueles que não acreditavam em Deus provocou ele então grande gargalhada Perdeuse ele então dizia um Terseia extraviado como uma criança dizia outroOu se mantém oculto Tem ele medo de nós Embarcou no navio Emigrou desse modo gritavam e riam entre si O homem louco saltou em meio a eles e trespassouos com o oUiar Para onde foi Deus clamou eleeu vos quero dízêlo Nós o matamos vós e eu Nós todos somos seus assassinos Como porém fizemos isso Como pudemos tragar o oceano Quem nos deu a esponja para remover o horizonte inteiro Que fizemos nós quando desprendemos esta Terra de seu sol Para onde se move ela então Para onde nos movemos nós Longe de todos os sóis Não nos precipitamos sem cessar E para trás para o lado para frente de todos os lados Há ainda um alto e um baixo Não erramos como através de um nada infinito Não nos bafeja o espaço vazio Não ficou mais frio Não vem sem cessar sempre a noite e mais noite Não se tem que acender candeeiros pela manhã Nada ouvimos ainda do rumor dos coveirosque sepultam Deus Nada sentimos ainda do cheiro da decomposição divina também os deuses se decompõem Deus morreu Deus permanece morto E nós o matamos Como é que nos consolamos nós os assassinos de todos os assassinos Aquilo de mais santo e poderoso que o universo possuiu até agora sangrou sob nossos punhais quem enxuga de nós esse sangue Com que água poderíamos nos purificar Que cerimônias de expiação que divinos jogos teríamos de inventar A grandeza desse feito não é demasiado grande para nós Não teríamos que nos tomar nós próprios deuses para apenas parecer dignos dele Jamais houve um feito maior e sempre quem tenha apenas nascido depois de nós pertence por causa desse feito a uma história mais elevada do que foi toda história até agora Aqui calouse o homem louco e mirou de novo seus ouvintes Também estes silenciavam e olhavamno com estranhamento Finalmente ele arrojou o candeeiro ao solo de modo que este se estilhaçou e apagouChego cedo demais disse ele então não estou ainda no tempo oportuno Esse acontecimento formidável está ainda a caminho e peregrina ele ainda não penetrou nos ouvidos dos homens Relâmpago e trovão precisam de tempo a luz dos astros precisa de tempo feitos precisam de tempo mesmo depois de consumados para serem vistos e ouvidos Este feito está ainda mais distante deles do que os astros mais remotos e todavia eles o consumaram Contase ainda que no mesmo dia o homem louco teria entrado em diversas igrejas e nelas entoado seu requiem aetemam Deo Conduzido para fora e instado a falar teria ele replicado sempre apenas isto O que são então as igrejas se não criptas e mausoléus de Deus 4 A passagem descreve o sentimento de abandono que como vazio opressivo esmaga a consciência do homem moderno Os cínicos escarnecedores reunidos na praça do mercado somos também nós vencedores do combate da ciência contra as trevas da ignorância Apenas nós homens modernos não estávamos conscientes da dimensão épica de nosso próprio feito nada sabíamos da tragédia que desencadeáramos nela precipitando nosso mundo Friedrich Nietzsche é o pensador a quem coube apreender filosoficamente a experiência intelectual que marca nosso destino ao tentar levar até suas conseqüências extremas o impulso crítico que anima o pensamento filosófico da modernidade Não se pode porém extrair as últimas conclusões desse impulso crítico sem retomar á sua origem isto é para Nietzsche á metafísica de Platão Por essa razão uma das primeiras e mais fundamentais tarefas que Nietzsche se atribui é a de refutar e destruir a metafísica platônica 4 Nietzsche Gaia Ciência aforismo 125 O Homem louco 2 NIETZSCHE E O FIM DA METAFÍSICA Para Nietzsche podese tomar a filosofia de Platão como modelo da metafísica Esta se fundamenta numa concepção dualista do universo estabelecendo uma oposição de valores entre duas esferas distintas da realidade ou do ser de um lado existe um domínio ideal considerado como o verdadeiro mundo ou a realidade verdadeira assim denominado por ser o plano das essências isto é aquilo que em todo e qualquer fenômeno constitui sua pura forma ou conceito Assim por exemplo a humanidade constitui a essência de cada ser humano particular ou a triangularidade determina a natureza de toda e qualquer figura triangular que vemos ou traçamos Todos os indivíduos humanos concretos são limitados e finitos mas a humanidade é uma entidade intelectual que em nada se altera em virtude da sucessão dos indivíduos singulares Tais formas puras denominadas tecnicamente idéias por Platão teriam sua origem na idéia do Bem ou de Deus que é a causa produtora de todas as outras idéias que são as formas gerais do universoTais entidades são inacessíveis a nossos órgãos dos sentidos e imutáveis uma vez que não estão submetidas às leis do espaço e do tempo Por serem as responsáveis pela realidade de todo real foram tradicionalmente denominadas realidade inteligível em contraposição a uma segunda ordem de realidade a realidade aparente ou sensível que é aquela de que temos experiência ordinária Contraposto ás essências inteligíveis o mundo sensível é tradicionalmente considerado um plano de realidade deficitária enganosa mera aparência ou simulacro das formas puras que são como originais ou modelos dos quais toda realidade empírica sensível constitui uma cópia necessariamente imperfeita e corruptível E a essa realidade degradada sujeita ás condições do espaço e do tempo que pertence nossa existência terrena e corporal Nossa alma ou espírito nossa verdadeira essência e princípio inteligível estaria como se prisioneira de nosso corpo sendo por isso induzida ao erro e ao engano pelos sentidos que nos arrastam para o plano das aparências desviandonos do que seria nossa verdadeira destinação a contemplação das formas puras Em virtude de nossa akna racional imortal somos aparentados com as puras idéias e participantes do mundo inteligível Todo conhecimento verdadeiro seria pois uma espécie de recordação do que outrora antes do cativeiro de nossa alma pelo corpo e no mundo terrestre contempláramos do verdadeiro e divino mundo das idéias Um espírito ou razão pura e um bem em si um bem ou valor cuja vigência é universal e necessária constituem as referências metafísicas que dão sustentação tanto ao conhecimento científico quanto ás ações morais do ser humano no mundo O anúncio por Nietzsche da morte de Deus significa o fim do modo tipicamente metafísico de pensar na medida em que para ele o cristianismo tanto como religião quanto como doutrina moral constitui uma versão vulgarizada do platonismo adaptada às necessidades e anseios de amplas massas populares Por sua vez o cristianismo constitui para Nietzsche a medula ética do mundo ocidental é da seiva moral do cristianismo que se nutrem todas as esferas importantes de nossa cultura desde a mais abstrata e rarefeita investigação das ciências formais até o plano material de organização da vida e do trabalho Para Nietzsche a morte de Deus é uma expressão simbólica do desaparecimento desse horizonte metafísico baseado na oposição entre aparência e realidade verdade e falsidade bem e mal Isso significa que não podemos mais sustentar a crença num conhecimento objetivo que ultrapasse a particularidade de nossos afetos Para Nietzsche todo conhecimento é inevitavelmente guiado por interesses e condicionamentos subjetivos ideológicos o conhecimento resulta da projeção de nossos impulsos e anseios razão pela qual Nietzsche o considera sempre determinado por certa perspectiva seja individual seja sócioculturalmente determinada Se como resultado do desenvolvimento das ciências e do aprofundamento do esclarecimento chegamos ã experiência da morte de Deus então é lícito colocar também em questão o único valor absoluto que ainda permanece reconhecido pela consciência científica contemporânea o valor absoluto da verdade A morte de Deus implica portanto a possibilidade de colocar em questão a crença na origem divina e no valor absoluto da verdade Fazer com que a verdade apareça como um problema implica para Nietzsche problematizar também conceitos como o bem e o mal o justo e o injusto o lícito e o proibido na medida em que verdade beleza e bondade justiça sempre foram termos que mantiveram íntima correlação Nietzsche é pois o filósofo que ousa colocar em questão o valor dos valores Sua preocupação consiste em trazer ã luz as condições históricas das quais emergiram nossos supostos valores absolutos colocando em dúvida a pretensa sacralidade de sua origem Em sua genealogia da moral Nietzsche pretende também submeter a julgamento o valor desses mesmos valores foram eles propícios ou nocivos ao florescimento e intensificação da vida humana na terra 3 O JOVEM NIETZSCHE Uma exposição geral do pensamento de Nietzsche constitui uma tarefa dificultada pelo variedade dos temas de que se ocupa pela extraordinária multiplicação de pontos de vista por vezes dificilmente conciliáveis sobre um mesmo assunto pela diversidade de estilos literários presentes em sua obra e sobretudo pela natureza radicalmente crítica e polêmica de seus escritos Isso gerou a convicção quase unânime entre seus comentadores de que o aspecto assistemático constitui o traço essencial de seu pensamento Um intérprete contemporâneo da obra de Nietzsche o americano Walter Kaufmann escrevendo a respeito desse traço assistemático fez notar que Nietzsche seria mn pensador de problemas e não pensador de sistemas aliás de acordo com Kaufmann o pensamento nietzscheano não poderia dar ensejo a um sistema Em Nietzsche a investigação filosófica parte não de um feixe de pressupostos mas de uma situação problemática Nela estão contidos alguns pressupostos e outros são expressamente admitidos ao longo da investigação O resultado final não é tanto uma solução do problema inicial mas antes o discernimento de seus limites em regra o problema não é resolvido nós porém nos elevamos acima dele5 A despeito da diversidade temática de seu conteúdo e da multiplicidade de seus estilos podese facilmente reconhecer que as questões abordadas por Nietzsche remetem a um centro comum de preocupações que os conceitos e argumentos se reúnem em constelações que se arranjam e modificam ao longo de sua trajetória filosófica sem entretanto jamais deixar de orbitar em tomo de um centro de gravidade Com a mesma necessidade com que uma árvore dá seus frutos crescem em nós nossos pensamentos nossos valores nossos sins e nãos e quandos e ses aparentados e referidos todos eles entre si e testemunhas de uma única vontade de uma única saúde de um único terreno de um único sol6 Na literatura secundária costumase dividir cronologicamente em três fases a produção filosófica de Nietzsche O primeiro período estaria situado aproximadamente entre os anos 1870 e 1876 Um segundo momento vai de 1876 a I 882 5 Kaufman Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist New Jersey Princeton University 1974 p 82 6 Para a Genealogia da moral Prefácio par 2 em Nietzsche Obra Incompleta Trad Rubem Rodrigues Torres Filho Col sendo seguido pela derradeira fase iniciada em 1882 e abruptamente interrompida em 1889 Essa periodização é sobretudo determinada pela seqüência das obras características de cada uma das fases Contudo essa divisão sempre foi objeto de debate entre os principais comentadores da obra de Nietzsche Por um lado não se pode negar que determinados grupos de idéias se conservam presentes nos diferentes períodos o que sugeriria uma idéia de continuidade Por outro a trajetória filosófica de Nietzsche é marcada por mudanças significativas tanto de forma quanto de conteúdo As principais vantagens dessa periodização são sobretudo de ordem didática para fins expositivos O primeiro momento se caracterizaria sobretudo pelos escritos do assim chamado jovem Nietzsche e coincidiria em grande parte com o tempo de docência na Universidade de Basiléia como catedrático de filologia clássicaTal período é marcado pela publicação de O Nascimento da Tragédia a partir do Espírito da Música 1 872 Primeira Consideração Extemporânea David Strauss o Devoto e o Escritor 1873 Da Utilidade e Desvantagem da História Para a Vida 1874 Schopenhauer como Educador 1874 e Richard Wagner em Bayrenth 1876 Entretanto não se pode deixar de fazer menção a textos que permaneceram inéditos durante a vida do autor ou tiveram restrita circulação uma vez que são de grande relevância para uma interpretação do conjunto de seu pensamento Dentre eles cabe citar O Drama Musical Grego Sócrates e a Tragédia A Cosmovisão Dionisíaca O Nascimento do Pensamento Trágico todos de 1 870 Sócrates e a Tragédia Grega 1871 Sobre o làitnro de Nossas Instituições de Ensino 1872 Cinco Prefácios Para Cinco Livros Não Escritos 1872 A Filosofia na Época Trágica dos Gregos 1873 e talvez o mais famoso dos inéditos do jovem Nietzsche Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral 1873 A PRIMEIRA FASE De um ponto de vista genérico podese afirmar que i questão central da filosofia do jovem Nietzsche está ligada ao destino da arte e da cultura no mundo moderno Nesse momento ele se encontra profundamente influenciado pela metafísica da vontade de Schopenhauer 17881860 o teórico do pessimismo que considerava que Os Pensadores São Paulo Abril Cultural 1974 p 305 o universo não era expressão do intelecto e da vontade de Deus nem efeito de outra espécie de princípio racional Para ele a essência do universo é um impulso cego denominado Vontade ávida e insaciável eternamente em busca de satisfação Outra influência decisiva para o jovem Nietzsche foi a teoria da arte de Richard Wagner 181383 Este também se inspirou em Schopenhauer acreditando que a música seria a mais adequada forma de manifestação daquela força criadora do inundo a Vontade Tomando Wagner e Schopenhauer como seus aliados Nietzsche empreende uma crítica radical das tendências culturais dominantes em seu tempo caracterizadas por uma confiança ingênua nas idéias de evolução e progresso lógico ou natural no curso dos quais a humanidade teria alcançado um estágio de desenvolvimento em que estaria em condições de humanizando a natureza e racionalizando a sociedade aproximarse do ideal da felicidade universal Nietzsche se opunha também a outra tendência de sua época que consistia em valorizar uma forma de intelectualidade erudita burocrática e estéril que em nome de uma pretensa neutralidade científica se mantinha numa posição de distância em relação aos interesses concretos de um povo ás necessidades e urgências da vida Em contraposição ao gosto dominante entre seus contemporâneos em matéria tanto de filosofia quanto de ciência arte religião moral e política Nietzsche se volta para a Grécia présocrática com o propósito de nela buscar uma força originária de que esperava um renascimento do espírito trágico na Europa um contramovimento em relação ao cientificismo otimista dos tempos modernos Cético quanto á tese de que a natureza humana é originariamente boa não partilhando a confiança ilimitada na onipotência da ciência e cia racionalidade Nietzsche esperava da arte especialmente da música de Wagner uma restauração da cultura trágica no mesmo espírito em que esta florescera entre os gregos embalada por um senso artístico notavelmente desenvolvido e por uma postura corajosa perante o drama da existência Para Nietzsche havia algo em comum entre a situação dos gregos á época do florescimento da tragédia e a situação da Europa no século 19 Se Schopenhauer tinha razão com sua metafísica da Vontade então o coração pulsante do universo era um ímpeto cego desprovido de finalidade eternamente sofredor porque eternamente carente Por conseguinte não haveria mais lugar para as ilusões consoladoras até aquela época alimentadas pela tradição de que a ciência a religião ou a moral seriam capazes de responder a eterna pergunta pela razão de ser e pelo sentido da existência humana no mundo Assim nem pela razão especulativa nem pela razão prática nem pela via da ciência nem pela da moralidade se poderiam justificar a existência do universo e a razão de ser da vida humana O Nascimento da tragédia a Partir do Espírito da Música aliás toda a metafísica de artista que caracteriza esse primeiro período da filosofia de Nietzsche encontra nesse diagnóstico da situação cultural da Europa seu horizonte de compreensão só como fenômeno estético tomase justificada a existência do mundo das Dasein der Welt7 O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA E nesse sentido que os gregos do período trágico seriam exemplares Eles pressentiram e vivenciaram de modo exacerbado as atrocidades da existência e as dores do mundosem necessidade cie subterfúgios moralistas Prova disso é a ferocidade de que dão mostras os combates entre as cidadesestados assim como as agruras materiais e espirituais que estavam na base do florescimento da cultura grega Entretanto mesmo compreendendo que o sofrimento e a violência da guerra se incluem entre as condições inexoráveis da vida souberam dar â sua existência a elevação e a beleza que encontramos presentes em todos os setores do mundo grego no nível tanto das instituições materiais quanto das esferas superiores da cultura espiritual Em outras palavras os gregos souberam exemplarmente dominar o caos de seus impulsos atingindo um domínio de si que Uies permitia transfigurar em beleza os horrores da existência O jovem Nietzsche ilustra essa sua teoria da jovialidade Heiterkeit grega8 recorrendo â proverbial lenda de Sileno sábio acompanhante do deus Dionísioi Apolodoro narra que o rei Midas empreendeu caça a Sileno para que este lhe revelasse o maior de todos os segredos o que seria paia o homem o melhor e o mais digno de desejar Finalmente apreendido e forçado a falar Sileno teria respondido Estirpe 7 Nietzsche O Nascimento da tragédia cap V 8 Serenojovialidade na excelente tradução brasileira feita por Jacó Guinsburg de O Nascimento da tragédia São Paulo Companhia das letras 1992 nota 2 p 145 miserável e transitória filhos do acaso e da fadiga por que me forças a dizer o que para ti seria mais vantajoso não ouvir O melhor de tudo é totalmente inatingível para ti não ter nascido não ser ser nada E o melhor em segundo lugar é para ti morrer logo Esta é a lição deixada pela tragédia grega arte e cultura têm como finalidade a transformação desse horror em beleza em poesia épica e lírica popular em música e ditirambos9 em instituições éticoreligiosas e políticas como a obra de arte do Estado grego As narrativas míticas em geral são expressões de uma vivência comum do mundo fundamentadora da identidade de um povo Esse é para Nietzsche o mistério de Apoio e Dionísio símbolos intuitivos das duas forças ou impulsos fundamentais da natureza aos quais corresponde a dupla face da experiência grega do mundo Apolo e Dionísio Apolo representa o lado luminoso da existência o impulso para gerar as formas puras a majestade dos traços a precisão das linhas e limites a nobreza das figuras Ele é o deus do principio de individuação da sobriedade da temperança da justa medida o deus do sonho das belas visões Dionísio por sua vez simboliza o fundo tenebroso e informe a desmedida a destruição de toda figura determinada e a transgressão de todos os limites o êxtase da embriaguez Apolo é o patrono das artes figurativas Dionísio é o deus da música A tragédia é a síntese dessas forças antitéticas nela se conciliam por um lado a força cega e inexorável do destino que a tudo destrói e por outro a intensidade máxima do que resiste ao destino a figura colossal do herói Por essa reconciliação a tragédia transfigura em drama artístico aquela sabedoria pessimista de Sileno segundo a qual tudo o que nasce mesmo o que há de mais grandioso tem de perecer para que o ciclo da vida se perpetue Sem destruição não há criação sem trevas não há luz sem barbárie e crueldade não há beleza nem cultura Sócrates e o pensamento científico Em relação ao período heróico da tragédia ática a tendência representada pela figura de Sócrates significou uma ruptura radical O surgimento da escola socrática 9 Gênero poético grego sobretudo ligado ao cântico coral religioso em culto a Dionísio com a extrema valorização do pensamento lógico e da dialética representaria não um progresso em relação á Grécia présocrática porém o contrário disso A racionalidade de tipo socrático matriz cio cientificismo moderno tem como pressuposto a negação da experiência arcaica e genuinamente grega Sócrates e seus contemporâneos já não estariam mais á altura da experiência trágica do mundo não conseguindo suportar o racionalmente incompreensível o absurdo da existência Para poder viver o homem teórico busca refúgio na mesma fé ilusória que está na raiz da ciência moderna isto é ele se nutre no otimismo metafísico que está na base da racionalidade dialética a crença na onipotência do logos científico O tipo de homem teórico encarnado por Sócrates acredita ser possível mediante o princípio de causalidade desvendar os segredos mais abissais da realidade não somente conhecê los como também corrigilos O otimismo teórico considera a ciência um remédio universal que cura a ferida eterna do existir e identifica no erro e na ignorância a fonte de todo mal Uma cultura de tipo socrático é necessariamente iluminista e portanto hostil à arte e ao mito considerados uma forma de ignorância e de ilusão unia vez que não explicam as verdadeiras causas das coisas Entretanto essa mesma cultura se converte em seu contrário isto é abre espaço para um renascimento da ilusão artística quando a consciência do homem teórico admite que nem tudo é acessível à racionalidade lógica mais ainda que o essencial em nossa existência permanece envolto num mistério impenetrável a qualquer explicação racional Tal experiência teria sido vivida na Grécia e estaria simbolizada no enigma de Sócrates ao mesmo tempo sendo inimigo dos artistas e no final da vida compondo música e pondo em versos algumas fábulas de Esopo Isto é retomando ao mito Essa seria pois a catástrofe da razão socrática Se em O Nascimento da Tragédia Nietzsche recorre á Grécia como paradigma de cultura não é com o propósito de oferecer ao público um tratado erudito de filologia clássica O retomo aos gregos tem os olhos postos no presente na cultura alemã de seu tempo Esta representa para o jovem Nietzsche o prolongamento mas também a agonia de um modelo de cultura que tem em Sócrates sua figura emblemática Tratase de um tipo de cultura essencialmente lógica e dialética que como Sócrates deposita toda a sua esperança na onipotência do conhecimento científico no valor absoluto da verdade a qualquer preço Tal como Sócrates a cultura moderna sucumbe á sua catástrofe quando chega ao discernimento de suas próprias fronteiras e limites isto é quando reconhece a partir dos recursos e das exigências mais avançadas da própria ciência que a razão técnicocientífica não é onipotente Mais ainda que a confiança nessa onipotência é uma forma poderosa de ilusão O renascimento do espírito trágico Esse discernimento constitui para Nietzsche o principal resultado do desenvolvimento da filosofia alemã desde Kant A filosofia crítica culminaria com a descoberta de que os interesses essenciais da vida humana a crença em Deus na liberdade e na imortalidade da alma são racionalmente inexplicáveis Por essa razão Nietzsche espera de uma aliança contraída entre a tradição espiritual da filosofia alemã simbolizada em Schopenhauer e o poder irresistível da música alemã simbolizada em Wagner um renascimento do espírito trágico que dana novo alento e autenticidade a uma cultura depauperada que vive do consumo da cultura de todos os povos e épocas numa confusão bárbara de todos os estilos uma cultura consumida pela erudição vazia desprovida de identidade própria e de vitalidade Do mesmo modo que na Grécia foi a partir do solo sagrado da arte especialmente da tragédia nascida do espírito da música que floresceu o melhor da cultura helênica assim seria também na Alemanha o espírito da música de Wagner o que redespertaria o vigor originário dos mitos germânicos fazendo renascer a cultura trágica alemã e com ela como farol para os outros povos da Europa as possibilidades de elevar o ser humano bem acima do que eleja realizara ao longo de sua história CONSIDERAÇÕES EXTEMPORÂNEAS Esse constitui todo o sentido da vigorosa polêmica que Nietzsche manteve com as principais correntes intelectuais de seu tempo num programa com o título Considerações Extemporâneas Nestas Nietzsche põe impiedosamente a nu a hipocrisia o artificialismo a aridez e a cândida autosatisfaçâo que caracterizam a moderna cultura européia em todas as suas esferas Justamente por ser privada de autêntica consciência de si a moderna cultura européia é no mau sentido do termo artifício filisteísmo Em razão da hipertrofia do conhecimento histórico a cultura moderna é uma mistura caótica das formas culturais de todas as épocas a que tem acesso nesse sentido o termo que a designa épara Nietzsche barbárie civilizada Faltalhe pois a característica que constitui o traço essencial de toda verdadeira cultura Cultura é sobretudo a unidade do estilo artístico em todas as manifestações da vida de um povo10 O projeto wagneriano de uma obra de arte total seria portanto essa força geradora de uma nova cultura expressão artística das experiências fundamentais que dão origem a uma consciência de si Esta por sua vez seria nutrida pela energia mágica do mito e da música atuando na qualidade de potência ética como substituto da moderna religiosidade caduca que restauraria os laços efetivos de solidariedade imprimindo ao povo a unidade de um estilo E a unidade desse estilo artístico marcando todas as formas de manifestação da vida de um povo desde a produção e reprodução da vida material até as esferas superiores da cultura o que verdadeiramente constitui sua identidade Essa é a razão de ser da aproximação entre a tragédia grega e o drama musical wagneriano Os gregos podem servir de exemplo porque aprenderam pouco a pouco a organizar o caos de elementos que se misturavam confusamente na história de sua civilização elementos semíticos babilônicos lídios persas egípcios etc Ao fazêlo eles nos indicaram o caminho de superação de nossa barbárie civilizada Esse background estéticometafísico é característico do primeiro período da trajetória filosófica de Nietzsche E justamente nesse horizonte que se deve apreciar a crítica do jovem Nietzsche às idéias modernas de liberdade individual e igualitarismo à democracia ao liberalismo cuja exacerbação ele via se configurar nos movimentos revolucionários socialistas e anarquistas Sua crítica da modernidade política seus estudos sobre o Estado grego são determinados antes de tudo por essa preocupação com a cultura entendida como transfiguração artística da natureza A motivação fundamental de sua filosofia política pode ser buscada não em alguma identificação com os interesses de uma classe social ou movimento político mas na compreensão