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Psicologia Social

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Bailando com o Senhor técnicas corporais de culto e louvor o êxtase e o transe como técnicas corporais 1 Raymundo Heraldo Maués Professor do Departamento de Antropologia Universidade Federal do Pará RESUMO A utilização do corpo como instrumento de culto e louvor em técnicas de cura ou de outros tipos por católicos carismáticos que tem des pertado tanta atenção também por sua exibição na mídia através da atua ção de ministros como o padre Marcelo Rossi no Brasil permite uma re flexão e um estudo comparativo com outras formas de culto entre as quais aquelas com características xamânicas como a pajelança rural amazônica não indígena e as religiões afrobrasileiras Partindo da noção de técnicas corporais formulada por Marcel Mauss e lidando com conceitos de autores como Merleau Ponty Pierre Bourdieu e Thomas Csordas o artigo analisa parte do material empírico coletado pelo autor em sua pesquisa de campo que tem como locus a cidade de Belém e a região do Salgado na Amazônia Oriental brasileira PALAVRASCHAVE Renovação Carismática pajelança corpo êxtase transe possessão Por sua exposição na mídia provavelmente o que mais se conhece atual mente da Renovação Carismática Católica RCC no Brasil são as missas e os cânticos do carismático padre Marcelo Rossi Sua imagem é 10 RAYMUNDO HERALDO MAUÉS BAILANDO COM O SENHOR difundida pela TV e por várias fitas de vídeo que circulam e são avida mente disputadas pelos fiéis Suas canções religiosas são tocadas nas rá dios reproduzidas em muitos CDs cantadas em residências e igrejas e até mesmo em bares durante a madrugada em que de repente boêmios com copos de cerveja na mão são tomados de inusitado entusiasmo re ligioso na cidade de Belém2 E nas reuniões da RCC nas igrejas e em outros locais essas canções fazem muito sucesso permitindo que com elas fiéis cantem e dancem animadamente enquanto oram e louvam o Senhor Nessas ocasiões muitas posturas eou técnicas corporais são empregadas pelos fiéis freqüentemente imitando os gestos que o próprio padre Marcelo Rossi ensina em suas movimentadas pregações que lembram os programas de auditório de animadores de rádio mais an tigos e de TV atuais Ao lado disso há uma indústria de objetos sacros mágicos que são expostos nas lojas entre os quais se destaca o chamado terço bizantino como recentemente pude constatar jun to à Igreja do Senhor do Bonfim em Salvador BA para ser usado junto ao corpo ou por ele manipulado o qual leva a marca desse famo so sacerdote Mas não são as danças ensinadas e provocadas pelas canções do pa dre Marcelo que inspiram o título deste trabalho Aqui me refiro mais especificamente a um episódio que pude observar durante reunião pro movida pelo grupo de oração carismático Glória a Ti Senhor da Pa róquia de São Francisco Xavier em bairro da periferia de Belém PA De 3 a 4 de julho de 1999 participei de uma Oficina de Dons pro movida por esse grupo de oração que se realizou num fim de semana no auditório de uma escola de primeiro grau no bairro onde se situa a paróquia A oficina se constituía de pregações realizadas por um jovem pertencente a outro grupo carismático especialmente convidado desti nandose sobretudo ao núcleo do Glória a Ti Senhor e a um peque no grupo de recémingressos Estes últimos há poucas semanas haviam REVISTA DE ANTROPOLOGIA SÃO PAULO USP 2003 V 46 Nº 1 11 participado de outra reunião chamada Querigma ou 1o Seminário de Vida no Espírito durante a qual os mesmos foram selecionados como pessoas que ou receberam os chamados dons do Espírito ou demonstraram ser propensas e estar desejosas de recebêlos Muitas par tes da oficina eram especialmente destinadas a esses neófitos e visavam sobretudo ensinarlhes técnicas corporais capazes de propiciar ou faci litar a chamada efusão do Espírito Chamoume atenção sobretudo a técnica que foi denominada pelo jovem pregador de bailar no Espíri to ensinada na tarde do segundo dia do encontro Tocando ao violão uma música suave o mesmo sugeriu que todos de pé cada um por si e de olhos fechados começassem a dançar entregandose ao Senhor até que a maioria dos participantes inclusive os neófitos entrou em êxtase e ficou então bailando com o Senhor3 de modo que em pouco tempo vários caíram ao solo o que também se chama de repouso no Espírito Este trabalho que utiliza como material empírico dados que tenho coletado em pesquisa de campo em grupos de oração de várias paró quias da Grande Belém desde março de 1997 tem como objetivo rea lizar um estudo sobre o êxtase o transe e a possessão como técnicas cor porais na RCC comparandoos com outras manifestações religiosas do mesmo gênero de que tenho conhecimento direto mais especificamen te na pajelança cabocla amazônica utilizando também para análise alguns elementos presentes na literatura Ele retoma em parte e pro põese a ir além do que já escrevi em trabalho anterior Maués 2000 sobre técnicas corporais na RCC pretendendo beneficiarse de discus sões teóricas sobre o corpo já desenvolvidas por alguns autores espe cialmente no campo da Antropologia que serão citados mais adiante Tratando pois mais especificamente do êxtase do transe e da posses são pretendo também discutir questões relacionadas aos diferentes ní veis de consciênciainconsciência no que se costuma considerar estados 12 RAYMUNDO HERALDO MAUÉS BAILANDO COM O SENHOR alterados de consciência de natureza mística ou religiosa de uma pers pectiva antropológica A RCC em Belém que é parte de um movimento de caráter nacio nal e internacional não difere de modo significativo em suas estruturas mais amplas o que ocorre em outros lugares Ela tem como núcleo bá sico o grupo de oração onde há principalmente o recrutamento de seus membros e uma estrutura de coordenação centralizada na arquidiocese que por sua vez recebe orientações da Secretaria Nacional Existem tam bém as comunidades carismáticas que têm uma organização mais fe chada das quais a mais importante é a Comunidade Maíra Entretanto é inegável que a RCC de Belém não pode eximirse das influências da cultura regional amazônica inclusive no que diz respeito a crenças e ri tuais locais não apenas àqueles do catolicismo Uma das influências po derosas diz respeito à devoção e ao culto a Nossa Senhora de Nazaré com seu Círio anual que em outubro comove praticamente toda a ci dade de Belém Mas há outras influências cuja observação só pode ser feita de maneira mais próxima convivendo mais diretamente com os membros dos grupos de oração Para isso durante um ano de maio de 1999 a maio de 2000 acompanhei as atividades do grupo de oração Glória a Ti Senhor acima referido que