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Psicologia Social

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LYGIA BOJUNGA TCHAU A troca e a tarefa 89 Eu tinha 9 anos quando a gente se encontrou o Ciúme e eu Era verão Eu dormia no mesmo quarto que a minha irmã A janela estava aberta De repente sem nem saber direito se eu estava acordada ou dormindo eu senti direitinho que ele estava ali entre a cama da minha irmã e a minha A noite não tinha lua nem tinha estrela e quando eu fui estender o braço pra acender a luz ele não quis Me deixa assim no escuro Que medo que me deu Senti ele chegando cada vez mais perto Fui me encolhendo Pega a minha irmã eu falei Ali ó na outra cama Eu sou pequena e ela já fez 14 anos pega ela Ela é bonita e eu sou feia o meu pai a minha mãe a minha tia todo mundo prefere ela por que você não prefere também Mas o Ciúme não queria saber da minha irmã e eu já estava tão espremida no canto 90 Lygia Bojunga a minha cama era contra a parede que não tinha mais pra onde fugir então eu pedia e pedia de novo Ela é a primeira da turma e eu tenho horror de estudar olha ela tá logo aí e ela é tão inteligente pra conversar ela diz poesia ela sabe dançar o meu pai tá ensinando inglês e francês pra ela e diz que pra mim não vale a pena porque eu não presto atenção então você pensa que eu não vejo o jeito que o meu pai olha pra ela quando todo mundo diz que encanto de moça que é a sua filha mais velha pega pega PEGA ela Não Eu quero é você E o Ciúme disse aquilo com uma voz tão calma que eu fui me acalmando E o medo meio que foi passando Bom eu acabei suspirando pelo menos tem alguém que gosta mais de mim do que dela E aí o vento do mar entrou pela janela soprou no Ciúme e apagou ele feito vela A troca e a tarefa 91 Fui crescendo E cada ano que passava o Ciúme aparecia mais vezes pra me ver Eu não precisava nem olhar de repente eu sentia que ele estava lá E bastava ele chegar perto pra eu começar a sentir um peso dentro de mim Feito coisa que eu carregava uma pedra no peito O peso só aliviava quando o Ciúme ia embora Mas cada vez ele demorava mais Acabou morando lá em casa Aí eu quis me mudar Mas eu ainda ia fazer 13 anos onde é que eu ia morar Resolvi ir pra um colégio interno A minha mãe não gostou da ideia vai custar muito caro Mas o meu pai achou ótimo lá ela vai aprender a estudar direito feito a irmã dela Ah que depressa que o Ciúme apareceu quando o meu pai falou assim E eu fui pro internato Fiquei vivendo separada da minha família só ia em casa nas férias Digitalizada com CamScanner 92 Lygia Bojunga Lá no colégio o Ciúme aparecia pouco era nas férias que ele não me largava quando eu voltava pra casa e encontrava todo mundo fascinado pela minha irmã Um dia era férias em frente da nossa casa veio morar um rapaz chamado Omar Eu ficava horas na janela esperando ele chegar Pra ver ele aquele pouquinho só chegando tirando a chave do bolso e entrando Quando eu soube que o nome dele era Omar eu fui pro quarto e escrevi uma poesia chamada O mar Foi a primeira coisa que eu escrevi Aquela poesia pro Omar E eu me senti tão feliz Eu nunca tinha me sentido assim feliz fiquei pensando que era por causa do Omar nem pensei que podia ser por causa da poesia E quando eu vi as férias já tinham acabado De tanto que o tempo passou depressa comigo lá na janela esperando o Omar chegar Digitalizada com CamScanner A troca e a tarefa 93 parar na porta procurar a chave entrar E no dia seguinte esperar de novo o Omar chegar Pra namorar ele mais um pouco só de olhar No dia que as férias acabaram na hora do Omar pegar a chave pra entrar ele se virou e olhou pra janela E ficou muito muito tempo olhando Mas não era pra minha janela era pra outra a da sala onde estava a minha irmã Lá no colégio eu não tinha mais tempo pra nada nem pra estudar nem pra fazer dever eu não tinha mais tempo nem pra ver o Ciúme de tanto que eu passava o meu tempo só pensando no Omar Mas era tão bom pensar no Omar como eu gostava de pensar que eu nunca pensei nele como eu não queria pensar quer dizer olhando pra outra janela Um dia chegou uma carta da minha mãe dizendo assim Digitalizada com CamScanner da mesma maneira que eu dei uma festa pra festejar os 15 anos da tua irmã agora eu quero comemorar os teus 15 anos Mas desta vez a festa vai ser dupla a tua irmã ficou noiva e então eu quero festejar junto as duas grandes datas Já avisei à diretora que você vai sair no sábado de manhã Foi só ler a notícia do noivado que eu pensei na