da cultura como redenção da natureza e da vida Essa mesma observação vale para as fases ulteriores de seu filosofar São equivocadas portanto as 10 Considerações Extemporâneas III em Nietzsche Sämtliche Werke ed G ColliMMontinari Kritische Studienausgabe doravante KSA BerlinNew YorkMünchen De GruyterDTV 1890 vol 1 1 p 163 interpretações que consideram sua obra uma apologia da aristocracia e da escravidão Nietzsche de fato não acreditava que uma organização racional das relações sociais faria desaparecer completamente da sociedade moderna as figuras negativas da violência opressão e exploração Suas razões para isso consistem em que o ser humano é sobretudo uni animal impulsivo dominado por forças que escapam ao controle integral e autárquico de sua consciência Para Nietzsche a racionalidade é uma forma refmada da vontade de poder e não ainda suficientemente vigorosa para exercer pleno domínio sobre figuras menos espiritualizadas dessa mesma vontade que na forma de paixões arrebatadoras ameaçam permanentemente arrastar o homem às experiências mais terríveis de violência e destruição Num fragmento póstumo que permaneceu inédito escrito no ano de 1883 Nietzsche registra esta sua visão pessimista da história da humanidade Cultura é apenas uma delgada pelinha de maçã sobre um caos incandescente11 Mas isso não implica uma justificação teórica da força bruta Pelo contrário em sua opinião a aposta fundamental no jogo da cultura sempre consistiu e consiste ainda na organização do caos na sublimação das forças vulcânicas que se agitam no interior do homem Não a apologia do monstruoso e do irracional mas o reconhecimento sem disfarces de que sem a energia poderosa desse caos pulsional nenhuma elevação e grandeza teria sido possível na Terra Entretanto a tarefa da cultura consiste justamente em transfigurar essa matéria incandescente em espírito transformar monstros selvagens em animais domésticos com os quais é belo e agradável viver 11 Fragmento póstumo de 1883 número 948 em KSA vol 10 p 362 4 UMA FILOSOFIA PARA ESPÍRITOS LIVRES A ruptura com a metafísica de artista descrita no capítulo anterior é também um distanciamento crítico em relação à filosofia de Schopenhauer e uma desilusão com as esperanças de renovação cultural depositadas no projeto wagneriano Isso origina a nova configuração de temas e problemas característica do segundo período de sua filosofia no qual há uma predominância do estilo aforístico inspirado nos moralistas franceses12 No verão de 1876 deuse a inauguração solene do Teatro Wagner na cidade de Bayreuth na Baviera epicentro do projeto cultural denominado obra de arte total O quarto opúsculo da série Considerações Extemporâneas tendo por título Richard Wagner em Bayreuth foi escrito como artigo de apresentação explicitando o significado cultural do empreendimento wagneriano Contudo a despeito dessa sua origem o texto não deixa de sugerir avaliações profundamente ambíguas a respeito da obra de Wagner Quanto a Schopenhauer seu nome não é sequer mencionado no próximo livro escrito por Nietzsche a coletânea de aforismos que constituem os dois volumes de Humano Demasiado Humano publicado em 1878 e unanimemente considerado o marco inicial de seu segundo período de produção E no entanto o livro inteiro é um ajuste de contas definitivo com as idéias fundamentais do sistema filosófico do autor de O Mundo Como Vontade e Representação HUMANO DEMASIADO HUMANO Dedicando o livro à memória do filósofo francês Voltaire e escolhendo como epígrafe uma citação de O Discurso do Método para bem conduzir a própria razão e buscar a verdade na ciência de René Descartes Nietzsche já o insere simbolicamente na tradição da filosofia das Luzes caracterizada pela confiança no poder emancipatório da ciência 12 Corrente filosófica francesa dos séculos 16 e 17 que se notabilizou pela capacidade de observação psicológica dos problemas da moralidade e dos costumes expressos em estilo literário caracteristicamente breve denominado aforismo ou em máximas e sentenças morais François de Ia Rochefoucauld 161380 foi um de seus principais representantes O aforismo tem extraordinária importância no modo de pensar e escrever de Nietzsche em seu triunfo contra as trevas da ignorância e da superstição Não por acaso portanto a obra tem como subtítulo Um Livro Para Espíritos Livres Se para o jovem Nietzsche era a arte e não a ciência ou a moralidade o que constituía a atividade verdadeiramente metafísica do homem permitindo a ele aproximarse da dimensão essencial da existência em Humano Demasiado Humano ela é destituída desse privilégio Fazendo uma referência velada a pressupostos fundamentais da filosofia de Schopenhauer dos quais partilhara Nietzsche toma agora o cuidado de se afastar criticamente deles Que lugar ainda resta agora para a arte Antes de tudo ela ensinou através de milênios a olhar com interesse e prazer a vida em todas as suas formas e alargar tanto nosso sentimento que por fim brademos Como quer que seja a vida ela é boa Essa doutrina da arte sentir prazer na existência e considerar a vida humana uma parte da natureza essa doutrina foi implantada em nós ela vem à luz novamente agora como irresistível necessidade de conhecer O homem científico é o desenvolvimento do homem artístico13 Essa segunda fase na trajetória filosófica de Nietzsche pode ser caracterizada assim por uma valorização do conhecimento científico e um abrandamento da oposição entre arte e ciência que com seus diferentes matizes caracterizava a metafísica de artista do jovem Nietzsche Agora o homem teórico cujos modelos eram Sócrates e Platão não se opõe mais ao artista pelo contrário é pensado como seu desenvolvimento assim como o próprio artista passa a ser interpretado como desenvolvimento do homem religioso O prazer de viver a satisfação fluída na contemplação das formas da existência cultivados na humanidade sob influência da arte desafogamse na irresistível necessidade de conhecimento Se para o jovem Nietzsche o aprofundamento do conhecimento científico conduzia a proliferação de um saber erudito e estéril que sufocava a vida para o Nietzsche do período intermediário o conhecimento científico toma livre o espírito e como herdeiro da riqueza e da elevação de ânimos produzidas pela arte passa a assumir uma função transfiguradora embelezadora da existência Pouco mais tarde em Aurora Pensamentos Sobre os Sentimentos Morais 1881 Nietzsche desenvolveria e aprofundaria seu novo entendimento relativo ao papel da ciência e à oposição entre esta e a arte Contrapondose àqueles que valorizam apenas a imaginação e as obrasprimas do disfarce estético que acreditam só reconhecer beleza no abandono da realidade nua e crua Nietzsche nos fala de um frisson brotado do menor e mais seguro passo no progresso do conhecimento O aforismo em questão tem como título Conhecimento e Beleza Eles pensam que a realidade é horrível contudo não pensam que o conhecimento até mesmo da mais horrível realidade é belo do mesmo modo que aquele que conhece bastante e amiúde está por fim muito longe de considerar horrível o grande todo da realidade cuja descoberta lhe proporciona sempre felicidade A felicidade do homem do conhecimento aumenta a beleza do mundo e toma mais ensolarado tudo o que é o conhecimento espalha sua beleza não apenas em tomo das coisas como também com o tempo dentro das próprias coisas14 Data desse período intelectualista a valorização da disciplina dos métodos científicos que marcará daqui em diante toda a sua obra Por essa razão Nietzsche procurará desenvolver até o máximo de refinamento seus dotes de filólogo de psicólogo a ponto de considerar a si mesmo anos mais tarde o primeiro psicólogo da Europa de historiadorfilósofo de genealogista da moral Também intensifica seus estudos de ciências naturais de fisiologia e biologia e procura tomar contato com os últimos desenvolvimentos das disciplinas médicas e neurológicas Em 1877 seu amigo Paul Rée publica A Origem dos Sentimentos Morais Podese afirmar que foi em oposição a esse livro que surgiram as hipóteses genuinamente metzscheanas a respeito da gênese de nossos conceitos e sentimentos morais E nessa curiosidade históricopsicológica a propósito do surgimento de nossos sentimentos e categorias morais que podemos surpreender em Humano Demasiado Humano um procedimento característico que não abandonará mais a trajetória de seu pensamento Tratase de um tipo de explicação que passa a constituir para Nietzsche desde então um modelo de conhecimento científico a explicação genealógica 13 Humano demasiado humano I aforismo 222 14 Aurora V Aforismo 550 A EXPLICAÇÃO GENEALÓGICA De acordo com esse método a explicação de um fenômeno qualquer depende sempre da reconstituição dos momentos constitutivos de seu viraser de tal maneira que o sentido atual desse fenômeno não pode ser obtido sem o conhecimento da série histórica de suas transformações e deslocamentos Aplicandoo á gênese dos sentimentos morais Nietzsche afirma que aquilo que a um olhar não suficientemente adestrado pode aparecer como uma oposição entre contrários por exemplo entre bom e mau egoísta e altruísta mas também entre belo e feio verdadeiro e falso objetivo e subjetivo sempre se revela á luz de sua consideração históricogenealógica como uma transformação do oposto em seu outro Sugestivamente Nietzsche dá a isso o nome de química cios conceitos e dos sentimentos na medida em que o ilustra a partir do fenômeno químico da sublimação A filosofia histórica que de modo algum pode mais ser pensada separadamente da ciência natural o mais jovem de todos os métodos filosóficos revelou em casos singulares c supostamente será este seu resultado em todos os casos que não existem contrários a não ser no habitual exagero da concepção popular ou metafísica e que um erro da razão subjaz a essa contraposição nos termos de sua explicação não existe rigorosamente falando nem um agir nãoegoísta nem uma contemplação desinteressada ambos são sublimações nas quais o elemento fundamental quase volatilizado demonstrase como existente apenas para a mais refinada observação15 Dessa maneira não somente desaparecem as antíteses entre pólos opostos como também se dissolvem as entidades estáveis as substâncias fixas e permanentes O conjunto inteiro dos fenômenos seja no domínio da natureza seja no do espírito constituise como um universo em constante transformação um viraser ou devir O caráter específico da abordagem históricogenealógica nietzscheana é constituído pela direção de seu olhar investigativo a perspectiva se orienta de cima para baixo das figuras mais solenes e refinadas onde não se percebe a matéria grosseira a suas condições de possibilidade A partir de Humano Demasiado Humano Nietzsche passa a proceder metodicamente nesse sentido sempre escavando os subterrâneos das mais requintadas formações culturais especialmente da moral Quem contempla aqueles temíveis despenhadeiros escarpados onde geleiras se acumulam considera impossível que venha um tempo em que no mesmo sítio se instale um vale de relvado e floresta com regatos Assim é também na história da humanidade as forças mais selvagens abrem caminho e embora destrutivas de início a atividade delas foi necessária para que mais tarde um modo de vida mais suave aí erguesse sua morada As energias terríveis aquilo que se chama o Mal são os ciclópicos arquitetos e construtores de caminho da humanidade 16 Percebese atuando aqui um ideal de filosofia histórica que não pode prescindir da colaboração das demais ciências na medida em que para estar à altura de seu tempo o filósofo deve ser capaz de fazer uso dos mais avançados resultados das disciplinas científicas com o propósito de se elevar a uma concepção de mundo liberada das fantasias e superstições engendradas pela religião pela moral e pela metafísica Nesse sentido o homem teórico não representa apenas o desenvolvimento do artista mas sobretudo a passagem da infância religiosometafísica através do período de adolescência representado pela arte para a plena maturidade conferida pelo espírito científico Retomando uma metáfora comum ao pensamento clássico que põe em correspondência as fases de desenvolvimento da cultura de cada indivíduo com as etapas de evolução históricocultural da humanidade Nietzsche dá a seguinte expressão á sua própria idéia do desenvolvimento humano Os homens retomam cada vez mais rápido as fases costumeiras da cultura espiritual que foram alcançadas ao longo da história Eles atualmente começam por fazer seu ingresso na cultura como crianças religiosamente motivadas e desenvolvem essa sensibilidade em sua suprema vivacidade até o décimo ano de viela passam então por formas cada vez mais enfraquecidas panteísmo enquanto se aproximam da ciência superam inteiramente Deus imortalidade e coisas similares mas sucumbem á magia de uma filosofia metafísica por fim esta também se tona desacreditada a arte parece ao contrário cada vez mais confiável de modo que durante algum tempo a 15 Humano demasiado humano I 1 16 ld246 em KSA vol 2 p 205 metafísica apenas pode permanecer e seguir vivendo numa espécie de transmutação em arte ou numa disposição artísticotransfiguradora Todavia o senso científico se toma cada vez mais imperioso e conduz o homem para a ciência natural a história e nomeadamente para os mais severos modos de conhecimento ao passo que á arte é atribuída uma significação cada vez mais leve e despretensiosa Isso tudo costuma ocorrer agora nos primeiros 30 anos de um homem E a recapitulação de uma tarefa para a qual a humanidade trabalhou sobre si durante talvez 30 mil anos17 Podese afirmar considerando o nível de generalidade exigido por esta apresentação que os dois livros publicados a seguir Aurora Pensamentos Sobre os Preconceitos Morais 1881 e A Gaia Ciência 1882 permanecem sob a influência do mesmo espírito intelectualista que descrevemos como característico do segundo período da filosofia nietzscheana18 AURORA E A GAIA CIÊNCIA Em Aurora Nietzsche lança mão cia penetração psicológica do rigor de sua filosofia histórica para escavar o campo da moralidade e da religião com o propósito de examinar as fundações sobre as quais foram erigidos os majestosos edifícios éticos da tradição ocidental Esse trabalho de topeira no subsolo insalubre dos sentimentos morais visa trazer à superfície de um conhecimento livre de preconceitos as condições e os propósitos as motivações inconfessáveis que estão na origem dos valores éticos prctensamente absolutos Tratase de um livro marcado por uma disposição de ânimo ao mesmo tempo grave e libertária um livro das profundezas sombrias que aspira pela luz da superfície Nele Nietzsche se considera a si mesmo representante e legítimo herdeiro da tradição metafísica ocidental tratase porém daquele herdeiro em cujo pensamento essa tradição tomou consciência de si por meio do conhecimento de sua própria origem For isso ela não pode mais se furtar á confissão franca das condições problemáticas de surgimento de seus valores mais elevados A honestidade intelectual 17 Id 272 p 224s 18 Aqui seria impossível excluir o livro V A Gaia Ciência escrito em 1886 e acrescido à obra na segunda edição ocorrida naquele ano Tanto cronológica quanto tematicamente esse livro V A Gaia Ciência pertence ao terceiro característica da moderna consciência científica é a instância que impõe como um dever a tarefa paradoxal de superar as formas e valores da moralidade ocidental Aurora sugere pois o surgimento de uma nova luz para a humanidade um novo tempo que pode sonhar com a esperança brotada da liberdade espiritual A Gaia Ciência 1882 por sua vez pode ser considerado um livro que mesmo ainda permanecendo no interior da filosofia para espíritos livres já anuncia a transição para a terceira etapa do filosofar nietzscheano Nele permanece dominante a perspectiva de valorização da racionalidade científica mas de uma ciência alegre gaia que pode se dar ao luxo intelectual de percorrer com graça e leveza os caminhos mais pedregosos levar sobre os ombros os mais penosos fardos de nossa tradição sem negatividade ou rancor esforçandose por multiplicar as perspectivas para poder compor uma imagem mais plena das coisas embora nunca total Em A Gaia Ciência ao lado dos temas sempre presentes na filosofia de Nietzsche como a crítica do conhecimento da arte da religião da metafísica e da moral podese perceber claramente um aprofundamento e intensificação das preocupações pedagógicas a intenção de organizar o pensamento de forma tal que uma leitura conveniente da obra seja o caminho para a libertação suprema Para esse leitor ideal o livro não visa ensinar uma doutrina sua lição fundamental é a responsabilidade do pensamento independente O mestre é aqui sobretudo aquele que prepara o discípulo para abandonálo para que este empreenda por si mesmo a aventura do espírito A filosofia dos espíritos livres se toma em A Gaia Ciência uma ascese e preparação para o surgimento da personalidade autêntica que pela disciplina crítica aprendeu a discriminar entre as necessidades e aspirações que brotam de sua natureza singular e aquelas que lhe são impostas do exterior afastandoa do caminho que a poderia conduzir a si mesma Nietzsche acredita que esse caminho está reservado apenas para aqueles poucos que têm a ousadia de pensar e responder por si próprios período da filosofia de Nietzsche 5 A DERRADEIRA FILOSOFIA OU COMO TORNARSE O QUE SE É Publicado em quatro partes entre 1883 e 1885 Assim Falou Zaratustra um Livro Para Todos c Para Ninguém é o trabalho de Nietzsche que mais dificuldades apresenta à interpretação Nele os ensinamentos e experiências do personagemtítulo são apresentados como um drama em prosa em cuja narrativa se combinam os mais variados elementos estéticos de gênero forma e estilo Nietzsche explora ao infinito a rítmica a sonoridade e os matizes da língua alemã ao mesmo tempo que recorre à encenação teatral a formas diversas de narração à poesia ao canto à dança à sátira e à paródia assim como sobretudo à intertextualidade Esse procedimento consiste no caso de Nietzsche em criar novas e surpreendentes significações a partir da apropriação seletiva de textos consagrados pela tradição ou até mesmo de argumentos de adversários deslocandolhes o sentido original Assim Falou Zaratustra condensa efetivamente todos os focos de interesse que constituem o âmago do pensamento de Nietzsche a desconstrução da metafísica a denúncia da hipocrisia moral as preocupações com a educação a política e o destino da cultura a crítica do Estado O livro contém passagens que desde seu aparecimento pertencem ao acervo clássico da filosofia moderna Alguns fragmentos são o bastante para ilustrar sua riqueza num deles Nietzsche faz implodir o dualismo metafísico que separa corpo e alma matéria e espírito O corpo é uma grande razão uma pluralidade dotada de um sentido uma guerra e uma paz um rebanho e um pastor Instrumento de teu corpo é também tua pequena razão meu irmão a que chamas espírito um pequeno instrumento e um pequeno joguete de tua grande razão Instrumentos e joguetes são o sentido e o espírito por detrás deles está porém o si mesmo Selbst Por detrás de teus pensamentos e sentimentos meu irmão encontrase um soberano poderoso um sábio desconhecido ele se chama si mesmo Em teu corpo habita ele ele é o teu corpo19 Em outro fragmento Nietzsche condensa suas idéias acerca da vocação pedagógica essencialmente crítica de sua filosofia Seus esforços deverão confluir para o cultivo da personalidade autêntica Meu irmão Queres caminhar para a solidão Queres procurar o caminho que conduz a ti mesmo Detémte um pouco e escutame Aquele que procura facilmente se perde a si mesmo Todo partir para a solidão é culpa assim fala o rebanho E tu fizeste parte do rebanho durante muito tempo A voz do rebanho continuará ressoando dentro de ti Queres porém percorrer o caminho de tua tribulação que é o caminho para ti mesmo Mostrame então teu direito e tua força para fazêlo20 No Zaratustra com a intransigência do profeta Nietzsche reedita sua crítica a todas as esferas da tradição cultural O personagem central da obra se faz portavoz de doutrinas fundamentais para o futuro do homem a vontade de poder o eterno retomo do mesmo e o alémdohomem21 A ação combinada desses três ensinamentos deverá produzir o desmascaramento e a ruína da hipocrisia que caracteriza a cultura moderna Por essa razão o livro pode ser compreendido como uma das mais estridentes recusas dos valores e idéias de que se orgulha o homem moderno Para ele Nietzsche cunha a denominação sarcástica o último homem O último homem simboliza a modernidade que considera a si mesma o ponto mais avançado do desenvolvimento histórico da humanidade acreditando que a finalidade dessa história consistia precisamente na chegada do moderno Orgulhoso de sua cultura e formação que o elevaria acima de todo passado o último homem crê na onipotência de seu saber e de seu agir Para Zaratustra entretanto o último homem representa o mais inquietante rebaixamento de valor do ser humano a transformação do homem numa massa impessoal de seres uniformes O bem supremo almejado pelo último homem sua concepção de felicidade é uma combinação de mediocridade conforto bemestar ausência de sofrimento e grandeza Que é amor Que 6 criação Que 6 nostalgia Que é estrela Assim 19 Assim falou Zaratustra I Dos desprezadores do corpo 20 Id Do Caminho do criador 21 O termo original empregado por Nietzsche é Übermensch que também costuma ser traduzido por superhomem Preferimos a tradução proposta por Rubens Rodrigues Torres Filho Obras Incompletas op cit p 236 s As razões da pergunta o último homem e pisca os olhos A Terra se tomou pequena então e sobre ela saltita o último homem que toma tudo pequeno Sua estirpe é indestrutível como a pulga o ultimo homem é o que vive mais tempo Nós inventamos a felicidade dizem os últimos homens e piscam os oUios Nenhum pastor e um só rebanho Todos querem o mesmo todos são iguais Quem sente de outra maneira vai voluntariamente para o hospício Temos nosso prazerzinho para o dia e nosso prazerzinho para a noite mas prezamos a saúde Nós inventamos a felicidade dizem os últimos homens e piscam os olhos22 O alémdohomem Alémdohomem é um conceito que só pode ser corretamente apreendido em antagonismo com a figura do último homem pois ele constitui um contraideal da tendência ao nivelamento e à uniformização que para Nietzsche caracteriza a moderna sociedade de massa Para ele o homem pode ser visto não como um fim como o deseja o último homem mas como um meio para conquistar possibilidades mais sublimes de existência Eu vos ensino o alémdohomem O homem é algo que deve ser superado Que tendes feito para superálo Todos os seres até agora criaram algo acima deles próprios quereis vós ser o refluxo dessa grande maré e retroceder ao animal ao invés de superar o homem Que é o macaco para o homem Uma zombaria e uma dolorosa vergonha E justamente isso é o que o homem deve ser para o alémdohomem uma zombaria e uma dolorosa vergonha O homem é uma corda estendida entre o animal e o alémdohomem uma corda sobre o abismo Um perigoso passar para o outro lado um perigoso caminhar um perigoso olhar para trás um perigoso estremecer e parar A grandeza do homem está em ser ele uma ponte e não um fim o que se pode amar no homem é que ele é uma passagem e um crepúsculo23 Essa perigosa travessia que conduz do animal ao alémdohomem só pode ser empreendida pelo homem moderno renunciando ao conformismo de sua mediocridade e autosatisfação Fixar o alémdohomem como alvo de sua nostalgia é uma tarefa á escolha se esclarecerão abaixo 22 Assim falou Zaratustra Prólogo 23 Id p 14 e l6 qual a humanidade só pode ser conduzida por intermédio dos dois outros ensinamentos de Zaratustra a vontade de poder e o eterno retomo Para Nietzsche Schopenhauer tivera razão quando identificou na Vontade o elemento fundamental em todo o universo Todavia do ponto de vista de Nietzsche ela não pode ser pensada como ainda o fizera Schopenhauer como um ímpeto cego desprovido de finalidade Se é a Vontade que determina o surgimento e a transformação de todo estado de coisas do universo tal Vontade possui uma qualidade fundamental ela é vontade de poder A vontade de poder Onde encontrei um ser viveu te lá encontrei vontade de poder E este mistério segredoume a própria vidaVeja disse elaeu sou aquela que sempre tem de superar a si mesma Essa superação a humanidade a realiza por meio das tábuas de valor que traçam o rumo para o trabalho civilizatório dos povos Muitos países viu Zaratustra e muitos povos dessa maneira ele descobriu de muitos povos o Bem e o Mal Zaratustra não encontrou sobre a terra nenhum poder maior do que Bem e Mal Uma tábua de valores está suspensa sobre cada povo Olha é a tábua de suas superações olha é a voz de sua vontade de poder24 Para que o homem moderno possa ainda criar para além dele mesmo é necessário que se aproprie dessa natureza ou seja de sua vontade de poder Somente desse modo poderá realizar aquilo que por meio dele constitui o fervoroso desejo da vida superarse a si mesmo rompendo a camisadeforça em que a encerrou a moderna civilização ocidental a rigidez da autoconservação a qualquer custo Todavia para que o homem moderno possa corresponder a esse desejo íntimo da vida e se colocar em sintonia com ela é antes de tudo necessário que tenha se libertado daquele ressentimento que lhe foi inoculado pela tradição metafísica o desprezo pela vida pela terra pelo mundo pelo corpo pelo viraser por tudo aquilo que foi até agora caluniado em nome do verdadeiro mundo Somente quando sua existência terrena puder deixar de ser vivida sob a ótica do juízo e da condenação como padecimento e expiação como ascese pela qual se conquista a felicidade eterna somente 24As duas citações se referem respectivamente a Assim Falou Zaratustra segunda parte Da Autosuperacão e primeira parte Das Mil Metas e da Única Meta então poderá o homem instituir para si um ideal que seja também o sentido da terra liberto da fantasia transcendente de um alémdomundo com a qual ele entorpece a dor de sua finitude tragédia de sua existência O eterno retorno Somente quando o sofrimento não for mais vivido como uma objeção contra a vida e um motivo para condenála é que o homem poderá superar seu desejo de um além metafísico e seu rancor contra a passagem do tempo Somente dessa maneira a totalidade da vida poderá ser assumida sem acréscimos ou subtrações com todas as suas misérias e êxtases firmemente encadeados entre si pois eles se condicionam mutuamente e aquele que deseja de fato as venturas não pode amputar as dores do mundo O ensinamento que conduz a essa forma de superação é o eterno retomo do mesmo Não se trata de mera aceitação resignada dos acontecimentos do destino mas de afirmação incondicional que aceita e bendiz cada instante vivido For meio desse ensinamento o homem deve aprender a agir como se a mais ínfima