pertence a uma paróquia da periferia de Belém Participei das reuniões e atividades que foi possível inclusive algumas das mais fechadas como as do núcleo de coordena ção que se realizavam na residência do coordenador Acompanhei vi sitas a doentes participei de festinhas de aniversário entrevistei seus participantes Pude perceber os conflitos internos do grupo os confli tos com o pároco que favorecia as CEBs e apenas tolerava a RCC bem como as influências do catolicismo popular e de outras crenças sobre o movimento Um dos fatos interessantes é que tanto o coordenador do grupo quanto sua esposa entraram na RCC depois de se afastarem da umbanda Esse trânsito aliás entre cultos afro mediúnicos RCC e REVISTA DE ANTROPOLOGIA SÃO PAULO USP 2003 V 46 Nº 1 13 pentecostalismo é muito fácil de observar na periferia de Belém Foi nesse grupo de oração mais particularmente do que em outros que pude acompanhar manifestações envolvendo estados alterados de consciên cia como glossolalia bailar no Espírito repouso no Espírito profecias e visões proféticas Técnicas corporais na RCC e seu propósito Antes de entrar diretamente no tema deste artigo pretendo discutir nes te tópico e no seguinte a noção de técnicas corporais tal como a utilizo aqui e fazer uma breve revisão da literatura incluindose aí alguns estu dos sobre transe e possessão Uma discussão especial será feita sobre o trabalho de Marion Aubrée que realiza comparação entre xangô e pente costalismo em Recife e cujas formulações teóricas permitem um diálo go a meu ver produtivo com minhas próprias posições Aubrée 1996 Em trabalho anterior Maués 2000 utilizei inicialmente a conhe cida definição de técnicas corporais proposta por Marcel Mauss as maneiras como os homens sociedade por sociedade e de maneira tradi cional sabem servirse de seus corpos Essa definição pressupõe dada concepção de corpo que o vê como instrumento O corpo é o primei ro e o mais natural instrumento do homem Ou mais exatamente sem falar de instrumento o primeiro e mais natural objeto técnico e ao mesmo tempo meio técnico do homem é seu corpo sic4 Mauss 1974 p 211 e 217 Essa concepção segundo o mesmo autor implica consi derar técnicas corporais como algo que precede a utilização de instru mentos externos ao corpo próprio dos seres humanos Por outro lado ela está amplamente ancorada numa postura filosófi ca e ideológica que remonta aos antigos gregos e que no fundo envol ve uma interrelação entre corpo e alma ou espírito na qual aquele é o 14 RAYMUNDO HERALDO MAUÉS BAILANDO COM O SENHOR instrumento desta última A separação mais radical entre as noções de corpo e alma como entidades distintas embora já presente no cristia nismo desde suas origens na verdade só acontece no plano filosófico a partir de Descartes tendo se incorporado também à ideologia das socie dades ocidentais Curiosamente porém o cogito cartesiano que dá uma importância tão fundamental ao pensamento e logo à alma ao espíri to também liberta o corpo que pode a partir daí ser concebido e estudado independentemente da alma Abbagnano 2000 p 21114 Colocado pela reflexão cartesiana no século XVII esse problema certamente não é independente das transformações sociais que se pro cessavam nas sociedades européias do início da chamada Idade Moder na e sua solução tem sido buscada desde então por diferentes correntes filosóficas que têm por sua vez exercido influência desde aí no pen samento social e nas ciências humanas e sociais nascentes constituindo no campo da antropologia cultural e social contemporânea um impor tante campo de pesquisa que interessa entre outras especialmente às chamadas antropologias da religião e da saúde neste caso envolvendo um amplo espectro que vai desde os estudos sobre body notions até a chamada fenomenologia cultural Por outro lado essa longa evolu ção do pensamento e da ideologia nas sociedades ocidentais também dependente de sua relação com as transformações sociais ocorridas por longos séculos implicou como nos diz Louis Dumont a transforma ção do cristão dos primeiros anos do cristianismo comparado pelo an tropólogo francês ao renunciante indiano de indivíduoforado mundo para indivíduonomundo Dumont 1985 p 35 ss Nessa mudança evidentemente em termos weberianos ocorreu um forte pro cesso de desencantamento do mundo e de secularização no qual as concepções sobre o corpo também mudaram radicalmente e freqüen temente em plano individual o cristianismo se perdeu Entretanto em certos nichos como no pentecostalismo e no carismatismo católico REVISTA DE ANTROPOLOGIA SÃO PAULO USP 2003 V 46 Nº 1 15 o corpo e sua relação com a alma continua sendo pensado e utiliza do como instrumento de um modo que não difere substancialmente de uma concepção e utilização milenar o que se expressa de forma pri vilegiada através do êxtase A respeito dessa relação entre corpo e alma existem vários estudos importantes feitos por historiadores filósofos e antropólogos dos quais posso citar entre outros os de Brown 1990 Csordas 1994 1997a Foucault 1985 Le Goff 1985 MerleauPonty 1999 e Rodrigues 1999 O instigante trabalho de Douglas 1996 em um de seus capí tulos oferece interessante discussão sobre os dois corpos biológico e social A fenomenologia exerce recentemente muita influência sobre alguns estudos antropológicos nessa matéria inclusive no Brasil Alves e Rabello 1998 e Csordas 1994 1997a São também importantes para esse tipo de estudos as formulações de Pierre Bourdieu especialmente com seu conhecido conceito de habitus 1980 As diferentes técnicas corporais utilizadas na RCC como o canto os gestos a dança a glossolalia e várias outras têm como finalidades prin cipais o louvor a Deus e a obtenção do contato íntimo com a divinda de Como é apontado por conhecido antropólogo americano que se especializa no estudo desse movimento católico os carismáticos buscam a construção de um self sagrado o que implica constante aproximação com o numinoso Csordas 1994 Ora essa aproximação só se comple ta através do êxtase quando o fiel tendo seu corpo concebido na tra dição cristã mais ampla como o templo do Espírito Santo é capaz de literalmente incorporar a própria divindade através de técnicas corpo rais que induzem proporcionam e configuram o êxtase Nesse sentido e usando uma imagem propositalmente forte mas na qual não existe a intenção de qualquer desrespeito o fiel carismático é um possuído de Deus Exatamente por isso é que neste trabalho privilegio a análise do êxtase do transe ou da possessão como técnica corporal ou técnicas 16 RAYMUNDO HERALDO MAUÉS BAILANDO COM O SENHOR pois na verdade envolvem mais de uma privilegiada na RCC Como se sabe essas técnicas são muito antigas e bem espalhadas pelo mundo sendo