outra janela e o Ciúme apareceu logo e se o noivo fosse o Omar Fiquei doida pra chegar logo em casa e saber de tudo Mas ao mesmo tempo eu tinha tanto medo de saber que comecei a querer um pretexto pra não ir quem sabe eu ficava doente Na noite de sexta pra sábado eu nem dormi ia pra casa ou ficava doente Mas a curiosidade foi mais forte e eram três e meia da tarde quando eu entrei em casa Que bonito que estava tudo quanta rosa quanto cravo enfeitando cada canto é só fechar o olho que o perfume ainda chega aqui e tinha uma agitação que só vendo a minha mãe o meu pai minha irmã todo mundo se arrumando se enfeitando que nem a casa Anda menina anda era a minha mãe dizendo vai tirar esse uniforme o teu vestido já está passado em cima da cama olha que daqui a pouco os convidados já estão chegando A mesa na sala de jantar estava de toalha bordada a toalha que a minha vó tinha bordado pro casamento da minha mãe e quanto doce quanta coisa gostosa e que lindo que era o bolo com as velas que eu ia soprar Eu andava devagar pela casa olhando pra tudo em volta mas só pensando uma coisa é o Omar é ele é com ele que ela vai casar Mas em vez de perguntar eu não perguntava Só pra continuar esperando que o noivo que ia chegar fosse outro qualquer outro mas não o Omar Foi chegando gente Família Amigo Presente E a sala já estava cheia quando o Omar chegou Eu e a minha irmã vimos ele entrando na mesma hora Ela correu Eu me escondi Pra ninguém ver que eu estava vendo o jeito que eles se olhavam se davam a mão se abraçavam o jeito igualzinho que eu tinha pensado tantas vezes que ele ia me abraçar Nem precisei olhar pra ver era o Ciúme que estava outra vez do meu lado me dizendo no ouvido não vou mais te largar Que vontade de chorar Peguei a vontade e virei ela num soprão apaguei as 15 velas de uma vez Tocaram música O Omar me pegou pra dançar Falando comigo feito eu fosse criança Que vontade de gritar A minha irmã estava tão feliz que nunca ela tinha sido assim tão bonita e ainda por cima era ela que tinha feito o bolo dos meus 15 anos e que delícia todo mundo dizia na hora de provar Ah Que vontade de morrer Já tinha ficado de noite a festa estava animada todo mundo dançando até o meu pai tão sério sempre Corri pro quarto Me tranquei Queria matar a vontade de chorar de gritar de morrer Nem acendi a luz E nem deu tempo de correr pra cama o choro saiu ali mesmo de cara encostada na porta o grito saiu lá mesmo e a música abafou pulei a janela e corri pro mar Lá na praia tinha pouca estrela barulho manso de onda e a lua era quarto minguante Tirei o sapato e fui pela areia Já ia entrando no mar Mas senti medo Dei pra trás Me deitei na areia e fiquei lá tanto tempo que acabei dormindo Sonhei um sonho que mudou a minha vida Era um sonho muito bonito todo acontecido em azul tinha azul pra qualquer gosto do mais fraquinho ao mais forte Eu estava lá mesmo deitada na praia E era de madrugada Na minha frente tinha uma parede tapando o mar Vi duas janelas na parede Me levantei pra ir olhar Numa estava escrito A TROCA na outra A TAREFA Uma estava fechada espiei pelo vidro fosco mas não enxerguei nada do outro lado Bati no vidro bati bati com força Mas só ouvi o barulho do mar Fui pra outra janela Também fechada E o vidro também não me deixando ver do outro lado Bati Que é Até me espantei de ouvir a voz perguntando Abre eu respondi Eu quero ver do outro lado A janela continuou fechada Mas a voz falou Eu te livro desse amor desse peso O quê Esse amor que você está sofrendo essa vontade que você está sentindo de morrer eu te livro disso De que jeito Quando a história estiver pronta você vai ver História que história A voz falou mais baixo Escreve a história dessa dor e eu te livro dela É uma troca eu te prometo O quê fala mais alto eu quase que só escuto o mar O mar Lembra da poesia que você escreveu Foi tão bom Aí a voz se confundiu com o barulho do mar Eu acordei A noite já ia virando dia o céu era meio vermelho e a praia estava muito bonita Dentro de mim tinha uma curiosidade nascendo será que eu ia conseguir fazer uma história da dor que eu estava sentindo Voltei pro internato Cada hora de recreio cada domingo inteiro cada horadefazerdever eu escrevia a história da minha vontade de morrer E fui achando tão difícil de fazer que em vez de sentir vontade de morrer eu só pensava como é que se fazia a história de uma vontade de morrer em vez de sentir a dor do amor eu só sentia a força que eu fazia pra contar a dor Então quando um dia a história