de suas ações devesse se repetir eternamente de maneira a dar á sua própria existência a bela forma da obra de arte O eterno retorno é a lição que imprime ao instante o selo da eternidade Se para seu grande precursor o filósofo Baruch de Spinoza 163277 o conhecimento verdadeiro conduzia ao amor intelectual de Deus para Nietzsche o ensinamento do eterno retomo leva ao amor do destino amor fati E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse Esta vida assim como tu a vives agora e como a viveste terás de vivêla ainda uma vez e ainda inúmeras vezes e não haverá nela nada de novo cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de retomar e tudo na mesma ordem e seqüência e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores e do mesmo modo este instante e eu próprio A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez e tu com ela poeirinha da poeira Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim Ou viveste alguma vez um instante descomunal em que lhe responderias Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti assim como és ele te transformaria e talvez te triturasse a pergunta diante de tudo e de cada coisaQuero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir Ou então como terias de ficar bem contigo mesmo e com a vida para não desejar nada mais do que essa última eterna confirmação e chancela25 Até ser completamente ensombrecido pelo colapso mental que o abateu no início de 1889 Nietzsche não conseguiu se restabelecer totalmente da amarga experiência que significou para ele o silêncio total que se seguiu à publicação de Assim Falou Zaratustra A obra não teve sequer a ínfima parcela da repercussão que dela esperava seu autor e não houve nem uma recepção negativa por parte de amigos e conhecidos nos quais o filósofo depositava ainda alguma esperança Nietzsche a concebera em tal grau de expectativa que ele a considerava um quinto Evangelho ou Antievangelho No entanto a obra foi praticamente ignorada durante a vida de seu autor Podese afirmar que o sofrimento causado por esse silêncio constitui a raiz da preocupação obsessiva de Nietzsche para esclarecer e explicitar as idéias fundamentais de Assim Falou Zaratnstra PARA ALEM DE BEM E MAL As duas obras subseqüentes Para Além de Bem c Mal 1886 e Para a Genealogia da Moral 1887 são os principais testemunhos da tentativa de divulgar como uma espécie de glossário conceitual os temas e problemas do Zaratustra No primeiro deles Nietzsche expõe sua hipótese de interpretação global da existência com base na perspectiva fornecida pelo conceito de vontade de poder Opondose ao mecanicismo e a todo positivismo26 que almeja explicar os fenômenos da natureza a partir de um conjunto de leis gerais Nietzsche contesta até mesmo a legitimidade de pretender obter um conhecimento objetivo dos fenômenos da naturezaTodos os fenômenos do universo seriam explicáveis a partir não de leis naturais mas do conceito de vontade de poder O mundo visto por dentro dirá provocativamente Nietzsche seria vontade de poder e nada além disso Sendo assim 25 Gaia Ciência IV 341 26 Doutrina filosófica que pretende rejeitar a metafísica e fundamentar o conhecimento unicamente em fatos e leis observáveis também o próprio conhecimento seria expressão da vontade de poder e portanto nada de imparcial de objetivo de constatação e organização lógica de uma lei natural Perdoem este velho filólogo que não pode resistir á maldade de pôr o dedo sobre más artes de interpretação mas aquela legalidade da natureza de que vós físicos falais com tanto orgulho só subsiste graças a vossa interpretação e filologia ruim não é nenhum estado de coisas nenhum texto mas somente um arranjo ingenuamente humanitário e uma distorção de sentido com que dais plena satisfação aos instintos democráticos da akna moderna For toda parte igualdade diante da lei nisso a natureza não é cie outro modo nem está melhor do que nós Mas como foi dito isso é interpretação não texto e poderia vir alguém que com a intenção e a arte opostas soubesse na mesma natureza e tendo em vista os mesmos fenômenos decifrar precisamente a imposição tiranicamente irreverente e inexorável de reivindicações de potência que contudo terminasse por afirmar deste inundo o mesmo que vós afirmais ou seja que tem um decurso necessário e calculável mas não porque nele reinam leis mas porque absolutamente faltam as leis e cada potência a cada instante tira sua última conseqüência Posto que também isto seja somente interpretação e sereis bastante zelosos para fazer essa objeção ora tanto melhor 27 PARA A GENEALOGIA DA MORAL Para a Genealogia da Moral talvez seja o livro mais conhecido de Nietzsche Nessa obra ele aprofunda e consolida a crítica da moral levada a efeito em seus escritos anteriores especialmente em Humano Demasiado Humano e Aurora No entanto Nietzsche está convencido de possuir agora maior maturidade e uma linguagem especial para os problemas que formulara antes Principalmente acredita ter fornecido agora ao método genealógico uma dimensão especial A genealogia nietzscheana não se contenta mais apenas com uma abordagem histórica dos sentimentos e conceitos morais A gênese histórica é tarefa preparatória para uma questão mais incisiva mais radical aquela que se pergunta pelo próprio valor dos valores e avaliações da moral tradicional Necessitamos uma critica dos valores morais é necessário colocar alguma vez em 27 Para além do bem e do mal aforismo 22 questão o próprio valor desses valores e para isso se tem necessidade de ter conhecimento das condições e circunstâncias das quais surgiram aqueles valores nas quais se desenvolveram e modificaram a moral como conseqüência como sintoma como máscara como tartufaria como enfermidade como malentendido mas também a moral como causa como remédio como estímulo como freio como veneno um conhecimento que não existiu até agora nem sequer foi desejado28 Nas três dissertações que compõem esse livro polêmico a gênese da moral ocidental é enfocada de perspectivas distintas Nelas Nietzsche antecipa muitas das mais importantes conquistas teóricas da psicanálise de Freud especialmente quando descreve a genealogia da consciência moral A segunda dissertação desenvolve a tese nietzscheana de acordo com a qual a cultura superior com as severas figuras de moralidade que lhe são características não pode ser entendida senão como o processo de internalização e espiritualização da crueldade Todos os instintos que não se descarregam para fora voltamse para dentro é isso que eu denomino interiorização do homem é somente com isso que cresce no homem aquilo que mais tarde se denomina suaalma 29 Decadência e niilismo Também em Para a Genealogia da Moral aflora um par de conceitos que será de imensa importância para o conjunto inteiro dos demais escritos de Nietzsche todos de 1888 São os conceitos de decadência e niilismo que desempenham uma função central não só em O Crepúsculo dos ídolos O Anticristo e Ecce Homo mas também nos dois ensaios psicológicos sobre Richard Wagner O Caso Wagner e Nietzsche contra Wagner Nesses escritos Nietzsche interpreta a história da cultura moderna como escalada do niilismo Este por sua vez deve ser entendido como um sentimento opressivo e difuso próprio ás fases agudas de ocaso de uma cultura O niilismo seria a expressão afetiva e intelectual da decadência Por meio dele o homem moderno vivência a perda de sentido dos valores superiores de nossa cultura Por essa ótica niilismo seria o sentimento coletivo de que nossos sistemas tradicionais de valoração 28 Para a Genealogia da Moral Prefácio VI 29 Id II 15 tanto no plano do conhecimento quanto no éticoreligioso ou sociopolítico ficaram sem consistência e já não podem mais atuar como instâncias doadoras de sentido e fundamento para o conhecimento e a ação Sintomas desse estado de prostração podem ser detectados segundo Nietzsche em todos os setores da moderna vida social na arte plenamente instrumentalizada para fins de entretenimento ou como o chamaríamos atualmente capturada nos circuitos da indústria cultural na política e na educação empenhadas em estabelecer e perpetuar um ideal de homem completamente adaptado aos modos de produção e reprodução de uma sociedade de massas na moral na ciência e na filosofia que se tomaram expressões ideológicas desse desejo de rebaixamento e nivelação da humanidade agenciado em escala planetária Esse movimento de decadência pode ser caracterizado não como um estado permanente mas como um processo que pode durar milênios Um de seus traços mais característicos consiste em que ele inviabiliza a instauração de um contraideal expressão de um movimento ascendente de vida A decadência se manifesta sobretudo como ausência de coesão orgânica como independência e destruição recíproca de elementos e funções cuja ação conjunta constitui o princípio de unidade na vida de um povo ou cultura Por essa razão o traço característico da sociedade moderna é o dilaceramento e a autonomização de seus segmentos constitutivos o individualismo patológico que a toma incapaz de se integrar numa totalidade viva a partir de um projeto ético comum É principalmente nos trabalhos regidos pelo par decadêncianiilismo que Nietzsche se propõe fazer o diagnóstico dessa condição enferma da moderna Europa É nesse contexto também que se explicita sua crítica da modernidade política Nesses escritos Nietzsche diagnostica os movimentos sociais que marcam a história recente da Europa tais como o desenvolvimento do socialismo e manifestações mais violentas e radicais de anarquismo como aprofundamentos de um processo de decadência de valores e instituições que teria tido origem na Reforma e na Revolução Francesa e aos quais ele contrapõe seu próprio entendimento de ação política A este Nietzsche dá o nome Cirande Política pensada cm oposição ao acelerado processo de mediocrização da humanidade e banalização da existência pequena política O termo política tem nesse contexto um amplo horizonte de significação A tarefa consiste na criação das condições propícias ao surgimento de novos filósofos que tenham força e intrepidez suficientes para esculpir a figura futura do humano Esses filósofos do futuro experimentados em todas as formas de autosuperação terão deixado para trás a impotência do homem moderno em romper as amarras de moralismo e criar novos valores como os legisladores para os próximos milênios A tão discutida figura do aristocrata a que Nietzsche dedica um dos capítulos de Para Alem de Bem e Mal deve ser interpretada sobretudo na direção dessa tresvaloração30 do ideal platônico do filósofo legislador Essa Cirande Política seria a legítima herdeira do que ainda restaria de forças vivas e potencialidades de grandeza em nossa civilização ocidental de que teríamos exemplo na Grécia présocrática e no Renascimento Em oposição á mediocridade dos nacionalismos políticos bélicos ou econômicos essa política teria como alvo a unidade cultural da Europa sua figurasímbolo seria para Nietzsche a dos bons europeus Se como perda de sentido e valor o niilismo anuncia o crepúsculo do projeto sociocultural da modernidade então a tarefa que Nietzsche atribui á sua Grande Política está necessariamente ligada a uma tresvaloração de todos os valores O ANTICRISTO As formas de avaliação que sempre foram determinantes para o destino atual de nossa cultura se revelam como o contrário do que aparentam ser não degraus para o crescimento do homem mas forças comprometidas com um projeto coletivo de amesquinhamento das condições nas quais poderia prosperar mais uma vez a vida humana na Terra E por esse caminho que se compreende como a tresvaloração de todos os valores está essencialmente vinculada ao livro O Anticristo Para Nietzsche o cristianismo em sua associação com o platonismo constitui a matriz de onde procedem todos os valores cardeais da civilização européia Se a condição atual de nossa cultura é marcada pelo niilismo a possibilidade de sua redenção seria vislumbrada a partir de uma inversão dos valores fundamentais dessa mesma cultura Se ela se caracteriza sobretudo por ser uma cultura gerada e nutrida pelo cristianismo sua superação seria a tarefa própria de O Anticristo 30 Em suas traduções de obras de Nietzsche Paulo César de Souza emprega o termo tresvaloração para traduzir Umwertung que significa inversão reversão A tradução sugere o movimento não apenas de inverter uma posição anteriormente dada mas também de ultrapassála superála Com essa autodesignação polêmica e provocativa Nietzsche se pretende definir menos como inimigo do Cristo do que inimigo do cristianismo dogmático tomado instituição e secularizado como doutrina filosófica moral e política Por essa razão praticamente às vésperas de sua síncope mental Nietzsche reformulou inteiramente seus projetos editoriais identificando O Anticristo com a própria obra Tresvaloração de Todos os Valores de que originariamente ele seria apenas a primeira parte Nietzsche destinou duas obras concluídas nesse mesmo ano de 1888 para servir de preparação à publicação de O Anticristo O Crepúsculo dos ídolos e Ecce Homo teriam antes de tudo o objetivo de orientar o público filosófico para a leitura e compreensão de O Anticristo As futuras gerações seriam conduzidas por elas à condição de poder avaliar a profundidade e o significado histórico mundial dessa última obra como se pode ler na seguinte passagem de Ecce Homo Conheço a minha sina Um dia meu nome será ligado á lembrança de algo tremendo de uma crise como jamais houve sobre a Terra da mais profunda colisão de consciência cie uma decisão conjurada contra tudo o que até então foi acreditado santificado querido Eu não sou um homem sou dinamite31 Nietzsche considerava pois até o fmal de sua vida lúcida que o silêncio que pairava sobre sua obra não era casual Sabia que nascera póstumo Sabia que sua obra seria necessariamente fonte de malentendidos e apropriação indébita por parte de seus contemporâneos Por isso sua confiança e sua esperança estavam nos leitores filosóficos do futuro No crepúsculo de sua razão importavaUie sobretudo não ser confundido com uma caricatura daquilo que vivera e pensara Daí o grito com que inicia sua autobiografia intelectual Prevendo que dentro em pouco devo dirigirme à humanidade com a mais séria exigência que jamais lhe foi colocada pareceme indispensável dizer quem sou Nestas circunstâncias existe um dever contra o qual no fundo rebelamse os meus hábitos e mais ainda o orgulho de meus instintos que é dizer Ouçamme Pois eu sou tal e tal Sobretudo não me confundaml32 31 Ecce Homo Por que sou um destino 1 Trad Paulo César de Souza São Paulo Companhia das Letras 1995 p109 32 Id Prólogo 1 6 BREVE HISTÓRIA DA RECEPÇÃO DA OBRA DE NIETZSCHE A recepção da obra de Nietzsche durante o período intelectualmente ativo da vida do filósofo foi bastante modesta e ainda assim só se iniciou significativamente às vésperas da crise que o acometeu O NietzscheArchiv Nietzsche e o nazismo Uma primeira recepção em grande estilo coincide com os trabalhos do NietzscheArchiv fundado pela irmã do filósofo em 1894 Elisabeth FörsterNietzsche auxiliada por colaboradores como por exemplo o filólogo Richard Oehler e o amigo e discípulo Peter Gast pôs em movimento uma intensa campanha de divulgação da obra de Nietzsche com o propósito de trazer à luz sua importância decisiva para o pensamento mundial FörsterNietzsche e seus colaboradores então procederam de forma injustificável reunindo manuscritos de Nietzsche sob a rubrica de temas arbitrários São fragmentos e manuscritos oriundos de períodos e contextos heterogêneos Com base nesse procedimento publicaram duas edições uma em 1901 e outra em 1911 de um livro apócrifo intitulado A Vontade de Poder que deveria conter segundo a versão oficial do NietzscheArchiv a essência e a verdade do pensamento definitivo de Nietzsche Hitler ascende ao poder em 1933 e desde então se intensifica a colaboração entre o NietzscheArchiv em Weimar e o programa cultural do Partido Nacional Socialista Do lado do Arquivo a obra de Nietzsche é mutilada e falsificada para ser apresentada ao público como prenuncio filosófico do pangermanismo e do anti semitismo Do lado do Partido NacionalSocialista tratavase de poder transformar o voluntarismo obscurantista e criminosamente totalitário do nazifascismo numa espécie de destino de grandeza do povo alemão com auxílio de um clássico da filosofia ocidental Essa colaboração se estreitou a ponto de ter sido possível pleitear financiamento junto aos ministérios nazistas da educação e cultura para uma megaedição dos escritos completos de Nietzsche33 A história do NietzscheArchiv e da singular trajetória de Elisabeth Förster Nietzsche como sua idealizadora e gestora constitui um capítulo curioso Por meio dela o filósofo acabou sendo transformado no que tão intransigentemente combateu O que restava do triturador de ídolos que a santo preferia ser considerado bufa o tomouse mistificado objeto de idolatria Em 1933 por ocasião de seus 50 anos Benito Mussolini recebeu da direção do NietzscheArehiv o seguinte telegrama Ao magnífico discípulo de Zaratustra sonhado por Nietzsche ao genial restaurador dos valores aristocráticos no espírito de Nietzsche envia o NietzscheArehiv em profundíssima veneração e admiração os mais fervorosos votos de felicidades Finda a Segunda Guerra o NietzscheArehiv foi fechado pelas autoridades da antiga República Democrática Alemã tendo passado a fizer parte juntamente com a totalidade do espólio filosófico de Nietzsche do patrimônio da fundação Wcimarer Klassüc O NietzscheArehiv permaneceu fechado e a investigação dos manuscritos ficou proibida até 195434 Heidegger e outros comentadores Mas a recepção alemã de Nietzsche nunca se deixou absorver inteiramente pela propaganda do NietzscheArehiv Mesmo na época de sua plena atuação não se poderia deixar de mencionar as interpretações de Karl Loewith Karl Jaspers e sobretudo Martin Heidegger a qual foi e continua sendo extraordinariamente fecunda nas mais distintas vertentes de reflexão Heidegger se ocupou com o estudo do pensamento de Nietzsche por um período que vai do final dos anos 30 a meados dos anos 50 A publicação de seus estudos constitui um divisor de águas e uma referência obrigatória para qualquer interpretação da obra de Nietzsche Segundo Heidegger Nietzsche é o filósofo em cujo 33 Da imensa literatura a respeito dessa colaboração podemse indicar quatro textos de Grande relevância H Ottmann Philosophie und Politik bei Nietzsche Berlin New York De Gruyter 1987 B Taureck Nietzsche und der Faschismus Hamburg 1989 A Munster Nietzsche et le Nazisme Paris Éditions Kimé 1995 M Montinari Interpretações Nazistas trad Dion David Machado em Cadernos Nietzsche 7 p 5577 34 Com a reunificação alemã em 1989 depois de longo trabalho de planejamento que envolveu especialistas em Nietzsche de diversas partes do globo consolidouse a idéia de um centro internacional de pesquisa Inaugurado em outubro de 1999 o Friedrich NietzscheKolleg tem como sede as dependências do antigo NietzscheArehiv Dos escombros do Arquivo emerge então em autentico espírito nietzscheano uma casa para os espíritos livres pensamento a metafísica é conduzida aos limites extremos de sua possibilidade Ao mesmo tempo que representa o extremo aprofundamento e radicalização da metafísica levando à sua consumação e esgotamento Nietzsche seria também um preparador de terreno para sua superação Na França por volta de 1930 pensadores reunidos em tomo da revista La Acéphale como Georges Bataille e Pierre Klossovski dão início a um intenso e bem sucedido trabalho de denúncia das falsificações empreendidas com fins ideológicos pela atividade editorial do NietzscheArchiv liberando o pensador da pesada acusação que lhe fora imputada entre outros pelo filósofo marxista George Lukács de ser um protofascista Também Theodor Adorno Max Horkheimer e Walter Benjamin pensadores da assim chamada Escola de Frankfurt são responsáveis por uma interpretação da obra de Nietzsche que ressalta seu potencial emancipatório e sua importância para a compreensão dos movimentos culturais e políticos que determinaram os destinos da sociedade ocidental contemporânea Nos Estados Unidos nos anos 50 Walter Kaufmann representa uma linha de interpretação da obra de Nietzsche que plantando raízes na tradição filosófica anglo saxônica se coloca à altura do que de melhor se produz na tradição hermenêutica do pensamento filosófico da Europa continental Nietzsche e o pósmoderno A partir de 1968 tem início um período da mais elevada importância para a história da recepção do pensamento de Nietzsche O inconformismo de sua filosofia ganha ascendência decisiva para autores como Gilles Deleuze Michel Foucault Jacques Derrida e JeanFrançois Lyotard em cuja interpretação o nomadismo do pensamento de Nietzsche sua resistência a toda tentativa de cooptação pacificadora faz dele uma espécie de arauto da contracultura da pósmodernidade Sabese a enorme influência que esses autores da assim chamada geração pós68 exerceram e ainda exercem sobre a intelectualidade mundial A edição históricocrítica de Co e Montinari Coube a dois filósofos italianos o feito de ter mudado definitivamente os rumos dos trabalhos sobre Nietzsche No final dos anos 60 Giorgio Colli e Mazzino Montinari começam a publicar edição históricocrítica de todos os escritos póstumos e inéditos de Nietzsche Guiados por rigorosos critérios históricofilológicos os editores dispuseram em estrita ordem cronológica a massa dos fragmentos póstumos inéditos filosoficamente relevantes de maneira a restituir aos manuscritos a integridade que fora rompida pelas manipulações nas edições anteriores Um trabalho editorial dessa magnitude jamais fora realizado nem mesmo pela memorável edição das obras de Nietzsche organizada pelo filósofo Karl Schlechta nos anos 50 unia publicação notável a primeira a ter denunciado a fraude editorial de A Vontade de Poder A edição de Nietzsche por Schlechta só foi suplantada pela edição históricocrítica de Colli e Montinari Estes recuperaram também um considerável acervo de textos importantes que por motivos inconfessáveis haviam sido subtraídos á publicação pelos diretores do NietzscheArchiv ou então publicados apenas parcialmente Como conseqüência desse trabalho abremse novas e amplas perspectivas de interpretação para os escritos de Nietzsche na medida em que se pode agora a partir da revelação das deformações resgatar para a filosofia nietzscheana sua expressão autêntica Com base nos resultados da edição históricocrítica de todos os escritos do filósofo inclusive das cartas recrudesce a polêmica em tomo do livro apócrifo A Vontade de Poder Para a maioria dos intérpretes atuais esse livro é editorial e filosoficamente irresponsável Existem duas versões da chamada edição Colli Montinari Uma delas 6 denominada Kritisclw Gesamtausgabe KGW edição ainda em curso contando atualmente cerca de 40 volumes em nove seções A KGW deverá incluir além das obras publicadas pelo próprio Nietzsche todos os escritos póstumos filosoficamente relevantes dispostos em ordem cronológica e editados de acordo com o estudo dos manuscritos A Kritische Studienausgabe KSA 15 volumes reproduz literalmente a KGW mas não inclui todos os póstumos inéditos apenas os escritos entre 1870 e 1889 A KSA existe também em CDROM Em complemento à edição históricocrítica deverão ser lançados pela editora Walter de Gruyter em meados de 2000 os dois primeiros volumes da publicação de todos os escritos e anotações de Nietzsche Desta feita não se trata da ordenação cronológica do material filosoficamente relevante mas sim de todos os escritos inclusive registros de ordem estritamente pessoal como cálculos listas de compras memorandos etc Os NietzscheStudien NietzscheStudien é o nome do mais importante periódico internacional que divulga artigos e ensaios escritos anualmente sobre a filosofia de Nietzsche Até o ano passado eram 27 volumes publicados desde 1972 Devese fazer menção também à série de monografias e textos da pesquisa sobre Nietzsche MonographienRcihc der NietzscheForschung Essa série reúne trabalhos de maior extensão livros que na produção teórica internacional sobre a obra de Nietzsche se destacam por sua qualidade A essas duas linhas de publicação vinculadas à edição históricocrítica das obras completas estão associados os nomes de dois importantes filósofos contemporâneos estudiosos da obra de Nietzsche o alemão Wolfgang MüllerLauter e o austríaco Jörg Salaquarda Nietzsche no Brasil A recepção de Nietzsche no Brasil permanece um capítulo não escrito de nossa história das idéias filosóficas Nietzsche foi lido entre nós tanto por teóricos do direito quanto por médicos psicólogos literatos e artistas O certo é que sua obra foi desde cedo objeto de atenção entre nós nos extremos opostos do espectro ideológico Se houve uma interpretação integralista de Plínio Salgado por exemplo houve também a apaixonada recepção que lhe deram Monteiro Lobato e Oswald de Andrade e as vanguardas artísticas mais recentes como por exemplo os tropicalistas e o artista plástico Hélio Oiticica Menção especial deve ser feita ao ensaio pioneiro de Antônio Cândido O Portador originariamente publicado em 1946 num suplemento literário semanal de O Diário de São Paulo Esse ensaio é um testemunho de que mesmo em tempos da mais sombria detração ideológica do pensamento de Nietzsche também houve no Brasil uma interpretação com horizontes ampliados almejando recuperar o potencial libertário de sua filosofia Outra menção indispensável cabe ao magistério e à produção filosófica de Gerard Lebrun que foram de grande importância para o estudo do pensamento de Nietzsche no Brasil Dessa atividade resulta em colaboração com Rubens Rodrigues Torres Filho o volume dedicado a Nietzsche da coleção Os Pensadores publicado era 1974 e até hoje instrumento indispensável de consulta Atualmente se encontra em curso pela Companhia das Letras um projeto de tradução e publicação de todas as obras editadas durante a vida lúcida de Nietzsche ou por ele preparadas para publicação A tradução está a cargo de Paulo César de Souza Em 1996 vinha á luz o primeiro número da série Cadernos Nietzsche publicação do Grupo de Estudos Nietzsche do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo Tratase de uni periódico semestral que se propõe a divulgar os melhores artigos e traduções produzidos no âmbito da pesquisa brasileira sobre a filosofia de Nietzsche norteandose pelos critérios editoriais dos NietzscheStndien Podese dizer que no Brasil o estudo aprofundado do pensamento de Nietzsche tem se desenvolvido consideravelmente nas últimas décadas assim como tem se difundido o gosto pela leitura de seus textos As circunstâncias indicam que a pesquisa atual sobre Nietzsche no Brasil se aproxima dos padrões acadêmicos que vigoram na Europa e nos Estados Unidos 7 DADOS BIOGRÁFICOS Friedrich