utilizadas não só por várias denominações cristãs mas também por muitas outras religiões consideradas pelos cristãos como pagãs e por isso tornase necessário uma rápida menção à literatura antropo lógica mais vasta e clássica sobre o assunto O êxtase o transe e a possessão Estados alterados de consciência têm sido observados em todas as socie dades humanas e suas manifestações se denominam de diferentes ma neiras incluindo os termos êxtase transe e possessão O popular dicionário da língua portuguesa Aurélio define o êxtase do grego ékstasis pelo latim extase como arrebatamento íntimo enlevo arroubo encan to ou admiração de coisas sobrenaturais pasmo assombro ou ainda e neste caso com sentido psiquiátrico como fenômeno observado na histeria e nos delírios místicos e que consiste em sentimento pro fundo e indizível que aparenta corresponder a enorme alegria mas que é mesclado de certa angústia fica o paciente quase de todo imobilizado parecendo haver perdido qualquer contato com o mundo exterior Já o verbete transe do francês transe é definido como momento aflitivo ato ou feito arriscado ocasião perigosa lance crise de angústia fa lecimento passamento morte combate luta e também estado de médium ao manifestarse nele o espírito Aparecem também as seguin tes conotações a todo o transe a todo o custo à viva força tran se hipnótico estado de profunda sonolência provocado por hipno se e transe histérico estado que acompanha certas crises de histeria Quanto ao termo possessão do latim possessione além do sig nificado político possessão colonial sujeita a uma metrópole surge a REVISTA DE ANTROPOLOGIA SÃO PAULO USP 2003 V 46 Nº 1 17 definição expressando o sentido que a palavra assume no Brasil ligado às religiões de origem africana ato em que o iniciado ou filhodesanto recebe o seu orixá tornandose o seu cavalo e materializando a divinda de Dicionário Aurélio Evidentemente que essas definições não esgotam o significado dos termos em questão Mas elas colocam claramente três tipos de significa ção que estão comumente associadas a eles em primeiro lugar um sen tido ligado a estados que embora emocionais podem ser experimenta dos por todos arrebatamento enlevo aflição etc em segundo estados alterados de consciência provocados por doença psíquica e finalmen te em último estados alterados de consciência místicos ou não mís ticos mas que resultam de uma influência considerada exterior sobre o corpo e a mente do indivíduo hipnose intrusão de espírito etc Esses fenômenos estão presentes na tradição cristã desde os primei ros tempos do cristianismo seria de fato possível rastreálos desde a tra dição judaica Assim para um historiador como Peter Brown eles en contramse na origem do culto dos santos manifestando e revelando aos pagãos nos santuários a eles consagrados no Baixo Império Roma no a praesentia e a potentia desses mesmos santos A visita a um santuário cristão da Antigüidade tardia podia ser uma expe riência de tumulto e terror A propósito do primeiro choque experimenta do pela peregrina romana Paula diante dos túmulos dos profetas na Terra Santa Jerônimo escreveu Ela foi aterrorizada por um grande número de fatos espantosos Com efei to viu demônios rugirem sob o jugo de diversos tormentos e diante dos túmulos dos santos homens uivarem como lobos latirem como cães ru girem como leões silvarem como serpentes mugirem como touros uns com a cabeça revirada apoiando para trás o alto do crânio sobre o solo e mulheres penduradas pelos pés sem que o vestido caísse sobre seus rostos 18 RAYMUNDO HERALDO MAUÉS BAILANDO COM O SENHOR O mapa da Europa católica tal como se apresentava a um recémchegado no final do século VI era traçado pelos lugares onde se produzia esse gêne ro de coisas Porque nas grandes basílicas da Gália católica a possessão e o exorcismo passavam pelo signo verdadeiramente irrefutável da praesentia do santo Para um romano da época tardia o drama do exorcismo era a demonstra ção do poder de Deus revestido da mais indiscutível autoridade A praesen tia do santo era tida como manifestação de precisão infalível na cura dos possuídos e seu poder ideal sua potentia era vista dessa forma de modo mais completo e seguro Brown 1984 p 13738 tradução minha Esses fenômenos são bem familiares ao antropólogo que lida com o que chamamos de antropologia da saúde ou da religião Uma breve se leção da literatura recente para me limitar aqui apenas aos autores de língua inglesa pode incluir estudos como os de Beattie e Middleton 1969 Bourguignon 1973 Crapanzano e Garrison 1977 Goodman et al 1982 Holm 1982 Lewis 1977 e Walker 1972 Com rela ção ao Brasil uma ótima coletânea sobre o xamanismo incluindo as religiões indígenas foi organizada por Langdon 1996 Nessa literatu ra os fenômenos relacionados ao xamanismo à intrusão de espírito à viagem xamânica pelo mundo subterrâneo ou pelas alturas aos estados alterados de consciência podem ser pensados como uma categoria de tipos de comportamento ou de estados psicobiológicos que se prestam à observação e ao estudo objetivo não havendo para o cientista não apenas para o antropólogo distinção valorativa entre bons e maus es píritos a não ser no que respeita às concepções dos próprios nativos Possessão é pois o termo que expressa a crença das pessoas relativa a determinados sintomas manifestados por alguém que acredita eou de quem se diz ter tido o corpo invadido ou tomado por alguma entidade espiritual ou de alguma outra natureza que permita esta forma de REVISTA DE ANTROPOLOGIA SÃO PAULO USP 2003 V 46 Nº 1 19 intrusão O comportamento dessa pessoa possuída pode ser descrito numa versão um tanto behaviorista como uma forma de transe na qual se pode distinguir um tipo hipercinético de caráter mais es petacular e agitado diferente do que se pode chamar de transe hipocinético que é mais calmo e está freqüentemente associado so bretudo ao chamado misticismo Como diz Gerrie Ter Haar a quem vimos seguindo proximamente neste parágrafo a questão do bem e do mal é acrescentada por teólogos e outros que desejam defender uma ideologia particular sendo portanto irrelevante para uma discussão que leve em conta os processos psicossomáticos e bioquímicos que consti tuem o background desses fenômenos Não obstante para a cultura ocidental em cuja tradição está situada a Igreja Católi ca a possessão por espírito tornouse um assunto delicado As crenças oci dentais geralmente consideram a possessão por espírito como involuntária uma experiência maléfica que deveria ser evitada se possível Na fala co mum essa atitude negativa se reflete na maneira como as pessoas se refe rem a respeito de alguém que está possuído significando um estado de histeria agindo como louco tendo perdido em