ficou pronta a vontade de morrer tinha sumido o amor pelo Omar também no lugar deles agora só tinha a história deles Fiz que nem na poesia transformei o Omar no mar Um mar tão bom de olhar E inventei uma ilha pra botar nele uma ilha pra eu ir lá morar de praia de areia fininha onde o mar chegava a toda hora E fui inventando uma porção de coisas pra acontecer na ilha A história ficou tão grande Acabou virando um livro Foi o meu primeiro livro Se chamou Do outro lado da ilha Minha irmã tinha se casado Mas a minha mãe o meu pai todo mundo não parava de falar nela e se eu fazia alguma bobagem tinha sempre alguém me dizendo tua irmã não faz assim Bastava isso e pronto o Ciúme já aparecia outra vez Então um dia eu pensei quem sabe a troca que eu sonhei no sonho serve pro Ciúme também E resolvi transformar o Ciúme em história Só pra ver se acontecia a mesma coisa se fazendo a história do Ciúme eu me livrava dele e só ficava com a história O Omar eu tinha transformado em mar E o Ciúme no que que eu ia virar Eu achava ele tão feio Resolvi virar ele numa coisa pra gostar de olhar Transformei ele num pássaro lindo bem grande de peito amarelo e de penacho vermelho na cabeça E pra ele não poder mais entrar na minha vida eu prendi ele numa gaiola Tudo que o Ciúme tinha feito eu sofrer eu transformei em aventuras que aconteciam com aquele pássaro Quando um dia eu cheguei no fim da história a troca tinha acontecido de novo no lugar do Ciúme eu agora tinha um livro Um livro que eu chamei A gaiola Achei tão bom poder transformar o que eu sentia em história que eu resolvi que era assim que eu queria viver transformando Foi por isso que eu me virei em escritora Os anos foram passando E eu não parei mais de transformar tinha me acostumado com aquilo Levantava levanto cedo tomava café com leite escovava os dentes já pensando o que que eu ia escrever fechava a porta não sei transformar de porta aberta e começava pegava a lembrança de uma amiga de infância que eu nunca mais tinha visto imaginava a vida que ela tinha levado virava ela num personagem principal pegava o quarto de um hotel em que eu tinha ficado numa viagem e virava ele num capítulo pegava a vontade que eu A troca e a tarefa tinha tido aos 10 anos de ser astronauta e transformava ela numa viagem espacial em 200 páginas pegava a saudade da minha mãe que tinha morrido ela se chamava Violeta e transformava a saudade num buquê que o herói do meu último livro ia dar pra namorada Fui me sentindo tão poderosa de poder transformar tudo assim Quando acabava um livro mal descansava já começava outro Eu não queria mais descansar eu só queria ficar assim virando escrevendo aqui na minha mesa de trabalho Cada ano que passava eu ficava mais e mais horas aqui Eu conheço essa mesa mais que qualquer outra coisa Cada pedacinho dela Sei de cor onde a madeira é mais clara mais escura se tem racha arranhão se tem mancha de olhos fechados eu boto o meu dedo em cima é aqui Lygia Bojunga Tudo tem lugar certo na minha mesa o papel o lápis o apontador a borracha Não sei transformar com máquina só sei virar à mão apagando riscando sentindo o cheiro do lápis na hora de fazer ponta então A lâmpada também está sempre no mesmo lugar Bem aqui do meu lado esquerdo E eu me habituei a ficar tantas horas nessa mesa que a lâmpada ficava muito muito tempo acesa Um dia eu dei pra transformar coisa curta transformava uma dor em vírgula virava um alívio em ponto de exclamação transformava uma esperança em interrogação Gostei Me senti meio feiticeira Escrevi 26 livros Mas quando eu estava escrevendo o último capítulo do meu vigésimo sétimo livro o sonho voltou O mesmo O mesmo sonho que eu tinha tido na noite dos meus 15 anos Todo sonhado em azul Começava igualzinho eu estava deitada na praia e o azul da areia era esbranquiçado A A troca e a tarefa parede na minha frente também esbranquiçada tapando o mar E na parede as duas janelas A TROCA e A TAREFA escritas em azul bem forte Me levantei Sabendo que uma janela já tinha me respondido mas a outra ainda não Eu queria a resposta Bati com força no vidro e a janela se escancarou na minha frente estava o mar toda vida azulturquesa e de calmaria No peitoril da janela tinha um bilhete azul clarinho dizendo assim No dia que você acabar a tarefa a tua vida acaba também Tarefa que tarefa eu pensei E virei o papel Feito me respondendo o bilhete dizia assim do outro lado A tarefa está desenhada na areia na parte da areia que fica mais junto do mar Pulei a janela E