Willelm Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844 na casa pastoral de Röcken na Saxônia A perda do pai falecido aos 36 anos de idade quando Nietzsche tinha apenas cinco anos produziu nele um impacto profundo Mais tarde associaria a causa da morte do pai inflamação no cérebro com os próprios males que o acompanharam ao longo da vida Também a perda do irmão caçula deixou traços indeléveis reforçando um pressentimento da morte precoce como destino dos homens da família Em 1858 ingressa no então famoso internato de Schulpforta onde permanece até 1864 Em Schulpforta Nietzsche continua a dar vazão a um intenso fascínio pela composição musical experimentado desde tenra idade No internato incrementase um interesse pelo estudo da Antigüidade clássica grega e latina Problemas com a saúde dores de cabeça e dificuldades de visão que já o atormentavam na infância intensificamse durante esse período Para dar início ao ciclo universitário matriculase em teologia e filologia na Universidade de Bonn Advém daí seu relacionamento com um dos mais renomados filólogos alemães do século 19 Friedrich Kitschl um dos principais responsáveis por sua formação Data também desse período 18645 seu primeiro contato com a filosofia de Arthur Schopenhauer que exerceria sobre ele uma influência marcante Mudase para Leipzig em 1865 concentrando seus estudos em filologia embora interessandose também por filosofia Nietzsche permanece aí de 1865 a 1867 publicando vários trabalhos de grande erudição De 1867 a 1868 ás vésperas da guerra entre a Prússia e a França Nietzsche cumpre voluntariamente o serviço militar Tendo sofrido uma queda durante exercícios de equitação afastase do serviço Em 1869 aos 25 anos de idade é indicado para ocupar a cátedra de filologia na tradicional universidade de Basiléia na Suíça A universidade de Leipzig lhe concede o título de doutor em filologia mesmo sem ele ter defendido tese com base na qualidade de seus trabalhos publicados Desde o início de seu professorado em Basiléia Nietzsche estreita laços de amizade pessoal com Richard e Cosima Wagner Durante um período relativamente longo de sua vida até 1876 participaria como militante filosófico dos projetos artísticos de Wagner Em 1872 Nietzsche publica sua primeira grande obra O Nascimento da Tragédia cujo prefácio é dedicado a Wagner No mesmo ano como presente de Natal dedica a Cosima Wagner o texto Cinco Prefácios a Cinco Livros Não Escritos que permaneceu inédito A história da recepção da obra de Nietzsche tem início com o silêncio um silêncio que reinou em tomo de seus textos durante quase todo o período devida lúcida do autor Com efeito excetuandose O Nascimento da Tragédia a publicação de seus livros não foi um evento científico que repercutisse muito Mesmo O Nascimento da Tragédia embora tenha causado grande impacto na cena cultural alemã quando de seu lançamento em 1872 recebeu uma acolhida predominantemente negativa O livro foi visto como uma aventura irresponsável uma mal disfarçada panfletagem dos empreendimentos de Wagner Mesmo a intervenção em defesa de Nietzsche vinda do próprio Wagner e de alguns de seus amigos acadêmicos teve pouca eficácia e não evitou que ficasse arranhada a reputação científica do filósofo A publicação de suas demais obras exerceu tão pouca influência sobre a discussão filosófica alemã que Nietzsche sempre se considerou perseguido pela propaganda antisemita sobretudo proveniente dos arraiais wagnerianos depois do rompimento com o compositor a partir de 1878 Os problemas de saúde se intensificam em meados dos anos 70 A visão piora em ritmo preocupante e fortes dores de cabeça acompanhadas de crises de vômito que abalam e extenuam o filósofo tomamse cada vez mais freqüentes forçandoo a pedir sucessivas licenças para afastamento por vezes prolongados de seus encargos docentes Foi como catedrático em Basiléia que Nietzsche publicou os textos habitualmente classificados no primeiro período de sua produção intelectual Em 1876 embora sem rompimento formal Nietzsche já consumara em seu foro íntimo o afastamento definitivo de Wagner e de suas pretensões culturaisEm pleno curso do primeiro festival de Bayreuth profundamente decepcionado com o que julgava ser uma deplorável mistificação que instrumentalizava a arte e sobretudo a música sujeitandoa ao gosto dominante do público Nietzsche abandona Bayreuth tendo antes pedido em casamento de modo precipitado uma admiradora de Wagner de nome Mathilde Trampedach a quem mal conhecia Naturalmente a proposta foi recusada pela jovem Além da submissão ao mercado Nietzsche julgava poder reconhecer em Wagner outra concessão a coisas que o filósofo abominava Wagner se comprometera tanto com os ideais do cristianismo quanto com as pretensões estreitamente nacionalistas do Império Alemão que estava sendo construído por Bismarck sob o poderio militar da Prússia Entre 1876 e 1877 Nietzsche concebe e formula os pensamentos que reunirá no livro publicado no ano seguinte Humano Demasiado Humano Juntamente com o rompimento definitivo com Wagner e Schopenhauer esse texto marca o início do segundo período do pensamento de Nietzsche Ele demarca assim o território de seu próprio pensamento já que ao se propor a fazer a história e a crítica das categorias morais Nietzsche ao mesmo tempo se coloca em radical oposição tanto a Schopenhauer quanto a seu amigo Rée que em 1877 publicara a Origem dos Sentimentos Adorais Também esse livro foi mal recebido pelo público e pela crítica E ás obras que se seguem num segundo ciclo de seu pensamento Aurora 1881 e A Gaia Ciência 1 882 será reservado o mesmo destino Do ponto de vista estilístico o que as caracteriza é que todas foram escritas na forma de aforismos Entrementes atormentado por seus males físicos e sentindose a cada dia mais isolado em virtude da cortina de silêncio e malentendidos que pairava sobre sua obra Nietzsche toma a decisão de abandonar definitivamente a carreira acadêmica Em reconhecimento por seus méritos e serviços a Universidade de Basiléia lhe concede uma modesta pensão vitalícia aliás único recurso de que dispõe para sobreviver uma vez quo a remuneração por direitos autorais éno caso de Nietzsche inexistente Iniciase então o ciclo de sua vida nômade fugindo dos excessos climáticos das estações do ano em busca das condições mais amenas para sua saúde combalida Passa os verões na Suíça os invernos na Itália em modestas casas de pensão A despeito de seu isolamento voluntário trava conhecimento com a jovem Lou Andreas Salomé por quem se apaixona e a quem propõe casamento Lou Salomé entretanto ainda que intelectualmente fascinada por Nietzsche tinha seus próprios planos de independência pessoal além de estar afetivamente ligada ao amigo comum de ambos o médico Paul Rée Nietzsche chega a conceber a idéia de uma união livre entre os três que associados partiriam para Paris e Viena para aprofundar seus conhecimentos científicos e manter uma vida livre e arejada dedicada ao trabalho de reflexão Todos esses planos fracassaram e a intervenção desastrosa da irmã de Nietzsche com o propósito de defender o irmão das intrigas da aventureira russa o conduziu á mais amarga de suas desilusões amorosas Com Assim Falou Zaratustra iniciase a última fase da filosofia de Nietzsche aquela em que seu pensamento atinge os limites da radicalidade crítica E por volta dessa época que concebe o projeto de escrever um livro reunindo o essencial de seus pensamentos A Vontade de Poder Tanto Assim Falou Zaratustra como os livros subseqüentes Para Além de Bem e Mal 1886 e Para a Genealogia da Moral 1887 não encontraram praticamente nenhum eco levando o filósofo ao limiar do desespero condição agravada pelos males físicos E nessa época de solidão que faz suas primeiras leituras de Dostoievski Sendo ele mesmo excelente prosador e poeta Nietzsche sempre manteve com a literatura uma relação de estreita dependência Para ele Goethe Stendhal e Dostoievski se alçaram ás mais elevadas regiões da vida do espírito O ano de 1888 é o mais fecundo na produção intelectual de Nietzsche Durante esse ano altera radicalmente seus planos em relação ao livro A Vontade de Poder substituindoo por outro que deveria chamarse Tresvaloração de Iodos os Valores também não levado a cabo Em 1888 contudo escreve O Crepúsculo dos ídolos O Cí7so Wagner O Anticristo Ecce Homo e Nietzsche Contra Wagner Esse ano é igualmente marcado pelo início de uma recepção positiva de sua obra Zaratustra é traduzido para o francês e Nietzsche trava correspondência com o célebre historiador Hypollite Taine que se confessa admirador de sua obra Ao mesmo tempo o escritor Georges Brandes difunde o pensamento de Nietzsche na Dinamarca associandoo a Kierkegaard e também se registra uma recepção de Nietzsche na Suécia Em sua euforia o filósofo acredita que o silêncio que sufocava sua obra começava a se dissipar Confiante em que agora seria um autor lido e levado a sério decidese a fazer sua própria apresentação esse é um dos principais sentidos da autobiografia Ecce Homo Entretanto no final do ano a saúde de Nietzsche atinge seu limite No Natal envia a amigos e conhecidos várias cartas assinadas O Crucificado ou Dionísio e redige uma declaração de guerra contra o primeiroministro da Prússia Otto von Bismarck e contra o imperador alemão Foi um prenuncio do colapso mental que o acometeria em 3 de janeiro de 1889 em Milão Nietzsche viveu mais 11 anos em completo e permanente estado de alienação mental falecendo em 25 de agosto de 1900 Ele assumiu até o fim a tarefa de levar o pensamento a suas conseqüências extremas Não tolerava as máquinas de pensar de gélidas entranhas Ignoro o que sejam problemas puramente espirituais dizia ele Todas as verdades são para mim verdades sangrentas For essa razão Nietzsche não pode ser lido como o são os outros clássicos da história da filosofia Compreendêlo implica recorrer não apenas aos textos publicados mas também aos inéditos e á correspondência uma vez que para ele filosofar consiste em gerar o pensamento a partir das entranhas Filosofar é viver isto é transfigurar permanentemente em luz e chama tudo o que somos tudo o que nos afeta SUGESTÕES DE LEITURA A edição históricocrítica de todos os escritos de Nietzsche denominada Kritische Gesamtansgabe Wcrke mas também conhecida como edição ColliMontinari 6 publicada simultaneamente em alemão Walter de Gruyter francês Gallimard e italiano Einaudi E atualmente a fonte obrigatória cie consulta para os estudos da obra do filósofo Como literatura de apoio sugerimos o seguinte elenco de obras fundamentais combinando interpretações clássicas e contemporâneas G Deleuze Nietzsche et Ia Philosophie Paris Presses Universitaires de France 1973 M Foucault Nietzsche la Génealogie lHistoire em Hommage a Jean Hyppolite Paris Presses Universitaires de France 1971 p 15860 Há uma tradução brasileira desse ensaio publicado em M Foucault Microfísica do Poder Trad Roberto Machado Rio de Janeiro Edições Graal 1979 p 1538 M Haar Nietsche et Ia Métaphysique Paris Gallimard 1993 M Heidegger Nietzsche Pfullingen NeskeVerlag 1961 KJaspers Nietzsche BerlinWalter de Gruyter 1950 W Kauffmann Nietsche Philosopher PsychologistAntichrist New Jersey Princeton University Press 1974 M Lebrun Surhomme et Homme Total em Manuscrito vol 11 número 1 Campinas CLEUnicamp 1978 K Loewith Von Hcgel zu Nietzsche Hamburg Félix Meiner Verlag 1986 B Magnus Nietzsches Existential Imperativo Bloomington Indiana University Press 1978 M Montinari Nietzsche Roma Editori Riuniti 1996 W MüllerLauter Nietzsche Seine Philosophie der Gcficnsãtze uncl clic Gegcnsàtze seiner Philosophie BerlinNewYorkDe Gruyter 1971 A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche Trad Oswaldo Giacoia Júnior São Paulo AnnaBlumme 1997 A Nehamas Nietzsche Life as Literature London Harvard University Press 1985 R Schacht org Nietzsche Genealogy Morality BerkeleyLos AngelesLondon University of Califórnia Press 1994 G Vattimo Nietzsche Eine Einführung Stuttgart MetzlerVerlag 1992Tradução portuguesa Lisboa Edições 70 sd P Wotling Nietzsche et le Probleme de Ia Civilization Paris Presses Universitaires de France 1995 AUTORES BRASILEIROS RM Dias Nietzsche e a Música Rio de Janeiro Imago 1994 MCF Ferraz Nietzsche o Bufão dos Deuses Rio de Janeiro Relume Dumará 1994 L Kossovitch Signos e Poderes em Nietzsche São Paulo Ática 1979 R Machado Nietzsche c a Verdade São Paulo Paz e Terra 1999 Zaratustra Tragédia Nietzschiana Rio de Janeiro Zahar 1997 S Marton Nietzsche das Forças Cósmicas aos Valores Humanos São Paulo Brasiliense 1990 A Naffah Neto Nietzsche a Vida como Valor Maior São Paulo FTD 1996 INTERNET Nietzsche é acessível na Internet nos seguintes endereços httpwwwweimarklassikdehaabnienethtml httpwwwuscedudeptannenbergthomas nietzschehmtl wwwnietzschegesellschaftde o endereço da melhor sociedade nietzscheana internacional O email dos Cadernos Nietzsche 6 discursoorguspbr SOBRE o AUTOR Oswaldo Giacoia Júnior é bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo mestre em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e doutor em filosofia pela Freie Universität Berlin É professor livredocente do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas Unicamp e autor de Labirintos da Alma Nietzsche e a AutoSupressão da Moral Campinas Ed unicamp 1997 FOLHA EXPLICA Folha Explica é uma série de livros breves abrangendo todas as áreas do conhecimento e cada um resumindo em linguagem acessível o que de mais importante se sabe hoje sobre determinado assunto Como o nome indica a série ambiciona explicar os assuntos tratados E fazêlo num contexto brasileiro cada livro oferece ao leitor condições não só para que fique bem informado mas para que possa refletir sobre o tema de uma perspectiva atual e consciente das circunstâncias do país Voltada para o leitor geral a série serve também a quem domina os assuntos mas tem aqui uma chance de se atualizar Cada volume é escrito por um autor reconhecido na área que fala com seu próprio estilo Essa enciclopédia de temas é assim uma enciclopédia de vozes também as vozes que pensam hoje temas de todo o mundo e de todos os tempos neste momento do Brasil EEssttaa oobbrraa ffooii ddiiggiittaalliizzaaddaa ee rreevviissaaddaa ppeelloo ggrruuppoo D Diiggiittaall SSoouurrccee ppaarraa pprrooppoorrcciioonnaarr ddee m maanneeiirraa ttoottaallm meennttee ggrraattuuiittaa oo bbeenneeffíícciioo ddee ssuuaa lleeiittuurraa ààqquueelleess qquuee nnããoo ppooddeem m ccoom mpprráállaa oouu ààqquueelleess qquuee nneecceessssiittaam m ddee m meeiiooss eelleettrrôônniiccooss ppaarraa lleerr D Deessssaa ffoorrm maa aa vveennddaa ddeessttee eebbooookk oouu aattéé m meessm moo aa ssuuaa ttrrooccaa ppoorr qquuaallqquueerr ccoonnttrraapprreessttaaççããoo éé ttoottaallm meennttee ccoonnddeennáávveell eem m qquuaallqquueerr cciirrccuunnssttâânncciiaa AA ggeenneerroossiiddaaddee ee aa hhuum miillddaaddee éé aa m maarrccaa ddaa ddiissttrriibbuuiiççããoo ppoorrttaannttoo ddiissttrriibbuuaa eessttee lliivvrroo lliivvrreem meennttee AAppóóss ssuuaa lleeiittuurraa ccoonnssiiddeerree sseerriiaam meennttee aa ppoossssiibbiilliiddaaddee ddee aaddqquuiirriirr oo oorriiggiinnaall ppooiiss aassssiim m vvooccêê eessttaarráá iinncceennttiivvaannddoo oo aauuttoorr ee aa ppuubblliiccaaççããoo ddee nnoovvaass oobbrraass SSee qquuiisseerr oouuttrrooss ttííttuullooss nnooss pprrooccuurree hhttttppssggrroouuppssggoooogglleeccoom mggrroouuppeexxpprreessssoolliitteerraarriioo sseerráá uum m pprraazzeerr rreecceebbêêlloo eem m nnoossssoo ggrruuppoo hhttttppssggrroouuppssggoooogglleeccoom mggrroouuppeexxpprreessssoolliitteerraarriioo hhttttppggrroouuppssggoooogglleeccoom mggrroouuppddiiggiittaallssoouurrccee Nietzsche e a Educação Um Fichamento Reflexivo do Pensamento Filosófico à Prática Pedagógica O pensamento de Friedrich Nietzsche tal como apresentado por Oswaldo Giacoia Júnior em Folha Explica Nietzsche oferece contribuições valiosas à educação contemporânea Longe de ser um filósofo sistemático ou preso a dogmas Nietzsche propõe uma filosofia inquieta viva e profundamente crítica que coloca em xeque os valores tradicionais da sociedade ocidental Ao realizar este fichamento reflexivo é possível articular alguns de seus principais conceitos à prática educativa entendendo a educação como espaço de liberdade formação de espíritos autênticos e superação do pensamento normativo Assim Nietzsche concebe a filosofia como um ato enraizado na vida e um exercício de liberdade Para ele filosofar é um ato que se enraíza na vida e um exercício de liberdade Essa afirmação tem implicações diretas para a prática pedagógica pois sugere que pensar criticamente deve ser algo cotidiano vivido e experimentado no ambiente educacional A educação nesse sentido não se restringe ao ensino de conteúdos mas se torna um meio para formar sujeitos autônomos capazes de pensar por si mesmos e de exercer sua liberdade com responsabilidade A escola portanto deve ser o espaço em que se aprende a filosofar com a própria existência onde o conhecimento é mobilizado para a construção de sentido Nesse sentido ainda Nietzsche também se mostra um crítico feroz da padronização e da massificação da humanidade Nietzsche é um dos mais intransigentes críticos do nivelamento e da massificação da humanidade Tal crítica nos conduz à reflexão sobre os sistemas educacionais que tratam os estudantes como produtos em série submetidos a métodos e avaliações padronizadas que ignoram as singularidades A imposição de valores universais que muitas vezes refletem apenas os interesses de grupos dominantes revelase uma forma de violência simbólica Dessa forma ao afirmar que se opõe à padronização de valores que sob o pretexto de universalidade encobre de fato a imposição totalitária de interesses particulares Nietzsche denuncia um modelo de educação autoritário e alienador A resposta educativa que se alinha ao pensamento nietzscheano é aquela que valoriza a diversidade estimula a criatividade e reconhece a multiplicidade de saberes e experiências É preciso lembrar que um dos conceitos mais potentes trazidos por Nietzsche é o da criação de novos valores Sua mensagem definitiva a criação de novos valores é também um cântico de alegria Isso representa uma ruptura com a educação bancária e reprodutivista que apenas transmite os valores do passado Pelo contrário é preciso incentivar os educandos a criarem seus próprios valores a construírem coletivamente novas formas de existir no mundo Essa educação para a reinvenção do humano é essencial num cenário global marcado por crises sociais ambientais e éticas Como afirma o autor Nietzsche ousa colocar em questão o valor dos valores o que implica também questionar os pilares da moral tradicional da religião institucionalizada e da ciência positivista como verdades absolutas Além disso a outra contribuição importante de Nietzsche à educação é a defesa da formação de personalidades autênticas aquelas que não se deixam moldar pelas imposições externas mas que trilham seu próprio caminho Em A Gaia Ciência Nietzsche desenvolve a noção de espíritos livres pessoas capazes de assumir a responsabilidade por seu próprio pensamento e destino A filosofia dos espíritos livres se toma em A Gaia Ciência uma ascese e preparação para o surgimento da personalidade autêntica A função do educador nesse contexto é ser um provocador de consciências um mediador do autoconhecimento e não um simples transmissor de conteúdo Educar então é despertar no outro a coragem de se tornar aquilo que se é uma tarefa difícil mas essencial para a emancipação Nesse sentido a educação alinhada ao pensamento nietzscheano é aquela que recusa a domesticação dos sujeitos que se coloca contra os últimos homens indivíduos conformados com a mediocridade com o conforto e a ausência de questionamentos Nietzsche propõe o conceito do alémdohomem aquele que ultrapassa os limites impostos pela moral tradicional e pela massificação moderna Tal superação só pode ser possível por meio de uma educação que liberte que não tenha medo da dúvida que não tema o novo e que reconheça o erro como parte do processo formativo Portanto o pensamento de Nietzsche ao questionar valores estabelecidos ao propor a criação de novos horizontes e ao defender a autenticidade oferece uma base crítica para pensar a educação como uma prática transformadora O educador que se inspira em Nietzsche não entrega respostas prontas mas convida seus alunos a pensar a desconfiar a criar Esse educador acredita que é possível ensinar a dançar com o pensamento a rir de si mesmo e a viver com intensidade o processo educativo Em tempos de crise ética e banalização da cultura recuperar Nietzsche é também recuperar a coragem de educar para a vida com tudo que ela tem de trágico belo e incerto Referência GIACOIA JÚNIOR Oswaldo Nietzsche São Paulo Publifolha 2000

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FOLHA EXPLICA NIETZSCHE OSWALDO GIACOIA JUNIOR PUBLIFOLHA FOLHA EXPLICA NIETZSCHE OSWALDO GIACOIA JÚNIOR PUBLIFOLHA 2000 Publifolha Divisão de Publicações da Empresa Folha da Manhã SA 2000 Osvaldo Giacoia Júnior Divisão de Publicações da Empresa Folha da Manhã SA Editor Arthur Nestrovski Capa e projeto gráfico Silvia Ribeiro Assistente de projeto gráfico Marilisa von Schmaedel Revisão Mário Vilela Editoração eletrônica Picture Dados internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Giacoia Júnior Osvaldo Nietzsche Osvaldo Giacoia Júnior São Paulo PUBLIFOLHA 2000 Folha explica ISBN 8574022128 1 Filosofia alemã 2 Nietzsche Friedrich Wilhelm 1844 1900 I Título II Série 002125 CDD193 Índices paro catálogo sistemático 1 Nietzsche Filosofia alemã 193 PUBLI FOLHA Divisão de Publicações do Grupo Folha Av Dr Vieira de Carvalho 40 II andar CEP 01210010 São Paulo SP Tels11 33516341634263436344 Site wwwpublifolhacombr SUMÁRIO INTRODUÇÃO POR QUE LER NIETZSCHE HOJE9 1 A CRISE DOS VALORES 15 2 NIETZSCHE E O FIM DA METAFÍSICA21 3 O JOVEM NIETZSCHE27 4 UMA FILOSOFIA PARA ESPÍRITOS LIVRES41 5 A DERRADEIRA FILOSOFIA OU COMO TORNARSE O QUE SE É53 6 BREVE HISTÓRIA DA RECEPÇÃO DA OBRA DE NIETZSCHE71 7 DADOS BIOGRÁFICOS SUGESTÕES DE LEITURA89 hhttttppggrroouuppssggoooogglleeccoom mggrroouuppddiiggiittaallssoouurrccee para Rachel Cristina Todos esses pássaros audazes que voam ao longe ao mais longínquo certamente em algum lugar não poderão ir mais longe e pousarão sobre um mastro ou um mísero recife e além do mais tão gratos por esse deplorável pouso Mas quem poderia concluir disso que adiante deles não há mais nenhuma descomunal rota livre que eles voaram tão longe quanto se pode voar Todos os nossos grandes mestres e precursores acabaram por se deter e não é com o gesto mais nobre e mais gracioso que o cansaço se detém também comigo e contigo será assim Mas que importa isso a mim e a ti Outros pássaros voarão mais longe E para onde queremos ir Queremos passar além do mar Para onde nos arrasta esse poderoso apetite que para nós vale mais do que qualquer prazer Mas por que precisamente nessa direção para lá onde até agora todos os seus cia humanidade declinaram Talvez um dia dirão de nós que também nós navegando para o Ocidente esperávamos alcançar ninas índias mas que nosso destino era naufragar no infinito Ou meus irmãos Ou Aurora aforismo 575 Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho INTRODUÇÃO POR QUE LER NIETZSCHE HOJE Dentre os clássicos da filosofia moderna Nietzsche talvez seja o pensador mais incômodo e provocativo Sua vocação crítica cortante o levou ao submundo de nossa civilização sua inflexível honestidade intelectual denunciou a mesquinhez e a trapaça ocultas em nossos valores mais elevados dissimuladas em nossas convicções mais firmes renegadas em nossas mais sublimes esperanças Essa atitude deriva do que Nietzsche entendia por filosofia Para ele filosofar é um ato que se enraíza na vida e um exercício de liberdade O compromisso com a autenticidade da reflexão exige vigilância crítica permanente que denuncia como impostura qualquer forma de mistificação intelectual Por isso Nietzsche não poupou de exame nenhum de nossos mais acalentados artigos de fé O destino da cultura o futuro do ser humano na história sempre foi sua obsessiva preocupação Por causa dela submeteu à crítica todos os domínios vitais de nossa civilização ocidental científicos éticos religiosos e políticos Nietzsche é um dos grandes mestres da suspeita que denuncia a moralidade e a política moderna como transformação vulgarizada de antigos valores metafísicos e religiosos numa conjuração subterrânea que conduz ao amesquinhamento das condições nas quais se desenvolve a vida social Nesse sentido ele é um dos mais intransigentes críticos do nivelamento e da massificação da humanidade Para ele isso era uma conseqüência funesta da extensão global da sociedade civil burguesa tal como esta se configurou a partir da Revolução Industrial Nietzsche se opõe a supressão das diferenças a padronização de valores que sob o pretexto de universalidade encobre de fato a imposição totalitária de interesses particulares por isso ele é também um opositor da igualdade entendida como uniformidade Assim denunciou a transformação de pessoas em peças anônimas da engrenagem global de interesses e a manipulação de corações e mentes pelos grandes dispositivos formadores de opinião O esforço filosófico de Nietzsche o levou a se confrontar com as grandes correntes históricas responsáveis pela formação do Ocidente a tradição paga greco romana e a judaicocristã e o que resultou da fusão entre as duas Ao longo desse seu confronto com o conjunto da herança cultural de nossa tradição Nietzsche forjou conceitos e figuras do pensamento que até hoje impregnam nosso vocabulário e povoam nosso imaginário político e artístico Tais são por exemplo as noções de Apoio e Dionísio transformadas em categorias estéticas os conceitos de vontade de poder alémdohomem Übermensch eterno retomo e niilismo e a figura da morte de Deus É impossível se colocar à altura dos principais temas e questões de nosso tempo sem entender o pensamento de Nietzsche Ateísta radical ele atribui ao homem a tarefa de se reapropriar de sua essência e definir as metas de seu destino Dele afirma o filósofo Martin Heidegger Nietzsche é o primeiro pensador que perante a história universal pela primeira vez aflorada em seu conjunto coloca a pergunta decisiva e a reflete internamente em toda a sua extensão metafísica Essa pergunta reza como homem em sua essência até aqui está o homem preparado para assumir o domínio da terra1 Nesse sentido Nietzsche é o pensador de nossas angústias que não poupou nenhuma certeza estabelecida sobretudo as suas próprias convicções e desvendou os mais sinistros labirintos da alma moderna Com a paixão que liga a vida ao pensamento Nietzsche refletiu sobre todos os problemas cruciais da cultura moderna sobre as perplexidades os desafios as vertigens no fim do século 19 Dessa sua condição postado entre o final e o início de