geral o controle de si mesmo Por outro lado as referências ao demônio ou a outros espí ritos indicam que tal pessoa é um perigo para a sociedade O significado negativo emprestado à possessão por espírito é aparente na Bíblia Toda vez que ela é mencionada no Novo Testamento invariavel mente referese a maus espíritos particularmente ao diabo A maneira ade quada de lidar com tais espíritos é expulsálos Quando surge um bom es pírito o Espírito Santo a Bíblia usa um vocabulário bem diferente para enfatizar a natureza positiva da crença em tal possessão Por exemplo no Pentecostes as pessoas estão cheias do Espírito Santo e falam em lín guas enquanto no caso de um espírito mau ou impuro usase o termo possessão e as manifestações do espírito são vistas como sinais de seu 20 RAYMUNDO HERALDO MAUÉS BAILANDO COM O SENHOR comportamento inadequado Os cristãos no Ocidente usualmente se referem à presença do Espírito Santo numa pessoa em termos de um êx tase religioso ao invés de uma possessão a qual é pensada com uma conotação negativa Esta associação negativa com a presença de espíritos não é exclusiva da Cristandade e pode ser observada em outras religiões de natureza dualista Elas fazem uma distinção absoluta entre bem e mal e como resultado entre possessão por um espírito que é absolutamente bom e por outro que é absolutamente mau Aos olhos dos crentes a possessão por um é uma experiência completamente diferente da possessão por ou tro não havendo nada em comum entre esses espíritos Ter Haar 1999 p 11718 tradução minha Neste ponto recorrendo a uma literatura de origem francesa e a uma autora muito ligada ao Brasil tornase importante chamar atenção para as distinções elaboradas por Marion Aubrée que se inspirou nas formu lações de seu compatriota Gilbert Rouger Aubrée 1996 Consideran do o transe como um fenômeno composto ao mesmo tempo de ele mentos psicofisiológicos e culturais Aubrée propõe uma distinção entre o transe e o êxtase Para ela o êxtase noção muito empregada no meio cristão diferenciase tanto pelos mo dos de indução quanto pelos estados psicofisiológicos que o caracterizam em relação ao transe e podese acrescentar pelo simbolismo expresso por aqueles que o vivenciam De fato o êxtase quer esteja relacionado à místi ca cristã xamânica ou espírita é sempre descrito como uma saída de si geralmente segundo uma dinâmica de viagem enquanto que o transe cor responde sempre à descida de uma divindade ou de um espírito na pessoa Aubrée 1996 p 175 tradução minha REVISTA DE ANTROPOLOGIA SÃO PAULO USP 2003 V 46 Nº 1 21 O argumento prossegue então buscando essa autora definir mais claramente o transe de modo a distinguilo do êxtase Para ela levando em conta a literatura sobre o assunto a indução ao transe passa pelo ruído e pela agitação ela requer a presença de outros enquanto o êxtase surge na imobilidade e no silêncio da solidão No que diz respeito a esse estado a autora invocando Rouget falanos de uma superestimu lação sensorial uma dissociação da consciência que não permite memo rizar a experiência e enfim uma ausência de alucinações Ao contrá rio no que concerne ao êxtase emprestando uma idéia de Lapassade Aubrée nos diz que se pode observar uma consciência clara do que se passa e em conseqüência a possibilidade de se recordar cf os místicos cristãos assim como de freqüentes alucinações Tudo isso prepara a distinção mais importante que será aplicada ao longo de seu artigo ao procurar distinguir ainda segundo Rouget as formas de transe que en controu em sua própria pesquisa em Recife entre os adeptos do xangô e do pentecostalismo o transe de possessão que segundo ela é uma característica do primeiro e o transe de inspiração que caracteriza o pentecostalismo especialmente no que diz respeito à glossolalia No primeiro caso xangô o possuído muda de personalidade no sentido de que ele se transforma na divindade no segundo pentecostalismo o indivíduo conserva sua personalidade mas é cercado investi pela di vindade que ao dominálo faz dele seu portavoz p 1755 Essas observações de Marion Aubrée são bastante úteis para pensar o êxtase o transe e a possessão Voltarei a essas idéias mais adiante com parandoas com meus próprios dados etnográficos a fim de discutilas mais amplamente Posso adiantar no entanto que embora úteis para minha reflexão as mesmas não se apresentam inteiramente adequadas às situações concretas que tenho investigado em outro contexto social e tratando de crenças e práticas diferentes embora com várias semelhan 22 RAYMUNDO HERALDO MAUÉS BAILANDO COM O SENHOR ças de modo especial a RCC e a pajelança cabocla ou rural numa parte da Amazônia brasileira cujas tradições culturais e religiosas dife rem em vários aspectos do Nordeste O êxtase o transe e a possessão entre os carismáticos católicos Neste tópico como foi anunciado acima pretendo entrar diretamente na discussão sobre estados alterados de consciência êxtase transe e possessão a partir dos dados de minha pesquisa de campo e ao mes mo tempo retomar o diálogo com o artigo de Marion Aubrée Na RCC as técnicas corporais que envolvem estados alterados de consciência com maior ou menor intensidade estão relacionadas ou com a ação do Espírito Santo sobre os fiéis ou ao contrário com a pos sessão demoníaca que pode manifestarse de forma mais ou menos evi dente em pessoas que em termos nativos não têm Deus em suas vi das No primeiro caso tratase de fiéis que iniciandose na Renovação recebem os dons do Espírito ou são por Ele tocadas podendo em razão disso manifestar em seus corpos fenômenos como a glossolalia e o chamado repouso no Espírito além de outros Em trabalho anterior já citado tratei com alguns detalhes a respeito dessas duas técnicas A glossolalia mais comumente falar ou orar em línguas é um fenômeno muito mais amplo que transcende o religioso sendo utili zado em contextos variados inclusive na música profana e que não se restringe ao cristianismo Aubrée 1996 Goodman 1972 e PollakEltz 1999 Ela acontece mais facilmente em alguns momentos das reuniões da RCC quando os iniciados REVISTA DE ANTROPOLOGIA SÃO PAULO USP 2003 V 46 Nº 1 23 começam a orar em conjunto cada um dizendo suas próprias ora ções com palavras diferentes uns dos outros Ouvese sobretudo a fala do líder que muitas vezes está usando um microfone Mas todas as pessoas oram em voz alta ao mesmo tempo suas próprias orações de forma idiossincrática de modo que se tem a impressão de uma balbúrdia de vo zes sobretudo se há maior exaltação emocional entre os integrantes do gru po às vezes uma multidão como em ginásios e estádios É nesse momen to que ocorre também o orar em línguas como seqüência natural de uma improvisação de orações para as quais muitas vezes faltam