logo ali entre o mar e a praia bem junto de onde a onda chegava a tarefa estava toda desenhada Tinha 27 livros desenhados na areia Eu fui andando Olhando pra cada desenho Reconhecendo cada um dos meus livros Lembrando de cada história De cada personagem Sentindo saudade de fazer cada um Fui passando por todos até chegar ao último livro Cada um dos 27 tinha sido desenhado na areia chegando sempre mais um pouco pra perto do mar O último ficou tão perto que quando a onda vinha bater na praia apagava um pouco dele Me ajoelhei na areia querendo riscar de novo o pedaço que a água tinha desmanchado Mas a onda veio de novo e apagou Meu dedo riscou outra vez A onda desmanchou O dedo desenhou O mar apagou E eu comecei a sentir medo Um medo que eu nunca tinha sentido E aí eu ouvi a mesma voz que tinha me falado da troca A voz me disse assim Cada um tem uma tarefa na vida A tua é escrever 27 livros Na hora que você botar o ponto final no vigésimo sétimo livro a tua tarefa vai estar acabada e a tua vida vai terminar E me repetiu o aviso e me repetiu de novo Tapei o ouvido não querendo escutar mais Ficou de noite o azul de tudo tão marinho e eu acordei tinha dormido aqui mesmo na mesa debruçada no último capítulo do meu 27º livro Olhei pro papel e agora Da mesma maneira que tinha sido verdade o aviso da troca agora eu sabia que ia ser verdade o aviso da tarefa Empurrei o papel Lápis borracha empurrei tudo pra lá era só não acabar o 27º livro que a minha tarefa não se acabava e a minha vida também não Apaguei a lâmpada Não transformei mais nada Mais nada Nada O último capítulo do meu livro o lápis o apontador ficou tudo como eu deixei há cinco anos Continuo paralisada acabando a tarefa a minha vida se acaba também eu sei Vivi desesperada estes cinco anos Um dia pra ver se sossegava um pouco essa agonia de não poder mais terminar um livro eu quis transformar de outras maneiras Por exemplo experimentei virar o meu desespero num boneco num cavalinho numa figura qualquer de barro Mas a minha mão se grudava na massa me dava tanta aflição mexer com aquilo era só enterrar os meus dedos no barro que eles ficavam ainda com mais saudade da madeira enxuta do lápis Experimentei transformar usando nota musical Mas que o quê eu não me ligo nos sons Experimentei pintar uma aquarela pintar com tinta a óleo eu também quis pintar de qualquer jeito mas quem diz Tentei tentei cansei não sei mesmo como é que se vira uma coisa com tinta eu só sei eu só quero é virar com letra Tempos atrás eu comecei a escrever essas anotações Mas parei logo Achei que as minhas lembranças do passado estavam com jeito de história É preciso muito cuidado Não quero que ninguém NINGUÉM possa pensar que eu estou transformando as minhas lembranças em livro Há seis meses que eu não abria esse caderno não pegava um lápis Um dia foi em agosto eu me lembro não aguentei mais desatei a escrever carta pros amigos Mas eles me disseram que eu não escrevia cartas escrevia histórias e que eles estavam juntando elas todas pro meu editor publicar Que medo que aflição de recolher tudo correndo qualquer livro publicado vai ser o meu vigésimo sétimo Parei de novo com as anotações Que nem eu parei com as cartas Eu não ando me sentindo bem Tenho ido ao médico Ele disse que eu estou emagrecendo muito Pediu uns exames Se eu não tivesse me apaixonado por essa mania de transformar a vida em livro eu não ia me importar de morrer Mas eu estou sempre achando que eu vou me esquecer do aviso que eu vou acabar a minha história que eu vou fazer outras que ah vai ser feito ressuscitar Tenho ido todas as semanas ao médico O médico hoje veio aqui não tive mais força pra sair de casa Ele disse que não sabe que doença é essa que eu tenho os exames não acusam nada Estou me sentindo cada vez mais fraca Não saio mais aqui da mesa Essa noite nem fui pra cama botei a minha cabeça num papel em branco e dormi Hoje eu e um papel em branco ficamos nos olhando tanto tempo que minha vista doeu Na hora eu pensei que era um cisco no olho fui no espelho ver Que susto quando eu dei de cara comigo nunca mais tinha me olhado no espelho eu devo estar mesmo muito doente E os médicos só fazem é pedir mais exames Mais exames Hoje finalmente eu tomei a decisão de acabar o meu livro O aviso não me interessa mais Tenho que transformar de novo o resto não me interessa mais Se essa é a minha paix Nota de Lygia Bojunga A escritora morreu sem acabar a frase Deram com ela debruçada na mesa a ponta do lápis fincada na paixão