duas eras Nietzsche esboçou um quadro que em todos os seus matizes nos concerne ainda na passagem a um novo milênio em direção a um destino que ainda não se pode discernir A despeito de sua visão sombria Nietzsche tentou ser ao mesmo tempo um arauto de novas esperanças Sua mensagem definitiva a criação de novos valores a instituição de novas metas para a aventura humana na história é também um cântico de alegria Essa é uma das razões pelas quais o estilo de Nietzsche resulta da combinação paradoxal de elementos antagônicos sombra e luz agonia e êxtase gravidade e leveza Isso explica por que para ele o riso e a paródia são operadores filosóficos inigualáveis eles permitem reverter perspectivas fossilizadas Nietzsche o impiedoso crítico das crenças canônicas é também um mestre da ironia Sua ambição consiste em tomar superfície o que é profundidade restituir a graça ao peso da seriedade filosófica Opositor ferrenho da dialética socrática Nietzsche reedita no mundo moderno o gesto irônico do pai fundador da filosofia ocidental Decisivo adversário de Platão sua filosofia talvez possa ser caracterizada como uma inversão paródica do platonismo Definindose como o mais intransigente anticristão dá no entanto á sua autobiografia intelectual escrita no final de sua vida o título Ecce Homo Eis o Homem expressão empregada por Pilatos ao apresentar Jesus a seus algozes pouco antes da Paixão Nietzsche o filósofoartista um poeta que só acreditava numa filosofia que fosse expressão das vivências genuínas e pessoais vendo na experiência estética uma espécie de êxtase e redenção é por isso mesmo um precursor da crítica a um tipo de racionalidade meramente técnica fria e planificadora A despeito da profundidade e da gravidade das questões com que se ocupa sempre as tratou em estilo artístico poeticamente sugestivo só acreditava na autenticidade de um pensamento que nos motivasse a dançar Ele mesmo imagina sobre sua porta a inscrição Moro em minha própria casa Nada imitei de ninguém E ainda ri de todo mestre Que não riu de si também2 Sem extravasar os limites dos livros desta série Folha Explica Nietzsche se propõe a ser uma apresentação geral do homem e do filósofo Friedrich Nietzsche Seu objetivo é fazer com que o leitor se familiarize com os conceitos as figuras e o estilo de Nietzsche não para depois encerrálos em qualquer câmara da memória mas sim para despertar seu interesse e estimulálo a seguir adiante Aceitar o desafio de Nietzsche implica sobretudo pensar independentemente e por isso ás vezes também contra Nietzsche 1 Heidegger Wer ist Nietzsches Zarathustra em Vorträge und Aufsätze Pfullingen Neske Verlag 1954 p 102 2 Epígrafe de A Gaia Ciência em Nietzsche Obra Incompleta Trad Rubem Rodrigues Torres Filho Col Os Pensadores São Paulo Abril Cultural 1974 p 195 1 A CRISE DOS VALORES O pensamento filosófico de Nietzsche pode ser comparado a uma espécie de sensor que registra e antecipa questões e desafios de nosso século Sua ambição é realizar um diagnóstico fiel da situação do homem moderno Para ele não resta dúvida de que herdeiro dos progressos do Iluminismo julgamonos liberados das cadeias da ignorância e da superstição Confiantes nas possibilidades advindas da utilização industrial da ciência e da técnica estamos certos de poder descobrir todos os segredos do universo e construir uma sociedade expurgada de todas as formas de opressão violência exploração Afinal somos devotos do deus Logos3 confiantes em sua onipotência Nietzsche porém meditou sobre o lado obscuro as conseqüências que poderiam resultar do otimismo desenfreado embutido nessa convicção Esse otimismo representa para ele a face resplandecente de um avesso sombrio o mesmo progresso conduz inexoravelmente à exaustão dos valores herdados da tradição à sua impossibilidade de dar sustentação a futuros projetos viáveis no campo quer do conhecimento quer da ética quer da política Nietzsche se encontrava no limiar de uma experiência do mundo em que como conseqüência dos progressos do conhecimento noções como Verdade Falsidade Justiça Bem Mal Virtude tinham sido relativizadas não podendo mais responder a nossa eterna pergunta pelo sentido da existência Para ele não cabia ao filósofo justificar ou condenar esse estado de coisas mas constatálo essa constatação seria então o único caminho que permite vislumbrar uma saída Toda tentativa de negar essa condição representa não apenas uma desonestidade intelectual e moral mas sobretudo o risco da catástrofe ou seja a possibilidade de que o esvaziamento de valores autênticos nos conduza de volta á barbárie á destruição daquilo que de mais precioso a humanidade conquistou ao longo da história a dignidade da pessoa humana Por essa razão Nietzsche dedicou sua vida a realizar três tarefas principais compreender a lógica desse movimento contraditório ao longo do qual o progresso do 3 Logos palavra grega que significa palavra discurso e razão termo que dá origem à palavra lógica e que em sentido amplo é equivalente à racionalidade conhecimento leva á perda de consistência dos valores absolutos a partir daí denunciar todas as formas de mistificação pelas quais o homem moderno oblitera sua visão dos perigos de sua condição por fim destruídos os falsos ídolos e esses são os valores mais venerados pelo homem moderno assumir corajosamente o risco de pensar novos valores abrir novos horizontes para a experiência humana na história Nietzsche viveu e pensou em profundidade a crise que se abatia sobre a Europa ao final do século 19 Filha de seu próprio tempo sua obra submete a uma crítica impiedosa todas as esferas da cultura Porém ao exigir do homem moderno que tome consciência das conseqüências das possibilidades e dos limites de seu saber e agir Nietzsche coloca questões que até hoje prosseguem conosco Num de seus mais belos e célebres textos põe em cena o drama de nossa condição Não ouvistes falar daquele homem louco que em plena manha clara acendeu um candeeiro correu para o mercado e gritava incessantemente Procuro Deus Procuro Deus E como lá se reunissem justamente muitos daqueles que não acreditavam em Deus provocou ele então grande gargalhada Perdeuse ele então dizia um Terseia extraviado como uma criança dizia outroOu se mantém oculto Tem ele medo de nós Embarcou no navio Emigrou desse modo gritavam e riam entre si O homem louco saltou em meio a eles e trespassouos com o oUiar Para onde foi Deus clamou eleeu vos quero dízêlo Nós o matamos vós e eu Nós todos somos seus assassinos Como porém fizemos isso Como pudemos tragar o oceano Quem nos deu a esponja para remover o horizonte inteiro Que fizemos nós quando desprendemos esta Terra de seu sol Para onde se move ela então Para onde nos movemos nós Longe de todos os sóis Não nos precipitamos sem cessar E para trás para o lado para frente de todos os lados Há ainda um alto e um baixo Não erramos como através de um nada infinito Não nos bafeja o espaço vazio Não ficou mais frio Não vem sem cessar sempre a noite e mais noite Não se tem que acender candeeiros pela manhã Nada ouvimos ainda do rumor dos coveirosque sepultam Deus Nada sentimos ainda do cheiro da decomposição divina também os deuses se decompõem Deus morreu Deus permanece morto E nós o matamos Como é que nos consolamos nós os assassinos de todos os assassinos Aquilo de mais santo e poderoso que o universo possuiu até agora sangrou sob nossos punhais quem enxuga de nós esse sangue Com que água poderíamos nos purificar Que cerimônias de expiação que divinos jogos teríamos de inventar A grandeza desse feito não é demasiado grande para nós Não teríamos que nos tomar nós próprios deuses para apenas parecer dignos dele Jamais houve um feito maior e sempre quem tenha apenas nascido depois de nós pertence por causa desse feito a uma história mais elevada do que foi toda história até agora Aqui calouse o homem louco e mirou de novo seus ouvintes Também estes silenciavam e olhavamno com estranhamento Finalmente ele arrojou o candeeiro ao solo de modo que este se estilhaçou e apagouChego cedo demais disse ele então não estou ainda no tempo oportuno Esse acontecimento formidável está ainda a caminho e peregrina ele ainda não penetrou nos ouvidos dos homens Relâmpago e trovão precisam de tempo a luz dos astros precisa de tempo feitos precisam de tempo mesmo depois de consumados para serem vistos e ouvidos Este feito está ainda mais distante deles do que os astros mais remotos e todavia eles o consumaram Contase ainda que no mesmo dia o homem louco teria entrado em diversas igrejas e nelas entoado seu requiem aetemam Deo Conduzido para fora e instado a falar teria ele replicado sempre apenas isto O que são então as igrejas se não criptas e mausoléus de Deus 4 A passagem descreve o sentimento de abandono que como vazio opressivo esmaga a consciência do homem moderno Os cínicos escarnecedores reunidos na praça do mercado somos também nós vencedores do combate da ciência contra as trevas da ignorância Apenas nós homens modernos não estávamos conscientes da dimensão épica de nosso próprio feito nada sabíamos da tragédia que desencadeáramos nela precipitando nosso mundo Friedrich Nietzsche é o pensador a quem coube apreender filosoficamente a experiência intelectual que marca nosso destino ao tentar levar até suas conseqüências extremas o impulso crítico que anima o pensamento filosófico da modernidade Não se pode porém extrair as últimas conclusões desse impulso crítico sem retomar á sua origem isto é para Nietzsche á metafísica de Platão Por essa razão uma das primeiras e mais fundamentais tarefas que Nietzsche se atribui é a de refutar e destruir a metafísica platônica 4 Nietzsche Gaia Ciência aforismo 125 O Homem louco 2 NIETZSCHE E O FIM DA METAFÍSICA Para Nietzsche podese tomar a filosofia de Platão como modelo da metafísica Esta se fundamenta numa concepção dualista do universo estabelecendo uma oposição de valores entre duas esferas distintas da realidade ou do ser de um lado existe um domínio ideal considerado como o verdadeiro mundo ou a realidade verdadeira assim denominado por ser o plano das essências isto é aquilo que em todo e qualquer fenômeno constitui sua pura forma ou conceito Assim por exemplo a humanidade constitui a essência de cada ser humano particular ou a triangularidade determina a natureza de toda e qualquer figura triangular que vemos ou traçamos Todos os indivíduos humanos concretos são limitados e finitos mas a humanidade é uma entidade intelectual que em nada se altera em virtude da sucessão dos indivíduos singulares Tais formas puras denominadas tecnicamente idéias por Platão teriam sua origem na idéia do Bem ou de Deus que é a causa produtora de todas as outras idéias que são as formas gerais do universoTais entidades são inacessíveis a nossos órgãos dos sentidos e imutáveis uma vez que não estão submetidas às leis do espaço e do tempo Por serem as responsáveis pela realidade de todo real foram tradicionalmente denominadas realidade inteligível em contraposição a uma segunda ordem de realidade a realidade aparente ou sensível que é aquela de que temos experiência ordinária Contraposto ás essências inteligíveis o mundo sensível é tradicionalmente considerado um plano de realidade deficitária enganosa mera aparência ou simulacro das formas puras que são como originais ou modelos dos quais toda realidade empírica sensível constitui uma cópia necessariamente imperfeita e corruptível E a essa realidade degradada sujeita ás condições do espaço e do tempo que pertence nossa existência terrena e corporal Nossa alma ou espírito nossa verdadeira essência e princípio inteligível estaria como se prisioneira de nosso corpo sendo por isso induzida ao erro e ao engano pelos sentidos que nos arrastam para o plano das aparências desviandonos do que seria nossa verdadeira destinação a contemplação das formas puras Em virtude de nossa akna racional imortal somos aparentados com as puras idéias e participantes do mundo inteligível Todo conhecimento verdadeiro seria pois uma espécie de recordação do que outrora antes do cativeiro de nossa alma pelo corpo e no mundo terrestre contempláramos do verdadeiro e divino mundo das idéias Um espírito ou razão pura e um bem em si um bem ou valor cuja vigência é universal e necessária constituem as referências metafísicas que dão sustentação tanto ao conhecimento científico quanto ás ações morais do ser humano no mundo O anúncio por Nietzsche da morte de Deus significa o fim do modo tipicamente metafísico de pensar na medida em que para ele o cristianismo tanto como religião quanto como doutrina moral constitui uma versão vulgarizada do platonismo adaptada às necessidades e anseios de amplas massas populares Por sua vez o cristianismo constitui para Nietzsche a medula ética do mundo ocidental é da seiva moral do cristianismo que se nutrem todas as esferas importantes de nossa cultura desde a mais abstrata e rarefeita investigação das ciências formais até o plano material de organização da vida e do trabalho Para Nietzsche a morte de Deus é uma expressão simbólica do desaparecimento desse horizonte metafísico baseado na oposição entre aparência e realidade verdade e falsidade bem e mal Isso significa que não podemos mais sustentar a crença num conhecimento objetivo que ultrapasse a particularidade de nossos afetos Para Nietzsche todo conhecimento é inevitavelmente guiado por interesses e condicionamentos subjetivos ideológicos o conhecimento resulta da projeção de nossos impulsos e anseios razão pela qual Nietzsche o considera sempre determinado por certa perspectiva seja individual seja sócioculturalmente determinada Se como resultado do desenvolvimento das ciências e do aprofundamento do esclarecimento chegamos ã experiência da morte de Deus então é lícito colocar também em questão o único valor absoluto que ainda permanece reconhecido pela consciência científica contemporânea o valor absoluto da verdade A morte de Deus implica portanto a possibilidade de colocar em questão a crença na origem divina e no valor absoluto da verdade Fazer com que a verdade apareça como um problema implica para Nietzsche problematizar também conceitos como o bem e o mal o justo e o injusto o lícito e o proibido na medida em que verdade beleza e bondade justiça sempre foram termos que mantiveram íntima correlação Nietzsche é pois o filósofo que ousa colocar em questão o valor dos valores Sua preocupação consiste em trazer ã luz as condições históricas das quais emergiram nossos supostos valores absolutos colocando em dúvida a pretensa sacralidade de sua origem Em sua genealogia da moral Nietzsche pretende também submeter a julgamento o valor desses mesmos valores foram eles propícios ou nocivos ao florescimento e intensificação da vida humana na terra 3 O JOVEM NIETZSCHE Uma exposição geral do pensamento de Nietzsche constitui uma tarefa dificultada pelo variedade dos temas de que se ocupa pela extraordinária multiplicação de pontos de vista por vezes dificilmente conciliáveis sobre um mesmo assunto pela diversidade de estilos literários presentes em sua obra e sobretudo pela natureza radicalmente crítica e polêmica de seus escritos Isso gerou a convicção quase unânime entre seus comentadores de que o aspecto assistemático constitui o traço essencial de seu pensamento Um intérprete contemporâneo da obra de Nietzsche o americano Walter Kaufmann escrevendo a respeito desse traço assistemático fez notar que Nietzsche seria mn pensador de problemas e não pensador de sistemas aliás de acordo com Kaufmann o pensamento nietzscheano não poderia dar ensejo a um sistema Em Nietzsche a investigação filosófica parte não de um feixe de pressupostos mas de uma situação problemática Nela estão contidos alguns pressupostos e outros são expressamente admitidos ao longo da investigação O resultado final não é tanto uma solução do problema inicial mas antes o discernimento de seus limites em regra o problema não é resolvido nós porém nos elevamos acima dele5 A despeito da diversidade temática de seu conteúdo e da multiplicidade de seus estilos podese facilmente reconhecer que as questões abordadas por Nietzsche remetem a um centro comum de preocupações que os conceitos e argumentos se reúnem em constelações que se arranjam e modificam ao longo de sua trajetória filosófica sem entretanto jamais deixar de orbitar em tomo de um centro de gravidade Com a mesma necessidade com que uma árvore dá seus frutos crescem em nós nossos pensamentos nossos valores nossos sins e nãos e quandos e ses aparentados e referidos todos eles entre si e testemunhas de uma única vontade de uma única saúde de um único terreno de um único sol6 Na literatura secundária costumase dividir cronologicamente em três fases a produção filosófica de Nietzsche O primeiro período estaria situado aproximadamente entre os anos 1870 e 1876 Um segundo momento vai de 1876 a I 882 5 Kaufman Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist New Jersey Princeton University 1974 p 82 6 Para a Genealogia da moral Prefácio par 2 em Nietzsche Obra Incompleta Trad Rubem Rodrigues Torres Filho Col sendo seguido pela derradeira fase iniciada em 1882 e abruptamente interrompida em 1889 Essa periodização é sobretudo determinada pela seqüência das obras características de cada uma das fases Contudo essa divisão sempre foi objeto de debate entre os principais comentadores da obra de Nietzsche Por um lado não se pode negar que determinados grupos de idéias se conservam presentes nos diferentes períodos o que sugeriria uma idéia de continuidade Por outro a trajetória filosófica de Nietzsche é marcada por mudanças significativas tanto de forma quanto de conteúdo As principais vantagens dessa periodização são sobretudo de ordem didática para fins expositivos O primeiro momento se caracterizaria sobretudo pelos escritos do assim chamado jovem Nietzsche e coincidiria em grande parte com o tempo de docência na Universidade de Basiléia como catedrático de filologia clássicaTal período é marcado pela publicação de O Nascimento da Tragédia a partir do Espírito da Música 1 872 Primeira Consideração Extemporânea David Strauss o Devoto e o Escritor 1873 Da Utilidade e Desvantagem da História Para a Vida 1874 Schopenhauer como Educador 1874 e Richard Wagner em Bayrenth 1876 Entretanto não se pode deixar de fazer menção a textos que permaneceram inéditos durante a vida do autor ou tiveram restrita circulação uma vez que são de grande relevância para uma interpretação do conjunto de seu pensamento Dentre eles cabe citar O Drama Musical Grego Sócrates e a Tragédia A Cosmovisão Dionisíaca O Nascimento do Pensamento Trágico todos de 1 870 Sócrates e a Tragédia Grega 1871 Sobre o làitnro de Nossas Instituições de Ensino 1872 Cinco Prefácios Para Cinco Livros Não Escritos 1872 A Filosofia na Época Trágica dos Gregos 1873 e talvez o mais famoso dos inéditos do jovem Nietzsche Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral 1873 A PRIMEIRA FASE De um ponto de vista genérico podese afirmar que i questão central da filosofia do jovem Nietzsche está ligada ao destino da arte e da cultura no mundo moderno Nesse momento ele se encontra profundamente influenciado pela metafísica da vontade de Schopenhauer 17881860 o teórico do pessimismo que considerava que Os Pensadores São Paulo Abril Cultural 1974 p 305 o universo não era expressão do intelecto e da vontade de Deus nem efeito de outra espécie de princípio racional Para ele a essência do universo é um impulso cego denominado Vontade ávida e insaciável eternamente em busca de satisfação Outra influência decisiva para o jovem Nietzsche foi a teoria da arte de Richard Wagner 181383 Este também se inspirou em Schopenhauer acreditando que a música seria a mais adequada forma de manifestação daquela força criadora do inundo a Vontade Tomando Wagner e Schopenhauer como seus aliados Nietzsche empreende uma crítica radical das tendências culturais dominantes em seu tempo caracterizadas por uma confiança ingênua nas idéias de evolução e progresso lógico ou natural no curso dos quais a humanidade teria alcançado um estágio de desenvolvimento em que estaria em condições de humanizando a natureza e racionalizando a sociedade aproximarse do ideal da felicidade universal Nietzsche se opunha também a outra tendência de sua época que consistia em valorizar uma forma de intelectualidade erudita burocrática e estéril que em nome de uma pretensa neutralidade científica se mantinha numa posição de distância em relação aos interesses concretos de um povo ás necessidades e urgências da vida Em contraposição ao gosto dominante entre seus contemporâneos em matéria tanto de filosofia quanto de ciência arte religião moral e política Nietzsche se volta para a Grécia présocrática com o propósito de nela buscar uma força originária de que esperava um renascimento do espírito trágico na Europa um contramovimento em relação ao cientificismo otimista dos tempos modernos Cético quanto á tese de que a natureza humana é originariamente boa não partilhando a confiança ilimitada na onipotência da ciência e cia racionalidade Nietzsche esperava da arte especialmente da música de Wagner uma restauração da cultura trágica no mesmo espírito em que esta florescera entre os gregos embalada por um senso artístico notavelmente desenvolvido e por uma postura corajosa perante o drama da existência Para Nietzsche havia algo em comum entre a situação dos gregos á época do florescimento da tragédia e a situação da Europa no século 19 Se Schopenhauer tinha razão com sua metafísica da Vontade então o coração pulsante do universo era um ímpeto cego desprovido de finalidade eternamente sofredor porque eternamente carente Por conseguinte não haveria mais lugar para as ilusões consoladoras até aquela época alimentadas pela tradição de que a ciência a religião ou a moral seriam capazes de responder a eterna pergunta pela razão de ser e pelo sentido da existência humana no mundo Assim nem pela razão especulativa nem pela razão prática nem pela via da ciência nem pela da moralidade se poderiam justificar a existência do universo e a razão de ser da vida humana O Nascimento da tragédia a Partir do Espírito da Música aliás toda a metafísica de artista que caracteriza esse primeiro período da filosofia de Nietzsche encontra nesse diagnóstico da situação cultural da Europa seu horizonte de compreensão só como fenômeno estético tomase justificada a existência do mundo das Dasein der Welt7 O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA E nesse sentido que os gregos do período trágico seriam exemplares Eles pressentiram e vivenciaram de modo exacerbado as atrocidades da existência e as dores do mundosem necessidade cie subterfúgios moralistas Prova disso é a ferocidade de que dão mostras os combates entre as cidadesestados assim como as agruras materiais e espirituais que estavam na base do florescimento da cultura grega Entretanto mesmo compreendendo que o sofrimento e a violência da guerra se incluem entre as condições inexoráveis da vida souberam dar â sua existência a elevação e a beleza que encontramos presentes em todos os setores do mundo grego no nível tanto das instituições materiais quanto das esferas superiores da cultura espiritual Em outras palavras os gregos souberam exemplarmente dominar o caos de seus impulsos atingindo um domínio de si que Uies permitia transfigurar em beleza os horrores da existência O jovem Nietzsche ilustra essa sua teoria da jovialidade Heiterkeit grega8 recorrendo â proverbial lenda de Sileno sábio acompanhante do deus Dionísioi Apolodoro narra que o rei Midas empreendeu caça a Sileno para que este lhe revelasse o maior de todos os segredos o que seria paia o homem o melhor e o mais digno de desejar Finalmente apreendido e forçado a falar Sileno teria respondido Estirpe 7 Nietzsche O Nascimento da tragédia cap V 8 Serenojovialidade na excelente tradução brasileira feita por Jacó Guinsburg de O Nascimento da tragédia São Paulo Companhia das letras 1992 nota 2 p 145 miserável e transitória filhos do acaso e da fadiga por que me forças a dizer o que para ti seria mais vantajoso não ouvir O melhor de tudo é totalmente inatingível para ti não ter nascido não ser ser nada E o melhor em segundo lugar é para ti morrer logo Esta é a lição deixada pela tragédia grega arte e cultura têm como finalidade a transformação desse horror em beleza em poesia épica e lírica popular em música e ditirambos9 em instituições éticoreligiosas e políticas como a obra de arte do Estado grego As narrativas míticas em geral são expressões de uma vivência comum do mundo fundamentadora da identidade de um povo Esse é para Nietzsche o mistério de Apoio e Dionísio símbolos intuitivos das duas forças ou impulsos fundamentais da natureza aos quais corresponde a dupla face da experiência grega do mundo Apolo e Dionísio Apolo representa o lado luminoso da existência o impulso para gerar as formas puras a majestade dos traços a precisão das linhas e limites a nobreza das figuras Ele é o deus do principio de individuação da sobriedade da temperança da justa medida o deus do sonho das belas visões Dionísio por sua vez simboliza o fundo tenebroso e informe a desmedida a destruição de toda figura determinada e a transgressão de todos os limites o êxtase da embriaguez Apolo é o patrono das artes figurativas Dionísio é o deus da música A tragédia é a síntese dessas forças antitéticas nela se conciliam por um lado a força cega e inexorável do destino que a tudo destrói e por outro a intensidade máxima do que resiste ao destino a figura colossal do herói Por essa reconciliação a tragédia transfigura em drama artístico aquela sabedoria pessimista de Sileno segundo a qual tudo o que nasce mesmo o que há de mais grandioso tem de perecer para que o ciclo da vida se perpetue Sem destruição não há criação sem trevas não há luz sem barbárie e crueldade não há beleza nem cultura Sócrates e o pensamento científico Em relação ao período heróico da tragédia ática a tendência representada pela figura de Sócrates significou uma ruptura radical O surgimento da escola socrática 9 Gênero poético grego sobretudo ligado ao cântico coral religioso em culto a Dionísio com a extrema valorização do pensamento lógico e da dialética representaria não um progresso em relação á Grécia présocrática porém o contrário disso A racionalidade de tipo socrático matriz cio cientificismo moderno tem como pressuposto a negação da experiência arcaica e genuinamente grega Sócrates e seus contemporâneos já não estariam mais á altura da experiência trágica do mundo não conseguindo suportar o racionalmente incompreensível o absurdo da existência Para poder viver o homem teórico busca refúgio na mesma fé ilusória que está na raiz da ciência moderna isto é ele se nutre no otimismo metafísico que está na base da racionalidade dialética a crença na onipotência do logos científico O tipo de homem teórico encarnado por Sócrates acredita