palavras com preensíveis e as pessoas que têm o dom passam a orar como já o faziam há tantos anos os profetas do Antigo Testamento o que continuou se re petindo nas primeiras comunidades cristãs descritas no Novo Testamento a partir do episódio de Pentecostes Essas pessoas recebem a efusão do Es pírito de Deus e na concepção dos carismáticos já não são mais elas que oram mas sim o Espírito através de suas bocas Maués 2000 p 132 Segundo o sociólogo Pedro A Ribeiro de Oliveira em pesquisa pio neira feita há mais de vinte anos o dom da oração em línguas é o mais difundido entre os informan tes 388 dos membros da RC e 676 dos seus dirigentes têm o dom de orar em línguas Em nossas entrevistas e questionários registramos apenas um caso de pessoa que diz orar em línguas como xenoglossia isto é pelo uso de uma língua existente mas estrangeira e que não tenha sido apren dida por quem ora todos os outros casos registrados na pesquisa foram de glossolalia isto é um conjunto de sons pronunciados de modo ritmico sem significação aparente Diz D Cipriano bispo católico que escreveu em 1976 tese de mestrado em teologia pastoral sobre a RCC que não se trata de algo balbuciado em êxtase mas temse perfeito controle dele 24 RAYMUNDO HERALDO MAUÉS BAILANDO COM O SENHOR podendose cessar ou começar à vontade Essa linguagem de oração nãoconceitual é usada em várias situações quando não se encontram pa lavras para louvar a Deus quando não se sabe como interceder pelos ou tros como arma poderosa contra o pecado para cantar sua alegria no Es pírito Ribeiro de Oliveira 1978 p 523 No mesmo trabalho acima citado tratei sobre as três variações com que pode apresentarse o dom de línguas falar orar e cantar em línguas Todas essas formas podem ser observadas nas reuniões da Renovação Du rante minha própria pesquisa nunca pude observar o fenômeno da xenolalia ou xenoglossia como diz Ribeiro de Oliveira nem mesmo al guém declaroume que possuía esse dom Tive porém relatos a respeito de pessoas em outros grupos e reuniões que eventualmente falavam ou ora vam tomadas pelo Espírito em línguas vivas ou mortas sem nunca as terem aprendido Maués 2000 p 133 A discussão sobre se estamos no caso em presença de um fenômeno de estados alterados de consciência pode ser longa especialmente em se tratando de questão que se coloque para nativos da própria Renovação ou do Pentecostalismo Dom Cipriano Chagas bispo simpático à RCC nega mesmo que se trate de uma forma de êxtase como foi visto acima O tema é colocado por Thomas Csordas no segundo livro que dedica ao estudo da RCC americana a partir do relato de uma experiência que teve bem no início de sua pesquisa No início de março de 1973 fiz os preparativos para assistir à minha pri meira reunião de oração de católicos pentecostais Estava especialmente ansioso para ouvir falar em línguas e refletia sobre os mais recentes relatos antropológicos que identificavam tal fala extática como um fenômeno REVISTA DE ANTROPOLOGIA SÃO PAULO USP 2003 V 46 Nº 1 25 de estados alterados de consciência Fui de carro do campus para uma igreja suburbana do meiooeste onde tinha lugar a reunião semanal do grupo de oração Cristo Rei juntamente com um estudante de medicina e uma aluna de graduação ambos membros do grupo No caminho o estu dante de medicina sugeriu orações como forma de preparação espiritual para a reunião Eu estava no banco traseiro do carro enquanto os dois na frente devotamente oravam em línguas Teorias sobre o transe e sobre es tados alterados de consciência ocupavam completamente meus pensamen tos enquanto nos aproximávamos do sinal vermelho Eu especulava sobre se alguém em transe poderia parar em tempo no sinal e sobre o porquê do fato de minha primeira evidência empírica sobre esse tópico tinha de ser adquirida com tal risco aparente Nada aconteceu Não tive mesmo qual quer indício de que os reflexos do motorista tivessem se tornado mais len tos Csordas 1997b p 41 tradução minha Como é bem conhecido há uma discussão sobre a ocorrência do transe com ou sem consciência de parte da pessoa afetada Até mesmo naquilo que é interpretado emicamente como possessão demoníaca a percepção consciente do que acontece ainda durante as crises mais violentas é atestada por vários relatos como o da famosa superiora pos sessa do Convento de Loudon madre Joana dos Anjos que escreveu suas memórias na década de 1640 Freqüentemente a minha mente enchiase de blasfêmias e às vezes eu as pronunciava sem ser capaz de pensar em evitálas Sentia uma aversão con tínua por Deus e nada me provocava tanto ódio do que o espetáculo de sua bondade e da sua disposição para perdoar os pecadores arrependidos É verdade que eu não agia livremente nesses sentimentos porque o demônio me confundia de tal modo que eu mal distinguia seus desejos dos meus além disso através dele eu sentia uma forte aversão contra os meus 26 RAYMUNDO HERALDO MAUÉS BAILANDO COM O SENHOR votos religiosos tanto que às vezes quando ele estava na minha cabeça eu rasgava todos os meus véus e os véus das minhas irmãs que conseguia segu rar pisava neles mastigavaos amaldiçoando a hora em que fiz os votos Quando me ergui para a Comunhão diz madre Joana num outro trecho de seu depoimento o diabo tomou posse da minha mão e quando eu re cebera a Sagrada Hóstia e já a umedecera um pouco o diabo jogoua no rosto do padre Sei muito bem que não agi assim livremente mas tenho certeza que estava completamente confusa por permitir que o diabo fizesse isso Sargant 1975 p 71 apud Oesterreich 1930 p 4950 Minha própria experiência de campo mostra como em várias situa ções que poderiam ser no mínimo classificadas como extáticas as pes soas mantêm o conhecimento do que acontece em volta e podem de certo modo suspender seu êxtase para realizar tarefas práticas como por exemplo um dirigente orando em línguas sendo capaz de inter romper essa atividade para receber um recado importante diante do público do seminário ou grupo de oração e em seguida tranqüilamen te retomar a mesma oração em línguas Num outro contexto existem relatos por exemplo nas religiões afrobrasileiras de pais ou mãesde santo que incorporados por seus guias interrompem sua atividade mís tica para atender a alguém que bate à porta ou que acompanham pro cissões do catolicismo popular recebendo bênçãos de padres e bispos mantendo a incorporação por suas entidades e de resto comportando se durante esses rituais quase como se nenhum santo ou orixá estivesse em sua cabeça Quanto ao chamado repouso no Espírito temos uma situação que tipicamente acontece a partir da imposição de mãos A descrição que fiz no mesmo trabalho acima citado a partir de observação de campo realizada em Belém em abril de 1999 foi a