ser possível mediante o princípio de causalidade desvendar os segredos mais abissais da realidade não somente conhecê los como também corrigilos O otimismo teórico considera a ciência um remédio universal que cura a ferida eterna do existir e identifica no erro e na ignorância a fonte de todo mal Uma cultura de tipo socrático é necessariamente iluminista e portanto hostil à arte e ao mito considerados uma forma de ignorância e de ilusão unia vez que não explicam as verdadeiras causas das coisas Entretanto essa mesma cultura se converte em seu contrário isto é abre espaço para um renascimento da ilusão artística quando a consciência do homem teórico admite que nem tudo é acessível à racionalidade lógica mais ainda que o essencial em nossa existência permanece envolto num mistério impenetrável a qualquer explicação racional Tal experiência teria sido vivida na Grécia e estaria simbolizada no enigma de Sócrates ao mesmo tempo sendo inimigo dos artistas e no final da vida compondo música e pondo em versos algumas fábulas de Esopo Isto é retomando ao mito Essa seria pois a catástrofe da razão socrática Se em O Nascimento da Tragédia Nietzsche recorre á Grécia como paradigma de cultura não é com o propósito de oferecer ao público um tratado erudito de filologia clássica O retomo aos gregos tem os olhos postos no presente na cultura alemã de seu tempo Esta representa para o jovem Nietzsche o prolongamento mas também a agonia de um modelo de cultura que tem em Sócrates sua figura emblemática Tratase de um tipo de cultura essencialmente lógica e dialética que como Sócrates deposita toda a sua esperança na onipotência do conhecimento científico no valor absoluto da verdade a qualquer preço Tal como Sócrates a cultura moderna sucumbe á sua catástrofe quando chega ao discernimento de suas próprias fronteiras e limites isto é quando reconhece a partir dos recursos e das exigências mais avançadas da própria ciência que a razão técnicocientífica não é onipotente Mais ainda que a confiança nessa onipotência é uma forma poderosa de ilusão O renascimento do espírito trágico Esse discernimento constitui para Nietzsche o principal resultado do desenvolvimento da filosofia alemã desde Kant A filosofia crítica culminaria com a descoberta de que os interesses essenciais da vida humana a crença em Deus na liberdade e na imortalidade da alma são racionalmente inexplicáveis Por essa razão Nietzsche espera de uma aliança contraída entre a tradição espiritual da filosofia alemã simbolizada em Schopenhauer e o poder irresistível da música alemã simbolizada em Wagner um renascimento do espírito trágico que dana novo alento e autenticidade a uma cultura depauperada que vive do consumo da cultura de todos os povos e épocas numa confusão bárbara de todos os estilos uma cultura consumida pela erudição vazia desprovida de identidade própria e de vitalidade Do mesmo modo que na Grécia foi a partir do solo sagrado da arte especialmente da tragédia nascida do espírito da música que floresceu o melhor da cultura helênica assim seria também na Alemanha o espírito da música de Wagner o que redespertaria o vigor originário dos mitos germânicos fazendo renascer a cultura trágica alemã e com ela como farol para os outros povos da Europa as possibilidades de elevar o ser humano bem acima do que eleja realizara ao longo de sua história CONSIDERAÇÕES EXTEMPORÂNEAS Esse constitui todo o sentido da vigorosa polêmica que Nietzsche manteve com as principais correntes intelectuais de seu tempo num programa com o título Considerações Extemporâneas Nestas Nietzsche põe impiedosamente a nu a hipocrisia o artificialismo a aridez e a cândida autosatisfaçâo que caracterizam a moderna cultura européia em todas as suas esferas Justamente por ser privada de autêntica consciência de si a moderna cultura européia é no mau sentido do termo artifício filisteísmo Em razão da hipertrofia do conhecimento histórico a cultura moderna é uma mistura caótica das formas culturais de todas as épocas a que tem acesso nesse sentido o termo que a designa épara Nietzsche barbárie civilizada Faltalhe pois a característica que constitui o traço essencial de toda verdadeira cultura Cultura é sobretudo a unidade do estilo artístico em todas as manifestações da vida de um povo10 O projeto wagneriano de uma obra de arte total seria portanto essa força geradora de uma nova cultura expressão artística das experiências fundamentais que dão origem a uma consciência de si Esta por sua vez seria nutrida pela energia mágica do mito e da música atuando na qualidade de potência ética como substituto da moderna religiosidade caduca que restauraria os laços efetivos de solidariedade imprimindo ao povo a unidade de um estilo E a unidade desse estilo artístico marcando todas as formas de manifestação da vida de um povo desde a produção e reprodução da vida material até as esferas superiores da cultura o que verdadeiramente constitui sua identidade Essa é a razão de ser da aproximação entre a tragédia grega e o drama musical wagneriano Os gregos podem servir de exemplo porque aprenderam pouco a pouco a organizar o caos de elementos que se misturavam confusamente na história de sua civilização elementos semíticos babilônicos lídios persas egípcios etc Ao fazêlo eles nos indicaram o caminho de superação de nossa barbárie civilizada Esse background estéticometafísico é característico do primeiro período da trajetória filosófica de Nietzsche E justamente nesse horizonte que se deve apreciar a crítica do jovem Nietzsche às idéias modernas de liberdade individual e igualitarismo à democracia ao liberalismo cuja exacerbação ele via se configurar nos movimentos revolucionários socialistas e anarquistas Sua crítica da modernidade política seus estudos sobre o Estado grego são determinados antes de tudo por essa preocupação com a cultura entendida como transfiguração artística da natureza A motivação fundamental de sua filosofia política pode ser buscada não em alguma identificação com os interesses de uma classe social ou movimento político mas na compreensão da cultura como redenção da natureza e da vida Essa mesma observação vale para as fases ulteriores de seu filosofar São equivocadas portanto as 10 Considerações Extemporâneas III em Nietzsche Sämtliche Werke ed G ColliMMontinari Kritische Studienausgabe doravante KSA BerlinNew YorkMünchen De GruyterDTV 1890 vol 1 1 p 163 interpretações que consideram sua obra uma apologia da aristocracia e da escravidão Nietzsche de fato não acreditava que uma organização racional das relações sociais faria desaparecer completamente da sociedade moderna as figuras negativas da violência opressão e exploração Suas razões para isso consistem em que o ser humano é sobretudo uni animal impulsivo dominado por forças que escapam ao controle integral e autárquico de sua consciência Para Nietzsche a racionalidade é uma forma refmada da vontade de poder e não ainda suficientemente vigorosa para exercer pleno domínio sobre figuras menos espiritualizadas dessa mesma vontade que na forma de paixões arrebatadoras ameaçam permanentemente arrastar o homem às experiências mais terríveis de violência e destruição Num fragmento póstumo que permaneceu inédito escrito no ano de 1883 Nietzsche registra esta sua visão pessimista da história da humanidade Cultura é apenas uma delgada pelinha de maçã sobre um caos incandescente11 Mas isso não implica uma justificação teórica da força bruta Pelo contrário em sua opinião a aposta fundamental no jogo da cultura sempre consistiu e consiste ainda na organização do caos na sublimação das forças vulcânicas que se agitam no interior do homem Não a apologia do monstruoso e do irracional mas o reconhecimento sem disfarces de que sem a energia poderosa desse caos pulsional nenhuma elevação e grandeza teria sido possível na Terra Entretanto a tarefa da cultura consiste justamente em transfigurar essa matéria incandescente em espírito transformar monstros selvagens em animais domésticos com os quais é belo e agradável viver 11 Fragmento póstumo de 1883 número 948 em KSA vol 10 p 362 4 UMA FILOSOFIA PARA ESPÍRITOS LIVRES A ruptura com a metafísica de artista descrita no capítulo anterior é também um distanciamento crítico em relação à filosofia de Schopenhauer e uma desilusão com as esperanças de renovação cultural depositadas no projeto wagneriano Isso origina a nova configuração de temas e problemas característica do segundo período de sua filosofia no qual há uma predominância do estilo aforístico inspirado nos moralistas franceses12 No verão de 1876 deuse a inauguração solene do Teatro Wagner na cidade de Bayreuth na Baviera epicentro do projeto cultural denominado obra de arte total O quarto opúsculo da série Considerações Extemporâneas tendo por título Richard Wagner em Bayreuth foi escrito como artigo de apresentação explicitando o significado cultural do empreendimento wagneriano Contudo a despeito dessa sua origem o texto não deixa de sugerir avaliações profundamente ambíguas a respeito da obra de Wagner Quanto a Schopenhauer seu nome não é sequer mencionado no próximo livro escrito por Nietzsche a coletânea de aforismos que constituem os dois volumes de Humano Demasiado Humano publicado em 1878 e unanimemente considerado o marco inicial de seu segundo período de produção E no entanto o livro inteiro é um ajuste de contas definitivo com as idéias fundamentais do sistema filosófico do autor de O Mundo Como Vontade e Representação HUMANO DEMASIADO HUMANO Dedicando o livro à memória do filósofo francês Voltaire e escolhendo como epígrafe uma citação de O Discurso do Método para bem conduzir a própria razão e buscar a verdade na ciência de René Descartes Nietzsche já o insere simbolicamente na tradição da filosofia das Luzes caracterizada pela confiança no poder emancipatório da ciência 12 Corrente filosófica francesa dos séculos 16 e 17 que se notabilizou pela capacidade de observação psicológica dos problemas da moralidade e dos costumes expressos em estilo literário caracteristicamente breve denominado aforismo ou em máximas e sentenças morais François de Ia Rochefoucauld 161380 foi um de seus principais representantes O aforismo tem extraordinária importância no modo de pensar e escrever de Nietzsche em seu triunfo contra as trevas da ignorância e da superstição Não por acaso portanto a obra tem como subtítulo Um Livro Para Espíritos Livres Se para o jovem Nietzsche era a arte e não a ciência ou a moralidade o que constituía a atividade verdadeiramente metafísica do homem permitindo a ele aproximarse da dimensão essencial da existência em Humano Demasiado Humano ela é destituída desse privilégio Fazendo uma referência velada a pressupostos fundamentais da filosofia de Schopenhauer dos quais partilhara Nietzsche toma agora o cuidado de se afastar criticamente deles Que lugar ainda resta agora para a arte Antes de tudo ela ensinou através de milênios a olhar com interesse e prazer a vida em todas as suas formas e alargar tanto nosso sentimento que por fim brademos Como quer que seja a vida ela é boa Essa doutrina da arte sentir prazer na existência e considerar a vida humana uma parte da natureza essa doutrina foi implantada em nós ela vem à luz novamente agora como irresistível necessidade de conhecer O homem científico é o desenvolvimento do homem artístico13 Essa segunda fase na trajetória filosófica de Nietzsche pode ser caracterizada assim por uma valorização do conhecimento científico e um abrandamento da oposição entre arte e ciência que com seus diferentes matizes caracterizava a metafísica de artista do jovem Nietzsche Agora o homem teórico cujos modelos eram Sócrates e Platão não se opõe mais ao artista pelo contrário é pensado como seu desenvolvimento assim como o próprio artista passa a ser interpretado como desenvolvimento do homem religioso O prazer de viver a satisfação fluída na contemplação das formas da existência cultivados na humanidade sob influência da arte desafogamse na irresistível necessidade de conhecimento Se para o jovem Nietzsche o aprofundamento do conhecimento científico conduzia a proliferação de um saber erudito e estéril que sufocava a vida para o Nietzsche do período intermediário o conhecimento científico toma livre o espírito e como herdeiro da riqueza e da elevação de ânimos produzidas pela arte passa a assumir uma função transfiguradora embelezadora da existência Pouco mais tarde em Aurora Pensamentos Sobre os Sentimentos Morais 1881 Nietzsche desenvolveria e aprofundaria seu novo entendimento relativo ao papel da ciência e à oposição entre esta e a arte Contrapondose àqueles que valorizam apenas a imaginação e as obrasprimas do disfarce estético que acreditam só reconhecer beleza no abandono da realidade nua e crua Nietzsche nos fala de um frisson brotado do menor e mais seguro passo no progresso do conhecimento O aforismo em questão tem como título Conhecimento e Beleza Eles pensam que a realidade é horrível contudo não pensam que o conhecimento até mesmo da mais horrível realidade é belo do mesmo modo que aquele que conhece bastante e amiúde está por fim muito longe de considerar horrível o grande todo da realidade cuja descoberta lhe proporciona sempre felicidade A felicidade do homem do conhecimento aumenta a beleza do mundo e toma mais ensolarado tudo o que é o conhecimento espalha sua beleza não apenas em tomo das coisas como também com o tempo dentro das próprias coisas14 Data desse período intelectualista a valorização da disciplina dos métodos científicos que marcará daqui em diante toda a sua obra Por essa razão Nietzsche procurará desenvolver até o máximo de refinamento seus dotes de filólogo de psicólogo a ponto de considerar a si mesmo anos mais tarde o primeiro psicólogo da Europa de historiadorfilósofo de genealogista da moral Também intensifica seus estudos de ciências naturais de fisiologia e biologia e procura tomar contato com os últimos desenvolvimentos das disciplinas médicas e neurológicas Em 1877 seu amigo Paul Rée publica A Origem dos Sentimentos Morais Podese afirmar que foi em oposição a esse livro que surgiram as hipóteses genuinamente metzscheanas a respeito da gênese de nossos conceitos e sentimentos morais E nessa curiosidade históricopsicológica a propósito do surgimento de nossos sentimentos e categorias morais que podemos surpreender em Humano Demasiado Humano um procedimento característico que não abandonará mais a trajetória de seu pensamento Tratase de um tipo de explicação que passa a constituir para Nietzsche desde então um modelo de conhecimento científico a explicação genealógica 13 Humano demasiado humano I aforismo 222 14 Aurora V Aforismo 550 A EXPLICAÇÃO GENEALÓGICA De acordo com esse método a explicação de um fenômeno qualquer depende sempre da reconstituição dos momentos constitutivos de seu viraser de tal maneira que o sentido atual desse fenômeno não pode ser obtido sem o conhecimento da série histórica de suas transformações e deslocamentos Aplicandoo á gênese dos sentimentos morais Nietzsche afirma que aquilo que a um olhar não suficientemente adestrado pode aparecer como uma oposição entre contrários por exemplo entre bom e mau egoísta e altruísta mas também entre belo e feio verdadeiro e falso objetivo e subjetivo sempre se revela á luz de sua consideração históricogenealógica como uma transformação do oposto em seu outro Sugestivamente Nietzsche dá a isso o nome de química cios conceitos e dos sentimentos na medida em que o ilustra a partir do fenômeno químico da sublimação A filosofia histórica que de modo algum pode mais ser pensada separadamente da ciência natural o mais jovem de todos os métodos filosóficos revelou em casos singulares c supostamente será este seu resultado em todos os casos que não existem contrários a não ser no habitual exagero da concepção popular ou metafísica e que um erro da razão subjaz a essa contraposição nos termos de sua explicação não existe rigorosamente falando nem um agir nãoegoísta nem uma contemplação desinteressada ambos são sublimações nas quais o elemento fundamental quase volatilizado demonstrase como existente apenas para a mais refinada observação15 Dessa maneira não somente desaparecem as antíteses entre pólos opostos como também se dissolvem as entidades estáveis as substâncias fixas e permanentes O conjunto inteiro dos fenômenos seja no domínio da natureza seja no do espírito constituise como um universo em constante transformação um viraser ou devir O caráter específico da abordagem históricogenealógica nietzscheana é constituído pela direção de seu olhar investigativo a perspectiva se orienta de cima para baixo das figuras mais solenes e refinadas onde não se percebe a matéria grosseira a suas condições de possibilidade A partir de Humano Demasiado Humano Nietzsche passa a proceder metodicamente nesse sentido sempre escavando os subterrâneos das mais requintadas formações culturais especialmente da moral Quem contempla aqueles temíveis despenhadeiros escarpados onde geleiras se acumulam considera impossível que venha um tempo em que no mesmo sítio se instale um vale de relvado e floresta com regatos Assim é também na história da humanidade as forças mais selvagens abrem caminho e embora destrutivas de início a atividade delas foi necessária para que mais tarde um modo de vida mais suave aí erguesse sua morada As energias terríveis aquilo que se chama o Mal são os ciclópicos arquitetos e construtores de caminho da humanidade 16 Percebese atuando aqui um ideal de filosofia histórica que não pode prescindir da colaboração das demais ciências na medida em que para estar à altura de seu tempo o filósofo deve ser capaz de fazer uso dos mais avançados resultados das disciplinas científicas com o propósito de se elevar a uma concepção de mundo liberada das fantasias e superstições engendradas pela religião pela moral e pela metafísica Nesse sentido o homem teórico não representa apenas o desenvolvimento do artista mas sobretudo a passagem da infância religiosometafísica através do período de adolescência representado pela arte para a plena maturidade conferida pelo espírito científico Retomando uma metáfora comum ao pensamento clássico que põe em correspondência as fases de desenvolvimento da cultura de cada indivíduo com as etapas de evolução históricocultural da humanidade Nietzsche dá a seguinte expressão á sua própria idéia do desenvolvimento humano Os homens retomam cada vez mais rápido as fases costumeiras da cultura espiritual que foram alcançadas ao longo da história Eles atualmente começam por fazer seu ingresso na cultura como crianças religiosamente motivadas e desenvolvem essa sensibilidade em sua suprema vivacidade até o décimo ano de viela passam então por formas cada vez mais enfraquecidas panteísmo enquanto se aproximam da ciência superam inteiramente Deus imortalidade e coisas similares mas sucumbem á magia de uma filosofia metafísica por fim esta também se tona desacreditada a arte parece ao contrário cada vez mais confiável de modo que durante algum tempo a 15 Humano demasiado humano I 1 16 ld246 em KSA vol 2 p 205 metafísica apenas pode permanecer e seguir vivendo numa espécie de transmutação em arte ou numa disposição artísticotransfiguradora Todavia o senso científico se toma cada vez mais imperioso e conduz o homem para a ciência natural a história e nomeadamente para os mais severos modos de conhecimento ao passo que á arte é atribuída uma significação cada vez mais leve e despretensiosa Isso tudo costuma ocorrer agora nos primeiros 30 anos de um homem E a recapitulação de uma tarefa para a qual a humanidade trabalhou sobre si durante talvez 30 mil anos17 Podese afirmar considerando o nível de generalidade exigido por esta apresentação que os dois livros publicados a seguir Aurora Pensamentos Sobre os Preconceitos Morais 1881 e A Gaia Ciência 1882 permanecem sob a influência do mesmo espírito intelectualista que descrevemos como característico do segundo período da filosofia nietzscheana18 AURORA E A GAIA CIÊNCIA Em Aurora Nietzsche lança mão cia penetração psicológica do rigor de sua filosofia histórica para escavar o campo da moralidade e da religião com o propósito de examinar as fundações sobre as quais foram erigidos os majestosos edifícios éticos da tradição ocidental Esse trabalho de topeira no subsolo insalubre dos sentimentos morais visa trazer à superfície de um conhecimento livre de preconceitos as condições e os propósitos as motivações inconfessáveis que estão na origem dos valores éticos prctensamente absolutos Tratase de um livro marcado por uma disposição de ânimo ao mesmo tempo grave e libertária um livro das profundezas sombrias que aspira pela luz da superfície Nele Nietzsche se considera a si mesmo representante e legítimo herdeiro da tradição metafísica ocidental tratase porém daquele herdeiro em cujo pensamento essa tradição tomou consciência de si por meio do conhecimento de sua própria origem For isso ela não pode mais se furtar á confissão franca das condições problemáticas de surgimento de seus valores mais elevados A honestidade intelectual 17 Id 272 p 224s 18 Aqui seria impossível excluir o livro V A Gaia Ciência escrito em 1886 e acrescido à obra na segunda edição ocorrida naquele ano Tanto cronológica quanto tematicamente esse livro V A Gaia Ciência pertence ao terceiro característica da moderna consciência científica é a instância que impõe como um dever a tarefa paradoxal de superar as formas e valores da moralidade ocidental Aurora sugere pois o surgimento de uma nova luz para a humanidade um novo tempo que pode sonhar com a esperança brotada da liberdade espiritual A Gaia Ciência 1882 por sua vez pode ser considerado um livro que mesmo ainda permanecendo no interior da filosofia para espíritos livres já anuncia a transição para a terceira etapa do filosofar nietzscheano Nele permanece dominante a perspectiva de valorização da racionalidade científica mas de uma ciência alegre gaia que pode se dar ao luxo intelectual de percorrer com graça e leveza os caminhos mais pedregosos levar sobre os ombros os mais penosos fardos de nossa tradição sem negatividade ou rancor esforçandose por multiplicar as perspectivas para poder compor uma imagem mais plena das coisas embora nunca total Em A Gaia Ciência ao lado dos temas sempre presentes na filosofia de Nietzsche como a crítica do conhecimento da arte da religião da metafísica e da moral podese perceber claramente um aprofundamento e intensificação das preocupações pedagógicas a intenção de organizar o pensamento de forma tal que uma leitura conveniente da obra seja o caminho para a libertação suprema Para esse leitor ideal o livro não visa ensinar uma doutrina sua lição fundamental é a responsabilidade do pensamento independente O mestre é aqui sobretudo aquele que prepara o discípulo para abandonálo para que este empreenda por si mesmo a aventura do espírito A filosofia dos espíritos livres se toma em A Gaia Ciência uma ascese e preparação para o surgimento da personalidade autêntica que pela disciplina crítica aprendeu a discriminar entre as necessidades e aspirações que brotam de sua natureza singular e aquelas que lhe são impostas do exterior afastandoa do caminho que a poderia conduzir a si mesma Nietzsche acredita que esse caminho está reservado apenas para aqueles poucos que têm a ousadia de pensar e responder por si próprios período da filosofia de Nietzsche 5 A DERRADEIRA FILOSOFIA OU COMO TORNARSE O QUE SE É Publicado em quatro partes entre 1883 e 1885 Assim Falou Zaratustra um Livro Para Todos c Para Ninguém é o trabalho de Nietzsche que mais dificuldades apresenta à interpretação Nele os ensinamentos e experiências do personagemtítulo são apresentados como um drama em prosa em cuja narrativa se combinam os mais variados elementos estéticos de gênero forma e estilo Nietzsche explora ao infinito a rítmica a sonoridade e os matizes da língua alemã ao mesmo tempo que recorre à encenação teatral a formas diversas de narração à poesia ao canto à dança à sátira e à paródia assim como sobretudo à intertextualidade Esse procedimento consiste no caso de Nietzsche em criar novas e surpreendentes significações a partir da apropriação seletiva de textos consagrados pela tradição ou até mesmo de argumentos de adversários deslocandolhes o sentido original Assim Falou Zaratustra condensa efetivamente todos os focos de interesse que constituem o âmago do pensamento de Nietzsche a desconstrução da metafísica a denúncia da hipocrisia moral as preocupações com a educação a política e o destino da cultura a crítica do Estado O livro contém passagens que desde seu aparecimento pertencem ao acervo clássico da filosofia moderna Alguns fragmentos são o bastante para ilustrar sua riqueza num deles Nietzsche faz implodir o dualismo metafísico que separa corpo e alma matéria e espírito O corpo é uma grande razão uma pluralidade dotada de um sentido uma guerra e uma paz um rebanho e um pastor Instrumento de teu corpo é também tua pequena razão meu irmão a que chamas espírito um pequeno instrumento e um pequeno joguete de tua grande razão Instrumentos e joguetes são o sentido e o espírito por detrás deles está porém o si mesmo Selbst Por detrás de teus pensamentos e sentimentos meu irmão encontrase um soberano poderoso um sábio desconhecido ele se chama si mesmo Em teu corpo habita ele ele é o teu corpo19 Em outro fragmento Nietzsche condensa suas idéias acerca da vocação pedagógica essencialmente crítica de sua filosofia Seus esforços deverão confluir para o cultivo da personalidade autêntica Meu irmão Queres caminhar para a solidão Queres procurar o caminho que conduz a ti mesmo Detémte um pouco e escutame Aquele que procura facilmente se perde a si mesmo Todo partir para a solidão é culpa assim fala o rebanho E tu fizeste parte do rebanho durante muito tempo A voz do rebanho continuará ressoando dentro de ti Queres porém percorrer o caminho de tua tribulação que é o caminho para ti mesmo Mostrame então teu direito e tua força para fazêlo20 No Zaratustra com a intransigência do profeta Nietzsche reedita sua crítica a todas as esferas da tradição cultural O personagem central da obra se faz portavoz de doutrinas fundamentais para o futuro do homem a vontade de poder o eterno retomo do mesmo e o alémdohomem21 A ação combinada desses três ensinamentos deverá produzir o desmascaramento e a ruína da hipocrisia que caracteriza a cultura moderna Por essa razão o livro pode ser compreendido como uma das mais estridentes recusas dos valores e idéias de que se orgulha o homem moderno Para ele Nietzsche cunha a denominação sarcástica o último homem O último homem simboliza a modernidade que considera a si mesma o ponto mais avançado do desenvolvimento histórico da humanidade acreditando que a finalidade dessa história consistia precisamente na chegada do moderno Orgulhoso de sua cultura e formação que o elevaria acima de todo passado o último homem crê na onipotência de seu saber e de seu agir Para Zaratustra entretanto o último homem representa o mais inquietante rebaixamento de valor do ser humano a transformação do homem numa massa impessoal de seres uniformes O bem supremo almejado pelo último homem sua concepção de felicidade é uma combinação de mediocridade conforto bemestar ausência de sofrimento e grandeza Que é amor Que 6 criação Que 6 nostalgia Que é estrela Assim 19 Assim falou Zaratustra I Dos desprezadores do corpo 20 Id Do Caminho do criador 21 O termo original empregado por Nietzsche é Übermensch que também costuma ser traduzido por superhomem Preferimos a tradução proposta por Rubens Rodrigues Torres Filho Obras Incompletas op cit p 236 s As razões da pergunta o último homem e pisca os olhos A Terra se tomou pequena então e sobre ela saltita o último homem que toma tudo pequeno Sua estirpe é indestrutível como a pulga o ultimo homem é o que vive mais tempo Nós inventamos a felicidade dizem os últimos homens e piscam os oUios Nenhum pastor e um só rebanho Todos querem o mesmo todos são iguais Quem sente de outra maneira vai voluntariamente para o hospício Temos nosso prazerzinho para o dia e nosso prazerzinho para a noite mas prezamos a saúde Nós inventamos a felicidade dizem os últimos homens e piscam os olhos22 O alémdohomem Alémdohomem é um conceito que só pode ser corretamente apreendido em antagonismo com a figura do último homem pois ele constitui um contraideal da tendência ao nivelamento e à uniformização que para Nietzsche caracteriza a moderna sociedade de massa Para ele o homem pode ser visto não como um fim como o deseja o último homem mas como um meio para conquistar possibilidades mais sublimes de existência Eu vos ensino o alémdohomem O homem é algo que deve ser superado Que tendes feito para superálo Todos os seres até agora criaram algo acima deles próprios quereis vós ser o refluxo dessa grande maré e retroceder ao animal ao invés de superar o homem Que é o macaco para o homem Uma zombaria e uma dolorosa vergonha E justamente isso é o que o homem deve ser para o alémdohomem uma zombaria e uma dolorosa vergonha O homem é uma corda estendida entre o animal e o alémdohomem uma corda sobre o abismo Um perigoso passar para o outro lado um perigoso caminhar um perigoso olhar para trás um perigoso estremecer e parar A grandeza do homem está em ser ele uma ponte e não um fim o que se pode amar no homem é que ele é uma passagem e um crepúsculo23 Essa perigosa travessia que conduz do animal ao alémdohomem só pode ser empreendida pelo homem moderno renunciando ao conformismo de sua mediocridade e autosatisfação Fixar o alémdohomem como alvo de sua nostalgia é uma tarefa á escolha se esclarecerão abaixo 22 Assim falou Zaratustra Prólogo 23 Id p 14 e l6 qual a humanidade só pode ser conduzida por intermédio dos dois outros ensinamentos de Zaratustra a vontade de poder e o eterno retomo Para Nietzsche Schopenhauer tivera razão quando identificou na Vontade o elemento fundamental em todo o universo Todavia do ponto de vista de Nietzsche ela não pode ser pensada como ainda o fizera Schopenhauer como um ímpeto cego desprovido de finalidade Se é a Vontade que determina o surgimento e a transformação de todo estado de coisas do universo tal Vontade possui uma qualidade fundamental ela é vontade de poder A vontade de poder Onde encontrei um ser viveu te lá encontrei vontade de poder E este mistério segredoume a própria vidaVeja disse elaeu sou aquela que sempre tem de superar a si mesma Essa superação a humanidade a realiza por meio das tábuas de valor que traçam o rumo para o trabalho civilizatório dos povos Muitos países viu Zaratustra e muitos povos dessa maneira ele descobriu de muitos povos o Bem e o Mal Zaratustra não encontrou sobre a terra nenhum poder maior do que Bem e Mal Uma tábua de valores está suspensa sobre cada povo Olha é a tábua de suas superações olha é a voz de sua vontade de poder24 Para que o homem moderno possa ainda criar para além dele mesmo é necessário que se aproprie dessa natureza ou seja de sua vontade de poder Somente desse modo poderá realizar aquilo que por meio dele constitui o fervoroso desejo da vida superarse a si mesmo rompendo a camisadeforça em que a encerrou a moderna civilização ocidental a rigidez da autoconservação a qualquer custo Todavia para que o homem moderno possa corresponder a esse desejo íntimo da vida e se colocar em sintonia com ela é antes de tudo necessário que tenha se libertado daquele ressentimento que lhe foi inoculado pela tradição metafísica o desprezo pela vida pela terra pelo mundo pelo corpo pelo viraser por tudo aquilo que foi até agora caluniado em nome do verdadeiro mundo Somente quando sua existência terrena puder deixar de ser vivida sob a ótica do juízo e da condenação como padecimento e expiação como ascese pela qual se conquista a felicidade eterna somente 24As duas citações se referem respectivamente a Assim Falou Zaratustra segunda parte Da Autosuperacão e primeira parte Das Mil Metas e da Única Meta então poderá o homem instituir para si um ideal que seja também o sentido da terra liberto da fantasia transcendente de um alémdomundo com a qual ele entorpece a dor de sua finitude tragédia de sua existência O eterno retorno Somente quando o sofrimento não for mais vivido como uma objeção contra a vida e um motivo para condenála é que o homem poderá superar seu desejo de um além metafísico e seu rancor contra a passagem do tempo Somente dessa maneira a totalidade da vida poderá ser assumida sem acréscimos ou subtrações com todas as suas misérias e êxtases firmemente encadeados entre si pois eles se condicionam mutuamente e aquele que deseja de fato as venturas não pode amputar as dores do mundo O ensinamento que conduz a essa forma de superação é o eterno retomo do mesmo Não se trata de mera aceitação resignada dos acontecimentos do destino mas de afirmação incondicional que aceita e bendiz cada instante vivido For meio desse ensinamento o homem deve aprender a agir como se a mais ínfima de suas ações devesse se repetir eternamente de maneira a dar á sua própria existência a bela forma da obra de arte O eterno retorno é a lição que imprime ao instante o selo da eternidade Se para seu grande precursor o filósofo Baruch de Spinoza 163277 o conhecimento verdadeiro conduzia ao amor intelectual de Deus para Nietzsche o ensinamento do eterno retomo leva ao amor do destino amor fati E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse Esta vida assim como tu a vives agora e como a viveste terás de vivêla ainda uma vez e ainda inúmeras vezes e não haverá nela nada de novo cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de retomar e tudo na mesma ordem e seqüência e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores e do mesmo modo este instante e eu próprio A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez e tu com ela poeirinha da poeira Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim Ou viveste alguma vez um instante descomunal em que lhe responderias Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti assim como és ele te transformaria e talvez te triturasse a pergunta diante de tudo e de cada coisaQuero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir Ou então como terias de ficar bem contigo mesmo e com a vida para não desejar nada mais do que essa última eterna confirmação e chancela25 Até ser completamente ensombrecido pelo colapso mental que o abateu no início de 1889 Nietzsche não conseguiu se restabelecer totalmente da amarga experiência que significou para ele o silêncio total que se seguiu à publicação de Assim Falou Zaratustra A obra não teve sequer a ínfima parcela da repercussão que dela esperava seu autor e não houve nem uma recepção negativa por parte de amigos e conhecidos nos quais o filósofo depositava ainda alguma esperança Nietzsche a concebera em tal grau de expectativa que ele a considerava um quinto Evangelho ou Antievangelho No entanto a obra foi praticamente ignorada durante a vida de seu autor Podese afirmar que o sofrimento causado por esse silêncio constitui a raiz da preocupação obsessiva de Nietzsche para esclarecer e explicitar as idéias fundamentais de Assim Falou Zaratnstra PARA ALEM DE BEM E MAL As duas obras subseqüentes Para Além de Bem c Mal 1886 e Para a Genealogia da Moral 1887 são os principais testemunhos da tentativa de divulgar como uma espécie de glossário conceitual os temas e problemas do Zaratustra No primeiro deles Nietzsche expõe sua hipótese de interpretação global da existência com base na perspectiva fornecida pelo conceito de vontade de poder Opondose ao mecanicismo e a todo positivismo26 que almeja explicar os fenômenos da natureza a partir de um conjunto de leis gerais Nietzsche contesta até mesmo a legitimidade de pretender obter um conhecimento objetivo dos fenômenos da naturezaTodos os fenômenos do universo seriam explicáveis a partir não de leis naturais mas do conceito de vontade de poder O mundo visto por dentro dirá provocativamente Nietzsche seria vontade de poder e nada além disso Sendo assim 25 Gaia Ciência IV 341 26 Doutrina filosófica que pretende rejeitar a metafísica e fundamentar o conhecimento unicamente em fatos e leis observáveis também o próprio conhecimento seria expressão da vontade de poder e portanto nada de imparcial de objetivo de constatação e organização lógica de uma lei natural Perdoem este velho filólogo que não pode resistir á maldade de pôr o dedo sobre más artes de interpretação mas aquela legalidade da natureza de que vós físicos falais com tanto orgulho só subsiste graças a vossa interpretação e filologia ruim não é nenhum estado de coisas nenhum texto mas somente um arranjo ingenuamente humanitário e uma distorção de sentido com que dais plena satisfação aos instintos democráticos da akna moderna For toda parte igualdade diante da lei nisso a natureza não é cie outro modo nem está melhor do que nós Mas como foi dito isso é interpretação não texto e poderia vir alguém que com a intenção e a arte opostas soubesse na mesma natureza e tendo em vista os mesmos fenômenos decifrar precisamente a imposição tiranicamente irreverente e inexorável de reivindicações de potência que contudo terminasse por afirmar deste inundo o mesmo que vós afirmais ou seja que tem um decurso necessário e calculável mas não porque nele reinam leis mas porque absolutamente faltam as leis e cada potência a cada instante tira sua última conseqüência Posto que também isto seja somente interpretação e sereis bastante zelosos para fazer essa objeção ora tanto melhor 27 PARA A GENEALOGIA DA MORAL Para a Genealogia da Moral talvez seja o livro mais conhecido de Nietzsche Nessa obra ele aprofunda e consolida a crítica da moral levada a efeito em seus escritos anteriores especialmente em Humano Demasiado Humano e Aurora No entanto Nietzsche está convencido de possuir agora maior maturidade e uma linguagem especial para os problemas que formulara antes Principalmente acredita ter fornecido agora ao método genealógico uma dimensão especial A genealogia nietzscheana não se contenta mais apenas com uma abordagem histórica dos sentimentos e conceitos morais A gênese histórica é tarefa preparatória para uma questão mais incisiva mais radical aquela que se pergunta pelo próprio valor dos valores e avaliações da moral tradicional Necessitamos uma critica dos valores morais é necessário colocar alguma vez em 27 Para além do bem e do mal aforismo 22 questão o próprio valor desses valores e para isso se tem necessidade de ter conhecimento das condições e circunstâncias das quais surgiram aqueles valores nas quais se desenvolveram e modificaram a moral como conseqüência como sintoma como máscara como tartufaria como enfermidade como malentendido mas também a moral como causa como remédio como estímulo como freio como veneno um conhecimento que não existiu até agora nem sequer foi desejado28 Nas três dissertações que compõem esse livro polêmico a gênese da moral ocidental é enfocada de perspectivas distintas Nelas Nietzsche antecipa muitas das mais importantes conquistas teóricas da psicanálise de Freud especialmente quando descreve a genealogia da consciência moral A segunda dissertação desenvolve a tese nietzscheana de acordo com a qual a cultura superior com as severas figuras de moralidade que lhe são características não pode ser entendida senão como o processo de internalização e espiritualização da crueldade Todos os instintos que não se descarregam para fora voltamse para dentro é isso que eu denomino interiorização do homem é somente com isso que cresce no homem aquilo que mais tarde se denomina suaalma 29 Decadência e niilismo Também em Para a Genealogia da Moral aflora um par de conceitos que será de imensa importância para o conjunto inteiro dos demais escritos de Nietzsche todos de 1888 São os conceitos de decadência e niilismo que desempenham uma função central não só em O Crepúsculo dos ídolos O Anticristo e Ecce Homo mas também nos dois ensaios psicológicos sobre Richard Wagner O Caso Wagner e Nietzsche contra Wagner Nesses escritos Nietzsche interpreta a história da cultura moderna como escalada do niilismo Este por sua vez deve ser entendido como um sentimento opressivo e difuso próprio ás fases agudas de ocaso de uma cultura O niilismo seria a expressão afetiva e intelectual da decadência Por meio dele o homem moderno vivência a perda de sentido dos valores superiores de nossa cultura Por essa ótica niilismo seria o sentimento coletivo de que nossos sistemas tradicionais de valoração 28 Para a Genealogia da Moral Prefácio VI 29 Id II 15 tanto no plano do conhecimento quanto no éticoreligioso ou sociopolítico ficaram sem consistência e já não podem mais atuar como instâncias doadoras de sentido e fundamento para o conhecimento e a ação Sintomas desse estado de prostração podem ser detectados segundo Nietzsche em todos os setores da moderna vida social na arte plenamente instrumentalizada para fins de entretenimento ou como o chamaríamos atualmente capturada nos circuitos da indústria cultural na política e na educação empenhadas em estabelecer e perpetuar um ideal de homem completamente adaptado aos modos de produção e reprodução de uma sociedade de massas na moral na ciência e na filosofia que se tomaram expressões ideológicas desse desejo de rebaixamento e nivelação da humanidade agenciado em escala planetária Esse movimento de decadência pode ser caracterizado não como um estado permanente mas como um processo que pode durar milênios Um de seus traços mais característicos consiste em que ele inviabiliza a instauração de um contraideal expressão de um movimento ascendente de vida A decadência se manifesta sobretudo como ausência de coesão orgânica como independência e destruição recíproca de elementos e funções cuja ação conjunta constitui o princípio de unidade na vida de um povo ou cultura Por essa razão o traço característico da sociedade moderna é o dilaceramento e a autonomização de seus segmentos constitutivos o individualismo patológico que a toma incapaz de se integrar numa totalidade viva a partir de um projeto ético comum É principalmente nos trabalhos regidos pelo par decadêncianiilismo que Nietzsche se propõe fazer o diagnóstico dessa condição enferma da moderna Europa É nesse contexto também que se explicita sua crítica da modernidade política Nesses escritos Nietzsche diagnostica os movimentos sociais que marcam a história recente da Europa tais como o desenvolvimento do socialismo e manifestações mais violentas e radicais de anarquismo como aprofundamentos de um processo de decadência de valores e instituições que teria tido origem na Reforma e na Revolução Francesa e aos quais ele contrapõe seu próprio entendimento de ação política A este Nietzsche dá o nome Cirande Política pensada cm oposição ao acelerado processo de mediocrização da humanidade e banalização da existência pequena política O termo política tem nesse contexto um amplo horizonte de significação A tarefa consiste na criação das condições propícias ao surgimento de novos filósofos que tenham força e intrepidez suficientes para esculpir a figura futura do humano Esses filósofos do futuro experimentados em todas as formas de autosuperação terão deixado para trás a impotência do homem moderno em romper as amarras de moralismo e criar novos valores como os legisladores para os próximos milênios A tão discutida figura do aristocrata a que Nietzsche dedica um dos capítulos de Para Alem de Bem e Mal deve ser interpretada sobretudo na direção dessa tresvaloração30 do ideal platônico do filósofo legislador Essa Cirande Política seria a legítima herdeira do que ainda restaria de forças vivas e potencialidades de grandeza em nossa civilização ocidental de que teríamos exemplo na Grécia présocrática e no Renascimento Em oposição á mediocridade dos nacionalismos políticos bélicos ou econômicos essa política teria como alvo a unidade cultural da Europa sua figurasímbolo seria para Nietzsche a dos bons europeus Se como perda de sentido e valor o niilismo anuncia o crepúsculo do projeto sociocultural da modernidade então a tarefa que Nietzsche atribui á sua Grande Política está necessariamente ligada a uma tresvaloração de todos os valores O ANTICRISTO As formas de avaliação que sempre foram determinantes para o destino atual de nossa cultura se revelam como o contrário do que aparentam ser não degraus para o crescimento do homem mas forças comprometidas com um projeto coletivo de amesquinhamento das condições nas quais poderia prosperar mais uma vez a vida humana na Terra E por esse caminho que se compreende como a tresvaloração de todos os valores está essencialmente vinculada ao livro O Anticristo Para Nietzsche o cristianismo em sua associação com o platonismo constitui a matriz de onde procedem todos os valores cardeais da civilização européia Se a condição atual de nossa cultura é marcada pelo niilismo a possibilidade de sua redenção seria vislumbrada a partir de uma inversão dos valores fundamentais dessa mesma cultura Se ela se caracteriza sobretudo por ser uma cultura gerada e nutrida pelo cristianismo sua superação seria a tarefa própria de O Anticristo 30 Em suas traduções de obras de Nietzsche Paulo César de Souza emprega o termo tresvaloração para traduzir Umwertung que significa inversão reversão A tradução sugere o movimento não apenas de inverter uma posição anteriormente dada mas também de ultrapassála superála Com essa autodesignação polêmica e provocativa Nietzsche se pretende definir menos como inimigo do Cristo do que inimigo do cristianismo dogmático tomado instituição e secularizado como doutrina filosófica moral e política Por essa razão praticamente às vésperas de sua síncope mental Nietzsche reformulou inteiramente seus projetos editoriais identificando O Anticristo com a própria obra Tresvaloração de Todos os Valores de que originariamente ele seria apenas a primeira parte Nietzsche destinou duas obras concluídas nesse mesmo ano de 1888 para servir de preparação à publicação de O Anticristo O Crepúsculo dos ídolos e Ecce Homo teriam antes de tudo o objetivo de orientar o público filosófico para a leitura e compreensão de O Anticristo As futuras gerações seriam conduzidas por elas à condição de poder avaliar a profundidade e o significado histórico mundial dessa última obra como se pode ler na seguinte passagem de Ecce Homo Conheço a minha sina Um dia meu nome será ligado á lembrança de algo tremendo de uma crise como jamais houve sobre a Terra da mais profunda colisão de consciência cie uma decisão conjurada contra tudo o que até então foi acreditado santificado querido Eu não sou um homem sou dinamite31 Nietzsche considerava pois até o fmal de sua vida lúcida que o silêncio que pairava sobre sua obra não era casual Sabia que nascera póstumo Sabia que sua obra seria necessariamente fonte de malentendidos e apropriação indébita por parte de seus contemporâneos Por isso sua confiança e sua esperança estavam nos leitores filosóficos do futuro No crepúsculo de sua razão importavaUie sobretudo não ser confundido com uma caricatura daquilo que vivera e pensara Daí o grito com que inicia sua autobiografia intelectual Prevendo que dentro em pouco devo dirigirme à humanidade com a mais séria exigência que jamais lhe foi colocada pareceme indispensável dizer quem sou Nestas circunstâncias existe um dever contra o qual no fundo rebelamse os meus hábitos e mais ainda o orgulho de meus instintos que é dizer Ouçamme Pois eu sou tal e tal Sobretudo não me confundaml32 31 Ecce Homo Por que sou um destino 1 Trad Paulo César de Souza São Paulo Companhia das Letras 1995 p109 32 Id Prólogo 1 6 BREVE HISTÓRIA DA RECEPÇÃO DA OBRA DE NIETZSCHE A recepção da obra de Nietzsche durante o período intelectualmente ativo da vida do filósofo foi bastante modesta e ainda assim só se iniciou significativamente às vésperas da crise que o acometeu O NietzscheArchiv Nietzsche e o nazismo Uma primeira recepção em grande estilo coincide com os trabalhos do NietzscheArchiv fundado pela irmã do filósofo em 1894 Elisabeth FörsterNietzsche auxiliada por colaboradores como por exemplo o filólogo Richard Oehler e o amigo e discípulo Peter Gast pôs em movimento uma intensa campanha de divulgação da obra de Nietzsche com o propósito de trazer à luz sua importância decisiva para o pensamento mundial FörsterNietzsche e seus colaboradores então procederam de forma injustificável reunindo manuscritos de Nietzsche sob a rubrica de temas arbitrários São fragmentos e manuscritos oriundos de períodos e contextos heterogêneos Com base nesse procedimento publicaram duas edições uma em 1901 e outra em 1911 de um livro apócrifo intitulado A Vontade de Poder que deveria conter segundo a versão oficial do NietzscheArchiv a essência e a verdade do pensamento definitivo de Nietzsche Hitler ascende ao poder em 1933 e desde então se intensifica a colaboração entre o NietzscheArchiv em Weimar e o programa cultural do Partido Nacional Socialista Do lado do Arquivo a obra de Nietzsche é mutilada e falsificada para ser apresentada ao público como prenuncio filosófico do pangermanismo e do anti semitismo Do lado do Partido NacionalSocialista tratavase de poder transformar o voluntarismo obscurantista e criminosamente totalitário do nazifascismo numa espécie de destino de grandeza do povo alemão com auxílio de um clássico da filosofia ocidental Essa colaboração se estreitou a ponto de ter sido possível pleitear financiamento junto aos ministérios nazistas da educação e cultura para uma megaedição dos escritos completos de Nietzsche33 A história do NietzscheArchiv e da singular trajetória de Elisabeth Förster Nietzsche como sua idealizadora e gestora constitui um capítulo curioso Por meio dela o filósofo acabou sendo transformado no que tão intransigentemente combateu O que restava do triturador de ídolos que a santo preferia ser considerado bufa o tomouse mistificado objeto de idolatria Em 1933 por ocasião de seus 50 anos Benito Mussolini recebeu da direção do NietzscheArehiv o seguinte telegrama Ao magnífico discípulo de Zaratustra sonhado por Nietzsche ao genial restaurador dos valores aristocráticos no espírito de Nietzsche envia o NietzscheArehiv em profundíssima veneração e admiração os mais fervorosos votos de felicidades Finda a Segunda Guerra o NietzscheArehiv foi fechado pelas autoridades da antiga República Democrática Alemã tendo passado a fizer parte juntamente com a totalidade do espólio filosófico de Nietzsche do patrimônio da fundação Wcimarer Klassüc O NietzscheArehiv permaneceu fechado e a investigação dos manuscritos ficou proibida até 195434 Heidegger e outros comentadores Mas a recepção alemã de Nietzsche nunca se deixou absorver inteiramente pela propaganda do NietzscheArehiv Mesmo na época de sua plena atuação não se poderia deixar de mencionar as interpretações de Karl Loewith Karl Jaspers e sobretudo Martin Heidegger a qual foi e continua sendo extraordinariamente fecunda nas mais distintas vertentes de reflexão Heidegger se ocupou com o estudo do pensamento de Nietzsche por um período que vai do final dos anos 30 a meados dos anos 50 A publicação de seus estudos constitui um divisor de águas e uma referência obrigatória para qualquer interpretação da obra de Nietzsche Segundo Heidegger Nietzsche é o filósofo em cujo 33 Da imensa literatura a respeito dessa colaboração podemse indicar quatro textos de Grande relevância H Ottmann Philosophie und Politik bei Nietzsche Berlin New York De Gruyter 1987 B Taureck Nietzsche und der Faschismus Hamburg 1989 A Munster Nietzsche et le Nazisme Paris Éditions Kimé 1995 M Montinari Interpretações Nazistas trad Dion David Machado em Cadernos Nietzsche 7 p 5577 34 Com a reunificação alemã em 1989 depois de longo trabalho de planejamento que envolveu especialistas em Nietzsche de diversas partes do globo consolidouse a idéia de um centro internacional de pesquisa Inaugurado em outubro de 1999 o Friedrich NietzscheKolleg tem como sede as dependências do antigo NietzscheArehiv Dos escombros do Arquivo emerge então em autentico espírito nietzscheano uma casa para os espíritos livres pensamento a metafísica é conduzida aos limites extremos de sua possibilidade Ao mesmo tempo que representa o extremo aprofundamento e radicalização da metafísica levando à sua consumação e esgotamento Nietzsche seria também um preparador de terreno para sua superação Na França por volta de 1930 pensadores reunidos em tomo da revista La Acéphale como Georges Bataille e Pierre Klossovski dão início a um intenso e bem sucedido trabalho de denúncia das falsificações empreendidas com fins ideológicos pela atividade editorial do NietzscheArchiv liberando o pensador da pesada acusação que lhe fora imputada entre outros pelo filósofo marxista George Lukács de ser um protofascista Também Theodor Adorno Max Horkheimer e Walter Benjamin pensadores da assim chamada Escola de Frankfurt são responsáveis por uma interpretação da obra de Nietzsche que ressalta seu potencial emancipatório e sua importância para a compreensão dos movimentos culturais e políticos que determinaram os destinos da sociedade ocidental contemporânea Nos Estados Unidos nos anos 50 Walter Kaufmann representa uma linha de interpretação da obra de Nietzsche que plantando raízes na tradição filosófica anglo saxônica se coloca à altura do que de melhor se produz na tradição hermenêutica do pensamento filosófico da Europa continental Nietzsche e o pósmoderno A partir de 1968 tem início um período da mais elevada importância para a história da recepção do pensamento de Nietzsche O inconformismo de sua filosofia ganha ascendência decisiva para autores como Gilles Deleuze Michel Foucault Jacques Derrida e JeanFrançois Lyotard em cuja interpretação o nomadismo do pensamento de Nietzsche sua resistência a toda tentativa de