seguinte REVISTA DE ANTROPOLOGIA SÃO PAULO USP 2003 V 46 Nº 1 27 No segundo dia do encontro após uma emocionada palestrapregação so bre o Espírito Santo e seus dons feita por uma jovem aparentando cerca de 25 anos começou um canto em que se invocava o mesmo Espírito e o coordenador do evento também bastante jovem solicitou que as pessoas fechassem os olhos orassem e se entregassem Fechar os olhos é uma téc nica adicional mas muito importante utilizada em vários momentos que porém serve sobretudo para ajudar a receber os dons do Espírito e propiciar o repouso Houve então um longo momento de efusão do Espírito em que neófitos ou iniciados recebiam a imposição de mãos enquanto estavam de pé por parte de integrantes experientes do Grupo de Oração que promovia o evento todos muito jovens e a maioria acabava caindo ao solo de costas sendo amparada por alguém que ficava por trás A situaçãopadrão era a seguinte um iniciado experiente homem ou mu lher impunha as mãos sobre a pessoa tocandoa na cabeça principal mente mas também às vezes no ombro no peito ou nas costas e começa va a orar em vernáculo e algumas vezes entremeadamente em línguas Quando a pessoa começava a perder seu equilíbrio e passava a balançar um outro iniciado do sexo masculino e geralmente mais forte fisicamen te também impunha as mãos sobre a mesma pessoa e esperando que ela caísse gentilmente a amparava até que se acomodasse no chão do auditó rio As cadeiras eram rearrumadas para que no chão pudesse caber tanta gente deitada Tanto os neófitos como os iniciados repousavam no Espíri to geralmente por vários minutos quando se levantavam procuravam sen tarse logo nas cadeiras do auditório e ainda por alguns minutos perma neciam como que concentrados aparentemente meditando sobre ou se recobrando da experiência Esta pode ser para os neófitos a experiência do batismo no Espírito que também ocorrerá de outras maneiras e que muitas vezes é precedida ou passa a ser seguida pela glossolalia Maués 2000 p 13435 28 RAYMUNDO HERALDO MAUÉS BAILANDO COM O SENHOR Em várias outras situações é possível observar fenômenos extáticos na RCC Vou no entanto concluir este tópico tratando a respeito do chamado bailar no Espírito uma típica experiência de êxtase ou tran se que culmina afinal como foi dito acima com o próprio repouso e que motivou o título principal deste artigo Em mais de uma ocasião pude observar essa técnica que é posta em prática até quanto pude per ceber por fiéis um pouco mais experientes e já iniciados neste caso não existem como no episódio mais simples provocado pela imposição de mãos quem conduz ao repouso acima descrito pessoas estrategicamen te colocadas para amparar o tombo do fiel Costumase dizer que o pró prio Espírito protege seus devotos para que eles não se machuquem na queda Em um outro Seminário de Vida ou Querigma do grupo Gló ria a Ti Senhor que ocorreu entre os dias 19 e 21 de maio de 2000 esteve presente na última tarde um diácono bem conhecido entre os carismáticos de Belém famoso por seu entusiasmo e sua unção O sa cerdote da paróquia onde se reúne o grupo de oração embora convi dado não havia comparecido ao primeiro dia do encontro e por isso preferiuse agora chamar o diácono que atua em paróquia diferente da que pertence o referido grupo Durante sua pregação que entusiasmou a quantos estavam presentes num dado momento foi possível observar se a atitude de um senhor de meia idade que ao som da música e emba lado pelo canto emocionado do diácono bailava no Espírito de for ma considerada muito impressionante com as mãos para cima fazendo várias evoluções em êxtase isso durou alguns minutos até que o mesmo senhor caiu ao solo e ficou durante certo tempo em repouso Entre vistandoo pude saber que ele em nenhum momento mesmo na oca sião do repouso perdeu a consciência do que estava acontecendo mas ao mesmo tempo encontravase num estado de leveza de satisfação interior e de paz como nunca sentira antes em sua vida O episódio REVISTA DE ANTROPOLOGIA SÃO PAULO USP 2003 V 46 Nº 1 29 foi comentado por muito tempo no grupo Glória a Ti Senhor tendo sido considerado uma bela demonstração de efusão do espírito Meus dados parecem indicar assim que não é possível adotar com pletamente as distinções propostas por Marion Aubrée acima descritas Embora o êxtase tenha sido referido com freqüência na literatura como relacionado ao cristianismo ele não se limita a essa manifestação religio sa nem pode caracterizarse apenas como algo que implica sair de si ou uma viagem Essas são características que por exemplo foram des critas por Mircea Eliade em relação aos xamãs de várias partes do mun do cujos espíritos empreendem a viagem xamanística pelo mundo dos espíritos ou dos deuses para relacionarse com eles ou combatêlos a fim de curar a doença de seus pacientes ou realizar outras façanhas Por outro lado para esse autor o elemento específico do xamanismo não é a incorporação dos espíritos pelo xamã mas o êxtase provocado pela subida ao Céu ou pela descida aos Infernos a incorporação dos espíri tos e a possessão são fenômenos universalmente difundidos mas não pertencem ao xamanismo stricto sensu Eliade 1998 p 542 Em arti go anterior Maués Villacorta 2001 citando o conhecido trabalho do antropólogo Ioan Lewis procuramos mostrar como essa posição de Eliade deve ser relativizada Segundo Lewis todos os xamãs são médiuns e como dizem expressivamente os caribes negros das Honduras Britânicas tendem a funcionar como uma ligação telefônica entre o homem e Deus Evidentemente não se pode concluir que todos os médiuns são necessariamente xamãs apesar de essas duas características estarem usualmente ligadas As pessoas que sofrem regular mente possessão por um espírito particular podem ser consideradas como médiun para aquela divindade Alguns mas nem todos os médiuns se gra duarão a ponto de se tornarem controladores de espíritos e uma vez do 30 RAYMUNDO HERALDO MAUÉS BAILANDO COM O SENHOR minando essas forças de maneira controlada serão xamãs propriamente ditos Lewis 1977 p 5664 Assim para Lewis ao contrário de Eliade a característica fundamen tal do xamã situase no controle que o médiun é capaz de manifestar sobre as entidades que o possuem mas que de certo modo são tam bém possuídas ou domadas por ele Neste ponto creio ser relevante tratar embora sumariamente a res peito da pajelança rural amazônica ou pajelança cabocla que não se confunde com a pajelança ou xamanismo indígena Tratase de um culto de características xamânicas no qual o oficiante pajé ou cura dor recebe entidades chamadas encantados ou caruanas com a finali dade principal de curar os doentes que o procuram Essa forma de paje lança está muito difundida especialmente entre as populações rurais amazônicas e pude estudála há alguns anos no litoral paraense na microrregião do Salgado mais especificamente no município de Vigia Maués 1995 e Maués Villacorta 2001 O estudo antropológico clássico sobre a pajelança cabocla e o catolicismo popular foi feito por Eduardo Galvão no Baixo Amazonas em seu livro Santos e visagens 1955 Tanto os dados de Galvão como os meus próprios reforçam a posição de Lewis relacionada ao xamã A esse respeito vale dizer que além de seus transes habituais nos quais recebem os caruanas ao realizar suas sessões os mais poderosos pajés amazônicos chamados às vezes de sacacas são também pensados como capazes de realizar uma espécie de viagem xamanística visitando o mundo dos encantados mas não apenas com seu espírito acreditase que eles visitam o encante lugar de morada dos encantados em estado normal sem estar em transe e lá muitas vezes aprendem técnicas curativas que irão mais tarde aplicar em seus pacientes Galvão 1955 p 12931 e Maués 1995 p 23840 REVISTA DE ANTROPOLOGIA SÃO PAULO USP 2003 V 46 Nº 1 31 Dois outros aspectos das formulações de Marion Aubrée merecem também comentário o primeiro que distingue o êxtase do transe pelo caráter consciente daquele ao contrário deste o segundo diz respeito à presença de alucinações no transe as quais estariam ausentes no êxtase Minha experiência mostra que tanto a questão da consciência ou da in consciência quanto a presença ou não de alucinações encontramse em situações variadas na pajelança e na RCC Na pajelança a violência das incorporações descontroladas e que levam a um esquecimento total do que se passa nestes momentos está culturalmente associada a uma fase em que o candidato a xamã ou a vítima de maus espíritos não pas sou por tratamento ou processo de iniciação que conduza a pessoa ao controle de suas entidades Na RCC o mesmo se dá no caso daquilo que é pensado como possessão demoníaca Nos dois casos quando se trata de pajé experiente ou de fiel católico que recebeu os dons do Espí rito a tendência é a ocorrência de formas de transe ou de êxtase contro lados nos quais via de regra a pessoa a eles sujeita é capaz de relatar pelo menos alguns aspectos de sua experiência Já no que diz respeito à presença ou ausência de alucinações no sentido de ilusões devaneios e fantasias excluindo uma opinião sobre aspectos patológicos que não sou competente para avaliar pude constatar inúmeras vezes que tanto na RCC como na pajelança elas estão presentes no êxtase ou no transe termos que tomo aqui aproximadamente como sinônimos Na RCC por exemplo por ocasião das chamadas visões proféticas tive a possi bilidade de escutar relatos fantásticos a respeito da presença ou aparição de anjos e da Virgem Maria ou também da presença do Espírito Santo no recinto da igreja ou no local da reunião com abundância de detalhes e grande colorido na descrição feita por fiéis em êxtase ou sob efeito do transe de que estavam tomados Há no entanto um aspecto das formulações de Aubrée que me pare ce mais condizente com minha experiência etnográfica é aquele em que 32 RAYMUNDO HERALDO MAUÉS BAILANDO COM O SENHOR ela faz a distinção entre transe de possessão e de inspiração É verda de que em ambos os casos penso que tanto na pajelança quanto na RCC o êxtase ou o transe num sentido ético em oposição ao êmico implicam sim uma forma de possessão que neste caso não significa como disse acima apenas a intrusão ou aproximação de um espírito considerado maléfico Não obstante no caso da pajelança como no xangô o xamã em transe muda de personalidade claramente identifi candose e sendo identificado com o encantado ou orixá de que está possuído No caso da RCC como no pentecostalismo evidentemente que o fiel ao receber a unção do Espírito tanto no momento da glossolalia do repouso da profecia etc não se transforma num sentido êmico na divindade mas apenas recebe seus eflúvios ou fala por ela Isto é muito evidente no caso da profecia na qual o profeta carismático usa como os profetas bíblicos a primeira pessoa do singular ao enunciar suas palavras de caráter ilocucionário ou performático Austin 1990 Considerações finais A razão de ter privilegiado neste trabalho as técnicas corporais ligadas ao êxtase ao transe e à possessão dizem respeito à conviccão que tem sido fortalecida por minha própria pesquisa sobre o aspecto central das mesmas na RCC de Belém a partir das observações que posso realizar Isso está de acordo também com a literatura a que tenho acesso sobre o pentecostalismo no Brasil Vários trabalhos como os de Mariz 1997 de Machado 1996 e de Mariz e Machado 1996 têm chamado aten ção para a relação entre carismáticos e pentecostais para a importância do corpo em seus cultos e para a relevância das explicações de vários tipos de ocorrências especialmente infortúnios tais como doenças que podem resultar da ação de seres espirituais Muito freqüentemente e REVISTA DE ANTROPOLOGIA SÃO PAULO USP 2003 V 46 Nº 1 33 isto tenho encontrado também em minhas próprias pesquisas a ex plicação para desajustes familiares pobreza violência pecado doença e vários outros males está relacionada ao chamado Inimigo o demô nio Em alguns momentos a própria responsabilidade dos indivíduos é minimizada ou subestimada se bem que de minha experiência pes soal nunca encontrei situações em que se possa de fato justificar os atos contrários à moral sob a alegação de que a pessoa agia contra a própria vontade Há sempre a idéia de que se a pessoa está entregue ao Inimi go é também porque não se aproxima de Deus Mas o êxtase o transe e a possessão constituem fenômenos centrais na RCC porque num certo sentido e no limite essa forma de doutrina e prática religiosa poderíamos estender isso a todo o pentecostalismo6 considera que no fundamental os seres humanos são uma espécie de possuídos como já foi enfatizado acima neste artigo Se os males a que os indivíduos estão sujeitos resultam da ação do Inimigo isto signi fica que o demônio e os demais espíritos maléficos exercem poderosa influência sobre os seres humanos Essa influência pode manifestarse de várias formas e em algumas situações através de estados alterados de consciência como o transe hipercinético isto é a possessão violenta e mais ou menos espetacular Algumas vezes durante as próprias reuniões dos grupos de oração como pude observar embora raramente de terminadas pessoas entram em transe e essa manifestação é interpretada como resultado da ação do demônio manifestandose em geral através da denominação de alguma entidade ligada às religiões afrobrasileiras O próprio repouso no Espírito precisa ser interpretado por alguém que tenha discernimento pois caso a manifestação ocorra de forma mais demorada