cooptação pacificadora faz dele uma espécie de arauto da contracultura da pósmodernidade Sabese a enorme influência que esses autores da assim chamada geração pós68 exerceram e ainda exercem sobre a intelectualidade mundial A edição históricocrítica de Co e Montinari Coube a dois filósofos italianos o feito de ter mudado definitivamente os rumos dos trabalhos sobre Nietzsche No final dos anos 60 Giorgio Colli e Mazzino Montinari começam a publicar edição históricocrítica de todos os escritos póstumos e inéditos de Nietzsche Guiados por rigorosos critérios históricofilológicos os editores dispuseram em estrita ordem cronológica a massa dos fragmentos póstumos inéditos filosoficamente relevantes de maneira a restituir aos manuscritos a integridade que fora rompida pelas manipulações nas edições anteriores Um trabalho editorial dessa magnitude jamais fora realizado nem mesmo pela memorável edição das obras de Nietzsche organizada pelo filósofo Karl Schlechta nos anos 50 unia publicação notável a primeira a ter denunciado a fraude editorial de A Vontade de Poder A edição de Nietzsche por Schlechta só foi suplantada pela edição históricocrítica de Colli e Montinari Estes recuperaram também um considerável acervo de textos importantes que por motivos inconfessáveis haviam sido subtraídos á publicação pelos diretores do NietzscheArchiv ou então publicados apenas parcialmente Como conseqüência desse trabalho abremse novas e amplas perspectivas de interpretação para os escritos de Nietzsche na medida em que se pode agora a partir da revelação das deformações resgatar para a filosofia nietzscheana sua expressão autêntica Com base nos resultados da edição históricocrítica de todos os escritos do filósofo inclusive das cartas recrudesce a polêmica em tomo do livro apócrifo A Vontade de Poder Para a maioria dos intérpretes atuais esse livro é editorial e filosoficamente irresponsável Existem duas versões da chamada edição Colli Montinari Uma delas 6 denominada Kritisclw Gesamtausgabe KGW edição ainda em curso contando atualmente cerca de 40 volumes em nove seções A KGW deverá incluir além das obras publicadas pelo próprio Nietzsche todos os escritos póstumos filosoficamente relevantes dispostos em ordem cronológica e editados de acordo com o estudo dos manuscritos A Kritische Studienausgabe KSA 15 volumes reproduz literalmente a KGW mas não inclui todos os póstumos inéditos apenas os escritos entre 1870 e 1889 A KSA existe também em CDROM Em complemento à edição históricocrítica deverão ser lançados pela editora Walter de Gruyter em meados de 2000 os dois primeiros volumes da publicação de todos os escritos e anotações de Nietzsche Desta feita não se trata da ordenação cronológica do material filosoficamente relevante mas sim de todos os escritos inclusive registros de ordem estritamente pessoal como cálculos listas de compras memorandos etc Os NietzscheStudien NietzscheStudien é o nome do mais importante periódico internacional que divulga artigos e ensaios escritos anualmente sobre a filosofia de Nietzsche Até o ano passado eram 27 volumes publicados desde 1972 Devese fazer menção também à série de monografias e textos da pesquisa sobre Nietzsche MonographienRcihc der NietzscheForschung Essa série reúne trabalhos de maior extensão livros que na produção teórica internacional sobre a obra de Nietzsche se destacam por sua qualidade A essas duas linhas de publicação vinculadas à edição históricocrítica das obras completas estão associados os nomes de dois importantes filósofos contemporâneos estudiosos da obra de Nietzsche o alemão Wolfgang MüllerLauter e o austríaco Jörg Salaquarda Nietzsche no Brasil A recepção de Nietzsche no Brasil permanece um capítulo não escrito de nossa história das idéias filosóficas Nietzsche foi lido entre nós tanto por teóricos do direito quanto por médicos psicólogos literatos e artistas O certo é que sua obra foi desde cedo objeto de atenção entre nós nos extremos opostos do espectro ideológico Se houve uma interpretação integralista de Plínio Salgado por exemplo houve também a apaixonada recepção que lhe deram Monteiro Lobato e Oswald de Andrade e as vanguardas artísticas mais recentes como por exemplo os tropicalistas e o artista plástico Hélio Oiticica Menção especial deve ser feita ao ensaio pioneiro de Antônio Cândido O Portador originariamente publicado em 1946 num suplemento literário semanal de O Diário de São Paulo Esse ensaio é um testemunho de que mesmo em tempos da mais sombria detração ideológica do pensamento de Nietzsche também houve no Brasil uma interpretação com horizontes ampliados almejando recuperar o potencial libertário de sua filosofia Outra menção indispensável cabe ao magistério e à produção filosófica de Gerard Lebrun que foram de grande importância para o estudo do pensamento de Nietzsche no Brasil Dessa atividade resulta em colaboração com Rubens Rodrigues Torres Filho o volume dedicado a Nietzsche da coleção Os Pensadores publicado era 1974 e até hoje instrumento indispensável de consulta Atualmente se encontra em curso pela Companhia das Letras um projeto de tradução e publicação de todas as obras editadas durante a vida lúcida de Nietzsche ou por ele preparadas para publicação A tradução está a cargo de Paulo César de Souza Em 1996 vinha á luz o primeiro número da série Cadernos Nietzsche publicação do Grupo de Estudos Nietzsche do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo Tratase de uni periódico semestral que se propõe a divulgar os melhores artigos e traduções produzidos no âmbito da pesquisa brasileira sobre a filosofia de Nietzsche norteandose pelos critérios editoriais dos NietzscheStndien Podese dizer que no Brasil o estudo aprofundado do pensamento de Nietzsche tem se desenvolvido consideravelmente nas últimas décadas assim como tem se difundido o gosto pela leitura de seus textos As circunstâncias indicam que a pesquisa atual sobre Nietzsche no Brasil se aproxima dos padrões acadêmicos que vigoram na Europa e nos Estados Unidos 7 DADOS BIOGRÁFICOS Friedrich Willelm Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844 na casa pastoral de Röcken na Saxônia A perda do pai falecido aos 36 anos de idade quando Nietzsche tinha apenas cinco anos produziu nele um impacto profundo Mais tarde associaria a causa da morte do pai inflamação no cérebro com os próprios males que o acompanharam ao longo da vida Também a perda do irmão caçula deixou traços indeléveis reforçando um pressentimento da morte precoce como destino dos homens da família Em 1858 ingressa no então famoso internato de Schulpforta onde permanece até 1864 Em Schulpforta Nietzsche continua a dar vazão a um intenso fascínio pela composição musical experimentado desde tenra idade No internato incrementase um interesse pelo estudo da Antigüidade clássica grega e latina Problemas com a saúde dores de cabeça e dificuldades de visão que já o atormentavam na infância intensificamse durante esse período Para dar início ao ciclo universitário matriculase em teologia e filologia na Universidade de Bonn Advém daí seu relacionamento com um dos mais renomados filólogos alemães do século 19 Friedrich Kitschl um dos principais responsáveis por sua formação Data também desse período 18645 seu primeiro contato com a filosofia de Arthur Schopenhauer que exerceria sobre ele uma influência marcante Mudase para Leipzig em 1865 concentrando seus estudos em filologia embora interessandose também por filosofia Nietzsche permanece aí de 1865 a 1867 publicando vários trabalhos de grande erudição De 1867 a 1868 ás vésperas da guerra entre a Prússia e a França Nietzsche cumpre voluntariamente o serviço militar Tendo sofrido uma queda durante exercícios de equitação afastase do serviço Em 1869 aos 25 anos de idade é indicado para ocupar a cátedra de filologia na tradicional universidade de Basiléia na Suíça A universidade de Leipzig lhe concede o título de doutor em filologia mesmo sem ele ter defendido tese com base na qualidade de seus trabalhos publicados Desde o início de seu professorado em Basiléia Nietzsche estreita laços de amizade pessoal com Richard e Cosima Wagner Durante um período relativamente longo de sua vida até 1876 participaria como militante filosófico dos projetos artísticos de Wagner Em 1872 Nietzsche publica sua primeira grande obra O Nascimento da Tragédia cujo prefácio é dedicado a Wagner No mesmo ano como presente de Natal dedica a Cosima Wagner o texto Cinco Prefácios a Cinco Livros Não Escritos que permaneceu inédito A história da recepção da obra de Nietzsche tem início com o silêncio um silêncio que reinou em tomo de seus textos durante quase todo o período devida lúcida do autor Com efeito excetuandose O Nascimento da Tragédia a publicação de seus livros não foi um evento científico que repercutisse muito Mesmo O Nascimento da Tragédia embora tenha causado grande impacto na cena cultural alemã quando de seu lançamento em 1872 recebeu uma acolhida predominantemente negativa O livro foi visto como uma aventura irresponsável uma mal disfarçada panfletagem dos empreendimentos de Wagner Mesmo a intervenção em defesa de Nietzsche vinda do próprio Wagner e de alguns de seus amigos acadêmicos teve pouca eficácia e não evitou que ficasse arranhada a reputação científica do filósofo A publicação de suas demais obras exerceu tão pouca influência sobre a discussão filosófica alemã que Nietzsche sempre se considerou perseguido pela propaganda antisemita sobretudo proveniente dos arraiais wagnerianos depois do rompimento com o compositor a partir de 1878 Os problemas de saúde se intensificam em meados dos anos 70 A visão piora em ritmo preocupante e fortes dores de cabeça acompanhadas de crises de vômito que abalam e extenuam o filósofo tomamse cada vez mais freqüentes forçandoo a pedir sucessivas licenças para afastamento por vezes prolongados de seus encargos docentes Foi como catedrático em Basiléia que Nietzsche publicou os textos habitualmente classificados no primeiro período de sua produção intelectual Em 1876 embora sem rompimento formal Nietzsche já consumara em seu foro íntimo o afastamento definitivo de Wagner e de suas pretensões culturaisEm pleno curso do primeiro festival de Bayreuth profundamente decepcionado com o que julgava ser uma deplorável mistificação que instrumentalizava a arte e sobretudo a música sujeitandoa ao gosto dominante do público Nietzsche abandona Bayreuth tendo antes pedido em casamento de modo precipitado uma admiradora de Wagner de nome Mathilde Trampedach a quem mal conhecia Naturalmente a proposta foi recusada pela jovem Além da submissão ao mercado Nietzsche julgava poder reconhecer em Wagner outra concessão a coisas que o filósofo abominava Wagner se comprometera tanto com os ideais do cristianismo quanto com as pretensões estreitamente nacionalistas do Império Alemão que estava sendo construído por Bismarck sob o poderio militar da Prússia Entre 1876 e 1877 Nietzsche concebe e formula os pensamentos que reunirá no livro publicado no ano seguinte Humano Demasiado Humano Juntamente com o rompimento definitivo com Wagner e Schopenhauer esse texto marca o início do segundo período do pensamento de Nietzsche Ele demarca assim o território de seu próprio pensamento já que ao se propor a fazer a história e a crítica das categorias morais Nietzsche ao mesmo tempo se coloca em radical oposição tanto a Schopenhauer quanto a seu amigo Rée que em 1877 publicara a Origem dos Sentimentos Adorais Também esse livro foi mal recebido pelo público e pela crítica E ás obras que se seguem num segundo ciclo de seu pensamento Aurora 1881 e A Gaia Ciência 1 882 será reservado o mesmo destino Do ponto de vista estilístico o que as caracteriza é que todas foram escritas na forma de aforismos Entrementes atormentado por seus males físicos e sentindose a cada dia mais isolado em virtude da cortina de silêncio e malentendidos que pairava sobre sua obra Nietzsche toma a decisão de abandonar definitivamente a carreira acadêmica Em reconhecimento por seus méritos e serviços a Universidade de Basiléia lhe concede uma modesta pensão vitalícia aliás único recurso de que dispõe para sobreviver uma vez quo a remuneração por direitos autorais éno caso de Nietzsche inexistente Iniciase então o ciclo de sua vida nômade fugindo dos excessos climáticos das estações do ano em busca das condições mais amenas para sua saúde combalida Passa os verões na Suíça os invernos na Itália em modestas casas de pensão A despeito de seu isolamento voluntário trava conhecimento com a jovem Lou Andreas Salomé por quem se apaixona e a quem propõe casamento Lou Salomé entretanto ainda que intelectualmente fascinada por Nietzsche tinha seus próprios planos de independência pessoal além de estar afetivamente ligada ao amigo comum de ambos o médico Paul Rée Nietzsche chega a conceber a idéia de uma união livre entre os três que associados partiriam para Paris e Viena para aprofundar seus conhecimentos científicos e manter uma vida livre e arejada dedicada ao trabalho de reflexão Todos esses planos fracassaram e a intervenção desastrosa da irmã de Nietzsche com o propósito de defender o irmão das intrigas da aventureira russa o conduziu á mais amarga de suas desilusões amorosas Com Assim Falou Zaratustra iniciase a última fase da filosofia de Nietzsche aquela em que seu pensamento atinge os limites da radicalidade crítica E por volta dessa época que concebe o projeto de escrever um livro reunindo o essencial de seus pensamentos A Vontade de Poder Tanto Assim Falou Zaratustra como os livros subseqüentes Para Além de Bem e Mal 1886 e Para a Genealogia da Moral 1887 não encontraram praticamente nenhum eco levando o filósofo ao limiar do desespero condição agravada pelos males físicos E nessa época de solidão que faz suas primeiras leituras de Dostoievski Sendo ele mesmo excelente prosador e poeta Nietzsche sempre manteve com a literatura uma relação de estreita dependência Para ele Goethe Stendhal e Dostoievski se alçaram ás mais elevadas regiões da vida do espírito O ano de 1888 é o mais fecundo na produção intelectual de Nietzsche Durante esse ano altera radicalmente seus planos em relação ao livro A Vontade de Poder substituindoo por outro que deveria chamarse Tresvaloração de Iodos os Valores também não levado a cabo Em 1888 contudo escreve O Crepúsculo dos ídolos O Cí7so Wagner O Anticristo Ecce Homo e Nietzsche Contra Wagner Esse ano é igualmente marcado pelo início de uma recepção positiva de sua obra Zaratustra é traduzido para o francês e Nietzsche trava correspondência com o célebre historiador Hypollite Taine que se confessa admirador de sua obra Ao mesmo tempo o escritor Georges Brandes difunde o pensamento de Nietzsche na Dinamarca associandoo a Kierkegaard e também se registra uma recepção de Nietzsche na Suécia Em sua euforia o filósofo acredita que o silêncio que sufocava sua obra começava a se dissipar Confiante em que agora seria um autor lido e levado a sério decidese a fazer sua própria apresentação esse é um dos principais sentidos da autobiografia Ecce Homo Entretanto no final do ano a saúde de Nietzsche atinge seu limite No Natal envia a amigos e conhecidos várias cartas assinadas O Crucificado ou Dionísio e redige uma declaração de guerra contra o primeiroministro da Prússia Otto von Bismarck e contra o imperador alemão Foi um prenuncio do colapso mental que o acometeria em 3 de janeiro de 1889 em Milão Nietzsche viveu mais 11 anos em completo e permanente estado de alienação mental falecendo em 25 de agosto de 1900 Ele assumiu até o fim a tarefa de levar o pensamento a suas conseqüências extremas Não tolerava as máquinas de pensar de gélidas entranhas Ignoro o que sejam problemas puramente espirituais dizia ele Todas as verdades são para mim verdades sangrentas For essa razão Nietzsche não pode ser lido como o são os outros clássicos da história da filosofia Compreendêlo implica recorrer não apenas aos textos publicados mas também aos inéditos e á correspondência uma vez que para ele filosofar consiste em gerar o pensamento a partir das entranhas Filosofar é viver isto é transfigurar permanentemente em luz e chama tudo o que somos tudo o que nos afeta SUGESTÕES DE LEITURA A edição históricocrítica de todos os escritos de Nietzsche denominada Kritische Gesamtansgabe Wcrke mas também conhecida como edição ColliMontinari 6 publicada simultaneamente em alemão Walter de Gruyter francês Gallimard e italiano Einaudi E atualmente a fonte obrigatória cie consulta para os estudos da obra do filósofo Como literatura de apoio sugerimos o seguinte elenco de obras fundamentais combinando interpretações clássicas e contemporâneas G Deleuze Nietzsche et Ia Philosophie Paris Presses Universitaires de France 1973 M Foucault Nietzsche la Génealogie lHistoire em Hommage a Jean Hyppolite Paris Presses Universitaires de France 1971 p 15860 Há uma tradução brasileira desse ensaio publicado em M Foucault Microfísica do Poder Trad Roberto Machado Rio de Janeiro Edições Graal 1979 p 1538 M Haar Nietsche et Ia Métaphysique Paris Gallimard 1993 M Heidegger Nietzsche Pfullingen NeskeVerlag 1961 KJaspers Nietzsche BerlinWalter de Gruyter 1950 W Kauffmann Nietsche Philosopher PsychologistAntichrist New Jersey Princeton University Press 1974 M Lebrun Surhomme et Homme Total em Manuscrito vol 11 número 1 Campinas CLEUnicamp 1978 K Loewith Von Hcgel zu Nietzsche Hamburg Félix Meiner Verlag 1986 B Magnus Nietzsches Existential Imperativo Bloomington Indiana University Press 1978 M Montinari Nietzsche Roma Editori Riuniti 1996 W MüllerLauter Nietzsche Seine Philosophie der Gcficnsãtze uncl clic Gegcnsàtze seiner Philosophie BerlinNewYorkDe Gruyter 1971 A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche Trad Oswaldo Giacoia Júnior São Paulo AnnaBlumme 1997 A Nehamas Nietzsche Life as Literature London Harvard University Press 1985 R Schacht org Nietzsche Genealogy Morality BerkeleyLos AngelesLondon University of Califórnia Press 1994 G Vattimo Nietzsche Eine Einführung Stuttgart MetzlerVerlag 1992Tradução portuguesa Lisboa Edições 70 sd P Wotling Nietzsche et le Probleme de Ia Civilization Paris Presses Universitaires de France 1995 AUTORES BRASILEIROS RM Dias Nietzsche e a Música Rio de Janeiro Imago 1994 MCF Ferraz Nietzsche o Bufão dos Deuses Rio de Janeiro Relume Dumará 1994 L Kossovitch Signos e Poderes em Nietzsche São Paulo Ática 1979 R Machado Nietzsche c a Verdade São Paulo Paz e Terra 1999 Zaratustra Tragédia Nietzschiana Rio de Janeiro Zahar 1997 S Marton Nietzsche das Forças Cósmicas aos Valores Humanos São Paulo Brasiliense 1990 A Naffah Neto Nietzsche a Vida como Valor Maior São Paulo FTD 1996 INTERNET Nietzsche é acessível na Internet nos seguintes endereços httpwwwweimarklassikdehaabnienethtml httpwwwuscedudeptannenbergthomas nietzschehmtl wwwnietzschegesellschaftde o endereço da melhor sociedade nietzscheana internacional O email dos Cadernos Nietzsche 6 discursoorguspbr SOBRE o AUTOR Oswaldo Giacoia Júnior é bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo mestre em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e doutor em filosofia pela Freie Universität Berlin É professor livredocente do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas Unicamp e autor de Labirintos da Alma Nietzsche e a AutoSupressão da Moral Campinas Ed unicamp 1997 FOLHA EXPLICA Folha Explica é uma série de livros breves abrangendo todas as áreas do conhecimento e cada um resumindo em linguagem acessível o que de mais importante se sabe hoje sobre determinado assunto Como o nome indica a série ambiciona explicar os assuntos tratados E fazêlo num contexto brasileiro cada livro oferece ao leitor condições não só para que fique bem informado mas para que possa refletir sobre o tema de uma perspectiva atual e consciente das circunstâncias do país Voltada para o leitor geral a série serve também a quem domina os assuntos mas tem aqui uma chance de se atualizar Cada volume é escrito por um autor reconhecido na área que fala com seu próprio estilo Essa enciclopédia de temas é assim uma enciclopédia de vozes também as vozes que pensam hoje temas de todo o mundo e de todos os tempos neste momento do Brasil EEssttaa oobbrraa ffooii ddiiggiittaalliizzaaddaa ee rreevviissaaddaa ppeelloo ggrruuppoo D Diiggiittaall SSoouurrccee ppaarraa pprrooppoorrcciioonnaarr ddee m maanneeiirraa ttoottaallm meennttee ggrraattuuiittaa oo bbeenneeffíícciioo ddee ssuuaa lleeiittuurraa ààqquueelleess qquuee nnããoo ppooddeem m ccoom mpprráállaa oouu ààqquueelleess qquuee nneecceessssiittaam m ddee m meeiiooss eelleettrrôônniiccooss ppaarraa lleerr D Deessssaa ffoorrm maa aa vveennddaa ddeessttee eebbooookk oouu aattéé m meessm moo aa ssuuaa ttrrooccaa ppoorr qquuaallqquueerr ccoonnttrraapprreessttaaççããoo éé ttoottaallm meennttee ccoonnddeennáávveell eem m qquuaallqquueerr cciirrccuunnssttâânncciiaa AA ggeenneerroossiiddaaddee ee aa hhuum miillddaaddee éé aa m maarrccaa ddaa ddiissttrriibbuuiiççããoo ppoorrttaannttoo ddiissttrriibbuuaa eessttee lliivvrroo lliivvrreem meennttee AAppóóss ssuuaa lleeiittuurraa ccoonnssiiddeerree sseerriiaam meennttee aa ppoossssiibbiilliiddaaddee ddee aaddqquuiirriirr oo oorriiggiinnaall ppooiiss aassssiim m vvooccêê eessttaarráá iinncceennttiivvaannddoo oo aauuttoorr ee aa ppuubblliiccaaççããoo ddee nnoovvaass oobbrraass SSee qquuiisseerr oouuttrrooss ttííttuullooss nnooss pprrooccuurree hhttttppssggrroouuppssggoooogglleeccoom mggrroouuppeexxpprreessssoolliitteerraarriioo sseerráá uum m pprraazzeerr rreecceebbêêlloo eem m nnoossssoo ggrruuppoo hhttttppssggrroouuppssggoooogglleeccoom mggrroouuppeexxpprreessssoolliitteerraarriioo hhttttppggrroouuppssggoooogglleeccoom mggrroouuppddiiggiittaallssoouurrccee Nietzsche e a Educação Um Fichamento Reflexivo do Pensamento Filosófico à Prática Pedagógica O pensamento de Friedrich Nietzsche tal como apresentado por Oswaldo Giacoia Júnior em Folha Explica Nietzsche oferece contribuições valiosas à educação contemporânea Longe de ser um filósofo sistemático ou preso a dogmas Nietzsche propõe uma filosofia inquieta viva e profundamente crítica que coloca em xeque os valores tradicionais da sociedade ocidental Ao realizar este fichamento reflexivo é possível articular alguns de seus principais conceitos à prática educativa entendendo a educação como espaço de liberdade formação de espíritos autênticos e superação do pensamento normativo Assim Nietzsche concebe a filosofia como um ato enraizado na vida e um exercício de liberdade Para ele filosofar é um ato que se enraíza na vida e um exercício de liberdade Essa afirmação tem implicações diretas para a prática pedagógica pois sugere que pensar criticamente deve ser algo cotidiano vivido e experimentado no ambiente educacional A educação nesse sentido não se restringe ao ensino de conteúdos mas se torna um meio para formar sujeitos autônomos capazes de pensar por si mesmos e de exercer sua liberdade com responsabilidade A escola portanto deve ser o espaço em que se aprende a filosofar com a própria existência onde o conhecimento é mobilizado para a construção de sentido Nesse sentido ainda Nietzsche também se mostra um crítico feroz da padronização e da massificação da humanidade Nietzsche é um dos mais intransigentes críticos do nivelamento e da massificação da humanidade Tal crítica nos conduz à reflexão sobre os sistemas educacionais que tratam os estudantes como produtos em série submetidos a métodos e avaliações padronizadas que ignoram as singularidades A imposição de valores universais que muitas vezes refletem apenas os interesses de grupos dominantes revelase uma forma de violência simbólica Dessa forma ao afirmar que se opõe à padronização de valores que sob o pretexto de universalidade encobre de fato a imposição totalitária de interesses particulares Nietzsche denuncia um modelo de educação autoritário e alienador A resposta educativa que se alinha ao pensamento nietzscheano é aquela que valoriza a diversidade estimula a criatividade e reconhece a multiplicidade de saberes e experiências É preciso lembrar que um dos conceitos mais potentes trazidos por Nietzsche é o da criação de novos valores Sua mensagem definitiva a criação de novos valores é também um cântico de alegria Isso representa uma ruptura com a educação bancária e reprodutivista que apenas transmite os valores do passado Pelo contrário é preciso incentivar os educandos a criarem seus próprios valores a construírem coletivamente novas formas de existir no mundo Essa educação para a reinvenção do humano é essencial num cenário global marcado por crises sociais ambientais e éticas Como afirma o autor Nietzsche ousa colocar em questão o valor dos valores o que implica também questionar os pilares da moral tradicional da religião institucionalizada e da ciência positivista como verdades absolutas Além disso a outra contribuição importante de Nietzsche à educação é a defesa da formação de personalidades autênticas aquelas que não se deixam moldar pelas imposições externas mas que trilham seu próprio caminho Em A Gaia Ciência Nietzsche desenvolve a noção de espíritos livres pessoas capazes de assumir a responsabilidade por seu próprio pensamento e destino A filosofia dos espíritos livres se toma em A Gaia Ciência uma ascese e preparação para o surgimento da personalidade autêntica A função do educador nesse contexto é ser um provocador de consciências um mediador do autoconhecimento e não um simples transmissor de conteúdo Educar então é despertar no outro a coragem de se tornar aquilo que se é uma tarefa difícil mas essencial para a emancipação Nesse sentido a educação alinhada ao pensamento nietzscheano é aquela que recusa a domesticação dos sujeitos que se coloca contra os últimos homens indivíduos conformados com a mediocridade com o conforto e a ausência de questionamentos Nietzsche propõe o conceito do alémdohomem aquele que ultrapassa os limites impostos pela moral tradicional e pela massificação moderna Tal superação só pode ser possível por meio de uma educação que liberte que não tenha medo da dúvida que não tema o novo e que reconheça o erro como parte do processo formativo Portanto o pensamento de Nietzsche ao questionar valores estabelecidos ao propor a criação de novos horizontes e ao defender a autenticidade oferece uma base crítica para pensar a educação como uma prática transformadora O educador que se inspira em Nietzsche não entrega respostas prontas mas convida seus alunos a pensar a desconfiar a criar Esse educador acredita que é possível ensinar a dançar com o pensamento a rir de si mesmo e a viver com intensidade o processo educativo Em tempos de crise ética e banalização da cultura recuperar Nietzsche é também recuperar a coragem de educar para a vida com tudo que ela tem de trágico belo e incerto Referência GIACOIA JÚNIOR Oswaldo Nietzsche São Paulo Publifolha 2000

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