com queda violenta e traumática e com perda total de consciência surgem dúvidas como foi apontado acima sobre se não se trata de fato de ação do diabo e não do Espírito Santo 34 RAYMUNDO HERALDO MAUÉS BAILANDO COM O SENHOR Não obstante quando a pessoa adere à Renovação e recebe os dons do Espírito Santo muitas vezes porque procura de modo consciente curarse de seus males a cura representa em última análise o afasta mento do Inimigo do corpo e da alma daquela pessoa que assim po derá de fato realizar o ideal do cristão de tornarse efetivamente o tem plo do Espírito O Espírito Santo ao invés do Inimigo passa a morar nela e com isso ela recebe seus dons sua efusão pode orar em línguas a língua dos anjos pode repousar e até bailar no Espírito e pode exer cer conforme lhe são dados os diferentes dons do mesmo Espírito profecia discernimento sabedoria cura etc Isso não é uma coisa tão simples nem tão tranqüila já que o processo tem de ser renovado cons tantemente pois Satanás está sempre à espreita disputando com o di vino aquele corpo e aquela alma E se houver por qualquer razão o afastamento de Deus ela pode voltar a ser posse possessão do demô nio Desse modo no limite só há duas alternativas para os seres huma nos ou ser de Deus ou ser do Inimigo E essas duas maneiras de ser embora não se atualizem sempre em forma de êxtase transe ou posses são constituem um estado latente que nas ocasiões em que são provocadas propiciadas ou induzidas se manifestam de diferentes for mas de modo conspícuo com intensidades diversas Isso aliás é bem conhecido na literatura antropológica a possessão usando o termo sem o conhecido juízo de valor negativo emprestado dos nativos cristãos ou de outras religiões dualistas a possessão repito é um fenômeno que se atualiza de forma visível em determinados mo mentos quando surgem crises ou outros fatos que permitem ou propi ciam sua manifestação Fora desses momentos o possuído aquele que pertence a um determinado deus espírito orixá demônio ou santo age como todos os demais embora mantendo em seu interior e muitas vezes nas marcas ou gestos externos de seu corpo os signos os estigmas ou sinais dessa mesma possessão REVISTA DE ANTROPOLOGIA SÃO PAULO USP 2003 V 46 Nº 1 35 Notas 1 Este artigo foi apresentado em versão preliminar durante as XI Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina em Santiago do Chile em outubro de 2001 na mesaredonda Cuerpo y formación de sensibilidades la crisis del para digma cartesiano racionalista y representacional en los estudios de religión Agra deço a Clara Mafra pelo convite para participar da mesa Agradeço também a Marion Aubrée pelos comentários críticos e sugestões pertinentes feitos na oca sião dos debates e em conversa posterior que me ajudaram a repensar e reformular este texto embora sem incorporálos totalmente 2 Este curioso episódio me foi relatado em comunicação pessoal por colega antro póloga que se achava presente nessa ocasião mas cujo nome omito aqui por não ser essencial reproduzilo 3 Esta expressão não utilizada pelos atores me foi sugerida como título deste artigo por Maria Angélica MottaMaués antropóloga e minha mulher 4 Em razão de problemas de tradução na edição portuguesa citada aqui faço tam bém a citação do texto original Les façons dont les hommes société par société dune façon traditionnelle savent se servir de leur corps Le corps est le premier et le plus naturel instrument de lhomme Ou plus exactement sans parler dinstrument le premier et le plus naturel objet technique et en même temps moyen technique de lhomme cest son corps Mauss 1973 p 37172 5 Depois de falar sobre as pulsões idiossincráticas da pessoa e das pulsões ineren tes a seu grupo de pertencimento as partes mais importantes do texto original de Marion Aubrée que traduzi parcialmente são as seguintes Elle me fournira en second lieu la possibilité de distinguer entre la transe et lextase notion très employée en milieu chrétien qui diffèrent tant par les modes dindution que par les états psychophysiologiques qui caractérisent lune et lautre e pourraiton ajouter par la symbolique exprimée par ceux qui les vivent De fait lextase quelle ressortisse à la mystique chrétienne chamanique ou spirite est toujours décrite comme une sortie de soi généralement selon une dynamique excursionnelle tandi que la transe correspond toujours à la descente dune divinité ou dun esprit en soi 36 RAYMUNDO HERALDO MAUÉS BAILANDO COM O SENHOR A partir de la littérature sur le sujet on peut dire que linduction de la transe passe par le bruit et par lagitation elle requiert la présence des autres tandis que lextase surgit dans limmobilité et le silence de la solitude En ce qui concerne létat de transe Rouget note une surstimulation sensorielle une dissociation de la conscience qui ne permet pas de mémoriser lexperience et enfin une absence dhallucinations Dans lextase au contraire on observe selon Lapassade une privation sensorielle une conscience claire de ce qui se passe et en conséquence la possibilité de se rappeler cf les mystiques chrétiens ainsi que de fréquentes hallucinations Enfin Rouget crée une seconde différence à lintérieur de la categorie transe Il détermine une transe de posses sion et une transe dinspiration Dans le premier cas le possédé change de personnalité en ce sens quil devient la divinité dans le second lindividu conserve sa personnalité mais est investi par la divinité qui en le dominant fait de lui son porteparole 6 Há muitas variações no pentecostalismo mesmo se tomarmos apenas aquelas igre jas ou seitas mais conhecidas no Brasil como a Congregação Cristã a Assembléia de Deus a Igreja do Evangelho Quadrangular a Universal a Deus é Amor para citar só algumas Por isso pareceme arriscado generalizar em relação ao pente costalismo como um todo Mas boa parte das manifestações do pentecostalismo no Brasil parece sim incluir essas características Referências bibliográficas ABBAGNANO N 2000 Dicionário de Filosofia São Paulo Martins Fontes ALVES P C RABELLO M C 1998 Repensando os estudos sobre representações e práticas em saúdedoença In Antropologia da Saúde 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MerleauPonty Pierre Bourdieu and Thomas Csordas concepts With these theoretical instruments the article tries to analyze a part of the empirical data collected by the author in a field research among the Charismatic Catholics in the city of Belém and among rural inhabitants peasants and craft fishermen of Brazilian Eastern Ama zon coastal region of Pará State whose mainly religious practice is pajelança and popular Catholicism KEYWORDS Charismatic Catholic Renewal pajelança body ecstasy trance possession Recebido em agosto de 2002